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REFLEXÕES

DEFENSIVAS
E SCRITOS D E D IREI T O
E PR OCES S O PE NAL

Denis Sampaio
RIO DE JANEIRO, 2020
SUMÁRIO

A CADE IA DE CU ST Ó D I A
NA PRODU ÇÃO P ROBAT ÓR I A P E N A L
9
[Introdução]........................................................................................................... 10

[1] Premissa teórica da cadeia de custódia das provas............................................. 11

[2] Conceito, sentido e estrutura da cadeia de custódia das provas......................... 14

[3] Etapas da cadeia de custódia – a história da prova técnica................................. 21

[4] Ônus da prova quanto a cadeia de custódia e direito à prova lícita.................... 25

[5] Filtros epistêmicos e busca para uma decisão de qualidade............................... 28

[6] Inobservância das etapas da cadeia de custódia –


quebra da cadeia de custódia e seus efeitos........................................................ 30

[Conclusão]............................................................................................................ 33

[Bibliografia].......................................................................................................... 34

A RE GRA DO CON T RADI T Ó R I O


NO NO V O CÓDIGO DE P ROC E S S O C I V I L
E SU A “P OSSÍV E L” IN F LU Ê N C I A N O
D IRE IT O P ROCE SSU AL P E N A L
38
[Introdução]........................................................................................................... 39

[1] O contraditório no atual CPP.. ............................................................................... 39

[2] A regra do contraditório no NCPC. . ....................................................................... 41

[3] A visão clássica do preceito jurisdicional a partir da colaboração


das partes no processo penal............................................................................... 45

[4] Efetiva participação dos atores processuais como necessária


alternância da cultura processual pelo método do contraditório....................... 47

[5] O resultado do esforço entre a produção de efeitos –


o direito à prova no processo penal..................................................................... 54

2
[6] Um exemplo de tentativa de valorização ao equilíbrio das partes no Direito
Continental – a atuação defensiva para a descoberta das fontes de prova........ 56

[7] Ainda como resultado, o reconhecimento judicial do contraditório.................... 58

[Conclusão]: a análise da regra do contraditório para o


Projeto de Reforma do CPP................................................................................... 60

[Bibliografia].......................................................................................................... 63

RE FL E XÕE S SOBRE A IN V E S T I G A Ç Ã O
D E FE NSIV A N O SIST E M A P R O C E S S U A L
P E N AL BRASILE IRO –
P OSSÍV E L RE N OV AÇÃO DA IN F L U Ê N C I A
I TA LIAN A P ÓS “CÓDIGO R O C C O ”
SOBRE A IN DAGIN E DIF E N S I V E
68
[Introdução]........................................................................................................... 69

[1] A mudança da postura italiana –


o justo processo como um modelo constitucional............................................... 71

A real mudança de postura – um contraditório in senso forte............................... 72


Direito à prova como direito de se defender provando............................................. 75

[2] Possibilidade investigativa pelo defensor no CPP italiano................................... 76

Referência ao defensor – questões deontológicas..................................................... 78


Objeto probatório da investigação defensiva............................................................ 81
Necessidade de documentação das entrevistas realizadas com as testemunhas...... 81
Pedido de documentos à administração pública....................................................... 83

[3] Valor probatório da atividade investigativa defensiva......................................... 84

[Considerações finais]: o grau de abrangência da defesa na


investigação criminal no Brasil, a partir do direito comparado. . ......................... 85

[Bibliografia].......................................................................................................... 88

3
A “JU RISDIF ICAÇÃO” DA E X P A N S Ã O
DO D IREIT O P E N AL – RE DU ÇÃ O D A C A R G A
P ROBAT ÓRIA DO IN JU ST O P E L O
MOD E RN O M ODE LO IN CRI M I N A D O R
90
[Introdução]........................................................................................................... 91

[1] Critérios de legitimidade da intervenção penal. . .................................................. 94

Ponto inicial do Direito Penal – O reflexo limitativo do ius puniendi...................... 95


A legalidade como princípio cognitivo da significação normativa............................. 98
Ainda há defesa material à tutela penal do bem jurídico?....................................... 100

[2] Os novos critérios de delimitação normativa...................................................... 103

[3] A influência da prova no tipo de ilícito................................................................ 106

[4] A identificação jurisdicional da abstração do Direito penal preventivo............. 110

[5] Gestão da prova do injusto de perigo.................................................................. 113

A análise judicial da perigosidade concreta............................................................. 116


A análise probatória dos crimes de perigo abstrato.. ............................................... 118

[Como se fosse uma conclusão]........................................................................... 125

[Bibliografia]......................................................................................................... 126

I NOV AÇÕE S T E CN OLÓGI C A S N O


DIRE IT O P ROCE SSU AL PE N A L –
A DIALÉ T ICA E N T RE E F ICÁCIA E G A R A N T I A
132
[Introdução].......................................................................................................... 133

[1] O Tempo e o Processo Penal................................................................................ 135

[2] Imediatividade dos fatos, imediação e


concentração das provas na discussão processual penal................................... 139

[3] Implementação da inovação tecnológica nas salas de julgamento –


registro audiovisual dos atos processuais realizados......................................... 147

[4] Interrogatório e oitiva de testemunhas por vídeoconferência –


efetividade prática e análise da garantia fundamental da ampla defesa. . ......... 151

4
[5] Argumentos positivos e negativos da utilização
da videoconferência no processo penal.. ............................................................. 152

[6] Interrogatório do arguido por videoconferência –


um nefasto avanço tecnológico........................................................................... 157

[Como se fosse uma conclusão]........................................................................... 163

[Bibliografia]......................................................................................................... 165

A GE STÃO DA P ROV A N O P ROC E S S O P E N A L –


CONTI NU IDADE DO SIST E M A I N Q U I S I T Ó R I O
P E LA LE I 1 1 .6 9 0 / 08
169
[Breve nota introdutória]..................................................................................... 170

[1] A Gestão da prova e sistema caracterizador do processo penal......................... 171

[2] “Prova” Policial – Ratificação judicial dos elementos informativos. . ................... 173

[3] (In) coerência normativa do artigo 156 do Código de Processo Penal,


agravada pela Lei 11.690/08. . ............................................................................... 175

[Nota conclusiva].................................................................................................. 181

[Bibliografia]......................................................................................................... 183

A ARGU M E N T AÇÃO JU R Í D I C A
COM O GARAN T IA CON ST IT U C I O N A L
N O P ROCE SSO P E N A L
186
[Breve nota introdutória]..................................................................................... 187

[1] Critério aproximativo da Lógica Formal. . ............................................................. 188

[2] Formação próxima da Lógica Jurídica.................................................................. 191

[3] A motivação das decisões como argumentação jurídica..................................... 195

[4] Através da fundamentação estrutura-se uma decisão legítima. . ........................ 200

[Nota conclusiva].................................................................................................. 203

[Bibliografia]......................................................................................................... 205

5
A FUNÇÃO BÁSICA DO DIRE I T O P E N A L
VISTA ONT E M E H OJE – A P ARTI R D A A N Á L I S E
CRI M IN OLÓGICA DE P ROP O S T A D E
ALT E RAÇÃO N ORM AT I V A
207
[1] A função básica do Direito Penal vista ontem e hoje.......................................... 208

[2] O Estado criminalizador: entre a panpenalização e sua autofagia..................... 211

[3] O risco catastrófico da antecipação – O Direito Penal em seu devido lugar. . ..... 213

[Para efeito de conclusão] – a permanência de


um discurso e ausência de soluções concretas................................................... 216

O SIM BOLISM O ART IF IC I A L D O


BE M J URÍDICO CRIM IN ALIZ AD O P E L O U S O
DE E NTORP E CE N T E – U M A V ISÃ O P A N Ó P T I C A
218
[Breve introdução criminológica]. . ....................................................................... 219

[1] Princípios Constitucionais Penais – Sua relevância............................................. 223

Princípio da Legalidade, Taxatividade ou da Reserva Legal..................................... 224


Princípio da Lesividade – sua aplicação prática:...................................................... 228

[2] Por conseqüência, qual o verdadeiro Bem jurídico tutelado?


Ou melhor, há bem jurídico?................................................................................ 231

[Conclusão]........................................................................................................... 238

[Bibliobrafia]. . ....................................................................................................... 244

6
IN OV AÇÃO LE GISLATI V A
N O U SO DE E N T ORP E C E N T E S
DIAN T E DE U M A V ISÃO P RO C E S S U A L
246
[1] Natureza do tipo previsto no artigo 28:
medida despenalizadora ou descarcerizadora?. . ......................................................... 248

[2] Adequação da natureza do uso de entorpecente ao aspecto processual........... 250

Do juiz natural:........................................................................................................ 250


Da medida constritiva:............................................................................................. 250
Da ritualística procedimental:. . ................................................................................ 251

[3] Do princípio da intrancedência............................................................................ 252

[Como se fosse uma conclusão]........................................................................... 253

LA DE F E N SORIA P Ú B L I C A
I N BRASILE E LA P ROT EZ I O N E
D E I DIRIT T I F ON DAM E N T A L I
254
[Introduzione] . . ..................................................................................................... 25

[1] Contesto storico – giuridico della .. ..................................................................... 258

Defensoria Pública in Brasile. . ............................................................................... 258

Difensori Pubblici..................................................................................................... 259

[2] Le attribuzioni della . . ........................................................................................... 260

[3] Defensoria Pública. . .............................................................................................. 260

[4] L’Attività extragiudiziali della . . ............................................................................ 262

[5] Defensoria Pública. . .............................................................................................. 262

[6] L’attuazione nelle tutele collettive . . ..................................................................... 263

[7] Attuazione della Defensoria Pública dinnanzi al


Sistema Inter-Americano di Protezione dei Diritti dell’Uomo............................. 266

[Conclusione]........................................................................................................ 269

[Bibliografia]......................................................................................................... 270

7
P ARE CE RE S

272
[PARECER]
A problemática das Cartas Precatórias –
Competência funcional – Ato de delegação .. ............................................................ 273

Consulta..................................................................................................................... 274

A Defensoria Pública deve atuar nas Cartas Precatórias em que haja


advogado constituído para a defesa do acusado nos autos de origem?................... 274
Em caso positivo, trata-se de atuação típica ou atípica?......................................... 275
Caberá o arbitramento de honorários pela atuação naquele ato processual?......... 276

[PARECER]
Advogado constituído – impossibilidade de nomeação da
Defensoria Pública – análise constitucional do artigo 456, § 2º CPP........................ 277

A análise constitucional e sistêmica do atual artigo 456, parágrafo 2 o, CPP............ 278


Celeridade Processual versus garantia constitucional da plenitude da defesa........ 281

[PARECER]
Defensor Público como assistente de acusação
em processo criminal – garantia a assistência integral............................................ 283

A presença da vítima no Processo Penal – sua relevância constitucional. . ............... 283


Garantia Constitucional do acesso à justiça – a defesa da ordem jurídica justa . . ... 286
A Defensoria Pública como efetivação de garantia fundamental............................. 288
A necessidade de efetivação de garantias fundamentais –
a importante função política deve deflagrar na atuação prática. . ........................... 292

[PARECER]
Dever do(a) Defensor(a) Público(a) de Classe Especial o
comparecimento e sua permanência nas Câmaras Cíveis / Criminais
durante os julgamentos – acesso efetivo à justiça
versus independência funcional . . ............................................................................. 296

Garantia Constitucional do acesso à justiça – a defesa da ordem jurídica justa . . .... 297
A Defensoria Pública como garantia fundamental................................................... 299
A necessidade de efetivação de garantias fundamentais –
a importante função política deve deflagrar na atuação prática. . ........................... 303
Voz – Fiscalização – Assédio – Dever Constitucional da Defensoria Pública.. ............ 304
O Dever Legal de Presença – O Dever Constitucional da Defesa ampla
dos Direitos Constitucionais – A Função do Defensor Público.................................. 307
Para muito além da presença –
independência funcional versus defesa de direitos.. ................................................ 310

8
A CAD EIA D E CU S TÓ DI A

NA PRODUÇÃO
PROBATÓRIA PENAL

TEXTO PUBLICADO ORIGINARIAMENTE EM COAUTORIA COM DANIEL DAMANTARAS:

Cadeia de Custódia da Prova In: O Processo Penal Contemporâneo


e a Perspectiva da Defensoria Pública. 1 ed. Belo Horizonte:
CEI, 2020, v.1, p. 325-350.
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

INTRODUÇÃO

O Código de Processo Penal tem sido submetido a uma série de reformas na última déca-
da, sendo as mais relevantes feitas pelas leis 11.689/2008, 11.690/2008 e 11.719/2008.
Neste momento, passa-se por mais uma alteração legal advinda de um pacote de me-
didas (denominado “pacote anticrime”).

Após o trâmite pela Câmara dos Deputados e Senado Federal, o Presidente da


República sancionou o Projeto de Lei 6.341/20191, estando em vigor, portanto, a Lei
13.964/20192. Entre outras alterações legais no Código Penal, no Código de Processo
Penal e na Lei de Execuções Penais, objeto de outros artigos que compõem esta obra,
a presente pesquisa teve como propósito analisar a cadeia de custódia da prova no
processo penal, cujas normas foram incluídas pela novel lei.3

Trata-se de tema de extrema relevância para a produção da prova penal, cujo es-
tudo, imprescindivelmente, passará pela análise da epistemologia jurídica.

Impulsionadas pelos avanços científicos e tecnológicos, as provas periciais hoje


ocupam um lugar de destaque e relevância dentro do processo criminal, possuindo
em seus resultados um grau elevado de confiança pelo senso comum e também pelas
autoridades públicas, o que acarretam problemas diante da ausência de uma pers-
pectiva crítico-racional, principalmente por parte dos julgadores. A falta de controle da
validade e confiabilidade e, por conseguinte, o ingresso no processo de dados incorre-
tos ou exagerados conduzem ao aumento do risco de erro nas decisões judiciais.4

Atento a esta nova realidade de inovações, o legislador incluiu o programa da ca-


deia de custódia, criando normas procedimentais para registrar, rastrear e controlar
todo o caminho do vestígio objeto da prova pericial, além de determinar a estrutura-
ção das organizações responsáveis pelo tratamento e preservação da prova, a fim de
aumentar a qualidade desta.

1 Confira PL 10.372/18, PL 10.373/18 e PL 882/19 (este último encaminhado pelo Poder Executivo).

2 Alguns artigos estão com a eficácia suspensa por decisão liminar do Ministro Luiz Fux, Ministro do Supremo Tribunal Federal, aguardando a apreciação pelo
Plenário da Corte (ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305).

3 Importante registrar que, antes da previsão legal, a cadeia de custódia era regulada por normas infralegais, como, por exemplo, a Portaria nº 82, de 16 de
julho de 2014, da Secretaria Nacional de Segurança Pública/Ministério da Justiça.

4 GASCÓN ABELLÁN, Marina. Prólogo In VÁZQUEZ ROJAS, Carmen. De la prueba científica a la prueba pericial. Madrid: Marcial Pons, 2015, p. 13-15.

10
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

Tais normas estão preconizadas nos artigos 158-A e seguintes do Código de Pro-
cesso Penal, contendo a definição do instituto e todo o procedimento a ser adotado
para manipular o elemento probatório.

A seguir, além das normas legais, sem a pretensão de exaurimento da matéria,


serão analisados o conteúdo da cadeia de custódia, seus objetivos, nuances, impor-
tância para a atividade probatória penal e para decisão judicial.

Para dar conteúdo à análise normativa, necessário se faz uma introdução a partir
de breves comentários acerca de alguns institutos, tais como epistemologia jurídica,
verdade e incertezas, erro, prova, sistema de valoração judicial da prova, etc.

[1]
PREMISSA TEÓRICA

DA CADEIA DE CUSTÓDIA DAS PROVAS

Parte da doutrina tem se ocupado do estudo da epistemologia, aplicando-a ao direito.


Trata-se do estudo do conhecimento que vai repercutir, no âmbito do direito proces-
sual penal, na atividade probatória, na investigação sobre ocorrência do fato e na va-
loração feita pelo julgador.

Como o conhecimento se trata de uma relação subjetiva e o resultado ser sempre


uma imagem do objeto, com grandes dificuldades de total coincidência com este, o
processo de conhecimento5 está eivado de imperfeição e provisoriedade.6 Note-se que
o sujeito acessa apenas parte da realidade (objeto), e não sua totalidade, que é mui-
to mais complexa e ampla, sendo inacessível à capacidade de compreensão humana.
Assim, o conhecimento puro ou verdadeiro é inatingível para o ser humano diante da
natural limitação de sua cognição.

5 Conhecimento “é a palavra que designa uma relação, ha vida entre um sujeito que conhece, ou sujeito cognoscente, e um objeto que é conhecido, sendo
usada, também, para designar o resultado dessa relação, como tal entendida a imagem construída pelo sujeito a respeito do objeto”. MACHADO SEGUNDO,
Hugo de Brito. O direito e sua ciência: uma introdução à epistemologia jurídica. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 38. Cf. também HESSEN, Johannes. Teoria do
conhecimento. Tradução de João Vergílio Gallerani Cuter. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 23.

6 MACHADO SEGUNDO. O direito e sua ciência, op. cit., p. 39. “(...) A cada nova análise, a cada novo exame do objeto, a imagem que se tem dele é sujeita a
ratificações ou a retificações”.

11
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

Nada obstante esta infalibilidade e a aceitação de que é impossível obter o conhe-


cimento total da verdade, se torna de difícil alienação o trabalho com uma teoria do
conhecimento no processo penal7, principalmente no campo probatório.

Dentro do processo, crê-se na representação da verdade como condição para


uma decisão justa.8 Defende-se, ainda, que a verdade pode ser buscada na seara judi-
cial da mesma maneira que pode ser descoberta em outras áreas do conhecimento e
da experiência humana.9

Contudo, o discurso sobre a verdade real, ainda defendida por muitos e por vezes
citada em decisões judiciais, é inatingível diante da limitação e falibilidade da cognição
humana10, como visto acima.

Sabe-se que a defesa da busca por uma verdade não se trata de alcançar uma que
seja absoluta no sentido de se atingir um conhecimento que corresponda exatamen-
te à realidade dos fatos históricos11, mas sim uma verdade objetiva, ou seja, “em que
o parâmetro da correspondência do conhecimento é a realidade dos fatos empirica-
mente constatável”.12

Saliente-se, entretanto, que o objeto do processo não é descobrir a verdade como


elemento primordial, mas determinar se a formulação das hipóteses acerca de um fato
apresentadas pela parte foi comprovada.13 De fato, o processo tem natureza cognitiva,
tendo esta atividade voltada para a produção da prova que corroborará ou refutará
aquelas hipóteses trazidas pelas partes no processo. Para tanto, levará em considera-
ção um standard probatório e aplicará as respectivas normas probatórias.14

7 BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 123.

8 O fato de num processo acusatório as partes terem um papel relevante na produção da prova e na argumentação, não se abandonou a busca dessa
condição (cf. BADARÓ. Epistemologia judiciária, op. cit., p. 66).

9 TWINING, W. Rethinking evidence. Exploratory essays. Oxford: Blackwell, 1990, p. 178, 192-199.

10 POPPER, Karl. Verdade e aproximação da verdade. In MLLER, David (org.). Textos Escolhidos Popper. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora Puc Rio,
2016, p. 183.

11 Na medida em que esse resultado se caracterize, na maioria das vezes, como impossível em decorrência dos múltiplos observadores e vários componentes
que interferem na busca e resultado. Cf. POPPER, Karl. Conjectura e refutação. O progresso do conhecimento científico. Tradução Sérgio Bath. 5ª ed. Brasília:
UNB, 2008, p. 251. TARUFFO, Michele. A prova. Tradução de João Gabriel Couto. 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 25-26. “Na melhor das hipóteses, a
ideia geral de verdade pode ser concebida como uma espécie de “ideal regulador”, ou seja, como um ponto de referência teórico que se deve seguir a fim
de orientar a empresa do conhecimento na experiência real de mundo.” (Idem, p. 26).

12 BADARÓ. Epistemologia judiciária, op. cit., p. 123. “Não será possível ao julgador afirma, com absoluta certeza, do ponto de vista racional, que um enunciado
fático é verdadeiro, porque corresponde à realidade dos acontecimentos. Sendo a conclusão da inferência probatória sempre apenas provável – no sentido
probabilístico – a certeza que se obtém por meio de tal inferência probatória nunca será uma certeza lógica, sempre havendo, uma margem – maior ou
menor, para o erro. Mas é possível com uma probabilidade lógica, considerar racionalmente que um enunciado fático é preferível a outro com ele
incompatível ou mesmo apenas divergente, diante da maior corroboração do primeiro”. (Idem, p. 124).

13 MATIDA, Janaina; HERDY, Rachel. As inferências probatórias: compromissos epistêmicos, normativos e interpretativos. In CUNHA, José Ricardo (org.).
Epistemologias críticas do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 213.

14 Idem, p. 213.

12
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

Registra-se, todavia, que não é o único objetivo do processo a averiguação da ver-


dade, mas também assegurar os direitos e garantias do acusado na persecução penal15
(dimensão democrática), convergindo para uma “verdade processualmente válida”16.

Quanto ao standard probatório acima referido, pode-se sustentar que este tam-
bém se relaciona com o estudo da epistemologia e da prova, significando a medida a
partir da qual se considerará uma hipótese necessariamente provada, justificada e, por
conseguinte, judicialmente verdadeira. Ato contínuo, deve-se ter em mente que o grau
de corroboração (comprovação) de uma hipótese sobre os fatos vai depender da prova
produzida e, em especial, da sua qualidade e confiabilidade. Estas duas características
serão obtidas, entre outros métodos, pelo devido procedimento da cadeia de custódia.

Outrossim, com o objetivo de diminuir os erros judiciais com a proliferação de de-


cisões injustas e, portanto, seguir a linha da proteção ao inocente, vital será sempre
produzir provas confiáveis e submetidas ao imprescindível controle, através da cadeia
de custódia. Aliás, toda teoria da prova deve ser dirigida a este fim: evitar erros judici-
ários nos julgamentos e proteger o cidadão inocente.

Em breves palavras, a cadeia de custódia das provas é um procedimento contínuo


e documentado para demonstrar a autenticidade das provas. Trata-se de um compro-
misso epistêmico em manter o material colhido com mais força, credibilidade e quali-
dade probatória.

O objetivo, portanto, é promover uma produção probatória que comprove ou não


as proposições fáticas contidas na imputação penal com exatidão (“accuracy”17), valen-
do-se para tanto de elementos confiáveis, a fim de assegurar um julgamento correto e
sua respectiva validade gnosiológica, em que não haverá um risco (ou pelo menos este
será mínimo como pretensão do due process of law) de um inocente ser condenado.18

15 FERRER BELTRÁN, Jordi. La valoracíon racional de la prueba. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 31. DAMASKA, Mirjan. Evidence Law Adrift. New haven-London: Yale
University Press, 1997, pp. 12-17.

16 Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal, vol. I. Coimbra: Coimbra editora, 1974, p.194. MALAFAIA, Joaquim. A linguagem no depoimento das
testemunhas e a livre apreciação da prova em processo penal. Revista Portuguesa de Ciências Criminais, ano 20, nº 4, (out.-dez), 2010, p. 565 (pp. 555-578) –
“Assim, a reconstituição que se vai fazer dos factos não é uma reconstituição histórica dos factos mas uma reconstituição judicial em que vai ser declarado o
que é verossímil que tenha sido verdade”). CALHEIROS, Maria Clara. A construção retórica do processo penal. In Simpósio em homenagem a Jorge de Figueiredo
Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra, p. 366 – essa reconstituição dos fatos “não pode escapar à subjectividade não
só do juiz, mas também de cada um dos indivíduos que intervém, seja como testemunhas, peritos etc, no processo dirigido a esclarecer o que sucedeu
exactamente num momento que, por não ser já presente, não pode ser captado em toda a sua plenitude” (p. 366). GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES,
Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 7ª ed., rev. e atual., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, pp.
129-132.

17 Nos Estados Unidos, a importância dada à confiabilidade é analisada sob o ponto de vista de uma política intrínseca (“intrinsic policy”), preocupada em assegurar
o máximo possível de credibilidade de um elemento de prova. Trata-se de uma preocupação em evitar erros no julgamento por parte do julgador com uma
análise equivocada de elementos não-confiáveis.

18 DWORKIN, Ronald. A matter of principle. Cambridge: Harvard University Press. 1986, p. 72. EPPS, Daniel. The consequences of error in criminal justice. Harvard
Law Review, vol. 128, nº 4, pp. 1065-1151, 2015, p. 1069.

13
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

Toda justificação, portanto, da inclusão no Código de Processo Penal de normas


sobre cadeia de custódia encontra respaldo no estudo da epistemologia jurídica, uma
vez que este, aplicado no campo processual penal, permite uma melhor qualidade na
transmissão do conhecimento sobre os fatos analisados (corroborando ou não as pro-
posições apresentadas pelas partes) a partir da prova penal produzida, dotando-a de
uma maior eficácia e força comprobatória.

A observância da cadeia de custódia é, pois, um importante filtro epistemológico na


qual as provas relevantes para esclarecer as hipóteses fáticas contidas na imputação
serão preservadas, passando credibilidade e legitimando as decisões judiciais e, numa
visão ampla, o próprio poder punitivo do Estado.

Tendo como pressuposto teórico necessário a incerteza, o erro e a busca do direi-


to à prova lícita para uma decisão justa, passar-se-á, nos próximos capítulos, aos estu-
dos da novidade legislativa, analisando as normas incluídas no diploma processual.

[2]
CONCEITO, SENTIDO E ESTRUTURA

DA CADEIA DE CUSTÓDIA DAS PROVAS

Conforme definição legal atualmente prevista no Código de Processo Penal, a cadeia


de custódia é “o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e docu-
mentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes,
para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte”
(art. 158-A, caput, CPP).19

Na doutrina especializada sobre perícia criminal, Domingos Tocchetto diz que:


“Cadeia de custódia, no âmbito da perícia criminal, é a aplicação de uma série de pro-
cedimentos destinados a assegurar a originalidade, a autenticidade e a integridade do
vestígio, garantindo assim a idoneidade e transparência da prova técnica.”20

19 Note-se que a maioria das normas agora incluídas no CPP já existiam de forma infralegal, às quais se baseou o legislador reformador. O conceito da cadeia de
custódia, por exemplo., consta do anexo I, Portaria 82, de 16 julho de 2014, da Secretaria Nacional de Segurança Pública/Ministério da Justiça (“1.1. Denomina-
se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio, para rastrear sua posse
e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.”)

20 TOCCHETTO, Domingos. Balística forense. Aspectos técnicos e jurídicos. 9a ed. Campinas: Milennium, 2018, pp. 4.

14
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

O tema não passou despercebido pela doutrina jurídica, em especial Geraldo Pra-
do quando afirma que a “cadeia de custódia da prova nada mais é que um dispositivo
dirigido a assegurar a fiabilidade do elemento probatório ao coloca-lo sob proteção de
interferências capazes de falsificar o resultado da atividade probatória.”21

Nessa linha, trata-se de um meio de preservação dos elementos probatórios e de


toda a cadeia cronológica destes, garantindo que determinado vestígio do crime colhido
inicialmente seja o “mesmo” que servirá como base da decisão judicial22, a fim de assegu-
rar a fiabilidade de todo conhecimento produzido a partir da produção da prova penal.

Isto é importante principalmente quando se produz exames de DNA, intercepta-


ção telefônica e telemática23, análise de entorpecente, etc no curso da investigação.

O propósito é impedir a manipulação do vestígio para incriminar ou isentar al-


guém de pena, forjando ou eliminando algum elemento, não se limitando, porém, a
este ponto referente à conduta de determinado agente estatal. Importa, assim, ultra-
passar a análise do elemento subjetivo de boa-fé ou má-fé do agente e priorizar “crité-
rios objetivos empiricamente comprováveis”.24 O principal é que haja um procedimen-
to, tal como incluiu a reforma pela Lei 13.964/2019, para preservar o vestígio e todo
seu trâmite, dando confiabilidade a ele.25

Em outras palavras, o propósito é restar demonstrado que determinada prova


refere-se àquele determinado crime e que o elemento informativo foi colhido no local
do crime e sua natureza e condição originais foram preservadas ao longo de todo o
período de custódia da prova. Desta forma, manter-se-á a veracidade/autenticidade

21 PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial
Pons, 2014.

22 URAZÁN BAUTISTA, Juan Carlos. La Cadena de Custodia en el nuevo Codigo de procedimiento penal. Disponível em https://fundacionluxmundi.com/custodia.
php#1. Acesso em 14 dez 2019. Ainda, PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 1º ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 95.

23 Sobre este item específico, ver STJ, HC 160.662/RJ, 6ª Turma, Ministra Relatora Assusete Magalhães, julgamento em 18/02/2014, DJe 17/03/2014; STJ, REsp
1.795.341/RS, 6ª Turma, Ministro Relator Nefi Cordeiro, julgamento em 07/05/2019, DJe 14/05/2019, STJ, RHC 77836/PA, 5ª Turma, Ministro Ribeiro Dantas,
julgamento em 05/02/2019, DJe 12/02/2019. E o comentário aprofundado do acórdão e suas consequências legais em PRADO. Prova penal e sistema de
controles epistêmicos, op.cit.

24 LOPES JR, Aury; ROSA, Alexandre Morais. A importância da cadeia de custódia para preservar a prova penal. Disponível em https://www.conjur.com.br/2015-
jan-16/limite-penal-importancia-cadeia-custodia-prova-penal. Acesso em 08 jan 2020.

25 O Departamento Nacional de Justiça dos Estados Unidos elaborou um guia dos procedimentos para cadeia de custódia desde a preservação do local até
análise pericial. Cf. UNITED STATES GOVERNMENT. Crime scene investigation: a guide for law enforcement. 2000. Disponível em https://www.ncjrs.gov/pdffiles1/
nij/178280.pdf. Acesso em 11 jan 2020.

15
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

do elemento probatório, permitindo seu ingresso de forma válida em juízo e tornando


o procedimento mais transparente.26

Daí poder-se extrair alguns elementos da cadeia de custódia: (i) registro docu-
mental (arts. 158-A, caput; 158-B, inciso III, CPP); (ii) rastreabilidade (arts. 158-A; 158-B;
158-E, §§2º, 3º e 4º, CPP) e (iii) integridade (art. 158-C, §1º, CPP).

O primeiro decorre do princípio da documentação previsto no caput, do artigo


158-A (“...todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cro-
nológica do vestígio coletado...”), sendo um dos pontos principais da cadeia de custó-
dia para manter sua fidelidade.

A partir deste primeiro elemento, é possível assegurar o segundo – a sua rastrea-


bilidade –, permitindo que se refaçam todos os passos da cadeia de custódia, identifi-
cando todas as pessoas que tiveram acesso e verificando eventuais quebras desta. Por
sua vez, a integridade é outro elemento de suma importância, que confere segurança
e confiabilidade da prova apresentada em juízo, garantindo que não houve alteração
em suas características físicas, químicas ou biológicas.27

Frise-se que a nova lei trouxe o conceito de vestígio como sendo “todo objeto ou
material bruto, visível ou latente, constatado ou recolhido, que se relaciona à infração
penal”, conforme artigo 158-A, §3º, do Código de Processo Penal.

Insta apontar que a abordagem normativa abrange tanto elementos físicos/mate-


riais como eletrônicos/imateriais. Aliás, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu, antes
mesmo da nova lei e de forma inédita, sobre a cadeia de custódia envolvendo elemen-
tos de prova de meio eletrônico.28

26 A justificativa do PL 10.372/2018, que tramitou em apenso ao PL 10.373/2018 e PL 882/2019, os quais deram origem a Lei 13.964/2019, assim dispõe: “A
disciplina da cadeia de custódia para maior eficiência da perícia criminal e consequente combate a criminalidade também é essencial. A cadeia de custódia
é fundamental para garantir a idoneidade e a rastreabilidade dos vestígios, com vistas a preservar a confiabilidade e a transparência da produção da prova
pericial até a conclusão do processo judicial. A garantia da cadeia de custódia confere aos vestígios certificação de origem e destinação e, consequentemente,
atribui à prova pericial resultante de sua análise, credibilidade e robustez suficientes para propiciar sua admissão e permanência no elenco probatório. Com
a criação de centrais de custódia, é possível garantir que os materiais relacionados a crimes estarão sempre à disposição da polícia e da Justiça quando for
necessária a realização de novas perícias a fim de dirimir dúvidas que surjam no decorrer do inquérito policial ou processo criminal.”

27 DIAS FILHO, Claudemir Rodrigues. Cadeia de custódia: do local do crime ao trânsito em julgado; do vestígio à evidência. Revista dos Tribunais, vol. 883, ano 98,
2009, pp. 436-451, p. 446. Interessante o julgamento do STJ, no HC 160.662, no tocante à prova eletrônica e a conservação da prova em sua integralidade e
que o desaparecimento de parte da prova torna-a imprestável, impossibilitando a defesa de confrontá-la, mediante o acesso integral do material (cf. voto do
Ministro Relator Rogerio Schietti Cruz).

28 STJ, HC 160.662/RJ, 6ª Turma, Ministra Relatora Assusete Magalhães, julgamento em 18/02/2014, DJe 17/03/2014: “(...) X. Apesar de ter sido franqueado o
acesso aos autos, parte das provas obtidas a partir da interceptação telemática foi extraviada, ainda na Polícia, e o conteúdo dos áudios telefônicos não foi
disponibilizado da forma como captado, havendo descontinuidade nas conversas e na sua ordem, com omissão de alguns áudios. XI. A prova produzida
durante a interceptação não pode servir apenas aos interesses do órgão acusador, sendo imprescindível a preservação da sua integralidade, sem a qual
se mostra inviabilizado o exercício da ampla defesa, tendo em vista a impossibilidade da efetiva refutação da tese acusatória, dada a perda da unidade da
prova. XII. Mostra-se lesiva ao direito à prova, corolário da ampla defesa e do contraditório – constitucionalmente garantidos –, a ausência da salvaguarda da
integralidade do material colhido na investigação, repercutindo no próprio dever de garantia da paridade de armas das partes adversas (...)”.

16
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

Os vestígios são obtidos, a princípio, no local dos fatos ou na cena do crime, ini-
ciando-se a partir deste momento a cadeia de custódia. Neste primeiro momento, os
responsáveis pela investigação (ou até mesmo a polícia militar) devem resguardar o
local até a chegada da perícia que vai colher os materiais e objetos existentes, os quais
serão embalados e rotulados para posteriormente serem armazenados e preservados.

Neste sentido, o artigo 158-A, §1º, do CPP preconiza que o início da cadeia de cus-
tódia dá-se com a preservação do local dos fatos ou com procedimentos policiais ou
periciais em que seja averiguada a existência de vestígio.29

O artigo 6º do Código de Processo Penal já determinava que a autoridade policial,


logo que tiver ciência da prática de uma infração criminal, deverá (i) se dirigir ao local
do crime, preservando-o até a chegada dos peritos criminais (inciso I, do art. 6º); (ii)
apreender os objetos que tiverem relação com o fato após liberação dos peritos (inci-
so II, art. 6º) e (iii) colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e
suas circunstâncias (inciso III, art. 6º).

Agora, com a nova previsão legal supra indicada, complementando a norma do


artigo 6º, o legislador deixa expressamente consignado o início da cadeia de custódia,
o que será relevante para fins de análise de sua manutenção ou quebra desde então.

No primeiro caso trazido pela norma do artigo 158-A, §1º (preservação do local),
o responsável pela custódia será da autoridade policial. Com a chegada os peritos, a
responsabilidade sobre os vestígios passam a ser destes e, somente após a liberação
por parte dos peritos, a autoridade policial procede com a apreensão dos objetos.30

Impende salientar que o início da cadeia de custódia não se inicia somente com
a chegada da autoridade policial, mas, em alguns casos, quando um policial (civil ou
militar), receber algum material relacionado a algum suposto crime, o qual deverá, a
partir de então, aplicar os procedimentos da cadeia de custódia.31

É lícito afirmar que a cadeia de custódia poderá ter início também quando a de-
fesa tiver acesso ao local do crime, devendo preservar o local e documentar o que foi

29 Esta previsão já existia, de forma infralegal, no anexo I, Portaria 82, de 16 julho de 2014, da Secretaria Nacional de Segurança Pública/Ministério da Justiça (“1.2.
O início da cadeia de custódia se dá com a preservação do local de crime e/ou com procedimentos policiais ou periciais nos quais seja detectada a existência
de vestígio.”)

30 Cf. também DIAS FILHO. Cadeia de custódia. op. cit., p. 443.

31 Neste sentido, ESPINDULA, Alberi. Perícia criminal e cível: uma visão geral para peritos e usuários da perícia. 3ª ed. Campinas: Millenium, 2009, p. 165.

17
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

constatado. No entanto, tal conduta não está prevista na Lei 13.964/19, sendo apenas
uma sugestão de lege ferenda.32

Merece destacar, ademais, que os vestígios coletados no curso do inquérito poli-


cial ou durante o processo devem ser remetidos à central de custódia (art. 158-C, § 1º,
CPP), estruturada nos institutos de criminalística e com gestão vinculada diretamente
ao órgão central de perícia oficial de natureza criminal (art. 158-E, CPP).

Os vestígios serão coletados preferencialmente por perito oficial que encaminha-


rá os vestígios para a central de custódia, ainda que seja necessário realização de exa-
mes complementares (art. 158-C, caput, CPP).

O artigo 158-C não especificou o número de peritos, mas o artigo 159, alterado
pela Lei 11.690/2008, dispõe que os exames periciais serão feitos por 1 (um) perito ofi-
cial e, na falta deste, o exame será feito por 2 (duas) pessoas idôneas portadoras de
diploma de curso superior preferencialmente na área específica (art. 159, §1º, CPP).33
Lembre-se, ainda, que os peritos não oficiais deverão prestar o compromisso de bem
e fielmente desempenhar o encargo (art. 159, §2º, CPP).34

O termo usado no artigo 158-C “preferencialmente” indica que será possível que
o perito não seja oficial. Este não se trata do funcionário público que atua especifica-
mente sob determinação da autoridade policial ou judiciária, mas uma pessoa, porta-
dora de diploma de curso superior, que será nomeada pelo juiz ou Delegado de Polícia
para realização de determinada perícia.

No tocante à central de custódia, caso esta não tenha espaço ou condições de ar-
mazenar determinado material, deverá a autoridade policial ou judiciária determinar
as condições de depósito do referido material em local diverso, mediante requerimen-
to do diretor do órgão central de perícia oficial de natureza criminal (art. 158-F, pará-
grafo único, CPP).

As centrais de custódia devem ser um espaço seguro e apresentar condições am-


bientais que não interfiram nas características do vestígio (art. 158-E, §1º, parte final,

32 Nesse sentido, SILVA, Franklyn Roger Alves. Investigação Criminal Direta pela Defesa. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 548-549.

33 Sem olvidar de previsões existentes em outras leis, tais como a Lei 11.343/2006 e no Código de Processo Penal Militar (CPPM).

34 Note-se que, antes dessa alteração, eram necessários 2 (dois) peritos oficiais e na falta destes por 2 (duas) pessoas idôneas.

18
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

CPP), no entanto, é sabido que, atualmente, os postos periciais do Brasil funcionam


em locais inadequados sem condições de segurança e estrutura física.35

Como se vê, apesar da existência de norma infralegal (Portaria nº 82, de 16 de julho


de 2014, da Secretaria Nacional de Segurança Pública/ Ministério da Justiça) preven-
do a criação e estruturação da central de custódia desde 2014, fato é que não houve
investimento na criação destes órgãos. Espera-se que, com a inclusão das normas no
Código de Processo Penal, haja um incentivo maior para estruturação de tais centrais,
sob pena de ilicitude das provas em caso de quebra da cadeia de custódia,

O §2º, do artigo 158-C diz que é proibida a entrada nos locais preservados para
coleta dos vestígios e remoção de qualquer elemento antes da liberação por parte do
perito. Tal previsão já vinha de certa forma no inciso II, do artigo 6º, do CPP que prevê
que a autoridade policial só poderia apreender os objetos após a liberação do perito,
porém esta norma se dirigia à autoridade policial.

Esta nova previsão específica dirige-se a qualquer um que violar a determinação


normativa, sendo a conduta tipificada como fraude processual. De toda forma, nada
impedia que, mesmo antes da reforma, alguém pudesse responder pelo crime de
fraude processual quando a conduta se enquadrasse no tipo penal do artigo 347 do
Código Penal.

Não trouxe o legislador qual seria o termo final da cadeia de custódia, indicando
apenas no artigo 158-A do CPP que será até o descarte. No entanto, tal previsão não
se revelou suficiente, devendo ser melhor desenvolvida. Há autores da área pericial
que defendem que a cadeia de custódia encerra com a apresentação do material fí-
sico em juízo.36

Entende-se, porém, que o final da cadeia de custódia será o julgamento do caso,


quando o juiz tomar sua decisão sobre a veracidade ou não dos enunciados fáticos
trazidos pelas partes e responsabilidade do acusado. Note-se que aqui inclui o trânsi-

35 MACHADO, Michelle Moreira. Importância da cadeia de custódia para prova pericial. Revista Criminalística e Medicina Legal, vol. 1, nº2, 2017, pp. 8-12, p. 11. Em
pesquisa trazida pela referida autora, “a maioria das unidades de Criminalística relata não haver rastreabilidade das evidências, apontando a inexistência de
procedimentos da cadeia de custódia. Foi explicado inclusive que em alguns estados os vestígios não eram lacrados quando coletados nos locais de crime
e que não há um lugar seguro para a guarda dos vestígios. A maioria das Unidades de Criminalística e Medicina Legal pesquisada não possuía um sistema
que monitorasse a custódia de vestígios.” Cf. Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Diagnóstico da Perícia Criminal no Brasil. Brasília,
2012. Disponível em https://www.novo.justica.gov.br/sua-seguranca/seguranca-publica/analise-e-pesquisa/download/estudos_diversos/2diagnostico-pericia
criminal.pdf/view. Acesso em 11 jan 2020.

36 GIANNELLI, Paul. Forensic Science: chain of custody. Criminal Law Bulletin 32, vol. 5, New York: Thomson/West, 1996, p. 447.

19
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

to em julgado da decisão37, eis que, até o final do processo, poderão as partes ter in-
teresse em realizar alguma contraprova ou diligência com os vestígios coletados (art.
158-B, inciso IX, CPP)38.

Uma questão interessante e que merece críticas é a seguinte: o inciso X, do ar-


tigo 158-B, do CPP dispõe que o descarte do vestígio respeitará a legislação vigente.
Por sua vez, a lei de drogas, no §3º, do artigo 50, determina que “Recebida cópia do
auto de prisão em flagrante, o juiz, no prazo de 10 (dez) dias, certificará a regularidade
formal do laudo de constatação e determinará a destruição das drogas apreendidas,
guardando-se amostra necessária à realização do laudo definitivo.” Como se vê, ape-
sar da destruição das drogas apreendidas, será resguardada uma amostra para fins
de confecção do laudo definitivo. No entanto, isso não será suficiente, tendo em vista
que é importante, além de averiguar de qual droga se trata, apurar a quantidade apre-
endida. Nada obstante constar tal informação no auto de apreensão, em caso de ne-
cessidade de realização de contraprova com relação à quantidade, a droga não estará
mais disponível, o que gera prejuízos à defesa.

O mesmo deve se aplicar às apreensões de rádio comunicador (muito comum


na prática) nas imputações do crime de associação ao tráfico de drogas (art. 35, Lei
11.343/06) e do crime de colaboração, como informante, com tráfico (art. 37, Lei
11.343/06), de sorte que tal elemento deverá ser periciado para averiguar seu funcio-
namento e preservado para possibilitar que a defesa realize as diligências que enten-
der necessárias.

Outro ponto no tocante à lei de drogas, é que, com advento da Lei 13.964/19, tor-
na-se necessário descrever onde a droga foi encontrada (em qual cômodo da casa,
mochila, bolsa, gaveta, etc), nos termos do inciso III, do artigo 158-B, do CPP.39

Não obstante a conceituação expressa na legislação vigente, necessária a análise


individualizada das etapas intermediárias da cadeia de custódia, uma vez que também
figuram como delimitação normativa.

37 Neste sentido, ESPINDULA, Alberi. Perícia criminal e cível: uma visão geral para peritos e usuários da perícia. 3ª ed. Campinas: Millenium, 2009, p. 165; DIAS
FILHO, Claudemir Rodrigues. Cadeia de custódia: do local do crime ao trânsito em julgado; do vestígio à evidência. Revista dos Tribunais, vol. 883, ano 98, 2009,
pp. 436-451, p. 444. MENEZES, Isabela A.; BORRI, Luiz A.; SOARES, Rafael J. A quebra da cadeia de custódia da prova e seus desdobramentos no processo penal
brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, nº 1, pp. 277-300, jan./abr., 2018, p. 282.

38 Tema a ser analisado, com mais profundidade, diz respeito à permanência da cadeia de custódia após a decisão transitada em julgado para efeitos de revisão
criminal.

39 “Art. 158-B. (...) III - fixação: descrição detalhada do vestígio conforme se encontra no local de crime ou no corpo de delito, e a sua posição na área de exames, podendo
ser ilustrada por fotografias, filmagens ou croqui, sendo indispensável a sua descrição no laudo pericial produzido pelo perito responsável pelo atendimento.”

20
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

[3]
ETAPAS DA CADEIA DE CUSTÓDIA –

A HISTÓRIA DA PROVA TÉCNICA

No corpo da inovação legislativa, o que deixa claro é a preocupação com a conceitu-


ação de todo o procedimento destinado à produção fiável da prova técnica40. Logo, a
confiabilidade desse elemento probatório se caracteriza pelos procedimentos de cole-
tas, documentação, armazenamento, manuseio e manutenção do material probatório
a ser futuramente valorado pelo julgador. Consequentemente, além da história cro-
nológica devidamente documentada do vestígio coletado41, torna-se extremamente
importante as etapas individualizadas para serem regularmente observadas (proce-
dimentos probatórios42), sob pena de violação à estrutura normativa e a consequente
ineficácia da prova, caracterizada pela quebra da cadeia de custódia.

Nessa linha, imprescindível se mostra o desenvolvimento da obtenção dos ele-


mentos sensíveis deixados pelo crime e, consequentemente, a produção da prova téc-
nica. Tanto o procedimento quanto a produção resultarão na regularidade/legalidade
do elemento probatório a ser valorado pelo julgador.

O início do conjunto de procedimentos da cadeia de custódia ocorre pela preser-


vação do local do crime nos termos do artigo 158-A, §1º, CPP. Na realidade, como dito
antes, o ato de comparecimento e preservação do local do crime já se encontra pre-
visto no art. 6o, I e II, CPP. Contudo, o dispositivo em questão apenas faz referência à
atividade policial, não havendo uma estrutura normativa e prática quanto ao início do
procedimento que enseja a cadeia de custódia.

Não obstante a delimitação da cadeia de custódia estar descrito na prova pericial,


logo atividade técnica realizado pelos experts, deve-se observar que o procedimento
não se mostra exclusivo ato do perito, mas o início da cadeia de custódia se dá pela
atividade policial ostensiva e, principalmente, investigativa. Para a polícia ostensiva ha-
verá a função de preservação e isolamento do local a ser analisado e/ou a coleta dos

40 Muito embora a cadeia de custódia deva ser aplicada a qualquer fonte de prova (por exemplo, cadeia de custódia para elementos “imateriais” como a captação
de conversas telefônicas ou ambientais), não obstante a referência direta à prova científica.

41 Reconhecida a cadeia de custódia como registro ou documentação da conservação dos materiais sensíveis à demonstração do fato criminoso. TONINI, Paolo
e CONTI, Carlotta. Il diritto delle prove penali. Milano: Giuffrè, 2012, p. 334.

42 Instituído pelo princípio da formalidade jurídica do procedimento penal, cf. PRADO. Prova penal e sistema de controles epistêmicos, op. cit, p. 87.

21
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

elementos sensíveis e relevantes para a prova de um fato criminoso e sua autoria. Já


a polícia investigativa terá a atribuição de resguardar o início e a regularidade do pro-
cedimento da cadeia de custódia. Logo, todo o cuidado com a cadeia de custódia tem
o seu início com a atividade policial, antes mesmo da atuação do perito criminal.

Se no momento da preservação do local do fato houver qualquer atividade poli-


cial que tenha obstado a regularidade da atividade probatória, a cadeia de custódia
estará comprometida e, logo, a sua quebra resultará na inadmissibilidade ou ausência
de credibilidade da atividade probatória.

O objetivo da diligência investigativa resulta na obtenção de todas as informações


possíveis para a apuração da ocorrência de uma infração penal e, consequentemente,
o seu autor. Nessa linha, para que não haja perda de informações ou elementos pro-
batórios, o agente público policial e os peritos, que reconhecerem um elemento que
tenha potencial interesse para a produção da prova pericial, ficarão responsáveis por
sua preservação (art. 158-A, §2o, CPP).

Se a regularidade dos procedimentos destinados à cadeia de custódia traduz a


sua própria categorização, torna-se coerente e claro que qualquer distúrbio à sua es-
trutura gerará uma ruptura quanto à legalidade, ou seja, a quebra da cadeia de custó-
dia. Logo, a atenção dar-se-á desde o início, tornando-se proibida a entrada em locais
isolados bem como a remoção de quaisquer vestígios de locais de crime antes da libe-
ração por parte do perito responsável. A inobservância dessas proibições poderá ser
tipificada como fraude processual (art. 158-C, §2o, CPP)43.

Para além da questão penal, caso haja qualquer distúrbio ao procedimento de


isolamento, os peritos registrarão, no laudo, as alterações do estado das coisas e dis-
cutirão, no relatório, as consequências dessas alterações na dinâmica dos fatos (art.
169, § único, CPP).

Objetivando a regulamentação da cadeia de custódia, tema deveras discutido na


doutrina, mas com pouca ou quase nenhuma observância prática em âmbito nacional,
a Lei 13.964/19, em seu artigo 158-B, delimitou as etapas do rastreamento dos vestí-
gios decorrentes da infração penal.

43 Esse dispositivo segue em consonância com o art. 6o, I, CPP (Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: I – dirigir-se
ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais) e art. 169 (Para efeito de exame do local
onde houver sido praticada a infração, a autoridade providenciará imediatamente para que não se altere o estado das coisas até a chegada dos peritos, que poderão
instruir seus laudos com fotografias, desenhos ou esquema elucidativos).

22
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

O prosseguimento das etapas segue pela seguinte ordem:

Reconhecimento – A atividade investigativa, ou mesmo a polícia ostensiva, que


se depara com o fato deve tentar analisar todas as circunstâncias geradoras e ge-
radas pelo ato criminoso. Diante deste quadro, o reconhecimento do vestígio é ca-
racterizado pelo ato de distinguir um elemento como de potencial interesse para
a produção da prova pericial. Muito embora o reconhecimento esteja caracteriza-
do como uma das etapas da cadeia de custódia, não é uma atividade intrínseca da
mesma, mas uma análise extrínseca que indicará a importância do consequente
procedimento de obtenção da prova.

Isolamento – A segunda etapa da cadeia de custodia é caracterizada como ato


intrínseco à mesma, na medida em que tem como objetivo a preservação dos ves-
tígios a serem coletados e processados pelos peritos e o local dos fatos. Logo o
isolamento é o ato de evitar que se altere o estado das coisas, devendo isolar e pre-
servar o ambiente imediato, mediato e relacionado aos vestígios e local de crime.

Fixação – Para que haja a coleta de forma regular, a investigação deve se preocu-
par com todos os elementos que farão parte da prova técnica. Por isso, a fixação
é caracterizada pelo ato de descrever, de forma detalhada, os vestígios conforme
se encontram no local do crime ou no corpo de delito, e sua posição na área de
exames, podendo ser ilustrada por fotografias, filmagens ou croqui, sendo indis-
pensável a sua descrição no laudo pericial produzido pelo perito responsável pelo
atendimento in locu.

Coleta – Talvez seja a principal etapa da cadeia de custódia, na medida em que li-
mitará a atividade técnica, pois do que não restou coletado não será possível o re-
torno imaculado do trâmite procedimento, em decorrência da própria quebra da
cadeia de custódia. Logo, a coleta é o ato de recolher o vestígio que será submeti-
do à análise pericial, com respeito à sua natureza e características. Não havendo a
coleta de todos os elementos, chances ocorrerão da perda da prova técnica sobre
alguns elementos relevantes para a comprovação do fato.

Acondicionamento – O cuidado com a cadeia de custódia deve ocorrer desde o


início das etapas até a sua valoração ou a prova da regularidade do procedimen-
to. Por isso, acondicionamento regular resultará na possibilidade de manipulação
sem riscos de contaminação com elementos externos aos vestígios. Assim, o acon-
dicionamento se conceitua pelo procedimento por meio do qual cada vestígio co-

23
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

letado é embalado de forma individualizada, de acordo com suas características


físicas, químicas e biológicas, para posterior análise, com anotação da data, hora
e nome de quem realizou a coleta e o acondicionamento.

Na disposição do art. 158-D, CPP, o recipiente de acondicionamento do vestígio


dependerá da natureza do material. Há um procedimento específico para o acon-
dicionamento com o objetivo garantir a inviolabilidade e a idoneidade do vestígio
coletado e transportado. Como cada vestígio deve ser acondicionado de forma
individualizada, o recipiente deverá preservar suas características, impedir conta-
minação e vazamento, e espaço próprio para o registro das informações sobre o
seu conteúdo.

Como haverá manipulação dos vestígios pelos peritos, os lacres específicos dos re-
cipientes deverão ser rompidos para a análise daqueles. Para prevenir equívocos
nessa etapa da cadeia de custódia, após cada rompimento de lacre deve-se fazer
constar na ficha de acompanhamento de vestígio a qualificação do responsável, a
data e local, e as informações referentes à substituição do lacre.

Transporte – a descrição do dispositivo se mostra autoexplicativa. O transporte é o


ato de transferir o vestígio de um local para outro, utilizando as condições adequa-
das (embalagens, veículos, temperatura, entre outras), de modo a garantir a manu-
tenção de suas características originais, bem como o controle de sua posse. Nessa
etapa da cadeia de custódia, ideal que haja um número mínimo de pessoas em con-
tato com os elementos coletados para que não haja contaminação dos vestígios.

Recebimento – ato formal de transferência da posse do vestígio. Conforme dis-


põe o art. 158-E, CPP, torna-se imperiosa a presença de uma central de custódia
em todos os Institutos de Criminalística. Consequentemente, será na central de
custódia o ato formal de recebimento com serviços de protocolo para armazena-
mento do material coletado e espaço seguro a apresentar condições ambientais
que não interfiram nas características do vestígio.

Processamento – A atividade característica dos peritos através da realização do


exame pericial. Esse exame técnico consiste na manipulação do vestígio de acordo
com a metodologia adequada às suas características biológicas, físicas e químicas,
a fim de se obter o resultado desejado, formalizado, ao final, em laudo específico
realizado pelo perito.

24
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

Armazenamento – Com a alteração realizada pela Lei 13.964/19 e a imposição de


criação de espaços específicos para a permanência de todos os elementos impor-
tantes para a elucidação do caso, após a realização da perícia o material deverá ser
devolvido às centrais de custódias, devendo nela permanecer (art. 158-F, CPP). O
procedimento destinado à guarda do material a ser processado, em condições ade-
quadas, se destina à possibilidade de nova manipulação ou mesmo e, especialmen-
te, à eventual contraperícia, condizente a observância de um efetivo contraditório
ou de proteção ao inocente. A imprescindibilidade dessa etapa, não obstante pare-
cer natural à realização das perícias em geral, não possuía observância normativa e,
muito menos prática. Coube a alteração legislativa dizer o óbvio para que não haja
impossibilidade de contraperícias ou novas perícias com o material coletado.

Descarte – Quando não se mostrar mais necessário o armazenamento do mate-


rial colhido, será realizado o procedimento referente à liberação do vestígio, sem-
pre com respeito a legislação específica e, quando necessário, ocorrerá o descarte
mediante determinação judicial. Essa imposição não ocorre para todas as hipóte-
ses de armazenamento. Há normas que determinam o seu descarte quando não
mais relevantes para o caso penal (Lei de Drogas, por exemplo). Mas, há que se
observar a possibilidade de contraprova com relação à qualidade e quantidade
do material coletado. Logo, o descarte deve ser aplicado de forma excepcional,
justamente para resguardar o contraditório e a proteção do inocente.

[4]
ÔNUS DA PROVA QUANTO A

CADEIA DE CUSTÓDIA E DIREITO

À PROVA LÍCITA

De início, urge afirma que incumbe aos órgãos da persecução penal cumprir a cadeia
de custódia e o dever de provar o seu regular cumprimento em juízo44. Em outras pa-
lavras, o Ministério Público deve demonstrar que houve o implemento correto das re-

44 Jaffee WB, Trucco E, Teter C, Levy S, Weiss RD. Focus on alcohol & drug abuse: ensuring validity in urine drug testing. Psychiatr Serv. 2008 Feb; 59(2):140-2.

25
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

gras e os métodos do procedimento da cadeia de custódia e que esta foi mantida ao


longo de todo o período até o julgamento.

Assegurar-se a cadeia de custódia é respeitar o devido processo legal e o efetivo con-


traditório. Isto porque a falha no cuidado com a preservação, transporte e manipulação do
vestígio prejudica a defesa, sendo importante manter preservado/inalterado todo o mate-
rial apreendido ou coletado para permitir a defesa opor-se a ele, inclusive, para, em caso
de necessidade, apresentar uma contraprova. Ou seja, caso haja alteração ou inutilização
do material, a defesa ficará impossibilitada de refutar efetivamente a tese acusatória.

Portanto, a violação do acesso à integralidade do material coletado na investiga-


ção viola o direito à prova, a ampla defesa, contraditório e devido processo legal.45

Importa saber se as provas que estão sendo produzidas para comprovar os enun-
ciados fáticos propostos pelas partes – e servirão de base à decisão final – são confiá-
veis e correspondem exatamente aos elementos colhidos no início da cadeia de cus-
tódia.46 Portanto, fundamental adotar corretamente todos os procedimentos devidos,
evitando-se a alteração do elemento colhido.

O processo penal é regulado pelo princípio da presunção de inocência e o enuncia-


do sobre o fato deve ser definido pelo acusador, possuindo todo o ônus de comprovar
sua ocorrência.47 A desincumbência do ônus probatório deverá ocorrer com a compro-
vação de que todas as etapas e métodos da cadeia de custódia foram cumpridas.

Para se provar, portanto, a cadeia de custódia com um elevado standard, o Minis-


tério Público deverá oferecer garantias e elementos dos quais se possam inferir que a
prova se manteve inalterada durante todo o período da custódia, respeitando a apli-
cação de todos os métodos e técnicas de maneira regular (arts. 158-B a 158-E, CPP).

Nada obstante, a defesa também poderá realizar este controle da cadeia de cus-
tódia da prova. Antes da alteração legal ora em comento, conforme os artigos 44, VIII,
89, VIII e 128, VIII, da LC nº 84/94 (alterada pela lei complementar 132/2009), é asse-
gurado aos defensores públicos “examinar, em qualquer repartição pública, autos de
flagrantes, inquéritos e processos, assegurada a obtenção de cópias e podendo tomar

45 A importância da rastreabilidade probatória “encontra supedâneo na ampla defesa, no contraditório e no direito à prova (lícita)”. Cf. EDINGER, Carlos. Cadeia
de custódia, rastreabilidade probatória. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 120, maio/jun., 2016. MENEZES, BORRI e SOARES. A quebra da cadeia de
custódia da prova. op. cit., p. 288.

46 Nesse ponto, ver também ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 4ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 446.

47 PRADO. A cadeia de custódia da prova no processo penal, op. cit., p. 61.

26
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

apontamentos”. Com relação ao advogado, tal previsão consta do artigo 7º, XIV, do Es-
tatuto da OAB (redação alterada pela Lei 13.245/16). Ainda, há a súmula vinculante nº
1448 garantindo o acesso amplo aos elementos de prova já documentados em proce-
dimento investigatório. Com o advento da Lei 13.964/19, ora em discussão, esta previ-
são também está prevista no inciso XV, do artigo 3º-B do Código de Processo Penal.49

Não se pode olvidar, pois, que o standard probatório50 no processo criminal é consi-
derado alto, devendo as provas demonstrarem a hipótese fática sustentada na denúncia
com alto grau de probabilidade51. Este elevado standard probatório é uma escolha polí-
tica no sentido de que se privilegia a manutenção do estado de inocência, a liberdade e
a proteção do inocente. Isto fica claro quando nos deparamos, não só com um standard
de prova elevado, mas também com um ônus da prova para o órgão acusatório.52

Ganha relevo, pois, a qualidade da prova para que se atinja um standard probató-
rio no processo. E para tanto mister a existência de provas confiáveis, tendo em vista
que, caso contrário, com uma violação ou quebra da cadeia de custódia, este fato será
suficiente para desacreditar determinado elemento probatório, não ultrapassando o
standard necessário para uma condenação.53

Impende afirmar, portanto, que a cadeia de custódia tem um caráter tridimen-


sional. Possui uma dimensão probatória (confiabilidade da prova), dimensão proces-
sual – cria um ônus à acusação de comprovar a manutenção da cadeia de custódia e
impede o abuso do poder estatal em modificar, alterar ou forjar provas – e dimensão
social – gera uma percepção social de que o procedimento probatório é transparente
e o processo criminal é justo.

48 “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório
realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.” Este acesso amplo se coaduna com a integridade
da prova, eis que qualquer alteração, ocultação e destruição de um vestígio não permitirá o amplo acesso ao material probatório, mas apenas à parte dele.
Neste sentido, cf. MACHADO, Vitor Paczek; JEZLER JUNIOR, Ivan. A prova eletrônica-digital e a cadeia de custódia das provas: uma (re)leitura da Súmula
Vinculante 14. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 24, nº 288, nov./2016, pp. 8-9.

49 “Art. 3º-B. (...) XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos
informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento”.

50 Trata-se de um grau (ou medida) de prova necessária a partir do qual um fato deva ser provado para ser considerado como comprovadamente verdadeiro.
Cf. HAACK, Susan. Evidence matters: science, proof and truth in the law. Cambrigde University Press, 2016, p. 4. HAACK, Susan. El probabilismo jurídico: uma
disensión epistemológica. In Estándares de prueba y prueba científica. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 69, pp. 65-98.

51 KNIJNIK, Daniel. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 18. Sobre o standard de além de toda dúvida razoável, apesar de
frequentemente citado em decisões judiciais e utilizado por parte da doutrina, há quem entenda que não há uma formulação muita clara desse standard
probatório no processo penal brasileiro (BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Standards probatórios no processo penal. Revista AJUFERGS. Porto Alegre, nº4, nov.
2007, pp. 161-185. MENDES, Paulo de Sousa. Causalidade complexa e prova penal. Coimbra: Almedina, 2018, p. 90 e pp. 95-100.

52 BADARÓ, Gustavo. Editorial dossiê “Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos”. Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Porto Alegre, vol. 4, n.
1, pp. 43-80, jan./abr. 2018, p. 72.

53 É certo que existem outras formas para se garantir uma qualidade epistêmica dos meios de prova, sendo a manutenção da cadeia de custódia apenas uma
delas. Cf. FIGUEIREDO, Daniel Diamantaras. O direito ao confronto na produção da prova penal. São Paulo: Marcial Pons, 2020 (no prelo), que discorre sobre a
dimensão epistêmica do direito ao confronto e SAMPAIO, Denis. A regra do contraditório no Novo Código de Processo Civil e sua possível “influência” no Direito
Processual Penal. In Cabral, Antonio do Passo; Pacelli, Eugênio; Cruz, Rogerio Schietti (coords.). Processo Penal. Coleção Repercussões do Novo CPC, vol. 13,
Salvador: Juspodivm, 2016, pp. 19-48.

27
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

[5]
FILTROS EPISTÊMICOS E BUSCA

PARA UMA DECISÃO DE QUALIDADE

A partir da reforma do CPP realizada em 2008 pela Lei 11.690, cabe frisar que se ini-
ciou uma nova mentalidade em busca de uma qualidade da decisão ou, podendo dizer,
uma retidão desta, o que no direito anglo-americano e na jurisprudência do Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) é conceituado como “accuracy”.54 Tal pretensão
continuou com o advento da Lei 13.964/19.

O artigo 155 do CPP (redação dada pelo Lei 11.690/08) diferenciou elementos in-
formativos e prova, vedando que o juiz baseie sua condenação de forma exclusiva na-
queles, vez que produzidos sem o efetivo contraditório. Sendo assim, este ganhou for-
ça como um elemento estruturante que compõe o próprio sentido de prova técnica.

Contudo, com a reforma erigida pela Lei 13.964/2019, ora objeto de discussão, o
referido artigo merece uma releitura diante do artigo 3º-C, §3º, o qual determina que
os autos do inquérito não serão apensados aos autos principais enviados ao juiz da
instrução e julgamento. Assim, o juiz que julgará o mérito não poderá, de forma algu-
ma, se valer de elementos informativos colhidos na investigação, haja vista que este
não terá contato com os autos do inquérito policial, com a ressalva de provas irrepe-
tíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, devendo, pois,
fundamentar sua decisão em provas produzidas sob o contraditório.55

Além do mais, o artigo 159, §3º, incluído pela reforma ocorrida em 2008, é mais um
ponto no qual se demonstra a tentativa de resguardar um método do contraditório e
a busca por uma melhor prova, ao permitir que as partes (Ministério Público, assisten-
te de acusação, ofendido, querelante e acusado) indiquem assistente técnico, além de
autorizar às partes requerer a oitiva dos peritos para esclarecer a perícia realizada ou
responderem quesitos (art. 159, §5º, CPP). Havia pecado a dita reforma, porém, quan-

54 DUFF, Antony; FARMER, Lindsay; MARSHALL, Sandra; TADROS, Victor. The trial on trial: towards a normative theory of the criminal trial, vol. 3, Oxford and
Portland: Hart Publishing, 2007, pp. 61-91. Os autores discorrem sobre os objetivos do sistema de justiça criminal, notadamente sobre a busca da verdade e
a exatidão/correção das decisões (“accuracy”).

55 Ocorre que os artigos 3º-A a 3º-F do CPP estão com a eficácia suspensa por decisão liminar do Ministro Luiz Fux, Ministro do Supremo Tribunal Federal,
aguardando-se a apreciação pelo Plenário da Corte (ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305).

28
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

do somente admitiu a atuação do assistente técnico após a conclusão dos exames e


elaboração do laudo pelos peritos oficiais.

No entanto, com a novel reforma, foi incluído o inciso XVI, do artigo 3º-B, o qual
autoriza que o assistente técnico indicado pela parte possa acompanhar a produção
da perícia.56 Logo, a atual reforma deu um passo no sentido de permitir a participação
ativa das partes, através de seus assistentes, no momento da produção da prova peri-
cial, consagrando um contraditório substancial nesta modalidade probatória.

Sobre o propósito de busca por uma prova de mais qualidade, cabe trazer à baila
a doutrina de Geraldo Prado. In verbis:

“(...) iniciou-se o movimento de redução de complexidade das garantias probató-


rias asseguradas pela Constituição da República, como será observado adiante,
em especial em relação à qualidade da prova, vista pelo ângulo ético da prova ilíci-
ta e pela perspectiva funcional do acertamento dos fatos, no que toca à responsa-
bilidade por demonstrar e convencer, empregando meios de prova qualificados.
(...) Da exigência de que elementos informativos não se confundam com provas
(art.155) à previsão de assistente técnico, relativamente às perícias (art. 159), o que
se observa é que o ingresso do contraditório no cenário da produção da prova e
os efeitos provocados quanto à avaliação denotam o duplo esforço: pela melhor
prova possível, como meta para a acusação suplantar a presunção de inocência;
por um trajeto normativo indispensável para a aquisição desta prova, sua intro-
dução no processo e, ao final, sua avaliação pelo juiz, como condições de validade
das atividades probatórias (art. 157).

Por isso, o procedimento penal, simultaneamente, sofreu uma adequação, via


oralidade e reforço ao princípio acusatório (art. 384).

Dito de outra maneira e para espancar dúvida quanto ao compromisso do pro-


cesso penal com a responsabilização criminal dos agentes: erigiu-se a “qualidade
da decisão penal” como meta.”57

Todas estas normas acima aludidas demonstram a intenção do legislador, tanto


na reforma de 2008, como na atual, de prezar pela busca de uma melhor decisão judi-

56 Art. 3º-B. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia
tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente: (...) XVI - deferir pedido de admissão de assistente técnico para
acompanhar a produção da perícia.

57 PRADO. A cadeia de custódia da prova no processo penal. op. cit., pp. 62-63.

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A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

cial, com mais qualidade, baseada em provas também com um grau de confiabilidade
elevado. Ao menos, nestas quatro novidades trazidas pela nova Lei 13.964/19: cadeia
de custódia, separação do inquérito dos autos principais, juiz das garantias e a partici-
pação do assistente no momento da produção da prova pericial.

O que se espera, portanto, é a efetiva aplicabilidade das alterações com a garantia


de democraticidade do processo penal brasileiro à luz da Constituição da República. A
expectativa se dirige, tão somente, na aplicação das normas constitucionais e legais.

[6]
INOBSERVÂNCIA DAS ETAPAS
DA CADEIA DE CUSTÓDIA –

QUEBRA DA CADEIA DE CUSTÓDIA

E SEUS EFEITOS

A rova técnica-pericial exige adequados níveis de controle e segurança no seu processo


de produção para que não haja adulteração ou contaminação com elementos exter-
nos aos vestígios examinados. Essa segurança contra a contaminação deve se dar por
todo o processamento da cadeia de custódia, preservando, assim, a regularidade das
etapas – da origem, perpassando pelo caminho, ao resultado – da produção da prova
pericial e, consequentemente, a integridade desses elementos de prova.

Nessa linha, a ruptura da cadeia de custódia, com supressão de dados, adultera-


ção ou contaminação dos elementos probatórios colhidos, afasta a legalidade e/ou
confiabilidade do resultado da perícia e impossibilidade do exercício pleno do contra-
ditório, na medida em que as partes, especialmente a defesa, não terão a possibilidade
de utilização da prova em seu estado líquido perfeito, bem como a realização de con-
traperícia de forma equânime ao material probatório produzido. Consequentemente,
a cadeia de custódia se caracteriza como procedimento para “assegurar a fiabilidade
do elemento probatório” e o suporte necessário de “proteção de interferências capa-
zes de falsificar o resultado da atividade probatória”58. É possível inferir, portanto, que

58 PRADO. Prova penal e sistema de controles epistêmicos, op. cit, p. 86.

30
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

os elementos de prova técnica somente podem ser considerados viáveis para seu ob-
jetivo processual se a coleta, o transporte, manuseio, a análise e todas as etapas da
cadeia de custódia observarem condições mínimas de segurança (atualmente como
previsão normativa), com o objetivo de garantir a integridade do material a ser objeto
de perícia com os meios idôneos e legais empregados.

Duas situações práticas podem ser observadas: 1ª) alteração da própria fonte da
prova anterior ao seu reconhecimento (algum produto em contato com o sangue, tro-
ca de arma ou munição, por exemplo); 2ª) ausência de observância quanto ao proce-
dimento específico destinado à garantir que a fonte de prova seja a mesma, sem qual-
quer adulteração, até a sua valoração.

Na primeira situação, a adulteração ocorre na própria fonte de prova. Logo, não há


que se falar em quebra da cadeia de custódia, mas a falsificação da fonte de prova59.
Com a falsificação/adulteração da fonte de prova, não será viável o seu reconhecimento
como elemento destinado à prova de um fato. Portanto, o que se tem nessa hipótese é
a ausência de prova que resulte no nexo causal entre o fato e a fonte de prova.

Na segunda hipótese, a inobservância dos protocolos específicos para garantir a


integridade da prova material caracteriza a quebra da cadeia de custódia. Esses proto-
colos ou etapas constituem verdadeiros requisitos legais que formam o próprio conte-
údo da prova material. Logo, através deles tenta-se garantir a integridade da fonte de
prova colhida até a sua valoração (“mesmidade”60).

Questão a ser analisada diz respeito aos efeitos consequentes à quebra da cadeia
de custódia.

A partir da alteração da Lei 13.964/19, as etapas estão delineadas por norma le-
gal. Logo, a sua existência se caracteriza como requisito essencial da cadeia de custó-
dia, dependendo, por óbvio, dos vestígios a serem examinados. É dizer, os protocolos
dependem da fonte de prova a ser analisada, indicando um procedimento específico
para cada vestígio coletado.

59 BADARÓ, Gustavo. A cadeia de custódia e sua relevância para a prova penal. In Temas Atuais da Investigação Preliminar no Processo Penal. Ricardo Sidi e
Anderson Bezerra Lopes. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 524.

60 Expressão espanhola, importada para a doutrina nacional através da obra de Geraldo Prado, que indica que a cadeia de custodia fundamenta-se pelo princípio
da autenticidade da prova e reconhecido como “mesmidade”. Trata-se do princípio segundo o qual o “mesmo” vestígio que foi encontrado na cena do crime,
será o mesmo valorado pelo julgador. PRADO. A cadeia de custodia da prova no processo penal, p. 95.

31
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

Se as etapas estão previstas em normas legais e constituem o próprio conteúdo


da prova material, a quebra da cadeia de custódia gera o efeito da ilicitude da prova,
na medida em que haverá a aplicabilidade do artigo 157 do CPP quando aponta que
são provas ilícitas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais61.

Tendo em vista que o direito à prova lícita é um pressuposto legal e inevitável da


valoração da prova, a ilicitude da prova gera62, em primeiro momento, a sua inadmis-
sibilidade e, em segundo ponto, a proibição da valoração da mesma63.

Caso seja reconhecida a quebra da cadeia de custódia em fase investigativa, ca-


berá ao juiz que decide sobre a admissibilidade da acusação e das provas (juiz das ga-
rantias) o reconhecimento da sua inadmissibilidade.

Na hipótese de identificação da quebra da cadeia de custódia em fase judicial, ha-


verá proibição de valoração da prova em face da sua ilicitude.

Independentemente do momento de reconhecimento da ilicitude da prova em de-


corrência da quebra da cadeia de custódia, deverá a prova pericial ser desentranhada da
discussão processual pela leitura e aplicação do art. 157, caput, do CPP64. Ainda, insta apon-
tar que, se da prova pericial ilícita em face da quebra da cadeia de custódia advier outro
elemento de prova, esse será considerado ilícito por derivação (em virtude da contamina-
ção), salvo se não evidenciado o nexo de causalidade entre os mesmos (art. 157, §1º, CPP).

Nesse ponto, conclui-se que o estudo da cadeia de custódia tem como ápice a aná-
lise da sua legalidade. Portanto, a quebra da cadeia de custódia deve ser vista como a
inobservância do próprio conteúdo da matéria em reflexão e, consequentemente, os
seus efeitos (inadmissibilidade da prova ilícita e proibição de valoração da mesma) se
caracterizam não como sanção processual, mas como garantia fundamental.

61 Há quem entenda que a questão se refere à credibilidade do elemento probatório pela ruptura da sua rastreabilidade e, portanto, deve ser resolvida no
momento da valoração da prova e não a análise sobre a sua ilicitude. Assim, Badaró defende que “as irregularidades da cadeia de custódia não são aptas
a causar a ilicitude da prova, devendo o problema ser resolvido, com redobrado cuidado e muito maior esforço justificativo, no momento da valoração.”
BADARÓ. A cadeia de custódia, op. cit, p. 535. Na doutrina italiana a quebra da cadeia de custódia gera o efeito da inutilizzabilità face ao controle judicial do
efetivo contraditório das partes e o direito à prova lícita (art. 191, CPP italiano). Cf. TONINI, Paolo e CONTI, Carlotta. Il diritto delle prove penali. Milano: Giuffrè,
2012, p. 334.

62 Como aponta Geraldo Prado, “no campo das proibições da prova, marcadas pelo valor da dignidade da pessoa humana, a tendência dos ordenamentos
jurídicos é de não se contentar com o regime das nulidades.” PRADO. Prova penal e sistema de controles epistêmicos, op. cit, p. 90. Ainda, PRADO. A cadeia de
custódia da prova no processo penal. 1º ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 126. No mesmo sentido, EBERHARDT, Marcos. Provas no Processo Penal. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 223.

63 Não há como confundir formalmente regras de exclusão probatória (critérios normativos de deveres positivos e, quando inobservados, mandamentos de
exclusão) – que possuem limitação ao nível de introdução e produção probatória – com regras de proibição na sua valoração – que se caracterizam por fazerem
parte do conteúdo da decisão (GÖSSEL, Karl-Heinz. As Proibições de prova no Direito Processual Penal da República Federal da Alemanha. Trad. Manuel Costa
Andrade. In Revista Portuguesa de Ciências Criminais, fasc. 2, 1992, p.399. Diante do procedimento probatório, as regras de valoração somente ocorrerão
quando ultrapassadas as regras de exclusão (FERRUA, Paolo. Il giudizio penale: fatto e valore giuridico. In La prova nel dibattimento penale. 4a ed. Giappichelli:
Torino, 2010, p. 355. Na realidade, seguem como substrato necessário entre as primeiras para as segundas, ainda que no conteúdo material, todas as
proibições de prova se comportam como proibições de valoração dos elementos de prova. GÖSSEL. As Proibições de prova, op. cit. p. 400.

64 Nesse sentido, PRADO. Prova penal e sistema de controles epistêmicos, op. cit., p. 90. PRADO. A cadeia de custódia da prova no processo penal. op. cit., p. 128/130.

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A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

CONCLUSÃO

Inicia-se o processo criminal a partir de um estado de incerteza, caminhando na dire-


ção do conhecimento mais seguro. A presunção de inocência que determina tal estado
no tocante aos fatos exige que as provas estejam aptas, confiáveis, credíveis, seguras
– i.e. de boa qualidade epistêmica –, para apoiar uma “convicção segura, baseada em
conhecimento correto e preciso, que afaste a dúvida a respeito da responsabilidade
penal imputada aos acusados da prática de uma infração penal”.65 Somente assim para
restar legitimada e justificada a decisão do julgador.

Como visto, o procedimento correto da cadeia de custódia é um direito das partes,


principalmente do acusado que, na maioria das vezes, não participa da fase de investi-
gação e precisa ter acesso aos elementos produzidos para poder refutar a acusação e
exercer sua defesa de forma mais ampla e efetiva. Logo, ainda que não haja previsão
expressa, extrai-se dos preceitos constitucionais (devido processo legal, contraditório,
ampla defesa, direito à prova lícita, presunção de inocência) o ônus de comprovação
por parte da acusação do regular procedimento da cadeia de custódia. À defesa resul-
tará o direito à prova técnica lícita e toda a análise quanto à etapa da sua produção até
a efetiva valoração.

Faltou a lei indicar as consequências pela não obediência às ditas normas. Contu-
do, diante das previsões normativas edificadas pela atual reforma, bem como os dis-
positivos já constantes, especialmente o artigo 157, CPP, torna-se claro que a violação
das regras que visam preservar a prova deve gerar a sua inadmissibilidade. Ainda, sem
a comprovação da devida cadeia de custódia, faltar-se-á fiabilidade àquele elemento
de prova, não podendo servir de base para a valoração da prova penal.

A cadeia de custódia é, portanto, mais um meio dentro do ordenamento jurídico


que servirá para limitar o uso abusivo do poder estatal, tornando-se o procedimento
mais transparente, legitimando as decisões judiciais e a percepção social de um pro-
cedimento mais justo. Alcançar-se-á, assim, a democraticidade do processo penal fo-
cado no respeito à dignidade humana do acusado e a proteção do inocente.

65 Idem , p. 27/28.

33
A CADEIA DE CUSTÓDIA NA PRODUÇÃO PROBATÓRIA PENAL

BIBLIOGRAFIA

BADARÓ, Gustavo. Editorial dossiê Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos.


Revista Brasileira de Direito Processual Penal. Porto Alegre, vol. 4, n. 1, pp. 43-80, jan./abr. 2018,
p. 72. Disponível em http://dx.doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.138. Acesso em 09 jan 2020.

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A R EG R A D O
C O N TR AD ITÓR IO NO
N OVO CÓD IG O DE
PR OCES S O CIVI L

E SUA “POSSÍVEL”
INFLUÊNCIA NO DIREITO
PROCESSUAL PENAL

TEXTO PUBLICADO ORIGINARIAMENTE:

A regra do contraditório no Novo Código de Processo Civil e sua “possível” influência no


DireitoProcessual Penal In: Repercussões do Novo CPC - Processo Penal.
1a ed. Salvador: Jus Podivm, 2016,v.13, p. 19-48.
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

INTRODUÇÃO

O Novo Código de Processo Civil, doravante NCPC, traz diversas discussões atuais so-
bre um novo modelo de observação da sistemática processual e sua aplicabilidade.

Nossa pretensão, no entanto, se dirige apenas à algumas ideias, não exaurientes,


sobre a visibilidade teórica e prática do método do contraditório no NCPC e quais se-
riam seus possíveis reflexos ao Direito Processual Penal.

Não adentraremos na reflexão sobre as críticas doutrinárias em relação a neces-


sidade de identificação de dois ramos da teoria geral do processo: civil e penal1. Mas,
se possuímos um novo diploma legal, não podemos fechar os olhos quantos às suas
linhas modernas e tentarmos indicar algumas possíveis influências teóricas e, quiçá,
um fomento legislativo para que haja uma modernização democrática ao sistema pro-
cessual penal.

Pela atual cronologia legislativa, faremos uma singela referência ao contraditório


no atual quadro do Código de Processo Penal brasileiro. Após, a regra do contraditó-
rio no NCPC e suas possíveis influências para uma nova dinâmica processual. Em con-
sequência, os plausíveis alcances e limites que o Projeto de Reforma do CPP poderá
receber com um olhar moderno sobre a regra do contraditório como método de re-
ferência democrática de efetiva participação e influência na formação da prova e da
decisão penal, através de um processo dialogal.

[1]
O CONTRADITÓRIO

NO ATUAL CPP

Sabemos que nossa Constituição da República no seu artigo 5o, LV, dispõe que aos li-
tigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados
o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

1 Sobre o tema, COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A lide e o conteúdo do processo penal. Curitiba: Juruá, 1989. TUCCI, Rogério Lauria. Considerações acerca da
Inadmissibilidade de uma Teoria Geral do Processo. In Direito Criminal. vol. 3. coord. José Henrique Pierangeli. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, pp. 85/127, entre outros.

39
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

Porém, como a espinha dorsal do atual Código de Processo Penal ainda data de
época ditatorial, não há previsões legais que identifiquem um contraditório efetivo
para reconhecer como um método de formação da prova e da decisão penal. Existem,
na realidade, diversos dispositivos que reforçam o direito à informação e reação como
consectário lógico do contraditório, na medida em que impõem a citação do acusado,
a intimação das partes para todos os atos processuais, objetivando o oferecimento de
manifestações e contraditoriedade da parte contra a qual foi produzido um ato, a pos-
sibilidade de impugnação de todos os atos decisórios, etc.

Ainda, diante de uma releitura constitucional, com o incremento da doutrina na


busca de maior efetividade do contraditório, ocorreram algumas posturas para ga-
rantir a paridade de armas, bem como mudanças normativas significativas na tentati-
va de dar maior efetividade ao contraditório2.

O grave problema do nosso atual Código de Processo Penal é que ainda se mos-
tram necessárias interpretações jurisprudenciais para tentarem garantir um contra-
ditório efetivo e equilibrado, na medida em que não há previsão legal que guarneça
uma linha normativa processual penal neste contexto, o que pode levar para alguns
distúrbios deste percurso constitucional. Dois exemplos podem ser significativos: 1o)
a possibilidade de decisões fundadas em elementos informativos não produzidos pe-
rante a dialética processual, ainda que não exclusivos, mas preponderante; 2o) a pre-
sença do critério da motivação suficiente sem que haja enfrentamento de todos os
elementos de prova, em especial, as provas contrárias e alternativas. Ou seja, além
de não garantir o efetivo contraditório entre as partes, o julgador não se submete ao
mesmo, formando livremente sua decisão inclusive por elementos fáticos não debati-
dos em sede judicial.

Neste contexto, a ausência de normas garantindo um efetivo contraditório traduz


uma cultura processual de participação das partes daquilo que já se mostra presente
na dinâmica processual, ou seja, um contraditório sobre as provas (argumentação so-
bre a prova) e não um contraditório para a prova (prova argumentada).

Neste tema ou sobre esta reflexão, desembocam outras referências importantes


que tendem a minimizar a força da regra do contraditório e, até mesmo, uma maior
estrutura sobre a teoria da prova penal. Podemos destacar dois, em especial, sem que

2 Nesta linha, o artigo 261, § único, CPP estabelece que a defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através
de manifestação fundamentada. Ainda, o artigo 366 dispõe que se não houve prova de que o acusado tenha ciência da ação penal (não havendo seu
comparecimento ou constituição de advogado), restará suspenso o processo e a prescrição penal.

40
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

adentremos mais a fundo nos temas, pois não se mostram objeto da nossa reflexão:
1o) a cultura do protagonismo judicial no processo penal, justamente pela valorização
do princípio do livre convencimento; 2o) o discurso sobre a busca da verdade real, que
também produz o mesmo efeito.

Neste diapasão, não apenas uma teoria da prova penal denota-se minimizada3,
mas ainda a redução significativa da regra efetiva do contraditório4, não obstante a
doutrina mais moderna possuir a pretensão de reverter esta cultura.

Talvez, seja o momento de uma mudança mais significativa não apenas na cultu-
ra processual penal, mas também na sua identificação normativa. Por ora, podemos
observar a alteração legislativa introduzida pela NCPC para identificarmos que a trans-
formação de visibilidade quanto à regra do contraditório deve ser adequada ao nosso
modelo constitucional.

[2]
A REGRA DO CONTRADITÓRIO

NO NCPC

A primeira afirmativa condizente com a introdução e a pretensão do singelo estudo,


segue na linha de que o NCPC tenta introduzir características democráticas ao pro-
cesso com a observância de maior participação e influência das partes na formação
da decisão, por isso, um modelo processual caracterizado pelas referências técnicas à
comparticipação/cooperação5 entre todos os seus personagens.

Consequentemente, diante de uma perspectiva pluralista em que a onipresença


jurisdicional não mais deve ser a característica de um processo moderno, prescreve
expressamente o artigo 6º do NCPC que todos os sujeitos do processo devem cooperar
entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

3 Basta identificar que são apenas três artigos que compõem as disposições gerais sobre a prova perante o Diploma Processual Penal.

4 Em todo o Código, apenas o artigo 155 faz a alusão expressa ao contraditório. E quando ocorre, faz referência à formação da convicção do juiz pela livre
apreciação da prova produzida em contraditório judicial. Ou seja, até mesmo quando o contraditório se mostra presente, a conotação não é para resguardar
as partes e realizar a inclusão do julgador no tema, mas pela forma livre como o mesmo valorará a prova.

5 Sobre o modelo processual cooperativo ver MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. Pressupostos Sociais, Lógicos e Éticos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011.

41
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

O conteúdo da norma em alusão ilustra que a regra processual deve seguir o anseio
social de cooperação e participação efetiva na esfera dos atos públicos, ou que não estejam
exclusivamente referidos aos efeitos privados. Ou seja, a lógica dialética deve seguir como
característica básica do modelo processual em que as partes não devem figurar apenas
com anseios de expressão sobre os atos processuais, em especial, sobre a decisão6.

A regra da cooperação na dinâmica processual tende a rever a forma de parti-


cipação das partes e creditar um processo mais equilibrado em que todos possuem
possibilidades e deveres de exercerem influências no resultado do processo. O diálo-
go processual não pode ser visto apenas como receptor e chancelador dos atos, mas
como produtor e influenciador de toda a dinâmica processual.

Ressalta-se que a regra da cooperação prevista no artigo 6º, do NCPC, que deve
seguir como um novo paradigma processual, não indica estritamente a colaboração
entre as partes7. A boa fé processual faz parte de qualquer atividade das partes. Esta
é uma afirmativa fixa. Mas, seria de extrema ingenuidade pensar na cooperação entre
as partes quando as mesmas possuem interesses radicalmente colidentes. Na realida-
de, a regra da cooperação tenta criar um maior elo entre os atos do juiz e das partes,
ou seja, para a dinâmica processual.

Consequentemente, pode ser observado o foco para uma perspectiva processual


policêntrica, com a tentativa de afastamento de protagonismos (seja das partes, seja
do julgador) a partir de um modelo constitucional de processo e de efetiva participa-
ção e controle por todos os envolvidos8.

Nesta linha, dois dispositivos do NCPC se mostram extremamente relevantes para a


nossa reflexão: o artigo 7o quando indica que será assegurada às partes paridade de trata-
mento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos
ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo
contraditório; e o artigo 10 na afirmativa de que o juiz não pode decidir, em grau algum de

6 Em visão diametralmente oposta, segue STRECK, Lenio, DELFINO, Lúcio, BARBA, Rafael Giorgio Dalla e LOPES, Ziel Ferreira. A cooperação processual do novo
CPC é incompatível com a Constituição. In Consultor Jurídico, 23.12.2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-dez-23/cooperacao-processual-cpc-
incompativel-constituicao.

7 MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. Teoria do Processo Civil. Vol. 1. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015, p. 497. Esse novo modelo processual, flagrantemente inspirado pelo CPC alemão e português, em especial no que diz respeito às técnicas
de cooperação, não possui o condão de máxima importação ao direito processual penal. Esta afirmativa se fundamenta na impossibilidade teórica (com as
técnicas constitucionais de proteção ao inocente) e prática (na tentativa de estabilizar a imparcialidade operativa do julgador), diante de um modelo inspirado
pelo princípio acusatório em que o dever de esclarecimento, o dever de prevenção e o dever de assistência ou auxílio das partes pelo julgador (sobre esses
temas ver THEODORO JÚNIOR, Humberto, NUNES, Dierle, BAHIA, Alexandre Melo Franco e PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Fundamentos e Sistematização.
Rio de Janeiro: Forense, 2a ed. 2015, p. 84 e segs.) não se tornam pertinentes ao sistema processual penal.

8 Nesta linha, THEODORO JÚNIOR, Humberto, NUNES, Dierle, BAHIA, Alexandre Melo Franco e PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC. Fundamentos e Sistematização.
Rio de Janeiro: Forense, 2a ed. 2015, p. 80.

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A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportuni-
dade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

Dessas duas orações, diversas referências teóricas poderão ser extraídas, em es-
pecial, no reconhecimento da garantia do contraditório como efetiva influência na for-
mação da decisão e não apenas como simples colaboração retórica reservada às par-
tes pelo direito à bilateralidade de ação, informação e reação sobre atos processuais
e de audiência.

Partamos do método do contraditório com a função de garantir a isonomia


processual (art. 7o), para alcançar o contraditório efetivo ou, em sua concepção subs-
tancial, com reais atividades e influências das partes para a formação dos elementos
de prova e da decisão (art. 10), proporcionando a vedação de decisões surpresas.

Esses pontos reflexivos trazem o retorno da discussão sobre a evolução do con-


traditório em que não apenas deve ser visto como equilíbrio das partes (aspecto ins-
trumental do contraditório), mas do seu real valor no método de formação da prova e
da decisão (concepção substancial do contraditório).

Interessante apontar que, não obstante o tratamento dado pela doutrina e juris-
prudência, o reconhecimento do contraditório como isonomia processual não está
previsto expressamente na nossa Constituição9, bem como no Código de Processo Pe-
nal. Por isso, a importância do destaque do artigo 7o do NCPC em que reserva expres-
samente que será assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício
de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa.

Diante da expressão sobre a paridade de armas e a necessária condução do pro-


cesso pelo julgador na garantia do contraditório, sua concepção instrumental reserva
o efeito de zelar pelo equilíbrio processual e o afastamento de surpresas nesta ativi-
dade dialética. Caracteriza-se, portanto, como uma garantia formal de necessária in-
formação dos atos processuais. Portanto, o estabelecimento de normas próprias para
a designação da presença das partes na discussão processual.

Assim o processo deve ser observado através de fases de argumentação em uma


sequência lógica, em que cada etapa é composta pelos argumentos expostos pelas
partes, seguindo em um verdadeiro diálogo10.

9 Como ocorre, por exemplo, na Constituição italiana em seu artigo 111, n.2. Ogni processo si svolge nel contraddittorio tra le parti, in condizioni di parità, davanti a
giudice terzo e imparziale. Da mesma forma no artigo 20o., n. 4, da Constituição Portuguesa. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto
de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.

10 GORDON, Thomas F. e WALTON, Douglas. Proof Burdens and Standards. In Argumentation in Artificial Intelligence, I. Rahwan and G. Simari (Eds.). Springer-
Verlag: Berlin, 2009, p. 238.

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A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

A referência destas etapas como um procedimento dialógico, segue como forma


necessária para que cada parte tenha um conhecimento prévio do que irá ocorrer,
para exercer sua atividade11. Será, portanto, através da sua previsão formal que se
condiciona a possibilidade do contraditório identificado como informação dos atos e
a possibilidade de reação sobre os mesmos e das pretensões exercidas pelas partes12.
Ou seja, a condição de presença das partes com paridade de armas em todos os atos
processuais, bem como a necessária comunicação das suas realizações, instrumen-
tam a concepção formal do princípio do contraditório com a caracterização do efetivo
equilíbrio na dinâmica processual13.

Consequentemente, ínsito na concepção instrumental do contraditório está a


possibilidade das partes em postular pela produção de provas, receber intimações de
todos os atos processuais, participar ativamente das audiências, impugnar decisões,
entre outros ônus processuais14.

Porém, atualmente o contraditório não se exaure na expressão da informação e


resistência, mas sim participar efetivamente dos rumos dos atos de decisão. Isso se dá
a partir do momento em que o julgador é chamado para se fazer constar na regra do
contraditório. Ou seja, a expressão “contraditório reservado às partes” expressa apenas
sua característica formal. O que deve ser identificado é a regra do contraditório em toda
a dinâmica processual, com a indicação e inclusão de todos os atores processuais.

Portanto, devemos pensar na concepção efetiva ou substancial do contraditório


em que se busca essencialmente um controle intersubjetivo da atividade processual,
almejando garantir certa objetividade na decisão15, com a participação efetiva (subs-
tancial16) na sua formação, a partir do direito de influência17 ao ato decisório.

11 Como prevenção da especial posição de interessado na causa e da possibilidade de exercício da contradição perante o procedimento. CUNHA, José Manuel Damião
da. O caso julgado parcial. Questão da culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória. Porto: Publicações Universidade Católica, 2002, p. 289.

12 Sobre concepção tradicional do contraditório e seu significado como informação-reação ver CABRAL, Antonio do Passo. Nulidade no Processo Moderno.
Contraditório, Proteção da Confiança e Validade Prima Facie dos Atos Processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 109 e segs.

13 No processo penal, a forma de externar essa faceta instrumental é reconhecida a partir do binômio imputação-resistência, em que as partes acusadoras (não
se descarta a presença do assistente da acusação, arts. 268s, CPP brasileiro) figuram presentes para expor suas pretensões e a auto-defesa e a defesa técnica
reagem a essas demandas.

14 No reflexo sobre o sentido moderno da audiência bilateral. GRECO, Leonardo. O princípio do contraditório. In Revista Dialética de Direito Processual. N. 24, 2005, p. 74.

15 FERRUA, Paolo. Processo Penale, contraddittorio e indagine difensive. In Studi sul Processo Penale III – Declinio del contraddittorio e garantismo reattivo. Torino:
Giappichelli, 1997, p. 95.

16 MOREIRA, José Carlos Barbosa. A garantia do contraditório na atividade de instrução. In Revista de Processo. n. 35, 1984, p. 233.

17 Influência reconhecida como ter a possibilidade intencional de produzir efeitos sobre as atitudes e opiniões dos outros. Em regra, se operada nas interações
sociais, a comunicação linguística será o melhor instrumento de exercício da influência caracterizada como simbólica. PARSONS, Talcott. On the concepto f
influence. In The Public Opinion Quarterly. Vol. 27, no. 1, 1963, p. 38 . Por isso, como abordaremos mais adiante, o paradigma do contraditório deve ser realçado
como direito subjetivo (VASSALI, Giuliano. Il diritto alla prova nel Processo Penale. In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milano: Giuffrè. Anno XI, 1968,
p. 09) de introdução do material probatório e não apenas como reflexo ao interesse das partes ou mesmo como ônus. Nesta toada, o contraditório deve ser
visto não apenas como possibilidade de conhecimento e reação de pretensões, mas como o exercício de poder de influenciar positivamente no julgamento
penal. Cf. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 85. Na mesma linha, o contraditório
participativo gerado a partir do princípio político de participação democrática, deve assegurar às partes todas as possibilidade de influenciar eficazmente na
formação das decisões judiciais, cf. GRECO O princípio do contraditório, p. 73/74. Cabral reconhece que a concepção do contraditório como direito é justificada
no cenário da democracia deliberativa e de participação com franca intervenção no processo judicial. CABRAL, Antonio do Passo. Il principio del contraddittorio
come diritto d’influenza e dovere di dibattito. In Rivista di Diritto Processuale. Fasc. 2, 2005, p. 457.

44
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

Por isso, a força normativa do artigo 10, NCPC indica que o julgador não deve
apenas velar pelo contraditório entre as partes – a antiga expressão “bilateralidade da
instância” advinda da cultura do Estado Liberal –, mas se submeter ao mesmo. Conse-
quentemente, o conteúdo dos atos decisórios caracteriza-se pelo apoio nas questões
previamente debatidas pelas partes, com vedação expressa das decisões-surpresas
(nas matérias não debatidas e, portanto, onde as partes não exerceram a efetiva influ-
ência no ato decisório). Efeito importante na submissão do julgador ao contraditório
ocorrerá na fundamentação estruturada da decisão18, matéria que não adentraremos
pois fugiria do presente foco.

Este se torna o ponto de maior relevo quanto às possíveis influências do NCPC ao


Direito Processual Penal, seja no que tange à cultura da prova penal e da formação da
decisão penal, seja em relação à reforma total que se discute.

[3]
A VISÃO CLÁSSICA DO
PRECEITO JURISDICIONAL

A PARTIR DA COLABORAÇÃO

DAS PARTES NO PROCESSO PENAL

O sistema criminal caracteriza-se por sua integração. Por isso, qualquer interferência
no direito substancial surtirá efeitos na esfera processual penal, e vice e versa. A essas
referências, o aspecto sociólogo e criminológico estão inseridos. Por isso, importante
adequar o sistema criminal ao nosso modelo de feição democrática inerente ao Esta-
do Constitucional e repensar a estrutura metodológica imposta ou recepcionada pelo
processo penal moderno.

Fazendo alusão histórica, pode-se afirmar que concomitante às ideias criminoló-


gicas da escola positiva sobre o sistema penal como atributo de defesa social, o refle-
xo se tornou constante no processo penal em que as regras de interferência aos atos
decisórios do juiz penal não seriam bem vistas. Com isso, cria-se a possibilidade de

18 Em especial, a leitura do artigo 489, §1o., IV quando dispõe que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou
acórdão, que: IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador.

45
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

limitação ao rito processual e uma versão judicial com amplos e ilimitados poderes
para a realização de uma intensa repressão criminal19.

Um dos reflexos à alteração processual, em concordância com a ideologia do Es-


tado à época, é a presença do discurso pela descoberta da verdade a partir da nor-
matização de investigação oficiosa ou produção probatória por parte do juiz, funda-
da na redução à instrumentalidade das formas e na eficácia processual. A partir da
concepção tradicional de processo como relação jurídica, com a característica básica
do processo jurisdicional e consequente fortalecimento do poder de valoração livre,
inclusive com os elementos de prova produzidos pelo próprio julgador, cria-se uma
independência ao diálogo das partes, ou seja, com a imagem de um juiz livre à busca
de uma verdade, produzindo provas e afastado de regras de valoração probatória. A
consequência é focada na redução da atuação das partes na formação da prova e da
decisão penal20, tornando o contraditório efetivo uma perda de tempo, já que o juiz é
dotado de um natural talento intuitivo, nas palavras de Cordero21.

Pior quando o contraditório serve como discurso da instrumentalidade proces-


sual para fundamentar a colaboração de todos os interessados no eficaz resultado do
processo. Essa colaboração, que tende possuir um escudo democrático, apenas reduz
significativamente um controle intersubjetivo pela efetiva participação das partes na
influência da decisão penal, quando a comunicação é conduzida por aquele que possui
o autocontrole e o reconhecimento social e jurídico de auto-compreensão de todos os
significados envolvidos na discussão processual22.

Assim, diante da perspectiva clássica do processo penal, mantem-se estabeleci-


da uma liberdade decisória em detrimento ao diálogo e ao efetivo contraditório entre
todos os atores processuais, podendo o julgador penal, inclusive nos dias atuais, fun-

19 NOBILI, Massimo. Il principio del libero convincimento del giudice. Milano: Giuffrè, 1974., p. 461/462.

20 Neste sentido NOBILI. Il principio del libero convincimento del giudice., p. 462. Gerando efeitos devastadores ao direito de defesa e o direito de ser julgado
sobre a base de um modelo menos rígido sobre legítimos modos de obtenção e exclusão probatória. cf. DE LUCA, Giuseppe. Il sistema delle prove penali e
il principio del libero convincimento nel nuovo rito. In Rivista Italiana di Diritto e Processo Penale., 1992, vol. II, p., 1269. As referências podem ser vistas na
prática jurisprudencial. Neste sentido, “malgrado a argumentação defensiva, indubitável que dentro do sistema de avaliação da prova acolhido pelo processo penal
brasileiro, vige a livre convicção motivada ou livre convencimento motivado (CPP, art. 155), de modo que o julgador não fica adstrito às alegações das partes, mas ao
conjunto de provas angariado no feito.” (Recurso em Sentido Estrito n. 0002319-60.2012.8.12.0017, 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Mato Grosso
do Sul, Rel. Des. Carlos Eduardo Contar, j. 13.10.2014).

21 Que em condições menos exotéricas se chama livre convencimento. CORDERO, Franco. Diatribe sul processo accusatorio. In Ideologie del Processo Penale.
Milano: Giuffrè, 1966, p. 219.

22 Esse tema permanece em ampla discussão na doutrina brasileira, justamente pela defesa da instrumentalidade processual para o alcance da sua efetividade.
Neste contexto, e na defesa da participação ativa do julgador como atributo democrático, advoga Dinamarco que “essa participação constitui postulado
inafastável da democracia e o processo em si mesmo democrático e portanto participativo, sob pena de não ser legítimo. E falar em participação significa, no
direito processual moderno, falar também no ativismo judiciário, que é a expressão da postura participativa do juiz – seja através das iniciativas probatórias,
seja da efetiva assunção do comando do processo, seja do diálogo a que o juiz tradicional se recusa -.” DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do
Processo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 132.

46
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

damentar sua decisão sem que haja abordagem sobre todos os pontos de referência
realizado pelas partes, com ênfase à defesa.

Ou seja, a clássica e atual perspectiva do processo penal ainda se caracteriza pela


jurisdição como o instrumento metodológico e central, seguindo por uma visão unila-
teral em que um dos vértices do ultrapassado triângulo processual23 segue no ponto
mais elevado pela figura do juiz.

A tentativa de atualização do modelo processual (penal) pelo Estado Constitucional


impõe a reanálise da sua cultura e adequação a um esquema de efetiva e equilibrada
divisão de funções, caracterizando-o com uma perspectiva pluralista em que não seria
cabível a concentração de poderes por parte de um ator processual sem a compartici-
pação e real influência de todos os envolvidos na discussão processual (penal).

[4]
EFETIVA PARTICIPAÇÃO
DOS ATORES PROCESSUAIS

COMO NECESSÁRIA ALTERNÂNCIA

DA CULTURA PROCESSUAL PELO

MÉTODO DO CONTRADITÓRIO

Partamos de uma premissa básica: o processo penal possui conteúdo ideológico e


político. Essa afirmativa coliga os fins e a forma de atuação processual com a ideia so-
ciológica deste instrumento de busca de saber. Transcende, portanto, os interesses
individuais e alberga todo o universo axiológico da sociedade moderna.

Por isso, para que alcancemos a moderna caracterização do contraditório como re-
gra processual destinado à participação, controle e influência do ato de poder (decisão),
há necessidade da recepção de elementos democráticos que consubstancie o proces-
so penal como atividade dialogal em busca de conhecimento. O reconhecimento des-

23 Sobre o mito do triângulo processual ver CUNHA, José Manuel Damião da. O caso julgado parcial. Questão da culpabilidade e questão da sanção num processo
de estrutura acusatória. Porto: Publicações Universidade Católica, 2002, p. 249.

47
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

ses pressupostos leva ao encontro da caracterização das sociedades contemporâneas


e seu confronto com os deveres e direitos dos cidadãos na metodologia participativa da
vida social e política. Por isso, a dimensão democrática e social não deve ser minimiza-
da à representatividade, até porque reflete uma visão antiga e formal da democracia24.
A legitimidade pela representatividade já se mostrou eivada de vícios e reflete apenas
um discurso de transmissão de argumentos de autoridade e de assentimento de atos
normativos reconhecidos pela validade do direito, pois edificado por políticos eleitos a
partir de regras25, que apenas gera a legitimação pelo símbolo institucional.

A vivificação de direitos e garantias fundamentais e sociais se traduz, contempo-


raneamente, na tentativa real de participação, cooperação e deliberação entre todos
os envolvidos na seara pública, não havendo redução quanto às questões judiciais que,
em ponto delicado, quiçá reconhece o fator representativo eivado pelo povo. Consequ-
ência desta afirmativa, ou na possibilidade de introdução de referências sobre a teoria
da sociedade contemporânea26, diz respeito à necessidade de participação de todos os
envolvidos na questão judicial27, em especial aqueles que realizam o diálogo processual.

A característica pluralista e contemporânea da atividade pública e, portanto, uma


visão de responsabilidade democrática tem como ponto de origem a teoria da justiça
de Rawls em que propunha uma racionalidade deliberativa e não apenas de legitimi-
dade representativa28. No entanto, Rawls trabalha no plano da subjetividade racional,
o que traduz na aferição da competência e confiança da pessoa que irá decidir29, redu-
zindo a força da comunicação e do controle intersubjetivo.

Em um plano mais amplo, o âmago do processo democrático, nas palavras de Ha-


bermas, não está apenas na democracia representativa, mas sim na legitimação dos
atos através do processo de política deliberativa intersubjetiva 30, o que surte efeitos na

24 SEN, Amartya. A ideia de justiça. Trad. Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 358. Estabelece-se um modelo
dual, não apenas com a estrutura da formação de vontade institucionalizada, mas também com a noção de esfera pública composta de arenas políticas
informais caracterizadas pelo diálogo e a lógica do discurso. Cf. SILVA, Filipe Carreira da. Espaço Público em Habermas. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais,
2002, p. 148.

25 Conceito voluntarista de validade normativa, cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre facticidade e validade II. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 13/14.

26 Tema que leva a uma análise sobre tensão entre a atual sociedade de risco, alheia à necessária interação e solidariedade de todos os envolvidos e a sociedade
de cooperação em que possui como característica básica a formação de uma justiça distributiva e o reencontro com as formas de participação da vida social
e política, nas expressões de DIAS, Augusto Silva. <<Delicta in Se>> e <<Delicta Mere Prohibita>>. Uma Análise das Descontinuidades do Ilícito Penal Moderno à Luz
da Reconstrução de uma Distinção Clássica.Coimbra: Coimbra, 2008, p. 629, 633.

27 Tema que transcende atualmente o envolvimento tradicional das partes na situação processual para fomentar a participação de personagens externos ao
caso penal, como pode ser observado pela possibilidade de realização de audiências públicas na hipótese de demandas que extravasem o interesse subjetivo
da questão penal. (art. 983, §1o., NCPC)

28 RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímoli Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 461.

29 Idem, p. 462/463.

30 HABERMAS. Direito e Democracia. p. 18.

48
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

questão da legitimidade do ato decisório apenas pela característica da sua instituciona-


lização ou no reconhecimento de instrumentos destinados à participação igualitária pe-
los atores processuais, muito embora também caracterizada por sua interdependência.

O que se propõe é a substituição de um modelo liberal constituído pelo contrato


social e voltado a forma exclusivamente de compromissos de interesses, para um mo-
delo pluralista de argumentação e de deliberação para a tomada de decisões31, sem
que alcancemos, no processo penal, qualquer defesa ao mito da solidariedade proces-
sual que não encontraria proximidade à boa fé processual, mas apenas uma referên-
cia romântica e utópica do processo32.

Neste ponto, a teoria do discurso racional33 deve ser caracterizada pelo fator éti-
co de comunicação e cooperação em todas as searas políticas e sociais34. Para esse
conjunto, no entanto, devem seguir pela situação ideal de discurso, com a referência
à igualdade de participação e oportunidade dos envolvidos e, em especial, ausência
de privilégios na sua fala35, ou seja, torna-se importante aprimorar os instrumentos e
condições do debate e da discussão.

A necessidade de contribuir, participar e criticar nas atividades públicas e sociais,


são referências que podem ser introduzidas no contexto processual penal a partir da
teoria do discurso, na medida em que as deliberações devem ser realizadas de forma
argumentativa, reguladas pela troca de informações e argumentos entre os envolvi-
dos (as partes processuais), caracterizadas pela deliberação pública e inclusiva36, que
visam seguir a comparticipação e não apenas a colaboração na formação da decisão

31 E na continuação da reflexão, Habermas aponta que “a chave desta concepção consiste precisamente no fato de que o processo democrático institucionaliza
discursos e negociações com o auxílio de formas de comunicação as quais devem fundamentar a suposição da racionalidade para todos os resultados
objetidos conforme o processo.” Idem, , p. 27, o que indica uma referência binária ao conceito de democracia deliberativa. De um lado, o plano formal e
institucionalizado da democracia e do outro, os domínios informais e discursivos para a formação de opinião. SILVA, Filipe Carreira da. Espaço Público em
Habermas. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002, pp. 148/149.

32 THEODORO JÚNIOR, NUNES, BAHIA, e PEDRON. Novo CPC. Fundamentos e Sistematização. p. 70.

33 Nas palavras de Habermas, “a teoria do discurso explica a legitimidade do direito com o auxílio de processos e pressupostos da comunicação – que são
institucionalizados juridicamente – os quais permitem levantar a suposição de que os processos de criação e de aplicação do direito levam a resultados
racionais”. HABERMAS. Direito e Democracia, p. 153.

34 Esclarecemos que a teoria do agir comunicativo de Habermas e a teoria do discurso apenas segue como tentativa de reconhecimento de instrumentos para
a garantia de fixação da regra do processo dialógico . Não seguimos na defesa inconteste, pois alcançaríamos um outro problema na conclusão: a defesa da
teoria da verdade consensual, que sofre diversas críticas ao ponto de ser reconhecida como uma ficção teórica. Cf. KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito.
4ª ed. Trad. António Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 414. Porém, nos parece interessante, para o contexto das concepções
da prova e da regra do contraditório, um olhar mais focado à intersubjetividade de processos de compreensão, que são caracterizados por procedimentos
democráticos.

35 Somado, ainda, a liberdade de expressão, veracidade e ausência de coação. KAUFMANN. Filosofia do Direito. p. 410.

36 HABERMAS. Direito e Democracia. p. 29

49
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

penal37. O que caracteriza este viés é a presença de argumentos substanciais moldu-


rados pela lógica do diálogo e pelo princípio da participação em que leva ao reconhe-
cimento da motivação racional e do processo democrático38.

Essa proposta segue na superação do modelo processual penal centrípeto em


que reconhece o Estado como único capaz de realização de fonte legítima de poder,
servindo o envolvimento das partes neste diálogo como mera colaboração, com vista
a formação do modelo processual penal centrífugo que tem assento na democracia
participativa, deliberativa e cooperativa39.

A evolução do contraditório e seu reconhecimento pela moderna caracterização


da vivência democrática do processo judicial, deve ser reconhecida pelo conceito de
aprimoramento dos métodos e condições do debate40, para almejar sua função de for-
mação de conhecimento, de busca da verdade processual41 e, portanto, para o exercí-
cio de influência42 e estruturação da decisão penal como instrumento de compreensão
dos argumentos probatórios expostos na dialética processual.

Neste contexto, o princípio (direito) da prova contrária ganha endereço na medida


em que as partes devem possuir espaços para a falsificação43 das hipóteses adversas,

37 Para além da participação social reconhecida no Tribunal do Júri brasileiro, um exemplo relevante que vem sendo posto em prática diz respeito à habilitação de
terceiros interessados como Amicus Curiae perante o Supremo Tribunal Federal em que oxigena sobremaneira as discussões e elenca importantes argumentos
para além dos limites subjetivos da demanda. Há uma participação social em que se rediscute o papel desenvolvido pelos personagens na dinâmica processual,
trazendo toda a carga ideológica e política para dentro do processo penal. A ampliação da discussão dar-se-á pelo artigo 138 NCPC, a partir da regulamentação
da possibilidade de habilitação do Amicus Curiae perante juízo monocrático ou perante Tribunal local.

38 HABERMAS, Jürgen. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Trad. Vamireh Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 136. O que fornece elementos
para definir o sentido da verdade de modo “procedural” a partir da práxis argumentativa e, portanto, um procedimento destinado à consideração sensata
de todas as vozes e contribuições relevantes. HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação. Ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Edições
Loyola, 2004, p. 46/47. O processo democrático somente se mostra legítimo quando apoiado no princípio do discurso, autorizando fluxos de informações
pela contribuição e argumentos dos participantes na esfera pública, segundo a obra de Habermas. Cf. SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Uma filosofia do Direito
Procedimental. In Revista Tempo Brasileiro n. 138, 1999, p. 162.

39 CASARA, Rubens RR e MELCHIOR, Antonio Pedro. Teoria do Processo Penal Brasileiro. Dogmáticas e Críticas: Conceitos Fundamentais. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2013, p. 322. Em forma mais ampla, na referência as tutelas coletivas e a efetividade da participação nas decisões como característica da democracia
participativa, MATTA, Luiz Otávio de Souza. A democracia participativa e a Defensoria Pública. In Revista de Direito da Defensoria Pública. vol. 21, 2006, pp.
207/225.

40 HABERMAS. Direito e Democracia, p. 27. E não apenas pela presença de um melhor argumento, como seguem as críticas à teoria do discurso racional de
Habermas. Cf. KAUFMANN. Filosofia do Direito. p. 411.

41 PICARDI, Nicola. Il principio del contraddittorio. In Rivista di Diritto Processuale. Fasc. 3, 1998, p. 681.

42 Neste sentido, Cabral observa o contraditório como a compreensão do direito de influência, expressão da democracia deliberativa no processo, em que
fornece elementos para interferência nos atos decisórios do Estado a partir de discussões argumentativas. Cf. CABRAL. Il principio del contraddittorio come
diritto d’influenza e dovere di dibattito. p. 456s. CABRAL, Antonio do Passo Cabral. Coisa Julgada e Preclusões Diâmicas. Entre continuidade, mudança e transição de
posições processuais estáveis. Niterói: JusPodivm, 2013, p. 316s.

43 A teoria falsificacionista de Karl Popper é reconhecida como uma das principais referências à epistemologia moderna, a partir da crítica ao contexto científico e
o abandono da indução por enumeração. O pensamento falsificacionista de Popper é caracterizado pela necessidade de identificação de um método de crítica
e refutação de teorias científicas em que são postas à prova a partir do empenho de sua falsificação. Este método influenciou na evolução do pensamento
filosófico do racionalismo crítico, na medida quando afirmava ser a “ciência essencialmente crítica”, consistente no controle da conjectura pela crítica. POPPER,
Karl. La scienza normale e i suoi pericoli. In Critica e crescita della conoscenza. A cura di Imre Lakatos e Alan Musgrave. Trad. Giulio Giorello. Milano: Feltrinelli,
1984, p. 126. Como o próprio Popper fez referência, o método falsificacionista não corresponde a uma técnica empírica da ciência, nem mesmo um dogma,
mas sim uma recomendação filosófica (uma tese da meta-ciência, nas suas palavras). POPPER, Karl. Os dois problemas fundamentais da Teoria do Conhecimento.
Trad. Antonio Ianni Segatto. São Paulo: Unesp, 2013, p. XXXIII, para a aferição sobre a veracidade de uma teoria, através da refutação das suas falhas, por
isso, nas palavras de Popper, o critério de refutabilidade ou falsificabilidade pode ser também chamado de critério de testabilidade. POPPER, Karl. O Mito do
Contexto. Em defesa da ciência e da racionalidade. Trad. Paula Taipas. Reimpressão. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 150. Por isso, Popper se descreve como um
“absolutista falibilista”: falibilista porque ele nega que possamos ter qualquer método garantido de adquirir conhecimento, absolutista porque insiste que há
uma tal coisa como a verdade objetiva à qual a investigação científica aspira.” HAACK, Susan. Filosofia das Lógicas. Trad. Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique
de Araújo Dutra. São Paulo: Unesp, 2002, p. 163.

50
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

estabelecendo um contexto positivo ao estatuto epistemológico no processo penal,


não apenas na forma de expressão dos elementos de prova, mas sim influenciar so-
bre a produção dos seus efeitos e, portanto, na possibilidade de alcance da verdade
dita processual44.

O que se espera do processo penal e sobre a análise do método probatório não é


a caracterização de um solipsimo judicial, mas um diálogo e confronto entre as partes
na dinâmica da formação genética45 da prova e da decisão penal46. Mas, o problema
é endereçado pela dificuldade de realização concreta do contraditório47, o que surtirá
reflexos na justificação da decisão final.

Podemos exemplificar no Direito Continental um exemplo de alteração legislativa


(penal) que tentou reservar ao contraditório sua característica substancial e real valor
constitucional48. Tratou a reforma constitucional e processual italiana garantir o con-
traditório uma identificação mais condizente com a dinâmica de um processo demo-
crático49. Por isso, um contraditório efetivo ou em senso forte50.

Reconhece-se que uma das principais diferenciações entre o processo com viés
inquisitivo para o acusatório diz respeito à atuação mais substancial das partes51. Por

44 Neste sentido, FALLONE, Antonino. Il processo aperto: Il principio di falsificazione oltre ogni ragionevole dubbio nel processo penale. Milano: Giuffré, 2012, pp.
217/218.

45 Expressão de BETTIOL, Rodolfo. La formazione della prova nel contraddittorio. A chi spetta il diritto? In Scritti in memoria di Giuliano Marini. A cura di Sergio
Vinciguerra e Francesco Dassano. Napoli: Scientifiche Italiane, 2010, p. 80.

46 IACOVIELLO, Francesco Mauro. Lo standard probatorio dell’al di là di ogni ragionevole dubbio e il suo controllo in cassazione. In Cassazione Penale. 2006, n. 11, p.
3875. O que traduz na importância de análise quanto à atuação e atribuição de todos os sujeitos processuais. Para o tema MENDES, Paulo de Sousa. Os Sujeitos
Processuais no Novo Código de Processo Penal de Cabo Verde. In Direito Processual Penal de Cabo Verde. Augusto Silva Dias e Jorge Carlos Fonseca (coord.)
Coimbra: Almedina, 2009, pp. 163segs.

47 Como ilustra ILLUMINATI, Giulio. La presunzione di innocenza dell’imputato. Zanichelli, 1979, p. 79.

48 Neste sentido, COMOGLIO, Luigi Paolo e ZAGREBELSKY, Vladimiro. Modello accusatorio e deontologia dei comportamenti processuali nella prospettiva comparatistica.
In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, fasc. II, 1993, pp.480/482; PISAPIA, Gian Domenico. Il nuovo processo penale: esperienze e prospettive. In Rivista
Italiana di Diritto e Procedura Penale, fasc. II, 1993, pp. 05/06. Construiu-se, portanto, um código de visão acusatória, indicando que tanto a acusação quanto a
defesa teriam um maior relevo processual para além da imputação e resistência, criando uma aproximação interessante de índole mais dialogal, próximo ao
esquema acusatório com raízes no modelo da common law (SAGNOTTI, Simona Carlotta. Il contraddittorio: una riflessione filosofico-giuridica. In Processo Penale
e Constituzione. Milano: Giuffrè, 2010, p. 342) em que constitui o direito das partes de contribuir na formação dos elementos que são utilizados pelo juiz para
decidir a causa penal.
Mas, houve uma reação direta da magistratura em que começou a observar a perda de “pseudo-poder” dos juízes na direção da prova, deixando para a acusação
e, em alguns pontos à defesa, essa responsabilidade. Consequentemente, a cultura inquisitória é parcialmente restabelecida pela Corte constitucional italiana,
que parte de um inédito “princípio da não dispersão da prova” (Corte Costituzionale, Sent. 225/1992) que parte da afirmação que o único fim do processo penal
é a busca da verdade, retornando à ampliação de poderes instrutórios realizados pelo juiz, “educados numa cultura que faz do juiz penal o dominus da prova”,
restabelecendo o discurso da busca da verdade dita real como fator preponderante ao processo penal.

49 Com essa conotação de partes, afastou o legislador daquele país qualquer indicação normativa sobre “liberdade” e “verdade”. Cf. NOBILI, Massimo. Il nuovo
“diritto delle prove” ed un rinnovato conceito di prova. In Legislazione Penale, n. 3. 1989, p. 397. Figurando em um processo com estrutura geral de um novo
“processo di parti” que se destaca nitidamente do modelo inquisitório anterior. Cf. PISAPIA, Gian Domenico. Un nuovo modelo di processo. In Legislazione
Penale, 1989, n. 1, p. 77.

50 CONTI, Carlotta. Il diritto delle prove penali. Carlotta Conti e Paolo Tonini (org.). Milano: Giuffrè, 2012, p. 35.

51 Foi o que ocorreu na Itália com a reforma processual penal em 1988 em que a função precípua do processo penal não mais figurou na busca de uma verdade
real, justamente por caracterizar esta busca como um ato estritamente inquisitório. Assim, diante de uma perspectiva acusatória forte que se inspirou o
Código de Processo Penal Italiano de 1988, há uma maior direção à implementação do princípio da contradição entre as partes e, principalmente, um reforço
à defesa do réu, tornando, em conotação crítica, a determinação da verdade sobre os fatos uma mera eventualidade, não mais sendo considerada como
principal função do processo penal. cf. TARUFFO, Michele. Tres observaciones sobre “por qué un estándar de prueba subjetivo y ambíguo no es un estándar” de
Larry Laudan. Trad. Jordi Ferrer Beltrán. In Doxa, n. 28, 2005, pp. 116/117.

51
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

isso, na defesa intransigente de Vassalli em busca de um processo democrático, refe-


re-se a característica fortemente conotada segundo a lógica acentuada do processo
de partes52. Pretendeu-se a intervenção mais ativa da acusação e defesa no momento
de formação da prova (contraditório para a prova) e não uma atividade de argumen-
tação da prova já pré-constituída (contraditório sobre a prova)53.

O traço importante desta mudança, foi afastar as partes como atores figurantes
ou coadjuvantes da discussão processual – fundados apenas no direito à expressão e
à informação –, para entregá-las uma função mais ativa, a partir, e principalmente, da
formação da prova como consectário direto de uma visão mais funcional do contradi-
tório em relação ao modelo anterior.

Na realidade, o que se indica é a presença da regra do contraditório não apenas


como simples isonomia entre as partes na discussão processual54, bem como sua ca-
racterização a partir da referência informação-reação, podendo postular por provas,
oferecer alegações e impugnar eventuais decisões judiciais, verdadeiros atos de ex-
pressão. Pretende-se uma análise moderna sobre a regra do contraditório que garanta
uma maior intervenção argumentativa das partes, a partir da prova contrária, seguin-
do um método falsificacionista e de participação ativa no debate processual. Por isso,
diante da fragilidade democrática de mera informação e possibilidade de atuação, a
regra do contraditório deve ser vista como método de conhecimento55 e regra de forma-
ção da prova penal56 e de coprodução da decisão57.

O contraditório como isonomia processual58 apenas endossa a necessidade de


estabelecimento de regras dispostas à criação da imprescindível presença das partes
e o respeito ao ideal de igualdade59, que nada mais reforça do que o próprio conteúdo

52 SPAGNHER, Giorgio. Giuliano Vassalli e l’evoluzione del Processo Penale. In Cassazione Penale, n. 12, dec. 2011, p. 4538.

53 Neste sentido, importante reflexão sobre a questão da prova científica é realizada por CANZIO, Giovanni. Proca scientifica, ragionamento probatório e libero
convincimento del giudice nel processo penale. In Diritto Penale e Processo n. 10, 2003, pp. 1193/1200, em especial na pág. 1200. Da mesma forma, FRIGO,
Giuseppe. Un passo verso il recupero del contraddittorio per la prova. In Diritto Penale e Processo. Fasc. 5, 1988, pp. 633/641.

54 Devemos refletir no contraditório como uma referência que transcende o interesse das partes, servindo também como garantia de juízo e norte para uma
política processual participativa, na medida em que estabelece uma técnica de formação e avaliação idônea a confirmar ou a afastar uma hipótese deduzida
na dinâmica processual (FERRUA, Paolo. Il giudizio penale: fatto e valore giuridico. In La prova nel dibattimento penale. 4ª ed. Giappichelli: Torino, 2010, p. 320)
Nada mais que o princípio da falsificação em sentido instrumental condicionado à efetivação do princípio da prova contrária.

55 TONINI. Direito de defesa e prova científica, p. 202.

56 Cf. CONTI. Il diritto delle prove penali. p. 36.

57 Neste sentido, CABRAL. Coisa Julgada e Preclusões Dinâmicas., p. 316.

58 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 128s.

59 Importante análise sobre o tema da igualdade no processo penal pode ser visto em COSTA, Paula Bajer Fernandes Martins da. Igualdade no Direito Processual
Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, em especial p. 89segs.

52
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

instrumental do contraditório60, a partir da formação concreta de comunicação e par-


ticipação para a formação de um conteúdo epistemológico e não apenas um reforço à
defesa da argumentação retórica das partes. Por outras palavras, o método do contra-
ditório substancial tenta afastar a característica da prova como elemento de retórica
para se valer de um método de efetiva formação de conhecimento e de comparticipa-
ção na decisão penal.

Essa advertência pode indicar a mudança da cultura processual penal quando


reflete a necessidade de garantir uma ampliação na atuação das partes, trazendo a
possibilidade do afastamento do julgador como uma figura “onipotente”, sem que
haja uma divisão de responsabilidade entre todos os envolvidos. A formação da pro-
va, portanto, estará afeta às partes e, excepcionalmente, ao juiz, criando reais respon-
sabilidades a cada ator processual. Por outro lado, a decisão penal não pode ser vista
como ato de exclusiva identificação do convencimento por parte do julgador, mas sim
a conjugação da participação (influência) das partes na sua formação.

Por isso, o reconhecimento do sistema acusatório “forte” (para afastar a vertente


ilusória “puro”), dar-se-á com a ingerência da defesa em atuar mais ativamente na pos-
sibilidade de contribuir com a investigação, do contraditório como princípio formador
da prova61. Ou seja, a introdução da regra do contraditório como formação da prova
indica, efetivamente, a valorização e ampliação de um sistema democrático de partici-
pação em que se torna necessária a simbolização com rupturas autoritárias.

O interessante nesta linha de reflexão, é que a simples divisão de funções, a dis-


cussão e críticas quanto à gestão da prova pelo juiz ou sua atuação mais ativa no pro-
cesso penal (por exemplo, decretando prisões de ofício), por si só, não garante a efe-
tividade de um sistema democrático.

Da mesma forma, a defesa de um livre convencimento e da instrumentalidade


processual não soluciona diversos problemas de carência constitucional ao processo
penal. Precisamos de mais. Talvez, a necessidade da observação de uma cultura pro-
cessual penal caracterizada pela comparticipação, a partir de reais valores de equi-
dade, na dinâmica da influência e na formação da decisão penal, levará a uma forma
mais coerente com os modelos constitucionais.

60 Neste sentido, reconhecendo que um princípio geral de igualdade é insatisfatório, GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. 2ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 36/37. Até porque, não se endereça apenas a caracterização lógico-formal de uma garantia fundamental, devendo
ser ampliado qualquer grau de aplicação, reconhecimento e conteúdo para que se alcance seu efeito substancial. Cf. FERRAJOLI, Luigi. I diritti fondamentali
nella teoria del diritto. In Diritti fondamentali. Un dibattito teórico. A cura di Ermanno Vitale. Roma: Laterza, 2002, p. 132s.

61 “Quanto maggiore è il contraddittorio, tanto meglio potrà essere accertata la verità.” TONINI, Paolo. Manuale di Procedura Penale. 12ª ed. Milano: Giuffrè, 2011, p. 09.

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A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

[5]
O RESULTADO DO ESFORÇO ENTRE
A PRODUÇÃO DE EFEITOS –

O DIREITO À PROVA NO PROCESSO PENAL

As últimas características apontadas marcam a ressalva realizada pela doutrina e ju-


risprudência do direito à prova e à redução ao tema do ônus da prova e não um direito
previsto em âmbito constitucional. A proeminência da figura do juiz a partir do siste-
ma do livre convencimento, não como modelo de afastamento das provas legais, mas
como norte para decidir e não se vincular ao esforço probatório realizado pelas partes,
a economia processual, o dogma da verdade real e algumas outras questões de mar-
ca inquisitória, realçaram e identificam um desvalor na atividade das partes quanto a
influência da formação da decisão penal62.

Por isso, um dos métodos que ratificamos corresponder o principal ponto de apoio
ao regular percurso epistêmico, diz respeito a previsão normativa do contraditório
como reserva a garantia da efetividade do direito à prova, oriundo de um processo
dialético em que as partes possuirão, de fato, maior força probatória e argumentativa
para a real influência na decisão penal63 e que esse percurso esteja devidamente reco-
nhecido e simbolizado quando diante do juízo justificatório. Nesta linha, a afirmativa
de que o direito probatório se exaure nas garantias formais da isonomia das partes,
na possibilidade de informação e reação frente aos atos processuais, na vedação da
prova ilícita, etc, não traduzem o exaurimento da força constitucional do direito à pro-
va. A salvaguarda do direito à prova, para além de um ônus probatório, deve caracte-
rizar-se como uma das garantias processuais inseridas no texto constitucional64.

Na realidade, a discussão tem seu início nas questões epistemológicas do proces-


so penal em consonância com as Convenções Internacionais que protegem direitos

62 GOMES FILHO. Direito à Prova no Processo Penal. p. 63.

63 Retorna-se à ideia do processo democrático a partir do método ideal de deliberação e da coesão da atividade comunicacional para a tomada de decisão.
HABERMAS. Direito e Democracia, p. 31.

64 Nesta linha, GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. El Debido Proceso. Buenos Aires: Rubinzal – Culzoni, 2004, p. 400s.

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A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

humanos65. A partir daí ratifica-se que a questão probatória não mais deve ser vista
como mero interesse ou ônus das partes na corroboração dos enunciados fáticos em
seu benefício, mas sim como verdadeiro direito66.

Neste contexto, o método do contraditório não pode ser reconhecido apenas como
um torneio retórico de argumentação das partes, ainda que possuam as mesmas con-
dições nesta atividade. Deve-se creditar o direito à prova como elemento adequado
ao método do contraditório em que as partes possuem a responsabilidade sobre a
formação do objeto da prova, dos elementos da prova e a influência na decisão penal.

Consequentemente, o direito à defesa de se defender provando deve ser visto


como em seu aspecto positivo, isto é, o reconhecimento de que a atividade da defesa
na postulação e produção da prova não se esgota apenas à refutação das pretensões
acusatórias, mas sim assegurado amplamente na forma do direito à prova, sobre o
contexto da prova argumentada (e não da argumentação sobre os elementos de pro-
va), e no agir concretamente como a influência de um pronunciamento judicial dirigi-
do como regra de proteção ao inocente67.

Se não mais trabalhamos com o critério absoluto de busca da verdade, bem como
uma ampla liberdade de convencimento do julgador através do seu protagonismo em
detrimento à atividade das partes (em alguns ponto de autoconvencimento, repita-se),
este se torna um importante direito subjetivo, na medida em que as partes exercerão
relevante função para levar a juízo todos os elementos probatórios de falsificabilidade
e verficabilidade das afirmações expostas.

Esta imposição constitucional (do direito à prova) cria um campo prático e eviden-
cia o momento de falsificação da hipótese acusatória com relevante valor no método
de valoração probatória e no raciocínio decisório68.

65 Na esteira da Declaração Universal dos Direitos do Homem firmada em 1948, em que proclamou que “toda a pessoa acusada de delito tem direito a que se
presuma sua inocência enquanto não se prove sua culpabilidade, conforme a lei e em juízo público no qual sejam asseguradas todas as garantias necessárias
à defesa” (art. 11, n.1), basta analisar a força normativa do art. 6º, n. 3, b, da Convenção Européia de Direitos do Homem (“todo o acusado tem o direito de
inquirir ou fazer inquirir as testemunhas de acusação, e obter o comparecimento e inquirição das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as de
acusação”) e do art. 14, § 3º, alínea e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (que reserva as garantias mínimas em favor da pessoa acusada
dentre elas a “de inquirir ou fazer inquirir as testemunhas de defesa, nas mesmas condições que as de acusação”), para entender que o “direito à prova”, em
que reserva às partes na dinâmica processual o direito de provar todas suas alegações, dando realce ao exercício da ampla e concreta defesa em exercer o
direito de defender-se provando, não prescreve apenas um ônus. Da mesma forma, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 incorporada no
direito brasileiro em 1992 pelo Decreto 678 de 6 de novembro, aponta que toda a pessoa acusada de delito é reconhecido o poder de inquirir as testemunhas
de acusação, bem como obter o comparecimento de testemunhas de defesa, em igualdade de condições.

66 CRISTIANI, Antonio. Guida alle Indagini Difensive nel Processo Penale. G. Giappichelli Editore: Torino, 2001, p. 13

67 Em sentido semelhante, GOMES FILHO. Direito à Prova no Processo Penal, p. 67.

68 Em sentido semelhante, IACOVIELLO, Francesco Mauro. La motivazione della sentenza penale e il suo controllo in cassazione. Milano: Giuffrè, 1997, p. 217.

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A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

Consequentemente, a defesa do modelo de corroboração e refutação das hipóte-


ses postas em discussão, não teria sentido nem conteúdo se não fosse reforçado por
um efetivo contraditório e a possibilidade de regras específicas para este reconheci-
mento em contato direto ao direito constitucional à prova.

[6]
UM EXEMPLO DE TENTATIVA DE
VALORIZAÇÃO AO EQUILÍBRIO DAS
PARTES NO DIREITO CONTINENTAL –

A ATUAÇÃO DEFENSIVA PARA A

DESCOBERTA DAS FONTES DE PROVA

Um dos pontos de maior realce ao encontro de um processo dialogal figura simbolica-


mente na atuação da defesa na atividade investigativa sobre as fontes de prova69 em
que seu papel ativo e dinâmico reserva, necessariamente, maior e qualificado empe-
nho na sua atuação, atribuindo a ampliação da responsabilidade do defensor70 (não
como mero contribuinte das consequências da produção probatória), mas sim asse-
gurando condições necessárias para preparar a defesa da pessoa acusada71.

Nada mais significativo do que a natureza substancial e instrumental da concep-


ção falsificacionista da prova a partir do reconhecimento da formação da prova con-
trária por engenharia da defesa.

Mais uma vez retomamos ao importante exemplo do ordenamento processual


italiano que diz respeito à alteração legislativa em que garantiu à defesa uma atuação
investigativa direta, com o escopo de tentar resguardar a isonomia entre as partes.

A partir desta atribuição normativa, o código de processo penal italiano garante


ao acusado o exercício de defender-se materialmente provando atos e realizando con-

69 Como diretamente ocorre no sistema da common law e no processo penal italiano.

70 TRIGGIANI, Nicola. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. In Archivo della Nuova Procedura Penale. n. 1, gennaio/febbraio, 2011, p. 01.

71 CAPRIOLI, Francesco. Indagini preliminari e udienza preliminare. In Compendio di Procedura Penale. Giovanni Conso, Vittorio Grevi e Marta Bargis (org.). 6ª ed.
Padova: Cedam, 2012, p. 582.

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A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

tra-argumentos à pretensão acusatória72. Neste contexto, inegavelmente a defesa sai


da sua postura inerte em relação à produção da prova e adentra a possibilidade ativa
de busca de fontes de prova e postulação em benefício do imputado.

O que há de novo é a mudança de postura defensiva, que não obstante vigilan-


te, atenta e eficiente, mas, de regra, passiva à atuação da acusação e do juiz – “difesa
disposizione” –, para uma “difesa di movimento”73, em que há um papel ativo na busca
de melhores resultados defensivos e de contribuição efetiva na construção do conjun-
to probatório74 e, consequentemente, na formação do convencimento do julgador.

Deve-se apontar, ainda, que o estabelecimento normativo traça uma função


típica75 da defesa (de realização investigativa) o que, no entanto, ainda reserva certo
obstáculo cultural de realização prática76.

Com a indicação de um processo com natureza acusatória e a garantia de exercício


pleno do direito de se defender provando, afasta-se a característica passiva da defesa, re-
servando a mesma atos de desenvolvimento das suas próprias indagações paralelamen-
te à atuação da polícia e do Ministério Público, objetivando um contraceno da paridade de
direitos e poderes entre a acusação e a defesa no campo da produção de provas, pelas
características próprias do sistema acusatório77. Pretende-se, portanto, ilustrar uma ten-
tativa de maior isonomia entre as partes no diálogo processual, criando um dever ao juiz
sobre o mesmo critério de pertinência e relevância da prova e sua valoração.

Assim, a investigação defensiva figura como norma coerente ao método do con-


traditório e, em particular, à procura e individualização das fontes de prova em favor
do próprio investigado ou acusado. Resulta, portanto, que a reforma processual italia-

72 Antes das reformas infraconstitucionais, “o direito de defesa era garantido de forma atenuado: tratava-se de um contraditório a respeito de uma prova que em
grande parte havia sido formada na fase de instrução por iniciativa do juiz instrutor.” TONINI, Paolo. Direito de defesa e prova científica: novas tendências do processo
penal italiano. Trad. Alexandra Martins e Daniela Mróz. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 48. 2004. p. 198. A análise da possibilidade investigativa diz
respeito à necessidade de colocar a defesa em seu devido lugar, não sendo possível o reconhecimento reduzido no trâmite processual objetivando um processo
justo em que a Constituição Italiana assim propôs, indicando a defesa como direito inviolável em cada grau do procedimento (art. 24, n.2), estabelecendo o
desenvolvimento do processo pelo contraditório entre as partes em condições de paridade, perante um juiz imparcial (art. 111, n. 2).

73 TRIGGIANI. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 01.

74 O direito de defesa se traduz na “participação da formação da prova”. TONINI. Direito de defesa e prova científica, p. 195. Tema sempre recorrente por Vassalli na
preocupação de proteção constitucional ao indivíduo. Cf. VASSALI, Giuliano. Sul diritto di difesa giudiziaria nell’istruzione penale. In Scritti giuridici in onore dela
Cedam nel cinquantenario dela sua fondazione. Vol II. Padova: Cedam, 1952, pp. 577/603. VASSALLI, Giuliano. Garanzie costituzionali ed esercizio del diritto di
difesa. In La difesa del citadino espressione di civiltà e di libertà. Ordine degli Avvocati e Procuratori di Roma. Roma, 1981, pp. 21/43.

75 CRISTIANI. Guida alle Indagini Difensive nel Processo Penale. p. 26.

76 Há referência à forte resistência de alguns setores da magistratura sobre a alteração legislativa, preocupados em atribuir ao defensor à possibilidade investigativa o
que resultaria uma queda do monopólio investigativo por parte do Ministério Público. Cf. TRIGGIANI. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 04. Esta dificuldade
cultural não se dá apenas quanto ao preceito legislativo inovador em um dos países do Direito continental, mas em todos os outros com inclusão em Portugal, em
que sucede com frequência que os debates sejam repetições de elementos de provas recolhidos nas fases preliminares do procedimento, sem qualquer atuação da
defesa na busca sobre as fontes de provas. Cf. SILVA, Germano Marques da. Perspectivas de evolução do Direito Processual Penal português: notas breves sobre o Projecto
de Revisão do Código de Processo Penal de 1987. In O Processo Penal em Revisão. Lisboa: Universidade Autônoma de Lisboa, 1988, p. 30.

77 VASSALI. Il diritto alla prova nel Processo Penale. p. 6.

57
A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

na garantiu a todas as partes privadas78 a possibilidade de maior atuação investigativa,


não mais permanecendo o Ministério Público e a polícia com esta exclusividade.

[7]
AINDA COMO RESULTADO,

O RECONHECIMENTO JUDICIAL

DO CONTRADITÓRIO

Se pensarmos no método do contraditório como zelo ao equilíbrio processual, bem


como sua concepção substancial não se exaure se afastarmos o julgador como um
dos pontos deste diálogo.

Ou seja, para que alcancemos o efetivo contraditório a participação do juiz deve


ser observada no momento da fundamentação da decisão penal. Por outras palavras,
o método do contraditório reserva a garantia de formação da prova e da influência na
decisão penal.

Consequentemente, em mais uma oportunidade, deve-se valer preceitos do NCPC


para que alcancemos efeitos teóricos ao direito processual penal. Neste sentido, tanto
a acusação quanto a defesa possuem o direito de ver analisados seus argumentos e
a exposição de todas as provas valoradas com a riqueza de detalhes que se impõe a
fundamentação da decisão penal (art. 489, §1o, IV).

Todo esse esforço é dirigido à concretização da regra do contraditório na sua ver-


tente funcional, de maneira a alcançar a sua plena efetividade como característica bá-
sica de um sistema acusatório em que as partes possuem a função de influência na
decisão e o juiz, além de garantir o contraditório, deve se submeter ao mesmo.

Consequentemente, retorna-se à discussão dos efeitos colaterais sentidos atual-


mente pela defesa intransigente do livre convencimento do julgador, minimizando a
aplicação do contraditório e do aprimoramento da teoria geral da prova. Este resultado
se mostra nítido quando, a partir de uma livre valoração da prova e de convencimento,

78 Aqui a análise deve ser ampla, ou seja, não apenas em favor do defendente. Na realidade, a investigação defensiva garante ao defensor deste e também do
ofendido e das outras partes.

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A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

o julgador profere sua decisão pelo “conjunto probatório” e pelo critério da motivação
suficiente, deixando de expor em sua fundamentação elementos probatórios produzi-
dos pela defesa. Ou seja, com a inobservância da natureza instrumental da concepção
falsificacionista da prova, não reconhece a necessidade de valoração e justificação da
prova contrária. Como se o direito à influência fosse desimportante para a formação
de uma decisão penal legítima.

Por outras palavras, o direito à prova a partir da regra do contraditório, não se


resume na possibilidade da parte produzir a prova, mas, e em especial, refere-se ao
direito de ter esse elemento de prova valorado, ainda que não alcance êxito no con-
fronto para a decisão penal.

Consequentemente, para além da regra do ônus da prova extraído da garantia


constitucional da inocência, devem ser observadas a hipótese acusatória e seu con-
texto probatório e a resistência defensiva, com o direito à prova devidamente incor-
porado79 (de produção e valoração), com um norte previsível ao standard probatório
definido pelo afastamento da dúvida razoável.

Muito embora a instrução probatória crie uma estrutura conjuntural de elemen-


tos probatórios, não se pode perder de vista as iniciativas das partes (quanto aos argu-
mentos expostos e as provas formadas e produzidas), cabendo ao julgador a análise
individualizada dessas pretensões, reconhecendo, assim, uma função instrumental e
funcional do direito à prova penal.

Destarte, o atual Título XII do Código de Processo Penal brasileiro dispõe sobre a sen-
tença penal. Em seu artigo introdutório (art. 381) há a descrição do que conterá na senten-
ça, com indicação do seu aspecto formal (nome das partes e sua identificação, exposição
sucinta da acusação e sentença, etc) e quanto ao conteúdo, aponta a necessidade da indi-
cação dos motivos de fato e de direito em que se funda a decisão (art. 381, III).

Observa-se que não há referência a um conteúdo crítico sobre as provas produzi-


das em relação às partes. Ou seja, não há menção efetiva a um procedimento de par-
tes em contato direto com o princípio de falsificação baseado no sistema acusatório.
Podemos afirmar, por via de consequência, que há a ausência da submissão do julga-
dor ao contraditório.

79 Seguindo o raciocínio decisório a partir do grau de resistência da hipótese de acusação, através de hipóteses alternativas e antagonista, seguindo o princípio do
the no other reasonable hypothesis rule. CANZIO, Giovanni. Il giusto processo nello statuto della corte penale Internazionale tra common law e civil Law. In Questione
Giustizia, n. 6, 2004, p. 1289.

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A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

Assim, apenas “a indicação dos motivos de fato e de direito” como fundamento da


decisão forma um contexto de confirmação da hipótese acusatória com ampla liber-
dade de convencimento do julgador, sem que haja referência expressa ao necessário
princípio de falsificação das teses antagonistas ou alternativas. Macula-se o sistema
acusatório, o contraditório, o direito à prova, o dever de atenção referente às alega-
ções80 e, portanto, a observância quanto a um método crítico sobre a valoração das
provas. Reconhece-se uma verdade processual apenas por um aspecto de corrobora-
ção entre as informações obtidas em fase preliminar e a hipótese acusatória, a partir
da judicialização da prova. Não se reconhece a certeza prática a partir de um método
crítico e justificatório sobre as provas, ou seja, não se alcança a dita verdade processu-
al através do afastamento da valoração e referência à prova antagonista e alternativa
como se pretende o raciocínio falsificacionista.

Através de referências conclusivas reafirma-se a necessidade do julgador em va-


lorar as provas concernentes à pretensão acusatória e a resistência defensiva. Em ou-
tras palavras, a fidelidade democrática do processo penal com incorporação do con-
traditório será identificada quando forem enfrentados todos os pontos controversos
e de maneira exauriente, indicar expressamente toda a justificação do ato decisório81.

[8]
CONCLUSÃO: A ANÁLISE DA
REGRA DO CONTRADITÓRIO

PARA O PROJETO DE REFORMA DO CPP

Para concluirmos a presente reflexão, devemos pensar nas possíveis influências do


NCPC no Direito Processual Penal, não apenas quanto às referências teóricas, mas
para um enfrentamento sobre as futuras alterações do nosso contemporâneo – mas
antigo, ao mesmo tempo – Código de Processo Penal.

80 CABRAL. Il principio del contraddittorio come diritto d’influenza e dovere di dibattito. p. 457

81 CONTI, Carlotta e SAVIO, Eleonora. La sentenza d’appello nel processo di Perugia: La “scienza del dubbio” nella falsificazione delle ipotesi. In Diritto Penale e Processo.
vol. 5, 2012, p. 576. Este tema era muito enfrentado na Itália antes da reforma do CPP em 1988 em que fazia alusão apenas “aos motivos de fato e de direito”,
com clara permanência ao princípio do livre convencimento motivado. Com a reforma, fez-se incluir o art. 546, comma 1, lett. e , CPP em que indica que a
setença deve conter a “concisa exposição dos motivos de fato e de direito sobre qual é fundada, com a indicação das provas postas a base da mesma decisão
e a enunciação das razões pelas quais o juiz julga não fundadas as provas contrárias” (tradução livre)

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A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

O atual CPP brasileiro não traça expressamente o direito à prova, mas faz refe-
rência ao ônus probatório em seu artigo 156. Na mesma linha, fixa as amplas possibi-
lidades de atuação de ofício pelo julgador, seguindo o mote de protagonismo judicial.
Nada mais que reduzir a carga do contraditório e o direito à prova.

O Projeto de Lei 8045/2010 (oriundo do PL 156/2009) que versa sobre a reforma


integral do CPP, tenta estabelecer a modernização da regra do contraditório como ele-
mento de formação da prova com objetivo de influência na decisão pena.

Em seu artigo terceiro aponta que todo o processo penal realizar-se-á sob o contra-
ditório e a ampla defesa, garantida a efetiva manifestação do defensor técnico em todas as
fases do procedimento.

Seguindo a linha do equilíbrio das partes na dinâmica processual, dispõe que será
facultado ao investigado, por meio do seu advogado, de defensor público ou de outros
mandatários com poderes expressos, tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em
favor da sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas82.

Prescreve, ainda, o art. 165 do PL que as provas serão propostas pelas partes. Ex-
cepcionalmente, aponta o seu parágrafo único que será facultado ao juiz, antes de pro-
ferir a sentença, determinar diligências para esclarecer dúvida sobre a prova produzida
por qualquer das partes (grifamos). O conteúdo da referência diz respeito ao direito à
prova e a atuação judicial foca na dúvida sobre as provas e não sobre os fatos.

No entanto, acreditamos que o Projeto de Lei ainda se mostra tímido quanto à regra
do contraditório, justamente pela permanência do protagonismo judicial. Explicamos.

O atual CPP defende claramente a possibilidade do julgador apreciar livremente a


prova (art. 155). Essa afirmativa, também simbólica, nada mais concretiza do que o sig-
nificado negativo do livre convencimento, para afastar o sistema da prova legal. Porém,
amplia-se a interpretação daquilo que se propõe, com reflexos no controle decisório.

O projeto de Reforma do CPP piora a situação83. Reafirma um significado positivo


deste histórico e desatualizado princípio. Em uma tacanha importação literal do art.

82 No entanto, ao contrário do projeto original, restabelece a característica da inquisitividade deste procedimento, quando dispõe no parágrafo 5o. deste dispositivo
que o material produzido poderá ser juntado aos autos do inquérito, a critério da autoridade policial.

83 Art. 168 do PL 8045/2010. O juiz formará livremente o seu convencimento com base nas provas submetidas ao contraditório judicial, indicando na fundamentação
todos os elementos utilizados e os critérios adotados, resguardadas as provas cautelares, as não repetíveis e as antecipadas.

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A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

192 do CPP italiano, que embora deveras criticado pela ausência de unidade técnica84,
em que inclui parcela do percurso justificatório no seu caput, traçando valores obje-
tivos aos indícios no comma 2 (seria nosso parágrafo) e reservando ressalva ao valor
probatório do corréu no comma 3, não dispõe de qualquer liberdade decisória, seja
na apreciação da prova ou no convencimento. O nosso, no entanto, pretende trazer
de volta a regra do livre convencimento. Vejam que aqui não mais se caracteriza como
princípio, mas sim regra, ainda que nos deparemos com a dificuldade desta distinção.

Reparem, sai a livre apreciação da prova e entra o livre convencimento. Porque


copiamos um artigo “quase” literalmente, incluindo uma regra em desuso no mode-
lo de origem do dispositivo? Será a presença de uma cultura processual que não vê o
moderno? Permanece na defesa de algo apenas com referência histórica (me refiro à
prova legal) ou existe outro motivo?

Lembremos que o raciocínio decisório não está (e não deve estar mesmo) condi-
cionado apenas às provas, mas existem outros elementos processuais imprescindíveis
para a edificação de uma decisão penal – um sistema de controle intersubjetivo deve
ser vivificado na nossa prática jurídica.

Ainda, quanto a decisão penal, não houve qualquer proposta de alteração ou


aproximação à regra do contraditório. Permanece a regra da fundamentação suficien-
te com a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão. Não se
exige o enfrentamento expresso das teses antagonistas e alternativas, não havendo
submissão do julgador ao contraditório.

Para concluirmos, devemos refletir sobre o novo e seus efeitos na visão da vivifi-
cação da ciência jurídica. Talvez, para que consigamos avançar e tornar o processo pe-
nal democrático, torna-se necessário uma maior expressão normativa quanto à par-
ticipação em toda a dinâmica processual penal, em especial na efetiva e reconhecida
influência dos atores processuais na formação da prova e da decisão penal.

84 DELL’ANNA. La necessaria riforma dell’art. 192, CPP. In Diritto. Penale e Processo. n. 6/2005, p. 759.

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A REGRA DO CONTRADITÓRIO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
E SUA “POSSÍVEL” INFLUÊNCIA NO DIREITO PROCESSUAL PENAL

BIBLIOGRAFIA

BETTIOL, Rodolfo. La formazione della prova nel contraddittorio. A chi spetta il diritto? In Scritti
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67
REF L EXÕES S OBRE A
I N V ES TIGAÇÃO D EFENSI V A
N O SIS TEM A PROCESSUAL
P EN AL BR AS IL EIRO –

POSSÍ VEL RENOVAÇÃO


DA INFLUÊNCIA
ITALIANA PÓS “CÓDIGO
ROCCO” SOBRE A
INDAGINE DIFENSIVE *

* Artigo publicado na Revista da Defensoria Pública do Rio Grande do Sul. Vol. 10, dez. 2014, pp. 187/214.

TEXTO PUBLICADO ORIGINARIAMENTE:

Reflexões sobre a investigação defensiva: Possível renovação da influência italiana pós


“Código Rocco” sobre a indagine difensive In: Advocacia Criminal. Direito de Defesa,
Ética e Prerrogativas.1a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, v.1, p. 96-120.
REFLEXÕES SOBRE A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO –
POSSÍVEL RENOVAÇÃO DA INFLUÊNCIA ITALIANA PÓS “CÓDIGO ROCCO” SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE

INTRODUÇÃO

Um dos pontos de maior interesse na estrutura processual penal diz respeito à neces-
sidade de identificação prática e normativa do equilíbrio entre as partes, para que seja
efetivamente observada a garantia constitucional do contraditório. Destituída essa ne-
cessidade, focaliza-se um processo de características autoritárias, afastando um possí-
vel sistema processual penal democrático. São palavras recorrentes na doutrina pátria,
mas que se têm pouca identificação e aplicabilidade na prática jurisdicional, demons-
trando reduzido interesse, inclusive legislativo, sobre essa realidade.

A identificação resulta fácil se analisarmos algumas decisões do Supremo Tribu-


nal Federal sobre o tema referente à investigação direta do Ministério Público. Sabe-
mos que ainda não houve exaurimento do julgamento perante a Corte Maior, mas já
se identifica um direcionamento a essa possibilidade1. Por outro lado, pouco ou quase
nada se discute na jurisprudência brasileira sobre a possibilidade de investigação di-
reta realizada pela defesa pública ou privada.

Por questão metodológica e para o direcionamento do tema em análise, torna-


-se interessante uma singela abordagem sobre o poder de investigação do Ministério
Público. Aqui não defenderemos nem criticaremos essa prática, deixando para outra
oportunidade esta discussão, mas utilizaremos o julgamento do Recurso Ordinário em
Habeas Corpus n. 97926/GO, que inicialmente aborda a questão, não havendo conclu-
são do julgado.

Iniciado o julgamento pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, o relator Mi-


nistro Gilmar Mendes, em seu voto proferido em 01 de outubro de 2013, votou para
negar provimento ao recurso, entendendo que ao Ministério Público não seria vedado
proceder às diligências investigatórias, consoante diversas interpretações que podem
ser ilustradas em seu voto que deixaremos de apontar em virtude da ausência de in-
teresse temático.

Porém, em um ponto determinado do seu voto, indicou a possibilidade das partes


realizarem atividade investigativa frisando que “seria ínsito ao sistema dialético de pro-
cesso, concebido para o estado democrático de direito, a faculdade de a parte colher,
por si própria, elementos de provas hábeis para defesa de seus interesses. Da mesma

1 HC 84.548/SP, Rel. Min. Marco Aurélio; RE 535.478/SC, Rel. Min. Ellen Gracie; HC 89.837/DF, Rel. Min. Celso de Mello; RE 593.727/MG, REl. Min. Cezar Peluso;
RHC 97.926/GO, Rel. Min. Gilmar Mendes.

69
REFLEXÕES SOBRE A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO –
POSSÍVEL RENOVAÇÃO DA INFLUÊNCIA ITALIANA PÓS “CÓDIGO ROCCO” SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE

forma, não poderia ser diferente com relação ao parquet, que teria o poder-dever da defe-
sa da ordem jurídica”.2

Denota-se interessante o destaque do trecho uma vez que o nosso interesse ver-
sa sobre a questão da possibilidade das partes realizarem diligências investigativas,
especialmente a defesa.

Por isso, não obstante necessária a passagem por questões relacionadas aos prin-
cípios dispositivos, acusatórios e inquisitórios, com o foco na discussão sobre a sepa-
ração perfeita das funções de cada ator na dinâmica processual penal, este não será
nosso tema principal. Não haverá necessidade de restabelecermos a antiga discussão
sobre os sistemas, já que por demais discutida pela doutrina3. Seguiremos apenas na
possibilidade/necessidade de investigação pela defesa, almejando uma maior isono-
mia entre as partes na atuação processual penal.

Para tanto, buscaremos a análise do tema no direito processual penal italiano4,


que possui um capítulo próprio em seu código sobre esta prática. E se buscamos esta
análise, desde já afirmamos ser desnecessária a discussão sobre atuação investigativa
do Ministério Público, na medida em que na Itália também é normatizada essa possi-
bilidade. Por outras palavras, focaremos apenas em um modelo processual penal do
Direito Continental em que há uma ampla abordagem sobre a investigação defensiva,
o que torna interessante extrairmos algumas ideias positivas para que tenhamos um
direcionamento mais democrático sobre o nosso modelo processual penal.

Esta estrutura processual italiana segue na linha de tendência acusatória [a partir


do CPP de 1988] em que gera a atribuição das partes processuais a função inerente ao
direito à prova penal5 como ponto principal do [direito de defender se provando6] em
perfeita aderência à previsão constitucional7.

2 Divulgado no informativo 722 do STF.

3 Há uma necessidade premente de análise em outro plano, na medida em que a divisão entre modelos acusatório e inquisitório, com a divisão perfeita das
funções, não conseguiu responder alguns dilemas processuais, como o exemplo da gestão da prova pelo juiz e sua imparcialidade. Por isso, sempre necessária
a discussão e talvez eterna, sendo, no entanto, conveniente avançar para além deste foco. Neste sentido, LOPES Jr, Aury. (Re)pensando os sistemas processuais
em democracia: a estafa do tradicional problema inquisitório x acusatório. In Boletim IBCCRIM. Ano 21, no. 251, out. 2013, p. 5/6.

4 A escolha não se mostra aleatória, sabendo que o tema sobre investigação defensiva não é de exclusiva nacionalidade italiana, havendo previsão normativa,
por exemplo, no direito americano. Para tanto, imprescindível a leitura de MALAN, Diogo. Investigação defensiva no processo penal. Revista Brasileira de
Ciências Criminais. vol. 96, maio-jun., 2012, pp. 279/309. A escolha deveu-se pela influência italiana ao nosso sistema processual penal e, acima de tudo, pela
importação de idéias fascista para edição do CPP de 1941 que permanece, absurdamente, em vigor. Por isso, talvez fosse o momento de importação de ideais
mais democráticos, já que o país em referência conseguiu afastar muitas mazelas autoritárias.

5 Destaca-se a imprescindível leitura do texto de VASSALI, Giuliano. Il diritto alla prova nel Processo Penale.In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milano:
Giuffrè. Anno XI, 1968, pp. 03/59.

6 Reconhecido como implicação necessária de um dos principais fundamentos do sistema acusatório. Cf. PASTA, Alessandro. Tra individuo e stato: il diritto di
difesa. In Processo Penale e Constituzione. Milano: Giuffrè, 2010, p. 165.

7 GAROFOLI, Vicenzo. Istituzioni di Diritto Processuale Penale. 2a ed. Milano> Giuffre Editore, 2006, p. 188.

70
REFLEXÕES SOBRE A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO –
POSSÍVEL RENOVAÇÃO DA INFLUÊNCIA ITALIANA PÓS “CÓDIGO ROCCO” SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE

Esclarecemos, desde já, que a abordagem sobre o tema diz respeito a algumas
reflexões do direito estrangeiro, não sendo viável o seu exaurimento, até porque não
seria a nossa pretensão. Por isso, elencaremos algumas discussões, em que poderão
(iam) se adequar em nosso ordenamento jurídico.

[1]
A MUDANÇA DA POSTURA ITALIANA –

O JUSTO PROCESSO COMO UM

MODELO CONSTITUCIONAL

O Direito Processual Penal italiano possui dois momentos importantíssimos para iden-
tificação do sistema processual adotado8. Até 1988 o Código de Processo Penal (Có-
digo Rocco, 1930) possuía uma clara visão autoritária, com um ativismo jurisdicional
regulamentado em todas as fases dos procedimentos, ampliando, consequentemen-
te, os poderes do juiz para sua atuação oficial, inclusive investigativa. Com isso, as re-
ferências normativas e prática significavam a redução sensível à atuação das partes,
afastando o grau de importância das mesmas sempre em busca do discurso ilusório
sobre a verdade real9.

Com a reforma do Código de Processo em 198810, ocorreu uma radical alteração


da postura de todos os envolvidos na dinâmica processual penal, com a entrada ex-
pressa do sistema acusatório, em que há maior valorização das partes e a tentativa
de uma necessária divisão das funções11. Também, a partir da revisão constitucional
italiana que introduziu o princípio do justo processo expresso no art. 111 da Constitui-

8 “O processo penal italiano foi objeto de uma brusca transição de sistemas processuais. Partiu-se de um sistema misto de tipo napoleônico para um sistema acusatório
“limitado”, com base em um modelo diferente anglo-saxão”. TONINI, Paolo. Direito de defesa e prova científica: novas tendências do processo penal italiano. Trad.
Alexandra Martins e Daniela Mróz. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 48. 2004, p. 196.

9 Como se a “verdade” dos fatos não pudesse ser descoberta a partir da contribuição das partes. Na realidade, o sistema acusatório impõe que o resultado do
processo é o encontro de funções processuais repartidos entre os sujeitos antagônicos, justamente para ofertar uma maior dialética processual.

10 Considerado “o mais fascista dos códigos”. Cf. AMODIO, Enio. Vitórias e derrotas da cultura dos juristas na elaboração do novo Código de Processo Penal. Trad.
Paulo Zomer. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. Ano 7. N. 25, jan./mar. 1999, p. 16

11 A expressão “tentativa” ocorre justamente porque, na prática, essa divisão não é tão bem identificada, uma vez que a instituição Ministério Público não possui
independência à magistratura. Na Itália, os membros do MP integram a Magistratura, ocorrendo um nefasto vínculo entre ambos que pode, além de ferir a
imparcialidade do julgador, reduzir a possibilidade de equidade entre a parte acusadora e defensiva.

71
REFLEXÕES SOBRE A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO –
POSSÍVEL RENOVAÇÃO DA INFLUÊNCIA ITALIANA PÓS “CÓDIGO ROCCO” SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE

ção12. Essa tendência acusatória13 é identificada por vários apontamentos de realce às


partes no sistema processual, tentando afastar o juiz como dominus da prova e garan-
tindo uma maior aproximação da parte acusadora e defensiva na análise da formação
da prova14. Em especial e oportuno, garantindo um novo papel ao defensor em contri-
buir, em termos de paridade de armas com a acusação, propondo elementos de prova
de forma ativa em benefício do seu defendente.

1.1
A real mudança de postura – um contraditório in senso forte

O traço importante desta mudança, portanto, foi afastar as partes como atores figu-
rantes ou coadjuvantes da discussão processual, para entregá-las uma função mais
ativa, a partir, principalmente, da formação do “direito à prova” como consectário di-
reto de uma visão mais funcional ligada às partes em relação ao modelo anterior15.

Neste contexto, um dos pontos de maior realce ao encontro de um processo de


partes, figura simbolicamente na atuação da defesa investigativa em que seu papel
ativo e dinâmico reserva, necessariamente, maior e qualificado empenho na sua atua-
ção, atribuindo a ampliação da responsabilidade do defensor16 (não mais como mero
contribuinte das consequências da produção probatória), mas sim assegurando con-
dições necessárias para preparar a defesa da pessoa acusada17.

Esta contribuição probatória traduz um modelo em que a forma demonstrativa


da prova não mais ficará na mão exclusiva do juiz, mas sim um atuar probatório18 e ar-
gumentativo das partes como ato essencial ao processo e não meramente acidental19.

12 Art. 111 da Const. La giurisdizione si atua mediante il giusto processo regolato dalla legge.
Ogni processo si svolge nel contraddittorio tra le parti, in condizioni di parità, davanti a giudice terzo e imparziale. La legge ne assicura la ragionevole durata.
Nel processo penale, la legge assicura che la persona accusata di um reato sai, nel più breve tempo possibile, informata riservattamente della natura e dei motivi dell’accusa
elevata a sua carico, disponga del tempo e delle condizioni necessari per preparare la sua difesa; abbia la facoltà, davanti al giudice, di interrogare o di far interrogare le
persone che rendono dichiarazioni a suo carico, di ottenere la convocazione e l’interrogatorio di persone a sua difesa nelle stesse condizioni dell’acusa e l’acquisizione
di ogni altro mezzi di prova a suo favore; sia assistita da un interprete se non comprende o non parla la lingua impiegata nel processo.
Il processo penale è regolato dal principio del contraddtitorio nella formazione della prova. La colpevolezza dell’imputato non può essere provata sulla base di dichiarazioni
rese da chi, per libera scelta, si è sempre volontariamente sottatto all’interrogatorio da parte dell’imputato o del suo difensore (...) (grifamos pela pertinência).

13 TRIGGIANI, Nicola. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. In Archivo della Nuova Procedura Penale. n. 1, gennaio/febbraio, 2011, p. 01.

14 A iniciativa instrutória é de função das partes, seguindo os poderes de intervenção de ofício pelo juiz, como exceção. Porém, na visão de Franco Cordero,
compõem um resíduo necessário, sendo indisponível à matéria penal. Ver CORDERO, Franco. Procedura penale. 9ª ed. Milano: Giuffrè, 2012, p. 604.

15 Por isso, o contraditório em senso forte. Cf. CONTI, Carlotta. Il diritto delle prove penali. Carlotta Conti e Paolo Tonini (org.). Milano: Giuffrè, 2012, p. 35.

16 TRIGGIANI. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 01.

17 CAPRIOLI, Francesco. Indagini preliminari e udienza preliminare. In Compendio di Procedura Penale. Giovanni Conso, Vittorio Grevi e Marta Bargis (org.). 6ª ed.
Padova: Cedam, 2012, p. 582.

18 O art. 190, comma 1, CPP italiano consagra o princípio dispositivo em matéria probatória.

19 Ver ORLANDI, Renzo. L’attività argomentativa delle parti nel dibattimento penale. In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milano: Dott. A. Giuffrè. Anno
XLI, fasc. 2, Aprile-giugno, 1998, pp . 452/508.

72
REFLEXÕES SOBRE A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO –
POSSÍVEL RENOVAÇÃO DA INFLUÊNCIA ITALIANA PÓS “CÓDIGO ROCCO” SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE

Na realidade, o que se indica é a presença do princípio do contraditório não ape-


nas como simples presença das partes na discussão processual, podendo postular
por provas e impugnar eventuais decisões judiciais. Pretende-se uma análise maior a
este contexto constitucional que garante uma maior intervenção argumentativa das
partes, como verdadeira carga processual. Como prescreve o artigo 111, n. 4, da Cons-
tituição Italiana, o contraditório deve ser visto como método de conhecimento20 e regra
de formação da prova penal21.

Construiu-se, portanto, um código de visão acusatória, indicando que tanto a acu-


sação quanto a defesa teriam um maior relevo processual para além da imputação e
resistência, criando uma aproximação interessante de índole mais dialogal, próximo
ao esquema acusatório com raízes no modelo da common law22, em que constitui o di-
reito das partes de contribuir na formação dos elementos que são utilizados pelo juiz
para decidir a causa penal.

Mas, houve uma reação direta da magistratura em que começou a observar a


perda de “pseudo-poder” dos juízes na direção da prova, deixando para a acusação e,
em alguns pontos à defesa, essa responsabilidade.

A cultura inquisitória é parcialmente restabelecida pela Corte Constitucional Ita-


liana, que parte de um inédito “princípio da não dispersão da prova”, retornando à am-
pliação de poderes instrutórios realizados pelo juiz, “educados numa cultura que faz do
juiz penal o dominus da prova”23, restabelecendo o discurso da busca da verdade como
fator preponderante ao processo penal.

No entanto, inegavelmente a defesa sai da sua postura inerte em relação à pro-


dução da prova24 e adentra a possibilidade ativa de busca de fontes de prova e postu-
lação em benefício do imputado.

A análise da possibilidade investigativa diz respeito à necessidade de colocar a de-


fesa em seu devido lugar25, não sendo possível o reconhecimento reduzido no trâmite

20 TONINI. Direito de defesa e prova científica, p. 202.

21 Cf. CONTI. Il diritto delle prove penali.p. 36.

22 SAGNOTTI, Simona Carlotta. Il contraddittorio: una riflessione filosofico-giuridica. In Processo Penale e Constituzione. Milano: Giuffrè, 2010, p. 342.

23 AMODIO. Vitórias e derrotas da cultura dos juristas. p. 18

24 Deve-se entender que até a reforma de 1988, não havia contraditório direto em relação às provas, ainda que orais. Havia a introdução das mesmas de
ofício pelo juiz de instrução, cabendo às partes, na fase de debates, realizar um contraditório diferido. Ocorria indistintamente e como regra uma produção
antecipada de provas, com parcas intervenções das partes, principalmente defensiva.

25 Não se pode esquecer que no direito italiano, não há qualquer discussão quanto à investigação por parte do Ministério Público.

73
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POSSÍVEL RENOVAÇÃO DA INFLUÊNCIA ITALIANA PÓS “CÓDIGO ROCCO” SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE

processual objetivando um processo justo em que a Constituição Italiana assim pro-


pôs, indicando a defesa como direito inviolável em cada grau do procedimento (art. 24,
n.2), estabelecendo o desenvolvimento do processo pelo contraditório entre as partes
em condições de paridade, perante um juiz imparcial (art. 111, n. 2).

Por isso, o alicerce da discussão diz respeito ao objetivo do legislador italiano em


ampliar as garantias e direitos dos investigados e acusados, realçando alguns funda-
mentais princípios constitucionais, tais como: o direito de defesa, direto à prova, con-
traditório e o favor libertatis.

A advertência quanto à mudança da cultura processual penal italiana indica a ne-


cessidade de garantir uma ampliação na atuação das partes, trazendo a possibilidade
do afastamento do julgador como uma figura “onipotente”, sem que haja uma divisão
de responsabilidade entre todos os envolvidos. A formação da prova, portanto, estará
afeta às partes e, excepcionalmente, ao juiz, criando reais responsabilidades a cada
ator processual.

Por isso, o reconhecimento do sistema acusatório “forte” (para afastar a verten-


te ilusória “puro”), dar-se-á com a ingerência da defesa em atuar mais ativamente na
possibilidade de contribuir com a investigação, com indicação na própria Constituição,
do contraditório como princípio formador da prova26. Ou seja, a introdução da possi-
bilidade investigativa da defesa no processo penal italiano indica, efetivamente, a va-
lorização e ampliação de um sistema democrático em que se torna necessária a sim-
bolização com rupturas autoritárias.

O interessante nesta linha de reflexão, é que a simples divisão de funções, a dis-


cussão quanto à gestão da prova pelo juiz ou sua atuação mais ativa no processo pe-
nal (por exemplo, decretando prisões de ofício), por si só, não garante a efetividade de
um sistema democrático. Precisamos de mais: e talvez, a necessidade de tentar criar
um processo de partes, com reais valores de equidade, levará a uma forma mais coe-
rente com os modelos constitucionais (Italiano e brasileiro).

26 “Quanto maior é o contraditório, tanto melhor poderá ser acertada a verdade” TONINI, Paolo. Manuale di Procedura Penale. 12ª ed. Milano: Giuffrè, 2011, p. 09.
(tradução nossa)

74
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1.2
Direito à prova como direito de se defender provando

A previsão normativa da atuação investigativa da defesa reserva, ainda que simbolica-


mente, a garantia da efetividade do direito à prova, oriundo de um processo dialético
em que as partes possuirão, efetivamente, maior força probatória e argumentativa.

Na realidade, a discussão tem seu início nas questões epistemológicas do pro-


cesso penal em confronto com as Convenções Internacionais que protegem direitos
humanos27. A partir daí ratifica-se que a questão probatória não mais deve ser vista
como mero interesse das partes na demonstração dos fatos em seu benefício, mas
sim como verdadeiro direito28, consagrado no artigo 190, CPP italiano29.

A partir desta atribuição normativa, o código de processo penal italiano garante


ao acusado o exercício de defender-se materialmente provando atos e realizando con-
tra-argumentos à pretensão acusatória30. O que há de novo é a mudança de postura
defensiva, que não obstante vigilante, atenta e eficiente, mas, de regra, passiva à atua-
ção da acusação e do juiz – “difesa disposizione” –, para uma “difesa di movimento”31, em
que há um papel ativo na busca de melhores resultados defensivos e de contribuição
efetiva na construção do conjunto probatório32 e, consequentemente, na formação do
convencimento do julgador.

Deve-se apontar, ainda, que o estabelecimento normativo traça uma função típi-
ca33 da defesa (de realização investigativa) o que, no entanto, ainda reserva certo obs-
táculo cultural de realização prática34.

Com a indicação de um processo com natureza acusatória e a garantia de exercício


pleno do direito de se defender provando, afasta-se a característica passiva da defesa,

27 O dispositivo em alusão apenas ratificou a força normativa do art. 6º, n. 3, b, da Convenção Européia de Direitos do Homem quanto ao “direito à prova”, em
que reserva às partes na dinâmica processual o direito de provar todas suas alegações, dando realce ao exercício da ampla e concreta defesa em exercer o
direito de defender-se provando, como corolário do artigo 24, comma 2, da Constituição Italiana.

28 CRISTIANI, Antonio. Guida alle Indagini Difensive nel Processo Penale. G. Giappichelli Editore: Torino, 2001, p. 13

29 Neste dispositivo há uma tentativa de garantir a característica do processo de parte, em que o direito à prova indica que as partes que introduzirão as provas
na discussão processual. Excepcionalmente, e quando a lei estabelecer, será possível a produção de provas de ofício pelo juiz (art. 190, § 2º, CPP italiano).

30 Antes das reformas infraconstitucionais, “o direito de defesa era garantido de forma atenuado: tratava-se de um contraditório a respeito de uma prova que em
grande parte havia sido formada na fase de instrução por iniciativa do juiz instrutor”. TONINI. Direito de defesa e prova científica. p. 198.

31 TRIGGIANI. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 01.

32 O direito de defesa se traduz na “participação da formação da prova”. TONINI, Paolo. Direito de defesa e prova científica: novas tendências do processo penal
italiano. Trad. Alexandra Martins e Daniela Mróz. In Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 48. 2004, p. 195.

33 CRISTIANI. Guida alle Indagini Difensive nel Processo Penale. p. 26.

34 Há referência à forte resistência de alguns setores da magistratura sobre a alteração legislativa, preocupados em atribuir ao defensor à possibilidade investigativa
o que resultaria uma queda do monopólio investigativo por parte do Ministério Público. Cf. TRIGGIANI. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 04.

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reservando a mesma atos de desenvolvimento das suas próprias indagações parale-


lamente à atuação da polícia e do Ministério Público, objetivando um contraceno da
paridade de direitos e poderes entre a acusação e a defesa no campo da produção de
provas, pelas características próprias do sistema acusatório35. Pretende-se, portan-
to, ilustrar uma tentativa de maior isonomia entre as partes no diálogo processual,
criando um dever ao juiz sobre o mesmo critério de pertinência e relevância da pro-
va e sua valoração.

Deve ser ressaltado, no entanto, que a questão em referência não se torna à iden-
tificação da atuação do próprio acusado, ou seja, o exercício de atos de investigação
defensiva (defender-se provando), não obstante resguardar a garantia da ampla defe-
sa reservou apenas ao defensor essa possibilidade.

Não há qualquer proibição legal em que a parte privada realize atos lícitos extra-
-penais para apuração de um fato. Mas a garantia em questão diz respeito à identi-
ficação normativa e prática em que o defensor possa, na tentativa de igualar à força
acusatória, realizar atos consubstanciado na lei.

Porém, apenas no ano 2000, com a edição da Lei 397 a investigação defensiva sai
do plano abstrato para figurar como regra processual penal.

[2]
POSSIBILIDADE INVESTIGATIVA PELO

DEFENSOR NO CPP ITALIANO

A Lei n. 397 de 07 de dezembro de 200036 alterou37 significativamente o Livro V do Có-


digo de Processo Penal Italiano que versa sobre as Indagini Prelimirari e Udienza Preli-

35 VASSALI. Il diritto alla prova nel Processo Penale. p. 6.

36 Legge sulle indagine difensive.

37 Na realidade, não é uma real novidade no panorama legislativo italiano. O art. 38 do CPP anterior já autorizava ao “indagato” adquirir elementos de prova
através da sua própria iniciativa. Cf. ANGELETTI, Riziero. La costruzione e la valutazione della prova penale. Torino: G. Giappichelli Editore, 2012, p. 184. Mas, há
quem indique que este dispositivo era lacunoso e genérico, deixando de identificar a efetiva atuação da defesa na investigação. cf. TRIGGIANI. Le investigazioni
della difesa tra mito e realtà. p. 02. Até porque deixava de responder algumas importantes indagações: “a atividade investigativa deveria ser documentada, de qual
forma? Existia um dever de colaboração dos sujeitos contatados pelo defensor?(...)” CAPRIOLI. Indagini preliminari e udienza preliminare. p. 581.

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minare, fazendo incluir o art. 327bis38, que dispõe sobre a possibilidade da atividade
investigativa do defensor em prol do defendente, no momento das apurações prelimi-
nares e na referida audiência objetivando a análise sobre a admissibilidade das infor-
mações que pautarão a pretensão acusatória.

A atividade investigativa do defensor não permanece exclusiva na fase preliminar.


O art. 327bis, CPP italiano, autoriza a direito39 do defensor em desenvolver a investiga-
ção para buscar e individualizar elementos de prova em todo o estado e grau do pro-
cedimento, na execução penal e promover a instância revisional a partir de um decre-
to condenatório. Ou seja, cria uma clara individualização sobre os sujeitos, o objeto e
a finalidade da investigação defensiva em toda a situação processual penal.

Deve-se apontar, no entanto, que há autorização da possibilidade de investigação


defensiva preventiva, mesmo antes do registro da notícia de um crime, ditada pelas
referências previstas no art. 335, CPP italiano40, seguindo a linha de proteção da dig-
nidade da pessoa humana41, na medida em que poderão ocorrer prejuízos irremediá-
veis pelo simples fato de figurar como sujeito passivo de uma ação penal42.

Por óbvio, o limite da investigação defensiva estará afeto aos atos lícitos e aqueles
que precisam de autorização judicial43.

Esta introdução normativa pretendeu garantir na prática um dos fundamentos


principais do princípio do justo processo – como norma de atuação -, que é definido
pela paridade entre a acusação e a defesa no trâmite processual, bem como pelo di-
reito a um processo equilibrado44 previsto no art. 6º, alínea c, 2 letra d da Convenção
Européia de Direitos do Homem.

38 Art. 327bis, CPP. Attività Investigativa del Difensore – 1. Fin dal momento dell’incarico professionale, risultante da atto scritto, il difensore ha facoltà di svolgere
investigazioni per ricercare ed individuare elementi di prova a favore del proprio assistito, nelle forme e per le finalità stabilite nel titolo VIbis del presente libro. 2. La
facoltà indicata al comma 1 può essere attribuita per l’esercizio del diritto di difesa, in ogni stato e grado del procedimento, nell’esecuzione penale e per promuovere il
giudizio di revisione. 3. Le attività previste dal comma 1 possono essere svolte, su incarico del difensore, dal sostituto, da investigatori privati autorizzati e, quando sono
necessarie especifiche, da consulenti tecnici.

39 Verdadeiro direito do defensor em individualizar os elementos de prova em favor do defendente em todos os graus do procedimento penal, inclusive em
procedimento executório e revisional. Ver CERQUA, Federico e MATTEO, Pellacani. Quale qualifica per il difensore-investigatore. In Archivio della Nuova Procedura
Penale. n. 5, 2007, p. 610.

40 Equivalente ao nosso indiciamento.

41 Cf. Corte di Cassazione., sez IV, 14 ottobre 2005, n. 46270.

42 TONINI. Manuale di Procedura Penale. p.588.

43 Neste ponto, de fato, há o afastamento normativo da efetiva equiparação entre as partes, possuindo o Ministério Público uma posição de vantagem sobre o
plano dos instrumentos investigativos, sendo dotados de poderes coercitivos sobre as pessoas e coisas, uma vez que age no exercício de um poder de tutela de
interesse coletivo. Cf. TRIGGIANI. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 09. Basta pensar que as inspeções pessoais, as interceptações de comunicações
ou de correspondência continuam a permanecer na exclusiva esfera do Ministério Público. Ver DEDDA, Enrico Di. Le investigazioni difensive: soggetti attivi, limiti
taciti e patologie processuali (vere o presunte) In Archivio della nuova procedura penale. n. 1, gennaio, 2004, p. 99. Há ainda limitação cronológica quando se
versa sobre a atividade investigativa preventiva, conforme preceitua o art. 391nonies, CPP italiano.

44 PASTA, Alessandro. Dall’epistème alla critica: il diritto alla prova dell’acusato. In In Processo Penale e Constituzione. Milano: Giuffrè, 2010, p. 401.

77
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O dispositivo em questão fez incluir concretamente poderes investigativos pela


defesa, com os tradicionais instrumentos utilizados pela acusação45, criando ao defen-
sor a faculdade de desenvolver indagações defensivas em prol do acusado, na busca
de fontes de prova orais e reais.

Assim, a investigação defensiva figura como norma coerente ao exercício do di-


reito de defesa e, em particular, à procura e individualização das fontes de prova em
favor do próprio investigado ou acusado. Resulta, portanto, que a reforma processual
garantiu a todas as partes privadas46 a possibilidade de maior atuação investigativa,
não mais permanecendo o Ministério Público e a polícia com esta exclusividade.

Ressalta-se, no entanto, que o defensor não está munido de poderes coercitivos,


figurando no curso da investigação como uma verdadeira atividade privada47.

Para além das questões práticas, em que a defesa não deriva em dependência de
outro ator processual (o juiz, por exemplo), para realização de atos em busca de apu-
ração de fatos48, a inserção da referida norma entre as funções do Ministério Público
e do juiz na fase investigativa, garantiu simbolicamente o papel de verdadeiro prota-
gonista à defesa na apuração dos fatos, não reservando à mesma a referência exclu-
siva de resistência após a pretensão acusatória deduzida em juízo, mas sim um novo
papel, caracterizado com atributos ativos na busca das fontes de prova49.

2.1
Referência ao defensor – questões deontológicas

A referência aos difensori traz uma importante alusão deontológica, na medida em


que a atuação da investigação defensiva não estará a cargo do indiciado (indagato) ou
acusado (imputato), mas sim do defensor técnico50. Esta análise é deveras importante
para indicar a responsabilidade funcional que o defensor possuirá na atuação inves-

45 Antes da alteração legislativa, a discussão permanecia na exclusiva atuação investigativa do Ministério Público, inclusive sendo reconhecida pela jurisprudência
obtusa referência de que as investigações defensivas deveriam ser “canalizadas” na função do órgão acusador. Ver Cass. pen., Sez. feriale, 18 de agosto de
1992, In Cassazione penale, 1993, n. 1402, p. 2306. Tal fato ainda é visto em outro país europeu. Em Portugal, caso o investigado entenda necessário qualquer
diligência, deve requerer ao Ministério Público e não ao juiz a sua realização. ( Acórdão do TC no. 395/2004).

46 Aqui a análise deve ser ampla, ou seja, não apenas em favor do defendente. Na realidade, a investigação defensiva garante ao defensor deste e também do
ofendido e das outras partes.

47 TONINI. Manuale di Procedura Penale. p. 601.

48 Pensemos na real possibilidade da defesa concretizar ato de apuração através de investigação privada e consultores técnicos com responsabilidades por sua
atuação profissional.

49 A previsão normativa fez incluir um dado empírico: desde o ano da edição da legge sulle indagine difensive resulta cada vez mais freqüente a atuação investigativa
pela defensa, principalmente pelos advogados mais jovens, conforme dados indicados por TRIGGIANI. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 07.

50 Observa-se, por questões normativas e por fatores deontológicos em que se pode criar limitações éticas com preceitos sancionatórios. A taxatividade dos
titulares dos poderes investigativos, em particular, na hipótese de investigação defensiva, caberá apenas ao defensor constituído, não sendo possível a atuação
direta da auto defesa.

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tigativa. Será ele o dominus da investigação defensiva, com a atração dos ônus e res-
ponsabilidades referente a mesma.

A discussão ganha espaço quando se indaga se o defensor possui um dever de


lealdade processual ao ponto de buscar a “verdade” sobre os fatos na situação proces-
sual, ou mesmo se a possibilidade defensiva estaria, ao contrário da acusação pública,
com o dever de persecução com interesse exclusivamente público.

O dever do defensor é garantir a melhor defesa ao acusado51. Essa é uma impo-


sição constitucional52 e internacional. Por isso, sua função não é o esclarecimento de
todos os fatos53, mas sim a busca de fontes e elementos de prova para o benefício do
seu defendente. Isso sugere que não estará obrigado a introduzir ao processo dados
prejudiciais à defesa e, principalmente, noticiar a existência de crimes que tome co-
nhecimento durante a investigação defensiva, conforme ressalta expressamente o ar-
tigo 334- bis, CPP.

Não se pode esquecer que o defensor está em franca atuação de resistência à


acusação em um processo dialético. Por isso, o direito à prova defensiva não se refe-
re a uma contribuição ampla que venha a prejudicar os interesses do acusado, como
esboça o artigo 327- bis, CPP, mas sim emerge a investigação defensiva como ativida-
de “necessariamente unidirecional”54, possuindo uma finalidade privada, com busca a
auxiliar na defesa do mesmo55.

Esta referência indica uma prática e normativa diferença entre a acusação públi-
ca e o defensor, na medida em que será possível a este realizar um colóquio informal
com eventual testemunha56, analisando a utilização dos resultados investigativos para
a produção dos efeitos em âmbito processual. Ou seja, em decorrência da permanên-

51 Por isso, a realização da investigação defensiva quando necessária, é afastada da sua natureza de faculdade (pois aqui seria da defesa) e se transforma em um
dever de exercício profissional para a realização da plena defesa. Há na realidade, um dever pelo defensor de valorar a necessidade de investigação e, caso
positivo, sua realização se denota como uma obrigação funcional, ainda que haja uma relação contratual privada.

52 Na Constituição Italiana, os artigos 24, comma 2 e art. 111, ditam essa regra.

53 TONINI. Manuale di Procedura Penale. p.586.

54 TRIGGIANI. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 08.

55 Por isso, como ilustra Saponaro (“O defensor se limita a procurar e apresentar elementos probatórios a favor do próprio assistido e tal atividade de busca se explica
através de múltiplas possibilidades operativas que, ao menos sobre seu papel, parecem conferir amplos poderes também de defesa: a assunção de informações, a
procura de documentação à administração pública, o acesso aos lugares, a possibilidade´– em alguns casos – de executar individualizações, confrontos e outros
atos de indagações atípicas” SAPONARO, Luisa. La ricerca della prova nelle indagini difensive. In La Prova Penale. Le dinamiche probatorie e gli strumenti per
l’accertamento giudiziale. Vol. II. Alfredo Gaito (org.) Torino: Utet Giuridica, 2008, p. 176.

56 Deve-se apontar que se a pessoa que prestará informações ao defensor ou ao seu substituto realizar declarações auto-incriminatória, aquele que realiza a
oitiva deve interrompê-la. Por óbvio, essas declarações não poderão ser utilizadas para prejudicar a pessoa que as prestou, na medida em que afastaria da
mesma a possibilidade do exercício da garantia do nemo tenetur se detegere.

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cia da sua atividade investigativa em busca de benefícios ao seu defendente, poderá o


defensor deixar de utilizar as fontes de prova não documentadas.

Por outro lado, pela característica exclusivamente pública do Ministério Público,


não exercendo um interesse exclusivamente contra o investigado ou acusado, aquele
não poderá deixar de introduzir elementos investigativos inclusive em benefício des-
tes57, como prescreve o artigo 358, CPP italiano58. Neste caso, não havendo alternativa,
há imposição institucional e legal ao Ministério Público a ampliação da produção pro-
batória, ainda que fosse em prol do acusado59.

Mas, o limite de atuação defensiva figura na legalidade e legitimidade da prova,


não podendo introduzir no processo as provas falsas, bem como perder ou escon-
dê-las, sob pena de responder pelo crime de favorecimento pessoal, previsto no ar-
tigo 378, CP italiano60, ou mesmo falsidade ideológica (art. 481, CP italiano) caso haja
introdução de atos investigativos documentados de forma incompleta ou não fiel às
declarações prestadas61. Neste ponto, pode-se afirmar que uma das questões de ex-
trema importância é a caracterização jurisprudencial da investigação defensiva como
um serviço privado de necessidade pública62.

Focado na discussão da lealdade processual, deve-se refletir de forma diversa


a ontologia das atividades, com aporte na estrutura constitucional. O que se fez na
prática foi inserir uma verdadeira simbiose entre os preceitos processuais penais e
os deveres éticos dos advogados, com rigorosa observância das normas deontológi-
cas profissionais, com a criação de Regole di comportamento del penalista nelle inves-
tigatiozi difensive63.

Nesta linha, a Lei que introduziu o capítulo ao Código de Processo Penal não pode
ser vista de forma isolada, mas sim com todas as previsões regulamentares do Código
Deontológico, que destaca uma detalhada disciplina sobre o desenvolvimento da in-

57 Ver CERQUA e MATTEO. Quale qualifica per il difensore-investigatore. p. 610.

58 “O ministério público executa toda atividade necessária aos fins indicados no artigo 326 e também realiza investigação sobre fatos e circunstâncias a favor da pessoa
sob investigação” (tradução livre).

59 “O ministério público se configura durante as investigações como uma parte “potencial”, que na sua caracterização “pública” tem uma obrigação de lealdade processual”.
TONINI. Manuale di Procedura Penale. p.587.

60 Com referência ao art. 14, I del Codice deontologico forense. Ver TONINI. Direito de defesa e prova científica. p. 207.

61 Cass. pen., Sez. un. 27 giugno 2006. Ainda, TRIGGIANI. Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 09.

62 Cf. CERQUA e MATTEO. Quale qualifica per il difensore-investigatore. p. 609.

63 Consubstanciado no Codice Deontologico aprovado no Consiglio Nazionale Forense em 17 de abril de 1997 e modificado sobre o tema em 26 de outubro de
2002. Por fim, as Sezioni Unite da Corte di Cassazione, de 27.6-28.9.2006, esclareceram os limites para a atividade lícita do advogado.

80
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vestigação defensiva. Com isso, qualquer violação às normas que regulamentam a in-
vestigação defensiva poderá gerar sanções disciplinares, para além dos ilícitos penais.

2.2
Objeto probatório da investigação defensiva

Pela análise da norma genérica que se refere à investigação defensiva (art. 327 bis,
CPP), indicando que o defensor poderá procurar ou individualizar “elementi di prova”
gera a interpretação aberta do que constitui o objeto64 de investigação defensiva e os
limites objetivos do conteúdo do fato a ser provado65.

Através destes aportes, indica-se que toda atividade defensiva e os resultados


probatórios devem ser documentados, salvo algumas atividades meramente “explo-
rativa” do conteúdo probatório, que possui uma função de uso interno para ofício de-
fensivo66. Ou seja, poderá o defensor analisar informalmente a fonte de prova e per-
quirir se há interesse ao acusado. Caso não haja, descarta-se a introdução da prova,
tornando-a, portanto, irrelevante, não havendo obrigação de apresentar ao ministério
público ou ao juiz o conteúdo adquirido pelo defensor em sua investigação privada67.

Por outro lado, havendo interesse, e se o defensor decidir pela obtenção de even-
tual declaração, deverá documentá-la na sua integralidade. Pode-se apontar, portan-
to, que “a atividade de verbalização pelo defensor é uma faculdade mas, caso ele decida
utilizá-la, isto não lhe consente de manipular as informações recebidas ou de omitir as cir-
cunstâncias eventualmente contrárias ao interesse do assistido”.68

2.3
Necessidade de documentação das entrevistas
realizadas com as testemunhas

A necessidade de documentação da atividade investigativa da defesa está disciplinada


no art. 391, CPP, podendo ser utilizado para contestação e leitura pelas partes.

64 Não podendo ser confundido com objeto da prova previsto no art 187, CPP italiano em que estabelece como objeto da prova os fatos que se referem a
imputação, a punibilidade e a determinação da pena ou medida de segurança.

65 CRISTIANI. Guida alle Indagini Difensive nel Processo Penalep. 43.

66 SAPONARO. La ricerca della prova nelle indagini difensive. p. 176.

67 CAPRIOLI. Indagini preliminari e udienza preliminare. p. 595.

68 A obrigação de plenitude lhe é imposto não apenas pelo Código de rito, mas também pelas normas deontológicas do Consiglio Nazionale Forense e dell’Unione delle
Camere penali italiane. TRIGGIANI, Le investigazioni della difesa tra mito e realtà. p. 08 (tradução livre)

81
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A prova produzida será debatida no trâmite processual, portanto, sua utilização


dar-se-á em todos os momentos processuais, desde a investigação preliminar, as ale-
gações finais, a impugnação recursal e possível juízo revisório.

A atividade defensiva que objetiva a aquisição de fontes de prova declaradas pode


figurar em três momentos individuais e que, eventualmente, poderão se mostrar con-
comitantes. 1) um colóquio não documentado; 2) a busca de uma declaração escrita;
3) a assunção de informações para documentar.

Dispõe o art. 391- bis , § 1o, CPP que o colóquio não documentado é a primeira mo-
dalidade de audiência prevista que, através desta atividade, é conferido ao defensor a
possibilidade informal do colóquio com pessoas que possuem informações sobre os
fatos, sem que haja necessidade de transcrevê-lo, representando uma garantia pelo
defensor de averiguação das informações a serem obtidas e a viabilidade de inserção
na dinâmica processual.

Esta primeira modalidade investigativa da defesa pode ser considerada como re-
ferência introdutória à relevância probatória, possuindo uma função meramente de
conhecimento da prova.

Não é alternativa às outras modalidades de assunção das informações, mas é ge-


ralmente o antecedente cronológico do mesmo: se do colóquio emergem elementos
que podem julgar-se útil para a atividade de investigação em objeto, o defensor pode
pedir a pessoa examinada de passar uma declaração escrita ou de transmitir informa-
ções verbalmente.69

Pode acontecer, no entanto, que não haja documentação das eventuais declara-
ções realizadas no colóquio informal. Caso isso ocorra, a defesa usará apenas como
atividade interna, não ocorrendo função endoprocessual deste ato.

Em havendo alusão à importância das informações, poderá ocorrer a documenta-


ção das declarações pelo próprio declarante, autenticada pelo defensor ou seu subs-
tituto. Caso ocorra a documentação das declarações obtidas pela defesa, e, por óbvio,
tornaram interessante para a atividade defensiva, assumirão real valor probatório, fa-
zendo parte da discussão processual (art. 391-bis, § 2o, CPP).

69 SAPONARO. La ricerca della prova nelle indagini difensive. p. 177.

82
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Ainda, será possível a assunzione di informazioni70 em que haverá um colóquio do-


cumentado fundado sobre as perguntas realizadas pelo defensor, seu substituto ou
investigador privado71.

2.4
Pedido de documentos à administração pública

Além da oitiva de testemunhas, poderá o defensor realizar outras diligências para ob-
ter elementos necessários à investigação. O procedimento destas diligências está tipi-
ficada no Código de Processo Penal objetivando a garantia da efetividade investigativa.

Neste sentido, o defensor poderá pedir documentos em posse da administração


pública para obter cópias. Como determinação legal, o setor responsável pelos docu-
mentos ou que lá estejam retidos tem a obrigação de fornecê-los ao defensor. Não se
trata de discricionariedade administrativa, mas sim dever. Caso não haja exibição do
documento, poderá ser realizado procedimento de “richiesta di sequestro”72, conforme
estabelece o artigo 391quater, CPP.

Outra diligência tipificada diz respeito o acesso aos lugares e documentação (art.
391sexies, CPP) quando o defensor entender necessário visualizar os lugares ou ins-
trumentos pertinentes ao crime investigado, documentando o estado do ambiente e
das coisas, procurando que nada seja mudado, disperso ou alterado73.

Quando o lugar possuir acesso público, não há qualquer obstáculo a ser enfren-
tado pelo defensor. Porém, pode ocorrer do lugar ser privado ou não aberto ao públi-
co. Neste caso, caso não haja consenso de quem possua a disponibilidade do lugar,
deverá o juiz autorizar o acesso através de decisão motivada, especificando o objetivo
concreto da diligência. (art. 391, septies,CPP).

Não será consentido o ingresso aos lugares destinados à habitação, salvo se for ne-
cessário averiguar os vestígios materiais deixados pelo crime74 (art. 391, septies, n. 3, CPP).

70 Expressão de difícil tradução para nosso ordenamento jurídico, devendo ser reconhecido como obtenção de informações.

71 A investigação defensiva pode ser realizada diretamente pelo defensor. Porém, por questão prática já que seria difícil a realização de todos os atos por este,
o legislador foi coerente em autorizar a investigação defensiva por substituto, por investigador privado autorizado e por consultor técnico. (art. 327, bis, comma 3,
CPP). Questões que não adentraremos pela limitação da abordagem.

72 Uma verdadeira busca e apreensão realizada para a obtenção dos documentos requisitados pela defesa.

73 Art. 52, I, n. 13, do Codice deontologico forense.

74 Por exemplo, manchas de sangue, etc.

83
REFLEXÕES SOBRE A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO –
POSSÍVEL RENOVAÇÃO DA INFLUÊNCIA ITALIANA PÓS “CÓDIGO ROCCO” SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE

[3]
VALOR PROBATÓRIO DA

ATIVIDADE INVESTIGATIVA DEFENSIVA

A partir da introdução da prova originada pela investigação defensiva, não mais há que
se diferenciar entre prova da acusação e da defensa, ou seja, há real diferença entre a
atividade investigativa da acusação e da defesa como já exposto e, principalmente, pela
separação de preceitos institucionais entre ambos. Porém, quando a prova (formada
através do contraditório, a partir dos elementos investigativos) restar introduzida na
discussão processual, deve-se à unidade do processo e comunhão dos elementos pro-
batórios um único valor. Por isso, as informações obtidas pelas testemunhas (docu-
mentadas pela acusação ou defesa) terão a mesma validade para os fins probatórios
e processuais, não sendo mais possível a distinção dos atos realizados pelas partes.

Neste sentido, o material fruto da indagine difensive terá a idêntica natureza do


material introduzido pela acusação ou pela polícia, não sendo crível ao julgador fazer
qualquer distinção objetiva e subjetiva entre esses materiais no momento de forma-
ção da sua convicção75.

A legitimidade da prova defensiva e, principalmente, seu valor quanto à produção


de seus efeitos ocorre porque a formalização da atividade investigativa do defensor
possui natureza de atividade processual strito sensu76, ou seja, não mais como uma for-
çada prova documental em que havia pré-concepções negativas à sua valoração, mas
sim como ato devidamente regulamentado e, a partir da sua admissibilidade perante
a situação processual (independentemente do seu momento77), possuirá o mesmo va-
lor, não havendo distinção entre as provas na fase da instrutória78.

75 CERQUA e MATTEO. Quale qualifica per il difensore-investigatore. p. 612. No entanto, transcende qualquer país a pré-concepção negativa em relação aos
elementos defensivos, seja em âmbito investigativo, seja em relação à postura do juiz para com as partes no debate processual. Interessante pesquisa
realizada por Schünemann indica, para além da permanência da postura inquisitório do julgador nos Tribunais alemãs, a observância de como este vê não no
defensor, mas apenas no promotor, a pessoa relevante que lhe serve de padrão de orientação. Cf. SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como um terceiro manipulado
no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e aliança. Trad. Luís Greco. In Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia
do direito. Luís Greco (coord.). Madri: Marcial Pons, 2013, p. 217.

76 CAPRIOLI. Indagini preliminari e udienza preliminare. p. 592.

77 No curso das indagini preliminari quando o juiz deve adotar uma decisão com intervenção da parte privada, o defensor pode apresentar os elementos de
prova a favor do assistido (art. 391octies, CPP, italiano).

78 CAPRIOLI. Indagini preliminari e udienza preliminare. p. 594/595.

84
REFLEXÕES SOBRE A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO –
POSSÍVEL RENOVAÇÃO DA INFLUÊNCIA ITALIANA PÓS “CÓDIGO ROCCO” SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O GRAU DE ABRANGÊNCIA DA DEFESA

NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL NO BRASIL,

A PARTIR DO DIREITO COMPARADO

Um dos pontos de maior discussão na doutrina brasileira é a caracterização do nosso


sistema processual penal. A grande maioria indica ser o acusatório79 pelas previsões
constitucionais80 do juiz natural (art. 5º, LIII) e o monopólio da ação penal pública re-
servada ao Ministério Público (art. 129, I), com a construção da divisão de funções, não
mais reservado ao juiz atividade de ofício para o início da ação penal ou mesmo inves-
tigação policial81.

Porém, a mesma doutrina em sua maioria, destaca o procedimento investigativo


como atividade administrativa inquisitória82, haja vista a ausência do contraditório e
da ampla defesa. Cria-se, por isso, um sistema misto83 com clara influência do modelo
napoleônico francês.

No entanto, ainda que não haja um sistema acusatório forte como elencado na
Constituição Italiana, devemos repensar a possibilidade da presença do procedimento
investigativo como um momento inquisitório, na medida em que essa caracterização
se dissocia da aproximação de um processo que se pretenda democrático84. Ou seja,

79 Para tanto, imprescindível leitura de PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006.

80 Na Constituição Portuguesa, há previsão expressa indicando que o “processo criminal tem estrutura acusatória” (art. 32º, n. 5). No entanto, eles ainda trabalham
com a busca da verdade real através de extrema atuação oficiosa do juiz na gestão de provas. Ou seja, a alteração legislativa figura como importante aporte na
tentativa de modernização do sistema processual. Porém, acreditamos que haja necessidade de alteração da cultura processual penal bem como do manejo
doutrina em vivificar estas alterações. No caso brasileiro a crítica resulta parecida na medida em que diversas leis são edificadas e há uma permanência dos
atos e seus efeitos como se a alteração normativa se caracterizasse como de menor importância.

81 Entendimento correto da 2ª Turma do STF “Indiciamento por magistrado – Não cabe ao juiz determinar indiciamento. Com base nessa orientação, a 2ª Turma superou
o Enunciado 691 da Súmula do STF para conceder habeas corpus e anular o indiciamento dos pacientes. No caso, diretores e representantes legais de pessoa jurídica
teriam sido denunciados pelo Ministério Público em razão da suposta prática do crime previsto no art. 1º, I e II, da Lei 8.137/90. Após o recebimento da denúncia,
o magistrado de 1º grau determinara à autoridade policial a efetivação do indiciamento formal dos pacientes. (2ª Turma – HC 115015/SP, rel. Min. Teori Zavascki,
27.8.2013”.

82 Divergindo deste posicionamento, com coerência democrática que lhe peculiar, segue PRADO, Geraldo. Parecer. As Garantias na Investigação Criminal:O Direito
de se Defender Provando. In Temas de Direito Penal e Processo Penal. Estudos em homenagem ao juiz Tourinho Neto. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 705.

83 Um verdadeiro monstro jurídico, nascido no acoplamento do processo inquisitivo e do acusatório. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione. Teoria del garantismo
penale. 8a ed. Roma: Laterza, 2004, p. 119.

84 Com advertência de Cunha Martins “o sistema processual de inspiração democrático-constitucional só pode conceber um e um só ‘princípio unificador’: a
democraticidade; tal como só pode conceber um e um só modelo sistêmico: o modelo democrático. Dizer “democrático” é dizer o contrário de “inquisitivo”, é
dizer o contrário de “misto” e é dizer mais do que “acusatório”. CUNHA MARTINS, Rui. O Ponto Cego do Direito. The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2010, p. 93.

85
REFLEXÕES SOBRE A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO –
POSSÍVEL RENOVAÇÃO DA INFLUÊNCIA ITALIANA PÓS “CÓDIGO ROCCO” SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE

ou optamos por permanecer com um sistema autoritário ainda com sua importação
fascista (o nosso CPP com clara influência do Código Rocco Italiano de 1930, alterado
significativamente em 1988) ou investimos em um sistema realmente democrático em
que cria maior legitimidade aos atos processuais e, em especial, à decisão penal. Essa
escolha que toda a sociedade deve fazer com sensibilidade e maturidade deve refletir
não apenas na doutrina, mas sim nos poderes judiciário e legislativo, para que a defe-
sa de um sistema acusatório/democrático não permaneça somente como uma defesa
retórica em que na teoria transparece uma coisa e na prática outra.

Com isso, há necessidade de reais mudanças de postura no nosso modelo proces-


sual penal, a começar pela investigação preliminar em que ainda perdura com uma car-
ga efetivamente autoritária, inclusive com defesas acadêmicas pela sua permanência.

Vale ressaltar, portanto, que a significativa alteração do modelo italiano85 deveu-se


ao desenvolvimento de visibilidade das partes na discussão processual penal. O pro-
cesso de partes, destituindo o juiz como uma figura onipotente, garantiu maior relevo
à dialética na construção de um processo justo, com atuação mais ativa à formação
da prova e da decisão penal. Acreditamos que é disso que o nosso sistema processual
precisa, a começar pela investigação preliminar.

O afastamento da caracterização da investigação como procedimento inquisitório


é o primeiro passo86. A participação das partes87, inclusive da defesa, é o seguinte.

Com isso, acreditamos que o artigo 14 do CPP brasileiro88 não resolve totalmente
o problema, permanecendo o foco preconceituoso da atuação defensiva para macular
a investigação. Até porque, a característica autoritária permanece incólume quando a
norma processual indica a necessidade de autorização pela autoridade policial para a
realização de diligências.

A necessidade de alteração significativa da postura, como ocorreu no direito pro-


cessual penal italiano, se torna premente, garantindo maior relevo às partes, em es-

85 A alteração do modelo processual penal italiano deveu-se, significativamente, pela influência da Convenção Européia de Direitos Humanos. Nosso sistema
também faz coro à introdução de preceitos internacionais de proteção aos direitos humanos (art. 5º, §1º e §2º, Constituição da República), em especial, à
Convenção Americana de Direitos Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Político. No entanto, infelizmente, não se vê muito nas decisões
judiciais a aplicação das suas normas ou quiçá referência aos mesmos.

86 Até porque, como bem realçou Geraldo Prado, “em um processo penal acusatório não há espaço para institutos ou procedimentos inquisitórios”. PRADO As
Garantias na Investigação Criminal:O Direito de se Defender Provando. p. 703.

87 Basta pensar que há uma ampla discussão sobre a investigação direta do Ministério Público em todos os Tribunais, especialmente superiores, mas nenhuma
discussão quanto a investigação defensiva.

88 “O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade.”

86
REFLEXÕES SOBRE A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO –
POSSÍVEL RENOVAÇÃO DA INFLUÊNCIA ITALIANA PÓS “CÓDIGO ROCCO” SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE

pecial à defesa, haverá sensível ampliação no grau de democraticidade como princípio


unificador89 do processo penal.

Não mais há que se temer uma pré-concepção errônea em que a defesa, durante
a investigação, tem o objetivo de prejudicar ou manipular a apuração dos fatos. Esta
visão se traduz em um modelo arbitrário preconceituoso em que nada moderniza o
nosso sistema. Temos realmente que identificar o processo penal como um instrumen-
to de proteção de todos, inclusive e especialmente àquele submetido às suas agruras,
até porque presumidamente inocente, justamente para garantir eficácia ao primeiro
artigo da nossa Constituição.

Por isso, denota-se extremamente interessante entendermos o significado da al-


teração de postura do modelo italiano, garantindo maior eficácia ao contraditório e
ao justo processo, incluindo as partes como formadoras da prova e na influência da
decisão penal, estabelecendo a presença da defesa em fase apuratória para contribuir
com a introdução de fontes de prova através de uma atividade investigativa própria.

A real diferença entre o nosso modelo e o italiano acaba servindo para identificar-
mos que a discussão sobre ser um sistema acusatório ou inquisitório não está apenas
na atuação oficiosa do julgador, mas sim na maior valorização reservada às partes, ob-
jetivando a construção de equilíbrio entre as mesmas. Neste ponto, acreditamos ser
necessária uma mudança de postura legislativa para garantir uma atuação mais ativa
da defesa na investigação preliminar90.

89 CUNHA MARTINS. O ponto Cego do Direito. p. 93/94.

90 Basta pensarmos que apenas com a edição da Lei 397/2000 em que houve uma engrenagem na investigação defensiva. O derrogado art. 38, CPP italiano que
garantia a atuação defensiva na investigação, pela sua generalização, não fortalecia a efetividade da investigação pela defesa. Ou seja, foi necessário não só
a mudança da postura acadêmica, mas também legislativa para identificação de um modelo acusatório forte.

87
REFLEXÕES SOBRE A INVESTIGAÇÃO DEFENSIVA NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO –
POSSÍVEL RENOVAÇÃO DA INFLUÊNCIA ITALIANA PÓS “CÓDIGO ROCCO” SOBRE A INDAGINE DIFENSIVE

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89
A “ JU RIS D IF ICAÇÃO ”
DA EXPAN S ÃO DO
D IREITO PEN AL

REDUÇÃO DA
CARGA PROBATÓRIA
DO INJUSTO PELO
MODERNO MODELO
INCRIMINADOR

TEXTO PUBLICADO ORIGINARIAMENTE:

A “jurisdificação” da expansão do Direito Penal. Redução da carga probatória do injusto


pelo modernomodelo incriminador In: Temas Criminais. A ciência do Direito Penal
em Discussão.1 ed.Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2014, v.1, p. 87-122
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

INTRODUÇÃO

O Direito Penal necessariamente deve passar pelos valores dinâmicos da sociedade. A


evolução desta ciência segue na linha do que se busca nos dias atuais sobre sua fina-
lidade e legitimidade, para que não se aproxime de uma figura ilustrativa e perniciosa
com uma linguagem fechada aos seus atores.

Por isso, devemos inserir a estrutura da ciência jurídico penal na coerência com
sua época e, diante de uma referência epistemológica, difundir coerentes ideias ou
mesmo criticá-las, sempre com o foco de maior legitimidade possível. Nosso campo
de investigação, portanto, segue na tentativa de diagnosticar e/ou caracterizar a ex-
pansão do Direito penal não por seu ponto primário (a idealização de uma norma pe-
nal), mas sim através do foco prático, a “jurisdificação1” da imputação penal, figurando
ambas em política criminal de ampliação da penalização2.

Não podemos seguir na ingenuidade da permanência quanto a análise do siste-


ma penal (estritamente observado) do seu nascimento aos momentos atuais, da defe-
sa da teoria de identificação de um resultado visível para a dignidade penal e apenas
a colocação do dano na construção da vivificação do seu conteúdo. Todo o aparato
social e a defesa de uma maior eficiência nos sistemas do Estado estão presentes3.
E a precaução (em alguns casos a prevenção) como princípio social também figurará
estabilizado nesta seara4. Do Direito penal clássico ao Direito penal moderno (do pe-
rigo5) na atual sociedade de risco6, devemos seguir na linha de como identificaremos
um delito, desde sua criação legislativa à abordagem jurisdicional, na idealização do

1 Expressão utilizada pelo Professor Doutor Augusto Silva Dias em aula do dia 01.06.2012 realizada no Doutoramento de Ciências Criminais da Universidade
de Lisboa.

2 Não estamos em momento de crítica, mas de tentativa de identificação deste modelo expansivo. Por isso, tentaremos, com certa dificuldade, nos afastar das
questões criminológicas e da sociologia das normas penais.

3 Desde já devemos esclarecer que há, na presente abordagem, uma identificação do que sociologicamente se vislumbra. Não quer indicar, no entanto, que
concordamos com essa necessidade de alteração de paradigma na seara penal.

4 Deve-se pensar que, “quando não é possível fazer uma prevenção proactiva de riscos, apresentam-se outras duas vias às sociedades do conhecimento: a
provisão e a precaução.” BINDÉ, Jérôme. Rumo às Sociedades do Conhecimento. Trad. Sandra Campos. Lisboa: Piaget, 2007, p. 234.

5 Gracia Martín identifica o Direito penal clássico como “Direito penal (do Estado) liberal” e o atual como “Direito penal (do Estado) social e democrático”. GARCIA
MARTÍN, Luis. La polémica en torno a la legitimidade del Derecho Penal moderno. México: Editorial Ubijus, 2011, p. 15.

6 Coube a Beck, na identificação sociológica da neo-modernização, a denominação de uma sociedade de risco, preocupada com seus avanços e seus medos.
Identificou, na realidade, uma sociedade bipolar em que todos os avanços são fatores de evolução e involução, conforto e insegurança, estabilidade e incerteza,
modernização e perigos. E, em todo esse catacrisma social está o Direito penal imerso. BECK, Ulrich. Teoría de la sociedad del risgo. In Las consecuencias perversas
de la modernidad. Org. Josetxo Beriain. Barcelona: Anthropos, 2011, págs. 201 e segs. Em outra oportunidade expõe que “o processo de modernização se volve
reflexivo , se torna a si mesmo como tema e problema. As questões do desenvolvimento a da aplicação de tecnologias (no âmbito da natureza, da sociedade
e da personalidade) são substituídas por questões da <gestão> política e científica (administração, descobrimento, inclusão, evitação e ocultação) dos riscos
de tecnologias a aplicar atual ou potencialmente em relação a horizontes de relevância a definir especialmente.” BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Hacia uma
nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Ma. Rosa Borrás. Barcelona: Paidós, 2010, p. 30.

91
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

Direito penal usado como instrumento político de combate aos novos riscos7, ou nem
tão novos assim.

A discussão sobre uma sociedade voltada à velocidade de informações e avanços


tecnológicos, nos traz relevantes temas que não poderão ser esquecidos (ou até esva-
ziados) pelo Direito penal, até porque converge na caracterização de uma sociedade
de “objetiva” insegurança8. Disso não se discute. A concepção clássica do conteúdo ma-
terial do que vem a ser uma conduta típica, não obstante a importância da sua perma-
nência para a harmonia da sociedade, não mais resolve delicados problemas. Como
adverte Figueiredo Dias, “não está o direito penal que cultivamos, de decidida vertente
liberal, suficientemente preparado”9. Disso talvez discutiremos. A visibilidade em que
se pautava a estrutura penal vem, paulatinamente, sendo alterada pela criação de no-
vos tipos que almejam a proteção de bens e interesses supra-individuais. Dos tipos de
lesão com resultados causais, surgem crimes de perigos e esses, na progressividade
da criminalização de condutas, em perigo abstrato, fundado, sempre no paradigma da
segurança e da prevenção.

Na realidade, com uma aproximação a um Direito penal de antecipação do peri-


go face ao risco incrementado pela sociedade e da precaução10, cria-se uma gama de
críticas à teoria do bem jurídico monista-individual (na afetação do resultado), para se
aproximar da problemática criminógena da conduta. Chegamos, indiscutivelmente, ao
fundamento do Direito penal pela segurança, que pode ser caracterizada, portanto,
como o próprio bem jurídico a ser tutelado11. Nesta linha de raciocínio, uma sociedade
pautada em contatos anônimos e plural, não poderia renunciar aos delitos de visibili-
dade de perigo12 como se tem constatado.

7 DIAS, Augusto Silva. <Delicta in Se> e <Delicta Mere Prohibita>. Uma Análise das Descontinuidades do Ilícito Penal Moderno à Luz da Reconstrução de uma Distinção
Clássica. Coimbra: Coimbra, 2008, pág. 215.

8 SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La expansión del Derecho penal. Aspectos de la Política criminal en las sociedades postindustriales 3ª ed. Montevideo-Buenos Aires:
Editorial IBdef, 2011, p. 15.

9 DIAS, Jorge de Figueiredo. Temas Básicos da Doutrina Penal. Sobre os fundamentos da doutrina penal sobre a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra, 2001, p. 159.

10 Interessante diferenciação entre ameaça, risco e perigo. GRANJO, Paulo. Quando o conceito de <risco> se torna perigoso. In Análise Social. Revista do Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. n. 181. Vol. XLI, 4º Trim. 2006, p. 1167 e segs.

11 JAKOBS, Günter. ?Como protege el Derecho penal y qué es lo que protege? Contradicción y prevención; protección de bienes jurídicos y protección de la vigencia de la
norma. In ?Tiene un futuro el Derecho penal? Org. Julio B. J. Maier e Gabriela E. Córdoba. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2009, págs. 70/71.

12 Jakobs repele eventuais críticas, taxando-as de arbitrárias teses de proteção a bens jurídicos, posto que “só dispõem de argumentos jurídico-políticos, mas
não de argumentos jurídico-dogmáticos ou teórico-jurídicos”. Idem, p. 71.

92
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

O que não podemos nos afastar é da própria identificação da nossa linguagem.


Seguimos, portanto, na natural observância, em alguns casos, do crime em si, simples-
mente textualizado. Outros, de uma (des)necessária argumentação normativa.13

Certo é que a evolução do Direito (sistema) penal, expressada por Hassemer como
“dialética do moderno14”, chegando ao convencionalismo dos eminentes riscos, não
poderá ultrapassar sua base clássica mas, permanentemente, definidora. A legalidade
como alicerce penal deve não só observar o que o legislador idealiza, mas demonstrar,
efetivamente, o que vem a ser ofensivo à sociedade merecedor de tutela penal, ainda
que, não obstante a correta recusa doutrinária15, esse princípio seja visto com granus
salis no eficienticismo penal, voltado, indiscutivelmente, por ideias inicialmente fun-
cionalistas face aos novos riscos da post-modernidade16.

Esta discussão, e até mesmo uma certa crise dos fins do Direito penal, não se es-
tabiliza na figura material, transcende ao próprio Direito processual penal em vários
pontos17, o que seguirá como nossa proposta de identificação.

Com isso, o possível diagnóstico segue através de uma indagação: até que ponto
a referência da modernidade influencia na estrutura do sistema jurídico penal? Dito
de outra forma: será necessária a transposição de alguns elementos básicos, incluin-
do garantias fundamentais, para se aproximar de um Direito penal moderno? Aquelas
prejudicam a evolução deste, no seio da expansão?

Fato é que há referências constitucionais intransponíveis ainda que haja uma al-
teração social. Disso não podemos fugir, e se necessário, defenderemos.

Nesta linha, para delimitação do nosso estudo, deveremos observar a referência


probatória em que incumbirá a prova do delito. Assim, afastando as questões fáticas,
não obstante a relevância da matéria, nosso ponto de análise será a prova do injusto
nos crimes dolosos18.

13 “O crime é caracteristicamente <delictum in se>, rigorosamente descrito e sistematicamente localizado num Código, o qual, por sua vez, é apresentado como
um monumento de racionalização que encerra e esgota o universo do punível.” DIAS. <Delicta in Se> e <Delicta Mere Prohibita>. p. 218.

14 HASSEMER, Winfried. Viejo y nuevo Derecho penal. In Persona, mundo y responsabilidad. Bases para una teoría de la imputación en Derecho Penal. Trad.
Francisco Muñoz Conde e Ma. del Mar Díaz Pita. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 40.

15 DIAS. Temas Básicos da Doutrina Penal. Sobre os fundamentos da doutrina penal sobre a doutrina geral do crime. p. 184.

16 MATTA, Paulo Saragoça da. O Direito Penal na Sociedade do Risco. In Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 20, n. 4. Out-dez. 2010. Coimbra: Coimbra, pág. 522.

17 Nossa referência torna-se exclusiva ao aspecto penal, não obstante alguns reflexos processuais penais, como por exemplo o amplo crescimento de medidas
cautelares pessoais. Para ilustração do tema, oportuna a análise do texto de MAIER, Julio B. J. Estado Democrático de Derecho, Derecho Penal y Procedimiento
Penal. In ?Tiene un futuro el Derecho penal? Org. Julio B. J. Maier e Gabriela E. Córdoba. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2009, págs. 91/122.

18 Por questão de limitação, não abordaremos as amplas e complexas questões de perigos e riscos nos crimes negligentes. Para o tema, imprescindível a leitura
de ROMEO CASABONA, Carlos María. Conducta peligrosa e imprudencia en la sociedad de riesgo. Granada: Editorial Comares, 2005.

93
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

A partir desta referência, segue pela importância da estrutura do crime e seu conte-
údo material, indicando portanto, a prova da tipicidade e da lesividade da conduta com o
conceito clássico de crime e as questões atuais do direito penal do risco (ou do perigo).

[1]
CRITÉRIOS DE LEGITIMIDADE

DA INTERVENÇÃO PENAL

O primeiro ponto para qualquer início de discussão diz repeito à defesa da legitimida-
de19 do Direito Penal face ao nosso modelo constitucional e cultural vigente. Por isso,
adequado a qualquer frente de análise (ideológica, acadêmica e prática) seria inviável
nos afastarmos do substrato constitucional da proteção do indivíduo em decorrência
da dignidade humana como princípio basilar do Estado Constitucional Democrático
de Direito. Mesmo amplo e de referência algumas vezes retórica, essa defesa será in-
transponível para ditarmos um modelo democrático na idealização, interpretação e
concretização do sistema penal.

Seguindo nesse foco, a partir de um ideal iluminista, a proteção da dignidade hu-


mana deve servir como preceito legitimador da tutela penal em decorrência de bens
e interesses essenciais para sua materialização, ainda que não haja seguimento à teo-
ria da personificação do bem jurídico penal20. Não obstante ferrenhas e atuais críticas
quanto a dificuldade de encontrar critérios objetivos e válidos para caracterizar valores
sociais como bens jurídicos21 a legitimidade do Direito Penal Constitucional segue na
referência de seus limites decorrentes da atividade de garantir a existência ilustrativa
de bens jurídicos relevantes à reflexão.

Na fórmula em que o direito é um mínimo ético, parte-se da ideia de que os valo-


res básicos da ordem social, direcionam o que o direito (penal) deve proteger, forman-

19 Para além da dimensão técnica do princípio da legalidade que será abordado, refere-se à dimensão política como legitimação democrática das disposições
definidoras dos delitos e das penas. Assim, merece alusão à necessária vinculação entre decisões incriminadoras e a representação básica do cidadão referida
por SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación al derecho penal contemporâneo. 2a ed. Buenos Aires: Editorial IBeF, 2010, p. 403.

20 Assim refere Manuel da Costa Andrade como dignidade penal a “expressão de um juízo qualificado de intolerabilidade social, assente na valoração ético-social
de uma conduta, na perspectiva da sua criminalização e punibilidade. COSTA ANDRADE, Manuel da. A <dignidade penal> e a <carência de tutela penal> como
referência de uma doutrina teleológica-racional do crime. In Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 2, fasc. 2. abr-jun. 1992, p. 184.

21 Valiosas críticas indicam que a legitimação das normas penais não figuram pela teoria do bem jurídico, face à sua vagueza e indeterminação. FRISCH,
Wolfgang. Bien jurídico, derecho, estructura del delito e imputación en el contexto de la legitimación de la pena estatal. In La teoría del bien jurídico. ? Fundamento
de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Coord. Roland Hefendehl. Trad. Rafel Alcácer, María Martín e Íñigo Orrtiz de Urbina. Madrid.
Barcelona: Marcial Pons, 2007, pág. 323/324.

94
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

do normas ético-sociais22. Por outro lado, não serão estas as últimas instâncias como
formadora de todas as normas de conduta e suas consequências punitivas, na medi-
da em que poderia haver aproximação com valores morais, já há algum tempo afas-
tados (ou na sua contínua tentativa) dos anseios penais. Por isso, a maior dificuldade
está justamente na eleição e identificação de bens importantes para serem protegi-
dos pela última força normativa que se eleja constitucionalmente. É dizer, a ânsia na
proteção de bens individuais e sociais não poderá pincelar qualquer critério punitivo
como modelo de solução social. Por isso, para além dos marcos positivistas (conceito
formal de crime), há necessidade da identificação – e seguiremos mais adiante com a
imprescindibilidade da prova – do conteúdo material do delito, como indagação dos
critérios materiais da conduta punível. Ainda que diante de elevadas contribuições só-
cio-políticas, criando indiscutivelmente uma mudança de paradigma na ciência penal,
continuamos na visão sobre a necessidade de demonstrabilidade e limitações daqui-
lo que o legislador deve/pode eleger como sanção. Assim, na sequência das idéias da
doutrina majoritária, a descrição destas normas deve ser entendida pelo conceito ma-
terial de “proteção subsidiária de bens jurídicos23”, não só em sua concepção pessoal
de bem jurídico, mas também nos estados das coisas sociais, não obstante seu caráter
elementar, mas com elevada importância na sociedade moderna, deve ser protegida
pelo Direito penal, não só diante de um discurso normativo-jurídico, mas com foco so-
cial-objetivo24.

1.1
Ponto inicial do Direito Penal – O reflexo limitativo do ius puniendi

O ponto de contato do princípio da legalidade segue a partir da segurança jurídica im-


posta por preceito constitucional garantidor ao indivíduo. Diante da vertente tradicio-
nal, segue esse princípio com sua dimensão técnica e política, constituindo a base da
liberdade negativa25.

Friza-se uma questão atemporal: o princípio da legalidade deve ser visto como deli-
mitação do que pode levar a proibir-se. Para além do limite formal ao poder de punir do

22 STRATENWERTH, Günter. Derecho Penal. Parte General I. El hecho puniblie. Trad. Manuel Cancio Meliá e Marcelo A. Sancinettti. Navarra: Thomson Civitas, 2005,
pág. 54.

23 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y Garcia
Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2008, pág. 51.

24 STERNBERG-LIEBEN, Detlev. Bien jurídico, proporcionalidad y libertad del legislador penal. In La teoría del bien jurídico. ? Fundamento de legitimación del Derecho
penal o juego de abalorios dogmático? Coord. Roland hefendehl. Trad. Rafel Alcácer, María Martín e Íñigo Orrtiz de Urbina. Madrid. Barcelona: Marcial Pons,
2007, pág. 113.

25 Na medida em que pressupõe que tudo o que não está proibido está permitido. VIVES ANTÓN, Tomás S. Fundamentos del Sistema Penal. Acción Significativa y
Derechos Constitucionales. 2ª ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011, pág. 725.

95
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

Estado <nullum crimen, nulla poena sine lege>, delimita-se um referencial material em di-
namização do processo de eleição daquilo eivado de maior reprovabilidade normativa.

O parâmetro da legalidade cria um seguimento de regras determinantes do sen-


tido das ações, inscritas no âmbito da vida social, por conectividade intersubjetiva e
externa. Assim, a delimitação da legalidade opera sobre comportamentos observáveis
entre as pessoas e a sociedade26.

Na realidade, devemos pensar na legalidade não como delimitação de regras, pos-


to que indicaria a própria expressão jurídica e tornar-se-ia verdadeira complexidade
face a abstração das mesmas. Pensemos a legalidade como descrição de ações e sua
valoração, consistindo o princípio da culpa como reprovabilidade ou na própria valo-
ração negativa. A maior intenção normativa da legalidade, portanto, segue pelo princí-
pio da tipicidade conectado à sua dimensão técnica de segurança jurídica27, impondo
ao legislador o “máximo esforço possível” à salvaguarda do conteúdo do tipo28.

Por outro lado, a estrutura do Estado Democrático de Direito traça a onerosidade


de algumas regras constitucionalmente codificadas. Uma delas dar-se-á pela seguran-
ça jurídica individual em que espelha no princípio da máxima taxatividade possível,
vinculando a imputação penal e o próprio julgador à limitação sancionatória da lei pe-
nal. A analogia e interpretação extensiva está vedada, como reserva absoluta29. Segue
aqui, como mandado de determinação hierarquizado no viés da finalidade garantísti-
ca irrenunciável30.

Por outro lado, a exigência material da norma penal, tenta afastar uma tipificação
irresponsável, impondo critérios de interpretação semântica de forma restrita. Na dú-
vida – referia o Direito penal clássico – sobre a criação de novos bens jurídicos a prote-
ger mediante a aplicação de preceito secundário, devem os legisladores se inclinarem
pela não criminalização de determinadas condutas31, havendo uma ruptura direta ou

26 Idem, p. 728/729.

27 SILVA SÁNCHEZ. Aproximación al derecho penal contemporâneo. p. 402.

28 VIVES ANTÓN. Op. cit. p. 731.

29 PALAZZZO, Francesco C.. Valores Constitucionais e Direito Penal. Trad. SANTOS, Gérson pereira dos: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1989, p. 49

30 Nesse contexto, exclama Ferrajoli que “compreende-se, por outro lado, como princípio da legalidade estrita implica todas as demais garantias – da materialidade
da ação ao juízo contraditório – como outras tantas condições de verificabilidade e de verificação e constitui por isso também o pressuposto da estrita
jurisdicionalidade do sistema”. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e
Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 76/77. SILVA SÁNCHEZ. Op.cit, p. 408/409.

31 In dubio pro libertate pela não intervenção, na expressão de TORIO LOPEZ, Angel. Los delitos del peligro hipotético. (Contribución al estudio diferencial de los delitos
de peligro abstracto. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. XXXIV, ns. 2-3, 1981, p. 825.

96
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

indiretamente do preceito primário, o que é imposto, também, para os operadores do


direito, no momento da interpretação da norma no caso concreto.

Nesta linha de análise, temos de seguir o raciocínio das finalidades do Direito e


do Processo Penal, justamente para alcançar suas legitimidades sempre partindo da
aferição constitucional. Partimos, portanto, (não há forma de se afastar desse foco) do
Direito Constitucional Penal em que as normas (“maiores”) constitucionais direcionam
a elaboração, interpretação e aplicação das normas (“menores”) penais.

Por isso, a finalidade do Direito Penal endossa sua legitimidade. Os valores prote-
gidos por essa ciência devem ser afastados daqueles individuais, religiosos ou por con-
vicções morais32, como uma exclusiva “ordem de protecção de bens jurídicos, não de
preservação da moral ou de uma qualquer moral”33. Seguem naqueles em que objetiva
uma sociedade democraticamente organizada, com proteção da convivência humana
em que são elencadas as maiores necessidades de proteção à danos sociais. Assim, a
análise sociológica da ofensa (ou do bem protegido) toma corpo, mas para afetação
penal precisa de mais um ingrediente. É justamente na excepcionalidade desta ciência
em que sua legitimidade constitucional segue caminho. Portanto, não podemos afas-
tar a ofensividade como categoria-chave34, bem como a necessidade de intervenção e
sanção como princípios constitucionais basilares à aplicação do Direito Penal.

Podemos, nesta linha, afirmar que a função básica do Direito Penal indicativa da
sua legitimidade, será de limitação da intervenção punitiva do Estado para com seus
indivíduos, como apresentação de intervenção excepcional de tutela de bens jurídicos,
baseando-se, na sua essencialidade, em critérios de subsidiariedade35 e eficácia, bem
como em adequação basilar ao princípio da carência da tutela penal, o que permane-
cerá incólume diante da modernização do modelo penal.

32 ENGISCH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Trad. J. Baptista Machado. 10ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 79.

33 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Uma proposta alternativa ao discurso da criminalização/descriminalização das drogas. Scientia Iuridica – Revista de Direito Comparado
Português e Brasileiro T. XLIII, n. 250/252 – jul/dez. Braga: Universidade do Minho, 1994, pág. 198. Como tempo presente da secularização em que, por uma
vertente positiva, o direito penal está preordenado para a proteção de bens jurídicos. MIRANDA RODRIGUES, Anabela. A determinação da medida da pena
privativa de liberdade. Coimbra: Coimbra. 1995, pág. 237.

34 D’AVILA, Fabio Roberto. Liberdade e segurança em Direito Penal. O problema da expansão da intervenção penal. In Revista de Estudos Criminais. n. 41. ITEC, abr/
jun. 2011, p. 100.

35 A subsidiariedade torna-se ilustrativa quando outras formas de controle social não mais demonstrar adequada e suficientes para a tutela de alguns (elencados
legislativamente) bens jurídicos.

97
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

1.2
A legalidade como princípio cognitivo da significação normativa

Para além da estrita legalidade decorrente deste princípio, denota-se necessariamente


presente a estrita jurisdicionalidade, para que no momento da criminalização secun-
dária (jurisdicionalização da imputação) seja garantindo a verificação e a falseabilidade
dos tipos penais concretos. Assim, será na discussão processual toda a formação do
convencimento judicial da comprovação da prática da conduta, não somente em refe-
rência a fatos, mas sim da certeza probatória de que se cometera um delito apenas se
“o fato comprovado ou provado corresponder ao que estiver taxativamente denotado
na lei como delito”.36

Há casos em que a precisa e concreta verificação jurídica do tipo denota-se de fá-


cil análise, até porque a subsunção ou verificação jurídica é produzida por definição e
conexa a uma relação causal de resultado naturalístico.

Porém, a observância do Direito penal na aplicação moderna, mescla com essa


dinâmica, alterando, de certa forma, a certeza da legalidade37 no viés jurisdicional. As-
sim, sofre o princípio da legalidade, a partir do desenvolvimento de um Direito penal
do perigo (risco), em seu mandato de certeza, com redução do rigor na descrição, com
necessidade de definição posterior38 ou mesmo mera identificação da conduta pela
simples ofensa normativa, com condutas não claramente lesivas39.

A interpretação de uma norma segue na busca do seu sentido. Para onde se di-
recionou o legislador? O que ele pretendeu(ia)? Há possibilidade da sua constatação
prática? A dialética processual alcança a discussão da ofensividade do injusto?

A generalidade da recepção das leis <penais> indica sempre uma necessária alu-
são à hermenêutica ao caso concreto, justamente porque a clareza do texto legal po-
derá ficar turva quando diante de um caso judicializado.

No entanto, o pragmatismo legislativo, diante da indicação sintática dos textos


legais, pode sofrer variações semânticas na análise cognitiva do julgador. A raciona-

36 FERRAJOLI. Op.cit., p. 77.

37 MENDONZA BUERGO, Blanca. Exigencias de la moderna política criminal y princípios limitadores del Derecho penal. In Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales.
LII, enero-diciembre, 1999, p. 305.

38 MAIER. Op.cit. p. 111.

39 SILVA SÁNCHEZ. Aproximación al derecho penal contemporâneo, p. 406. GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegómenos para la lucha por la modernización y expansión del
Derecho penal y para la crítica del discurso de resistencia. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003, p. 137/138

98
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

lidade no momento da interpretação da lei pode (como melhor expressão, deveria)


gerar algumas variações no contexto legal e na verificabilidade prática (probatória) do
conteúdo do tipo ou do próprio contexto material do injusto, sem, por óbvio, retirar a
coerência normativa imposta pelo princípio da taxatividade.

A expressão garantística do princípio da legalidade pretende afastar essas dicoto-


mias, mas seu grau de abrangência, em muitos casos, não permite este dique herme-
nêutico, até porque o dinamismo social molda a forma de aplicação das leis penais e
seu viés probatório.

Não mais podemos pensar em conteúdo material do crime apenas na estrutura


típica formal prevista em lei. Por si só, não basta para que estejamos diante da figura
delitiva. Precisamos de muito mais do que o mero positivismo jurídico. Assim, a estru-
tura conceitual material do crime reflete-se, automaticamente, na legitimidade mate-
rial do direito penal40.

Deve-se pensar que o tipo penal, na sua divisão, está arraigada de valoração in-
dividual, não sendo crível a mera subsunção (de conceitos de fatos a conceitos jurí-
dicos41) da conduta com a norma eleita42, mesmo que, a partir do direito positivo, os
tipos de delito descrevem ações puníveis quando da contrariedade a quaisquer nor-
mas de conduta43. Precisamos, no entanto, de mais esforço para a correspondência da
conduta em fatores de lesividade a dano ou ao perigo. O tipo penal não poderá figurar
como instituto neutro e afastado de valorações. A realidade social e cultural impõe a
adequação da sua interpretação condigna com sua estrutura. Não podemos aceitar
uma mera correspondência entre conduta e tipo. Há necessidade de contextualização
entre o que se faz (a conduta em si) e a reprovação socialmente intolerável.

Por outro lado, a questão mais relevante e crítica, diante das novas frentes de aná-
lise penal, diz respeito a como se deve ilustrar a proteção penal a determinados bem
jurídico. Na realidade, a sensibilidade do problema está na relação de valoração da
legitimidade das normas penais, não está apenas na direção a um bem jurídico prote-

40 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Penal. Parte Geral. Tomo I. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, pág. 106.

41 ENGISCH. Op.cit, p. 95.

42 Não obstante a expressão de crimes dolosos de mera atividade, como não possui resultado exterior imputável ao agente, a tarefa de atribuição do tipo
objetivo se esgota na subsunção da conduta pelo tipo incriminador.

43 MENDES, Paulo de Sousa e MIRANDA, António João. A causalidade como critério heurístico – uma demonstração através do exemplo da manipulação de cotações
no mercado financeiro. In Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano 15, no 2. Abril-jun. 2005, pág. 174.

99
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

gido. O decisivo é a relação que guarnece as condutas abarcadas pelo tipo penal e os
bens dignos de proteção penal44.

Ademais, interpretação e subjetividade andam sempre em convergência. Inter-


pretar é extrair os conceitos e pré-conceitos daquilo que se faz conhecer. A referência
gnosiológica sempre seguirá na aproximação subjetiva da interpretação. Por isso, to-
das as leis (penais) para além daqueles que a elas se dirigem (os indivíduos), caberá ao
interpretador (acusador, defensor, juiz e a própria sociedade) a adequação interpre-
tativa da época. A subjetividade social também faz coro na linha hermenêutica frente
ao contexto histórico, com pluralidade de valores e racionalidade do sistema jurídico.
Disso, efetivamente, não podemos fugir. Porém, até que ponto as agruras e receios
sociais influenciam na eleição, aplicação e expansão do Direito Penal? Essa indagação
gera difíceis respostas e que não nos esquivaremos, mas tentaremos diagnosticar a
abstração desse ramo jurídico pela análise prática. Mas antes, devemos focar como se
trafega o alicerce de legitimação do Direito penal.

1.3
Ainda há defesa material à tutela penal do bem jurídico?

Com objetivo básico de afastamento da incriminação por reprovação moral, necessário


se faz a identificação de definições substanciais do delito. O porquê da punição de de-
terminada conduta e a prova desse porquê. Para tanto, deverão servir critérios externos
de valoração das normas jurídico-penais, por isso, tanto a norma, como, principalmente
a culpa, não poderão ser interpretadas como relação de causalidade pelo capricho do
destino. Tem que ser identificadas com o fim e um porquê do aparato penal.

Para além das descrições formais (na vertente da mera formalidade do princípio
da legalidade, que denota-se inafastável pela segurança normativa e subjetiva), o de-
lito descrito deve demonstrar a sua afetação social.

São, portanto, limites extrínsecos de aferição ético-social que a lei penal delimita
o que se deve juridicamente punir. Essa denota-se uma das funções primordiais do
legislador penal. Mas essa função (legalidade formal) não basta, a partir do “princípio

44 VON HIRSCH, Andrew e WOHLERS, Wolfgang. Teoría del bien jurídico y estructura del delito. Sobre los criterios de una imputación justa. In La teoría del bien jurídico.
? Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Coord. Roland Hefendehl. Trad. Rafel Alcácer, María Martín e Íñigo Orrtiz
de Urbina. Madrid. Barcelona: Marcial Pons, 2007, pág. 287.

100
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

axiológico da “separação entre direito e moral45”, infirma, por si só, a tolerância jurídica
de toda atitude ou conduta não lesiva a terceiros.

O ponto de partida para identificação de preceitos sancionatórios penais dar-se-á pe-


los princípios constitucionais da legalidade, ofensividade46 e culpa. Assim, a identificação
de eventuais bens jurídicos a serem protegidos, derivam da Constituição, a partir de um
estado de Direito em que reconhece a liberdade do indivíduo como proteção máxima e a
ideia de Direito penal como tutela subsidiária de bens jurídicos47 como relação interpesso-
al, ainda que haja um foco coletivo, com referência a todas pessoas envolvidas48.

É sabido, no entanto, que atualmente a defesa da teoria do bem jurídico, sofre


turbulência na aferição de uma norma jurídica49, até porque a idemonstrabilidade50
desta teoria indica a possibilidade de críticas e espaçamentos empíricos. Esse, ao nos-
so modo de ver, é a ruptura paradigmática – e o início de uma crise – do Direito penal51.

Por outro lado, torna-se imprescindível a captação e processamento das informa-


ções do mundo exterior com a linguagem própria da ciência enfrentada. E, se estamos
diante do estudo do Direito penal, a linguagem deverá ser jurídico-penal. Seguimos,
portanto, na transformação do entorno do sistema jurídico em um indissociável <mun-
do dos bens jurídicos>.52

No entanto, para que efetivamente haja real legitimidade desta ciência, a identi-
ficação de bem jurídico (não apenas como sentido político-criminal, mas no sentido
dogmático53) não poderá figurar-se formalmente, cria-se uma dívida social a partir da

45 Até porque, deve-se comprovar o objetivo da norma, com clareza de ideais para saber o grau de legitimidade da mesma. Se estamos na expressão de
Montesquieu como “todo ato de autoridade de um homem em relação a outro que não derive da absoluta necessidade é tirânico”, ou se o porque (e mesmo
o como provar) denota-se democrático. FERRAJOLI. Op.cit, p. 372.

46 Nesta linha de raciocínio, que será desenvolvido e criticado, impõe-se na prática jurídica a necessidade de demonstração do ônus da lesividade. Mesmo que as
“palavras como ‘lesão’, ‘dano’ e ‘bem jurídico’ sejam claramente valorativas. Dizer que um determinado objeto ou interesse é um ‘bem jurídico’ e que a lesão
é uma ‘dano’ é o mesmo que formular um juízo de valor que avaliza a justificação da tutela, recorrendo a instrumento extremo: a pena.” Idem, p. 373/374.

47 DIAS. Temas Básicos da Doutrina Penal. Sobre os fundamentos da doutrina penal sobre a doutrina geral do crime, p. 157.

48 JAKOBS. Op.cit. pp. 53/73.

49 AMELUNG, Knut. El concepto <bien jurídico> en la teoría de la protección penal de bienes jurídicos. In La teoría del bien jurídico. ? Fundamento de legitimación
del Derecho penal o juego de abalorios dogmático? Coord. Roland Hefendehl. Trad. Rafel Alcácer, María Martín e Íñigo Orrtiz de Urbina. Madrid. Barcelona:
Marcial Pons, 2007, pág. 229.

50 De fato, a “corporalidad” não é característica constitutiva do bem jurídico. GARCIA MARTÍN, Luis. La polémica en torno a la legitimidade del Derecho Penal moderno.
México: Editorial Ubijus, 2011, p. 82.

51 Seguindo como primeira característica visível e repetidamente aludida característica do Direito penal moderno (do risco). MENDONZA BUERGO. Exigencias de
la moderna política criminal y princípios limitadores del Derecho penal., p. 293.

52 AMELUNG. Op.cit. p. 231.

53 As referências são extraídas de Mir Puig, complementando que “ambos sentidos se aproximarão ou se distanciarão segundo o grau de correspondência que
exista entre os bens protegidos pelo Direito vigente e o que se creia que merecem sê-lo.” MIR PUIG, Santiago. Bases Constitucionales del Derecho Penal. Madrid:
Iustel, 2011, p. 111/112.

101
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

identificação material de bem jurídico54. Isso significa que a identificação de bem jurí-
dico para a legitimação do direito penal não poderá ser consubstanciado como mero
discurso, justamente para não se aproximar do descrédito face a ausência de êxito em
“esclarecer o conceito de bem jurídico, nem sequer de modo aproximado55”. Na rea-
lidade, a defesa da proteção de bens jurídicos, por análise à sua origem, figura como
princípio negativo limitador do direito penal56. E sua importância está na solidez de que
a eleição de uma conduta como delitiva não apenas figura como mera argumentação
dogmática, e sim como campo de redução do arbítrio ou subjetividade do legislador57.

Por outro lado, não se pode afastar a influência de alterações, dinâmica e contex-
tos sociais à interferência dessa defesa, sob pena de minimização a mero discurso re-
tórico. O Direito Penal tem que estar atento a todas essas influências, principalmente
em relação a novos ataques à harmonia social, ainda com acento agudo com as refe-
rências à sociedade de risco e aos novos “perigos sociais” a partir de um incremento
às transformações tecnológicas e a globalização.

Porém, não podemos defender o abandono da teoria do bem jurídico nesse novo para-
digma de leitura do Direito Penal58. Na realidade, o foco deve ser diametralmente oposto, na
medida em que a legitimidade da norma penal mergulhará na conceituação e identificação
de bem jurídico para a intromissão na liberdade humana59. Ainda que haja sensíveis altera-
ções na identificação de um novo modelo de bem jurídico60, esses devem continuar como

54 Um dos pontos de maior polêmica e críticas diz respeito ao que é bem jurídico conceitual e materialmente e como se classificam, ao ponto de Stratenwert
afirmar não haver, até hoje, logrado esclarecer, nem de modo aproximado, seu conceito. STRATENWERTH. Op.cit p. 55. Wolfgang Frisch afirma ser o conceito de
bem jurídico altamente relativo e, quando se intenta precisá-lo recorre a “as condições de existência e desenvolvimento dos indivíduos. Assim, pela amplitude
e vagueza do conceito, no balanço final indica sua limitação prática” FRISCH. Op.cit p.. 312. Roxin indica como concepção de tipo normativo, dentro do marco
das finalidades constitucionais, abertas, no entanto, às mudanças sociais e aos progressos do conhecimento científico. ROXIN. Derecho Penal. p. 58/59.
Verifica-se ainda bem jurídico como condições necessárias para a vida social no marco da Lei Fundamental e aos cidadãos a necessária realização da liberdade
protegida pelos direitos fundamentais. STERNBERG-LIEBEN. Op.cit, p. 107. Kindhäuser defini bem jurídico “como aquelas características das pessoas, coisas
ou instituições que servem ao livre desenvolvimento do indivíduo em um Estado democrático e social de Direito.” KINDHÄUSER, Urs. Estructura y legitimación
de los delitos de peligro del Derecho penal. Trad. Nuria Pastor Muñoz. In www.indret.com, acesso em 10 de julho de 2012, p. 07. Poderíamos seguir nesta linha
como autônomo tema de investigação.

55 STRATENWERTH. Op.cit, p. 55. (negrito no original). Por outro lado, “o caráter <vazio> deste conceito, a absoluta indeterminação do juízo de valor que cria o
bem, é ao mesmo tempo a razão de sua riqueza (...) Graças a esta característica, o dogma do bem jurídico se converte em ponto de conexão da política com
a dogmática, e o conceito de bem jurídico em um conceito complementário de positividade do Direito que translada o dinamismo do político a estabilidade
do sistema jurídico”. AMELUNG. Op.cit, p. 232.

56 Na esteira da advertência de Hassemer, “ este princípio não tem contido nunca a exigência de criminalizar toda conduta que lesiona um bem jurídico, senão
que, pelo contrário, tem prescrito extrair da lei, toda cominação penal que não se pode referir a uma lesão ou posta em perigo um bem jurídico.” HASSEMER,
Winfried. ?Puede haber delitos que no afecten a un bien jurídico penal? In La teoría del bien jurídico. ? Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego
de abalorios dogmático? Coord. Roland hefendehl. Trad. Rafel Alcácer, María Martín e Íñigo Orrtiz de Urbina. Madrid. Barcelona: Marcial Pons, 2007, pág.
98. Portanto, refere Hassemer em outra oportunidade que, “o conceito de bem jurídico se transforma assim sistematicamente em um critério negativo que
impede a criminalização ilegítima: ali onde não tem uma lesão de um bem jurídico não deve haver delito.” HASSEMER. Viejo y nuevo Derecho penal., p. 45. Da
mesma forma, FIANDACA, Giovanni e MUSCO, Enzo. Diritto Penale. Parte Generale. Bologna: Zanichelli editore, 2001, p. 15.

57 CUNHA, Maria da Conceição Ferreira da. <Constituição e Crime> Uma perspectiva da criminalização e da descriminalização. Porto: Universidade Católica Portuguesa, 1995, p. 111.

58 Por isso, ousando discordar de Stratenwerth, quando afirma que “é insustentável o dogma de que são ilegítimas as leis penais que não protegem nenhum
bem jurídico determinado.” STRATENWERTH. Op.cit, p. 56. De fato, esse é um ponto interessante de discussão em saber se a defesa do bem jurídico está
ultrapassada pela ampla discricionariedade legislativa e do anseio da sociedade moderna.

59 HASSEMER. ?Puede haber delitos que no afecten a un bien jurídico penal?, p. 103.

60 Nesta linha, seguem ferrenhas críticas à “Escola de Frankfurt” face ao predicado conservadorismo pela defesa da necessidade de permanência do direito
penal clássico de tutela do bem jurídico individual, servindo outros ramos para a proteção de bens não individualizados. GARCIA MARTÍN. Op.cit, p. 70/71.

102
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

substrato democrático61 à limitação da intervenção penal, com sua a proibição do excesso62


característica da defesa dos direitos fundamentais apenas com nova roupagem.

O certo é que os princípios da subsidiariedade e fragmentariedade do direito penal


deverão estar presentes na identificação clássica e moderna da tutela (dignidade63) penal,
justamente para que não haja vulgarização do sistema criminal em seu aspecto material.

Mas a eleição de certo fator de identificação da criminalidade, frente às ideias de


uma sociedade vítima de perigos e riscos, começa (aliás essa iniciativa já se mostra an-
tiga) a desmaterializar a caracterização originária da teoria do bem jurídico. O envol-
vimento não mais se dirige ao indivíduo, com demonstrações de lesões, criando uma
abstrativização do conteúdo material dos tipos. A proteção, para além das relações
individuais, dirigi-se à estrutura política e econômica do Estado, não como ratifica-
ção ou edificação de bens jurídicos que o Direito penal tutelaria, mas sim a proteção
de instituições frente às teorias funcionais de organização social64 ou de instrumento
de administração pública, de promoção das políticas contingentes de cada governo65.
Identifica-se, portanto, um movimento de ampliação do referencial bem jurídico, crian-
do uma autonomia coletiva a esse instituto66. Porém, a mudança não se dá apenas na
eleição de criminalização de determinadas condutas, mas sim a forma de sua constru-
ção e o reflexo na “jurisdificação” das mesmas. Comecemos pelo primeiro ponto.

[2]
OS NOVOS CRITÉRIOS DE

DELIMITAÇÃO NORMATIVA

As questões trans-individuais eivadas de complexidade social já estão inseridas nas


discussões jurídico-penais, ainda que não seja fundada, efetivamente, na sociedade

61 COSTA ANDRADE. Op.cit, p. 178.

62 HASSEMER ?Puede haber delitos que no afecten a un bien jurídico penal?, 2007, p. 98/99. TERRADILLOS BASOCO, Juan María. Lesividad y proporcionalidad como
principios limitadores del poder punitivo. México: Editorial Ubijus, 2011, p. 29.

63 COSTA ANDRADE. Op.cit, p . 184.

64 GRACIA MARTÍN. Prolegómenos para la lucha por la modernización y expansión del Derecho penal y para la crítica del discurso de resistencia. , p. 133.

65 MATTA. Op.cit, p. 523.

66 Apenas haverá legitimidade da tutela coletiva do bem jurídico quando estiver orientada na proteção da liberdade (autonomia) e interesses dos indivíduos. A
partir do valor à dignidade humana estrutura-se um Estado Democrático de Direito o que consolida, por isso, ainda que estejamos diante de um bem jurídico
coletivo, o referencial a seguir o ser humano. Quando há tutela do meio ambiente, não se defende os fatores ambientais como objetos autônomos, será sim
concebido como modo antropocêntrico. A proteção dar-se-á aos elementos indispensáveis, direta ou indiretamente, à vida e a saúde dos seres humanos
atuais e futuros.

103
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

de risco uma mudança de paradigma da dogmática penal67. Na permanente defesa do


parâmetro de legitimação da intervenção penal a partir do bem jurídico constitucional-
mente relevante, deve-se cuidar a identificação de bens coletivos relevantes (proteção
penal do meio ambiente, a ordem econômica, a saúde pública, segurança social, sem
referências individuais68). A extrema abstração de interesses difusos cria reais dificul-
dades de identificação ou caracterização como bem jurídico penal de função limitadora
da criminalização, levando a idealização do objeto de proteção do direito penal como
normas de funções69, expectativas de comportamentos ou proteção de segurança70
com a finalidade de prevenção de distúrbios sociais, foca o discurso mais extremo do
Direito penal do perigo.

Por certo, alterações socio-culturais estrutura e caracteriza a marca indelével do


Direito penal clássico e do moderno. Diante de uma leitura sobre as novas incrimina-
ções, ou mesmo sobre as suas interpretações, seguimos na dominância do paradigma
preventivista71 do Direito Penal na tentativa de proteção do mundo servindo, atual-
mente, como “arma multiuso72” de asseguramento social para a prevenção de distúr-
bios individuais e sociais. A afirmativa anterior está destituída de aplausos ou críticas.
O que temos, efetivamente, é a constatação de um panorama preventivo73, ligado a
um modelo de referência à precaução face às incertezas74 (científicas e sociais), com
recuperação de algumas antecipações de tutela penal, seguindo o “Direito penal como
representante da segurança cidadã”.75 E se, na concepção material de bem jurídico
não figuraria nenhuma realidade empírica, razoavelmente perceptível e suscetível de
referência a interesses concretos individuais, há certa desmaterialização ou espiritua-
lização do conceito clássico de bem jurídico.76

67 Nesta mesma linha de reflexão segue MATTA. Op.cit, p. 539.

68 A perspectiva do Estado social legitima a importância de bens jurídicos coletivos. GRARCIA MARTÍN. La polémica en torno a la legitimidade del Derecho Penal
moderno, p. 87.

69 Idem, p. 32.

70 BOTIINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 184.

71 HASSEMER, Winfried. Seguridad por intermedio del Derecho penal. In ?Tiene un futuro el Derecho penal? Org. Julio B. J. Maier e Gabriela E. Córdoba. Buenos
Aires: Ad-Hoc, 2009, pág. 14/15.

72 Expressão de Kindhäuser. Em KINDHÄUSER, Urs. Estructura y legitimación de los delitos de peligro del Derecho penal. Trad. Nuria Pastor Muñoz. In www.indret.
com, acesso em 10 de julho de 2012, p. 04. Esta afirmativa não se mostra unânime como ponto de certeza. Assim, Romeo Casabona reconhece que o Direito
penal não seja, em muitos pontos, o melhor instrumento social disponível para fazer frente às agruras da sociedade de risco. Cf. ROMEO CASABONA, Carlos
María. Conocimiento científico y causalidad en el Derecho Penal. In La adaptación del Derecho Penal al desarrollo social y tecnológico. Coord. Emilio José Armaza
Armaza. Granada: Comares, 2010, p. 122.

73 Nesta linha, Hassemer indica que a “prevenção , o qual era um objetivo colateral do Direito Penal clássico, se tem transformado em um paradigma dominante”.
HASSEMER, Winfried. Rasgos y crisis del Derecho Penal moderno. In Anuario de derecho Penal y Ciencias Penales. Ano XLV, fasc. I, 1992, p. 239.

74 ROMEO CASABONA. Op.cit, p. 92.

75 HASSEMER. Seguridad por intermedio del Derecho penal., p. 15. Porém, oportuna as indagações de Hassemer sobre essas ideias: “Foi a opção enérgica do Direito penal
e da teoria jurídico-penal em favor da prevenção, em favor da vinculação do Direito penal a produzir ou, ao menos, a ter como objetivo consequências saudáveis
para o autor e para a sociedade? Foi esta mudança decidida desde o puramente normativo até o empírico? Foi tudo isso realmente uma boa ideia?” pág. 15.

76 GRACIA MARTÍN. Prolegómenos para la lucha por la modernización y expansión del Derecho penal y para la crítica del discurso de resistencia. , p. 131.

104
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

Independentemente de eventual crítica ao atual Direito penal com características


preventivas (Direito penal de defesa contra os perigos, na expressão de Hassemer77), o
que se constata são algumas modernas tendências de previsão de perigos no Direito pe-
nal78, com a conversão da proteção de bens jurídicos como critério positivo de decisões
criminalizantes, na transformação de um mandado de penalização, não mais sintetizado
pela proibição de excesso, mas sim como “proibição de defeitos”79. Segue no aumento
do controle social pelo Direito penal; agravação das sanções; cada vez mais a utilização
como instrumento técnico-jurídico de tipificação de crimes de perigo abstrato80 em que
se controlam condutas e não objetiva a reprimienda de resultados, com eleição de bens
jurídicos universais; a formação de um discurso político-criminal de fomento a perigos e
riscos modernos, com tráfego no princípio da precaução81, criando uma relação de ten-
são entre a liberdade individual e a segurança social82; estruturas preventivas processu-
ais penais com maior redução de vivificação de garantias individuais83.

Na realidade, a partir do incremento social do perigo (para além de uma sociedade


de risco84), ditando a sua organização e estruturando, inclusive, modelos de produção
e distribuição de riquezas, se incorpora como fator de observância ao Direito penal.
Assim, não podemos afastar a consequência atual do risco como elemento central da
conduta típica, e não só nos crimes de dano, mas em todas espécies criminais, face a
presença de “autênticos bens jurídicos sociais, trans-individuais, trans-pessoais, cole-
tivos, ou como quer que prefiramos exprimir-nos a propósito.85”

O que se constata, portanto, é que a crítica da “Escola de Frankfurt”86 tentando


resistir ao modelo de “modernização” do Direito penal perde total força quando o ar-
gumento dar-se-á pelo medo dos riscos inerentes à sociedade moderna e que o Direi-

77 HASSEMER. Seguridad por intermedio del Derecho penal., p. 26.

78 Reconhecidamente por Hassemer como meras “ilustrações”. “Dentro de la envoltura se esconde el derecho de defensa contra peligros. Idem, p. 31.

79 HASSEMER. Viejo y nuevo Derecho penal., p. 47/48.

80 GRARCIA MARTÍN. La polémica en torno a la legitimidade del Derecho Penal moderno, p. 18.

81 ROMEO CASABONA. Op.cit, p. 119.

82 HASSEMER. Seguridad por intermedio del Derecho penal., p. 26.

83 Basta pensamos em inversão do onus da prova; presunção de culpa; ingerência prisional, acordos processuais com reconhecimento da culpa. Mas, são
importantes questões que ficarão para outro momento oportuno.

84 “Basta notar a facilidade com que o <cidadão comum> assumiu – mesmo antes dos acontecimentos do 11 de setembro de 2001 e da subsequente omnipresença
do discurso <riscológico> – que vivemos hoje em dia ma <civilização do risco>, mesmo se essa hipótese é altamente discutível em termos empíricos e teórico,
ao mesmo tempo que induz importantes efeitos perversos em termos sociais e políticos.” GRANJO, Paulo. Quando o conceito de <risco> se torna perigoso. In
Análise Social. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. n. 181. Vol. XLI, 4º Trim. 2006, p. 1178.

85 DIAS. Temas Básicos da Doutrina Penal., p. 175.

86 GRARCIA MARTÍN. La polémica en torno a la legitimidade del Derecho Penal moderno. p. 27.

105
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

to penal não poderá ficar alheio a essa discussão87. O fato é que a fundamentação da
necessidade e legitimidade deste novo paradigma denotam-se presentes88, não com a
relação de bens jurídicos socialmente edificados, mas sim normativamente identifica-
dos com a motriz da proteção efetiva de bens comunitários89, ditando a legitimidade
da autonomia dos crimes de perigo através do legislador democrático, com ferrenhas
críticas do conteúdo do injusto pelo paradigma da agressão90.

A análise dos novos critérios de delimitação normativa, pela técnica de tipificação


de crimes de perigo91, ultrapassa a sua edificação, perpassando sobre a questão da
sua aplicação e a própria prova do seu caráter ilícito. Seguimos, a partir da legitimida-
de da nova modelagem penal, a tentativa de identificação da expansão desse sistema
através do comportamento desses “novos” (que não são tão novos assim) anseios na
dinâmica processual. Por isso, a importância da discussão da prova da ofensividade e
do próprio injusto em si.

[3]
A INFLUÊNCIA DA PROVA

NO TIPO DE ILÍCITO

Não obstante o princípio da legalidade refletir na proteção à intervenção penal, segue


na teoria da pena (e sua função) a legitimidade do Direito Penal92, justamente por sig-
nificar, como regra, a ingerência mais drástica imaginável do Estado frente aos direitos
de personalidade do indivíduo93, não obstante, como antecipação da conclusão, esse
modelo vem sofrendo radicais alterações, como já exposto.

87 Por isso Schünemann faz ferrenhas críticas a essa Escola, indicando que suas ideias geraria uma verdadeira perversão do ordenamento de bens jurídicos,
pois, não obstante a defesa da teoria monista-individualista não reconhece o indivíduo frente as gerações futuras. SCHÜNEMANN, Bernd. Consideraciones
criticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico penal alemana. Trad. Manuel Cancio Meliá. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. 1996, fasc. 1,
p. 194.

88 DIAS. Temas Básicos da Doutrina Penal., p. 177.

89 Idem, p. 177.

90 KINDHÄUSER. Op.cit., pp. 15/16.

91 MENDONZA BUERGO. Exigencias de la moderna política criminal y princípios limitadores del Derecho penal. p. 294.

92 Legitimidade como merecimento da pena. KUHLEN, Lothar. Es posible limitar el Derecho penal por médio de un concepto material de delito? Trad. Pablo Sánchez-
Ostiz Gutiérrez. In El sistema integral del Derecho penal. Delito, determinación de La pena y proceso penal. Jürgen Wolter/Georg Freund (org.). Madrid-
Barcelona: Marcial Pons, 2004, p. 132. Seguindo a pena de privação de liberdade como justificação da definição de um delito, face a possibilidade do não
reconhecimento da liberdade individual. Cf. FRISCH, Wolgang. Delito y sistema del delito.Trad. Ricardo Robles Planas. In El sistema integral del Derecho penal.
Delito, determinación de La pena y proceso penal. Jürgen Wolter/Georg Freund (org.). Madrid-Barcelona: Marcial Pons, 2004, p. 209.

93 STRATENWERTH. Op.cit, p. 61.

106
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

Porém, para além da questão acadêmica, o conceito e a referência de bem jurídi-


co na argumentação dogmática jurídico-penal, segue como normas de condutas pro-
tegidas pelo juízo de valor realizado primariamente pelo legislador, na indicação de
que “certos estados de coisas <devem ser>, isto é, devem ser conservados.”94

Portanto, a dificuldade da formação do crime e sua consequência sancionatória


a partir da subsidiariedade penal e, por outro lado, a discricionariedade legislativa95,
leva a análise de outro importante princípio neste foco, o da proporcionalidade e a
proibição do excesso punitivo96. As margens da atuação legislativa, de fato, são mui-
to mais amplas do que sua vinculação em decorrência do mandato democrático a ele
investido por um Estado de Direito. A configuração da proteção penal pela ampla dis-
cricionariedade legislativa defendida por Stratenwerth97, far-se-á pela ponderação do
ônus entre o bem comum (eleito socialmente) e a delimitação de liberdades98 e di-
reitos fundamentais dos cidadãos99. Por isso, devemos (ou deveríamos) afirmar uma
ausência de amplos poderes constitucionais de penalização, até porque lesividade so-
cial, proporcionalidade, subsidiariedade e tolerância são os princípios mais importan-
tes que devem guiar o legislador penal100, figurativos a partir da quebra de paradigma
identificado pela teoria do dano social pela simples concepção do legislador com ideias
iluministas em convergência com o contrato social, como sujeito autorizado a eleger
qualquer valoração imaginável como conduta danosa é afastada pela objetividade da
teoria do bem jurídico que, de forma expressa, vinculou o bem jurídico a necessidade
de valoração pelo próprio legislador101.

Nesta linha, indicativa da racionalidade e proporcionalidade das medidas norma-


tivas e da consequência sancionatória, gera ao legislador, em primeiro momento, um
duplo ônus probatório: o primeiro será a prova da danosidade social do comporta-
mento102 e, em segundo plano, a prova da indispensabilidade de uma tutela penal103.

94 AMELUNG. Op.cit, p. 228.

95 Na expressão de Maurach, “ a construção do tipo de delito é função própria do legislador, que se bem deve ter em conta de lege ferenda determinados princípios
de experiência, necessidades político-criminais e limites impostos pela constituição, e por outra maneira livre na configuração dos tipos.” MAURACH, Reinhart.
Tratado de Derecho Penal. trad. Juan Cordoba Roda. Barcelona: Ediciones Ariel, 1962, pág. 273.

96 HASSEMER ?Puede haber delitos que no afecten a un bien jurídico penal?, p. 101.

97 STRATENWERTH. Op.cit., p. 60.

98 ROXIN. Derecho Penal. Parte General., p. 64.

99 STERNBERG-LIEBEN. Op.cit, p. 106.

100 HASSEMER ?Puede haber delitos que no afecten a un bien jurídico penal?, p. 100.

101 AMELUNG. Op.cit, p. 233.

102 CADOPPI, Alberto e VENEZIANI, Paolo. Elementi di Diritto Penale. Parte Generale. Verona: CEDAM, 2003, p. 90.

103 MIRANDA RODRIGUES. Op.cit., p. 300/301.

107
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

Certo, no entanto, que a demonstração da danosidade social através da conduta,


em muitos exemplos, fugiria da constatação empírica plena por parte do legislador,
podendo tornar de difícil critério criminógeno do atuar individual, e no modelo atual,
coletivo. Por estas problemáticas práticas, advoga-se a ampliação de maior liberdade e
discricionariedade legislativa em confronto com o ônus de provar a lesão socialmente
provocada pela conduta a ser criminalizada, até porque pela ausência desse conheci-
mento empírico confiável, seria possível se pautar por suposições de ameaças ao bem
digno de proteção e sobre possíveis efeitos de uma lei penal104.

De certo é que, temos que identificar realmente, e não como substrato discursi-
vo, a prova da ofensa por determinada conduta típica e se há uma adequação ao con-
teúdo material de tipo. Em alguns casos, a teoria do bem jurídico de caráter pessoal,
ainda que de forma mediata na violação individual, não explica a previsão de alguns
preceitos sancionatórios ou, por outro lado, a ausência de provas concretas de deter-
minadas consequências delitivas cria uma margem de imperfeição das consequências
delitivas, com ênfase na responsabilidade de entes coletivos. Ou, temos que aceitar
que há casos em que a criação legislativa afirma a existência de lesão mediante a ar-
tificiosa criação de bens jurídicos trans-pessoais105, justamente porque necessita de
legitimação a criação de alguns crimes de perigo abstrato ou na ocorrência de bens
jurídicos já reconhecidos como produtos de um processo de valoração prévia, profun-
damente interiorizada e devidamente compartilhada pela coletividade, com desempe-
nho no papel decisivo de legitimidade106, intervindo “<critérios atípico de imputação>,
sem que haja violação ao princípio da legalidade e da culpa jurídico penal.107”

Se nossa dinâmica social motiva a alteração de paradigma do Direito penal, não


mais limitada à identificação de bens jurídicos pessoais (com exemplos clássicos de
crimes contra a pessoa, patrimônio, honra e etc.), para as questões mais delicadas e
de difícil contextualização, exige uma maior motivação de demonstração do legislador
penal, vinculando-o ao conceito material de delito108. É dizer, para os crimes de lesão
(na visão clássica), o ônus de demonstração da danosidade social converge com o pró-
prio crime (matar sempre foi matar e o bem jurídico vida é facilmente identificado).
Mas por outro lado, na criação de crime de perigo, que não há uma visibilidade fácil,

104 Nesta linha, STRATENWERTH. Op.cit, pág. 61.

105 STERNBERG-LIEBEN. Op.cit, p. 115.

106 FRISCH. Op.cit., p. 314/315.

107 DIAS. Temas Básicos da Doutrina Penal., p. 181.

108 GRACIA MARTÍN. La polémica en torno a la legitimidade del Derecho Penal moderno., p. 48.

108
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

há necessidade de maior motivação legislativa quanto à criminalização da conduta.


Portanto, a legitimação desta norma penal deverá gerar um maior ônus probatório le-
gislativo109, para que não resulte em criação de mero discurso político, de vulgaridade
criminógena. Assim, não podemos afastar um dever de verificação através de conhe-
cimentos correspondentes inclusive a partir das ciências empíricas110, mesmo que não
haja defesa da repristinação das relações causais-naturais no Direito penal.

Ressalta-se, que ainda estamos trabalhando com a teoria do bem jurídico rele-
vante para a defesa constitucional da legitimidade da norma, na medida em que se re-
lativizássemos esta teoria111, indicaria com maior facilidade a eleição de determinadas
normas penais, já pré-valoradas legislativamente.

A imprescindível busca à proporcionalidade legislativa (penal) se pauta na digni-


dade penal de um lado e nos fins pretendidos pelo legislador (o que tem a ver com a ra-
cionalidade instrumental) e a decisão sobre a adequação da intervenção e a finalidade
pretendida (aspectos da racionalidade valorativa)112.

Por outro lado, por mais que estejamos diante de uma necessária divisão dos pa-
péis, materialmente adequada, dos órgãos de soberania113, a intervenção penal, de
forma abstrata, deverá ser controlado como outro instrumento de força democrática.
Assim, diante de ausência de ofensividade prática da conduta, não restará alternativa
ao Tribunal Constitucional, através da função de controle, a declaração de insconsti-
tucionalidade material da norma punitiva114. A densidade desta função não é dirigida
pelo Tribunal Constitucional, mas da própria Constituição115. Assim, exige-se do legis-
lador penal que em todos os casos haja demonstração da existência de perigo à bens
jurídicos protegidos mediante prognoses operacionais116, mesmo que a incerteza so-
bre os efeitos da lei não impeça sua promulgação.

109 Nesta linha, STERNBERG-LIEBEN. Op.cit, p. 115.

110 VON HIRSCH/WOHLERS. Op.cit, p. 301.

111 FRISCH. Op.cit, p. 315/316.

112 STERNBERG-LIEBEN. Op.cit, p. 120.

113 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. A Concretização da Constituição pelo Legislador e pelo Tribunal Constitucional. In Nos dez anos da Constituição. Jorge Miranda
(org.). Lisboa. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986, p. 352.

114 No entanto, vivas são as críticas em que “tendo em conta a liberdade de configuração política do legislador e a impossibilidade de elaborar um marco valorativo que
ponha em relação os distintos elementos que compõem o conjunto irremediávelmente aberto de critérios de ponderação, a declaração de inconstitucionalidade
de uma lei por falta de proporcionalidade seguirá sendo uma possibilidade predominantemente teórica”. STERNBERG-LIEBEN. Op.cit, p. 124/125.

115 CANOTILHO. op.cit. p. 365.

116 STERNBERG-LIEBEN. Op.cit, p. 122.

109
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

Mas, para além da análise abstrata da legitimidade constitucional, o que se pauta


em discussão é a expansão do referido modelo penal do perigo nas discussões pro-
cessuais diuturnas, o que nos propomos a enfrentar.

[4]
A IDENTIFICAÇÃO JURISDICIONAL
DA ABSTRAÇÃO DO

DIREITO PENAL PREVENTIVO

Na leitura de qualquer manual de direito processual penal, afirma-se que esta ciên-
cia destina-se a instruir o julgador quanto aos fatos imputados na inicial acusatória,
tentando convencê-lo sobre eventual verdade fática (finalidade da prova no processo
penal117). Há uma verdadeira reconstituição dos fatos penalmente relevantes (o delito
em si) e, como o juiz conhece do direito (iuria novit curia) basta a afirmação e demons-
tração da relação fática para a subsunção da norma penal. Portanto, ampla é afirma-
tiva de que não há necessidade, diante da situação processual, da demonstração da
norma, tão somente dos fatos.

Nesse seguimento, o juiz sente (expressão da própria sentença) o que se passa,


elegendo versões argumentativas e probatórias. A eleição, a partir de certa intuição
emocional, denota-se inerente na própria expressão na valoração da prova “e na pró-
pria axiologia, incluindo a carga ideológica, que faz da norma (penal ou processual pe-
nal) aplicável ao caso.118”

Mas não podemos nos contentar com tão pouco referencial. Se, pela simples afir-
mativa de que há a prática de um crime, todo esse contexto deve ser discutido na
dialética processual penal119. Não só a conduta e demonstração da autoria, mas tam-
bém todo o conteúdo material do crime, inclusive a sua própria ofensividade120.

117 BAJA DE QUIROGA, Jacobo López. Tratado de Derecho Procesal Penal. 4ª ed. Navarra: Thomson Reuters, 2010, pág. 819.

118 LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. I, 8ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, pág. 514.

119 KUHLEN. Op.cit. p. 149.

120 Defendemos a teoria de que toda a discussão processual penal forma um juízo constitucional sobre a estrutura do delito. Por isso, seu conteúdo material deve
ser concretamente posto em confronto com os princípios constitucionais legitimadores da norma incriminadora.

110
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

Deve-se pensar que a discussão processual penal não pode resumir apenas na pro-
va da autoria e participação ou da conduta para se chegar à ingênua concepção da sub-
sunção entre a norma e a decisão penal121. A complexidade sistêmica demanda mais.
Assim, a ocorrência do tipo de ilícito deve ser posta à prova, até porque, seguimos como
expressão da estrita legalidade como tipo de garantia122, com a estrita jurisdicionalidade
da prova da conduta e sua ofensividade como violação ao bem jurídico tutelado.

Se o sistema penal possui toda engrenagem de “solução” de problemas sociais,


mas a utiliza como instrumento de pena (de “castigo” no modelo clássico) ou mesmo
preventivo (no modelo atual), sempre com respaldo sancionatório, toda essa estrutu-
ra deve estar pautada por controle e racionalidade, pois ilumina-se do outro lado, a
liberdade individual.

Tem-se por um lado o princípio da precaução como modulador de tipos penais,


com ênfase aos novos delitos de perigosidade ou de ações perigosas123, deveria, atra-
vés de outro revés interpretativo, servir como modelo de resguardo sobre riscos da
ampla penalização (e já estamos no momento jurisdicional). Portanto, porque não uti-
lizá-lo também como forma de contenção de alguns excessos da própria sociedade de
risco, sem afastar a legitimação da criminalização de condutas?124

Deve(ria) a dialética processual servir, em um segundo momento, de instrumento


de legitimação das funções penais, sempre vinculado ao atuar dos sujeitos processu-
ais, da dinâmica probatória e da decisão penal. Nosso acento agudo, no entanto, está
na fase probatória quanto ao tipo de ilícito.

Para esclarecer as reflexões trazidas, não estamos discutindo a ilegitimidade cons-


titucional da criminalização das condutas perigosas125, justamente porque prevenir o
perigo para um bem jurídico penal possui a função de contribuir para evitar a lesão126.

121 HASSEMER, Winfried. Sistema jurídico e codificação: A vinculação do juiz à lei. In Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Trad.
Marcos Keel. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 282.

122 “Isto é o conjunto de elementos exigidos pelo art. 29º Da CRP e pelo art. 1, CP, que a lei tem de referir para que se cumpra o conteúdo essencial do princípio
nullum crimen, nulla poena sine lege.” DIAS. Direito Penal. Parte Geral., p. 284.

123 ROMEO CASABONA. Op.cit, p. 119.

124 Nesta linha, Palma expõe que “se o problema começa na lei, há também um espaço de legitimidade constitucionalmente garantido em que o princípio
da necessidade da intervenção penal impõe que no Processo Penal se minimizem os erros da hipertrofia criminal ou da própria iniquidade da seleção
social, questionando-se a liberdade de o legislador criar incriminações, e não, inversamente, orientando-se o problema constitucional no sentido de o juiz se
automatizar sem distinguir situações, transpondo totalmente para o arguido a responsabilidade colectiva, a responsabilidade dos conformismos sociais e, a
final, dos verdadeiros mecanismos detentores do poder social.” PALMA. O Problema Penal do Processo Penal, p. 51

125 Afastando, como afirmado na nota introdutória, da necessidade de cuidado e precaução nos crimes negligentes, já que o aporte de ideias seguiria em outro foco.

126 MIR PUIG. Op.cit, p. 118.

111
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

No entanto, se por um lado, nos delitos de resultado denota-se com maior facili-
dade a demonstração da relação causal, pela existência entre a ação e o resultado típi-
co naturalístico, com utilização das teorias da causalidade e da imputação objetiva127,
não podendo servir o princípio da precaução como dispensa destas referências quan-
to à ofensa ex post128. Portanto, a prova levará ao convencimento do julgador sobre a
conduta e resultado numa aferição fática, convergindo toda a estrutura normativa do
crime, a partir de uma questão ontológica ou pré-jurídica129. Nesta espécie de crime,
haverá necessidade de constatação e prova da ocorrência concreta da lesão, figurativa
do desvalor da conduta, o desvalor do resultado e a relação causal entre estes precei-
tos130. A aferição seguirá em dois níveis: a legislativa com a legitimidade democrática
da eleição da conduta criminalizada; a jurisdicional, com a comprovação da ofensa da
conduta e sua afetação ao bem jurídico violado.

Assim, se uma pessoa dispara contra a outra levando a morte, a prova quanto aos
fatos ocorrerá de forma mais fácil de identificação (a conduta através do disparo – a
lesão ((a própria ofensa)) e o resultado morte).

Nos crimes de ação perigosa essa questão não será tão sensível assim. Porquan-
to, a modernização do Direito penal não só fortalece teorias sobre a antecipação de
tutela com viés preventivo, criando diversos crimes com características abstratas, mas
reduz, significativamente, o segundo momento de dique de intervenção penal, duran-
te a demonstração do conteúdo material do crime. Por isso, tendencialmente para
esses crimes, prescinde a demonstração da causalidade, não havendo necessidade
de demonstração da perigosidade da conduta em sede judicial, já que a força motriz
da incriminação dá-se, exclusivamente, pelo legislador. Assim, não só está facilitada a
função do juiz131, mas também a própria dinâmica processual, resumindo apenas na
demonstração da conduta, com frágil possibilidade de resistência defensiva.

Há, na realidade, certa diferença de atuação jurisdicional quando diante da carac-


terização dos crimes, o que resulta em maior ou menor proximidade da instrumenta-
lização do Direito penal. Basta pensar que se estivermos diante de um crime de lesão,
ou até de perigo concreto, além de maior amplitude nos elementos constitutivos do

127 BAJA DE QUIROGA. Op.cit, p. 1397.

128 ROMEO CASABONA. Op.cit, p. 115.

129 ROMEO CASABONA, Carlos María. Conocimiento científico y causalidad en el Derecho Penal. In La adaptación del Derecho Penal al desarrollo social y tecnológico.
Coord. Emilio José Armaza Armaza. Granada: Comares, 2010, p. 118/119.

130 Não havendo, por outro lado, o desmerecimento da modalidade tentada, bem como as intrincadas discussões sobre os elementos subjetivos do injusto.

131 HASSEMER. Viejo y nuevo Derecho penal., p. 55.

112
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

crime, o julgador, em seu programa de decisão, poderá identificar e, eventualmente,


corrigir alguns desacertos interpretativos da norma, até porque, a defesa terá maior
grau de atuação na discussão probatória. Por outro lado, nos crimes de perigo abstra-
to, afasta-se essa possibilidade do juiz criminal132.

O fato é que não mais podemos ver uma lógica sistêmica apenas em um ramo da
ciência jurídica. O direito e o processo penal estão, indiscutivelmente, em uma íntima
relação funcional133. A racionalidade de atuação não se dissocia. Portanto, se o novo
olhar do paradigma penal denota-se preocupado com a antecipação da tutela na dire-
ção útil de segurança a estrutura processual deverá seguir essa linha134. Por isso, há na
realidade uma sensível redução de resistência processual para esses “novos” crimes,
a partir da abstrativização penal na jurisdicionalização da imputação, gerando, na ex-
pressão de Palma, “um lugar de instância moral (...) impondo-se uma culpa justificada
apenas pela lei”135, como passaremos a expor.

[5]
GESTÃO DA PROVA DO

INJUSTO DE PERIGO

A questão a ser enfrentada diz respeito ao conteúdo material do crime de perigo e as


vertentes quanto à sua concretude ou abstração. Portanto, para além da criação legisla-
tiva na identificação da criminalidade primária, imprescindível a identificação prática da
prova do crime através da jurisdicionalização da conduta, objetivando tornar paupável
aquilo que se incrimina. Como já exposto, nossa abordagem não refere-se à prova do
fato e a questão da mera subsunção da conduta à norma legal, e sim a concreta tipi-
cidade material com a prova da ofensa da conduta e todos seus sucedâneos. Por isso,
merecedora a análise da prova da lesão nos crimes de dano (diante do contexto penal
Clássico) até a prova do perigo na conceituação moderna do direito penal do risco.

132 FIANDACA/MUSCO. Op.cit, p. 181.

133 Havendo verdadeira relação comunicativa entre crime e processo, por isso, pertencem a um sistema integrado. SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Dimensones de
la sistematicidad de la teoria del delito. In El sistema integral del Derecho penal. Delito, determinación de La pena y proceso penal. Jürgen Wolter/Georg Freund
(org.). Madrid-Barcelona: Marcial Pons, 2004, p. 21.

134 Na convergência das intenções materiais e processuais penais, reflete-se que um Direito processual penal “estruturado com todas as garantias do Estado de
Direito só seria possível contando com um Direito penal material baseado nos mesmos princípios: é dizer, presido pelo princípio da legalidade (abrimos um
parênteses na nossa reflexão, para ilustrar com identificação material da lesividade da conduta), concentrado em bens jurídicos precisos e limitado a funções
que possa cumprir.”. HASSEMER, Winfried e MUÑOZ CONDI, Francisco. La responsabilidad por el producto en derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995, p. 37.

135 PALMA, Maria Fernanda. O Problema Penal do Processo Penal. In Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais. Maria Fernanda Palma (coord.).
Coimbra: Almedina, 2004, p. 48/49.

113
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

Temos que seguir uma determinada linha. Se pensarmos para que haja legitimi-
dade do Direito penal haverá sempre a necessidade de indicação fática da lesão a um
bem jurídico, caberá à acusação o ônus de provar além da conduta a própria lesão
(não estamos nos referindo ao resultado naturalístico), a partir da confirmação cons-
titucional da situação de inocência.

Mas, nas referências atuais dos crimes de perigo a situação não fica tão fácil, ocor-
rendo a necessidade da sensível discussão quanto ao ônus da prova da perigosidade
da conduta para que haja o ensejo material da tipicidade e, consequentemente, a pos-
sibilidade de eventual condenação nessa espécie de crime.

Porém, se seguirmos através da presunção de legitimidade das normas penais,


como o Estado possuidor do ius puniendi já identificou a perigosidade da conduta quan-
do diante da idealização da norma, formadora de riscos sociais (como estado de prová-
vel colocação de perigo ao bem materialmente protegido), chega-se ao ponto de inda-
garmos se caberá ao acusado, perante a situação processual o ônus da demonstração
da ausência do perigo. Figuraria, por parte deste, a prova negativa aquilo que restou
legislativamente identificado, justamente para a figura da legitimidade desses crimes.

Seria de fácil afirmativa se não houvesse a proteção constitucional da situação de


inocência136. A partir daí o problema torna-se mais delicado e de difícil resposta teórica
e prática. Por óbvio, devemos seguir destituído de qualquer presunção, na medida em
que esta resultaria em uma resposta formada de excesso de objetividade, maculan-
do a proposta do Direito Penal de cunho democrático, traçando a legalidade e a culpa
como meros fatores simbólicos de legitimidade punitiva.

Nesta linha, foca-se o perigo como algo existente (no mundo real, na referência on-
tológica, como conhecimento de todas as circunstâncias concretas, como fenômeno da
realidade social, a partir de um observador de conhecimento médio137)138, havendo certo
equívoco realizado pelas teorias subjetivistas139 na criação imaginária de risco no perigo
não identificável, até porque, para a fundamentação normativa deste deve-se sempre
basear nas referências estatísticas de lesão ou dano pelas experiências comuns.

136 “Deve ter-se em conta que não é possível a prova de fatos negativos e, por isso, não é admissível nem correto exigir do acusado que prove as negações, pois
isto implicaria uma inversão da presunção constitucional de inocência aparte de resultar uma prova impossível” BAJA DE QUIROGA. Op.cit, p. 825.

137 E não, como adverte de Hirsch, um especialista, pois seria inclusive criticável processualmente, já que demandaria sempre o auxílio de um perito. HIRSCH,
Hans-Joachim. Peligro y peligrosidade. In Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales. T.XLIX. fasc. 2. Mayo-agos. 1996, p. 518.

138 Senão criaríamos uma discussão sem argumentos e sem propópisto. Se estamos falando de um novo modelo penal do perigo, ele deve existir. Senão, não há
Direito e nem deveria haver pena. Aliás, essa discussão transcende o caráter normativista do perigo, até porque as referências (probabilísticas) do perigo são
variáveis, com dependência da consciência jurídica e de situações sócio-culturais. GIUSINO, Manfredi Parodi. I reati di pericolo tra dogmatica e politica criminale.
Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1990, págs. 198/199.

139 PEREIRA, Rui Carlos. O Dolo de Perigo. Lisboa: Lex, 1995, pág. 20.

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A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

Há diferenciação clara entre o crime de perigo e de lesão140. Desta há um referen-


cial regular, visível. Aquele se classifica como um estado irregular, não usual, devendo
ser considerado provado através de um juízo de probabilidade141, a partir de índíces
de frequência142, permitindo uma real limitação do risco143, com previsão posterior-
-objetiva de ocorrência de um dano144, ou como presunção de perigo145 (nos crimes de
perigo abstrato) da ação para a projeção de penalização146.

O que se traça como importante é o momento do juízo de perigo, na aferição de


quando “se deve situar o julgador para avaliar a situação de perigo”147. Para a classifi-
cação desses delitos, através da demonstrabilidade do próprio perigo com viés objeti-
vista (do que a norma se propõe), utiliza-se a inferência entre a maior ou menor pro-
babilidade de ocorrência de um resultado lesivo148, a partir da apreciação de prognose
efetuada ex ante no momento da ação149, até porque a distinção da característica do
delito de perigo (se concreto ou abstrato) dar-se-á pela possibilidade de separação
do próprio perigo da conduta150. Na realidade, o conceito de perigo dependerá da es-
trutura típica, segundo seja o “bem jurídico mais palpável ou mais espiritualizado151”,
fruto, portanto de uma abstração metodológica152. Certo, no entanto, que o juízo de
perigosidade de uma determinada conduta supõe a prognose baseada em regras de
experiência gerais em alguns casos, ou em normas específicas quando da necessida-
de de demonstração empírica em outros.

140 Aos crimes de lesão se pressupõe um prejuízo ao objeto material protegido e nos delitos de perigo torna-se suficiente o risco de sua lesão como resultado
da ação. JESCHECK/WEIGEND. Op.cit, p. 282. Portanto, a distinção básica dar-se-á ao grau de afetação do bem jurídico tutelado ou, pela doutrina expoente, a
distinta intensidade de ataque ao bem jurídico. MENDOZA BUERGO. Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto., p. 10. Pelo ataque
ao bem jurídico. BARBERO SANTOS. Op.cit, p. 488/488; MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte General. Barcelona: 1984, p. 170.

141 GIUSINO. Op.cit, p. 194 e segs.

142 Oportuna a afirmativa de Silva Dias quando afirma que “o perigo não se basta conceptuamente com uma mera possibilidade, nem sequer com uma qualquer
probabilidade de lesão, antes exige uma probabilidade elevada, cuja medida variará em função de factores como a natureza do bem que é objecto do perigo
e a potencialidade ofensiva da conduta.” DIAS. Entre <Comes e Bebes>, p. 563.

143 CALADO. Op.cit, p. 234/235.

144 MAURACH. Op.cit, p. 277.

145 Essa presunção iuris tantum deve ser criticada, na medida em que violaria o princípio da culpa e da presunção de inocência. Nesse sentido, DIAS. Entre <Comes
e Bebes>, p., 524.

146 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. 2ª ed. Curitiba: ICPC, Lumen Juris, 2007, p. 110.

147 SALAS ALMIRALL, Salvador. Causalidad e imputacion objetiva en los delitos de peligro. In Cuadernos de Derecho Judicial. Causalidade e Imputacion Objetiva.
Madrid: Consejo General del Poder Judicial, 1994, p. 125

148 MAURACH. Op.cit, p. 278. Giusino entende, por outro lado, que a diferenciação ocorrerá pelos términos de técnica legislativa. GIUSINO. Op.cit, p. 279. Neste
diapasão, haverá consequências reais na demonstração da ofensa ao bem jurídico tutelado dependendo da aferição anterior do legislador.

149 DIAS. Entre <Comes e Bebes>, p. 555. RUDOLPHI, Hans-Joachim. El fin del derecho penal del Estado y las formas de imputación jurídico-penal. In El sistema moderno
del Derecho penal: custiones fundamentales, Org. Bern Schünemann, Montevideo – Editorial IBdef, 2012, p. 86 e segs.

150 Nessa análise, “pode-se afirmar que na estrutura típica dos delitos de perigo concreto existe uma conduta típica e uma situação ou estado separado dele (...)
nos delitos de perigo abstrato, esse nexo é desnecessário porque não existe nenhum perigo típico.” SALAS ALMIRALL. Op.cit, p. 133.

151 GIUSINO. Op.cit, p. 212. Nesse sentido, espelha-se parcela da doutrina na diferenciação do risco para o perigo. Seguindo o risco como fator de análise ex ante
e o perigo ex post. MENDOZA BUERGO Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto., p. 26.

152 GIUSINO. Op.cit, p. 212.

115
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

5.1
A análise judicial da perigosidade concreta

Para a definição clássica de delito de perigo concreto, requer-se no caso específico


haja produzido um perigo real para o objeto protegido pelo tipo respectivo153, ou pela
produção de um dano iminente154, figurando, portanto, delitos de resultado de perigo
típico correspondente155, se equivalendo, em decorrência dos critérios de imputação
objetiva, às exigências causais dos crimes de lesão, devendo figurar a consumação na
situação processual quando na produção de um perigo real156.

Nesses casos, a prova do conteúdo material do crime reduz e amplia alguns dile-
mas, até porque o perigo figura como elemento do tipo157, o que indica uma situação
ou estado de perigo separado da própria conduta, obrigando a estabelecer uma rela-
ção causal entre a ação e o dito perigo. Portanto, esse perigo, através dos critérios de
imputação (objetiva e subjetiva), tem de ser comprovado por meio de uma prognose
objetivo-posterior158, não se materializando, de forma exclusiva, pela perigosidade da
ação ex ante, mas no próprio resultado de perigo, gerando, de certa forma, uma ver-
dadeira diagnose159, quando houver uma relação causal possivelmente específica. E,
na ausência da prova do perigo de resultado, o fato não figurará como típico, na me-
dida em que não entrou efetivamente “no círculo de perigo”160. Na realidade, há aqui a
análise objetiva do comportamento do agente como acontecimento que produz certo
“estado das coisas”161.

A identificação probatória ocorrerá, portanto, pelas questões da perigosidade da


ação e diante de circunstâncias observáveis e conhecidas ex post ao fato em si, incluin-
do referências à causalidade e da imputação objetiva. Por isso, Silva Dias indica que
“num crime de perigo comum concreto, a perigosidade da acção pode ser aferida de
dois modos: num sentido próprio, relacionando-a em termos de probabilidade com a

153 ROXIN. Derecho Penal. Parte General., p. 404.

154 BOCKELMANN, Paul e VOLK, Klaus. Direito Penal. Parte Geral. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: del Rey, 2007, p. 183.

155 HIRSCH, Hans-Joachim. Op.cit, p. 523.

156 MENDOZA BUERGO. Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto., p. 21. SALAS ALMIRALL. Op.cit, p. 136.

157 BOCKELMANN/VOLK. Op.cit, p. 183. JESCHECK/WEIGEND. Op.cit, p. 282.

158 ROXIN. Derecho Penal. Parte General., p. 404. BARBERO SANTOS. Op.cit, p. 489.

159 Não é esse o fundamento de Silva Dias. Assim, “a ideia de que a perspectiva ex post, no juízo de perigo, anda associada a uma prognose, é fundamental, pois
só ela é compatível com a definição do perigo como probabilidade de lesão.” DIAS. Entre <Comes e Bebes>:, p. 568. Da mesma forma, identificado o perigo como
graus de probabilidade da lesão, considerando como evento não necessário e futuro, tramita uma prognose e não sendo possível considerar uma rigorosa
diagnose. GIUSINO. Op.cit, p. 205/206.

160 PINTO DE ALBUQUERQUE, Paulo Sérgio. O conceito de perigo nos crimes de perigo concreto.In Direito e Justiça, , Vol. VI, 1992, p. 355, com a defesa da teoria
normativa (modificada) do resultado de perigo. (p. 362).

161 PEREIRA. Op.cit, p. 35.

116
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
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lesão virtual; num sentido impróprio, relacionando-a em termos de imputação com o


resultado de perigo”.162

Nestas espécies de crime, portanto, não há uma identificação do perigo apenas


pelo legislador. Cria-se na dialética processual a necessidade de comprovação positiva
da presença séria da possibilidade de lesão163.

Casos, no entanto, em que a dificuldade probatória na aferição específica do re-


sultado de perigo traça, pela jurisprudência, outro ponto de contato com a expansão
do Direito penal. Serve-se, a partir da livre apreciação da prova em processo penal, de
uma causalidade geral e da flexibilização dos critérios de imputação tradicionais164 em
que a relação de subjetividade do julgador se sobrepõe à objetividade da demonstra-
ção do perigo concreto165.

Não minimizando a dificuldade probatória anterior, até porque não seria possí-
vel, na medida em que há casos que imprescinde da relação interdisciplinar para a de-
monstração da relação de causalidade para além das máximas de experiência como
utilização da formação do convencimento do julgador166, figura-se, por outro lado, e
no nosso foco de discussão, o que se identifica na prática jurídica, além da utilização
da causalidade geral (ou normativa167) para a redução da certeza empírica do resulta-
do de perigo concreto face a sua dificuldade probatória, o que ilustra a expansão do
Direito penal168, é o fomento legislativo da abstrativização dos tipo de perigo, tornan-
do quase que superados os delitos de lesão e de perigo concreto169.

Por isso, como já aludido, há uma progressividade da expansão do Direito mate-


rial consubstanciada nas discussões processuais. Da relação de causalidade específica
dos crimes de lesão, à causalidade geral (ou normativa) dos crimes de perigo concre-

162 DIAS. Entre <Comes e Bebes>, p. 561. Ainda, MENDOZA BUERGO. Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto, p. 200. Ainda, SALAS
ALMIRALL. Op.cit., p. 165.

163 DIAS. Entre <Comes e Bebes>, p. 524, n.r.p. 15. Segue na defesa de uma prognose como compatibilidade do perigo como probabilidade de lesão (p. 568).

164 DIAS. Entre <Comes e Bebes>, p. 581.

165 O que pode ser observado e ilustrado por Hassemer e Muñoz Conde quando diante da responsabilidade pelo produto em investigação às decisões condenatórias
nos casos conhecidos como “caso de la colza” na Espanha e “Contergan”, “Lederspray” e “Holzschutzmittel” na Alemanha em que a causalidade geral foi o
fundamento dos tribunais para formar o juízo de responsabilidade contra os arguidos, se valendo do princípio da livre apreciação da prova em detrimento
da dúvida em favor do réu. HASSEMER, Winfried e MUÑOZ CONDI, Francisco. La responsabilidad por el producto en derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch,
1995, pp. 143/144 e segs. Na realidade, a doutrina alemã vem defendendo a o conceito de causalidade normativa em que considera suficiente que concorram
possibilidades de um nexo causal. Cf. KINDHÄUSER. Op.cit., p. 17.

166 Na realidade, entendemos como princípio limitador do princípio do livre convencimento do juiz, mas essa abordagem, pelo seu conteúdo estritamente
processual, ficará para outra oportunidade.

167 DIAS. Entre <Comes e Bebes>, p. 581/582.

168 MENDOZA BUERGO. Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto, p. 156. HASSEMER, Winfried e MUÑOZ CONDI, Francisco. La
responsabilidad por el producto en derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995, p. 76.

169 HASSEMER, Winfried e MUÑOZ CONDI, Francisco. La responsabilidad por el producto en derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995, p. 29.

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A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

to, aos crimes de perigo abstrato na sua simplificação probatória e com a inversão de
alguns parâmetros constitucionais, como tentaremos identificar.

5.2
A análise probatória dos crimes de perigo abstrato

Outra questão que deve ser ressaltada diz respeito à questão referente à análise da
prova nos crimes de periogosidade abstrata. Certo que para os crimes de perigo o fun-
damento do legislador é evitar futuros perigos concretos ou lesões sem que sua con-
corrência seja requisito do tipo170, até porque, está ausente o desvalor do resultado
enquanto lesão do bem jurídico ou enquanto colocação do perigo por ele mesmo171,
com observância exclusiva ao desvalor da ação.

Na realidade, para os crimes de perigo a teoria do bem jurídico individualizado, por


si só, não alcança a fundamentação da legitimidade da punibilidade172. Não será neces-
sário a prova de que a mera transgressão como tal poderá legitimar a tutela penal173.
Assim, com a análise das teorias sobre a prova da tipicidade material, diversos são os
posicionamentos174, com a conclusão de que ainda há necessidade de amadurecimento
das reflexões para uma conclusão mais próxima e objetiva de casos concretos.

170 ROXIN. Derecho Penal. Parte General., p. 407.

171 FRISCH. Op.cit, p. 334.

172 HIRSCH, Hans-Joachim. Op.cit.p. 514. Há quem entenda, inclusive, que os delitos de perigo abstrato seriam aqueles em que não se exige que o bem jurídico
seja posto em perigo. Ver SALAS ALMIRALL. Op.cit, p. 152/153. O que ocorre também, para alguns defensores, da dogmática que parte do modelo do delito de
lesão. HIRSCH, Has-Joachim. Delitos de peligro y Derecho Penal moderno. Trad. Fernando Guanarteme Sánchez Lázaro. In La adaptación Del Derecho Penal al
desarrollo social y tecnológico. Emilio José Armaza Armaza (org.). Granada: Comares, 2010, p. 106.

173 VON HIRSCH/WOHLERS, p. 288).

174 Ver ROXIN. Derecho Penal. Parte General., p. 407 e segs.

118
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

Por outro lado, como pode ser observado por alguns julgados175, nessas espécies
de crimes desnatura-se o maior interesse de averiguação da perigosidade da ação no
caso concreto, até porque, a aludida perigosidade já se mostra ínsita ou “ineludivel-
mente presumida pelo legislador”176, ou mesmo a partir de indícios de perigosidade fi-

175 A ilustração por alguns casos penais. No início dos anos noventa, o Tribunal Constitucional Português teve a oportunidade de analisar (Ac.Tc. n. 426/91.
Proc. 183/90 de 6.9.91. Rel. Cons. Sousa Brito. Publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992) a constitucionalidade do crime de tráfico
de estupefaciente. Não precisamos de muito esforço para afirmar (e concordar) que a interpretação seguiu pela ausência de qualquer conflito às normas
constitucionais. Por outro lado, denota-se ilustrativa algumas afirmações constante na motivação da referida decisão.
Nesta linha, o Tribunal classificou o crime como de perigo afirmando que “por contraposição aos crimes de dano, os crimes de perigo são aqueles cuja consumação
não requer a efectiva lesão do bem jurídico”. E, com o seguimento da classificação jurídica apontou que “crimes de perigo concreto são crimes de resultado, em
que o resultado causado pela acção é a situação de perigo para um concreto bem jurídico. Crimes de perigo abstracto são crimes que não pressupõem nem o dano,
nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos,
abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo para um desses bens jurídicos”. Portanto, “a qualificação do crime de tráfico de
estupefacientes como crime de perigo pressupõe a identificação do bem jurídico tutelado pela respectiva norma incriminadora”.
Assim, quanto a matéria constitucional, concluiu o Tribunal que “a constitucionalidade de uma norma que preveja um crime de perigo — e, sobretudo, um crime
de perigo abstracto —, como o n.º 1 do artigo 23.º do Decreto – Lei n.º 430/83, deve ser julgada, em primeiro lugar, à luz do princípio da necessidade das penas e
das medidas de segurança, implicitamente consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição. Com efeito, em relação às incriminações de perigo (e, especialmente,
às de perigo abstracto), sempre se poderá entender que não é indispensável a imposição dos pesados sacrifícios resultantes da aplicação de penas e de medidas de
segurança, visto que não está em causa, tipicamente, a efectiva lesão de qualquer bem jurídico.
Nessa linha, sobre a prova do conteúdo material do crime, aferiu-se que “alegadamente, o entendimento de que o tráfico de estupefacientes constitui um crime de
perigo abstracto, promoveria uma inversão do ónus da prova contra reo. Porém, esta alegação encerra um evidente equívoco: se a incriminação de perigo abstracto
é admissível constitucionalmente, ante os princípios da necessidade e da culpa, então não faz sentido referir uma inversão do ónus da prova; o cometimento do crime
deve ser, naturalmente, provado pela acusação, no plano das imputações objectiva e subjectiva; o que se não requer é a comprovação de que foi criado um perigo ou
de que o meio de cometimento do crime foi perigoso, precisamente porque a incriminação não se funda no perigo concreto causado, mas na perigosidade geral da
acção, isto é, na sua aptidão causal para causar perigos de certa espécie, abstraindo de outras circunstâncias também necessárias para que algum destes perigos se
produza realmente; e, da mesma sorte, não se exige que o dolo abarque o perigo”.
Nesta linha, refutou o Tribunal qualquer violação à ampla defesa do arguido e da situação de inocência, ainda que diante da possbilidade de inversão do ônus
probatório.
Mais de uma década depois, o Supremo Tribunal Federal do Brasil, enfrentando o tema do porte de arma desmuniciada (Ac.STF. HC. N.104.410-RS. Rel. Min.
Gilmar Mendes. Noticiado no inf. 660.), entendeu pela a constitucionalidade da tipificação deste delito.
Assim, na fundamentação do acórdão, aduziu que “os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote),
expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso
(Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos
constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como
proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. 1.2. Modelo exigente de controle de constitucionalidade das leis em matéria penal, baseado em níveis
de intensidade: Podem ser distinguidos 3 (três) níveis ou graus de intensidade do controle de constitucionalidade de leis penais, consoante as diretrizes elaboradas pela
doutrina e jurisprudência constitucional alemã: a) controle de evidência (Evidenzkontrolle); b) controle de sustentabilidade ou justificabilidade (Vertretbarkeitskontrolle);
c) controle material de intensidade (intensivierten inhaltlichen Kontrolle). O Tribunal deve sempre levar em conta que a Constituição confere ao legislador amplas
margens de ação para eleger os bens jurídicos penais e avaliar as medidas adequadas e necessárias para a efetiva proteção desses bens”.
No enfrentamento concreto da matéria, o STF textualizou que “a Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) tipifica o porte de arma como crime de perigo
abstrato. De acordo com a lei, constituem crimes as meras condutas de possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, emprestar,
remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo. Nessa espécie de delito, o legislador penal não toma como pressuposto da criminalização a lesão
ou o perigo de lesão concreta a determinado bem jurídico. Baseado em dados empíricos, o legislador seleciona grupos ou classes de ações que geralmente levam
consigo o indesejado perigo ao bem jurídico. A criação de crimes de perigo abstrato não representa, por si só, comportamento inconstitucional por parte do legislador
penal. A tipificação de condutas que geram perigo em abstrato, muitas vezes, acaba sendo a melhor alternativa ou a medida mais eficaz para a proteção de bens
jurídico-penais supraindividuais ou de caráter coletivo, como, por exemplo, o meio ambiente, a saúde etc. Portanto, pode o legislador, dentro de suas amplas margens
de avaliação e de decisão, definir quais as medidas mais adequadas e necessárias para a efetiva proteção de determinado bem jurídico, o que lhe permite escolher
espécies de tipificação próprias de um direito penal preventivo. Apenas a atividade legislativa que, nessa hipótese, transborde os limites da proporcionalidade, poderá
ser tachada de inconstitucional”.
Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça brasileiro, de forma mais contundente e, no enfrentamento prático sobre a prova do conteúdo material do
crime, fundamentou sua decisão pela seguinte ordem. “A Turma, acompanhando recente assentada, quando do julgamento, por maioria, do REsp 1.193.805–SP,
manteve o entendimento de que o porte ilegal de arma de fogo é crime de perigo abstrato, cuja consumação se caracteriza pelo simples ato de alguém levar consigo
arma de fogo sem autorização ou em desacordo com determinação legal – sendo irrelevante a demonstração de efetivo caráter ofensivo. Isso porque, nos termos
do disposto no art. 16, parágrafo único, IV, da Lei n. 10.826/2003, o legislador teve como objetivo proteger a incolumidade pública, transcendendo a mera proteção
à incolumidade pessoal, bastando, assim, para a configuração do delito em discussão a probabilidade de dano, e não sua ocorrência. Segundo se observou, a lei
antecipa a punição para o ato de portar arma de fogo; é, portanto, um tipo penal preventivo, que busca minimizar o risco de comportamentos que vêm produzindo
efeitos danosos à sociedade, na tentativa de garantir aos cidadãos o exercício do direito à segurança e à própria vida. Conclui-se, assim, ser irrelevante aferir a eficácia
da arma para a configuração do tipo penal, que é misto-alternativo, em que se consubstanciam, justamente, as condutas que o legislador entendeu por bem prevenir,
seja ela o simples porte de munição ou mesmo o porte de arma desmuniciada” (HC 211.823–SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 22/3/2012).
Permaneçamos com esses exemplos, lembrando que não são crimes em que a modernidade fez referência à alteração das atitudes e novos riscos sociais.
Mas, a fundamentação jurídica segue na mesma linha à eventuais delitos de perigo que somam diferentes e atuais fundamentos quanto a sua legitimação
constitucional e sua aplicação prática.

176 PEREIRA, Rui Carlos. O Dolo de Perigo. Lisboa: Lex, 1995, pág. 25. Por esta antiga posição, haveria verdadeira presunção iuris et de iure, não admitindo prova
em contrário, na medida em que a perigosidade seria vista de forma abstrata e não concreta. Na doutrina alemã, esta teoria não mais vem sendo aceita, como
ilustrou em ampla pesquisa MENDOZA BUERGO, Blanca. Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto. Granada: Editorial Comares,m
2001, p. 69; GRASSO, Giovani. L´anticipazione della tutela penale: i reati di pericolo e reati di attentato. Rivista Italiana di Diritto e Proceduta Penale. Milano: Dott.
A. Giuffrè Editore, 1986, p. 697.

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A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

xados na lei177, como relevância lesiva geral178, sendo, teoricamente, o juízo negativo o
único admissível179, na medida em que o fundamento da perigosidade dar-se-á diante
de um juízo ex ante à conduta, realizada por meio de um observador externo180.

Na realidade, a intenção legislativa no moderno Direito penal, segue na extração do


perigo nos elementos do tipo181, destituindo, portanto, de imprescindibilidade da sujei-
ção da prova judicial deste perigo, ou até mesmo privando a situação processual (e ao
final o juiz) da tarefa de comprovação do perigo182. Assim, coube ao legislador a eleição
e normatização do bem jurídico identificado pela norma de perigo. A presunção nesse
sentido, após certo amadurecimento social dos perigos ocorridos, somadas às questões
de regras de experiência, dá-se justamente pela norma, sendo possível a sua refutação,
no caso concreto, pelo acusado na situação processual. Podemos afirmar, portanto, que
há verdadeira inversão do ônus da prova na estrutura processual penal.

Nesta linha, ao acusador bastaria a prova da conduta com a afirmação de que o


ato se acopla à previsão normativa do crime de perigo. Desta feita, estar-se-ia provada
a prática do injusto com a identificação do conteúdo material do tipo objetivo penal,
constatando o perigo como conceito normativo e não naturalístico183, o que resulta em
outras afirmativas de coerência para o moderno Direito penal e critérios de política-
-criminal, quando se decide sobre o maior ou menor adiantamento da tutela penal184.

Para esta proposição teórica, dois viés interpretativos serão refletidos. O primeiro
de cunho positivo em que cria a possibilidade do acusado em refutar a imputação acu-
satória, na medida em que a presunção não mais será iuris et iuris. Ou seja, podemos
afirmar que a presunção não se denota absoluta e sim relativa (iuris tantum) sendo
possível repelir a criação legislativa185.

177 JESCHECK/WEIGEND, p. 283.

178 Aqui o legislador proíbe tipos de comportamentos que de modo geral conduz a prejuízo de bens jurídicos trans-individuais, portanto desvalorados de maneira
geral. MENDOZA BUERGO. Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto, p. 75.

179 DIAS. Entre <Comes e Bebes>, p. 524.

180 BURKHARDT, Björn. Conducta típica y perspectiva ex ante. A la vez, una aportación contra la “confusión entre lo subjetivo y lo objetivo”. Trad. Nuria Pastor Muñoz. In
El sistema integral del Derecho penal. Delito, determinación de La pena y proceso penal. Jürgen Wolter/Georg Freund (org.). Madrid-Barcelona: Marcial Pons,
2004, p. 155.

181 Podendo gerar certa dificuldade de compatibilidade com o princípio da ofensividade. CADOPPI/VENEZIANI. Op.cit. p. 163.

182 MENDOZA BUERGO. Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto, p. 76/77.

183 DIAS. Entre <Comes e Bebes>, p. 524. Nesta linha, GIUSINO. Op.cit, p. 206; KINDHÄUSER. Op.cit, p. 11.

184 MENDOZA BUERGO. Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto. , p. 32.

185 Cerezo Mir afirma que nos delitos de perigo abstrato não se presume, nem com presunção iuris tantum nem iuris et de iure, mas sim se castigam certas condutas
porque geralmente caracterizam o perigo de um bem jurídico. CEREZO MIR, José. Los delitos de peligro abstracto. In Revista de Derecho Penal. Instituto de
Ciencias Penales. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2001-2002, p. 741

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A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

Por outro lado, há verdadeiro entrave constitucional se pensarmos na visão clás-


sica do Direito e Processo Penal. Pelo primeiro, o choque com a materialização do
princípio da legalidade em que a norma deve demonstrar todo o conteúdo criminó-
geno seria relativizada. Assim, pensa-se no princípio da legalidade com enfoque mais
objetivista do que materializado do reflexo constitucional.

De outro lado, cria-se a necessidade de repensar o princípio da situação de inocên-


cia (e outros) com diverso foco. Indica-se um ponto de responsabilidade negativa na im-
putação ao acusado, seguindo a ele o ônus da ausência de prova do perigo no conteú-
do material do tipo. Ao acusado enseja a necessidade de demonstração da ausência de
perigo ou risco em sua conduta. A ele caberá a prova da ausência de violação ao bem
jurídico relevante ao aspecto constitucional penal, criando uma cláusula negativa186.

É nesse contexto que referimos à mudança paradigmática do Direito penal para


sua função preventivista, não só figura na edição das novas normas penais de perigo
(abstrato)187, mas também na função jurisdicional da sua aplicação. Facilmente identi-
ficada se dá o aumento de condenações quando do advento destes delitos, justamen-
te porque reduz, consideravelmente, o campo probatório nas situações processuais,
conquanto depara-se com a perigosidade abstrata como técnica de tutela penal no
contexto socio-jurídico atual.

Se para o Direito penal clássico tínhamos a necessidade da prova de todo um con-


texto de ofensividade, com auxílio às regras de imputação objetiva e subjetiva, bem
como as teorias da causalidade; no contemporâneo Direito penal do perigo, há certa
redução de elementos típicos legais188, tornando, na sua grande maioria, a desneces-
sidade da prova da própria ofensividade, ou até, como antecipação de conclusão, sua
impossibilidade prática.

O problema figura justamente em saber do que a norma e a atual política criminal


e vivificação do sistema penal se propõe. Para além de todas essas dificuldades pro-
batórias, Silva Dias afirma que “se o tipo está redigido de forma a inviabilizar a apre-
ciação negativa do perigo, se ele se funda numa presunção iniludível de perigo, o seu

186 GRASSO, Giovani. L´anticipazione della tutela penale: i reati di pericolo e reati di attentato. Rivista Italiana di Diritto e Proceduta Penale. Milano: Dott. A. Giuffrè
Editore, 1986, p. 726. 29. p. 689/728, 1986, p. 725)

187 Também reconhecido como crime de mera conduta. BOCKELMANN/VOLK, p. 185.

188 “Nesse delito de perigo abstrato tanto o juiz penal como o defensor têm só uma quantidade de pontos de apoio fortemente reduzidos – por suposto para um
deles na condenação, para o outro na defesa: a condenação se vê facilitada, a defesa dificultada.” HASSEMER. Seguridad por intermedio del Derecho penal., p. 31.

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A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

desvalor da acção assenta na mera desobediência e a sua inconstitucionalidade pode


ser arguida por violação dos princípios da ofensividade e da culpa.189”

A indagação surge no seguinte panorama: como afastar um perigo (presumido de


forma iniludível) se ele se conceitua como normativo190? Seria possível afastar a própria
norma em sí? Devemos, portanto, clarificar as idéias e colocá-las em seu devido lugar.
Se há uma ampla legitimidade legislativa, denota-se, quase que de forma absoluta, a
desnecessidade de maior jurisdicionalidade da discussão quanto à prova do tipo de in-
justo (a relação probatória serviria apenas, e não há como fugir desta afirmativa, como
demonstração da conduta), tornando, tanto o perigo quanto a teoria do bem jurídico
meras expressões normativas, se dirigindo à concepção do Direito como sistema nor-
mativo que se matem e se esgota pela estabilidade das normas, seguindo o modelo
funcionalista de Luhmann e Jakobs191.

O que se propõe é a identificação dos fins da norma no momento da jurisdiciona-


lização e, na concordância de que atualmente o perigo se conceitua normativamente,
a legitimidade das normas penais (de perigo) possui uma finalidade exclusivamente
simbólica. E não estamos aqui menosprezando este modelo, mas sim na identificação
de que a espiritualização do bem jurídico, e a delimitação normativa do conceito de
perigo, mesclando as funções da norma penal192, ratifica o atual viés preventivo193 do
sistema penal.

O que se identifica, portanto, pela dificuldade probatória da ocorrência de perigo


(seja concreto ou até abstrato194) no caso concreto é a flexibilização dos critérios de
imputação tradicional pela jurisprudência.

Servindo a dúvida como construção das reflexões, chega-se a seguinte indaga-


ção: um juízo de prognose póstuma, remontável ao momento da ação195, nos crimes
de perigo abstrato, servirá como função legitimadora da norma penal? E pior, será um

189 DIAS. Entre <Comes e Bebes>, p. 525.

190 Como motivo do Legislador. TORIO LOPEZ. Op.cit, p. 834. Ainda, CEREZO MIR. Op.cit, p. 719.

191 MIR PUIG. Op.cit, p. 113.

192 GIUSINO. Op.cit, p. 214.

193 Em que Silva Dias afirma possuir a tutela penal duas formas de antecipação: “antecipação da técnica de tutela, de que são exemplo paradigmático os crimes
de perigo abstracto, e antecipação do objecto de tutela, constituída por bens jurídicos prévios e autônomos relativamente aos bens jurídicos individuais”.
DIAS. Entre <Comes e Bebes>, p. 528.

194 Sendo certo, no entanto, que “só se pode tipificar-se como abstrato o que também é possível como concreto”. HIRSCH, Has-Joachim. Delitos de peligro y Derecho
Penal moderno. Trad. Fernando Guanarteme Sánchez Lázaro. In La adaptación Del Derecho Penal al desarrollo social y tecnológico. Emilio José Armaza Armaza
(org.). Granada: Comares, 2010, p. 102.

195 DIAS. Entre <Comes e Bebes>., p. 540.

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A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

discurso reverso que leva ao legislador a criação de condutas de maior facilidade da


criminalização secundária? É dizer, pela dificuldade probatória nos casos em que as
teorias da causalidade e da imputação não resultam eficazes (como fatores de penali-
zação), avança-se na eleição de crimes de perigo abstrato e de consequente antecipa-
ção da tutela, “gerando um aumento institucional da criminalidade.196”

Portanto, não obstante a tentativa da distinção entre perigo presumido e crime de


perigo abstrato197, na prática refere-se a uma verdadeira presunção normativa em que,
não obstante a possibilidade de máximas de experiência e de prova negativa dar-se-á sua
fática dificuldade probatória quanto a efetiva perigosidade da ação concreta198, gerando
ao juiz a decisão se a conduta, tão somente, se encontra “jurídico-penalmente proibida”199.

Como já exposto, de total dificuldade prática da prova negativa, para além da si-
tuação de inocência, como fazer uma prova de que não há ofensa a um bem jurídico
“espiritualizado” ou por referencial normativo? Por palavras mais simples, se a mo-
derna visão do Direito penal foca na criação de crimes de perigo abstrato, sem a no-
menclatura do próprio perigo (portanto, não só genérico e sim presumido200), como se
demonstrar (negativamente) algo que não está expressamente previsto. Como incutir
ao arguido o ônus da demonstração de referente espiritualizado? Deve-se ilustrar que
o perigo não é elemento ou características do tipo, senão o próprio motivo do legisla-
dor, como mera ratio da incriminação, “que não se integra como elemento expresso
do tipo e a afirmação de que, por isso, a mesma não deve ser comprovada pelo juiz201”,
aproximando-se, portanto, como delitos de mera desobediência da norma.

Nesta linha, não conseguimos alcançar o limite estrutural (de verificação de legiti-
midade constitucional) dos crimes de perigo abstrato, pela possibilidade de demons-
tração da ausência de perigo de lesão, no caso concreto202, posto que, não podemos
concordar ser o perigo uma referência probabilística203, mas sim de criação normativa.

196 Idem, p. 586. Até porque, como indica Almirall, a problemática desses crimes pode gerar dois fatores: ou “bem a absolvição por falta de provas em todos os
casos, o que político-criminalmente poderia resultar contraproducente, ou bem se volta a mera realização formal da conduta.” SALAS ALMIRALL. Op.cit, p. 159.

197 GIUSINO. Op.cit, p. 281. Forte tendência da doutrina italiana para caracterizar o crime de perigo presumido, resultando na expressão “abstrato” para consideração
de uma categoria intermediária entre concreto e presumido. Ver GRASSO. Op.cit, p. 697. Torio López, reconhece como perigo hipotético, quando diante de um
perigo possível, determinável mediante um juízo ex ante se a ação singularmente que se realiza perigosa para o objeto de proteção. TORIO LÓPEZ. Op.cit, p. 835.

198 MENDOZA BUERGO. Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto., p. 34.

199 TORIO LÓPEZ. Op.cit, p. 842.

200 Na expressão de Antolisei em que realça, nestes casos, a presunção de perigo que não admite prova em contrário. ANTOLISEI, Francesco. Manuale di Diritto
Penale. Parte Generale. 15ª ed. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 2000, p. 262. Crítico à expressão de “perigo presumido” está BARBERO. Op.cit, p. 492.

201 MENDOZA BUERGO. Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de peligro abstracto, p. 77.

202 Como fundamenta GIUSINO. Op.cit, p. 407.

203 Idem, p. 408. Ou no critério de previsibilidade de acordo com o saber científico-causal da época. CEREZO MIR. Op.cit. p. 735.

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A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

Todos os fundamentos, portanto, levam a simplificação da mera subsunção da con-


duta ao tipo de injuto do crime de perigo abstrato, tornando para estes casos um fator
de prima ratio do Direito penal moderno quando na sua verificação jurisdicional204.

Por outro lado, seguir na possibilidade de inversão da prova da perigosidade da


conduta (se afastando da discussão sobre a violação à situação de inocência, até por-
que sua previsibilidade constitucional já demanda a desnecessidade do arguido na
prova negativa, ou seja, resultaria de flagrante violação constitucional essa inversão
probatória, com inobservância ao princípio da dignidade da pessoa humana) para re-
bater a já referida presunção do perigo, poderia indicar uma proposta de sinal liberal
ou garantista205, com legitimidade constitucional desse tipo de injusto. Nosso receio
segue justamente na aferição dessas possibilidades como mero discurso legitimador
e não de concretude processual, pelos argumentos já expostos.

Outra questão deve ser enfrentada: se a acusação imputa a presença de um crime,


com todo seu conteúdo material, haveria necessidade da prova da existência de peri-
go? E, na presença de dúvidas, a decisão penal figuraria absolutória? Como já adianta-
mos, há uma verdadeira expansão do Direito penal refletida no processo penal. Nesta
linha, a questão ilustrada segue na prova do tipo de injusto e, como já afirmamos, não
há, nestes delitos, a descrição do perigo no tipo. A interpretação inversa transmudaria
o crime de perigo abstrato para concreto206.

O que se constata, portanto, que a criação do perigo na verdade encontra-se com


a função do legislador. A ele – estamos nos baseando sempre por uma democracia
participativa – seguirá como formador de observância do perigo e, eventuais riscos de
condutas, bastando a incriminação com a mera realização do tipo formal, não sendo
possível, no nosso sentir, a possibilidade de afastar ou amoldar, no caso concreto, o
juízo de experiência e certeza sobre a produção do perigo da conduta.

Após a análise de todos os argumentos, temos que escolher uma alternativa às


nossas indagações. Por um lado, se partirmos da desnecessidade probatória da lesi-
vidade da conduta (leia-se, o próprio perigo em sua generalidade) legitimaríamos um
sistema penal funcional em que a importância dá-se pelo desvalor do comportamen-
to, com estabilidade das normas instituídas. Por outro lado, se defendermos sempre a

204 Por isso, frequentemente eleva-se a polêmica sobre a legitimidade destes delitos. MENDOZA BUERGO. Límites dogmáticos y político-criminales de los delitos de
peligro abstracto., p. 84.

205 Idem, p. 151.

206 Ibdem, p. 159.

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A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

necessidade dos princípios da ofensividade decorrente da legalidade, da culpa e todas


as garantias processuais, seguiremos em uma deslegitimação da expansão do Direito
penal, identificada, em segundo momento, na dialética processual.

A direção da escolha indica os fundamentos do que se pretende e da relação da


sociedade com o nosso tempo.

COMO SE FOSSE UMA CONCLUSÃO

A orientação das consequências da mudança de paradigma do Direito penal, fortalece,


em um segundo momento criminalizante, a tendência de romper com o ideal de uma
ciência como ultima ratio convertendo em prima ratio ou talvez, na crítica de Hassemer,
como única na solução dos problemas sociais207. Seu novo viés de prevenção legitima
a antecipação da tutela com redução de resistência jurisdicional da imputação. Essa
afirmativa trafega, no que tentamos diagnosticar, uma expansão de fatores criminali-
zantes, com implícita e pessoal crítica.

Para além da constatação da mudança de paradigma do Direito penal clássico às


intervenções modernas, seguindo uma busca de retribuição ou repressão à antecipa-
ção de riscos ou perigo no móvel da segurança, resume-se em uma importante inda-
gação: “será o Direito penal uma ferramenta eficaz para prevenir tais riscos?”.208

Essa será uma indagação sem resposta por qualquer estudioso do seu tempo. O ponto
de reflexão e conclusão segue até que ponto as interferências das garantias constitucionais
penais (e processuais) formam um dique de possível necessidade de expansão do Direito
penal? E, há legitimidade destas ciências se houver o drible nas proteções constitucionais?

Como proposta introdutória não seria este o momento da identificação sobre


a (i)legitimidade da expansão do Direito penal. Nosso foco rendeu-se na tentativa de
realçar essa expansão em um momento jurisdicional, com a redução da carga proba-
tória no modelo penal atual (diante de um Direito penal do perigo), o que esperamos
ter alcançado, ficando, no entanto, com o anseio de futuras reflexões sobre sua legiti-
midade frente aos valores constitucionais ditados para a sempre inacabada busca de
maior proteção do indivíduo independentemente do momento e substrato social.

207 HASSEMER. Viejo y nuevo Derecho penal., p. 51. Da mesma forma, GRACIA MARTÍN. Prolegómenos para la lucha por la modernización y expansión del Derecho
penal y para la crítica del discurso de resistencia, p. 139

208 MAIER. Op.cit, p. 110.

125
A “JURISDIFICAÇÃO” DA EXPANSÃO DO DIREITO PENAL.
REDUÇÃO DA CARGA PROBATÓRIA DO INJUSTO PELO MODERNO MODELO INCRIMINADOR.

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131
IN OVAÇÕES
TECN OL ÓG ICAS NO
DIR EITO PROCESSUAL
PEN AL –

A DIALÉTICA
ENTRE EFICÁCIA
E GAR ANTIA

TEXTO PUBLICADO ORIGINARIAMENTE:

Inovações Tecnológicas no Direito Processual Penal – Dialética entre eficácia


e garantia na produção da prova judicial. Revista Brasileira de Ciências
Criminais. , v.102, p.243 - 284, 2013.
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

INTRODUÇÃO

Basta olharmos para o lado, dentro de nossa casa, no trajeto ou no ambiente de tra-
balho que nos deparamos com diários avanços tecnológicos. Os aparelhos estão cada
vez menores e as informações mais rápidas. O avanço dessas novas tecnologias nos
cria uma nova forma de ver o mundo: mais rápida e fidedigna, pois a realidade está à
nossa frente, ainda que observada em 3 ou 4D. A virtualidade da realidade já é uma
prática corrente, necessária e irrenunciável.

A sociedade pós-moderna denota-se tecnológica, ou como já se aponta, uma nova


sociedade da informação. O Direito (e para nosso estudo, o Direito Processual Penal),
não está se esquivando dessa realidade. A presença tecnológica induz uma necessária
modernização nesta seara jurídica, com aproximação desse novo modelo e linguagem
social, justamente para que o discurso e a prática não seja engolida com as céleres in-
terferências tecnológicas.

É nesse sentido que, não obstante já nos reconhecermos in nesta nova dialética,
impõe-se sempre a urgência de refletirmos sobre a necessidade e adequação entre as
interferência da nova sociedade de informação e as tradicionais formas de vivificação
da dinâmica processual.

Torna-se ilustrativa o julgamento dos arguidos condenados pelo ataque terrorista


de Madrid em 11 de março de 2004 onde vários atos processuais e a leitura da senten-
ça ocorreu por videoconferência, em tempo real com diversos lugares e espectadores
espalhados não só no território espanhol, mas mundial.

A sala das Audiências Nacional em Madrid serviu como local de produção de pro-
vas como se fosse um transmissor de informações virtuais, já que várias provas teste-
munhais, os interrogatórios dos arguidos e as defesas foram transmitidas por video-
conferência. Quatro câmeras cobriram todos os ângulos da sala permitindo que não
se perdesse nenhum detalhe e uma câmera instalada na mesa do Tribunal, filmava
qualquer nova prova que a acusação e a defesa apresentavam.

Havia a edição de imagens e sons, para que preservassem a intimidade de teste-


munhas. O Presidente do Tribunal possuía um dispositivo em que autorizava ou não a
transmissão de imagens das provas produzidas, como se a sensibilidade dos compu-
tadores ditasse a dinâmica de um importante ato judicial.

133
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

Pela primeira vez na Espanha, as notificações aos procuradores ocorreram pela


internet, mediante firma eletrônica. A leitura da sentença também ocorreu por video-
conferência para os diversos arguidos condenados, inclusive sendo intimado da deci-
são em outros países. Cada ato ocorreu em um mesmo momento, mas diversos foram
os locais, a forma de recepção e apreciação. O infortúnio real foi visto virtualmente,
como se esta nova forma de transmissão fosse a consequência do medo de uma nova
realidade mundial1.

O foco da reflexão segue nesse sentido: até que ponto as inovações tecnológicas
perante nossa sociedade da informação influenciam na dinâmica da relação comunica-
cional do Processo Penal. Como pode ser observada a relação processual com as novas
técnicas de produção e valoração das provas? Há concorrência entre o direito e a nova
relação tecnológica?2 A tradicional observância do trâmite, princípios e as garantias pro-
cessuais sofrem abalos? Certo é que o fenômeno da nova criminalidade, mais rápida
e violenta, conjugado com a sociedade de informação, demandarão uma mudança do
paradigma moderno do processo penal, revitalizando a dicotomia entre o processo pe-
nal como um sistema de sólida garantia do indivíduo versus a ampliação de tratamento
eficiente de formas expansivas face às novas e crescentes criminalidades3.

Essas são algumas indagações que não poderão ser respondidas sem que trafe-
guemos por alguns outros atuais e importantes temas. Por isso, a influência do tempo
no processo, a consequente necessidade da imediatividade dos atos e novas formas
de produção de provas, com ênfase na colheita de informações das audiências por áu-
dio-vídeo denotam-se importantes focos de análise que seguiremos.

Outras questões de extrema importância neste diálogo seguem nas novas reali-
zações técnico-científica e a necessidade de modernização da investigação criminal.
Por questão metodológica, esse tema apenas passará por alguns pontos de contato,
deixando essa polêmica para outra possível oportunidade.

1 Informações extraídas de MONTESINOS GARCÍA, Ana. La videoconferência como instrumento probatório en el proceso penal. Madrid: Marcial Pons, 2009, págs.
23/24.

2 “Uma das questões fundamentais é a questão da direcção do impacto recíproco; ou seja, se são só as tecnologias que influenciam o direito, ou se o direito
também influencia as tecnologias através dos seus modelos de regulamentação.” SCHNEIDER, Jochen. Processamento eletrônico de dados – Informática jurídica.
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Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 552.

3 Nessa referência, a contínua preocupação da interseção entre a “política criminal liberal” e a “política criminal securitária”, esta com foco na realização da
pretensão punitiva como instrumento de defesa social, aquela como defesa das garantias do arguido na situação processual. DIAS, Jorge de Figueiredo. O
processo penal português: problemas e prospectivas. In Que Futuro para o Direito Processual Penal? Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por
ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal. Coimbra: Coimbra, 2009, p. 809.

134
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

Assim, seguimos na tentativa de diagnosticar a influência da sociedade tecnoló-


gica e da informação, com todo seu dinamismo, necessidades, riscos e incertezas e a
dialética processual penal.

Comecemos pelo tempo e a interferência na imediatividade da produção probatória.

[1]
O TEMPO E O

PROCESSO PENAL

Um dos pontos de maior reflexão na vida moderna refere-se ao tempo. Não só na re-
lação entre as pessoas, na sua própria individualidade e nos aspectos sociais. Analisar
a relação temporal, diz respeito à questão objetiva (de referencial), a subjetividade, a
ansiedade, o receio, a paixão, ou qualquer sentimento reservado ao ser humano, até
porque o tempo robótico (científico) se mostra programado, as sensações não! Portan-
to, a noção de tempo deve ser relativa, já que cada sistema de inércia, como apontava
Eisntein, deve ter seu tempo particular4.

Por isso, o tempo para uns pode ser longo; para outros excessivamente curto.
Basta analisarmos uma pessoa amada a partir de um longo beijo. O apaixonado preci-
sará de mais tempo para sentir aquele prazer. Talvez o tempo tenha sido muito curto
para tamanho calor da paixão. Por outro lado, encostar em uma panela quente, pode
gerar um tempo indeterminado de dor, ainda que a aproximação desses corpos tenha
ocorrido por um segundo. Então, a partir de sensações humanas a relação temporal
jamais se mostrará estática5.

Nas relações sociais, o tempo também acaba sendo um fator preponderante. Ana-
lisa-se o tempo econômico6; o tempo social; o tempo de trabalho e do ócio; o tempo
científico; o tempo eleitoral e político; o tempo prisional; o tempo hierárquico; o tempo
disciplinar (na expressão foucaultiana), e todos aqueles que se amoldam às questões
de envolvimento entre interesses sociais.

4 EINSTEIN, Albert. Como Vejo o Mundo. Trad. H.P. de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, pág. 154.

5 Famosa a explicação simplificada da Teoria da Relatividade de Einstein: “quando um homem se senta ao lado de uma moça bonita, durante uma hora, tem
a impressão de que passou apenas um minuto. Deixe-o sentar-se sobre um fogão quente durante um minuto somente – e esse minuto lhe parecerá mais
comprido que uma hora. – Isso é relatividade”. EINSTEIN, Albert. Vida e pensamentos. Martin Claret: São Paulo, 2002, pág. 100.

6 Na visão máxima do capitalismo “time is money”.

135
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

A primeira observação necessária é que o tempo de ontem não é o de hoje. A re-


lação proximal pela comunicação elevou a necessidade de maior aceleração temporal,
basta compararmos uma cidade interiorana destituída de estruturas modernosas com
as grandes metrópoles. O tempo urbano não é o mesmo que o campestre! Da mesma
forma o tempo prisional não será, nem mesmo próximo, ao tempo de fruição da liber-
dade. Por outro lado, atualmente, as relações de estreitamento nas comunicações e
das novas tecnologias reduziram bastante o tempo social.

Nesta linha, não podemos descartar o duelo entre o tempo útil e o democráti-
co. Aquele refere-se a uma análise imediatista em que a solução está referida na de-
monstração, até porque se houver a perda de tempo, pode-se deixar a utilidade de
eventual ato (financeiro, econômico, político). Por outro lado, a democracia e a socie-
dade contemporânea estão pautadas no princípio da precaução e da incerteza7 em
que a degustação de informações e reflexões são necessárias à sua consolidação. Não
há democracia açodada, justamente para que não ofenda a sua solidez. Assim, Jean
Chesneuax adverte que “o cidadão se preocupa com o tempo, com o que vai aconte-
cer mais tarde, com o alcance que terão no futuro as decisões tomadas. O utilizador,
pelo contrário, exige que ‘aquilo’ funcione de imediato: mete as fichas nas tomadas de
corrente e a máquina tem de funcionar”8.

Da mesma forma no Direito9, para nosso enfoque, a relação processual penal deve
seguir pela reflexão temporal. Aliás, este é um dos tormentosos pontos que assola há
anos esta ciência, até porque, será na contextualização processual em que incorrerá a
relação comunicacional do direito10 e dos indivíduos neste conjunto. A ênfase é confe-
rida atualmente pela maior possibilidade de fiscalização social através das formas de
comunicação e da própria mídia. Por isso que um dos motes de reclamo da socieda-
de é garantir uma maior aceleração ao término da resposta jurisdicional, objetivando
a réplica de novos desafios e conflitos. Hoje vivemos uma sociedade dromológica em
que as ideias são transformadas em velocidade da informação.

7 MORAIS, José Luis Bolzan. A subjetividade do tempo – Uma perspectiva transdiciplinar do Direito e da Democracia. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, pág.
91. BECK, Ulrich. Teoría de la sociedad del riesgo. In Las consecuencias perversas de la modernidad. Trad. Celso Sánchez Capdequí. 3ª ed. Barcelona: Anthropos
Editorial, 2011, p. 212.

8 CHESNEAUX, Jean. Tirania do Efémero e Cidadania do Tempo. In A Sociedade em Busca de Valores. Para fugir à alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo.
Org. Edgar Morin e Ilya Prigogine. Lisboa: Instituto Piaget, 1996, pág. 118. Por isso que analisando o Tempo Democrático continua na afirmação de que o
“tempo dos mercados é a verdadeira antítese do tempo dos cidadãos, o qual é constituído por crises e hiatos, por momentos de espera, de incerteza e de
maturação, de súbitos “tempos fortes”, em que tudo se torna possível, e ainda de recuos, para depois partir na boa direcção”. (pág. 127)

9 OST, Francois. O Tempo do Direito. Trad. Élcio Fernandes. Universidade do Sagrado Coração: Baurú, 2005.

10 Idem, pág. 385.

136
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

O lado maléfico desta relação tempo/direito diz respeito à necessidade de acele-


ração social com a aplicação de atitudes normativas e atos processuais urgentes. Esse
estado de urgência levanta uma bandeira de sumarização de ritos processuais, com
reformas normativas cada vez mais voltadas à celeridade de uma resposta jurisdicio-
nal e a atividade dos administradores do Poder Judiciário em criação de estatísticas
demonstrativas de redução do tempo no processo bem como novos critérios de inves-
tigação e obtenção de provas, desenvolvida a partir das necessidades de uma socieda-
de voltada ao risco e à prevenção de agruras individuais e, principalmente, coletivas.
Hoje os ISOs, com a certificação de excelência da gestão dos órgãos jurisdicionais, es-
tão pautados na quantidade de atos (audiências, despachos, sentenças) em um curto
intervalo de tempo. Portanto, a eficiência – através dos meios utilizados para alcançar
o resultado almejado – do órgão dar-se-á pela ampliada quantidade de atos que pro-
duz. O tempo acelerado indica a garantia de uma maior (e talvez melhor) prestação
jurisdicional, como adverte aquelas modalidades de análise. Da mesma forma, para
além das questões de envolvimento na dialética processual, a própria produção pro-
batória se vê envolvida entre sua eficácia e a relação temporal.

Porém, não podemos nos afastar de uma necessária reflexão constitucional ao


processo penal, em que a proteção de todos os envolvidos nesta seara deverá ser séria
e a partir da leitura e contextualização de uma Constituição Republicana, o que gera um
diálogo, em muitos aspectos não amistoso, entre as inovações tecnológicas e a “den-
sificação e expansão da área de tutela de direitos fundamentais pré-existentes11” Por
isso que, qualquer fator de interpretação do tempo processual deve seguir (e seguirá)
um parâmetro democrático, minimizando – e não descartando – um aporte utilitário
da discussão processual. Podemos afirmar, portanto, que nossa análise parte de um
tempo democrático. Por conseguinte, “será ele rico em potencialidades diversas, mas
também em ambigüidades, senão em perigos. É simplesmente o tempo dos humanos
que vivem em conjunto, com suas capacidades mas também com suas fraquezas”12.

Nesta linha de pensamento, entendemos que o processo penal deve seguir sem-
pre uma relação de proteção à investida repressiva, na medida em que jamais poderá
ser visto como gestão de segurança pública e solução imediata das questões sociais13,

11 COSTA ANDRADE, Manuel de. “Bruscamente no Verão Passado”, a reforma do Código de Processo Penal. Observações críticas sobre uma Lei que podia e devia ter
sido diferente. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 148/149.

12 CHESNEAUX. Op.cit. p. 128.

13 O que vem sendo observado pela nova dinâmica do Direito penal moderno. HASSEMER, Winfried. Rasgos y crisis del Derecho Penal moderno. In Anuario de
derecho Penal y Ciencias Penales. Ano XLV, fasc. I, 1992, pp. 235/249.

137
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

até porque, outros métodos poderiam ser utilizados com mais eficácia para a preven-
ção dos novos (e nem tão novos assim) riscos sociais14. Não seria difícil afirmarmos
que uma aceleração descabida na visão processual penal, geraria a inobservância ou
minimizaria algumas, senão todas, as garantias fundamentais que baseiam a própria
coluna vertebral do processo penal.

Portanto, na análise entre o tempo e o processo, não seria inoportuno afirmar que
aquele que praticou um ato supostamente delitivo precisa de tempo para refletir no que
fez ou no que não fez. Precisa degustar a informação de estar diante de uma estrutura
criminal. Necessidade de análise reflexiva da investigação e acusação, para que possa
confrontá-la. O processo, portanto, deve seguir numa maior relação temporal do que a
aceleração de atividades virtualizadas. No processo a urgência da resposta e a imedia-
tividade das informações jamais poderá suplantar as garantias envolvidas ao arguido,
senão o utilitarismo processual indicaria uma teórica e veloz inconstitucionalidade.

Não podemos nos afastar, no entanto, de uma busca social à celeridade processual,
textualizada, inclusive, à garantia fundamental15, com a produção de proteção com to-
dos seus efeitos16. Mas a expressão, por si só, já indica a necessidade de uma interpreta-
ção prospectiva em que o tempo do processo deve seguir uma duração razoável, para a
possibilidade dialética entre as partes acusatória e defensiva e a dinâmica da produção
e análise probatória, inclusive como um princípio prático do processo penal17.

Antiga a expressão de que um processo lento gera injustiça, na afirmação de Rui


Barbosa que justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta18. Mas o
açodamento da ritualística processual também poderá gerar máculas irreparáveis. Por
isso que o bom senso, sempre em encontro com o devido processo legal substancial,
deve ser o norte orientador da análise temporal (razoável) do processo penal. Até por-
que, “se é verdade que um processo que se arrasta assemelha-se a uma negação de jus-
tiça, não se deverá esquecer, inversamente, que o prazo razoável em que a justiça deve
ser feita entenda-se igualmente como recusa de um processo demasiado expedido”19.

14 Na indagação de Maier, “será o Direito penal uma ferramenta eficaz para prevenir tais riscos? MAIER, Julio B. J. Estado Democrático de Derecho, Derecho Penal y
Procedimiento Penal. In ?Tiene un futuro el Derecho penal? Org. Julio B. J. Maier e Gabriela E. Córdoba. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2009, pág. 110.

15 Art. 5º, LXXVIII, da Constituição da República Brasileira; art. 20, n. 4, da Constituição a República Portuguesa;art. 6º, § 1o. da, Convenção Europeia de Direitos
Humanos.

16 PINTO, Ana Luíza. A Celeridade no Processo Penal: o Direito à Decisão em Prazo Razoável. Coimbra: Coimbra, 2008, p. 69.

17 BACIGALUPO, Enrique. El debido proceso penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2007, p.87

18 BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, pág. 100.

19 OST, op. cit, pág. 383.

138
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

A aceleração econômica, social e das ideias é uma realidade que não se pode des-
cartar. Com isso, as ciências jurídicas também passam por esta transformação com
aprimoramentos tecnológicos. Assim, a busca de um processo penal mais célere é a
afirmação da aplicação prática de imposição constitucional. Contudo, nosso tempo (no
processo penal) é (e deve ser) outro. Não o tempo de urgência a todo custo, mas sim
um tempo razoável em que jamais deve afugentar outras garantias fundamentais20,
com o equilíbrio entre sua estrutura clássica e sólida, e a atual dinâmica de uma socie-
dade de riscos21 e incertezas.

Se a velocidade e a informação são os motes da sociedade moderna, o processo


penal deve seguir diante de um tempo democrático, utilizando as inovações tecnoló-
gicas para criar credibilidade às provas produzidas e ao próprio processo em si, com
objetivo de formação coerente da convicção do julgador formando um processo justo
e, sempre em busca da valorização coerente e proporcional entre a intervenção penal
e os direitos de liberdade do indivíduo22.

[2]
IMEDIATIVIDADE DOS FATOS,
IMEDIAÇÃO E CONCENTRAÇÃO
DAS PROVAS NA

DISCUSSÃO PROCESSUAL PENAL

Como já apontado na relação temporal, a velocidade como andam as ideias ultrapassa


a passividade da reflexão23. Atualmente, não há mais uma busca pelo conhecimento,
até porque este exercício é muito demorado e vive-se com pressa; procura-se infor-
mações. “A pressa é pretexto da superficialidade e manifesta em todos os pontos.”24

20 LATAS, António João (org.). Mudar a Justiça Penal. Linhas de Reforma do Processo Penal Português. Coimbra: Almedina, 2012, p. 37/39.

21 Sobre esta característica social, imprescindível a leitura de Beck, na identificação sociológica da neo-modernização, a denominação de uma sociedade de risco,
preocupada com seus avanços e seus medos. Identificou, na realidade, uma sociedade bipolar em que todos os avanços são fatores de evolução e involução,
conforto e insegurança, estabilidade e incerteza, modernização e perigos. Por isso, “o processo de modernização se volve reflexivo , se torna a si mesmo como
tema e problema.”. BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Hacia uma nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Ma. Rosa Borrás. Barcelona: Paidós,
2010, p. 30.

22 Esse, na realidade, é o ponto de maior reflexão entre os atuais pensadores do Direito e da Sociologia.

23 “O tempo do pensamento e da criação está também ele submetido a esta pressão da aceleração generalizada”. GUILLAUME, Marc. A Competição das Velocidades.
In A Sociedade em Busca de Valores. Para fugir à alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo. Org. Edgar Morin e Ilya Prigogine. Lisboa: Instituto Piaget,
1996, pág. 103.

24 MARTINS, Francisco Menezes. Impressões Digitais. Cibercultura, Comunicação e Pensamento Contemporâneo. Porto Alegre: Sulina, 2008, pág. 62.

139
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

A forma simplificada e fácil como essas são postas pelos meios eletrônicos ( internet),
indica a necessidade de estarmos sempre conectados à entrada destas informações,
imergidos, portanto, numa sociedade da informação. Hoje ou nós estamos in, não só
como consumidores25, mas como interligados a uma rede; ou estamos out, em que
não há, até mesmo, uma relação social26. Basta pensarmos que os indivíduos são vis-
tos e reconhecidos pela quantidade de pessoas que os acompanham em sites de re-
lacionamentos. Por isso podemos nos comunicar, prontamente, em todo o mundo, o
que torna tudo mais próximo e imediato quanto a relação de informações e o próprio
controle exercido sobre os fatos e ideias27.

A tecnologia anda em velocidade extrema, não mais em quilômetros por hora,


mas agora em kbites ou nanobites. Sabemos se o produto eletrônico que adquirimos
é de boa qualidade pela quantidade de armazenamento de informações e velocidade
em que gera a sua reprodução. O objetivo destes avanços, ao nosso sentir leigo, ocor-
re para que haja maior velocidade na transmissão de informações, conforme já refe-
rido, até porque, a telepresença substitui a presença física. “Troca-se o vivo pelo vazio
da rapidez, substituindo-se o espaço-tempo concebido pela experiência habitual dos
lugares pelo “não-lugar” do espaço-velocidade da técnica”.28

A aceleração em busca de informações encontra-se em todos os meios sociais,


culturais, profissionais e, ao nosso interesse, jurídicos. Estamos nos aproximando da
impossibilidade de folhearmos um livro29, tarefa das mais prazerosas para pesquisa-
dores das ciências humanas. Daqui a pouco, nossos estudos serão exclusivos em telas
de computadores ou equipamentos portáteis que armazenam diversos livros.

Na procura desta relação de ligeireza, busca-se uma maior celeridade processual,


para logo chegarmos à decisão final, na tentativa do afastamento do tempo “nadifi-
cado” do direito processual penal30. Os processos hoje já começam a ser eletrônicos.

25 Imprescindível leitura de BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo – a transformação das pessoas em mercadoria. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2008.

26 O que traduz na necessidade de todas as sociedades a implementação destas inovações tecnológicas para que o modelo digital esteja inserido em âmbito
internacional, com ênfase aos países em desenvolvimento. Neste sentido, voltado a preocupação da inserção de países em desenvolvimento na sociedade
digital, VEIGA, Carlos. Sociedade digital – Impactos na sociedade. In Direito e Cidadania. Ano IV, n. 12/13. Cabo Verde, mar-dez. 2001, pp. 251/261.

27 “Desde que o mundo iniciou uma relação a distância com suas próprias imagens, a história do homem e de seu entorno se modificou de forma irreversível.
Do que se possa argumentar a respeito de uma suposta evolução face às possibilidades técnicas. Do advento do social imaterial ao comércio eletrônico, fica
determinado um ritmo cuja interatividade é a sedução ou a dispersão. (...) Desde o advento da Internet, as rotas do social ganharam um upgrade. O mundo em
contração e expansão em movimentos alternados (Virilio) levou o tempo e o espaço à escala da interatividade. A escolha passa a ser indicadora de liberdade.
(...) Se a realidade pode ser virtual, a virtualidade também pode ser real, ainda que o dualismo mais pertinente seja o de atual e virtual (Deleuze, Lévy). Para
este caso, no entanto, o virtual-real traz idéias que se agregam ao conceito de Rebelião do Virtual”. MARTINS. Op. cit .pág. 26/27.

28 THUMS, Gilberto. Sistema Processuais Penais. Tempo. Tecnologia. Dromologia. Garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pág. 69/70. (grifo nosso)

29 Por isso a preocupação de ECO Umberto e CARRIÈRE. Não contem com o fim do livro. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2010.

30 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e Processo Penal – Uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado. Podivm: Salvador, 2009, pág. 88.

140
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

O acesso aos Tribunais Superiores se mostra on line31, o que em muito poderá ajudar
àqueles jurisdicionados e seus representantes. As audiências já começam a ser reali-
zadas através de gravação áudio visual. Toda esta modernização gira na busca de uma
resposta judicial rápida, para a demonstração da efetividade do Poder Judiciário à so-
ciedade. Velocidade de recepção e transmissão de dados, atualmente, se traduz em
efetividade processual32.

Mas não só a partir de apresentação e armazenamentos de dados eletrônicos que


estamos atualmente envolvidos. Em todo o mundo cresce a necessidade de uma vigilân-
cia eletrônica33 em todos os locais. Busca-se uma inovação tecnológica para prevenção
de delitos ou (tele) descobertas desses fatos34, como na lembrança do filme Matrix. A
evolução mundial do Direito Penal preventivo35 resta fundamentada pela necessidade
de repressão de criminalidades (sociais ou ideológicas), em que a visão panóptica de
Betham não mais precisa de um modelo arquitetônico prisional. Basta uma estrutura
tecnológica, em que minimizam os direitos fundamentais da intimidade e privacidade,
para garantir uma vigilância permanente mais atualizada. Nosso mundo on line acaba
gerando um big brother social, em que se acredita na ausência de privacidade para um
bem comum, gerando um panoptismo social36.

A ideologia destes avanços tecnológicos gera um estilo processual penal de vi-


gilância permanente, com foco sempre na urgência das medidas e na imediativida-
de dos atos. Afasta-se a sensibilidade das emoções, para garantir a objetividade da
imediata efetividade.

31 Resolução 344/2007 do Supremo Tribunal Federal brasileiro.

32 Essa preocupação não é atual. Assim exclamou Eduardo Gelano que “do jeito que vamos, segundo o criminalista Nils Christie, em pouco tempo os processos
penais serão conduzidos por vídeo, sem que o réu jamais seja visto pelo promotor que o acusa, pelo advogado que o defende e ou pelo juiz que o condena”.
GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar. A Escola do Mundo ao Avesso. Trad. Sergio Faraco. 6ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1999, pág. 113.

33 Diante de uma intrincada relação entre sociedade e privacidade individual. Ver. FROIS, Catarina (org). A Sociedade Vigilante. Ensaio sobre a identificaçção,
vigilância e privacidade. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2008.

34 A partir do avanço tecnológico surgem diversos componentes de comunicação e de vigilância comportamental que influenciam e dinamizam as investigações
policiais. Assim, para além das questões internas, a necessidade de modernização do aparato investigativo se internacionaliza e procura-se novas técnicas face
à criminalidade organizada internacional. Este, sem dúvida alguma, figura um importante e imponente foco de influência da sociedade de informação à “nova”
criminalidade. Porém, este ponto não figura nas nossas reflexões, deixando para outro oportuno momento. Importante leitura de ALBRECHT, Hans-Jörg.
Vigilância das telecomunicações. Análise teórica e empírica da sua implementação e efeitos. Trad. Inês Fernandes Godinho. In Que Futuro para o Direito Processual
Penal? Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal. Coimbra: Coimbra, 2009, pp725/743.

35 Nesta linha, Hassemer indica que a “prevenção , o qual era um objetivo colateral do Direito Penal clássico, se tem transformado em um paradigma dominante”.
HASSEMER. Op. cit, p. 239.

36 Basta pensarmos no Sistema Echelon formando uma espionagem global através de 120 satélites Vortex, em que intercepta todo tipo de comunicações que
utilizam instrumentos eletrônicos e digitais (as comunicações telefônicas, o fax e o correio eletrônico) em todo o mundo. A capacidade de interceptações de
comunicações privadas e de obter informações políticas, econômicas, tecnológicas e comerciais é de 2.000 milhões de informações por dia.

141
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

Por outro lado, não podemos deixar de apontar que a modernização da gestão da
estrutura judiciária denota-se necessária37. Da mesma forma o necessário avanço tec-
nológico em relação à macro criminalidade38 mais avançada (com ênfase ao ciber-cri-
me) para que não haja impunidade em decorrência da ausência de acompanhamento
tecnológico pelo outro revés, posto que, na maioria das vezes, a atividade criminosa
dá-se de forma anônima, com codificação de dados, armazenamentos eletrônicos,
etc39. No entanto, não podemos criar mais uma atividade indispensável sem que haja
análise para o seu destino final. Devemos pensar que todo esse avanço tecnológico
serve para criar subsídios aos indivíduos – em realidade – e não a eventuais “robôs” –
na relação de virtualidade. Toda atividade científica deve ser dirigida ao maior conforto
e vivência harmônica do ser humano, senão a referida evolução científica não valeria
à pena face à onerosidade prática. Qualquer evolução deve seguir ao aprimoramento
da sociedade e de seus integrantes.

A partir do século XX os fluxos de informação tornam-se omnipresentes. Os media


e as tecnologia da informação estão inseridas nas diversas relações da vida pública e
privada, tornando as relações mais próximas, o que de um lado mescla a simplicidade
dos contatos com a complexidade do cotidiano.

Para o Direito e o processo penal estas questão também denotam-se presentes


gerando evolução nas questões complexas e da mesma forma nas frentes delitivas.
Com esse fator evolutivo os crimes mostram-se cada vez mais sofisticados e, conse-
quentemente, há maior dificuldade na ingerência probatória para chegar a demonstra-
ção desses fatos. Neste sentido, o processo penal deverá seguir este desenvolvimento
nas intrincadas questões probatórias.

37 A mesma referência deve ser posta à atividade policial em que enseja todo o arcabouço investigativo à formação da ação penal. Aliás, caberia ao Estado dar
toda a estrutura técnica e tecnológica ao avanço das investigações, justamente para a sensação de impunidade social não ficar a cargo de desarticulação no
momento da investigação. Dessa forma, além de garantir um aparato investigativo coerente, afastaríamos, ao nosso sentir, eventuais abusos policiais com o
fundamento da busca da solução da investigação.

38 Recente Lei publicada no Brasil (Lei 12.694, de 24.07.12) dispõe sobre o processo e julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados
por organizações criminosas, indica a utilização dessas tecnologias, na medida em que os juízes que formam esse colegiado deverão ser domiciliados em
cidades diversas e poderão realizar os atos decisórios pela via eletrônica (art. 1º, § 5º)

39 Nesta linha de pesquisa, segue relatório apresentado por QUELHAS, Filipa Marta de Figueiroa. O meio de (obtenção de) prova digital electrónica – sua admissibilidade
e relevância, em especial, face à globalização e ao uso das novas tecnologias pelas organizações criminosas. Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais, Faculdade de
Direito de Lisboa, 2008, p. 21 e segs.

142
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

Deixamos, no entanto, para outra oportunidade as delicadas questões referentes


ao avanço tecnológico das investigações criminais40, seguindo apenas em algumas re-
ferências à produção das provas em juízo. Por isso, a partir da engenharia moderna
dos novos crimes, o que se observa é uma maior necessidade na fase de julgamento
, de auxílios cada vez mais técnicos para formação da convicção do julgador. Assim, a
interpretação dos argumentos expostos pelas partes, figuram, de certo modo, atrela-
dos aos novos meios e modelos de provas técnicas.

Em nosso ponto de contato, a imediatividade das informações na seara penal


urge de uma resposta “rápida” à sociedade. É a partir desta reflexão que podemos
afirmar a utilização máxima do sistema penal para a solução (ainda que artificial) da
maior parte das agruras sociais, servindo o Direito penal na tentativa de proteção do
mundo, atualmente, como “arma multiuso41” de asseguramento social para a preven-
ção de distúrbios individuais e sociais . Pensa-se que o direito penal serve hoje como o
maior salvador dos problemas, envolvendo grupos de indivíduos ou mesmo relações
coletivas. Há praticamente uma pan-penalização das atividades sociais, como se o Di-
reito Penal alcançasse um grau de superioridade em relação à outras atividades do
Estado, criando uma fácil identificação da sua expansão.

Atualmente, fomenta-se no sistema penal uma tentativa de segurança social e a


própria prevenção delitiva. E, para que haja esta artificial solução dos problemas, a re-
pressividade penal indica o ponto de partida principal, criando alguns outros e conhe-
cidos problemas. Basta lembrarmos das palavras, sempre atuais, de Zaffaroni para
saber do que nos referimos, quando afirma que “a seletividade estrutural do sistema
penal – que só pode exercer seu poder repressivo legal em um número insignificante
das hipóteses de intervenção pacificadas – é a mais elementar demonstração da fal-
sidade da legalidade processual proclamada pelo discurso jurídico – penal. Os órgãos
executivos têm “espaço legal” para exercer poder repressivo sobre qualquer habitan-
te, mas operam quando e contra quem decidem.”42

40 Questão de imprescindível relevância face aos novos crimes organizados em estruturas transnacionais em que enseja a necessidade de técnicas especiais
de investigação. Por outro lado, não há possibilidade de romper o dique internacional de respeito aos direitos humanos. Por isso, essas novas e especiais
técnicas deverão respeitar o princípio alicerçal do Direito penal, da legalidade, o que traduz a necessidade de respeito à segurança da atuação investigativa,
não sendo possível ultrapassar o marco de uma investigação concreta. Por outro lado, há necessidade de respeito ao princípio da subsidiariedade , o que
traduz na imposição da utilização de outros meios de investigação menos onerosos aos direitos e liberdade fundamentais, sendo, portanto, realizadas as
novas técnicas quando não houver outro meio investigativo. Ainda, imprescindível o respeito ao princípio da proporcionalidade, o que indica a utilização
destas técnicas apenas quando estiver o investigador diante de crimes extremamente graves, ou de necessidade de prevenção de outros da mesma natureza.
O respeito a todos esses ditames constitucionais dar-se-á pela salvaguarda dos direitos e liberdades individuais, bem como o receio de vulgarização das novas
e especiais técnicas de investigação, surgindo sempre a necessidade de diálogo entre necessidade e conveniência democrática para utilização destes meios.
Ver LEZERTUA, Manuel. Terrorismo y médios jurídico-tecnológicos de investigación penal. In La adaptación del Derecho Penal al desarrollo social y tecnológico.
Coord. Emilio José Armaza Armaza. Granada: Comares, 2010, p. 459.

41 Expressão de Kindhäuser. Em KINDHÄUSER, Urs. Estructura y legitimación de los delitos de peligro del Derecho penal. Trad. Nuria Pastor Muñoz. In www.indret.
com, acesso em 10 de julho de 2012, p. 04.

42 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. 4ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991, pág. 25.

143
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

Em relação à discussão processual penal, a imediatividade da resposta (condena-


tória, para a alegria de “muitos”) tornou-se o ponto crucial para a efetividade do pro-
cesso. Até porque, “não há mais “revolução industrial” e sim “revolução domocrática”,
não há mais democracia e sim domocracia, não há mais estratégia e sim dromologia”43.
O gravame desta afirmativa ocorre em virtude da adoração midiática pelo sistema pe-
nal. Quanto mais crime e imagem sensacionalista, maior venda de jornais, revistas e
informações, criando alguns graves problemas quanto ao domínio da prova e a pró-
pria atividade de argumentação das partes, frente as relações multimédias44, com ên-
fase na questão sobre as medidas cautelares pessoais.

Por outro lado, as inovações tecnológicas ensejam mudanças na forma de ma-


terializar e externar várias funções cognitivas45, em decorrência da forma armazena-
mento e de transmissão.

Segue nesta linha, além da aproximação dos fatos aos atos processuais, uma re-
lação de maior ingerência na “memória” dos atores processuais. Assim, para além das
questões de argumentação necessária à dialética envolvida na situação processual, a
percepção do julgador e seu revisor (em grau recursal) pode estar ampliada frente às
novas tecnologias utilizadas no trâmite do processo e julgamento. Pensemos apenas
na forma de produção e armazenamento dos atos probatórios produzidos, tornando
a imediatividade dos atos e sua captação instrumentos automatizados46 que, natural-
mente, influenciam na forma de obter a decisão e sua reapreciação pelo tribunal.

Por isso, nosso ponto de aproximação entre as inovações tecnológicas, a imedia-


tividade processual e com a finalidade de dar um rumo democrático ao processo pe-
nal através da vivência prática das garantias fundamentais. Nesta linha, outro ponto
de crucial importância denota-se a necessidade de ditarmos o princípio da imediação
como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes do
processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material
que haverá de ter como base sua decisão”47. Podemos afirmar neste contexto que, a
utilização de inovações tecnológicas no trâmite processual, além de dar à imediação

43 VIRILIO, Paul. Velocidade e Política. Trad. Celso M. Paciornik. Estação Liberdade: São Paulo, 1996, págs. 56/57.

44 CHIAVARIO, Mario. O impacto das novas tecnologias: os direitos dos indivíduos e o interesse social no processo penal. trad. Claudia Cruz Santos, In Revista Portuguesa
de Ciência Criminal. Ano 7. Fasc. 3º Jul-set, 1997, p. 388/389.

45 “O mesmo se aplica à percepção, memória, operações lógicas e aprendizagem. O mundo do óbvio, o que está <à frente dos nossos olhos>, depende agora de
uma cognição distribuída entre nós e os artefatos cognitivos, que são tão mais <transparentes> quantro mais eficientes.” BINDÉ, Jérôme. Rumo às Sociedades
do Conhecimento. Trad. Sandra Campos. Lisboa: Piaget, 2007, p. 84.

46 Idem, p. 86.

47 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Vol. I. Coimbra: Coimbra, 1974, p. 232.

144
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

uma nova configuração externa, cria novas formas de linguagem processual, na medi-
da em que estabelece critérios de produção e análise de provas.

Nesta linha, o princípio da imediação, conjugado à oralidade e a publicidade, fi-


gura-se presente quando o julgador (monocrático ou colegiado) forma sua convicção
sobre os fatos através das provas produzidas em audiência à sua presença (imediação
formal48) sem intermediação qualquer49, ensejando uma relação direta entre a pro-
dução probatória e sua percepção sensorial de tudo aquilo que ocorre à sua frente50
(imediação material51), havendo maior facilidade de ponderação de todo o produzido
em sua presença52, até porque a validade gnosiológica, em termos de garantia sobre
a busca da verdade envolvida na discussão processual é “comumente atribuída na re-
lação de imediação que intercorre entre a fonte de prova e o juiz.53”

Por outro lado, o contato do juiz direto com a prova (imediação em sentido sub-
jetivo) pode traduzir em uma estrutura inquisitorial54 quando este se dispa de impar-
cialidade e realiza atos de investigação e acusação. Mas, se afastado desta carga auto-
ritária, pode-se figurar necessária para formação da sua convicção, já que para além
do princípio da livre apreciação da prova este deve basear-se em todo o material pro-
duzido para a decisão penal55, objetivando minimizar a distância entre os fatos e sua
convicção. Tal possibilidade apenas será viável se diante de uma dialética processual,
conjugado à vivificação prática do princípio do confronto.

Por outro lado, as novas tecnologias realçam a imediação objetiva em que gera um
aprimorado registro sobre os fatos (a serem julgados), os métodos de investigação e a
própria produção probatória em que, em várias oportunidades não mais são necessá-
rias vias indiretas e sim na conexão do que se vê e o que se produz. Basta pensarmos

48 ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. 25ª ed. Trad. Gabriela E. Córdoba y Daniel R. Pastor. Buenos Aires, 2000, p. 394.

49 DALIA, Andrea Antonio e FERRAIOLI, Marzia. Manuale di Diritto Processuale Penale. 5ª ed. Milano: CEDAM, 2003, pp. 704.

50 MONTERO AROCA, Juan. Principios del proceso penal. Una explicación basada en la razón. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997, p. 180/181; BACIGALUPO. Op. cit,
p. 97. Por óbvio, há algumas exceções para que não haja inviabilidade probatória. P.ex. provas antecipadas, em decorrência da morte de uma testemunha;
documental; pericial; etc.

51 ROXIN. Op. cit. p. 200.

52 Por isso adverte Bacigalupo que “a percepção direta da prova é, pelo contrário, um pressuposto da sua ponderação da prova em consciência, que o moderno
legislador delegou ao juiz. O juiz que quantifica não necessita ver a declaração da testemunha, pois sua função se limita a comprovações numéricas. O juiz
que valora em consciência a credibilidade de uma declaração, pelo contrário, só pode fazê-lo se percebe diretamente a declaração oral da testemunha.”
BACIGALUPO. Op. Cit. p. 99.

53 NAPPI, Donatella Curtotti. L’uso dei collegamenti audiovisivi nel Processo Penale tra necessita di efficienza del Processo e rispetto dei principi garantici. In Rivista
Italiana di Diritto e Procedura Penale. Milano: Dott. A. Giuffrè. Ano XLII. Faz. 2. Aprile-giugno, 1999, p. 506.

54 MESQUITA, Paulo Dá. A prova do crime e o que se disse antes do julgamento. Estudo sobre a prova no Processo Penal Português, à luz do sistema Norte-Americano.
Coimbra: Comibra, 2011, p. 297.

55 No sistema processual português a ênfase dar-se-á pelo art. 355º, CPP, na medida em que, como regra, somente valerá para a formação da convicção do
julgador, as provas produzidas em audiência.

145
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

nas interceptações de comunicação em que não há uma via indireta pela testemunha
sobre o que o arguido expôs, mas as suas próprias palavras; as gravações on line, in-
clusive com telefones móveis em que poderão, em verdadeiro estado flagrancial, se-
rem colocados em redes internacionais de comunicação.

Nesta mesma linha, este postulado pode ser constado a partir das novas tecno-
logias em que há uma certa ampliação sensorial entre o julgador e as provas produ-
zidas, com ênfase na testemunhal, em que não mais se interpreta o que foi transcrito
pelas mãos de terceiros, mas sim a partir da própria apreciação visual (quando houver
a gravação visual, como abordaremos mais adiante) da testemunha.

Esta referência cria outro importante contato da imediação com a formação da


convicção do julgador revisional, na medida em que será viável a análise, quase direta,
pois gravada em áudio e vídeo, das oitivas das testemunhas. Ponto de elogio à aplica-
ção das novas tecnologias à dinâmica processual, mas que trará outros percalços, que
abordaremos mais adiante.

Outro ponto de convergência possível a partir do avanço tecnológico dar-se-á pelo


princípio da concentração, em que se exige que todas as provas sejam produzidas no
decurso do julgamento56, exigindo uma prossecução, quando possível, da ocorrência
unitária e contínua de todos os atos processuais no tempo e no espaço57.

Para além da concentração dos atos, a questão a ser enfrentada refere-se à fi-
dedignidade dos depoimentos realizados em que não será possível burlar a realidade
da sua produção, com a utilização das novas formas de reprodução com utilização de
gravações audiovisuais. Assim, para além do incremento da concentração espacial,
haverá a redução temporal que ratifica a proposta deste princípio processual.

Esta prática autorizará não apenas a celeridade do ato processual, o que se coa-
duna com a garantia constitucional da duração razoável do processo, mas também a
possibilidade de maior fiscalização das próprias partes e de órgãos correcionais, uma
vez que eventual abuso realizado por qualquer dos atores envolvidos no ato será gra-
vado com a precisa identificação de seu ato.

56 Art. 400§ 1º CPP, brasileiro; art. 335º, CPP, Português. Fixação de jurisprudência n. 11/2008 do Supremo Tribunal de Justiça Português que dispõe: Nos termos do
artigo 328º, n. 6 do Código de Processo Penal, a adiamento da audiência de julgamento por prazo superior a 30 dias implica a perda da eficácia da prova produzida
com sujeição ao princípio da imediação. Tal perda de eficácia ocorre independentemente da existência de documentação a que alude o artigo 363º do mesmo diploma.

57 DIAS. Direito Processual Penal, p. 183.

146
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

Mas, a questão apresentada aos casos concretos poderá trazer sérios proble-
mas à segurança e riscos ao trâmite processual e a identificação do próprio devido
processo legal, merecendo maiores reflexões sobre o registro e a transmissão simul-
tânea audiovisual.

[3]
IMPLEMENTAÇÃO DA INOVAÇÃO
TECNOLÓGICA NAS SALAS
DE JULGAMENTO –

REGISTRO AUDIOVISUAL DOS

ATOS PROCESSUAIS REALIZADOS

O Código de Processo Penal Brasileiro em 2008 pela Lei 11.71958 sofreu substancial al-
teração quanto ao tema em discussão em seu artigo 405, traçando a dinâmica e estru-
tura para a realização sempre que possível dos registros dos depoimentos das partes,
investigado, indiciado, autor do fato, ofendido e testemunhas pelos meios ou recursos
de gravação digital audiovisual59.

Os principais fundamentos para a implementação desta estrutura tecnológica ,


como uma das formas de técnica de gestão processual60, referem-se a maior precisão
(fidedignidade61), eficiência, segurança e celeridade dos atos processuais. O respaldo
normativo ocorre com o advento da Lei 11.419/06, adaptando a mídia eletrônica como
mecanismo preferencial da prática de atos processuais62.

Três, portanto, são os pontos chaves desta estrutura tecnológica objetivando a


colheita de informações perante as audiências de instrução e julgamento: celeridade,
imediação e fidedignidade dos eventos ocorridos.

58 O ponto de apoio dar-se-á pela legislação processual brasileira em decorrência da atualidade da discussão.

59 Da mesma forma em Portugal, a partir do art. 364º, CPP em que dispõe ser a regra a documentação das declarações prestadas oralmente na audiência, através
de gravação magnetofónica ou audiovisual. Tal dispositivo enseja substancial discussão nas questões dos recursos sobre matéria de fato, efetivando, a partir da
Lei 59/98, de 25 de agosto quanto ao regime dos recursos das decisões do tribunal coletivo, o duplo grau de jurisdição. Cf SILVA, Germano Marques da. Registro
da prova em Processo Penal. Tribunal Coletivo e Recursos. In Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues. Vol. I. Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 818.

60 LATAS. Op. cit, p. 41.

61 RAFARACI, Tommaso. I mezzi audiovisivi nel processo penale tedesco. In Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale. Ano XLIII, fasc. 1. Gennaio-marzo, 2000, p. 277.

62 Observa-se em Portugal essa estrutura a partir dos artigos 101º, e art. 364º, ambos do CPP.

147
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

Não há como refutar maior celeridade neste ato, na medida em que se afasta a
forma tradicional de digitalização pelo assessor do juiz após a ocorrência dos atos. O
tempo da audiência terá uma redução, talvez no mínimo, de dois terços63.

Indiscutivelmente, teremos um maior número de audiências realizadas em um


dia com a simplicidade na obtenção das informações.

Outro ponto de crucial importância nos registros audiovisuais, diz respeito à fide-
dignidade dos eventos ocorridos, valorizando o princípio da imediação para além do
juízo a quo também perante o julgamento perante o tribunal. Assim, a gravação da
imagem e som, gera a redução de atos de omissão ou abusos que, infelizmente, acon-
tecem diuturnamente, amplia-se a proximidade entre a prova produzida e atividade
sensorial do julgador, permitindo o controle jurisdicional em âmbito recursal em rela-
ção à matéria de fato64.

Além da demora, em muitas oportunidades eram observados distúrbios entre a


oitiva das partes envolvidas e o ditado do juiz ao seu secretário. Estas diferenças, por
vezes, ocorriam pela dúbia interpretação realizada pelo julgador, em que sua aprecia-
ção pessoal já traçava as palavras que no futuro iria utilizar para decidir o conflito pe-
nal. Outras vezes, e pela infelicidade da observação, utilizavam o seu poder de presi-
dência do ato para distorcer as palavras expostas ao seu sentir, indicando a flagrante
parcialidade para a decisão futura, como se a exposição de uma testemunha, ofendi-
do e arguido fosse um ato unilateral que só ele julgador recebesse e interpretasse as
exposição, sentimentos e angústias daquele expositor.

Indiscutivelmente, a estrutura processual antiga lembrava a permanência de um


sistema pouco democrático, que apenas gerava prejuízo à dialética, na medida em que
toda a carga burocrática estava pautada em seu desfavor.

Assim, a captação destas imagens gerará uma identificação do que ocorreu, com a
percepção das atividades das partes processuais, do juiz, e daqueles que estão prestan-
do depoimentos. A coação realizada pelos envolvidos nesta ritualística contra aquelas

63 Sabemos que os atos processuais são, por si sós, burocráticos, cansativos e demorados. Na antiga aplicação do rito processual, engendrava verdadeiro
rompimento com a paciência de todas as partes envolvidas em uma audiência. Até os estagiários que lá permaneciam para assisti-las, em muitas vezes, não
suportavam chegar ao seu término, desistindo no meio ou até cochilando em alguns atos, ainda que para os iniciantes qualquer atuar nos locais de julgamento
indique uma aventura a ser ressaltada nos bancos escolares. O problema é que o antigo sistema presidencial brasileiro realçava um desperdício de energia,
na medida em que as partes tinham que perguntar ao juiz e este reperguntava ao ofendido, testemunha e arguido. Após, era necessária a escrituração de
toda essa fala. Um ato que poderia demorar uma hora, talvez levasse três horas por toda esta engenharia burocrática.

64 MESQUITA. Op. cit, , p. 302. Na sua continuidade afirma que “a perspectiva jurisprudencial centra-se, contudo, no valor gnoseológico da imediação com o
outro, do julgador de facto em relação à testemunha, uma experiência interior inacessível a terceiros, <a percepção do depoimento é conseguida com a ime
diação da prova>” (p. 305)

148
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

pessoas fragilizadas pela sua condição de vítima, testemunha ou arguido, minimizará,


na medida em que ficará fácil a constatação de eventuais abusos pela gravação65.

Podemos afirmar, portanto, que a gravação audiovisual traduzirá em maior celerida-


de dos atos processuais, fidedignidade dos eventos ocorridos e, principalmente, seguran-
ça para a ritualística processual e para aqueles que estão prestando seus depoimentos.

Porém, algumas outras questões podem ser levantadas nem sempre com um pa-
norama tão elogioso. Pensemos na imagem, honra e intimidade, como corolário es-
trutural do princípio da personalidade daqueles submetidos às gravações.

Para garantia da intimidade e imagem daqueles que lá estiveram presentes nas


audiências, com a gravação da sua imagem e voz, caberá ao juiz advertir as partes
acerca da vedação de divulgação não autorizada dos registros audiovisuais a pessoas
estranhas ao processo. Mas como o processo é público, a questão a ser enfrentada é
do acesso, inclusive midiático, das provas orais produzidas. Não precisamos de muito
esforço intelectual para sabermos que a reprodução de um escrito não gera a mesma
consequência de uma mídia. Por isso, aqueles que estão em juízo para auxiliar na di-
nâmica da solução penal deverá possuir maior respaldo quanto à sua exposição, pois
do contrário, esta dinâmica de produção de provas poderá ensejar em uma pena ex-
traprocessual de extrema lesividade.

Outra importante discussão sobre esta engenharia tecnológica nas audiências diz
respeito a desnecessidade de transcrição dos material colhido. Tal referência traça
dois viés de extrema relevância para o trâmite processual.

Se por um lado houvesse sempre a imposição normativa para a referida transcri-


ção, todo o motivo das novas tecnologias cairiam por terra, na medida em que a ad-
ministração possuiria um duplo ônus. Para além da gravação, haveria a necessidade
de transcrição (e só a ela caberia, face ao princípio da oficialidade). Por outro lado, a
própria celeridade como importante motivo da implementação dessas novas tecno-
logia não seria observado, pois a burocratização seria restabelecida pela necessidade
de escrituração do material realizado em audiência.

Porém, outro viés interpretativo dar-se-á pela ausência de transcrição. Deste lado,
indiscutivelmente, o modelo virtual cria relevantes problemas quando refere-se ao

65 Esse é um delicado problema que a publicidade dos atos, nem sempre, consegue solucionar.

149
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

duplo grau de jurisdição. Assim, a maior dificuldade, por nós identificado, transfere-se
às hipóteses de reanálise das decisões. Por outro lado, para além da discussão da ora-
lidade, que não estaria completa face a atividade reprodutiva das provas, aproximar-
-se-ia da imediação em grau recursal66.

Mas, observando os problemas práticos, imaginemos o trâmite processual, utili-


zando o método do registro audiovisual para a colheita de provas em relação a matéria
de fato, com decisão condenatória. Havendo impugnação desta decisão, serão remeti-
dos os autos do com as alegações das partes, a decisão do juiz, as razões e contrarra-
zões recursais e a mídia com o material probatório. Analisando as questões práticas,
será viável aos Desembargadores nas Câmaras e Turmas Criminais assistirem todas
as audiências gravadas? Haverá tempo suficiente para a análise mais dedicada e res-
ponsável do material probatório?67

Acreditamos que duas seriam as hipóteses: ou a busca de maior celeridade no


julgamento dos recursos ou a maior atenção na análise probatória ocorrida em ins-
tância inferior.

Na primeira hipótese, estaríamos diante de um grave problema de apreciação su-


perficial do material probatório colhido. Podemos pensar, inclusive, na própria ausên-
cia deste exame, ficando atrelado apenas aos argumentos das partes e da reanálise
decisória, o que minimizaria a atenção necessária às impugnações recursais. Ou seja,
a redução da força constitucional do duplo grau de jurisdição, decorrente necessário
do devido processo legal, estaria demasiadamente esvaziado.

Por outro lado, na garantia e responsabilidade da análise probatória por todos os


julgadores revisionais, o que seria célere, tornar-se-á lento. O fundamento básico des-
ta inovação tecnológica restaria completamente inobservado.

66 Não concordando com esta afirmativa Montero Aroca, já que reconhece que a imediação é contrária ao recurso de apelação. Cf MONTERO AROCA. Op.
cit, p. 184, nrp, n.34. Posição diametralmente oposta é a de Bacigalupo quando afirma que “se o princípio da imediação é uma condição constitucional de
valoração da prova que se vincula com o direito ao juiz predeterminado pela lei, suas consequências devem reger tanto para apelação como para a cassação.”
BACIGALUPO. Op. cit, p. 106/107.

67 Esta preocupação não é só nossa, na medida em que a própria mensagem da Resolução 105/10 do Conselho Nacional de Justiça indica que embora o art.
405, § 2º, do Código de Processo Penal, quando documentados os depoimentos pelo sistema audiovisual, dispense a transcrição, há registro de casos em que se
determina a devolução dos autos aos juízes para fins de degravação e que para cada minuto de gravação leva-se, no mínimo, 10 (dez) minutos para a sua degravação,
o que inviabiliza a adoção dessa moderna técnica de documentação dos depoimentos como instrumento de agilização dos processos. Mas, considerando ainda a
caracterização de ofensa à independência funcional do juiz de primeiro grau a determinação, por magistrado integrante de tribunal, da transcrição de depoimentos
tomados pelo sistema audiovisual, dispõe em seu art. 2º, § único que o magistrado, quando for de sua preferência pessoal, poderá determinar que os servidores que
estão afetos a seu gabinete ou secretaria procedam à degravação, observando, nesse caso, as recomendações médicas quanto à prestação desse serviço. O mesmo
receio surge nos Tribunais espanhóis em decorrência da ausência de tempo e estrutura para que haja possibilidade da oitiva de todas as provas em grau
recursal, conforme ressalta MONTERO AROCA. Op. cit, p. 182. Tais discussões denotam-se reduzidas em Portugal, na medida em que após a edição do art.
101º, n. 3, CPP quando as provas forem realizadas por gravação magnetofónica ou audiovisual, não haverá necessidade de transcrição, devendo o Tribunal
realizar a análise da matéria produzida perante o juízo a quo por via da audição ou da visualização dos registros gravados (art. 412º, n. 6, CPP), baseando-se
nas indicações das partes recorrentes das passagens das gravações em que se pauta o recurso interposto (art. 412º, n.4, CPP). Nesta linha, perde-se o valor da
orientação do STJ em que determinava a transcrição de toda a matéria de fato realizada em audiência. Para tal efeito, as partes processuais que requererem
receberão cópias das mídias em quarenta e oito horas, substituindo a regra da transcrição pelo acesso às partes do material gravado em audiência. Essa
discussão não passou alheia à doutrina, cf. SILVA. Registro da prova em Processo Penal., p. 815 e segs.

150
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

E quanto ao arguido/condenado? Ao nosso sentir, talvez esse seja o pior problema


do registro audiovisual do material probatório colhido e da própria decisão. Com cópias
dos atos produzidos, os arguidos/condenados conseguem visualizar a situação proces-
sual (sancionatória) que se encontram. Possuem condições de análise, críticas e refletir
sobre o que ocorreu no confronto criminal. Terão eles as mesmas condições na posse de
um CD ou DVD? Haverá equipamentos disponíveis nos presídios para que os acusados
consigam assistir toda a discussão processual, diante do seu caso concreto? Sabemos
que a resposta denota-se negativamente simples e não podemos menosprezar ques-
tões práticas que envolvem todo o aparato das consequências processuais, até porque,
não só a ampla defesa estaria como referência, mas a própria liberdade do indivíduo.

Por todos esses fundamentos, acreditamos que esta inovação tecnológica, efe-
tivamente, torna-se uma necessária arma de celeridade, segurança e atualização do
trâmite processual. No entanto, sua aplicação não está alheia a críticas e observações
diárias para aprimoramento e adequação ao devido e justo processo legal.

[4]
INTERROGATÓRIO E OITIVA
DE TESTEMUNHAS POR
VÍDEOCONFERÊNCIA –

EFETIVIDADE PRÁTICA E ANÁLISE

DA GARANTIA FUNDAMENTAL

DA AMPLA DEFESA

Como já exposto, até pela preocupação inaugural do presente estudo, todo aparato
tecnológico no processo penal deverá se pautar na aplicação séria de proteção e vi-
sibilidade dos direitos e garantias fundamentais. Sem esta análise, qualquer avanço
técnico seria um retrocesso jurídico eivado de vício de constitucionalidade, na medida
em que, não obstante os novos riscos da pós-modernidade, em que o processo pe-
nal serve como “ordenamento de segurança”, deve ser considerado, primordialmente

151
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

como “ordenamento de liberdade”68. O que precisamos e buscamos são avanços na


proteção do ser humano, por isso, a criação de qualquer subterfúgio técnico ou tecno-
lógico deve agregar ao crescimento substancial de resguardo àqueles envolvidos na
discussão processual. A partir daí, cria-se elementos inovadores ao amparo do ofendi-
do, testemunhas69 e observância do arguido na situação processual penal.

As inovações tecnológicas são necessárias e indiscutivelmente ocorrerão para de-


senvolver e se amoldar à velocidade da sociedade moderna. Podemos afirmar que nos-
so tempo não é o mesmo da geração passada e não será o mesmo da futura, por isso,
devemos acompanhar esses avanços em todas as ciências. Mas, podemos traçar alguns
limites a esses progressos? Até que ponto afirmamos que o avanço tecnológico no pro-
cesso penal gera um retrocesso no nosso parâmetro constitucional de proteção ao in-
divíduo? São aparatos indiscutivelmente imprescindíveis e, atualmente, reconhecidos
como “naturais” à estrutura de qualquer procedimento judicial. Mas haverá equilíbrio
entre as necessárias inovações e a solidez da proteção constitucional do indivíduo?

Neste foco, a realização de atos processuais por videoconferência ilustra esse


(des)compasso entre o incremento técnico e a permanência da solidez de algumas
matrizes do Direito processual penal. Por óbvio, ocorrerão predicados positivos que
não poderemos desconsiderar e outros nem tanto assim, que deveremos recebê-los
para dar maior conteúdo a eventuais críticas.

[5]
ARGUMENTOS POSITIVOS E
NEGATIVOS DA UTILIZAÇÃO DA

VIDEOCONFERÊNCIA NO PROCESSO PENAL

A primeira e necessária afirmativa é que todos os atos processuais deverão seguir co-
erência lógica com o devido processo legal, para que haja efetividade constitucional
na sua individualidade e no conjunto, ou seja, no procedimento realizado em contradi-

68 RODRIGUES, Anabela Miranda. A defesa do arguido: uma garantia constitucional em perigo no “admirável mundo novo”. In Revista Portuguesa de Ciências Criminais.
Ano 12. N. 4. Out-dez. 2002, p. 550.

69 Na discussão entre eficácia do processo penal contra as formas mais graves de criminalidade no envolvimento da necessidade de proteção às testemunhas
ver. LOPES DA MOTA, José Luís. Protecção das Testemunhas em Processo Penal. In Estudos em Homenagem a Cunha Rodrígues. Vol. I. Coimbra: Coimbra, 2001,
p. 661/685.

152
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

tório judicial com isonomia necessária reservada às partes e diante da visibilidade de


todas as garantias constitucionais ligadas ao processo penal.

Por isso, nosso ponto de análise deve basear-se pela segurança jurídica de referên-
cia àqueles envolvidos na seara processual penal indicada por inferências constitucionais,
não sendo crível uma redução utilitarista (por conveniência e pragmatismo da administra-
ção pública) de atos isolados em confronto com o parâmetro de proteção democrático.

Nesta linha de raciocínio, devemos afirmar que a regra da produção probatória é


a presença imediata e real do ofendido, das testemunhas70 e arguido perante as par-
tes acusatória e defensiva, bem como o órgão julgador. Por isso, o direito ao confronto
deve ser concebido como um “direito ao encontro face a face com as testemunhas de
acusação, algo que se infere, inclusive, da origem etimológica da palavra confronto.
Assim, resta induvidoso que a videoconferência enseja restrição ao direito fundamen-
tal em apreço”.71

No entanto, não há como desconsiderar a existência atual de testemunhas ou


ofendidos remotos72, ou seja, aqueles que não estão fisicamente presentes no momen-
to da sua oitiva em sala de audiência. Assim, em grau de excepcionalidade, a video-
conferência para a oitiva das testemunhas e ofendido em muito contribuiu para sua
efetiva presença na discussão processual. Podemos afirmar que o avanço tecnológico
pode gerar uma maior proximidade das testemunhas e ofendido na produção de atos
processuais, com ênfase nas audiências de instrução e julgamento, e aplicação dos
princípios da oralidade e concentração dos atos e imediação probatória. Para tanto,
imprescindível a análise de seus pressupostos, tais como a legalidade, excepcionalida-
de, proporcionalidade, especial motivação, bem como os requisitos formais e procedi-
mentais – comunicação bidirecional e interativa, autenticidade e integridade73.

No Direito processual penal brasileiro, com aplicação do artigo 217, CPP, não mais
será necessária a permanência do ofendido e testemunhas na mesma sala de audiência

70 Não podemos nos afastar, no entanto, da necessária proteção destes atores processuais, para que o sistema judicial não realize uma dupla vitimização. Assim,
jamais serão descartados os modelos normativos de proteção à testemunha, seguindo como um regime processual de “dupla via”, em que o tratamento para
a análise da criminalidade comum não poderá ser a mesma da macro-criminalidade ou da criminalidade organizada. Cf. RODRIGUES. Op. cit, p. 553.

71 MALAN, Diego Rudge. Direito ao Confronto no Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pág. 174/175.

72 Idem, pp. 170 e segs.

73 PADRILLO, Juan Carlos Ortiz. El uso de la videoconferencia em el proceso penal español. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 67. São Paulo: Revista
dos Tribunais, jul/ago, 2007, págs. 202/208. Aponta, ainda, Juan Padrillo a desnecessidade de transcrição das gravações (p. 208). Porém, este ponto não há
consenso, como será visto mais adiante. Na Espanha, como adverte o autor, os Tribunais têm exigido tradicionalmente a transcrição, o que para ele resultaria
em uma exigência inútil, “já que não oferece nenhuma garantia adicional a normal audição de uma conversação tefefônica ou ao visionado em uma fita de
vídeo”. (p. 208)

153
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

que o arguido74, o que sabemos trazer verdadeiro desconforto àqueles. Portanto, para
que minimize eventual humilhação, temor ou sério constrangimento à testemunha e ao
ofendido, o julgador, demonstrando através da simbolização de sua decisão os motivos
que determinaram esta medida, fará sua inquirição através da videoconferência.75 Nes-
ta hipótese, o legislador processual penal brasileiro, sopesando a imediação do exame
das provas, em relação a uma maior busca formação do convencimento do juiz com a
presença da testemunha e, por outro lado, o sacrifício da imediação em prol da garantia
da presença do acusado76, optou pela escolha constitucional da primeira.

Garante, portanto, maior conforto àquela pessoa que restou fragilizada pela con-
duta em si (ofendido) e aquelas que geraram maior confiabilidade na formação do
convencimento do julgador. Aqui, o argumento positivo dar-se-á pela segurança indi-
vidual destas pessoas envolvidas na seara processual penal77.

Em relação à oitiva da testemunha e ofendido que residam em outro local, a proxi-


midade destas com o julgador gera maior efetividade da produção probatória. Ao invés
do deslocamento daqueles à comarca competente, poderão ser inquiridos por video-
conferência na própria audiência de instrução e julgamento. A partir desta prática a con-
centração dos atos e imediação se complementam na atividade de produção probatória.

Por outro lado, este avanço tecnológico nestas situações pode gerar o afastamen-
to de uma prática inconstitucional, porém diuturna, na justiça brasileira. A oitiva de
testemunhas que residem em outro local do julgamento, em regra, induz à violação
flagrante à ampla defesa, na medida em que poderá ocorrer sem a presença do argui-
do e do seu próprio defensor.

Quando há carta precatória, a jurisprudência brasileira vem entendendo que basta


a intimação da sua expedição à defesa técnica. Com isso, a administração judicial se de-

74 No Direito Processual Português, a matéria é disciplinada pelo artigo 352º, n. 1, determinando o tribunal “o afastamento do arguido da sala de audiência, durante
a prestação de declarações, se: a) houver razões para crer que a presença do arguido inibiria o declarante de dizer a verdade; b) o declarante for menor de 16 anos e
houver razões para crer que a sua audição na presença do arguido poderia prejudicá-lo gravemente, ou; c) dever ser ouvido um perito e houver razão para crer que a
sua audição na presença do arguido poderia prejudicar gravemente a integridade física ou psíquica deste”. A utilização da videoconferência ocorre apenas quando
da necessidade de proteção da testemunha como dispõe o art. 5º da Lei 93/99, de 14.07.

75 Esta prática nos países da common law se mostra antiga. Desde 1983 a experiência jurídica dos EUA, com a chancela da sua Corte Suprema, tem realizado
audiências por videoconferência nos crimes de abuso de crianças e adolescente (child abuse), para minimizar eventuais traumas psicológicos entre os ofendidos
e a presença física do arguido. Ver NAPPI. Op.cit, p. 529 e segs.

76 Este não se mostra um ponto de fácil equilíbrio, conforme pode ser observado pelos argumentos de RAFARACI. Op. cit, p. 271.

77 A preocupação do ofendido e testemunhas transcende o direito pátrio, podendo ser observado, para simples ilustração, no Estatuto de Roma em que
regulamentou o procedimento do Tribunal Penal Internacional, ratificado por nós pelo Decreto n. 4388/02. O artigo 68 trata da proteção das Vítimas e das
Testemunhas e sua participação no processo. Para tanto, o Tribunal adotará as medidas adequadas para garantir a segurança, o bem-estar físico e psicológico, a
dignidade e a vida privada das vítimas e testemunhas (art. 68.1). Enquanto excepção ao princípio do caráter público das audiências estabelecidas no art. 67, qualquer
um dos Juízos que compõem o Tribunal poderá, a fim de proteger as vítimas e as testemunhas ou o acusado, decretar que um ato processual se realize, no todo ou
em parte, à porta fechada ou permitir a produção de prova por meios eletrônicos ou outros meios especiais. Estas medidas aplicar-se-ão, nomeadamente, no caso de
uma vítima de violência sexual ou de um menor que seja vítima ou testemunha, salvo decisão em contrário adotada pelo Tribunal, ponderadas todas as circunstâncias,
particularmente a opinião da vítima ou da testemunha (art. 68.2).

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INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

sonera de requisitar o arguido preso, bem como a intimação de seu defensor para o dia
da realização do ato processual. Nesta linha, ocorre uma atuação de faz de conta defen-
sivo, com nomeação de defensor para aquele ato, sem que haja conhecimento preciso
sobre todo o aparato processual, impedindo a realização material da ampla defesa78.

Outro ponto interessante para análise diz respeito a aplicação do princípio da


identidade física do juiz, em decorrência dos princípios da imediação e da oralidade79
decorrente do devido processo legal, ou seja, o juiz que presidiu a instrução proba-
tória estará, em regra, vinculado a proferir sentença, justamente para garantir maior
aproximação ao material probatório produzido, em busca de uma decisão justa.

Neste prisma, podemos apontar como argumento positivo a aplicação da produ-


ção probatória por videoconferência em que confere maior aplicabilidade ao princípio
em alusão, na medida em que não ocorrerá sua relativização. Assim, ao invés de advir
a produção probatória em outro juízo a partir da expedição de carta precatória e envio
ao juízo deprecante (competente), será possível a expedição da carta para realização
de videoconferência simultaneamente à audiência de instrução e julgamento perante
o juízo competente, em que o juiz irá presenciar, ainda que de forma virtual, a produ-
ção da prova oral. Em tempo real, poderá ocorrer a oitiva de todas as testemunhas
presenciais e por videoconferência para o término da instrução criminal, autorizando
em ato único, a realização da auto defesa do arguido e debates orais. Essa, sem dúvi-
da, se aplicada coerentemente à previsão legal, será considerada uma importante e
salutar inovação tecnológica reservada ao processo penal brasileiro.

Merece, ainda, aplausos o tratamento reservado à ampla defesa do acusado em


relação à previsão do artigo 217, CPP em que traçou como regra a presença deste em
confronto com o ofendido e testemunhas.

78 Repercussão Geral por quest. Ord. Em RE. n.. 602.543–RS– Rel: Min. Cezar Peluso– Ementa: Ação Penal. Prova. Oitiva de testemunha. Carta precatória. Réu preso.
Requisição não solicitada. Ausência de nulidade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso extraordinário improvido. Aplicação do art. 543–
B, § 3º, do CPC. Não é nula a audiência de oitiva de testemunha realizada por carta precatória sem a presença do réu, se este, devidamente intimado da expedição,
não requer o comparecimento. (Inf. 576). Da mesma forma, foi o entendimento da 1ª Turma do STF.
A Turma, por maioria, indeferiu habeas corpus no qual se pretendia a nulidade de audiências de oitiva de testemunhas de acusação efetuadas por carta precatória
sem a presença do paciente que, custodiado na Penitenciária de Presidente Venceslau/SP por condenação em outro processo, tivera denegado seu pedido de requisição
para comparecimento aos juízos deprecados em Jacarezinho/PR e Siqueira Campos/SP. Inicialmente, salientou-se que o tema já fora objeto de análise pelo STF em
diversas oportunidades, tendo a Corte firmado o entendimento no sentido de que a ausência de requisição de réu preso para oitiva de testemunhas efetuadas em
comarca diversa constituiria nulidade relativa. Em seguida, consignou-se que para o reconhecimento de eventual nulidade, ainda que absoluta, seria necessária a
demonstração do prejuízo. Aduziu-se que a defesa requerera a requisição do réu para audiência de oitiva de testemunhas de acusação logo após a intimação da
expedição das cartas precatórias, sem insurgir-se, no momento oportuno, contra a decisão que a denegara. No tocante à demonstração do prejuízo, registrou-se que
a sentença condenatória já fora anulada pela Turma, em virtude de o interrogatório do paciente ter sido realizado, com base em provimento do TRF da 4ª Região, por
meio de videoconferência. Assim, tendo em conta que o feito estaria aguardando novo interrogatório, enfatizou-se que não se poderia afirmar acerca dos fundamentos
de um decreto condenatório ainda inexistente. Salientou-se, ademais, que a defesa do paciente estivera presente e participara ativamente das audiências, exercendo
de modo pleno o direito ao contraditório e à ampla defesa. Por fim, mencionou-se que o indeferimento questionado fora devidamente motivado pelo magistrado,
que assentara, inclusive, a periculosidade e audácia do paciente, além do risco de fuga nesse deslocamento. Vencido o Min. Marco Aurélio que concedia a ordem por
reputar que o direito de defesa deveria ter sido viabilizado até a exaustão, já que o paciente articulara a nulidade em tempo oportuno, qual seja, na fase a que aludia
o revogado art. 500 do CPP e que o prejuízo seria ínsito no que indeferido requerimento formalizado pela defesa.
HC 100382/PR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 8.6.2010. (inf. 490)

79 SILVA, Germano Marques da. Curso de Processo Penal. Vol. III. Lisboa: Editorial Verbo, 1994, p.232.

155
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

Sabemos que a ampla defesa se divide em auto defesa e defesa técnica. Aquela,
por sua vez, se subdivide em direito à voz (interrogatório); direito de presença (audiên-
cia) e direito de petição80. Em relação ao direito de presença, devemos traçar a possi-
bilidade do arguido estar em audiência perante seu julgador81, para que a apreciação
por este e aquele seja realizada, viabilizando a formação de convencimento e, até mes-
mo, atividade fiscalizatória pelo próprio arguido na ocorrência material do confronto
processual. Nesta linha, produz-se um campo de visibilidade e garantia a todos os atos
lá realizados. Por isso aplaudimos a delimitação normativa do artigo em questão, na
medida em que valoriza a presença do acusado – traçando como regra –, com a oitiva
do ofendido e testemunhas por videoconferência.

A antiga regra normativa brasileira da retirada do acusado da sala de audiência


não mais se torna presente face à proteção constitucional do arguido com a obser-
vância da garantia constitucional da ampla defesa. O texto como era transcrito, apon-
tava verdadeira inconstitucionalidade, gerando ênfase na permanência do ofendido e
testemunhas, com a ausência do ator principal do diálogo processual. Por uma ques-
tão de utilitarismo, o exercício do direito de presença, consectário da auto defesa, era
minimizado. Afastava a possibilidade do arguido contribuir com sua defesa técnica na
análise e confronto com as palavras do ofendido e testemunhas e nada melhor do
que aquele que esteve no local dos fatos imputados para exercer esta impugnação.

Nesta linha, a previsão anterior era reconhecida como ato autoritário, com afas-
tamento de uma visão constitucional da dinâmica processual.82

Não podemos nos iludir, no entanto, com a presença da cultura inquisitorial no


tratamento prático do direito processual penal. Por isso que, além da atual previsão
legal, sabemos da dificuldade de viabilidade diuturna para estes anseios de democra-
cia processual. Ou seja, não obstante a inovação tecnológica normatizada, o método
de produção probatória se aproxima da repristinação inquisitória anterior em que, no
desconforto inicial do ofendido e testemunhas, a primeira atitude jurisdicional (“in-
constitucional”) é a retirada do arguido da sala de audiência.

80 Pode ser exemplificado no Direito processual brasileiro pelo Habeas Corpus e pela possibilidade do arguido, independentemente do defensor técnico, interpor
recurso, nos termos do art. 577, CPP.

81 Direito expresso no Código de Processo Penal Português no art. 61º, n. 1, “a”.

82 CASARA, Rubens R.R. Interpretação Retrospectiva: Sociedade Brasileira e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág. 137.

156
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

Podemos concluir, portanto, que neste seguimento o ponto negativo83 da inova-


ção tecnológica é sua pouca visibilidade prática, não obstante a iniciativa legislativa
em consonância com nosso anseio constitucional, com a permanência de uma cultura
e atitude autoritária.

Ainda na necessidade de sopesarmos os pontos positivos e negativos da utilização


dessas novas tecnologias, deve-se pensar que esta prática dar-se-á sempre de forma
excepcional, na medida em que gera prejudicial influência no princípio da imediação e
na formação sensorial da convicção do julgador. Indiscutivelmente, o comportamento
processual das testemunhas e ofendido, com ênfase à sua credibilidade, será melhor
analisada quando da sua presença física, pois, ainda que estejamos diante da mais
sensível forma de reprodução tecnológica, o calor da proximidade com o julgador tra-
duz em maior visibilidade das expressões dos envolvidos na dramatização processu-
al84. Frise-se neste contexto, que não há como reconhecermos a mesma dinâmica da
presença física da testemunha, ofendido ou arguido do que a virtual85. São situações
e tratamentos radicalmente diferentes.

[6]
INTERROGATÓRIO DO ARGUIDO
POR VIDEOCONFERÊNCIA –

UM NEFASTO AVANÇO TECNOLÓGICO

Outra questão tormentosa diz respeito ao interrogatório por videoconferência. Aqui,


a divergência quanto aos pontos positivos e negativos denota-se mais enfática, o que
gera, diversas e colidentes vozes doutrinárias.

O primeiro argumento para a estabilização do interrogatório por videoconferên-


cia diz respeito à viabilidade do acusado participar de toda a audiência de instrução e

83 Seguindo esta preocupação, adverte Malan que “o primeiro aspecto digno de preocupação é que as sensações de distância da sala de audiência e de isolamento
da testemunha remota podem afetar a percepção dela acerca do confronto, inerente ao ato de depor contra o acusado”. MALAN. Op.cit, pág. 177.

84 Neste linha, “só a imediação permite avaliar o mais concretamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelas testemunhas”. RODRIGUES. Op.
cit, p. 560. Aduz-se neste sentido, Nappi” que mesmo o fiel dos sistemas telemáticos torna difícil conduzir o interrogatório e sobretudo o contra-interrogatório
com aquela dose de “pressão, acutilância e eficácia” que normalmente caracterizam o interrogatório da testemunha na sala de audiência; que a falta de um
confronto vis-a-vis com o arguido, com o juiz e com o público diminui a tensão psicológica da testemunha com dano para a genuinidade das declarações; e,
finalmente, que a distância do meio de prova em relação ao juiz lhe retira a possibilidade de apreciar elementos úteis (visíveis e audíveis) para a valoração
sobre a veracidade das declarações.” NAPPI. Op. cit, p. 520/521.

85 Neste sentido, NAPPI. Op. cit, p. 499.

157
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

julgamento, ainda que não haja possibilidade da sua presença física86. Soma-se a este
fundamento, a celeridade processual, o que não violaria o contraditório, uma vez que
esta garantia indica a necessidade de participação direta do arguido no julgamento,
podendo realizar todo o confronto dialético processual, o que seria garantido com sua
presença, com conexão aos princípios da oralidade e imediação entre a prova a sua
apreciação. Nesta linha, o contraditório como garantia de participação dos atos pro-
cessuais não quer indicar a necessidade de um “diálogo frontal”87 que estaria esvazia-
do frente a realização do ato por videoconferência.

Outro ponto para fundamentar esta inovação, diz respeito ao contexto extrapro-
cessual referente a economia ao erário público, com a ausência de escoltas dos argui-
dos por viaturas policiais para comparecer em audiência (argumento da lógica eco-
nômica), bem como a segurança social a partir da ausência de perigosos transitando
pelas ruas das grandes cidades88. A aparente segurança que gera a permanência do
arguido nos estabelecimentos prisionais89, indica um social sedutor argumento para
a construção de estruturas tecnológicas objetivando a presença virtual nos atos pro-
cessuais. Na realidade, o discurso que se planeja é que quanto mais distante o argui-
do estiver da sociedade e do próprio juiz, melhor para uma solução célere do trâmite
processual, até porque sua influência denota-se interessada na malfadada impunida-
de (verdadeira assepsia processual e social) . O exercício da ampla defesa hoje, com a
midiática expressão da criminalidade que assola a sociedade, leva a descrença quanto
a aplicação de garantias fundamentais, até porque, há uma inversão ideológica de um
discurso, indicando que “os direitos fundamentais são encarados como entraves da-
quilo que as subjetividades entendem como justo. Discursos bélicos são construídos
para justificar a exclusão do acesso efetivo aos direitos fundamentais”.90

Não podemos, no entanto, nos afastar de uma visão técnica sobre a importância
do interrogatório do arguido na discussão processual penal. Na realidade, será o in-
terrogatório o exercício da auto defesa, a partir do seu direito à voz processual, pelos
princípios da audiência e participação. Com o advento dessas novas estruturas nor-

86 Este argumento, no entanto, torna-se pouco sedutor, na medida em que a regra constitucional é da presença do arguido perante seu juiz natural.

87 NAPPI. Op. cit, p. 518.

88 “Quanto a segurança, é inegável que o sistema atual abre muitas brechas tanto para a fuga do preso quanto para que este se mostre exposto à ação de
seus eventuais desafetos. A permanência do réu no presídio, desnecessitando locomoção preservaria a integridade física, bem como evitaria o risco de fuga
deste, evitando desta forma risco para policiais envolvidos na operação de transporte, para a sociedade e para os próprios presos”. TRISTÃO, Adalto Dias. O
interrogatório como meio de defesa. Enfoque Constitucional e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pág. 135.

89 A mesma discussão é encontrada em Portugal cf. ABREU, Carlos Pinto de. A informática na audiência de julgamento. Registro de audiência e meios de produção
de prova à distância. In Revista Portuguesa de Ciências Criminais, Ano. 20. N. 4. Out-dez., 2010, p. 585.

90 BIZZOTTO, Alexandre. A Inversão Ideológica do Discurso Garantista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pág. 105.

158
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

mativas, embora renunciável, podemos alçar o interrogatório como principal ato de-
fensivo, na medida em que além da presença do defensor técnico, a atuação da auto
defesa ocorrerá como último ato da instrução criminal91 (possuindo, portanto, o direi-
to a última palavra92), ou seja, após toda a discussão probatória, com a presença do ar-
guido em juízo, exercendo o confronto à imputação com os elementos colhidos na sua
presença. Não há mais espaço normativo, portanto, para minimizar o arguido como
objeto do processo, reconhecendo o interrogatório como meio ou fonte de prova. In-
discutivelmente é, e deve ser, perfilhado como importante exercício da auto defesa.

Porém, a inovação tecnológica em relação ao interrogatório no Direito brasilei-


ro denota-se presente. A estrutura normativa do interrogatório on line ocorreu pela
edição da Lei 11.900/09. Ratificamos, no entanto, a primeira observação em relação a
esta alteração. Na realidade, a regra quanto ao interrogatório do arguido preso é o da
realização no estabelecimento prisional, garantindo a segurança do juiz, do acusador e
dos auxiliares93, bem como a presença do defensor e a publicidade do ato. Este ato seria
de extrema relevância, na medida em que, além de afastar todos os argumentos eco-
nômicos quanto ao interrogatório por videoconferência, geraria a possibilidade de vi-
sibilidade e fiscalização do juiz e acusador aos estabelecimentos prisionais. Garantiria,
ainda, a possibilidade (para alguns a infelicidade) de sentir o “cheiro do cárcere” e dos
encarcerados, para conhecimento da realidade daquele infortúnio lugar, na expressão
ilustrativa de Geraldo Prado, one day in jail94.

No entanto, não vemos qualquer avanço positivo nesta estrutura tecnológica, seja
no aspecto prático, seja na relação de subjetividade existente nesta prática. Adverte
Aury Lopes Jr., o interrogatório on line mata o “caráter antropológico do próprio ritual
judiciário, assegurando que o juiz sequer olhe para o réu, sequer sinta o cheiro daque-
le que ele vai julgar”95. Há, na realidade, a virtualização de símbolos e ritos, se direcio-
nando a desumanização do processo penal.

91 Ao contrário do que ocorre no Direito Processual Português (art. 341º, CPP).

92 GIMENO SENDRA, Vicente. Derecho Procesal Penal. 1a. ed. Madrid: Editorial Colex, 2004, p.223/224.

93 Estamos falando em locais onde não só o arguido está encarcerado, mas há envolvimento de todo um sistema penal e prisional. Interessante a expressão
preconceituosa em que há necessidade da garantia da segurança de todos (por óbvio), salvo o do defensor!

94 PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pág.276.

95 LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pág. 638. Da mesma forma a crítica
pertinente de Maurício Lopes: não há oportunidade para modismo informáticos na garantia da liberdade individual e a primeira forma de proteção desta é o exercício
pleno do direito de defesa, que implica o direito do acusado de ir a Juízo e dizer seu direito. Ética na cibernética. LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Modernidade
Inútil. Boletim IBCCRIM, Vol. 44, agosto/96, pág. 05.

159
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

Outro dado negativo diz respeito ao grau de abrangência normativa que estipu-
lou nesta inovação tecnológica. Embora o artigo 185, § 2º, CPP indique a excepciona-
lidade da medida através de decisão fundamentada, suas finalidades se mostraram
efetivamente abertas, com ausência de direção epistemológica em seu exercício96.

Assim, será viável o interrogatório on line para prevenção de risco à segurança


pública, viabilizar a participação do acusado, impedir a influência do réu no ânimo de
testemunhas e vítima, responder à gravíssima questão de ordem pública.97

Dois conceitos indeterminados (segurança pública e ordem pública) acabam le-


vando a vulgarização do interrogatório virtual. A dificuldade de delimitação destes
preceitos indicam subjetivismos jurídicos com a máxima discricionariedade do julgar,
podendo elevar a excepcionalidade como regra. Por isso, sempre que há previsões
imprecisas como estas, para restrição de garantias constitucionais, a desconfiança do
intérprete deve ser posta em prática. Ou seja, a indeterminação da aplicação, por si
só, induz a ampliação da interpretação quanto à sua aplicação prática. A virtualidade
desta medida acaba traçando a possibilidade discricionária do julgador a partir da re-
lação aberta da sua existência.

Mas, é no aspecto prático que há maior dissonância com a efetividade constitu-


cional e a observância da ampla defesa.

A primeira observação a ser feita é que o princípio da oralidade e concentração


dos atos, traduzem na necessidade de uma única audiência para produção de todas
as provas, com o desenvolvimento do processo um uma breve unidade de tempo98,
com realização de auto defesa, acusação e resistência da defesa técnica e, ao final,
a síntese decisória. Neste sentido, não podemos observar apenas um interrogatório
por videoconferência, até porque caracteriza o último ato da instrução criminal99. Na
realidade, a presença do arguido efetivamente poderá ser virtual sem que jamais se
defrontará com seu acusador, testemunhas, seu julgador e, quiçá, com seu defensor.
A proximidade natural entre o arguido e as provas produzidas, após anos de crítica

96 A mesma situação é observada no processo penal italiano em que nos processos de organização criminosa, ou por delito de terrorismo ou, ainda, por
subversão do ordenamento constitucional, e alguns outros, ocorrerá a participação do imputado à distância por videoconferência. Cf. DALIA/ FERRAIOLI. Op.
cit, pp. 696/697.

97 A mesma referência é feita no art. 146 do CPP italiano.

98 MALINVERNI, Alessandro. Principi del Processo Penale. Torino: G. Giappichelli, 1972, p. 151. O que resulta a diferenciação entre imediação e concentração,
indicando esta a estrutura processual dos diversos atos enquanto, aquela atinente ao modo através dos quais os atos processuais ensejam o conhecimento
do julgador. (p. 155).

99 O próprio parágrafo 4º, do art. 185, CPP brasileiro, foi explícito em apontar que antes do interrogatório por videoconferência, o preso poderá acompanhar, pelo
mesmo sistema tecnológico, a realização de todos os atos da audiência única de instrução e julgamento de que tratam os arts. 400, 411 e 531 deste Código.

160
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

doutrinária e inovação legislativa, poderá tornar-se inócua com este avanço tecnológi-
co. Efetivamente, a assepsia processual denota-se normativa. O mais preocupante em
um processo, que é a análise da conduta realizada por um ser humano, fica reduzida a
uma aparição virtual. Seria hilário, se não fosse preocupante: a realidade da estrutura
inquisitória, além de mais célere, tem traços virtuais. Podemos afirmar a presença da
virtualidade autoritária, embora haja uma busca pela normativização democrática. Ou
seja, mais uma vez o utilitarismo processual ganha espaço em detrimento da demo-
cratização acadêmica.

Ainda que por videoconferência, o interrogatório continua com sua natureza de


auto defesa, por isso, a necessidade impostergável da presença do defensor técnico e
sua entrevista com o acusado. A partir daí começam os problemas estruturais, práti-
cos e geográficos e não precisa ser nenhum causídico para prever graves violações à
ampla defesa.

Em primeiro plano, podemos criticar a inocência legislativa. Como traçar canais


reservados entre os arguidos e seus defensores dentro do estabelecimento prisional?
Sabemos que diversos direitos básicos não são lá observados. Seria difícil crermos na
garantia da intimidade entre o arguido e seu defensor. Não precisa de outra modalida-
de tecnológica (escuta) para violação deste canal reservado, basta a ausência de salas
condignas para preservar esta comunicação. Se não há espaço para acomodar todos
os encarcerados100, quiçá para assegurar este canal de comunicação reservado.

Por outro lado, pela leitura do dispositivo em questão, haveria necessidade de dois
defensores: um na sala de audiência; outro no estabelecimento prisional101. Nesta linha,
a previsão normativa quer que nos iludamos com a possibilidade daquele que figura na
cifra penal, ter a possibilidade financeira de contratação de dois advogados. Seria desne-
cessário afirmar que a maioria esmagadora dos acusados presos não possuem sequer
condições de constituição de patrono, cabendo a atuação da Defensoria Pública para a
realização da defesa técnica102. E, a partir deste ponto, criaríamos um outro problema:
pela leitura fria do dispositivo em questão, somente seria viável com a presença de dois
defensores públicos, um no estabelecimento prisional, outro no local de julgamento,
ao lado do acusador e do julgador. Então, o argumento financeiro para inovação tecno-
lógica, se reduziria, na medida em que o Estado não conseguiria suportar a necessária

100 Essa é uma realidade em todo o sistema prisional brasileiro.

101 Da mesma forma em Itália. DALIA/FERRAIOLI. Op. cit, pp. 697.

102 Outra realidade do sistema judiciário brasileiro.

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INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

criação de novos cargos de defensores públicos para atuar exclusivamente em todos os


estabelecimentos prisionais, até porque, como já exposto, não seria apenas a realização
do interrogatório on line, mas sim toda instrução e julgamento.

Por todas estas críticas práticas, ao nosso sentir, mais viável denota-se a antiga e
coerente requisição do arguido preso para a realização da instrução, sua defesa e jul-
gamento perante o local destinado à audiência103, até porque, esta “retrógrada” prática
está em consonância com a garantia constitucional da ampla defesa, traçando o direito
de presença do arguido perante seu julgador e com o disposto no art. 7.5 da Convenção
Americana de Direitos Humanos que indica a imprescindibilidade da pessoa detida ser
conduzida, sem demora, à presença de um juiz104, indicativa nas expressões de Cordero,
ratificada por Nappi que “o espetáculo processual se desenvolve no <lugar sagrado> da
sala de audiência onde ‘os atores celebram coisas fora do mundo profano”105.

Questão que não nos seduz é a possibilidade do interrogatório on line quando o


arguido manifestar desejo voluntário de realização desta prática. Embora o direito à
presença não seja irrenunciável, na medida em que o arguido pode deixar de compare-
cer e torna-se contumaz, este argumento não nos parece crível quanto à realização dos
atos processuais por videoconferência. Em algumas oportunidades, tivemos a chance
de ouvir de arguidos que era melhor sua permanência no cárcere do que a participação
em audiência. Mas, neste aspecto não é a voluntariedade da inovação tecnológica que
atrai a manifestação do arguido, mas sim problemas práticos de deslocamentos ao lo-
cal do julgamento que traça a preocupação da sua permanência nas salas de audiência.
Em muitos relatos, além de torturas e ameaças dentro de viaturas na escolta aos locais
de julgamento, a própria ausência de alimentação durante um dia inteiro106 inibe a re-
alização plena da auto defesa. Não podemos, no entanto, por uma questão de precon-
ceito e inobservância de garantia de direitos mínimos, aguçar a prática de outra ruptura
constitucional. O que é preciso, e o esforço acadêmico e diuturno se torna necessário, é
o reconhecimento da dignidade de todas as pessoas, inclusive, por óbvio, daqueles en-
volvidos na seara penal e que se encontram destituído de sua liberdade.

103 Art. 185, § 7º, CPP.

104 Sensível a esses argumentos, dispõe o art. 5º da Res. 105/10 do Conselho Nacional de Justiça : De regra, o interrogatório, ainda que de réu preso, deverá ser feito
pela forma presencial, salvo decisão devidamente fundamentada, nas hipóteses do art. 185, § 2º, incisos I, II, III e IV, do Código de Processo Penal.

105 NAPPI. Op. cit, p. 499. A conclusiva expressão é ilustrada por René Ariel Dotti. “Todas as observações críticas deságuam na convicção alimentada pela visão
humanista do processo penal: a tecnologia não poderá substituir o cérebro pelo computador e muito menos o pensamento pela digitação. É necessário usar a
reflexão como contraponto da massificação. É preciso ler nos lábios as palavras que estão sendo ditas; ver a alma do acusado através de seus olhos; descobrir
a face humana que se escondera por trás da máscara do delinqüente. É preciso, enfim, a aproximação física entre o “Senhor da Justiça” e o “homem do crime”,
num gesto de alegoria que imita o toque dos dedos, o afresco pintado pelo gênio Michelangelo na Capela Sistina e representativo da criação de Adão”. DOTTI,
René Ariel. O Interrogatório por Videoconferência e as Garantias Constitucionais do Réu. In Direito Penal no Terceiro Milênio. Estudos em Homenagem ao Prof.
Francisco Muñoz Conde. Coord. Cezar Roberto Bitencourt. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2008, págs. 665/666.

106 Mais uma realidade no contexto diuturno da realização de “justiça” no território brasileiro.

162
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

Conclui-se, portanto, que esta inovação tecnológica no processo penal gerou, efe-
tivamente, um desacerto constitucional, restabelecendo práticas inquisitoriais com a
falácia utilitarista e o afastamento do reconhecimento da dignidade daqueles envolvi-
dos na discussão processual penal.

COMO SE FOSSE UMA CONCLUSÃO

Lembremos o filme Blade Runner, paradigmático à época, em que modifica toda a re-
lação de análise do ser humano e um jogo de sobrevivência. Lá, os seres humanos
foram caçados por terem violados a regra do jogo. Na tendência tecnológica, todos
acompanhavam a luta virtual da sobrevivência, havendo humanização dos andróides
com a desumanização dos homens.

Aqui estamos diante da realidade humana, em que cada discussão processual


gera sentimentos, pensamentos, frustrações, angústias. Jamais poderemos desuma-
nizar aqueles envolvidos em um dilema criminal, até porque falamos de pessoas e não
andróides criminosos, como alguns assim ainda pensam.

Podemos identificar que no século XX houve um fortalecimento de vivificação de


garantias fundamentais no Direito e processo penal, justamente por questões de en-
volvimento histórico em que a coisificação do ser humano precisou ser repensada.
Disso gerou-se consequências para o século XXI intransponíveis. Por outro lado, a so-
ciedade se viu envolvida em outra forma de avanço em que se torna virtualizada todas
essas relações pessoais e sociais, precisando de outra forma de identificação nas suas
proteções, com maior grau de vigilância e controle107.

Se a celeridade e segurança nos atos processuais é uma realidade que deve ser
por nós buscada, jamais poderá ser confrontada com preceitos constitucionais de ga-
rantias individuais. A virtualidade das medidas, acompanhada da velocidade social,
não pode se sobrepor à proteção necessária a todos os envolvidos na seara criminal.

Portanto, em algumas oportunidades, o discurso sobre a necessidade da celerida-


de processual e da segurança jurídica induz a retirada, por completo, da função básica
do processo penal como garantia do cidadão voltado às mazelas de uma situação pro-

107 GASPAR, António Henriques. Os novos desafios do processo penal do século XXI e os direitos fundamentais (um difícil equilíbrio). In Revista Portuguesa de Ciências
Criminais. Ano 15, n. 02- abril-jun, 2005, p. 259.

163
INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

cessual, para impor um eficienticismo ilusório (utilitarismo prático) e um paradigma


da intolerância assaz na procura da permanência de um inquisitorialismo sistêmico.
É neste sentido que qualquer inovação tecnológica, voltada ao processo penal, jamais
poderá pretender o afastamento de garantias fundamentais108, cabendo ao jurista,
frente a este dilema a árdua tarefa de “sopesar os diversos interesses, de mitigar a as-
pereza do encontro entre os proponentes – os otimistas tecnológicos – e os opositores
– os pessimistas sociológicos”109.

O progresso técnico deve servir para o aparelhamento e conforto da atual so-


ciedade da informação. Sua prática serviu e serve para que a humanidade consiga se
comunicar, de forma imediata, por todo o mundo, realizando uma verdadeira aproxi-
mação e crescimento mundial. Contudo, a utilização deste progresso tecnológico não
pode retroagir às situações medievais, onde o indivíduo não possuía qualquer valor
frente aos interesses estatais.

Deve-se utilizar este aprimoramento técnico para amparar toda a sociedade com
saúde, educação, urbanismo, cultura, etc, e não tirar do indivíduo o que a estrutura
constitucional estabeleceu como parâmetro: a dignidade e personalidade, com prote-
ção pela análise teórica e aplicação prática de direitos e garantias constitucionais.

108 Nesta linha, vale a colação de Bindé quando afirma que “todo o paradoxo das sociedades do conhecimento pode ser resumido da seguinte forma: numa
época em que a expansão de redes confere ao conhecimento uma importância acrescida a todos os níveis da estrutura social, o que induz uma nova forma
de dependência tecnológica, o conhecimento deve libertar-nos desta última orientando-nos, através do exercício reflexivo e da construção de uma ética para
o futuro, para não aceitarmos que todos os meios são aceitáveis para atingir quaisquer fins.” BINDÉ. Op. cit, p. 238.

109 NAPPI. Op. cit, p. 489.

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INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NO DIREITO PROCESSUAL PENAL - A DIALÉTICA ENTRE EFICÁCIA E GARANTIA

BIBLIOGRAFIA

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168
A GES TÃO D A PRO V A
N O PR OCES S O PENAL –

CONTINUIDA DE DO
SISTEMA INQUISITÓRIO
PEL A LEI 11.690/08

TEXTO PUBLICADO ORIGINARIAMENTE:

A Gestão da Prova no Processo Penal – Continuidade do Sistema Inquisitório pela Lei


11.690/08 In: Temas para uma Perspectiva Crítica do Direito - Homenagem ao
Professor Geraldo Prado.1 ed. Rio deJaneiro: Lumen Juris, 2010, v.01, p. 335-344
A GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL – CONTINUIDADE DO SISTEMA INQUISITÓRIO PELA LEI 11.690/08

BREVE NOTA INTRODUTÓRIA

O presente trabalho não possui a ambição de exaurimento do tema ofertado, mas tão
somente, uma simples construção de idéias sobre a gestão da prova no processo penal,
com ênfase nas inovações realizadas pela reforma setorial do Código de Processo Penal.

Para tanto, foi necessário o apontamento de conceitos básicos sobre a produção


probatória e a caracterização do sistema processual. Esta análise torna relevante a re-
discussão dobre o discurso falacioso da busca da verdade no processo penal, poden-
do afirmar que a permanência lógica deste discurso é encontrado na possibilidade da
gestão da prova pelo julgador.

Atualmente, no entanto, o juiz não determinará apenas a produção da prova du-


rante a instrução – leia-se, na fase judicial –; mas poderá ordenar a produção de “pro-
va” antecipada durante a investigação, até porque sua “ordem probatória” ocorrerá
anterior ao início da ação penal.

A necessidade de reforma de qualquer legislação da seara criminal perpassa por


uma alteração na própria cultura social e dos operadores do Direito. Impressiona o
restabelecimento ou até a permanência de idéias autoritárias em que afasta a real
função do processo penal como identificador e aplicador de garantias fundamentais.

Portanto, invertendo a dinâmica do estudo, podemos afirmar como ponto inicial


para nossa análise, que o processo penal não mais deve servir como aparato disfarça-
do de instrumento para a segurança pública. Deverá sempre se analisado e aplicado
como fiscalizador da atuação repressiva do Estado, através da sua própria natureza
e função, muito embora o Legislador teime na permanência incoerente (com nossa
Constituição) de um Processo Penal autoritário, com enfoque estritamente punitivo.

Ficaremos, no entanto, limitado à análise da gestão da prova pelo juiz, com a am-
pliação do artigo 156 do Código de Processo Penal, embora em vários pontos das re-
formas setoriais1, o retrocesso legislativo restou marcante.

1 O estudo do professor Nereu Giacomolli sobre as Reformas do CPP direcionam nesta linha de raciocínio. Assim, ilustra que resulta evidente a deformação
ritualística do processo penal (degeneração das formas), gerada pelo Legislador de 2008 e pela azáfama de pronta votação dos denominados “projetos setoriais”, após
longo período de esquecimento (reclamos midiatizados por situações pontuais – menino arrastado por carro, balas perdidas, absolvição num segundo Júri, v.g.). Difícil
estabelecer uma ordenação concatenada e lógica dos atos processuais, no caos estabelecido nos artigos 394 a 536 do CPP. GIACOMOLLI, Nereu José. Reformas (?)
do Processo Penal – Considerações Críticas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pág. 59.

170
A GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL – CONTINUIDADE DO SISTEMA INQUISITÓRIO PELA LEI 11.690/08

[1]
A GESTÃO DA PROVA E
SISTEMA CARACTERIZADOR DO

PROCESSO PENAL

Para identificarmos o real sistema adotado no ordenamento processual penal brasilei-


ro, devemos observar não apenas sua estrutura, mas sua linguagem e, principalmen-
te, a finalidade da situação processual formada entre o Estado e o sujeito. Já ousamos
afirmar e ratificamos tal posicionamento2, que o nosso ordenamento jurídico adotou
o paradigma inquisitório3, pilar - mor do nosso sistema processual penal, nas palavras
de Jacinto4, reservando algumas garantias individuais ao acusado, ao menos na Carta
Maior, o que não representa a aplicação diuturna destas imposições democráticas.

Contudo, orienta a doutrina5 que nosso modelo processual acompanhou o Code


d’Instruction Criminelle francês de 1808, em que inaugurou o sistema misto, ou inqui-
sitório reformado6, na medida em que um sistema puro, seja acusatório, seja inquisi-
tório, apenas permanece numa vertente histórica, não havendo qualquer seguimento
atual destes modelos processuais.

No entanto, afirmou Tornaghi, que houve a adoção do sistema misto porque nele
o processo se desdobra em duas fases; a primeira é tipicamente inquisitória7; a judi-
cial mostra-se acusatória.8 Na verdade, tal sistema reserva a encruzilhada entre a ne-
cessidade da repressão e as garantias individuais.9

2 SAMPAIO, Denis. A argumentação jurídica como garantia constitucional no processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 68. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007, pág. 143.

3 Desta forma LOPES JR. (Re)Discutindo o Objeto do Processo Penal com Jaime Guasp e James Goldschmidt. Revista de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos
Tribunais, ano 10, no. 39, 2002, jul-set, pág.111/117.

4 4.COUTINHO, Jacinto de Miranda O papel do novo juiz no processo penal. In Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001,
págs. 3/56.

5 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.Op. cit, pág. 101/102.

6 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Resquícios Inquisitórios na Lei 9.304/1998. São Paulo: Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 46: RT, 2004, jan-fev, págs178.

7 No sistema misto instituído pelo Code d’ instruction criminelle de 1808, a primeira fase era secreta, escrita, sem que houvesse a participação da defesa,
estruturada num juizado de instrução; na segunda fase, perante o contraditório, eram discutidas as provas, de forma oral e pública, formando um júri.

8 TORNAGHI, Hélio Bastos. Curso de Processo penal. São Paulo: Saraiva, 1980, pág. 17.

9 Idem, pág.17. Neste sentido, numa vertente crítica, expõe Tucci que nosso sistema trata-se, na realidade, “ de um sistema misto, não somente por esta divisão
bifásica, mas, precipuamente, por nele mesclarem-se a inquisitividade ínsita, substancialmente, a toda persecução penal na sua inteireza, e a acusatoriedade,
de que, formalmente, se impregna a segunda fase.” TUCCI, Rogério Lauria. Considerações acerca da Inadmissibilidade de uma Teoria Geral do Processo. In Direito
Criminal Vol. 3. Coord. José Henrique Peirangeli. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, pág. 110.

171
A GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL – CONTINUIDADE DO SISTEMA INQUISITÓRIO PELA LEI 11.690/08

A formação de um sistema misto, a nosso sentir, apenas realça a continuidade do


modelo repressor, fundante no afastamento de uma busca democrática do processo
penal, tornando impossível a convivência harmônica de estruturas tão díspares. Expõe
Jacinto que o dito sistema misto, reformado ou napoleônico é a conjugação dos outros
dois, mas não tem um princípio unificador próprio, sendo certo que ou é essencialmente
inquisitório (como o nosso), com algo (características secundárias) proveniente do sistema
acusatório, ou é essencialmente acusatório, com alguns elementos característicos (nova-
mente secundários) recolhidos do sistema inquisitório.10

Na realidade, tal sistema aperfeiçoa o discurso autoritário da busca utópica, mas pe-
rigosa, da verdade real, a partir do momento em que utiliza argumentos autorizadores
de intervenção inquisitorial com a falácia da observância das garantias individuais em
um segundo momento, justamente porque tornar-se clara a assertiva de que o modelo
inquisitório é o meio mais eficaz de descoberta da verdade11 (real). Ocorre que, esta fase
inquisitorial, não podemos nos iludir, acompanhará toda a situação processual, seja de
ordem probatória, seja na própria subjetividade do juiz, que acabará por levá-lo a for-
mar seu convencimento antes mesmo da produção probatória contraditória.

Portanto, a afirmativa infeliz torna-se fácil de repetição: nosso modelo processual


continua sendo o inquisitório e somente mudará esta característica quando focalizar-
mos maior energia na aplicabilidade prática do anseio constitucional, o que não foi,
certamente, a intenção do Legislador infraconstitucional quando garantiu uma forte
carga probatória pelo juiz, com a completa ausência de pretensão das partes quanto
à iniciativa da produção de provas.

A conclusão antecipada fica nas palavras do Professor Jacinto Coutinho quando ex-
pressa que infelizmente, no entanto, é, no fundo, o anseio punitivo que pauta e motiva as re-
formas parciais, que em pese o espírito democrático sincero) de muitos dos autores das idéias
reformistas; e é por isso que o país continua assim: porque se reforma e se reforma para não
mudar nada, seguindo na crença que se melhora com mais pena, mais prisão, mais punição.
Faz-se reforma pelas mudanças que, de fato, só se darão quando mudar a base epistemológi-
ca. Contudo, quantos sabem, de fato, os juristas, de epistemologia? Se é preciso, efetivamente,
mudar o sistema, nota-se que não é algo simples nem fácil: é inquisitório, foi inquisitório, e se
tudo se reduzir à aprovação destas reformas parciais, continuará inquisitório.12

10 COUTINHO. O papel do novo juiz..., pág.. 17.

11 BADARÓ. Op. cit, págs. 116

12 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. As reformas parciais do CPP e a gestão da prova: segue o princípio inquisitivo. Boletim IBCCRIM, no. 188, julho, 2008, pág. 13.

172
A GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL – CONTINUIDADE DO SISTEMA INQUISITÓRIO PELA LEI 11.690/08

[2]
“PROVA” POLICIAL –
RATIFICAÇÃO JUDICIAL DOS

ELEMENTOS INFORMATIVOS

A parte acusadora diante de farta demonstração fática, colhida inquisitorialmente, eco-


nomiza forças para formar a convicção do julgador, justamente porque sua decisão já
estará tomada, necessitando apenas da organização probatória, produzida em juízo,
para a estrutura retórica da sentença. A conjuntura se torna esdrúxula a partir do fato
em que as provas produzidas em juízo servem apenas para ratificar a persecução crimi-
nal exercida na primeira fase, visto que, não raras vezes, o julgador dispondo do material
colhido na fase inquisitorial, o lê para que as testemunhas confirmem seus depoimentos,
não obstante o impedimento das mesmas trazerem quaisquer apontamentos por escri-
to, como preceitua o artigo 204 do Diploma Processual Penal. Nesta linha, ensina Aury
Lopes que a fraude reside no fato de que a prova colhida na inquisição do inquérito, sendo
trazida integralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo discurso do julgador
para imunizar a decisão. Esse discurso vem mascarado com as mais variadas fórmulas, do
estilo: a prova do inquérito é corroborada pela prova judicializada; e assim todo um exercí-
cio imunizatório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma condenação, que
na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da inquisição. O processo acaba
por converter-se em uma mera repetição ou encenação da primeira fase.13

A alteração do artigo 155 do Código de Processo Penal vinha muito bem, quando,
o Legislador acompanhando o raciocínio acima, expressou toda sua carga inquisitória
com a palavra “exclusivamente”. Na verdade, o juiz não poderá fundamentar sua de-
cisão exclusivamente nos elementos colhidos na investigação, salvo as provas cautela-
res, não repetíveis e antecipadas. O que se denota, na realidade, é a impossibilidade
de uma decisão com elementos exclusivos colhidos no Inquérito Policial. Porém, se
observados nesta fase e ratificados em juízo (o que vem sendo a prática judiciária), sua
decisão se mostra regular, colocando, como conteúdo decisório, toda a carga “proba-
tória” produzida em sede judicial. Mas não podemos nos esquecer que este material
probatório somente pôde ser analisado, na maioria das vezes, a partir daqueles ele-

13 LOPES Jr. Aury, Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág.165.

173
A GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL – CONTINUIDADE DO SISTEMA INQUISITÓRIO PELA LEI 11.690/08

mentos que somente serviriam para criar a possibilidade de exercício da pretensão


condenatória pela acusação, até porque não foi realizado perante o juiz competente,
violando, inclusive, a garantia do juiz natural uma vez que não foi produzido para apre-
ciação de seu receptor natural.

A situação é agravada quando ocorre uma prisão flagrancial, o que na realidade, tan-
to a acusação quanto a decisão acabam sendo apenas uma formalização chanceladora da
atuação inquisitória14. O estabelecimento da presunção jurídica, afirma Salo de Carvalho,
antecipa uma certa verdade processual a partir de inferências, ou melhor, cria um sentido pos-
sível de ‘verdade processual’, direcionando a decisão, a partir de fragmentos.15 Esta presunção
afasta por completo o senso crítico acusatório e do próprio julgador16, estruturando ape-
nas uma ritualização ratificadora da primeira fase exclusivamente inquisitória, como se
fosse possível, a partir desta estrutura, uma segunda fase acusatória17.

A valoração exarcebada e contraditória do fumus comissi delicti obtida, através da


fase inquisitória, estabelece uma realidade incontornável, afastando toda a função do
processo penal, tornando-o apenas uma crendice que, na visão dos inquisidores, ape-
nas retarda a aplicação da pena.

No entanto, a realidade deveria ser outra, estabelecendo o processo como verda-


deiro instrumento de correção do caráter alucinatório da evidência flagrancial18, e con-
tinua Aury Lopes para ter uma verdade processual, a evidência deve passar pelos filtros do
processo, somente resistindo se conseguir provar que não é uma ilusão, uma fabricação ou
uma alucinação. Por isso, o processo deve alcançar o alto grau de correção da alucinação
inerente à evidência.19

14 Neste sentido ilustrativo, segue decisão: “ Tendo o agente sido preso em flagrante delito ocorre a inversão do ônus da prova. Isto é, com o flagrante confirmado
em juízo pela prova testemunhal, em princípio, a acusação comprovou a ocorrência do crime e a sua autoria. Qualquer alegação tendente a afastar esta
presunção que gerou o flagrante é ônus do acusado. Passa a viger a máxima contida no art. 156 do Código de Processo Penal, segundo a qual “a prova da
alegação incumbirá a quem a fizer.” (TRF – 4ª R. Rel. Juiz Volkmer De Castilho, 29/10/2001) In CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal – Comentários
Consolidados e Crítica Jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, págs. 301/302.

15 CARVALHO, Salo. As Presunções no Direito Processual Penal (estudo preliminar do ‘estado de flagrância ’na legislação brasileira. In Processo Penal: Leituras
Constitucionais. org. Gilson Bonato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, págs. 206.

16 Se houver continuidade deste sistema, talvez futuramente, poderemos observar a argumentação de alguns em estabelecer certa economia processual, através
da situação desenhada acima, haverá uma dispensa da ritualização judicial para irmos direto da acusação vernacular à decisão condenatória.

17 Interessante dissertação de mestrado realizado por Luiz Figueira onde mescla estudo jurídico e antropológico diante de um caso concreto. Neste trabalho,
focalizando o inquérito policial como exercício de poder objetivando a constituição e autenticação da verdade, contata-se que a presunção produzida nos
inquéritos policiais e principalmente nos autos de prisão em flagrante estrutura toda a verdade para a fase judicial e seu simbolismo através da decisão do
julgador. Assim, realizada uma entrevista pelo autor a um promotor de justiça, este afirmou que “ o flagrante delito traz uma grande certeza sobre a culpabilidade
do acusado, pois ele é apanhado no momento em que está cometendo o crime ou logo após. Os autos do flagrante trazem os elementos necessários para
uma boa acusação.” Sob o mesmo prisma, em outra entrevista, um magistrado afirmou que “a primeira prova é muito importante [ a obtida no inquérito ]
porque geralmente o indiciado não está preparado para formular uma argumentação que possa inocentá-lo. Ele é apanhado de surpresa, despreparado.
Pelas emoções e as conseqüências do fato ele não está psicologicamente preparado para dar outra versão que não seja a real.” FIGUEIRA, Luiz. Produção da
verdade nas práticas judiciárias criminais brasileiras – uma perspectiva antropológica de um processo criminal. Niterói: Universidade Federal Fluminense, Lumen
Juris, 2005, pág 32.

18 LOPES Jr. Introdução Crítica..., pág. 269.

19 Idem, pág.270.

174
A GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL – CONTINUIDADE DO SISTEMA INQUISITÓRIO PELA LEI 11.690/08

A gestão da prova no processo penal, na realidade, já se mostra maculada quanto à


lisura processual sobre o livre convencimento do juiz, não apenas pela ruptura da inér-
cia jurisdicional, mas por todo o contexto destruidor da sua imparcialidade. O inquérito
policial que deveria servir apenas para a formação da opinio delicti da acusação20, até
porque, como preleciona Aury Lopes, os atos da investigação preliminar têm uma função
endoprocedimental no sentido de que sua eficácia probatória é limitada, interna à fase21,
acaba adentrando na fundamentação das decisões (condenatórias). Portanto, a identi-
ficação do modelo inquisitório não se restringe apenas à primeira fase da persecução
penal, bem como na possibilidade de atuação ex officio do julgador, mas por toda a es-
trutura voltada à atuação repressiva do Estado, como se o processo penal servisse ape-
nas (quase exclusivamente) como ritualística de aplicação de sanção penal.

O discurso sobre a busca da verdade absoluta no processo penal, além de coligar


ao sistema autoritário (princípio da autoridade), autoriza uma aproximação imediata
do julgador na produção da prova, o que reserva a maior crítica do estudo em ques-
tão. Portanova, diante da adoção deste sistema, ilustra que um dos efeitos da adoção
do princípio inquisitivo no sistema probatório é a influência quanto ao tipo de verdade bus-
cada no processo22 o que se mantém presente em diversas alteração no sistema penal,
basta analisarmos as mais atuais.

[3]
(IN)COERÊNCIA NORMATIVA
DO ARTIGO 156 DO CÓDIGO
DE PROCESSO PENAL,

AGRAVADA PELA LEI 11.690/08

A exposição de motivos do Código de Processo Penal brasileiro estabelece o sistema


processual que deveríamos e devemos seguir, identificando, como expõe Goldsch-
midt, o modelo de atuação do Estado frente aos indivíduos. Assim dispõe que o juiz
deixará de ser um espectador inerte da produção de provas. Sua intervenção na atividade

20 Por isso defendemos a tese de que após o ato de recebimento da denúncia, devidamente fundamentado como determina o artigo 93, IX da CRFB, o inquérito
policial ou quaisquer peças de informações deveriam ser retiradas da parte integrante dos autos do processo crime, ressalvadas as provas irrepetíveis.

21 Ibidem, pág. 259.

22 PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 6ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pág. 207.

175
A GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL – CONTINUIDADE DO SISTEMA INQUISITÓRIO PELA LEI 11.690/08

processual é permitida, não somente para dirimir a marcha da ação penal e julgar a final,
mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecerem úteis ao esclarecimento
da verdade. A crítica da atuação inquisitória do julgador não se restringe à primeira
fase da persecução penal. Há necessidade de observarmos principalmente a estrutu-
ra judicial e conseqüentes interpretações, que identificam o real sistema conferido ao
ordenamento processual penal.

Thuns esclarece que o processo penal é nutrido por um discurso sobre a verdade que
fundamenta a outorga legal de poderes ao magistrado para a busca desta verdade. Este
discurso sobre a verdade e os poderes conferidos ao juiz é o divisor de águas entre os sis-
temas processuais.23

A expressão do artigo 156 e seus incisos do Diploma Processual Penal24 identi-


fica o ápice da linha crítica do presente estudo, quando, além de estabelecer o ônus
da prova no instrumento penal25, constitui ainda a possibilidade de o juiz exercer, de
ofício, a produção probatória, o que indica a permanência extravasada do discurso e
modelo sobre a busca da verdade real, sendo típico de sistemas autoritários26.

A noção de processo sugere a necessidade de historicizar o fato, uma vez que de-
manda um conhecimento sobre o fato principal objeto do processo penal: o delito. Na
realidade todo conhecimento mostra-se histórico, devendo ser organizado pela evo-
lução procedimental através de atos condizentes com o modelo cognoscente e com
o objeto cognoscível. A verdade, por sua vez, também reserva força histórica e assim,
recognoscível27, tendo como instrumento deste modelo de conhecimento a prova pro-
duzida no processo, servindo como função jurídica e política na formação do devido
processo legal28. Por outro lado, aduz Jacinto, instruir, então, pelo conhecimento do fato,

23 THUNS, Gilberto. O Mito sobre a Verdade e os Sistemas Processuais. In Leituras Constitucionais do Sistema Penal Contemporâneo. org. Salo de Carvalho. Rio
de Janeiro, 2004, pág.159.

24 Ainda os artigos 209; 234 e 616, todos do CPP. Portanova, estudando a estrutura do CPC afirma que “são tantas as evidências do princípio inquisitivo nas
disposições sobre a prova no nosso CPC que talvez não se necessite dotar legislativamente o juiz de outros poderes para lograr um sistema probatório
inquisitorial mais apurado.” PORTANOVA. Op. cit, pág. 207. Indiscutivelmente o autor encontraria este sistema marcadamente apurado no Diploma Processual
Penal, que não vislumbra apenas em seu corpo exemplos inquisitoriais, mas sim em toda a estrutura, desde a mensagem, a linguagem, a disposição e a
intenção legislativa.

25 Goldschmidt afasta a discussão sobre a verdade real e formal, para enfatizar o ônus da prova no processo. Para tanto, diferencia quanto ao ônus formal e
material. “Entende-se por ônus formal da prova a necessidade da contribuição de provas, impostas às partes em um procedimento dominado pelo princípio
dispositivo, ou seja, de requerimento da parte. Entende-se por ônus material da prova o interesse que tem uma ou outra parte em que um fato determinado seja
comprovado, porque a não-comprovação do fato redundaria em seu prejuízo. Apenas esse interesse preenche o vazio do ônus formal da prova, determinando-
lhe o conteúdo e os sujeitos. Pode-se dizer que o ônus formal da prova regula a relação das partes e o juiz, dispensando-o de se informar de ofício e de praticar
diligências necessárias a fim de averiguar a verdade, enquanto o ônus material da prova regula a relação mútua das partes, designando a parte à qual incumbe
a prova de um fato determinado.” GOLDSCHMIDT. Princípios Gerais do Processo Penal, págs.57/58.

26 THUNS. Op. cit, pág.170.

27 COUTINHO, Jacinto de Miranda. Glosas ao “Verdade, Dúvida e Certeza” de Francesco Carnelutti para os Operadores do Direito. In Anuário Ibero-Americano de
Direitos Humanos (2001/2002). Rio de Janeiro, 2002, pág. 177.

28 Idem, pág.177.

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A GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL – CONTINUIDADE DO SISTEMA INQUISITÓRIO PELA LEI 11.690/08

tem um preço a ser pago pela democracia (não avançar nos direitos e garantias individu-
ais), mas que há de ser pago a qualquer custo, sob pena de continuarmos, em alguns pon-
tos, sob a égide da barbárie, em verdadeiro estado de natureza.29

Giza o jurista que há de se buscar um pouso tranqüilo nas decisões judiciais através
do objeto a ser investigado. Porém, além do conhecimento ser histórico, deve também
mostrar-se dialético30, o que deveria afastar qualquer visão autoritária da aplicação das
normas jurídicas em detrimento de uma visão de ilustração e paradigma democrático31.

A instrução probatória nas mãos do julgador, sem a dialeticidade processual, as-


sola totalmente o aspecto autoritário que transporta à marca indelével do nosso Di-
ploma Processual Penal, até porque instituído perante o Estado Novo, com idéias fas-
cistas e ditatoriais, o que não se coaduna com a atual tentativa de aplicação de normas
democráticas no processo penal.

Neste modelo (que ainda adotamos), na afirmativa de Jacinto, pode-se dizer que
o sistema inquisitório, regido pelo princípio inquisitivo, tem como principal característica
a extrema concentração de poder nas mãos do órgão julgador, o qual detém a gestão da
prova. Aqui, o acusado é mero objeto de investigação e tido como o detentor da verdade de
um crime, da qual deverá dar contas ao inquisidor.32

Como antecipada conclusão, podemos afirmar que o texto do artigo 156 do Códi-
go de Processo Penal, na medida em que autoriza o juiz de ofício, ordenar provas an-
tecipadas, ainda que não iniciada a ação penal, ou determinar a produção de provas
durante a instrução criminal (iniciativa judicial), ainda que supletivamente33, expõe a
permanência do paradigma inquisitorial afastado do modelo acusatório que retrata
o anseio da época atual, tornando ilusória a aplicação de um Processo Penal Consti-
tucional (e naturalmente Democrático), que almejaria um aprimoramento dialético. O
discurso sobre a busca da verdade real extrapola o argumento de que a acusação pú-

29 Ibidem, pág. 177.

30 COUTINHO. Introdução aos Princípios Gerais do Direito Processual Penal.pág. 10.

31 O juiz não deixa de ser um historiador negativo, que observa todos os fatos ocorridos para formar seu convencimento. Contudo, diferente do historiador que
deve investigar, a qualquer custo, o fato objetivo do estudo, imbuído de critérios de importância social, cultural, econômica e ilustrativa, o juiz está adstrito ao
objeto de postulações alheias, não havendo interesse precípuo na obtenção dos elementos fáticos, mas sim na solução daquilo que lhe é trazido no processo.
GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, pág. 45. O mesmo raciocínio deve-se referência a
Ferraoli, uma vez que “ o que o juiz experimenta não são os fatos delituosos objeto do juízo, mas suas provas. De modo não diverso do historiador, não pode,
pois, examinar, o fato que tem a tarefa de julgar e que escapa, em todo o caso, à observância direta, mas somente suas provas, que são experiências de fatos
presentes, mesmo se interpretáveis como sinais de fatos passados.” FERRAJOLI. Direito e Razão, pág. 44. Se o juiz se colocasse na função do historiador, deixaria
de existir a necessidade da presença das partes no processo, uma vez que estaria aquele na única função de buscar o objeto a ser conhecido, conhecer e
decidir sobre o objeto. Não haveria qualquer limite à sua função, levando a um flagrante abuso no poder de decidir outras questões que inclui interesses de
toda uma sociedade. Seria um investigador para resolver suas pessoais intenções, decidindo apenas na sua íntima formação cultural.

32 COUTINHO. Introdução aos Princípios, pág. 4.

33 No entendimento de CASARA, Rubens R. R.. Interpretação Retrospectiva: Sociedade Brasileira e Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág. 151.

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A GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL – CONTINUIDADE DO SISTEMA INQUISITÓRIO PELA LEI 11.690/08

blica e o Poder Judiciário possuem o mesmo interesse na incessante demonstração da


certeza fática34.

Da mesma forma, não seduz a interpretação na qual afirma a possibilidade ins-


trutória do juiz indicando tão somente o exercício de garantia fundamental do contra-
ditório, estabelecendo na verdade a igualdade processual das partes.35 Também na
formação desta linha de raciocínio, ilustrativas são as palavra de Geraldo Prado quan-
do afirma ser o contraditório uma medida de duelo, como categoria processual que reúne
a ciência do ato praticado pela parte contrária à possibilidade de uma atitude em sentido
contrário ou objetivando contrariar o prefalado ato. Difícil será, a nosso juízo, estabelecer-
-se um duelo entre o acusado e o juiz, pois este último detém o poder de decidir a causa,
elegendo, como assinalou Carnelutti, a alternativa de solução que lhe pareça mais viável.36

Como já foi ressaltado, a necessidade de impor a presença da garantia fundamental


do devido processo legal, contraditório e ampla defesa, apenas recomenda o exercício
da função improrrogável do juiz37 para se acoplar a um Estado Constitucional de Direito.
A ausência do controle exercido pelo juiz às garantias fundamentais não retrataria ape-
nas um sistema dito inquisitivo, mas um modelo kafcaniano que esbanjaria inveja ao
arquétipo nazista. Por isso, ousando discordar da orientação supra, identificamos uma
característica do modelo inquisitório puro quando se autoriza o impulso instrutório do
juiz, na medida em que a função de julgar não pode se confundir, em hipótese alguma,
com a de acusar e esta está estritamente vinculada à possibilidade de produção proba-
tória, para chegar-se a um conteúdo perfeito de formação da segurança social.

Não se trata de impor a presença do denominado adversarial system, próprio do


sistema anglo-saxão38, mas sim na identificação do prejuízo das próprias partes (e aqui
ouso afirmar, principalmente do réu) quando há um ataque à imparcialidade do juiz,
visto que, a partir da sua ingerência na indicação instrutória, mesmo que haja futuro

34 Esta é a expressão da doutrina: “Deve, assim, o juiz procurar a verdade, reconstituindo os fatos, de forma a obter a certeza.” ARONE, Ricardo. O Princípio do
Livre Convencimento do Juiz. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996, pág. 30.

35 Afirmando, neste contexto a professora Ada Grinover a “visão do Estado social não admite a posição passiva e conformista do juiz, pautada por princípios
essencialmente individualistas. O processo não é um jogo, em que pode vencer o mais poderoso ou o mais astucioso, mas um instrumento de justiça, pelo
qual se pretende encontrar o verdadeiro titular do direito. a pacificação social almejada pela jurisdição sofre sério risco quando o juiz permanece inerte,
aguardando passivamente a iniciativa instrutória da parte.” GRINOVER. A Iniciativa Instrutória..., págs. 5/6.

36 PRADO. Sistema Acusatório, pág. 138.

37 FRONDIZI, Román Julio e DAUDET, Maria Gabriela S. Garantíias y eficiência em la prueba penal. La Plata: Lebrerie Editora Platense, 2000, pág. 13.

38 Até porque, além de não fazer parte da nossa realidade jurídica, haverá neste sistema vários problemas que apresentação sua ineficácia de solução dos
conflitos sociais. Michelle e Tarufo critica este modelo de atuação estritamente liberal, quando conclui que “o sistema da common law e´, em verdade, um
método de combate entre as partes, muito mais que um método direcionado à pesquisa da verdade sobre os fatos do litígio.” MICHELI. Op. cit, pág. 167.

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contraditório exercido pelas partes39, o juiz já antecipa o seu julgamento, justamente


porque procura aquilo que pretende julgar. Já há uma formação deduzida dos fatos
ocorridos, e basta uma demonstração fática para dar conteúdo à sua decisão, como
impõe o artigo 93, IX da Constituição da República.

Calamandrei identifica com precisão esta situação, reduzindo a sentença a um es-


quema de silogismo, na medida em que a conclusão ocorrerá pela lógica do caso con-
creto. Giza, portanto, o autor que às vezes acontece que o juiz, ao formar sua senten-
ça, inverta a ordem normal do silogismo; isto é, encontre antes a conclusão e, depois,
as premissas que servem para justificá-las. (...) As premissas, não obstante seu nome,
frequentemente são elaboradas depois – em matéria judiciária, o teto pode ser cons-
truído antes das paredes.40

Ora, não podemos esquecer que o juiz é um ser humano, voltado para todas as
sensibilidades características do ser pensante, o que impulsiona a natural busca da-
quilo que se tem como solução no caso concreto. Dificilmente buscará um material
probatório absolutório, até porque ínsita está na ação penal a pretensão condenató-
ria. Portanto, preleciona Jacinto que desde logo, no entanto, é preciso que fique claro que
não há imparcialidade, neutralidade e, de conseqüência, perfeição na figura do juiz, que é
um homem normal e, como todos os outros, sujeito à história de sua sociedade e à sua pró-
pria história. Mas se isto é tão evidente, pela própria condição humana, parece lógico que
a desconexão entre o dever ser e o ser só é passível e aceita em função de fatores externos
(manutenção do status quo) e internos (manutenção, ainda que vã, do equilíbrio), em uma
retroalimentação do sistema processual penal em vigor. (...) Assim, produto e produtor do
sistema processual penal, o juiz convive nas suas entranhas e precisa conhecê-lo o suficien-
te para eficazmente operar.41

Não se busca apenas dúvida gerada pelas partes, até porque essa ambigüidade
deveria beneficiar o acusado, face o seu estado de inocência, mas uma dúvida estabe-
lecida pela função acusatória. Na realidade, o poder instrutório do juiz não estabelece a
igualdade das partes através do contraditório; pelo contrário, afasta a igualdade entre
acusação e defesa, sempre beneficiando aquela. Se há intenção probatória, a nosso ver,
presente restará uma indicação acusatória pelo juiz, caracterizando-o como inquisidor

39 Entende de outra forma Grinover quando afirma que “a melhor maneira de preservar a imparcialiadade do juiz não é alijá-lo da iniciativa instrutória, mas sim
submeter todas as provas – as produzidas pelas partes e as determinadas ex officio pelo juiz – ao contraditório.” GRINOVER. A Iniciativa Instrutória..., pág. 6/7.

40 CALAMANDREI, Piero. Eles, Os juízes, visto por um Advogado. trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, págs. 176/177.

41 COUTINHO. O papel do novo juiz..., p.15/16.

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A GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL – CONTINUIDADE DO SISTEMA INQUISITÓRIO PELA LEI 11.690/08

processual. Haverá, tão-somente, uma busca da formação do conteúdo retórico de sua


decisão condenatória, uma vez que a decisão, subjetivamente observada, já se estrutu-
rou no intelecto do julgador, partindo de um ponto de vista próprio e determinado42.

Na realidade, a intervenção probatória do julgador, autorizada, principalmente,


com a alteração do artigo 156, CPP, realça a fragilidade do princípio acusatório do nos-
so ordenamento jurídico na medida em que afasta sua neutralidade e consequente-
mente sua imparcialidade, a partir do seu envolvimento psicológico – como afirmara
Carnelutti na contradição entre juízo e raciocínio: primeiro se julga e, depois, raciocina-
-se, e as razões fundadas nas provas são, propriamente, o meio para testar o juízo43 – com
uma das versões do jogo44, mostrando presente a idéia do positivismo , no imaginário
coletivo (inclusive jurídico) da busca desenfreada pela pretensão condenatória focali-
zada na decisão judicial45.

Diante de uma vertente conclusiva, outra não é a solução senão o reconhecimen-


to da (in)coerência normativa do artigo 156 do Diploma Processual Penal, ampliada
com a alteração dada pela Lei 11.690/08.

A coerência exposta é encontrada pela proximidade do sistema inquisitório. Nes-


ta linha, a alteração legislativa somente deu maior conteúdo ao modelo caracterizador
do sistema processual. A cada atuação legislativa, a indicação da intenção é reservada
a um processo penal com anseio de defesa social. Mais uma vez confunde-se a função
imparcial de julgar com a sua necessidade de atuação como um personagem ligado
à segurança pública. Se a polícia não conseguiu imaginar as diligências a serem reali-
zadas, e o Ministério Público, com sua função constitucional de receptor natural das
informações adquiridas na investigação se manteve inerte, caberá ao juiz, que ao final
julgará a causa penal, ordenar diligências, antes do início da ação, ou produzir provas
sobre pontos relevantes. Assim, a repetição mostra-se necessária: a coerência da al-
teração legislativa é de afastarmos o processo penal como garantia constitucional e
vê-lo como mais um instrumento de segurança pública, chamando ao julgador a res-
ponsabilidade de atuar como órgão de persecução criminal.

42 MAIER. Op. cit, pág. 740.

43 COUTINHO. Glosas..., pág. 184

44 PRADO. Sistema Acusatório, pág. 108.

45 Assim, expõe Carnelutti: “ainda que os homens não possam julgar, devem condenar.” In COUTINHO. Glosas..., pág. 185.

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A GESTÃO DA PROVA NO PROCESSO PENAL – CONTINUIDADE DO SISTEMA INQUISITÓRIO PELA LEI 11.690/08

Já a incoerência se dá pela simples ruptura com nosso modelo constitucional a


partir da indicação democrática da neutralidade e imparcialidade jurisdicional para
a formatação da segurança jurídica do indivíduo frente à intervenção repressiva do
Estado. O processo penal, a cada alteração do legislador, infelizmente, muito mais
se afasta dos anseios construídos em 1988 com nossa Constituição. A cada mudança
setorial – até porque não está acompanhada da própria estrutura processual - indica
que a Constituição da República mais se aproxima de um grande pedaço de papel que
pouca aplicabilidade prática possui.

Não é crível, ou talvez seja incongruente mesmo, que haja tamanho desrespeito
à função constitucional da polícia e do Ministério Público, quando, por linha indireta,
indica que o julgador precisará exercer uma função, que sua não é, para chegarmos
ao conhecimento do fato delitivo a ser provado. Mais uma vez o discurso sobre uma
busca da verdade (utopicamente absoluta) fomente alteração legislativa que indica
uma ruptura com todos os princípios de uma jurisdição penal justa, sua independên-
cia e inércia, para ao final a garantia da sua imparcialidade.

NOTA CONCLUSIVA

Não obstante toda a estrutura normativa do modelo em nível constitucional, objeti-


vando a criação de parâmetros de racionalidade, de justiça e legitimidade, na prática
jurídica, observamos justamente uma contradição, ao ponto de leis e decisões estabe-
lecerem um super-valor às questões práticas, de utilidade processual em detrimento
de interesses garantistas.

Na verdade, nosso processo se observado conforme os preceitos constitucionais,


merece aplausos diante do elevado nível, caso consideremos os princípios e garantias
a ele reservado, mas, por outro lado, possui nível rasteiro, quando observada a prática
efetiva, principalmente quando o conteúdo normativo autoriza um afastamento entre
o que deveria ser (processo penal democrático) e o que é (processo penal autoritário),
com várias confusões nas funções diante desta situação processual46.

O discurso sobre a verdade buscada nas investigações “judiciais”, portanto, ape-


nas realça o que já afirmamos: a permanência de um protótipo inquisitorial, que não

46 Juiz como verdadeiro investigador, como “parte processual” em que produz prova de ofício durante a instrução probatória e julgador. Se a última função fosse
a única, teríamos um processo penal sintonizado com nosso anseio constitucional

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obstante flagrar sua inconstitucionalidade, permanece em tranqüila vigência normati-


va, sendo apenas alvo de críticas doutrinárias47.

Assim, não há mais espaços para autorizarmos a intervenção legislativa destituí-


da de qualquer valor constitucional (como ocorreu com a Lei 11.690/08, apenas para
exemplificarmos no nosso pequeno estudo).

O que conclamamos é que nosso direito processual penal não mais se confunda
com um instrumento auxiliar do poder público para exercício de segurança pública,
senão estaríamos revivendo épocas ditatoriais. Na verdade, precisamos estabelecer
uma cultura democrática através de um processo com víeis estritamente constitucio-
nal, para chegarmos a sua natureza de garantia fundamental e, neste enfoque, não se
torna crível a possibilidade do julgador investigar ou até, como já se criticava, produzir
provas de ofício.

A nossa conclusão, não poderia ser outra, senão o reconhecimento da inconstitu-


cionalidade agravada pelo atual texto do artigo 156 do Código de Processo.

47 Neste sentido LOPES JR. Sistemas de Investigação..., pág. 156/157; MALAN. Op. cit, pág. 67; GOMES, Luiz Flávio. Estudos de Direito e Processo Penal.São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1998, págs.179/197. ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Resquícios Inquisitórios na Lei 9.304/1998. São Paulo: Revista Brasileira de Ciências
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___________________ Considerações acerca da Inadmissibilidade de uma Teoria Geral do Processo.


In Direito Criminal. Coord. José Henrique Periangeli. Belo Horizonte: Del Rey, 2001

ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003.

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A ARGU M EN TAÇÃO
J U R Í DICA COM O GARANT I A
C ON S TITU CION A L NO

PROCESSO PENAL

TEXTO PUBLICADO ORIGINARIAMENTE:

A Argumentação Jurídica como Garantia Constitucional no Processo Penal. In Revista


Brasileira de CiênciasCriminais. , v.67, p.136 - 163, 2007.
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

“A verdade é como a luz ou como o silêncio, os quais compreendem todas as cores e todos
os sons; mas a física tem demonstrado que a nossa vista não vê e os nossos ouvidos não
ouvem mais que um breve seguimento da gama das cores e dos sons; estão aquém e além
da nossa capacidade sensorial as infra e ultracores, como os infra e ultra-sons.”
FRAN CESCO CARN ELUTTI

BREVE NOTA INTRODUTÓRIA

O presente trabalho não possui a ambição de exaurimento do tema ofertado, mas tão
somente, uma simples construção de idéias sobre a fundamentação das decisões e
sua presença na construção da teoria da argumentação jurídica.

Para tanto, foi necessário o apontamento de conceitos básicos sobre a lógica for-
mal e sua aproximação com a verdade real. Não obstante o discurso falacioso desta
modalidade de verdade no processo penal, podemos afirmar que sua ausência é a
simples constatação da incongruência da lógica formal com a dialética processual.

Assim, objetivando a adequação de uma lógica na dinâmica processual, buscamos


a aproximação da teoria da argumentação em Perelman, formando, com seus concei-
tos e prescrições, uma lógica (argumentativa) jurídica. Neste sentido, a motivação das
decisões judiciais servirá como fator preponderante na argumentação jurídica, a par-
tir do ponto em que expõe todo o raciocínio jurídico traçado pelas partes no processo,
bem como pela síntese prolatada pelo julgador.

No entanto, a simples fundamentação da decisão judicial não perfaz apenas a


formação da lógica jurídica, mas sim haverá verdadeira corporificação da legitimidade
processual a partir da sua função política, somada à observância de todas as garan-
tias fundamentais. Portanto, a função da motivação das decisões judiciais espelha a
natureza jurídica do processo penal como garantia fundamental, quando resguarda a
mostragem e o exercício das normas expressas na nossa Carta Constitucional como
orientadoras da edição e aplicação de todo o ordenamento jurídico.

Não pretendemos uma conclusão perfeita, até porque seria verdadeiro contra-
-senso com os argumentos expostos, já que haveria a demonstração de um enunciado
( muito próximo da lógica formal). Como estamos diante de um estudo jurídico, have-
rá apenas a tentativa de focalizar um item e dele extrair algumas discussões e idéias.

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A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

Nesse sentido, o raciocínio a ser seguido será sempre da construção através da dúvida
(e não da certeza) e da argumentação (e não da enunciação).

[1]
CRITÉRIO APROXIMATIVO DA

LÓGICA FORMAL

“A lógica formal estuda o pensamento em sua estrutura formal, ou seja, o pensamento en-
quanto forma que pode ser preenchida por qualquer conteúdo oriundo da experiência. Essa
estrutura formal, não existe por si mesma, é apenas destacável mediante uma abstração
onde desprezamos momentaneamente o conteúdo para por em relevo apenas a forma, de
modo artificial.” 1

Assim, lógica formal, estrutura-se pelo pensamento sem conteúdo. A demonstra-


ção pressupõe um dado experimental2, que não exaure, porém, nesta forma demons-
trativa, mas que também não se distancia. A razão não forma a sua estrutura até por-
que a revelação empírica já fornece elementos suficientes para sua conceituação. Os
símbolos são precisos e transparentes, denotando todo seu aspecto sintático, o que
afasta fatores de opiniões individuais e principalmente sociais, uma vez que prescinde
de anuência daqueles que recebem os enunciados.

A ausência de juízo de valor aproxima de uma verdade absoluta, levando a desne-


cessidade de argumentação, posto que exibida de forma perfeita, através de simples
dedução, por um procedimento certo; por um saber que se supõe científico. Nesta li-
nha, mesmo que haja justificação no enunciado, o modelo de racionalidade será sem-
pre dedutivo3.

1 ALVES, Alaôr Caffé. Lógica: pensamento formal e argumentação. Elementos para o discurso jurídico. 3ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2003, p. 83

2 Baseando-se na Teoria da Argumentação de Perelman o Professor Paulo Mendoça traça importante diferenciação entre a demonstração e argumentação,
que facilmente se adequa ao estudo em questão, aproximando aquela da lógica formal, enquanto esta, muito mais adequada à argumentação jurídica.
Assim, afirma que “ a demonstração é típica de uma lógica formal, que adquiriu grande projeção no século XIX, com a ascensão do paradigma positivista, que
defendia a adoção, no estudo das ciências sociais e humanas, do mesmo método utilizado nas ciências naturais e exatas”. MENDONÇA, Paulo Roberto Soares.
A Argumentação nas decisões judiciais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pag. 58.

3 “Segundo essa orientação, a estrutura lógica da decisão judicial pode ser assimilada à de um silogismo no qual a premissa maior corresponde à norma a ser
aplicada, enquanto a premissa menor é representada pelo fato apurado na instrução probatória, extraindo-se daí a necessária conclusão, que é a decisão
da causa. Esse esquema, que pareceu ser demasiado simples a seus próprios defensores, não retratando evidentemente a complexidade do procedimento
decisório, foi depois aperfeiçoado, afirmando-se então que a atividade decisória comportaria uma série de silogismos parciais, cujas conclusões representariam,
por sua vez, as premissas de um silogismo final.” GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A Motivação das Decisões Judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001,
pag. 119. Por conseguinte, este modelo segue a orientação da Escola da Exegese, onde o juiz possuiria uma simples função de “ boca da lei”, retratando aquilo
que teoricamente deveria ser considerado uma afirmação perfeita estatuída pelo legislador.

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A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

A dinâmica social de aplicação das normas jurídicas a fatos concretos afasta, por
si só, uma lógica formal na seara de aplicação do direito4, visto que aquela reserva ver-
dadeira força algébrica, que não se coaduna com a necessidade dialética do direito.

Mostra-se interessante uma passagem pela lógica formal, que retrata, ou pelo me-
nos retratava – face ao relativismo científico atual – uma verdade identificável como real
ou substancial para, desde já, afirmarmos que somente há que se falar em verdade real
no direito quando estivermos diante de situações matemáticas de aplicação das normas
jurídicas. Como tal fato se torna impossível, a primeira e tranqüila conclusão é que pela
ausência de aplicação da lógica formal no direito, não existirá uma verdade cartesiana.

Como veremos, a própria necessidade de motivação das decisões judiciais como ma-
nifestação de argumentação jurídica, afasta a lógica formal. E por consequência, já que
estaremos diante de argumentação exposta pelo julgador, reduz-se na afirmação de
que a decisão judicial ( motivada ) não se aproxima de qualquer verdade real, mesmo
que sua intenção seja pela sua busca, mas não como realidade, e sim como discurso.
Neste sentido, não haverá espaço a um silogismo judicial, posto que o método dedu-
tivo retrataria uma subordinação hierárquica ( fria) entre a lei e o aplicador do direito.

Ainda que estejamos diante de situações rotineiras, inicialmente de aplicação


fácil das normas jurídicas e ainda que em relação à interpretação sobre os fatos, a
situação processual merece respeito ao ponto de não se entregar a um silogismo ju-
rídico5, pois, caso contrário, observaríamos um aspecto utilitarista do processo que
pode chegar até mesmo numa arbitrariedade judicial. Merece, portanto, em qualquer
situação levada a juízo um raciocínio e a justificação racional e razoável para a aplica-
ção da norma (com ênfase à norma repressiva). Formação de um modelo dedutivo,
acompanhado pela lógica formal, baseado, tão somente, na letra da lei, esquecendo
a criatividade do juiz, resume-se na redução da aplicação do processo ( penal), o que
não podemos concordar.

4 “O Direito é parte integrante da experiência histórica do homem em Sociedade e, como tal, relaciona-se com o plano da ação. Ou seja, o Direito não é uma
forma/pensamento pura e abstrata que se sustenta a partir de suas própria conexões lógico-sistemáticas internas.” MONTEIRO, Cláudia Servilha. Teoria da
Argumentação Jurídica e a Nova Retórica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pag.150.

5 Numa outra visão, aponta Gomes Filho a possibilidade de aplicação de uma modelo de dedução silogística quando estivermos diante dos easy cases. Neste
sentido, ver GOMES FILHO, op. cit, pag. 123.

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A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

A lógica formal, diante de um silogismo jurídico, pode estabelecer juízos descri-


tivos6, como algo verdadeiro, o que não coaduna com a ciência jurídica7. Assim, pre-
sunções legais podem levar à correspondente inadequação com toda a estrutura sis-
temática do direito, e até mesmo, com a determinação constitucional, como pode ser
observado, de forma exemplificativa, pela vedação legal da liberdade provisória dian-
te de um suposto crime hediondo8. Neste exemplo, há verdadeira demonstração de
necessidade ( absoluta) da permanência da privação da liberdade do acusado, mesmo
que ainda inocente. Retrata-se, portanto, um modelo dedutivo onde a premissa maior
(o impedimento legal da liberdade provisória) somada à premissa menor ( a imputa-
ção de um delito elencado como hediondo), forma-se uma conclusão nefasta: a neces-
sidade genérica da prisão do suposto autor de um delito considerado hediondo . Esta
lógica formal, por ser meramente descritiva, tenta estabelecer uma verdade absoluta,
a partir do momento em que todas as prisões cautelares correspondente a delitos
elencados como hediondos serão necessárias9.

A legalidade desta norma já se mostra discutível – na realidade a inconstituciona-


lidade espelha-se flagrante. Contudo, a valorização de um processo penal de cunho
emergencial10 face a atual criminalidade vulgarizada estabelece lógicas formais que in-
fluenciam tribunais11 e legisladores12, estabelecendo como verdadeiras e válidas essas
normas inconstitucionais.

6 Por outro lado, podem-se observar os juízos prescritivos que não são registrados pela marca da verdade, sendo apenas orientados por critérios de validade
normativa. Ver TEIXEIRA, João Paulo Allain. Racionalidade das Decisões Judiciais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, pag.55/56. Porém não poderemos apenas
vincularmos a aplicação normativa pelo seu critério de validade, formado pelo modelo prescritivo, mas ainda há a necessidade de vinculação à legitimidade
da norma: para nosso estudo, tal fato deve ser observado pela proteção do indivíduo através de normas formadoras de valores constitucionais.

7 “Trata-se aqui, unicamente de reconhecer que o tratamento dos problemas relativos à conduta humana é impossível de ser pensado de acordo com a
lógica formal, que neste caso apresenta resultados inservíveis. A supervalorização da lógica formal que enxerga a sentença como um silogismo produziu na
jurisprudência conseqüências funestas, por não considerar importantes aspectos axiológicos, típicos da realidade humana.” Idem, pag. 85.

8 Art. 2º, inciso II da Lei 8072/90.

9 “O que está em jogo, entretanto, é determinar se uma norma é ou não adequada para fundamentar uma decisão correta em face de um caso concreto.
Atendendo-se à proposta de Klaus Günther, entende que uma norma será adequada a uma determinada situação quando empregada de tal modo que possa
compreender todas as circunstâncias dessa situação e possa ser apreciada, alternativamente, em comparação com outras normas. Ocorre que esse simples
procedimento não garante a correção da decisão, que deverá ser alcançada por meio de princípios que orientam o discurso jurídico, o qual não se confunde
nem com o discurso moral nem com o discurso prático.” TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, pag. 81.

10 Para tanto ver CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

11 “É incabível a concessão de liberdade provisória nos crimes hediondos (Lei 8.072/90, art. 2º, II). Com esse entendimento, a Turma manteve decisão proferida
pelo STJ, que restabelecera a prisão do paciente por entender incabível, na espécie, a concessão de liberdade provisória antes de proferida a sentença, tendo
em vista que ele fora preso em flagrante e denunciado pela prática de homicídio duplamente qualificado (Lei 8.072/90, art. 1º, I). Vencido o Min. Marco Aurélio,
relator, que deferia o habeas corpus, por entender que o STJ não poderia abandonar as premissas do acórdão recorrido e concluir pela hediondez do crime,
ou seja, não poderia proceder ao exame da prova”. (HC 79.386-AP, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Maurício Corrêa, 05.10.99).

12 Basta ver Projeto de Lei 831/2003 do Deputado José Divino onde acrescenta o inciso IX no art. 1º da Lei 8072/90 afirmando que :” São considerado hediondos os
seguintes crimes: IX – crime de receptação”. Da mesma forma o Projeto de Lei 166/2003 do Deputado Alberto Fraga onde estabelece algumas lógicas formais.
Assim, para este legislador, deveria o artigo 2º da Lei 8072/90 ser alterado para incluir as seguintes pérolas: “ §2º – Nos processos por crimes previstos neste
artigo é obrigatória a decretação da prisão preventiva por ocasião do recebimento da denúncia, se o acusado estiver em liberdade. Não é aplicável nos processo
referente a esses delitos, o art. 316 do Código de Processo Penal. §3º – A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei n. 7690/, de 21 de dezembro de 1989,
nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 ( trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade, devendo
o juiz, ao prorrogá-la, determinar que se transforme automaticamente em prisão preventiva, quando de seu término. §4º – Nos processos por crimes previstos
neste artigo, não se aplica o art. 366 do Código de Processo Penal...” ( grifamos) . Material colhido no site da Câmara dos Deputados. Não transcreveremos a
justificativa do presente PL, já que seria por demais absurdo a perda do nosso (e para os que lerão o presente trabalho) escasso tempo.

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A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

O que se deveria retratar neste caso exemplificado, seria justamente o contrário:


a demonstração da verdade absoluta de que a pessoa sujeita a uma investigação ou
a uma ação penal, deve ser considerada inocente quando ainda diante de uma situ-
ação processual ( não havendo decisão condenatória transitada em julgado). A única
verdade real – a presente lógica formal – é da sua inocência, pois nossa Constituição
assim descreve (art. 5º, inciso LVII ), o que não pode ser contrariada por normas infra-
-constitucionais ( inconstitucionais)13.

No entanto, nosso ordenamento processual e material ( penal) ainda se mostra


arraigado de lógicas formais que seria por demasiado elencá-las neste trabalho, pois
deveríamos estar diante de outro campo de raciocínio, não havendo espaço para
exaurimento desse debate. Merece apenas alusão à presença dessas normas que dis-
tanciam toda a aplicação do sistema processual penal democrático, com invenções in-
verídicas de verdades reais, destituídas de qualquer valor jurídico e constitucional.

[2]
FORMAÇÃO PRÓXIMA DA

LÓGICA JURÍDICA 14

Contrariando toda a lógica formal15, que não possui qualquer espaço nas ciências hu-
manas, a lógica argumentativa ganha campo16 a partir do fracasso do positivismo17 do
século XIX. Essa se funda através da ausência de verdades demonstradas, e sim pelo
conjunto de opiniões com adesão18 do receptor da exposição do argumento. Haverá,
portanto, um discurso argumentativo, através de um raciocínio jurídico, que pressu-
põe o desacordo (efetivado em âmbito processual através do contraditório) e não um

13 “Para além do sonho narcíseo da dogmática processual penal de alcançar a ‘verdade substancial’ a Constituição, ao normatizar a presunção de inocência,
estabeleceu uma atitude deontológica aos sujeitos processuais: aceitar, tomar como verdadeira a inocência do acusado enquanto não houver robusta prova
em contrário.” CARVALHO, Salo. As Presunções no Direito Processual Penal (estudo preliminar do ‘estado de flagrância’ na legislação brasileira). In Processo Penal:
Leituras Constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pag. 206.

14 Também denominada por Perelman como lógica da controvérsia. PERELMAN, Chaïm. Ètica e Direito. Trad. GALVÃO, Maria Ermantina. São Paulo: Martins
Fontes, 2002, p. 540.

15 “O papel da lógica formal consiste em tornar a conclusão solidária com as premissas, mas o papel da lógica jurídica é demonstrar a aceitabilidade das
premissas. Esta resulta da confrontação dos meios de prova, dos argumentos e dos valores que se defrontam na lide; o juiz deve efetuar a arbitragem deles
para tomar a decisão e motivar o julgamento.” PERELMAN, Chaïm. Lógica Jurídica. Trad. PUPI, Vergínia K. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 242.

16 Podemos, porém, afirmar que a retórica clássica que originou toda a crítica da atuação das ciências exatas nas vertentes sociais.

17 O positivismo jurídico afasta juízos de valores, a partir do momento em que considera o direito como um fato e não como valor, interpretando e aplicando as
normas jurídicas da mesma forma que o cientista aplica e interpreta as leis naturais.

18 Ver MENDONÇA. Op. cit, pág.90.

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A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

enunciado verdadeiro, como preleciona a lógica formal. Para haver, portanto, um racio-
cínio jurídico, afastado de um modelo cartesiano, torna-se indispensável e oportuna a
presença da controvérsia, porque sem a alusão a uma batalha argumentativa, afastaria
toda a função de um processo dialético que realiza um liame jurídico entre às partes.

Também se deve observar todo um aspecto semântico do discurso, imprescindin-


do de interpretação da linguagem exposta19, sem que haja uma situação auto explica-
tiva. Reserva como ponto crucial, a presença de juízos de valores.

Urge observamos que a aplicação das normas jurídicas e sua adequação aos fatos
indicados na situação processual pela argumentação, não afasta uma estrutura legalis-
ta; não se pretende uma aversão à normatividade jurídica, tão somente uma identifi-
cação social e racional da sua aplicação20. Há, portanto, necessidade de interpretação,
uma vez que o dinamismo jurídico impõe a incerteza da aplicação pragmática de sua
estrutura. A razão prática21 mostra-se indispensável, mas condicionada à argumentação
regulamentada, seja através da época, do aspecto social, da aplicabilidade proporcional
das normas jurídicas e da interpretação casuística, sem minimizar uma lógica jurídica.

E é justamente através da estruturação de uma lógica argumentativa pela cria-


ção e seguimento necessário de uma lógica jurídica, que demandará toda a estrutura
formadora em decorrência dos valores sociais e daqueles inseridos nos discursos das
partes na situação processual, bem como pelo julgador, como receptor natural das
orações interessadas e exposição da argumentação imparcial e independente.

Na lógica jurídica, não estaremos diante de determinações conceituais, que afas-


tam qualquer fator de opinião. Há, na verdade, uma aproximação da lógica argumen-
tativa, onde a decisão será o ponto crucial de formação do conjunto de saberes do jul-
gador sobre o fato e sobre a aplicação do direito. Haverá necessidade de construção
de juízo de valores diante do material probatório e processual disponibilizado, esqui-

19 Importante ressaltar que não estamos nos filiando na posição de Perelman ou Habermas sobre a Teoria da Argumentação, já que não é esse o objeto do
estudo. Na verdade, esta teoria apenas nos convida à crítica sobre o discurso passado e moderno sobre a existência de uma verdade real no processo. Como
teremos a oportunidade de expor, estaremos sim, diante de uma verdade processual, que se refere, tão somente, aos argumentos expostos pelo julgador,
que não se mostra real, nem mesmo justa, mas sim condicionante às partes do processo, à época, ao aspecto social e o resumo dirigido ao discurso ético do
processo como garantia fundamental.

20 Assim, a Teoria da Argumentação que fundamenta a aplicação normativa aduz que “ a norma ‘justa’ é aquela aceita institucionalmente, a partir de um processo
dialético. Isto se justifica, porque no campo da argumentação pode-se verificar a prevalência de uma retórica eficiente ou não; mas nunca a existência de
idéias ‘corretas’, as quais são próprias do universo da demonstração.” Idem, pág. 80. Essas premissas partem de argumentos dialéticos objetivando a aceitação
pela sociedade ( comunidade jurídica) como possivelmente verdadeiras ( verossímeis), necessitando de confrontação em um procedimento crítico através da
instauração de diálogos entre diversas posições confrontadas. Ou seja, não se mostra estático, mas sim dinâmico pelo próprio impulso através de argumentos.

21 Enquanto a razão teórica insere-se no âmbito da prova, a razão prática imprescinde de aprovação. “Assim, a filosofia tem por objeto a verdade, enquanto
que a Teoria da Argumentação é o terreno do opinável. A tradição racional cartesiana abandonou a razão prática e sua problemática, enquanto que a Nova
Retórica pretende resgatar o estudo dos mecanismos não-formais do pensamento. Por tudo isso, pode-se dizer que o papel da argumentação se liga ao da
razão prática.” MONTEIRO. Op.cit, pag.152.

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A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

vando-se ao máximo, da presença de dimensões sintáticas sobre aplicação da norma


ao caso concreto. Pelo contrário, a pretensão aqui exposta é justamente a existência
do aspecto semântico que estabiliza o sentido que a norma jurídica buscará através
da sua interpretação. Esta interpretação, por seu turno, deverá percorrer um viés ar-
gumentativo, para afastar uma simplória demonstração entre a premissa maior e a
premissa menor.

Contudo, os argumentos expostos pelo aplicador da ciência jurídica (argumen-


tativa) não devem somar uma quebra da imparcialidade e total independência para
proferir uma decisão, no mínimo legítima, socialmente útil e razoável. Diferente da ló-
gica formal, onde não há juízo de valor, sendo apenas necessária sua presença, onde
a demonstração de seus efeitos não necessita quiçá de anuência; na lógica jurídica, a
imparcialidade deve basilar toda sua estrutura, pois não estaremos diante de fatores
pré-determinados, ou simbolicamente demonstrados, mas sim, diante de critérios se-
mânticos que estruturarão toda uma explicação da valoração fática.

Como efeito desta lógica jurídica, afirma Perelman, numa singela conclusão que
“na medida em que o direito é concebido como uma técnica que visa a proteger si-
multaneamente vários valores, às vezes incompatíveis, a lógica jurídica se apresenta
essencialmente como uma argumentação destinada a motivar decisões judiciárias,
para fazê-las beneficiar-se de um consenso, o das partes, das instâncias superiores e,
enfim, da opinião pública esclarecida”.22

Não estaremos também afastados de valores políticos e sociais23, posto que toda
argumentação jurídica sobre um fato demanda afirmação de poder para dirimir even-
tuais conflitos sociais. Porém, devem-se somar diretrizes objetivando o afastamento da
insegurança jurídica que originaria por simples quebra da imparcialidade do julgador.
Ou seja, valores outros daqueles mesclados da situação processual estarão presentes,
obviamente, mas não deverão subtrair do julgador sua completa independência (que
estrutura todo um Estado de Direito originado principalmente na separação dos po-

22 PERELMAN. Ética e Direito, p. 541. Na verdade não podemos concordar com esta conclusão a partir do momento em que não se estabiliza uma situação
jurídica apenas pela força decisória. A aplicação da “justiça” não está inserida apenas no poder judiciário. Precedente à decisão deve-se indagar pela existência
de uma justiça social, principalmente no nosso caso, onde a discussão dá-se pelo desvalor de uma conduta que na maioria das vezes esbarra em valores
patrimoniais. Mas também após a decisão judicial e o cumprimento de eventual sanção penal, já que a mácula desta repressão resguardará feridas eternas.
Assim, a argumentação jurídica exposta pelo julgador, não pode ser destinada apenas às partes, e principalmente à opinião pública esclarecida, mas numa
visão mais ampla onde toda a sociedade não deverá fazer parte da discussão enfocada num processo ( penal). Não podemos reduzir o campo de aplicação
social do processo, que merece uma extensa visão democrática.

23 “Toda a argumentação, seja ela qual for, que vise obter ou aumentar a adesão de um auditório às teses que se apresentam ao seu assentimento, funciona num
contexto psicossocial, pois implica a existência de um contato das mentes, a utilização de uma linguagem comum, a observação de certo número de costumes,
de práticas e de hábitos que regem o uso do discurso. Mas o que fica vago e indeterminado, quando se trata de práticas socialmente aceitas, é muito mais
regulamentado quando se trata de práticas jurídicas, em especial judiciárias.” Idem, p. 539. Neste sentido, a regulamentação do discurso jurídico deve se dar pelo
princípio do devido processo legal. Somente a partir daí, resguardar-se-á o apoio social para a lógica jurídica formada por uma decisão judicial.

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A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

deres idealizada por Montesquieu) e imparcialidade (formada através da inamovibili-


dade dos juizes, impossibilidade de criação de tribunais especiais, e aproximação ativa
dos argumentos) para julgamento a partir de discussões promovidas pelas partes. Os
valores (e não pré-valores) deverão estar presentes.

A importância da lógica jurídica como ruptura natural da lógica formal eleva-se


pelo simples fato de que a argumentação prevista em decisões pretende resguardar
uma discussão ética (entre as partes e levadas ao julgador, para exercício primário
de sua função), que não pode ser recebida por pré-conceitos formados antes mesmo
da pretensão acusatória. Assim, indo ao encontro aos ensinamentos de Perelman e
acompanhando suas angústias, deve-se indagar: “o juiz deverá ou não levar em conta
consequências sociais, econômicas ou políticas de sua decisão? Deverá ficar fiel à má-
xima pereat mundus, fiat justitia? Quais são as considerações que devem prevalecer aos
seus olhos? Será a segurança jurídica, a fidelidade à lei, será um cuidado de equidade,
deverá ele conciliar essas suas exigências quando elas parecerem conduzir a decisões
divergentes?”24

Perpassando pelo caráter semântico da lógica argumentativa, chega-se à situa-


ção pragmática da lógica jurídica que será demonstrada pelos valores apontados na
decisão judicial. Valores estes, como exporemos, devem estar resguardados diante
da contradição exercida pelos sujeitos processuais25, sob pena de ferir o devido pro-
cesso legal substancial, bem como a segurança jurídica formada pelo processamento
dos argumentos expostos. Claro, porém, que todas as garantias fundamentais já res-
guardam determinados valores processuais, jurisdicionais e sociais que tentam apro-
ximação da aplicação de um processo democrático, com aplicação imediata na situ-
ação processual, independentemente de aproximação dos argumentos empregados
na disputa processual, devendo ser ponderado pela síntese através e para a formação
da sua motivação.

24 Ibdem, p. 537/538.

25 Com força filosófica, esta estrutura argumentativa pode ser denominada de princípio da discussão que se enuncia da seguinte forma: “ Só podem pretender à
validade as normas que possam receber a concordância de todos os interessados, enquanto que participantes numa discussão prática. É um princípio moral
por ser, antes de tudo, um princípio de participação abrangente: todos os interessados têm o direito de participar na discussão que elabora as decisões ou as
normas. É um princípio de descentralização em relação aos interesses imediatos. (...) É preciso associar o princípio da discussão ao princípio da publicidade
dos debates. Os debates que não são públicos têm muito menos valor porque as decisões não envolvem os protagonistas.” FERRY, Jean – Marc. As Virtudes da
Discussão. In A Sociedade em Busca de Valores. Para Fugir à Alternativa entre o Cepticismo e o Dogmatismo. Trad. FETO, Luís M. Coucetro. Lisboa: Instituto Piaget.
1996, pags. 215/216. E, por conseguinte, a principal ofensa será contra a democracia.

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A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

[3]
A MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES COMO

ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

“O Direito, equilibra uma dupla exigência: a primeira é a sistemática, concernente à va-


lorização da coerência do próprio sistema; e a segunda é a pragmática, definida como a
aceitabilidade das decisões”26. Portanto, já podemos afirmar que a motivação das deci-
sões27 não nasce com o direito, nem a ela se torna exclusiva. Durante longo espaço de
tempo, a aplicação do direito misturava-se às crenças religiosas e o próprio costume.
O direito reservava-se a órgãos pré-determinados que legislavam e julgavam, havendo
uma verdadeira mesclagem entre suas funções, na medida em que o sistema jurídico
era pouco elaborado e não havia uma participação ativa da sociedade. As decisões pro-
feridas por aqueles que julgavam quiçá eram levadas ao conhecimento do público.

A mudança substancial teve sua origem pela Revolução Francesa, com a proclama-
ção do princípio da separação dos poderes, somada a publicação de um conjunto de
leis codificadas impondo ao juiz a adequação das suas funções às regras estruturadas
através de código. Por conseguinte, estabelece-se a obrigação, para o juiz, de motivar
suas decisões com referências à legislação em vigor28.

Ultrapassando séculos, permanece a retidão como marca registrada de toda deci-


são judicial, e será revelada por sua fundamentação. Na verdade, os argumentos des-
pendidos pelo julgador deverão dar base à síntese das questões arguidas pelas partes,
que necessariamente trarão ao juiz elementos para formação desta fundamentação.
A lógica jurídica, que pressupõe o afastamento de um funcionamento puramente for-
mal da prestação jurisdicional (havendo um claro rompimento com a lógica formal),
deve se adequar à formação de argumentos úteis à solução de conflitos, ou mesmo
poderes e deveres. Argumentos estes que deverão aderir aos anseios das partes (uma

26 MONTEIRO. Op. cit, pag.146.

27 “Motivar uma decisão é expressar-lhe as razões. É desse modo, obrigar quem a toma a tê-las. É afastar toda arbitrariedade. Somente graças à motivação
aquele que perdeu um processo sabe como e por quê. A motivação convida-o a compreender a sentença e não o deixa entregar-se por muito tempo ao
amargo prazer de ‘ maldizer os juizes’. Ela é que o ajuda a decidir se deve recorrer, ou, se for o caso, a dirigir-se à Cassação. Ela é que permite não colocar-
se novamente em uma situação que faria nascer um segundo processo. Além do mais, a motivação dirige-se não apenas aos pleiteantes, mas a todos. Faz
compreender o sentido e os limites das leis novas, o modo de combiná-las com as antigas. Fornece aos comentadores, aos estudiosos da jurisprudência, a
possibilidade de comparar as sentenças entre si, de analisá-las, agrupá-las, criticá-las e extrair delas lições, em geral, também de preparar as soluções futuras.
Sem ela não teríamos ‘emen ários’, e esta publicação não seria o que é. A necessidade da motivação entrou de tal modo em nossos costumes que em geral
ultrapassa os limites do domínio jurisdicional e vai-se impondo, pouco a pouco, a decisões simplesmente administrativas, cada vez mas numerosas.
“ A sentença motivada substitui a afirmação por um raciocínio e o simples exercício da autoridade por uma tentativa de persuasão. Desempenha, desta forma,
no que poderíamos chamar de equilíbrio jurídico e moral do país, um papel absolutamente essencial.” SAUVEL, T.. Histoire du jugement motivé. Rev. Dr. Publ.,
1955, pp. 5/6, apud PERELMAN. Lógica Jurídica., pp. 210/211.

28 Idem, pag. 183 e segs. Ver ainda GOMES FILHO, cap. II.

195
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

vencida e outra vencedora – também em seus argumentos29), bem como socialmente


útil, já que a pretensão da lógica argumentativa (jurídica) se funda justamente na liga-
ção do aspecto estritamente legal ao social, formando a legitimidade entre o Direito e a
sociedade. A partir daí estabelece-se um processo que se pretende democrático. Assim,
o auditório30 receptor do argumento jurisdicional, tona-se o mais amplo possível, justa-
mente porque esse argumento não se dirige apenas aos sujeitos processuais31, mas sim
a todo um aspecto extrínseco da situação processual. Consequentemente a fundamen-
tação da decisão deve buscar, ou mesmo se aproximar, daquilo que é trazido aos autos,
interpretado (sejam as normas, bem como os fatos) e aplicado de forma racional.

A motivação (também reservada como verdadeira justificação32) não se mostra


simples cálculo aritmético, mas sim, forma de argumentação jurisdicional. Somente a
partir deste material processual, possuirá o juiz condições de decidir através dos ar-
gumentos expostos pelas partes e auxiliares na situação processual. A motivação, nes-
te sentido, possui a natureza de um discurso justificativo da decisão judicial33, o seu
próprio argumento, pois o julgador deverá se pautar nas normas jurídicas e aplicá-las,
quando coerente com o caso concreto, mas adstrita à determinação constitucional,
assim como os fatos retratados na discussão processual.

Não há espaço, na lógica jurídica, de fundamentação baseada em intuições pes-


soais do julgador, posto que não argumentadas pelas partes na situação processual.
Também não há reserva para formação de valores pré-concebidos que afastaria a im-
parcialidade do julgador. Claro que o julgador não é um boneco de pano que apenas
expõe a letra da lei! Tem ele suas intuições, convicções, conceitos e pré-conceitos34.

29 Na pesquisa da verdade no sistema da prova judiciária feudal, trata-se de uma espécie de jogo de estrutura binária, o que se certa forma, atualmente devemos
repristinar na formação argumentativa. Assim, ilustra Foucault que “ a sentença consiste na enunciação, por um terceiro, do seguinte: certa pessoa tendo
dito a verdade tem razão, uma outra tendo dito uma mentira não tem razão. A sentença, portanto, não existe; a separação da verdade e do erro entre os
indivíduos não desempenha nenhum papel; existe simplesmente vitória ou fracasso” em seus argumentos. FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas.
Trad. MACHADO, Roberto Cabral de Melo e MORAIS, Eduardo Jardim. Rio de Janeiro: NAU, 2002, pag.61.

30 Sobre o auditório como construção do orador ver PERELMAN, Chaïm e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação – A Nova Retórica. Trad. GLAVÃO,
Maria Ermantina. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Seguindo a orientação sobre a direção da motivação e o auditório, ilustra Perelman: “ A motivação se
adaptará ao auditório que se propõe persuadir, a suas exigências em matéria de direito e de justiça, à idéia que ele se forma do papel e dos poderes do juiz
no conjunto das instituições nacionais e internacionais. Como essa concepção varia conforme as épocas, os países, a ideologia dominante, não há verdade
objetiva a tal respeito, mas unicamente uma tentativa de adaptação a uma situação.
“O direito é, simultaneamente, ato de autoridade e obra de razão e de persuasão.” PERELMAN. Ética e Direito, p. 570.

31 Acompanhando o raciocínio de Perleman, afirma Gomes Filho que “num sistema em que esta realiza apenas uma função endoprocessual, permitindo-se tã-
só um controle de tipo burocrático sobre as decisões, esse auditório é limitado, formado basicamente pelos juizes das eventuais impugnações; ao contrário,
quando se pensa na motivação como garantia política – que possibilita o controle democrático sobre a atuação judicial – o auditório é mais amplo, constituído
potencialmente por todos os membros da comunidade política, em nome da qual a decisão é pronunciada.” GOMES FILHO. Op. cit, pag. 118.

32 Justificar é fornecer boas razões através da persuasão razoável ou mesmo racional. Cuida-se de um procedimento argumentativo que estabelece juízos de
valores, sem haver espaço para determinações de “verdades”. Assim, justificar pode ser visto como uma formação de um discurso argumentativo.

33 FILHO, Antonio Magalhães Gomes. A Motivação das Decisões Judicias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pag. 116.

34 Assim, resulta na constatação de Adauto Suanes onde “é absolutamente irreal pretender que o julgador interrogue um pretenso serial killer com a mesma
tranquilidade com que toma o depoimento pessoal do senhorio em uma ação de despejo. Por menos que o desejasse, suas limitações humanas fazem dele
algo mais do que um mero espectador ou, na melhor das hipóteses, alguém comprometido com os aspectos puramente formais do processo. Basta ler os
termos de muitas decisões concessivas de prisão preventiva para concluir que a instrução penal em tais processos será, por vezes, mera formalidade. Há
de haver, pois, no processo algum instrumento que pelo menos minore as consequências desse inevitável envolvimento emocional.” SUANNES, Adauto. Os
Fundamentos Éticos do Devido Processo Legal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pags. 152/153.

196
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

O que não há espaço é para inclusão direta ou indireta, mesmo que fundamentada,
dessas questões estritamente subjetivas, pois retrataria verdadeira arbitrariedade ju-
dicial. A fundamentação das decisões, com palavras escorreitas que incluem – de for-
ma implícita – esses viéses pessoais, também merece qualificação como arbitrária, jus-
tamente porque a situação processual impõe um contato das partes com as questões
normativas e fáticas para a formação de um efetivo contraditório.

Assim, podemos afirmar com tranqüilidade, que a lógica argumentativa jurídica im-
pede que o julgador traga aos autos do processo elementos que não foram obtidos
através da discussão entre as partes, visto que a subjetividade deste recurso extrava-
saria sobremaneira toda a estrutura do sistema processual vigente, bem como a lógica
jurídica. A função da motivação das decisões judiciais, portanto, serviria como controle a
estes pré-valores, a partir do momento em que as partes podem impugnar as decisões,
e controlar a própria origem do convencimento do juiz. Funcionaria, portanto, como
controle da racionalidade dos argumentos expostos, sejam jurídicos ou morais.35

O enfoque reservado à motivação das decisões merece alcance amplo, não mais
se resumindo na função de justificação do juiz por sua decisão aos legisladores, que foi,
na verdade, o objetivo máximo desta imposição pela Revolução Francesa; bem como
não estaremos apenas diante de uma técnica processual de mera afirmação dos atos
processuais praticados. Há que se ampliar seu curso. A partir da sua função política36,
impõe-se que haja demonstração da adequação das descrições normativas à realida-
de fática, bem como constitucionais, consubstanciada pela função de aplicação das
garantias e direitos fundamentais.

Pela função política, podemos afirmar que a fundamentação das decisões judiciais
não se restringe apenas ao controle entre as partes (endoprocessual), mas também pela
possibilidade da sociedade exercer o controle da prestação judicial ou até mesmo na
equidade buscada pelo exercício do poder pelo Estado. A prestação jurisdicional tam-
bém merece cunho democrático e será através da opinião pública sobre as decisões ju-
diciais que haverá o exercício direto da democracia no poder de julgar pelo Estado (visto
que, no nosso país, o juiz não é eleito pelo voto popular). Assim, a responsabilidade de
qualquer decisão judicial deve ser avaliada pelos sujeitos processuais (o acusado, seu

35 Desta forma ilustra o Professor Aury Lopes Jr. “ A fundamentação das decisões, a partir dos fatos provados ( cognoscitivismo) refutáveis e de argumentos
jurídicos válidos é um limitador ( ainda que não imunizador) dos juízos morais. Esse é um espaço impróprio da subjetividade que sempre estará presente (
não existe juiz neutro), mas que o sistema de garantias deve buscar, constantemente, desvelar e limitar.” LOPES Jr. Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal
(Fundamentos da Instrumentalidade Garantista).Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pag. 272.

36 Sobre a natureza política da motivação das decisões judicias ver GOMES FILHO, cap. III.

197
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

defensor, o Ministério Público e juizes superiores) – formando uma responsabilidade ju-


risdicional (endoprocessual) – e pela própria sociedade através da sua opinião sobre as
decisões judiciais – estabilizando uma responsabilidade social (extra-processual).

Também será pela função política da fundamentação das decisões judiciais que se
controlará a própria legalidade dos atos processuais: a adequação formal e substancial
da função de julgar com a previsão normativa instituída pelo Poder Legislativo. Óbvio
que esta adequação merece balizamento com a dinâmica social – o juiz não é apenas
um repetidor das palavras da lei, como já ressaltado. Será ele um interpretador da lei
ao caso concreto, não podendo se esconder pelo que o legislador disse ou quis dizer
quando divergente do anseio social (quando este estiver também respaldado na aplica-
ção dos dispositivos constitucionais). A lei servirá ao juiz como ponto inicial ao caminho
percorrido (pelos simples fato de nos encontrarmos diante de um Estado de Direito),
mas não precisa impor uma chegada determinada, até porque a dimensão semântica
das normas jurídicas poderá formar outros afluentes para serem desenvolvidos.

O controle da legalidade – inclusive constitucional37 – dos atos produzidos no proces-


so (penal) poderá ocorrer, como já ressaltado, pelas partes ou pela opinião pública e, este
aspecto político não impõe a efetividade do controle, mas apenas a possibilidade do seu
exercício (principalmente pela sociedade) retratando o anseio democrático do processo38.

O principal objetivo, portanto, da fundamentação das decisões judiciais é justa-


mente a mostragem e controle da função de adequação constitucional do julgador. Es-
truturada no nosso Estado Democrático de Direito (Constitucional), a fundamentação
das decisões judiciais, focaliza um controle exercido pelas partes e em âmbito social
da decisão judicial39, com a fiscalização da aplicação da estrutura constitucional (exer-
cício das garantias e direitos fundamentais) daquele que julga.

Todo poder merece controle, para que não se invada um grau de arbitrariedade.
Da mesma forma o poder de decidir. Neste sentido, toda a argumentação exposta pelo
julgador, deve estar condigna com uma realidade processual e social, com aplicação

37 Vale lembrar que não mais há espaço para um Estado de Direito tradicional (estritamente legalista), onde a Constituição serve como mera estrutura
orientadora do legislador infraconstitucional, que a ela merece respeito. Pelo contrário, através do nosso Estado Constitucional toda a estrutura legislativa
deve ser balisada e estruturada a partir das normas constitucionais. A Constituição deve ser vista como fonte de deveres e obrigações legislativas e também
dos operadores do direito.

38 Para tanto, afirma Ferrajoli, este controle e responsabilização dos juízes requer uma série de pressupostos, sociais e institucionais. Assim, os pressupostos
sociais “ são a democracia em geral: a maturidade civil e política dos cidadãos em torno das questões da justiça; a sua atenção e participação constante na
via pública; a sua conflitividade social e sua solidariedade civil e política com os direitos lesados; a completude, a independência e a correção da informação
judiciária por parte da imprensa; o empenho civil e o costume de oposição da cultura jurídica.” FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal.
Trad. ZOMER, Ana Paula e outros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pag. 481.

39 “O juiz dirige-se na motivação de suas sentenças, ao consenso de um auditório universal; ele quer convencer o conjunto hipotético de seres razoáveis de que
está cumprindo os ditames de justiça socialmente aceitos”. MONTEIRO. Op. cit, pag. 195/196.

198
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

de todas as garantias fundamentais reservada às partes na situação processual, o que


resultará numa legitimidade jurídica.

Para que haja coerência com a aplicação do direito aos fatos levados à inércia
jurisdicional, deve-se observar que a decisão judicial não pretende um mero enfren-
tamento de demonstrações jurídicas, que aproximaria de uma visão lógica formal,
uma verdade normativa, que deve ser combatida pelo dinamismo social; mas sim pela
aplicação de argumentos que a torne aproximada da realidade dos fatos em conjun-
to com as normas. A fundamentação das decisões judiciais, ao invés de afirmação de
verdades, que retiraria, por completo seu valor, visto seu conteúdo ilusório, como já
ressaltado, deve estar adequada à aplicação de direitos e garantias processuais e so-
ciais, para resguardar sua legitimidade (em âmbito jurídico, como social).

O processo (principalmente o penal) não deve buscar apenas a aplicação do di-


reito material40. Seria por demais minimizada sua função. Também não estaremos
apenas diante de decisão justa, que se traduziria em verdadeira41 (como já afirma-
do, com certo teor romântico), mas deve-se resguardar limites ao poder repressivo
exercido pelo Estado. E, acompanhando o raciocínio, será a fundamentação das de-
cisões judiciais o momento oportuno de saber se o Estado exerceu seu poder (de
punir ou de libertar) apenas com conceitos racionais42, razoáveis43 e legítimos e não
com pré-conceitos demonstráveis, porém mascarados por alguns escritos que não
respaldam a função do processo.

40 Entende de forma diferente Carnelutti onde afirma que o processo penal consiste no conjunto de atos em que se resolve o castigo do réu. “O processo penal e,
portanto, uma parte ou uma fase, mais exatamente a segunda parte ou a segunda fase, do que se costuma chamara de fenômeno penal, o qual é constituído
pela combinação do delito e da pena. (...) O Direito Penal material te, portanto, como objeto o delito; o Direito Processual Penal, tem como objeto, por outro
lado a pena. Um e outro, juntos, formam o Direito Penal”. CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre O Processo Penal. Trad. BRUNO, Francisco José Galvão. Vol. I.
Campinas: Bookseller, 2004, pág. 67.

41 Esta vem sendo a afirmação emblemática do discurso sobre a necessidade da busca da verdade real. Neste sentido, faz-se oportuna a colação desta ilustração:
“Seja no processo civil, seja no penal, não é suficiente a tutela formal, resultante da simples aplicação das normas legais, mas se requer mais do juiz: dedicação,
empenho, persistência na busca da Justiça. Justiça que concede ou que nega, que condena ou que absolve, que autoriza ou que proíbe, mas sempre Justiça,
qualificada e não meramente formal.” LOPES, João Batista. Os Poderes do Juiz e o Aprimoramento da Prestação Jurisdicional. Revista de Processo, v. 35, São Paulo,
jul-st, 1984, pag. 28.

42 “Só a fundamentação permite avaliar se a racionalidade da decisão predominou sobre o poder, premissa fundante de um processo penal democrático. Nessa
linha, estará expressamente consagrada no art. 93, IX da CB” LOPES Jr. Op. cit, pag. 253.

43 “Uma decisão razoável não corresponde ao mero subjetivismo ou à paixão, mas a um outro tipo de racionalidade, intersubjetiva, que se utiliza da técnica
argumentativa e se define pelo consenso. Muito embora o ideal de ciência, característico do mundo moderno, tenha excluído do campo da lógica o pensamento
opinativo, não significa que esse tipo de pensamento seja intuitivo ou irracional. O pensamento opinativo é aquele formulado em torno de opiniões comuns
e amplamente aceitas em determinada comunidade; idéias, portanto, admitidas como prováveis na qualidade de verossímeis porque podem ser tomadas
como verdade para efeito de raciocínio.” CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e Argumentação – Uma Contribuição ao Estudo do Direito. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pag. 189/190.

199
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

[4]
ATRAVÉS DA FUNDAMENTAÇÃO
ESTRUTURA-SE

UMA DECISÃO LEGÍTIMA

O objetivo exercido pelo processo penal (podendo corresponder à sua natureza jurí-
dica) como limite do exercício do poder de punir do Estado, deve estar em consonân-
cia com todas as garantias materiais e processuais, para a reserva democrática da
sua existência. Não se ressalva apenas a necessidade de um Estado de Direito, com o
princípio da legalidade como alicerce determinante, que também exerce importante
função de controle do poder (de punir) do Estado, através do limite previsto em Lei44.
Mas também exprime necessidade de valores democrático para adequarmos os an-
seios sociais às aplicações normativas. Para tanto, um Estado de Direito deve ser De-
mocrático, e só o será com a observância prática de todas as garantias fundamentais.
O processo penal não requer apenas a aplicação do direito material, como se fosse
somente o instrumento de sua aplicação. Haveria verdadeira redução à sua natureza
e função, mas também não podemos indicar unicamente o processo como aplicação
de garantias e direitos individuais: o processo penal é uma verdadeira garantia fun-
damental45 conglobante, tendo como valor supremo o controle, fiscalização e limite de
qualquer imposição de medidas repressivas, servindo, portanto, como real limitador
ao poder punitivo do Estado, principalmente a partir da ênfase prescrita no art. 8º da
Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica
e pela expressão máxima do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil46.
Da mesma forma, com afirmação coerente ilustra Suannes a incompatibilidade entre

44 Para Ferrajoli o termo ‘Estado de direito’ é sinônimo de garantismo. “Designa, por esse motivo, não simplesmente um “Estado Legal” ou ‘regulado pelas leis’,
mas um modelo de Estado nascido com as modernas Constituições e caracterizado: a) no plano formal, pelo princípio da legalidade, por força do qual todo
poder público – legislativo, judiciário e administrativo – está subordinado às leis gerais e abstratas que lhe disciplinam as formas de exercício e cuja observância
é submetida a controle de legitimidade por parte dos juízes delas separados e independentes ( a Corte Constitucional para leis, ou juízes ordinários para
as sentenças, os tribunais administrativos para os provimentos); b) no plano substancial da funcionalização de todos os poderes do Estado à garantia dos
direitos fundamentais dos cidadãos, por meio da incorporação limitadora em sua Constituição dos deveres públicos correspondentes, isto é, das vedações
legais de lesão aos direitos de liberdades e das obrigações de satisfação dos direitos sociais, bem como dos correlativos poderes dos cidadãos de ativarem a
tutela judiciária” A primeira, destas duas condições representa a fonte de legitimação formal de qualquer poder e a segunda fonte de legitimação substancial.
FERRAJOLI. Op. cit, pag. 687/688.

45 Ilustra com seu ensinamento coerente Aury Lopes Jr.: “ O processo, como instrumento para a realização do Direito Penal, deve realizar sua dupla função: de um
lado, tornar viável a aplicação da pena, e, de outro, servir como efetivo instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos
contra os atos abusivos do Estado. Nesse sentido, o processo penal deve servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo
a garantir plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos, como a presunção de inocência, contraditório, defesa, etc.” LOPES Jr. op.
cit, pag. 37.

46 “A conscientização sobre a importância das garantias processuais, como expressão desses valores fundamentais de civilidade que devem informar as atividades
de aplicação jurisdicional do direito, representa talvez o traço mais saliente da cultura processual contemporânea, chegando-se mesmo a afirmar a fecunda
expressiva idéia de um jusnaturalismo processual.” GOMES FILHO. Op. cit, pag. 31.

200
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

o processo penal e a verdade real, já que sua finalidade é, antes e acima de tudo, as-
segurar ao acusado a preservação da sua liberdade e a manutenção do seu estado de
inocência até a demonstração, pelo Estado, a necessidade de determinação de pres-
crição sancionatória47.

Assim, a decisão judicial reservará caráter democrático, autorizando a exposição do


poder exercido, quando resguarda pela aplicação aos direitos e garantias fundamentais,
com ênfase ao devido processo legal48, ao efetivo contraditório e principalmente ao am-
plo e irrestrito exercício da defesa, o que deve ser demonstrado pela sua fundamenta-
ção. Daí a exposição simples e ilustrativa de Ferrajolli apontando que a fundamentação
das decisões judiciais, na verdade deve ser considerada como garantia das garantias, já
que será através desta garantia (explícita na CR, art. 5º, LXI e art. 93, IX) que haverá a ex-
posição e o controle da aplicação de outras garantias fundamentais.

Também a publicidade dos atos processuais, e aqui com ênfase às decisões ju-
diciais, reserva um cunho de legitimidade a partir do momento em que deverão ser
submetidas a um controle processual (pelos sujeitos na situação processual) e social49.
E mais, para fomentar a legitimidade das decisões judiciais, há necessidade de ade-
quação ao sistema acusatório (ao menos foi esta a pretensão da Lei Constitucional)
através da sua publicidade. Assim, são as palavras do Professor Geraldo Prado quan-
do afirma que a publicidade também se insinua como característica do sistema acusa-
tório, na medida em que o segredo é incompatível, como regra geral, exclusivamente
com regime autoritários e processos penais inquisitórios.50 Por conseguinte, será a
publicidade das decisões judiciais fator importante de controle exercido pela socieda-
de em face da argumentação jurídica, já que não estaremos diante de uma simples
demonstração fática e aplicação normativa que redundaria na visão lógica formal do

47 SUANNES. Op. cit, pag. 163.

48 Ver BONATO, Gilson. Devido Processo Legal e Garantias Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

49 “Evoluiu a forma de se analisar a garantia da motivação das decisões. Antes, entendia-se que se tratava de garantia técnica do processo, com objetivos
endoprocessuais: proporcionar às partes conhecimento da fundamentação para poder impugnar a decisão; permitir que os órgãos judiciários se segundo
grau pudessem examinar a legalidade e a justiça da decisão. Agora, fala-se em garantia de ordem política, em garantia da própria jurisdição. Os destinatários
da motivação não são mais somente as partes e os juizes de segundo grau, mas também a comunidade que, com a motivação, tem condições de verificar
se o juiz, e por consequência a própria Justiça, decide com imparcialidade e com conhecimento da causa. É através da motivação que se avalia o exercício
da atividade jurisdicional. Ainda, às partes interessa verificar na motivação se as suas razões foram objeto de exame pelo juiz. A este também importa a
motivação, pois através dela, evidencia a sua atuação imparcial e justa.” FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 2ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000, pag. 119.
Ver ainda, CHIMENTI, Francesco. O Processo Penal e a Verdade Material – Teoria da Prova. Rio de Janeiro: Forense, 1995, pág. 44 e segs. Sobre o dever de
colaboração e a prova.

50 E continua sua exposição, ilustrando esse pequeno estudo: “ Cumpre dizer, em abono ao acima mencionado, que a publicidade tanto pode ser analisada
como decorrência da necessidade de participação do público na gestão da coisa pública, inclusive, evidentemente, na gestão das decisões judiciais sobre os
casos penais, como pode ser vista na condição de dar ao público, na qualidade de espectador, satisfação a respeito da maneira pela qual os agentes do Estado
exercem suas funções.” PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório – A Conformidade Constitucional das Lei Processuais Penais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001,
pags. 175/176.

201
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

processo, mas sim em atributos de valoração razoável quanto aos argumentos expos-
tos na decisão judicial.

O que se pretende no processo penal é a aplicação de uma decisão justa. Quando


estivermos diante desta decisão, observaremos um processo justo. Mas qual justiça se
almeja na decisão e no processo? Quando estaremos diante de uma decisão e um pro-
cesso justo? De certo não será a decisão verdadeira51, pois inexistente!52 Ousaremos
responder que é aquela na qual deve se alicerçar pela aplicação de garantias funda-
mentais supra referidas. Por conseqüência, fácil retratar um processo justo53, quando
este exerce sua função básica de proteção do indivíduo face a intervenção do Estado,
através do controle exercido contra qualquer medida repressiva.

Por coerência ao raciocínio, a fundamentação das decisões judiciais não serve


apenas para demonstração da autoria e materialidade delitiva, ou sua ausência, no
caso de decisões absolutórias; mas também para a exposição da prática dos atos pro-
cessuais exercidos pelas partes e pelo próprio julgador. O anseio pela legitimidade
da decisão deve ser amplo, a partir do ponto crucial em que se limita, pelo processo,
o poder Estatal, mas também o extravasa quando ilustra o ius puniendi e ius libertatis
(muito mais adequado seria o poder de punir e o dever de libertar exercido também
pelo Estado).

Além da legitimidade (processual e social) pretendida pela decisão através da sua


fundamentação, o Professor Aury Lopes Jr. entende, e devemos concordar, que a fun-
damentação da decisão também serve como controle da racionalidade da decisão ju-
dicial54. Porém, insta esclarecer que a fundamentação como espaço da argumentação
jurídica, deve servir como formação de sua legitimidade e não apenas como controle.
O controle a ser realizado pelas partes (não só no aspecto endoprocessual) estará na
estrutura razoável de formação da exposição dos conceitos fáticos e normativos, bem
como na racionalidade da própria decisão.

A fundamentação das decisões não busca a demonstração de uma verdade abso-


luta, na medida em que está afastada, como aludido, de realidade racional, mas ape-

51 Assim ensina o Processo Juarez Tavares quando afirma que “ na teoria do discurso, ao contrário, a decisão é verdadeira desde que possa ser tida como
adequada ao caso concreto, e será verdadeira se atendidas as condições estabelecidas para o discurso ideal, que são aquelas anteriormente fixadas, como a
força do melhor argumento ou as condições de imparcialidade aventadas por Klaus Günther.” TAVARES. Op. cit, pag. 78.

52 Tanto a verdade quanto a Justiça são valores relativos, que dependerão de situações subjetivas de apreciação. Assim, uma decisão talvez seja justa, porém
falsa; ou mesmo a verdade e justiça não será a mesma para a acusação e para o acusado, e quiçá para a vítima). Assim, a justiça da decisão ( e do processo)
não deve ser pautada pela suposta verdade.

53 SUANNES. Op. cit, pags. 147 e segs.

54 LOPES Jr. op. cit, pag. 254.

202
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

nas a exposição de dados fáticos e jurídicos que se adaptam à construção da decisão


judicial55 democrática. Esta adequação ocorrerá através da construção da argumenta-
ção jurídica sempre pautada na função do processo: como esclarecedor, aplicador e
reserva aos direitos e garantias fundamentais.

NOTA CONCLUSIVA

Não obstante toda a estrutura normativa do modelo em nível constitucional, objeti-


vando a criação de parâmetros de racionalidade, de justiça e legitimidade, na prática
jurídica, observamos justamente uma contradição, ao ponto de leis e decisões estabe-
lecerem um super-valor às questões práticas, de utilidade processual em detrimento
de interesses garantistas.

Na verdade, nosso processo se observado conforme os preceitos normativos da


nossa Constituição, merece aplausos diante do elevado nível, caso consideremos os
princípios e garantias a ele reservado, mas, por outro lado, possui nível rasteiro, quan-
do observada a prática efetiva.

Tornando presente na nossa cultura jurídica, pode-se afirmar, assim como fez
Ferrajoli, que se mensuramos a adequação de um sistema constitucional, sobretudo
pelos mecanismos de invalidação e de reparação idôneos, de modo geral, a assegu-
rar efetividade aos direitos normativamente proclamados: uma Constituição pode ser
muito avançada em vista de princípio e direitos sancionados e não passar de um pe-
daço de papel, caso haja defeitos de técnicas coercitivas – ou seja, de garantias – que
propiciem o controle e a neutralização do poder e do direito ilegítimo56. Mas para tan-
to, não podemos esperar apenas um determinismo constitucional; deve-se sim criar,
criticar e tornar a aplicação da ciência jurídica uma função mais coerente com nosso
Estado Democrático (Constitucional) de Direito, apontando o processo – aqui devemos
nos restringir, diante do espaço que propusemos – como exercício máximo de garan-
tias do débil nesta relação jurídica.

55 Note-se que não é o momento oportuno para indagarmos se a decisão busca a realidade, ou apenas pretende a demonstração de juízos de valores pré-
concebidos, seja anterior à situação processual, seja através mesmo de atos processuais produzidos pelo julgador para alicerçar o seu convencimento. Este
momento será melhor exposto quando criticarmos a existência de uma “verdade” diante do processo penal.

56 FERRAJOLI. Op. cit, pag. 684.

203
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

Assim, e acompanhando o objetivo de legitimação do processo (penal), não há es-


paço para demonstrações superficiais de atributos jurídicos permanentes e construções
claras para adequação entre a norma e o fato. Ensina, mais uma vez Ferrajoli que “em
contraste com as imagens edificantes dos sistemas jurídicos oferecidos a partir de suas
representações normativas, e com a confiança a priori difusa da ciência jurídica na coe-
rência entre normatividade e efetividade, a perspectiva garantista requer, ao contrário,
a dúvida, o espírito crítico e a incerteza permanente sobre a validade das leis e de suas
aplicações e, ainda, a consciência do caráter em larga medida ideal – e, em todo caso
não realizado e a realizar – de suas mesmas fontes de legitimação jurídica”57.

Este atributo não merece apenas corporificação normativa (e constitucional), mas


por outro lado, operacional. E a partir daí, deve-se rechaçar, por completo, toda a lógi-
ca formal no direito, uma vez que destituída de valor e por conseqüência cristalizada
como verdadeira ilegitimidade. Mas sim, serve a argumentação jurídica para dar ênfa-
se ao modelo dialético da estrutura jurídica, sempre pautada e originada pelas reser-
vas constitucionais.

Numa ilação superficial, podemos afirmar que a fundamentação das decisões ju-
diciais possui função (política) primordial no processo penal, não apenas como reser-
va fundamental (na verdade, garantia das garantias); como controle dos atos jurisdi-
cionais; indo além, como imposição da necessidade de uma formação argumentativa
judicial, afastando desde já, a falácia de verdades reais construídas no processo. A sua
simples presença impõe a construção de juízos de valores que não se coadunam com
a lógica formal, por estar afastada, de forma absoluta, da dialética processual. Assim,
haverá também a desnecessidade de formalização do binômio verdade e falsidade
nas discussões processuais, posto que a partir da presença da motivação das decisões
judiciais existirá a imposição de recepção de argumentos - processualmente válidos
- expostos pelas partes para a legitimidade (Constitucional e social) de qualquer deci-
são judicial, o que transporta, ao máximo, a uma verdade processual.

57 Idem, pag. 685.

204
A ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL NO PROCESSO PENAL

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206
A F U N ÇÃO BÁSI CA
DO D IR EITO PENAL
V I S TA ON TEM E HO JE -

A PARTIR DA ANÁLISE
CRIMINOLÓGICA
DE PROPOSTA DE
ALTERAÇÃO NORMATIVA *

* Parecer elaborado perante a Comissão Criminal Permanente do Instituto dos Advogados Brasileiros sobre a análise de proposta de alteração legislativa do
Estatuto do Desarmamento.

TEXTO PUBLICADO ORIGINARIAMENTE:

A função básica do Direito Penal vista ontem e hoje – A partir da análise criminológica
deproposta de alteração normativa. In. Revista Jurídica do Ministério Público do
Estado do Rio Grande do Norte. , v.4, p.195 - 214, 2016.
A FUNÇÃO BÁSICA DO DIREITO PENAL VISTA ONTEM E HOJE -
A PARTIR DA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DE PROPOSTA DE ALTERAÇÃO NORMATIVA

Ementa - Projeto de Lei do Senado no 224/2010. Autoria do Senador Roberto Cavalcanti


que “altera o artigo 14 da Lei 10.826 de 22 de dezembro de 2003, para determinar como
causa de aumento de pena de ‘porte ilegal de arma de fogo permitido’ as circunstâncias ou
os antecedentes do agente que indiquem que sua conduta se destinava à prática dos cri-
mes previstos nos artigos 157, 158 e 159 do Código Penal”.

Trata-se de Projeto de Lei do Senado no. 224/2010 de autoria do Senador Roberto


Cavalcanti que pretende alterar o artigo 14 do Estatuto do Desarmamento, para de-
terminar como causa de aumento de pena de metade até o dobro do delito de porte
ilegal de arma de fogo permitido, as circunstâncias ou os antecedentes do agente que
indiquem que sua conduta se destinava à prática dos crimes de roubo, extorsão ou
extorsão mediante seqüestro, todos do Código Penal.

[1]
A FUNÇÃO BÁSICA DO DIREITO PENAL

VISTA ONTEM E HOJE

Como advertiu Nilo Batista, o direito penal vem ao mundo (ou seja, é legislado) para cum-
prir funções concretas ‘dentro de e para uma’ sociedade que concretamente se organizou
de determinada maneira1.

Por isso, não é de hoje que o sistema penal cria (ou é criado) a partir de uma rela-
ção direta com a intenção social, até porque o dinamismo da sociedade e do próprio
direito, indica esta relação simbiótica. Estudar o direito penal (poderíamos ampliar a
todo o sistema penal) é analisar os rumos que a sociedade reage e pretende.

Não é por outro motivo que identificamos a busca repressiva para condutas as-
sociadas à realidade da época2. O que se pensava (pensa) como função destinada ao
direito penal na formação de instrumento com caráter preventivo prático (repressão
geral dos crimes ) ou mesmo intimidatório (coação psicológica) contra as condutas
que possuem maior relevância negativa à estrutura social, já vem sendo criticado por
todos os estudiosos sobre o tema.

1 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. Revan: Rio de Janeiro, 1999, pág. 19.

2 Por isso já punimos os capoeiras, os adúlteros e hoje se pune os crimes cibernéticos.

208
A FUNÇÃO BÁSICA DO DIREITO PENAL VISTA ONTEM E HOJE -
A PARTIR DA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DE PROPOSTA DE ALTERAÇÃO NORMATIVA

Este ramo do Direito serve como controlador social de determinadas atitudes


elevadas ao grau de atuação negativa extrema contra a sociedade. Salienta-se que o
Direito ( penal) não entra em contato à sociedade para formá-la, e sim, através de uma
estrutura social, serve o Direito penal para harmonia desta organização. Ou seja, neste
ponto não há qualquer discussão entre a famosa indagação popular ( quem vem pri-
meiro: o ovo ou a galinha?). A sociedade, após sua devida estruturação, elegeu o que
seria importante para a continuação da sua estabilidade, apontando determinadas
condutas perniciosas à harmonia de todo o conjunto. Assim, após a formação de uma
estrutura arraigada de formação política, serve o Direito Penal como ciência controla-
dora do substrato social.

O controle, não é só externo, mas também interno, até porque, a própria estru-
tura jurídico – social é estabelecida por integrantes desta conjuntura. O importante é
traçarmos uma diferenciação entre uma visão social de controle, através de aplicação
razoáveis de leis repressivas, para estabilidade e integração de todo sistema, e uma
visão disciplinar que apenas apresenta a necessidade de intervenção Estatal contra si-
tuações individualizadas, estabelecendo uma ruptura com a democracia (social). Esta
referida intervenção não se mostra recente, e dificilmente irá cessar, já que a crimina-
lidade crescente valoriza uma visão panóptica3 disciplinar. O que deve ser observado
é a eleição coerente do que, para que, e para quem haverá este estado de controle
social vigilante!

No entanto, não podemos esquecer que o parâmetro a seguir deve ser sempre o
da racionalidade e legitimidade da intervenção punitiva. Não podemos acompanhar
todo um paradigma inquisitorial na aplicação do Direito Penal. O seu limite já deve ser
observado pela estrita legalidade, através de uma atuar mínimo do Estado contra o in-
divíduo. Como adverte Salo de Carvalho, não mais podemos espelhar o sistema penal
como fator decisivo de aplicação da estética do mal através do paradigma defensivista

3 Afirma Foucault na demonstração entre poder, disciplina e controle social onde o panoptismo de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. “O
princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a
construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo
às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permitir que a luz atravessa a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela
para trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente
sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente
individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em
suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as
outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.” FOUCAULT, Michel. Vigiar
e Punir. trad.Raquel Ramalhete. 22ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000, pg. 165/166. O Panopticon de Jeremy Bantham (1791) é, portanto, um modelo generalizável
de funcionamento; uma maneira de definir as relações do poder com a vida cotidiana dos homens. O Panopticon é, então uma tecnologia exemplar do poder
disciplinar, que pode ser observado nos dias atuais.

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A FUNÇÃO BÁSICA DO DIREITO PENAL VISTA ONTEM E HOJE -
A PARTIR DA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DE PROPOSTA DE ALTERAÇÃO NORMATIVA

(social)4. A atuação intervencionista do Estado deve ser simbolizada pela reação idea-
lizada do indivíduo através de normas jurídicas democráticas.

Na realidade o Estado possui todo aparato próprio para exercer o poder punitivo,
porém, estará limitado o seu exercício aos limites previamente estabelecidos para a pu-
nibilidade5. Esse limite de exercício do Estado - repressão constitui a máxima proteção
do indivíduo nesse sistema criminalizante, através do princípio da legalidade, que alcan-
ça a natureza de garantia individual e fundamental. É na visão de Ferrajoli que se nor-
mativa o Direito Penal como limite à vingança privada e estatal, quando se predispõe a
estabelecer o que, como, quando e porque punir. Assim, preleciona o autor: a lei penal se
justifica enquanto lei do mais fraco, voltada para a tutela dos seus direitos contra a violência
arbitrária do mais forte. É sob esta base que as duas finalidades preventivas – a prevenção
dos delitos e aquela das penas arbitrárias – são, entre si, conexas, vez que legitimam, conjun-
tamente, a “necessidade política” do direito penal enquanto instrumento de tutela dos direi-
tos fundamentais, os quais lhe definem, normativamente, os âmbitos e os limites, enquanto
bens que não se justifica ofender nem com os delitos nem com as punições.6

Nesta linha simplificada, não podemos buscar a função do Direito Penal apenas
como fator repressivista para solução da crescente criminalidade. A interpretação te-
órica-prática deve ser mais ampla, ainda que pouco difundida na sociedade e nas vi-
gílias eleitorais. Impõe-se ao Direito Penal criar um campo de proteção ao indivíduo e
o princípio da legalidade é seu ponto inicial. A ampliação desta carga normativa-penal
gera efeitos que poderão apenas ser oneroso à sociedade sem que haja solução em
relação à crescente criminalidade.

A função do Direito Penal não pode ser vista de forma imediata para solução ar-
tificial de um medo propagado. Valorizar a análise do Direito Penal é colocá-lo no seu
devido lugar, não como setor exclusivo do risco criminal a partir de uma mentalidade
vingativa, mas sim como um ramo do Direito que versa sobre ponto determinado, após
a tentativa de investida de outros setores desta ciência. Devemos sempre pensar que
o Direito (sistema) criminal deve estar dirigido aos indivíduos como membros de uma
sociedade democrática e um Estado de proteção dos direitos e garantias individuais.
Por isso, não podemos mais simplificar o Direito Penal como fator de controle social.

4 CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias:Uma leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pág. 75.

5 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas – A perdade da legitimidade do sistema penal. trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Poles da Conceição.
Rio de Janeiro: Revan, 1991, pág. 21.

6 FERRAJOLI. Direito e Razão, pág. 270. (grifos do original).

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A FUNÇÃO BÁSICA DO DIREITO PENAL VISTA ONTEM E HOJE -
A PARTIR DA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DE PROPOSTA DE ALTERAÇÃO NORMATIVA

Ele é muito mais do que isso, mas somente será valorizado, na prática, se não for redu-
zido a anseios artificiais para minimizar a violência individual e a criminalidade social.

[2]
O ESTADO CRIMINALIZADOR:

ENTRE A PANPENALIZAÇÃO

E SUA AUTOFAGIA

Perfeita a advertência de Salo de Carvalho quando expressa que se o incremento do Estado


intervencionista criminalizador produziu câmbio da estrutura normativa (planos da vigência
e da validade das normas penais) a partir do espantoso processo de intensificação legislativa
e de descodificação, provocou, por outro lado, sérias disfunções na área da operatividade do
sistema (plano da eficácia), mormente pela incapacidade da ritualística processual tradicio-
nal identificar os sujeitos (ativos e passivos) da nova criminalidade. Do programa de inter-
venção mínima liberal (direito penal com ultima ratio legis), o estado social projeta modelo
legislativo comissivo que deflagrará estrutura legal hipertrofiada, propícia à maximização da
ineficácia e solo ideal para inaugurar a crise de legitimidade do direito penal7.

A expressão forte de Ferrajoli clarifica a dinâmica da tentativa de segurança jurídi-


ca, quando afirma que o fraco no momento do delito é o ofendido. Deste modo, cabe
ao Estado a reserva de toda a estrutura preventiva para a ocorrência delitiva. Não há
espaço, no entanto, para a ilusão de que o Estado servirá como garantidor universal,
na medida em que a imaginação perversa do ser humano ultrapassa qualquer mode-
lo de precaução das agruras sociais. Assim, Ruth Gauer expondo sobre a violência afir-
ma ser um elemento estrutural, intrínseco ao fato social e não o resto anacrônico de uma
ordem bárbara em vias de extinção. Esse fenômeno aparece em todas as sociedades; faz
parte, portanto, de qualquer civilização ou grupo humano.8

No entanto, o direito penal revive uma idéia de controle da expressão moral, ser-
vindo como ponto de apoio à segurança social e jurídica. Sem desmerecer outros ra-

7 CARVALHO, Salo. Manual da Anti Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pág. 87.

8 GAUER, Ruth M. Chittó. Alguns Aspectos da Fenomenologia da Violência. In A Fenomenologia da Violência. org. Gabriel J. Chittó Gauer e Ruth M. Chittó Gauer.
Curitiba: Juruá, 1999, pág. 13.

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A FUNÇÃO BÁSICA DO DIREITO PENAL VISTA ONTEM E HOJE -
A PARTIR DA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DE PROPOSTA DE ALTERAÇÃO NORMATIVA

mos do direito, na visão midiática, acaba funcionando (ou não) como ponto basilar do
Estado harmônico. A ênfase da sua aplicação indicará o termômetro da estabilidade
social. Quanto mais “liberal” se mostrar as normas penais, maior será a inquietação de
todos, divulga-se. Há um reclamo à justiça através da aplicação vulgar do sistema penal9.

A partir das necessárias palavras de Ost, cria-se um foco fácil da autofagia do


direito penal através da sua excessiva valorização. Assim indica que essa super-solici-
tação da justiça penal, transformada em instância de reconhecimento das vítimas, e este
apelo redobrado à sanção, signo invertido da norma comum, dão assim uma resposta oca
à questão de saber se, para existir e se identificar, uma sociedade não tem necessidade de
se apoiar em referências fundadoras e fazer a experiência de seus limites. Eis, então, que
se poderia explicar o movimento de repenanilização da vida social, cujos signos são abun-
dantes: multiplicação das incriminações, aumento dos custos repressivos, alongamento da
duração média das penas, restrição de regimes de liberdade condicional, vigilância eletrô-
nica a domicílio: o controle penal se expande e a repressão endurece10.

O problema é que não só o direito penal fica fragilizado com esta cultura de abuso
legislativo – repressivo, mas além dos indivíduos vítima deste discurso juvenil, também
a própria sociedade. O custo com o avanço da pan-penalização legislativa é extrema-
mente elevado, não apenas financeiro, mas de tempo e energia por todos os envolvi-
dos neste setor, afugentando possibilidade de enfrentamento direto naquilo que se
torna efetivamente importante para redução das agruras sociais.

Se focalizarmos a violência real de que as pessoas são vítimas, baseadas somente na


queixa à justiça (penal) , contribuímos à despolitização da vida social; desviando a aten-
ção para bodes expiatórios, criamos um impasse nas reformas em profundidade – longe de
preparar o futuro, mantemos, então, na urgência do presente, as desilusões do amanhã11.

O que se conclui, portanto, é a facilidade de incremento de normas penais, até


porque o discurso já está pronto e de fácil acesso àqueles imediatistas. O utilitarismo
penal serve como verdadeiro subterfúgio ao enfrentamento sério sobre a crescente
criminalidade enfrentada em nosso País. Pior, o desenvolvimento da repressão legis-
lativa indica um aumento na violência individual, não só para aqueles que a sofre (os
indiciados, acusados e apenados), mas para aqueles reféns de atos perversos, pelo

9 Basta ver a atual ideia reacionária e hipócrita de uma jornalista que ganhou ampla difusão e discussões nas mídias sociais.

10 OST, Francois. O tempo do direito. Trad. Élcio Fernandes. Bauru: Edusc, 2005, págs. 357.

11 Idem, págs. 358.

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A FUNÇÃO BÁSICA DO DIREITO PENAL VISTA ONTEM E HOJE -
A PARTIR DA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DE PROPOSTA DE ALTERAÇÃO NORMATIVA

esquecimento estatal na análise das outras áreas que poderiam ajudar na prevenção
delitiva. O que se observa através do incremento legislativo é uma segurança imediata
que é reclamada e não a redução da criminalidade a longo prazo12.

A expressão não é simples, mas conclusiva: a super-penalização (ou pan-penaliza-


ção) reduz a eficácia do Direito Penal.

[3]
O RISCO CATASTRÓFICO
DA ANTECIPAÇÃO –

O DIREITO PENAL EM SEU DEVIDO LUGAR

Hoje vivenciamos uma expansão da análise dos riscos sociais. A partir da complexida-
de social, a relação contemporânea de apreciação das relações individuais e coletivas
direciona uma reflexão sobre as interações que, invariavelmente, geram conflitos.

Fatos novos? A resposta negativa se impõe! No entanto, a evolução de todos os


setores levam a criação de outras análises e soluções de problemas. Certo é que o pro-
gresso deve ser lapidado com o desenvolvimento social e sustentados pelos deslizes e
interesses individuais. Por isso, vivemos uma sociedade de risco, com fomento na estru-
tura de administração social, refletindo, direta e especialmente, no bem estar individual.

Por isso, como adverte Ost, o modelo de Estado Social entrou em crise. A socie-
dade asseguradora se decompõe, a ciência e a lei são tocadas pela dúvida, o mercado e
a privatização triunfam, ao mesmo tempo em que o medo retorna. A ‘sociedade de risco’
assume assim o lugar de Estado-providência e é preciso falar novamente de segurança em
substituição à solidariedade13.

Contudo, o objetivo em estabelecer um equilíbrio harmônico nem sempre con-


diz com a realidade, pela simples desconexão de idéias e ambições, criando um risco
social que deve ser administrável. O problema é que atualmente - na realidade como
sempre foi – o direito penal é buscado para dirimir ou prevenir, ainda que artificial-

12 Ibdem, pág. 359.

13 Ibdem, págs. 317/318.

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A FUNÇÃO BÁSICA DO DIREITO PENAL VISTA ONTEM E HOJE -
A PARTIR DA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DE PROPOSTA DE ALTERAÇÃO NORMATIVA

mente, estes riscos. Assim, a retórica fundada na idéia de risco incontrolável e catastrófi-
co alia-se a ansiedade de poder antecipar e de obstacularizar, através do direito (penal de
prevenção) os eventos trágicos inerentes às características da sociedade contemporânea14.

Chega-se ao ponto da soberba penal, ao manifestar seu delírio de grandeza mes-


siânico15. Através de um discurso artificial conduz a divulgação de todas as soluções
de riscos ocorrentes e por vir a acontecer através do direito (por que não falar no
sistema) penal.

O inimigo está identificado socialmente. Não mais aqueles que não consomem, na
exposição de Bauman, mas aqueles que não se adéquam à necessidade de produção
econômica, até porque tornam-se necessários para um norte à face oculta da criminali-
dade. O direito penal, no seu máximo exercício e publicidade, gera, na perfeita expres-
são de Salo de Carvalho, um efeito de descartabilidade do valor da pessoa humana16.

É nessa linha que a justificativa do Projeto de Lei segue. Fica clara a proposta de
alteração legislativa, quando na justificação afirma-se que a sociedade caracteriza-se,
entre outros aspectos, pelo aumento dos perigos de grande dimensão, uns novos, outros re-
centemente percebidos. Adaptando-se à ótica da sociedade de risco, o Direito Penal recebe
a função de um eminente instrumento de prevenção e, respondendo à sociedade insegura,
recebe ainda uma função simbólica de controle social.

Através deste discurso, projeta-se um Direito Penal e um Processo Penal do inimi-


go17, com a coerência policialesta dos movimentos de Lei e Ordem e Tolerância Zero.

E pior, o pensamento disseminado de que o Direito Penal resolverá todas as agru-


ras da sociedade e da humanidade cria para si uma responsabilidade enorme. E não
fica difícil identificar que o discurso é 18artificial, o encargo, por outro lado, real.

Diariamente são expelidas diversas intenções legislativas dirigidas ao incremento


da ampliação de leis penais, para difundir que a criminalidade e a impunidade derivam
de atrasos ou ausência de normas mais enérgicas. Não precisamos aqui despender

14 CARVALHO. Manual da Anti Criminologia., pág, 92.

15 Idem, pág, 97. Em tais circunstâncias, ao assumir postura auto-referencial, o discurso penal compõe integralmente os valores de Narciso: imagem exacerbada;
excessiva estetização de si mesmo; autocentramento; intolerância a defeitos e incapacidades que se desviam de figuras determinadas como aceitáveis. Pág. 97.

16 Ibdem, pág, 95.

17 O 11 de setembro incrementa esta fala com ampliação e identificação internacional.

18 Deve-se observar que a partir da proposta Legislativa, o delito de porte ilegal de arma de fogo permitido configuraria uma sanção penal superior ao crime de
roubo, criando, assim, um completo contra senso normativo.

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A FUNÇÃO BÁSICA DO DIREITO PENAL VISTA ONTEM E HOJE -
A PARTIR DA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DE PROPOSTA DE ALTERAÇÃO NORMATIVA

tempo e papel para fundamentar uma realidade: nenhuma lei penal conseguiu, com
eficácia, a redução do fator criminógeno. Basta exemplificarmos com a Lei dos Crimes
Hediondos e ponto!

Essa responsabilidade negativa gerado pelo e para o Direito Penal cria sua auto-
fagia, apenas proporcionando um elevado aporte eleitoreiro sem fins sociais, até por-
que os nascimentos legislativos não são precedidos de um estudo mais aprofundados
sobre sua aplicação e seus efeitos19. Por isso que devemos sempre criticar, com fins
prospectivos, a ampliação legislativa a partir da ampliação máxima da função básica
do Direito Penal.

Também não precisamos ser enfadonhos em indicar que a redução de danos à


sociedade, no aporte de desarmonia, se dá por um Estado Social e, jamais, a partir de
um Estado Penal. Para isso, as ciências congêneres já se cansaram de afirmar. O certo
é que não há como descartar o sistema penal na responsabilidade constitucional da
segurança pública. Mas, como já afirmado, esse não pode ser o setor heróico de solu-
ção desses problemas como sempre se mostra.

Não estamos aqui defendendo o afastamento de possibilidade de prevenção das


atividades criminosas que assolam a sociedade. Mas, a prática vem demonstrando
que o Direito Penal não consegue solucionar esta ingresia social, por isso vemos como
olhos críticos a ampliação legislativa com essa função.

Por outro lado, a pretensão na ampliação legislativa cria normas contrárias à pró-
pria base do Direito Penal, tornando-o(a) autofágico(a). O Projeto de Lei em análise
exemplifica bem essa situação. A proposta é de uma causa de aumento de pena quan-
do as circunstâncias do crime ou os antecedentes do agente indicarem que sua conduta
destinava à prática de outros crimes.

Os outros crimes já estão previstos no Código Penal, inclusive, com penas eleva-
das. Por isso, o porte ilegal de arma configura um crime autônomo e os outros, por
óbvio, também. Assim, ao nosso sentir, um aumento de pena nestas circunstâncias,
realça a caracterização de bis in idem em relação à conduta – no singular – do agente
a partir da dupla incriminação.

19 Esta é uma realidade nefasta do ramo jurídico que se acha auto-suficiente e descarta uma relação interdisciplinar para a criação de normas jurídicas. Não
vemos qualquer estudo estatístico para a edificação de Lei que alteram várias atividades da sociedade.

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A FUNÇÃO BÁSICA DO DIREITO PENAL VISTA ONTEM E HOJE -
A PARTIR DA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DE PROPOSTA DE ALTERAÇÃO NORMATIVA

Da mesma forma em relação às circunstâncias pessoais do agente. Seus antece-


dentes podem gerar uma maior reprovação no que tange à aplicação da pena20, con-
forme dispõe o artigo 59 do Código Penal e não a previsão específica de circunstância
autônoma de aumento da pena.

Além dessas críticas, a análise do Projeto de Lei indica um Direito Penal artificial-
mente vidente, na medida em que a circunstância do crime e os antecedentes do agen-
te indicam que sua conduta destinava à prática de outros crimes.

Toda a estrutura do Direito Penal segue na linha de análise do agir do agente, do


que fez ou deixou de fazer. A predisposição para condutas (ou indicação de condutas)
futuras afasta a seriedade deste ramo sensível das ciências jurídicas. A prevenção de
ações deve seguir de outra forma e não na permanente locação do Direito Penal para
este fim, que, historicamente, se mostrou infrutífera.

PARA EFEITO DE CONCLUSÃO –

A PERMANÊNCIA DE UM DISCURSO

E AUSÊNCIA DE SOLUÇÕES CONCRETAS

O Projeto de Lei em alusão, por mais uma oportunidade, cria e identifica o discurso
de ‘defesa social’ a partir da pretensão repressivista. Esta linha é identificada pela ten-
tativa da prevenção geral de futuros delitos. Assim, indica a justificativa do Projeto de
Lei que a causa de aumento de pena proposta tem maior efeito dissuasório em relação ao
uso de armas em circunstâncias objetivas claras, voltadas para a prática de crimes muito
violentos, o que deve contribuir com a diminuição da criminalidade mediante o uso de ar-
mas de fogo.

Sabemos que este discurso não convence qualquer estudioso sobre a crimino-
logia. O aporte midiático do desdobramento legislativo é mais proveitoso do que sua
eficácia real.

20 Muito embora também reconhecemos como uma dupla punição violadora da garantia individual da proibição do bis in idem, mas corresponderia discussão
para outra oportunidade.

216
A FUNÇÃO BÁSICA DO DIREITO PENAL VISTA ONTEM E HOJE -
A PARTIR DA ANÁLISE CRIMINOLÓGICA DE PROPOSTA DE ALTERAÇÃO NORMATIVA

Não estamos aqui defendendo o completo afastamento do Direito Penal na seara


da segurança pública, até porque nossa Constituição é enfática em impor o dever do
Estado e a responsabilidade de todos os indivíduos para a tentativa desta harmonia
social. Mas, pensamos que a penalização de condutas somente gera um risco à cria-
ção de bodes expiatórios ascendendo à cifra penal determinada.

Não é de hoje que a atividade legislativa pretende prevenir futuras condutas ou


incriminar outras com uma visão subjetiva do indivíduo21. O grave problema é que es-
tas normas penais, na prática, são artificiais e somente engendram maiores proble-
mas sociais, com a ampliação de repressão e encarceramento daqueles predestinados
como clientes do sistema criminal.

Neste contexto, analisando o Projeto de Lei do Senado no. 224/2010, não vemos
qualquer valor positivo na sua aprovação, na medida em que contraria todos os estu-
dos sérios sobre o tema, onera outros setores do Estado com maior possibilidade de
eficácia preventiva de futuros delitos, viola a estrutura constitucional em que proíbe
uma dupla incriminação e, por fim, incrementa um artificial discurso sobre o Direito
Penal preventivo, o que sabemos ser de difícil aplicação prática.

21 Basta lembramos da contravenção penal prevista no art. 25 do Decreto Contravencional. Art. 25. Ter alguém em seu poder, depois de condenado por crime de
furto ou roubo, ou enquanto sujeito à liberdade vigiada ou quando conhecido como vadio ou mendigo, gazuas, chaves falsas ou alteradas ou instrumentos empregados
usualmente na prática de crime de furto, desde que não prove destinação legítima. Pena – prisão simples, de 2(dois) meses a 1(um) ano, e multa. Na época da
elaboração deste parecer, o Supremo Tribunal não havia ainda declarado inconstitucional a referida norma incriminadora.

217
O S IM BOL IS MO
AR TIF ICIAL D O
BEM J U RÍD ICO
CRIMIN AL IZADO
PEL O U S O D E
EN TORPECEN T E

UMA VISÃO
PANÓPTICA

TEXTO PUBLICADO ORIGINARIAMENTE:

O Simbolismo Artificial do Bem Jurídico Criminalizado pelo Uso de Entorpecentes: uma


visão panóptica. In Revista de Direito da Defensoria Pública., v.01, p.154 - 179, 2006
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

“A delinquência é o efeito do sistema e instrumento de controle social com a polícia forne-


cendo infratores, a prisão reproduzindo a delinquência, e a massa criminalizada (objeto de
controle) atuando como instrumento auxiliar de controle social.”
M ICHEL FOUCAULT, VIG IAR E PU NIR

BREVE INTRODUÇÃO CRIMINOLÓGICA

O presente trabalho tenta, de forma despretensiosa, apontar determinadas críticas à


criminalização do bem jurídico tutelado pelo porte do entorpecente para seu uso. As
críticas não estão voltadas ao aspecto puramente jurídico da aplicação da punição,
mas também, e principalmente, ao aspecto político-social de mistificação draconiana
da ofensividade deste delito (já que dificilmente conseguiremos distanciar o discurso
jurídico positivo, sem adentramos ao discurso político-social, de forma crítica, até por-
que aquele se torna função importante deste, a partir do controle exercido pela crimi-
nalização primária, num objetivo básico do discurso sobre a efetividade da busca de
uma criminalização secundária1), bem como o “mal” que gera em toda sociedade.

Não queremos aqui, obviamente, valorizar o consumo de entorpecente, bem como


distanciar o apontamento que o tráfico de entorpecente gera violência social e urbana,
como qualquer outro delito, inclusive aqueles esquecidos na mídia e nas relações de
controle social exercido pelo Direito Penal através do Legislador e dos próprios ope-
radores do Direito, como os que ferem a economia popular, as relações de consumo,
ou o sistema financeiros, ou contra a ordem tributária; enfim, não se tem como evi-
dência de controle e permanência funcional do sistema o ingresso de “bandidos, ou
marginais” que não exerçam condutas estereotipadas que poderiam qualificarem-se(
os autores) como perigosos à paz social, não reservando, contudo, esquecimento in-
tencional, mesmo que estes não estejam englobados como clientes do sistema penal
(punitivo e carcerário). Mas não devemos fechar os olhos e somente receber informa-
ções advindas de uma supervalorização televisiva sobre o crescimento e origem da-
quela criminalidade vulgarizada. Até porque, e este ponto gera numerosas discussões,
não é só a “droga estipulada” que imprescinde do tráfico adentrando às residência e

1 Considera-se criminalização primária “o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas. Trata-se
de uma ato formal fundamentalmente programático: o deve ser apenado é um programa que deve ser cumprido por agências diferentes daquelas que o
formulam.” Há verdadeira elaboração de leis referindo-se a condutas e atos. Já a criminalização secundária será “é uma ação punitiva exercida sobre pessoas
concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha praticado certo ato criminalizado primariamente, a investigam,
em alguns casos privam-na de sua liberdade de ir e vir, submetem-na à agência judicial, que legitima tais iniciativas e admite um processo.” ZAFFARONI, E.
Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 2a. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2003, pag. 43

219
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

maculando a saúde individual, mas também outras ”drogas legais” que não são obje-
to de tráfico, que incluem-se no rol daquelas que fazem parte da criminalidade branca
da sociedade, não havendo, por conseguinte, bem jurídico a ser tutelado pelo Direito
Repressor Nacional na visão positivista do Legislador Pátrio- criminalização primária.

O discurso fantasioso - onde inclui a utilização do entorpecente -até mesmo re-


tirante de determinadas obrigações pelas autoridades públicas, mostra um enorme
subterfúgio artificial para desviar a responsabilidade sobre o bem estar social2. Assim,
toda a onda de violência é gerada pelo consumo de droga3, dizem eles e ponto4. A saú-
de, a educação, o amplo descaso social já saiu das pautas de investimento político, dei-
xando de lado a verdadeira origem dos problemas sociais, principalmente da Cidade
do Rio de Janeiro.

Na verdade, a questão referente à potencialização da criminalização do uso de


entorpecente, diz respeito ao aspecto muito mais político e social do que jurídico, já
que há flagrante confusão técnico-política do bem jurídico a ser tutelado. Nesta pas-
sagem deve-se ter em mente, qual a verdadeira missão do Direito Penal e saber se a
potencialização do simbolismo das drogas nele se encaixa.

Disso resulta, pois, que o direito penal, como não poderia deixar de ser, quer tam-
bém contribuir para a construção de um mundo valioso, razão pela qual não pode co-
locar-se em oposição aos valores morais dominantes, mas, como veremos, não esta-
belecê-los. Não obstante, pela inutilidade de sua intervenção e para não causar males

2 Seria um erro inimaginável omitirmos, nesta breve introdução criminológica, o estudo cronológico sobre as drogas da criminóloga venezuelana Rosa Del Olmo.
Aponta a professora que na década de cinqüenta o mundo da droga era visto como um universo misterioso, próprio de grupos marginais – guetos- que consumiam
heroína e maconha. Predominava o discurso jurídico e concretamente um estereótipo moral que vinculava as drogas ao perigo e ao sexo. Na década de sessenta
há uma situação de mudança nos EUA, bem como a pauta do discurso, já que o consumo chega à juventude de classe média. A droga passa a ser sinônimo
de dependência, a ser percebida em termos de uma luta “entre o bem e o mal” e a ser vista como um “vírus” contagioso. Cria-se assim, um discurso médico-
jurídico que define o consumidor como doente e o traficante como delinqüente. A década de setenta foi considerada como a era pico das drogas, ao ponto do
presidente Nixon qualificá-la ( e principalmente a heroína) de “primeiro inimigo político não econômico” . surge assim, o estereótipo político-criminoso, que é
reforçado pelo discurso jurídico-político ao lado do discurso médico que criou com maior ênfase o estereótipo da dependência, pelo lugar destacado que tem
na época o problema do consumo. E já na década de oitenta, se estabelece o discurso jurídico transnacional e se internacionaliza o controle das drogas, porque
o fundamental é impedir que cheguem as drogas do exterior já que começa a afetar a economia, já fragilizada, dos EUA. Com isso se escondem o alcance e suas
repercussões econômicas e políticas atrás de um discurso único de caráter universal, atemporal e a-histórico que só contribui para a consolidação do poder das
transnacionais que manejam o negócio. DEL OLMO, Rosa, A Face Oculta da Droga. trad. Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Evan, 1990.

3 Na linguagem científica, representada pela Organização Mundial de Saúde, a palavra droga significa “toda substância que, introduzida em um organismo
vivo, pode modificar uma ou mais funções deste. É um conceito intencionalmente amplo, pois abarca não apenas os medicamentos destinados sobretudo ao
tratamento de enfermos, mas também outras substâncias ativas do ponto de vista farmacológico.” KRAMED, J. F. e CAMERON, D. C. . Manual sobre dependencia
de las droga. Genebra: OMS, 1975, p. 13, apud , OLMO, Rosa Del. A Face Oculta da Droga. trad. Teresa Ottoni. RJ: Evan, 1990, p. 21.

4 Claro que devemos dar a esta afirmativa interpretação condizente com a realidade social, assim como o modelo estigmatizador do sistema criminal. Oportuno
se faz a ilustração do presente trabalho com informações interessantes retiradas da tese de doutorado da Professora Vera Malaguti, afirmando, enfaticamente,
que “ a visão seletiva do sistema penal para adolescentes ( e faço ressalva para introduzir também adultos) infratores e a diferenciação do tratamento dado
aos jovens pobres e ricos, ao lado da aceitação social que existe quanto ao consumo de drogas, permite-nos afirmar que o problema do sistema não é a droga
em si, mas o controle específico daquela parcela da juventude considerada perigosa. Os relatórios e processos dos agentes do sistema são bastantes claros
quanto à isso. São pouquíssimos os casos de análise do ponto de vista da droga em si; em geral, os processos se relacionam às famílias “desestruturadas”,
às “atitudes suspeitas”, à “falta de submissão”, ao “brilho no olhar” e ao desejo de status “que não se coaduna com a vida de salário mínimo”. O processo de
demonização do tráfico de drogas fortaleceu os sistemas de controle social aprofundando seu caráter genocida. O número de mortos na “guerra do tráfico”
está em todas as bancas. A violência policial é imediatamente legitimada se a vítima é um suposto traficante.” E continua a brilhante socióloga, referindo-se ao
uso de entorpecente, bem como a estigmatização do sistema criminal apontando que aos jovens consumidores da Zona Sul aplica-se o “estereótipo médico,
aos outros o do “bandido”. BATISTA, Vera Malaguti de Souza Weglinsski. Drogas e criminalização da juventude pobre do Rio de Janeiro. texto apresentado no
Mestrado de Ciências Penais, Universidade Cândido Mendes.

220
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

irreparáveis, limita extremamente o campo de sua atuação. Não deve, pois, ser cha-
mado a tudo resolver e menos ainda deve transformar-se em desajeitado modelador
do caráter, da personalidade, ou em sancionador da formação moral profunda da
pessoa, isto é, da Gesinnung. Não é por fim, o direito penal instrumento de depuração
ou de salvação espiritual de quem quer que seja.5

E continua o Mestre Francisco de Assis Toledo em sua obra clássica ensinando que:

a tarefa imediata do direito penal é, portanto, de natureza eminentemente jurí-


dica e, como tal, resume-se à proteção de bens jurídicos. Nisso, aliás, está empe-
nhado todo o ordenamento jurídico. E aqui entremostra-se o caráter subsidiário
do ordenamento penal: onde a proteção de outros ramos do direito possa estar
ausente, falhar ou revelar-se insuficiente, se a lesão ou exposição a perigo do bem
jurídico tutelado apresentar certa gravidade, até aí deve estender-se o manto da
proteção penal, como ultima ratio regum. Não além disso.6

Reforçando tal idéia, o Direito Penal deve servir inclusive como garantia fundamen-
tal ao cidadão, a partir do momento em que apenas intervêm quando estiver diante
de lesão a um bem jurídico tutelado, excepcionalmente por este ramo do direito7.

Neste sentido, o trabalho em questão visa, afastando e adentrado em alguns pon-


tos da criminologia atual, tão somente, interpretar aspectos puramente técnicos de in-
tervenção estatal em relação à criminalização e punição do usuário de entorpecente.
Não se pode esquecer, conquanto, que o sistema criminal e o controle social, obser-
vados através das novas teorias sobre a criminologia radical8, possuem ligação tênue,
fazendo parte integrante deste humilde estudo. Da mesma forma o Direito penal. Este
serve como controlador social de determinadas atitudes elevadas ao grau de atuação
negativa extrema contra a sociedade. Salienta-se que o Direito ( penal) não entra em
contato à sociedade para formá-la, e sim, através de uma estrutura social, serve o Di-
reito penal para harmonia desta organização. Ou seja, neste ponto não há qualquer
discussão entre a famosa indagação popular (quem vem primeiro: o ovo ou a gali-
nha?). A sociedade, após sua devida estruturação, elegeu o que seria importante para

5 TOLEDO, Francisco de Assis, Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2000, pag. 12/13

6 Idem, pag. 14

7 Aplicação da moderna teoria do Direito Penal Mínimo, onde apenas determinados bens jurídicos deverão ser observados por este, quando na impossibilidade
de outras searas do direito não tiver possibilidades de resolver o conflito individual ou social. Nesta mesma linha de raciocínio, insta apontar que a atuação
do Poder Judiciário (Criminal), somente será possível, em uma interpretação constitucional, quando estivermos diante do princípio da lesividade, que possui
natureza de garantia fundamental pautada, a nosso ver, pelo artigo 5º, inciso XXXV da Constituição da República Federativa do Brasil.

8 Ver SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

221
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

a continuação da sua estabilidade, apontando determinadas condutas perniciosas à


harmonia de todo o conjunto. Assim, após a formação de uma estrutura arraigada de
formação política, serve o Direito Penal como ciência controladora do substrato social.

O controle, não é só externo, mas também interno, até porque, a própria estrutura
jurídico – social é estabelecida por integrantes desta conjuntura. O importante é traçar-
mos uma diferenciação entre uma visão social do controle, através de aplicação razo-
áveis de leis repressivas, para estabilidade e integração de todo sistema, e uma visão
disciplinar que apenas apresenta a necessidade de intervenção Estatal contra situações
individualizadas, estabelecendo uma ruptura com a democracia (social). Esta referida
intervenção não se mostra recente, e dificilmente irá cessar, já que a criminalidade cres-
cente valoriza uma visão panóptica9 disciplinar. O que deve ser observado é a eleição do
que, para que, e para quem haverá este estado de controle social vigilante!

Nesta linha de raciocínio, a origem do Direito Penal, com aspectos principiológi-


cos, e sua a aparência de sua função básica como garantia fundamental do cidadão,
serve para a introdução da discussão em questão e o simbolismo radical dos opera-
dores e espectadores do Direito. Neste raciocínio, o Professor Nilo Batista, nos ensina

uma conduta humana passa a ser chamada de ‘ilícita’ quando se opõe a uma nor-
ma jurídica ou indevidamente produz efeitos que a ela se opõem. A oposição lógica
entre a conduta e a norma (cuja consideração analítica dá origem a um objeto de
estudo chamado ilícito) estipula uma relação, de caráter deôntico – denominada
relação de imputação -, que traz como segundo termo a sanção correspondente.
Quando esta sanção é uma pena, espécie particularmente grave de sanção, o ilí-
cito é chamado crime.

Vemos, portanto, que o elemento que transforma o ilícito em crime é a decisão


política – o ato legislativo - que o vincula a uma pena.10

9 Afirma Foucault na demonstração entre poder, disciplina e controle social onde o panoptismo de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. “O
princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a
construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo
às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permitir que a luz atravessa a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela
para trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente
sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente
individualizado e constantemente visível. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em
suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as
outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha.” FOUCAULT, Michel. Vigiar
e Punir. trad.Raquel Ramalhete. 22ª ed. Petrópolis: Vozes, 2000, pg. 165/166. O Panopticon de Jeremy Bantham (1791) é, portanto, um modelo generalizável
de funcionamento; uma maneira de definir as relações do poder com a vida cotidiana dos homens. O Panopticon é, então uma tecnologia exemplar do poder
disciplinar, que pode ser observado nos dias atuais.

10 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. RJ:. Revan, 1999, pag. 43/44

222
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

Os princípios do Direito Penal servem, neste diapasão, para mostrar que a aplica-
ção do aspecto jurídico, nem sempre acompanharão os ditames sociais ou vice e ver-
sa. Soma-se ainda a imprescindibilidade da demonstração do verdadeiro bem jurídico
tutelado para o simbolismo do tipo penal previsto no artigo 16 da Lei 6368/7611:

[1]
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS –

SUA RELEVÂNCIA

Neste momento do estudo, antes de adentrarmos ao bem jurídico tutelado pelo delito
de posse para uso de entorpecente, faz-se necessários apontar alguns aspectos interes-
santes sobre o alicerce do Direito Penal através dos principais princípios. Muitos desses
princípios integraram os Códigos Penais de vários países para demonstrar seu caráter
democrático, e afinal, receber acento constitucional, como garantia máxima de respeito
aos direitos fundamentais do cidadão.12 Convém, portanto, incluir todos os princípios, de
forma dinâmica, no sistema jurídico, tendo a noção primária de que estes princípios não
se mostram absolutos, posto que se fossem, estariam, a contrario sensu, prejudicando o
próprio campo de atuação, de forma limitadora, de outros princípios com o mesmo grau
de aplicação e progressão. Estes princípios limitadores impostos ao sistema, são deriva-
dos de prévia decisão política, mas que, através de uma hermenêutica constitucional, já
endossaram nosso sistema jurídico, não podendo romper, seja de forma legislativa ou
jurisdicional, sua eficácia, até porque constituem o próprio cerne da função do Direito
Penal, como estrutura limitadora de intervenção e expansiva de garantias fundamen-
tais. No entanto, não se pode descartar a regra do artigo 5º, parágrafo 2º da Constituição
da República13, através da qual retira-se a enumeração taxativa destes princípios.

Assim, além de servirem como princípios limitadores do direito (penal), possuem a


função de orientação da própria aplicação da norma, devendo ser considerados como
regras de elaboração progressiva ou princípios inacabados. Não tem, pois, “cabimen-
to enclausurar os princípios diante de um poder protéico e em parte oculto. Portanto,

11 Este artigo foi escrito quando ainda em vigor a Lei 6368/76. A substituição do art. 16 da referida Lei para o art. 28 da Lei 11.343/06 em nada alterou o conteúdo
das ideias expostas no presente escrito, já que se refere ao simbolismo da criminalização do uso de drogas para consumo próprio.

12 LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípios Políticos do Direito penal. 2ª edição. SP: RT, pag. 73.

13 “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais
em que a República Federativa do Brasil seja parte.

223
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

toda elaboração desses princípios é transitória e perfectível e todo enunciado deles,


provisório; marcam uma etapa a partir da qual é necessário avançar em sua realização
e na conseqüente contenção e redução do poder punitivo.”14

Todos esse princípios, previstos no artigo 5º da Constituição da República Fede-


rativa do Brasil, de forma explícita ou implícita, tem a verdadeira função de orientar o
legislador ordinário para uma aplicação limitadora do Direito Penal, como verdadeiro
controle de inserção da atividade Estatal em decorrência da inclusão dos Direitos Hu-
manos, à aplicação de um Direito Penal mínimo e garantista.15

Certo porém, que o presente estudo diz respeito ao bem jurídico tutelado pela
norma do artigo 16 da Lei 6368/76, impondo-nos apenas rarefeitos apontamentos nos
principais princípios constitucionais limitadores e inacabados da aplicação do Direito
Penal, que possuem relevância direta com o presente estudo.

1.1
Princípio da Legalidade, 16
Taxatividade ou da Reserva Legal

O princípio da legalidade, da taxatividade ou da reserva legal, é um verdadeiro limita-


dor da intervenção estatal punitiva, extirpando da aplicação jurídica de arbitrarieda-
des e absurdos, onde a humanidade já evidenciara, colocando-o, a nosso ver, como
principal princípio de intervenção à aplicação do Direito Penal, fundamentado pelo ius
libertatis do indivíduo, sendo tutelado, naturalmente, a partir da liberdade pessoal ga-
rantida pela Carta Constitucional17.

Em termos bem esquemáticos, pode-se dizer que, pelo princípio da legalidade, a


elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato
pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que an-
tes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando-lhe

14 ZAFFARONI, E. Raúl e BATISTA, Nilo. Direito Penal Brasileiro–I, RJ.: Revan, 2003, p. 2001

15 LOPES, op. cit. p. 73

16 “Do ponto de vista formal a legalidade significa que a única fonte produtora de lei penal no sistema brasileiro são os órgãos constitucionalmente habilitados
e a única lei penal é a formalmente emanada.” Op. cit., ZAFFARONI, p. 203

17 Tal fundamento possui como expoente principal Bricola valorizando a aplicação hermenêutica da Constituição da República como alicerce característico do
bem jurídico penal, ensinando que “ Somente o ordenamento constitucional, definitivamente, estaria em condições de proporcionar limites ao legislador
ordinário em seu poder de castigar as condutas que constituem infração penal, por duas razões: a) porque é um limite “externo” ( não imanente e b) porque
vincula o legislador ordinário ( a Constituição ocupa lugar superior na hierarquia das normas). Ver, GOMES, Luiz Flávio . Norma e Bem Jurídico no Direito Penal.
SP: RT, 2002, p. 90/91

224
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

a sanção correspondente. A lei deve definir com precisão e de forma cristalina a con-
duta proibida.18

O princípio da reserva legal está previsto no nosso ordenamento pátrio no artigo


1º do Código Repressivo19, bem como, em grau constitucional, no artigo 5º, inciso XXXIX
da Constituição da República. Porém, a verdadeira noção e aplicação do princípio es-
trutura-se de forma explícita no artigo 9º da Convenção Americana sobre Direitos Hu-
manos, Pacto de São José da Costa Rica de 22 de novembro de 196920, onde o Brasil
depositou a Carta de Adesão através do Decreto 678/92, fazendo valer, por conseguin-
te, este Diploma Internacional como preceito normativo nosso ordenamento jurídico
pátrio, nos termos do artigo 5º, parágrafo segundo da Constituição da República Fede-
rativa do Brasil.

Vários aspectos aplicativos podem ser observados na adoção do princípio da le-


galidade ou taxatividade da lei penal.

O primeiro aspecto importante de aplicação do princípio da legalidade aponta que


haverá necessidade de lei anterior que defina o crime e que comine uma sanção pe-
nal, através de uma pena ou mesmo medida de segurança. E somente lei, em sentido
estrito, possui este condão de aplicação de intervenção estatal nas garantias funda-
mentais. Neste sentido, desde já retira a possibilidade de haver norma incriminadora
instituída por medida provisória21, já que esta é espécie do gênero “lei delegada” de
eficácia condicionada à expressa aprovação pelo Congresso Nacional.

E como a lei, em sentido lato, não pode embasar substrato sancionador, visto
que a reserva mostra-se absoluta22, muito além o costume, ou seja, este, embora não
tenha sido abolido do nosso ordenamento penal, não poderá dar corpo às restrições
ligadas às garantias fundamentais do cidadão, dentre elas a liberdade, servindo ape-
nas, talvez, como norte orientador de estrutura editora de normas incriminadoras.

18 LOPES, op. cit. p. 77

19 Esta expressão resume o aspecto de repressão estatal normativa, onde além de normas incriminadores, aponta-se normas permissiva. Insta apontar que o
princípio da legalidade, como real limitador ao poder estatal de intervenção na esfera das liberdades individuais resume sua aplicação em normas penais
eminentemente incriminadoras, cabendo, excepcionalmente, inclusive, analogia in bonam partem.

20 Assim, faz-se oportuno a colação do dispositivo mencionado:” Ninguém pode ser condenado por ações ou omissões que, no momento em que foram
cometidas, não sejam delituosas, de acordo com o direito aplicável. Tampouco se pode impor pena mais grave que a aplicável no momento da perpetração
do delito. Se depois da perpetração do delito a lei dispuser a imposição de pena mais leve, o delinqüente será por isso beneficiado.”

21 A Emenda Constitucional nº 32, retirou o debate acerca do tema, através do dispositivo previsto no art. 62, § 1º, I, ‘b’ , da CR.

22 PALAZZZO, Francesco C.. Valores Constitucionais e Direito Penal. Trad. SANTOS, Gérson pereira dos: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1989 p. 49

225
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

Interessante questão, pouco aventada na doutrina é a formulação do princípio


do in dubio pro reo através da aplicação da taxatividade máxima, ou seja, as dúvidas
interpretativas devem ser dirimidas através da interpretação restritiva, limitando, ao
máximo, a possibilidade de criminalização de determinadas condutas, já que uma in-
terpretação ( veja que não estamos diante da integralização) extensiva da norma feriria
o grau de aplicação e abrangência do princípio da legalidade. Neste sentido, para que
não haja uma tipificação irresponsável,23 impõe-se o critério de interpretação semân-
tica de forma restrita.24 Na dúvida, portanto, sobre a criação de novos bens jurídicos
a proteger mediante a aplicação de preceito secundário, devem, os legisladores, se
inclinarem pela não criminalização de determinadas condutas, havendo uma ruptura
direta ou indiretamente do preceito primário, o que é imposto, também, para os ope-
radores do direito, no momento da interpretação da norma no caso concreto.

Outra função de garantia que decorre do princípio da reserva legal aponta que a
aplicação da lei penal no tempo mostra-se irretroativa (nullum crimen nulla poena sine
lege praevia).25/26

Note-se, por oportuno, que a lei penal, excepcionalmente, poderá retroagir, caso
haja qualquer benefício ao réu quando da sua vigência e aplicação, havendo uma
verdadeira interpretação extensiva, a contrário senso, da Constituição da República,
quando aponta que a lei penal, será irretroativa, salvo para beneficiar o réu.

Outro importante aspecto sobre o princípio da reserva legal diz respeito à impos-
sibilidade de integralização da norma através da analogia. Não há a possibilidade de
se aplicar institutos jurídicos onde normas penais não dispuserem a respeito, ou seja,
onde houver verdadeira lacuna na lei. Somente a lei formal deve ser fonte de crimina-
lização primária da eventual conduta, não podendo os operadores do direito e princi-
palmente o Juiz ou o autor que possui a opinio delicti no processo penal, complemen-
tar este grau de taxatividade máxima. Obviamente que como já ressaltado, caso haja
possibilidade de integralização da norma para beneficiar o acusado, terá aplicação o

23 op. cit. ZAFFARONI, p. 211

24 Há contudo, entendimento diverso, distanciando esta discussão da amplitude do Direito Penal, já que não diz respeito ao critério de interpretação da norma
material e sim apenas questão atinente à apreciação das provas no processo penal em casos concretos.

25 Artigo 5º, inciso XL da CRFB. Não há, a nosso ver, exceção a esta regra. Salvante a ausência de aplicação absoluta dos direito e garantias fundamentais, não
nos seduz a orientação dada pela doutrina que a regra do artigo 3º do Código Penal, disposta por leis penais temporárias, possuindo ultratividade, reserva-se
a exceção de aplicação da garantia fundamental referida. Tal fundamento se dá pela conjugação do próprio princípio da legalidade que possui como função
básica e característica maior o limite de intervenção estatal na aplicação do Direito Penal. O fundamento inverso poderia trazer sérias inseguranças para o
sistema jurídico penal.

26 ver ZAFFARONI, op. cit. p. 212/221

226
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

caráter integrativo através da analogia, sendo cabível a analogia in bonam partem, en-
contrando justificativa em um princípio de equidade e aplicação do favor rei.

Parece, em primeira mão, uma simples constatação de aplicabilidade do direito pe-


nal. Contudo, em alguns aspectos esta discussão pode elevar seu nível, e aqui, merece
atenção as normas penais em branco. Estas, na verdade, servem de integralização da
norma penal para sua aplicabilidade, o que pode ser facilmente criticada na orientação
limitadora de intervenção estatal. Não se tona difícil a crítica dessas normas sobre sua
constitucionalidade. Deve-se, de início, observar a atribuição constitucional para legislar
sobre Direito Penal.27 Soma-se ainda a impossibilidade, no que tange sua legalidade, da
integralização da norma penal em branco pela analogia, visto que, por via oblíqua, es-
taria afetando o próprio núcleo da norma primária incriminadora. Assim, a lei penal em
branco sempre foi lesiva ao princípio da legalidade formal, e, além disso, abriu as portas
para a analogia e, de forma radical, para a aplicação retroativa, motivos suficientes para
considerá-la inconstitucional, na visão de Zaffaroni e de Nilo Batista.28

Na verdade, tomando como base o artigo 16 da Lei 6368/76, não há qualquer in-
dicativo no que tange à substância entorpecente ou que determine dependência quí-
mica ou psíquica. Precisa a norma primária incriminadora, de um apoio político para
explicar ao Direito Penal, quais as substâncias que poderão ser taxadas como proibida.
Extravasa, por conseqüência, ao nosso ver, a amplitude do Direito Penal, utilizando-se
assim, a analogia, para uma verdadeira integralização da norma incriminadora, reti-
rando, em certo ponto, o âmbito de incidência do princípio da legalidade, rompendo o
princípio da taxatividade, e nas palavras do Professor Ribeiro Lopes dispõe que

o princípio da legalidade, para ser realmente eficaz, deve ser conexionado com o
princípio da taxatividade. Enquanto o primado da anterioridade se vincula às fon-
tes do Direito Penal, o princípio da taxatividade deve presidir a formulação técnica
da lei penal. Indica o dever imposto ao legislador de proceder, quando elabora a
norma, de maneira precisa na determinação dos tipos legais de ilicitude, a fim de
se saber, de modo taxativo, o que é penalmente ilícito ou proibido.”29

Observado, de forma singela, os nuances destinados ao limite de intervenção es-


tatal pelo princípio da reserva legal, constata-se que o uso de entorpecente não se

27 art. 22, I,CRFB

28 op. cit. ZAFFARONI, p. 206.

29 LOPES, op., cit., p. 86

227
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

mostra como fato típico. Não se utiliza o verbo ‘usar’ como núcleo central do tipo pre-
visto no artigo 16 da Lei 6368/76, o que por si só retira seu aspecto incriminador. O
que se pune é o ‘adquirir, guardar ou trazer consigo’ e não, como ressaltamos, usar.
Como observou o Professor Vicente Greco Filho,

a lei não pune e não punia o vício em si mesmo porque não tipifica a conduta de
‘usar’. O que o legislador sanciona é a aquisição, guarda ou porte de entorpecente
para uso próprio, por entender que o ‘viciado quando traz consigo a droga, antes
de consumi-la, coloca a saúde pública em perigo porque é fator decisivo na difu-
são dos tóxicos’. No entanto, a partir do momento em que a consume, lesiona a si
próprio e sua conduta não representa mais um perigo social.30

Antes de adentramos ao estudo principal do trabalho, no que tange ao princípio


da reserva legal, já podemos afirmar, resumidamente, que o uso de substância entor-
pecente, mostra-se atípico, face a ausência de preceito primário criminalizante que
dispunha a respeito.

1.2
Princípio da Lesividade – sua aplicação prática:

Ensina Roxin que “só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos
de outras pessoas e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou
imoral; (...) o direito penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade,
e além desse limite nem está legitimado nem é adequado para a educação moral dos
cidadãos.”31 Estamos diante de um estado democrático de direitos32, o que por si só
retira a possibilidade do Estado impor determinadas regras de cunho moral, já que a
moral deve estar incita na própria dignidade da pessoa humana33, servindo como livre
arbítrio para atuar conforme sua vontade34. O Estado que impõe uma determinada
moral, macula sua própria estrutura já que determina a forma de agir estaticamente,
retirando o Direito de aplicação da formação política-social. É portanto, um ente imo-
ral. Assim, as sanções penais, em hipótese alguma podem recair sobre a aferição sub-
jetiva do indivíduo, da sua própria apreciação ética, já que a Constituição da República

30 FILHO, Vicente Greco. Tóxicos: Saraiva, 1977, p. 99

31 ROXIN, Claus. Iniciación al derecho penal de hoy. trad. CONDE, Francisco Muños . Madri: Reus 1981. apud BATISTA, op.,cit., p. 91

32 Art. 1º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil

33 Art. 1º, III, CRFB

34 Salvante a crítica elaborada por Marx sobre livre arbítrio. MARX, Karl. O Capital – Crítica da Economia Política. Vol. I. livro primeiro. Tomo 1. Trad. BARBOSA,
Regis e KOTHE, Flávio : Nova Cultural.

228
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

é sua garantidora, mas sim deve recair quando houver sua violação por outrem. Neste
sentido, necessário se faz uma breve e audaciosa correção ao conceito de Roxin, já que
a lesividade, como princípio, legitima o poder estatal para atuar de forma interventiva,
não apenas sobre o direito de outras pessoas, mas quando houver um conflito jurí-
dico, através da ofensa a um determinado bem jurídico que o direito tutela, podendo
ser individual ou coletivo. Neste sentido, haverá um injusto penal a partir do momento
em que além de infringir o aspecto formal da norma, deverá ser observado quando
estiver diante de uma conduta materialmente ofensiva a um determinado bem jurí-
dico, retirando, por conseguinte, a ultrapassada orientação doutrinária que divide a
antijuridicidade entre material e formal.

Será ilícito o fato que for, no caso concreto, lesivo ao bem jurídico penal tutelado,
através do substrato da norma primária criminalizante. Nesta linha de raciocínio, che-
ga-se, a nosso sentir, a conclusão de que não se pode retratar a realidade social com
realidades normativas, como se o Direito fosse um fator determinante de valores, eti-
cidade, ideal, etc...

O princípio da lesividade, portanto, necessita da caracterização do bem jurídico


lesionado ou exposto a perigo, havendo, por conseguinte a determinação da criminali-
zação primária através da norma, o que autoriza, teoricamente, a intervenção do esta-
do pela ruptura da segurança jurídica. Não há que se fundamentar o bem jurídico em
um só , ou seja, o interesse da ordem pública determinado pelo estado, já que estarí-
amos ampliando a autuação do direito repressor servindo como fundamentação um
determinado princípio constitucional limitador da sua atuação, condicionando uma
visão pragmática e panóptica da disciplina individual.

Ademais há necessidade da presença de um grau de razoabilidade na incidência


do direito penal35, a partir do momento em que seja demonstrada a ofensa a um bem
jurídico concreto. Não se tem espaço, portanto, a fundamentação de um direito penal
preventivo, onde se presume a ofensividade de determinada conduta, já que além da
transgressão do aspecto imperativo da norma formal criminalizante, deve-se apontar
sua estrutura material, formada a partir da lesão, devidamente demonstrada, ao bem
jurídico penalmente tutelado.

A interpretação do princípio da lesividade, portanto, se dá pelo fato de não poder


constituir ilícito penal se não for ofensivo ( ou simplesmente perigoso) ao bem jurídico

35 ver LIMA, Maria Rosynete Oliveira. Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, pags.273 e segs.

229
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

tutelado determinado, ou concreto. Neste sentido, e somente a partir daí, o princípio


em questão responde a uma evidente exigência de limitação da intervenção Estatal
pelo Direito Penal.

Pela aplicação legislativa, o princípio da lesividade (ofensividade), enquanto do-


tado de natureza constitucional, deve impedir o legislador de configurar tipos penais
que já hajam sido construídos, in abstracto, como fatos indiferentes e preexistentes à
norma. A correspondência jurisdicional-aplicativo (art. 5º, inciso, XXXV, CR), a integral
atuação do princípio da lesividade deve comportar, para o juiz, o dever de excluir a
subsistência do crime quando o fato, no mais, em tudo se apresenta na conformidade
do tipo, mas ainda assim, concretamente mostra-se inofensivo ao bem jurídico espe-
cífico tutelado pela norma.36

Da mesma forma, tanto o legislador, como o aplicador do direito, devem estabele-


cer sensibilidade no ato de aplicação da sanção penal, seguindo linha divisora entre o
que efetivamente é observado como ofensivo (ao conflito jurídico, formado pelo bem
jurídico concreto) e a criminalização cominada no preceito primário.

A orientação do Professor Nilo Batista indica o apontamento através de quatro


principais funções garantistas ligadas ao princípio da lesividade37: 1ª- proibir a incrimi-
nação de uma atitude interna ( a mera cogitação não é punível); 2ª- proibir a incrimi-
nação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor ( vedando , aqui , a
punibilidade pela autolesão38); 3ª - proibir a incriminação de simples estados ou condi-
ções existenciais ( direito penal do fato e não do autor); 4ª - proibir a incriminação de
condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico – a nosso ver, a principal
função do princípio em estudo – ( princípio da exclusiva proteção do bem jurídico).

E o que há de lesivo para o Direito Penal o fato de usar substância entorpecente?


Qual o verdadeiro bem jurídico tutelado pela norma? Será uma aplicação jurisdicional
deste ramo do Direito, face à fragmentariedade e subsidiariedade do Direito penal,
ou uma aplicação política social de encoberta dos verdadeiros erros organizadores do
Estado Moderno? Ou será, uma atuação imoral do estado contra a ética (moral) do in-
divíduo, encobertando sua atuação estigmatizadora, estimulando uma vigilância con-
tínua contra o indivíduo, como retratou a arquitetura de Betham?

36 PALAZZO, op., cit., p. 80

37 BATISTA, op. cit. p. 92/93

38 Neste aspecto o autor inclui o uso de entorpecente como flagrante oposição ao princípio da lesividade.

230
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

Mas não desvirtuemos o estudo, mesmo com indagações de alcance fundamental!

Inicialmente, urge apontar que o princípio da lesividade ou ofensividade deve cum-


prir uma função de garantia do próprio modelo democrático de Estado e dos direitos
fundamentais dos cidadãos39, limitando a aplicação do Direito Penal, como instrumen-
to de sanção, das violações da norma imperativa, quando tutelares de bens jurídi-
cos verdadeiramente ofendidos. Deve-se, portanto, aplicar o princípio da lesividade
em consonância com o princípio da reserva legal, devendo o legislador, no primeiro
substrato objetivo daquele princípio, permitir na definição a clareza de incidência das
normas penais e principalmente, dispor sobre a ofensividade do bem jurídico tutela-
do pelo Direito Penal. Assim, antecipando a crítica da descrição normativo do delito
de porte para uso de entorpecente, o Legislador40 ( e no segundo substrato aplicativo
da norma – o juiz), não descreveu, com acuidade, o bem jurídico que eventualmente
deveria ser lesado para configurar uma conduta proibida ao Direito. A lesividade, nes-
te caso, denota uma extensão à aplicação dos limites de intervenção estatal, já que o
bem jurídico não está devidamente descrito, o que ofende, sobremaneira, o grau de
incidência da norma penal. Portanto, mais importante no disposto no tipo objetivo
do artigo 16 da Lei 6368/76 é observância do princípio da exclusiva proteção ao bem
jurídico tutelado, para criminalizar a conduta, e não como já exposto, através de uma
observação crítica pela nova criminologia, apontar o uso de substância entorpecente
como fator criminalizante esteriotipado.

[2]
POR CONSEQÜÊNCIA, QUAL O
VERDADEIRO BEM JURÍDICO TUTELADO?

OU MELHOR, HÁ BEM JURÍDICO?

Ilustrando o presente trabalho Cerezo Mir aponta que “a idéia de objeto jurídico do
delito nasce com o movimento da ilustração e com o surgimento do Direito penal mo-
derno”.41 Valorizando assim, uma moderna aplicação do direito penal através de sua

39 GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Ofensividade no Direito penal. SP: RT, 2002, p. 30

40 É no plano legislativo ou político-criminal ( momento da criminalização primária), com efeito, que o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos deve
cumprir sua função de garantia ou de limite à atividade sancionadora do Estado, cuja ‘ vocação autoritária’ é histórica, como remarcam inclusive os autores
e filósofos Iluministas.” GOMES, Luiz Flávio, Norma e Bem Jurídico no Direito Penal. São Paulo: RT, 2002, pag. 69.

41 MIR, J. Cerezo. Curso de derecho penal español. Madrid: Tecnos, 1985, vol.1, p. 77, apud PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. SP: RT, 1997, p. 25.

231
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

atuação controladora socialmente, demonstrando uma visão emergencial e desmis-


tificando sua aplicação generalista, introduzindo valoração moral (social), onde se es-
quece da divisão natural entre crime e pecado: crime, destina-se, subsidiariamente, ao
Direito penal; e pecado reserva-se à Igreja42.

Nesta linha, deve-se indagar: onde estará a Política? Será que há espaço para atu-
ação política na aplicação de normas jurídicas penais, conjugada ao anseio moral libe-
ral? A nosso ver, a criminalização do uso de entorpecente, adentrando matéria atinente
às questões sociais, faz valer uma intervenção social no âmbito normativo incrimina-
dor; um verdadeiro modelo ético-jurídico, o que provoca um distanciamento cada vez
maior entre drogas proibidas e permitidas, mas sobretudo àqueles que consomem
como “bode expiatório” da violência e outros indivíduos.

Ou seja, não se denota importante o próprio desvalor desta ação, até porque res-
ta clara a ausência da lesão na prática; mas sim uma visão pecaminosa diante de uma
sociedade criadora de falsos valores.

O conceito de bem jurídico, após várias investidas doutrinárias e históricas43 , resu-


me-se, atualmente, nas lições de Welzel, em um bem vital ou individual que, devido ao
seu significado social é juridicamente protegido.44 Bem jurídico, pois, mostra-se como
toda situação social desejada que o direito deve garantir contra determinadas lesões
ou ameaças. Na verdade este conceito serve como verdadeiro limitador de aplicação
do Direito Penal - principalmente, por sua fragmentariedade45, - já que nem todo bem
observado deve ser considerado como bem jurídico46. Há necessidade, após uma visão
ético-social, elevarmos um bem à tutela do Direito (Penal) para garantir-se a denomina-
ção de bem jurídico relevante a este ramo jurídico. Na verdade, não é apenas uma ação
(ou situação) social. E sim aquela que se mostra valiosa para se adequar à garantia da
harmonia e segurança social, através da intervenção imperativa da norma penal.

42 Nesta mesma linha de raciocínio, parafraseando Claus Roxin, o jurista Evandro Pelarin aponta que “ sendo o Estado democrático de direito, laico, fundado na
soberania popular, não pode pretender moralizar o cidadão adulto, de modo que o legislador não está legitimado a criminalizar comportamentos simplesmente
imorais; e, o caráter subsidiário da intervenção penal, restrita à tutela dos bens jurídicos essenciais. PELARIN, Evandro. Bem Jurídico-Penal. Um Debate sobre a
descriminalização. Monografia do Ibccrim, Vol. 21 p. 132

43 Após a ilustração privada do Direito Penal, seguindo o bem jurídico como uma violação ao direito público subjetivo; passando pelo conceito de bem jurídico
exposto por Birnbaum, afastando o próprio direito público jurídico – penal; surgindo uma forte visão positivista, através da subjetivação da norma penal em
favor do Estado. Deve-se ainda ter em vista as teorias sociológicas, principalmente as teorias funcionalistas sistêmicas e interacionistas simbólicas, apontando
como defendentes Jakobs, H. Otto, Habermas, Hassemer, Mir Puig, entre outros. E ainda, uma visão constitucional do bem jurídico.

44 TOLEDO, op., cit., p. 16

45 Princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, através da ultima ratio que o Direito Penal deseja evitar, com o demonstrado desvalor do resultado pela
conduta típica, fundamentando o conceito de injusto penal pela violação valorativa da norma primária.

46 Gianpaolo Poggio Smanio, conceitua bem jurídico como “ um objeto da realidade, que constitui um interesse da sociedade para a manutenção do seu sistema
social, protegido pelo direito, que estabelece uma relação de disponibilidade, através da tipificação das condutas.” In A Tutela Penal Constitucional, Revista de
Ciências Criminais: RT, nº 39, p. 134

232
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

Urge acentuar, nas brilhantes palavras do eterno jurista Assis Totelo, “que, se o
crime deve ser ofensa real ou potencial a um bem jurídico, tal ofensa não basta para a
caracterização do ilícito penal. O crime tem uma estrutura jurídica complexa, devendo
somar-se à ofensa ao bem jurídico outras circunstâncias não menos importantes para
o seu aperfeiçoamento.”47 Amoldando-se perfeitamente no presente estudo, já que
além da divergência entre o bem jurídico tutelado, a ofensa real do delito de posse de
entorpecente para uso próprio, bem como outros elementos constitutivos do crime,
como exemplo, a tipicidade de ínfima quantidade de material entorpecente (que não
faz parte do trabalho), devem ser devidamente demonstrado, em virtude de uma apli-
cação geral do Direito Penal, para o reconhecimento ou identificação do linear bem
jurídico tutelado.

E que bem jurídico, na realidade, o direito protege na norma incriminadora pre-


vista no artigo 16 da Lei 6368/76? Qual o papel de delimitação da intervenção penal do
dispositivo em alusão?

Afirma-se, tanto na visão prática, quanto teórica, que o bem jurídico tutela a in-
columidade pública considerada em seu aspecto particular, concernente à saúde pú-
blica, situando o delito entre aquelas denominadas infrações de perigo abstrato (geral
ou comum).

E a pessoa que tem em seu poder substância entorpecente, para uso próprio,
está de alguma forma gerando perigo à sociedade, mesmo de forma abstrata, ou, na
realidade, está ingressando com um distúrbio à sua saúde, à sua integridade física? A
sua moral? Qual é, verdadeiramente, o bem jurídico que o consumidor está agredin-
do? Será que esta conduta deve ser tutelada por normas incriminadoras?

Para estas indagações deve-se observar que se estivermos diante da posição ul-
trapassada de que o delito é mera contradição entre o fato e norma com determinada
intenção, devemos, ao menos, demonstrar o resultado jurídico48, já que o resultado
naturalístico, dessa conduta tornar-se-ia de difícil ilustração, e a nosso ver, tal fato de-
nota-se afastado do ordenamento penal posto que o legislador apenas tentou indicar
resultados determináveis. Por outro lado, se tivermos que fundamentar a criminali-
zação deste preceito primário, utilizando da orientação do injusto penal, deveremos,

47 TOLEDO, op., cit., p. 20

48 artigo 13 do Código Penal.

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O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

e aí chega-se a nossa linha de estudo, demonstrar a ofensividade real, e não apenas


normativa de um determinado bem jurídico penal49.

A resposta, depois de passar pelos princípios do direito penal, atinentes à ques-


tão, bem como o conceito de bem jurídico chega-se a conclusão (aliás, por vezes este é
o resultado de estudos jurídicos) que a criminalização primária e a veiculação de uma
“mácula comum”, é uma questão meramente política, com cunho histórico de flagran-
te controle social, numa visão panóptica foucaultiana, o que já vem sendo observado
pela criminologia crítica50 , visto que, nas discussões sociais não se adentra ao âmago
dos apontamentos técnico jurídico.

Quando a pessoa comprova que está na posse de substância entorpecente para


uso exclusivo, não age com observância do elemento subjetivo do tipo, já que a única
intenção direcionada a um fim é atingir a si próprio, pessoa determinada, neste caso
servindo-se da posição final do delito. E como no direito penal não se pune a autole-
são51, justamente pela disponibilidade do bem jurídico (a vida, assim como a integrida-
de física é considerado um bem tutelado pelo direito), não há qualquer identificação
sobre o bem jurídico, ao menos numa visão técnica-jurídica. Numa linha direta com a
lei penal, todo homem tem o direito inalienável de ir para o inferno como quiser, desde
que, no caminho, não prejudique as pessoas ou a propriedade alheia, mesmo porque
é ela, a lei criminal, um instrumento ineficaz de impor uma vida digna aos outros.52

Na realidade, a noção de bem jurídico, neste delito, quando a intenção é tão so-
mente o consumo da substância entorpecente, perde-se o seu valor técnico. O que
deve ser extirpado do estudo jurídico é o exagero de incluir uma tentativa de apontar
que o perigo mostra-se permanente, afrontando a incolumidade pública. Até porque
se este for o fundamento para ilustrar o bem jurídico, aqueles que já consumiram a
substância entorpecente, estariam, de certa forma, cometendo delito, e qualquer vi-
ciado destas drogas seria facilmente classificado como autor deste suposto crime. Na
verdade, o legislador admitiu, neste caso, a direção a bens abstratos, cuja descrição do
tipo assume uma forma ampla para justificar a investida no âmbito penal. Assume-se,
neste sentido, a instrumentalização da proteção de bens jurídicos afetados por deli-

49 Qualquer “delito deve sempre ter como resultado (jurídico) uma lesão ou ao menos um perigo efetivo para o bem jurídico, tem o legislador de respeitar a
exigência da visibilidade ou perceptibilidade do bem jurídico, que não pode ser vago, indeterminado ou indefinido, é dizer, de amplo expectro, de tal maneira
que não seja suscetível de afetação.” GOMES, Luiz Flávio. Norma e Bem Jurídico no Direito Penal. São Paulo: RT, 2002, pag. 68.

50 ver DEL OMO, Rosa. A Face Oculta das Drogas.

51 Exemplo clássico a impossibilidade de incriminação da tentativa de suicídio ou mesmo lesão corporal a si próprio.

52 QUEIROZ, Paulo de Souza. Do Caráter Subsidiário do Direito Penal – Lineamentos para um Direito Penal Mínimo. 2ª ed. Belo Horizonte, 2002, pág. 86, citando
Morris e Hawkins.

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O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

tos de perigo abstrato, sendo apenas suficiente a observância da ação (neste caso do
porte). Pune-se, de olhos fechados, não o que afeta um bem jurídico certo, mas sim
algo imoral na estrutura social, como um verdadeiro pecado na época da Inquisição.
Nas palavras de Pelarin, há uma real banalização da constituição do bem jurídico, in-
terferindo na valorização da intervenção penal à revelia do princípio da lesividade e
intervenção mínima no Direito penal, quando se recorre a malabarismos legais como
a tutela antecipada em matéria penal materializada na crescente utilização dos delitos
de perigo53, o que é o caso no uso de entorpecente reconhecido, pelo menos na mídia,
como maior perigo social, já que afeta (abstratamente) toda a sociedade.

E mais, não deve ser esquecida a garantia constitucional da intimidade, que decor-
re, justamente da própria personalidade da pessoa. Neste sentido, e acompanhando
o substrato jurídico da norma em questão, o uso da substância entorpecente viola, na
verdade, a saúde individual, e não a incolumidade pública, já que a repressão à difu-
são da droga está tipificada no artigo 12 do mesmo Diploma Legal54.55

De forma radical, o Professor Alberto Zacarias Toron, comentando o voto do Mi-


nistro Sepúlveda Pertence56, mostrando enorme dúvida quanto ao bem jurídico tute-
lado pela norma incriminadora do artigo 16 da Lei 6368/76, exclamou que “ ou bem se
assume que se está protegendo a saúde individual e com isto interferindo no modo
de ser do indivíduo, numa verdadeira reedição do direito penal de caráter, ou bem se
adota uma postura despenalizadora em relação às condutas definidas no artigo 16.”

Na mesma radicalidade de expressão, com muita realidade traçada nas palavras


enfocadas, Queiroz aponta que

somente podem ser erigidos à categoria de criminosos lesivos, de bem jurídico


alheio, e não atos que representem uma ‘má disposição’ de direito próprio. Nes-
se sentido, aliás, é o núcleo do Direito Penal Brasileiro, visto que não se pune o
suicídio tentado, a automutilação, o dano à coisa própria etc., mesmo porque se-
melhante intervenção seria de todo inútil, isto é, desprovida de capacidade moti-

53 PELARIN, op., cit., p. 157.

54 Atualmente o crime de tráfico de drogas está tipificado pelo artigo 33 da Lei 11.343/06

55 O que se observa na prática forense, infelizmente, é a estigmatização direta que a substância entorpecente determina entre os indivíduos. Dificilmente se
verá um controle repressor aplicando o art. 12 da Lei 6368/76, quando o suspeito for pessoa que possui boa saúde financeira. Ao contrário, qualquer cidadão
estereotipado ( seja por suas roupas, endereço, cor) servirá de “bode expiatório” – expressão prescrita por Lola Aniyar de Castro, Criminologia da Reação Social,
trad. Ester Kosovski, Ed. Forense, RJ, 1983- para um verdadeiro controle social repressor exercido pelo Direito Penal. A apresentação deste tema na prática
mostra-se irreal, já que não existe, em regra, traficante da classe média e sim apenas viciados (estereótipo da dependência-médica). É como se não existisse
dependentes, também em regra, nas classes baixas, apenas com interesse de veicular a substância entorpecente à sociedade de “bem” (estereótipo jurídico).
O que se conclui, nesta linha de pensamento, é que todo fato punível deve possuir um resultado jurídico (independentemente do naturalístico), e no caso em
questão, observa-se apenas um resultado social estigmatizador – controlado através do exercício político do Direito Penal.

56 HC 79.189-1 – SP 1ª T. STF – j. 12.12.2000, DJU 09.03.2001, Revista de Ciência Criminais, Vol. 37, p. 306.

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O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

vadora. E é também por isso que soam claramente inconstitucionais disposições


como a do artigo 16 da Lei 6368/76 (porte ilegal de entorpecentes) ou a contra-
venção de mendicância (art. 60, LCP). Também por isso são condenáveis os cha-
mados crimes de perigo abstrato, de mera conduta etc., por consagrarem uma
ficção, relativamente ao resultado.57

Numa preliminar conclusão, o que já se aludiu em relação à fragmentariedade e


subsidiariedade do Direito penal; ao princípio da reserva legal58, bem como o princípio
da lesividade, observa-se que a norma incriminadora do artigo 16 estende ao Estado
uma intervenção máxima em detrimento do indivíduo, com a mascarada filosofia de
defesa social. Até porque, outras substâncias que determinem dependência física ou
psíquica são comercializadas sem que haja qualquer controle, e, nesses exemplos não
há controle social através do Direito Penal. Explica-se: porque o Estado lucra bastante
com a arrecadação de impostos na comercialização destas substâncias que induz de-
pendência psíquica. Indaga-se: será que o consumo dessas substâncias também não
propaga um perigo abstrato? Um perigo à saúde pública? Ou nesses casos, quando
há o pagamento de impostos, traduz na impossibilidade de interferência no modo de
ser do indivíduo, através do Direito Penal? Ou será que nosso sistema criminal mostra-
-se tão voltado ao mercado de capitais (culturalmente dispostos) que somente com a
omissão do referido pagamento que teve como fato gerador a comercialização e por
via de consequência o consumo destas substâncias que levam a dependência química
ou psíquica, chegará a sua criminalização e eventual símbolo de intervenção estatal
através de substratos repressores?

A nosso ver, o exagero da posição funcional de delito de Jackobs59 (e até mesmo


o finalismo de Wezel através da mera contradição entre o fato e a norma primária,
manifestada pela intenção contra o direito) encontra-se presente na criminalização
do “porte” (formada pelos núcleos do tipo objetivo) para uso de entorpecente, desde
o nascedouro do Diploma Legal, onde substitui o verdadeiro valor do bem jurídico
como limitador da intervenção estatal no diploma repressivo em questão pela noção
de estabilidadade da ordem jurídico – social. E a ilusão legislativa e propagandiada nos
dias atuais valoriza esta utópica estabilidade, enfrentando o “demônio” social que é
a violência originada pelas drogas. Contudo, esquecem estes caçadores de vampiros,

57 QUEIROZ, Paulo. Direito Penal e liberdade. Boletim IBCCRIM, nº 90, maio/2000, p. 05

58 Já que para se usar a substância entorpecente, deverá anteriormente trazer consigo, e por via oblíqua pune-se o próprio uso.

59 Ver JAKOBS, Günther. A Imputação Objetiva no Direito Penal. Trad. CALLEGARI, André Luís . São Paulo: RT, 2000.

236
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

que a estabilidade da ordem social, com a manutenção do sistema intervencionista


(quando necessário), não pode, em momento algum, interferir na proteção individual
da pessoa humana.

Sabe-se por oportuno que a primeira necessidade encontrada para identificar o


verdadeiro bem jurídico tutelado pelo direito é diferenciá-lo da função cujos meios
normativos organizados servem para a determinação da estabilidade do “contrato so-
cial”, com a preservação da ordem pública. Neste sentido, afim de tornar o bem jurídi-
co“ objeto de garantia e não simplesmente de incriminação, é indispensável pensá-lo
como objeto de preferência, vinculado a um valor. Uma vez concebido como valor,
torna-se imperioso estabelecer sua diferença para o conceito de função.” 60
Sendo o
seu conceito ligado à idéia de que toda função tem sempre uma característica instru-
mental e de dependência com outro objeto, não havendo possibilidade de aferição de
valor, não podendo, portanto, ser confundida como um bem.61

Assim, na medida em que não se objetiva a verdadeira interferência do porte de


substância entorpecente para o uso próprio no estabelecimento do desvalor da ação,
não havendo, por conseguinte, uma identificação dos danos causados pela ação em
questão, não se estará individualizando, ou mesmo demonstrado, o real bem jurídico
afetado, ou tutelado, e sim uma verdadeira e simples função da intervenção estatal de
vigilância para com estas ações. Com isso, mais uma vez, confunde-se o bem jurídico
tutelado pelo artigo 16 da Lei 6368/76, mas neste momento, não como sendo individu-
al ou coletivo, mas sim, se efetivamente eficaz (funcional), no seu aspecto amplamente
político de estigmatização e ilusória estabilidade da ordem “pública” (ou seria melhor:
“da ordem” publicada) ou de aplicação à origem da lesividade como substrato jurídico
de controle através da incriminação.

Se deixarmos de apontar a diferenciação da função e do bem jurídico, como va-


lor identificador de intervenção estatal na eleição da criminalização de determinadas
condutas, como fez o legislador no caso em estudo, acompanhando o raciocínio do
Professor Juarez Tavares, deveríamos

encarando essas particularidades do bem jurídico e os princípios delimitativos e


protetivos daí inferidos, concluir que será incompatível com o princípio democrá-
tico qualquer incriminação que, por exemplo, regulamente a vida privada, exigin-

60 TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 205.

61 TAVARES, op. cit,, p. 209.

237
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

do do sujeito o cumprimento de normas de segurança pessoal, mesmo sem o seu


consentimento. Em situação dessa ordem, a eleição da função na condição de bem
jurídico, como categoria pública estatal, sem consideração às condições do sujeito e
seus projetos, como ao processo de sua dessocialização, viola os fundamentos do
Estado democrático, amparado na proteção da dignidade da pessoa humana.62

CONCLUSÃO

1.

Inicialmente, insta esclarecer que estamos diante de um ensaio que não possui qual-
quer ambição intelectual de exaurir o tema em discussão. Até porque, estaríamos
próximo do impossível, já que além de intrigante os argumentos expostos são infor-
mados pela divergência que é diariamente traçada. O objetivo maior do estudo é tão
somente apontar o simbolismo jurídico prático-teórico (e criminológico) acerca do en-
foque dado ao bem jurídico tutelado pela norma repressora do porte de substância
entorpecente para uso próprio, previsto no tipo objetivo do artigo 16 da Lei 6368/76.

2.

O objetivo máximo do presente ensaio tem como alicerce básico a posição atual do
Direito Penal através de uma visão garantista. O grande ensinamento sobre garantis-
mo de Luigi Ferrajoli, através da aplicação constitucional do direito penal, serve como
substrato basilar de um obstáculo direto à intervenção estatal através do Direito Pe-
nal. Distanciando um pouco da visão crimonológica da reação social, onde se insere o
Direito Penal como função última do controle social, o sistema garantista aponta a in-
tervenção repressiva, após a observância das garantias e direitos fundamentais, atra-
vés de normas substanciais63, direcionando a verdadeira necessidade da repressão
estatal estipulada pela edição64 e aplicação de normas penais. Não é só uma ligação di-
reta ao direito penal mínimo como intervencionista claro das garantias fundamentais
e levado à lesividade objetiva, através da qual há uma verdadeira demonstração do
resultado, seja naturalístico, seja normativo, pelo desvalor de uma ação. Mas também

62 Ibdem, p. 224.

63 Serão instrumentais, na denominação apontada por Ferrajoli, as normas de direito processual relativas aos métodos e às formas de comprovação e aplicação
das normas substanciais.

64 Deve-se observar a ética da legislação, por meio do qual, aponta o festejado jurista, pode-se criticar as leis como imorais ou, pelo menos, como injustificada.

238
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

a demonstração da necessidade interventiva penal, com a cominação e aplicação de


uma sanção após um liame demonstrativo da razoabilidade que se deve reconhecer
no sistema garantista penal.

O princípio da ‘utilidade penal’, tal como foi formulado por Grócio, Hobbes, Pufen-
dorf, Thomasius, Beccaria e, mais extensamente por Bentham, é idôneo para justificar
a limitação da esfera das proibições penais – em coerência com a função preventiva
da pena como precautio laesionum – apenas às ações reprováveis por ‘seu efeitos’ lesi-
vos a terceiros. A lei penal tem o dever de prevenir os mais graves custos individuais
e sociais e representados por estes efeitos lesivos e somente eles podem justificar os
custos das penas e proibições. Não se pode nem se deve pedir mais ao direito penal.65

3.

Para ilustrar essa singela conclusão, faz-se oportuno a colação de ementa do acórdão
proferido pelo ex-Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro:

Agente surpreendido ao fumar um cigarro de maconha – ‘ Todo crime, além da


conduta, tem resultado. No caso, prevenir a saúde, o bem – estar físico do pacien-
te para não sofrer dependência física e psíquica, à qual a lei se refere. Tratando-se,
no caso concreto, de um cigarro de maconha, e não havendo informação se esse
comportamento traduzir repetição, sequência de outros da mesma natureza, é evi-
dente que a pequena quantidade não é bastante para causar o evento. Se houve a
conduta, não houve, entretanto, o resultado relativamente relevante. É importante
demonstrar se a substância trazia potencial para afetar o bem jurídico tutelado.66

Não adentraremos ao aspecto da atipicidade face à insignificância ou bagatela67


em relação à quantidade da substância entorpecente apontada na decisão supra68. Mas
urge apontar, de início, além da aplicação do garantismo penal, da sua intervenção mí-
nima, qual o bem jurídico tutelado que referiu o Ilustre magistrado? Qual o verdadeiro
valor da norma incriminadora? Há uma função ( eficácia do direito) na estabilidade da

65 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal: Ed. RT, 2002, p.372.

66 STJ- RHC 7252, j. 30.03.1998 – JSTJ e TRF 110/228, in Leis Penais especiais e sua interpretação jurisprudencial, Vol. 02, Coord. FRANCO, Alberto Silva e STOCO,
Rui : RT, p. 3254.

67 ver RIBEIRO LOPES, Maurício Antônio. Princípio da Insignificância no Direito Penal. São Paulo: RT

68 A posição jurisprudencial, contudo, não se mostra pacificada, até porque existem decisões flagrantemente contrárias à aplicação garantista e de formação
do Direito Penal mínimo. Pode ser ilustrado pela ementa que se segue: “Tóxico. Pequena Quantidade. Princípio da Insignificância. Perigo Presumido. - O
crime tipificado no artigo 16 da Lei de Tóxicos é o de posse de entorpecente para uso próprio, ajustando-se-lhe à essência a pequena quantidade, própria à
utilização individual, como é o caso da espécie, em que se apreendeu 0,6 grama de maconha. O delito em exame é de perigo abstrato para a saúde pública,
caracterizando-se, portanto, com a aquisição, guarda ou posse, para uso próprio, de substância entorpecente ou que determine dependência física ou
psíquica, sem autorização ou em desacordo com a autorização legal ou regulamentar, fazendo-se irrelevante que seja pequena a quantidade de entorpecente.”
HC23969-RJ- Rel. Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 09/09/2003- STJ-inf. 183.

239
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

norma, ou uma prevenção geral à saúde individual? Qual o simbolismo aplicado no ar-
tigo em questão? Enfim, qual o interesse lesionado (objeto do delito), através do qual
pode estar ligado à necessidade de aplicação de pena, estabelecendo assim a utilida-
de penal como mínima restrição necessária?; Enfim, qual o interesse protegido?

4.

Uma conclusão mostra-se clara, quando por um passeio ao princípio da legalidade, consta-
ta-se que o uso de entorpecente mostra-se atípico, visto a ausência do verbo “usar” como
integrante do núcleo central do tipo objetivo. Contudo, na verdade há uma verdadeira
mistificação nesta criminalização, já que por via oblíqua, o legislador impôs uma sanção
àquele que traz consigo substância para uso próprio. Independentemente do elemento
subjetivo do tipo, ou seja, a verdadeira difusão para afetar o suposto bem jurídico tutela-
do, a incolumidade pública, qualquer pessoa que possua uma substância que foi estipu-
lada, por uma norma administrativa, como substância que determine dependência física
ou psíquica, responderá pelas penas da norma repressiva. Há uma interpretação extensi-
va sobre a configuração do bem jurídico tutelado pela norma criminalizante, ao contrário
do postulado sobre a função interventiva subsidiária e mínima do Direito Penal.

5.

Além de uma norma não penal determinar o que verdadeiramente mostra-se como
substância proibida, a norma incriminadora, a nosso ver, mostra-se inconstitucional,
visto que atinge, frontalmente, o princípio da taxatividade na medida em que elabora
uma norma de maneira imprecisa na determinação do núcleo do tipo objetivo.

6.

Em relação ao bem jurídico lesado, acompanhando o princípio da lesividade impõe-se


uma interpretação muito mais política do que jurídica, já que o uso de entorpecente
(com o implícito porte, através do “trazer consigo”), mostra-se como verdadeira ofensa
a bem jurídico próprio – ou melhor, disponível ao usuário – não havendo qualquer in-
tervenção no aspecto ético-social do bem jurídico afetado. Não há, uma vítima difusa
quando o usuário porta a substância entorpecente para seu exclusivo uso. A função
limitadora ou garantista da aplicação do direito penal, deve ser observada através da
identificação precisa do bem jurídico, formando a condição necessária para justificar
a proibição da conduta em questão. Não pode, contudo, servir de base lógica uma va-
loração distanciada do direito a ser aplicável para acompanhar uma simulação valora-
tiva de ordem moral, ou quiçá, social.

240
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

O princípio da lesividade não foi devidamente observado, quando o legislador im-


pôs uma sanção a uma conduta pela qual, não se demonstrou, com sensibilidade jurídi-
ca, ao nosso ver, o dano penal. Mesmo observado na atualidade uma substancial recu-
peração do caráter garantista do bem jurídico, através de tentativa de aplicação de uma
cultura penal liberal e democrática (basta pensar nas garantias fundamentais estatuída
na nossa Carta Constitucional, bem como em Tratados Internacionais, como exemplo o
Pacto de São José da Costa Rica), não foi o legislador, na criminalização da conduta estu-
dada, convincente com a demonstração de um eventual interesse lesionado ou mesmo
interesse protegido pelo Direito Penal. Ficou na verdade, muito mais ligado aos anseios
sociais e morais (determinantes), do que a constatação da necessidade e utilidade da
intervenção penal, simplesmente pela ausência demonstrativa da própria lesividade e
principalmente, do bem jurídico tutelado. Afastou-se, em muito, do princípio da utilida-
de do Direito Penal e sua divisão com valores morais, a partir do momento em que a
disposição do bem jurídico em questão não traduz, empiricamente, na diminuição do
uso de substâncias entorpecentes, e na difusão destas substâncias.

7.

O ataque frontal a tal veiculação deveria se dar determinando sim o bem jurídico pro-
tegido pelo Direito Penal, através da comercialização das substâncias entorpecentes,
em larga escala. E ao contrário do que se espera do Sistema Penal, a criminalização do
uso de entorpecente, apenas ratifica a eficácia prática da atuação interventiva repres-
sora, a partir do momento em que se estereotipa determinadas pessoas69, através da
sua condição social, levando-as à criminalidade crescente. Assim, nas perfeitas pala-
vras de Ferrajoli, que inclusive aponta como exemplo de discussão o aborto e a toxico-
dependência, determinando a aplicação útil do sistema repressor, o que nos beneficia
em muito na ilustração do estudo, aponta que

a proibição é inútil à medida que se demonstre que está vocacionada a não sur-
tir efeito.” E continua, com idéia conclusiva: “uma demonstração deste caráter requer
uma nem sempre facilmente realizável comparação empírica entre os resultados lesi-
vos constatados na presença e na ausência da sua qualificação como delito.70

69 Quem não sabe da existência de grande consumo de substâncias entorpecentes em um show para adolescentes, bem como sua comercialização? Porque
nada se faz? Será que essas pessoas, que na sua maioria advêm da classe média, está autorizada a consumir e veicular substância entorpecente? Ou será que
a “saúde pública” refere-se apenas àquelas pessoas que não tem condições nem mesmo de irem a estes encontros?

70 Op. cit. Ferrajoli, p. 379.

241
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

8.

Chega-se, acompanhando o raciocínio supra, na teoria da impossibilidade de ofensa


a bem jurídico próprio e não saúde social, quando o que se pretende, através da uti-
lização de substância entorpecente é justamente uma ofensa à saúde individual, não
podendo haver qualquer intervenção estatal já que privaria a própria personalidade
da pessoa através da ofensa á sua intimidade.

9.

O ponto crucial neste ensaio é justamente identificar o verdadeiro valor dado pelo legis-
lador através da incriminação do porte de substância entorpecente para uso próprio.
E com isso não podemos deixar de criticar a posição majoritária, o que muito mais se
aproxima de uma política criminal do que um tecnicismo jurídico, onde aponta que há
uma verdadeira propagação de substância que influem na saúde pública.

Ora, se o bem jurídico que se está protegendo é a incolumidade pública, e não


uma intervenção estatal incriminadora na liberdade e intimidade do cidadão, porque
não estabelecer norma repressora ao vendedores de cola de sapateiro que leva àque-
les meninos desafortunados a usarem, indiscriminadamente, nas ruas das grandes
Cidades do nosso país, ou, para aguçar o debate, impedir, através do Direito Penal, a
venda de alguns remédios que já evidenciaram potenciais perigos à coletividade?

10.

A ferida direta, a nosso ver, sobre a criminalização do porte de entorpecente para uso
próprio, está no simbolismo artificial da aferição sobre o bem jurídico que deveria tu-
telar, havendo verdadeira interferência repressora na vida íntima e na liberdade do ci-
dadão, rompendo com princípios básicos do nosso, denominado, por alguns, “Estado
Democrático de Direito”. Reserva-se, neste diapasão, uma interferência controlado-
ra exercida pelo sistema criminal, através de modelo estigmatizante (reformado pela
idéia de uma criminologia da reação social, exposta por Lola de Castro) quando se
pune uma conduta que ultrapassa um resultado jurídico útil71 para se chegar a um re-
sultado social. Em linha divergente ao dispositivo previsto no artigo 16 da Lei 6368/76,
está o artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão onde estabelece

71 Nessa visão conclusiva, não poderia deixar de apontar a crítica datada de séculos passados, porém atual na discussão técnico jurídica , se amoldando perfeitamente
nesse pequeno ensaio, que possui como vértice doutrinário o sempre aplaudido Beccaria, onde afirma que “ toda pena, que não derive da absoluta necessidade,
diz o grande Monstesquieu, é tirânica, proposição esta que pode ser assim generalizada: todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da
absoluta necessidade é tirânico. Eis então, sobre o que se funda o direito do soberano de punir os delitos: sobre a necessidade de defender o depósito da salvação
pública das usurpações particulares.” BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. 2ª ed. trad. J. Cretella Jr. e Agnes Cretella: RT, p. 28

242
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

que a liberdade“ consiste em poder fazer tudo o que não prejudica os demais; dessa
forma, a existência dos direitos naturais de cada homem não tem outros limites além
daqueles que asseguram aos demais membros da sociedade o gozo desses mesmos
direitos. Esses limites não podem ser determinados senão por lei”.

11.

A conclusão final, infelizmente, não se mostra objetiva, até porque seria um verdadei-
ro ato de romantismo ilusório. Assim, mais coerente e honesto com o leitor devemos
indagar, através de um passeio à discussão técnica-jurídica, versus a uma situação
moral-política da norma repressora em alusão, enfocando o simbolismo artificial do
bem jurídico tutelado pelo uso de entorpecente: qual o verdadeiro bem jurídico tu-
telado pelo dispositivo em questão? Qual o dano penal ocorrido em decorrência da
conduta de usar substância entorpecente? Qual o interesse lesionado? Quais são os
verdadeiros interesses protegidos pela norma criminalizante em questão? Não seria
uma tentativa de retorno a uma vigilância permanente pelo Estado intervencionista a
determinadas condutas, como retrocesso ao panoptycom benthaniano? Por fim, qual
a real função desta norma jurídica repressora?

243
O SIMBOLISMO ARTIFICIAL DO BEM JURÍDICO CRIMINALIZADO PELO USO DE ENTORPECENTE:
UMA VISÃO PANÓPTICA

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245
I N O VAÇÃO L EGIS LAT I V A
NO USO DE
EN TORPECEN T ES

DIANTE DE UMA
VISÃO PROCESSUAL

TEXTO PUBLICADO ORIGINARIAMENTE:

Inovações Legislativas do Uso Drogas diante de uma visão processual: nova medida
despenalizadora. In Boletim IBCCRIM., v. Janeir, p.07 - 08, 2007.
INOVAÇÃO LEGISLATIVA NO USO DE ENTORPECENTES DIANTE DE UMA VISÃO PROCESSUAL

Diante da grave crise criminógena que estamos passando, mais um diploma legal foi
editado levando a revogação das Leis 6.368/76 e 10.409/02 face ao advento da Lei
11.343/06 que regulamenta o aspecto penal e processual penal dos crimes relaciona-
dos com entorpecentes, produzindo os devidos efeitos a partir do dia 08 de outubro
do corrente ano.

Mais uma oportunidade em que foi editada uma norma legal, sem os devidos
cuidados com a boa técnica legislativa, o que fomenta diárias discussões acadêmicas
para a aplicabilidade da norma aos casos concretos. A ausência de sistematização leva
a divergência quanto à própria eficácia da norma e, principalmente, adequação jurídi-
ca de alguns institutos, em especial o delito de uso de entorpecente previsto no artigo
28 do novo Diploma Legal.

Certo é que a inovação legislativa não afasta a antiga estigmatização social, dei-
xando transpassar o verdadeiro objetivo de alguns dispositivos legais: a permanência
de um controle social. Esse aspecto é facilmente demonstrado pela retirada da pena
privativa de liberdade para uso de entorpecente e o incremento da sanção penal para
o comércio ilícito dessas substâncias, a partir do fato em que para determinar se a dro-
ga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substân-
cia apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias
sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. (art. 28, §2º).

Já tivemos a oportunidade de enfrentamento do tema quando se discutia a lesi-


vidade do uso de entorpecente ainda previsto no artigo 16 da Lei 6368/76. Portanto,
confunde-se o bem jurídico tutelado pelo uso de entorpecente, mas neste momento, não
como sendo individual ou coletivo, mas sim, se efetivamente eficaz (funcional), no seu as-
pecto amplamente político de estigmatização e ilusória estabilidade da ordem “pública” (ou
seria melhor: ”da ordem” publicada) ou de aplicação à origem da lesividade como substra-
to jurídico de controle através da incriminação.1

O dispositivo em alusão leva à síntese de que havendo circunstâncias sociais e


pessoais favoráveis ao indivíduo o mesmo restará sancionado apenas por simples
advertência sobre os efeitos das drogas (art. 28, I) e, para garantia da reprimenda, tal-
vez a aplicação de admoestação verbal. Por outro lado, se aquelas condições sociais e
pessoais não forem favoráveis a outro indivíduo, restará condenado à pena de cinco
anos no mínimo, sendo vedada a conversão em pena restritiva de direitos, concessão
da liberdade provisória (art. 44) e a impossibilidade de recorrer sem recolher-se a pri-
são, salvo se favoráveis o paradigma etiológico do mesmo (art. 59). É nesse sentido,

247
INOVAÇÃO LEGISLATIVA NO USO DE ENTORPECENTES DIANTE DE UMA VISÃO PROCESSUAL

que se demonstra a permanência da estigmatização social aplicado ao Direito Penal,


principalmente, naqueles temas em que a violência restou vulgarizada como é trata-
do pelas drogas ilícitas.

Deverá, portanto, o julgador analisar com maior sensibilidade a admissibilidade


da pretensão condenatória, fundamentando com rigor a decisão de recebimento ou
rejeição da denúncia (art. 93, IX, CF e art. 54, §4º, L. 11.343/06). O simbolismo necessá-
rio desta decisão reflete em máxima importância para impedir que a estigmatização
individual ultrapasse a barreira do razoável – o que deve ser conjeturado no caso con-
creto, é o afastamento da situação pessoal (restabelecimento claro do direito penal do
autor); mas uma aferição sobre a real conduta do indivíduo (direito penal do fato). É o
que se espera dos nossos interpretadores e aplicadores do Direito.

[1]
NATUREZA DO TIPO PREVISTO
NO ARTIGO 28:

MEDIDA DESPENALIZADORA

OU DESCARCERIZADORA?

Interpretando o novo diploma legal, a doutrina pátria já iniciou entendimento sobre a


natureza jurídica do atual uso de entorpecente sem autorização legal ou regulamen-
tar. Uma conclusão resta incontroversa: não houve qualquer legalização das “drogas”.

Interpretando o texto em questão, principalmente as sanções a ele cominadas,


torna-se necessária a adequação da sua real natureza, que refletirá efeitos diretos ao
aspecto processual. Assim, a dúvida a ser empregada é se o novo diploma legal despe-
nalizou, descriminalizou ou descarcerizou o uso de substância entorpecente.

A medida despenalizadora é aquela através da qual se adota institutos alternati-


vos de natureza penal ou processual que visa dificultar ou evitar a aplicação de pena
ou mesmo sua execução. Não haverá a retirada do caráter ilícito da conduta, o que
se realiza é justamente uma redução do modelo repressivo quando diante de alguns
requisitos autorizadores. Podem-se exemplificar tais medidas através da composição

248
INOVAÇÃO LEGISLATIVA NO USO DE ENTORPECENTES DIANTE DE UMA VISÃO PROCESSUAL

civis dos danos; transação penal e suspensão condicional do processo institutos pre-
vistos na Lei 9.099/95.

Já a medida descriminalizadora retira o próprio caráter criminoso da conduta. Não


mais haverá competência criminal para a análise da conduta. A partir da descriminali-
zação poderá perdurar a característica ilícita, afastando apenas, a incidência criminosa
da conduta. Forma-se, portanto, uma conduta penalmente irrelevante, na medida em
que haverá a sua desqualificação como crime.2

Por sua vez, a descarcerização indica a permanência da figura criminosa, bem como
a incidência de sanção penal. Apenas objetiva o afastamento da aplicação da pena pri-
vativa de liberdade face à mínima necessidade interventiva do Estado.

A crítica permanente da pena privativa de liberdade leva a demonstração da sua


completa ineficácia, resultando na construção de medidas alternativas que melhor se
adaptam à ressocialização do condenado. Essas medidas poderão ser exemplificadas
através das penas alternativas instituídas pela Lei 9.714/98 que alterou o texto dos ar-
tigos 44 e seguintes do Código Penal e outras eleitas pelo Legislador, o que resume na
discussão traçada.

Diante das medidas caracterizadas, uma interessante orientação é veiculada pelo


Ilustre Professor Luiz Flávio Gomes quando indaga e afirma que “em relação ao usuário
e/ou dependente de drogas, a nova lei de tóxicos não mais prevê a pena de prisão. Isso sig-
nifica descriminalização, legalização ou despenalização da posse de droga para consumo
pessoa? A resposta que prontamente deve dar reside na primeira alternativa (descrimina-
lização). A posse de droga para consumo pessoal deixou de ser ‘crime’. De qualquer modo,
como veremos em seguida, a conduta descrita continua sendo ilícita (uma infração, mas
sem natureza penal). Isso significa que houve tão-somente a descriminalização, não conco-
mitantemente a legalização”.3

Ousando discordar do Ilustre Professor, entendemos que a medida prevista no


art. 28 não passa de medida descarcerizadora, uma vez que somente assim consegui-
remos adequá-la ao aspecto processual penal. Outra interpretação levará não apenas
a uma medida sui generis, mas a inovação de um devido processo (i)legal.

249
INOVAÇÃO LEGISLATIVA NO USO DE ENTORPECENTES DIANTE DE UMA VISÃO PROCESSUAL

[2]
ADEQUAÇÃO DA NATUREZA
DO USO DE ENTORPECENTE

AO ASPECTO PROCESSUAL

2.1.
Do juiz natural:

A impossibilidade de aplicação da abolitio criminis através da descriminalização já res-


taria afastada pelo reconhecimento do juiz natural para processar e julgar esta condu-
ta. O artigo 48, §1º descreve a aplicação da Lei 9099/95, devendo os fatos ser julgados
perante o juizado especial criminal. Ora, o artigo 98, I da Constituição da República é
claro em apontar que será da competência dos juizados especiais criminais o proces-
samento e julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo. Portanto,
caso entendêssemos que o uso de entorpecentes não mais figurasse como conduta
criminosa seria de plano afastada a competência dos juizados especiais criminais,
bem como a inaplicabilidade das medidas previstas na Lei 9099/95.

Não resta dúvida que o Legislador Constituinte entendeu necessário reduzir a


aplicação da repressão penal. A regulamentação desta intenção ocorreu em 1995 ins-
tituindo uma norma eminentemente dialogal e consensual. Contudo, não houve o
afastamento da natureza penal das condutas, restando classificadas as infrações pe-
nais de menor potencial ofensivo àquelas caracterizadas pelo artigo 61 da Lei 9099/95
com nova roupagem instituída pela Lei 11.313/06.

A competência do juizado especial criminal, portanto, é fixada na própria Cons-


tituição. E, caso não reconheçamos que o uso de entorpecente figura como conduta
criminosa, a primeira medida a seguir é a declaração da inconstitucionalidade do ar-
tigo 48, §1º da Lei 11.343/06.

2.2.
Da medida constritiva:

O artigo 48, §2º afirma que para as condutas previstas no art. 28 da Lei em comento não
se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado
ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer. Na-

250
INOVAÇÃO LEGISLATIVA NO USO DE ENTORPECENTES DIANTE DE UMA VISÃO PROCESSUAL

turalmente, esse compromisso deverá ser assumido em sede policial, caso ausente a
autoridade judicial.

A continuação da matéria é observada no parágrafo 3º quando veda a detenção


do agente. Uma coisa é certa: não haverá prisão em flagrante, até porque, feriria o
devido processo legal substancial se houvesse a possibilidade da constrição cautelar,
quando ao final não fosse possível aplicação de pena privativa de liberdade.

Contudo, nossa Constituição vedou a possibilidade de prisão administrativa (art.


5º, LXI), salvo aquelas previstas no texto constituinte originário. Não haverá prisão cau-
telar, até porque não ocorrerá a instauração do inquérito policial através da lavratura
do auto de prisão em flagrante. Autorizar, porém, uma captura e conseqüente condu-
ção à autoridade policial ou judicial pela prática de uma conduta não criminosa, resul-
taria na intervenção do Estado contra o indivíduo de forma abusiva. Se houve descrimi-
nalização¸ a única saída para a aplicação de medidas sancionatórias seria a anotação
da qualificação pessoal do indivíduo para remessa à autoridade administrativa ou ao
juízo competente (não-penal).

2.3.
Da ritualística procedimental:

Ainda pelo texto do artigo 48, §1º impõe-se a aplicação do procedimento previsto na
Lei 9099/95.

Havendo a “captura” do autor do fato, será imediatamente lavrado termo circuns-


tanciado. Esse procedimento administrativo configura uma substituição lógica do in-
quérito policial diante das infrações penais de menor potencial ofendido seguindo os
princípios atinentes da Lei 9099/95 (simplicidade, informalidade e economia). Constitui,
portanto, peças de informações que visam apuração da autoria e materialidade deli-
tiva. O objetivo final desse procedimento é a formação da opinio delicti da acusação.
A ausência da conduta criminosa pelo uso de entorpecente afastaria a necessidade de
instauração de instrumento de investigação, até porque, tornaria desnecessária qual-
quer apuração sobre a potencialidade criminosa da conduta pelo ministério público.

Seguindo ainda a ritualística da Lei 9099/95, quando houver a formação da opinio


delicti do ministério público será oferecida e aplicada a transação penal (art. 76) – na-
turalmente vinculada às sanções previstas no art. 28 da Lei 11.343/06. Essa medida
ocorre face ao princípio da obrigatoridade da ação penal, portanto, deve estar presen-

251
INOVAÇÃO LEGISLATIVA NO USO DE ENTORPECENTES DIANTE DE UMA VISÃO PROCESSUAL

te a pretensão penal. Caso contrário, a solução legal será o requerimento do arquiva-


mento das peças de informação.

Não havendo a aplicação da medida despenalizadora em questão, o ministério pú-


blico deverá oferecer denúncia (art. 77, L. 9099/95). Não resta dúvida de que esta petição
inicial deve estar embasa pela pretensão penal para a processualização da pretensão
condenatória, até porque, instrumentalizada pelo titular da pretensão penal (art. 129, I,
CRFB). Nessa linha de raciocínio, apenas será possível o início de uma ação penal, quan-
do estivermos diante das suas condições, tendo como primeira e principal, a possibili-
dade jurídica do pedido através da prática de conduta contrária ao direito repressor.

Em suma, não restam dúvidas de que a obrigatoriedade ministerial que possui


atribuição para atuar perante o Juizado Especial Criminal se restringe às condutas
criminosas, ainda que não haja aplicação de pena privativa de liberdade. O contrário
levaria a uma interpretação teratológica: o início de uma ação penal que buscasse a
demonstração da prática de uma conduta não-penal, contrariando a classificação das
ações (penais, apenas para pretensão penal).

[3]
DO PRINCÍPIO DA

INTRANCEDÊNCIA

O artigo 5º, inciso XLV da Constituição da República textualiza a impossibilidade da


sanção penal passar da pessoa do condenado. Essa vedação constitucional torna-se
exclusiva para a reprimenda penal, podendo ser cobrado dos herdeiros, eventuais da-
nos ou indenizações administrativas e civis, até o quinhão da herança.

O afastamento da natureza penal do uso de entorpecente poderia levar a execu-


ção da pena de multa prevista no artigo 28, §6º, II aos herdeiros do autor do fato, caso
houve descumprimento da pena e seu falecimento, burlando o princípio da intrancen-
dência da pena.

252
INOVAÇÃO LEGISLATIVA NO USO DE ENTORPECENTES DIANTE DE UMA VISÃO PROCESSUAL

COMO SE FOSSE UMA CONCLUSÃO

A nova Lei de prevenção e repressão aos crimes ligados a entorpecente efetivamente


inovou quando afastou a aplicação de pena privativa de liberdade, instituindo apenas
sanções penais que possui verdadeira evidência sócio-educativa.

Não nos parece, no entanto, o reconhecimento da despenalização do uso de en-


torpecente, e sim uma verdadeira descarcerização, o que se aproxima de uma mínima
intervenção do Estado quanto à liberdade, quando necessária a aplicação de medidas
terapêuticas para efetividade do controle individual dos dependentes de drogas.

Também não nos parece adequado a interpretação exegética do artigo 1º Da Lei


de Introdução ao Código Penal, uma vez que naquela época a intervenção corporal
era a regra face ao modelo inquisitório que se evidenciava. Novas medidas foram cria-
das para uma adequação social, principalmente as penas alternativas que inspirou a
reforma dos artigos 44 e seguintes do Diploma Legal. Nesse sentido, a inovação da Lei
11.343/06 merece sistemática interpretação, não podendo restar presa à leitura de
texto editado em época ditatorial.

Afirmar a descriminalização dessa conduta levará a alguns desvios sociais e nor-


mativos. A reação midiática que já iniciou poderá retratar uma vulgarização da condu-
ta, afirmando que se pode, indiscriminadamente, usar substâncias entorpecentes, até
porque “não é mais crime”.

Portanto, para adequação constitucional, bem como para efeitos de seriedade na


aplicação de todo o sistema processual penal, não nos resta alternativa senão reco-
nhecermos que a inovação do artigo 28 da Lei 11.343/06 apenas indica uma medida
descarcerizadora, permanecendo o caráter penal da conduta com aplicação de todos
seus efeitos sociais e normativos.

Esperamos tão somente, que os aplicadores do direito não deixem de reconhecer


a responsabilidade do seu múnus. A sensibilidade e razoabilidade devem estar presen-
tes para adequarmos esse novo Diploma Legal ao Estado Democrático (Constitucional)
de Direito, na eterna e fundamental busca da dignidade da pessoa humana.

253
LA DEF EN S ORIA PÚB LI CA
IN BRAS IL E E

L A PROTEZIONE
DEI DIRITTI
FONDAMENTALI

TEXTO PUBLICADO ORIGINARIAMENTE:

La ‘Defensoria Pública’ in Brasile e la protezione dei diritto fondamentali. Rivista di


Criminologia, Vittimologia e Sicurezza, v.X, p.82 - 94, 2016.
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

INTRODUZIONE

Questo articolo intende presentare una semplice panoramica della Defensoria Pública
in Brasile, a partire dalle sue attribuzioni costituzionali con il tentativo di adattarla alla
visione moderna di accesso a un sistema giuridico giusto.

Pertanto, la questione dell›accesso alla giustizia diventa importante quando si è


di fronte alla necessità di ricercare miglioramenti agli strumenti appropriati per la re-
alizzazione di questo diritto fondamentale. Nelle parole di Barbosa Moreira, «l›acces-
so alla giustizia è attualmente una garanzia fornita nella maggior parte dei sistemi
giuridici, ovvero nella maggior parte delle costituzioni moderne. E, naturalmente, non
possiamo accontentarci di una garanzia che sia collocata sul nel piano puramente for-
male, nominale. A nulla varrebbe scrivere nella Costituzione il principio che ognuno ha
il diritto di agire in giudizio, se non ci si prendesse cura di pensare al problema di chi,
pur sentendo questa necessità, non ha i mezzi per finanziare la sua azione. Alcuni han-
no detto ironicamente: la giustizia, così come l’Hotel Ritz, è aperta a tutti. È necessario
che si assicuri concretamente la possibilità di accesso, non all’Hotel Ritz, che diciamo
la verità, è superfluo, ma alla giustizia, che non è così superflua. “1

Di fronte a una analisi contemporanea della effettività dei diritti fondamentali e


per garantire la difesa di questi diritti, si può dire che il problema dell’accesso alla
giustizia e delll›assistenza giuridica in sé non è rilevante solo in campo giuridico, ma
è direttamente correlato allo stesso ideale democratico2 e alla participazione di tutti i
cittadini al miglioramento della società moderna.

Quindi, perché sia riconosciuta la dignità umana, è importante la creazione di un


meccanismo indipendente per la protezione della persona e per garantire la possibilità
di difenderne i diritti3.

1 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O direito à assistência jurídica. In Revista de Direito da Defensoria Pública. n. 5, 1991, p. 123.

2 LOPES, Marina Magalhães. A legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ação civil pública: uma revisão do conceito de necessitados. In Revista de
Direito da Defensoria Pública. n. 22, 2007, p.223.

3 Anche perchè, la non effetività dell’acesso alla giustizia comporta la distruizione della personalità giuridica della persona. Cf. GUIMARÃES, João Luís Amoêdo.
Direito e ordenamento jurídico democrático: um estudo sobre a importância do “acesso à justiça” como garantia da “personalidade jurídica”. In Revista de Direito da
Defensoria Pública. n. 20, 2007, p. 155s.

255
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

Come ha avvertito Norberto Bobbio il problema fondamentale in materia di diritti


umani oggi non è tanto di giustificarli, ma di proteggerli. Questo non è un problema
filosofico, ma giuridico, e in più largo senso, politico.4

In questa linea, la Costituzione del Brasile nell›articolo 5o, LXXIV esige che lo Stato
fornisca assistenza giuridica integrale e gratuita a coloro che dimostrano risorse
insufficienti.

In questo contesto, si caratterizza l›assistenza giuridica integrale e gratuita alle


persone che non hanno risorsi adequate (giuridico e economico) come un diritto e
una garanzia fondamentale della cittadinanza e la Costituzione impone direttamente
al Governo il dovere irremovibile di fornirla.

Come norma costituzionale, la Defensoria Pública è stata stabilita come l’organo


statale che adempie al dovere costituzionale dello Stato di fornire piena assistenza
giuridica e gratuita alla popolazione che non ha i mezzi finanziari per pagare i costi di
questi servizi, determinando che la Defensoria Pública sia installata in tutto il paese.

Questo dovere costituzionale è disciplinato dall›articolo 134 della Costituzione


brasiliana il quale afferma: La Defensoria Pública è un’istituzione permanente,
indispensabile per la funzione giurisdizionale dello Stato, essendo suo dovere
fondamentali, come espressione e strumento del regime democratico, la consulenza
giuridica, la promozione dei diritti umani e la difesa, in tutti i gradi, giudiziari ed
extragiudiziali, dei diritti individuali e collettivi, in forma integrale e gratuita, ai bisognosi,
in conformità con l’articolo 5, LXXIV di questa Costituzione”.

Si noti che l›assistenza giuridica integrale è più di una assistenza giudiziaria,


perché copre oltre alla postulazione o alla difesa in procedimenti giudiziari, anche la
promozione nel settore extragiudiziale e la consulenza legale, vale a dire, l›orientamento
e la consulenza giuridica.

È chiara, quindi, l’importanza della vocazione della Defensoria Pública dato che,
essendo stata istituita come strumento costituzionale a garantire l’assistenza giuridica
a chi ne ha bisogno, lavora per rendere possibile la realizzazione degli altri diritti fon-

4 “No si trata tanto di sapere quali e quanti sono questi diritti, quale sia la loro natura e il loro fondamento, se siano diritti naturali o storici, assoluti o relativi, ma
quale sia il modo più sicuro per garantirli, per impedire che nostante le dichiarazioni solenni vengano continuamente violati. BOBBIO, Noberto. L’Età dei diritti.
Torino: Einaudi, 2014, p. 18.

256
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

damentali di queste persone, esplicitando la funzione strumentale propria dell’istitu-


zione, il cui obiettivo può essere definito come materializzare diritti.5

In questa linea, la Defensoria Pública è l’istituzione fondamentale per la funzione


giurisdizionale dello Stato, ossia è essenziale per la giustizia stessa (art.134 della
Costituzione). Seguendo il significato lessicale del termine “essenziale”, la Defensoria
Pública dovrebbe essere intesa come parte necessaria o indispensabile dell’ordine
costituzionale. Dopo tutto, senza l’attuazione continua ed efficace della Defensoria
Pública, i diritti fondamentali di milioni di persone “deboli” rimarrebbero privi di
protezione giuridica, rappresentando semplici parole gettate sulla carta6.

Con tali parametri istituzionali la Defensoria Pública è costituzionalmente trattata


sullo stesso piano di importanza della Magistratura e del Pubblico Ministero, quindi
con autonomia e indipendenza.

Di conseguenza, l›art. 134, §2 della Costituzione del Brasile prevede che ne sarà
garantita l’autonomia funzionale e amministrativa e l›iniziativa della sua proposta di bilancio.

Senza dubbio, possiamo dire che nella società brasiliana senza la Defensoria Pública
non si concretizzerebbe minimamente il dovere dello Stato di fornire a tutti l’accesso
alla giustizia, così come si ridurrebbero notevolmente i diritti fondamentali previsti
nella nostra Costituzione, come ad esempio l’ampia difesa e il giusto processo, perché
le persone che ne hanno più bisogno non avrebbero modo di difendere tali diritti7.

Dopo le modifiche dello statuto normativo della Defensoria Pública operate dalla
Legge Complementare 132, del 2009, sono fissati alcuni obiettivi in linea con la struttura
costituzionale e democratica.

5 BRITTO, Adriana Silva de. Legitimação para agir nas ações coletivas. In Revista de Direito da Defensoria Pública. n. 20, 2006, p. 36/37.

6 ESTEVES, Diogo e SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 48.

7 In questo senso la Corte Suprema del Brasile ha deciso che ““Defensoria Pública”. Rilevanza. Istituzione permanente ed essenziale per la funzione giurisdizionale
dello Stato. Il difensore pubblico è riconosciuto come l’agente di concretizzazione dell’accesso dei bisognosi all’ordine giuridico. La Defensoria Pública come
istituzione permanente, essenziale per la funzione giurisdizionale dello Stato, si qualifica come strumento di attuazione dei diritti e delle libertà di cui sono
titolari le persone povere e bisognose. É per questo motivo che la Defensoria Pública non può (e non deve) essere trattata di modo irrilevante dal Potere
Pubblico, giacché la tutela giurisdizionale di milioni di persone – povere e bisognose – che soffrono un inaccettabile processo di esclusione giuridica e sociale
dipende dall’adeguata organizzazione ed efficace istituzionalizzazione di questo organo dello Stato. I diritti perdono di valore, e le libertà di significato, se i
fondamenti su cui si basano – oltre a non essere rispettati dal potere pubblico o trasgrediti da soggetti privati – cessano di valere come supporto e appoggio
di un apparato istituzionale, come quello, fornito dalla Defensoria Pública, la cui funzione precipua, in conseguenza della propria vocazione costituzionale (CF,
art. 134), consiste nel conferire efficacia ed espressione concreta, incluso mediante l’accesso dei soggetti deboli alla giurisdizione dello Stato, a questi stessi
diritti quando ne siano titolari persone bisognose, che sono i reali destinatari tanto della norma riportata nell’art. 5o., LXXIV, quanto del precetto previsto
dall’art. 134, entrambi della Costituzione della Repubblica.
Diritto ad avere diritti: una prerogativa di base, che si qualifica come fattore abilitante degli altri diritti e delle altre libertà. Diritto essenziale di chiunque,
soprattutto quelli che non hanno nulla e che hanno molte necessità. Prerogativa fondamentale che mette in evidenza – dirigendosi alle persone bisognose
(Costituzione, l’articolo 5, LXXIV.) – la notevole importanza giuridico-istituzionale e politico-sociale dalla Defensoria Pública. (STF – Pleno – ADI nº 2903/PB –
Relator Min. CELSO DE MELLO, decisão: 01-12-2005).“

257
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

Così è stato stabilito nell’articolo 3o. A-bis della Legge Complementare 80, del 1994
che gli obiettivi della Defensoria Pública sono:

I – il primato della dignità umana e la riduzione delle disuguaglianze sociali;

II – l’affermazione dello stato di diritto democratico;

III – la prevalenza e l’efficacia dei diritti umani; e

IV – garantire i principi costituzionali dell’ampia difesa e dell contraddittorio.

In questo senso, con l’oggettivo con l’obiettivo di effettuare una panoramica più
dettagliata delle funzioni della Defensoria Pública e del suo consolidamento nel quadro
normativo e pratico, è necessario un veloce approccio storico alla comprensione della
sua struttura attuale.

[1]
CONTESTO STORICO – GIURIDICO DELLA

DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE

La prima Costituzione brasiliana che fa esplicito riferimento alla assistenza legale a chi
ne ha bisogno è quella del 1934, che è stata vigente solo per tre anni. All’articolo 113, §32
sottolineava che “l’Unione e gli Stati concedono l’assistenza legale ai bisognosi, creando
a questo scopo organi speciali e garantendo l’esenzione dalle tasse e dalle tariffe”.

Tuttavia, le successive Costituzioni brasiliane (1937, 1946, 1967), nonostante


indicassero la garanzia di assistenza giudiziaria a chi ne ha bisogno, non prevedevano
la creazione di un organo speciale per questo scopo, lasciando questa responsabilità
alle leggi infra-costituzionali.

Soltanto nella Costituzione del 1988 (attuale Costituzione brasiliana), oltre a fornire
la garanzia di accesso alla giustizia ai bisognosi, si riconosce espressamente la Defensoria
Pública come l’organo dello Stato che ha questa finalità. (Art. 134)

Tuttavia, importanti e anteriori regole in materia di accesso alla giustizia per i


bisognosi hanno creato la base per il riconoscimento della Defensoria Pública come
istituzione fondamentale per la funzione giurisdizionale dello Stato.

258
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

La disposizione principale sul tema è la Legge 1060, del 5 febbraio 1950 che ha
istituito l’assistenza giuridica alle persone bisognose che non hanno mezzi finanziari
per pagare le spese processuali e l’onorario dell’avvocato.

Il 21 luglio 1954 sono stati creati nello stato di Rio de Janeiro i primi incarichi per
difensori pubblici nell’ambito della “Procuradoria Geral de Justiça”, dalla Legge dello
Stato 2.188/54, che hanno costituito il seme della Defensoria Pública in questo Stato e
in tutto il Brasile.

L’implementazione dei servizi di assistenza giudiziaria a livello federale si è avuta


nel 1958 con la Legge Federale n. 3.434 / 58, ed essi sono stati forniti dai difensori
pubblici occupanti la classe iniziale della carriera del Pubblico Ministero Federale.

Nel 1977, la Legge Complementare 06 dello Stato di Rio de Janeiro, istituzionalizza


in questo stato la Defensoria Pública come un organo ufficiale e autonomo per la
realizzazione dell’assistenza giudiziaria a chi ne ha bisogno, essendo separata del
Pubblico Ministero.

Fu da questo modello creato dallo Stato di Rio de Janeiro, con attuazione autonoma e
indipendente, che ha tratto ispirazione il consolidamento costituzionale della Defensoria
Pública come organo essenziale alla giustizia (art. 134, Costituzione del 1988), che
ha il compito di fornire assistenza giuridica integrale e gratuita per tutti coloro che
dimostrano risorse insufficienti (art. 5, LXXIV).

In questo contesto, si può dire che la Defensoria Pública è nata nel 1954 nello Stato di
Rio de Janeiro, essendo espressamente riconosciuta dalla Costituzione brasiliana come
organo essenziale per la giustizia nel 1988, e attualmente organizzata in quasi tutto il
territorio brasiliano, con la sua Legge Organica (Legge Complementare 80, dal 1994) che
ne garantisce l’autonomia e l’indipendenza davanti alle altre istituzioni dello Stato.

1.1
Difensori Pubblici

Va notato che il sistema giudiziario brasiliano è diviso in istituzioni autonome e


indipendenti, e pertanto non vi è tra di esse alcun collegamento o relazione gerarchica
amministrativa, finanziaria e funzionale.

Così è costituito dalla magistratura, attiva in tutto il territorio nazionale, con


autonomia e indipendenza operative (artt. 92-126, Costituzione).

259
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

In un’altra sezione, l’articolo 127 della Costituzione stabilisce che il pubblico


ministero è un’istituzione permanente, indispensabile per la funzione giurisdizionale
dello Stato, ed è suo dovere difendere l’ordine giuridico, il regime democratico e gli
interessi sociali e individuali indisponibili.

L’articolo 133 della Costituzione regola l’avvocatura privata, affermando che


l’avvocato è indispensabile per l’amministrazione della giustizia ed è inviolabile per i
suoi atti o manifestazioni nell’esercizio della professione, nei limiti della legge.

Infine, come già riferito, la Costituzione brasiliana istituisce nelll’articolo 134 la


Defensoria Pública, come istituzione autonoma e indipendente, senza alcun vincolo con
la magistratura, il pubblico ministero o l’avvocatura.

L›ammissione come difensore pubblico avviene attraverso un concorso pubblico


di prove e titoli e fornisce ai suoi membri la garanzia di irremovibilità, essendo vietato
esercitare l’avvocatura fuori dai compiti istituzionali.

Nonostante tali parametri istituzionali riservino alla Defensoria Pública


un trattamento costituzionale sullo stesso piano di importanza della magistratura
e dell pubblico ministero8, con lo stesso grado di difficoltà per accedere alla carriera
(simile concorso pubblico) e salari simili, non si può confondere il Difensore Pubblico
con il magistrato e con procuratore del pubblico ministero.

[2]
LE ATTRIBUZIONI DELLA

DEFENSORIA PÚBLICA

Si potrebbe pensare che la Defensoria Pública brasiliana attui solo sulla difesa penale
degli imputati. Questo non è vero.

L’area di intervento della Defensoria Pública è ampia e riguarda tutte le questioni


relative ai conflitti giurisdizionali, comprese eventuali azioni contro Persone Giuridiche
di Diritto Pubblico (art. 4o, Complementare Legge 80, 1994). Così è previsto dall’articolo

8 Per la realizzazione dell’equità processuale con il Pubblico Ministero, afferma l’art.3º, § 7, Legge Complementare 80 del 1994, modificata dalla Legge
Complementare 132 del 2013, che “ai membri della Defensoria Pública è garantito sedersi nello stesso piano del Pubblico Ministero. “

260
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

4o., V, della Legge Organica n. 80, del 1994, sono funzioni istituzionali della Defensoria
Pública, tra le altre : esercitare, dopo aver ricevuto gli atti del processo, l’ampia difesa e il
contraddittorio in favore di persone fisiche e giuridiche in procedimenti amministrativi
e giudiziari, davanti a tutti gli organi e in tutte le istanze, ordinaria e straordinaria,
utilizzando tutte le misure appropriate per fornire una difesa adeguata ed efficace dei
loro interessi.

Per garantire l’accesso alla giustizia in tutto l’ambito giurisdizionale, è sufficiente


la qualità di “debole finanziario” o giuridico, sicché il cittadino brasiliano e straniero, che
versa in tale qualità finanziaria, avrà il diritto di avvalersi della Defensoria Pública.

Si definisce “debole finanziario9” il cittadino o straniero residente in Brasile, che


non è in condizione di pagare le spese processuali e l’onorario dell’avvocato senza
pregiudicare il mantenimento suo e della sua famiglia10. Tale condizione viene misurata
attraverso semplice dichiarazione e può essere contestata dalla controparte11. In caso
di falsa dichiarazione, la parte che ha affermato di essere “debole finanziario” pratica, in
teoria, il reato di falso ideologico così come previsto nell’articolo 299 del Codice Penale.

È interessante notare che le persone giuridiche hanno anche il diritto all’assistenza


giuridica integrale e gratuita. In tali casi, non è sufficiente la semplice autodichiarazione,
ma è necessaria una prova di mancanza di risorse.12

Alla Defensoria Pública spetta anche la difesa dell’accusato durante tutto il processo
criminale e l’accompagnamento dello svolgimento della pena di chi è stato condannato.

Va ricordato che, nella difesa nell’area criminale, in virtù del principio costituzionale
dell’ampia difesa, chiunque può avere la sua difesa patrocinata dalla Defensoria Pública,
anche se ha una buona posizione finanziaria e può permettersi l’onorario dell’avvocato.
La semplice assenza della difesa tecnica di un avvocato privato di fiducia, determina
l’intervento della Defensoria Pública13.

9 La parola tecnica in portoguese sarebbe “hipossuficiente”.

10 Art. 2º, Lei 1.060, de 1950.

11 Art. 2º, Lei 1.060, de 1950.

12 Secondo l’articolo 4o., sono funzioni istituzionali della Defensoria Pública, tra le altre: V – esercitare l’ampia difesa e il contraddittorio in favore di persone fisiche
e giuridiche nei procedimenti amministrativi e giudiziari, dinanzi a tutti gli organi e in tutte le istanze, ordinarie o straordinarie, utilizzando tutte le misure
capaci di fornire l’adeguata ed efficace difesa dei loro interessi.

13 Art. 4o., della Legge Complementare n. 80, del 1994. Sono funzioni istituzionali della Defensoria Pública, tra le altre: XIV – monitorare le indagini investigative,
compreso con la comunicazione immediata dell’arresto in flagrante da parte della polizia, quando il detenuto non ha un avvocato.

261
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

In difesa degli interessi individuali e collettivi sarà funzione della Defensoria


Pública l’azione diretta nella difesa delle persone in situazioni di vulnerabilità14. A
tale scopo, ad esempio, sono stati creati nuclei specializzati per la difesa di anziani,
persone con disabilità, donne vittime di violenza domestica e familiare, bambini e degli
adolescenti (all’interno di ogni sistema di detenzione di adolescenti, operano Difensori
Pubblici), il Nucleo del sistema penitenziario (i Difensori Pubblici funzionano in tutte
le carceri, verificando i diritti di esecuzione penale)15, il Nucleo della Difesa dei Diritti
Umani, il Nucleo di Terre e Abitazione, il Nucleo di Difesa dei Consumatori, ecc.

L’articolo 4o. della Legge Organica n. 80, del 1994, dispone inoltre sono funzioni
istituzionali della Defensoria Pública è qualla di fornire una guida giuridica e garantire
l’esercizio della difesa di chi ne ha bisogno, a tutti i livelli giurisdizionali. Ossia la sua
attribuzione si estende a tutti gli organi di primo grado di giurisdizioni, ai tribunali di
appello e anche davanti alla Corte Superiore di Giustizia (STJ) e alla Corte Suprema (STF).

[3]
L’ATTIVITÀ EXTRAGIUDIZIALI DELLA

DEFENSORIA PÚBLICA

Un’osservazione importante riguarda il ruolo della Defensoria Pública in Brasile. Dato


che si caratterizza come istituzione fondamentale per la funzione giurisdizionale dello
Stato, la Defensoria Pública non solo ha l’incarico giudiziario, ma anche una serie di
attribuzioni extragiudiziali.

Infatti, deve essere esaminato il concetto di assistenza giuridica e assistenza


giudiziaria.

L’assistenza giudiziaria si verifica nella pratica di atti processuali davanti al Potere


Giudiziario, con la esenzione dei costi e degli onorari degli avvocati per coloro che non
hanno condizione di pagarli.

14 Come previsto dall’art.4o., della Legge Complementare n. 80 del 1994, sono funzioni istituzionali della Defensoria Pública, tra le altre: XI – esercitare la difesa
degli interessi individuali e collettivi dei bambini e degli adolescenti, degli anziani, dei disabilii, delle donne vittime della violenza domestica e familiare e degli
altri gruppi vulnerabili che richiedono una speciale protezione dello Stato.

15 Dispone l’art. 4o., della Legge Complementare n.80 del 1994, che sono funzioni istituzionali della Defensoria Pública, tra le altre :. XVII – attuare negli stabilimenti
di polizia, nelle carceri e nell’internamento degli adolescenti, al fine di garantire alle persone, in tutti i casi, l’esercizio pieno dei loro diritti e delle garanzie
fondamentali.

262
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

Invece l’assistenza giuridica riguarda gli atti professionali realizzati dalla Defensoria
Pública in tutta la sua estensione, che possono essere extragiudiziali e giudiziali16.

Quindi la Legge Organica della Defensoria Pública stabilisce che una delle sue
funzioni istituzionali è quella di promuovere, prioritariamente, la composizione
extragiudiziale delle liti, ricercando l’intesa benevola tra le persone in conflitto di
interesse, attraverso la mediazione, la conciliazione, l’arbitraggio e altre tecniche di
composizione e amministrazione dei conflitti. (art. 4o, II, LC 80, 1994)

Uno degli esempi importanti in questo senso riguarda l’installazione dei Nuclei di
Difesa dei Consumatori che realizzano le composizioni tra le persone e le aziende.

La tutela della difesa dei consumatori da parte della Defensoria Pública nel quadro
extragiudiziale è di grande importanza e necessità perché questa fornisce orientamento
ai consumatori che ne hanno bisogno (nel senso giuridico) riguardo alle conseguenze
giuridiche della celebrazione di un particolare contratto o effettua audizioni conciliatorie
tra consumatori “deboli” e le aziende, con l’obiettivo di ottenere una soluzione amichevole
della eventuale controversia.

[4]
L’ATTUAZIONE NELLE

TUTELE COLLETTIVE

Con il sorgere della necessità di ampliare la regolazione dell’azione collettiva, si è


affermato un nuovo campo del diritto, il diritto processuale collettivo, che ha imposto
la modernizzazione delle attribuzioni della Defensoria Pública, con il progressivo
superamento di una logica fortemente individualista a favore di una razionalità collettiva,
a partire dal solidarismo giuridico e dall’estendersi del fenomeno della carenza17.

Pertanto, contrariamente a quanto si potrebbe pensare, la Defensoria Pública opera


non solo nei singoli rapporti giurisdizionali, ma anche nelle azioni collettive.

16 GALLIEZ, Paulo Cesar Ribeiro. Distinção entre assistência judiciária e assistência jurídica. Patrocínio da Defensoria Pública em favor de pessoa jurídica. In Revista de
Direito da Defensoria Pública. n. 20, 2006, p. 218.

17 GARCIA, José Augusto. Solidarismo Jurídico: Acesso à Justiça e Funções Atípicas da Defensoria Pública. In Revista de Direito da Associação dos Defensores Públicos
do Estado do Rio de Janeiro. Vol. I, 2003, p. 151. In realtà, la nuova razionalità fissata nella Defensoria Pública si propone di pluralizzare le funzioni istituzionali.
Cf. GARCIA, José Augusto. O destino de Gaia e as funções constitucionais da Defensoria Pública: ainda faz sentido (sobretudo após a edição da Lei Complentar 132/09)
a visão individualista a respeito da instituição? In Revista de Direito da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. n.25, 2012, p. 235.

263
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

Nella congiuntura attuale, ciò che si osserva è il crescente numero di “soggetti deboli”
nella società, soprattutto nei paesi in via di sviluppo. Questa “debolezza” non riguarda
solo i beni materiali della vita moderna, ma anche quelli più necessari per soddisfare
il riconoscimento come cittadino.

Con obiettivo dell’’accesso alla giustizia, la missione della Defensoria Pública


consiste nella consulenza giuridica dei giuridicamente bisognosi, spesso socialmente
esclusi, per fare valere i loro diritti davanti al Potere Giudiziario. Tuttavia, essa non si
limita solo alla soddisfazione di un interesse personale o individuale. Nel compiere
la sua missione la Defensoria Pública svolge un ruolo importante per lo sviluppo e il
consolidamento della democrazia e l’efficacia dei diritti formalmente garantiti nel testo
costituzionale, contribuendo innegabilmente alla protezione e alla realizzazione dei
diritti umani, compreso il rispetto per la dignità della persona umana.

In questo contesto, al di là delle funzioni istituzionali riferite, la Defensoria Pública


deve promuovere azione civile pubblica e tutte le specie di azioni in grado di fornire
una protezione adeguata dei diritti diffusi, collettivi o individuali omogenei quando il
risultato di queste può beneficiare gruppi di persone “deboli”. Inoltre, deve esercitare
la difesa dei diritti e interessi individuali, diffusi, collettivi e individuali omogenei e dei
diritti dei consumatori, in conformità con l’articolo 5o., LXXIV della Costituzione Brasiliana
(art. 4, VIII, LC 80, 1994).

Per cui, nell’ambito della giurisdizione, la difesa del giuridicamente bisognoso deve
essere fatta non solo nei suoi vari gradi, ma soprattutto tenendo in considerazione la
portata del sistema giuridico giusto. Dal punto di vista del processo, l’esigenza dell’efficacia
comporta la possibilità di utilizzare tutti i metodi di composizione dei conflitti di interessi
in cui i bisognosi giuridici figurino come interessati, anche e soprattutto quelli di natura
collettiva. Infine, dal punto di vista del diritto di azione, deve essere ammessa non solo
la promozione delle singoli azioni, ma anche la gestione di azioni collettive e azioni civili
pubbliche, queste ultime necessarie per raggiungere l’efficacia del processo e garantire
ai giuridicamente bisognosi la possibilità di accedere al sistema giuridico giusto18.

Si è verificata nel 200719 un’importante alterazione, che ha incluso la Defensoria


Pública nella lista degli organi legittimati a proporre l’azione civile pubblica. Quindi,

18 SOARES, Fábio Costa. A Defensoria Pública e a Tutela do Consumidor. In Revista de Direito da Defensoria Pública. N. 18, 2003, p. 114/115.

19 C’è stato un cambiamento nella Legge n.7347 del 1985 attraverso la Legge n.11.448, del 2007.

264
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

non è più in discussione la legittimità della Defensoria Pública per la proposizione di


questa azione, ma eventualmente la sua ampiezza.

Sorge la discussione sulla legittimità della Defensoria Pública nelle azioni collettive
quando non vi sono le prove che tutti i membri del gruppo beneficiato siano
economicamente bisognosi.

Così come avverte Marina Lopes, esigere che le azioni collettive proposte dalla
Defensoria Pública siano limitate ai casi in cui i rappresentati siano economicamente
bisognosi significa non solo la violazione del principio di accesso alla giustizia, ma
anche l’irrealizzabilità di qualsiasi azione collettiva proposta da tale istituzione, perché
in pratica è impossibile certificare se tutti titolari di diritti diffusi, collettivi o individuali
omogenei20 sono “soggetti deboli” da un punto di vista economico21.

In una recente decisione la Corte Suprema ha affrontato il tema della costituzionalità


della legittimità della Defensoria Pública nel proporre azioni civili pubbliche che
promuovano la tutela giurisdizionale dei diritti diffusi e collettivi, riconducibili a possibili
beneficiati non in condizione di “bisogno” finanziario, nella misura in cui i diritti diffusi
e collettivi sarebbero transindividuali e indivisibili22.

Così, diventa reale la legittimità della Defensoria Pública in virtù della legge brasiliana
attuale, che assicura un’ampia tutela degli interessi collettivi e l’efficacia dell’accesso
alla giustizia attraverso un’operatività caratterizzata non solo dalla logica individuale.

Non si può trascurare la necessaria e quotidiana tutela individuale effettuata dalla


Defensoria Pública brasiliana, ma in conseguenza della logica della protezione sociale e

20 Sono riconosciuti come diritti individuali omogenei quelli che si basano sulle stesse circostanze di fatto, e essendo i loro titolari determinati o almeno determinabili,
distinguendosi precisamente su questo punto dai diritti diffusi, che si basano anche sulle stesse circostanze di fatto, ma i loro titolari sono indeterminabili.
PINHO, Humberto Dalla Bernardina. A legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ações civis públicas: primeiras impressões e questões controvertidas.
In Revista de Direito da Defensoria Pública. n. 20, 2007, p. 149.

21 LOPES, Marina Magalhães. A legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ação civil pública: uma revisão do conceito de necessitados. In Revista de
Direito da Defensoria Pública. n. 22, 2007, p. 232. Per exempio, è stata proposta un›azione civile pubblica da parte della Defensoria Pública dello Stato di Minas
Gerais per garantire l’accesso alla scuola dell’infanzia dato che nel comune di Belo Horizonte ci sono oltre 120.000 bambini in questa fascia di età, ma il Comune
ha la capacità di soddisfare solo il 32% di questa domanda. Pertanto, sono realizzati sorteggi per garantire i posti nelle scuole per la infanzia.
La Defensoria Pública ha richiesto che al Comune sia imposto l’obbligo di fornire i posti necessari a tutti i bambini iscritti nel bando di accesso alla scuola
dell’infanzia, ponendo fine al metodo del sorteggio di posti con una multa giornaliera per ogni bambino che non abbia la sua richiesta soddisfatta.

22 Plenário do STF, RE 733433/MG, rel. Min. Dias Toffoli, j. 4.11.2015.

265
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

collettiva23, sono funzioni istituzionali l’azione nel campo della protezione ambientale24
dove vi sia violazione del diritto delle persone in situazioni di vulnerabilità, la tutela
dei consumatori, le questioni di salute25, l’educazione, l’abitazione, i conflitti riferenti al
pregiudizio razziale, ecc.

Ossia, la legittimità tipica della Defensoria Pública, oltre alle questioni individuali
(questioni relative ai procedimenti giudiziari tradizionali, come diritto civile, penale,
diritto di famiglia), è legata anche alla difesa dell’interesse collettivo.

[5]
ATTUAZIONE DELLA
DEFENSORIA PÚBLICA DINNANZI
AL SISTEMA INTER–AMERICANO

DI PROTEZIONE DEI DIRITTI DELL’UOMO

In quanto istituzione permanente, essenziale per la funzione giurisdizionale dello


Stato Brasiliano, spetta alla Defensoria Pública promuovere i diritti umani e la difesa,
in tutti i gradi, giudiziari ed extragiudiziali, dei diritti individuali e collettivi (art. 1, Legge
Complementare 80, 1994).

Si può vedere, quindi, che la funzione primaria della Defensoria Pública è la


promozione26 e la protezione dei diritti umani per tutti coloro che ne hanno bisogno,
come regolamentato dalla Costituzione Brasiliana.

23 Esempio di azione collettiva per la tutela dei diritti umani da parte della Defensoria Pública da União in cui ha richiesto l’immediata cessazione delle attività
condotte dall’Esercito Brasiliano in una favela di Rio de Janeiro. In questo caso, i soldati hanno arrestato tre giovani e gli hanno consegnati a una fazione
criminale provocando la loro morte. Dopo l’azione proposta, l’Esercito è stato allontanato da quella comunità costituita principalmente da residenti poveri.

24 Come exempio, nella città di Taubaté, la Defensoria Pública è stata contattata da diverse persone che reclamavano a causa di mali tipicamente ambientali,
come problemi respiratori e cattivo odore, associati alle attività dell’Industria Chimica di Taubaté. Il rapporto del settore ambientale del governo dello Stato di
São Paulo, realizzato dopo la richiesta della Defensoria Pública, ha confermato che l’industria chimica rilasciava clandestinamente sostanze chimiche altamente
nocive per l’ambiente e per la salute umana, come ad esempio il butadiene, una sostanza che può causare gravi danni alla salute, persino con potenziale
cancerogeno. Con queste informazioni, la Defensoria Pública ha proposto un›azione civile pubblica per evitare che l’industria chimica continuasse a gettare nel
sistema idrico di Taubaté, composti estremamente deleteri (Proc. 0015669-47.2012.8.26.0625 ).

25 Preoccupata per il dramma continuo di persone bisognose e gravemente malate che non possono trovare posti per il ricovero in terapia intensiva, la Defensoria
Pública che attua a Campos dos Goytacases (Rio de Janeiro), ha intentato una azione civile pubblica contro il Municipio e lo Stato di Rio de Janeiro. Nell’azione,
è stato invocato il più fondamentale dei diritti umani: il diritto alla vita.

26 Ne consegue la funzione della Defensoria Pública nella diffusione dei diritti umani, non limitandosi solo all’educazione giuridica popolare, ma anche promuovendo
la consapevolezza degli operatori giuridici. BESSA, Renata Tavares da Costa. A Defensoria Pública e os Sistemas Internacionais de Direitos Humanos. In Revista de
Direito da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. n. 25, 2012, p. 136..

266
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

Seguendo la lettura della Legge Organica della Defensoria Pública, si segnala come
uno dei suoi obiettivi istituzionali “la prevalenza e l’effettività dei diritti umani” (art. 3.A).
Ovvero, tutti i difensori pubblici brasiliani hanno l’obbligo e l’impegno istituzionale di
garantire la tutela e il rispetto dei diritti umani. Pertanto, spetta alla Defensoria Pública
la difesa di coloro che si trovano in condizione economica o giuridica vulnerabile, e il
garantirgli l’accesso alla giustizia e la tutela dei diritti umani sia a livello nazionale che
internazionale.

Di conseguenza, una delle funzioni istituzionali della Defensoria Pública è anche quella
di promuovere la diffusione e la presa di coscienza dei diritti umani, della cittadinanza
e dell’ordinamento giuridico (art. 4, III). A tal fine, oltre alla difesa davanti al sistema
giudiziario interno, è dovere della Defensoria Pública offrire rappresentanza di fronte ai
sistemi sovranazionali di tutela dei diritti umani, agendo dinanzi ai loro organi (art.4º, VI).

A partire da questa attribuzione, saranno possibili e obbligatorie azioni contro


lo Stato Brasiliano sia nell’ambito interno, sia nell’ingresso davanti al sistema Inter-
Americano dei Diritti Umani, quando vi è una qualsiasi violazione dei diritti umani.

In sintesi, il principale strumento normativo del Sistema Interamericano dei Diritti


Umani è la Convenzione Americana sui Diritti Umani (CADH), nota anche come Pacto
di San José da Costa Rica, firmato nel 1969, ed entrato in vigore nel 1978. Questa norma
stabilisce un elenco di diritti da tutelare e un apparato integrato dalla Commissione
Interamericana dei Diritti dell’Uomo e la Corte Interamericana dei Diritti Umani.

Si può dire che il Sistema Inter-Americano ha due fasi, la prima della Commissione
e la seconda della Corte.

La Commissione Inter-Americana ha il compito di esaminare petizioni elaborate da


individui, gruppi di persone e enti non governativi, con la denuncia di violazioni da parte
dello Stato-parte dei diritti garantiti dalla Convenzione. Uno dei requisiti fondamentali
dell’ammissibilità della denuncia è la necessità di previo esaurimento delle vie di ricorso
giuridico interno (art. 46 del Patto di San José, Costa Rica).

Con l’ammissione della denuncia, la Commissione prepara una relazione sul caso e le
sue conclusioni e, cercando una soluzione amichevole, può fare delle raccomandazioni allo
Stato denunciato. Se il caso non è risolto e lo Stato-parte non rispetta le raccomandazioni,
la Commissione invierà il caso alla Corte Interamericana dei Diritti Umani.

267
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

Inviato il caso alla Corte sarà istruito un procedimento, simile al processo giudiziario
ordinario, in cui sarà assicurato il contraddittorio e le parti possono convocare testimoni
ed esperti, e la Corte designerà udienze necessarie per l’ascolto dei testimoni.

Al termine del procedimento, il Tribunale proferirà la sentenza, con la dichiarazione


dei fatti, delle disposizioni della Convenzione violate, della responsabilità dello Stato e
imporrà misure di riparazione e/o compensazione delle violazioni commesse.

Va osservato che sia la Commissione che la Corte possono raccomandare e


determinare l’adozione di misure cautelari o provvisorie per proteggere i diritti o far
cessare le gravi violazioni che sono in atto o in imminenza di succedere.

Quindi, in caso di gravi violazioni di diritti individuali o collettivi, e dopo l’esaurimento


della via giurisdizionale interna senza soluzione dignitosa per il caso, sarà una delle
funzioni della Defensoria Pública l’acesso al Sistema Inter-Americano di Protezione dei
Diritti Umani, attraverso denuncia alla Commissione, come ultima possibilità effettiva
di far cessare la violazione – anche in modo cautelare – e di riparazione.27(2)

A seguito del protagonismo internazionale previsto nella Legge e nell’attività


pratica, la Corte Interamericana dei Diritti dell’Uomo e l’Associazione Inter-Americana
dei Difensori Pubblici (AIDEF) hanno firmato un accordo di collaborazione e incentivo
alla partecipazione da Defensoria Pública per attuare dinanzi alla Corte e difendere le
vittime che non hanno rappresentanza legale.

27 Ad esempio, la Defensoria Pública di Rio de Janeiro ha presentato una petizione alla Commissione Inter-Americana dei Diritti Umani a causa del sovraffollamento,
dell’alimentazione insufficiente e dell’indisponibilità di acqua potabile in un carcere di Rio de Janeiro (Polinter / Neves). Ha richiesto le seguenti misure alla
Commissione: 1) L’apertura del processo contro lo Stato Brasiliano; 2) Il trasferimento dei prigionieri per compire la loro pena in luoghi che consentano il
godimento dei loro diritti fondamentali; 3) che il Brasile sia condannato per le violazioni commesse ; 4) che sia imposta al governo brasiliano l’investigazione dei
fatti e la punizione dei responsabili, con l’applicazione delle relative sanzioni penali e amministrative; 5) L’imposizione al governo brasiliano del risarcimento
alle vittime di forma materiale e morale. Nel mese di novembre 2015, il Nucleo della Difesa dei Diritti dell’Uomo e il Coordinatore della Difesa dei Diritti dei
Bambini e degli Adolescenti della Defensoria Pública di Rio de Janeiro hanno presentato una petizione dinanzi la Commissione Inter-Americana con la richiesta
di misure cautelari contro il Brasile in vista delle violazioni dei diritti umani che si sono verificate nell’Unità di ammissione degli adolescenti nello Stato di Rio de
Janeiro. La Defensoria Pública ha richiesto 1) l’apertura del processo contro lo Stato brasiliano; 2) di raccomandare allo Stato brasiliano di adeguare le condizioni
dei centri di detenzione alle norme internazionali attraverso la realizzazione di progetti infrastrutturali e misure che comprendano: a) l’aumento del numero di
equipe tecniche per i servizi di salute adeguate soprattutto nel campo della psicologia infantile al fine di evitare qualsiasi abuso e per garantire che le misure
ordinate in ogni caso siano affidabili e proporzionate; b) l’implementazione di programmi di educazione, di accesso e la frequenza regolare nelle scuole e la
creazione e l’esecuzione di corsi professionali; c) corsi di formazione per gli agenti che si concentrino sulle attività di rispetto dei diritti umani, senza che vi
sia alcun incentivo per l’uso della violenza e delle sanzioni collettive; d) programmi di riabilitazione e di reinserimento, in conformità con le norme nazionali
e internazionali e la prevenzione della violenza in questi stabilimenti, con una maggiore cautela per l’ammissione di professionisti, così come l’adozione di
strategie e formazione specifica per gli agenti di sicurezza, ecc. Un altro esempio importante si è verificato nel 2015, quando la Defensoria Pública ha inviato
la denuncia alla Commissione Inter-Americana sui Diritti Umani contro la Repubblica del Brasile di gravi violazioni che sono imposte alla salute e la vita dei
pazienti del Pronto Soccorso dell’Ospedale Federal de Bonsucesso (Rio de Janeiro). Questi sono solo alcuni esempi importanti di gravi violazioni dei diritti
umani. Ci sono altre petizioni presentate alla Commissione Interamericana dei Diritti Umani dalla Defensoria Pública brasiliana.

268
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

CONCLUSIONE

L’accesso alla giustizia, uno dei più elementari diritti umani, è visto come un requisito
fondamentale per la costruzione di un sistema giuridico egualitario che protegga i diritti
di tutte delle persone, indipendentemente dalla loro condizione sociale o economica.

Potremmo dire che altri temi si caratterizzano come rilevanti per quanto riguarda
la questione dell’accesso alla giustizia e la difesa dei diritti fondamentali. Tuttavia, la
nostra semplice proposta è la presentazione della Defensoria Pública in Brasile e di fare
una piccola panoramica delle sue funzioni.

Concludiamo con le parole e l’autorità degli argomenti del Maestro Ferrajoli quan-
do riconobbe che “la Defensoria Pública è uno dei contributi più significativi di esperien-
za giuridica latinoamericana, trattandosi di un modello di civiltà per il mondo, soprat-
tutto per l’Europa.”28

28 FERRAJOLI, Luigi. Garantismo y Defensa Penal o sobre la defensa pública. In Revista das Defensorias Pública do Mercosul, n. 1, 2010, p. 08.

269
LA DEFENSORIA PÚBLICA IN BRASILE E LA PROTEZIONE DEI DIRITTI FONDAMENTALI

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271
PARECERES
PARECER
A PROBLEMÁTICA DAS CARTAS PRECATÓRIAS – COMPETÊNCIA FUNCIONAL – ATO DE DELEGAÇÃO

PARECER
A PROBLEMÁTICA DAS CARTAS PRECATÓRIAS –

COMPETÊNCIA FUNCIONAL – ATO DE DELEGAÇÃO

O grave problema em questão, como ilustra o Exmo Defensor Público, xxxxxxxxxxxxxx,


é que tem sido recorrente a intimação da Defensoria Pública para atuar em Cartas Pre-
catórias para oitiva de testemunhas, oriundas de Comarcas deste Estado e de outras
unidades da Federação.

No entanto, nas suas palavras que retratam a realidade, em muitos casos há ad-
vogado constituído nos autos e a Defensoria Pública acaba por atuar no feito criminal
e, invariavelmente, atuam como principais defesas técnicas.

Não se pode perder de vista que, não obstante a Carta Precatória constituir um
ato essencial ao trâmite processual, figura como exceção, na medida em que a compe-
tência é fixada no local dos fatos (art. 70, CPP) justamente para que haja maior proxi-
midade probatória. A excepcionalidade desta medida jamais poderá figurar exceções
aos parâmetros constitucionais, com ênfase à ampla defesa.

Assim, a regra deve seguir na obediência à defesa técnica pela escolha do defen-
sor constituído1, cabendo ao magistrado esta sensibilidade e, na sua ausência, ao pró-
prio Defensor Público para a observância e respeito à atividade defensiva, inclusive
por deferência ao próprio advogado.

Nesta linha de raciocínio, sem, no entanto, afastar o conhecimento da prática diu-


turna, caberá ao Defensor Público quando da vista pessoal dos autos para a ciência
da data da audiência, a análise sobre a intimação da defesa técnica – não podemos
esquecer que a forma intimatória dos patronos constituídos é pelo Diário Oficial que
circula em todo o Estado – e, na sua ausência deixar consignado nos autos que o acu-
sado possui defesa privada, cabendo ao magistrado o ônus desta intimação2, sob pena
de nulidade absoluta do ato.

1 O mesmo problema não é reflexo se o acusado for defendido originariamente pela Defensoria Pública, face à indivisibilidade Institucional.

2 Este foi o entendimento da 2ª Turma do STF: A Turma, em conclusão de julgamento, deferiu habeas corpus para anular o processo desde a oitiva, por carta precatória,
de determinada testemunha, inclusive. Alegava-se ausência de intimação do paciente para a oitiva da mencionada testemunha no juízo deprecado, não obstante
houvesse ocorrido sua intimação quanto à expedição de carta precatória. Aduziu-se que o tempo transcorrido entre a intimação do defensor constituído — no Rio de
Janeiro, quanto à expedição da carta precatória — e a realização da oitiva da referida testemunha, em Belém do Pará, fora de apenas 10 dias corridos ou 7 dias úteis,
o que, na prática, inviabilizara o comparecimento do patrono do réu. Diante disso, nomeara-se um defensor ad hoc para atuar no momento culminante da instrução
do processo-crime, cuja inicial continha mais de 400 páginas. Concluiu-se que, em tais condições, a nomeação de defensor dativo satisfizera apenas formalmente a
exigência de defesa técnica no processo, pois seria inconcebível que o advogado tivesse tido condições de atuar de maneira eficiente e efetiva em benefício do acusado.
Os Ministros Eros Grau, relator, e Joaquim Barbosa reconsideraram seus votos proferidos em 24.6.2008 pelo indeferimento do writ. Naquela sessão, assentaram que a
jurisprudência do STF estaria consolidada no sentido da prescindibilidade da intimação da defesa para a audiência de oitiva de testemunha no juízo deprecado, sendo
necessária apenas a ciência da expedição da carta precatória. HC 91501/RJ, rel. Min. Eros Grau, 10.2.2009. Inf. 535

273
PARECER
A PROBLEMÁTICA DAS CARTAS PRECATÓRIAS – COMPETÊNCIA FUNCIONAL – ATO DE DELEGAÇÃO

Por outro lado, não poderá o juiz ficar a cargo do advogado e do próprio acusado
(quando solto). Assim, na ausência(s) desse(s), não vemos alternativa senão a atua-
ção da Defensoria Pública, na medida em que nenhum acusado poderá participar de
qualquer ato processual sem a presença da defesa técnica e a Instituição Defensoria
Pública além de possuir a atribuição típica para este atuar, recebe a imposição consti-
tucional focalizada neste fim.

Agora sim nos sentimos aptos para responder as indagações realizadas pelo Exmo.
Defensor Público em atuação na área criminal.

CONSULTA

1
A Defensoria Pública deve atuar nas Cartas Precatórias
em que haja advogado constituído para a defesa
do acusado nos autos de origem?

Dentre as prerrogativas trazidas aos membros da Defensoria Pública por meio da Lei
Complementar 80, em seu artigo 128, XI, está a atuação de representante da parte em
feito judicial ou administrativo, independentemente de mandado, salvo quando a lei
exigir poderes especiais.

Ademais, o art. 134, CRFB impõe a atuação da Defensoria Pública quando diante da
relação hipossuficiente dos indivíduos, almejando, portanto, a ruptura de qualquer obs-
táculo ao acesso à justiça, com ênfase na forma de resistência do processo criminal.

Por isso, o acusado que não possuir advogado constituído será, imprescindível e
naturalmente, defendido pela Defensoria Pública.

E para aqueles que possuem advogado constituído no feito original? Haverá atu-
ação do Defensor Público perante o Juízo deprecado?

Nossa resposta segue como afirmativa quando, excepcionalmente, o acusado não


estiver presente bem como seu defensor privado, não podendo deixar margens para
a inconstitucional nomeação de defensor dativos.

Contudo, para que esta atuação seja constitucionalmente responsável, caberá ao


Defensor Público, quando diante dessas situações, a análise da intimação do patrono

274
PARECER
A PROBLEMÁTICA DAS CARTAS PRECATÓRIAS – COMPETÊNCIA FUNCIONAL – ATO DE DELEGAÇÃO

constituído, requerendo ao magistrado esse ato. Apenas diante da ausência injustifi-


cada do patrono, caberá ao Defensor Público atuar para o ato processual designado.

2
Em caso positivo, trata-se de atuação típica ou atípica?

A resposta a esta indagação extrai-se pela análise constitucional quanto ao dever de


liberdades públicas pelo Estado em relação ao indivíduo. Cabe agora, a aplicação de
garantias fundamentais para que haja o afastamento de qualquer abuso inquisitório.
Por isso que todos os meios de atividade da defesa fundam em proteção constitucio-
nal ao indivíduo.

Nesta hipótese excepcional das Cartas Precatórias, não haverá alternativa senão
o Estado lhe proporcionar a defesa técnica através da Defensoria Pública. Devemos
observar que não se dará através de nomeação por eventual juiz, mas sim imposição
constitucional em que haverá garantia ao indivíduo não apenas o exercício da auto de-
fesa, mas também a defesa técnica.

Nesta linha, todo indivíduo terá o direito irrenunciável de ser assistido por um defen-
sor proporcionado pelo Estado3, caso não possua advogado. Devemos observar, ainda,
que a relação de hipossuficiência jurídica afasta a análise de sua condição financeira.
Basta encontrar-se em estado prisional ou até na seara penal para que haja dever fun-
cional do Defensor Público na defesa dos seus interesses, bem como no atuar fiscali-
zatório da prisão cautelar decretada ou mantida.

Como dispõe o art. 261, CPP nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será
processado ou julgado sem defensor. Na mesma esteira, versa o artigo 22, XIX da LC 6/77
como atribuição do Defensor Público, “defender no processo criminal os réus que não
tenham defensor constituído, inclusive os revéis”.

Ao nosso sentir, a atuação da Defensoria Pública sempre será caracterizada como


típica quando diante dos parâmetros Constitucionais. Assim, há uma hipossuficiência
jurídica na medida em que o acusado não possui defesa técnica para aquele ato. Por-
tanto, a resistência defensiva, garantindo o acesso à justiça e a ampla defesa.

Vemos, por via de conseqüência, a atuação típica do Defensor Público Criminal.

3 Art. 8º, n. 2, alínea ‘e’ da Convenção Americana de Direitos Humanos.

275
PARECER
A PROBLEMÁTICA DAS CARTAS PRECATÓRIAS – COMPETÊNCIA FUNCIONAL – ATO DE DELEGAÇÃO

3
Caberá o arbitramento de honorários pela
atuação naquele ato processual?

Devemos observar que a função típica da Defensoria Pública segue como parâmetro
constitucional, quando diante da ausência de advogado constituído.

Se, no entanto, o acusado possuir patrono perante o juízo deprecante e, demons-


trada que sua condição financeira reserva fundos para arcar com patrocínio particu-
lar, não vemos qualquer obstáculo para o arbitramento de honorários advocatícios,
na medida em que a atividade defensiva se mostrou, originariamente, privada.

Este raciocínio segue na linha do Projeto de Lei 156 do Senado Federal encaminha-
do à Câmara dos Deputados, dispondo em seu artigo art. 59. § 2º que o acusado que
possuir condição econômica e não constituir advogado arcará com os honorários decorren-
tes da defesa técnica, cujos valores serão revertidos à Defensoria Pública, nos termos da lei.

A questão a ser indagada é quem postulará os honorários a serem arbitrados.


Ora, como a atuação da Defensoria Pública se dá, exclusivamente, perante o Juízo De-
precada, não vemos alternativa senão o requerimento por este Defensor Público para
que o juízo deprecante assim arbitre.

Por outro lado, para que haja maior controle para obtenção dos honorários arbitra-
dos, caberá ao Defensor Público que atua perante o juízo deprecado a comunicação ime-
diata do ato ao Defensor Público que exerce suas funções perante o juízo deprecante.

No entanto, pela especialidade e singeleza da matéria, segue o parecer ao Exmo


Defensor Público Geral para análise e deliberação. Caso haja aprovação, solicito o en-
caminhamento do parecer ao Exmo Defensor Público solicitante.

Sem mais, confiante em ter sanado os questionamentos formulados, externo meus


votos de estima e considerações.

Denis Sampaio

276
PARECER
ADVOGADO CONSTITUÍDO - IMPOSSIBILIDADE DE NOMEAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA -
ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO ARTIGO 456, § 2º. CPP

PARECER
ADVOGADO CONSTITUÍDO – IMPOSSIBILIDADE

DE NOMEAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA –

ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO ARTIGO 456, § 2º CPP

Ausência de patrono constituído – intimação da defensoria pública para atuar na defesa do


acusado – art. 456, Parágrafo segundo do cpp – necessidade de destituíção do advogado
constituído – ampla defesa do acusado – reconhecimento institucional da defensoria pública.

Cuida o presente de Procedimento administrativo iniciado através de ofício expedido


no dia 03 de setembro do corrente ano pelo Juízo da 4ª Vara Criminal da Comarca de
XXXXX com referência ao Processo no. XXXXXXX em que figura como réu o Sr. XXXXXXX.

No referido ofício a Exma. Juíza Titular Dra. XXXXXXX solicitou a manifestação ex-
pressa sobre o conteúdo da cota exarada pela Exma. Defensora Pública Titular, Dra.
XXXXXXX, em referência ao disposto no artigo 456, parágrafo segundo do CPP.

Em resumo, o acusado encontra-se respondendo pela suposta prática de crime


doloso contra a vida perante o Juízo solicitante sendo defendido, desde o início do
processo-crime, por patrono constituído, conforme pode ser observado pelas infor-
mações colhidas no sítio do Tribunal de Justiça.

O julgamento do acusado perante o Plenário do Júri ocorreria no dia 04 de dezem-


bro de 2007. Contudo, o julgamento não foi realizado em recorrência da ausência do
patrono constituído pelo acusado, sendo redesignado para o dia 19 de setembro do
corrente ano1.

Em consequência, a Defensora Pública Titular foi intimada para tomar ciência do


trâmite processual no dia 26 de agosto do corrente ano, afirmando, a Exma. Juíza Titu-
lar que a Defensoria Pública deveria estar preparada para a realização da defesa téc-
nica perante o Plenário do Júri2.

1 Despacho do Juízo competente: “Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ao julgado sem defensor (art. 261 do CPP). Em 04-12-2007, em
razão do não comparecimento do advogado do acusado, foi remarcado o seu julgamento para o dia 19-09-08, às 13:00hs, sendo o acusado, naquela oportunidade,
intimado de que deveria comparecer acompanhado de advogado e que, na falta deste, sua defesa em Plenário seria realizada pela Defensoria Pública, sem novo
adiamento do julgamento. Assim, retornem os autos à Defensoria Pública para ciência da data designada. Sem prejuízo, intime-se pessoalmente o acusado para que,
no prazo de 05 dias, compareça à Defensoria Pública”.

2 Despacho da Juíza Titular: “Face ao acima certificado, observa-se que na hipótese ocorreu o disposto no artigo 456, parágrafo 2º, CPP, pelo que a Defensoria Pública
deve estar preparada para assumir a tribuna na hipótese de outra ausência injustificada do Patrono do acusado. Assim, à Defensoria Pública”.

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PARECER
ADVOGADO CONSTITUÍDO - IMPOSSIBILIDADE DE NOMEAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA -
ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO ARTIGO 456, § 2º. CPP

Contudo, no dia 27 do mesmo mês, o acusado esteve no Cartório da Vara Criminal


da Comarca XXXX afirmando que possui advogado constituído e deseja ser defendido
pelo mesmo, conforme pode ser observado pela cota presente à fl. 03 do procedimen-
to Administrativo em questão.

Em decorrência da manifestação espontânea do acusado e da cota exarada pela


Douta Defensora Pública, a Exma. Juíza Titular intimou a Defensoria Pública para que
assumisse a defesa do acusado caso seu patrono não comparecesse em plenário do
júri, fundamentando sua decisão pela previsão do atual artigo 456, parágrafo 2º, CPP,
não podendo o Juízo ficar “ao bel prazer do Patrono e do acusado ad eternum gerando
a paralisação do feito e também da prescrição”.3

Por via de consequência, foi instaurado o presente procedimento administrativo


com o objetivo de exposição do posicionamento Institucional.

É o simples relatório.

A análise constitucional e sistêmica


do atual artigo 456, parágrafo 2 o. , CPP

Para a análise em questão deve-se observar que o Legislador não tolerou as ausências
injustificadas de Patronos constituídos, devendo o fato ser imediatamente comunica-
do à Presidência da OAB local, com a data para a nova sessão. Assim, não havendo es-
cusa legítima, o julgamento será adiado uma única vez, devendo o acusado ser julgado
quando chamado novamente.

A atualização legislativa indica que a celeridade na realização da conclusão do pro-


cesso é uma imposição social, não podendo os trâmites processuais ficarem a cargo
de intenções distorcidas das partes. Reservou, portanto, uma maior responsabilidade
ao julgador na celeridade processual. Deve-se ilustrar que não só neste dispositivo,
mas em toda a alteração do procedimento através da Lei 11.689/08.

3 Decisão da Juíza Titular: “O artigo 456, §2º do CPP, com sua nova redação, determina que a Defensoria seja intimada para assumir a defesa do réu cujo advogado,
regularmente intimado para assumir a defesa do réu cujo advogado, regularmente intimado, não comparecer para data do julgamento, o que ocorreu, nestes autos.
Nâo pode o Juízo ficar ao bel prazer do Patrono e do acusado, ad eternum, gerando a paralisação do feito e também eventual prescrição. Assim determino: 1 – a
intimação pessoa da Defensoria Pùblica para assumir o patrocínio do réu na data designada, caso o patrono constituido pelo mesmo novamente não compareça e
nem justifique sua ausência. 2 – a intimação do advogado pelo DO da data designada. 3 – A expedição de ofício a Corregedoria da Defensoria Pública para que esta
se manifeste, expressamente, sobre o conteúdo da costa da Dra. Defensora a luz do artigo 456, § 2º do CPP, como é o caso dos autos, solicitando a resposta em cinco
dias face ao julgamento marcado”.

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PARECER
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ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO ARTIGO 456, § 2º. CPP

Contudo, a celeridade necessária à conclusão do processo não poderá, jamais,


esbarrar nas garantias fundamentais do acusado, bem como nas prerrogativas cons-
titucionais de Instituições Públicas ou na atuação da advocacia privada.

Porém, para garantir o exercício da ampla defesa, com a atuação da defesa técni-
ca, determinou o Legislador no artigo 456, parágrafo 2º, CPP que na hipótese do par. 1º,
deste artigo, o juiz intimará a Defensoria Pública para o novo julgamento, que será adiado
para o primeiro dia desimpedido, observado o prazo mínimo de 10 (dez) dias.

Em uma primeira leitura, pode ser observado que a Defensoria Pública será inti-
mada para figurar como defesa técnica na ausência injustificada do patrono do acusa-
do, quando houver nova data designada para o seu julgamento. Esta análise ocorrerá
pela atuação Constitucional da Defensoria Pública em que garantirá o acesso à justiça
– nesta hipótese através da resistência à acusação criminal – não podendo haver jul-
gamento regular sem que haja a presença da defesa técnica como impõe o artigo 5º,
LV da CRFB e o artigo 261, CPP.

Uma leitura simples poderia macular toda uma construção de garantias constitu-
cionais e institucionais.

De fato, a Defensoria Pública deve realizar a sua função constitucional de atuar na


defesa dos interesses daqueles hipossuficientes financeiros e, na hipótese criminal,
jurídicos quando não houver o patrocínio de advogado constituído, o que não reflete
o caso em questão.

Urge observar que o acusado possui advogado constituído, conforme se depre-


ende das informações do sítio oficial do Tribunal de Justiça, bem como pela própria
decisão da Exma. Juíza Titular em que determinou a intimação do advogado através
de Diário Oficial. Portanto, a atuação da Defensoria Pública se mostra institucional,
constitucional e eticamente impedida.

Assim, podemos afirmar que, na hipótese de advogado constituído e presente nos


autos, quiçá o Defensor Público poderá ser intimado para atuar no feito criminal. O
acusado não pode, para sua infelicidade, possuir Advogado e Defensor Público como
seus defensores, tão somente por proibição constitucional.

Sabemos que a Exma. Juíza Titular da XXXXXXXX respeita a atuação de Defenso-


res Públicos que atuam perante este Órgão jurisdicional. Porém, o dispositivo evoca-
do para o caso concreto leva a alusão do Defensor Público como verdadeiro “soldado

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PARECER
ADVOGADO CONSTITUÍDO - IMPOSSIBILIDADE DE NOMEAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA -
ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO ARTIGO 456, § 2º. CPP

de reserva”, uma vez que se o Patrono do acusado comparecer, não será necessária
a atuação do Defensor Público, ficando este de plantão para na hipótese da ausência
daquele, exercer sua função.

Longe, por via de consequência, é a atuação residual de qualquer Defensor Públi-


co deste Estado.

Nesta linha de raciocínio, o Defensor Público somente poderá atuar na defesa dos
interesses de qualquer acusado quando o mesmo não possuir advogado constituído
ou na hipótese de destituição da defesa técnica pelo próprio julgador, o que não ocor-
reu no caso em questão.

Para atuação, portanto, da Defensoria Pública mostra-se imprescindível a destitui-


ção de Patrono constituído, até porque este não poderá abandonar o processo senão
por motivo imperioso, conforme dispõe o artigo 265, CPP (alterado pela Lei 11.719/08)
e não intimar pessoalmente a Defensora Pública Titular para permanecer de plantão
e, residualmente, atuar na ausência do Patrono constituído.4

Não podemos interpretar o parágrafo segundo do artigo 456 do CPP, senão pela
necessidade constitucional da intimação da Defensoria Pública após a ausência de de-
fesa técnica para atuar pelo acusado, seja por sua manifestação expressa, seja pela
destituição compulsória do próprio julgador.

Neste ponto, a Defensoria Pública fomenta, diuturnamente, mudanças no contex-


to social, cultural e legislativo, mas jamais o retrocesso ao seu reconhecimento e cresci-
mento como Instituição essencial a um Estado Constitucional Democrático de Direito.

O artigo em questão, portanto, deverá ser interpretado prospectivamente por to-


dos os operadores do Direito e aqueles, como a Exma. Juíza Titular XXXXXXXX o, que
almejam um Processo Penal Democrático, indicador de isonomia e paridade entre as
partes, não podendo, jamais, prescrever a Defensoria Pública com qualquer atuação
residual, seja na sua relação direta e indireta com os jurisdicionados.

4 Esta é a orientação doutrinária a respeito do tema. Assim, ilustrativas as palavras de Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto: o juiz
não pode desde logo, antes mesmo de constatar a ausência do advogado no plenário do júri, nomear outro defensor, como defensor subsidiário (para a hipótese ou
eventualidade do não comparecimento do defensor constituído). Isso não é possível ser feito (nem razoável). Temos que partir da premissa do que geralmente acontece
(ou seja: geralmente o advogado comparece e realiza-se o julgamento). Do excepcional o juiz não deve cuidar em situação excepcional. Não se pode transformar o
excepcional em regra (por falta de base legal). In Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008,
pág. 146.

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PARECER
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ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO ARTIGO 456, § 2º. CPP

Celeridade Processual versus garantia


constitucional da plenitude da defesa

No Tribunal do Júri, por sua natureza de garantia fundamental, o Legislador Constituin-


te Originário não se acomodou com a garantia individual prevista no artigo 5º, inciso
LV da CRFB, mas reservou ao acusado a plenitude de sua defesa, como dispõe o artigo
5º, XXXXVIII, alínea ‘a’ da CRFB.

Nesta linha de raciocínio, a atuação sob o manto da plenitude de defesa envolve o


resguardo de posições francamente favoráveis ao réu. Não se pode, no Tribunal Popular,
abrir mão desse incansável mister.5

O Legislador, nas atuais reformas setoriais no Código de Processo Penal, tentou


reservar uma maior celeridade processual indicando prazo para a conclusão da pri-
meira fase no procedimento do Júri, bem como delimitando maior responsabilidade
ao julgador para o impulso oficial do trâmite processual. Contudo, esta intenção legis-
lativa, jamais poderá afastar garantias fundamentais, sob pena de retrocesso constitu-
cional o que levaria a luta diária de operadores do Direito em vão, permanecendo na
linguagem e estrutura de um Código datado de 1941 em época realmente diferente
da que vivemos hoje em dia.

Nesta linha, não podemos deixar de afirmar a necessidade de todos os atuais dis-
positivos infraconstitucionais serem interpretado à luz de uma leitura constitucional.
A filtragem constitucional será indiscutivelmente necessária para a regularidade do
trâmite processual e, ao final, para almejarmos um processo justo.

O processo, portanto, deve ser célere pela simples leitura da garantia fundamen-
tal prevista no artigo 5º, LXXVIII da CRFB. A ampla defesa, no caso em tela, a sua pleni-
tude, deve ser sempre observada.6

Para tanto, se faz imprescindível na busca de um processo justo, a plenitude da


sua defesa, com a presença do acusado (auto-defesa) e com seu o defensor por ele

5 NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pág. 149.

6 A celeridade processual deve ser observada como a atuação prática do ciclista: caso ande bastante devagar com sua bicicleta cairá (violação à celeridade
processual); se for rápido demais também tombará (violação, em algumas hipóteses, à ampla defesa). Portanto, o processo deve possuir uma duração
razoável, com o anseio a todas as garantias fundamentais e processuais, para ao final, chegarmos a uma decisão justa.

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PARECER
ADVOGADO CONSTITUÍDO - IMPOSSIBILIDADE DE NOMEAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA -
ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO ARTIGO 456, § 2º. CPP

escolhido como impõe, ainda, o artigo 8º, no 2, alínea ‘d’ da Convenção Americana de
Direitos Humanos7.

No caso em tela, o acusado expressamente afirmou que deseja ser defendido


por seu Patrono (tanto é que o mesmo restará intimado através de Diário Oficial), não
sendo possível a imposição da defesa através da Defensoria Pública. Deve o mesmo
possuir a possibilidade de escolha do seu defensor.

Óbvio que o Juízo não ficará a cargo do acusado e seu patrono. Se este, por mais
uma vez não comparecer sem motivo imperioso, ao nosso ver, deveria ser destituído e
reservado ao mesmo as sanções previstas nas disposições pertinentes, em virtude das
alterações legislativas que não estavam em vigor na data do Plenário do Júri. Porém,
garantindo ao acusado, em decorrência da sua plenitude de defesa, a possibilidade de
contratar novo patrono. No caso da inocorrência, ou na manifestação pela defesa da
Defensoria Pública, aí sim, a atuação constitucional do Defensor Público.

A leitura do artigo 456, parágrafo segundo, por este outro argumento, somente
será possível quando confrontado diretamente à nossa Constituição da República.

Podemos concluir que a simples intimação e nomeação da Defensoria Pública


para atuar no Plenário do Júri designado, além de indicar uma mácula à própria Insti-
tuição com as reservas constitucionais já aludidas, levará à nulidade do julgamento o
que indicará a ineficácia do ato e do próprio processo.

Por todos os argumentos exposto, é o parecer desta Assessoria Criminal pela im-
possibilidade de atuação da Defensoria Pública quando o acusado possuir advogado
constituído, havendo, inclusive manifestação expressa daquele. O artigo 456, parágra-
fo segundo, do CPP, ao nosso sentir, somente deverá ser observado quando houver
destituição da defesa técnica pelo acusado ou pelo próprio julgador, não sendo crível
a atuação residual do Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, pela simples au-
sência de Patrono constituído.

É o nosso parecer que submeto à consideração de Vossa Excelência.

Denis Sampaio

7 Art. 8º, n. 2, alínea ‘d’ do Pacto de São José da Costa Rica dispõe que toda pessoa tem o direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (d) direito do
acusado defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor.

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PARECER
DEFENSOR PÚBLICO COMO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO EM PROCESSO CRIMINAL –
GARANTIA A ASSISTÊNCIA INTEGRAL

PARECER
DEFENSOR PÚBLICO COMO ASSISTENTE

DE ACUSAÇÃO EM PROCESSO CRIMINAL –

GARANTIA A ASSISTÊNCIA INTEGRAL

Defensor público – assistente de acusação em processo criminal – garantia a assistência


integral e gratuita ao ofendido – função atípica da defensoria pública – análise objetiva em
cada caso concreto –.

Trata-se de procedimento administrativo instaurado através da comunicação sobre a


atuação como assistente de acusação pelo Exmo. Defensor Público Titular da XXX
Vara Criminal da Comarca XXXXXX no processo crime número XXXXXX perante o
Plenário do Júri a realizar-se no dia 23/06/09, em que figura como vítima XXXXXX.

O tema enfrentado, portanto, refere-se a possibilidade do Defensor Público atuar


como assistente da acusação.

É o simples relatório.

A presença da vítima no Processo Penal –


sua relevância constitucional

Inicialmente deve-se observar que todo o estudo e estrutura do Direito Processual Pe-
nal vêm sofrendo modificações com relevantes avanços em adequação à nossa Cons-
tituição da República. Certo que ainda estamos longe da identificação de um Estado
efetivamente Democrático, como impõe o preâmbulo Constitucional.

O que ainda se mostra afastado do anseio Constitucional é a reserva de maior


garantia processual ao ofendido que, na verdade figura como parte “esquecida” no
trâmite processual penal, embora haja previsão expressão na Constituição sobre pro-
teção desta parte na intervenção jurisdicional penal. Após mais de cinquenta anos de
vigência do Código de Processo Penal, a Lei 9.099/95 foi a primeira a reconhecer a im-
portância do ofendido nas discussões penais, apostando na presença do ofendido, ao
menos, na fase preliminar do rito processual.

Portanto, o estudo da criminologia (moderna) sobre a vítima no conflito penal –


vitimologia – reclamava maior relevo, embora a cultura do processo criminal não abra-

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PARECER
DEFENSOR PÚBLICO COMO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO EM PROCESSO CRIMINAL –
GARANTIA A ASSISTÊNCIA INTEGRAL

çasse este movimento, até porque a maior preocupação do nosso sistema penal, es-
tritamente autoritário, é a aplicação da repressão penal. Basta observar o tratamento
prático minimizado da vítima perante os atores processuais penais (o Poder Judiciário,
o Ministério Público e, incluindo neste rol, a Defensoria Pública).

A Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), reconhecendo a fragilidade da vítima diante


de uma relação doméstica, reservou sua necessária importância no próprio trâmite
processual. Óbvio que o impulso legislativo não foi voluntário; precisou de uma con-
denação internacional (Corte Interamericana de Direitos Humanos) para a edição da
norma disciplinadora do conflito e a proteção à vítima. A ilustração do fato ocorre por
seu artigo 6º em que indica violação a direitos humanos (da ofendida) quando ocorrer
qualquer fato delitivo diante de uma relação doméstica.

A Defensoria Pública não ficou longe nesta discussão. Basta observar que acom-
panhando o anseio legislativo, acadêmico - nacional e internacional - e social com toda
a dificuldade prática – ênfase na ausência de Defensores Públicos para cobrir todos os
Órgãos de Atuação – foram designados Defensores Públicos para atuar perante os Jui-
zados da Mulher e da Violência Doméstica seja na defesa dos acusados e das próprias
vítimas. Ressalta-se que, somado ao Núcleo de Defesa da Mulher – NUDEM e a referi-
da designação, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, mais uma vez avança
no seu atuar, criando uma relação paradigmática para todo o território nacional.

É nessa linha, em prol da valorização do ofendido no conflito penal, que a Lei


11.690/08 alterou o artigo 201 do CPP reservando maior relevância nas questões en-
do-processual e nas questões extra-processuais.

Assim, expôs a necessidade de comunicação ao ofendido dos atos processuais,


relativos ao ingresso e saída do acusado da prisão; a designação de data para a audi-
ência e à sentença e respectivos acórdãos condenatórios ou absolutórios (atual art.
201, parágrafo 3º, CPP).

Da mesma forma indicou a possibilidade do juiz encaminhar o ofendido para aten-


dimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídi-
ca, e de saúde. (art. 201, parágrafo 5º, CPP).

Também, o atual Projeto de Lei que objetiva a reforma total do Código de Proces-
so Penal enviado ao Senado Federal (PL n. 156/09) incorpora a atuação do ofendido
na situação processual, indicando além da antiga previsão da assistência da acusação,
uma intervenção civil, na busca da defesa dos interesses do ofendido na própria seara

284
PARECER
DEFENSOR PÚBLICO COMO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO EM PROCESSO CRIMINAL –
GARANTIA A ASSISTÊNCIA INTEGRAL

penal. A questão não se resume apenas ao interesse patrimonial do ofendido, como


se entendia na clássica interpretação do Direito Processual Penal, mas sim do próprio
auxílio à acusação, em busca de maior proteção à vítima.

Por óbvio, que a valorização processual do ofendido, jamais poderá fomentar vin-
gança privada e afastar a natureza jurídica do processo como garantia fundamental
ao acusado em que serve para um bloqueio à intervenção repressiva do Estado.

Por via de consequência, a Defensoria Pública, que já adotava postura pró-ativa


na defesa dos interesses do ofendido, permanecerá na sua linha de atribuição, com
anseio constitucional, reservando, principalmente, a igualdade material que impõe o
artigo 5º, caput da CRFB.

Não se pode perder de vista a função típica do Defensor Público na área criminal que
é a defesa dos interesses daquele que figura no polo passivo da ação penal. Até porque,
do outro lado está a instituição do Ministério Público, com o mesmo relevo constitucio-
nal. Porém, o ofendido também possuirá o direito constitucional de ver seu interesse
protegido, o que, figura como função atípica do Defensor Público na área criminal mas
relevante, com a busca daquele referido Estado Democrático Constitucional de Direito,
salvo nas hipóteses de ação penal privada ou ação penal privada subsidiária da pública,
nos termos do artigo 4º, II da LC 80/94, em que funciona com sua função típica.

A possibilidade da atuação da Defensoria Pública como assistente de acusação


cria um aporte de proteção aos direitos fundamentais do ofendido, até porque, no ou-
tro lado a atuação da Defesa Técnica irá reservar a garantia da ampla defesa do acu-
sado, seja através do Defensor Público com atribuições para este fim, seja por advoga-
do constituído. Certo, no entanto, que a Instituição Defensoria Pública jamais poderá
deixar de atender aos anseios constitucionais de proteção à isonomia processual bem
como qualquer interesse em busca de direitos daqueles hipossuficientes financeiros
ou jurídicos.

A presença da Defensoria Pública na qualidade de assistente de acusação apenas


credita relevo ao ofendido na situação processual que não possui condições financei-
ras para arcar com honorários advocatícios. Impossibilitar esta atuação, criaria uma
desigualdade social e processual inescusável em que os possuidores de recursos fi-
nanceiros pudessem arcar com esta proteção através da assistência técnica de advo-
gado privado e, por outro lado, aqueles despossuídos destes proventos não tivessem
os mesmos mecanismos de proteção.

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PARECER
DEFENSOR PÚBLICO COMO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO EM PROCESSO CRIMINAL –
GARANTIA A ASSISTÊNCIA INTEGRAL

A presença do Ministério Público na atuação constitucional de exercício da pre-


tensão acusatória, poderia, por si só, indicar a desnecessidade de auxílio do ofendi-
do. Contudo, não foi assim o entendimento do Legislador constituinte e infraconsti-
tucional, o que enseja a possibilidade da atuação do ofendido na seara penal. Assim,
a Defensoria Pública como Instituição essencial à prestação jurisdicional não pode se
olvidar deste múnus público impõe a estrutura constitucional, daqueles que não pos-
suem condições financeiras para ser assistidos por advogado privado.

Garantia Constitucional do acesso à justiça –


a defesa da ordem jurídica justa

A garantia do acesso à justiça não se mostra recente. Há séculos esta é uma grande preo-
cupação da humanidade com vários enfoques de escopo. Podemos ilustrar apenas dois:
um, diz respeito à legitimação de decisões que resolvem a vida de indivíduos, ainda que
estas decisões sejam flagrantemente destituídas de justiça; outro aponta a necessidade
de um maior controle pelo indivíduo em relação à intervenção Estatal, para dirimir even-
tuais conflitos de interesses ou poder. O atual problema, no entanto, não é sua previsão,
mas a identificação do efetivo acesso à justiça e sua adequação constitucional.

A valorização do indivíduo do Pós-Guerra, frente a radical intervenção estatal, fez


com que reservasse uma maior gama de direitos e garantias fundamentais, gerando
um sistema de proteção ao ser humano (na sua individualidade e na relação social),
com a difusão natural da defesa internacional dos direitos humanos.

Várias foram as formas de atuação para adequação moderna deste sistema de


proteção, mas a principal delas diz respeito a atuação positiva do Estado para a efeti-
vação prática destes direitos fundamentais.

Não ficou de fora o direito ao acesso à justiça, até porque o pilar mor de maior
proteção jurisdicional do indivíduo quando diante de conflitos de interesses ou direi-
tos. Assim, direito ao acesso à justiça “tem sido progressivamente reconhecido como
sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que
a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua
efetiva reinvindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como requisito
fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno
e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.”1 É

1 CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. TRD. Ellen Gracie Northfleet. Sergio Antonio Fabris: Porto Alegre, 1988, pág. 11/12.

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PARECER
DEFENSOR PÚBLICO COMO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO EM PROCESSO CRIMINAL –
GARANTIA A ASSISTÊNCIA INTEGRAL

a partir desta garantia que podemos afirmar a presença da isonomia entre as partes
diante de seus conflitos ou mesmo um conflito social , o que gera a igualdade2 jurídica,
como postulado maior da aplicação da Justiça. O que se busca, portanto, é a máxima
redução de desigualdades jurídicas, econômicas e sociais.

No âmbito penal o Estado detém toda a estrutura repressora. Podemos, portan-


to, afirmar que o princípio da legalidade penal serve como limitador à aplicação da
intervenção repressiva. E, se qualquer indivíduo, eventualmente, praticar condutas
previstas em lei, será necessária outra limitação a investida repressiva do Estado, que
poderíamos concluir pelo processo penal, através da identificação de todos os direitos
e garantias fundamentais.

No outro lado, quando a pretensão for extra-penal, o Estado agirá para a solução
pacífica dos conflitos, uma vez que a investida privada está, por completo, afastada de
uma sociedade em busca de harmonia e tranquilidade social. Por esta linha de racio-
cínio, a indeclinabilidade da prestação jurisdicional caracteriza-se como garantia fun-
damental à estrutura social e de um Estado Constitucional Democrático de Direito.

O que se observa, portanto, que a inafastabilidade do Poder Judiciário quando


houver lesão ou ameaça a direito (art. 5º, inciso XXXV, CFRB), além de fazer parte do
sistema de proteção aos direitos individuais, adequado ao paradigma também consti-
tucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), converge a uma estrutura
de harmonia social.

Podemos afirmar, portanto, que após o crescimento natural e a consequente com-


plexidade da sociedade, o direito ao acesso à justiça permanece entre aqueles que es-
tabelecem o alicerce maior de um Estado Democrático. Está ele, portanto, ao lado – se
é que isso possa ser possível e imaginável – da proteção à vida; liberdade; personali-
dade, até porque, na expressão de Marinoni e Arenhar, a garantia constitucional do
acesso à justiça deve ser “reconhecida como aquela que deve garantir a tutela efetiva
de todos os demais direitos. A importância que se dá “ao direito” de acesso à justiça
decorre do fato de que a ausência de tutela jurisdicional efetiva implica a transforma-
ção dos direitos garantidos constitucionalmente em meras declarações políticas...”3

2 Esta igualdade, como todos nós sabemos, é apenas um mito, uma vez que funciona como “recurso lingüístico no discurso ideológico de quem tem condições
de, através dele, exercer dominação social” GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, Ed. Ed. Malheiros:São Paulo, 2001, pág. 25.

3 MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHAR, Sérgio Cruz. Manual do processo de Conhecimento. Ed. Ed.. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2004, pág. 30.

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GARANTIA A ASSISTÊNCIA INTEGRAL

Não poderíamos deixar de enfocar, no caso em questão, as ondas renovatórias


do acesso à justiça de Cappelletti e Garth. Três são essas ondas: a assistência judi-
ciária; representação jurídica para os interesses difusos; enfoque de efetivação ao
acesso a justiça.

Nosso interesse poderia se restringir à primeira onda. Mas, como a ciência jurídi-
ca não pode parar no tempo, até porque acompanha o dinamismo social, os direitos e
garantias fundamentais também devem acompanhar esta interpretação e aplicação.
Assim, para o caso enfrentado, além da assistência judiciária a terceira onda renovató-
ria – efetivação do acesso à justiça – gera imprescindível ponto de contato, indicando,
na realidade o acesso à ordem jurídica justa.

Neste contexto, o ofendido quando pretender atuar na qualidade de assistente


de acusação (direito impostergável daquele que possui legitimidade processual) deverá
possuir a seu favor todo o arcabouço constitucional de proteção, o que se dá através da
possibilidade de assistência jurídica integral da Instituição que detém este poder/dever.

A Defensoria Pública como efetivação


de garantia fundamental

A imprescindibilidade da intervenção jurisdicional quando diante de conflitos indivi-


duais ou sociais gerou um grave problema àqueles que não possuíam conhecimento
jurídico sobre a matéria pleiteada: a de ser representado por advogados. O primeiro
esforço, portanto, para a garantia do acesso à justiça, diz respeito a assistência jurídi-
ca. Para alguns este serviço mostra-se fácil, basta possuir condições financeiras para
contratar advogados particulares para dirimir dúvidas jurídicas ou representá-los em
juízo; para outros – e podemos ousar em afirmar ser a maioria – não haverá essa pos-
sibilidade, o que amplia esse problema.

A observância deste descompasso com o acesso à justiça, levou no início do Sécu-


lo XX a criação de serviços jurídicos para os hipossuficientes (pobres na expressão de
Cappelletti). Contudo, este serviço iniciou através de advogados pro bono, destituídos
de qualquer contraprestação. Não precisamos ir longe em afirmar que esta situação
gera apenas uma assistência jurídica fictícia, na medida em que indica que a devo-
ção de seus serviços acompanhará as causas remuneradas, pela simples economia
capitalista e estruturada na relação de consumo. Em economia de mercado, como
expressa Cappelletti e Garth, “a realidade diz que, sem remuneração adequada, os

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serviços jurídicos para os pobres tendem a ser pobres, também. Poucos advogados
se interessam em assumi-los, e aqueles que o fazem tendem a desempenhá-los em
níveis menos rigorosos.”4

Esta situação gera outro problema insuperável diante de uma sociedade demo-
crática que pode ser observado pela ausência de controle deste serviço. Sabemos que
todo atuar, público ou privado precisa de controle sob pena de gerar além do des-
serviço, arbitrariedades ou omissões. Da mesma forma a assistência jurídica. Ora, a
ausência de contraprestação na criação deste serviço assistencial gera deficiência na
relação fiscalizatória.

Neste sentido, podemos criticar, de forma veemente, a nomeação de advogados


dativos – sem contraprestação – para alguns atos processuais, na medida em que,
muitas das vezes, não há um sentimento e obrigatoriedade nesta função caracteriza-
da como múnus público.

Com a ciência de ineficácia destes serviços, muitos países5, e para nós alguns Es-
tados, criaram serviços de prestação de assistência judiciária por advogados remune-
rados pelo próprio Estado. Esta remuneração, no entanto, fica limitada a uma tabela
pré-estabelecida, até para não fomentar eventuais enriquecimentos ilícitos. Também,
na maioria dos casos, a tabela remuneratória fica aquém dos honorários recebidos
pelas questões particulares, o que gera, indubitavelmente, uma maior procura as cau-
sas de melhor remuneração.

Esta questão não soluciona o problema, uma vez que a ausência de controle do
serviço prestado não é realizada, até porque, não será o jurisdicionado que irá arcar
com o valor remuneratório, indicando uma deslegitimação para esta fiscalização.

Assim, a atuação nestes casos servirá para os advogados de menor qualificação


técnica ou para aqueles que pretendem uma aproximação à pessoa do julgador.

Outro problema enfrentado por este sistema diz respeito a ausência de procura
na defesa dos direitos dos indivíduos de classe mais humilde. Na área criminal o siste-
ma poderia funcionar muito bem, mas tal não ocorre se falarmos nas questões civis,
sucessórias, ambientais – inclusive anteriores à intervenção jurisdicional. Há, na reali-
dade, uma maior dificuldade de aproximação da classe mais humilde (no que tange ao

4 CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. TRD. Ellen Gracie Northfleet. Sergio Antonio Fabris: Porto Alegre, 1988, pág. 47/48.

5 Foi o sistema criado em alguns países ocidentais, denominado Sistema Judicare.

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aspecto financeiro e, principalmente, cultural) na luta por seus direitos como já apon-
tava Rudolf Von Ihering.

Esse sistema cria uma relação de passividade entre o advogado e o seu “cliente”,
na medida em que somente atuará quando for procurado, e se for, pelo indivíduo. Na
hipótese de assistência acusatória, esta proximidade além de inviável, denota-se ine-
xistência na prática.

Soma-se ao fato de que dificilmente haverá maior defesa dos interesses do jurisdi-
cionado nas questões levadas ao Tribunal. Pensa-se, o que não constitui verdade, que
as causas são solucionadas pelo juízo de primeiro grau. Ledo engano, uma vez que a
atividade de julgar não poderá ficar a cargo de uma única pessoa, já que esta relação
de onipresença não se adéqua a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição.
Assim, a ausência de procura e fiscalização poderá levar a uma “meia” defesa de seus
direitos impedindo eventuais re-análise da matéria decidida.

Outra crítica de extrema relevância nos dias atuais diz respeito as questões não
individuais. Ou seja, se este sistema funcionasse, de certo, não transcenderia às rela-
ções interpessoais. A defesa dos direitos difusos para aqueles destituídos de valores
financeiros e culturais estaria afastados da prestação jurisdicional.

O certo é que a advocacia dativa, quando não cadastrada, remunerada e fiscali-


zada pelo próprio Estado, indica apenas um serviço factóide de assistência judiciária,
afastando, por completo, a primeira onda renovatória, na visão de Cappelletti, bem
como ao acesso à ordem jurídica justa.

Neste sentido, os princípios atinentes à administração pública, com ênfase na


legalidade, moralidade e eficiência, indicam uma maior aproximação da Defensoria
Pública como instituição encarregada de completar a garantia constitucional do aces-
so à justiça, indicando a necessidade de assistência jurídica integral e gratuita. Assim,
adverte Rogério Nunes que “a indispensabilidade de oportunidades para a concretização
da defesa técnica efetiva no processo e fora dele é um elemento que integra a compreensão
moderna do devido processo legal, fica evidenciado que o direito fundamental à assistên-
cia jurídica integral e gratuita também é alicerçado nesse princípio constitucional. E, se nos
for permitida a alegoria para arrematar, pensamos que o direito à assistência jurídica in-
tegral e gratuita é o fiel da balança do ordenamento jurídico brasileiro, que objetiva não só
assegurar a par condicio no campo processual do litígio, mas também, e principalmente,

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coadjuvar no plano da realização material do princípio da dignidade humana, fundamen-


to primeiro e último de um Estado que se pretenda de Direito”.6

Não é só porque o artigo 134 da Constituição da República coloca a Defensoria


Pública como Instituição essencial à função jurisdicional do Estado, que indica-se ne-
cessária à garantia ao acesso à justiça. Na realidade, a partir de um contexto democrá-
tico, a possibilidade de cobrança e controle, fundamentados pela moralidade e efici-
ência, colocam esta Instituição com grau de essencialidade na busca da primeira onda
renovatória de Cappelletti e ainda, na em relação do acesso à ordem jurídica justa.

O Legislador Constituinte Originário, fez incluir no rol dos direitos fundamentais


o dever do Estado em prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que provarem
insuficiência de recursos. Assim, podemos afirmar que não mais estamos diante de um
favor estatal em dar ao indivíduo um possível acesso à justiça. Na realidade, a busca
é de redução de danos àqueles que não possuem condições financeiras (e em alguns
casos, condições culturais de busca aos seus direitos), se dá pela obrigatoriedade do
Estado em reconhecer, na prática, este direito constitucional ao indivíduo. Esta norma
constitucional deve ser devidamente garantida pela Instituição Defensoria Pública em
todo o território nacional.

Oportuno, portanto, a diferenciação resumida entre direitos e garantias funda-


mentais, remontando a Rui Barbosa, ao separar as disposições meramente declarató-
rias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos e, as dispo-
sições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder.

Assim, afirma JORGE MIRANDA que os direitos representam por si certo bens, as ga-
rantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos permitem a realização
das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, as respectivas esferas jurídicas,
as garantias só nelas se projetam pelo nexo que possuem com os direitos e transforma-
dora, em virtude da força expansiva que possuem.7 Na acepção juracionalista inicial, os
direitos declaram, as garantias estabelecem-se. Da mesmo forma ilustra JOSÉ AFONSO
DA SILVA na medida em que os direitos são bens e vantagens conferidos pela norma e
garantias são os meios destinados a fazer valer esses direitos.8

6 OLIVEIRA, Rogério Nunes de. Assistência Jurídica Gratuita. Lúmen Júris: Rio de Janeiro, 2006, pág. 70.

7 Manual de Direito Constitucional, vol. 2, p. 226-227.

8 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 1a. Ed. Malheiros: São Paulo, 1994, pág. 392.

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Se a função da garantia é assegurar o direito, podemos, facilmente afirmar que,


a Instituição Defensoria Pública possui natureza de garantia fundamental (ou apenas
possui o dever constitucional de efetivá-la), na medida em que é voltada para a aplica-
ção efetiva do direito fundamental ao acesso à justiça para aqueles hipossufientes fi-
nanceiros e jurídicos. Assim, imperioso colacionarmos primorosa expressão do Exmo.
Defensor Público, Dr. Rogério Nunes de Oliveira quando afirma que “embora não seja
a única instituição voltada à assistência jurídica integral e gratuita, a Defensoria Pública é,
por certo, a única agência estatal de sede constitucional verdadeiramente voltada à tutela
objetiva dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos – tanto no plano extrajudicial
e judicial quanto em juízo e fora dele – haja vista o seu inescapável envolvimento ideológico
com a causa magna do acesso à justiça”.9

Toda estrutura constitucional tem como marco indelével a formação de um Esta-


do Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada
na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução
pacífica das controvérsias.10 Porém, conflitos existem face a complexidade da socie-
dade e da relação entre as pessoas. E, na visão pacifista de solução destes conflitos, é
necessários efetivarmos a igualdade material entre os indivíduos. Se, no entanto, sa-
bemos que a divisão social perdura no nosso país, é na ampla e gratuita assistência
judiciária que tentaremos minimizar estas diferenças.

Por todo este raciocínio, não podemos deixar de afirmar e repetir que a Defenso-
ria Pública prima pela função (dever) constitucional de garantir o exercício do direitos
–também constitucional- do acesso à justiça, efetivando, desta forma, o parâmetro
constitucional da dignidade da pessoa humana, através da busca à ordem jurídica jus-
ta, independentemente daqueles que busca esse serviço.

A necessidade de efetivação de garantias fundamentais –


a importante função política deve deflagrar na atuação prática

O parágrafo primeiro do artigo 5º, da CRFB deve ser ressaltado uma vez que não po-
demos titubear na aplicação dos direitos e garantias fundamentais. Assim, as normas

9 OLIVEIRA, Rogério Nunes de. Assistência Jurídica Gratuita. Lúmen Júris: Rio de Janeiro, 2006, pág. 82/83.

10 É sempre oportuno relembrarmos o preâmbulo constitucional, para que um dia estas belas palavras saiam do papel e tomem efetividade prática.

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definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Portanto, não
há que aguardar quaisquer elementos ou sugestão política estrutural para fazer fun-
cionar as garantias fundamentais. Elas existem por si só! E, elas servem para garantir
os direitos com sede constitucional.

Como caracterizamos a Defensoria Pública como garantia fundamental esta deve


ter ampla aplicabilidade, para que haja efetividade ao direito que assegura. Se, por
outro lado, não houver viabilidade prática, poderemos afirmar que a Constituição da
República seguiria como mero pedaço de papel na visão de Lassale11 (e estamos dian-
te do desvalor de um direito fundamental).

Tornando, portanto, presente na nossa cultura jurídica, pode-se afirmar, assim


como fez Ferrajoli, que se mensuramos a adequação de um sistema constitucional,
sobretudo pelos mecanismos de invalidação e de reparação idôneos, de modo geral,
a assegurar efetividade aos direitos normativamente proclamados: uma Constituição
pode ser muito avançada em vista de princípios e direitos sancionados e não passar
de um pedaço de papel, caso haja defeitos de técnicas coercitivas – ou seja, de garan-
tias – que propiciem o controle e a neutralização do poder e do direito ilegítimo12. Mas,
para tanto, não podemos esperar apenas determinismo constitucional e político; de-
vemos criar, criticar e tornar a aplicação de direitos a máxima função da nossa Insti-
tuição, senão, assim como outras, será uma garantia fundamental destituída de valor
e reconhecimento.

Com toda a necessária busca de melhorias estruturais e físicas, especialmente,


ao corpo de funcionários de apoio, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro,
almeja status de Instituição padrão para o Brasil. Assim, podemos afirmar que somos
privilegiados em exclamar a realização máxima de direitos fundamentais através da
assistência jurídica integral13 no nosso Estado.

Este elogio –que não é apenas desta Assessoria Criminal, mas de qualquer pessoa
que nos conheça – não serve para nos acomodarmos diante de importantes funções,
pelo contrário, funciona para criarmos mais disposição e poder para seguirmos como
modelo de proteção à dignidade da pessoa humana. Nossa Instituição luta, diuturna-

11 LASSALLE. Ferdinand. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, pág. 53

12 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002, pág. 684.

13 Desde Núcleos de primeiro atendimento; nas varas cíveis, família, sucessões, criminais; passando aos Núcleos “super” Especializados; no Tribunal de Justiça
e, com ênfase, nos Tribunais Superiores.

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mente, para angariar espaços públicos e sociais. Mas, não podemos pensar que essa
batalha nos minimiza. Na realidade, ela se potencializa na medida em que há um incô-
modo burguês ( na melhor interpretação da palavra) em que aqueles hipossuficientes
não merecem ver todos os seus direitos acolhidos14 (incluindo o ofendido na situação
processual penal), como não fosse cidadãos, na medida em que destituído de direitos
ou apenas minimizando sua aderência.

Nesta linha de raciocínio, esta garantia fundamental deve estar presente em to-
das as oportunidades em que se estiver lutando pelos direitos individuais ou sociais
em lesão, sob pena de inobservância do parágrafo primeiro do artigo 5º da CFRB e in-
diferença ao parâmetro constitucional previsto no artigo 1º, III desta Norma Maior.

Para além da atuação típica – a função de proteção de defesa de direitos daqueles


que não possuem condições financeira e jurídica deste amparo – A possibilidade ins-
titucional do Defensor Público exercer a função de assistente de acusação versus sua
independência funcional.

Por todos os argumentos expostos, não podemos olvidar que a atuação do De-
fensor Público como assistente de acusação, está identificado como uma das suas re-
levantes funções. É o que a Constituição da República proclama; é o que o avanço aca-
dêmico e legislativo procura; é o que a sociedade precisa, em alguns casos concretos!

No entanto, outro ponto de análise na discussão deve ser observado: a independên-


cia funcional do Defensor Público. Nesta linha, dois pontos devem ser postos em análise:

1ª) se o Defensor Público está exercendo as funções de defesa técnica do acusado;

2º) o acusado possui advogado constituído.

Na primeira hipótese, denota-se natural seu impedimento. Assim, caberá ao ofen-


dido, caso deseja a habilitação como assistente de acusação, procurar o Defensor Pú-
blico Tabelar para que haja designação especial. Assim, este, eventualmente, poderá
exercer suas funções defendendo o ofendido habilitado como assistente de acusação.
Contudo, não se pode esquecer que a função é atípica, portanto, dependerá da análi-
se subjetiva do Defensor Público Tabelar. Aqui, a situação não convencional ocorrerá:
dois Defensores Públicos atuando, cada um na defesa dos interesses de seus assisti-

14 Basta pensarmos nas críticas e ações contra a legitimação da Defensoria Pública para ajuizar ações civis públicas.

294
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dos. O Titular defenderá o acusado; já o Tabelar o ofendido habilitado como assistente


de acusação.

Diante da segunda hipótese, embora na prática possa figurar como situação anô-
mala, o Defensor Público que diuturnamente exerce a função constitucional da defesa
técnica, poderá realizar a defesa do ofendido no auxílio acusatório. A delicadeza da
posição impõe análise sensível pelo Defensor Público neste exercício funcional.

Neste contexto, nunca é demais a repetição de efetividade de garantias funda-


mentais. Portanto, a referida igualdade material preconizada por nossa Constituição
colocada em prática geraria uma simples afirmativa: caso o ofendido possuísse con-
dições financeiras contrataria advogado particular e este, sem delongas, patrocinaria
seus interesses na qualidade de assistente de acusação. Não possuindo, no entanto,
estas condições, cabe à Defensoria Pública a defesa de seus interesses. Afirma-se não
se tratar de solicitação, mas imposição da nossa Constituição da República, ainda que
haja a presença de acusador público.

Ante ao exposto, é o parecer desta Assessoria Criminal para reconhecer a possi-


bilidade da atuação da Defensoria Pública para defender os interesses do ofendido.
Porém, em face da independência funcional, bem como a situação especial em refe-
rência, já que figura como função atípica do Defensor Público, esta Assessoria indica a
necessidade de análise circunstancial e sensível do Defensor Público Titular ou Tabelar
para a entrevista com o ofendido, avaliando o caso concreto para eventual habilitação
como assistente técnico.

Este é o parecer que submeto à consideração de Vossa Excelência.

Rio de Janeiro, 18 de junho de 2009.

Denis Sampaio

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PARECER
DEVER DO(A) DEFENSOR(A) PÚBLICO(A) DE CLASSE ESPECIAL O COMPARECIMENTO
E SUA PERMANÊNCIA NAS CÂMARAS CÍVEIS / CRIMINAIS DURANTE OS JULGAMENTOS -
ACESSO EFETIVO À JUSTIÇA VERSUS INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL

PARECER
DEVER DO(A) DEFENSOR(A) PÚBLICO(A)

DE CLASSE ESPECIAL O COMPARECIMENTO E

SUA PERMANÊNCIA NAS CÂMARAS CÍVEIS / CRIMINAIS

DURANTE OS JULGAMENTOS – ACESSO EFETIVO

À JUSTIÇA VERSUS INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL

Cuida o presente de Procedimento administrativo iniciado através de solicitação da


Exma. Sra. Dra. Corregedora-Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Ja-
neiro, para elaboração de parecer objetivando a edição de ato normativo quanto à
obrigatoriedade ou não da presença do Defensor Público de Classe Especial na sessão
de julgamento das Câmaras Cíveis e Criminais, Seção Criminal, Órgão Especial e Tur-
mas Recursais.

O Exmo. Dr. Defensor Público e Assessor de Assuntos Institucionais e Ações Resci-


sórias, elaborou parecer indicando ser inegável a importância da presença do Defensor
Público no momento do julgamento para eventual sustentação oral, quando necessá-
ria, bem como afirmou tratar-se de avaliação pessoal do Defensor Público quanto a
sustentação em decorrência da sua autonomia e independência funcional.

O Exmo. Defensor Público Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de


Janeiro, em ato exarado à fl. 06v. afirmou que é dever do Defensor Público de Clas-
se Especial o comparecimento e sua permanência nas Câmaras Cíveis / Criminais
durante os julgamentos.

Após o referido ato, a Exma. Sra. Dra. Corregedora-Geral da Defensoria Públi-


ca do Estado do Rio de Janeiro sugeriu novo encaminhamento à Assessoria Criminal
para elaboração de parecer analisando a necessidade da edição de ato normativo a
respeito da questão analisada.

É o simples relatório.

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DEVER DO(A) DEFENSOR(A) PÚBLICO(A) DE CLASSE ESPECIAL O COMPARECIMENTO
E SUA PERMANÊNCIA NAS CÂMARAS CÍVEIS / CRIMINAIS DURANTE OS JULGAMENTOS -
ACESSO EFETIVO À JUSTIÇA VERSUS INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL

Garantia Constitucional do acesso à justiça –


a defesa da ordem jurídica justa

A garantia do acesso à justiça não se mostra recente. Há séculos esta é uma grande pre-
ocupação da humanidade com vários enfoques de escopo. Podemos ilustrar apenas
dois: um, diz respeito à legitimação de decisões que resolvem a vida de indivíduos, ainda
que estas decisões sejam flagrantemente destituídas de justiça; outro aponta a neces-
sidade de um maior controle pelo indivíduo em relação à intervenção Estatal, para diri-
mir eventuais conflitos de interesses ou poder. O atual problema, no entanto, não é sua
previsão, mas a identificação do efetivo acesso à justiça e sua adequação constitucional.

A valorização do indivíduo do Pós-Guerra, frente a radical intervenção estatal, fez


com que reservasse uma maior gama de direitos e garantias fundamentais, gerando
um sistema de proteção ao ser humano (na sua individualidade e na relação social),
com a difusão natural da defesa internacional dos direitos humanos.

Várias foram as formas de atuação para adequação moderna deste sistema de


proteção, mas a principal delas diz respeito a atuação positiva do Estado para a efeti-
vação prática destes direitos fundamentais.

Não ficou de fora o direito ao acesso à justiça, até porque o pilar mor de maior
proteção jurisdicional do indivíduo quando diante de conflitos de interesses ou direi-
tos. Assim, direito ao acesso à justiça “tem sido progressivamente reconhecido como
sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez que
a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua
efetiva reinvindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como requisito
fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno
e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.”1 É
a partir desta garantia que podemos afirmar a presença da isonomia entre as partes
diante de seus conflitos ou mesmo um conflito social , o que gera a igualdade2 jurídica,
como postulado maior da aplicação da Justiça. O que se busca, portanto, é a máxima
redução de desigualdades jurídicas, econômicas e sociais.

No âmbito penal o Estado detém toda a estrutura repressora. Podemos, portan-


to, afirmar que o princípio da legalidade penal serve como limitador à aplicação da

1 CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. TRD. Ellen Gracie Northfleet. Sergio Antonio Fabris: Porto Alegre, 1988, pág. 11/12.

2 Esta igualdade, como todos nós sabemos, é apenas um mito, uma vez que funciona como “recurso lingüístico no discurso ideológico de quem tem condições
de, através dele, exercer dominação social” GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988, Ed. Ed. Malheiros:São Paulo, 2001, pág. 25.

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E SUA PERMANÊNCIA NAS CÂMARAS CÍVEIS / CRIMINAIS DURANTE OS JULGAMENTOS -
ACESSO EFETIVO À JUSTIÇA VERSUS INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL

intervenção repressiva. E, se qualquer indivíduo, eventualmente, praticar condutas


previstas em lei, será necessária outra limitação a investida repressiva do Estado, que
poderíamos concluir pelo processo penal, através da identificação de todos os direitos
e garantias fundamentais.

No outro lado, quando a pretensão for extra-penal, o Estado agirá para a solução
pacífica dos conflitos, uma vez que a investida privada está, por completo, afastada de
uma sociedade em busca de harmonia e tranqüilidade social. Por esta linha de racio-
cínio, a indeclinabilidade da prestação jurisdicional caracteriza-se como garantia fun-
damental à estrutura social e de um Estado Constitucional Democrático de Direito.

O que se observa, portanto, que a inafastabilidade do Poder Judiciário quando


houver lesão ou ameaça a direito (art. 5º, inciso XXXV, CFRB), além de fazer parte do
sistema de proteção aos direitos individuais, adequado ao paradigma também consti-
tucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), converge a uma estrutura
de harmonia social.

Podemos afirmar, portanto, que após o crescimento natural e a consequente com-


plexidade da sociedade, o direito ao acesso à justiça permanece entre aqueles que es-
tabelecem o alicerce maior de um Estado Democrático. Está ele, portanto, ao lado – se
é que isso possa ser possível e imaginável – da proteção à vida; liberdade; personali-
dade, até porque, na expressão de Marinoni e Arenhar, a garantia constitucional do
acesso à justiça deve ser “reconhecida como aquela que deve garantir a tutela efetiva
de todos os demais direitos. A importância que se dá “ao direito” de acesso à justiça
decorre do fato de que a ausência de tutela jurisdicional efetiva implica a transforma-
ção dos direitos garantidos constitucionalmente em meras declarações políticas...”3

Não poderíamos deixar de enfocar, no caso em questão, as ondas renovatórias


do acesso à justiça de Cappelletti e Garth. Três são essas ondas: a assistência judi-
ciária; representação jurídica para os interesses difusos; enfoque de efetivação ao
acesso a justiça.

Nosso interesse poderia se restringir à primeira onda. Mas, como a ciência jurídi-
ca não pode parar no tempo, até porque acompanha o dinamismo social, os direitos e
garantias fundamentais também devem acompanhar esta interpretação e aplicação.
Assim, para o caso enfrentado, além da assistência judiciária a terceira onda renovató-

3 MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHAR, Sérgio Cruz. Manual do processo de Conhecimento. Ed. Ed.. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2004, pág. 30.

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DEVER DO(A) DEFENSOR(A) PÚBLICO(A) DE CLASSE ESPECIAL O COMPARECIMENTO
E SUA PERMANÊNCIA NAS CÂMARAS CÍVEIS / CRIMINAIS DURANTE OS JULGAMENTOS -
ACESSO EFETIVO À JUSTIÇA VERSUS INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL

ria – efetivação do acesso à justiça – gera imprescindível ponto de contato, indicando,


na realidade o acesso à ordem jurídica justa.

A Defensoria Pública como garantia fundamental

A imprescindibilidade da intervenção jurisdicional quando diante de conflitos indivi-


duais ou sociais gerou um grave problema àqueles que não possuíam conhecimento
jurídico sobre a matéria pleiteada: a de ser representado por advogados. O primeiro
esforço, portanto, para a garantia do acesso à justiça, diz respeito a assistência jurídi-
ca. Para alguns, este serviço mostra-se fácil, basta possuir condições financeiras para
contratar advogados particulares para dirimir dúvidas jurídicas ou representá-los em
juízo; para outros – e podemos ousar em afirmar ser a maioria – não haverá essa pos-
sibilidade, o que amplia esse problema.

A observância deste descompasso com o acesso à justiça, levou no início do Sécu-


lo XX a criação de serviços jurídicos para os hipossuficientes (pobres na expressão de
Cappelletti). Contudo, este serviço iniciou através de advogados pro bono, destituídos
de qualquer contraprestação. Não precisamos ir longe em afirmar que esta situação gera
apenas uma assistência jurídica fictícia, na medida em que indica que a devoção de seus
serviços acompanhará as causas remuneradas, pela simples economia capitalista e es-
truturada na relação de consumo. Em economia de mercado, como expressa Cappelletti
e Garth, “a realidade diz que, sem remuneração adequada, os serviços jurídicos para os
pobres tendem a ser pobres, também. Poucos advogados se interessam em assumi-los,
e aqueles que o fazem tendem a desempenhá-los em níveis menos rigorosos.”4

Esta situação gera outro problema insuperável diante de uma sociedade demo-
crática que pode ser observado pela ausência de controle deste serviço. Sabemos que
todo atuar, público ou privado precisa de controle sob pena de gerar além do des-
serviço, arbitrariedades ou omissões. Da mesma forma a assistência jurídica. Ora, a
ausência de contraprestação na criação deste serviço assistencial gera deficiência na
relação fiscalizatória.

Neste sentido, podemos criticar, de forma veemente, a nomeação de advogados


dativos – sem contraprestação – para alguns atos processuais, na medida em que,

4 CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. TRD. Ellen Gracie Northfleet. Sergio Antonio Fabris: Porto Alegre, 1988, pág. 47/48.

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muitas das vezes, não há um sentimento e obrigatoriedade nesta função caracteriza-


da como múnus público.

Com a ciência de ineficácia destes serviços, muitos países5, e para nós alguns Es-
tados, criaram serviços de prestação de assistência judiciária por advogados remune-
rados pelo próprio Estado. Esta remuneração, no entanto, fica limitada a uma tabela
pré-estabelecida, até para não fomentar eventuais enriquecimentos ilícitos. Também,
na maioria dos casos, a tabela remuneratória fica aquém dos honorários recebidos
pelas questões particulares, o que gera, indubitavelmente, uma maior procura as cau-
sas de melhor remuneração.

Esta questão não soluciona o problema, uma vez que a ausência de controle do
serviço prestado não é realizada, até porque, não será o jurisdicionado que irá arcar
com o valor remuneratório, indicando uma deslegitimação para esta fiscalização.

Assim, a atuação nestes casos servirá para os advogados de menor qualificação


técnica ou para aqueles que pretendem uma aproximação à pessoa do julgador.

Outro problema enfrentado por este sistema diz respeito a ausência de procura
na defesa dos direitos dos indivíduos de classe mais humilde. Na área criminal o siste-
ma poderia funcionar muito bem, mas tal não ocorre se falarmos nas questões civis,
sucessórias, ambientais – inclusive anteriores à intervenção jurisdicional. Há, na reali-
dade, uma maior dificuldade de aproximação da classe mais humilde (no que tange ao
aspecto financeiro e, principalmente, cultural) na luta por seus direitos como já apon-
tava Rudolf Von Ihering.

Esse sistema cria uma relação de passividade entre o advogado e o seu “cliente”,
na medida em que somente atuará quando for procurado, e se for, pelo indivíduo.

Soma-se ao fato de que dificilmente haverá maior defesa dos interesses do jurisdi-
cionado nas questões levadas ao Tribunal. Pensa-se, o que não constitui verdade, que
as causas são solucionadas pelo juízo de primeiro grau. Ledo engano, uma vez que a
atividade de julgar não poderá ficar a cargo de uma única pessoa, já que esta relação
de onipresença não se adéqua a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição.
Assim, a ausência de procura e fiscalização poderá levar a uma “meia” defesa de seus
direitos impedindo eventuais re-análise da matéria decidida.

5 Foi o sistema criado em alguns países ocidentais, denominado Sistema Judicare.

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Outra crítica de extrema relevância nos dias atuais diz respeito as questões não
individuais. Ou seja, se este sistema funcionasse, de certo, não transcenderia às rela-
ção interpessoais. A defesa dos direitos difusos para aqueles destituídos de valores
financeiros e culturais estaria afastados da prestação jurisdicional.

O certo é que a advocacia dativa, quando não cadastrada, remunerada e fiscali-


zada pelo próprio Estado, indica apenas um serviço factóide de assistência judiciária,
afastando, por completo, a primeira onda renovatória, na visão de Cappelletti, bem
como ao acesso à ordem jurídica justa.

Neste sentido, os princípios atinentes à administração pública, com ênfase na


legalidade, moralidade e eficiência, indicam uma maior aproximação da Defensoria
Pública como instituição encarregada de completar a garantia constitucional do aces-
so à justiça, indicando a necessidade de assistência jurídica integral e gratuita. Assim,
adverte Rogério Nunes que “a indispensabilidade de oportunidades para a concretização
da defesa técnica efetiva no processo e fora dele é um elemento que integra a compreensão
moderna do devido processo legal, fica evidenciado que o direito fundamental à assistên-
cia jurídica integral e gratuita também é alicerçado nesse princípio constitucional. E, se nos
for permitida a alegoria para arrematar, pensamos que o direito à assistência jurídica in-
tegral e gratuita é o fiel da balança do ordenamento jurídico brasileiro, que objetiva não só
assegurar a par condicio no campo processual do litígio, mas também, e principalmente,
coadjuvar no plano da realização material do princípio da dignidade humana, fundamen-
to primeiro e último de um Estado que se pretenda de Direito”.6

Não é só porque o artigo 134 da Constituição da República coloca a Defensoria


Pública como Instituição essencial à função jurisdicional do Estado, que se indica ne-
cessária à garantia ao acesso à justiça. Na realidade, a partir de um contexto democrá-
tico, a possibilidade de cobrança e controle, fundamentados pela moralidade e efici-
ência, colocam esta Instituição com grau de essencialidade na busca da primeira onda
renovatória de Cappelletti e ainda, na em relação do acesso à ordem jurídica justa.

O Legislador Constituinte Originário, fez incluir no rol dos direitos fundamentais


o dever do Estado em prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que provarem
insuficiência de recursos. Assim, podemos afirmar que não mais estamos diante de um
favor estatal em dar ao indivíduo um possível acesso à justiça. Na realidade, a busca
é de redução de danos àqueles que não possuem condições financeiras (e em alguns

6 OLIVEIRA, Rogério Nunes de. Assistência Jurídica Gratuita. Lúmen Júris: Rio de Janeiro, 2006, pág. 70.

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casos, condições culturais de busca aos seus direitos), se dá pela obrigatoriedade do


Estado em reconhecer, na prática, este direito constitucional ao indivíduo. Esta norma
constitucional deve ser devidamente garantida pela Instituição Defensoria Pública em
todo o território nacional.

Oportuno, portanto, a diferenciação resumida entre direitos e garantias funda-


mentais, remontando a Rui Barbosa, ao separar as disposições meramente declara-
tórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos e, as dis-
posições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder.

Assim, afirma JORGE MIRANDA que os direitos representam por si certo bens, as ga-
rantias destinam-se a assegurar a fruição desses bens; os direitos permitem a realização
das pessoas e inserem-se directa e imediatamente, por isso, as respectivas esferas jurídicas,
as garantias só nelas se projetam pelo nexo que possuem com os direitos e transformadora,
em virtude da força expansiva que possuem.7 Na acepção juracionalista inicial, os direitos
declaram, as garantias estabelecem-se. Da mesma forma ilustra JOSÉ AFONSO DA SILVA
na medida em que os direitos são bens e vantagens conferidos pela norma e garantias
são os meios destinados a fazer valer esses direitos.8

Se a função da garantia é assegurar o direito, podemos, facilmente afirmar que,


a Instituição Defensoria Pública possui natureza de garantia fundamental, na medida
em que é voltada para a aplicação efetiva do direito fundamental ao acesso à justiça
para aqueles hipossufientes financeiros e jurídicos. Assim, imperioso colacionarmos
primorosa expressão do Exmo. Defensor Público, Dr. Rogério Nunes de Oliveira quan-
do afirma que “embora não seja a única instituição voltada à assistência jurídica integral
e gratuita, a Defensoria Pública é, por certo, a única agência estatal de sede constitucional
verdadeiramente voltada à tutela objetiva dos direitos e garantias fundamentais dos cida-
dãos – tanto no plano extrajudicial e judicial quanto em juízo e fora dele – haja vista o seu
inescapável envolvimento ideológico com a causa magna do acesso à justiça”.9

Toda estrutura constitucional tem como marco indelével a formação de um Esta-


do Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada

7 Manual de Direito Constitucional, vol. 2, p. 226-227.

8 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 1a. Ed. Malheiros: São Paulo, 1994, pág. 392.

9 OLIVEIRA, Rogério Nunes de. Assistência Jurídica Gratuita. Lúmen Júris: Rio de Janeiro, 2006, pág. 82/83.

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na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução


pacífica das controvérsias.10 Porém, conflitos existem face a complexidade da socie-
dade e da relação entre as pessoas. E, na visão pacifista de solução destes conflitos, é
necessários efetivarmos a igualdade material entre os indivíduos. Se, no entanto, sa-
bemos que a divisão social perdura no nosso país, é na ampla e gratuita assistência
judiciária que tentaremos minimizar estas diferenças.

Por todo este raciocínio, não podemos deixar de afirmar e repetir que a Defensoria
Pública prima pela função (dever) constitucional de garantir o exercício do direitos –tam-
bém constitucional – do acesso à justiça, efetivando, desta forma, o parâmetro constitu-
cional da dignidade da pessoa humana, através da busca à ordem jurídica justa.

A necessidade de efetivação de garantias fundamentais –


a importante função política deve deflagrar na atuação prática

O parágrafo primeiro do artigo 5º, da CRFB deve ser ressaltado uma vez que não po-
demos titubear na aplicação dos direitos e garantias fundamentais. Assim, as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Portanto, não
há que aguardar quaisquer elementos ou sugestão política estrutural para fazer fun-
cionar as garantias fundamentais. Elas existem por si só! E, elas servem para garantir
os direitos com sede constitucional.

Como caracterizamos a Defensoria Pública como garantia fundamental esta deve


ter ampla aplicabilidade, para que haja efetividade ao direito que assegura. Se, por
outro lado, não houver viabilidade prática, poderemos afirmar que a Constituição da
República seguiria como mero pedaço de papel na visão de Lassale11 (e estamos dian-
te do desvalor de um direito fundamental).

Tornando, portanto, presente na nossa cultura jurídica, pode-se afirmar, assim


como fez Ferrajoli, que se mensuramos a adequação de um sistema constitucional,
sobretudo pelos mecanismos de invalidação e de reparação idôneos, de modo geral,
a assegurar efetividade aos direitos normativamente proclamados: uma Constituição
pode ser muito avançada em vista de princípios e direitos sancionados e não passar
de um pedaço de papel, caso haja defeitos de técnicas coercitivas – ou seja, de garan-

10 É sempre oportuno relembrarmos o preâmbulo constitucional, para que um dia estas belas palavras saiam do papel e tomem efetividade prática.

11 LASSALLE. Ferdinand. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, pág. 53

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tias – que propiciem o controle e a neutralização do poder e do direito ilegítimo12. Mas,


para tanto, não podemos esperar apenas determinismo constitucional e político; de-
vemos criar, criticar e tornar a aplicação de direitos a máxima função da nossa Insti-
tuição, senão, assim como outras, será uma garantia fundamental destituída de valor
e reconhecimento.

Com toda a necessária busca de melhorias estruturais e físicas, especialmente,


ao corpo de funcionários de apoio, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro,
almeja status de Instituição padrão para o Brasil. Assim, podemos afirmar que somos
privilegiados em exclamar a realização máxima de direitos fundamentais através da
assistência jurídica integral13 no nosso Estado.

Este elogio – que não apenas desta Assessoria Criminal, mas de qualquer pessoa
que nos conheça – não serve para nos acomodarmos diante de importantes funções,
pelo contrário, funciona para criarmos mais disposição e poder para seguirmos como
modelo de proteção à dignidade da pessoa humana. Nossa Instituição luta, diuturna-
mente, para angariar espaços públicos e sociais. Mas, não podemos pensar que essa
batalha nos minimiza. Na realidade, ela se potencializa na medida em que há um incô-
modo burguês (na melhor interpretação da palavra) em que aqueles hipossuficientes
não merecem ver todos os seus direitos acolhidos14, como não fosse cidadãos, na me-
dida em que destituído de direitos ou apenas minimizando sua aderência.

Nesta linha de raciocínio, esta garantia fundamental deve estar presente em to-
das as oportunidades em que se estiver lutando pelos direitos individuais ou sociais
em lesão, sob pena de inobservância do parágrafo primeiro do artigo 5º da CFRB e in-
diferença ao parâmetro constitucional previsto no artigo 1º, III desta Norma Maior.

Voz – Fiscalização – Assédio –


Dever Constitucional da Defensoria Pública

Há uma gama de indivíduos que não conseguem se expressar; outros que conseguem,
mas não possuem mecanismos de cobrança de seus direitos; alguns possuem estas

12 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002, pág. 684.

13 Desde Núcleos de primeiro atendimento; nas varas cíveis, família, sucessões, criminais; passando aos Núcleos “super” Especializados; no Tribunal de Justiça
e, com ênfase, nos Tribunais Superiores.

14 Basta pensarmos nas críticas e ações contra a legitimação da Defensoria Pública para ajuizar ações civis públicas.

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duas qualidades, mas não obtém recursos práticos para realizá-las; e alguns conse-
guem acoplar tudo isso e ainda assim não alcançam êxito no seu direito.

Como já afirmamos, nossa sociedade é efetivamente preconceituosa, realizando


uma atuação de marginalização daqueles desafortunados (na visão econômica, social
e cultural). Infelizmente, a desigualdade social denota a estrutura do nosso país e, pior,
para muitos esta situação cria conforto, na medida em que há um realce para os que
não estão à margem da sociedade. A busca de uma igualdade é o discurso político;
efetivá-la que é o grande problema no enfrentamento mundial.

Assim, a Defensoria Pública como garantia fundamental deve realizar sua função
constitucional para assediar (na análise positiva da expressão) qualquer ato que indi-
que desrespeito à igualdade entre às pessoas. Todas devem ser tratadas como iguais,
independentemente da sua condição social. Sabemos tratar-se de mera afirmativa
utópica; mas deve esta Instituição Constitucional fomentar, em todas as oportunida-
des, este direito fundamental.

O que estamos colocando, portanto, que a Defensoria Pública não realiza apenas
o acesso à justiça; acreditamos que a dinâmica da valorização do Estado Social criou
(ou tenta criar) mecanismos de aproximação à igualdade material. Assim, a presença
da Defensoria Pública em todas as Comarcas do Estado, nos Tribunais (Local ou Su-
periores) indica a possibilidade de criação de um cerco à ruptura desta desigualdade
social. Significativa, por conseqüência, é a afirmativa do Exmo. Defensor Público Paulo
Galliez em primorosa obra de leitura imprescindível para todos os Defensores quando
afirma que “ressalta o papel da Defensoria Pública como instrumento de transformação
social, através do desenvolvimento da atividade de orientação e conscientização de seus
assistidos a respeito da motivação social e econômica do litígio, dando concreção, desse
jeito, ao princípio da igualdade preconizado na Constituição Federal”.15

Não só o assédio, mas também se denota importante para todos os hipossufi-


cientes, o controle realizado pela Defensoria Pública em relação às atividades do Po-
der Executivo e Judiciário. Esta fiscalização é idealizada justamente para que não haja
uma relação de minimização exacerbada do Estado para com os hipossuficientes. A
ausência de Defensores Públicos em Comarcas gera – e, infelizmente, sabemos que
ocorre –, uma brusca inaptidão de alcançar direitos individuais e sociais. A cobrança

15 GALLIEZ, Paulo. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001, pág. 38.

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de obrigações, no entanto, aumenta, violando certo equilíbrio entre o dever do indiví-


duo e seus direitos.

O que já demonstra uma atmosfera superior do Estado para com os indivíduos,


maximiza, pela ausência de controle quando ausente este órgão de fiscalização. Po-
demos afirmar que, além de gerar garantia fundamental, a presença da Defensoria
Pública perante o órgão do Poder Judiciário, ou mesmo nas localidades (Núcleos de
Bairros) indica verdadeiro sistema de proteção aos indivíduos classificados como hi-
possuficientes, não apenas para buscar a defesa dos seus direitos, mas para minimi-
zar o próprio preconceito social.

Por fim, podemos afirmar que a presença da Defensoria Pública garante a voz dos
hipossuficientes. Uma das piores desilusões pessoais é não ser ouvido. Os sentimen-
tos, as desilusões, as críticas, as expressões negativas e positivas e a luta pelo direito
deve ser difundida em alusões de comunicação. Quando há apenas um espelho em
que o reflexo retorna sua exclamação, a frustração toma corpo do ser humano.

Nada mais humilhante do que não ser ouvido! E, quando estamos diante de con-
flitos de interesses e direitos, em muitos casos, o porta-voz será justamente o Defen-
sor Público. Justamente por isso que o primeiro a ser cobrado é o próprio Defensor
que luta pelo direito do seu assistido.

Injustiça? Não, apenas um dos atributos inerentes à esta função. Verdadeiro com-
promisso constitucional de ser cobrado, até porque, em grandes exemplos, somente
com o Defensor Público que o hipossuficiente (econômico, social e cultural) irá se co-
municar quando apontarmos pendências jurídicas.

Hoje já se mostra inimaginável a ausência de algumas estruturas. Mas lembremos


os presos sem poder se comunicar com os Defensores Públicos do Núcleo do Sistema
Penitenciário; as famílias com os Defensores Públicos da VEP; as crianças e adolescen-
tes e seus genitores com os Defensores Públicos do CEDEDICA; os idosos e portadores
de doenças com os Defensores Públicos do NEAPI; as mulheres vítimas de violência
com os Defensores Públicos do NUDEM; os indivíduos com problemas consumeristas
com os Defensores Públicos do NUDECON; os desafortunados necessitando de inter-
nações e remédios com os Defensores Públicos do Núcleo de Fazenda Pública; um
morador do interior que tivesse que percorrer quilômetros na busca de um Defensor
Público de outro Município; aqueles que já estão com a causa no Tribunal com os De-
fensores Públicos de Classe Especial. Imaginemos, hoje, a ausência de representativi-

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dade da Defensoria Pública do Rio de Janeiro no Superior Tribunal de Justiça e no Su-


premo Tribunal Federal, e outros órgãos de igual relevância?

Portanto, outra função de extrema importância da Defensoria Pública, ao nosso


sentir, é a criação de um sistema de comunicação e voz entre os indivíduos e o próprio
Estado. Esta voz serve para cobrar, criticar, fiscalizar ou até concordar com a atuação
da pacificação social através de uma decisão judicial ou da intervenção do poder pú-
blico. Nossos assistidos merecem este mecanismo de apoio social e fundamental; nós,
Defensores Públicos, devemos o máximo de respeito a eles e a solidificação da nossa
função constitucional. Assim, de forma resumida, nossa presença em todos os locais
de lotação gera um dever (quase) supra-legal, para garantir a voz, o acesso, a proteção,
o assédio, a fiscalização, sempre em prol da cidadania e dignidade da pessoa humana.

O Dever Legal de Presença –


O Dever Constitucional da Defesa ampla dos Direitos Constitucionais
– A Função do Defensor Público

O artigo 129 da LC 80/94 indica os deveres atinentes aos Defensores Públicos. Para a
pertinência do tema enfrentado, podemos destacar os incisos II e V, indicando que de-
verá desempenhar com zelo e presteza, dentro dos prazos, os serviços a seu cargo e
os que, na forma da lei, lhes sejam atribuídos pelo Defensor Público-Geral, bem como
atender ao expediente forense e participar dos atos judiciais, quando for obrigatória
a sua presença.

Da mesma forma, a LC 6/77, já no seu segundo artigo, aponta que forma expressa
que à Defensoria Pública como instituição, incumbe a postulação e a defesa, em todas
as instâncias, dos direitos dos juridicamente necessitados.

Nesta linha, o artigo 22 do mesmo Diploma Legal, abarca outros deveres aos De-
fensores Públicos, incluindo o atendimento e orientação as partes e interessados em
locais e horários pré-estabecidos (art. 22, II); acompanhar, comparecer aos atos pro-
cessuais e impulsionar os processos, providenciando para que os feitos tenham sua
tramitação normal, utilizando-se de todos os meios processuais cabíveis (art. 22, IV);
sustentar, quando necessário, nos Tribunais, oralmente, ou por memorial, com có-
pia à Corregedoria Geral, os recursos interpostos e as razões apresentadas por inter-
médio da Defensoria Pública; os Defensores Públicos poderão deixar de promover
a ação quando ela for manifestamente incabível ou inconveniente aos interesses

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da parte sob seu patrocínio, comunicando o fato ao Defensor Público Geral, com
as razões de seu proceder (art. 23).

O artigo 129 da LC 06/77 é explícito no dever de comparecimento a todos os órgão


de atuação do Defensor Público. Assim, impõe que é dever dos membros da Defen-
soria Pública comparecer diariamente, no horário normal do expediente, à sede
do órgão onde funcionem, exercendo os atos de seu ofício (art. 129, par. 1º, I).

Portanto, dúvidas não há em que é dever legal do Defensor Público estar presen-
te nos órgãos de atuação em que são lotados e designados, sob pena de violação a
determinações normativas.

Mas não é só! Além de previsões infraconstitucionais, a Constituição da República


cria deveres implícitos e explícitos a órgãos da administração pública e a necessidade
de viabilidade prática dos direitos fundamentais. Por esta abordagem, o artigo 37 da
CRFB adverte a presença dos princípios básicos da administração pública, indicando,
em especial, a moralidade e eficiência em seus serviços. A Defensoria Pública como
Instituição pública, com sua ocupação por agentes políticos, também está adstrita a
esses princípios. Qualquer ato em si, deve ser desempenhado pela máxima moralida-
de e eficiência para que se adéque às determinações constitucionais.

Por outro lado, a presença do Defensor Público nos órgãos de lotação e designação,
indica, não apenas um dever relacionado aos atos da administração pública direta, mas,
principalmente, a aplicabilidade de uma garantia fundamental, como já ressaltamos.

Através da caracterização do atuar do Defensor Público como garantia funda-


mental para assegurar o direito ao acesso à uma ordem jurídica justa, não vemos
como fazê-lo senão pela sua máxima efetividade. E, não seria possível com a ausência
do Defensor Público quando devidamente designado para um órgão de atuação.

Aquelas funções do Defensor Público de garantir a voz do cidadão; de proteção


aos direitos individuais e da fiscalização à atuação de outros Poderes, indicam, por
si só, a necessidade, indiscutível, da presença deste agente, posto que, sua ausência
poderá gerar uma mácula no sistema de proteção dos direitos fundamentais dos ci-
dadãos , gerando verdadeira ruptura na isonomia entre as partes que estão diante de
um conflito jurisdicional.

A preocupação de efetivação dos direitos fundamentais não é recente. Noberto


Bobbio, indicou com propriedade que lhe é peculiar que “o problema grave de nosso

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tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de
protegê-los. (...)

Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num
sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual
é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou re-
lativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das
solenes declarações, eles sejam continuamente violados.16

É nesta linha de raciocínio, ratificando todas as funções e natureza dos Defenso-


res Públicos, que não podemos afastar a presença destes em seus órgãos de atuação,
para garantir um acesso amplo e irrestrito à comunicação, defesa dos interesses e
proteção aos hipossuficientes financeiros e jurídicos que buscam a tutela de seus in-
teresses através da defesa da ordem jurídica justa.

Soma-se ao fato de que a imagem da Defensoria Pública depende, efetivamente,


de seus membros. Casa ausência notada reserva um ponto negativo na Instituição que
se denota emblemática na mudança cultura para um dever constitucional de igualda-
de material e mudança social.

A efetividade dos direitos fundamentais, não podemos esquecer, passa além da


sua previsão normativa, indo ao encontro da sua aplicabilidade prática, com o máxi-
mo de controle e participação social. A presença do Defensor Público nos seus órgãos
de atuação indica a despreocupação com a cobrança social, até porque, indicativa de
uma proximidade a democracia participativa.

Nós, Defensores Públicos, primamos para a leitura e defesa da Constituição da Re-


pública, com ênfase aos seus artigos introdutórios e ao preâmbulo; nos mostramos
prontos para a defesa de qualquer violação de direitos; buscamos a efetividade do aces-
so à uma ordem jurídica justa, com a defesa das nossas prerrogativas para a busca da
igualdade material. Contudo, estas atribuições somente serão possíveis com a presença
de todos seus membros nos órgãos de atuação quando lotados ou designados. A forma
assecuratório de direitos apenas será viável com a vivificação máxima da garantia. Se
há, portanto, direito a ser defendido; há a necessidade, obrigatoriedade legal e imposi-
ção constitucional da presença do Defensor Público no seu órgão de atuação!

16 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, pág. 25.

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Para muito além da presença –


independência funcional versus defesa de direitos

O dever legal e constitucional da presença do Defensor Público em seu órgão de atua-


ção, para a realização de todos os atos processuais e de ampliação ao acesso à ordem
jurídica justa denota-se, indiscutivelmente, presente. Porém, outra discussão que deve
ser enfrentada é a imprescindibilidade de sustentação oral na hipótese de julgamento
perante o Tribunal de Justiça nas Câmaras Cíveis e Criminais.

Uma das principais prerrogativas do Defensor Público é sua independência funcio-


nal, principalmente para litigar contra o Estado quando diante da defesa dos direitos
individuais ou difusos. Porém, não há como confundir independência funcional como
ausência de atuação enfática para assegurar a defesa dos direitos de hipossuficientes
financeiros ou jurídicos.

Haverá a sustentação oral quando necessária, conforme dispõe o artigo 22 da


LC 06/77, cabendo ao Defensor Público a análise da necessidade de sustentação oral,
face sua independência funcional, como prerrogativa institucional.

Não se pode deixar de ressaltar que a sustação oral decorre da garantia funda-
mental da ampla defesa e contraditório. Portanto, não se mostra como ato proces-
sual supérfluo ao prosseguimento regular do processo, pelo contrário, sabemos que
somente há uma maior análise de julgadores quando houver a presença do Defensor
Público nos julgamentos perante o Tribunal. Presença esta não apenas física, mas tam-
bém substancial que indique a realização de controle às decisões judiciais.

A garantia constitucional do contraditório (art. 5º, LV, CRFB) é compreendido como


o direito de ser informado de todos os atos processuais e a possibilidade de contra-
riá-los (impugná-los), gerando a paridade de armas entre as partes em conflito.

Na jurisprudência atual, um dos maiores apontamentos é o reconhecimento da


necessidade de valorização da ampla defesa e aplicação efetiva do contraditório. As-
sim, quando em épocas passadas a voz das partes era diminuída face ao iuria novit
curia, atualmente o processo deve ser analisado como ciência dialética, indicando um
maior valor à voz nos atos processuais.

Nesta linha de raciocínio, todo o advogado ou Defensor Público deve ser intimado
do dia do julgamento sob pena de nulidade absoluta, justamente pela importância da

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sustentação oral na defesa dos direitos em conflito. Podemos, portanto, ilustrar alguns
julgados pela pertinência da matéria:

HC.n.91.566-RJ

RELATORA: MIN. CÁRMEN LÚCIA

EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO DO ADVOGADO


PARA A SESSÃO DE JULGAMENTO E DO CONTEÚDO DECISÓRIO: CERCEAMENTO DE DEFESA:
CARACTERIZAÇÃO. NULIDADE ABSOLUTA. PRECEDENTES. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. 1. A
mera intimação da inclusão do recurso em pauta não assegura a data exata em que ocor-
rerá o julgamento nem garante, então, ao representante legal do Paciente o direito de com-
parecer ao julgamento para efetivar a defesa oral, na forma dos arts. 554 e 565 do CPC. 2.
A ausência de intimação para a data da sessão de julgamento pode ser, assim, considerada
causa de nulidade do ato praticado nessa condição, inclusive por ter sido frustrada eventual
possibilidade de sustentação oral. Precedentes. 3. Habeas corpus concedido. (inf. 481, STF)

Julgamento de HC: Cientificação da Defesa e Sustentação Oral

A Turma, tendo em conta que se faz mister conceder a maior alcance possível ao princípio
da ampla defesa, deferiu, em parte, habeas corpus impetrado contra decisão de Ministro
do STJ que, ante a falta de amparo legal, indeferira requerimento para que a defesa fos-
se notificada, com antecedência de 48 horas, do julgamento de idêntica medida, a fim de
que pudesse realizar sustentação oral. Considerou-se a recente mudança de entendi-
mento da Corte no sentido de que, manifestada, pela defesa, a intenção de susten-
tar oralmente, tal possibilidade a ela deve ser assegurada. Além disso, asseverou-se
que configura um direito do réu ser informado da data do julgamento como coro-
lário do direito à ampla defesa e que o STF modificara seu regimento interno (RISTF,
alterado pela Emenda Regimental 17/2006, art. 192, parágrafo único) para permitir que
o impetrante, caso requeira, seja cientificado, por qualquer meio, da data do julgamen-
to dos writs, o que não ocorrera com o regimento interno do STJ. HC parcialmente de-
ferido para que as informações acerca do julgamento do habeas corpus impetrado
no STJ sejam disponibilizadas, nos sistemas informatizados de acompanhamento pro-
cessual, com a antecedência de, pelo menos, 48 horas, conforme requerido à auto-
ridade impetrada. Precedentes citados: HC 76970/SP (DJU de 20.4.2001); RHC 90891/GO
(DJU de 24.7.2007); RHC 89135/SP (DJU de 29.9.2006); HC 88504 MC/PR (DJU de 12.9.2007).
HC 92290/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, 30.10.2007. (HC-92290)

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Notificação da Defesa e Sustentação Oral

A Turma deferiu habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ que, em idêntica me-
dida, mantivera a prisão civil do paciente. Na inicial, a impetração aduzia que o juízo de
origem, ao determinar a custódia do paciente, desconsiderara: a) a existência de depó-
sito parcial da obrigação alimentar; b) a falta de atualidade das parcelas; c) a irregular
ordem e conseqüente expedição do mandado prisional; e d) a completa ausência de con-
fusão entre a sociedade e o sócio alimentante. Sustentava, na espécie, a nulidade do jul-
gamento do writ perante o STJ, porquanto a defesa não fora notificada para a sustenta-
ção oral, embora tivesse feito tal solicitação. No mérito, reiterava a declaração definitiva
da ilegalidade da custódia, com a conseqüente anulação do mencionado julgamento. Ini-
cialmente, asseverou-se que o requerimento de declaração definitiva da ilegalidade da
prisão civil seria incompatível com as razões e o pedido formulados na inicial, que so-
mente objetivam a anulação do julgamento realizado pelo STJ sem a ciência do advo-
gado para fazer sustentação oral. Quanto a esta matéria, aplicou-se o entendimento
firmado pelo Supremo no sentido de que, havendo pleito de ciência prévia do julga-
mento visando à sustentação oral, a ausência de notificação da sessão de julgamen-
to constitui nulidade sanável em habeas corpus. Ordem concedida, anulando o jul-
gamento do habeas, a fim de que o impetrante seja notificado da data da sessão de
novo julgamento, mantido suspenso o decreto de prisão civil até apreciação pelo STJ.
HC 93101/SP, rel. Min. Eros Grau, 4.12.2007. (HC-93101)

Vale ressaltar a importante decisão do Ministro Celso de Mello no HC 96.958-MC/SP

EMENTA: “HABEAS CORPUS”. DEFENSOR PÚBLICO QUE FOI INJUSTAMENTE IMPEDIDO DE FA-
ZER SUSTENTAÇÃO ORAL, POR AUSÊNCIA DE INTIMAÇÃO PESSOAL QUANTO À DATA DA SESSÃO
DE JULGAMENTO DA APELAÇÃO CRIMINAL INTERPOSTA PELOS PACIENTES. CONFIGURAÇÃO
DE OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA AMPLA DEFESA. NULIDADE DO JULGAMENTO.
LIMINAR DEFERIDA.

A sustentação oral – que traduz prerrogativa jurídica de essencial importância –


compõe o estatuto constitucional do direito de defesa. A injusta frustração desse
direito, por falta de intimação pessoal do Defensor Público para a sessão de julga-
mento de apelação criminal, afeta, em sua própria substância, o princípio constitu-
cional da amplitude de defesa. O cerceamento do exercício dessa prerrogativa – que
constitui uma das projeções concretizadoras do direito de defesa – enseja, quando
configurado, a própria invalidação do julgamento realizado pelo Tribunal, em fun-
ção da carga irrecusável de prejuízo que lhe é ínsita. Precedentes do STF.

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A sustentação oral, notadamente em sede processual penal, qualifica-se como um


dos momentos essenciais da defesa. Na realidade, tenho para mim que o ato de
sustentação oral compõe, como já referido, o estatuto constitucional do direito
de defesa, de tal modo que a indevida supressão dessa prerrogativa jurídica (ou
injusto obstáculo a ela oposto) pode afetar, gravemente, um dos direitos básicos
de que o acusado – qualquer acusado – é titular, por efeito de expressa determi-
nação constitucional.

Esse entendimento apóia-se em diversos julgamentos proferidos por esta Suprema Corte
(RTJ 140/926, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RTJ 176/1142, Rel. Min. CELSO DE MELLO
– HC 67.556/MG, Rel. Min. PAULO BROSSARD – HC 76.275/MT, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA,
v.g.), valendo referir, na linha dessa orientação, decisão consubstanciada em acórdão as-
sim ementado:

“(...) A sustentação oral constitui ato essencial à defesa. A injusta frustração desse direito
afeta, em sua própria substância, o princípio constitucional da amplitude de defesa. O cer-
ceamento do exercício dessa prerrogativa – que constitui uma das projeções concretizado-
ras do direito de defesa –, quando configurado, enseja a própria invalidação do julgamento
realizado pelo Tribunal, em função da carga irrecusável de prejuízo que lhe é ínsita. Prece-
dentes do STF.”

(RTJ 177/1231, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

No caso, o exame dos autos revela que a inclusão em pauta da apelação criminal interpos-
ta pelos ora pacientes não constituiu objeto da necessária intimação pessoal do Defensor
Público que lhes dava patrocínio técnico, o que frustrou, injustamente, o exercício, por eles,
do direito de sustentar oralmente, por intermédio de seu defensor, perante o E. Tribunal de
Justiça de São Paulo, as razões do recurso interposto.

Todos os fundamentos que venho de expor conferem, a meu juízo, densa plausibilidade ju-
rídica à pretensão cautelar ora deduzida pela parte impetrante.

Concorre, de outro lado, na espécie, situação configuradora do “periculum in mora”, em ra-


zão de os ora pacientes estarem sofrendo verdadeira execução provisória da sanção penal
que lhes foi imposta.

Sendo assim, em juízo de estrita delibação, e sem prejuízo de ulterior reexame da questão
suscitada nesta sede processual, defiro o pedido de medida liminar, em ordem a suspen-
der, cautelarmente, a execução da pena restritiva de direitos em que se converteu a pena

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de reclusão imposta nos autos do Processo-crime nº 657/02 (14ª Vara Criminal da comarca
de São Paulo/SP).

Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão ao E. Superior Tri-


bunal de Justiça (HC 106.930/SP), ao E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Apelação
Criminal com Revisão nº 975.674.3/1-00) e ao Senhor Juiz de Direito da 14ª Vara Criminal
da comarca de São Paulo/SP Processo-crime nº 657/02).

Brasília, 19 de dezembro de 2008.

Min. Celso de Mello.

Em mais uma oportunidade, podemos ressaltar a análise jurisprudencial que tra-


ça a importância da sustentação oral como um dos pilares da ampla defesa e do con-
traditório.

O artigo 610 do Código de Processo Penal (apenas como questão de ilustração) in-
dica que anunciado o julgamento o presidente concederá, pelo prazo de dez minutos,
a palavra aos advogados ou às partes que solicitarem e ao procurador quando o re-
querer, por igual prazo. No entanto, toda a voz processual deve ser iniciada por aquele
que postula, para depois garantir-se a voz para aquele que atua diante da resistência.
Ora, pela importância da sustentação oral, em defesa do contraditório, a jurisprudên-
cia vem entendendo que se o recurso for da acusação a sustentação oral deve se dar,
em primeiro momento, pelo Ministério Público, para que após ao conhecimento dos
seus argumentos, a defesa realize sua sustentação oral.

Assim, “em recurso exclusivo da acusação, o representante do Ministério Público,


ainda que invoque a qualidade de custos legis, deve manifestar-se, na sessão de julga-
mento, antes da sustentação oral da defesa. Com base nesse entendimento, o Tribunal
concedeu habeas corpus, afetado ao Pleno pela 2ª Turma, impetrado em favor de acusado
pela suposta prática de delito previsto no art. 10 da Lei 7.492/86. No caso, o juízo de 1º grau
rejeitara a denúncia apresentada contra o paciente. Contra esta decisão, o Ministério Públi-
co interpusera recurso em sentido estrito que, provido pelo TRF da 3ª Região, dera ensejo à
instauração da ação penal. Ocorre que, durante a sessão de julgamento do citado recurso,
a defesa proferira sustentação oral antes do Procurador-Geral, sendo tal fato alegado em
questão de ordem, rejeitada ao fundamento de que o parquet, em segunda instância, atua
apenas como fiscal da lei — v. Informativo 449.

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Deferiu-se o writ para anular o julgamento do recurso em sentido estrito e de-


terminar que outro se realize, observado o direito de a defesa do paciente, se pre-
tender realizar sustentação oral, somente fazê-lo depois do representante do Minis-
tério Público. Entendeu-se que, mesmo que invocada a qualidade de custos legis, o
membro do Ministério Público deve manifestar-se, na sessão de julgamento, antes
da sustentação oral da defesa, haja vista que as partes têm direito à observância
do procedimento tipificado na lei, como concretização do princípio do devido pro-
cesso legal, a cujo âmbito pertencem as garantias específicas do contraditório e da
ampla defesa (CF, art. 5º, LIV e LV). Ressaltando a unidade e indivisibilidade do parquet,
asseverou-se ser difícil cindir sua atuação na área recursal, no processo penal, de modo a
comprometer o pleno exercício do contraditório. Aduziu-se, também, que o direito de a de-
fesa falar por último é imperativo e decorre do próprio sistema, e que a inversão na ordem
acarretaria prejuízo à plenitude de defesa. Ademais, afirmou-se não ser admissível inter-
pretação literal do art. 610, parágrafo único, do CPP (“... o presidente concederá... a palavra
aos advogados ou às partes que a solicitarem e ao procurador-geral, quando o requerer...”)
e que o art. 143, § 2º, do Regimento Interno do TRF da 3ª Região, que dispõe que o parquet
fará uso da palavra após o recorrente e o recorrido, merece releitura constitucional. Prece-
dentes citados: RHC 85443/SP (DJU de 13.5.2005); RE 91661/MG (DJU de 14.12.79).

HC 87926/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 20.2.2008. (HC-87926)

O que se fez, portanto, foi a realização de uma interpretação constitucional a um


dispositivo do Código de Processo Penal, uma vez que a modernização da análise dos
dispositivos legais deve criar um dinamismo democrático, gerando importância aos
argumentos das partes face a um processo dialético interpretado conforme nossa
Constituição, o que indica a seriedade da sustentação oral perante os Tribunais.

Por fim, o que deve ser observado é que os Defensores Públicos possuem a prer-
rogativa funcional da independência funcional; os assistidos o direito! Assim, nossa
função institucional é justamente a defesa desses direitos que, em muitos casos, so-
mente ocorrerá com uma atuação efetiva, o que indica a necessidade de sustentação
oral perante as Câmaras Cíveis e Criminais.

Claro que não podemos vulgarizar esta atuação. Nem todos os casos a sustenta-
ção oral se mostra viável ou necessária. Porém, devemos criar um compromisso cul-
tural e institucional traçando como regra a necessidade de intervenção em todas as
possibilidades processuais (incluindo a sustentação oral); a exceção é a fiscalização

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passiva em que haverá a presença do Defensor Público em seu órgão de atuação sem
a sua intervenção direta.

Para tanto, acreditamos ser necessário um maior fomento para a comunicação


entre os Defensores Públicos que atuam no primeiro grau de jurisdição e Defenso-
res Públicos de Classe Especial. Hoje, dispomos de meios mais fáceis de comunicação
(email institucional, por exemplo) que nos autoriza a indicação pelos Defensores Pú-
blicos e dos Substitutos de maior relevância aos casos a serem julgados no Tribunal
aos Defensores Públicos de Classe Especial.

Não podemos ainda, afastar a atribuição legal dos Defensores Públicos de Classe
Especial em analisar a importância dos casos em espécie indicando a sustentação oral
e, excepcionalmente, sua ausência, apenas a tentativa de criar maior viabilidade práti-
ca no seio institucional para garantir a defesa dos direitos dos nossos assistidos.

Por todos os argumentos exposto, é o parecer desta Assessoria Criminal para


indicar a necessidade de regulamentação Institucional gerando a obrigatoriedade
da presença do Defensor Público de Classe Especial nos julgamentos perante as Câ-
maras Cíveis e Criminais, nas Turmas Recursais, bem como nas Sessões Criminais
e Órgão Especial, em decorrência da natureza e função da Instituição Defensoria
Pública, bem como sua imagem perante à sociedade.

Entendemos, ainda, que deve-se fomentar maior comunicação entre os Defen-


sores Públicos que atuam no primeiro grau de jurisdição e os Defensores Públicos
de Classe Especial, criando um maior controle nos casos concretos.

Ainda, face a importância constitucional da sustentação oral para a defesa dos


direitos em conflito, essa Assessoria Criminal entende pela necessidade de regula-
mentação Institucional para que indique a necessidade de sustentação, respeitan-
do, no entanto, a prerrogativa da independência funcional.

É o nosso parecer que submeto à consideração de Vossa Excelência.

Denis Sampaio

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