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O tempo em Além do apenas moderno de Gilberto Freyre (1973)

Messias Araujo Cardozo


Doutorando em História (UFRGS)
messias.histsocial@gmail.com

Introdução

As discussões sobre o “tempo dos historiadores” (BARROS, 2013) são


importantes para o campo da história da historiografia, assim como para a teoria da
história. A problematização e a reflexão sobre o tempo, assim como as
problematizações em torno das temporalidades, não foram feitas pelos historiadores
“desde sempre”, ela foram realizadas muito antes da metodização da historiografia que
ocorreu na Europa a partir do final do século XVIII e, sobretudo, ao longo do século
XIX, no interior dos campos da filosofia e da teologia. Filósofos como Aristóteles (384
a.C – 322 a.C) e Santo Agostinho (354-430), apenas para citar dois nomes, são autores
que discutiram a questão do tempo enquanto categoria, de modo que as reflexões deles
são aportes teóricos importantes para os historiadores (re) pensarem sobre matéria tão
relevante para os seus trabalhos (BARROS, 2013). Afinal, o que é “antigo”? E o que
significa “moderno” ou “pós-moderno”? Quais são as implicações dessas discussões na
construção da narrativa historiográfica? Penso que essas e outras questões são temas
férteis para debates e reflexões muito relevantes para qualquer historiador (a), seja de
qual campo ou domínio historiográfico que ele (a) pertença ou busque pertencer.
Neste artigo, busco apresentar e discutir a fim de articular uma compreensão
sobre as formas pelas quais o tempo foi objeto de reflexões por parte de Gilberto Freyre
numa obra publicada em 1973, pela editora José Olympio intitulada: Além do apenas
moderno: sugestões em torno de possíveis futuros do homem, em geral, e do homem
brasileiro, em particular. Um livro de 265 páginas, com 14 capítulos que o autor os
intitulou de ensaios e uma “quase conclusão”. A opção pelo ensaio foi uma
característica dos textos de Freyre, o que diz muito sobre as opções teóricas e as
implicações epistemológicas de seu pensamento (NICOLAZZI, 2008).
Um ensaio é um texto que não pensa o conhecimento como objeto acabado e sim
numa indeterminação que transita, anarquicamente, entre o que poderia ser repreendido
como “falta de cientificidade” e uma forma de ver o saber como em constante abertura
para a dúvida e o exercício da crítica. Os ensaios/capítulos do livro tematizam
dimensões da vida humana, como: moderno, além do apenas moderno ou pós-moderno,
tempo tríbio, futuro, ócio x negócio, tempo livre, juventude, velhice, futurologia,
choques geracionais, dentre outras, temas as quais foram agenciados por Freyre de uma
maneira muito singular numa obra que pode ser identificada como um texto de
antropologia filosófica.
Sobre o tema do tempo na obra em questão, busco refletir sobre três pontos – os
quais articulados podem colaborar no esforço importante feito por historiadores do
campo da história da historiografia e da teoria da história, como Koselleck (2006) e
Hartog (2014), além de filósofos, como Paul Ricoeur (2010), que (re) pensaram a
questão do tempo e suas implicações nas reflexões sobre a experiência humana
temporalmente situada – em que o primeiro ponto é a questão do moderno, além do
apenas moderno e o pós-moderno; o segundo ponto é o conceito de “tempo tríbio”; e, o
terceiro ponto é a questão do futuro. Outro ponto que destaco a partir de Freyre é a
relação entre o tempo livre e suas implicações sociais, as quais, segundo Freyre,
estariam a produzir uma revolução biossocial1 de ordem mais abrangente que a
Revolução Industrial.
Antes de apresentar como Freyre refletiu em torno de conceitos como moderno,
pós-moderno, além do apenas moderno e o tempo tríbio, penso ser necessário indicar o
lugar que o livro em questão tem no interior da volumosa obra de Gilberto Freyre e o
seu contexto de produção. Lugar e contexto, no que concerne ao domínio historiográfico
da história intelectual, são dois conceitos problemáticos. Muitas são as discussões sobre
o “lugar” de uma obra específica de um autor. Uma delas diz respeito a categorias
espaciais, tais como “centro” ou “margem”. Em relação ao contexto histórico as

1
Essa revolução estaria acontecendo principalmente nas sociedades urbanas capitalistas do pós-Segunda
Guerra e teria três dimensões: uma dimensão de gênero com a emancipação progressiva das mulheres, os
choques geracionais entre certa juventude urbana “rebelde” e os idosos que estariam cada vez mais ativos
em várias áreas da vida social e os problemas sociais (alcoolismo e até suicídio) do crescente ócio
produzido pela automação industrial.
problemáticas são ainda maiores, dizendo respeito as metodologias da história
intelectual, caracterizando suas abordagens, dita “contextualista”, ou “internalista”.

O lugar de Além do apenas moderno na obra de Gilberto Freyre e o contexto


histórico de sua publicação

O lugar de um livro específico no interior de uma obra vasta é quase sempre um


problema teórico. Problema esse que deve ser enfrentado pelo historiador que busca
situar seu trabalho no âmbito da História Intelectual, que é um domínio historiográfico
distinto da história das ideias praticadas pela filosofia ou pela sociologia dos intelectuais
(em que pese as grandes contribuições do campo da sociologia do conhecimento para o
domínio da história intelectual, principalmente o conceito de “campo intelectual” de
Pierre Bourdieu), constituído de um objeto de estudo comum com outras disciplinas: a
historicidade das produções intelectuais e sua materialização na forma de discursos
contidos em livros e outros suportes materiais para os textos escritos.
Lugar é um conceito comumente associado ao campo disciplinar da geografia. É
ligado a dimensão espacial, as reflexões em torno dos espaços. Lugar pode ser “central”
ou “marginal”, além de ser tomado de maneira qualitativa, “bom lugar” ou “mal lugar”,
ou pode ainda ser pensado na forma de um adjetivo com conotação matemática: “lugar
maior” ou “lugar menor”. Aqui, a ideia de lugar está relacionada com a questão da
importância que foi atribuída, pela bibliografia, a um livro específico no conjunto de
outras obras de um mesmo autor. Geralmente quando se escreve sobre Gilberto Freyre,
é muito comum citar Casa-Grande & senzala, por exemplo. Outras obras de
reconstrução histórica da experiência historial brasileira – da formação social do Brasil
– que foram publicadas pelo autor são também reiteradamente citadas pela fortuna
crítica sobre o escritor. Além do apenas moderno não figura muito na literatura
historiográfica sobre a obra de Freyre, os chamados “estudos freyrianos” inseridos em
outros campos do saber, notadamente a sociologia e a antropologia, também não citam
de maneira tão abundante em seus trabalhos essa obra.
Então: qual o lugar de Além do apenas moderno? Digo que é um lugar marginal.
Porém, o marginal não significa menos importante. Estar a margem de um lugar que é
pensado como central pode ser interessante para se problematizar as hierarquias
espaciais e os critérios que validam ou tentam validar as noções de centralidade e de
marginalidade. O que quero dizer quando afirmo que a obra em questão ocupa um lugar
marginal? Quero indicar a pouca importância dada pelos autores que trabalharam com a
obra de Freyre ao livro. Os temas discutidos na obra: moderno, pós-moderno, além do
apenas moderno, tempo tríbio, por exemplo, parecem que não despertaram, nos
comentadores dos textos de Freyre, tanta atenção ainda, se comparado com a abundante
reflexão em torno de outras obras e seus temas – como escravidão, miscigenação e
patriarcado rural. A partir disso, penso ser interessante o presente artigo, uma tentativa
de interpretação de uma obra “marginal”, mas que, na minha avaliação, discutiu tema
tão importante para um historiador, que é a questão do tempo.
Qual o contexto de Além do apenas moderno, então? Um contexto específico,
tanto socialmente quanto com relação ao momento da obra de Freyre, do seu
pensamento. Sem pensar em termos deterministas e com um conceito de contexto não
restrito a questão da política institucional no seu sentido macrológico, a obra publicada
em 1973 pode ser pensada no interior de uma conjuntura cultural atravessada pelos
movimentos sociais e estéticos dos anos 1960, como os movimentos juvenis da
contracultura e seus hippies, os movimentos feministas, assim como os embates
geracionais (júniors x provectos nos termos de Freyre) e de gênero que,
respectivamente, esses movimentos representavam (FREYRE, 1973, 36-50).
No contexto da obra de Freyre, o livro pode ser inserido num ponto singular da
trajetória intelectual do autor, representativo de um interesse novo dele por temas como
pós-modernismo, futurologia e a relação entre o crescente tempo livre e o lazer nas
sociedades urbanas capitalistas, temas que não eram tão presentes em sua obra até
então, que não foram objeto de uma reflexão mais sistemática por Freyre, como a que
fez o autor na obra em questão. Na minha forma de compreender, esse era o contexto de
Além do apenas moderno, publicado no ano de 1973. Uma obra singular no conjunto
dos livros de Freyre, que até a presente data ainda não tem uma segunda edição.

O moderno e o além do apenas moderno ou já pós-moderno

“O tempo – inclusive os futuros possíveis de um indivíduo ou de uma sociedade


– é, em grande parte, o próprio Homem” (FREYRE, 1973, p. 15). Essa reflexão de
Freyre é interessante na medida em que ele determina a categoria histórica de tempo
como uma dimensão intrinsicamente ligada ao humano. Desse modo, o Tempo é
socialmente construído como uma realidade ligada à vida do próprio homem tomado
como uma categoria universal. A indagação sobre o que é o tempo tem um seguimento
com Freyre, que é o encaminhamento do tempo como parte indissociável da vida
humana.
Sobre a questão do moderno, além do apenas moderno ou pós-moderno em
Freyre, elenco algumas problematizações neste momento: Quando o tempo moderno
acabou e o tempo além do apenas moderno ou “já” pós-moderno se iniciou? Freyre não
respondeu direta e categoricamente tais questões no livro, fazendo com que transpareça
como que, para ele, nos anos 1960 as sociedades ocidentais, cada vez mais com tempo
livre, estariam rumando da modernidade para um tempo além do apenas moderno. Outra
questão: Como caracterizar o tempo pós-moderno? Nesse sentido, se o entendermos
como uma condição histórica nova, teríamos que encontrar ou indicar seus começos,
criando uma convenção historiográfica sobre uma data. No caso, apontar a partir de um
critério, um evento ou um acontecimento num dado ano para demarcar o início do pós-
moderno e o fim do moderno. O tempo pós-moderno seria uma temporalidade que
indicaria a emergência de uma sociedade pós-moderna (FREYRE, 1973). Levanto tais
questões, pois o início da pós-modernidade, sua existência, características, enfim, a
pergunta em torno do que é pós-moderno, não foi ainda respondida de maneira
categórica, haja vista que não se pode visualizar um consenso sobre isso entre alguns
dos seus analistas (LYOTARD, 1979).
O homem moderno, segundo Freyre, viveria atravessado constantemente pelo
“novo”, sempre sendo “superado” pelas incessantes inovações técnicas, estando em
descompasso com elas, como que correndo atrás de algo que sempre corre mais rápido,
que não pode ser alcançado. A técnica e uma ultrarracionalidade seriam os elementos
constitutivos do tempo moderno:

O homem moderno vive no meio de um tal número de constantes


inovações tecnológicas – novos tipos de avião, de submarino, de
automóvel, de barco, de trator, de máquina de escrever, de calcular, de
lavar roupa, de varrer, de refrigerar, de registrar, de gravar, novos
processos de manufatura de ferro, de aço, de têxteis – que não tem
havido tempo para essas manifestações de racionalidade se
conciliarem com suas persistentes tendências no sentido de assegurar
da constância de sua não de todo racional condição humana e da
constância do que de ultra-racional em sua cultura (FREYRE, 1973, p.
67).

À vista disso, o Homem Moderno estaria imerso num mundo dominado pela
técnica que se convertera numa dimensão tão volátil, em uma revolução permanente em
suas inovações e avanços que, a sensibilidade moderna relevaria o hiato temporal entre
a vida (com ritmos mais lentos) e a ciência aplicada ao campo da economia capitalista
(com ritmos mais acelerados). No moderno, a dimensão da racionalidade técnica é mais
veloz que a capacidade de filtragem e compreensão por parte do homem. Como Freyre
sugeriu na citação supracitada, a condição humana não é de todo racional, havendo o
irracional e suas manifestações na vida humana socialmente compreendida e, portanto
historicamente localizada.
Foi em Além do apenas moderno que Gilberto Freyre lançou, talvez de forma
pioneira no Brasil, algumas questões em torno desse tempo histórico além do apenas
moderno ou “já” pós-moderno. Este mundo de “tempos pós-modernos”, segundo
Freyre, abriria espaço para estudos prospectivos de futurologia. Uma sociologia do
tempo a partir de um novo conceito de tempo: o tempo tríbio (FREYRE, 1973, p. xxi e
xxii). O tempo pós-moderno seria uma forma de tempo tríbio, em que passado, presente
e futuro formam um só tempo que envolve a vida social. Pois “O homem nunca está
apenas no presente, sem deixar de ser homem pleno ou integral. Se apenas se liga ao
passado, torna-se arcaico. Se apenas procura viver o futuro, torna-se utópico”
(FREYRE, 1973, p. xxvii). O homem é passado, presente e futuro em suas diferentes
formas de interconexão.
O século XX e suas duas grandes guerras mundiais, as movimentações culturais
e políticas que ocorreram a partir da década de 1960, as transformações no interior da
economia capitalista, sobretudo, a automação da produção industrial e as mudanças em
curso nas relações entre as gerações (jovens e idosos) e de gênero (homem e mulher),
teriam produzido abalos na modernidade. “O moderno apenas moderno é efêmero e mal
se define como moderno e já está sendo superado por um tempo mais-que-moderno”
(FREYRE, 1973, p. 20). O efêmero moderno seria um tempo atravessado pela
racionalidade, pela busca da otimização da produção de riqueza, por certo
“empreendedorismo de si” na forma de uma espécie de “taylorização da vida humana”
presente nos grandes centros urbanos.
O moderno foi definido por Freyre como tendo duas dimensões que lhe seriam
próprias e o dotariam de especificidade: haveria o tempo-dinheiro (capitalista) e o
tempo-trabalho (comunista):

Caminhamos, assim, através dessa imensa revolução biossocial, para


uma total e definitiva desmoralização, quer do capitalismo ortodoxo,
quer dos seus opositores, também ortodoxos, vindos da época por
excelência do tempo-dinheiro e do tempo-trabalho, isto é, do século
XIX, e que são, em suas formas mais ostensivas, o Comunismo, o
Sindicalismo, o Laborismo, o Trabalhismo. São eles ismos gastos –
estes sim – ou quase superados, pelo tempo; e seu sentido, para o
homem além-de-moderno que já começa a sobrepor-se ao apenas
moderno, é cada dia mais significativo (FREYRE, 1973, p. 22).

Importante enfatizar, para contextualizar, a situação que em 1973 os EUA e a


União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) tornavam a geopolítica mundial
atravessada por uma ordem bipolar denominada Guerra Fria. O tempo-dinheiro seria o
típico dos EUA e o tempo-trabalho típico da URSS. Porém, o que considero mais
importante para o artigo é a reflexão de Freyre em torno do tempo. É interessante como
essa reflexão freyriana indicava uma mudança na forma como a sociedade ocidental
estaria pensando sua forma de se relacionar com o tempo para além da metodização e da
disciplinarização que a lógica capitalista ou comunista teria instituído ou buscavam
instituir.
Um tempo além do apenas moderno ou já pós-moderno seria, também, um
tempo vivido além da dimensão matemática, burguesa, em que a máxima capitalista
“time is money”, convertera a vida humana, principalmente nas cidades dos países do
dito primeiro mundo, em uma vida na qual os sujeitos estariam correndo contra a
“perda” ou o “ganho” de tempo numa perspectiva economicista. A planificação
exacerbada da vida e do tempo pelos engenheiros sociais das sociedades modernas do
Ocidente produziu suicídios e, com essa planificação demasiada do futuro – também
presente nos países socialistas da época –, o tempo vivido fora reduzido a perspectiva
do lucro, do prejuízo, do ganho, do gasto (FREYRE, 1973, p. 6-7).
O tempo além de apenas moderno ou pós-moderno, de Freyre, é um tempo
histórico de transição. Uma transição em que um homem já pós-histórico2 emergiu no
interior de uma revolução biossocial que seria a produzida pela crescente automotação
da produção industrial (que desoneraria o homem de longas jornadas de trabalho), no
maior tempo livre para os jovens e numa maior longevidade para as pessoas, em que
júniors (adolescentes e “jovens plenos”) e provectos (idosos ou pessoas em “idade
avançada”) estariam cada vez mais atuantes em várias áreas, como o teatro, a política
institucional e as universidades nas sociedades ocidentais.
O tempo além do apenas moderno ou já pós-moderno seria um tempo cada vez
mais livre:

O que se constata atualmente é ter o capitalismo industrialista, sob a


mística do “tempo é dinheiro”, ido a um excesso, a um exagero, a uma
demasia, na importância que atribuiu ao sentido não só cronométrico
como monetário, de tempo, que o Homem de hoje está em situação de
moderar ou corrigir, no interesse, quer de sua saúde, quer da sua
criatividade, agora que começa a ser, com a automação, um Homem
pós-modernamente livre das imposições sobre ele, de um tempo quase
totalmente engagé. Tempo assim engagé já em processo de ser
substituído por um tempo, em sua maior parte, degagé (FREYRE,
1973, p. 121).

O tempo além do apenas moderno ou pós-moderno crescentemente livre


apresentou alguns problemas para as sociedades modernas ou setentrionais (de
capitalismo industrial avançado). Esse homem “pós-modernamente livre” do tempo
engagé (mais atarefado) e já em processo de substituição pelo tempo dedagé (mais
livre) estaria com um problema em torno do ócio. O que fazer com o tempo livre?
A pós-modernidade, em Freyre, parece ser um tempo problemático. Sobre isso,
Peter Burke e Maria Lúcia G. Pallares-Burke, no livro Repensando os trópicos: um
retrato intelectual de Gilberto Freyre, atentam para o fato de que, “Em seu trabalho
[Além do apenas moderno], no entanto o termo [pós-moderno] tinha implicações

2
Seria um homem que em vez de condicionar o futuro, seria o condicionado por ele, numa inversão
curiosa, retirada de um futurólogo Roderick Seidenberg no livro Post-historic Man: Inquiry (University
od North Carolina Press, 1950). Entretanto, Freyre alertou que: “O Homem absolutamente pós-histórico
da concepção de Seidenberg talvez seja válido como como ficção científica; não se apresenta válido como
futurologia sociológica que alcance o futuro do Homem em termos de história humana” (FREYRE, 1973,
p. 6).
tradicionalistas, referindo-se, entre outras coisas, a um repúdio do moderno e nostalgia
pelo pré-moderno [...] (BURKE; PALLARES-BURKE, 2009, p. 273). As duas
modalidades de tempo, uma “mecânica” que seria moderna, e a outra “ibérica”, que já
seria pós-moderna estariam em contraste. O “pós” do tempo ibérico seria mais flexível e
mais natural, entretanto, mais tradicionalista e conservador diante das transformações
sociais que o moderno produziu.

O “tempo tríbio”

A questão tempo tríbio, de Freyre, já estaria prefigurada em suas obras da


década de 1930. Passado e presente não estariam rigidamente separados. A memória dos
“tempos dos nossos avós” a “aventura de sensibilidade” e a “busca do tempo perdido”
presentes em Casa-Grande & Senzala, por exemplo, seriam sintomáticos disso. O
passadismo freyriano com uma dose de nostalgia pelo tempo perdido, pelas elites do
açúcar em seus tempos de glória não passou despercebido aos analistas dos seus textos
(REIS, 2006).
Porém, apenas na década de 1950, e somente em 1973, com a publicação de
Além do apenas moderno, que o conceito de tempo tríbio tomou uma forma mais
explícita. Sobre esse ponto, cumpre notar que

Um pouco mais tarde, Freyre desenvolveu e generalizou suas idéias


[sic] sobre o “tempo tríbio” – em outras palavras, a interação de
passado, presente e futuro, especialmente a sobrevivência do passado
na vida do presente e a penetração do presente por uma sensação do
futuro (BURKE; PALLARES-BURKE, 2009, p. 272).

Para Gilberto Freyre “[...] não há arte sem vivência; não há futuro sem presente;
não há presente sem passado. O tempo que o homem vive é, afinal, um só, sendo assim
tríbio, [...]” (FREYRE, 1973, p. 19). Essa reflexão se opõe diretamente a divisão entre
as temporalidades que é um ponto fundamental não só para o trabalho do historiador,
bem como para a maior parte das sociedades ocidentais – em que pesem as
comunidades em África e Ásia, por exemplo, para quem passado e presente não estão
rigidamente separados, assim como o mundo dos mortos e dos ancestrais não está longe
do mundo dos vivos – que é a ideia do passado como algo que já foi, o presente como
algo que está sendo e o futuro como algo que será, em que a historiografia seria o relato
do que já foi, do passado.
Essa divisão entre passado, presente e futuro, nessa ordem, parece ser um dado
quase natural. Apesar de certo consenso entre os historiadores, de que o passado
sobrevive no presente, que restos (resíduos, um termo bastante utilizado na Química) de
passado permanecem no presente, ainda assim, o passado está fora do presente. O
futuro, nem mesmo suas imagens e narrativas que no passado foram elaboradas, nem de
longe costuma aparecer muito na historiografia (BARROS, 2014). O conceito de tempo
tríbio anularia essa clássica divisão. As temporalidades se cruzariam permanentemente,
formando uma só, um tempo tríbio que envolve o homem:

Pois para o analista de sociedades e de culturas, o tempo histórico ou


cronológico, com suas datas fixas, é de pouco valor em comparação
com o tempo social no qual os três tempos convencionais tendem a
confundir-se, interpenetrando-se. E ser, assim, tempo tríbio
(FREYRE, 1973, p. 95). Itálico meu.

O tempo tríbio, segundo Freyre, é um conceito que funde as três temporalidades


numa só categoria de tempo social. O tempo cronológico, das datas fixas, seria de
“pouco valor” para o analista de sociedades e de culturas que um historiador é. Os “três
tempos convencionais”, ou seja, o passado, o presente e o futuro são temporalidades
marcadas pelo arbítrio do homem. Em que sentido? A concepção de tempo tríbio parece
sugerir que o que se passou, o que se passa e o que está ainda por se passar, na verdade,
convivem e formam um só e mesmo tempo que é passado, presente e futuro.
A categoria histórica de tempo tríbio fornece uma espécie de fusão das
temporalidades que merece uma problematização: afinal, se o futuro e o passado estão
“interpenetrando-se” e tendem a “confundir-se”, de acordo com Freyre, como pensar a
construção de uma sociedade mais justa e menos desigual num futuro próximo? Estaria
Freyre a criticar os planejamentos “ultrarracionalistas” de futuro?

Os problemas do futuro planejado

O futuro é uma temporalidade aparentemente fora do escopo dos historiadores.


O futuro não deixa de ser ainda incerto, o que pode um historiador é analisar as ideias
de futuro ou os prognósticos feitos sobre ele no presente ou os que foram feitos no
passado. Durante muito tempo, a maior parte na verdade, a história foi interpretada
como um saber que lida com o passado, com coisas antigas, com o que já passou (para
alguns, isso ainda é uma noção associada ao saber histórico). O presente seria tema para
sociólogos e economistas, o passado seria o terreno natural dos historiadores e o futuro
“só a Deus pertence”. Como produzir uma historiografia do futuro? O campo da história
que trabalha com as ideias de futuro que circularam num dado tempo, tempo passado ou
tempo presente, seria um campo que poderia ser denominado (numa espécie de quase
oximoro) de história do futuro, seria mais bem nomeado: historiografia sobre o futuro,
afinal, a historiografia do futuro naturalmente ainda está por existir.
O moderno, uma das concepções de moderno pelo menos, está atrelado a essa
imagem positiva do futuro. Um futurismo, inclusive, como vanguarda estética, surgiu
no século XX, como forma de associação entre o moderno e o futuro. A imagem da
modernidade como um tempo do futuro não é difícil de ser sustentada. Sobre a questão
dos planejamentos do futuro, um ponto que destaco foi a observação realizada por
Freyre em relação ao número de suicídios na Europa que aumentou após a Segunda
Guerra e teria, como uma de suas causas, a incessante – ainda moderna – tentativa
intransigente de planificação ultrarracional do futuro:

Esse futuro todos admitimos que é suscetível de ser em parte


planificado. Mas vários psicólogos nos dirão, e alguns sociólogos e
antropólogos nos apóiam [sic] neste particular, que essa planificação
precisa de ser limitada e grandemente flexível, para que não se
arrebate ao Homem nem às suas sociedades o direito de viverem não
só disciplinadamente como aventurosamente e até um pouco – um
tanto – anarquicamente. Tem-se já relacionado o número
alarmantemente elevado de suicídios na Suécia ao excessivo
planejamento que faz, atualmente, do futuro sueco, um futuro sem
aventura, sem risco, sem surpresa: todo previsão social para a
enfermidade, a velhice, o desemprego; todo segurança; conforto físico
até o fim da vida (FREYRE, 1973, p. 6-7).

O futuro como um tempo planejado estaria levando alguns sujeitos ao colapso.


Porém, é a própria divisão em “três tempos” que foi questionada também. O homem
não viveria o passado, o presente ou o futuro separadamente. Ele viveria num tempo
tríbio em que as três temporalidades estariam num só tempo, o qual a experiência
humana seria situada, de forma que planejar o futuro seria uma ambição típica do
moderno em que o futuro é visto como um momento da apoteose e da realização,
embora os efeitos disso possam ser o suicídio, como no caso sueco mencionado por
Freyre na citação destacada.
O tempo e o homem, as relações entre as temporalidades e a vida social não
poderiam ser pensadas tendo em vista apenas uma única direção, um único projeto, um
único sentido, principalmente quando a questão fosse: que futuro queremos? Seria
melhor pensar o futuro de maneira plural: “Dois, três ou quatro futuros ou
desenvolvimentos possíveis, à base do que se imagine cientificamente dessas
possibilidades, contando-se com obstáculos a um futuro linear e admitindo-se curvas
que se contraponham a retas” (FREYRE, 1973, p. 95). Haveria, inclusive, no futuro,
elementos do passado, um futuro-passado, visto que, “tanto mais quanto, em estudos
que se empreendam de futuros possíveis, à base das conjeturas, está naquele presente
visível que já é futuro e é ainda, no tempo social, passado” (FREYRE, 1973, p. 95).
Como que antecipando – para usar um termo bem freyriano, a exemplo de
“antecipações” – a reflexão feita por Fraçois Hartog (HARTOG, 2014) sobre a questão
de um regime de historicidade futurista, Freyre, no início dos anos 1970, afirmou que:
“Estamos no começo de uma época de homens, de grupos, de sociedades não só de
Ocidente como no próprio Oriente, voltados mais para o Futuro do que para o passado.
Mais do que nunca, insatisfeitos com o presente” (FREYRE, 1973, p. 78). Seria
possível indicar que Freyre teria sugerido a existência de algo como um regime de
historicidade na forma de um futurismo ultrarracionalizado? Regime esse que, em
descompasso com uma crescente forma de perceber o tempo livre e o futuro para além
de uma metódica planificação, produziria cada vez mais suicídios e outros problemas
que atravessariam o homem já pós-moderno no interior de uma civilização pós-moderna
nos trópicos (FREYRE, 1973, p. 79).
O futuro deveria estar aberto ao homem e não fechado em esquemas
racionalizantes que “garantiriam” uma vida tranquila e estável. O futuro como uma
temporalidade em que o homem teria cada vez mais tempo livre, o qual o ócio teria sua
reabilitação ante seu rebaixamento frente ao negócio, não poderia apresentar um único
sentido:
E sem nos esquecermos nunca de que não há para o tempo
crescentemente desocupado, para o qual caminhamos, um futuro
único, determinado por tendência num só sentido, porém vários
futuros possíveis, dependendo em parte de decisões e resoluções de
comunidades capazes de orientar no assunto as suas populações
específicas, para o rumo que tome, nesta ou naquela comunidade, ou
nas comunidades futuras, em geral, em virtude da provável
interdependência entre elas. O rumo que tome a sua ocupação de
tempo, a sua expressão de ócio como positivo e de negócio como
negativo: positivo não só quanto à relação do homem – ou de
comunidade – com o tempo porém, mais do que isto, quanto à relação
do homem ou de comunidade com a existência. Com a própria vida
portanto. Vida-tempo-homem (FREYRE, 1973, p. 109).

É importante ressaltar três coisas a partir da citação acima: a noção de transição – do


moderno para um além do apenas moderno/pós-moderno –, o futuro como da ordem do
não planejado e por isso mesmo aberto e plural, e uma revalorização, que remonta a
Grécia Antiga do ócio diante do negócio que com a modernidade e a racionalização
capitalista se transformaram na viga mestra da vida urbana a partir do século XIX. Para
a historiografia, essas discussões são relevantes em pelo menos um sentido: a transição
do moderno para o pós-moderno, a partir da reflexão de Freyre, pode indicar que o pós-
moderno não “supera” o moderno, que moderno e além do apenas moderno podem
conviver e que o futuro é plural e não tem um único sentido, não é portador de uma
teleologia que redima o passado e o presente.

Possíveis implicações das reflexões de Freyre sobre a questão do tempo para a


historiografia

Não penso os saberes produzidos no interior de dadas condições históricas e


relações de poder particulares a partir do signo da “utilidade”, como que
instrumentalizando-os para um fim que seja da ordem “útil”. Porém, neste ponto do meu
artigo, julgo pertinente levantar algumas questões: Quais seriam as possíveis
implicações das reflexões de Freyre, em torno do tempo enquanto categoria histórica,
expressas em Além do apenas moderno para a historiografia? Em que medida as ideias
apresentadas neste artigo sobre moderno, além do apenas moderno/pós-moderno, o
tempo tríbio e o futuro podem vir a ser relevantes para a escrita da história?
Em primeiro lugar, para além do fato do autor discutir categorias, como
moderno, além do apenas moderno ou pós-moderno anos 1970, no Brasil, onde essas
discussões praticamente não eram presentes no campo das ciências sociais [e também da
historiografia]. A reflexão sobre o tempo histórico, conforme Freyre, pode ter
repercussões no campo historiográfico em dois sentidos: o primeiro é mobilizar esforços
teóricos para discutir a emergência da pós-modernidade no Brasil; o segundo é produzir
uma reflexão em torno do papel que os conceitos de moderno e pós-moderno podem ter
para compreender as dinâmicas internas dos processos históricos que transcorrem no
Brasil e suas relações com as temporalidades sentidas e conceituadas em outros países,
sobretudo, em alguns países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos, principalmente
em relação ao tema do futuro.
Em segundo lugar, (re) pensar a questão das temporalidades – passado, presente
e futuro – como Freyre fez, é uma reflexão que tem um lugar relevante na historiografia
contemporânea. Nesse sentido, não é sem razão que obras como Futuro passado (2006)
e Regimes de historicidade (2014), respectivamente publicadas por Reinhart Koselleck
e François Hartog, tiveram (e ainda tem) tanta importância para as discussões recentes
sobre o tempo dos historiadores contidas na literatura historiográfica, mormente para o
campo da história da historiografia e da teoria da história. “Espaço de experiência”,
“horizonte de expectativa”, “presentismo”, “passadismo” são conceitos já incorporados
ao debate historiográfico contemporâneo ligado a questão do tempo histórico.
Dito isso, a questão do tempo tríbio freyriano sugere uma forma interessante de
pensar as temporalidades como na ordem da interpenetração. A separação entre
passado, presente e futuro, que foi problematizada por autores como Koselleck e
Hartog, pode ser rediscutida a partir da noção de tempo tríbio. O passado “se
alongando” no presente, o presente “prenhe” de futuros possíveis e o futuro já presente
são ideias que podem, a partir da especificidade do objeto de estudo do historiador,
serem operadas a partir da reflexão de Freyre, de modo a produzir releituras sobre a
experiência humana no tempo, tempo esse atravessado pelas três temporalidades, que,
segundo o autor, nunca estão desconectados.
Destaco ainda um último ponto que as reflexões de Freyre, na obra em questão,
pode vir a ser parte das ponderações do historiador contemporâneo que é a questão do
futuro, dos temas e da literatura em torno da futurologia. A ideia de história do futuro é
quase um oximoro, como já mencionei, já que a identificação do discurso
historiográfico com o passado ainda é recorrente. Como pode uma história do futuro? O
tema do futuro parece não ter lugar na ordem do discurso da história enquanto campo
disciplinar. Porém, o presente e o passado estão cheios de manifestações, de angústias
ou de expectativas em relação ao futuro como um tempo o qual poderá sobrevir sob o
signo da catástrofe, por exemplo (HARTOG, 2014).

Considerações finais

O tempo e as temporalidades na obra de Gilberto Freyre são temas para muitas


pesquisas. No artigo, busco apresentar e problematizar a questão do tempo
especificamente numa obra do autor. A partir do texto, centrei minha análise em alguns
pontos que considerei os mais significativos para a compreensão de temas como
moderno, além do apenas moderno, pós-moderno, tempo tríbio e o futuro. O tempo
psicológico, sociológico, o tempo ibérico, o passadismo freyriano na forma da busca de
um “tempo perdido” ao estilo proustiano que figuram em outras obras do autor mais
conhecidas – como Casa-grande & senzala – são formulações conceituais e reflexões de
Freyre que ainda estão por serem, de forma mais sistemática, estudadas. A ideia de
tempo e as discussões em torno das temporalidades na obra de Freyre é um tema de
pesquisa vasto que num artigo não se poderia apresentar de maneira mais
pormenorizada.
O meu trabalho teve pretensões mais modestas: apresentar e discutir alguns
pontos existentes em Além do apenas moderno de 1973. Um livro “marginal” no
conjunto da obra do autor que versou de maneira bastante singular e, em alguns pontos,
pioneira se pensar no contexto das discussões que ocorriam no Brasil no início dos anos
1970, sobre pós-modernidade e futurologia, por exemplo. Um tempo dos trópicos
diferente do tempo-trabalho capitalista europeu que já estaria em franco declínio, um
tempo ibérico que seria da ordem do lúdico e não do lucro, as possibilidades de uma
estética da existência nova não ligada aos ditames de uma sociedade da concorrência
permanente entre os indivíduos a partir do crescente tempo livre – daí a necessidade de
uma sociologia do tempo e de uma sociologia do lazer – todas essas discussões formam
uma manancial para outras pesquisas.
Após uma breve discussão sobre o domínio historiográfico que situo minha
pesquisa e sobre a ideia de lugar e de contexto para a obra que aproprio como fonte
histórica, o objetivo central foi discutir o moderno e o pós-moderno, compreender o
conceito de tempo tríbio e refletir sobre o futuro enquanto temporalidade aberta ao
campo do possível. Portanto, apesar de que Gilberto Freyre foi um intelectual ligado aos
setores conservadores (apoiando o regime civil-militar instaurado no Brasil em 1964,
assim como apoiou o salazarismo português), seus textos sobre a questão do tempo
podem ser importantes no esforço de repensar a dimensão temporal que é tão cara a
historiografia.

Referências

BARROS, José D´Assunção. O tempo dos historiadores. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
BURKE, Peter; PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. Repensando os Trópicos: um
retrato intelectual de Gilberto Freyre. São Paulo: Editora da UNESP, 2009.
FREYRE, Gilberto. Além do apenas moderno: sugestões em torno de possíveis futuros
do homem, em geral, e do homem brasileiro, em particular. Rio de Janeiro: Livraria
José Olympio Editora, 1973.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo.
Tradução de Andréa S. de Menezes, Bruna Beffart, Camila R. Moraes, Maria Cristina
de A. Silva e Maria Helena Martins. Belo horizonte: Autêntica, 2014.
JAMESON, Frederic. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São
Paulo: Ática, 1996
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas; Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro:
Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006.
LYOTARD, Jean-François. La condition post-moderne. Paris: Minuit, 1979.
NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história: a viagem, a memória, o ensaio. Sobre
Casa-grande & senzala e a representação do passado. 2008. Tese (Doutorado em
História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. 399 f.
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2006.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
Companhia das Letras, 2004.

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