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KATHERINE CENTER nasceu em 1972 em Houston, no Texas, onde ainda hoje vive com o marido
e os filhos. Autora de várias comédias românticas com um toque agridoce, já foi por isso
considerada sucessora de Jane Austen e Nora Ephron, tendo figurado nas tabelas de bestsellers do
New York Times e visto alguns dos seus romances serem adaptados ao pequeno ecrã.
A Guarda-Costas
Katherine Center
Título original:
The Bodyguard
© 2022, Katherine Center
Publicado por acordo com St. Martin's Publishing Group, em parceria com International Editors &
Yañez'Co. Barcelona
www.portoeditora.pt
ISBN 978-972-0-67138-7
Para os meus avós, Herman e Inez Detering.
Deixaram-nos muitas dádivas para continuar a transmitir e
estou grata por todas elas – em especial, ultimamente: pelos
vossos abraços, o vosso carinho e simpatia, e todas as
memórias de uma infância passada à solta no vosso rancho no
Texas.
Sinto a falta de ambos – mas da melhor maneira, com toda a
gratidão.
Um
O último desejo da minha mãe foi que eu tirasse férias.
«Vá lá», dissera, prendendo-me uma madeixa de cabelo atrás da orelha.
«Marca uma viagem e vai. Como as pessoas normais.»
Eu não tirava férias há oito anos.
Mas respondi-lhe que sim, que é o que se faz quando uma mãe doente
nos pede alguma coisa. Depois acrescentei, como se estivesse a regatear:
«Umas férias.»
Claro que, na altura, não sabia que seria o seu último desejo. Pensei
que estávamos apenas a fazer conversa de hospital a meio da noite.
Então, de súbito, dei por mim e era a noite a seguir ao funeral dela. Não
conseguia dormir, às voltas na cama, e aquele momento não me saía da
cabeça. Como a minha mãe me fitara nos olhos e me apertara a mão para
garantir que cumpria – como se as férias fossem importantes.
E agora eram três da manhã. As roupas que usara no funeral tinham
sido atiradas para cima de uma cadeira. Desde a meia-noite que tentava
adormecer.
– Pronto, está bem – resmunguei em voz alta, na cama, para o vazio.
Depois rastejei por cima da cama até encontrar o meu portátil no chão
e, à luz azulada do ecrã, de olhos ainda meio fechados, pesquisei
rapidamente: «BILHETE DE AVIãO MAIS BARATO PARA QUALQUER SíTIO», e
encontrei um site com uma lista de destinos, com voos diretos por setenta e
seis dólares. Rodei a roda do rato como se estivesse a jogar roleta, aterrei
aleatoriamente em Toledo, Ohio, e cliquei em COMPRAR.
Dois bilhetes para Toledo. Não reembolsáveis, viria a descobrir. Um
pacote especial qualquer para pombinhos no Dia dos Namorados.
Feito. Promessa cumprida.
O processo todo não demorou mais do que um minuto.
Agora, tudo o que tinha de fazer era forçar-me a ir.
Vamos parar o relógio aqui por um segundo, porque não é todos os dias
que uma pessoa está à porta da casa de Jack Stapleton, a contemplar
diretamente toda a sua magnificência, enquanto ele faz uma coisa
totalmente normal e, ao mesmo tempo, absolutamente espantosa, como
vestir uma T-shirt.
Talvez estejam a questionar como foi, para mim, viver esse momento.
Talvez isto ajude – o meu cérebro desligou-se.
Perdi literalmente a capacidade de falar.
Sei que ele me fez uma pergunta qualquer, mas não conseguiria dizer-
vos qual foi. E não fui capaz de lhe responder.
Fiquei apenas ali especada, a olhar para ele de boca aberta, como um
peixe fora de água.
É só uma pessoa, estão vocês a pensar. Só um homem que, por acaso, é
famoso.
Sim. Claro.
Mas gostava de vos ver não emudecer de assombro se caíssem de
paraquedas naquele momento.
Desafio-vos.
Posso também salientar que eu não estava de maneira nenhuma à
espera que fosse ele a abrir a porta? Presumi que fosse uma assistente, ou
uma secretária, ou um mordomo britânico de nariz empinado e fraque –
tudo menos o homem em pessoa.
Ainda por cima, Stapleton era maior do que parecia, e para mais
considerando que eu já o achava bastante grande. Em comparação, senti-
me minúscula, e essa não é a minha dinâmica de poder preferida.
Acrescento ainda que – talvez não fosse preciso dizê-lo, mas ainda
assim – ele estava… vivo.
Ou seja, não era uma representação de si próprio em celuloide. Era uma
criatura viva, em carne e osso, tridimensional.
O que era novidade para mim.
Agora que conseguia observá-lo bem, percebi que ele não era de
maneira nenhuma tão corpulento como no filme Os Destruidores – e claro
que não podia ser, certo? Pois quem é que consegue manter por tempo
indefinido um regime de treino de cinco horas por dia? Assim, em vez de
ter à minha frente um monstro musculado, tinha um conjunto de
abdominais definidos vulgares, ligeiramente menos salientes, mais subtis e,
ainda assim, mais sofisticados. Um conjunto de abdominais que não
precisava de se esforçar desmesuradamente.
O que fazia com que ele parecesse mais humano. E isso devia ser uma
coisa boa. No entanto, ser mais humano tornava-o mais real. E eu nunca
pensara nele como uma pessoa a sério.
O Jack Stapleton real era menos bronzeado do que nos cartazes dos
seus filmes. Os seus olhos eram mais cinzentos do que azuis. Tinha uma
feridinha onde se cortara ao fazer a barba. Os seus lábios pareciam um
pouco secos, como se precisasse de os hidratar. Eu nunca o vira com
cabelo tão comprido – Há quanto tempo é que ele não o corta? –, que
assim, caído para a testa, estava mesmo a pedir que alguém o afastasse
para o lado. Tinha um penso rápido nas costas da mão e um relógio barato
no pulso e, para culminar, óculos. Não uns óculos Prada elegantes –
apenas uns óculos ligeiramente tortos como os que as pessoas normais
usam para ver.
Foi assim que percebi que não era um sonho, já agora. Porque nunca
me passaria pela cabeça colocar um par de óculos vulgares e tortos em
Jack Stapleton.
Que, ao mesmo tempo, melhoravam e pioravam a sua aparência.
Isto era esgotante.
Criar palavras de código especiais para indicar que está tudo bem
1
Doghouse pode ser traduzido como «casota de cão», e é também uma
expressão que significa ter caído em desgraça com alguém. (N. da T.)
Sete
Na manhã seguinte, dirigimo-nos para oeste pela autoestrada 10, no
Range Rover preto reluzente de Jack Stapleton, para eu – agora já
totalmente embrenhada na personagem de namorada dele – ir conhecer os
seus pais.
Glenn mandara-me um guarda-roupa falso para a namorada falsa,
cortesia de uma amiga sua que trabalhava como personal shopper. Os fatos
de calça e casaco estavam proibidos, o que era compreensível. Foi assim
que dei por mim com um vestido de verão bordado e sandálias, o cabelo
preso num carrapito largo e descuidado. Só que é difícil uma pessoa sentir-
se profissional com um vestido veranil com mangas em balão. Era final de
outubro, note-se, mas no Texas isso pode significar uma enorme amplitude
em termos de meteorologia: por exemplo, naquele momento estavam uns
bons vinte e cinco graus na rua. Ainda assim, eu sentia-me despreparada,
um bocadinho arrepiada, estranhamente despida e invulgarmente
vulnerável.
Sentia falta do meu fato de calças e casaco, é o que estou a dizer.
No entanto…
Compreendia por que razão Jack queria fazer as coisas desta maneira.
Quando a minha mãe estava doente, tudo o que eu queria era animá-la, não
a deixar perder a esperança e protegê-la do desespero. Eu percebia. A ideia
de Jack estar em perigo podia ser motivo de grande stress. Já bastava estar
doente.
Eu refletira sobre o assunto na noite anterior, enquanto percorria a
autoestrada – durante uma rápida avaliação do caminho até ao rancho e de
regresso –, e decidira que estava disposta a isso.
Pelo menos, em teoria.
Hoje, agora que estava mesmo a acontecer, não me sentia tão à
vontade. Sentada no banco do passageiro, muito direita e aprumada, de
joelhos juntos, não me sentia nada eu própria.
Jack Stapleton, em contraste, ia quase recostado no banco atrás do
volante, a conduzir com uma só mão, de pernas abertas à campeão, cabelo
revolto de forma desafiadora e a mascar pastilha elástica, com tanta
descontração como se já tivesse nascido com os óculos escuros à aviador.
Como íamos para um rancho, creio que esperara vê-lo num visual à
cowboy. No entanto, parecia mais que ia a caminho de um fim de semana
em Cape Cod – polo azul justo e calças de caqui cor de pedra, com
mocassins sem meias.
É verdade que cresci em Houston. Talvez imaginem que eu já tinha
estado num rancho antes. Mas, para dizer a verdade, não. Já estive na Torre
Eiffel, na Acrópole, no Taj Mahal e na Cidade Proibida em Pequim, mas
nunca tinha estado num rancho texano.
Suponho que andei sempre demasiado ocupada a escapar.
Até agora.
Toquei na pele dos joelhos, preocupada ao constatar como estavam
expostos. Deveria ter vestido calças de ganga? Teria de me preocupar com
cascáveis? Formigas? Catos?
Tinha um par de botas de cowboy, encarnadas como semáforos, que a
minha mãe me oferecera no meu décimo oitavo aniversário, convicta como
estava de que todas as raparigas do Texas deviam possuir um par de botas.
Mas nunca tivera um bom motivo para as usar antes. Não faziam parte do
meu guarda-roupa oficial de namorada, mas trouxera-as comigo por uma
questão de princípio. Certo? Se não as usasse num rancho, nunca as usaria
em lado nenhum. Se calhar devia calçá-las. Mesmo que não fosse pelo
estilo, pelo menos, para me proteger das tarântulas.
Por detrás dos óculos escuros, vi Jack lançar um olhar rápido às minhas
mãos.
– Estás nervosa? – perguntou.
Sim.
– Não.
– Ótimo. Isto não vai demorar muito. Os meus pais ficarão felizes por
me ver, mas o meu irmão odeia-me, por isso vai despachar-nos o mais
depressa que puder.
– Provavelmente teremos de falar sobre isso.
– Sobre o meu irmão?
– Sim.
– Não.
– Estou só a dizer que quanto mais souber, mais posso ajudar.
– Então o vosso serviço inclui terapia?
– Às vezes.
– Assinaste um acordo de confidencialidade, certo?
– Claro que sim.
Jack pensou no assunto.
– Pois. Mesmo assim, não vou falar sobre este assunto.
– Tu é que sabes – disse. Eu ficara tão atrapalhada no nosso encontro
inicial que me esquecera de lhe fazer o Questionário Muito Pessoal, e esta
parecia uma altura tão boa como outra qualquer. Tirei da mala a minha
pasta rotulada com as iniciais dele. – Vamos aproveitar e despachar aqui
outras questões. – Ainda tínhamos meia hora de autoestrada. Jack não
concordou em responder, mas também não recusou. Peguei numa
esferográfica.
– Consomes regularmente alguma droga ou medicamento de que seja
necessário termos conhecimento?
– Não.
– Algum vício? Jogo? Prostitutas? Roubar nas lojas?
– Não.
– Obsessões? Amantes secretas?
– De momento, não.
– Pareces-me muito monástico, para um ator mundialmente famoso.
– Estou a fazer uma pausa nessa vida.
Entendido. Continuei.
– Problemas de controlo de raiva? Segredos sombrios?
– Não mais do que qualquer outra pessoa.
Nota mental: resposta um bocadinho evasiva.
Olhei de novo para a lista.
– Problemas de saúde?
– Sou a saúde em pessoa.
– Marcas distintivas?
Ele franziu a testa.
– Que marcas?
– No corpo – esclareci. – Tatuagens. Sinais de nascença. Verrugas…
estranhas ou nem por isso.
– Tenho uma sarda no feitio da Austrália – disse ele, e começou a puxar
a camisola de dentro das calças.
– Não é preciso mostrares-me! – interrompi. – Eu sei como é a
Austrália. – Escrevi «sarda Austrália» e continuei: – Cicatrizes?
– Algumas. Nada de muito especial.
– Mais à frente, vou precisar de tirar fotografias de tudo.
– Porquê?
Recusei-me a hesitar.
– Para o caso de termos de identificar o teu corpo.
– O meu cadáver?
– O teu corpo vivo. Por exemplo, numa foto a pedir resgate. Não que a
situação alguma vez chegasse a esse ponto.
– Isso é perturbador.
Continuei:
– Outras anomalias físicas?
– Como por exemplo?
A maioria das pessoas limitava-se a responder.
– Não sei. Dedos dos pés tortos? Um dente a mais? Uma cauda
vestigial? Tenta ser criativo.
– Não me lembro de nada.
Muito bem. Próxima.
– Dificuldade em dormir?
Esperei que ele pedisse exemplos, mas, após uma breve pausa, disse
apenas:
– Tenho pesadelos.
Acenei. Entendido.
– Com frequência?
– Uma ou duas vezes por mês.
Assim tantas?
– Recorrentes?
– O quê?
– É sempre o mesmo pesadelo?
– Sim.
– Podes dizer-me do que se trata?
– Precisas de saber?
– Mais ou menos.
Ele manobrou o volante enquanto pesava as suas opções. Por fim,
respondeu:
– Afogamento.
– Está bem. – Era apenas uma palavra, mas parecia significar muito.
Próxima pergunta. – Alguma fobia?
Uma pausa. Seguida de um aceno seco.
– Afogamento, também.
Apontei isso no ficheiro dele e preparava-me para passar à frente
quando ele acrescentou:
– E pontes.
– Tens medo de pontes?
Ele respondeu, num tom forçadamente casual:
– Tenho.
– De pensar em pontes ou de pontes propriamente ditas?
– A segunda hipótese.
Hum, certo.
– Como é que isso se manifesta?
Jack mordeu o interior do lábio enquanto pesava as suas opções e
decidia até onde queria partilhar.
– Bom, dentro de mais ou menos vinte minutos vamos chegar à parte
da autoestrada que passa por cima do rio Brazos. E quando isso acontecer,
eu vou parar, sair do carro e atravessar a ponte a pé.
– E o carro?
– Terás de o conduzir e esperar por mim do outro lado da ponte.
– E é sempre assim que atravessas pontes?
– É assim que prefiro atravessá-las.
– E se estiveres sozinho?
– Tento não estar.
– Mas se estiveres?
– Se estiver, sustenho a respiração e atravesso. Mas a seguir tenho de
parar o carro um bocado.
– Porquê?
– Para vomitar.
Registei a informação. Depois, perguntei:
– Porque é que tens medo de pontes?
– Tenho de responder?
– Não.
– Nesse caso, digamos apenas que as infraestruturas americanas não
são tão robustas como todos gostamos de acreditar. E ficamos por aqui.
Depois de, por fim, ser derrotada de forma espetacular numa votação
que ficou «todos-contra-mim», decidi sair para apanhar ar.
Precisava de um minuto a sós.
E foi então que, no caminho circular de acesso à casa, dei de caras com
Taylor, que estava a chegar. Atrasada. Quando me viu, abrandou o passo e
parou. Agora que eu tinha conhecimento da situação, a linguagem corporal
dela era inconfundível: os olhos baixos do sentimento de culpa. Os ombros
tensos da vergonha. A respiração superficial da traição.
Como é que não percebera antes?
Andara cega pela confiança e pelo afeto. Pela ideia daquilo que uma
amiga devia ser.
É tão fácil ver aquilo que esperamos.
Semicerrei os olhos, furiosa, mas estava demasiado escuro para Taylor
se aperceber.
– O que fazes aqui? – perguntei.
– Hã… venho trabalhar?
– Estás atrasada.
– Pois. Trânsito.
– Isso é mentira?
– Mentira? Não. Havia muito trânsito.
Percebi no tom da voz dela que começava a dar-se conta de que algo
estava errado.
– Estão todos lá dentro – indiquei, inclinando a cabeça para a garagem.
– Na sala de videovigilância. Onde verificamos todas as imagens das
câmaras de segurança.
Taylor franziu a testa. Sabia que eu estava a tentar insinuar mais do que
aquilo que dissera.
– Todos menos tu – notou, como se fosse uma pista para compreender
o enigma.
– Vou fazer uma pausa. – Decidi dar-lhe outra oportunidade. – Mas
tenho passado muito tempo naquela sala. A vigiar o local.
– Pois, claro. És a agente primária e…
– É espantoso o que aquelas câmaras conseguem captar. Cenas que
uma pessoa nunca esperaria ver, mesmo que vivesse a sua vida uma e outra
vez ao longo de um milhão de anos.
Nessa altura, Taylor percebeu.
Deu para ver o instante em que essa consciência a atingiu. A pequena
faísca de choque nos seus olhos.
– Estás a falar de… – disse ela.
– De ti – confirmei, com um aceno. – Com o Robby.
– Oh…
– Pois.
– Isso… isso…
– Foi o que aconteceu em Madrid?
Ela hesitou. O que era fascinante. Porque agora não tinha maneira de se
escapar. Por fim, admitiu:
– Sim. – E então, como se isso pudesse redimi-la, acrescentou: – Mas
por acidente!
Eu já sabia, claro. E achava que nada podia ser pior do que ver com os
meus próprios olhos. Mas estava enganada.
A confirmação era pior.
– Então, todas aquelas vezes em que eu te liguei, a chorar, de coração
partido… tu estavas numa relação com a pessoa que mo partiu?
Taylor baixou os olhos.
– Ao princípio, não era propriamente uma relação.
– Andavam só a dormir um com o outro.
– Mas não de propósito. Não completamente.
Nem sequer valia a pena estar a falar naquilo. Eu só queria que ela
soubesse que eu sabia. Queria que todos estivéssemos de acordo quanto ao
facto de ela ser uma pessoa terrível.
Mas depois ela acrescentou:
– Tecnicamente, vocês já tinham acabado.
Franzi a testa.
– O quê?
– Não te traímos, é o que estou a dizer. Tecnicamente.
Recusei-me a dignificar o comentário com uma resposta.
– Desculpa. Lamento muito, a sério. Aconteceu. Não sabíamos como te
contar.
– Aconteceu?
– Sabes como é, quando estamos em missão.
– Sim, sei mesmo. Especificamente, com o Robby.
– Não queríamos magoar-te.
Outra vez a falar no plural.
– Será possível que não compreendes a… a… – Nem me ocorriam
palavras que o abarcassem. Por fim, decidi-me por: – A atrocidade
emocional que cometeste?
– Não estamos a falar de crimes de guerra.
– Saqueaste a nossa amizade. Bombardeaste a confiança que eu tinha
em ti. Usaste uma arma nuclear contra a minha fé na humanidade. És o
Enola Gay2 das amigas.
Talvez estivesse a exagerar um pouco. Mas não o admiti, mesmo
depois de me ocorrer que esta conversa não era muito diferente da maneira
como costumávamos falar quando estávamos na galhofa. A grande
diferença agora era, claro, o ódio ardente.
Contudo, eu tinha uma pergunta real para lhe colocar.
– Não compreendes aquilo que fizeste – indaguei –, ou estás a fingir
que não percebes? – Não tirei os olhos dela, à espera. – De uma maneira ou
de outra, vou odiar-te para sempre – continuei. – Mas no primeiro caso,
odeio-te por seres estúpida, e no segundo, por seres egoísta.
Taylor baixou os olhos.
– Deixa estar. Eu sei a resposta. És egoísta. Ninguém é assim tão
estúpido. Nem mesmo tu. – Pensei que talvez me soubesse bem ser cruel,
mas não.
– Ouve…
– Espero que ele valha a pena – atirei-lhe. – Deitaste a nossa amizade
pelo cano abaixo. Desististe de todas as noites de cinema, sextas-feiras de
copos, trocas de mensagens engraçadas, festas de pijama, Dias das
Amigas, viagens de sonho, e de todos os abraços e átomos de admiração,
carinho e afeto que alguma vez poderias ter tido comigo. Não foi?
Prescindiste de me pedir emprestadas as calças de ganga com arco-íris.
Dispensaste as recomendações de livros e os postais de aniversário
personalizados e os lanchinhos pela noite dentro. E perdeste também a
melhor vizinha de todo o sempre, porque podes ter a certeza de que vou
mudar de casa.
Senti a minha voz a tremer. Queria que ela se sentisse mal ao ouvir a
lista de tudo o que perdera, embora, claro, eu tivesse perdido o mesmo.
– E sabias – continuei. – Sabias que o Robby é terrível. Sabias o que
ele me fez… como me abandonou na noite depois de eu ter perdido a
minha mãe. – Soltei um suspiro trémulo. – É isso que dá cabo de mim.
Desististe de tudo… de tudo aquilo com que nos amparávamos uma à
outra… não por um homem qualquer, mas por um pulha.
– Lamento muito – disse Taylor.
– Não quero saber.
– Não quero perder-te – disse ela, a voz agora também a tremer .
– Ele vai deixar-te – avisei-a. – Deixou todas as mulheres com quem já
esteve. Sabias? É sempre o Robby que acaba as relações, nunca elas. E
depois vais implorar-me que te perdoe, mas sem sorte nenhuma. Queres
saber porquê? Porque não sou capaz. Há certas coisas que, quando se
partem, não têm conserto possível.
Estava preparada para que aquilo fosse o fim da conversa. Estava
pronta para a abandonar ali, no meio do caminho, com o eco daquelas
palavras. Comecei a afastar-me.
Mas ela disse, atrás de mim:
– Estás enganada.
Virei-me.
– Ele não me vai deixar. Acabou com as outras porque nunca tinha
encontrado a mulher certa.
Uau, a arrogância!
– E achas que essa és tu?
– O que sei, com toda a certeza, é que não eras tu.
O quê!?
E isto, isto mesmo, é o problema de nos aproximarmos de outras
pessoas. Quanto melhor nos conhecem, mais conseguem magoar-nos.
– O Robby nunca te amou – disse ela – porque tu não o deixaste.
Como se atrevia a ficar do lado dele?
– Não sabes do que estás a falar.
– Pergunta-lhe, um destes dias. Ele tentou.
Não me admirava que Robby tentasse fazer passar por vítima. O que
me admirava era que Taylor acreditasse nele.
Devia precisar mesmo de me ver como o problema.
Então, ela encolheu os ombros e fixou os olhos nos meus.
– Tens tanta certeza de que a culpa foi do Robby…
– Sim! E tu também devias ter!
– … que não consegues ver a tua parte da responsabilidade.
Como é que isto estava a acontecer? Ela devia defender-me. Devia
sentir-se ofendida e injustiçada por mim. É para isso que servem as
melhores amigas.
– Como consegues fazer isto? – perguntei, com a voz a fraquejar. –
Eras a minha melhor amiga.
Mas Taylor abanou a cabeça.
– Nunca fui a tua melhor amiga. Era a tua amiga do trabalho. E o facto
de não saberes a diferença… é precisamente o problema.
2
Avião bombardeiro B-29, ao serviço da Força Aérea dos EUA, é
conhecido por ser o primeiro avião a lançar uma bomba atómica: sobre
Hiroxima, no Japão, a 6 de agosto de 1945. (N. do E.)
Doze
Enfim… Foi neste estado de espírito – muito contrariada – que acabei
por me mudar para o rancho de gado de duzentos hectares pertencente aos
pais de Jack Stapleton.
Porém, não tinha escolha, embora, de repente, me parecesse uma opção
menos má, pelo menos em comparação com estar a viver ao lado de
Taylor. Ou com estar no nosso prédio de quatro apartamentos e paredes
finas como cartolina, a comer cereais na cozinha e a ouvir Robby e a Pior
Pessoa do Mundo a fazerem waffles do outro lado. Ou com estar a ouvi-los
ver filmes de terror no sofá dela, ou mandar vir comida, ou a noite toda em
atividades noturnas no quarto… Em comparação com qualquer uma dessas
hipóteses, viver com o Destruidor era, sem dúvida alguma, uma melhoria.
Liguei ao meu senhorio do carro, depois daquela discussão com Taylor,
para cancelar o contrato de arrendamento. Encontraria um apartamento
novo online, que arrendaria sem sequer lá pôr os pés. Contrataria uma
empresa de mudanças para tirar tudo do meu apartamento, incluindo a
roupa suja.
Partiria em missão e nunca mais poria os pés ali.
E faria questão de que a nova casa tivesse uma lareira, e que esta
estivesse acesa para eu poder desfazer as malas, procurar todas as coisas
que Taylor me oferecera ao longo dos anos – a T-shirt da Mulher
Maravilha, a agenda com a capa de brilhantes e a frase «éS MáGICA», o livro
com as fotografias dos ouriços-cacheiros mais fofos do mundo – e atirá-las
para as chamas, uma a uma, até serem apenas cinzas.
Uma purga. Uma limpeza. Um recomeço.
*
Na manhã em que Jack e eu nos mudámos para o rancho dos
Stapletons, era Jack que estava maldisposto.
Como se ele é que tivesse motivos para isso.
Perdera aquele ar agressivamente descontraído que usava na maior
parte do tempo como se fosse um perfume. Conduziu com os ombros
tensos, o maxilar contraído e tinha a tensão arterial – juro que conseguia
medi-la do outro lado do carro – elevada.
Mal me dirigiu a palavra o caminho todo. Foi o silêncio mais ruidoso
que eu já ouvira.
Só nesse momento, ali na autoestrada, sentada ao lado de Jack, é que
percebi que Taylor, de certa forma, me fizera um favor: graças a ela, aquela
ida para o rancho de Jack era uma espécie de escape. Não o que eu tanto
desejara, mas, por enquanto, teria de servir.
Essa perspetiva animou-me um bom bocado.
Quando chegámos à ponte sobre o Brazos e Jack saiu do carro para a
atravessar a pé, parecia quase agoniado. E quando parámos em frente da
casa do rancho, o ar em torno dele crepitava com uma aura de infelicidade.
Um escape para mim. Mas, se calhar, o oposto para ele.
No entanto, Kelly não mentira quando mencionara a beleza da casa.
Era uma hacienda dos anos vinte em estilo espanhol, com telhas vermelhas
e buganvílias cor-de-rosa a florir por todo o lado. Estacionámos no
caminho de cascalho e, quando eu saí do carro, a brisa fez esvoaçar o
vestido leve em torno dos meus joelhos nus.
Na verdade, era uma sensação agradável.
Suponho que as roupas de namorada têm o seu lado positivo.
– Idílico – comentei, olhando para a casa.
Jack não respondeu, mas aquela conversa das «férias pagas» começava
a fazer algum sentido.
Jack não fora criado no rancho. Contou-me mais tarde que os avós é
que viviam ali quando ele era pequeno, e que depois da morte destes se
tornara uma casa de fim de semana. Os pais dele só se tinham mudado para
lá a tempo inteiro depois de se reformarem, e fora nessa altura que a mãe
plantara a horta e o jardim, e o pai convertera metade do velho celeiro
numa oficina de carpintaria. Mas naquela altura, quando chegámos, Jack
não disse nem uma palavra que não fosse indispensável enquanto me fazia
a visita guiada à propriedade.
Eu estava encantada com as paredes caiadas, as vigas expostas no teto,
as portas em arco, o chão de tijoleira, a coleção de estatuetas de galinhas
no louceiro. E os azulejos pintados nas casas de banho e na cozinha.
Janelas por todo o lado, luz do sol e flores de buganvília para onde quer
que me virasse. Havia um jardim enorme perto de um alpendre lateral
enfeitado com madressilva, e um alpendre fechado, maior do que uma sala,
do lado oposto. Era como um lugar encantado de outra época.
Naquele dia, em finais de outubro, todas as janelas estavam abertas. A
cozinha tinha cortinas de algodão aos quadrados, e uma caixa de pão, e um
rádio antigo. Na mesa havia um saleiro e pimenteiro em forma de
maçarocas de milho. O pai de Jack tinha um gira-discos em cima da
bancada, ao fundo da cozinha, e Jack abriu os armários por cima para me
mostrar, em vez de louça, como seria de esperar, a enorme coleção de
discos, organizada por década.
Quer dizer, era tudo encantador.
Exceto, talvez, para Jack.
Segui-o através de uma sala de estar comprida, com três sofás dispostos
em torno de uma lareira gigante, até um corredor que levava aos quartos.
As paredes do corredor estavam cobertas – quase sem um centímetro
de espaço livre – com fotografias de família emolduradas. E metade delas,
pelo menos, eram de três rapazes com sorrisos grandes e engraçados a
olhar para a câmara.
Jack e eu parámos diante daquele cenário.
Como se nenhum de nós o tivesse visto antes.
Toquei numa fotografia de um jovem Jack, às cavalitas de um jovem
Hank, enquanto Hank pegava no irmão mais novo de ambos, de cabeça
para baixo, pelos tornozelos.
– És tu e os teus irmãos? – perguntei.
Jack acenou afirmativamente e os seus olhos percorreram a parede.
– Parece que se divertiam muito.
Jack assentiu de novo, em silêncio.
Depois disse, numa voz tão baixa que mal o consegui ouvir:
– Não vinha cá a casa desde o funeral.
Continuou a olhar para as fotografias, e por isso fiz o mesmo.
Eram maioritariamente instantâneos: os rapazes, muito pequenos, a
correrem por um campo de flores azuis. Na praia, à beira-mar. A comerem
nuvens de algodão-doce maiores do que as suas cabeças. Depois, mais
velhos: altos e magros, com equipamentos de futebol. Todos a fazerem o
pino. A exibirem peixes na ponta das canas de pesca. A cavalo. No alto de
uma encosta, com esquis. A jogar às cartas. A jogar basquetebol. Vestidos
para o baile de finalistas. A fazerem caretas.
Totalmente normal.
E tão desolador.
Precisamente quando dei por mim a pensar que era capaz de passar a
tarde toda a admirar aquelas fotografias, Jack respirou fundo, abriu a porta
do seu quarto e entrou intempestivamente, como se não aguentasse nem
mais um segundo.
Segui-o.
O quarto de Jack era como o resto da casa – o mesmo chão de tijoleira
e as mesmas paredes brancas, as mesmas portadas viradas para flores cor-
de-rosa, as mesmas portas em arco. Mas parecia mais masculino, de
alguma forma. Mais curtido. Cheirava a ferro, tinha uma sela antiga ao
canto e uma cadeira Eames ao pé da janela.
– Este é o teu quarto? – perguntei, para confirmar.
– O nosso quarto – respondeu ele.
Claro. Íamos dividir o quarto. Afinal de contas, éramos adultos.
Adultos numa relação falsa.
– Podes ficar com a cómoda – ofereceu Jack, pousando a mala no chão
ao lado da sela.
– Podemos partilhar – sugeri.
Mas ele encolheu os ombros.
– Não é preciso.
A seguir, olhei para a cama.
– Isso é uma cama de corpo e meio?
Jack franziu a testa e percebi que nunca tinha pensado no assunto.
– Talvez.
– Tu cabes nesta cama?
O vestígio de um sorriso.
– Fico com os pés de fora.
Ocorrera-me que havia boas probabilidades de que o quarto só tivesse
uma cama. E, de facto, aqui estava a prova.
– Eu durmo no chão – declarei.
Jack inclinou a cabeça, como se não lhe tivesse ocorrido que alguém
teria de dormir no chão.
– Podes dormir na cama – objetou; ao princípio, pensei que estava a
ceder-me o seu leito, mas depois acrescentou: – Podemos partilhar.
Olhei para ele de lado.
– Não é preciso.
– Tens noção de que o chão é de tijoleira?
– Eu desenrasco-me. – Era melhor do que o chão do meu closet.
– Percebo que estejas desconfortável com a ideia, mas prometo que não
te toco.
Eu não queria admitir que estava desconfortável. Essa não era
informação necessária. Apontei para ele com um gesto vago. «Olha para
ti», era o que queria dizer.
– Nem sequer caberíamos os dois nessa cama.
Vi um sorriso genuíno assomar-lhe ao rosto, e fiquei contente por ter
conseguido conduzir a conversa para um tópico menos penoso.
– Já consegui enfiar lá algumas miúdas – disse Jack.
– Prefiro o chão – reafirmei, para encerrar o assunto.
– Está fora de questão fazer-te dormir no chão.
– Está fora de questão dormir na tua cama.
– Não sejas picuinhas.
– Na verdade, acho que estou a ser precisamente o oposto ao oferecer-
me para dormir no chão.
Ele pensou um pouco.
– Sim. É verdade. Obrigado.
Não estava à espera de agradecimentos.
– Ainda assim – continuou ele –, ficas com a cama.
– Não a quero. Mesmo – respondi.
– Nem eu.
– Muito bem. Podemos dormir os dois no chão.
Jack estudou-me como se eu fosse esquisita.
– Estás a afirmar que, mesmo que eu durma no chão, tu dormirás
também no chão?
Esta podia muito bem ser a minha única área de autonomia no próximo
mês.
– Sim – insisti. – Dormirei no chão seja como for.
– Preferes dormir no chão duro e frio de tijoleira do que ao meu lado?
– Aposto que não ouves isso muitas vezes.
Jack sorriu como se estivesse impressionado.
– Absolutamente nunca.
– Se calhar até te vai fazer bem – comentei.
Jack encolheu os ombros, como quem considera essa possibilidade.
Depois – e é possível que um cavalheiro tivesse insistido um pouco mais –,
cedeu.
– Como queiras.
Resolvido o assunto, olhei em volta.
Francamente, não sabia o que esta missão significaria para mim. Quase
todas as minhas responsabilidades normais tinham sido transferidas para a
equipa remota, que arrendara uma casa segura a pouca distância dali, como
base de operações. Eles lidariam com a videovigilância, o controlo do
perímetro da propriedade, a monitorização de redes sociais e todas as
outras tarefas que eu normalmente fazia.
Além disso, estávamos num nível de ameaça amarelo. E no meio do
nada, numa casa rodeada por duzentos hectares de pasto. Portanto, nem
sequer havia muito que fazer. Além de, possivelmente, identificar o
posicionamento do gado.
Quer dizer, não diferia muito de um nível de alerta branco.
«Umas férias pagas», era o que toda a gente achava. Mas havia uma
razão para eu nunca tirar férias. O que esperavam exatamente que fizesse o
dia todo? Tecnicamente, estaria a trabalhar, mas sem qualquer… trabalho.
Porém, antes que eu pudesse entrar em pânico, ouvimos uma pancada
na porta, seca como um tiro.
Ambos demos um salto.
Do outro lado, ouviu-se a voz de Hank.
– Jack, preciso de falar contigo.
Só quando toda a tensão regressou ao rosto de Jack é que me apercebi
de como a brincadeira quanto à organização das dormidas o descontraíra.
Até a sua postura se alterou. Endireitou-se e saiu do quarto.
Deveria segui-lo? Bom, não fora convidada. Num trabalho normal,
sempre que estava de serviço, tinha o cliente debaixo de olho; mas isto não
era, de maneira nenhuma, um trabalho normal.
Ainda insegura, regressei à cozinha, mas estaquei quando ouvi a porta
das traseiras chiar. Jack e Hank tinham parado do lado de fora, no alpendre
fechado. Não os via, mas as suas vozes chegavam até mim pela janela
aberta.
Estavam a falar sobre mim.
– Trouxeste-a mesmo – disse Hank. – Apareceste mesmo aqui com essa
rapariga.
– No hospital não me pareceu que te incomodasse.
– Pois. No hospital houve muitas coisas que não pude mostrar que me
incomodavam.
– O que querias que fizesse? A mãe convidou-a.
– Só porque achou que não virias sem ela.
– E com razão. Não teria vindo sem ela.
– Estás a tornar as coisas ainda mais difíceis para a mãe e não te
preocupas com isso.
– Tu é que estás a tornar-lhe as coisas mais difíceis. E preocupo-me
muito.
– Não achas que ela já tem o suficiente com que lidar neste momento?
– Só estou aqui porque ela me pediu.
– Ela quer estar contigo. Não com uma desconhecida qualquer.
– A Hannah não é uma desconhecida. É a minha namorada.
Encolhi-me um pouco ao ouvi-lo mentir.
– É uma desconhecida para nós.
– Não por muito tempo.
– Manda-a embora.
– Não posso. Não o farei.
– Manda-a embora ou eu corro com vocês os dois.
– Não te atreverias. Experimenta fazer uma coisa dessas e depois
informa a mãe do que fizeste.
– Isto é um assunto privado, de família. A última coisa de que a mãe
precisa neste momento é de estar a fazer de anfitriã a uma parvinha
qualquer de Hollywood.
Ouvi sons arrastados e um baque. Espreitei pela porta de rede e vi que
Jack empurrara Hank contra a parede.
– Há alguma coisa naquela rapariga que te pareça Hollywood? –
perguntou Jack.
Era surreal ver dois homens adultos à bulha por minha causa. Apesar
de saber que não era uma luta real. E apesar de saber que o motivo, na
verdade, era outro.
Mesmo assim, sustive a respiração.
Por um segundo, pensei que Jack ia defender-me.
– Ela não podia ser menos Hollywood – disse ele então, em voz baixa e
ameaçadora. – Viste as minhas outras namoradas? A Kennedy Monroe? A
Hannah não é nada parecida com nenhuma delas. É baixa. Tem os dentes
tortos. Quase não usa maquilhagem. Não usa autobronzeador, não tem
extensões, não pinta o cabelo. É uma pessoa totalmente básica e simples. É
a epítome da vulgaridade.
Uau.
– Mas é minha namorada – concluiu Jack. – E vai cá ficar.
Eu ainda estava a tentar engolir «a epítome da vulgaridade».
Mais sons abafados, quando Hank se libertou de Jack.
Recuei para que não me vissem. Claro que isso significava que também
não conseguia vê-los.
– Muito bem – cedeu Hank. – Sendo assim, tenho de lhe fazer a vida
negra para ela decidir partir por si mesma.
– Se fizeres a minha Hannah infeliz…
A minha Hannah!
– … podes ter a certeza de que te farei o mesmo.
– Já fazes.
– Não penses que sabes tudo sobre mim – lançou Jack.
Mas Hank continuava a tentar vencer a discussão.
– Já te disse que não a quero aqui. Mas na verdade não me lembro da
última vez que te preocupaste com o que outra pessoa quer.
– Tu não a queres aqui, mas eu preciso dela aqui. E tu também, apesar
de não saberes. Portanto, deixa-me em paz.
Suponho que, nesse momento, um deles decidiu virar costas, porque
ouvi a porta de rede do alpendre fechar-se. E o som repetiu-se segundos
depois.
Pela janela da cozinha, vi Hank a afastar-se na direção da carrinha com
passo furioso, e Jack a ir no sentido oposto, pelo caminho de cascalho, em
direção às árvores.
O que eu queria ir fazer: esconder a minha cara básica, simples e
epítome-da-vulgaridade para sempre. Porém, Jack era o meu cliente. E este
era o meu trabalho.
Portanto, segui-o.
Treze
Quando o apanhei, ele parou, mas não se virou.
– Não me sigas.
– Tenho de te seguir.
– Vou caminhar um pouco.
– Já percebi.
– Preciso de um momento. Sozinho.
– Isso não é relevante.
– Achas que és mesmo minha namorada ou quê? Não me sigas.
– E tu achas que eu sou tua namorada? Não vim atrás de ti por querer.
És a minha tarefa.
Ao ouvir isto, Jack recomeçou a andar pelo caminho de cascalho –
dirigindo-se determinadamente para lado nenhum, tanto quanto eu
conseguia ver. Deixei-o adiantar-se uns trinta metros, e depois respirei
fundo e segui-o.
Quando Jack disse que ia fazer uma caminhada, estava a falar a sério.
Seguimos os sulcos dos pneus na estrada através de um pasto de vacas,
passando por uma cerca, por um celeiro de chapa enferrujada e por uma
encosta que descia suavemente até um baixio verdejante.
Acham que eu estava vestida para um passeio destes, no meu vestido
de verão bordado e tornozelos expostos?
Não estava.
De poucos em poucos metros tinha de sacudir as pedras das sandálias,
de tal modo que me arrependi a sério por não ter calçado as tais botas.
Jack saberia que eu vinha atrás dele? Claro que sim. Sempre que
chegava a um portão, levantava a corrente e esperava por mim. Depois de
eu passar, sem uma palavra, prendia-a novamente e recomeçava a andar, e
eu esperava educadamente que ele restabelecesse a distância entre nós. Até
caminhei pelo sulco oposto ao que ele usava, por uma questão de cortesia.
O caminho embrenhou-se pelo bosque e as ervas tornaram-se mais
altas, o trilho mais estreito, e precisamente quando eu estava a ver se me
lembrava do aspeto da hera venenosa, chegámos a um portão de arame
farpado enferrujado.
Do outro lado, a floresta dava lugar a um céu azul aberto, e percebi que
tínhamos chegado ao rio.
Quando me aproximei, Jack mirou-me de alto a baixo.
– Que roupa é essa, afinal?
Olhei para as minhas pernas nuas.
– Tenho umas botas lá em casa.
– Devias tê-las calçado.
– Entendido.
Jack abanou a cabeça.
– Nunca se desce até ao rio com os tornozelos expostos.
– A bem da verdade – disse-lhe –, eu não conhecia essa regra. E
também não sabia que vínhamos ao rio.
Jack virou-se e fitou a distância. O caminho terminava no portão. Dali
até à água era apenas relva alta – e ervas daninhas e cardos e silvas. E hera
venenosa, não nos esqueçamos.
Jack agachou-se, de costas para mim.
– Sobe. Eu dou-te boleia.
– Não é preciso, obrigada.
Ainda agachado, Jack começou a enumerar todas os seres escondidos
naquelas ervas que me podiam fazer mal:
– Cardos, armadilhos, urtigas, formigas-argentinas, formigas pretas,
formigas-de-fogo, hera venenosa, silvas, viúvas-negras, aranhas-reclusas-
castanhas, serpentes venenosas, cascáveis, cobras-de-água…
Esperou que eu revisse a minha resposta. Como hesitei, acrescentou:
– Para não mencionar javalis, linces e coiotes.
Francamente, eu mudara de ideias em «armadilhos».
– Está bem – cedi, e subi para as costas dele.
Jack prendeu os braços por baixo das minhas pernas e levantou-se tão
depressa que quase me deixou tonta – o que me fez apertá-lo com mais
força. Depois começou a andar, naquele ritmo de caminhada de Jack
Stapleton que eu conhecia agora tão bem.
Ir às cavalitas era melhor. Talvez ele quisesse trazer-me também às
costas no caminho de regresso.
Perto do rio, o terreno descia abruptamente. Jack parou no cimo da
ladeira por um minuto enquanto ambos admirávamos o rio lá em baixo,
com a sua praia de areia.
– É o Brazos? – perguntei.
– Sim.
– É mais largo do que eu pensava. E mais… castanho.
Jack não respondeu. Desceu o talude até à margem – aí, pôs-me
rapidamente no chão e dirigiu-se para a água.
Uma vez que ele estava a afastar-se um pouco para norte, decidi
afastar-me um pouco para sul a fim de dar algum espaço a ambos. Devia
estar a cerca de cinquenta metros da água, e baixei a cabeça enquanto
caminhava, maravilhada com a variedade de pedrinhas que salpicavam a
areia: castanhas, pretas, às riscas, pedacinhos de osso de animal, madeira
petrificada, até fósseis. Além, claro, de pedaços de madeira trazidos pela
maré, uma ou outra porção de arame farpado emaranhado e enferrujado, e
um número assinalável de latas de cerveja velhas. Percebi por que razão
Jack quisera vir aqui. Do outro lado, via-se apenas o talude alto coberto de
relva e o céu, e estávamos rodeados pela brisa constante causada pela água
corrente. Parecia não haver mais nada num raio de quilómetros e
quilómetros.
E, na verdade, não havia.
À beira do rio, descalcei as sandálias. Estava um dia quente e aquela
correria toda para não perder Jack de vista deixara-me com calor. A água
era mais límpida ao perto – e, quando molhei os pés, foi uma sensação
fantástica: fresca, borbulhante, com zonas mais refrescantes na corrente.
Soube-me tão bem em volta dos tornozelos que depressa avancei um pouco
mais. Levantei a bainha do vestido, pois não planeava ir mais além do que
água pelos joelhos. Queria só refrescar-me um bocadinho, para ser franca.
A minha ideia era dar mais alguns passos e voltar para trás.
Mas, então, aconteceram várias coisas ao mesmo tempo.
Quando dei o passo seguinte, ouvi um som que parecia Jack a chamar-
me, mas soou tão abafado pelo vento que não tive a certeza. Virei-me para
olhar, mas quando o fiz… o leito do rio desapareceu.
Não havia nada onde o meu pé pousar. Assim, desequilibrei-me e caí
na água.
É sempre chocante aterrar em água fria quando não estamos à espera,
mas a água daquele rio tinha algo ainda mais chocante.
Uma corrente.
Uma corrente bastante forte. Tão forte que, quando caí à água, não
consegui voltar à superfície com facilidade… porque a água me puxava
para baixo.
Aconteceu tudo muito depressa.
Num momento eu estava a molhar os pés, e poucos segundos depois
tinha a cabeça submersa.
Na verdade, só de me lembrar ainda fico arrepiada. Estive muito perto
de me afogar.
Porém, tão depressa como aconteceu, e antes que eu tivesse tempo para
entrar em pânico, senti algo forte como metal fechar-se sobre o meu braço
e puxar-me para cima.
Jack.
Içou-me para fora de água e contra ele como se fosse um guindaste,
agarrando-me pela cintura e colando-me ao seu peito com uma exalação.
Depois arrastou-me para a margem tão depressa que ambos tropeçámos e
caímos na areia.
Se ele ficou por cima de mim como se estivéssemos no filme Até à
Eternidade?
Sim, isso aconteceu.
Se foi de alguma forma romântico como no filme?
Bem… não.
Assim que conseguiu, Jack levantou-se e afastou-se com passos
furiosos, deixando-me encharcada e aturdida e a tossir na areia.
Quando recuperei o fôlego, perguntei:
– O que era aquilo? Um rápido?
– Estás a brincar? – inquiriu ele, com as calças de ganga ensopadas das
coxas para baixo. – Foste mesmo molhar os pés no Brazos? Isto
aconteceu?
Levantei-me e tentei, sem sucesso, sacudir a areia molhada das pernas.
– Não… não o devia ter feito?
– Ninguém deve fazer isso! Não sabes quantas pessoas morrem
afogadas neste rio todos os anos?
– Como havia de saber?
– Toda a gente sabe! Nunca tomar banho no Brazos!
– Em primeiro lugar, não fui tomar banho. E em segundo lugar… não.
Não é uma informação que toda a gente saiba.
Mas Jack estava lançado.
– E porquê? Porque é que não se pode nadar no Brazos? Porque o
fundo é arenoso, e por isso a corrente forma redemoinhos, e os
redemoinhos escavam buracos no leito de areia do rio, e a corrente rodopia
dentro desses buracos como tornados líquidos… e se uma pessoa for
azarada ou estúpida o suficiente para ser sugada por um deles, adeus.
– Que conhecimento tão especializado… – comecei, ainda engasgada.
– Portanto – prosseguiu Jack, como se eu não tivesse dito nada –,
quando há idiotas que decidem ir nadar ou pescar ou molhar os pés,
quando dão por si já foram puxados pelas correntes. Morrem famílias
inteiras a tentar salvar-se uns aos outros, um a um!
Teria acabado de me chamar «idiota»? Tentei decidir se isso era ou não
pior do que ser a «epítome da vulgaridade».
– Bom, já percebi que não era um rápido.
Olhei para a água, que daqui parecia tão tranquila. Ainda sentia a força
com que me puxara, como uma espécie de íman líquido mortífero. De
súbito, arrepios percorreram-me os braços e as pernas.
– Assustador – disse, quase para mim própria.
A minha calma só pareceu deixá-lo mais furioso.
– Assustador? – gritou Jack. – Podes ter a certeza! Que diabo te passou
pela cabeça?
– Não sei – admiti, virando-me para ele. – Estava com calor. A água
fresca soube-me bem.
– Estavas com calor? – repetiu ele, como se me tivesse perguntado
porque é que estava a beber gasolina e eu tivesse respondido que tinha
sede. – Tens tendências suicidas? É isso? Porque deixa-me explicar-te
porque é que o rio se chama Brazos. Vem de los brazos de Dios, que
significa «os braços de Deus»… As pessoas pensam que foi batizado assim
por viajantes sedentos que ficaram gratos por encontrar água, mas, na
verdade, é porque nele se afogaram tantas pessoas que ficou conhecido por
ser onde Deus recolhe as suas almas.
Bolas. Não estava à espera desta reviravolta tão sombria.
Admito que Jack pretendia transmitir-me uma dica de segurança
importante. Mas, quer dizer, a sério? Era óbvio que eu ainda estava meio
sufocada e muitíssimo abalada. Era preciso gritar?
Não sei como são as outras pessoas, mas eu só consigo ouvir gritarem
comigo durante algum tempo antes de começar a responder no mesmo
tom. Jack queria gritar? Muito bem. Eu também era capaz. Podia estar aos
gritos o dia todo.
– Porque é que estás a gritar comigo? – berrei.
Outra novidade para mim – gritar com um cliente.
– Porque – bradou Jack em resposta – ainda vais arranjar maneira de te
matares!
– Mas não de propósito! – berrei.
– Não faz diferença nenhuma depois de estares morta! – gritou Jack.
– As pessoas estão sempre a molhar os pés em rios! – berrei. – É
perfeitamente normal!
– Não no Brazos!
– Eu não sabia!
– E se tu fores ao fundo eu também vou… porque tenho de entrar para
tentar salvar-te!
– Então não tentes!
– Não é assim que funciona! Se tu morreres no rio, eu morro no rio! E
não quero mesmo morrer no raio do rio!
Por um segundo, fiquei sem resposta. Não sabia que réplica dar àquilo.
E naquele instante, apercebi-me de outra coisa: estava a tremer. Muito.
Com violência. Um tremor que nascia algures mesmo no centro de mim.
Muito provavelmente, era medo.
Embora não parecesse.
Ou talvez eu me tivesse esquecido de como era o medo.
Geralmente, o antídoto do medo é a preparação – mas eu não estava
preparada para nada do que me acontecera esta semana, desde ver o meu
trabalho transformar-se em algo quase irreconhecível, a mudar-me para
casa de desconhecidos, perder a minha melhor amiga, vir parar ao meio de
um festival de ódio entre Jack e o irmão, ser chamada «vulgar», quase
morrer afogada e – agora – ter um homem a gritar comigo como ninguém
fazia há anos.
Era muita coisa.
De súbito, era demasiado.
– Mas o que achas que sou? – exigi saber. – Alguma historiadora dos
cursos de água do Texas? Como querias que eu soubesse que este é um rio
da morte? Estava muito bem a viver a minha vida na cidade, a tentar ir
para Londres, ou para a Coreia, ou para qualquer outro lado que
literalmente não fosse o Texas, e de repente tenho de vir viver num rancho
de gado e representar nalgum reality show de loucos contigo e com a tua
família? Eu não queria este trabalho, não o pedi, e agora estou aqui
encurralada, sem maneira de escapar, durante sei lá quantas semanas! Se
calhar podias avisar-me se vires que estou prestes a matar-me a mim
própria ou a outra pessoa qualquer acidentalmente…
E foi aqui que a voz me falhou.
Foi neste preciso momento que a fúria me escapou por entre os dedos e
as minhas emoções se desmoronaram. Quando terminei a frase com «em
vez de gritares comigo sem razão como um imbecil», foi num fio de voz.
Fiquei parada, em silêncio, e Jack também, enquanto ambos
absorvíamos o facto de eu ter acabado de chamar «imbecil» ao meu
cliente.
A minha vontade era virar costas e deixá-lo ali sozinho, num gesto de
orgulho e amor-próprio, mas tinha tudo a tremer, incluindo as pernas. Sem
sequer pensar no que fazia, ergui a mão para tocar no alfinete de
missangas. Só queria um pouco daquele sentimento de conforto que me
invadia sempre que lhe tocava.
Mas não estava lá.
O meu pescoço estava nu. O fio também desaparecera.
– Eh – disse, olhando para baixo –, onde está o meu alfinete?
– O teu quê?
Apalpei o peito, como se pudesse encontrá-lo se continuasse à procura.
– O meu alfinete. Com as missangas. Desapareceu.
Ter-se-ia soltado na água? Estaria na praia?
Comecei a procurar na areia.
– Aquele alfinete de missangas coloridas que tens sempre ao pescoço?
– perguntou ele, e esqueceu-se de que estávamos a discutir para começar
também a procurar.
– Deve ter caído – disse eu.
Percorri a praia, tentando recriar os meus passos. À chegada vinha com
calor, mas agora, depois do choque do rio, sentia o oposto. Estava
ensopada e com frio e não conseguia parar de tremer. Mas isso já não tinha
qualquer importância.
Enquanto procurávamos, a atitude de Jack suavizou-se.
– Vamos encontrá-lo – garantiu. – Não te preocupes. – E acrescentou: –
Eu sou mesmo bom a encontrar coisas.
Levantei os olhos e, quando o fiz, apercebi-me de como aquela praia
era vasta – em comparação com um alfinete. Era como o infinito. Nunca o
conseguiríamos encontrar.
E depois fiz o que qualquer pessoa faria naquela situação.
Desatei a chorar.
Jack nem hesitou. Percorreu a distância que nos separava e envolveu
nos braços o meu corpo molhado, trémulo, invulgarmente frágil, e apertou-
o durante um minuto. Depois afastou-se, despiu a camisa de flanela,
ajudou-me a vesti-la, abotoou-a e puxou-me de novo para si.
– Lamento muito – disse; de encontro ao peito, a voz dele chegou-me
abafada. – Lamento muito que tenhas perdido o alfinete, e que quase te
tenhas afogado, e lamento ter gritado contigo. Devia ter-te avisado. A
culpa foi toda minha. É só porque me assustaste.
Estava a acariciar-me o cabelo? Por acaso eu tinha Jack Stapleton a
acariciar-me o cabelo?
Ou seria apenas o vento?
Ele apertou-me nos braços durante muito tempo, ali na praia. Abraçou-
me até as minhas lágrimas secarem e eu parar de tremer.
Outra novidade: era a primeira vez que um cliente me abraçava – e a
primeira vez que eu o permitia.
E embora ainda estivesse zangada com ele, não me importei. Jack
parecia ter jeito para isto.
Desistir.
Era o fim desta missão. E, muito provavelmente, também o fim da
minha carreira. Mas não havia volta a dar.
O amor deixa uma pessoa confusa. Turva-nos o discernimento. O amor
faz-nos descarrilar com o desejo.
Pelo menos, é o que dizem.
Nada disso me acontecera com Robby… mas – e era algo que só agora
me ocorria – talvez com ele não fosse amor? Porque aquilo que estava
agora a acontecer com Jack Stapleton, o que quer que fosse, era muito mais
desestabilizador.
Não compreendia, mas uma coisa era evidente: estes sentimentos eram
complexos o bastante para tornar tudo o resto muito simples.
Tinha de sair daqui.
Levantei-me da cama de rede e comecei a dirigir-me para a casa de
vigilância pela estrada de gravilha. A minha intenção era ir até lá, ligar a
Glenn e desistir. Simples. Mas ia apenas a meio caminho do portão quando
ouvi um som inconfundível. O estrondo de um tiro de espingarda.
Estaquei de imediato. Virei-me.
Outro tiro.
Vinha do outro lado do celeiro.
Corri nessa direção, saltei a cerca e, ao fazê-lo, ouvi ainda mais um
tiro.
O que se passava? Quem é que estava a disparar? Teria a perseguidora
criadora de corgis conseguido encontrar-nos? Perdido a cabeça? Seguido
Jack até uma ravina qualquer no meio de duzentos hectares de nada?
Enquanto corria através do campo, a tropeçar em formigueiros e silvas,
formulei listas mentais de possibilidades do que poderia encontrar – e todo
um conjunto de planos de contingência para como lidar com cada uma
delas.
Porquê, mas porque é que Glenn não me autorizara a trazer uma arma
de fogo? «Não vais precisar», garantira ele.
Agora era tarde de mais.
O que quer que encontrasse naquela ravina, teria de pensar depressa e
encontrar a melhor forma de reagir.
Rezei por isso.
Mas o que encontrei não foi uma criadora de corgis louca. Nem um
Jack Stapleton ensanguentado.
Era o simpático e bondoso Doc Stapleton, o patriarca residente. De
espingarda em punho. A disparar contra garrafas.
Quando cheguei ao cimo da ravina e o vi, estava já suficientemente
perto para ele me ouvir. Doc virou a cabeça quando comecei a descer.
Abrandei o passo, parei e dobrei-me para a frente, com as mãos nos
joelhos, ofegante, à espera que os meus pulmões parassem de arder.
Quando por fim levantei a cabeça, ele olhava para mim como se não
conseguisse perceber o que eu estava ali a fazer.
– Ouvi tiros – expliquei, arquejante. – Pensei… – Depois mudei de
justificação. – Assustou-me.
Doc fez um som de desprezo com os lábios, acrescentando:
– Menina da cidade.
Tudo bem. Podíamos ficar-nos por aí.
Endireitei-me, ainda com a respiração acelerada, e aproximei-me mais.
Em cima de pedras, alinhadas contra uma curva da ravina, estavam
garrafas de vidro – talvez umas vinte. Verdes, castanhas, transparentes. Por
baixo das pedras, no solo, havia um autêntico lago de estilhaços de vidro.
– Os tiros – continuou Doc, enquanto eu registava o que via – têm um
significado muito diferente aqui no campo.
Achava ele. Mas acenei com a cabeça.
– Tiro ao alvo.
Doc estendeu-me a arma.
– Quer experimentar?
Olhei para a espingarda. A resposta era não, claro. Não, não ia pôr-me
aos tiros a garrafas quando há minutos me preparava para desistir deste
trabalho. Não, não queria passar nem mais um minuto do que o
estritamente necessário neste rancho de malucos. Nem arruinar o meu
disfarce ao exibir as minhas capacidades de atiradora.
Não. Pura e simplesmente, não.
No entanto, precisava de alguns minutos para recuperar o fôlego. E
talvez me soubesse bem dar um tiro em alguma coisa neste momento.
Foi então que Doc disse:
– Não precisa de acertar em nada.
Pelo seu tom de voz, era evidente que achava que a minha hesitação se
devia ao facto de não saber atirar. Ainda estava a tentar resistir ao desafio
quando ele acrescentou:
– De qualquer maneira, esta espingarda é um pouco difícil de manobrar
por senhoras.
Quer dizer, por favor.
Podia perder mais cinco minutos, certo?
Estendi as mãos para a espingarda e deixei-o passá-la para mim.
Depois, deixei-o dar-me uma lição. Não lhe menti, exatamente. Mantive
um silêncio afável enquanto ele fazia uma introdução muito básica da arma
que eu segurava.
– Isto é a coronha – explicou ele –, e isto é o cano. Aqui é o gatilho.
Puxa-se aqui esta alavanca para recarregar entre disparos. – Depois
apontou para o buraco na ponta do cano. – As balas saem por aqui. Tem de
ter cuidado e estar sempre a apontar para o chão até ao momento de
disparar.
As balas saem por aqui? A vontade de lhe mostrar subiu por mim
acima como água a encher um copo.
– Atire contra aquele grupinho ali – indicou Doc, gesticulando na
direção de uma fila de garrafas de cerveja. – Se acertar em alguma, dou-lhe
uma moeda.
Uau! Havia algo de muito inspirador em me sentir tão subestimada.
Nesse momento, decidi fazer mais do que acertar nas garrafas. Ia atingi-las
com estilo. Depressa e com facilidade. À patrão. E mais, com a arma na
anca.
– Muito bem, menina – disse Doc. – Mostre-me o seu melhor.
O meu melhor?
Muito bem.
Soltei a segurança, posicionei-me numa postura confortável, encostei a
coronha ao osso da anca e puxei o gatilho com um BUUUM!
A espingarda tinha um coice de respeito, mas a primeira garrafa
desapareceu numa nuvem de poeira. Não parei para apreciar. Mal
pressionei o gatilho, puxei a alavanca com um ka-chunk satisfatório e
disparei de novo. Outro BUUUM! E outra garrafa feita em pó. Depois
outra, e outra, e mais outra. BUUUM – ka-chunk, BUUUM – ka-chunk,
BUUUM! De um lado ao outro da fila, as garrafas explodiram em rápida
sucessão.
Acabou tudo mal tinha começado.
Depois virei-me para Doc e puxei a alavanca uma última vez – ka-
chunk. Como uma dama. Acionei a segurança, desencostei a espingarda da
anca, olhei para o rosto estupefacto de Doc e disse:
– Foi divertido.
Acabara de revelar demasiado sobre mim própria e já devia estar a
meio caminho de Houston. Mas valera a pena.
Foi então que vi alguém no cimo da ravina.
Era Jack. A observar-nos. E pela expressão de admiração atrás dos
óculos tortos, era evidente que assistira a tudo. Levou os dedos à testa,
numa pequena saudação de respeito, à qual respondi com um ligeiro aceno
de cabeça.
Estava na altura de me pôr a andar.
Dezassete
A primeira coisa que vi quando entrei na casa que servia de base de
operações foi Robby e Taylor – com as mãos enfiadas nos bolsos de trás
um do outro.
Antes que essa imagem pudesse ficar demasiado gravada na minha
memória, tossi.
Eles separaram-se abruptamente ao ouvir-me, mas… era tarde de mais.
Por mais que pestanejasse, já não consegui apagar aquela imagem.
– Onde está o Glenn? – perguntei.
– Na cidade – respondeu Taylor, enquanto Robby perguntava ao
mesmo tempo:
– Onde está o cliente?
– Preciso de falar com o Glenn – disse.
Doghouse, que estava sentado atrás de uma secretária do outro lado da
sala, pegou no auscultador de um telefone fixo e estendeu-mo. Aproximei-
me, marquei o número de Glenn e preparei-me mentalmente para me
despedir – ali mesmo, em frente dos meus arqui-inimigos –, ignorando
todas as questões na minha cabeça. Glenn gritaria comigo? Robby e Taylor
ficariam contentes por me ver falhar? Estaria a abandonar todas as
possibilidades de conseguir o lugar em Londres? Enquanto esperava, o
meu corpo estava tenso como um arame esticado. Mas a chamada para
Glenn foi parar ao gravador de mensagens.
– Por acaso, ainda bem que aqui estás – disse Robby, depois de eu
desligar. – Tivemos alguma atividade na propriedade Stapleton.
Abanei a cabeça.
– Os tiros? Era só o pai dele a disparar contra garrafas na ravina.
– Não – respondeu Robby. – Na casa dele na cidade. – Olhou para os
monitores. – Taylor, mostra-lhe as imagens – pediu. Muito profissional.
Como um mentiroso.
Porém, o que ela me mostrou nos monitores fez-me aproximar mais um
passo. E outro.
– Mas que raio?… – disse.
– Pois.
Eram imagens das câmaras em torno da casa de Jack em Houston.
Todas as janelas do piso térreo tinham sido pintadas com tinta em spray,
exibindo agora corações cor-de-rosa e o nome «Jack» repetidamente.
Estudei várias imagens, de ângulos diferentes.
– Todas as janelas do piso de baixo, não é?
Robby acenou afirmativamente.
– Foi a Senhora dos Corgis? Sabemos?
– Temos noventa e nove por cento de certeza de que foi ela, sim –
afirmou Robby.
Taylor mudou as imagens, mostrando agora um vídeo anterior, de uma
mulher em flagrante delito.
– É ela? Conseguimos uma identificação facial?
Robby abanou a cabeça.
– Não, mas deixou presentes.
– Presentes?
– Sim. No alpendre – esclareceu Robby. E acrescentou: – Em sacos de
oferta.
– O quê?
Robby consultou as mensagens no telemóvel.
– Segundo a Kelly, uma camisola de lã tricotada à mão com uma
imagem admiravelmente realista da cara do Stapleton na parte da frente,
um álbum de instantâneos da nova ninhada de cachorrinhos da mulher, e
uma série de nus.
– Uma série de nus? – perguntei. – Nus de quem? Do cliente?
– Nus da Senhora dos Corgis.
Céus.
– Ela deixou também um bilhete manuscrito a dar as boas-vindas ao
Jack a Houston… e a recordar-lhe que o relógio biológico dela continua a
trabalhar e que preferia mesmo que ele a fecundasse esta primavera, se for
conveniente para o calendário dele.
Robby estendeu-me um tablet para eu ver as fotografias enviadas por
Kelly.
– Então – disse, pensando em voz alta –, isto significa que estamos
agora num nível de ameaça laranja?
– Tendo em conta os cachorrinhos e corações, acho que continuamos
no amarelo.
– Os nus são um pouco ameaçadores.
– Bem visto.
Taylor interveio.
– Mas não há ameaças. Pelo menos da parte dela.
– Exceto… – ponderei qual poderia ser a expressão indicada –
fecundação à força?
– Essa parte é preocupante – concordou Robby.
– E o facto de ela agora saber que o Jack se encontra em Houston –
acrescentou Taylor.
– E qual é a morada dele – recordei-lhes.
Psicanalisámos a Senhora dos Corgis durante algum tempo, para tentar
avaliar que perigo ela colocava, e ajustámos os protocolos na casa de
Houston. Kelly já participara o sucedido à Polícia e iniciara o processo de
obter uma ordem de afastamento. Teríamos de trocar também o Range
Rover por uma viatura de outra marca e cor.
Quando saí da base de operações, a noite caía.
Ainda nem chegara ao portão dos Stapletons quando Robby gritou,
atrás de mim:
– Eh! – chamou. – Tens o Glenn em linha.
Tinha-me esquecido dele. Mas agora era tarde. Connie já devia ter
acordado da sua sesta e tinha de comer qualquer coisa antes de tomar os
medicamentos.
– Sabes que mais? – disse. – Eu ligo-lhe depois.
E foi assim que, sem sequer me aperceber, decidi ficar.
Depois de jantar, conduzi Jack até ao outro lado do jardim, onde podia
falar com ele em privado e pô-lo a par da situação com a Senhora dos
Corgis.
Havia um cercado para cavalos ao lado do celeiro, com um banco onde
podíamos sentar-nos. Saltámos a cerca e sentámo-nos lado a lado ao pé da
gamela de água enquanto transmitia os pormenores a Jack, fora do alcance
dos ouvidos dos restantes habitantes da casa.
Falar sobre as ameaças com os clientes é uma arte. Um equilíbrio
delicado, informando-os sem os alarmar. Ou, mais precisamente,
alarmando-os apenas o suficiente para captar a sua atenção e conseguir a
cooperação e a anuência deles sem os deixar em pânico.
Mas Jack não ficou nada alarmado.
Na verdade, assim que proferi a palavra «nus», ele desatou a rir.
– Eh! – protestei. – Isto não tem graça.
Jack inclinou-se para trás e ergueu o rosto para as estrelas, com os
ombros sacudidos pelo riso. E depois inclinou-se para a frente e tapou a
cara com as mãos.
– Desculpa – pediu, passado algum tempo, enquanto limpava os olhos.
– Mas os nus… e os bilhetes… e a frase… – Recomeçou a rir e não
conseguiu terminar. – E a frase… – tentou de novo. Mais gargalhadas. – E
a frase… – repetiu, agora mais alto, como se estivesse a ordenar a si
próprio para falar. – A frase «se for conveniente para o seu calendário».
Dobrou-se ao meio, agarrado à barriga.
É surpreendentemente difícil não nos rirmos quando alguém está
perdido de riso à nossa frente. Isto é sério, recordei a mim própria.
Concentra-te. Depois declarei, num tom grave:
– Se calhar devias dar uma vista de olhos às ofertas.
– Mas aos nus não – pediu Jack, a rir cada vez mais. – Não me obrigues
a ver os nus.
– Tens de levar isto a sério – ralhei, tentando acalmá-lo com o meu tom
de voz.
– Fico com a camisola – disse ele, e limpou os olhos. – A minha mãe
adora-as.
Abanei a cabeça.
– Está tudo a ser registado como provas.
Isto fê-lo desatar a rir outra vez, até ficar sem fôlego.
– Nunca conheci ninguém que se risse tanto como tu – observei,
passado algum tempo.
– Nunca me rio. Há anos que não me acontece.
– Estás a rir agora.
Jack endireitou-se, como se não tivesse reparado até então.
A ironia: dizer-lhe que estava a rir foi o que, finalmente, o fez parar.
– Parece que sim – comentou, aparentemente assombrado com a ideia.
– Quem diria!
– Estás constantemente a rir – contrapus, estupefacta por ele não saber
isso em relação a si próprio. – Ris-te de tudo.
– Mas principalmente de ti.
Olhei para ele de lado. Obrigadinha.
Ele estudou-me, como se só agora se apercebesse de que aquilo que me
dissera era verdade.
– Não podes ignorar estas ameaças – avisei, preparada para me lançar
num sermão ardente sobre como pequenas ameaças podiam transformar-se
em grandes problemas.
Porém, nesse momento, algo inesperado fez-me perder o fio de
raciocínio.
Um cavalo entrou no recinto onde estávamos sentados.
Um cavalo.
Um cavalo branco e castanho acabara de entrar pelo portão aberto e
dirigiu-se até nós a passo. Do nada, juro. Um cavalo sem sela.
Fiquei tensa e Jack reparou.
– Não me digas que também tens medo de cavalos.
– Não – respondi, por uma questão de princípio. – Mas… o que está ele
a fazer aqui?
– Como assim? Ele vive aqui.
Observei-o enquanto se dirigia para nós. Mais precisamente, para Jack
– detendo-se mesmo à sua frente e baixando o nariz aveludado para o dele.
Deixem-me assegurar-vos uma coisa: o que se aplica às vacas, aplica-
se também aos cavalos. Parecem muito mais pequenos na televisão. A
criatura tinha uma cabeça do tamanho de uma mala de viagem. Eu já tinha
visto cavalos, claro está – à distância. No curral. Com um ar muito mais…
pequeno.
Jack explicara-me no primeiro dia que os pais tinham adotado meia
dúzia de cavalos mais velhos, sem donos, que precisavam de um sítio
agradável para passar o resto dos seus dias. «Mais ou menos como um lar
de terceira idade para equídeos», comentara.
O que era fantástico, em teoria.
É tudo muito bonito até uma pessoa se ver com um par de narinas
gigantes em frente da cara.
– Olá, amigo – cumprimentou-o Jack, levantando as mãos para lhe
acariciar o focinho. – Esta é a Hannah. Não a mordas.
E depois Jack afastou-se e voltou com um saco de aveia. Sentou-se de
novo ao meu lado, enfiou a mão no saco e tirou uma mão-cheia. Abriu a
mão e o cavalo encostou os lábios penugentos à sua palma e sugou a aveia
até ao último grão.
– É a tua vez – disse Jack, oferecendo-me o saco.
– Não, obrigada.
Jack inclinou a cabeça.
– Tens o emprego mais assustador de todas as pessoas que conheço,
mas tens medo de lábios de cavalo.
– Não é dos lábios, é dos dentes.
Jack desatou a rir outra vez.
– Estás a ver? – constatei. – Estás novamente a rir.
– Estás a ver? – repetiu Jack, como se a culpa fosse minha. – Tu és
hilariante.
Deu mais uma mão de aveia ao cavalo, mas cacarejou como uma
galinha de olhos postos em mim até que eu, por fim, cedi.
– Está bem.
Enfiei a mão no saco, apanhei um punhado de aveia e ofereci-a ao
cavalo.
– Com a mão esticada e bem aberta – explicou Jack –, para ele não te
comer os dedos.
– Não estás a ajudar – protestei, enquanto o cavalo roçava com os
lábios na palma da minha mão até ter rapado o prato.
– Faz cócegas, não é? – perguntou Jack.
– Por assim dizer.
– Este é o Clipper – apresentou-o Jack. – É um cavalo de circo
aposentado.
Olhei para Clipper com um novo respeito.
– Veio para cá quando eu andava na escola secundária – continuou
Jack. – Tinha só oito anos. Fez uma lesão que foi suficiente para ter de se
reformar… mas, na verdade, não tinha grandes limitações. Passei o meu
último ano do secundário a fazer truques com ele. – Deu-lhe uma palmada
no pescoço. – Mas agora já é um velhote.
– Que tipo de truques? – perguntei.
Em resposta, sem uma palavra, Jack foi buscar um cabresto à sala de
material de equitação e enfiou-o na cabeça de Clipper. Depois fez-me sinal
para o seguir enquanto conduzia o cavalo até ao portão aberto para o
cercado.
Parei ao portão e vi Jack içar-se para a garupa de Clipper, sem sela, e o
cavalo, que parecia saber exatamente o que fazer, passou de passo a trote e
depois a um meio galope.
A cerca em torno do recinto era oval e eles percorreram o perímetro.
Jack segurava na corda do cabresto com uma mão, mas nem precisava de a
puxar.
– Como é que nunca fizeste um western? – perguntei.
– Eu sei! «Montar a cavalo» é uma das competências do meu currículo.
– Ainda precisas de currículo?
– Não. Mas, mesmo assim…
– Devias fazer um western! Isto é um perfeito desperdício de talento.
– Está bem – concedeu Jack. – Se alguma vez voltar a fazer um filme,
será um western.
Estava prestes a perguntar-lhe se tencionava fazer mais algum filme,
mas depois ele anunciou:
– Prepara-te.
Inclinou-se então para a frente, apanhou duas mãos-cheias de pelos na
base da crina de Clipper e… nem sequer sei como descrever o que fez a
seguir: sem que o cavalo abrandasse, Jack rodou para o lado esquerdo,
aterrou com ambos os pés, voltou a subir, deslizou por cima do cavalo,
rodou para o lado direito e repetiu o movimento. E depois continuou a
fazê-lo, da esquerda para a direita, para cima e para baixo, a saltar de um
lado para o outro como se estivesse a fazer slalom.
Eu estava tão estupefacta que nem conseguia falar. Fiquei apenas a
olhar para ele, de boca aberta.
Após uma volta completa, Jack sentou-se de novo na garupa de Clipper
e olhou para mim, a avaliar a minha reação. Clipper continuou a trotar ao
mesmo ritmo.
– Fixe, não é? – perguntou Jack.
Só consegui dizer:
– Tem cuidado!
– Aquilo não mete medo nenhum – disse Jack, parecendo satisfeito
com a minha preocupação. – Isto é que mete medo.
E depois, antes que eu conseguisse impedi-lo, ainda com a corda do
cabresto na mão, Jack apoiou as mãos na cernelha do cavalo, inclinou-se
para a frente e levantou os pés calçados com ténis para a garupa do animal.
A seguir, lenta e cuidadosamente, enquanto Clipper continuava a meio
galope por baixo dele, pôs-se em pé.
Em pé!
De joelhos dobrados e braços esticados para os lados, como um
surfista. E Clipper continuou a dar a volta ao recinto.
– Espantoso, não é? – disse Jack quando a minha estupefação muda se
prolongou demasiado. – O artista é o Clipper, na verdade. Tem um passo
muito suave, e não há nada que o assuste. Podemos fazer o que quisermos.
Podia pendurar-me do pescoço dele. Fazer o pino…
– Não faças o pino! – pedi.
– Não – concordou Jack –, vou fazer uma coisa melhor.
E então, antes que eu conseguisse impedi-lo, Jack agachou-se – tudo
sem que o cavalo abrandasse o passo –, deu balanço e desmontou com um
mortal, largando a corda e aterrando com os dois pés no chão.
– Valha-me Deus! – gritei, e não foi em tom de admiração.
Jack fez uma vénia. Virou-se para mim, deliciado com o meu ar
horrorizado, e disse:
– Há muito tempo que não fazia isto. Amanhã vou estar todo dorido.
– Nada de saltos mortais! – exclamei, como se fosse uma nova regra.
Jack parecia muito satisfeito consigo próprio.
– Estive aqui a exibir-me para ti!
– Não era preciso – disse. – Não quero que te exibas.
Mas Jack já se dirigia para Clipper, que abrandara e parara assim que
ele tocara no chão, e nos fitava agora por baixo das pestanas compridas e
escuras.
Jack pegou na corda e conduziu o cavalo até mim.
– Agora é a tua vez.
– Não, obrigada.
– Meu Deus, és mesmo medricas. Como podes ser assim na tua área
profissional?
– Não sei andar a cavalo – protestei.
– É por isso que o Clipper é o ideal – declarou Jack. – Ele é que faz o
trabalho todo.
– Não consigo montar a cavalo – reiterei, à medida que Jack se
aproximava. – Consigo fazer outras coisas: conduzir um carro em marcha
atrás pela autoestrada a alta velocidade. Consigo fazer rappel de um
telhado. Pilotar um helicóptero…
Se normalmente gostava de novos desafios? Claro que sim. Mas talvez
já tivesse competências suficientes. Ou talvez não quisesse passar mais
vergonhas em frente de Jack.
– Então isto deve ser fácil para ti – retorquiu Jack.
Abanei a cabeça.
– Não.
Porém, Jack e o cavalo estavam agora ao pé de mim.
– Só a passo – tentou ele persuadir-me. – Sem truques. Devagar. Vais
adorar. Tudo o que tens de fazer é estar sentada. Eu seguro na corda.
Estudei o cavalo, depois Jack. Ele cruzou os dedos das duas mãos num
apoio para eu pôr o pé e baixou-se.
– Agarra numa mão-cheia de crina e põe aqui o pé – indicou.
Hesitei.
Baixinho, Jack começou a cacarejar.
Com um suspiro, apoiei o pé nas mãos dele.
– Por que raio é que esse truque do cacarejar resulta? Porque é que tudo
o que fazes resulta comigo?
Nem tive tempo de me arrepender de ter confessado mais do que queria
antes de Jack me içar para cima do cavalo.
– Isso mesmo – aplaudiu, subindo as mãos para as minhas ancas e
depois apoiando-me o traseiro enquanto eu levantava a perna e me
instalava. – Não foi assim tão difícil, pois não?
Fiquei mesmo contente por ter vestido calças de ganga naquele dia.
Tentei sentar-me de costas direitas, como Jack, mas foi nessa altura que
me apercebi da altura ridícula a que me encontrava. Era como estar em
cima da prancha de uma piscina.
Deitei-me para a frente e agarrei-me ao pescoço de Clipper.
– Consegues pilotar um helicóptero – comentou Jack –, mas não és
capaz de te sentar direita num cavalo?
– Os helicópteros têm cintos de segurança – respondi.
– Isto não é ciência aeroespacial – lembrou Jack.
– Acalma-te lá, senhor cavaleiro – ripostei. – Lá porque és a Simone
Biles da ginástica equestre, isso não significa que sejamos todos como tu.
Olhei para Jack, que estava a rir. Outra vez.
– Não te rias – exigi.
– Não me faças rir – ripostou ele.
E, nesse momento, Clipper começou a andar. Não era assim tão mau. O
passo dele era de facto muito suave. Não lhe larguei o pescoço. E Jack não
largou a corda do cabresto.
– Nunca tinhas montado um cavalo? – perguntou-me por cima do
ombro depois de um minuto em silêncio.
– Já – respondi. – Uma vez, numas férias, quando era pequena.
Talvez fosse o ritmo reconfortante do passo. Ou o cheiro a cavalo. Ou o
som dos cascos na areia do cercado. Ou o movimento do pescoço de
Clipper enquanto balançava a cabeça de um lado para o outro. Ou o peso
sólido e maciço do corpo dele por baixo de mim. Ou o seu resfolegar
altivo. Ou até, para ser franca, a imagem de Jack à minha frente, que
vislumbrava quando me atrevia a levantar um pouco a cabeça, a conduzir o
cavalo com naturalidade, quase com ternura, e a caminhar de forma tão
tranquilizadora.
Sei que algo me fez dizer:
– Foi nas últimas férias que tivemos antes de o meu pai sair de casa. Na
verdade, ele partiu a meio das férias. Discutiram, ele foi-se embora e nunca
mais o vi.
– Nunca mais o viste? Nem uma vez?
Abanei a cabeça.
– Não. Bom, é certo que também não fui à procura dele…
– Achas que alguma vez o farás?
– Não.
Percebi que Jack queria perguntar porquê, mas hesitou.
– Ficámos melhor sem ele – considerei. Não era verdade, claro.
Ficámos muito pior. E era precisamente esse o motivo pelo qual eu nunca
me encontraria com o meu pai para beber café e fazer conversa fiada. Ele
prescindira de todos os direitos ao futuro quando arruinara a nossa vida.
– Uau – exclamou Jack.
– Pois – repliquei, e foi então que Clipper abrandou e parou. Quando
levantei a cabeça, Jack tinha uma expressão de compreensão estampada no
rosto – como se, mais do que ouvir aquilo que eu lhe contara, o tivesse
sentido.
Eu nunca contara esta história a ninguém. Na verdade, eu própria quase
a esquecera. No entanto, o rosto de Jack enquanto me ouvia era tão aberto,
e tão compreensivo, e tão do meu lado que, naquele momento, apesar de
todas as minhas regras, partilhei a memória quase sem querer. Não era algo
que costumasse fazer. Nem sequer com pessoas que não eram clientes.
Principalmente por se tratar de uma memória penosa. Mas, de súbito,
compreendi por que razão as outras pessoas o faziam. Era um alívio. Como
enfiar os pés em água fresca num dia de calor.
Isto era, de facto, uma revelação para mim.
De repente, sentia-me como se pudesse passar o resto da noite a
partilhar coisas com Jack. E, em retrospetiva, talvez o tivesse feito.
Mas, nessa altura, fui salva por um desastre.
Começámos a ouvir gritos urgentes provenientes da casa e, antes
mesmo que conseguíssemos discernir as palavras, Jack tirou o cabresto do
cavalo e ajudou-me a desmontar. Desatámos a correr na direção do som e
ambos saltámos a cerca.
Era Hank, aos gritos na escuridão:
– Jack! Jack! Onde estás? Jack!
Quando chegámos ao pé dele, Hank virou-se, com os olhos muito
abertos e um pouco desfocados.
– O que é? – perguntou Jack, ofegante.
– A mãe – respondeu Hank. – Desmaiou.
Dezoito
No campo não se chamam ambulâncias. As pessoas vão por si próprias
para o hospital.
Enquanto corríamos pelo terreno, Jack gritou-me: «Vai buscar as
chaves», e consegui trazer o Range Rover até à porta do alpendre lateral a
tempo de ver Jack sair com a mãe nos braços. Ele e Hank instalaram
Connie no banco de trás e Doc entrou pelo outro lado para segurar a
cabeça dela no seu colo.
Enquanto Hank corria para a carrinha dele e Jack se sentava no banco
do passageiro, Doc perguntou:
– Não vais conduzir?
– Acredita – disse Jack. – É melhor ser a Hannah.
O hospital ficava a vinte minutos de caminho e eu não fazia ideia de
como lá chegar. Eles tiveram de me ir dando indicações: «À esquerda
depois do trator!» «À direita naquelas vacas!» «Cuidado com o Stop!»
Mesmo assim, chegámos lá em quinze minutos.
Nas Urgências, parei para os deixar sair e só quando o vi a entrar pelas
portas automáticas com a mãe inconsciente nos braços é que me apercebi
de que Jack não tinha o boné. Como é que havia de esconder aquele rosto
mundialmente famoso sem um boné? Os óculos tortos nunca seriam
suficientes.
Do parque de estacionamento, liguei a Robby, atualizei-o quanto à
situação, pedi-lhe para contactar de imediato as admissões do hospital para
nos arranjar uma sala de espera privada e que nos trouxesse, o mais
depressa possível, «quaisquer artigos para ficar incógnito».
– O que queres dizer com isso?
– Sei lá! Um chapéu? Um jornal grande? Usa a tua imaginação.
Fui à procura na loja de presentes do hospital, mas estava fechada.
Quando voltei para junto de Jack, era tarde de mais. Ele e Hank estavam a
discutir no corredor à frente da sala de espera – e todas as pessoas
presentes fingiam não olhar para eles.
– Eu trato das coisas daqui em diante – avisou Hank.
– Ainda nem sequer sabemos o que se passa.
– Vai para casa e eu ligo-te quando souber alguma coisa.
– Não é assim que isto funciona.
– Funciona como eu disser.
– Vou cá ficar.
– Vais para casa.
– A decisão não é tua.
– Tua é que não é de certeza.
– Se achas que vou entrar pelas Urgências com a mãe inconsciente,
largá-la aqui e ir para casa ver televisão, não estás bom da cabeça.
– E tu não estás bom da cabeça se achas que vou passar um segundo
que seja mais do que o absolutamente indispensável contigo.
Jack estava a tentar falar em voz baixa. Mas isso só aumentava a
pressão sobre ele.
– Eu não pedi para vir para casa!
– Mas vieste.
– Que escolha tinha?
– Há sempre uma escolha.
– Nem sempre.
Hank avançava agora sobre Jack. As suas vozes eram baixas e tensas,
mas a linguagem corporal não podia ser mais ruidosa.
– Não fiques aí com esse ar de quem merece estar aqui. Sabes muito
bem quem és e o que fizeste. Prescindiste do direito de fazer parte desta
família. Eu estou aqui, todos os dias, a apanhar os cacos de tudo o que
destruíste. Esta família é minha, não tua… e quando eu digo para te pores a
andar daqui, é isso que vais fazer.
A fúria de Hank crescera como uma vaga pronta para rebentar. Rezei
para que Jack levantasse as mãos, recuasse um passo e acalmasse as coisas,
mas ele optou pelo oposto.
– Vai à merda – soltou.
E foi a justificação de que Hank estava à espera. Puxou o punho atrás,
como um arqueiro, pronto para desferir um soco…
Mas eu intervim e agarrei-o. Mais precisamente, peguei-lhe no pulso e
torci-o para baixo, ao lado do corpo. Hank soltou um grunhido de dor.
Acho que podemos dizer que ele não estava à espera disto. Nem Jack.
A surpresa quebrou a tensão do momento.
– Não vamos fazer isto aqui – avisei-os.
No silêncio que se seguiu, os murmúrios na sala de espera cresceram de
intensidade.
Peguei nos cotovelos dos dois irmãos, bem seguros, e conduzi-os para a
esquina do corredor, na direção das máquinas de venda automática. Sabia
que o motivo da contenda entre eles era maior do que este momento, mas o
agora era tudo o que eu conseguia resolver.
– Jack, tu vens comigo – ordenei. E, antes que ele pudesse protestar,
acrescentei: – Toda a gente na sala de espera estava a olhar para ti.
– Achas que quero saber disso, numa altura destas? As pessoas estão
sempre a olhar para mim. – O rosto dele estava tenso.
– Eu sei, mas temos de ter em conta o panorama mais vasto.
– Estamos a falar da minha mãe.
Virei-me para Hank.
– Vá para junto dos seus pais. Já vamos ter convosco.
Mas Hank não precisava das minhas instruções – nem da minha
autorização. Depois de olhar para mim, perplexo, durante um segundo, deu
meia-volta e afastou-se sem uma palavra.
– Temos de encontrar um quarto onde te possas esconder – indiquei a
Jack.
– Era o que estava a tentar fazer – explicou ele, com a voz a vibrar
como um arame esticado. – Só que o Hank não me diz o número do quarto.
Franzi o sobrolho.
– Porquê?
– Porque é um imbecil.
Nesse momento, um bando de raparigas adolescentes apareceu ao
fundo do corredor.
Por instinto, levei a mão à nuca de Jack e puxei-lhe a cabeça para o
meu ombro.
– Cabeça baixa – murmurei-lhe ao ouvido, atenta às raparigas. – Finge
que estou a reconfortar-te.
Jack não discutiu. Baixou a cabeça e escondeu o rosto no meu pescoço,
enquanto eu o puxava para mim com ambos os braços a fim de o esconder
tanto quanto possível.
Quando as raparigas estavam a passar, senti os braços dele apertarem-
se à minha volta.
– Eh! – murmurei, depois de elas se afastarem.
– Disseste para fingir. – A respiração dele fez-me cócegas no pescoço.
– Não é preciso tanto.
– Por acaso, não tenho de fingir muito. És genuinamente uma pessoa
reconfortante.
Afastei-me e perscrutei o corredor. Vazio em ambas as direções.
– Era melhor se saísses já daqui – disse-lhe.
– Estás do lado do Hank?
– Se continuares aqui, a notícia vai espalhar-se online em minutos.
Nem sequer trouxeste um boné.
Eu tinha razão, mas Jack abanou a cabeça.
– Não saio daqui enquanto não souber o que se passa com a minha
mãe.
Era justo.
Conduzi-o até às escadas.
– Podes esperar aqui. Eu vou saber onde ela está e estudar o melhor
trajeto para te conduzir até lá.
– Estás mesmo a falar a sério?
– Fica aqui. Não arranjes problemas.
Mas quando abri a porta das escadas para regressar ao corredor, vi o
mesmo bando errante de adolescentes. Tinham dado a volta e vinham na
nossa direção. O que estariam a fazer aqui? Quando olharam para mim,
apercebi-me de que vinham de telemóveis em riste. Recuei de novo para as
escadas e peguei na mão de Jack, puxando-o atrás de mim enquanto
começava a subir.
– O que foi? – inquiriu Jack.
– Estamos a ser perseguidos por raparigas adolescentes – respondi,
ciente de como soava ridículo.
A sério – não havia nada pior para espalhar a notícia do avistamento de
uma celebridade do que um bando de miúdas adolescentes com telemóveis.
– Vamos – exigi. – Mexe-te.
No último piso, puxei-o para o corredor e dirigimo-nos para os
elevadores. A meio do caminho vi uma porta com a indicação ARRUMAçãO.
Abri-a e puxei-o comigo para o interior. Fechei a porta e encostei-me a ela.
Jack seguiu o meu exemplo e fez o mesmo, segurando a porta com o
calcanhar do ténis. Ficámos assim parados, lado a lado, em silêncio,
durante um minuto, antes de eu reparar que havia toalhas e roupas de
enfermeiro dobradas nas prateleiras.
– Já sei como te vou tirar daqui – murmurei.
– Como?
Apontei para as roupas e, nesse momento, ouvimos as raparigas através
da porta.
– Era ele de certeza.
– Tipo, era mesmo ele.
– Mas aquela não era a Kennedy Monroe.
– Oh, nem de longe.
Sustivemos a respiração, à espera de que as raparigas tentassem abrir a
porta. Mas isso não aconteceu.
Depois de estar tudo calmo, inspecionei rapidamente as prateleiras.
– Qual é o teu tamanho? – murmurei, mirando-o de alto a baixo.
– Não vou sair daqui – insistiu ele. – Ainda não sabemos o que se passa
com a minha mãe.
Nesse preciso momento, recebeu uma mensagem. Era de Hank. Pelos
vistos já tinha o número do irmão.
Oiçam, eu sei que permiti que a confusão se instalasse. Mas não sabia
como impedir que isso acontecesse. E certo dia, perto do final de uma
corrida matinal que nos levou até ao rio e de volta, Jack disse-me – a sério,
enquanto corríamos:
– Descobri a tua canção.
– Qual canção? – perguntei.
– A que andas sempre a trautear.
Pegou no telemóvel, ainda a correr, e procurou-a.
– Como é que a descobriste? – perguntei.
– Gravei-te às escondidas – explicou.
– Isso não é nada sinistro.
– O que interessa é que resolvi o mistério – Jack fez por ignorar o
comentário. – Não precisas de agradecer.
Estávamos numa zona a direito, nos últimos quatrocentos metros, a
regressar a casa pelo caminho de cascalho. Jack ergueu o telemóvel mais
ou menos na minha direção enquanto corria ao meu lado. Porém, assim
que a canção começou a tocar, abrandei e parei.
Aquela canção? Era aquilo que estava sempre a trautear? Eu conhecia-
a.
Jack parou ao meu lado enquanto a música continuava a tocar.
– Reconheces? – perguntou passados uns momentos, ainda um pouco
ofegante.
– Sim – respondi, sem desenvolver a resposta.
Era uma canção antiga, intitulada «Dream a Little Dream of Me».
Quando a parte instrumental chegou ao fim, cantei o primeiro verso:
– «Stars shining bright above you»…
Quando era pequena, a minha mãe estava sempre a cantar aquilo –
enquanto lavava a louça, no carro, quando me aconchegava na cama.
– Então, qual é a história? – indagou Jack.
– É só uma canção que me é familiar – respondi.
– Como é que a conheces?
– A minha mãe costumava cantá-la constantemente quando eu era
pequena. Mas há anos que não a ouvia.
– Exceto todos os dias, enquanto a trauteias.
Não discuti.
Quando a canção acabou, Jack guardou o telemóvel. De súbito, o
silêncio parecia ensurdecedor.
– Acho que ela só cantava essa canção quando estava contente –
observei.
Jack acenou com a cabeça, sem falar.
– Para dizer a verdade, não me lembro de a ouvir cantá-la… nem uma
vez… depois de o meu pai nos deixar.
Jack acenou de novo; e ao sentir a ternura na forma como olhava para
mim, senti também uma dor no peito – penetrante, como quando temos as
mãos geladas e as enfiamos dentro de água quente. Uma dor lancinante que
se espalhou por trás das minhas costelas e subiu até à garganta.
E suponho que a única maneira de essa dor transbordar era sob a forma
de lágrimas.
Senti-as a arder nos olhos e fiquei muito quieta, como se Jack pudesse
não reparar caso não me mexesse. Mas claro que ele reparou. Afinal,
estava a meio metro e a olhar diretamente para mim.
– Conta-me – pediu, em voz suave.
Continuei calada e imóvel.
– Podes falar comigo – insistiu. – Não faz mal.
«Não faz mal.» Não sei que magia ele colocou naquelas três palavras
mas, de alguma forma, acreditei. Tudo o que eu alguma vez dissera a mim
própria sobre ser profissional e ter as defesas armadas e estabelecer limites
claros, simplesmente… desapareceu no vento. Culpo o bom tempo. E as
ervas altas. E a brisa suave e constante sobre o pasto. Cedi.
– O meu pai deixou-nos quando eu tinha sete anos – comecei, com a
voz a tremer –, e a minha mãe começou a namorar com um tipo chamado
Travis pouco tempo depois. E ele… – Como havia de dizer isto? – Não era
o tipo mais simpático do mundo. – Respirei fundo. – Gritava muito com
ela. Maltratava-a, chamava-lhe feia. Bebia muito, todas as noites… e ela
começou a beber também.
Em silêncio, sem nunca tirar os olhos de mim, Jack pegou numa das
minhas mãos e envolveu-a nas suas.
– Na noite do meu oitavo aniversário – disse-lhe, com um suspiro
trémulo –, ele bateu-lhe.
Jack não afastou o olhar.
– As palavras são tão pequenas, quando as proferimos. Algumas sílabas
breves e acabou-se. Mas, para mim, acho que nunca terminou. – Baixei a
cabeça e mais lágrimas saltaram-me dos olhos. – Nessa noite, ela estava a
proteger-me. Era suposto sairmos para ir comer piza e bolo, por eu fazer
anos, mas o Travis decidiu à última hora que não queria sair. Fiquei tão
ultrajada com a injustiça que bati com a porta do quarto. Ele veio atrás de
mim. Nunca me esquecerei do som dos pés dele a bater no chão. Mas a
minha mãe bloqueou-o. Pôs-se em frente da porta e não se mexeu enquanto
ele não começou a agredi-la. Eu escondi-me no closet, enrolada numa bola,
mas conseguia ouvir tudo. O mais assustador era como eram silenciosos os
murros que ele desferia. Por outro lado, os gritos da minha mãe ouviam-se
bem. E quanto ela bateu contra a porta. E quando caiu no chão, também.
»Fiquei acordada a noite inteira, encolhida, a fazer-me o mais pequena
que conseguia dentro do closet, a ouvir, alerta, e a tentar decifrar se a
minha mãe sobrevivera. Não preguei olho. Quando amanheceu, ela veio à
minha procura… e tinha o lábio aberto e um dente lascado. Assim que vi a
cara dela, só quis tirar-nos a ambas dali. Todos os átomos no meu corpo
queriam escapar. Mas, quando me tentei levantar, ela abanou a cabeça.
Entrou para o closet comigo e abraçou-me. «Vamos embora daqui, não
vamos?», perguntei. Mas ela abanou a cabeça. «Porquê?», quis saber.
«Porque é que não vamos?» «Porque ele não quer», respondeu ela.
»Depois, apertou-me nos braços e embalou-me para trás e para a frente,
de uma maneira que, até aí, sempre me fizera sentir segura. Mas já não.
Para ser franca, acho que nunca mais me senti verdadeiramente segura
desde esse dia. Mas adivinha o que ainda faço quando estou assustada?
– O quê? – perguntou Jack.
– Durmo no chão do closet.
Jack não tirou os olhos dos meus.
– Lembras-te do alfinete com as missangas? Eu fiz-lhe o alfinete nesse
dia. Não cheguei a ter oportunidade de lho dar. Ao fim da noite, tinha-o
perdido… ou assim acreditei. Depois de a minha mãe morrer… há
relativamente pouco tempo… encontrei-o na caixa de joias dela. Tinha-o
guardado estes anos todos. Voltar a encontrá-lo foi como recuperar uma
pequena parte de mim que se perdera. Tencionava usá-lo todos os dias,
para sempre, antes de o perder na praia. Como uma espécie de talismã.
– Mas estás bem, mesmo sem ele.
Baixei os olhos.
– Estou? Não sei. Até aceitar esta missão, dormi todas as noites no
closet desde que a minha mãe morreu.
Jack levantou uma parte seca da sua camisola para me limpar a cara
(Voltara a chorar? Outra vez? Que raio se passava comigo?) e disse, em
voz terna:
– Então, dormir no chão do meu quarto é uma melhoria.
Dei-lhe um pequeno empurrão e recomecei a andar. Ele estugou o
passo para me apanhar.
– Enfim – concluí, tentando recompor-me –, é esta a história dessa
canção. Tinha-me esquecido completamente dela.
– Não completamente – corrigiu Jack.
E depois – apesar de não estar ninguém por perto para nos ver – puxou-
me para si num abraço.
Vinte
Começávamos a achar que tínhamos escapado a ser apanhados no
hospital quando apareceu uma fotografia de Jack num site de mexericos.
Passados dez minutos, estava em todo o lado.
Como é óbvio, a foto fora tirada na sala de espera das Urgências. E,
embora à distância e de lado, parecia-se realmente muito com ele. A
Internet, porém, não tinha a certeza. Começaram a aparecer artigos com
títulos como «O que estava o famoso Jack Stapleton a fazer em Katy,
Texas?» e «Stapleton avistado no meio do nada» e «Superestrela de cinema
eleva a reclusão e obscuridade a um novo patamar».
Detetives online entusiastas encontraram fotografias de Jack em
ângulos semelhantes e publicaram-nas lado a lado, analisando cada
pormenor com a precisão de um Oliver Stone. Era mesmo esta a forma do
lóbulo da orelha de Jack Stapleton? Aquele pontinho no pescoço seria uma
sombra ou uma sarda? Não trazia a mesma T-shirt que usava numa foto
tirada pelos paparazzi na noite de Ano Novo dois anos antes?
Era um trabalho impressionante, na realidade. Glenn devia recrutar
algumas destas pessoas.
Por fim, a Internet concluiu que sim: o Destruidor fora avistado num
hospitalzinho qualquer numa minúscula localidade do Texas. A questão
para a qual ninguém parecia ter resposta era porquê.
Tudo isto para explicar que o facto de Jack ter sido descoberto elevara
finalmente o nível de alerta para laranja.
Talvez um laranja claro, meio diluído, mas, ainda assim, cor de laranja.
A equipa teve de avaliar uma maior quantidade de conversas online e
acompanhar uma nova explosão de «fãs» que pareciam ter potencial de
causar problemas. Eu comecei a vestir leggings e a calçar ténis todos os
dias para dar «uma corridinha» da parte da tarde, altura em que ia à base de
operações no exterior da propriedade receber informações atualizadas.
Era ao fundo da estrada, mas parecia um mundo completamente
diferente. Não gostava de lá ir. E ainda passei a gostar menos no dia em
que, quando entrei, dei de caras com Glenn a meio de uma discussão.
Doghouse também lá estava, além de Taylor e Robby.
– Não quero saber dos teus sentimentos. Nesta sala não há lugar para
sentimentos! – estava Glenn a gritar, às palmadas na mesa para sublinhar
as palavras.
– O que se passa? – perguntei, fechando a porta atrás de mim.
Glenn, com ar irritado, apontou para mim.
– Isto também é culpa tua.
– Minha? Acabei de chegar.
– Vinte e cinco anos sem que nenhum dos meus agentes se envolvesse
com colegas. Vinte e cinco anos! Depois, tu e aqui o «Romeu» quebraram
essa regra e agora é o salve-se quem puder.
Olhei para Robby, de cabeça baixa. Depois para Taylor, que estava
virada para a frente, com os olhos vermelhos e o rosto inchado.
– O que aconteceu? – perguntei.
– Sabias que estes dois andavam enrolados? – perguntou Glenn.
Entreabri as narinas.
– Sim.
– Bom, ele deu-lhe com os pés – anunciou Glenn, como se isso fosse
culpa minha. – E ela não consegue trabalhar… nem ela nem ninguém…
porque não para de chorar.
Terei sentido um ligeiro frémito de triunfo? Sem comentários.
– Isto significa que fico com o cargo de Londres? – perguntei. – Já que
ele é tão problemático?
Mas Glenn não estava com disposição.
– Tu também tens as tuas desvantagens.
Não podia negá-lo. Virei-me para Robby.
– Com que então, deste-lhe com os pés?
– É mesmo preciso perguntar? – interrompeu Glenn. – Olha para ela!
Taylor tinha agora novas lágrimas no rosto.
– Queres uma lição sobre como lidar com uma coisa dessas? –
perguntou-lhe Glenn. – É assim! – indicou, apontando para mim. – A
Brooks é o modelo perfeito! Este tipo partiu-lhe o coração na noite depois
do funeral da mãe dela, e no dia seguinte ela estava de volta ao trabalho
como uma super-heroína.
Taylor chorava agora abertamente.
– Ufa! – soltou Glenn, virando-se com ar desdenhoso. – Sai daqui e vê
lá se te recompões. Vai apanhar ar. Amadi, dá-lhe água.
Taylor saiu, com o rabo entre as pernas, e Amadi seguiu-a. Glenn
virou-se então para Robby.
– Explica-me lá o que é que estás a tentar alcançar com essa tua atitude.
Queres levar-me à falência? Há alguma mulher nesta empresa que não
tenhas levado para a cama?
Kelly levantou a mão ao fundo da sala, com ar animado.
– A mim!
– E espero que assim continue! – resmungou Glenn.
– Sim – acrescentou Doghouse. – Esperamos todos.
– Sim, senhores – concordou Kelly, com uma continência.
Mas Glenn queria respostas de Robby.
– O que é que estás a tentar fazer? – insistiu. – O que é que tinhas na
cabeça?
– Foi um erro – justificou-se Robby.
– Podes ter a certeza disso.
– Não – disse Robby. – O meu erro foi ter acabado com a Hannah.
– Oh, por amor de Deus! – exclamei. Dei uma palmada na testa e
dirigi-me à porta. – A sério?
Robby deteve-me.
– Não podes ir ainda.
Olhei de lado para Glenn.
– Vais mesmo obrigar-me a ficar aqui a ouvir isto?
Glenn inclinou a cabeça.
– Parece-me que ainda temos trabalho a fazer. Não sei se te lembras.
– O que queres que faça? – perguntou Robby a Glenn, num tom que
dava a entender que era ele a maior vítima. – Passo o dia a estudar os
monitores. – Olhou para mim. – Sabes que pusemos câmaras em todo o
lado, certo? E tenho de assistir a tudo o que vocês os dois fazem fora de
casa. Quando ele te leva às cavalitas. Quando te ajuda no jardim. Quando
te mostra truques a cavalo ou te ensina a fazer o pino, ou olha para ti
quando tu não te apercebes. Eu vejo tudo.
Esperem. Jack olhava para mim sem eu me aperceber?
Robby continuou, dirigindo-se agora a Glenn:
– Fizeste isto para me torturar.
Glenn nem sequer ergueu as sobrancelhas.
– Claro que sim.
– Bom, está a resultar. Estou a dar em doido.
– Ótimo. É merecido.
– Isto é pessoal?
– É a vida – retorquiu Glenn. – E, se fores esperto, usarás isto para te
tornares mais forte.
Olhei para Robby de testa franzida.
– Isto é uma cena de homem das cavernas? Uma daquelas reações
químicas, impulsivas, «se não é minha não pode ser de mais ninguém»?
Estás a mijar em mim para marcar território?
Kelly ainda estava a ouvir.
– Por favor, não o deixes mijar em cima de ti.
Olhei para ela.
– Metaforicamente.
Robby abanou a cabeça.
– Desculpa, está bem? Nunca te devia ter deixado partir.
– Deixar-me partir? – repeti. – Não me deixaste partir. Abandonaste-
me.
– Quero voltar atrás.
– Não podes.
– Porquê?
– Porque agora sei quem realmente és.
Robby fez beicinho. Depois semicerrou os olhos.
– Já percebi o que se passa. Achas que ele gosta de ti.
Fiquei calada.
– Bem vos vejo aos dois – prosseguiu Robby. – Ele deu-te a volta. Mas
não pode ser verdade. És demasiado esperta para cair nisso. Não podes
mesmo acreditar que um ator mundialmente famoso, que pode ter qualquer
mulher, te escolheria a ti. Diz-me que não caíste nessa esparela. Já viste a
Kennedy Monroe? Ele anda a brincar contigo! Está entediado! Nem sequer
é assim tão bom ator. Acorda! Preferes uma relação falsa a estar comigo?
Eu não sabia como responder à maior parte daquela tirada. Mas o
último ponto era fácil de rebater.
– Errado – respondi. – Prefiro qualquer coisa a estar contigo.
– Ele não gosta mesmo de ti – asseverou-me Robby.
– Nunca disse que gostava.
– Mas pensaste.
Tinha de dar razão a Robby. Desta vez, ele tivera um raro momento de
perspicácia.
Glenn estava farto daquela conversa.
– Chama a Taylor – pediu a Kelly. – Vamos lá ter a reunião e despachar
isto.
Robby não tirou os olhos de mim.
– No outro dia, perguntaste-me porque estava a ser tão estúpido.
Uau, isso fora há… cem anos?
– Quando consideraste que eu não era suficientemente bonita para esta
missão? – questionei. – Acho que sim.
– Não queres saber a minha resposta?
Parei e virei-me para ele.
– Já a sei – atirei-lhe. – Estavas a ser estúpido porque és estúpido. Tão
simples como isso.
Mas Robby pegou-me no braço.
– Era porque queria voltar para ti.
Aquilo chamou-me a atenção.
– Porque querias?…
– Sim, já nessa altura.
Tentei ordenar logicamente os acontecimentos.
– Querias voltar para mim… e por isso chamaste-me feia?
– Entrei em pânico.
– Ah, é pânico que lhe chamas?
– Senti a tua falta em Madrid.
– Sentiste a minha falta em Madrid… enquanto dormias com a minha
melhor amiga?
– Queria voltar para ti desde que regressámos. Mas sentia-me mal por
causa da Taylor.
– Espera! Estás a tentar parecer boa pessoa?
– Estou só a dizer que é… complicado.
– Não. É muito simples.
Robby pareceu suster a respiração por um segundo.
– Por causa da Taylor? – perguntou com maus modos, como se eu
estivesse a exagerar. – Foi só uma cena em trabalho.
– Não, não é por causa da Taylor – respondi. – É porque me deste com
os pés. – E, para que não restassem dúvidas, acrescentei: – Na noite a
seguir ao funeral da minha mãe.
Robby soltou um som estrangulado, como se já tivéssemos tido esta
discussão um milhão de vezes.
– Quando é que vais deixar de estar fixada nesse pormenor?
– Nunca – respondi. – É por isso que nunca poderemos voltar a estar
juntos. A cena com a Taylor foi só o prego derradeiro num caixão que já
estava bastante bem fechado.
– Estávamos só entediados – explicou Robby em tom suplicante, como
se eu me recusasse a ser razoável.
– E essa também é a versão da Taylor?
– Juro, a única pessoa que eu queria na altura… e que quero agora… és
tu.
– Estou bastante certa de que nunca gostámos muito um do outro, de
qualquer maneira.
Nem queria acreditar que era obrigada a ter aquela conversa. Sim,
sentia-me só. E sim, ver Robby e Taylor a beijarem-se ferira-me de formas
que nunca julgara possível. Mas eu não era patética.
– Não vamos voltar um para o outro, Robby.
– Porque não?
– Para mim, és uma carta fora do baralho.
– Preferes ficar sozinha para sempre do que deixar-me compensar-te
pelo que fiz?
– Não sei se essas serão as minhas únicas opções.
– Só quero uma oportunidade de reparar as coisas.
– Mas não há maneira de isso acontecer. E, mesmo que houvesse, tu
não saberias como.
#VEJAMOSMEUSNUS #VAMOSFAZERUMBEBé.
Mandei mais algumas mensagens – QUE RAIO? QUEM é QUE PERMITIU QUE
ISTO ACONTECESSE? –, mas quando Glenn não me respondeu, continuei a ver
o vídeo.
A porta de Jack abriu-se e ali estava ele, em carne e osso.
Descalço. De Levi’s. Com a sua camisa de flanela preferida por cima de
uma T-shirt que, da última vez que eu a vira, estava amarrotada no chão da
casa de banho do rancho.
Só de o ver – mesmo do tamanho do ecrã do telemóvel, em pixéis de
luz –, um frémito de prazer percorreu-me o corpo.
«Oh! Olá!», exclamou Jack, enquanto Kennedy o abraçava, arqueando
as costas como um gato siamês. Seria a maneira como espetava o rabo e
pressionava as mamas contra o tronco dele? Ou a maneira como se
esfregava nele, a marcar território? Ou o facto de estar a ronronar?
Fosse o que fosse, era uma imagem que eu nunca conseguiria apagar da
minha memória.
«Vim só cumprimentar-te», anunciou então Kennedy, virando-se para a
câmara, «e trouxe uns amigos.»
E depois começou a entrevistá-lo, da forma mais desinteressante e
disparatada que eu já vira na vida – basicamente, uma sucessão de risinhos,
sacudidelas de cabelo, imagens acidentais do seu decote e perguntas
difíceis para Jack como: «Estás a ficar mais giro?»
Poupo-vos os pormenores insultuosos. Eu assisti para que vocês não
tenham de ir ver.
A bem da verdade, devorei o vídeo.
Não conseguia tirar os olhos do ecrã. Principalmente, por causa de
Jack, claro – a imagem dele era como um banquete para os meus olhos
esfaimados –, mas sobretudo devido a Kennedy. Afinal, antes de hoje,
praticamente tinha-me esquecido de que ela fazia parte da vida de Jack. Ao
vê-los ali, juntos, tentei imaginá-los como um casal, à procura de algum
tipo de faísca ou química entre os dois, por pouco que fosse.
Jack foi simpático e encantador e inevitavelmente charmoso. Porém,
enquanto olhava para ele, apercebi-me de que não se sentia atraído por
Kennedy. Depois de todas estas semanas a achar que tinha o meu radar
avariado – como se toda aquela representação me tivesse baralhado os
sinais –, percebi, de súbito, que me subestimara a mim própria.
Eu conseguia ler muito bem Jack Stapleton.
Kennedy posava para a câmara, atirando o cabelo para trás e fazendo
boquinhas – e Jack observava-a e alinhava no jogo. Mas a inclinação da
sua cabeça, a curva da sobrancelha, os olhos semicerrados, o ângulo do
sorriso, a tensão nas suas costas… tudo isso era um claríssimo népias.
Estou a ser mazinha, mas enfim… A questão era que eu conseguia lê-
lo. Mais ainda, conseguia ver que Jack estava a representar. Este tempo
todo, julgara não conseguir discernir a verdade. Mas, afinal,
compreendera-o sempre tão bem como a qualquer outra pessoa. Ou mesmo
melhor.
E uma coisa era clara como água. Jack sentia-se mais atraído por
aquela figueira-lira do que por Kennedy Monroe.
Seria possível que também aquela fosse uma relação falsa?
Quando ela sacudiu o cabelo, Jack mal reparou. Quando sorria, era
mecânico. Quando Kennedy o puxou pela camisola para o beijar, ele virou-
se como se tivesse ouvido alguém a chamá-lo.
«Jack», disse Kennedy então, virando-se para a câmara e fitando-a
diretamente. «Agora vou precisar de toda a tua atenção.»
Jack virou-se para ela.
«Muito bem», acedeu. «Aqui me tens.»
«Porque tenho uma pergunta muito importante para te fazer e não vais
querer perdê-la.»
«Está bem», disse Jack, enfiando as mãos nos bolsos. «O que é?»
Por fim, ela tirou os olhos da câmara e procurou os de Jack.
«A minha pergunta», disse, inclinando-se para ele, «é esta.» Piscou
uma vez mais o olho à câmara. Depois, olhou para Jack e perguntou:
«Queres casar comigo?»
Esse sonho foi o último que Jack teve sobre a ponte gelada.
Ainda sonhava com o irmão de vez em quando – quase sempre que
levantava os olhos no meio de uma multidão e via Drew a sorrir, ou a
piscar-lhe o olho, ou a fazer-lhe um aceno de cabeça encorajador. Não que
acreditasse propriamente nesses sonhos – não achava que fossem mesmo
janelas para o Além, mas sim a sua imaginação a contar histórias. Porém,
eram histórias boas. Reconfortantes. E estava grato por elas.
Eram as histórias que ele precisava de ouvir.
Se ficou curado do medo de pontes? Depende de como definirmos
«curado». Ainda não as adora. Mas já consegue atravessá-las. Fica com
uma covinha de concentração na face e aperta mais as mãos no volante,
mas atravessa sempre. Sem vomitar a seguir. E decidimos contar isso como
uma vitória.
Trinta e três
Depois da noite em que eu… ah… levei um tiro na cabeça, Glenn pôs
Taylor a substituir-me nas primeiras duas semanas da missão na Coreia
para que a minha ferida de um milhão de dólares sarasse completamente.
Ofereceu-se para transferir a totalidade do meu trabalho para ela, mas
recusei.
– Não quero a Taylor a ficar com mais nada meu – declarei.
– Compreensível – concordou Glenn.
Jack aguardou um período respeitável para deixar sarar a minha ferida
emocionalmente assustadora, mas nada letal e nem sequer muito
dolorosa… e depois convenceu-me a tentar novamente o nosso encontro.
– Não podemos repetir?
– O quê?
– O encontro.
– Aquele encontro? – perguntei. – O que quase acabou comigo morta?
Jack confirmou com um aceno.
– Não, obrigada – respondi. – Não te incomodes.
– Preciso de tentar outra vez – implorou Jack. – E tu também. –
Inclinou-se para mim, recorreu a todo o seu charme e acrescentou: –
Prometo que não te arrependerás.
Se eu queria percorrer outra vez o caminho de acesso à casa de Jack
com uns sapatos ridículos e voltar a tocar à campainha, mesmo com a
certeza de que WilburOdeiaTe321 estava atrás das grades?
Nem pensar.
– Podemos fazer outra coisa qualquer – sugeri. – Minigolfe. Bowling.
Karaoke.
Mas Jack abanou a cabeça.
– Eu tinha atividades muito específicas planeadas para fazer contigo
naquela altura, e preciso mesmo de as levar até ao fim.
– Referes-te ao momento em que eu apareci à tua porta, toda nervosa, e
tu me rejeitaste sem rodeios?
– Note-se, para que fique registado, que o fiz para te salvar a vida.
– Mas levei um tiro na mesma.
– De raspão – corrigiu Jack.
Pensei nisso. Conseguiria tentar de novo? Estudei-o.
– Vais tentar recriar aquele encontro?
– Sim.
– Porquê?
– Porque – explicou Jack – preciso de uma versão daquela história que
não inclua o Wilbur.
Eu conseguia compreender.
– Está bem – cedi.
– Esta noite – disse Jack.
– Pode ser.
– E traz aquele vestido vermelho.
Suspirei.
– O que ficou todo sujo de sangue?
– Já foi lavado, certo?
– Quer dizer… sim.
– Então não há problema.
– Mas os sapatos foram para o lixo – avisei.
– Não quero saber dos sapatos. Até podes vir descalça, se quiseres.
Abanei a cabeça. Depois apontei para Jack e declarei:
– Vou usar as minhas botas de cowboy. – E quando ele acenou em
concordância, acrescentei: – Nunca mais vou usar sapatos estúpidos como
aqueles.
*
Peço desculpa a todas as pessoas que não são eu… mas a verdade é
que, por melhor que Jack seja a beijar no ecrã, é mil vezes melhor na vida
real.
Quer dizer, ele faz com que seja fácil. Uma pessoa não pensa de mais.
Na verdade, nem sequer pensa. Deixa-se perder e o corpo assume o
comando e, quando damos por isso, temos os braços à volta do pescoço
dele e estamos coladas àqueles abdominais duros e a derreter nos braços
dele e a dissolvermo-nos num momento tão entorpecedor que é como se
ele tivesse sequestrado todos os nossos sentidos… Da melhor maneira
possível.
Ele beija como se estivesse destinado. Como se sempre assim tivesse
acontecido. Como se não existisse outra versão imaginável da história.
E uma pessoa retribui o beijo da mesma maneira. Sente todo o corpo
como fogo de artifício. E a alma também. É como se estivesse a viver a sua
vida e, ao mesmo tempo, a pairar acima dela. Como se estivesse na Terra e
no Paraíso. Como se não fosse mais do que coração a bater e sangue a
correr depressa nas veias e calor e suavidade – mas fosse também o vento e
as nuvens. Como se fosse tudo, em simultâneo.
É como se amar alguém – amar mesmo, corajosa e plenamente – fosse
a porta de entrada para algo divino.
E mais tarde – muitas horas mais tarde – depois de ele me ter levado
para a cama, e das botas encarnadas estarem esquecidas no meio do chão, e
estarmos ambos exaustos e entrelaçados e meio a dormir, e de o ter
ajudado a torcer os lençóis como ele costuma fazer, Jack, com toda a
naturalidade, bocejou e espreguiçou aquele tronco famoso, perguntando:
– Será que ainda há alguém a controlar as câmaras de segurança?
– Quais câmaras?
– A do vestíbulo.
Claro que sim. Robby, que era o agente principal responsável por Jack.
Soergui-me nos cotovelos para decifrar a expressão dele.
– Beijaste-me no vestíbulo daquela maneira para o Robby ver?
– Beijei-te assim porque estava desesperado por fazer precisamente
isso há semanas – defendeu-se Jack, passando o braço à minha volta e
puxando-me para si. A seguir, acrescentou:
– O facto de o nosso velho amigo Robby estar a ver foi apenas um
bónus.
No fim de contas, será que alguma vez temos a certeza de que somos
merecedores de amor?
Que pergunta.
Não. Claro que não. Nunca podemos ter essa certeza. A vida nunca nos
dá essas respostas.
Mas talvez a pergunta também não seja a melhor. É possível que o
amor não seja um julgamento que se faz, mas um risco que se corre. Talvez
seja algo que escolhemos fazer – uma e outra vez. Por nós. E por toda a
gente.
Porque o amor não é como a fama. Não é algo que os outros nos
concedem. Não é uma coisa que venha do exterior.
O amor é algo que se faz. É algo que geramos.
E é verdade que, no fundo, amar os outros acaba mesmo por ser uma
forma de nos amarmos a nós próprios.
Epílogo
*
Jack e eu casámos no rancho, claro.
Eu levei um bouquet de madressilva e buganvílias frescas. Jack tinha
na lapela uma pena pintalgada que encontrara à beira-rio. Fizemos alfinetes
com missangas e distribuímo-los entre os convidados como recordação. E
Clipper, o cavalo, conduziu a cerimónia.
Estou a brincar.
Foi Glenn que conduziu a cerimónia. Afinal, ele é também juiz de paz.
Quem havia de dizer? Nessa altura, ia na Esposa Número Quatro, portanto,
asseverou que isso o tornava um especialista. E ninguém ousou discuti-lo.
A lista de convidados foi bastante reduzida. Principalmente família.
Meia dúzia de estrelas de cinema mundialmente famosas, claro. Mas só
aqueles de quem Jack realmente gostava.
Kennedy Monroe, por exemplo, não fazia parte da lista.
Mas adivinhem quem fazia? Meryl Streep.
Ela não pôde estar presente, mas mandou-nos um conjunto de facas de
carne francesas – que, daí em diante, ficaram conhecidas como «as facas
de carne da Meryl Streep» mesmo para os nossos futuros filhos. Em
situações como: «Amor, podes trazer-me uma das facas de carne da Meryl
Streep que estão nessa gaveta?», ou: «Não uses a faca de carne da Meryl
Streep para abrir isso!», ou: «Como é que uma criança de quatro anos
conseguiu dobrar uma faca de carne da Meryl Streep desta maneira que
nem a consigo voltar a endireitar?»
Portanto, ela acabou por ser uma convidada de honra.
E acham que deixei Taylor ser dama de honor, depois de ela implorar?
Hum… não propriamente. Mas deixei-a distribuir os programas.
E Kelly? A pobre sofredora Kelly? Que durante tanto tempo tentara
assegurar um lugar na Equipa Jack sem que ninguém lhe desse uma
oportunidade?
Sentámo-la entre Ryan Reynolds e Ryan Gosling – e Doghouse em
frente deles, a arder de ciúmes a noite toda. Depois, ela entornou sem
querer um copo de bagaço caseiro num deles – nunca me lembro qual –, e
acabou por ter de o ajudar a despir a camisa justa e a vestir uma
emprestada por Jack. Portanto, acabou por se divertir bastante.
Às vezes, o entusiasmo é uma recompensa por si só.
Katherine Center
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