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Heterogeneidade

[Introdução à Análise do Discurso]


W. Emediato
Heterogeneidade Enunciativa
Há uma relação radical entre o interior
e o exterior de um discurso que vem
romper com a visão tradicional de
unicidade do sujeito.

No discurso não há um só sujeito,


mas vários.
Dois tipos de heterogeneidade

1- a heterogeneidade mostrada: repousa sobre as


manifestações explícitas de uma diversidade de
fontes de enunciação. Ela pode ser marcada ou
não-marcada.

2- a heterogeneidade constitutiva: não é marcada


em superfície, mas a AD pode definir formulando
hipóteses sobre a constituição de uma formação
discursiva através do interdiscurso. É um
princípio de identidade de uma prática discursiva.
Concepção de Oswald Ducrot

 Polifonia: Oswald Ducrot diferencia enunciadores de locutores.

 Locutor l : aquele que no enunciado é apresentado


como seu responsável.

 Locutor y (autor efetivo): o que efetivamente o


escreveu ou pronunciou. O produtor físico do
enunciado.



Concepção de Oswald Ducrot

 O deputado X diz: “José disse que João recebeu o
dinheiro”.

 2 locutores: o deputado X e José.


 Autor efetivo: quem escreveu ou pronunciou o enunciado
(um jornal, um escritor).

Concepção de Oswald Ducrot

 Enunciador: está para o “locutor” como o


personagem está para o autor de ficção.

 Vozes presentes na enunciação sem que se lhe


possa atribuir palavras precisas, a enunciação
permite expressar pontos de vista (PDV). Um
locutor pode colocar em cena em seu próprio
enunciado posições diferentes da sua.
LOCUTORES E ENUNCIADORES

 O deputado X diz: José disse, equivocadamente, que João
recebeu efetivamente o dinheiro.

 2 locutores: o deputado X (LOC1) e José (LOC2).


 2 enunciadores: pdv1 (equivocadamente) Loc 1 (deputado)
 pdv 2 (efetivamente) Loc 2 (José)

 Autor efetivo: quem escreveu ou pronunciou o enunciado


(um jornal, um escritor).
Heterogeneidade Mostrada

 Pressuposição
 Negação
 Discurso relatado
 Palavras entre aspas
 Metadiscurso do locutor
 Parafrasagem
 Discurso Indireto Livre
 Ironia
 Autoridade, provérbio (hiperenunciador)
 Imitação
 Pastiche
Heterogeneidade Mostrada
 IRONIA

 Ironia: um enunciado irônico faz ouvir uma outra


voz que a do locutor, a voz do enunciador que
exprime um ponto de vista insustentável. O locutor
assume as palavras, mas não o ponto de vista que
eles supõem.

 1 Locutor: “Este governo é realmente brilhante!”


 2 enunciadores: E1 afirma que o governo é brilhante
(dito), mas o E2 (não-dito) não acredita realmente no
que é dito.
Heterogeneidade Mostrada
 Pressuposição
 o governo não quer mais decidir. (o governo
decidia antes) – enunciador2 (implícito)
 (hoje ele não quer mais decidir), E1 coincidente
com o que afirma o locutor.

 O suposto aumento da corrupção no governo é


uma arma da oposição.
 Remete a um enunciador de que o locutor se
distancia ao empregar o termo (suposto). O E2
(implícito) é o que “supõe”.
Heterogeneidade Mostrada
 Negação:
 A) negação polêmica:
 Este projeto não é viável. (Nega-se um enunciador
encenado no discurso, que afirmaria que o projeto é
viável, que não precisa ser um locutor efetivo.)

 B) Negação metalingüística:
 Contradiz os próprios termos de um enunciado
oposto. Refere-se a um locutor que assume o
enunciado negado, podendo negar os pressupostos
deste último.
 A França nunca parou de retroceder, aliás ela nunca
retrocedeu.
Heterogeneidade Mostrada
 Discurso relatado: duplas enunciações

 Para Bakhtin, trata-se de uma dupla enunciação: a de


um locutor de origem que diz alguma coisa a alguém
em um contexto espacio-temporal e comunicativo; a de
um segundo locutor que re-enuncia em uma segunda
enunciação, em outro contexto espacio-temporal e
comunicativo o todo ou um fragmento do que foi dito
na primeira enunciação.
Heterogeneidade Mostrada
 Discurso relatado:

 Para Charaudeau, é o estatuto do DR que especificará o


lugar do sujeito relator em seu ato.

 Esse ato depende: a) da posição do sujeito relator; b)


das formas de relatar; c) da descrição dos modos de
enunciação de origem.

 Tipos de DR: citado; integrado; narrativizado; evocado.


Heterogeneidade Mostrada
 Polifonia e Discurso Relatado: intepretação polifônica ou não.

Por exemplo, Maria é convidada a um festa na casa de Pedro, mas ela


lhe telefona para declinar o convite, dizendo que está doente. Pedro
relata a conversa a Pedro, podendo dizer;

(1) - Maria não vem porque está doente.


(2) – Maria está doente.
(3) – Maria recusou o convite.
(4) – Maria disse que está doente.
(5) – Maria estaria doente.
(6) – Maria não vem, sob o pretexto de estar doente.
(7) – “Maria disse: “Eu estou doente””.
Heterogeneidade Mostrada
 Explicação dos exemplos anteriores:
 Nos dois primeiros, Pedro relata as palavras de Maria sem precisar que
palavras foram essas, assumindo a responsabilidade por elas e, assim, dá
credibilidade a Maria.

 Em (3) ele transforma as palavras de Maria em uma atitude,
narrativizando suas palavras.
 Em (4), pelo uso do discurso indireto, ela assinala que o discurso
pertence a Maria, não assumindo, portanto, a responsabilidade por sua
veracidade.
 O emprego do condicional em (5) torna hipotética a doença de Maria e
dá a entender que é o que se diz e não necessariamente o que diz Maria.
 Em (6) o locutor toma posição e, através da expressão sob pretexto de
toma a responsabilidade de dizer que o que Maria disse é suspeito.
 Em (7) o discurso relatado no estilo direto (ou citado) dá às palavras de
Maria seu efeito de real, já que são relatadas por Pedro tais como ela as
teria dito. No caso haveria dois locutores, um locutor L responsável pelo
enunciado global e um locutor L’, assimilado a Maria.
Heterogeneidade Mostrada

 Para Ducrot, para que haja polifonia não basta que no discurso de um locutor
L haja marcas de um outro locutor L’, como é o caso de todo discurso
relatado. Nesse sentido, teremos um discurso relatado quando o objetivo
atribuído a L, quando interpretamos seu enunciado é de fazer saber o que
disse L’. Nesse caso, L’ é que é o tema do enunciado de L e o rema é
constituído pelo conjunto das palavras atribuídas a L’. Qualifica-se L’ pelo
que ele disse. Por exemplo: Pedro me disse que o tempo vai melhorar (a
interpretação em discurso relatado levaria a deduzir algo sobre Pedro, como
Pedro é otimista).

 Ducrot falará, ao contrário, de interpretação polifônica quando o ato


ilocucionário de asserção é que é o tema do enunciado e não o locutor do
discurso relatado, o que permite tirar consequências do que foi enunciado
sem necessariamente qualificar o locutor do discurso relatado pelo que ele
diz.
Heterogeneidade Mostrada
 O Intertexto:

 Intertexto: compreende-se por intertexto de uma


formação discursiva o conjunto dos fragmentos
que ela cita efetivamente e por intertextualidade o
tipo de citação que esta formação discursiva define
como legítima por sua prática. Além dos
enunciados citados há portanto suas condições de
possibilidade. De acordo com as épocas e os tipos
de discursos não se cita da mesma maneira, os
textos citáveis, a ocasião em que se cita, variam
consideravelmente.
Heterogeneidade Mostrada
 Palavras entre aspas

 Conotação autonímica. A imprensa “feminina” ....


a palavra é mostrada, marcada como estranha.
“como se diz”. “como diz x”. x remete a
enunciadores variados de acordo com o contexto.
 As aspas, nesse caso, remetem ao que uma
formação discursiva considera fora de seu campo,
ou seja, ao seu exterior, elaborando um discurso
que integra partes sem aspas (interior) e com aspas
(exterior).
 Ver tipos de aspas (Jacqueline Authier-Revuz).
 O metadiscurso do locutor.

 Resulta da construção pelo locutor de níveis distintos no interior de
seu próprio discurso. Permite perceber os pontos sensíveis na maneira
como uma formação discursiva define sua identidade em relação à
língua e ao interdiscurso.

 a) – destinado a construir uma imagem do locutor,


demarcando-se de outro eventualmente: “para falar como
os políticos...”
 b)– marcar uma inadequação de termos:
metaforicamente, de certa forma,
 c) – se autocorrigir; deveria ter dito, ou melhor dizendo,
 d) – confirmar: é bem o que eu disse,
 e) – pedir permissão para empregar certos termos; se me
permitem a expressão,
 f) – fazer uma preterição: eu ia dizer, eu não diria que...
Heterogeneidade Mostrada
 Autoridade, provérbio e hiperenunciadores

 Fenômenos enunciativos nos quais o locutor profere
palavras sem assumir a responsabilidade por elas.
 Marca não só a rejeição, mas também a adesão, como é o
caso das citações de AUTORIDADE, onde o locutor se
apaga atrás de um locutor superlativo que garante a
validade do enunciado.

 Alguns, como os PROVÉRBIOS não podem ser


reformulados, resumidos, são conhecidos pela comunidade.
As coletividades partilham um tesouro de enunciados
fundadores.
CITAÇÃO E DISCURSO

 Quando se analisam os usos da citação, dois


planos interagem:

 o dos procedimentos, categorizados à base de


critérios diversos (enunciativos, tipográficos,
sintáticos, prosódicos: discurso direto, indireto,
direto livre, discurso direto com que, etc.)

 e o dos lugares: gêneros (o jornal, o romance...),


tipos de discursos (a imprensa...), posicionamentos
(o discurso comunista, surrealista...).
O HIPERENUNCIADOR E THESAURUS

ESSE THESAURUS E A COMUNIDADE CORRESPONDENTE


RECORREM A UM HIPERENUNCIADOR CUJA AUTORIDADE
GARANTE MENOS A VERDADE DO ENUNCIADO – NO SENTIDO
ESTREITO DE UMA ADEQUAÇÃO A UM ESTADO DE COISAS DO
MUNDO –, E MAIS AMPLAMENTE SUA “VALIDADE”, SUA
ADEQUAÇÃO AOS VALORES, AOS FUNDAMENTOS DE
UMA COLETIVIDADE.
- POR SUA ENUNCIAÇÃO, O LOCUTOR QUE CITA PRESSUPÕE
PRAGMATICAMENTE QUE ELE MESMO E SEU ALOCUTÁRIO
SÃO MEMBROS DESSA COMUNIDADE;

- ESTÃO LIGADOS EM UMA RELAÇÃO DE TIPO ESPECULAR: O


LOCUTOR CITA AQUILO QUE PODERIA/DEVERIA SER DITO
PELO ALOCUTÁRIO E, MAIS AMPLAMENTE, POR TODO
MEMBRO DA COMUNIDADE QUE AGE DE MANEIRA
PLENAMENTE CONFORME A ESSE PERTENCIMENTO. (CO-
ENUNCIAÇÃO)
PARTICITAÇÃO: UMA PALAVRA-VALISE
QUE FUNDE “PARTICIPAÇÃO” E “CITAÇÃO”.
ATRAVESSA VÁRIOS GÊNEROS.
NO SISTEMA DE PARTICITAÇÃO:
• O ENUNCIADO “CITADO” É UM ENUNCIADO AUTÔNOMO, PORQUE ELE JÁ O É
ORIGINALMENTE OU PORQUE ELE FOI PREVIAMENTE AUTONOMIZADO MEDIANTE
SUA EXTRAÇÃO DE UM TEXTO.

• ESSA CITAÇÃO DEVE SER RECONHECIDA COMO TAL PELOS LEITORES,


SEM QUE O LOCUTOR QUE A CITA INDIQUE SUA FONTE E NEM MESMO
DEIXE CLARO QUE ELE EFETUA UMA CITAÇÃO POR INTERMÉDIO DE UM
VERBO DICENDI INTRODUTOR, DE UM INCISO, ETC.

- O LOCUTOR QUE CITA MOSTRA SUA ADESÃO AO ENUNCIADO CITADO,


QUE PERTENCE ÀQUILO QUE SE PODERIA DENOMINAR UM THESAURUS
DE ENUNCIADOS, INDISSOCIÁVEL DE UMA COMUNIDADE ONDE CIRCULAM ESSES
ENUNCIADOS.
TIPOS DE PARTICITAÇÕES:
As particitações sentenciosas:

a)- a enunciação proverbial (sujeito universal e EU –


Sabedoria das nações);

b) – o adágio jurídico: “todos os delitos são pessoais”;


“Cartas são mais que testemunhos” (Comunidade do
Direito).
As particitações gráficas:

(memorizáveis e destacáveis, na forma de versos, rimas,


etc., que podem figurar em um dicionário de citações)

a)- Citações conhecidas ;


b) – Particitações humanistas;
c) – Thesaurus bíblico.
DESTACAMENTO E AFORIZAÇÃO
As particitações de grupo: implicam locutores coletivos.
Elas visam à fusão imaginária dos indivíduos em um
locutor coletivo que, por sua enunciação, institui e
confirma o pertencimento de cada um ao grupo.

Militantes.
a) – O slogan (político): exterior hostil. (entidade
hiperenunciadora: “os amigos da Liberdade”, “da Paz”, “os
Democratas”, “os Patriotas”, etc.)
b) – O canto dos torcedores.

Comunhão:
a) A oração; (thesaurus bíblico)
b) particitação intérprete: narrativas (contos, lendas..)
DESTACAMENTO E AFORIZAÇÃO

DESTACABILIDADE: alguns enunciados se


apresentam como autônomos:

- Do ponto de vista textual: (o antes e o depois não


comprometem a sua compreensão);

- Do ponto de vista enunciativo (são generalizações).

O texto fonte apresenta fragmentos como “destacáveis”.


DESTACAMENTO E AFORIZAÇÃO

“… vamos dar à palavra biologia o sentido bastante


compreensível que ela deveria ter, que ela terá talvez
um dia, e digamos para concluir que toda moral, pressão
ou aspiração, é de essência biológica.

(Henri Bergson. Deux sources de la morale et de la


religion. Paris, PUF, 64 ed., 1951, p. 103).
SOBREASSEVERAÇÃO: enunciados generalizantes e
normativos, com tom solene. Antecipa seu destacamento
Características de uma sobreasseveração:

- Posição saliente, geralmente breve, memorizável,


revela posicionamento sobre um tema debatido;

- Valor generalizante ou genérico;

- Estrutura do significante (simetria, repetição) ou do


significado (metáfora, quiasma).

- Metadiscurso: retomadas (esta verdade essencial…) ou


reformulações (em outros termos, enfim, digamos
ATITUDE PRAGMÁTICA

Locutores públicos consideram:

- Que os profissionais da comunicação (das mídias, por


exemplo), passam parte de seu tempo a recortar textos
e enunciados em “pequenas frases”.

- Controlar os reempregos de suas falas. Antecipá-los.

- Indicar implicitamente quais fragmentos deveriam ser


reutilizá-los e destacados.
DESTACAMENTO FORTE E FRACO

DESTACAMENTO FORTE: implica uma separação do


texto-fonte, que pode ficar inacessível ao leitor.

DESTACAMENTO FRACO: acompanha o texto-fonte e


pode sofrer alterações significativas e pragmáticas.
ALTERAÇÕES DO DESTACAMENTO

“Nada impede de destacar de um texto uma sequência que


não foi sobreasseverada. Assim, os locutores dos textos-
fonte se encontram constantemente sobreasseveradores
involuntários de enunciados que eles não enunciaram
como tais.”(p. 19. Trad. nossa)

Alteração pode incidir: sobre a forma textual, sobre o


sentido, sobre as suas condições de enunciação, sobre a
identidade do locutor.
ENUNCIAÇÃO AFORIZANTE

Apresenta-se como memorável e memorizável. Expressão


de um convicção, pensamento, tese, proposição, afirmação,
sentença.

Aforizações secundárias: destacadas.

Aforizações primárias: provérbios, adágios, slogans.

A aforização é uma frase “sem texto”.


O CONTEXTO: deformações, malentendidos…

Triplo contexto:

- Contexto fonte: onde o enunciado foi produzido


originalmente.

- contexto de d’accueil (por que tal grupo de indivíduos


em tais circunstâncias proferem essa aforização);

- contexto cultural e histórico (uma cultura associada a


uma memória que guarda os traços de empregos
anteriores).
IRRADIAÇÃO …
A irradiação figura nas manchetes dos jornais, se infiltra nas
conversaçães ordinárias, suscita debates de todas as espécies
nas mídias: nos fóruns, talk-shows televisivos, no correio dos
leitores etc., antes de desaparecer, substituída por outras.

Obs: no campo político, a aforização requer uma contra


aforização por parte do suposto alvo da frase ofensiva .
Heterogeneidade Mostrada

 A IMITAÇÃO:

 Quando o locutor se esconde atrás de um locutor
de um gênero de discurso determinado, pode ser
para se beneficiar da autoridade ligada ao tipo de
enunciação ou, ao contrário, para arruiná-la.
 No primeiro caso há captação, no segundo
subversão.
Heterogeneidade Mostrada
 PASTICHE:

 No caso do pastiche, diferentemente da paródia, há uma
diferença: o pastiche ideal seria o falso, a obra que
poderia figurar entre o corpus que ele imita.

 Para preservar a distância entre as duas fontes


enunciativas, o pasticheur deve introduzir algum indício
de distanciação (por exemplo, amplificando os efeitos).

 Supõe uma certa competência, a interiorização das


regras do gênero.
Pastiche ou plágio
Pastiche ou plágio
Pastiche ou plágio
Pastiche
Paródia
Paródia
Paródia
Paródia
PARÓDIA
PARÓDIA
Pastiche ou plágio
Pastiche ou plágio
Pastiche ou plágio

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