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Uma Ida Ao Supermercado

Zé Miguel: Bom dia, Dona Rosa! Bons


olhos a vejam!
Rosa: Bom dia, Zé Miguel! Ai… Nem me
diga nada, que venho a deitar os bofes
pela boca.
ZM: Então? Que lhe aconteceu para vir
tão esbaforida logo pela manhã?
R: Perdida?
ZM: Não, Dª Rosa, esbaforida. Assim
com esse ar cansado de quem correu
meia maratona.
R: Ah, isso. Ai, filho, sabes lá… Olha,
deixei queimar as torradas para o
pequeno-almoço do meu Manel, atrasei-me a sair de casa e quando cheguei à paragem de
autocarro, ele já estava a arrancar. Tive de correr atrás dele e o Sr. Zé, carrancudo, lá me
deixou entrar, sob protesto de alguns passageiros mais mal humorados.
ZM: Que maçada!
R: Massada… Só se for de peixe, filho!
ZM: Não! Quero dizer que chatice, ter esses contratempos logo de manhã.
R: É verdade, mas é a vida. Olha lá, dás-me uma mãozinha com as compras? Sabes que a vista
já não é o que era e uma ajudinha é sempre bem vinda.
ZM: Com certeza, Dª Rosa! Ora, diga lá ao que vem.
R: Para começar, um peixinho fresco.
ZM: Oh, mesmo a calhar! Este ainda ontem saltava nas redes. Umas postinhas de safio?
R: Bafio? O peixe agora também ganha mofo?
ZM: Não, Dª Rosa, safio. Pescadinho na nossa costa que até dá gosto!
R: Esse tem muitas espinhas.
ZM: Não, leve as postinhas mais abertas, dão uma bela caldeirada. Ou então, cozidas com uns
legumes… um pitéu!
R: Se tu dizes, pode ser. E que mais me recomendas? Tens pescada fresca?
ZM: Pescada não tenho. Mas e que tal umas postas de salmão? Fresquinho... e dizem que é
saudável.
R: Camarão? Ah, isso é muito caro e eu nem gosto muito de marisco.
ZM: Ai, Dª Rosa, está a ficar dura de ouvido! Salmão! Fresquinho e grelhadinho na brasa, é do
melhor.
R: Ah, salmão! É bom, é e o meu Manel gosta muito. Com uma batatinha cozida e uns salpicos
de limão, chama-lhe um figo!
ZM: Figo? Oh, Dª Rosa, isso é ali na frutaria. Já lá vamos.
R: Ai, esta juventude não entende nada! Chamar um figo é um dito popular que quer dizer
que se gosta mesmo muito de alguma coisa.
ZM: Ah, está boa, essa. Não conhecia. E então, de peixinho, vai querer mais alguma coisa?
R: Meia dúzia de carapaus. Assim grandinhos, que o meu Manel gosta deles na brasa com um
belo molho à espanhola.
ZM: Molho à espanhola?
R: Sim, filho. Ai, não me digas que nunca comeste. Azeite, vinagre, colorau, cebola picada e
salsa picadinha… faz-se um belo molho. O meu Manel adora! Vai ficar todo contente com os
carapaus. Já vão sair para o almocinho de amanhã.
ZM: E daqui, está tudo?
R: Sim, de peixe estou aviada. Ajudas-me ali no talho?
ZM: Com certeza. Vamos lá.
R: Ora, então, uns bifes de peru, fininhos, se faz favor.
ZM: Com certeza. Peru é uma boa escolha; carne branca é mais saudável. Gosto dos bifes
panados e estaladiços. Um pitéu!
R: Olha, o meu Manel gosta deles de cebolada, com um belo molho. Ai, ai…lambuza-se todo!
Olha, e põe umas espetadas, de peru com pimento e cebola. Gosto muito. Grelho-as na brasa
com umas pedrinhas de sal... É um consolo.
ZM: Com certeza! E quer aproveitar a promoção? Temos bifes de rabadilha a 9,00€/kg, frescos
e de boa qualidade.
R: Bifes da ilha? Mas o que é isso? Da ilha, só conheço o queijo.
ZM: Não, Dª Rosa, rabadilha! É uma parte da vaca, ótima para bifes, para guisar, estufar ou
para o belo cozido à portuguesa. É do melhor, digo-lhe eu!
R: Se tu dizes… põe lá dois bifes para experimentar. E já agora, corta-me um pedaço para o
cozido. A minha Luísa vem cá no fim de semana e o meu genro adora um bom cozido! Se não
estiver bom… olha, venho cá reclamar contigo.
ZM: Esteja descansada que não se vai arrepender. Claro que se quiser abrir os cordões à bolsa,
pode levar uns bifes da vazia ou até mesmo do lombo.
R: Não, filho, põe lá esse que disseste. Este mês estamos apertados. Para além disso, o doutor
disse que a carne vermelha causa inflamação. E eu disse logo ao meu Manel, “Ouviste? É por
isso que estamos inchados!”.
ZM: Ah, e o doutor tem toda a razão. Não sei é se é carne vermelha que causa barriga.
R: Barriga? Mas quem falou em barriga? Ai, ó Zé Miguel, tu não me chames gorda!
ZM: Ó Dª Rosa, o que seria! Eu estava a falar da barriga do Sr. Manel… Não se zangue comigo.
Então, diga lá, aqui do talho está tudo?
R: Pois, isso… Muda de assunto. Sim, claro que sim. Ah, espera, arranja-me uns miúdos para a
canja.
ZM: Miúdos?
R: Sim, filho, miúdos de galinha. Havia de ser crianças, querem lá ver! Põe lá uns miúdos, que
o Manel adora!
ZM: Mas, ó Dª Rosa, o que são miúdos?
R: Ai, rapaz, credo! Miúdos são patas de galinha, pescoços, os orgãos e assim. Tanto dá para
canja como para fazer pipis. Isso aproveita-se tudo.
ZM: Pipis? Ó Dª Rosa…!
R: Ó Zé Miguel! Ai, esta mocidade leva tudo para o mal! Pipis, não sabes o que é? Pipis é um
petisco tradicional, usado antigamente nas tascas que por aí havia. É um petisco preparado
com as miudezas, ou os tais miúdos que te pedi. São as patas e pescoços de galinha ou de
frango e os órgãos, como moelas, os fígados, os corações... Depois temperam-se bem
temperados e refogam-se. Fica um molho assim grossinho, mesmo bom para molhar o pão e
beber uma cervejinha. Ah, pois, é pouco bom, é!
ZM: Nunca provei, mas agora fiquei com curiosidade!
R: Olha, se quiseres, vais lá a casa domingo à tarde... Vai ser o petisco do dia! A minha Luísa e
o meu Manel adoram, parecem dois miúdos... Mas dos outros! Dois rapazes pequenos.
ZM: Olhe que sou bem capaz disso! Vivendo e aprendendo, não é verdade? Saber não ocupa
lugar. Ora então, está tudo?
R: Sim, está quase tudo. Arranja-me só ali uma fruta, mas em condições. Umas pêras, umas
maçãs e umas laranjas-dabaía, que são as mais docinhas.
ZM: Cuidado, Dª Rosa, que já dizia a minha avó, "Laranja de manhã é ouro, à tarde, prata, e à
noite, mata!"
R: Ora vejam só, o rapaz que não sabe o que são pipis, mas sabe ditados populares! Ainda
bem que há coisas que não se perdem.
ZM: É bem verdade, Dª Rosa. A minha geração é tão ligada às tecnologias que perdeu coisas
básicas, como uma boa conversa e aprender coisas com quem já cá anda há mais anos.
R: Com os velhos, queres tu dizer.
ZM: Nah nah, nada disso. Velhos são os trapos!
R: Tens razão. E mesmo assim, dão para muita coisa. De vez em quando, guardo uns trapos.
Dãome jeito panos velhos para as limpezas, ou para o meu Manel limpar a oficina quando lhe
dá para a bricolage.
ZM: Hm... E que mais vai ser, Dª Rosa?
R: Olha, arranja-me uma fatia de queijo da Ilha. O meu Manel gosta de comer um bocadinho
antes de dormir.
ZM: Compreendo. O meu pai prefere um copinho de vinho do Porto!
R: Ora pois, faz ele bem. Mas deixa cá ver o que falta, que já me distraí com a conversa.
Ah, já sei, falta-me o pão! Um pão caseiro, para o meu Manel comer com o queijo e para as
torradas da manhã. Ai ai... Ao fim de 40 anos ainda lhe aturo as manias!
ZM: É bom sinal, deixe lá. Um dia, também quero um amor assim, para a vida inteira!
R: Isso dizes tu agora. Olha, rapaz, aproveita a vida, que ela são dois dias e o Carnaval são três!
ZM: Ó Dona Rosa, que quer isso dizer?
R: Basicamente, que a vida é curta e devemos aproveitar ao máximo enquanto podemos e
somos capazes.
ZM: Ah, gosto disso! Boa dica, Dª Rosa.
R: Ah, é verdade, põe-me meia dúzia de papos-secos, que eu gosto deles com manteiga.
ZM: Com certeza! Aqui está. Mais alguma coisa ou está tudo?
R: Olha, acho que estou aviada. Vamos lá à dolorosa.
ZM: Vamos aonde?
R: Ó Zé Miguel, tu és demais… Dolorosa! É o que na gíria chamamos à conta quando
sabemos que temos de pagar e não é assim tão pouco. Até dói, sabes?
ZM: Ah, essa é muito boa! Bem verdade. Ora, vamos lá, então.
R: Vamos lá, que eu tenho de ligar ao meu Manel para me vir buscar. Já estou velha para
andar carregada de sacos no autocarro e, além disso, ele está lá em casa a encher chouriços.
ZM: Não me diga que o Sr. Manel se tornou salsicheiro!
R: Ó rapaz, tu dizes cada coisa... Nada disso! Encher chouriços é inventar o que fazer
quando se está desocupado. É arranjar com que ocupar o tempo, entendes?
ZM: Ó Dª Rosa, a senhora é um espanto! Aprendi uma série de coisas consigo.
R: Sabes o que te digo, rapaz? Aprende que eu não vivo sempre!
Bem, é esse o total? Vou pagar com multibanco. Deixa eu cá pôr o pino ou pini ou lá como se
diz. O meu é 1234, que é para não me esquecer.
ZM: Ó Dª Rosa, não diga isso assim a toda a gente, que ainda alguém mal intencionado a ouve
e lhe tenta roubar o cartão.
R: Ó filho, e vão roubar o quê? Com sorte, ainda ficam com pena de mim
e depositam lá uns trocos! Bem, já está tudo pago e acertado, não está?
ZM: Está tudo certo!
R: Ai, já me esquecia dumas pastilhas elásticas para a minha neta. Dá-me cá um pacote dessas
chicletes, sabor a morango. Isso é quanto, 1€? Credo, ainda me lembro de uma pastilha custar
5 centavos. Toma lá 2€. Pronto, agora é que tenho tudo.
ZM: Espere, espere, falta o troco! Não é muito, mas ainda dá para o café!
R: Olha, agora que falas nisso, enquanto ligo ao meu Manel e fico à espera, tira-me aí um
cafezinho cheio, para ver se me entretenho. E já agora, dá-me um pastel de nata. Como dizia
o outro, o que não mata, engorda e eu já me posso dar a esse luxo.
ZM: Ora, aqui está, Dª Rosa. Esteja à vontade e se precisar de alguma coisa, grite, que é como
quem diz chame, que eu venho ajudar!

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