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REVISTA

ISSN 1414-008X Centro de Estudos Judiciários


Ano XXIV

CEJ
do Conselho da Justiça Federal

79
jan./jul. 2020

A pandemia do coronavírus observada a partir da teoria dos sistemas


de Niklas Luhmann: breves considerações

Papel do federalismo em situações de crise: o caso da pandemia


da Covid-19

A criminalização da homofobia pelo Supremo Tribunal Federal:


o uso da leitura moral de Ronald Dworkin em detrimento do
princípio da maioria de Jeremy Waldron
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL

Ministro Humberto Martins


Presidente

Ministro Jorge Mussi


Corregedor-Geral da Justiça Federal e
Diretor do Centro de Estudos Judiciários

Ministro Antonio Carlos Ferreira


Ministro Villas Bôas Cueva
Ministro Sebastião Alves dos Reis Junior
Desembargador Federal I'talo Mendes
Desembargador Federal Reis Friede
Desembargador Federal Mairan Maia Júnior
Desembargador Federal Victor Laus
Desembargador Federal Vladimir Souza Carvalho
Membros Efetivos

Ministro Marco Buzzi


Ministro Marco Aurélio Bellizze
Ministra Assusete Magalhães
Desembargador Federal Francisco de Assis Betti
Desembargador Federal Messod Azulay
Desembargadora Federal Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida
Desembargador Federal Luís Alberto d’Azevedo Aurvalle
Desembargador Federal Lázaro Guimarães
Membros Suplentes

Juiz Federal Marcio Luiz Coelho de Freitas


Secretário-Geral
REVISTA

CEJ
Ano XXIV, n. 79, jan./jul. 2020

SECRETARIA DO CENTRO DE ESTUDOS JUDICIÁRIOS CONSELHO EDITORIAL DO CEJ


Deyst Deysther Ferreira de Carvalho Caldas
Secretária do Centro de Estudos Judiciários Presidente
Maria Aparecida de Assis Marks Ministro Jorge Mussi
Diretora da Divisão de Biblioteca e Editoração do CEJ Diretor do Centro de Estudos Judiciários

Milra de Lucena Machado Amorim


Membros
Chefe da Seção de Editoração – Seedit/CEJ
Ministro Og Fernandes
Edição Superior Tribunal de Justiça
Milra de Lucena Machado Amorim – Seedit/CEJ
Telma Cristina Ikeda Gondo – Seedit/CEJ Ministro Mauro Campbell Marques
Kaynara Jaquelin Souza Llamocca – Seedit/CEJ Superior Tribunal de Justiça

Revisão ortográfica Ministra Maria Isabel Gallotti


Centro de Revisão do Conselho da Justiça Federal – Cerevi/CJF Superior Tribunal de Justiça
Diagramação Ministro Nefi Cordeiro
Helder Marcelo Pereira – Assistente da Seedit/CEJ Superior Tribunal de Justiça
Capa e Ilustrações Ministro Cesar Asfor Rocha
Rayanne Marcelle Gomes Durso – Seedit/CEJ
Superior Tribunal de Justiça
Abstracts
Desembargador Federal Fernando Quadros da Silva
Ariane Emílio Kloth – Cecint/CJF
Tribunal Regional Federal da 4ª Região – Porto Alegre-RS
Impressão
Seção de Serviços Gráficos – SAD/CJF Desembargador Federal Edilson Pereira Nobre Júnior
Tribunal Regional Federal da 5ª Região – Recife-PE

Desembargador Federal Rogério de Meneses Fialho Moreira


Tribunal Regional Federal da 5ª Região – Recife-PE

Juíza Federal Daniela Pereira Madeira


ENDEREÇO:
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Seção de Editoração do CEJ Juiz Federal João Batista Lazzari
Setor de Clubes Esportivo Sul, Trecho 03, Seção Judiciária do Estado de Santa Catarina
Polo 08, Lote 9 – CEP: 70200-003 – Brasília-DF
Juiz Federal Marcelo Costenaro Cavali
www.cjf.jus.br Seção Judiciária do Estado de São Paulo
E-mail: revista@cjf.jus.br
Juíza Federal Vânila Cardoso André de Moraes
As opiniões expressas pelos autores não refletem,
Seção Judiciária de Minas Gerais
necessariamente, a posição do Conselho da Justiça Federal.
Aceitamos permuta. Professor Doutor Ingo Wolfgang Sarlet
Piedese canje. Pontifícia Universidade Católica-PUC – Porto Alegre-RS
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On demande l’échange. Professor Doutor José Rogério Cruz e Tucci
Esta Revista não é comercializada. Universidade de São Paulo-USP – São Paulo-SP

Professor Doutor Otavio Luiz Rodrigues Junior


Universidade de São Paulo-USP – São Paulo-SP

Revista CEJ / Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários. – Ano 1, n. 1 (1997)- . – Brasília, DF : Conselho da Justiça
Federal, Centro de Estudos Judiciários, 1997-
v. : il. color. ; 30 cm.

Quadrimestral: 1997-2001; 2012-2018. Trimestral: 2002-2011. Semestral: 2019- .


Editada em formato eletrônico a partir de 2008.
Disponível em: https://revistacej.cjf.jus.br/cej/index.php/revcej
ISSN 1414-008X (Impressa). – ISSN 2179-9857 (Eletrônica).

1. Ciência jurídica, periódico. 2. Justiça Federal. 3. Poder Judiciário. I. Conselho da Justiça Federal (Brasil). Centro de Estudos Judiciários.

CDU 34(05)

Ficha catalográfica elaborada por Lara Pinheiro Fernandes do Prado – CRB 1/1254
REVISTA Centro de Estudos Judiciários
ISSN 1414-008X
Ano XXIV

79
Conselho da Justiça Federal

CEJ
79, jan./jul.
Ano XXIV, n. 79, jan./jul. 2020

PARECERISTAS AD HOC
BENEDICTO DE VASCONCELLOS LUNA GONÇALVES PATRÃO
Professor Doutor da Universidade Federal Fluminense

CLARISSA TASSINARI
Professora Doutora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - RS

CLÁUDIA LUIZ LOURENÇO


Professora Doutora da Universidade Federal de Goiás

DANIELLE SOUZA DE ANDRADE E SILVA CAVALCANTI


Juíza Federal da 11ª Vara de Recife-PE

DAVID FRANSCISCO LOPES GOMES


Professor Doutor da Universidade Federal de Minas Gerais

EDGARD AUDOMAR MARX NETO


Professor Doutor da Universidade Federal de Minas Gerais

ESTER CAMILA GOMES NORATO REZENDE


Professora Doutora da Universidade Federal de Minas Gerais

FABIO QUEIROZ PEREIRA


Professor Doutor da Universidade Federal de Minas Gerais

FERNANDO ANTÔNIO NOGUEIRA GALVÃO DA ROCHA


Professor Doutor da Universidade Federal de Minas Gerais

FLÁVIO BUONADUCE BORGES


Professor da Universidade Federal de Goiás

FLÁVIO CHEIM JORGE


Professor Doutor da Universidade Federal do Espírito Santo

GASPAR ALEXANDRE MACHADO DE SOUSA


Professor Doutor da Universidade Federal de Goiás

HERMES ZANETI JUNIOR


Professor Doutor da Universidade Federal do Espírito Santo

JOÃO DA CRUZ GONÇALVES NETO


Professor Doutor da Universidade Federal de Goiás

MARIA CELINA BODIN DE MORAES


Professora Doutora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

MARIA TERESA MOREIRA LIMA


Professora Doutora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

RICARDO MORISHITA WADA


Professor Doutor do Instituto Brasiliense de Direito Público - DF

SILVIA ARAÚJO DETTMER


Professora Doutora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

TAÍS SCHILLING FERRAZ


Juíza Federal da 24a Vara Federal de Porto Alegre - RS

THAIS CASTELLI
Professora Doutora da Fundação Getulio Vargas – SP

TRÍCIA NAVARRO XAVIER CABRAL


Professora Doutora da Universidade Federal do Espírito Santo
SUMÁRIO
Revista CEJ, Ano XXIV, n. 79, jan./jul. 2020

DIREITO PREVIDENCIÁRIO 7 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A DECADÊNCIA DOS


BENEFÍCIOS PREVIDENCIÁRIOS E A SUPERVENIÊNCIA
DA LEI 13.846/2019
Brief considerations on the forfeiture of social security benefits
and the advent of act 13,846/2019
Roberto Luis Luchi Demo

SOCIOLOGIA DO DIREITO 16 A PANDEMIA DO CORONA VÍRUS OBSERVADA A PARTIR DA


TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN:
breves considerações
The Coronavirus Pandemic from the standpoint of Niklas
Luhmann’s Systems Theory: brief considerations
Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

DIREITO CONSTITUCIONAL 22 PAPEL DO FEDERALISMO EM SITUAÇÕES DE CRISE: o caso da


pandemia da Covid-19
The role of federalism in crisis situations: the Covid-19 pandemic
Valerio de Oliveira Mazzuoli
Hugo Abas Frazão

29 SOU DO ACORDO! A AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO SIMULADA


NO AMBIENTE ESCOLAR COMO FORMA DE FORTALECIMENTO
DA CULTURA DA PAZ E DA INCLUSÃO
In favor of the settlement! the simulated conciliation hearing
in the school setting as a way of strengthening the culture
of peace and inclusion
Erica de Sousa Costa

ADMINISTRAÇÃO JUDICIAL 37 DESENVOLVENDO HABILIDADES GERENCIAIS EM JUÍZES


Development of management skills for judges
Carlos Henrique Borlido Haddad

DIREITO PENAL 43 APONTAMENTOS SOBRE A INDISPONIBILIDADE DE ATIVOS


FINANCEIROS E A NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE
Notes on the unavailability of financial assets and the new
act of abuse of authority
Silvio Wanderley do Nascimento Lima
DIREITO PENAL 55 A CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA PELO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL: o uso da leitura moral de Ronald Dworkin em detrimento
do princípio da maioria de Jeremy Waldron
The criminalization of homophobia by the Brazilian Federal Supreme
Court: the use of Ronald Dworkin’s moral reading versus Jeremy
Waldron’s majority principle
José Flávio Fonseca de Oliveira

DIREITO CIVIL 64 AS CONDIÇÕES GERAIS DE CONTRATAÇÃO NO DIREITO ALEMÃO


The general conditions of contracts in german law
Leonardo Estevam de Assis Zanini

DIREITO PROCESSUAL CIVIL 73 A VERSÃO E A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO CÓDIGO DE


DEFESA DO CONSUMIDOR
The version and the reversal of the burden of proof
inonsonance with consumer rights legislation
Cássio Benvenutti de Castro

87 A RELAÇÃO DA BAHIA E A INFLUÊNCIA DOS ARESTOS, ASSENTOS


E ESTILOS COMO INÍCIO DA METODOLOGIA PRECEDENTALISTA
EM TERRAE BRASILIS
Bahia’s ancient court of appeals and the influence of arestos, assentos
and estilos as a starting point to the precedent-making methodology
in terrae brasilis
Rodrigo de Souza Gonçalves

ENSINO JURÍDICO 100 A DOCÊNCIA JURÍDICA NO BRASIL: a influência da prática no exercício


da cátedra sem formação didático-pedagógica específica
Law teaching in Brazil: the influence of practice on professorship with
no specif-ic pedagogical-didactic training
Márcio Lázaro Pinto

107 COPERATIVA E SOCIEDADE NO DIREITO COMERCIAL DA LUSOFONIA


João António Bahia de Almeida Garrett

INDICAÇÕES LITERÁRIAS 116 O STF NO INÍCIO DA PRIMEIRA REPÚBLICA


Por Paulo de Tarso Vieira Sanseverino

118 RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DE GRUPOS ECONÔMICOS


Por Mauro Campbell Marques
D I R E I T O PREVIDEN C IÁRIO
Roberto Luis Luchi Demo

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE 7

A DECADÊNCIA DOS BENEFÍCIOS


PREVIDENCIÁRIOS E A SUPERVENIÊNCIA
DA LEI 13.846/2019.
BRIEF CONSIDERATIONS ON THE FORFEITURE OF SOCIAL SECURITY
BENEFITS AND THE ADVENT OF ACT 13,846/2019
Roberto Luis Luchi Demo

RESUMO ABSTRACT
Analisa a decadência do direito potestativo ou faculdade jurídica This article assesses the forefeiture of the beneficiary’s
de o segurado revisar os atos administrativos de indeferimento, irrefutable right or legal power to review administrative acts
concessão, manutenção, cancelamento e cessação de benefício of rejection, concession, maintenance, cancellation and
previdenciário, considerando as supervenientes alterações legis- termination of social security benefits. The text takes into
lativas ao art. 103, da Lei n. 8.213/1991, levadas a efeito a partir account the subsequent legislative changes made to article
da Medida Provisória n. 1.523-9, de 27/6/1997, até a edição da 103 of Act 8,213/1991, effective since the Provisional
Lei n. 13.846/2019. Decree 1,523-9, dated June 27, 1997, until the
enactment of Act 13,846/2019.
PALAVRAS-CHAVE
Direito Previdenciário; decadência; revisão de benefício previ- KEYWORDS
denciário; indeferimento; concessão; manutenção; cancelamen- Social Security Law; forefeiture; reviewing of social security benefits;
to; cessação. rejection; concession; maintenance; cancellation; termination.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 7-15, jan./jul. 2020


Roberto Luis Luchi Demo

1 PROLEGÔMENOS a prescrição da pretensão à revisão do ato de aposentadoria


O direito ao benefício previdenciário constitui direito fun- alcança o próprio fundo de direito, caso ultrapassados os 5
damental que é adquirido com a implementação dos respec- anos previstos no art. 1º do Decreto 20.910/1932, contados
tivos pressupostos ou requisitos estabelecidos na legislação a partir do ato de concessão, não havendo falar em relação
para esse fim. Uma vez adquirido, o direito ao benefício não de trato sucessivo2. Por isso, fazendo analogia com os servido-
é afetado pelo decurso do tempo. Por exemplo, um segurado res públicos e considerando a necessidade de estabilização das
que implementou os requisitos para aposentadoria por idade relações jurídicas que informa o princípio da segurança jurídi-
em 1/1/2005 pode fazer o requerimento deste benefício em ca, haveria de incidir a prescrição do fundo de direito na revi-
1/1/2020, pois o decurso de 15 anos não afeta em nada o direi- são de qualquer dos aspectos do ato de concessão de benefí-
to ao benefício, embora possa repercutir nos efeitos financeiros cio previdenciário, consoante estabelece o art. 1º do Decreto n.
desse direito, como o início do pagamento da renda mensal 20.910/1932, verbis: As dívidas passivas da União, dos Estados
que, via de regra, se dá a partir do requerimento administrativo. e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação
O exercício do direito fundamental ao benefício dá-se me- contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for
diante requerimento administrativo. Por sua vez, a concretização a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data
desse direito ocorre com o ato de concessão, que lhe define do ato ou fato do qual se originarem.
uma graduação econômica, resultando, dessa operação, a renda Entretanto, partindo da premissa de que o direito ao benefí-
mensal inicial. A partir da concessão do benefício, inicia-se a fase cio é um direito fundamental e que o segurado é hipossuficien-
de manutenção, com o pagamento da renda mensal e diversas te, a hermenêutica previdenciária sempre buscou solução que
outras atividades, entre as quais se destaca o reajuste anual para melhor amparasse o trabalhador. Por esse motivo, a jurispru-
preservar o valor real daquela graduação econômica inicialmen- dência sempre fez um distinguish em relação aos segurados,
te estabelecida. A manutenção do benefício ocorre até o cance- consolidando destarte entendimento segundo o qual não existe
lamento ou a cessação, a partir de quando deixa de ser pago. prescrição do fundo de direito em matéria previdenciária, vale
dizer, não se aplica a prescrição prevista no art. 1º do Decreto
O direito ao benefício previdenciário constitui 20.910/1932 para o exercício do direito de revisão do ato con-
direito fundamental que é adquirido com cessório3. Portanto, não havia prazo para o exercício desse direi-
to, até porque o art. 103 da Lei n. 8.213/1991, na sua redação
a implementação dos respectivos
original, estabelecia que prescreve em 5 (cinco) anos o direito
8 pressupostos ou requisitos estabelecidos às prestações não pagas nem reclamadas na época própria,
na legislação para esse fim. ou seja, previa somente a prescrição quinquenal das parcelas
vencidas do benefício.
Partindo da premissa segundo a qual no indeferimento, Sobreveio então a Medida Provisória n. 1.523, de 28/6/1997,
concessão, manutenção, cancelamento e cessação do benefí- que deu nova redação ao art. 103 da Lei n. 8.213/91, o qual
cio podem ocorrer falhas, o que é natural de toda a atividade passou a prever, no caput, que: É de dez anos o prazo de de-
humana, este trabalho se propõe a analisar o direito potestativo cadência de todo e qualquer direito ou ação do segurado ou
ou faculdade jurídica de o segurado revisar esses atos adminis- beneficiário para a revisão do ato de concessão de benefício,
trativos na perspectiva do decurso do tempo e considerando a contar do dia primeiro do mês seguinte ao do recebimento
as supervenientes alterações legislativas ao art. 103, da Lei n. da primeira prestação ou, quando for o caso, do dia em que
8.213/1991, em particular a recente Medida Provisória n. 871, tomar conhecimento da decisão indeferitória definitiva no âm-
de 18/1/2019, convertida na Lei n. 13.846/2019. bito administrativo. Ou seja, a partir de então passou a existir
prazo decadencial para a revisão do ato de concessão de be-
2 A INCLUSÃO NO DIREITO PREVIDENCIÁRIO DA DECADÊNCIA nefício previdenciário. Esta medida provisória foi convertida na
PARA A REVISÃO DO ATO DE CONCESSÃO DE BENEFÍCIO Lei n. 9.528/1997, mantendo-se a mesma redação desta norma
Inicialmente cumpre salientar que a situação jurídico-previ- legal. Posteriormente, o prazo decadencial foi reduzido para 5
denciária dos segurados do RGPS é bastante similar a dos ser- anos pela Lei n. 9.711/1998 e novamente majorado para 10
vidores públicos vinculadas ao RPPS, uma vez que os vínculos anos pela Medida Provisória n. 138/2003, convertida na Lei n.
de proteção social de ambos são estatutários, vale dizer, são 10.839/2004, de modo que, como o aumento do prazo se deu
regidos por estatutos legais que lhes definem o regime jurídico antes de completados os cinco anos, nenhum benefício foi atin-
e os diversos contornos institucionais. Aliás, essa semelhança foi gido pela decadência nesse ínterim.
muito bem lembrada pelo STJ na análise do Tema 692 quando, Oportuno gizar que, por expressa opção do legisla-
considerando a evolução jurisprudencial, observou que o funda- dor, o sobredito prazo previsto no art. 103, caput, da Lei n.
mento da irrepetibilidade do benefício previdenciário recebido 8.213/91, na redação da Medida Provisória n. 1.523-9, de
por decisão judicial já não poderia ser o princípio da irrepetibi- 27/6/1997, e alterações posteriores, é de decadência que,
lidade dos alimentos do direito de família – como vinha sendo como se sabe, tem por escopo a estabilidade das relações
aplicado tradicionalmente –, e sim o princípio da boa-fé objetiva, jurídicas, ou seja, não é estabelecido em favor do segurado
como aplicado para os servidores públicos1. nem do INSS. Assim, a decadência pressupõe tão somente o
Ora, em relação aos servidores públicos, a jurisprudência aperfeiçoamento do ato jurídico que funciona como seu su-
historicamente sempre foi e ainda é pacífica no sentido de que porte fático de incidência, a fim de limitar qualquer discussão

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 7-15, jan./jul. 2020


Roberto Luis Luchi Demo

em torno daquele ato, no caso, do ato 3 A REVISÃO DO CÁLCULO DA RENDA 1994. Ou seja, discutia-se o critério do
de concessão do benefício previdenci- MENSAL INICIAL DO BENEFÍCIO NO ATO cálculo, mais especificamente, a correção
ário, resguardando o princípio da segu- DE CONCESSÃO monetária dos salários de contribuição
rança jurídica. Portanto, a consumação O cálculo do valor dos benefícios anteriores a março de 1994 para efeito
da decadência verifica-se com a con- previdenciários demanda a análise de di- de cálculo do salário de benefício. Em
cessão do benefício previdenciário, o versos fatos concernentes à vida contri- virtude disso, sempre foi pacífica a apli-
decurso do prazo de 10 anos e a inér- butiva do segurado, como o tempo de cação do prazo decadencial na hipótese
cia do segurado neste lapso tempo- serviço/contribuição de atividade urbana de revisão do conteúdo material e do cri-
ral. Por conseguinte, é irrelevante para e rural, eventual enquadramento de tem- tério de cálculo.
efeito de decadência a ocorrência ou po de serviço/contribuição como ativida- Sobre a aplicação desse prazo de-
não de lesão a direito do segurado no de especial, identificação dos salários de cadencial ao direito de o segurado re-
ato de concessão do benefício, até por- contribuição, definição do período básico visar o ato de concessão, inclusive de
que sua incidência não é regida pelo de cálculo, entre outros. Com base nessa benefícios previdenciários anteriores
princípio da actio nata, não exige pré- verificação fática, apura-se a média dos à Medida Provisória n. 1.523/1997, o
via lesão a direito do segurado, nem salários de contribuição que integram o STF já fixou tese de repercussão geral
tem por finalidade limitar o controle da período básico de cálculo com a devida segundo a qual I – Inexiste prazo de-
legalidade do ato de concessão, pois correção monetária, resultando no salá- cadencial para a concessão inicial do
esses são pressupostos de instituto di- rio de benefício ao qual se aplica o coe- benefício previdenciário; II – Aplica-se
verso, qual seja, da prescrição. A pro- ficiente estabelecido na lei previdenciária o prazo decadencial de dez anos para
pósito, vale transcrever a doutrina de e obtém-se a renda mensal inicial, que a revisão de benefícios concedidos,
Antonio Luiz da Câmara Leal, verbis: corresponde ao valor do benefício que inclusive os anteriores ao advento da
O direito é uma faculdade de agir será pago até o primeiro reajuste. Medida Provisória n. 1.523/1997, hi-
atribuída ao titular, ao passo que a ação
é um meio judicial de proteção a essa [...] é irrelevante para efeito de decadência a ocorrência ou
faculdade, quando ameaçada ou viola- não de lesão a direito do segurado no ato de concessão
da. Se o prazo que se estabelece se refe-
re à faculdade de agir, subordinando-a do benefício, até porque sua incidência não é regida
à condição de exercício dentro de deter- pelo princípio da actio nata [...] 9
minado lapso de tempo, esse prazo é de
decadência; mas se o prazo se estabe- Neste tópico será analisada somente pótese em que a contagem do pra-
lece para o princípio da ação, uma vez a revisão do conteúdo material e do cri- zo deve iniciar-se em 1º de agosto
ofendido o direito, esse prazo é a pres- tério de cálculo da renda mensal inicial, de 1997 (Tema 313). Igualmente, o
crição (LEAL, 1982). ou seja, não se questiona a análise nem STJ fixou tese em recurso repetitivo
No mesmo sentido, cumpre regis- a interpretação dos fatos no ato de con- no sentido de que O suporte de in-
trar a doutrina de Caio Mário da Silva cessão do benefício, mas tão somente o cidência do prazo decadencial previs-
Pereira, litteris: erro material (que é raro de acontecer) to no art. 103 da Lei n. 8.213/1991 é
Quando, pois, o direito subjetivo e a conformidade do cálculo à legisla- o direito de revisão dos benefícios, e
pode ser exercido sem a predetermina- ção previdenciária, por exemplo, se foi não o direito ao benefício previdenci-
ção de um prazo, extingue-se por pres- aplicado corretamente o índice de cor- ário. Incide o prazo de decadência do
crição levantada por quem tenha um reção monetária para atualizar o salário art. 103 da Lei n. 8.213/1991, institu-
interesse contrário; mas, quando a lei de contribuição ou se o período básico ído pela Medida Provisória n. 1.523-
marca um tempo como condição de de cálculo foi estabelecido corretamente. 9/1997, convertida na Lei 9.528/1997,
exercício, o vencimento desse limite tem- A revisão dos demais componentes, es- no direito de revisão dos benefícios
poral importa na caducidade ou deca- pecialmente os aspectos fáticos, do ato concedidos ou indeferidos anterior-
dência do direito. (PEREIRA, 1994) concessório que repercutem na gradua- mente a esse preceito normativo, com
Aliás, considerando justamente que ção econômica do benefício previdenciá- termo a quo a contar da sua vigência
o prazo de 10 anos estabelecido no art. rio será analisada no tópico seguinte. (28/6/1997). (Tema 544)
103, caput, da Lei n. 8.213/1991, é deca- Importa salientar, neste passo, que Nessa ordem de considerações, a
dencial e por isso mesmo fixado em re- a já mencionada alteração legislativa le- revisão do conteúdo material e do cri-
lação ao direito em si, e não relativo aos vada a efeito pela MP n. 1.523-9/1997, tério de cálculo da renda mensal inicial
sujeitos desse direito, o STJ decidiu, em incluindo a decadência de 10 anos no do benefício previdenciário sujeita-se ao
julgamento realizado em 27/2/2019, que caput do art. 103 da Lei n. 8.213/1991, prazo decadencial de 10 anos previsto
o termo inicial do pedido de revisão da ocorreu justamente em virtude do eleva- no art. 103, caput, da Lei n. 8.213/1991,
pensão por morte derivada mediante a do número de ações ajuizadas para tra- aplicando-se esse prazo inclusive aos be-
revisão do cálculo da renda mensal inicial tar da revisão de benefícios previdenciá- nefícios anteriores à Medida Provisória
da aposentadoria originária, é a conces- rios com base no Índice de Reajuste do n. 1.523/1997, hipótese em que a con-
são dessa aposentadoria4. Salário Mínimo – IRSM de fevereiro de tagem do prazo deve iniciar-se em 1º de

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 7-15, jan./jul. 2020


Roberto Luis Luchi Demo

agosto de 1997. Como exemplo recente, a assim chamada “re- cas e atuariais, variáveis em cada momento histórico. Desde a
visão da vida toda” foi placitada pelo STJ que firmou, em julga- pirâmide etária e o nível de poupança privada praticado pelo
mento realizado no dia 17/12/2019, a seguinte tese de recurso conjunto de cidadãos até a conjuntura macroeconômica, com
repetitivo: Aplica-se a regra definitiva prevista no art. 29, I e seu impacto sobre os níveis de emprego e renda.
II, da Lei n. 8.213/1991, na apuração do salário de benefício, 8. Isso faz com que a definição concreta do sistema de pre-
quando mais favorável do que a regra de transição contida no vidência precise equacionar interesses por vezes conflitantes:
art. 3º da Lei n. 9.876/1999, aos segurados que ingressaram dos trabalhadores ativos e dos segurados, dos contribuintes
no Regime Geral da Previdência Social até o dia anterior à abastados e das pessoas mais humildes, da geração atual e
publicação da Lei n. 9.876/1999 (Tema 999/STJ). Esta revisão das futuras. Em linha de princípio, a tarefa de realizar esse
sujeita-se ao prazo decadencial de 10 anos5. complexo equilíbrio situa-se na esfera de conformação do le-
gislador, subordinando-se à decisão política das maiorias par-
4 A REVISÃO DE ASPECTOS FÁTICOS DO ATO DE CONCESSÃO lamentares. Somente haverá invalidade se a escolha legislativa
QUE REPERCUTEM NO CÁLCULO DA RENDA MENSAL desrespeitar o núcleo essencial do direito em questão. Resta
INICIAL DO BENEFÍCIO saber se a instituição do prazo ora analisado e a sua incidên-
Diversos fatos da vida contributiva do segurado são anali- cia sobre os benefícios já concedidos incorreu ou não nesse
sados e considerados no ato de concessão do benefício previ- tipo de vício.
denciário para efeito de cálculo da renda mensal inicial. Assim, 9. Entendo que a resposta é negativa. No tocante ao direito
neste tópico será analisada a revisão desses aspectos fáticos que à obtenção de benefício previdenciário, a disciplina legislativa
repercutem na graduação econômica do benefício, ilustrativa- não introduziu prazo algum. Vale dizer: o direito fundamental
mente: [I] a revisão de determinados períodos que não foram ao benefício previdenciário pode ser exercido a qualquer tempo,
considerados como atividade especial na concessão da aposen- sem que se atribua qualquer consequência negativa à inércia do
tadoria por tempo de serviço/contribuição, pleiteando, assim, o beneficiário. Esse ponto é reconhecido de forma expressa no art.
reconhecimento desse período com majoração da renda men- 102, § 1°, da Lei n. 8.213/1991, bem como em diversas passa-
sal inicial da aposentadoria, a conversão de uma aposentadoria gens em que a referida lei apenas dispõe que o atraso na apre-
por tempo de serviço/contribuição proporcional em aposenta- sentação do requerimento fará com que o benefício seja devido
doria integral ou, até mesmo, em aposentadoria especial; e [II] a a contar do pedido, sem efeito retroativo. Nesse sentido, perma-
inclusão de períodos de atividade rural ou de atividade urbana necem perfeitamente aplicáveis as Súmulas n. 443/STF 5 e 85/
10 não considerados no ato de concessão. STJ, na medida em que registram a imprescritibilidade do fundo
de direito do benefício não requerido.
Diversos fatos da vida contributiva do segurado 10. A decadência instituída pela MP n. 1.523-9/1997 atinge
são analisados e considerados no ato de apenas a pretensão de rever benefício previdenciário. Em ou-
tras palavras: a pretensão de discutir a graduação econômica
concessão do benefício previdenciário para do benefício já concedido. Como é natural, a instituição de um
efeito de cálculo da renda mensal inicial. limite temporal máximo destina-se a resguardar a segurança
jurídica, facilitando a previsão do custo global das prestações
Como já salientado, a alteração legislativa levada a efeito devidas. Em rigor, essa é uma exigência relacionada à manu-
pela MP n. 1.523-9/1997, incluindo a decadência de 10 anos tenção do equilíbrio atuarial do sistema previdenciário, propó-
no caput do art. 103 da Lei n. 8.213/1991, ocorreu justamente sito que tem motivado sucessivas emendas constitucionais e
em virtude do elevado número de ações ajuizadas para analisar medidas legislativas. Em última análise, é desse equilíbrio que
a revisão de benefícios previdenciários com base no IRSM de depende a continuidade da própria Previdência, não apenas
fevereiro de 1994. Ou seja, discutia-se o critério do cálculo. Em para a geração atual, mas também para as que se seguirão.8
virtude disso, houve um entendimento inicial no sentido de que Nesse diapasão, infere-se que o art. 103, caput, da Lei n.
a aplicação do prazo decadencial estava limitada à revisão do 8.213/1991, na redação da Medida Provisória n. 1.523-9, de
critério de cálculo. Esse entendimento já está superado, preva- 27/6/1997, e alterações posteriores, alcança todo e qualquer as-
lecendo a jurisprudência segundo a qual o alcance do art. 103 pecto que possa alterar ou modificar a graduação econômica do
da Lei 8.213/1991 na redação da Medida Provisória n. 1.523-9, ato de concessão do benefício, incluindo destarte os aspectos fáti-
de 27/6/1997, e alterações posteriores, é amplo e não abrange cos. Assim, aplica-se a decadência em relação àquele aspecto fáti-
apenas revisão de cálculo do benefício, mas atinge o próprio ato co analisado e resolvido no processo administrativo de concessão
de concessão6, sendo que7: do benefício, ilustrativamente: [I] o segurado pleiteou o reconhe-
A propósito, é elucidativo o seguinte trecho do voto do cimento da atividade especial, juntando no requerimento admi-
Ministro Roberto Barroso na oportunidade do julgamento do nistrativo o PPP daquele período, e o INSS considerou esse perío-
Tema n. 313/STF, verbis: do como comum no ato concessório; e [II] o segurado pleiteou o
7. Cabe distinguir, porém, entre o direito ao benefício previ- reconhecimento de determinado período de atividade rural, jun-
denciário em si considerado – isto é, o denominado ‘fundo do tando documentos como ITR, declaração do sindicato rural, entre
direito’, que tem caráter fundamental – e a graduação pecuni- outros. O INSS não reconheceu esse período no ato concessório.
ária das prestações. Esse segundo aspecto é fortemente afeta- Nesses dois exemplos, a revisão destes aspectos fáticos do ato
do por um amplo conjunto de circunstâncias sociais, econômi- concessório sujeita-se ao prazo decadencial.

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Vale frisar, nesse passo, que se é Lei n. 8.213/1991. De igual modo, even- benefício, e sim a graduação econômica
tranquila a aplicação da decadência em tual omissão na análise de algum fato do benefício. Ora, como já salientado, o
relação àquele aspecto fático analisado e que repercute na graduação econômica art. 103, caput, da Lei n. 8.213/1991, na
resolvido no processo administrativo de do benefício não afeta o direito ao be- redação da Medida Provisória n. 1.523-9,
concessão do benefício, o mesmo não nefício previdenciário em si considerado, de 27/6/1997, e alterações posteriores,
se pode dizer em relação àquele aspecto nem a validade do respectivo ato de con- alcança todo e qualquer aspecto da gra-
fático não submetido ao INSS por oca- cessão, que continua sendo qualificado duação econômica do ato de concessão
sião do requerimento administrativo e como ato jurídico perfeito e acabado, por do benefício. Logo, o fato não apreciado
que, por isso, sequer foi analisado no ato isso que incide a decadência também pelo INSS no ato de concessão sujeita-se
de concessão. Essa questão está sendo nesse caso. E, a despeito de essa omis- ao prazo decadencial.
discutida pelo STJ no Tema n. 975 dos são não configurar, ainda, lesão a direito 3 – Por aplicação do princípio da
recursos repetitivos, verbis: questão ati- do segurado, pois essa questão sequer isonomia. Deveras, nos termos do art.
nente à incidência do prazo decaden- foi submetida ao INSS no requerimento 103-A, da Lei n. 8.213/1991, O direito
cial sobre o direito de revisão do ato administrativo, é importante lembrar que da Previdência Social de anular os atos
de concessão de benefício previdenciá- a incidência da decadência não é regida administrativos de que decorram efeitos
rio do regime geral (art. 103 da Lei n. pelo princípio da actio nata nem exige favoráveis para os seus beneficiários de-
8.213/1991), nas hipóteses em que o prévia lesão a direito do segurado, de cai em dez anos, contados da data em
ato administrativo da autarquia previ- modo que não tem por finalidade limi- que foram praticados, salvo compro-
denciária não apreciou o mérito do ob- tar o controle da legalidade do ato, e sim vada má-fé. Portanto, a administração
jeto da revisão. limitar qualquer discussão em torno do previdenciária tem 10 anos para revisar
Sobre esse assunto, atualmente pre- próprio ato de concessão, resguardando o ato de concessão do benefício, incluin-
valece o entendimento jurisprudencial no o princípio da segurança jurídica. do, então, a possibilidade de considerar
sentido de que o prazo decadencial não
poderia alcançar questões que não foram [...] o direito potestativo de o segurado trazer fato novo
aventadas na ocasião do deferimento do a fim de revisar o ato de concessão não pode ser exercido
benefício e que não foram objeto de apre-
ciação pela Administração9. Esse entendi- a qualquer tempo, de forma que também deve se
mento, a meu ver, não deve prevalecer, submeter ao limite temporal da decadência. 11
pelas razões exponho em seguida.
2 – A jurisprudência entende que fato não analisado naquela oportunidade
4.1 ANÁLISE DA QUESTÃO SUBMETIDA A o fato não levado ao conhecimento do e eventualmente levado ao conhecimen-
JULGAMENTO NO TEMA N. 975/STJ INSS e, por isso, não analisado no reque- to da administração em momento poste-
O prazo decadencial alcança as ques- rimento administrativo, não afeta o direito rior, por exemplo, em virtude de procedi-
tões não apreciadas pela Administração fundamental ao benefício que, por esse mento de controle realizado no âmbito
no ato de concessão do benefício, pelos motivo, pode ser concedido desde aque- do Tribunal de Contas da União ou da
seguintes fundamentos: le requerimento administrativo mediante Controladoria Geral da União, de denún-
1 – O prazo previsto no art. 103, análise do fato novo trazido extempora- cia anônima ou de investigação levada a
caput, da Lei n. 8.213/1991 é decaden- neamente. Com efeito, o STJ já assentou efeito pela Polícia Federal em algumas
cial por expressa disposição da lei e, que a comprovação extemporânea da operações, tanto assim que essa revisão
como se sabe, a decadência pressupõe situação jurídica consolidada em mo- pode culminar, inclusive, com o cancela-
tão somente o aperfeiçoamento do ato mento anterior não tem o condão de mento do benefício. Por conseguinte, o
jurídico que funciona como seu suporte afastar o direito adquirido do segurado, segurado também deve ter 10 anos para
fático de incidência, no caso, a concessão impondo-se o reconhecimento do direito revisar o ato de concessão mediante a in-
do benefício previdenciário. Ora, even- ao benefício previdenciário no momento vocação de fato não levado ao conheci-
tual erro material ou critério equivocado do requerimento administrativo, quan- mento do INSS e, por isso, não analisado
no cálculo da renda mensal inicial, bem do preenchidos os requisitos para a con- no requerimento administrativo.
assim eventual análise equivocada de al- cessão da aposentadoria10. Do mesmo 4 – A ratio essendi da decadência é
gum aspecto fático, embora caracterizem modo, a TNU já assentou que: Quando o a necessidade de estabilização das rela-
em tese lesão a direito do segurado que segurado houver preenchido os requisi- ções jurídicas, seja a favor do segurado,
repercute na graduação econômica do tos legais para concessão da aposenta- seja a favor do INSS, a fim de dotar o
benefício, não afetam o direito ao be- doria por tempo de serviço na data do sistema previdenciário de segurança ju-
nefício previdenciário em si considera- requerimento administrativo, esta data rídica e previsibilidade, evitando descom-
do, nem a validade do respectivo ato de será o termo inicial da concessão do be- passo nas contas da previdência social e
concessão, que continua sendo qualifica- nefício (Súmula n. 33/TNU). Dentro des- o desequilíbrio financeiro e atuarial. Por
do como ato jurídico perfeito e acabado. sa perspectiva, conclui-se que o fato não conseguinte, o direito potestativo de o
Portanto, essas circunstâncias não impe- apreciado pelo INSS no ato de concessão segurado trazer fato novo a fim de re-
dem a incidência do art. 103, caput, da não compõe o direito fundamental ao visar o ato de concessão não pode ser

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exercido a qualquer tempo, de forma que também deve se sub- 5 A REVISÃO DA RENDA MENSAL DO BENEFÍCIO
meter ao limite temporal da decadência. A propósito, registro o Nos tópicos anteriores, foi analisada a revisão do ato de con-
seguinte trecho do voto do Ministro Roberto Barroso na oportu- cessão do benefício. Pois bem. Uma vez concedido o benefício,
nidade do julgamento do Tema n. 313/STF, verbis: inicia-se a fase de manutenção, com o pagamento da respectiva
É legítimo que o Estado-legislador, ao fazer a ponderação renda mensal que somente se encerra com o cancelamento ou
entre os valores da justiça e da segurança jurídica, procure im- cessação do benefício, a ser analisado no tópico seguinte. A ma-
pedir que situações geradoras de instabilidade social e litígios nutenção do benefício inclui diversas atividades posteriores ao ato
possam se eternizar. Especificamente na matéria aqui versada, de concessão como, por exemplo, a reversão de cotas da pen-
não é desejável que o ato administrativo de concessão de um são aos demais pensionistas, prevista no art. 77, § 1º, da Lei n.
benefício previdenciário possa ficar indefinidamente sujeito à 8.213/1991. Entretanto, um dos aspectos mais importantes é o
discussão, prejudicando a previsibilidade do sistema como um reajuste dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanen-
todo. Esse ponto justifica um comentário adicional. te, o valor real. Nessa perspectiva, o art. 41-A da Lei n. 8.213/1991
12. O Regime Geral de Previdência Social é um sistema de estabelece que O valor dos benefícios em manutenção será re-
seguro na modalidade de repartição simples, a significar que ajustado, anualmente, na mesma data do reajuste do salário
todas as despesas são diluídas entre os segurados. Não se tra- mínimo, pro rata, de acordo com suas respectivas datas de início
ta, portanto, de um conjunto de contas puramente individuais, ou do último reajustamento, com base no Índice Nacional de
e sim de um sistema fortemente baseado na solidariedade. Preços ao Consumidor – INPC, apurado pela Fundação Instituto
Isso aumenta a interdependência entre os envolvidos. Diante Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
disso, há maior razão para a estipulação de um prazo razoável O prazo decadencial de 10 anos estabelecido no art. 103,
para a revisão de atos de concessão, conciliando os interesses caput, da Lei n. 8.213/1991, na redação da Medida Provisória n.
individuais com o imperativo de manutenção do equilíbrio fi- 1.523-9, de 27/6/1997, e alterações posteriores, não alcançava
nanceiro e atuarial do sistema. 11 essas questões referentes à manutenção do benefício previden-
ciário. Desse modo, a revisão dos índices de reajuste anual do
[...] o benefício em manutenção tem o seu fim benefício previdenciário não se submetia à decadência, mas tão
com o respectivo cancelamento ou cessação. somente à prescrição quinquenal das parcelas vencidas, prevista
no art. 103, parágrafo único, da Lei n. 8.213/1991.
[...] a cessação ocorre no curso natural do
Outro exemplo que repercutiu no valor da renda mensal
12 benefício e o cancelamento decorre dos benefícios em manutenção, sem configurar tecnicamente
de uma situação atípica. um reajuste, foi a aplicação dos limites máximos para o valor
dos benefícios, conhecidos como “tetos”, estabelecidos pelas
Esses os fundamentos por que entendo que a revisão do Emendas Constitucionais n. 20/1998 e n. 41/2003. A propósito,
ato de concessão mediante a invocação de fato não levado o STF já fixou tese de repercussão geral no sentido de que Não
ao conhecimento do INSS e, por esse motivo, não analisa- ofende o ato jurídico perfeito a aplicação imediata do art. 14
do no requerimento administrativo, sujeita-se ao prazo deca- da Emenda Constitucional n. 20/1998 e do art. 5º da Emenda
dencial de 10 anos estabelecido no art. 103, caput, da Lei n. Constitucional n. 41/2003 aos benefícios previdenciários limita-
8.213/1991, na redação da Medida Provisória n. 1.523-9, de dos a teto do regime geral de previdência estabelecido antes
27/6/1997, e alterações posteriores. E importante registrar que da vigência dessas normas, de modo a que passem a observar
esse entendimento se aplica também ao fato superveniente, o novo teto constitucional (Tema n. 76/STF). Desse modo, essa
como, por exemplo, o reconhecimento de vínculo empregatí- revisão do valor mensal do benefício previdenciário não se sub-
cio ou de acréscimo na remuneração em decorrência de ação metia à decadência, mas tão somente à prescrição quinquenal
trabalhista transitada em julgado depois da concessão do be- das parcelas vencidas.
nefício. Isso porque esse fato superveniente não afeta o direito Sucede que Medida Provisória n. 871, de 18/1/2019, deu
ao benefício previdenciário em si considerado nem a validade nova redação ao caput do art. 103, da Lei n. 8.213/1991, que
do respectivo ato de concessão, que continua sendo qualifica- passou a estabelecer que O prazo de decadência do direito ou
do como ato jurídico perfeito e acabado, repercutindo somen- da ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de
te na graduação econômica do benefício, o que não impede a concessão, indeferimento, cancelamento ou cessação de be-
incidência do prazo decadencial. nefício e do ato de deferimento, indeferimento ou não con-
Nesse passo, saliento que a atual jurisprudência é no senti- cessão de revisão de benefício é de 10 (dez) anos, contado:
do de que, na hipótese de existir reclamação trabalhista em que I – do dia primeiro do mês subsequente ao do recebimento
há o reconhecimento de vínculo empregatício ou de acréscimo da primeira prestação ou da data em que a prestação deve-
na remuneração, o prazo de decadência do direito à revisão do ria ter sido paga com o valor revisto; ou II – do dia em que o
ato de concessão do benefício flui a partir do trânsito da senten- segurado tomar conhecimento da decisão de indeferimento,
ça trabalhista12. Destarte, na linha do que foi exposto, há neces- cancelamento ou cessação do seu pedido de benefício ou da
sidade de alterar esse entendimento a fim de que o prazo de decisão de deferimento ou indeferimento de revisão de bene-
decadência do direito à revisão se inicie a partir da concessão fício, no âmbito administrativo. Essa medida provisória foi con-
do benefício previdenciário e não a partir do trânsito em julgado vertida na Lei n. 13.846/2019, mantendo-se a mesma redação
da sentença trabalhista. desta norma legal.

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Essa nova regra jurídica trata expres- fundo de direito em matéria previdenci- qual seja, não incidia a prescrição quin-
samente de “deferimento, indeferimento ária, a jurisprudência dominante sempre quenal do direito de questionar judicial-
ou não concessão de revisão de benefí- entendeu que, efetuado o requerimento mente aquele cancelamento ou cessação
cio”. Por conseguinte, o art. 103, caput, do benefício e ocorrendo o indeferimento administrativos, mas operava a prescrição
na redação da Medida Provisória n. 871, na via administrativa, não se aplicava o art. quinquenal sobre as parcelas devidas.
de 18/1/2019, alcança os atos adminis- 1º do Decreto n. 20.910/1932, ocorrendo Sobre o assunto: Não ocorre prescrição
trativos da fase de manutenção do be- somente a prescrição quinquenal das par- do fundo de direito quando, entre o can-
nefício, como os mencionados ante- celas vencidas, prevista no art. 103, pará- celamento administrativo do auxílio-do-
riormente. E aqui é importante ressaltar grafo único, da Lei n. 8.213/1991. Sobre o ença e o ajuizamento da ação, decorrem
que a incidência desse prazo decaden- assunto: Nas relações jurídicas de trato su- mais de 5 anos (Tema n. 57/TNU).
cial prescinde de um ato comissivo do cessivo, em que a Fazenda Pública figure Cumpre salientar, nesse passo, que
INSS. Em outras palavras, atos comissivos como devedora, somente prescrevem as vinha ganhando força a orientação ju-
como o indeferimento de uma revisão prestações vencidas antes do quinquênio risprudencial capitaneada pela 2ª Turma
pleiteada pelo segurado, o deferimen- anterior à propositura da ação (Súmula do STJ no sentido de que, nos casos de
to parcial de uma revisão pleiteada pelo 163/ex-TFR) e Nas relações jurídicas de indeferimento e cancelamento ou ces-
segurado e a efetivação/deferimento de trato sucessivo em que a Fazenda Pública sação de benefício, seria sim aplicável
maneira equivocada de uma revisão efe- figure como devedora, quando não tiver o prazo prescricional de 5 anos previsto
tivada por força da lei (por exemplo, o re- sido negado o próprio direito reclamado, no art. 1º do Decreto n. 20.910/193213.
ajuste anual mediante a aplicação de um a prescrição atinge apenas as prestações Porém, prevalecia na jurisprudência o
índice diverso do devido) atraem o prazo vencidas antes do quinquênio anterior à entendimento segundo o qual é inaplicá-
decadencial. Mas também atrai o prazo propositura da ação (Súmula n. 85/STJ). vel o art. 1º do Decreto n. 20.910/1932,
decadencial a “não concessão de revisão
de benefício”, vale dizer, a omissão do Às vezes, esses pleitos são formulados pelos próprios
INSS em efetivar uma revisão, a exemplo beneficiários, a fim de receberem a gratificação natalina
do caso dos referidos tetos, até porque
a norma legal prevê expressamente essa que é paga aos benefícios previdenciários, mas não é
omissão como suporte de incidência do paga aos benefícios assistenciais.
prazo decadencial. 13
Portanto, o art. art. 103, caput, na Por sua vez, o benefício em manu- em matéria previdenciária. Do mesmo
redação da Medida Provisória n. 871, tenção tem o seu fim com o respectivo modo, prevalecia na jurisprudência o en-
de 18/1/2019, convertida na Lei n. cancelamento ou cessação. Ambos os tendimento de que Não incide o prazo
13.846/2019, alcança todos os fatos que conceitos são bastante próximos e até decadencial previsto no art. 103, caput,
repercutem na graduação econômica do mesmo se confundem, mas, em linhas da Lei n. 8.213/1991, nos casos de inde-
benefício após sua concessão, vale dizer, gerais, pode-se distingui-los dizendo que ferimento e cessação de benefícios, bem
na fase de manutenção. Nesse contexto, a a cessação ocorre no curso natural do como em relação às questões não apre-
revisão dos fatos supervenientes referentes benefício e o cancelamento decorre de ciadas pela Administração no ato da
à manutenção do benefício sujeita-se ao uma situação atípica. Por exemplo, tem- concessão (Súmula n. 81/TNU). Ou seja,
prazo decadencial de 10 anos, aplicando- -se hipótese de cessação de benefício o estado de arte da jurisprudência previ-
-se esse prazo inclusive aos benefícios ante- quando o pensionista filho completa 21 denciária não reconhecia a aplicação da
riores à Medida Provisória n. 871/2019, hi- anos de idade ou quando o beneficiário prescrição do fundo de direito nem da
pótese em que a contagem do prazo deve de auxílio-doença recupera a capacida- decadência aos casos de indeferimento e
iniciar-se no dia primeiro do mês subse- de para o trabalho, pois essas situações cancelamento ou cessação de benefício.
quente à data em que a prestação deveria são normais a esses benefícios. Agora, Sobreveio então a Medida Provisória
ter sido paga com o valor revisto, ou seja, tem-se cancelamento da aposentado- n. 871, de 18/1/2019, que deu nova
em 1º de março de 2019. ria por invalidez quando o beneficiário redação ao caput do art. 103 da Lei
retorna voluntariamente a sua ativida- 8.213/1991, passando a estabelecer que:
6 O INDEFERIMENTO E O CANCELAMENTO de, conforme previsto no art. 46, da Lei O prazo de decadência do direito ou da
OU CESSAÇÃO DE BENEFÍCIO n. 8.213/1991, pois o retorno à ativida- ação do segurado ou beneficiário para
Como já salientado, o direito ao be- de não é algo normal na perspectiva da a revisão do ato de concessão, indefe-
nefício previdenciário constitui direito aposentadoria por invalidez. Também se rimento, cancelamento ou cessação de
fundamental e, uma vez implementados tem hipótese de cancelamento quando o benefício e do ato de deferimento, inde-
os pressupostos de sua aquisição, não INSS verifica que um benefício foi conce- ferimento ou não concessão de revisão
pode ser afetado pelo decurso do tempo. dido mediante fraude. de benefício, é de 10 (dez) anos. Essa
Partindo dessa premissa, qual seja, de que Nesses casos de cancelamento ou medida provisória foi convertida na Lei
o fundo de direito ao benefício previden- cessação de benefício previdenciário, apli- n. 13.846/2019, mantendo-se a mesma
ciário não pode ser afetado pelo decurso cava-se o mesmo entendimento já men- redação desta norma legal. Essa novel
do tempo, isto é, não há prescrição do cionado para a hipótese de indeferimento, regra jurídica fala expressamente em “in-

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deferimento, cancelamento ou cessação de benefício. Por con- previsto no caput do artigo 103 da Lei n. 8.213/1991 à preten-
seguinte, o art. 103, caput, na redação da Medida Provisória n. são do segurado em reconhecer direito adquirido ao benefício
871, de 18/1/2019, alcança os atos administrativos de indeferi- previdenciário mais vantajoso (Tema n. 966/STJ).
mento e cancelamento de benefício previdenciário, que passam Pode ocorrer também que um segurado, em gozo de
a se submeter ao prazo decadencial. auxílio-doença ou auxílio-acidente, pleiteie a concessão de
Nesse contexto, infere-se que, quando sobreveio essa al- aposentadoria por invalidez desde a data da concessão da-
teração normativa, o estado de arte da jurisprudência previ- queles benefícios, alegando que, naquela data, já estava in-
denciária não reconhecia a aplicação da prescrição prevista no capaz de forma total e permanente. Nesse caso, a conces-
art. 1º do Decreto n. 20.910/1932 nem da decadência prevista são de aposentadoria por invalidez é mais vantajosa, pois
no art. 103, caput, da Lei n. 8.213/1991 aos casos de indefe- a renda mensal inicial corresponde a 100% do salário de
rimento e cancelamento ou cessação de benefício. Por esse benefício, enquanto o auxílio-doença e o auxílio-acidente
motivo, o legislador optou pela inclusão desses atos adminis- correspondem a 91% e 50% do salário de benefício, respec-
trativos no alcance da decadência prevista no art. 103, caput, tivamente. Outrossim, esse pleito caracteriza revisão do ato
da Lei n. 8.213/1991, o que, por força do critério da especia- de concessão e, portanto, sujeita-se ao prazo decadencial
lidade segundo o qual a norma específica derroga a norma previsto no caput do art. 103 da Lei n. 8.213/1991.
geral (lex specialis derrogat generali), afasta a aplicação da Ainda, com certa frequência na prática previdenciária,
prescrição prevista no art. 1º do Decreto n. 20.910/1932. Em acontece um beneficiário que recebe benefício assistencial de
outras palavras, o legislador positivou de maneira reflexa a prestação continuada ao idoso pretender a concessão de uma
jurisprudência previdenciária segundo a qual não se aplica a aposentadoria rural por idade, bem como um beneficiário que
prescrição do fundo de direito nos casos de indeferimento e recebe benefício assistencial ao portador de deficiência pre-
cancelamento ou cessação de benefício. tender aposentadoria por invalidez. Às vezes, esses pleitos são
Portanto, o art. art. 103, caput, na redação da Medida formulados pelos próprios beneficiários, a fim de receberem
Provisória n. 871, de 18/1/2019, convertida na Lei n. a gratificação natalina que é paga aos benefícios previdenciá-
13.846/2019, alcança todos os atos de indeferimento e cancela- rios, mas não é paga aos benefícios assistenciais. Entretanto,
mento ou cessação de benefício, os quais sujeitam-se ao prazo na maior parte das vezes, esses pleitos são formulados pelos
decadencial de 10 anos ali previsto, aplicando-se esse prazo, dependentes, após o óbito do beneficiário, que então plei-
inclusive, aos indeferimentos, cancelamentos e cessações an- teiam a conversão do benefício assistencial em benefício pre-
14 teriores à Medida Provisória n. 871/2019, hipótese em que a videnciário para gerar pensão por morte.
contagem do prazo deve iniciar-se a partir de sua vigência, qual Nesses casos, a concessão de benefício previdenciário é
seja, 18/1/2019. Agora, é bom enfatizar que o direito ao bene- mais vantajosa, de forma que o pleito caracteriza revisão do
fício indeferido, cancelado ou cessado não está abrangido pela ato de concessão do benefício assistencial. Ocorre que a Lei n.
decadência, na medida em que representa direito fundamen- 8.742/1993, que regulamenta o benefício assistencial de presta-
tal indisponível, ou seja, a decadência opera sobre o direito de ção continuada, não estabelece prazo decadencial para revisão
questionar aquele determinado indeferimento, cancelamento do ato concessório. Ademais, não é possível aplicar a decadên-
ou cessação do benefício, e não sobre o direito ao benefício es- cia do art. 103, caput, da Lei n. 8.213/1991. Com efeito, no âm-
pecificamente, que poderá ser requerido novamente. bito da seguridade social, previdência social e assistência social
são coisas distintas. Assim, por se tratar de regra jurídica afeta
7 A CONCESSÃO DE BENEFÍCIO MAIS VANTAJOSO aos benefícios previdenciários e que restringe direito, não admi-
Neste tópico são abordadas aquelas situações em que o se- te interpretação ampliativa para alcançar benefícios assistenciais.
gurado já recebe um benefício previdenciário, mas entende ter Logo, nessas hipóteses, não há de se falar em decadência, de
direito a outro benefício previdenciário mais vantajoso, direito maneira que pode ser pleiteada, a qualquer tempo, a revisão
este adquirido antes da concessão do benefício que recebe e do benefício assistencial para efeito de concessão de benefício
pleiteia destarte a alteração do benefício em manutenção. previdenciário que, por constituir um direito fundamental, não
Isso acontece quando um segurado pleiteia uma aposenta- pode ser afetado pelo decurso do tempo.
doria mais vantajosa, cujo direito fora adquirido antes da apo-
sentadoria concedida administrativamente. Nesse caso, a juris- 8 EPÍLOGO
prudência já assentou que se aplica a decadência prevista no Para concluir, infere-se que o instituto da decadência no
art. 103, caput, da Lei n. 8.213/1991, na redação da Medida direito previdenciário foi incluído por intermédio da Medida
Provisória n. 1.523-9, de 27/6/1997, e alterações posteriores. Provisória n. 1.523, de 28/ 6/1997, que deu nova redação ao
Com efeito, o STF fixou a seguinte tese de repercussão geral: art. 103 da Lei n. 8.213/1991, para alcançar o direito potestativo
Para o cálculo da renda mensal inicial, cumpre observar o qua- ou faculdade jurídica de o segurado revisar o ato de concessão
dro mais favorável ao beneficiário, pouco importando o deces- de benefício previdenciário, sem afetar contudo o direito funda-
so remuneratório ocorrido em data posterior ao implemento mental ao benefício. Como todo instituto novo, seu amadure-
das condições legais para a aposentadoria, respeitadas a de- cimento demanda tempo, de forma que seus contornos ainda
cadência do direito à revisão e a prescrição quanto às presta- não estão completamente definidos, especialmente na jurispru-
ções vencidas (Tema n. 334/STF). Do mesmo modo, o STJ fixou dência, que debate, por exemplo, o alcance da decadência so-
a seguinte tese de recurso repetitivo: incide o prazo decadencial bre atos não analisados no ato de concessão.

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Roberto Luis Luchi Demo

PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/6/2013, Dje decadência: teoria geral do direito civil. 4. ed. Rio de
Outrossim, a decadência foi sig- de 30/8/2013). Janeiro: Forense, 1982.
nificativamente alterada pela Medida 2 STJ, AIEDRESP 1462222, SÉRGIO KUKINA, CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João
Provisória n. 871, de 18/1/2019, conver- PRIMEIRA TURMA, DJE de 18/11/2019. Batista. Manual de direito previdenciário. 20. ed. Rio
3 Sobre o assunto: O direito fundamental a be- de Janeiro: Forense, 2017.
tida na Lei n. 13.846/2019 para alcançar nefícios previdenciários não é atingido pela DEMO, Roberto Luis Luchi. Jurisprudência previ-
também a revisão de ato administrativo prescrição de fundo de direito, sendo objeto denciária. São Paulo: LTr, 2003.
relacionado ao indeferimento, à manu- de relação de trato sucessivo e de natureza IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de direito previ-
alimentar, incidindo a prescrição somente so- denciário. 3. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2003.
tenção, ao cancelamento e à cessação KERTZMAN, Ivan. Curso prático de direito previden-
bre as parcelas vencidas antes do quinquênio
de benefício previdenciário. Essa novida- anterior à propositura da ação (STJ, AIRESP ciário. 17. ed. Salvador: Juspodivm, 2019.
de legislativa, de um lado, positivou de 1794622, REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA LEAL, Antônio Luiz da Câmara. Da prescrição e
TURMA, DJE de 14/8/2019). da decadência: teoria geral do direito civil. 4. ed.
maneira reflexa a jurisprudência segun-
4 STJ, EREsp 1605554/PR, Rel. p/ Acórdão atual. pelo juiz José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro:
do a qual não se aplicava a prescrição do Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, PRIMEIRA Forense, 1982. p. 105.
fundo de direito, estabelecida no art. 1º SEÇÃO, julgado em 27/2/2019, DJe de PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito
do Decreto n. 20.910/1932, em matéria 2/8/2019. civil. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. v. 1.
5 Inclusive, o acórdão é expresso nesse sentido.
previdenciária. De outro, trouxe ao siste- Confira-se: Desse modo, impõe-se reconhe-
ma previdenciário mais segurança jurídi- cer a possibilidade de aplicação da regra Artigo recebido em 6/3/2020.
ca, impedindo a eternização de algumas definitiva prevista no art. 29, I e II da Lei n. Artigo aprovado em 3/5/2020.
8.213/1991, na apuração do salário de bene-
demandas, o que é bastante alvissareiro, fício, quando se revelar mais favorável do que
ainda mais quando se considera a neces- a regra de transição contida no art. 3º da Lei
sidade de evitar o descompasso nas con- n. 9.876/1999, respeitados os prazos prescri-
cionais e decadenciais. (STJ, RESP 1596203,
tas da previdência social e o desequilíbrio NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA
financeiro e atuarial. SEÇÃO, DJE de 17/12/2019)
A sobredita Medida Provisória n. 6 STJ, AgRg no REsp 1.308.683/RS, Rel.
Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA
871, de 18/1/2019, convertida na Lei n. TURMA, DJe de 19/12/2012.
13.846/2019, foi editada no bojo das mi- 7 STJ, EDcl no REsp 1429312/SC, Rel. Ministro
nirreformas da previdência que, assim MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA
TURMA, DJe de 3/9/2015.
como as sucessivas reformas da previ-
8 STF, RE 626489, Relator(a): Ministro
dência veiculadas por emendas consti- ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado
tucionais, reduzem os limites e as pos- em 16/10/2013, DJe de 23/9/2014. 15
sibilidades da cobertura previdenciária 9 STJ, AgRg no REsp 1.407.710/PR, Segunda
Turma, Relator Ministro Herman Benjamin,
ao segurado, merecendo, então, severas DJe de 22/5/2014.
críticas. Entretanto, na perspectiva da de- 10 STJ, Incidente de uniformização de jurispru-
cadência, a alteração normativa merece dência, PET 9.582/RS, Ministro Napoleão
Nunes Maia Filho, Primeira Seção, DJe de
elogios, pois, na prática previdenciária, 16/9/2015.
havia situações absurdas de revisão de 11 STF, RE 626489, Relator(a): Min. ROBERTO
benefício concedido, em manutenção, BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em
16/10/2013, Dje de 23/9/2014.
indeferido, cancelado ou cessado há dé- 12 STJ, REsp 1759178/SP, Rel. Ministro HERMAN
cadas, o que agredia de maneira chapa- BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em
da o princípio da segurança jurídica. 18/9/2018, DJe de 12/3/2019.
13 Nessa linha: PROCESSUAL CIVIL E
PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO INTERNO.
REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO DE
NOTAS BENEFÍCIO. INDEFERIMENTO. MARCO
1 A propósito, confira-se o seguinte trecho do INICIAL PARA A CONTAGEM DO
voto do Ministro Herman Benjamin: Apesar de PRAZO PRESCRICIONAL QUINQUENAL.
toda a jurisprudência referente à restituição PRECEDENTES. 1. O STJ possui o entendimen-
de valores pagos a servidores ter evoluído, os to consolidado de que, ajuizada a ação de
julgados aplicados aos casos de benefícios restabelecimento de auxílio-doença há mais
previdenciários ficaram estáticos na exclusi- de cinco anos da data do ato que indeferiu o
va fundamentação em torno do princípio da benefício, deve ser reconhecida a prescrição
irrepetibilidade dos alimentos, olvidando a da pretensão, ressalvando a possibilidade de
evolução pretoriana que passou a considerar, o beneficiário pleitear novo benefício, pois
em situação análoga concernente à verba ali- não há prescrição do fundo de direito rela-
mentar, a boa-fé objetiva. Vale dizer: relevar tivo à obtenção de benefício previdenciário.
a percepção, por parte do titular, da defini- 2. Agravo interno não provido. (STJ, AgInt no
tividade do recebimento da parcela alimen- REsp 1587498/PB, Rel. Ministro HUMBERTO
tar paga. Se a teoria da irrepetibilidade dos MARTINS, Rel. p/ Acórdão Ministro HERMAN
alimentos fosse suficiente para fundamentar BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em
a não devolução dos valores indevidamente 3/4/2018, DJe de 2/8/2019).
recebidos, ela seria o embasamento exclusi-
vo para todos os casos de servidor público,
Roberto Luis Luchi Demo é Juiz Federal
pois nessas hipóteses também se trata de
verbas alimentares. (voto no REsp 1384418/ REFERÊNCIAS em Salvador e Presidente da Terceira
SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, STJ – CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da prescrição e da Turma Recursal da Bahia.

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S O C I O L O GIA DO DIREIT O
Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

16
A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS OBSERVADA
A PARTIR DA TEORIA DOS SISTEMAS DE
NIKLAS LUHMANN: breves considerações
THE CORONAVIRUS PANDEMIC FROM THE STANDPOINT OF NIKLAS
LUHMANN’S SYSTEMS THEORY: brief considerations
Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

RESUMO ABSTRACT
Tece considerações acerca da pandemia provocada pelo novo This report looks into the new coronavirus pandemic, in the
coronavírus à luz da teoria da evolução social proposta por light of Niklas Luhmann’s societal evolution theory, relating
Niklas Luhmann, relacionando-a com o conceito de “terceiro it to the concept of the “third party’s exclusion”
excluído” da observação. from observation.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Sociologia do Direito; pandemia; evolução social; Teoria dos Legal Sociology; pandemic; societal evolution; Systems
Sistemas; ponto cego. Theory; blind spot.

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Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

1 INTRODUÇÃO ferencial e autopoiético, e que se diferencia cada vez mais em


O texto tem como problema de pesquisa o aspecto de subsistemas sociais no afã de lidar (ou gerenciar) com o aumen-
como observar a pandemia provocada pelo coronavírus à luz do to de complexidade social (quer quantitativamente, quer qua-
conceito da teoria sistêmica de Niklas Luhmann? Essa questão, litativamente), então, forçoso será reconhecer que a evolução
uma vez bem delimitada, coloca-nos diante da seguinte pos- social pressupõe a estabilidade dinâmica do sistema social. E
siblidade de hipótese: a pandemia, observada à luz da teoria por estabilidade dinâmica leia-se: a capacidade do sistema social
dos sistemas, segundo Luhmann, é, a um só tempo, uma im- de preservar a sua estabilidade em meio à mudança. Em suma,
probabilidade que se fez possível, como quer a sua teoria da estabilidade na mudança.
evolução social, como também uma complexidade do ambiente Em outras palavras, a evolução social parte do pressuposto
social que precisará ser reduzida pelo sistema social e os seus de que se há estabilização, ou re-estabilização, é porque houve
subsistemas, como, por exemplo, o da saúde com o seu código inicialmente uma variação. Logo, é possível retirar disso uma
binário saudável/doente. primeira lição interessante em termos de evolução social: a evo-
Diante dessa hipótese, o objetivo de tal artigo é observar a lução é a capacidade do sistema social de fazer do improvável
pandemia do coronavírus a partir do dicionário semântico da algo possível. Um bom exemplo disso é o que pode ser obser-
teoria dos sistemas proposta por Niklas Luhmann e defendida vado, por exemplo, na descoberta da penicilina em meio a mi-
por Günther Teubner e Raffaele De Giorgi. Essa observação pos- lhões de mortes provocadas pela tuberculose.
sivelmente nos convidará a novas observações ainda mais com- Ora, e na atual circunstância, o que isso implica dizer?
plexas, as quais passam a ser objetivos específicos do texto que Simples. A primeira conclusão que se pode obter é que a pan-
agora se oferece. demia provocada pelo coronavírus é, sim, uma variação social,
Observações complexas, que podem aqui serem reduzidas ou seja, é, sim, a produção de elementos sociais, de distinções,
a pelo menos dois aspectos: a) a pandemia e a teoria da evo- de alternativas que, diante da contingência do futuro e da inexis- 17
lução social em Niklas Luhmann; b) a pandemia e o “terceiro tência de certezas, se apresentam como novidade.
excluído” da observação, segundo Luhmann1. Mas há uma segunda conclusão. Qual? A evolução social se
Colocadas as coisas de tal maneira, este artigo irá propor dá de modo circular, porque a cadeia recíproca de implicações
como uma de suas conclusões que se observe a pandemia do que a compreende dobra-se sobre ela própria. Por isso é que
coronavírus como uma variante ou uma variação, como quer Luhmann (2016a, p. 325) afirma categoricamente que toda va-
Niklas Luhmann (2018, p. 26), própria do processo de evolução riação depende de uma estabilização anterior. E é por isso que o
social. Sendo conveniente lembrar que por evolução social não sociólogo alemão prefere o termo “reestabilização”.
se deve entender ou a ele associar qualquer ideia que reme- Contudo, antes que se tirem dessas palavras conclusões
ta ou seja vinculada à noção de progresso, como bem adverte precipitadas ou equivocadas, convêm alguns esclarecimentos.
Marcelo Neves (2006, p. 3). O primeiro: não se está afirmando aqui que a evolução social se
dá por meio de ciclos. Pelo contrário, ela se processa por meio
2 A PANDEMIA E A EVOLUÇÃO SOCIAL, CONFORME NIKLAS de uma sequência temporal desconhecida ou cega (não há cer-
LUHMANN teza ou causalidade, em termos de evolução social, porque os
A pandemia do coronavírus se é, por um ângulo de obser- sistemas evoluem às cegas e de maneira incontrolável: alteram
vação, uma irritação ao subsistema social da saúde, não deixa de a si mesmos a partir de suas próprias operações). Segundo: não
ser, por isso, ao mesmo tempo, uma variação que faz parte do se sugere por meio do emprego da palavra evolução a adoção
processo de evolução social, entendido este último como quer de noções como progresso ou desenvolvimento, como acima já
Luhmann (2016a, p. 319-323). tinha sido alertado.
A evolução social, como afirma Luhmann (2016a, p. 324), Feitos tais esclarecimentos, percebe-se, pois, que a evo-
é o processo (de diferenciação social) que contém em si três lução social está lastreada, para Luhmann (2016a, p. 327),
etapas necessariamente entrelaçadas, a saber: a variação (al- em um paradoxo. E qual seria ele? O aumento de comple-
guns autores associam essa ideia ao termo “mutação”, próprio xidade é condição de redução da complexidade. E o inverso
do campo da genética, com o que autores como, por exemplo, também é verdade. A redução da complexidade implica au-
Marcelo Neves [2006, p. 7] não concordam), a seleção e a es- mento de complexidade. Se é assim, como podemos enten-
tabilização. Processo esse que não cessa de acontecer na socie- der, então, a partir deste ponto de observação, a pandemia
dade. O que nos permite concluir que a cada nova estabilização provocada pelo novo coronavírus?
do sistema social se sucederá uma nova variação ainda mais A primeira lição que podemos depreender é: para lidar com
complexa a ser reduzida. o aumento de complexidade provocado pela pandemia, o siste-
Dito de outro modo, se a sociedade é um sistema autorre- ma social e todos os seus subsistemas entre eles, o da saúde e o

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Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

da economia – terão de incrementar as suas próprias complexi- seja, saia da pandemia como um novo subsistema social de
dades para terem a capacidade de reduzir a complexidade pro- saúde de modo a que tenha maior capacidade de resistir tem-
vocada pela pandemia decorrente do novo coronavírus. E qual poralmente. Em termos práticos, afirmar isso significa dizer, por
é a segunda lição? A de que, uma vez que os subsistemas so- exemplo, que será preciso passar a existir um comitê interna-
ciais tenham a capacidade de reduzir a complexidade provoca- cional vinculado às Nações Unidas de modo a gerenciar novas
da pela pandemia, essa circunstância provocará um aumento de e futuras pandemias com o intuito de mantê-las sob controle.
complexidade do ambiente social, o que implica dizer que no- Mas essa estabilização ou reestabilização impedirá uma
vas variações sociais (não necessariamente novas pandemias), nova variação? Impedirá, por exemplo, uma nova pandemia?
ainda mais complexas, poderão advir a partir desse ponto. Mal Não. Mas, por favor, não se apresse a fazer a partir desse ponto
comparando, e nos valendo de analogia, apenas para fins didá- qualquer juízo de valor ou moral. Não se precipite em dizer que
ticos, o que se quer dizer é que, para cada novo antibiótico, há se a evolução social é assim, a estabilização do sistema social
sempre a possibilidade de uma nova superbactéria. é algo ruim, porque enseja uma nova variação. Essa não é a
Antes de avançarmos um pouco mais no raciocínio, é con- observação que Luhmann desenvolve sobre a evolução. Afinal,
veniente destacar algo que já foi dito aqui, mas que pode ter não cabe julgar a evolução, mas, sim, e antes de mais nada, ex-
passado desapercebido. E o que é? A ideia de que os sistemas plicá-la e compreendê-la.
evoluem às cegas e, sobretudo, de que tal evolução se dá quan- Pois bem, se tudo está bem explicado, forçoso é admitir
do ele, o sistema social, altera a si mesmo a partir de suas pró- que o raciocínio aqui desenvolvido terá sérias implicações para
prias operações, como ensina Luhmann (2016b, p. 496-499). a denominada “sociologia da crise”. E por quê? Porque coloca-
Ora, e o que isso quer dizer? Que variações, como, por exem- das as ideias de tal forma, esvazia-se o conteúdo do conceito
plo, a pandemia provocada pelo coronavírus, não são criadas de “crise”. Em outras palavras, a pandemia não é uma crise, a
a partir de fora da sociedade, mas pela e para a sociedade. sociedade não está em crise, se há uma crise talvez ela seja a
Trocando em miúdos, a pandemia é produto da sociedade, vol- das teorias que não conseguem explicar o que se passa na so-
tado para sociedade e que desencadeia nela, na sociedade, uma ciedade. E mais, isso que chamamos de evolução social implica
série de consequências imprevisíveis. aceitar a regularidade da incerteza. É dizer que a evolução social
Postas as coisas de tal maneira, se a pandemia, como aqui tem como principal característica a incerteza. E implica, ainda, a
sustentamos, é uma variação e, portanto, parte processo de di- hipótese paradoxal anteriormente mencionada, qual seja, a de
ferenciação que caracteriza a evolução social, isso implica di- que o aumento da complexidade é condição de existência da
18 zer que a partir da multiplicidade de possibilidades que ela, redução e vice-versa.
enquanto variação, acarreta, faz surgir de modo necessário sele-
ções. Isso mesmo, a variação impõe uma necessidade. E ela, a 3 A PANDEMIA E O “TERCEIRO EXCLUÍDO” DA OBSERVAÇÃO,
necessidade, impulsiona uma seleção. SEGUNDO LUHMANN
Feitas tais considerações acerca da pandemia sob o ponto
A pandemia do coronavírus se é, por um de vista da evolução social, convém que, agora, ela seja obser-
ângulo de observação, uma irritação ao vada a partir de uma outra perspectiva também com base na
obra de Luhmann: a do “terceiro excluído”. E o que significa
subsistema social da saúde, não deixa de ser,
essa ideia de “terceiro excluído”? Que toda observação tem um
por isso, ao mesmo tempo, uma variação que “ponto cego”, ou seja, todo conhecimento que se produza so-
faz parte do processo de evolução social [...] bre algo, necessariamente, apresenta sempre um ponto cego.
Mas antes de explorarmos essa ideia, aplicá-la à pandemia
Seleções são estruturas redutoras da complexidade a níveis e observar as suas possíveis consequências, faz-se necessário
capazes de proporcionar operações. Em outras palavras, sele- dedicar antes alguma atenção à questão da autofundação do
ções são estruturas inventadas pelo sistema social para conferir sistema. E por quê? Porque estas temáticas – terceiro excluído
a ele a capacidade de reduzir a complexidade a níveis capazes e autofundação do sistema – estão umbilicalmente atreladas no
de proporcionar operações, ou seja, a níveis capazes de manter pensamento de Luhmann. Sendo assim, para melhor compre-
o sistema social em funcionamento. Vale aqui o antigo provér- ender como o sociólogo alemão chega à ideia de ponto cego da
bio, a necessidade é a mãe de todas as invenções. observação, é oportuno explicar, ainda que perfunctoriamente,
Mas uma vez feita a escolha e as inovações a ela relaciona- a noção de autofundação do sistema.
das (a seleção), o que em termos da pandemia do coronavírus Pois bem, se é assim, o primeiro passo é advertir que
significa dizer, por exemplo, uma vez que surja uma nova vacina Luhmann toma como dicotomia básica de sua teoria sobre a
ou um novo medicamento retroviral, essa circunstância, preci- sociedade a diferença sistema/ambiente. Ao operar e manter
sará ser estabilizada pelo sistema social de modo a gerar uma ativo os dois lados da distinção sistema/ambiente, o modelo
identidade – e, por conseguinte, uma diferença – capaz de re- luhmaniano trabalha sempre com duas alternativas. Como uma
sistir temporalmente. parte não existe somente per se, mas depende da indicação si-
E então, novamente, pensando-se na pandemia provocada multânea da outra, a forma (como quer George Spencer Brown
pelo novo coronavírus, isso acarreta dizer que não basta uma [19692]) não pode estabelecer sua própria unidade. Não existe,
nova vacina. Será preciso que o subsistema social da saúde, segundo Luhmann, fundamento superior à distinção sistema/
para permanecer no exemplo, gere uma nova identidade, ou ambiente. Como distinção, pode referir-se somente aos dois

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Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

lados separados. Isso implica dizer que nica, da qual ele é descendente. cações, quando o assunto é a pandemia
a construção é paradoxal3. Traduzindo, Postas as coisas de tal modo, é possí- provocada pelo novo coronavírus.
para fixar a unidade de cada uma das vel, então, inferir-se que a unidade da dis- Mas as subnotificações não são um
partes, a forma deve ser uma diferença. tinção é a margem de latência da própria erro. Elas são algo próprio de qualquer
A adoção desta lógica gerou, por sua vez, distinção. E o que é a margem de latência observação, na medida em que expri-
duas importantes aquisições ao pensa- de toda distinção? O que, a partir dela, da mem o ponto cego da observação. Logo,
mento sistêmico. distinção, não pode ser observável. Isso o que pode oscilar é a maior ou menor
A primeira é a inexistência de uma uni- Luhmann denomina como “ponto cego” subnotificação de qualquer observação,
dade fundamento para toda teoria, uma da observação, é o “terceiro excluído” de mas nunca será possível uma observa-
vez que não existe unidade sem distinção uma distinção. Ele será observável, será in- ção plena, sem que nenhum terceiro seja
(1995, p. 176-187). Afinal, como quer o cluído como distinção, e se fixará como uni- excluído da operação de observar.
primeiro paradoxo proposto pelo autor: dade identificável somente quando se dife- Disso resulta que se todo subsistema
toda identidade pressupõe uma diferen- renciar. Obviamente, porém, quando ele social ao observar o seu ambiente possui
ça. Dito de outro modo, toda observação se diferenciar, no mesmo momento, outro um ponto cego, seja lá qual for o subsis-
toma como pressuposto uma distinção. E ponto cego surgirá e outro terceiro será ex- tema que estejamos falando (de saúde,
deste paradoxo, por sua vez, depreender cluído. Esta perspectiva rompe radicalmen- direito, economia, dentre outros), então,
outro: o sistema deve distinguir-se do am- te com a ideia de fontes e fundamentos, tão todo subsistema sempre estará sujeito à
biente para fixar sua identidade. Logo, o valiosa ao pensamento clássico. irritações provocadas pelo seu ambiente,
ambiente é produto do sistema.
Bem, se é assim, cada unidade for- [...] é possível estabelecer a unidade de uma dada forma, mas
mada é pressuposto de existência de ou- esta somente será definida como tal na medida em que se
tra diferença. As distinções são, então,
produzidas ad infinitum. Em outras pala- diferenciar de qualquer outra coisa, criando uma nova forma.
vras, é possível estabelecer a unidade de Esse processo é ininterrupto.
uma dada forma, mas esta somente será
definida como tal na medida em que Para Luhmann, portanto, os fun- o que, por sua vez, dará ensejo a um au-
se diferenciar de qualquer outra coisa, damentos estão na latência, no fato de mento de complexidade desse subsiste-
criando uma nova forma. Esse processo não serem vistos e, como são pressu- ma. Esse aumento de complexidade do 19
é ininterrupto. postos de diferenças, também são de subsistema, do ponto de vista interno, ou
Pense, por exemplo, na distinção ho- si mesmos. Conclusão: os fundamentos seja, observado o subsistema social por
mem/mulher. Poder-se-ia afirmar que a autofundam-se. Ou, como ensina Cirne- dentro, resulta ou da irritação provocada
unidade dessa distinção é o ser humano. Lima, o que é chamado pelo nome de pelo ambiente social, ou de um acopla-
Este, contudo, não é observável por meio fundamento é uma causa sui, ou seja, mento estrutural entre um subsistema
da respectiva distinção: podem ser vistos uma causa de si mesmo (CIRNE-LIMA, com outro.
somente o homem ou a mulher. Se é as- 2003, p. 17-56). Percebe-se, assim, que Ora, se é assim, é possível inferir que
sim, como ver o ser humano? Por meio Luhmann criou um modelo de análise a pandemia provocada pelo novo coro-
de outra distinção: ser humano/animal. A onde não existem limites na produção de navírus ensejará, a curto ou longo prazo,
unidade dessa nova diferença, por exem- diferenças, pois nunca restará um único uma série de incrementos de complexi-
plo, será ser o conceito de ser vivo4. fundamento. Por esse motivo, Raffaele dade, tanto no subsistema social da saú-
Mas ela, por sua vez, para ser obser- De Giorgi (1995, p. 20) afirma que os de, como no da economia, por exemplo.
vada, remeterá a uma outra distinção e sistemas (subsistemas sociais) não pos- Ou seja, assim como no subsistema da
assim por diante, até que cheguemos suem início nem fim. saúde, novos testes ou exames tendem
à distinção mais abstrata e abrangente Colocadas as circunstâncias de tal a ser desenvolvidos ou aprimorados no
de todas, segundo Luhmann, a distin- modo, é possível agora, então, utilizar-se curto prazo, novos mecanismos de con-
ção sistema/ambiente. Mas e a distinção deste dicionário semântico luhmaniano e trole e de notificação de epidemias e de
sistema/ambiente? ela pressupõe uma de suas considerações sobre o conceito pandemias tendem a ser melhorados
unidade que lhe seja anterior? A solu- de ponto cego para supor algumas pos- nos próximos anos. O que, assim, pode
ção de luhmaniana é, então, no míni- sibilidades de conclusão no que tange à propiciar o aumento da população mun-
mo criativa (GONÇALVES; VILLAS BÔAS pandemia provocada pelo novo corona- dial e a expansão das grandes cidades ou
FILHO, 2013, p. 48): a unidade da distin- vírus. A primeira dessas conclusões, sem centros urbanos.
ção sistema/ambiente é o mundo e este dúvida, é a de constatar que a diferença Esse aumento da população mun-
é o horizonte de todas as possibilidades saudável/doente que caracteriza o sub- dial, por sua vez, pode aumentar a
(LUHMANN; DE GIORGI, 1995, p. 45- sistema social da saúde, sim, pressupõe pressão sobre o desmatamento das
54). O que, em nosso sentir, terminar por um terceiro que lhe é excluído, o que grandes florestas, a ampliação da pro-
lançar Luhmann em um paradoxo com nos permite depreender, então, como dução de animais para abate, o consu-
a sua afirmação inicial, mas, ao mesmo primeira consequência de raciocínio que, mo de animais selvagens para fins de
tempo, reaproximá-lo da tradição platô- sim, há um grande número de subnotifi- alimentação e, desse modo, ensejar o

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 16-21, jan./jul. 2020


Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

aparecimento de um novo vírus e, com ele, a possibilidade uma falta, mas algo inerente à toda e qualquer observação;
de uma nova pandemia. O que, mais uma vez, demonstra j) o ponto cego da observação é, também, a um só tempo,
que o raciocínio luhmaniano parece ser o mais adequado o que explica o incremento complexidade do sistema social e
para compreender a dinâmica da sociedade moderna e da de seus subsistemas;
pandemia que nela ocorre. k) a descoberta de uma vacina tende a provocar um au-
Mas, para voltarmos à ideia de ponto cego inerente a toda e mento da população mundial e, com isso, ensejar, no médio
qualquer observação, é preciso dizer que essa cadeia de aconte- prazo, o aparecimento de um novo vírus, decorrente, por exem-
cimentos acima descrita – vacina, vida normal, aumento da po- plo, do aumento da pressão pelo consumo de animais;
pulação, desmatamento, consumo de animais, novo vírus – não l) o que chamamos de verdade é, de fato, o ponto cego, de
é uma necessidade, é uma probabilidade. Lembremos, uma vez toda observação.
mais, que a evolução, como alega Luhmann, também é cega.
Não há nada que a guie ou a conduza. Para ficarmos com o
vocabulário do autor, não há um programador externo à socie- NOTAS
dade, planejando e determinando tudo que nela acontecerá. 1 Um terceiro objetivo também poderia ser explorado neste artigo, a sa-
ber: a pandemia como uma irritação do ambiente social que ensejará um
E disso podemos extrair mais uma lição importante: em aumento de complexidade de alguns subsistemas sociais, dentre eles,
tempos de sociedade complexa, não há uma observação privi- o da saúde (o que não impede a observação, em um futuro artigo, dos
legiada, quando todas têm um ponto cego. Dito de outro modo, respetivos aumentos de complexidade que a pandemia acarretará nos
subsistemas do direito, da política e da economia). Contudo, em face da
não há um dono da verdade. A verdade, ela mesma, é a uni- exiguidade do tempo para fins de fechamento da edição da obra coletiva
dade da diferença que não pode ser observada pela diferença. na qual ele será publicado, optou-se aqui por deixar esse desdobramento
Em outras palavras, o que chamamos de verdade é, de fato, o para uma futura publicação.
2 Ver: Schiltz e Verschaegen (2002, p. 55-78).
ponto cego de toda observação. E nisso reside o potencial de- 3 Essa ideia, a de que a racionalidade se manifesta por meio de paradoxos,
mocrático, inclusivo e interdisciplinar da teoria dos sistemas de muito bem explorada por Luhmann, já se encontra presente entre os sete
Niklas Luhmann, na medida em que ela nos convida a observar princípios propostos pelo filósofo egípcio Hermes Trimegistus e que estão
lançados na obra Caiballion. Para ser mais exato, o filósofo egípcio da anti-
a sociedade a partir da complementariedade das diferentes ob- guidade denomina tal ideia como o princípio da polaridade ou dualidade.
servações. Bem-vindo à sociedade moderna! Contudo, para ele, essa ideia não implica a negação da unidade, antes o
oposto. É dizer, para Hermes Trimegistus, e também para Platão, influen-
ciado por ele, a dualidade parte da unidade. Nas palavras de Pitágoras,
4 CONCLUSÃO
referindo-se à filosofia da matemática, o 2 deriva do 1. Platão (1999, p.
20 A partir do que foi dito, depreende-se, então, as seguintes 225-256) também toma como pressuposto a opinião de que a dualidade
conclusões: deriva da unidade e ele a desenvolve ao tratar sobre a sua dualidade bá-
a) à luz da teoria sistêmica de Niklas Luhmann, a pandemia sica – o mundo das ideias e o mundo das aparências. Um bom exemplo
disso é o “mito da caverna” por ele proposto no Livro VII, de sua obra
pode ser compreendida como uma variação da evolução social; “A República”. Se considerarmos que Luhmann foi influenciado pela obra
b) compreendida como uma variação, a pandemia poderá dar de Ludwig von Bertalanffy – Teoria Geral dos Sistemas –, e consideran-
ensejo à seleção e estabilização do sistema social como um todo; do que este último, por sua vez, foi influenciado pelo autor neoplatônico
Manibus Nicolai de Cusa Cardinalis, é estranho, ou no mínimo curioso,
c) essa circunstância, por sua vez, implicará dizer que o in- que Luhmann, apesar de descender intelectualmente de uma cadeia de
cremento de complexidade do ambiente social desencadeado autores neoplatônicos defensores da ideia de unidade, tenha ele chegado
pela pandemia dará ensejo a um aumento de complexidade à conclusão diversa. Vale ressaltar que Manibus Nicolai de Cusa Cardinalis
foi, por sua vez, muito influenciado pela obra de Barauch Spinoza. Em
nos mais variados subsistemas sociais, em especial, nos da saú- especial, pela obra “Ética” (SPINOZA, 2011). Sobre a cadeia de autores
de, economia e direito; neoplatônicos e a sua influência sobre o pensamento de Niklas Luhmann,
d) esse incremento de complexidade por parte dos subsis- consulte-se: Cirne-Lima (2003, p. 17-56).
4 Percebe o que Luhmann quer dizer? Percebe como, para que se faça uma
temas sociais, entendido como resultado da seleção e estabiliza- afirmação qualquer, é indispensável uma distinção que lhe seja subjacen-
ção deles, poderá, por seu turno, dar lugar a uma nova variação te? Isto é, quando digo: “o Brasil é um país da América do Sul”. Essa afir-
social ainda mais complexa; mação, para ser feita, pressupõe uma distinção. Por exemplo, a distinção
Brasil/Peru, ou a distinção continente/país, ou, ainda, a distinção América/
e) essa nova variação pode ser uma nova pandemia no fu- América do Sul.
turo próximo, mas não necessariamente, podendo ser, no lugar
disso, qualquer outra possibilidade de variação social;
f) não se deve entender evolução social como sinônimo de
progresso ou desenvolvimento, porque ela se dá de forma cega, REFERÊNCIAS
segundo Luhmann; CIRNE-LIMA, Carlos. Causalidade e auto-organização. In: CIRNE-LIMA, Carlos;
ROHDEN, Luiz. Dialética e auto-organização. São Leopoldo, RS: Editora da
g) o incremento de complexidade que os subsistemas so- Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2003.
ciais irão experimentar por força da pandemia provocada pelo GONÇALVES, Guilherme Leite; VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Teoria dos sistemas
novo coronavírus serão os mais diversificados possíveis, como, sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013.
LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Raffaele. Teoria della società. 7. ed. Milano:
por exemplo, a criação de um comitê internacional junto à Franco Angeli, 1995.
Organização das Nações Unidas para monitorar a possibilidade LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. Tradução: Saulo Krieger. São Paulo:
de uma nova pandemia; Martins Fontes, 2016a.
LUHMANN, Niklas. Sistemas sociais: esboço de uma teoria geral. Tradução:
h) toda observação tem um ponto cego; Antônio C. Luz Costa; Roberto Dutra Torres Júnior; Marco Antônio dos Santos
i) as subnotificações, que estão ocorrendo ao longo da pan- Casanova. Petrópolis-RJ: Vozes, 2016b.
demia provocada pelo novo coronavírus, não são um erro ou LUHMANN, Niklas. Teoria dos sistemas na prática: v. I, estrutura social e semân-

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 16-21, jan./jul. 2020


Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo

tica. Tradução: Patrícia da Silva Santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.


NEVES, Marcelo. Entre Themis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado
Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. São Paulo:
Editora Martins Fontes, 2006.
PLATÃO. A república. Tradução: Enrico Corvisieri. São Paulo: Editora Nova
Cultural, 1999.
SCHILTZ, Michael; VERSCHRAEGEN, Gert. Spencer-Brown, Luhmann and auto-
logy. Cybernetics & Human Knowing, v. 9, n.3-4, p. 55-78, 2002.
SPINOZA, Brauch. Ética. 2. ed. Tradução: Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Editora
Autêntica, 2011.

Artigo recebido em 18/5/2020.


Artigo aprovado em 19/6/2020.

21

Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo é analista do


Seguro Social, doutorando em Direito e professor adjunto da
Universidade Federal da Bahia.

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D I R E I TO C O N ST IT UC IO N AL
Valerio de Oliveira Mazzuoli • Hugo Abas Frazão

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PAPEL DO FEDERALISMO EM SITUAÇÕES DE


CRISE: o caso da pandemia da Covid-19
THE ROLE OF FEDERALISM IN CRISIS SITUATIONS: the Covid-19 pandemic
Valerio de Oliveira Mazzuoli
Hugo Abas Frazão

RESUMO ABSTRACT
O artigo explora como o conceito de federalismo tem sido res- This paper discusses how the concept of federalism has been
significado para auxiliar os países no enfrentamento da pande- reviewed, in order to assist countries in tackling the pandemic.
mia. Apresenta o federalismo como princípio de calibração que It presents federalism as a regulating principle aimed to
se destina a integrar, dinamicamente, os centros de poder do dynamically integrate the State power centers in situation of
Estado em face de emergências. Reflete acerca do papel dos emergencies. It considers the role of the constitutional courts
Tribunais Constitucionais na tutela do federalismo e na gover- in the protection of federalism and in the governance of
nabilidade dos Estados democráticos. democratic States.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Direito Constitucional; crises; federalismo; centros de poder; go- Constitutional Law; crisis; federalism; power centers;
vernabilidade; Tribunal Constitucional. governance; constitutional court.

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1 INTRODUÇÃO Por outro lado, os governadores regionais – sobretudo da


O mundo experimenta, desde janeiro de 2020, a pandemia Lombardia, onde possivelmente surgiu o “paciente zero” da Itália
do novo coronavírus (Covid-19) e sua amplíssima disseminação, – também poderiam ter fechado suas zonas vermelhas de infec-
capaz de causar insuficiência respiratória grave em milhares de ção logo no início do contágio, dispensando que medidas sanitá-
pessoas ao redor da Terra, gerando consequências gravíssimas rias mais duras fossem tomadas em seguida. Contudo, a falta do
a vários Estados. Por consequência, os governos de quase todos apoio do governo central – que ainda resistia em aceitar a des-
os países já sentem fortes reflexos negativos em seus territórios, centralização das ações como uma alternativa útil – fez com que
com perda de milhares de vidas humanas, colapso dos sistemas os acontecimentos na Itália se tornassem um verdadeiro drama.
de saúde pública e desastres econômicos incalculáveis. Esse quadro demonstra o quanto é difícil para a ordem
A partir de então, o mundo vê-se forçado a se adaptar à constitucional lidar com acontecimentos extraordinários ou im-
nova realidade cada vez mais urgente no combate a esse inimi- previstos. Ainda que, em um mundo ideal, a Constituição escrita
go oculto, transmissível de pessoa a pessoa. Uma dessas “adap- seja a resposta para todas as dificuldades sociais, quando novos
tações” atinge, evidentemente, o universo do Direito, que agora riscos surgem, a impressão sempre existente é a de que as re-
se vê obrigado a encontrar soluções prementes para a gerência gras em vigor não servem ou são insuficientes para enfrentá-las.
desse problema sanitário global sem precedentes. Assim, as situações de crise – como a pandemia da Covid-19
Um dos aspectos jurídicos envolvidos nesse cenário de – desafiam o Direito a acompanhar a realidade, legitimando o
“reinvenção do Estado” para a gestão de crises liga-se ao tema Estado a encontrar soluções baseadas na necessidade de fato.
do federalismo. Contudo, tal ligação dá-se mais no sentido práti- Nesse contexto, é premente que se analise como o fede-
co (de facto) em termos teóricos no que tange ao instituto, pois ralismo pode servir como um princípio de calibração que inte-
auxilia na experiência de enfrentamento da situação posta aos gre, dinamicamente, os centros de poder do Estado em face de
Estados pela pandemia da Covid-19. emergências, sem que isso signifique desviar-se da democracia. 23
Questiona-se, em suma, como o federalismo pode lidar com Não é, portanto, o caso de discutir se a federação é, formalmen-
situações de crise e quais as diferenças de parâmetro existentes te, o melhor modelo para reagir a novos riscos, senão saber se,
em alguns modelos de gestão compartilhada de competências na prática, mesmo Estados não-federais – como é o caso da
constitucionais. O modelo brasileiro teria a ensinar a outros mo- Itália – podem se servir do princípio federativo para variar a sua
delos (v.g., o italiano) sobre a gestão de crises em casos tais? estratégia de governo, alternando entre abordagens centraliza-
Esse é o ponto central que se pretende investigar neste ensaio. das e descentralizadas, a depender das necessidades reclama-
das por cada aspecto da crise.
2 A “QUESTÃO ITALIANA” NA COVID-19
No início da pandemia da Covid-19, quando a primeira evi- [...] a falta do apoio do governo central – que
dência do contágio alcançou a região da Lombardia, a demora do ainda resistia em aceitar a descentralização das
Estado italiano em adotar uma estratégia de prevenção sanitária
ações como uma alternativa útil – fez com que
fez com que, em pouco tempo, o seu território se transformasse
no epicentro da infecção viral no mundo. Nascia, naquele mo- os acontecimentos na Itália se tornassem um
mento, uma “questão italiana”, que tomaria interesse da socieda- verdadeiro drama.
de internacional, em especial pelas consequências negativas no
âmbito de enfrentamento da crise. De fato, ainda levará algum As emergências costumam desafiar os agentes políticos ao
tempo para que todas as causas que resultaram nesse erro políti- exercício dos poderes necessários para o controle da crise, mas
co sejam identificadas, mas já é possível afirmar que, dentre elas, sempre respeitando o regulamento da Constituição. É nesse mo-
uma das mais importantes seja a falta de coordenação e orienta- mento que a distribuição de tarefas entre centros de poder mos-
ção entre os diversos centros de poder – governos central, regio- tra-se útil para preservar o entendimento político em torno dos
nal e local – no controle desse severo surto epidêmico. princípios fundamentais e para a reação coordenada do Estado
Inicialmente, a decretação do estado de emergência pelo em diferentes frentes, tais como a nacional, a regional e a local.
Primeiro-Ministro da Itália, em 31 de janeiro de 2020, não veio Apesar de a Itália não ser propriamente uma federação,
acompanhada de qualquer ordem que evitasse a aglomera- mas sim um Estado unitário, examinar sua experiência a partir
ção de pessoas, o que poderia ter impedido inúmeras mortes. das lentes do federalismo ganha relevo à medida que a própria
Entretanto, naquele momento, o chefe do governo central italia- Constituição italiana reconhece a autonomia dos entes menores
no nem imaginava a dimensão do problema de saúde coletiva, – regiões e municípios – para o desenvolvimento de políticas
nem contava com o apoio das regiões para agir, desde já, de públicas de acordo com os princípios constitucionais. Assim, o
forma tão restritiva. federalismo pode-se valer da experiência “não-federal” italiana

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para ampliar a sua própria capacidade de auxiliar Estados nacio- mãos do governante central. É o que está acontecendo, de
nais em situações de crise, sobretudo sanitárias. fato, na Hungria, onde o Primeiro-Ministro Victor Orban assu-
O Brasil – que é um Estado formalmente federal – não tem miu os plenos poderes de governo e, ainda, determinou a sus-
respeitado a distribuição equitativa de poder entre seus entes pensão do parlamento pelo tempo da pandemia1. Quem ima-
subnacionais, não obstante o Supremo Tribunal Federal ter ado- gine ser essa uma saída para a crise não pode esquecer que,
tado relevantes posicionamentos no sentido de afirmar o prin- na Alemanha Nazista, a utilização da proposta de legitimação
cípio federalista na prática do Estado, especialmente, durante do poder schmittiana levou o Führer a romper com o Estado
esse momento de crise pandêmica. Daí a razão de a análise que liberal, e a sua ideologia se sobrepôs ao império do Direito
se vai empreender também refletir qual o papel dos tribunais (DYZENHAUS, 2020).
constitucionais na tutela do federalismo e na governabilidade Nesse sentido, pode-se dizer que o federalismo se encon-
das democracias contemporâneas. tra sob estresse, talvez há muito, mas sobretudo durante a cri-
Se o exemplo italiano não está apto a ser seguido, tanto se. Por exemplo, no Brasil, embora o art. 1° da Constituição
à luz da má gestão do controle pandêmico quanto à guisa de Federal defina o Estado como uma federação simétrica formada
equívocos estruturantes, certo é que poderá o nosso modelo pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
tanto colaborar para o enfrentamento da crise em outros países Federal, observa-se um crescente movimento de centralização
quanto ter seus contornos melhor definidos com o auxílio das do poder na esfera federal. Com efeito, tudo o que se busque
decisões judiciárias, em particular da Suprema Corte. fazer no País acaba dependendo do orçamento da União e/ou
de legislação editada pelo Congresso Nacional. Isso confirma a
3 O FEDERALISMO SOB ESTRESSE visão de que, aos entes menores, é cada vez mais difícil decidir
Situações de crise causam enorme impacto sobre a forma as políticas públicas que lhes concerne.
de Estado. No entanto, não significa necessariamente um pro- Trata-se de um cenário de desequilíbrio federativo que se
blema, dado que possibilita aos Estados testarem seus modelos encontra ainda mais exposto neste momento, com o gover-
de “descentralização territorial” e aprender a transformar as di- no federal tentando assumir a gestão exclusiva de combate à
ficuldades em oportunidades. Isso também implica o aprimo- Covid-19. As evidências são claras. Primeiro, a União trava uma
ramento da ideia de “competências compartilhadas” (adminis- guerra de braço com Estados e Municípios para definir quem
trativas ou legislativas) entre os entes que compõem a divisão pode estabelecer as medidas sanitárias mais rigorosas. Além
político-administrativa do Estado. Uma reflexão atenta sobre o disso, o Presidente da República criou um comitê de crise para
24 papel do federalismo, à luz da atual crise, é tópico ainda pouco supervisão e monitoramento dos impactos do vírus no Brasil
discutido pelo Direito Constitucional, merecendo ser colocado (Decreto n. 10.277, de 16 de março de 2020), composto, ex-
no centro de nossa atenção. clusivamente, por órgãos federais e sem qualquer participação
de representantes de governos regionais e locais. Assim, vê-se a
[...] de acordo com o art. 77 da Constituição tentativa da União de esvaziar a atuação dos demais entes em
italiana, somente o Estado central tem relação à crise, o que não se mostra útil para afirmar a ideia de
federalismo no Brasil.
competência para emitir medidas extraordinárias
Por outro lado, tradicionalmente, a Itália adota o modelo de
que interfiram na liberdade dos cidadãos, e não Estado denominado “regionalismo” ao atribuir às suas regiões a
autoridades regionais ou locais [...] condição de entes autônomos com estatutos próprios, poderes
e funções segundo os princípios fixados na Constituição (Cf.
O federalismo é o fundamento de Estado que, possivel- arts. 114, da Constituição italiana de 1947). Ocorre que, mais
mente, mais tem sofrido impacto com a pandemia da Covid-19. recentemente, o País Europeu aprovou uma reforma constitu-
O instituto disciplina, em geral, o compartilhamento do governo cional (n. 3/2001) que altera parcialmente esse modelo, per-
entre dois ou mais centros de poder. Há países que classificam mitindo a diferenciação de autonomia entre regiões. Isto é, o
seu modelo de organização político-administrativa como fede- art. 116, § 3°, da Constituição da Itália, introduzido pela citada
ralista – é o caso do Brasil –, enquanto outros não o fazem ex- reforma, passou a facultar formas e condições particulares de
pressamente – caso da Itália –, embora atribuam a suas entida- autonomia a uma ou mais regiões, mediante a aprovação de lei
des subnacionais autonomia para a gestão de políticas públicas. nacional específica, em relação a determinadas competências
Em ambos os modelos, o federalismo está presente como uma controladas, a priori, pelo governo central (como tutela da saú-
norma substancial – não necessariamente como uma norma de, proteção civil, entre outras.).
formal – que coordena a integração do ente central com outros Não obstante o propósito principal da reforma italiana ter
centros de exercício político, os quais podem ser nominados sido o de tornar o País mais produtivo e gerencial, convém des-
Länder, Cantões, Regiões, Províncias, Entidades, Territórios, en- tacar que, até hoje, apenas as regiões da Lombardia, Veneto
tre outros (PALERMO, 2020). e Emilia-Romagna se beneficiam dessa denominada “autono-
Em situações nas quais as emergências impõem enorme mia regional diferenciada” (VIOLINI, 2018). Todas as três regi-
pressão sobre o Estado, é comum o retorno a Carl Schmitt ões são situadas ao Norte da Itália e classificadas entre as mais
(1934) – em especial à ideia constante do seu trabalho The ricas e industrializadas do País. Em contrapartida, outras regiões,
Führer is the Guardian of our Law (Der Führer schützt das especialmente as situadas ao Sul e consideradas menos desen-
Recht) – para defender a máxima centralização de poder nas volvidas, alegam que, na prática, a reforma tem acentuado a de-

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sigualdade dentro do território italiano, base em decretos não convertidos. tência para decidir o conflito de atribuições
além de criar dificuldades para a colabo- No entanto, devido à espera prolon- entre Estado central e regiões, nos termos
ração inter-regional, resultados que vão gada, governadores e prefeitos se recu- do art. 134 da Constituição3, se a questão
de encontro ao sentido de “unità nazio- saram a aguardar a iniciativa do primei- não for limitada a mero litígio patrimonial
nale” previsto pelo art. 87 c/c art. 120, § ro-ministro, alegando que, em caso de (vindicatio rerum) e afetar também os po-
2°, da Constituição italiana. emergência, a demora poderia ter causa- deres relacionados ao exercício do patri-
Diante desses contextos, entende-se do a morte de inúmeros cidadãos. mônio (vindicatio potestatis) (MALFATTI,
que as “questões federativas” relativas a No Brasil, a situação parecia bastante 2018, p. 225).
uma organização político-administrativa semelhante, uma vez que muitos gover- Na Itália, ao contrário do que ocor-
eficiente, tanto no aspecto da descentrali- nadores e prefeitos adotaram medidas de re no Brasil, praticamente toda a gestão
zação do poder quanto no aspecto da so- austeridade para combater a pandemia, da situação de pandemia é de compe-
lidariedade política, devem ser repensadas com a diferença de que, no modelo fede- tência do governo central em razão do
à medida que crescem as dificuldades de ral brasileiro, a todos os entes federativos comando expresso no art. 117, § 2°, q,
Brasil e Itália para com a atual pandemia. são asseguradas competências em relação da Constituição italiana. Tal dispositi-
às questões de saúde. Nesse sentido, a vo confia as matérias “profiláticas inter-
4 CALIBRAGEM DOS CENTROS DE PODER Constituição brasileira afirma que a com- nacionais” à incumbência exclusiva do
DO ESTADO petência comum de cuidar da saúde e as- Estado central. No entanto, a disputa
Ao se estudar a questão do fede- sistência pública [...] (art. 23, II) pertence à que envolvia autonomia regional e lo-
ralismo no combate à pandemia da União, Estados-membros, Distrito Federal cal na luta contra a Covid-19 na Itália
Covid-19, importante é referir à calibra- e municípios. Além disso, estabelece que foi parcialmente resolvida com a edição
gem dos centros de poder do Estado cabe à União, aos Estados e ao Distrito do Decreto-Lei n. 19 de 25 de março de
para a devida compreensão da matéria. Federal legislar simultaneamente sobre 2020, pelo Presidente do Conselho de
O assunto é particularmente importan- [...] proteção e defesa da saúde (art. 24, Ministros. O art. 3°, § 1º, dessa norma
te no que tange à Itália, e, nesse caso, o XII), enquanto os municípios podem inte- assegura que as regiões [...] podem in-
modelo brasileiro teria até mesmo algo a grar essa legislação de acordo com o inte- troduzir outras medidas ulteriores restri-
ensinar ao modelo italiano em questão resse local (art. 30, I). tivas, como as do art. 1°, § 2°, exclusiva-
(MAZZUOLI, 2020). No contexto brasileiro, há, portanto, mente no âmbito das atividades de sua
No que diz respeito à situação na fundamento jurídico-constitucional para competência e sem afetar as atividades 25
Itália, mesmo antes de o Presidente do que governadores e prefeitos adotem produtivas e as de relevância estratégica
Conselho de Ministros aprovar o lock- medidas de contenção da Covid-19 em para a economia nacional.
down no País, alguns governadores de desacordo com o que tem proposto o Contudo, no que se refere aos muni-
regiões já haviam fechado seus territó- governo federal. Nesse sentido, o STF re- cípios italianos, o mencionado Decreto-
rios, muitas vezes a pedido e em cola- conheceu, em 22 de abril de 2020, que o Lei não autorizou os prefeitos a adotarem
boração com os prefeitos. Portanto, um Estado-membro do Maranhão pode com- novas medidas restritivas para lidar com
vasto debate jurídico foi aberto, porque, prar respiradores hospitalares diretamente a emergência, mesmo em caso de pos-
de acordo com o art. 77 da Constituição da China, e que é incabível o confisco ou sível agravamento da situação local. Isto
italiana, somente o Estado central tem requisição administrativa desses aparelhos é, o art. 3°, § 2°, da citada norma proíbe
competência para emitir medidas extra- por parte do Presidente da República em qualquer município de impor ordens em
ordinárias que interfiram na liberdade qualquer hipótese, exceto em caso de de- desacordo com as medidas emanadas
dos cidadãos, e não autoridades regio- cretação de estado de sítio ou de defesa2, pelo Estado central. Essa regra de limita-
nais ou locais, in verbis: O governo não sob pena de afronta ao princípio federati- ção de poder, que incide sobre os entes
pode, sem delegação das câmaras [cf. vo (ACO n. 3385, de 2020). municipais, já foi aplicada em importante
art. 76], emitir decretos que tenham o Sobre essa decisão, convém desta- decisão do Conselho de Estado italiano,
valor do direito comum. Quando, em car que, apesar de o Supremo costumar que anulou uma ordem do prefeito de
casos extraordinários de necessidade e julgar-se incompetente para resolver con- Messina sobre a pandemia. O ato muni-
urgência, o governo adota, sob sua res- flitos entre União e Estado-membro cuja cipal determinava uma série de restrições
ponsabilidade, medidas provisórias com causa gire em torno de conteúdo patrimo- à entrada na Sicília através do estreito de
força de lei, deve apresentá-las no mes- nial ou de mera litigância (ACO n. 259-8, Messina, nesse caso tentando enfrentar a
mo dia para conversão às Câmaras que, de 1994 e ACO n. 1.295 AgR-segundo, de emergência de saúde em desacordo com
mesmo dissolvidas, são especificamente 2010), a discussão em concreto quanto o governo central.
convocadas e reúnem-se dentro cinco ao uso do patrimônio importou em po- O seguinte trecho da decisão do
dias [cf. arts. 61 c. 2, 62 c. 2]. tencial desestabilização da autonomia dos Conselho de Estado é particularmente
Os decretos perdem a eficácia desde entes da Federação, reclamando a atua- importante para a compreensão do fenô-
o início, se não forem convertidos em lei ção do Tribunal. Na mesma linha, a Corte meno: Portanto, a Seção destacou que,
no prazo de sessenta dias após sua publi- Constitucional italiana, em jurisprudên- na presença de emergências de nature-
cação. No entanto, as câmaras podem re- cia firmada nos anos 70 (Ordinanza n. za nacional, respeitando as autonomias
gular as relações legais que surgem com 81/1971), reconhece a sua própria compe- constitucionalmente protegidas, deve

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Valerio de Oliveira Mazzuoli • Hugo Abas Frazão

haver uma gestão unitária da crise para evitar que interven- centralizando o poder nas mãos do Presidente da República e
ções regionais ou locais possam frustrar a estratégia complexa diminuindo a importância dos outros entes da federação para
de gestão da emergência, especialmente nos casos em que lidar com a crise.
não se trata apenas de fornecer ajuda ou realizar intervenções, Mais do que isso, pode-se dizer que, diversamente da Itália,
mas também de limitar as liberdades constitucionais4. o Brasil ainda não conta com uma legislação nacional contra
No que tange às relações entre o Estado central e suas regi- a Covid-19, o que é a maior causa da atual “confusão federa-
ões, certo é que a Itália – embora não seja, formalmente, uma tiva” em relação ao tema. Com efeito, em nossa visão, a Lei n.
federação – está, de facto, se aproximando do conceito de “fe- 13.979/2020 (nem após seu texto original ter sido alterado por
deralismo cooperativo” para a proteção da saúde pública. Na medida provisória) não se presta a estabelecer regras de coo-
realidade, esse modelo de federalismo sustenta que os vários peração entre todos os entes federativos, nem cria uma gestão
níveis de governo devem agir de maneira harmoniosa e equi- verdadeiramente unitária e uniforme de combate ao vírus. Na
librada, para combater efetivamente todas as necessidades de verdade, seu propósito é tão somente disciplinar o interesse fe-
saúde, independentemente de onde venham a ocorrer. Diante deral stricto sensu, desconsiderando a importância dos demais
dessa situação, o Primeiro-Ministro e os governadores estão entes como partes da coordenação estratégica. Desse modo, o
tentando alcançar o mesmo objetivo, ou seja, o apoio mútuo e viés empregado pela citada legislação prejudica o desempenho
a redução das diferenças políticas para atender conjuntamente da política pública sanitária em território nacional. Assim, tem-se
às necessidades causadas pela pandemia, embora haja algumas uma lei federal que não é, propriamente, nacional – pois não
diferenças entre regiões, com relação à organização interna de atinge todo o País – no enfrentamento do tema.
seus serviços de saúde.
Sob esse aspecto, o problema que existe no Brasil é em tudo 5 TUTELA DO PRINCÍPIO FEDERATIVO PELOS TRIBUNAIS
semelhante. A lei federal brasileira que regula as ações contra o CONSTITUCIONAIS
novo coronavírus é a Lei n. 13.979/2020, a qual, no art. 3°, § 7°, O contexto social e político no qual as constituições contem-
destaca que medidas de isolamento social e quarentena só po- porâneas se inserem tem frustrado as expectativas mais tradicio-
dem ser impostas pelo Ministro da Saúde ou por alguém por ele nais quanto ao significado do controle das leis realizado pelos
autorizado nas hipóteses que estabelece. Também, prescreve o tribunais constitucionais. Se, em uma perspectiva dogmática, as
art. 3°, § 9° – introduzido pela Medida Provisória n. 926/2020 premissas desse tipo de controle restringem-se a conformar a
– que somente o Presidente da República poderá decidir sobre atividade do parlamento ao texto escrito da carta fundamental,
26 o funcionamento das atividades essenciais. Contudo, na prática, um viés mais zetético questiona se essa atuação restrita é sufi-
essas regras não impediram os governadores e prefeitos brasi- ciente para fazer do tribunal uma instituição genuinamente útil
leiros de estabelecerem medidas restritivas, o que, em verdade, aos desafios da realidade. Nesse sentido é que grandes nomes
está causando um enorme conflito federativo em nosso País. do constitucionalismo italiano têm-se perguntado se o papel da
Corte é proteger a Constituição de modificações tácitas ou con-
O contexto social e político no qual as tribuir para que elas aconteçam em determinações ocasiões e
constituições contemporâneas se inserem tem sob certas justificativas5.
A própria expansão do conceito de federalismo – que deixa
frustrado as expectativas mais tradicionais
de significar simplesmente uma regra de organização política-
quanto ao significado do controle das leis -administrativa para ser, também, princípio auxiliar na gestão de
realizado pelos tribunais constitucionais. crises – representa bem esse novo ambiente imposto aos tribu-
nais. A partir de instrumentos técnicos que, anteriormente, ser-
É importante observar que a lei federal brasileira conceitua viam apenas para realizar o mero juízo de conformidade entre
“isolamento” como separação de pessoas doentes ou conta- objeto (a lei) e o parâmetro (o texto da Constituição), os juízes
minadas [...] de maneira a evitar a contaminação ou a pro- passam a ser chamados ao exercício de uma mediação entre
pagação do coronavírus (art. 2º, I). Tal conceito é, como se necessidades sociais conflitantes (CAVINO et al., 2020). Assim,
nota, absolutamente restrito e dificulta o contingenciamento a Justiça Constitucional tem mudado a sua ênfase de “tutora
da Covid-19 no território brasileiro, pois exclui todas as demais da lei” para “tutora dos princípios”, não sem enfrentar certos
pessoas não infectadas da redação legal. No entanto, isso não dilemas, é certo, mas ao menos com a preocupação de melhor
tem impedido que governadores e prefeitos estabeleçam regras resolver as questões jurídicas que a pós-modernidade impõe.
mais rígidas de isolamento e que os próprios cidadãos brasilei- Em todo esse processo, como nem sempre novas ameaças
ros estejam conscientes da sua necessidade, tornando pratica- à sociedade podem ser remediadas a partir de regras já pos-
mente sem efeito a disposição da Lei n. 13.979/2020. tas, os juízes vêm revisitando as bases da Constituição (direitos
A propósito, destaque-se que a Constituição brasileira de- fundamentais, estrutura do Estado e organização dos poderes)
fine o Brasil como um Estado Federal simétrico de três níveis para obter novas propostas de solução, deduzidas, implicita-
(União, Estados Membros/Distrito Federal e municípios) com mente, desses mesmos fundamentos. Tais propostas têm como
autonomia própria para proteger a saúde dos cidadãos, de acor- razão maior o “diálogo” entre as estruturas (regras e princípios)
do com os arts. 23, 24 e 30 da mesma Lei Maior. Porém, na daquilo que se pode nominar “mosaico normativo-principio-
contramão dessa estrutura simétrica, as recentes normas edi- lógico”, formado por normas internacionais, constitucionais e
tadas pelo Parlamento Federal brasileiro estão, inegavelmente, legais. Assim, tanto as regras e princípios constitucionais de ges-

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tão compartilhada de crises (v.g., sanitá- suas competências constitucionais, ado- territorial” depende de um pedido rea-
rias) como as recomendações e decisões taram ou venham a adotar, no âmbito lizado pelo Estado central ou por uma
provenientes de órgãos internacionais de seus respectivos territórios, impor- Região em razão de um conflito de auto-
(v.g., a Organização Mundial de Saúde) tantes medidas restritivas como a im- nomia entre tais entes (art. 134, §2°, da
são importantes nesse “diálogo” entre as posição de distanciamento/isolamento Constituição). No entanto, ainda assim,
normas do mosaico normativo-principio- social, quarentena, suspensão de ativi- trata-se de um procedimento moroso e
lógico do qual o Estado é parte6. dades de ensino, restrições de comér- que, provavelmente, mesmo que aconte-
Nesse sentido, certo é que os juízes cio, atividades culturais e à circulação de ça na prática, somente será julgado após
costumam assumir uma tarefa de pre- pessoas, entre outros mecanismos reco- a pandemia.
servação do espírito constitucional em nhecidamente eficazes para a redução Portanto, entre esses dois cenários,
momentos de crise. Como explica Bruce do número de infectados e de óbitos, pensamos que, diante de situações de
Ackerman em seu mais recente livro, in- como demonstram a recomendação da crise, o melhor modelo é aquele que
titulado Revolutionary Constitutions, esse OMS (Organização Mundial de Saúde) dá ao Tribunal condições para reagir
fenômeno é mais bem observado em e vários estudos técnicos científicos [...]7. de acordo com a tempestividade recla-
constituições fundadas a partir de revolu- Perceba-se que o STF tem partici- mada pelos fatos. Não são apenas os
ções, como, por exemplo, a Constituição pado diretamente da questão da emer- poderes políticos que devem agir com
da Itália de 1947, que rompe com o fascis- gência. O ritmo das suas decisões vem maior dinamismo durante uma emer-
mo. Nessa hipótese, a partir do momento acompanhando a velocidade na qual gência, senão também o poder jurídico,
em que a geração fundadora sai de cena, surgem novos acontecimentos e riscos que deve se manifestar sempre que os
os tribunais assumem a liderança para à separação dos poderes, à convivência acontecimentos representem ameaça à
preservar os princípios revolucionários entre os entes administrativos e aos di- Constituição do Estado.
centrais. Além disso, Ackerman (2019, p. reitos fundamentais. Essa agilidade – in- A tutela do federalismo pelo Tribunal
315-318) argumenta que esses compro- comum no cotidiano de tribunais consti- Constitucional é, na prática, uma tarefa
missos fundadores são observados em di- tucionais – tem-se mostrado bastante útil que visa a auxiliar na governabilidade
ferentes países, de modo que as Cortes, para evitar que os órgãos políticos não se do Estado em situações de crise. Porém,
ao criarem jurisprudência criativa nesse desviem do objetivo de respeito aos fun- tal tutela judicial deve ser realizada com
sentido, nada mais estão fazendo do que damentos da Constituição, dentre eles o bastante cuidado, pois a função gover-
cumprindo com essa função preservacio- princípio do federalismo. nativa não cabe, a priori, aos juízes. Por 27
nista, desenvolvendo linguagens legais De outro lado, essa dinâmica do isso, eles podem, certamente, decidir mal
que são contextualmente apropriadas em Tribunal Supremo do Brasil não se as- acerca do papel do Executivo. Também
seu tempo e lugar. semelha em nada com a que é desen- preocupa o risco de a decisão judicial
volvida na Corte Constitucional da Itália. substituir o sentido público do princípio
6 A ATUAÇÃO DO STF E DA CORTE Como assinalou a Presidente da Corte por um conceito dissociado dos demais
CONSTITUCIONAL ITALIANA NA italiana – Juíza Marta Cartabia – em en- princípios constitucionais e dos com-
PRESERVAÇÃO DO EQUILÍBRIO trevista à Associazione Stampa Estera in promissos assumidos à luz do Direito
FEDERATIVO Italia, em 30 de abril de 2020, até essa Internacional dos Direitos Humanos.
No Brasil, o STF tem tomado deci- data, a Corte da Itália não havia se ma- Em suma, o objetivo da Justiça
sões importantes para a preservação do nifestado sobre os acontecimentos da Constitucional deve ser, além de resguar-
equilíbrio federativo. A primeira foi a que pandemia, notadamente porque a via de dar o Estado de Direito, o de dar aos go-
– em sede de medida liminar datada de acesso ao órgão italiano não assegura ini- vernantes as condições para o exercício
15 de abril de 2020 – assegurou que a ciativa direta a cidadãos, autoridades ou de um bom governo, com gestão res-
interpretação da legislação federal sobre instituições de natureza civil, como é usu- ponsável e eficaz de crises e que aten-
a crise sanitária no País não pode subtrair al em outros tribunais constitucionais8. da aos anseios da população em geral,
a competência para proteger a saúde pú- De fato, a via de acesso à Corte detentora das garantias internacionais,
blica incumbida a outros entes federati- Constitucional da Itália é, em princípio, constitucionais e legais assumidas for-
vos. Para a Corte, agir de maneira dife- indireta e acontece no âmbito de um malmente pelo Estado.
rente enfraqueceria o princípio federativo processo desenvolvido perante um ór-
que disciplina o Estado brasileiro (ADI n. gão judicial ordinário (juiz ou tribunal 7 OBSERVAÇÕES FINAIS
6341, de 2020). de natureza comum ou administrativa). Diante de situações de crises, o fe-
Em outra decisão, de 9 de abril de Além disso, a mesma Corte tem sua deralismo apresenta-se como um princí-
2020, o mesmo Supremo, respondendo competência restrita ao exame de leis pio jurídico capaz de guiar a atuação dos
a uma solicitação do Conselho Federal em sentido formal, o que não lhe dá po- Estados nacionais de acordo com os limi-
da OAB (ADPF n. 672, 2020), estabele- deres, por exemplo, para controlar atos tes de abrangência territorial de cada as-
ceu, no final, que não compete ao Poder administrativos que tratem de medidas pecto da crise. No aspecto estratégico, a
Executivo federal afastar, unilateralmen- sanitárias. A única via de acesso direto tomada de decisão deve ser mais centra-
te, as decisões dos governos estaduais, ao citado Tribunal italiano capaz de dis- lizada, isto é, liderada pelo chefe do go-
distrital e municipais que, no exercício de por sobre o tema da “descentralização verno nacional – Presidente da República

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para casos de grave anormalidade institucional, como guerras militares ou


ou Primeiro-Ministro, a depender do País – e baseada na obser- civis.
vação da realidade. A participação dos demais centros de poder 3 Art. 134. A Corte Constitucional delibera: [...] sobre os conflitos de atri-
– regiões e municípios – e a consulta a órgãos técnicos nacio- buições entre os poderes do Estado e sobre aqueles entre o Estado e as
Regiões, e entre as Regiões.
nais e internacionais envolvidos na emergência consistem em 4 Consiglio di Stato, sez. I, 7 Aprile 2020, n. 735 – Pres. Torsello, Est.
pressupostos à elaboração das diretrizes nacionais, e não em Carpentieri.
mera faculdade. Com efeito, embora nesse aspecto a centraliza- 5 A propósito, Cavino et al. (2020). A propósito, ver Mazzuoli (2020).
6 STF, ADPF n. 672, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Medida Cautelar, 8 de
ção seja predominante, o princípio federativo confere um inegá-
abril de 2020.
vel caráter pluralista à gestão da emergência, possibilitando que 7 Associazione Stampa Estera in Italia. L’Associazione della Stampa Estera
o governo central decida o planejamento com plena ciência de in Italia incontra la Presidente della Corte Costituzionale, Marta Cartabia.
todas as suas implicações e repercussões. In: Radio Radicale, 30 aprile 2020. Disponível em: https://www.radioradi-
cale.it/scheda/604634/lassociazione-della-stampa-estera-in-italia-incontra-
Já no aspecto ou plano das ações, deve prevalecer a atu- -la-presidente-della-corte.
ação mais descentralizada, exercida pelos diversos centros de
poder existentes. Embora se espere que as medidas colocadas
em prática pelos governos subnacionais observem as diretrizes
prescritas pelo governo central, certo é que, excepcionalmente, REFERÊNCIAS
podem os governadores e prefeitos adotar ações específicas, ACKERMAN, Bruce. Revolutionary Constitutions: charismatic leadership and the
rule of law. The Balknap Press of Harvard University Press. Cambridge: London,
inovadoras ou mais rigorosas que as do governo central, desde 2019. p. 315-318.
que ocorram o aumento da gravidade e a variação dos efei- CAVINO, Massimo et al. Sofferenze e insofferenze della Giustizia Costituzionale
tos da crise nas áreas dos seus respectivos territórios. Mesmo Presentazione. Federalismi.it : Rivista di diritto pubblico italiano, comparato, eu-
ropeo, Roma, ano 18, n. 15, p. 4, magg. 2020.
nessas atuações menos protocolares, o caráter cooperativo do CONFERENZA STAMPA. L’Associazione della Stampa Estera in Italia incontra la
princípio federalista impõe ao governante o dever de informar Presidente della Corte Costituzionale, Marta Cartabia. Radio Radicale, 30 apr.
o seu modo de atuação ao governo central e aos demais go- 2020. Disponível em: https://www.radioradicale.it/scheda/604634/lassociazio-
ne-della-stampa-estera-in-italia-incontra-la-presidente-della-corte.
vernos subnacionais. Trata-se de uma maneira de compartilhar DYZENHAUS, David. Schmitten in the USA. In: Verfassungsblog on Matters
essa resposta diversa com outros centros de poder que passam Constitucional, Berlin, 4 abr. 2020.
por problemas semelhantes. Isso permite que, de um modo MALFATTI, Elena; PANIZZA, Saulle; ROMBOLI, Roberto. Giustizia Costituzionale.
5. ed. Torino: G. Giappichelli, 2018.
geral, todo o Estado nacional aprenda com boas práticas gesta- MAZZUOLI, Valerio de Oliveira; FRAZÃO, Hugo Leonardo Abas. Federalismo e
das dentro do seu próprio território, além de auxiliar o governo pandemia: cosa si può imparare dal Brasile. LaCostituzione.info, 29 apr. 2020.
28 nacional a revisar e aperfeiçoar, parcialmente, o plano estraté- Disponível em: http://www.lacostituzione.info/index.php/2020/04/29/federalis-
mo-e-pandemia-cosa-si-puo-imparare-dal-brasile/.
gico da crise.
PALERMO, Francesco. Is there a space for federalism in times of emergency? In:
Destarte, à luz do princípio federativo, mesmo Estados na- Verfassungsblog on Matters Constitucional, Berlin, 13 maio 2020.
cionais que não adotem o modelo de Estado Federal podem SCHMITT, Carl. Der Führer schützt das Recht. Deutsche Juristen-Zeitung, Berlin,
ajustar a sua abordagem em face de crises emergenciais – es- Heft 15, p. 945-950, 1 Aug. 1934.
VIOLINI, Lorenza. L’autonomia delle Regioni italiane dopo i referendum e le
pecialmente sanitárias, sociais e econômicas –, no sentido de richieste di maggiori poteri ex art. 116, comma 3, Cost. Rivista AIC: Associazione
permitir que o seu eixo de governo varie, em diferentes níveis Italiana dei Costituzionalisti, fasc. 4, p. 319-365, 14 nov. 2018.
de intensidade, entre a centralização e a descentralização, a de-
pender dos aspectos da crise. Artigo recebido em 26/5/2020.
Por outro lado, a autonomia relativa à “descentralização ter- Artigo aprovado em 26/6/2020.
ritorial” não pode justificar qualquer abuso de poder por parte
de prefeitos e governadores, como aquele já referido, cometido
pelo Prefeito de Messina, na Itália. No entanto, assim como esses
prefeitos e governantes não podem abusar do poder que lhes é
conferido, o governo federal – no caso brasileiro – não pode su-
bestimar a importância dos entes territoriais menores, os quais,
muitas vezes, conseguem perceber a chegada de uma crise ou
o seu agravamento antes dos órgãos de abrangência nacional.
Seria tal crise capaz de ensinar ao Brasil e à Itália sobre a im-
portância de se ter uma forma descentralizada e colaborativa de
Estado, sobretudo para o enfrentamento de necessidades socio-
econômicas? Aprenderemos com a pandemia do novo corona- Valerio de Oliveira Mazzuoli é professor-associado da
vírus a construir um novo modelo de gestão compartilhada para Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso,
o enfrentamento de crises? Tal é uma questão que só o tempo pós-doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade
irá responder. Mas isso, como diria Kipling, é uma outra história. Clássica de Lisboa e Doutor summa cum laude em Direito
Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

NOTAS Hugo Abas Frazão é juiz federal no TRF da 1ª Região e doutoran-


1 Jornal Folha de S. Paulo, 30 de março de 2020. do em Teoria dei Diritti Fondamentali, Giustizia Costituzionale,
2 Trata-se de dois regimes de exceção, previstos na Constituição brasileira,
Comparazione Giuridica, na Universidade de Pisa.

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D I R E I T O C O N ST IT UC IO N AL
Erica de Sousa Costa

SOU DO ACORDO! A AUDIÊNCIA


DE CONCILIAÇÃO SIMULADA NO
AMBIENTE ESCOLAR COMO FORMA DE
29

FORTALECIMENTO DA CULTURA DA PAZ


E DA INCLUSÃO
IN FAVOR OF THE SETTLEMENT! THE SIMULATED CONCILIATION HEARING
IN THE SCHOOL SETTING AS A WAY OF STRENGTHENING THE CULTURE
OF PEACE AND INCLUSION
Erica de Sousa Costa

RESUMO ABSTRACT
Deslinda sobre a Justiça Cidadã ao dialogar a Educação para a This research clarifies “Citizen Justice” when discussing
Justiça, despontando do Direito Constitucional para investigar a education for justice, emerging from the Constitutional Law
educação pela perspectiva de direito social. Aborda a audiência to investigate education from the perspective of a social right.
de conciliação simulada como metodologia ativa e prática edu- It addresses a simulated conciliation hearing as an active
cativa para prevenção de problemas, a desvendar conceitos da methodology and an educational practice to prevent issues,
Justiça Federal brasileira. bringing to light concepts of the Brazilian Federal Justice.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Direito Constitucional; Educação; Prática Educativa; Conciliação; Constitutional Law; Education; educational practice;
Audiência de Conciliação Simulada. conciliation; simulated conciliation hearing.

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Erica de Sousa Costa

1 INTRODUÇÃO de partida, uma prática educativa simulada que pode melhorar


A pesquisa aborda o tema “Justiça Cidadã”, no eixo edu- a convivência social na escola. O trabalho reveste-se de nuan-
cação para a Justiça. Dessa forma, estuda o direito das pessoas ce acadêmica e institucional ao apontar estratégia pedagógica
com deficiência ao sugerir a aplicação da audiência de concilia- para otimizar a aprendizagem de discentes do 5º ano do ensino
ção simulada como atividade para proporcionar a aprendizagem fundamental. Instiga a leitura da cultura jurídica desde os anos
autônoma de alunos do 5º ano do ensino fundamental. Analisa escolares, aliando-se ao ensino de direitos de grupo vulnerável
preceitos da educação inclusiva no contexto da formação inte- (pessoas com deficiência), a conscientizar sobre respeito, inclu-
gral, que une o ensino técnico e o humano. são e a cultura da paz social no meio escolar.
Sabe-se que a educação inclusiva busca inserir todas as pes- É dizer, a pesquisa é relevante por descortinar sobre a conci-
soas no processo de formação educacional, considerando os liação de forma pedagógica ao propor que as crianças assumam
conceitos humanos e culturais importantes na estruturação da papéis de personagens jurídicos em uma audiência simulada
identidade do indivíduo. que tende em resultar em um acordo. Dialoga princípios insti-
Nesse quadro, é oportuno aduzir que a realidade escolar de- tucionais, ao relacionar o estudo da Justiça Federal na dramati-
para-se com a dificuldade de mediar o próprio ensino aos alunos, zação havida na sala de aula. Também assim, valoriza o enten-
tendo em vista as barreiras para perfazer esse processo de modo a dimento da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento
ofertar possibilidades que permitam aos aprendizes, além da me- de Magistrados que reputa a simulação como a principal meto-
morização do conteúdo, desenvolver aptidões criativas. dologia pedagógica ativa. De igual modo, traduz o impacto po-
Assim, conseguir aplicar ações inclusivas na vivência esco- sitivo da aprendizagem contínua, um dos valores institucionais
lar, despertando em cada um a noção de cidadania, respeito do Superior Tribunal de Justiça. E, ainda, observa critérios da
pela diversidade e empatia, mostra-se um desafio. Entretanto, os X Edição do Prêmio Conciliar é Legal, de 2019, cunhado pelo
educadores devem persistir no caminho do ensino, superando Conselho Nacional de Justiça.
as dificuldades que encontram no exercício diário da profissão. Logo, a pertinência dessa pesquisa é clara, pois esmiuça o
Note-se que essa pesquisa surge nesse cenário. Portanto, direito à educação – direito social assegurado na Constituição
tem-se, para efeito desse estudo, a audiência de conciliação si- Federal brasileira – sob o olhar crítico ao apresentar proposta
mulada como metodologia ativa e prática educativa para pre- que favorece a formação integral do sujeito (formação técnica
venção de problemas. e formação moral).
Essa postura sensibiliza o ensino curricular sobre os direitos
30 das pessoas com deficiência, relativas à ética e cidadania, bem 2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
como aguça a aprendizagem de valores significativos para a es- Essa análise concerne à Justiça Cidadã e inspecionou acerca
colarização de aprendentes sob o aspecto da formação efetiva, da Educação para a Justiça. Realizou estudos sobre a educação,
e de qualidade. direito garantido constitucionalmente no art. 6°, que o categori-
Convém esclarecer que a pesquisa abordou o seguinte pro- za como direito social (BRASIL, 1988).
blema: como a escola (Estado) pode responder ao desafio de A pesquisa explora a educação pelo viés acadêmico e insti-
não apenas reproduzir, mas também criar conhecimentos, de tucional para despertar o senso crítico sobre o direito social en-
modo a ensinar sobre os direitos das pessoas com deficiência, focado. Os aspectos tratados na investigação focalizam na efe-
permeando as lições relativas ao respeito, inclusão e cultura da tividade do processo de ensino-aprendizagem, apoiando-se em
paz social no ambiente escolar? prática educativa bem conceituada no campo acadêmico. Aliás,
Diante dessa inquietação, buscou-se trabalhar a prática edu- acoplou preceitos institucionais que reforçam positivamente o
cativa simulada ao assinalar a metodologia ativa da simulação, ensino do método apresentado e agregam pontos (valor, crité-
por ser considerada pelo referencial teórico uma estratégia pe- rios) influentes/interessantes.
dagógica adequada. Refere-se a uma pesquisa exploratória, uma vez que
Apresentou-se como objetivo geral: estudar a audiência Prodanov e Freitas (2013) sustentam que esse tipo de pesquisa
de conciliação simulada como metodologia ativa que incenti- tem como fim promover mais conhecimento acerca do conteú-
ve estudantes do 5º ano a desenvolver habilidades cognitivas, do pesquisado. Além disso, em consonância com a visão de Reis
a impulsionar o ensino do direito das pessoas com deficiência, (2018), “esse tipo de pesquisa tem como propósito familiarizar
respeito, inclusão e cultura da paz social na escola. Foram rela- o pesquisador com o problema de estudo, por meio, sobretudo,
cionados esses objetivos específicos: averiguar a teoria pedagó- da realização de um levantamento bibliográfico sobre o tema,
gica que fundamenta o estudo das metodologias ativas; articu- além de outras formas de obtenção de dados sobre o mesmo,
lar o modelo de ensino proposto sob a ótica das metodologias possibilitando ao pesquisador um conhecimento maior so-
ativas quanto ao papel do professor e do aluno; e evidenciar a bre o assunto, capacitando-o para construir suas hipóteses.”
simulação como metodologia pedagógica ativa que instigue no (REIS, 2018, p. 21, grifo meu).
alunado a capacidade de criar saberes, de modo a compreender Caracteriza-se, quanto à abordagem, como pesquisa qualita-
sobre o direito das pessoas com deficiência, respeito, inclusão e tiva, eis que sob o ponto de vista de Reis (2018, p. 20), “[...] de-
paz social no universo escolar. ve-se optar por uma pesquisa qualitativa que aprofunda a com-
Em acréscimo, essa apreciação é importante, por versar so- preensão do problema [...]”.
bre a educação, direito social positivado na Constituição Federal É, procedimentalmente, uma pesquisa bibliográfica, desen-
brasileira. Outrossim, dialogou como resposta para a pergunta volvida mediante revisão de literatura, visto que Reis (2018, p.

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22) proclama que é a primeira etapa de tura, focalizando em um caminho para posicionamento de Alves (2012, p. 82)
obtenção de dados sobre qualquer obje- sensibilizar discentes do quinto ano a se- que defende que: a educação inclusi-
to a ser estudado. rem autônomos/independentes no pro- va tem, portanto, por definição a ação
Ainda quanto aos procedimentos, cesso de ensino-aprendizagem. de promover de modo abrangente tanto
constituiu-se em uma pesquisa docu- Com base em tais ponderações, pen- o desenvolvimento humano quanto a
mental que aplicou o questionário aber- sou-se em dialogar acordo/conciliação preservação e a continuidade da cultu-
to como instrumento de coleta de da- (paz social) – uma das tendências atu- ra, envolvendo neste proceder todos os
dos, a deslindar a investigação científica. ais da Justiça Federal brasileira transcrita indivíduos em fase de formação de sua
Esse documento, formulado com apenas como: incentivo às soluções alternativas personalidade.
uma pergunta, foi respondido eletroni- de litígio, unindo o ensino sobre o direi- De acordo com esse ponto de vis-
camente por um professor pesquisador, to das pessoas com deficiência, respeito ta, pode-se afirmar, com base no pensa-
vinculado à Universidade Estadual do e inclusão. Esses, por sua vez, consistem mento da referida teoria, que a educa-
Maranhão, que estuda e atua na área das em um dos valores da Justiça Federal ção inclusiva engloba todos os sujeitos e
metodologias ativas. A esse respeito, é brasileira, definido como: respeito à cida- uma amplitude de características quan-
oportuno aduzir o entendimento adota- dania e ao ser humano. No Quadro 1, to à construção de saberes, agregando
do por Richardson (2002), pois concorda consta a abordagem do Mapa Estratégico o conhecimento humano e também o
ser necessário identificar quais os instru- da Justiça Federal. cultural. Vale registrar o entendimento
mentos de coleta de informações eleitos de Cunha (2016, p. 139, grifo meu), já
para fazer a pesquisa e cita, como exem- QUADRO 1 – que ao abordar esse assunto, considera
plo, os questionários. MAPA ESTRATÉGICO DA JUSTIÇA FEDERAL relevante a função do professor. Nesse
À vista do exposto, restou delimitado,
nessa subdivisão, o percurso metodológi-
co seguido para concretizar essa pesquisa.

3 ESTUDOS CRÍTICOS DO DIREITO


O tema desse estudo pertine à
Justiça Cidadã, desdobrando-se no exa-
me da Educação para a Justiça. Explana 31
acerca da educação inclusiva por envol-
ver o tratamento inclusivo de grupo vul-
nerável (pessoas com deficiência).
É consentâneo lembrar que a edu-
cação é um direito social estabelecido na
Constituição Federal brasileira (BRASIL,
1988). Desse ponto de ancoragem, essa
pesquisa vislumbra o ensino do acordo
mediante a audiência de conciliação si-
mulada, no âmbito do 5º ano do ensino
fundamental, como estratégia pedagógica Fonte: Brasil (2014)
para estimular a aprendizagem do direito
das pessoas com deficiência, imbricando
conceitos sobre respeito, inclusão e a cul- A esse respeito, para conceder em- refletir, o estudioso informa que: certa-
tura da paz social no espaço escolar. basamento para a pesquisa, se fez neces- mente, não se pode falar em inclusão
Nesse horizonte, é condizente ex- sário, inicialmente, explorar o conceito de sem mencionar o papel do professor.
plicitar que a simulação é concebida educação especial e inclusiva. Assim, po- É necessário que ele tenha condições de
como a metodologia pedagógica ativa de de-se verificar que a Lei n. 9.394, de 20 trabalhar com a inclusão e na inclusão.
maior destaque, na concepção da Escola de dezembro de 1996, que discorre sobre É necessário que ele acredite no indiví-
Nacional de Formação e Aperfeiçoamento as diretrizes e bases da educação nacional, duo, no seu potencial humano e na sua
de Magistrados (2017). em seu artigo 58, expressa que: “entende- capacidade de reconstruir seu futuro.
Por isso, para aventar uma hipótese -se por educação especial, para os efeitos Incluí-lo na prática docente torna-se o
que responda à questão da pesquisa, le- desta Lei, a modalidade de educação es- movimento que dará início ao processo
vantou-se a audiência de conciliação si- colar oferecida preferencialmente na rede de emancipação. Na verdade, a inclu-
mulada com a temática do direito e res- regular de ensino, para educandos com são escolar inicia-se no professor.
peito às pessoas com deficiência. Sob deficiência, transtornos globais do desen- Feitas essas pontuações, reafirma-se
esse enfoque, essa pesquisa trabalhou a volvimento e altas habilidades ou super- o cerne desse trabalho, dedicado em des-
prática educativa e de prevenção de pro- dotação.” (BRASIL, 1996, n.p). cortinar um caminho que mostre para a
blemas, no contexto da revisão de litera- Traz-se também para essa análise o escola (Estado) como priorizar a aprendi-

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zagem autônoma de estudantes do 5º ano, de modo a estimular Learning (IBL) e que tem suas raízes na visão de Vygotsky,
o ensino sobre os direitos das pessoas com deficiência, respeito, de que existe uma natureza social inerente ao processo de
inclusão e a cultura da paz social na vivência escolar. aprendizagem – base de sua teoria de Desenvolvimento por
Nesse intuito, apreciou-se a obra “Inclusão: muitos olhares, Zona Proximal (DZP) – a construção do conhecimento permite
vários caminhos e um grande desafio”, de autoria de Fátima o desenvolvimento de importantes competências [...]. (BRASIL,
Alves. No capítulo 11 do referido livro, nomeado “A educação 2019, n. p., grifo meu).
inclusiva e a arteterapia: uma abordagem junguiana”, escrito por E ainda: na construção da aprendizagem, o educador é o
Maria Cristina Urrutigaray, pôde-se fazer algumas constatações responsável pelo engajamento do aluno, assumindo o papel
coerentes com o objetivo dessa pesquisa. Assim, Urrutigaray de designer de experiências cognitivas, estéticas, sociais e pes-
(2003), na literatura de Alves (2012), explica que: [...] por meio soais. Cabe a ele a condução da formação de competências
do uso de materiais expressivos, como o desenho, o canto, a e a colaboração no processo para que o estudante aprenda
dança, o teatro, a escultura, a pintura etc., as possibilidades a aprender. Diante de interesses e necessidades, o educador
de cada ser adquirem um canal expressivo pelo qual são ar- se torna mediador e procura instigar o aprendiz à pesqui-
ticulados as categorias espaço e tempo adquirindo uma iden- sa e ao desenvolvimento de uma visão crítica, por meio
tificação, ou uma personificação, por se tornarem objetivadas de formulação de problemas e hipóteses. Nesse processo,
e, portanto, reconhecidas e legitimadas. (ALVES, 2012 apud cabe ao estudante ser protagonista da sua aprendizagem.
URRUTIGARAY, 2003, grifo meu). (BRASIL, 2019, n.p., grifo meu).
Por conseguinte, percebe-se que o teatro é concebido como Por decorrência, fica claro o entendimento adotado no Brasil
um instrumento para dialogar a inclusão no ambiente escolar. acerca das metodologias ativas, que posiciona o docente na
Sendo assim, para efeito desse estudo, associou-se o teatro à si- qualidade de mediador do processo de ensino- aprendizagem
mulação (metodologia ativa) ao sugestionar a audiência de conci- e o aluno como responsável pela assimilação do conhecimento.
liação simulada. Nesse recurso pedagógico, os alunos podem re- Nessa linha, dedicou-se a entender o papel do mediador na
tratar personagens jurídicos, em uma audiência criada para decidir realidade escolar. Com tal pretensão, explorou o livro “O orien-
sobre a temática do direito e respeito às pessoas com deficiência. tador educacional, o mediador escolar e a inclusão: um cami-
A audiência de conciliação simulada é uma simulação. Essa nho em construção”, de Marise Miranda Gomes. Dessa manei-
metodologia, nesta pesquisa, relaciona-se a uma dramatização/ ra, Gomes (2014, p.64-65) sublinha que: [...] muitas questões
encenação na qual crianças do 5º ano podem representar/simular começaram a ser levantadas, e a relevância dessa pesquisa
32 papéis de alguns atores da Justiça. Nesse raciocínio, constitui uma repousou nesses e em outros questionamentos e na possí-
atividade de prática educativa simulada que pode ser desenvolvi- vel busca de algumas respostas cuja primeira passou a ser:
da na escola para fortalecer a cultura da paz social e da inclusão. Por que chamá-lo de facilitador escolar ou de mediador esco-
A adequação do cenário jurídico com fundamento nos ensina- lar? Ao se recorrer ao dicionário eletrônico Houaiss da Língua
mentos pedagógicos encontra-se disposto na Tabela 1, a seguir: Portuguesa, podem-se encontrar as seguintes definições:
Facilitação: ação ou efeito de facilitar.
TABELA 1 – CONCEITOS JURÍDICOS ADAPTADOS. Facilitar: tornar ou fazer fácil, ou exequível. Prontificar-se,
prestar-se, dispor-se. Pôr à disposição; facultar.
Tribunal Regional Federal da 1ª Região: [...]
Tribunal da Paz Ou como descreve o dicionário Larousse, facilitação ‘é re-
dução das dificuldades’. Portanto, facilitador é quem executa
Juiz Federal: Direito e Respeito essa ação. [...] Essa zona de desenvolvimento desperta nos
educadores e nas pessoas interessadas uma grande expecta-
Cidadão: Perdão tiva ao se trabalhar no contexto da sala de aula porque, em
contato direto com as crianças, pode-se observar o movimento
Procuradoria Federal: Diálogo que as funções mentais estão realizando e identificar como
Fonte: Autora (2020). se pode auxiliar para que a aprendizagem seja internalizada,
completando o processo do intrapessoal para interpessoal.
Nesse pensar, buscou-se compreender as concepções das É dizer, a audiência de conciliação simulada mostra-se uma
metodologias ativas, posto que estas são indicadas quando o prática educativa apropriada para responder à pergunta de par-
assunto é a autonomia no processo de ensino-aprendizagem. tida da pesquisa. Isso acontece porque “a simulação é consi-
A partir dessas considerações, se fez necessário fazer derada a ‘rainha’ das metodologias pedagógicas ativas [...]”.
pesquisa no portal do Ministério da Educação (MEC) visan- (ESCOLA NACIONAL DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO
do consolidar o estudo aqui empreendido. Verificou-se me- DE MAGISTRADOS, 2017, n.p. grifo meu).
diante a leitura do artigo intitulado “O uso de metodologias Reforça que a simulação é uma metodologia ativa e a audi-
ativas colaborativas e a formação de competências”, que as ência de conciliação simulada foi levantada nessa investigação
metodologias ativas dialogam a teoria cognitiva de Vygotsky, científica como hipótese para responder à questão da pesquisa.
a saber: quando trabalhamos com metodologias ativas – Desse modo, focalizou o ensino do direito das pessoas com
colaborativas e cooperativas (collaborative and cooperative deficiência, respeito, inclusão e cultura da paz social no mundo
learning) –, que integram o grupo de técnicas Inquiry-Based escolar. Isso ocorre porque o tema proposto para a audiência

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de conciliação simulada foi o “Direito e nhecer/saber (adquirir conhecimento), de problemas e situações reais. A pro-
Respeito às Pessoas com Deficiência”. aprender a fazer/ saber fazer (agir), posta é a de que o estudante esteja no
Desencadeando essa apreciação, com aprender a viver juntos/ saber con- centro do processo de ensino-aprendiza-
levantamento de hipótese, elaborou-se viver (cooperação com o próximo nas gem, participando ativamente e sendo
a composição explicitada no Quadro 2, atividades humanas), e finalmente responsável pela construção do conhe-
que traduz as concepções do Direito pela aprender a ser/ saber ser (conceito cimento na educação. A tecnologia traz
percepção pedagógica. Essa amostragem principal q ue integra todos os anterio- hoje integração de todos os espaços e
tende em oportunizar o ensino da conci- res). (ESCOLA DA MAGISTRATURA tempo. O processo de ensinar e apren-
liação para crianças que estejam matricu- REGIONAL FEDERAL DA 2ª REGIÃO, der acontece em uma interligação har-
ladas no 5º ano do ensino fundamental. 2016, p. 22). mônica, simbiótica, profunda e constan-
Veja-se o Quadro 2: Como se percebe o ensinar a te entre o que chamamos ‘mundo físico’
aprender é concebido na prática edu- e ‘mundo digital’. Não são dois mundos
QUADRO 2 cativa da audiência de conciliação si- ou espaços, mas um espaço estendi
AUDIÊNCIA DE CONCILIAÇÃO SIMULADA. mulada. Esse determinante/fator fica do, uma sala de aula ampliada – que

Juiz DIREITO e RESPEITO: Declaro iniciada a audiência de hoje. Estamos no TRIBUNAL DA PAZ para resolver uma dificuldade. De
um lado temos a parte chamada DIÁLOGO e do outro lado temos a parte que tem o nome de PERDÃO.
A briga entre o senhor DIÁLOGO e o senhor PERDÃO começou com a falta de respeito com as crianças com deficiência.
Para que esse problema seja resolvido, é bom que cada um se comprometa em respeitar o direito de todas as pessoas com
deficiência. Esse compromisso é chamado de acordo ou de conciliação. Assim, ao respeitar o direito de todas as pessoas com
deficiência, poderemos colocar em prática a cidadania.
DIÁLOGO: Eu me comprometo em a partir de hoje ter consideração por todas as pessoas e, desse jeito, respeitar o direito de
todas as pessoas com deficiência.
PERDÃO: Eu aceito o acordo, pois aprendi que podemos corrigir nossos erros e a cada dia podemos ser pessoas melhores.
Juiz DIREITO e RESPEITO: Como as partes aceitam fazer o acordo, confirmo por essa decisão o presente acordo.
(As crianças podem assinar seus nomes no documento: Termo de Audiência de Conciliação Simulada)
Juiz DIREITO e RESPEITO: Declaro que a partir de hoje, a paz voltou a reinar no TRIBUNAL DA PAZ.
(Bater o martelo) 33

Fonte: Autora (2020).

A proposta encimada engloba o en- claro, pois na simulação o aluno é esti- se mescla, hibridiza constantemente.
sino curricular acerca dos direitos das mulado a atuar como protagonista do (CHAVES, 2019, n.p., grifo meu).
pessoas com deficiência, quanto à ética e saber, na qualidade de protagonista De acordo com o posicionamento do
cidadania, bem assim acentua a aprendi- do conhecimento. respondente, pode-se depreender
zagem de conceitos morais importantes Para deslinde do estudo, cabe tra- que, na contemporaneidade, há uma
para a formação cidadã de escolares do zer o entendimento defendido por tendência em valorizar procedimentos
5º ano do ensino fundamental, notada- Chaves (2019), quem, nessa pes- de ensino que trabalhem a autonomia
mente: respeito, inclusão e cultura da paz quisa, afigura-se como respondente, do aprendiz, característica das meto-
social no seio escolar. sendo pesquisador do tema “meto- dologias ativas.
Retoma que a solução pedagógica dologias ativas”. Ao ser questionado Nesse viés, denota-se que a ativida-
apresentada consiste na audiência de sobre como a escola pode responder de pedagógica apontada – audiência de
conciliação simulada levantada para res- aos desafios de não apenas reprodu- conciliação simulada – é uma metodolo-
ponder à problemática da pesquisa. zir, mas também criar conhecimentos, gia ativa, que agrega o pilar da educação
Esse estudo alicerçou-se, ade- considerando as metodologias ativas, relativo ao ensinar a fazer. Isso acontece
mais, na fundamentação teórica que o respondente explicou: A escola do porque os alunos, nesse método, tendem
substancia o diálogo dos quatro pi- século XXI precisa fazer do aluno o em ser participantes ativos na construção
lares da educação: o aprender a sa- protagonista do conhecimento, as me- do conhecimento, atuando e ajudando –
ber, o aprender a fazer, o aprender todologias ativas têm inovado em tudo. com a mediação do professor – a pensar
a conviver e o aprender a ser. Isso se Creio que as gerações ao lado da histó- na composição amigável do desentendi-
deve porque nos termos do Projeto ria têm evoluído. Não podemos deixar mento/conflito proposto, mediante indi-
Político Pedagógico da Escola da de evoluir quanto aos nossos métodos cação de outros motivos que levam cada
Magistratura Regional Federal da 2ª pedagógicos. O principal objetivo das criança a respeitar o próximo.
Região (EMARF), tem-se que: A forma- metodologias ativas de ensino é incen- Então, seguindo essa linha de ideias, é
ção ideal é a pautada nos quatro pilares tivar os alunos para que aprendam de coerente aduzir o pensamento de Chaves
da educação, a saber: aprender a co- forma autônoma e participativa, a partir (2019) o qual afirma: [...] os professores

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atuam como mediadores da aprendizagem, provocando e ins- FIGURA – VISUAL TRABALHANDO A IDEIA DO DIÁLOGO NA RODA
tigando o aluno a buscar as resoluções por si só. O professor DE CONVERSA.
tem o papel de intermediar os trabalhos e projetos e oferecer
retorno para a reflexão sobre os caminhos tomados para a
construção do conhecimento, estimulando a crítica e reflexão
dos alunos. São muitos os benefícios ao trazer as metodolo-
gias ativas para dentro da sala de aula. Entre os que pontuo a
seguir, o principal é a transformação na forma de conceber o
aprendizado, ao proporcionar que o aluno pense de maneira
diferente e a resolver problemas conectando ideias que, em
princípio, parecem desconectadas.
Ponderando acerca dessa explicação do respondente, de­
duz-se: o papel do professor sob o aspecto das metodologias ati- Fonte: Roda na Educação Infantil, 2019.
vas é de mediador do processo de ensino-aprendizagem. Além
disso, pela análise do discurso do questionário, perceberam-se Insta asseverar que essa pesquisa foi desenvolvida de modo
as vantagens das metodologias ativas, notadamente no tocante a aglutinar critérios considerados no regulamento do Prêmio
à inovação quanto à forma de conceber a aprendizagem. Conciliar é Legal – X Edição/2019, concernente ao Conselho
Outro pilar da educação é privilegiado na prática educa- Nacional de Justiça, conforme apresentado na Tabela 2:
tiva em questão: o aprender a conviver. Isso ocorre porque a
audiência de conciliação simulada, tida nesse estudo como TABELA 2
inserção pedagógica, envolveu a adoção de comportamentos CRITÉRIOS DO PRÊMIO CONCILIAR É LEGAL – X EDIÇÃO/2019.
que permeiam uma convivência social aceitável, instigando o
alunado a abandonar condutas inadequadas de desrespeito Restauração das relações sociais
e estimulando a incorporação de posturas éticas condizentes
com a boa formação moral e a construção de uma identida- Criatividade
de cidadã.
Em relação ao objeto de estudo, salienta-se a con- Replicabilidade
34 clusão do respondente: Precisamos investir em conteúdos
atrativos e interativos, sendo essencial ter esse olhar para apri- Alcance social
morar os procedimentos utilizados para envolver os alunos na
aprendizagem. As metodologias precisam acompanhar os ob- Efetividade
jetivos pretendidos. Se queremos que os alunos sejam proati-
vos, precisamos adotar metodologias nas quais os alunos se Satisfação do usuário
envolvam em atividades cada vez mais complexas, em que te-
nham que tomar decisões e avaliar os resultados, com apoio Baixo custo para implementação da prática
de materiais relevantes. Se queremos que sejam criativos, eles
precisam experimentar inúmeras possibilidades de mostrar sua Inovação
iniciativa. (CHAVES, 2019, n.p.).
Diante do que foi exposto pelo estudioso, diagnosti- Fonte: Adaptado de Conselho Nacional de Justiça (2019).
cou-se que o estudo das metodologias ativas na atualidade
é relevante quando o assunto é a efetiva formação de qua- Sob esse prisma, é apropriado refletir a dimensão do Direito
lidade dos educandos. Processual Civil que perpassa essa análise. Isso se deve porque
Como se vê o aprender a ser também foi um ponto o atual Código de Processo Civil brasileiro explicita enfoque aos
pensado ao levantar na revisão de literatura a estratégia pe- meios alternativos de resolução de controvérsias. Em acréscimo,
dagógica da audiência de conciliação simulada. Isso porque essa matéria, na tendência moderna, deságua na postura adotada
a proposta do acordo, nessa pesquisa, instiga as crianças a especialmente pelo Conselho Nacional de Justiça no sentido de
aprenderem sobre o direito das pessoas com deficiência, estimular, no âmbito do Poder Judiciário e da sociedade como
respeito, inclusão e paz social no universo escolar, o que um todo, a autocomposição, a reverberar na cultura da paz social.
reflete no ensino de lições que tendem em despertar uma Nessa senda, vale ressaltar as políticas (evidenciadas sob o
formação moral sólida. aspecto de gestão pública) vencedoras do Prêmio Conciliar é
Em uma perspectiva sintetizada, propõe-se uma abor- Legal – X Edição/2019, no panorama da Justiça Federal. Isso ocor-
dagem acerca dos conceitos da conciliação por meio da re porque o Prêmio Conciliar é Legal consiste em instrumento
figura abaixo, que trabalha a noção do diálogo em uma de premiação de boas práticas autocompositivas que contri-
roda de conversa. A roda referencia a lição de igualdade, buam para a efetiva pacificação de conflitos, o aprimoramento
pois nesse modelo, não há posição de destaque entre as e a eficiência do Poder Judiciário. (CONSELHO NACIONAL DE
pessoas que a compõem. JUSTIÇA, 2019, p.1, grifo meu). Veja-se a Tabela 3:

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TABELA 3
POLÍTICAS DE GESTÃO PÚBLICA VENCEDORAS DO PRÊMIO CONCILIAR É LEGAL – X EDIÇÃO/2019 – JUSTIÇA FEDERAL.

Tribunal Regional Federal da 4ª Região (Tribunal Regional Federal)

– Conciliação Cooperativa

Juiz Federal Bruno Teixeira de Paiva (Juiz Federal/Justiça Federal)

Tribunal Regional Federal da 5ª Região – Seção Judiciária da Paraíba

– Conciliação em Rede

Desembargador Federal Paulo Fontes (Demandas Complexas ou Coletivas)

Tribunal Regional Federal da 3ª Região

– Religiões Afro: Direito de Resposta

Tribunal Regional Federal da 3ª Região (Semana Nacional de Conciliação)

– Índices de composição consensual mais elevados

Fonte: Adaptado de Conselho Nacional 35


de Justiça (2020).

Em resumo, a audiência de con- 4 CONCLUSÃO potencializar/otimizar o senso crítico so-


ciliação simulada foi sugerida nessa A investigação dissertou acerca da bre o direito das pessoas com deficiência
revisão de literatura para demonstrar Justiça Cidadã ao descortinar sobre a e aprimorar/aperfeiçoar a noção de res-
uma prática educativa viável para re- Educação para a Justiça. Destacou a edu- peito, inclusão e a cultura da paz social
alizar com crianças do 5º ano do en- cação por ser um direito social garantido no âmbito escolar.
sino fundamental. Por consequência, pela Constituição Federal brasileira. Pôde-se notar que a simulação é
essa estratégia de ensino possibilitou Constatou-se que a educação inclu- uma metodologia pedagógica ativa
um diálogo entre a prática educativa e siva atua no sentido de promover amplo bem conceituada pela Escola Nacional
a prática interdisciplinar, a impulsionar acesso à formação do sujeito como agen- de Formação e Aperfeiçoamento de
a efetividade do ensino. te digno de assimilar e desenvolver habi- Magistrados. Ademais, observou-se que
Ademais, a abordagem do conteú- lidades humanas e culturais. as metodologias ativas aplicam a concep-
do priorizou a formação integral do su- O objeto da análise foi deslindado ção teórica de Vygotsky. Também assim,
jeito por compreender o ensino de con- para obter uma resposta à pergunta de foi possível relacionar que o trabalho
ceitos técnicos e, também, os de cunho partida e cumprir os objetivos da pesqui- com as metodologias ativas requer do
moral, denominado no campo pedagó- sa. Por meio dessa apreciação, denotou- professor a atuação na qualidade de me-
gico de “paideia”. -se que a arteterapia, na modalidade tea- diador do processo de ensino-aprendi-
Urge lembrar que esse trabalho tro, consiste em uma atividade de prática zagem. Por outro lado, os alunos devem
permeou a aprendizagem contínua, educativa que pode ser aplicada na esco- ser os agentes encarregados da cons-
que é um dos valores institucionais do la para despertar a vivência inclusiva. A trução do saber. Além disso, apurou-se,
Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, partir dessa evidência, pôde-se fazer um com base no referencial teórico, a viabili-
[201-], grifo meu). diálogo com a audiência de conciliação dade da audiência de conciliação simula-
Por fim, a análise declinada bali- simulada, já que se constitui, igualmente, da como prática educativa para o ensino
zou-se em atividade de prática educati- em uma representação/encenação. dos direitos das pessoas com deficiência,
va – audiência de conciliação simulada Tratou-se de uma estratégia pensa- bem como para a aprendizagem sobre
-com ênfase na metodologia ativa da da para apontar para a escola (Estado) respeito, inclusão e a cultura da paz so-
simulação e indicou um caminho ade- um caminho para estimular o aprendiz cial na escola. Essa solução pedagógica
quado por onde se pode trilhar. a criar conhecimentos, incentivando-o a permite a formação integral do indivíduo

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Erica de Sousa Costa

REIS, Cinthia Regina Nunes. Metodologia da pesquisa em educação. São Luís:


por concatenar ensino técnico com o moral. UEMAnet, 2018. E-book
Concluiu-se, nesta pesquisa, que a audiência de conciliação RICHARDSON, R. J. Pesquisa social: métodos e técnicas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
simulada contempla/une os quatro pilares da educação, por con-
gregar os preceitos da formação ideal, tendo a propensão em re-
fletir, no ambiente escolar, as lições de direitos das pessoas com Artigo enviado em 7/5/2020.
deficiência, respeito, inclusão e paz social, decorrentes do saber Artigo aprovado em 22/6/2020.
aprender, saber fazer, saber conviver e, principalmente, do saber
ser. Evidenciou-se que esse trabalho dialogou/ permeou a com-
preensão dos direitos de grupo vulnerável, tendendo em desper-
tar a leitura de conceitos jurídicos desde os anos escolares.
A apreciação considerou a aprendizagem contínua um dos
valores do Superior Tribunal de Justiça a impactar positivamente
nesse estudo. De igual modo, abarcou critérios da X Edição do
Prêmio Conciliar é Legal, de 2019, disciplinado pelo Conselho
Nacional de Justiça.
Finalmente, cabe ponderar que essa revisão de literatura é ade-
quada para conceber uma intervenção na realidade escolar/social.

REFERÊNCIAS
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PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de. Metodologia do traba- Erica de Sousa Costa é advogada e especialista em Gestão
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Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 29-36, jan./jul. 2020


A D M I NIST RAÇ ÃO JUDIC IAL
Carlos Henrique Borlido Haddad

37

DESENVOLVENDO HABILIDADES
GERENCIAIS EM JUÍZES
DEVELOPMENT OF MANAGEMENT SKILLS FOR JUDGES
Carlos Henrique Borlido Haddad

RESUMO ABSTRACT
Apresenta o programa de formação judicial implantado no Tri- This paper relates to the judicial training program implemented
bunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que teve como by the Justice Court of Minas Gerais, whose main aim
objetivo principal ensinar habilidades básicas e avançadas em involved the teaching of basic and advanced skills in court
administração judicial, gestão de processos e liderança. administration, proceedings management and leadership.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Administração judicial; Poder Judiciário; formação; magistrados. Court administration; Judiciary branch; training; magistrates.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 37-42, jan./jul. 2020


Carlos Henrique Borlido Haddad

1 INTRODUÇÃO A falta de gestão profissional obriga os juízes brasileiros a


O artigo apresenta um exemplo da inserção de tema inova- enfrentarem o desafio de gerir os tribunais, mesmo que não
dor na formação de juízes estaduais no Brasil: a administração estejam bem preparados para essa missão. Por conseguinte,
judicial. O número de processos aumenta a cada ano, quase para preencher a lacuna, a Escola Judicial Desembargador
sem avanços em relação aos meios de controle ou de julgamen- Edésio Fernandes (EJEF), do Tribunal de Justiça de Minas
to desses feitos. De acordo com estatísticas publicadas pelo Gerais, disponibilizou programa de formação para auxiliar os
Conselho Nacional de Justiça, em 2017, mais de 80,1 milhões juízes estaduais a gerirem unidades judiciárias. As escolas
de processos (antigos e novos) estão pendentes de julgamento judiciais possuem dois objetivos principais. Primeiramente,
nas primeira e segunda instâncias do Poder Judiciário brasileiro elas devem treinar novos juízes para assumirem seu posto,
(CNJ, 2018, p. 74). de maneira a facilitar a transição da advocacia para a judica-
tura. Elas são responsáveis por funcionar como ponte entre
a inexperiência e a experiência. Em segundo lugar, há neces-
sidade reconhecida de facilitar o desenvolvimento profissio-
nal contínuo dos atores judiciais. Não é mera atualização de
mudanças legislativas, mas sim treinamento para lidar com
o controle de qualidade dos serviços judiciais. (CLAXTON,
1992, p. 3). A qualidade do Poder Judiciário é fundamental
para a obtenção do amplo acesso à justiça, e um elemento
essencial à manutenção da alta qualidade do Judiciário é a
educação judicial (THOMAS, 2006, p. 110). Em seguida, será
Em Minas Gerais, o panorama do Tribunal de Justiça do demostrado como o programa foi implementado.
Estado mostrava quantidade significativa de unidades judiciárias
com baixa produtividade e crescente morosidade processual, por 2 OS INSTRUTORES
diversos motivos. Algumas transformações seriam necessárias A administração judicial é tema pouco conhecido no sistema
para mudar a situação de baixa eficiência e aumentar a confian- legal brasileiro. Mesmo se os juízes quisessem reduzir a duração
ça do público na prestação do serviço judicial. Não há dúvida de da tramitação dos processos, eles, muitas vezes, não detêm o co-
que a confiança pública no Judiciário depende de juízes desempe- nhecimento necessário para fazê-lo. Nesse sentido, mecanismos
38 nhando seu papel de forma eficiente. (MARTIN, 2001, p. 3). e ferramentas eficazes para o julgamento célere dos casos são
Nos últimos anos, o sistema judiciário brasileiro passou a necessários para reduzir atrasos em processos judiciais, pois a de-
ser objeto de análises e recomendações que pretendem explo- manda, nos últimos anos, persiste em crescer.
rar nova dimensão gerencial. O debate evoluiu em torno da re- Para melhorar o desempenho dos juízes, é necessário for-
flexão acerca de como implementar conceitos de qualidade to- necer-lhes habilidades de gestão, liderança e comunicação. No
tal no Judiciário. (SANTOS, 2010, p. 57). Nesse sentido, existe a Brasil, os juízes devem ser capazes de identificar o papel da gestão
convicção de que muitos dos métodos e estratégias gerenciais na eficácia organizacional, aplicar modelos de planejamento estra-
que têm funcionado no setor privado podem ser adaptados tégico, gerenciar pessoas para obter equipe de alta performance e
com sucesso aos órgãos judiciais. identificar comportamentos comunicativos de liderança.
No entanto, a literatura brasileira sobre gestão, modelos de Um programa baseado no desenvolvimento dessas habili-
gestão, qualidade total, liderança, entre outros, no que diz res- dades foi solicitado, e dois professores foram contratados: um
peito ao sistema judiciário, não apresenta atributos específicos juiz federal e um executivo de negócios, ambos com experiên-
que possam distingui-la daquela abordada pela administração cia em gestão judicial. O treinamento judicial deve ser minis-
de empresas em geral. Os principais conceitos geralmente são trado por pessoas que já estão familiarizadas com o trabalho
muito abstratos, e os exemplos práticos não podem ser apli- de julgar e ensinar. Esse processo deve, sempre que possí-
cados no campo judicial. Muitas das ferramentas utilizadas na vel, contar com a participação dos próprios juízes para garantir
gestão de indústrias e empresas não são traduzidas adequada- maior aceitação pelos participantes. Isso exigirá um programa
mente para a área jurídica. contínuo de desenvolvimento dos juízes que se habilitem a
Outra questão que interfere diretamente na gestão dos pro- ser futuros educadores (ARMYTAGE, 2003, p. 32). Assim, juí-
cessos diz respeito à falta de administradores profissionais no zes treinados com experiência acumulada são os professores
sistema judiciário brasileiro. Nos Estados Unidos, o desenvol- ideais para o programa de formação. No entanto, é sempre
vimento dos princípios da gestão de processos na década de importante ter acadêmicos ou outros profissionais com exper-
1970 coincidiu com o surgimento de administradores judiciais. tise em determinada área. À medida que a lei se torna cada
Atualmente, cerca de 2.500 pessoas são membros da National vez mais complexa e a demanda por formação em questões
Association of Court Management (NACM). Essa organização sociais também cresce, a necessidade de especialistas é cada
tem desempenhado um papel cada vez mais crítico no forne- vez mais reconhecida. (THOMAS, 2006, p. 110).
cimento de oportunidades educacionais para adquirir novos
conhecimentos, compartilhar perspectivas e aprender como 3 O PROGRAMA
outros lidam com problemas semelhantes na administração ju- O programa de treinamento judicial prevê três fases implan-
dicial (FABRI, 2008, p. 17). tadas ao longo de um período de 15 meses:

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1) Treinar o aprendiz em administração judicial; ram decorrentes da implantação do modelo de gestão em seu
2) Implantação prática do modelo de gestão judicial; próprio local de trabalho.
3) Curso on-line em administração judicial. Ao final da segunda fase, os participantes puderam: iden-
tificar as necessidades de recursos humanos e materiais do
A primeira fase – treinar o aprendiz em administração judi- Judiciário; identificar e analisar problemas na administração
cial – tinha o objetivo de formar seleto número de juízes para das unidades judiciárias; implantar o modelo de gestão no
se tornarem treinadores para a terceira fase. A primeira parte ambiente de trabalho; avaliar e organizar fluxos de trabalho
teve início em dezembro de 2016 e foi feita por meio de cur- e fluxos de processos; distribuir tarefas de acordo com os
so com duração de três dias sobre conhecimentos e habilida- fluxos de trabalho e perfis dos servidores públicos; gerenciar
des necessários para desenvolver e oferecer uma administra- bens e materiais de forma eficaz; organizar reuniões, estimu-
ção judicial eficaz. O primeiro programa de educação judicial foi lar a participação em grupo; estabelecer indicadores, metas
estruturado com diversos métodos pedagógicos. O conteúdo e prioridades; gerenciar pessoas, liderar equipes, delegar res-
dessa fase incluía conhecimentos jurídicos gerais, habilidades ponsabilidades; avaliar equipes; avaliar o desempenho indi-
e conhecimentos fora do âmbito legal e algumas atitudes a se- vidual; dar e receber feedback; propor soluções inovadoras
rem seguidas. O formato de entrega variou bastante: desde pa- para situações complexas; e promover, participar e colaborar
lestras formais, seminários e atividades em grupo até material com atividades institucionais.
impresso, ferramentas audiovisuais e simulações práticas com Depois de sete meses, a segunda fase chegou ao fim. Os
os integrantes do grupo. A primeira fase tratou de métodos de resultados alcançados foram impressionantes. Por exemplo, as
treinamento, técnicas de ensino, informações sobre a relação duas tabelas abaixo mostram o desempenho da 2ª Vara Criminal
educador-educando, e teoria da comunicação, com foco na ad- e da Infância e Juventude da Comarca de Ribeirão das Neves an-
ministração de unidades judiciárias. A visão geral é de que esta tes e depois da implantação do novo modelo de gestão:
formação educacional voltada ao treinamento de magistrados
aprendizes em administração judicial melhorou a qualidade da 2016 (Antes)
atuação do juiz em seu campo profissional. Novos Atos de Sen-
Processos Arqui-
A segunda fase ocorreu a partir de fevereiro de 2017, após Meses proces- Servido- ten-
pendentes vados
a conclusão da primeira etapa do treinamento. Como o treina- sos res ças
mento de aprendizes na Fase 1 se concentrou principalmente Janeiro 11.765 248 138 253 50
na assimilação do conhecimento, foi necessário desenvolver ha- 39
Fevereiro 11.916 210 67 534 109
bilidades para colocar em prática o conteúdo aprendido. Assim, Março 12.071 226 78 805 200
a 2ª Etapa – Implantação Prática do Modelo de Gestão Judicial – Abril 12.168 224 129 536 145
foi essencial para a orientação futura de outros juízes e servido-
Maio 12.083 224 311 383 81
res públicos. O tutor ensina melhor depois de viver a experiên-
Junho 12.264 239 72 478 83
cia do modelo de gestão. A educação prática dos juízes também
serviu para treinar toda a equipe, com efeitos extremamente Julho 12.362 169 143 618 84

benéficos para alcançar os resultados desejados. Agosto 12.513 237 91 682 104
A implantação prática é realizada por meio de sete ciclos de dis- Setembro 12.590 272 201 487 90
cussões conceituais em grupo, acompanhados por monitoramento Outubro 12.769 283 111 616 178
em cada uma das unidades judiciárias participantes, bem como o Novembro 12.955 262 84 293 39
desenvolvimento de atividades por meio da plataforma Moodle. Dezembro 13.081 163 39 226 57
Diferença
+ 1.316
(Jan./Dez.)
Total 2.757 1.464 5.911 1.220

2017 (Depois)
Novos Atos de
Processos Arqui-
Meses proces- servido- Sentenças
pendentes vados
sos res
Janeiro 13.273 253 71 421 129
Feve- 13.390 190 76 311 88
reiro
Março 12.180 389 1.595 790 208
Devido aos custos envolvidos, decidiu-se realizar essa ativi- Abril 11.766 231 641 529 75
dade apenas em seis unidades. Os demais juízes que participa- Maio 11.626 332 480 1.110 277
ram da primeira fase acompanharam a evolução do processo Junho 11.558 330 397 887 283
por meio de reuniões em grupo e discussões no ambiente vir- Julho 11.511 317 366 820 245
tual de aprendizagem. Durante as reuniões coletivas, também Agosto 11.215 284 580 614 376
foi possível aos juízes discutir as questões e desafios que surgi-

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Setem- 9.837 340 1.743 487 608 Eficiência e os fluxos de trabalho


bro Tipos de demanda e os fluxos de trabalho
Outubro 9.057 292 1.076 594 134
Infraestrutura e layout
Novem- 8.703 261 626 669 243
Acervo
bro
Tecnologia
Dezem- 8.701 298 294 571 237
bro GESTÃO DA ROTINA Estimativa de prazos
Diferen- Priorização do trabalho
ça (Jan./ - 4.572 Sustentabilidade
Dez.)
Gestão de audiências
Total 3.517 7.945 7.803 2.903
Administração da unidade e produtividade
A terceira parte do programa foi chamada de curso on- Gestão de gabinete
line em administração judicial aplicada. A natureza do próprio Liderança
Judiciário pode justificar as ofertas curriculares, de modo que
Comunicação
cursos on-line e materiais baseados na web podem ser particu-
Gestão de equipes
larmente úteis na disponibilização de treinamento e educação
em jurisdições geograficamente vastas e dispersas. É o caso do Clima e motivação
Estado de Minas Gerais, onde atuam aproximadamente 1.200 GESTÃO DE PESSOAS Gestão de conflitos
juízes estaduais, o que torna mais difícil para que todos eles fre- Gestão do conhecimento
quentem cursos em mesmo espaço físico central. Gestão de competências
Foi preparado ensino a distância voltado para 427 juízes es- Engajamento
taduais e escrivães, que trabalham em 238 unidades judiciárias
Qualidade de vida no trabalho
espalhadas por 71 cidades. Eles receberam apoio dos juízes que
Conceito de melhoria contínua
foram treinados nas fases 1 e 2. Os materiais disponíveis on-line
foram amplamente distribuídos e poderiam ser atualizados de MELHORIA Solução criativa de problemas
CONTÍNUA Benchmarking e boas práticas
forma rápida e regular. A composição do curso foi bem diversi-
ficada: videoaulas, webnários, chats em tempo real, recursos de Execução dos planos de ação
40 vídeo, quiz e ferramentas eletrônicas de banco de dados. RESULTADOS Contabilização de resultados
O curso on-line foi estruturado basicamente em 40 video-
aulas, gravadas pelo juiz federal e pelo executivo de negócios. Como a aprendizagem de adultos é processo ativo de refle-
Os principais tópicos podem ser vistos abaixo: xão e discussão, é necessário dar tempo aos participantes para
pensar nos novos conceitos de administração judicial, a fim de
vinculá-los às suas próprias experiências. Os participantes leva-
ram oito meses para concluir o curso, que estabeleceu metas
e objetivos a serem alcançados em cada unidade judiciária. O
curso ensinou também técnicas a serem empregadas na ges-
MÓDULO VIDEOAULA tão de processos e de pessoas, o que contribuiu ativamente
Necessidade de gestão no sistema de justiça para a criação e desenvolvimento de uma comunidade de boas
PROBLEMATIZAÇÃO Problemas na administração da Justiça I
práticas e a persistência de hábitos fundamentais para maior
E SOLUÇÃO eficácia no julgamento dos casos (O´CONNELL, 2012, p. 127).
Problemas na administração da Justiça II
Como os adultos aprendem com suas próprias experiências, in-
Eficiência, eficácia e o Poder Judiciário
centivar cada participante a oferecer a própria vivência durante
Gestão da Mudança o treinamento foi uma forma de mostrar a relevância disso. O
CONSTRUÇÃO DO
FUTURO DESEJADO
Planejamento estratégico e o Poder Judiciário uso de experiências reais, que poderiam ser aplicadas a outros
Execução estratégica participantes, trouxe significado ao aprendizado. O processo de
O SERVIÇO Prestação de serviços e o Poder Judiciário discutir ideias ajudou no esclarecimento em relação ao que as
JURISDICIONAL Administração judicial eficiente
pessoas pensam ou sentem sobre determinado aspecto do pro-
jeto. A discussão em grupo permitiu que todos fossem expostos
Conceito do modelo de gestão
a novas formas de pensar (MARTIN, 2001, p. 15).
Implantação do modelo de gestão
MODELO DE GESTÃO
Dimensões do diagnóstico situacional 4 RESULTADOS ALCANÇADOS
Execução do modelo de gestão Após os oito meses de treinamento on-line, 124 participantes
responderam voluntariamente um questionário para contar sua per-
cepção dos resultados alcançados pelo ensino a distância. A manei-
ra mais típica utilizada para mensurar o grau de aprendizagem é pe-
dir para que, ao final do curso, os estudantes realizem um teste, ou
avaliar que conhecimentos foram retidos após alguns meses depois

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 37-42, jan./jul. 2020


Carlos Henrique Borlido Haddad

da conclusão das aulas (EDWARDS, 2013, p. 117). A tabela abaixo abaixo ilustra a diferença entre novos casos e casos julgados.
demonstra que a maioria deles tinha percepção de melhora signi- Houve redução de 97.306 processos pendentes.
ficativa ou moderada nas dimensões mostradas no eixo horizontal: PROCESSOS NOVOS VS. PROCESSOS JULGADOS
(3/2017 – 2/2018)
Condi- Am- PROCESSOS NOVOS VS. PROCESSOS JULGADOS
Relação Satisfa-
ções de biente Comu- (3/2017 – 2/2018)
juiz/fun- ção da
traba- de nicação Os juízes que participaram do curso on-line decidiram,
cionário equipe
lho trabalho
em média, 2.405 casos por ano. Esse valor é superior à pro-
Muito Melhor 50 45 60 61 51 dutividade média estimada por juiz do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais (1.823 por ano). (CNJ, 2018, p. 86). Foi
Melhor 31 48 38 47 53
alcançado um ganho de produtividade de 582 processos por
Sem alteração 41 28 22 15 20 ano. No entanto, em vez de comparar o desempenho do parti-
cipante com a média dos juízes, é melhor compará-los com eles
Pior 0 3 3 1 0
mesmos, antes e depois do curso. O número de decisões por
Muito Pior 2 0 1 0 0 ano e por juiz teve aumento importante:

Conhe- Serviço Esclare-


cimento Lide­ Perfor- judicial cimento DECISÕES
de rança mance presta- dos ob-
gestão do jetivos
Anos 2016/2017 2017/2018
Muito Melhor 37 41 45 52 72

Melhor 65 67 61 57 45
Média 2.189 2.405

Sem alteração 22 16 18 15 7
63% das unidades judiciárias melhoraram o desempenho
Pior 0 0 0 0 0

Muito pior 0 0 0 0 0 51.450 decisões a mais


41
Todos os anos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) esta-
belece metas para o Judiciário brasileiro. A Meta 1 do CNJ diz Como resultado desse programa de treinamento, foram es-
que os tribunais devem decidir quantidade maior de processos critos dois livros: Manual de Administração Judicial, volumes I e
do que os novos que surgem no ano corrente. De acordo com II. Os livros contam um pouco sobre o desenvolvimento desse
os dados disponíveis, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais al- processo de implantação do modelo de gestão judicial e servem
cançou o resultado de 97,32% em 2017, significando que, em como ferramentas para ajudar os juízes a gerenciar melhor as
média, para cada 10 mil novos casos, 9.732 foram decididos. unidades judiciárias.
Nesse sentido, os juízes que participaram do curso on-
line receberam 671.370 novos processos em um ano e decidi- 5 CONCLUSÃO
ram 768.616 casos. Em média, para cada 10 mil novos proces- Ao contrário do setor privado, em que os economistas po-
sos, 11.449 foram decididos pelos juízes estaduais. O gráfico dem medir a qualidade mediante aumento da produção ou
das margens de lucro, os edu-
cadores do Poder Judiciário en-
PROCESSOS NOVOS VS. PROCESSOS JULGADOS frentam tarefa mais difícil em
(3/2017 – 2/2018) mensurar o impacto da forma-
ção educacional no aperfeiçoa-
mento da administração judicial
(O´CONNELL, 2012, p. 127). O
desafio de medir o resultado de
programas educacionais é par-
ticularmente afetado por recur-
sos limitados para a realização
de avaliações, associados à cres-
cente necessidade de que este
ramo da educação voltada ao
Judiciário se adapte ao aumen-
to ou à mudança da carga de
trabalho dos juízes e de sua equi-
pe (O´CONNELL, 2012, p. 130).

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 37-42, jan./jul. 2020


Carlos Henrique Borlido Haddad

De qualquer forma, toda atividade educacional deve ter


seus resultados medidos. Sem a avaliação da experiência edu-
cacional, não estará claro se valeu a pena. Não se trata apenas
de avaliação da aquisição de conhecimento pelos participantes,
mas de como o treinamento judicial tem impactado na organi-
zação. Na ausência de diretrizes nacionais, estaduais ou locais
para a realização da avaliação, o julgamento da efetividade do
programa gravita mais para avaliações de satisfação do que para
medições de impacto.
O programa de formação judicial desenvolvido no Tribunal
de Justiça de Minas Gerais tentou avaliar a transferência de co-
nhecimento do curso para o âmbito profissional, visando de-
monstrar o grau de sucesso do programa. A avaliação ajudou a
escola judicial a decidir se repetiria o programa educacional e
como melhorá-lo.
Novo curso on-line começou em julho de 2019, foi mais
curto e com temas relacionados a questões correcionais. O ob-
jetivo é treinar todos os juízes do Estado de Minas Gerais na
administração judicial até o fim de 2020. Se a meta da escola
judicial for alcançada, os juízes estaduais certamente se tornarão
mais competentes e produtivos, a administração da justiça será
reforçada e a confiança no sistema judiciário brasileiro experi-
mentará aumento.

REFERÊNCIAS
ARMYTAGE, Livingston. Judicial education as an agent of leadership and chan-
42 ge: lessons from common and civil law experience. The Philja Judicial Journal,
Manila, v. 5, n. 15, p. 1-34, jan./mar., 2003.
CLAXTON, Charles S. MURRELL, Patricia H. Education for development: princi-
ples and practices in judicial education. Williamsburg, VA: National Center for
State Courts, 1992.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Justiça em números: 2018: ano
base 2017. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2018.
EDWARDS, Mary Frances. Evaluation of continuing judicial education program-
mes: reaction, learning, acquisition/retention e behavior changes. Journal of the
International Organization for Judicial Training, [S.l.], v. 1, n. 1, aug., 2013.
FABRI, Marco; STEELMAN, David C. Can an italian Court use the american approach
to delay reduction? Justice System Journal, Williamsburg, v. 29, n. 1, p. 1-23, 2008.
MARTIN, Wayne. Future directions in judicial education. Supreme and Federal
Court Judge’s Conference, Wellington, 2001.
O’CONNELL, Ann A. TULL, M. Christy. Investiments in human capital pay divi-
dends for courts. Williamsburg: National Center for State Courts, 2012.
SANTOS, Boaventura de Sousa et al. A gestão dos tribunais: um olhar sobre a
experiência das comarcas piloto. Coimbra: Observatório Permanente da Justiça
Portuguesa, 2010.
THOMAS, Cheryl. Review of judicial training and educational in other jurisdic-
tions: report prepared for the Judicial Studies Board. London: University of
Birmingham School of Law, may 2006. Disponível em: https://www.ucl.ac.uk/
judicial-institute/sites/judicial-institute/files/judicial_training_and_education_
in_other_jurisdictions.pdf

Artigo recebido em: 20/3/2020.


Artigo aprovado em: 18/5/2020.

Carlos Henrique Borlido Haddad é Juiz Federal, Professor


Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG e Pós-Doutor pela
Universidade de Michigan.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 37-42, jan./jul. 2020


D I R E I T O PEN AL
Silvio Wanderley do Nascimento Lima

APONTAMENTOS SOBRE A 43

INDISPONIBILIDADE DE ATIVOS FINANCEIROS


E A NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE
NOTES ON THE UNAVAILABILITY OF FINANCIAL ASSETS AND
THE NEW ACT OF ABUSE OF AUTHORITY
Silvio Wanderley do Nascimento Lima

RESUMO ABSTRACT
Examina aspectos relativos à aplicação do artigo 36 da Lei n. This paper looks into some aspects relating to the application
13.869/2019 que sanciona, criminalmente, a indisponibilidade of article 36 of Act 13,869/2019, which criminally sanctions
de ativos financeiros realizada com excesso. Aborda a indetermi- the unavailability of financial assets carried out in excess. It
nabilidade da conduta passível de punição, bem como aspectos addresses the indistinctness of conduct subject to
inerentes às condições necessárias para o enquadramento dos punishment and also some deep-seated aspects related
atos dos magistrados no novo tipo penal. to the necessary conditions for the categorization
of judges’ rulings into a new penal norm.
PALAVRAS-CHAVE
Direito Penal; indisponibilidade de bens; ativos financeiros; exa- KEYWORDS
cerbação; crime; Lei n. 13.869/2019. Criminal Law; unavailability of assets; financial assets;
worsening; crime; Act 13,869/2019.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 43-54, jan./jul. 2020


Silvio Wanderley do Nascimento Lima

1 DA INDISPONIBILIDADE ná-los impassíveis de transferência de titularidade, a efetivação


A promulgação da Lei n. 13.869, de 5 de setembro de 2019, de tal medida concorre para que os respectivos valores sejam
denominada, por alguns, “Lei do Abuso de Autoridade”, tem cau- objeto de depósito judicial, vinculado ao juízo e ao processo em
sado preocupação entre os agentes públicos responsáveis pela que a medida foi determinada.
persecução e julgamento de infrações penais, mas não só a estes. Não é inusual supor que a indisponibilidade de ativos finan-
Dispositivos da mencionada norma também produzem reflexos ceiros, por sua afirmada gravosidade, estaria inserta no âmbito
para além da seara penal. Neste despretensioso texto, pretende- da reserva de jurisdição. Todavia, não é correta essa ideia. O
mos examinar uma das condutas tipificadas que, em abstrato, ordenamento jurídico confere a órgãos e entidades não juris-
pode ocorrer em todas as modalidades do processo judicial. dicionais competência para a decretação de indisponibilidade
O dispositivo a que nos referimos é o artigo 36, in verbis: e, portanto, para deliberarem sobre esta. Assim é que a Lei n.
Art. 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilida- 8.443/19923 autoriza ao Tribunal de Contas da União – TCU a
de de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbada- decretar a indisponibilidade de bens.
mente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, Do mesmo modo, a indisponibilidade de bens também de-
ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, corre da decretação, pelo Banco Central do Brasil4, de interven-
deixar de corrigi-la: ção ou de liquidação extrajudicial de instituições financeiras pri-
Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. vadas, públicas não federais e cooperativas de crédito.
Uma parcela do elemento objetivo do tipo consiste em de- As entidades abertas e as entidades fechadas de previdên-
cretar – determinar – a indisponibilidade de um gênero de bens: cia complementar também estão sujeitas à intervenção/liqui-
ativos financeiros. Isto é, recursos que, em geral, são mantidos e dação promovidas, respectivamente, pela Superintendência de
circulam por instituições financeiras. Seguros Privados – SUSEP e pela Superintendência Nacional de
Previdência Complementar – PREVIC. Da intervenção/liquidação
Nos termos do Código de Processo Civil, o também resulta a indisponibilidade de bens, tal como figura da
dinheiro, em espécie ou em depósito ou Lei Complementar n. 109/20015. Algumas agências reguladoras
também podem decretar o regime de direção fiscal ou a liquida-
aplicação em instituição financeira, é o bem
ção extrajudicial das entidades que atuam no segmento regula-
cuja constrição é preferencial (art. 835, § 1º), do, sendo que tais atos importam6.
precedendo aos demais.
44 2 DO SUJEITO ATIVO DO DELITO
Nos termos do Código de Processo Civil, o dinheiro, em es- Conquanto a determinação da indisponibilidade de bens,
pécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira, é dentre eles incluídos os ativos financeiros, não seja uma prer-
o bem cuja constrição é preferencial (art. 835, § 1º), preceden- rogativa exclusiva do Poder Judiciário, percebe-se que a norma
do aos demais. Dita preferência dá-se em virtude de esta ser a incriminadora restringiu seu alcance aos membros do aludido
modalidade de bem que, com menor custo, permite a mais efi- Poder. É que essa norma define, expressamente, o locus da
ciente efetivação da prestação devida ao credor1, simplificando conduta, qual seja, o processo judicial. Logo, trata-se de crime
a realização dos atos de expropriação, eis que esta se dará com próprio tendo como único sujeito ativo possível o membro do
a mera entrega dos recursos financeiros ao credor/exequente2. Poder Judiciário, uma vez que só este tem competência para de-
Por seu turno, a indisponibilidade consiste na impossibili- terminar a indisponibilidade no processo judicial.
dade de um bem vir a ser objeto de alienação ou oneração por Um breve comentário: se o mote da norma seria conter
seu titular. A prática dos referidos atos, após a decretação da eventuais condutas desproporcionais ou irrazoáveis que co-
indisponibilidade, implica a ineficácia destes perante o autor/ locassem os investigados/réus/executados em situação cons-
exequente da ação em que a medida judicial foi deferida (art. trangedora, ante a retirada do acesso aos meios materiais mais
792, § 1º do CPC). A indisponibilidade não se confunde com a imediatos para o cumprimento de suas obrigações (recursos fi-
expropriação, uma vez que naquela apenas uma das faculdades nanceiros), e se o sujeito ativo dos crimes de abuso de autori-
inerentes à propriedade fica obstada, à disposição. A expropria- dade, nos termos do artigo 2º da Lei n. 13.869/2019, é qual-
ção torna nenhum o direito de propriedade e, por conseguinte, quer agente público, servidor ou não, da administração direta,
todas as faculdades inerentes a ele. indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos
A indisponibilidade de bens é uma medida que tem por Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, com-
finalidade viabilizar futura expropriação ou restituição, poden- preendendo, servidores públicos e militares ou pessoas a eles
do consistir em ato de natureza cautelar ou executivo, como equiparadas e membros dos tribunais ou conselhos de contas,
adiante se verá. haveria razão para a norma restringir-se apenas ao processo ju-
A Carta Magna faz alusão à indisponibilidade de bens no dicial e, por conseguinte, aos membros do Poder Judiciário?
contexto da improbidade administrativa (art. 37, § 4º), porém o Não se alegue que seria possível atribuir à expressão “em pro-
referido instituto, como é cediço, não se exaure na referida hi- cesso judicial” o sentido de que se trataria de qualquer procedi-
pótese, podendo ser determinada no contexto de ações penais, mento conduzido por entidade ou órgão integrante da estrutura
ações civis públicas, no cumprimento de sentença, nas execu- estatal, posto que isso importaria adotar interpretação analógica
ções em geral, entre outras. para imposição de sanção penal, resultando em violação aos prin-
Como a indisponibilidade de ativos financeiros implica tor- cípios da legalidade e da especialidade e, por conseguinte, em

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 43-54, jan./jul. 2020


Silvio Wanderley do Nascimento Lima

descompasso para com o ordenamento pela prática de crimes ou contravenções, a demonstração de atos concretos de
jurídico penal7. cuja sanção possa, em linha de princípio, dissipação patrimonial pelos acusados.
Ao que parece, a única ratio que pode- consistir na temporária perda da liberda- (STF, Pet 7069 AgR, Relator: Min. Roberto
ria justificar a distinção seria o fato de a in- de de locomoção. Barroso, Primeira Turma, DJe-095 publi-
disponibilidade, nas hipóteses em que ad- Na seara penal, a indisponibilidade cado em 9/5/2019).
vinda de ato de entidades da Administração é uma medida assecuratória (de índole Na esfera cível, a indisponibilidade,
Pública, ser uma decorrência ex lege de ou- cautelar), voltada a salvaguardar, precí- na fase de conhecimento, resulta de ato
tro ato (intervenção, liquidação extrajudicial, pua, mas não exclusivamente, os inte- jurisdicional revestido da natureza de tu-
direção fiscal etc.), não consistindo em uma resses da vítima, em razão dos efeitos tela provisória de urgência cautelar, no
determinação específica, portanto a realiza- patrimoniais deletérios que a infração que guardaria correlação com a indispo-
ção do núcleo da conduta típica não seria o penal proporcionou. Direciona-se, en- nibilidade no âmbito penal. Por sua vez,
objeto da vontade do agente, mas apenas o tão, à restituição dos bens à vítima, ou na fase ou no processo de execução, a in-
desdobramento de outra conduta. Todavia, ao pagamento do correspondente pecu- disponibilidade decorre, no mais das ve-
esta lógica não se aplicaria ao TCU, pois a niário, que lhe foram desfalcados em ra- zes, de ato preordenado à satisfação da
Corte de Contas pode determinar a indis- zão da conduta delituosa, bem como à obrigação, ou seja, executivo típico.
ponibilidade de bens como ato específico, composição de outros danos (materiais, Em qualquer das hipóteses, cognição
no contexto de apuração que, perante esta, morais e estéticos) que o ilícito penal te- ou execução, a indisponibilidade de ati-
esteja em curso. Convém recordar que, nha proporcionado8. Contudo, não são vos financeiros pode ser operacionaliza-
embora receba a denominação de tribunal, somente estes os escopos das medidas da por intermédio do Sistema BACENJUD.
o TCU não integra o Poder Judiciário (art. em foco, como já se manifestou o colen- Há previsão expressa, para tanto, no art.
92 da CRFB), portanto nem os processos do Superior Tribunal de Justiça: 854 do Código de Processo Civil, o qual,
sujeitos à sua competência, nem os atos O entendimento dessa Corte é no literalmente, determina que a medida seja
nele praticados são judiciais. sentido de que a realização de quaisquer promovida sem dar ciência ao executado.
De qualquer forma, parece claro que das medidas assecuratórias previstas na A rigor, sequer é correto afirmar, em
o potencial sujeito ativo é apenas o ma- legislação processual penal, tais como o sede de cumprimento de sentença ou de
gistrado de 1º grau, o qual, usualmen- sequestro, o arresto e a hipoteca legal, processo de execução, que o executado
te, determina a prática do ato em foco. tem por fim garantir tanto a reparação possa ser surpreendido com a indispo-
Excepcionalmente, a medida pode ser de dano ex delicto quanto à efetividade nibilidade de ativos financeiros. Ativos fi- 45
deferida, nos tribunais, monocraticamen- da multa pecuniária e ao pagamento das nanceiros são, em princípio, bens passí-
te pelo relator (art. 932, inciso II, do CPC). custas processuais que possam vir a ser veis de penhora (art. 835, I a III e XIII, do
Eventual deliberação por órgão colegiado, impostas ao denunciado (REsp 1319345/ CPC) e a penhora é uma consequência
conquanto possa, em abstrato, sujeitar os PR, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, direta e imediata do decurso do prazo
respectivos membros à prática do delito, SEXTA TURMA, DJe de 3/9/2015). para pagamento do débito9.
a nosso sentir, seria de ocorrência bastan-
te improvável, posto que, para a imputa- Ativos financeiros são, em princípio, bens passíveis de
ção da responsabilidade, necessária se faz penhora (art. 835, I a III e XIII, do CPC) e a penhora é uma
a individuação da culpabilidade de cada
um dos agentes, no caso, dos membros do consequência direta e imediata do decurso do prazo para
colegiado. Além disso, há outro aspecto de pagamento do débito.
relevo, que adiante será abordado, o qual
restringe, ainda mais, a possibilidade de en- As medidas assecuratórias podem No momento em que intimado/ci-
quadramento da conduta na figura típica ser reais (CPP, arts. 125-144) ou de tado para pagar o débito, o executado
quando a deliberação pela indisponibilida- apreensão (CPP, art. 240, § 1º, b), po- também tem ciência de que o não cum-
de emanar de órgão colegiado. rém, em qualquer caso, por se tratarem primento da obrigação no prazo legal
Do exposto, parece evidenciado que de medidas de natureza cautelar, o seu (quinze dias, no cumprimento de sen-
a norma visa alcançar, precipuamente, o deferimento dá-se com fundamento em tença; três, na execução ordinária e cinco,
magistrado de primeiro grau. exame perfunctório, típico dessa modali- na execução fiscal), implicará a realização
dade de provimento jurisdicional. Dessa da penhora. Esse raciocínio é válido, in-
3 DA INDISPONIBILIDADE DE BENS E DAS forma, para a decretação de medidas clusive, quando a citação tenha sido fic-
MODALIDADES DE PROCESSO EM QUE A cautelares, mostra-se suficiente a certe- ta (edital ou com hora certa), uma vez
MESMA PODE SER DECRETADA za da materialidade e indícios de auto- que, por envolver modalidades admiti-
Por seu turno, como a lei se refere a ria, sendo certo que o seu deferimento das pelo direito (arts. 246, IV, e 252/254,
processo judicial, pode o ato ser pratica- inaudita altera pars não implica violação do CPC), produzem o mesmo efeito das
do em qualquer modalidade de proces- ao princípio do contraditório e da ampla citações reais.
so, isto é, cível ou penal. Entendendo-se defesa, e, como já se afirmou: O perigo As ações de improbidade adminis-
por cível todo aquele que não tenha por na demora é ínsito às medidas assecu- trativa contam com expressa previsão
objeto a promoção da responsabilidade ratórias penais, sendo desnecessária quanto à possibilidade de, cautelarmen-

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te10, ser decretada a indisponibilidade de bens dos réus, quando deveriam ser liberados, porém a aplicação do aludido princípio
presentes fortes indícios de responsabilidade pela prática de ato deve ser examinada de modo casuístico, reclamando o exame
ímprobo que cause dano ao erário, não havendo necessidade individualizado das circunstâncias envolvidas15, constituindo-se
de comprovação de que o demandado esteja praticando atos de em exceção e não, em regra.
disposição de seu patrimônio, pois o perigo de dano se perfaz ex Conclui-se, então, que, conquanto a indisponibilidade pos-
lege, sendo inerente ao próprio microssistema das ações de im- sa abarcar diversos tipos de bens, para fins de caracterização da
probidade11. O montante indisponibilizado não se limita ao valor eventual incursão na conduta tipificada, o excesso de constrição
do eventual ressarcimento, mas também pode incluir a quantia punível deve ser examinado tendo por elementos de compara-
correspondente à possível multa civil, como sanção autônoma12. ção, exclusivamente, o montante dos ativos financeiros constri-
A indisponibilidade de bens de que trata a Lei n. 8.429/1992 tos e o “valor estimado” do débito.
tem sido entendida como de aplicação no âmbito das ações ci-
vis públicas e populares, posto que todas essas ações integram 5 DA EXTRAPOLAÇÃO EXACERBADA: UMA TENTATIVA DE
o microssistema de proteção dos interesses e direitos coletivos13. DELIMITAÇÃO DO ALCANCE DO ELEMENTO NORMATIVO DO TIPO
Visto, brevemente, o leque de hipóteses em que a indispo-
4 DA INCURSÃO NA CONDUTA TÍPICA nibilidade pode vir a ser concretizada, cabe, minimamente, co-
Neste momento, uma primeira conclusão pode ser alçada: mentar sobre o elemento normativo16 do tipo penal em foco. O
por força do princípio da tipicidade14, somente está autorizada a tipo penal refere-se a “extrapolar exacerbadamente”.
caracterização da conduta cominada quando a indisponibilida- Uma primeira observação que se pode fazer é no sentido
de recair sobre ativos financeiros, não estando sujeita à qualifi- da pouca objetividade da expressão, sendo certo que, mormen-
cação como delituosa a conduta que resultar na constrição de te em se tratando de normas que disciplinam condutas pas-
outros bens arrolados no art. 835 do CPC, que não se subsu- síveis de punição, a adequada apreensão do comportamento
mam ao conceito de ativo financeiro. vedado ou reprimido se faz indispensável, pois sua imprecisão
Por seu turno, hipótese interessante, e de ocorrência co- compromete a segurança jurídica, isto é, a possibilidade de o in-
mum, consiste em a indisponibilidade atingir um conjunto for- divíduo antever os potenciais efeitos e consequências dos atos
mado por ativos financeiros e por outros bens. Nesse caso, o que se propõe a praticar.
eventual excesso sobre o total dos bens poderia caracterizar a No caso, parece pouco razoável admitir a adequação cons-
conduta delitiva ou, para tal fim, apenas deveria ser tomado o titucional do aludido tipo penal, uma vez que a indeterminabili-
46 valor dos ativos financeiros bloqueados? dade objetiva da conduta permite afirmar que o dispositivo legal
está inquinado com nulidade, por conta de sua imprecisão, de
A precisão com que as condutas vedadas sua vagueza (void for vagueness). Sobre a inconstitucionalida-
devem ser descritas na lei penal é um de das normas imprecisas, Eduardo Pitrez de Aguiar Correa17
(2011) assevera que:
imperativo de segurança jurídica e encontra
Uma das mais famosas invocações da doutrina é atribuída
acolhimento no ordenamento jurídico pátrio por ao Juiz Holmes, em Nash v. United States, quando, divergindo
força do princípio da taxatividade [...] dos demais julgadores, advertiu-os dos riscos da indetermina-
ção da lei penal, argumentando:
A nosso sentir, dois aspectos concorreriam para que só os A lei é cheia de exemplos nos quais o destino de um ho-
ativos financeiros sejam considerados. O primeiro seria, como mem depende de sua correta avaliação [...] Se o julgamento é
visto, o fato de a indisponibilidade sobre bens diversos de ativos errado, ele pode não somente incorrer numa multa ou numa
financeiros não se amoldar à descrição da conduta típica. Assim, prisão curta [...]; ele pode incorrer numa pena de morte.
para fins de imputação de responsabilidade penal, ao se preten- A indeterminação inconstitucional de uma lei penal parte
der incluir os valores dos bens que não sejam ativos financeiros da compreensão de que “todo homem deve ser capaz de sa-
na apuração do montante considerado excessivo estar-se-ia ex- ber, com certeza, quando está cometendo um crime, de modo
trapolando os limites objetivos da descrição da conduta típica que “uma lei que proíbe ou obriga a uma ação em termos tão
e, portanto, violando o já mencionado princípio da tipicidade. vagos que um homem de inteligência comum deve necessaria-
Ainda que se considerasse o somatório dos valores dos ati- mente adivinhar o seu significado [...] viola a essência básica do
vos financeiros e dos demais bens para caracterizar o excesso, devido processo.
um segundo aspecto relevante seria a circunstância de que, nos Associada à cláusula do devido processo legal e à máxima
termos do CPC, a constrição sobre o dinheiro, como visto, é nela incorporada do ubi jus incertum, ibi jus nullum, a teoria in-
preferencial (art. 835, § 1º). Isso implicaria que o eventual ex- voca uma série de razões pelas quais se deve invalidar a norma
cesso concorresse, de ordinário, para o desbloqueio dos demais penal indeterminada, com o objetivo de fazer prevalecer, em
bens e não dos ativos financeiros. Então, a constrição “abusiva” última instância, o rule of law, not of men.
não estaria recaindo, em primeira análise, sobre os ativos fi- A precisão com que as condutas vedadas devem ser des-
nanceiros, mas sim sobre outras modalidades de bens e, por critas na lei penal é um imperativo de segurança jurídica e en-
conseguinte, importaria fato atípico. É evidente que sempre se contra acolhimento no ordenamento jurídico pátrio por força
poderia argumentar, tendo por base o princípio da menor one- do princípio da taxatividade, o qual [...] preside a formulação
rosidade (art. 805 do CPC), que os ativos financeiros poderiam/ da técnica da lei penal e indica o dever imposto ao legislador

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de proceder, quando redige a norma, de tas de tributos ou da instituição de al- nas uma medida voltada a resguardar
maneira precisa na determinação dos ti- guma nova exação, não prescinde do ou viabilizar a futura satisfação de um
pos legais, para saber, taxativamente, o exame do caso concreto. Nesse senti- crédito, cujo titular nem sempre será o
que é penalmente ilícito e o que é penal- do, a Suprema Corte18 já assentou que Estado. Nesse caso, o atuar do Estado, na
mente permitido (DOTTI, 2000, p. 60). as conjecturas sobre um incremento qualidade de Estado-juiz, tem o escopo
Ainda que assim não fosse, convém de tributação em comparação com a de assegurar a efetividade da prestação
observar que a expressão em foco não carga tributária já posta, tomada ge- jurisdicional.
conta com significado específico na ci- nericamente, não permitem, por si só, Partindo, assim, da necessária co-
ência do direito, portanto deve ser exa- a conclusão quanto à gravosidade da erência interna que deve orientar o sis-
minada sob o prisma semântico. Assim, atuação estatal. O tema então não con- tema jurídico, uma primeira possível
tem-se que extrapolar guarda a ideia de ta com um referencial objetivo (numé- conclusão seria no sentido de que a qua-
superar, de exceder determinado refe- rico) para mensuração. lificação como abusiva de uma ação esta-
rencial, podendo ser entendido como Se, no plano das obrigações tributá- tal menos gravosa – a indisponibilidade –
“ultrapassar os limites” (HOUAISS, rias principais, o STF não tem reconheci- somente deve ser admitida, quando, no
2011, p. 1293). Por sua vez, exacerbar do a exacerbação tributária, a impedir a mínimo, houverem sido ultrapassados
significa “tornar(se) mais intenso, avi- fixação de um referencial sobre os limi- os limites já gizados no ordenamento
var(se), agravar(se)” (HOUAISS, 2011, tes a serem observados, no que se refere jurídico que permitiriam atribuir idênti-
p. 1.279). Ou seja, aumentar significa- às obrigações acessórias, o parâmetro já ca qualificação à atuação mais gravosa –
tivamente, exagerar. O advérbio que veio a ser fixado pela Corte Maior, a qual imposição de multa em valor excessivo
conta com o mesmo radical denota a considera que os valores das multas pu- (confisco).
noção de algo que é feito com intensi- nitivas são confiscatórios quando ultra- Vejamos, então, outra circunstância
dade anormal. Logo, extrapolar exacer- passam o percentual de 100% (cem por em que a lei busca evitar que a falta de
badamente pode ser entendido como a cento) do montante do tributo devido. razoabilidade do Estado, no âmbito pro-
conduta que ultrapassa limites de forma Então, somente quando o Estado inten- cessual, cause substancial prejuízo patri-
exagerada. No caso, implicaria exceder, ta avançar sobre o patrimônio do contri- monial ao devedor, falamos da arremata-
em quantidade muito superior, o valor buinte, com o intuito de perceber quan- ção, em leilão judicial, por preço vil.
estimado para a satisfação da dívida. tia oriunda de uma sanção tributária, que O artigo 891 do Código de Processo
A composição dos vocábulos utili- exceda o mesmo montante do tributo é Civil, estabelece que nos leilões judiciais 47
zados perpassa a ideia de algo signi- que se observará um exagero e, por con- não será aceito lance que ofereça pre-
ficativamente desproporcional; se, por seguinte, uma violação constitucional. ço vil, assim entendido aquele estipula-
um lado, extrapolar poderia até impor-
tar qualquer sobejamento – um centa- [...] a prévia determinação da quebra de sigilo bancário, com
vo que o fosse –, de outro, exacerba- o intuito de evitar um incerto bloqueio excessivo, é mais
damente reclama que o excesso seja
de grande extensão. Não há na norma gravosa aos direitos fundamentais do devedor do que
um referencial claro para definir qual submetê-lo ao risco em foco [...]
seja a exasperação do valor que o tor-
ne excessivo. A questão em voga não é de índole do pelo juiz, constante do edital, ou, em
Por certo, a incriminação de con- tributária, bem como que a indisponibili- não havendo expressa definição, aquele
dutas que impliquem a excessividade dade não consiste na aplicação de uma inferior a cinquenta por cento do valor
do valor indisponibilizado destina-se a sanção. Realmente, não é o caso, porém, da avaliação. É dizer, a lei processual, em
impedir que, arbitrariamente, o inves- o que se busca realçar são os limites de regra, não admite que o patrimônio do
tigado/réu/executado tenha por com- uma conduta estatal, que repercute so- executado seja transferido para outrem
prometida a livre disposição de seu pa- bre o patrimônio dos indivíduos, cuja im- com depreciação superior a cinquenta
trimônio, ainda que temporariamente. putação de abusividade foi questionada por cento de seu valor. Haveria, em prin-
Obstar que o patrimônio do indivíduo (não parece haver dúvida de que o con- cípio, abusividade na ação estatal que
seja indevidamente amesquinhado por fisco é um ato abusivo). Sob este enfo- não respeitasse tal limite.
conta de uma ação estatal arbitrária foi que, a indisponibilidade de ativos finan- Então, o Estado não pode causar gra-
uma preocupação do constituinte, o ceiros conta com características similares. vame ao executado que implique perda
qual entendeu por interditar ao Estado Destaque-se que, na multa tributária, o que sobeje metade do valor de avaliação
atuações de forma irracional, desme- Estado pretende, a título de aplicação de do bem penhorado.
didas, na ocasião do exercício de sua uma sanção, apropriar-se de parcela do Na forma supra, extrai-se do ordena-
atividade tributante (portanto, apta a patrimônio do contribuinte, isto é, inten- mento jurídico duas hipóteses, uma juris-
comprometer o patrimônio dos indi- ta transpor patrimônio do indivíduo para dicional outra legislativa, nas quais foram
víduos), vedando assim o confisco. É o erário. Por sua vez, a indisponibilida- firmados marcos limitativos da incursão
bem verdade que a noção de confis- de de bens detém natureza instrumental, estatal sobre o patrimônio dos indivídu-
co, em razão da majoração de alíquo- não é um fim em si mesma, mas ape- os, delimitando o que deve ser tomado

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como razoável, sendo certo que tais marcos, conquanto dota- de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbada-
dos de diferentes ordem de grandeza – 100% e 50% –, indicam mente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e,
que a noção de abusividade não se coaduna com transpasses ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medi-
de limites de reduzida significância. da, deixar de corrigi-la.
Impende ressaltar que, embora em valores absolutos um A descrição induz a classificação como plurissubsistente
excesso de constrição possa ser considerado como de elevada para o crime em tela. É sabido que “Há crime plurissubsisten-
monta, a sua eventual indisponibilidade, por si só, não permiti- te quando o processo executivo se compõe de vários atos ou
ria enquadrá-lo no conceito em foco, necessário seria que, em etapas, de modo a caracterizar o iter criminis.” (DOTTI, 2001,
termos proporcionais, o montante excedesse, substancialmente, p. 379).
o valor estimado como devido. Para nós resta claro que, a rigor, a conduta cominada seria
Como dito, extrapolar pressupõe a existência de um refe- determinar a indisponibilidade excessiva e deixar de liberar o ex-
rencial, implicando que se proceda à comparação entre o exces- cesso da constrição, quando demonstrado que este sobeja, de
so e o referencial. O ato de comparar acarreta relacionar (coisas forma exacerbada (e não de modo pouco significativo) determi-
animadas ou inanimadas, concretas ou abstratas, da mesma nado montante, o qual a lei denomina como o valor estimado
natureza ou que apresentem similitudes) para procurar as re- da dívida. Decretar a indisponibilidade e não desbloquear o ex-
lações de semelhança ou de disparidade que entre elas exis- cesso são condutas que devem coexistir. Sem isso, o tipo penal
tam (HOUAISS, 2001, p. 773). não se concretiza faticamente.
Nesta senda, a mera decretação da indisponibilidade, por
[...] a prévia determinação da quebra de sigilo mais gravosa e exacerbada que seja, por si só, não caracteriza-
bancário, com o intuito de evitar um incerto ria a prática do delito em testilha. Isso afasta uma preocupação
que teria se instalado no sentido de que a mera utilização do
bloqueio excessivo, é mais gravosa aos
Sistema BACENJUD importaria expor os magistrados ao risco de
direitos fundamentais do devedor do que incorrer na conduta delituosa. O receio adviria de, em virtude
submetê-lo ao risco em foco [...] da forma como é realizada a pesquisa de ativos financeiros no
aludido sistema, ser possível que a quantia objeto da indispo-
Comparações devem ser promovidas observando-se um nibilidade seja constrita, integralmente, em mais de uma insti-
determinado contexto. No caso, compara-se o valor do excesso tuição financeira com as quais o executado mantenha vincula-
48 com o valor estimado do débito, uma vez que o tipo penal aduz ção. Desse modo, possível é que sejam efetuados bloqueios em
à “quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado bancos diferentes, cujo somatório supere, às vezes em muito,
para a satisfação da dívida”. Assim, a comparação não visa aferir o valor solicitado. Hipoteticamente, determina-se o bloqueio de
qual das quantias é maior (valor absoluto), mas sim quanto uma R$ 20.000,00 e são constritos R$ 80.000,00, pois o executado
delas representa em relação à outra (proporção), pois o que se mantinha depósitos iguais ou superiores a R$ 20.000,00 em
pretende é atribuir a uma das quantias determinada qualificação quatro instituições financeiras diferentes.
(exacerbada) a partir do cotejo com a outra. Logo, em se tratando A hipótese mencionada é de possível ocorrência. Todavia,
de referencial numérico, a aferição da discrepância (do excesso) dispõe de disciplina própria no regramento processual civil, a
deve se dar em termos de proporção (de relação percentual). evidenciar que o legislador já havia antevisto que o bloqueio,
Imaginemos a hipótese em que houve uma constrição a embora requerido nos limites do débito exequendo, poderia vir
maior da ordem de R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). a excedê-lo. Por tal razão, a norma processual estatui que, no
Por certo, o montante é elevado. Todavia, tal indisponibilidade prazo de 24 (vinte e quatro) horas, contadas da resposta apre-
não extrapolaria, exageradamente, o valor estimado do débito, sentada pela instituição financeira, o juiz determine, de ofício, o
caso este fosse, por exemplo, da ordem de R$ 100.000.000,00 cancelamento de eventual indisponibilidade excessiva (art. 854,
(cem milhões de reais), uma vez que a desproporção entre os § 1º, do CPC). Então, a possibilidade de um bloqueio inicial ul-
valores – 10% (dez por cento) – não seria, comparativamente, trapassar os limites em que foi solicitado faz parte da sistemática
exagerada. Com efeito, cabe ter em mente a relação percentual da penhora de ativos financeiros e já foi sopesada pelo legisla-
entre o excesso e o montante da dívida, devendo esta propor- dor, não podendo dita ocorrência, ipso facto, ser considerada
ção ser substancial para fins de caracterização da exacerbação. criminosa. Ademais, como dito, o delito somente se aperfeiçoa
na hipótese de indevida recusa do magistrado em proceder ao
6 DA EFETIVA CONDUTA TIPIFICADA desbloqueio requerido pela parte.
De outra feita, de extrema relevância é observar que o tipo Além disso, se a determinação de bloqueio emanada do ju-
penal não pune, a rigor, a decretação da indisponibilidade exa- ízo corresponde ao exato valor do débito, eventual constrição a
cerbada, mas sim a não exclusão do excesso. É que o precep- maior, adviria de fato que não está sob o controle do magistra-
tivo legal se vale de uma conjunção aditiva “e” para unir duas do, qual seja, a manutenção pelo devedor de valores superiores
orações definidoras de comportamentos: a primeira, decretar a ao débito em mais de uma instituição financeira. Não haveria
indisponibilidade excessiva; a segunda, deixar de corrigi-la ante então dolo, muito menos específico, sendo certo que a circuns-
a demonstração, pela parte, de sua excessividade. tância em foco afastaria, no mínimo, a culpabilidade, ante a ine-
Vejamos, novamente, a descrição da conduta típica: xigibilidade de conduta diversa, pois não pode o magistrado
Art. 36. Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade deixar de cumprir o seu dever legal (determinar a constrição,

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quando presentes os requisitos que a au- possam ser determinados pelos tribu- da coisa (SILVA, p. 216).
torizam), tendo por base a especulação, nais, são materializados pelos juízos de O sentido de “estimar” guarda lia-
desprovida de elementos materiais indi- 1º grau. Ademais, via de regra, a decreta- me com as coisas (bens) e, portanto,
cativos de seu razoável grau de probabi- ção da indisponibilidade pelos tribunais traz a noção de avaliação. Avaliar pode
lidade, de que o excesso possa concreti- ocorre no bojo de um recurso, no qual, ser entendido como ato realizado em
zar-se no plano dos fatos. presume-se, a parte ré poderá se mani- juízo20 que tem a finalidade de tornar
A rigor, para obstar o risco de even- festar, sendo o deferimento da indisponi- conhecido a todos os interessados o
tual constrição excessiva ter-se-ia que, bilidade uma consequência do não aco- valor aproximado dos bens a serem
previamente, adotar a irrazoável medida lhimento dos argumentos do réu. Logo, utilizados como fonte dos meios com
de quebra do sigilo bancário19 do deve- no caso, a “demonstração, pela parte, da que o juízo promoverá a satisfação
dor, pois só assim seria dado ao magis- excessividade da medida” a que alude a do crédito do exequente (THEODORO
trado ter ciência do patrimônio financei- descrição do tipo não teria sido caracteri- JUNIOR, 2016, p. 535).
ro do devedor e direcionar sua conduta zada. Eventual decisão de tribunal supe- O montante exigido em juízo é aque-
(decretar a indisponibilidade) de modo rior entendendo pelo excesso, não pare- le representativo de uma obrigação. E
a não ultrapassar o valor do débito. Em ce, de ordinário, permitir a caracterização obrigações, para serem executadas, de-
juízo de ponderação, por certo, há de se do delito, tal como tentaremos demons- mandam liquidez21. Líquida é a obriga-
concluir que a prévia determinação da trar mais à frente. ção cuja determinabilidade do seu valor
quebra de sigilo bancário, com o intuito O tipo penal também peca, no pon- está configurada. Assim, liquidar impor-
de evitar um incerto bloqueio excessivo, to em espeque, por sua falta de clareza. ta estabelecer o montante representativo
é mais gravosa aos direitos fundamentais Como dito, o referencial para a caracteri- da obrigação, em fixar-lhe a exata exten-
do devedor do que submetê-lo ao risco zação da conduta delitiva perpassa pelo são, o quantum debeatur.
em foco, mormente, quando a circuns- cotejo entre o excesso de constrição e o Como visto, o montante que impor-
tância de o risco vir a ser convertido em valor estimado débito. Portanto, é preci- ta uma obrigação não é, a rigor, objeto
fato (a constrição a maior) conta com es- so que seja decretada a indisponibilida- de avaliação (estimação), mas sim de li-
pecífica disciplina legal, definindo o céle- de de ativos financeiros em quantia que quidação. Nas ações relativas às obriga-
re procedimento a ser adotado. ultrapasse significativamente o valor esti- ções de pagar quantia, conquanto tenha
Cumpre ressaltar que o mero de- mado para a satisfação da dívida. O que sido formulado pedido genérico, a sen-
curso do prazo fixado pela lei proces- entender, então, por valor estimado? tença deve ser líquida, ou seja, deve defi- 49
sual, sem o desbloqueio do excesso, Sobre o vocábulo “estimação”, De nir a extensão da obrigação, salvo se não
não caracteriza a conduta típica, eis Plácido e Silva (1987, p. 215/216) nos for possível, desde logo, determinar, de
que não materializada, ainda, a segun- esclarece que: modo definitivo, o montante devido ou a
da parte da definição legal do delito. Derivado do latim aestimateo, de apuração deste demandar instrução de-
Para ocorrência concreta do crime, ne- aestimare (dar valor, avaliar, calcular), morada ou excessivamente dispendiosa
cessário se faz que o interessado de- no sentido jurídico sempre foi tido na (art. 491 do CPC). A impossibilidade da
monstre ao julgador o excesso da me- acepção de apreciação, cálculo do va- determinação do valor impõe sua remes-
dida, posto que o tipo legal registra a lor, avaliação. E, nesse conceito, aplica- sa à apuração por liquidação (art. 491, §
seguinte explicitação: “ante a demons- vam-no já os romanos, quando diziam: 1º, do CPC).
tração, pela parte, da excessividade da venire in aestimationem (ser avaliado A nosso sentir, estimar guarda corre-
medida”. Destarte, será o requerimen- ou taxado). Mas, estimação, nesta acep- lação com avaliar e consiste na apuração
to do interessado, apontando e com- ção, possui amplo sentido: é não só o do valor a ser atribuído às coisas (bens)
provando o excesso, que irá permitir ato de atribuir o preço ou o valor de al- em razão de suas qualidades intrínsecas
o desencadear dos fatos que poderão, guma coisa, como calcular o valor, ou ou extrínsecas. Nesse caso, a avaliação
ou não, caracterizar a incursão na con- seja, a própria avaliação. (estimação) não define se o montante
duta típica. Diga-se, desde logo, que [...] do débito em cobrança está correto ou
não basta o requerimento, posto que Em qualquer dos casos, em que se não, mas, apenas, quantifica o valor de
este, nos termos do artigo 10 do CPC, apresente, estimação será sempre a um bem constrito, permitindo que se afi-
deve ser submetido ao contraditório, procura do valor ou o cálculo do preço ra sua potencial capacidade de satisfazer
e à posterior manifestação judicial, a de alguma coisa, a fim de que se verifi- a quantia exigida em uma execução.
qual, em linha de princípio, conta com que não só preço econômico ou de tro- Então, parece claro que a expressão
o prazo de 10 (dez) dias úteis para ser ca, como o próprio valor de uso ou de “valor estimado” não deveria correspon-
externada (art. 226, inciso II, do CPC). afeição, quando este possa ser também der ao valor da obrigação definitivamen-
Como mencionado, a caracterização computado numa apreciação econômi- te fixado. Caso o “valor estimado” se con-
do delito por força de ato de órgão ju- ca. (g.n.) funda com o “valor definitivo” (alterável
dicial colegiado é bastante remota, uma Estimativa, então, é indicativo do ato somente mediante rescisão da decisão
vez que, salvo eventual hipótese de ação pelo qual se procede a uma estimação. que o fixou ou na hipótese de erro mate-
sujeita à competência originária, os atos É o cálculo ou o arbítrio empreendido rial), a indisponibilidade excessiva recla-
de decretação e desbloqueio, embora para evidência do valor ou estimação maria a prolação de decisão que deixasse

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de observar o aludido montante. Nesta senda, chamaremos de de hipótese “B”, na qual o autor informa, por exemplo, ser
hipótese “A” aquela em que o valor do débito corresponde a de “3X” o valor do débito, determinando-se a indisponibili-
“X” e a indisponibilidade foi determinada no valor de R$ “3X”. O dade no exato montante, vindo, em seguida, o réu a alegar
descompasso entre os valores, por certo, caracterizaria um erro que o valor correto seria “X”. Concluindo-se que o valor cor-
material, que poderia ser corrigido de ofício ou a requerimento reto seria “X” e não “3X”, caberia ao magistrado (antes ou
do devedor. Assim, afastada estaria a realização material da se- após preclusa a decisão, como entender adequado ao caso)
gunda parte da conduta descrita no tipo: “deixar de corrigi-la”. reduzir a constrição ao montante correto. Se não o fizesse,
Constitui-se em cenário assaz esdrúxulo supor que, na situ- em linhas bem gerais, poderia incorrer na conduta típica.
ação hipotética em foco, um magistrado, ciente de que o mon- Nesse caso, a pergunta a ecoar seria: se o magistrado já con-
tante definitivo que importa o débito é de “X” e alertado quan- cluiu que o valor correto seria “X” e não “3X”, e estando preclusa
to ao equívoco, mantivesse a indisponibilidade no importe de a decisão, por qual razão deixaria de proceder à liberação do ex-
“3X”, sem uma justificativa deveras plausível22. Por certo, uma cedente? O que o motivaria a agir de forma tão irrazoável, nesse
hipótese tão pouco razoável como essa permitiria inferir que específico caso, pareceria pertinente cogitar estar o magistrado
o agir do magistrado poderia ter a finalidade específica de pre- imbuído de uma “finalidade especifica de prejudicar” (art. 1º, § 2º,
judicar outrem ou de beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, da Lei n. 13.869/2019), tal como se daria na hipótese “A”, na qual
ainda, de atender mero capricho ou satisfação pessoal (art. 1º, § o valor do débito já havia sido definitivamente fixado.
2º da Lei n. 13.869/2019), porém, a alegoria em tela envolveria Sobressai importante realçar que, ao se conferir ao “valor
uma situação que extrapola o razoável e o cotidiano forense. estimado” o sentido de valor apontado por uma das partes e
De qualquer sorte, insta recordar que o ônus de demonstrar ainda passível de exame, um aspecto importante se descorti-
o dolo específico na conduta do magistrado será da acusação, na: a definição do enquadramento na figura típica passa a ter
pois No sistema acusatório adotado no processo penal brasi- como foco o valor do débito. É dizer: a caracterização do delito
leiro, é ônus da Acusação provar que o denunciado praticou as demandaria o prévio debate em torno do real montante da dí-
elementares do tipo penal23. vida. Assim, chamaremos de hipótese “C” aquela que nos pa-
Se esta era a hipótese vislumbrada pelo legislador, não se rece ser recorrente no cotidiano forense: afirmado pelo autor
demonstra exagerado afirmar que, excluída a função preventi- que o débito importaria “3X”, a indisponibilidade é realizada
va da prescrição penal, pouco sentido haveria em instituir tal com base no referido montante. Em seguida, o réu apresenta
cominação. Ressoa muito pouco provável que, no plano dos impugnação, sustentando que o valor correto seria “X”. O ma-
50 fatos, confluam todas as circunstâncias que deveriam se fazer gistrado, então, examina os argumentos e provas e decide que
presentes para a imposição da sanção: valor do débito não mais o correto é “3X”, ou outro valor, menor que “3X”, mas superior
passível de discussão, decretação da indisponibilidade a maior, ao pretendido pelo réu. Se não houver recurso, o montante se
excesso induvidoso e exacerbado, ciência do excesso e indevida tornará, em princípio26, definitivo e imutável, produzindo a cer-
recusa em proceder à retificação. teza quanto ao valor que importa a dívida. Nesse caso, excluída
a possibilidade de rescisão da decisão, não mais se poderá falar
O eventual descompasso entre a sua decisão e em “excessividade” e, por conseguinte, em enquadramento na
o entendimento firmado pelos órgãos figura típica, pois a eventual indisponibilidade efetuada no mon-
tante em tela estará correta, sob o prisma jurídico, descabendo
superiores não pode, por si só, implicar a
falar em “abusividade”.
caracterização de uma conduta delituosa em E se houver recurso? Por óbvio, se o recurso não for provi-
que tenha incorrido o julgador [...] do, recair-se-á na mesma situação anteriormente mencionada e
não se cogitará de crime. Mas e se o recurso for integralmente
Ademais, já existe no ordenamento jurídico figura típica vol- provido (isto é, o valor correto seria “X” e não “3X”), haveria, em
tada a punir o agente público que retarda ou deixa de praticar, tese, a possibilidade de caracterizar o delito? Cremos que, em
indevidamente, ato de ofício, para satisfazer interesse ou sen- condições normais, não.
timento pessoal: a prevaricação (art. 319 do Código Penal)24. Impende destacar que o magistrado, ao decidir pelo valor
Outra possibilidade interpretativa segue no sentido de entendido por ele como correto, exerceu sua atividade de for-
que o valor estimado não se confundiria com o valor defi- ma regular. O eventual descompasso entre a sua decisão e o
nitivo, mas sim com um montante ainda sujeito a questio- entendimento firmado pelos órgãos superiores não pode, por si
namentos. Veja-se que a expressão “valor estimado” e o vo- só, implicar a caracterização de uma conduta delituosa em que
cábulo “estimativa” são identificados no texto do Código de tenha incorrido o julgador; se assim fosse, apenar-se-ia o juiz
Processo Civil, e indicam uma quantia afirmada por uma das por uma divergência de interpretação27 e, com isso, romper-se-
partes e sujeita ao crivo das demais25. -ia um dos pilares que sustenta a concretização de uma ordem
Atribuir ao “valor estimado” o sentido mencionado apa- jurídica justa: a independência do magistrado, externada por in-
renta ser mais compatível com a estrutura do dispositivo pe- termédio de seu convencimento motivado. Veja-se que,28 já se
nal em tela, que aduz à “demonstração, pela parte, da exces- pronunciou no sentido de que:
sividade”, ou seja, sugere ter havido algum debate quanto O magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas
ao correto valor. Se assim for, estar-se-ia, então, diante de opiniões que manifestar ou pelo teor das decisões que profe-
uma hipótese de ocorrência mais comum, que chamaremos rir, exceto se, ao agir de maneira abusiva e com o propósito ine-

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quívoco de ofender, incidir nas hipóteses ceções legais, não se sujeitam à indispo- estar caracterizada em razão da mera
de impropriedade verbal ou de excesso nibilidade. Assim, não é impossível, pelo decretação da indisponibilidade de ati-
de linguagem (LOMAN, art. 41). A ratio contrário, é bastante comum, que, no vos financeiros, embora excessiva, sendo
subjacente a esse entendimento decorre âmbito da decretação da indisponibili- certo que a excessividade pressupõe um
da necessidade de proteger os magis- dade, sejam discutidas questões relativas extravazamento substancial do valor do
trados no exercício regular de sua ati- à impenhorabilidade de determinados crédito em cobrança, a ser analisado não
vidade profissional, afastando – a partir bens29, podendo o julgador concordar com base nos valores absolutos, mas sim
da cláusula de relativa imunidade jurídica ou não com as alegações do investigado/ à luz da proporção existente entre o ex-
que lhes é concedida – a possibilidade réu/executado. cesso identificado e o crédito em cobran-
de que sofram, mediante injusta intimi- Contudo, a eventual decisão do jul- ça; não podendo ser considerado, para
dação representada pela instauração gador que entenda por manter a indis- fins de apuração do excesso, qualquer
de procedimentos penais ou civis sem ponibilidade sobre ativos que a parte quantia relativa a bens indisponibilizados
causa legítima, indevida inibição quan- considera impenhoráveis não pode, em que não consistam em ativos financeiros.
to ao pleno desempenho da função ju- abstrato, atrair a aplicação do tipo penal.
risdicional. A crítica judiciária, embora É que, conquanto a segunda parte do
exteriorizada em termos ásperos e can- tipo reporte-se à “excessividade da me- NOTAS
dentes, não se reveste de expressão pe- dida” – e, por certo, a não liberação de 1 Em lição que ainda se demonstra adequada
para o atual ordenamento processual, Araken
nal, em tema de crimes contra a honra, bens impenhoráveis torna a constrição de Assis (2009, p. 667) leciona que: A lei
quando, manifestada por qualquer ma- mais intensa do que seria cabível – não organiza os bens em certas classes, [...], vi-
gistrado no regular desempenho de sua se pode olvidar que a primeira parte da sando à facilidade da conversão do bem em
dinheiro – ou seja, a “liquidez” do bem (vide
atividade jurisdicional, vem a ser exercida disposição legal é expressa em cominar artigo 656, V, in fine) –, o que naturalmente
com a justa finalidade de apontar equí- a conduta que extrapole exacerbada- compreende boa dose de álea. A gradação
vocos ou de censurar condutas proces- mente o valor estimado para a satisfa- estabelecida para a efetivação da penhora,
assentou a 2ª Turma do STJ, tem caráter re-
suais reputadas inadmissíveis. Situação ção da dívida, então o aspecto relevan- lativo, já que seu objetivo é realizar o paga-
registrada na espécie dos autos em que te para a incursão na conduta típica é o mento do modo mais fácil e célere.
o magistrado, sem qualquer intuito ofen- montante da dívida, não sendo colhidas 2 O senso comum parece indicar que a cons-
trição de dinheiro em depósito ou de outros
sivo, agiu no estrito cumprimento do seu pela norma incriminadora discussões ativos financeiros seja mais prejudicial ao
dever de ofício. (g.n.) sobre a impenhorabilidade de determi- 51
devedor do que a de outros bens. A aludida
Não parece ser por outra razão que a nado bem, embora a sua eventual cons- percepção, por certo, decorre do fato de a re-
ferida constrição comprometer, de modo mais
própria Lei n. 13.869/2019 estaria, na hi- trição possa tornar incorreta a extensão
imediato, a capacidade financeira do devedor
pótese vertente, a afastar a tipicidade da do ato de indisponibilidade. (seus recursos disponíveis para pronta utili-
conduta, ao assentar que “A divergência A impenhorabilidade, salvo exce- zação). Todavia, o mesmo efeito não ocorre,
na interpretação de lei ou na avaliação ções legais30, é oponível em qualquer necessariamente, em relação à sua capaci-
dade econômica (o montante de seu acervo
de fatos e provas não configura abuso de tipo de processo, não guardando cor- patrimonial). Em verdade, como apontado, a
autoridade” (art. 1º, § 2º). relação com o montante do valor exe- constrição de dinheiro permite um mais célere
Assim, se o magistrado, examinando quendo. Diz respeito, apenas, à deli- cumprimento da obrigação, mas nem sempre
é mais onerosa para o devedor. Quando a
as questões de fato e de direito, concluiu, mitação da parcela do patrimônio do constrição se dá sobre o dinheiro, a redução
motivadamente, em determinado senti- executado que estará disponível para patrimonial a que se sujeita o devedor/exe-
do, a rejeição de suas conclusões por ór- satisfação do crédito (art. 789 do CPC). cutado corresponde, direta e imediatamente,
ao valor a ser abatido no crédito exigido (v.g.
gão judicial mais elevado, não o sujeitará Em suma, o afastamento da impenho- constrita e revertida em favor do credor a
à reprimenda penal, salvo se adequada- rabilidade não majora a quantia em co- quantia de R$ 10.000,00, o mesmo valor será
mente demonstrado o descumprimento brança e, por conseguinte, não se insere abatido do débito). Tal hipótese, em geral, não
ocorre com os demais bens. Excluída a pouco
do seu dever de imparcialidade, median- no contexto do tipo penal em foco. usual adjudicação de bens realizada antes do
te caracterização do animus nocendi, do leilão ou da alienação por iniciativa privada
desiderato de prejudicar a parte. 8 À GUISA DE CONCLUSÃO (que deve se dar, ao menos, pelo valor da
avaliação – art. 876 do CPC), as outras moda-
Ao fim e ao cabo, pelas incertezas A norma legal objeto deste opúscu- lidades de bens são arrematadas por valores,
que proporciona, parece-nos que o texto lo, como se pode observar, padece de usualmente, inferiores ao apurado na avaliação
legal, no que pertine ao tema ora abor- flagrante indeterminação, circunstância a (um bem avaliado em R$ 10.000,00 pode ser
arrematado, em princípio, por até R$ 5.000,00
dado, também não prima pela necessá- orientar no sentido de que esta não se
– art. 891, parágrafo único, do CPC). Desse
ria clareza. encontra revestida da necessária higidez modo, embora o desfalque do patrimônio do
constitucional que lhe autorize a aplica- executado se dê pelo valor da avaliação, a satis-
7 DA INDISPONIBILIDADE E DA bilidade. Além disso, por descrever um fação da dívida se dará pelo montante auferido
na arrematação. Imaginemos que o patrimô-
IMPENHORABILIDADE crime plurissubsistente, apenas quando nio do devedor é da ordem de R$ 100.000,00
Aspecto relevante a ser abordado concluído todo o iter de comportamen- e que seu único débito é de R$ 10.000,00.
consiste no fato de que somente podem tos descritos na norma é que se poderá Portanto, o patrimônio líquido seria de R$
90.000,00. Se os R$ 10.000,00 forem objeto de
ser indisponibilizadas coisas passíveis de ter, em tese, por aperfeiçoada/consuma- constrição em dinheiro, o patrimônio líquido
penhora. Bens impenhoráveis, salvo ex- da a conduta cominada. Não restando continuará sendo de R$ 90.000,00. Contudo,

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se a penhora recair sobre outros bens, haverá ou onerá-los, até apuração e liquidação final Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira
a expectativa de que a redução patrimonial seja de suas responsabilidades. Seção, DJe de 21/9/2012; STJ, AgRg no REsp
de R$ 10.000,00 (valor da avaliação), circuns- § 1º A indisponibilidade prevista neste artigo 1.383.196/AM, Rel. Ministra Regina Helena
tância na qual o patrimônio líquido do deve- decorre do ato que decretar a intervenção, a ex- Costa,Primeira Turma, DJe de 10/11/2015;
dor permanecerá nos mesmos R$ 90.000,00. trajudicial ou a falência, atinge a todos aqueles AgRg no REsp 1.260.737/RJ, Rel. Ministro
Porém, partindo da premissa de que, no leilão que tenham estado no exercício das funções nos Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe de
judicial, os licitantes buscam adquirir bens doze meses anteriores ao mesmo ato. 25/11/2014; AgRg no REsp 1.414.569/BA, Rel.
por valores inferiores àqueles praticados pelo 5 Art. 59. Os administradores, controladores e Ministro Humberto Martins, Segunda Turma,
mercado (preço de oportunidade), o bem membros de conselhos estatutários das enti- DJe de 13/5/2014.
pode não vir a ser arrematado por montante dades de previdência complementar sob inter- 13 Exemplificativamente, confira-se no STJ, o
igual ao da avaliação (R$ 10.000,00), mas, por venção ou em liquidação extrajudicial ficarão AgInt no REsp 152617/MG, Rel. Min. Regina
exemplo, por R$ 7.000,00, situação na qual com todos os seus bens indisponíveis, não Helena Costa, Primeira Turma, DJe de
ainda restará um saldo a adimplir, no caso, podendo, por qualquer forma, direta ou indi- 22/5/2017.
de R$ 3.000,00. Logo, o patrimônio líquido do reta, aliená-los ou onerá-los, até a apuração e 14 Sobre a tipicidade, segundo Roxin (2002, p.
devedor será reduzido para R$ 87.000,00 (R$ liquidação final de suas responsabilidades. 190/191): Esta ação deve ser típica, isto é,
90.000,00 – R$ 3.000,00). A penhora em di- 6 Exemplificativamente, a Agência Nacional ela deve corresponder a uma das descrições
nheiro, então, tornaria melhor a situação eco- de Saúde Suplementar – ANS pode assim de delitos que, nos casos mais importantes
nômica do executado. Parece razoável afirmar proceder com esteio no art. 24-A da Lei n. se encontram na parte especial do Código
que, caso o devedor tivesse de negociar a alie- 9.656/1998. Penal [...]. A estrita vinculação à tipicidade é
nação de algum de seus bens, para recompor 7 Nesse sentido: Não pode o julgador, por uma decorrência do princípio nulum crimen
sua situação financeira, com maior probabili- analogia, estabelecer sanção sem previsão sine lege [...]. Ao contrário do que ocorre no
dade, a negociação por ele conduzida resulta- legal, ainda que para beneficiar o réu, ao Direito Civil, onde se podem deduzir conse-
ria na percepção de uma quantia maior que argumento de que o legislador deveria ter quências jurídicas diretamente de princípios
aquela obtida em arrematações judiciais. Não disciplinado a situação de outra forma [...] gerais de direito, no Direito Penal só é pos-
se descarta a possibilidade de a arrematação (STF, HC 94030, Relator: Ministro Ricardo sível dizer o que é uma ação punível através
se dar por valor maior que a avaliação, porém Lewandowski, Primeira Turma, publicado em da utilização de tipos. Para além disso, não se
esta é uma hipótese de reduzida ocorrência. 13/6/2008) pode deixar de ter em mente que A tipicidade
A constrição de dinheiro ou de ativos financei- 8 Dispõem, respectivamente, o Código Penal penal não pode ser percebida como o trivial
ros parece ser mais impactante do que a de e o Código de Processo Penal: Art. 91 – São exercício de adequação do fato concreto à
outros bens por proporcionar, de modo mais efeitos da condenação: I – tornar certa a norma abstrata. Além da correspondência
imediato, a sensação de supressão forçada obrigação de indenizar o dano causado pelo formal, para a configuração da tipicidade, é
da propriedade, produzindo, via de regra, um crime; e art. 387. O juiz, ao proferir sentença necessária uma análise materialmente valo-
sentimento de insatisfação e resistência. O ar- condenatória: [...] IV – fixará valor mínimo rativa das circunstâncias do caso concreto, no
resto ou a penhora de outros bens, mormente para reparação dos danos causados pela sentido de se verificar a ocorrência de algu-
quando o devedor se mantém na posse direta, infração, considerando os prejuízos sofridos ma lesão grave, contundente e penalmente
na condição de depositário, não induz, usual- pelo ofendido. relevante do bem jurídico tutelado. (STF. HC
52 mente, a mesma sensação de perda. Contudo, 9 Dispõe o CPC: Art. 523. No caso de condena- 97772, Relatora: Min. Cármen Lúcia, Primeira
embora a constrição de dinheiro pareça ser ção em quantia certa, ou já fixada em liqui- Turma, publicado em 20/11/2009).
mais gravosa, produzindo um impacto psico- dação, e no caso de decisão sobre parcela 15 Nesse sentido: A jurisprudência desta egrégia
lógico maior, nem sempre a impressão condiz incontroversa, o cumprimento definitivo da Corte se orienta no sentido de considerar que
com a realidade econômica que se descortina sentença far-se-á a requerimento do exe- o princípio da menor onerosidade (art. 620
para o devedor. Por fim, observe-se que con- quente, sendo o executado intimado para do CPC) pode, em determinadas situações
forme entendimento jurisprudencial firmado pagar o débito, no prazo de 15 (quinze) dias, específicas, ser invocado para relativizar a or-
por este Superior Tribunal de Justiça, além de acrescido de custas, se houver. [...] § 3º Não dem preferencial dos bens penhoráveis esta-
obedecer à gradação prevista no art. 835 do efetuado tempestivamente o pagamento vo- belecida no artigo 655 do Código de Processo
CPC/15, a penhora on-line via sistema Bacen- luntário, será expedido, desde logo, manda- Civil (AgRg no AREsp 848.729/MG, Rel.
Jud não ofende o princípio da menor onero- do de penhora e avaliação, seguindo-se os Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado
sidade da execução para o devedor – REsp atos de expropriação. em 8/3/2016, DJe de 17/3/2016). (STJ, AgInt
1.112.943/MA, processado sob o rito do art. Art. 829. O executado será citado para pagar no REsp 1315623/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe
543-C do CPC. (STJ, AgInt no REsp 1798049/ a dívida no prazo de 3 (três) dias, contado Salomão, Quarta Turma, DJe de 25/6/2019)
SP, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, da citação. 16 Segundo René Ariel Dotti (2000, p. 312/313):
DJe de 30/8/2019) § 1º Do mandado de citação constarão, Os elementos normativos são aqueles para
3 Art. 44. No início ou no curso de qualquer apu- também, a ordem de penhora e a avaliação cuja compreensão o intérprete não pode se
ração, o Tribunal, de ofício ou a requerimento a serem cumpridas pelo oficial de justiça tão limitar a desenvolver uma atividade mera-
do Ministério Público, determinará, cautelar- logo verificado o não pagamento no prazo mente cognitiva, subsumindo em conceitos
mente, o afastamento temporário do respon- assinalado, de tudo lavrando-se auto, com o dado natural, mas deve proceder a uma
sável, se existirem indícios suficientes de que, intimação do executado.” interpretação valorativa. Conforme Luisi, não
prosseguindo no exercício de suas funções, 10 Lei n. 8.429/1992 – “Art. 7° Quando o ato de são, portanto, elementos que se limitam a
possa retardar ou dificultar a realização de improbidade causar lesão ao patrimônio pú- descrever o natural, mas que dão à ação, ao
auditoria ou inspeção, causar novos danos ao blico ou ensejar enriquecimento ilícito, caberá seu objeto, ou mesmo às circunstâncias uma
Erário ou inviabilizar o seu ressarcimento. a autoridade administrativa responsável pelo significação, um valor.
§ 1° [...] inquérito representar ao Ministério Público, para 17 Sobre a doutrina da nulidade por vagueza, o
§ 2° Nas mesmas circunstâncias do caput a indisponibilidade dos bens do indiciado. autor afirma, ainda: A doutrina da nulidade
deste artigo e do parágrafo anterior, poderá Parágrafo único. A indisponibilidade a que por vagueza oferece uma série de argumen-
o Tribunal, sem prejuízo das medidas previs- se refere o caput deste artigo recairá sobre tos importantes no tratamento do problema
tas nos arts. 60 e 61 desta Lei, decretar, por bens que assegurem o integral ressarcimento da lei penal indeterminada. Em uma perspec-
prazo não superior a um ano, a indisponibili- do dano, ou sobre o acréscimo patrimonial tiva cientifica, é interesse observá-los, na me-
dade de bens do responsável, tantos quantos resultante do enriquecimento ilícito. dida em que, embora seja possível atribuir ao
considerados bastantes para garantir o res- 11 Nesse sentido, consulte-se o Recurso modelo iluminista o seu surgimento, desde
sarcimento dos danos em apuração. Especial n. 1808375/SP, Rel. Ministro Herman então, em relação aos sistemas de orientação
4 Art. 36. Os administradores das instituições fi- Benjamin, Segunda Turma, DJe de 11/9/2019, germânica, o desenvolvimento da void-for-
nanceiras em intervenção, em liquidação ex- bem como o Recurso Especial n. 1366721/BA, -vagueness ocorre de maneira relativamente
trajudicial ou em falência, ficarão com todos Rel. Ministro Og Fernandes, Primeira Seção, independente.
os seus bens indisponíveis não podendo, por DJe de 19/9/2014. Ainda que o seu aproveitamento no contexto
qualquer forma, direta ou indireta, aliená-los 12 Nesse sentido: STJ, REsp 1.319.515/ES, Rel. jurídico brasileiro esteja aberto ao debate, é

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importante refletir, desde logo, sobre a rea- excesso estaria amparada pela legislação e, Tribunal Pleno, DJ de 28/11/1997.
firmação dos fundamentos constitucionais e em hipótese alguma, poderia caracterizar o 29 Em se tratando de ativos financeiros, as hipó-
penais que cercam a determinação taxativa delito em comento. teses de impenhorabilidade são aquelas cons-
da norma penal, sobretudo quando se per- 23 STJ, AgRg no AREsp 1345004/RS, Rel. Ministra tantes do art. 833, incisos IX a XI, do CPC, isto
cebe que, mesmo um sistema de tradição Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe 29/3/2019. é, os recursos públicos recebidos por institui-
consuetudinária, como o norte americano, ul- 24 Relevante é observar que a prevaricação é ções privadas para aplicação compulsória em
trapassando a metodologia dos common law punida com pena de detenção, de três me- educação, saúde ou assistência social; a quan-
crimes, recorre a uma concepção de direito ses a um ano, e multa; enquanto o delito em tia depositada em caderneta de poupança, até
relativamente predeterminado, tratam de es- foco é sancionado com pena assaz superior: o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos e;
tabelecer os pressupostos para a imposição detenção, de um a quatro anos, e multa. Não os recursos públicos do fundo partidário rece-
da responsabilidade criminal. se consegue divisar qual a razão de condutas bidos por partido político, nos termos da lei.
Entre as contribuições mais notáveis que similares receberem cominações tão díspares. Também tem sido admitida a impenhorabili-
aparentemente se extraem do doutrina, está A escala penal do crime em tela é idêntica à de dade, conforme o caso, de saldos constituídos
a construção de que a lei penal vaga, para infrações em que há exposição da vida a peri- em planos de previdência privada (PGBL).
além de ameaçar a liberdade, em determi- go, tais como perigo de contágio (artigos 131 Nesse sentido, confira-se, no STJ, os Embargos
nados espaços de atuação, implica um efeito e 132 do CP), maus-tratos (art. 136 do CP), de Divergência no Recurso Especial 1121719/
dissuasório ao exercício de outros direitos fun- explosão (art. 251 do CP), uso de gás tóxico SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Segunda Seção,
damentais, constitucionalmente protegidos e ou asfixiante (art. 252 do CP); ou, ainda, em DJe de 4/4/2014).
mesmo estimulados, desvelando a conexão hipótese de mais acentuado gravame ao pa- 30 Por exemplo, as partes finais dos incisos II, III,
da legalidade, com seu mandamento de trimônio, como é o caso do furto (art. 155 do VII e os §§ 1º e 2º do art. 833 do CPC e o art.
determinação taxativa, com a preservação CP), da apropriação indébita (art. 168 do CP) 3º da Lei n. 8.009/1990.
de um regime de direito fundamentais, e sua e da receptação (art. 180 do CP). À luz do ex-
essencialidade para a estrutura própria do posto, não seria irrito sustentar uma aparente
estado democrático de direito. desproporcionalidade na fixação da resposta
18 STF, Recurso Extraordinário 448432 AgRg, penal para a conduta em tela, a indicar um REFERÊNCIAS
Relator Ministro Joaquim Barbosa, Segunda eventual excesso legislativo, não compatível ASSIS, Araken de. Manual da execução. 12. ed. São
Turma, publicado em 28/5/2010. com o ordenamento constitucional. Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
19 Não se pode olvidar que a garantia à invio- 25 Exemplificativamente: Art. 663. [...] Parágrafo BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da
labilidade do sigilo bancário não é absoluta, único. A reserva de bens será realizada pelo República Federativa do Brasil de 1988. Brasília,
admitindo a obtenção de tais dados por meio valor estimado pelas partes, salvo se o DF: Presidência da República, [2016].
de ordem judicial fundamentada. (STF, RHC credor, regularmente notificado, impugnar BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro
137074, Relator Minitro Ricardo Lewandowski, a estimativa, caso em que se promoverá a de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União:
Segunda Turma, publicado em 16/12/2016). avaliação dos bens a serem reservados. (g.n.) seção 1, Rio de Janeiro, RJ, 31 dez. 1940.
Contudo, o afastamento desta, por estar sub- Art. 664. Quando o valor dos bens do espólio BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro
metido ao timbre da excepcionalidade, recla- for igual ou inferior a 1.000 (mil) salários-mí- de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial
ma a exposição de “[...] fundamentos idôneos nimos, o inventário processar-se-á na forma da União: seção 1, Rio de Janeiro, RJ, 13 out.
para fazer ceder a uma excepcional situação de arrolamento, cabendo ao inventariante 1941. Retificação: Diário Oficial da União: seção 1, 53
de restrição de um direito ou garantia cons- nomeado, independentemente de assinatura Brasília, DF, 24 out. 1941.
titucional”. (STF, HC 96056, Relator Ministro de termo de compromisso, apresentar, com BRASIL. Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990.
Gilmar Mendes, Segunda Turma, publicado suas declarações, a atribuição de valor aos Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de fa-
em 8/5/2012). Logo, conquanto a quebra de bens do espólio e o plano da partilha. mília. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF,
sigilo bancário não seja vedada, a sua indiscu- § 1º Se qualquer das partes ou o Ministério 30 mar. 1990.
tível onerosidade sobre a intimidade do indi- Público impugnar a estimativa, o juiz no- BRASIL. Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.
víduo obsta a banalização da medida. A utili- meará avaliador, que oferecerá laudo em 10 Dispõe sobre a organização da Seguridade Social,
zação do Sistema Bacenjud é menos gravosa, (dez) dias. institui Plano de Custeio, e dá outras providências.
pois não implica quebra de sigilo. À exceção Art. 809. [...] Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 25
das informações sobre os montantes bloque- § 1º Não constando do título o valor da coisa jul. 1991. Republicação: Diário Oficial da União,
ados e as respectivas instituições financeiras e sendo impossível sua avaliação, o exequen- Brasília, DF, 11 abr. 1996. Republicação: Diário
em que foram identificados ativos, nenhum te apresentará estimativa, sujeitando-a ao Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 14 ago. 1998.
outro dado financeiro do devedor circula pelo arbitramento judicial. (g.n.) BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992.
aludido sistema. Em verdade, são as ordens Art. 871. Não se procederá à avaliação quan- Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes
judiciais (bloqueio, desbloqueio, transferência do: I – uma das partes aceitar a estimativa públicos nos casos de enriquecimento ilícito no
etc.) e as informações quanto ao cumprimen- feita pela outra; [...] exercício de mandato, cargo, emprego ou função
to destas que transitam pelo sistema. 26 É possível que o debate e a decisão sobre o na administração pública direta, indireta ou funda-
20 A avaliação é procedida pelo oficial de justiça valor não assuma foros de definitividade, pois cional e dá outras providências. Diário Oficial da
avaliador ou pelo perito (art. 154, inciso V, art. poderemos estar diante de uma decisão de União: seção 1, Brasília, DF, 3 jun. 1992.
156 c/c 464, in fine e art. 872 do CPC). natureza cautelar (em geral, liminar), hipótese BRASIL. Lei nº 8.443, de 16 de julho de 1992.
21 Dispõe o art. 803, inciso I, do CPC que: “Art. na qual, a rigor, o valor final do débito só será Dispõe sobre a Lei Orgânica do Tribunal de
803. É nula a execução se o título executivo estabelecido com o provimento definitivo, a Contas da União e dá outras providências. Diário
extrajudicial não corresponder a obrigação ser proferido na própria ação em que deferi- Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 17 jul.
certa, líquida e exigível.” (g.n.) da a cautela ou na ação principal, conforme o 1992. Retificação: Diário Oficial da União: seção 1,
22 Apenas a título de exemplo, observo que, em caso. A eventual decisão final que reduza o va- Brasília, DF, 22 abr. 1993.
abstrato, há amparo legal para manutenção lor do débito não permitirá a caracterização da BRASIL. Lei nº 9.656, de 3 de junho de
de indisponibilidades (constrições) excessivas, conduta típica, como será evidenciado, mais à 1998. Dispõe sobre os planos e seguros privados
quando, em sede de execução fiscal, quita- frente, no corpo do texto. de assistência à saúde. Diário Oficial da União: se-
do o débito exigido, remanescem valores a 27 A Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei ção 1, Brasília, DF, 4 jun. 1998.
desbloquear, porém o devedor conta com Complementar n. 35/1979) textualmente in- BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.
outros débitos em execução não devidamente terdita a possibilidade de sancionar o juiz, tão Código de Processo Civil. Diário Oficial da União:
garantidos. Esta possibilidade decorre da in- somente, em razão do teor de suas decisões: seção 1, Brasília, DF, 17 mar. 2015.
terpretação atribuída ao art. 53, § 2º, da Lei Art. 41 – Salvo os casos de impropriedade BRASIL. Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019.
n. 8.212/1991, cuja aplicação é chancelada ou excesso de linguagem o magistrado não Dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade;
pela jurisprudência superior. No caso, confira- pode ser punido ou prejudicado pelas opi- altera a Lei n. 7.960, de 21 de dezembro de 1989,
-se, v.g., STJ, AgInt no REsp 1736354/SC, Rel. niões que manifestar ou pelo teor das deci- a Lei n. 9.296, de 24 de julho de 1996, a Lei n.
Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, sões que proferir (g.n.). 8.069, de 13 de julho de 1990, e a Lei n. 8.906, de
DJe de 11/3/2019. Aqui, então, a retenção do 28 STF, QC 501, Relator Min. Celso De Mello, 4 de julho de 1994; e revoga a Lei n. 4.898, de 9 de

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Silvio Wanderley do Nascimento Lima

dezembro de 1965, e dispositivos do Decreto-Lei n


2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).
Diário Oficial da União: seção 1 – extra, Brasília,
DF, ano 188-A, p. 1, 27 set. 2019.
BRASIL. Lei Complementar nº 35, de 14 de
março de 1979. Dispõe sobre a Lei Orgânica da
Magistratura Nacional. Diário Oficial da União: se-
ção 1, Brasília, DF, 14 mar. 1979.
BRASIL. Lei Complementar nº 109, de 29 de maio
de 2001. Dispõe sobre o Regime de Previdência
Complementar e dá outras providências. Diário
Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 30 maio
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54
Artigo recebido em 24/10/2019.
Artigo aprovado em 1/4/2020.

Silvio Wanderley do Nascimento Lima


é Juiz Federal no Rio de Janeiro, Mestre
em Direito e professor da Universidade
Veiga de Almeida/RJ.

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D I R E I T O PEN AL
José Flávio Fonseca de Oliveira

A CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA PELO 55

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: o uso da leitura


moral de Ronald Dworkin em detrimento do
princípio da maioria de Jeremy Waldron
THE CRIMINALIZATION OF HOMOPHOBIA BY THE BRAZILIAN FEDERAL
SUPREME COURT: the use of Ronald Dworkin’s moral reading versus
Jeremy Waldron’s majority principle
José Flávio Fonseca de Oliveira

RESUMO ABSTRACT
Propõe a discussão entre Ronald Dworkin e Jeremy Waldron The text brings about the discussion between Ronald Dworkin
sobre a utilização da leitura moral como método de interpreta- and Jeremy Waldron on the use of moral reading as an
ção dos “casos difíceis” em temas controversos que envolvam interpretation method of “hard cases” on controversial topics
questões morais, como é o tema da homofobia, bem como a involving moral issues, such as homophobia, as well as
legitimidade das decisões tomadas por Cortes Constitucionais legitimacy of decisions taken by constitutional courts rather
em detrimento do Poder Legislativo. than by the Legislative Branch.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Direito Penal; homofobia -criminalização da; leitura moral; fó- Criminal Law; homophobia – criminalization of; moral
rum de princípios. reading; forum of principles.

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José Flávio Fonseca de Oliveira

1 INTRODUÇÃO da atuação do Poder Judiciário para a resolução de questões


O Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento conjun- políticas, de políticas públicas ou administrativas que não foram
to da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26 e resolvidas pelos poderes Legislativo e Executivo.
do Mandado de Injunção n. 4.733, nos quais se discutiu o en- Na parte final deste artigo, faz-se um cortejo das visões dos
quadramento das condutas de homofobia e transfobia como cri- dois doutrinadores sobre a utilização da leitura moral com o
me de racismo previsto na Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989. objetivo de legitimar as conclusões trazidas nos votos dos mi-
Foram duas importantes ações que debateram sobre a discri- nistros Celso de Mello e Edson Fachin, relatores da ADO n. 26
minação sofrida por lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e ou- e MI n. 4.733. Como se verá nesses votos, os ministros relato-
tros (LGBT) em razão da identidade de gênero ou da orientação res, os quais foram acompanhados pela maioria dos ministros,
sexual. Violência grave, como homicídios, estupros corretivos e concluíram não haver violação do princípio da legalidade estrita
coletivos, lesões corporais graves, agressões contra a honra e a utilização do crime de racismo previsto na Lei n. 7.716/1989
muitas outras, decorrentes da intolerância de algumas pessoas. para abranger as condutas de homofobia e transfobia. Fazem
Partindo dessas ações constitucionais, busca-se articu- isso utilizando-se da atualização do conceito de racismo, que
lar, neste ensaio, a discussão entre Ronald Dworkin e Jeremy não abrange apenas a questão da discriminação, relativo à raça,
Waldron sobre a utilização da leitura moral como método de so- cor, etnia, religião ou procedência nacional, como previsto no
lução para casos difíceis em temas controversos que envolvam texto dessa lei federal.
questões morais e a legitimidade da decisão tomadas por Cortes
Constitucionais em detrimento do Poder Legislativo. 2 ATIVISMO JUDICIAL E JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
O ativismo judicial2 surgiu a partir do desenvolvimento do
[...]o ativismo judicial é a atuação do Poder constitucionalismo na metade do Século XIX, em decisões nas
Judiciário fora de suas atribuições Cortes dos Estados Unidos3, quando os juízes passaram a utilizar
a Constituição como parâmetro de intepretação e construíram
constitucionais com o objetivo de concretizar
soluções para as demandas apresentadas ao Poder Judiciário.
direitos ou impor obrigações com fundamento Em termos conceituais, Barroso (2012, p. 6) defende que
em questões de justiça ou morais. [a] ideia de ativismo judicial está associada a uma participação
mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores
Ronald Dworkin, aprimorando sua teoria da resposta corre- e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atu-
56 ta, traz para os casos constitucionais debatidos a partir de textos ação dos outros dois Poderes. Nessa mesma linha de conceitua-
vagos ou ambíguos a leitura moral da Constituição1. Em suas ção, Elival da Silva Ramos (2015, p. 131) entende que o ativismo
palavras, esse é um método de ler e executar a Constituição, que judicial ocorre quando o Poder Judiciário, resolvendo litígios ou
todos os juízes fazem uso, consciente ou inconscientemente, os controvérsias jurídicas de natureza objetiva (controle de constitu-
quais devem ser incentivados a assumirem claramente essa po- cionalidade), atua além dos limites impostos pelo ordenamento
sição em julgamento sobre temas morais. jurídico. Isso, no entender do jurista, importa atuação fora da ati-
Defendendo o direito como a integridade e a existência de vidade típica desse poder, em detrimento dos demais poderes.
uma resposta correta para cada caso submetido a uma decisão, Assim, em uma conceituação abrangente, o ativismo judicial
defende o filosófico americano que a Corte constitucional teria é a atuação do Poder Judiciário fora de suas atribuições consti-
legitimidade para realizar a leitura moral em casos em que há tucionais com o objetivo de concretizar direitos ou impor obriga-
aplicação de textos vagos ou ambíguos. Assim, conforme essa ções com fundamento em questões de justiça ou morais.4
teoria, o Supremo Tribunal Federal teria legitimidade para pro- Por outro lado, a judicialização da política pressupõe a submis-
ferir uma decisão que criminalize as condutas de homofobia e são ao Poder Judiciário de questões políticas stricto sensu, de polí-
transfobia a partir da aplicação de tipo já existente de racismo, ticas públicas e das relações sociais, que não estão sendo resolvi-
conforme consta da Lei n. 7.716/1989. das ou pelo Poder Executivo ou pelo Poder Legislativo, geralmente
Noutro lado da discussão, Jeremy Waldron, sem desconsi- sob o argumento do descumprimento da Constituição. É um des-
derar a leitura moral como método de decisão em casos cons- locamento da esfera de decisão dessas questões envolvendo esco-
titucionais, defende que esse tipo de decisão deve ser tomada lhas políticas e políticas públicas que são decididas pelos Poderes
pelo Parlamento, com aplicação do princípio majoritário na solu- Legislativo e Executivo para serem decididas pelo Judiciário.
ção do desacordo. Defende que a decisão pelo Poder Legislativo Para Vallinder (1995, p. 13), a judicialização da política pode
é mais legítima porque é representativo do povo para quem os significar normalmente ou (1) a expansão dos poderes das cor-
representantes eleitos prestam contas. tes judiciais ou dos juízes para resolver questões políticas e ou
Além das teorias desses dois filósofos, este ensaio inicia-se administrativas, pela transferência dos poderes do legislador, do
com a distinção, ainda que breve, entre ativismo e judicialização chefe da administração pública ou dos órgãos da administração
da política. Conceitos que tratam da atuação do Poder Judiciário para as cortes ou para os juízes; ou (2) a utilização fora do poder
e das Cortes Superiores nas decisões de temas controversos. O judiciário dos métodos de decisão judicial5.
ativismo judicial é atribuído a decisões judiciais que, aos olhos Lênio Streck (2011, p. 589) traz, dentro de nossa realidade,
dos críticos, não deveria ser tomada pelo Poder Judiciário, mas essa diferenciação entre ativismo e judicialização da política:
pelo Poder Legislativo ou executado pelo Poder Executivo. A ju- […] um juiz ou tribunal pratica ativismo quando decide
dicialização da política, por outro lado, é fenômeno de expansão a partir de argumentos de política, de moral, enfim, quando

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José Flávio Fonseca de Oliveira

o direito é substituído pelas convicções rol de direitos e garantias fundamentais reito há de se considerar a moral, cujo
pessoais de cada magistrado (ou de um que, a partir da teoria da supremacia da ingresso no direito ocorre por meio da
conjunto de magistrados); já a judicia- Constituição, que não podem deixar de positivação de valores morais abstra-
lização é um fenômeno que exsurge a ser considerados nos julgamentos de tos, os quais devem ser utilizados tanto
partir da relação entre os poderes do causas concretas, impondo ao Judiciário, pelo Poder Judiciário como pelo Poder
Estado (pensemos, aqui, no desloca- quando constatada uma violação a esses Legislativo, bem como a partir de políti-
mento do pólo de tensão dos Poderes direitos, a apresentação de uma solução ca (policy). Contudo, na aplicação do di-
Executivo e Legislativo em direção da da questão judicial litigiosa. reito, o Poder Judiciário deve priorizar os
justiça constitucional [...]. Nesse contexto de ativismo e judicia- princípios quando não houver regra apli-
Assim, o ativismo judicial, ao contrá- lização da política, é importante expor a cável para solucionar o caso, deixando a
rio, parte de uma postura subjetiva do jul- teoria da leitura moral de Ronald Dworkin política (policy) para aplicação exclusiva
gador ao adotar uma atitude de julgamen- e o direito como integridade, bem como pelo Poder Legislativo, quando estiver le-
to que pode levá-lo a extrapolar os limites a defesa que Jeremy Waldron faz do gislando e criando o direito.
de suas funções, enquanto a judicialização princípio da maioria e de que a solução A partir dessa base fundamental, no
da política significa a expansão da atuação do desacordo, ao contrário de Dworkin, segundo pressuposto, o direito a ser sus-
do Poder Judiciário para além dos limites deve ser resolvida pelo Parlamento. tentado pelos princípios teria duas fun-
de sua competência, mas não pode ser re- damentações básicas, das quais decor-
cusada pelo julgador, devendo a deman- 3 A LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO reriam todos os outros princípios, bem
da posta ser apreciada e julgada conforme EM RONALD DWORKIN como a obrigação das regras a serem li-
as normas constitucionais e legais. 3.1 O DIREITO COMO INTEGRIDADE E A TEORIA das nesse contexto: igual consideração e
Na verdade, a judicialização da polí- DA RESPOSTA CORRETA respeito (princípio igualitário) e a respon-
tica no Brasil intensificou-se muito com No direito como integridade, confor- sabilidade pessoal de cada um por sua
o advento da Constituição Federal de me a teoria de Ronald Dworkin, na obra própria vida (princípio liberal).
1988 decorrente, em especial, da am- O Império do Direito, o direito é um con- O direito é, em um outro pressu-
pliação das funções do Poder Judiciário, ceito interpretativo e possui uma prática posto, um sistema íntegro e coerente,
do Ministério Público e da Defensoria argumentativa, e, por isso, traz a obriga- formado por regras e princípios. Nesse
Pública, mas não tem causa única. toriedade de qualquer decisão ter como sentido, Dworkin faz uma crítica ao po-
O Poder Judiciário, com o advento da referência as decisões do passado, bem sitivismo proposto por Herbert L. A. Hart. 57
Constituição Federal de 1988, passou a de- como estabelecer coerência com os princí- O cerne da crítica refere-se ao fato de
sempenhar papel central como guardião pios existentes no ordenamento jurídico6. que o positivismo jurídico desconsidera
do Estado democrático e na proteção de Em resumo, o direito como integri- os princípios como normas, mas não o
direitos vulneráveis, especialmente com a dade firma-se na ideia de que a juris- desconsidera na aplicação do direito, es-
previsão da inafastabilidade da jurisdição. prudência não pode oferecer respostas pecialmente quando o juiz exerce a dis-
O Ministério Público deixou de ter diferentes para casos iguais, forte no cricionariedade na solução criada pelos
atribuição exclusivamente penal e pas- pressuposto de “igual consideração”, o juízes em caso de normas com textura
sa a ter funções correlatas ao Poder qual requer que o Estado aspire a uma aberta. Dworkin afirma que, no fundo,
Judiciário, com atuação em direitos difu- igualdade material entre os cidadãos, essas decisões se baseiam em princípios
sos e coletivos, o que eleva a diversidade como também segundo o “princípio da morais, porque os juízes apelam para
de áreas de atuação e aumenta a quanti- responsabilidade especial”, que atribui à questões extrajurídicas.
dade de demandas para julgamento pelo própria pessoa uma responsabilidade es- No quarto pressuposto, a teoria da
Poder Judiciário. pecial e final por seu sucesso (DWORKIN, resposta correta deve se relacionar não
A Defensoria Pública foi criada e for- 2011. p. XII, XV e XVI). apenas com as decisões passadas, como
talecida, com carreiras próprias assumin- Dentro dessa base filosófica da orga- defende o positivismo, nem apenas com
do algumas atribuições que antes eram nização da sociedade e do direito, a in- o que poderá ocorrer no futuro, como
desempenhadas pelo Ministério Público tegridade exige que a coerência seja de tratado pelo pragmatismo, mas com o
e pelas Procuradorias dos Estados, e teve, todo o sistema, abrangendo a continui- todo e as partes, denotando a coerência
também, uma significativa ampliação de dade do direito passado e futuro, não so- do que já foi decidido no passado (os
atuação em direitos difusos e coletivo, mente na aplicação do direito, mas tam- precedentes judiciais, especialmente no
colocando essas demandas sob a apre- bém, como exigência ao legislador, do sistema common law) e com o direito
ciação do Poder Judiciário. qual requer a integridade na legislação7. presente, a partir dos princípios vigentes,
Não se pode, contudo, atribuir aos Dworkin, então, defende a teoria da de modo a haver uma coerência entre
juízes a judicialização da política, primei- resposta correta, sustentando haver uma princípios e regras.
ro porque a própria Constituição esta- única resposta correta para cada caso Diante desses pressupostos
belece a inafastabilidade da jurisdição, apresentado para julgamento. Dworkin Dworkin apoia-se para desenvolver e
que impede aos juízes deixarem de ana- vai construir essa tese com base em qua- aplicar a teoria da integridade e sua teo-
lisar as demandas submetidas ao Poder tro pressupostos. ria da resposta correta, na qual ele criará
Judiciário. A Carta Magna estabelece um No primeiro ele sustenta que no di- a figura do Juiz Hércules, juiz com capa-

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José Flávio Fonseca de Oliveira

cidade e paciência sobre-humanas, com tempo ilimitado, que caso e vá servir de base para os casos no futuro, sem levar essas
adota o direito como integridade (não é positivista nem prag- informações na interpretação.
mático) e tem por objetivo encontrar a resposta correta para a
solução das questões que lhe são submetidas. 3.2 A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL MEDIANTE LEITURA MORAL DE
Hércules é um juiz que vai reconstruir a história do caso a RONALD DWORKIN
ser julgado, a partir da leitura da constituição e seu conjunto A base do argumento sobre a leitura moral de Dworkin é de
principiológico, da legislação e dos precedentes, para identificar que as grandes questões constitucionais são questões de como
a melhor explicação possível, coerente com o passado e com o a Constituição deve ser interpretada, não propriamente quem
presente e que seja fruto da leitura da própria sociedade sobre deve interpretá-la. Ou seja, envolve questões de moralidade e
os princípios aplicáveis ao caso e não de uma leitura pessoal de política de interpretação dessa Constituição.
(PEDRON, 2005. p. 74). A Constituição americana, a qual fundamenta a base da te-
Dworkin compreende a interpretação jurídica como uma inter- oria da leitura moral, traz muitos conceitos vagos em linguagem
pretação construtiva, descartando, portanto, o textualismo, o origina- excessivamente abstrata e, por isso, sustenta Dworkin, que esses
lismo e o conceitualismo, pois entende que, na aplicação do direito, dispositivos devem ser lidos na maneira mais natural possível
o intérprete deve tomar as práticas sociais da melhor forma possível. da linguagem empregada.
Nessa tarefa de uma interpretação criativa traz outra me- Assim como na teoria da resposta correta, na concretiza-
táfora, a do romance em cadeia, para demonstrar como deve ção das normas constitucionais, em último recurso para supe-
ser o trabalho dos juízes e intérpretes na solução dos casos rar o problema da vagueza ou ambiguidade, os juristas (juízes,
sob julgamento. A aplicação do direito deve ser como a ati- advogados e doutrinadores) devem recorrer à moralidade pre-
vidade de um literário que deve dar continuidade a um ro- dominante na sociedade. Com efeito, Dworkin não defende
mance em cadeia. que se deve realizar a leitura moral de todas disposições da
Em um romance escrito em cadeia, o primeiro romancis- Constituição, mas somente daquelas normas vagas ou com lin-
ta escreve o início da história livremente, mas os demais ro- guagem abstrata e que tenham sua redação estabelecidas em
mancistas que continuarão a história devem dar continuidade conceitos morais.
ao romance, dando-lhe sequência à história de modo que haja A leitura moral, segundo o filósofo americano, é um mé-
coerência e adequação com o que já foi escrito pelo primeiro todo particular de ler e executar uma constituição política ... e
romancista e, assim pelos demais romancistas em relação à his- […] exige que os juízes façam juízos atuais de moralidade
58 tória recebida do romancista anterior, quando for criar um novo política e encoraja assim a franca demonstração das verdadei-
capítulo para o romance. ras bases desses juízos, na esperança de que os juízos elabo-
rem argumentos mais sinceros, fundamentados em princípios,
[...] a integridade exige que a coerência seja de que permitam ao público participar da discussão. (DWORKIN,
todo o sistema, abrangendo a continuidade do 2006. p. 57).
A moral que Dworkin sustenta não é nem a dos fundado-
direito passado e futuro, não somente na
res da Constituição (os constituintes eleitos) nem dos minis-
aplicação do direito, mas também, como tros da Suprema Corte, mas tem por base uma moral crítica,
exigência ao legislador [...] sustentada a partir da história institucional da comunidade e
das práticas interpretativas dos textos e das tradições jurídicas
O romancista, ao criar o novo capítulo, deve manter uma de uma comunidade que se vê como formada por indivíduos
coerência formal com a história já escrita pelos romancistas an- livres e iguais.8
teriores, mantendo os personagens, a linguagem falada (e.g. re- E sustenta, ainda, Dworkin (2006. p. 9) que a leitura moral
gionalismo ou nível cultural) entre outros aspectos, para que não é antidemocrática, pelo contrário, afirma que, quando se
não haja ruptura na história. E, ao escrever, deve manter uma compreende a democracia, percebe-se que a leitura moral é re-
coerência substancial, mantendo as histórias de vidas dos per- alizada por todos os atores do jogo democrático, não somente
sonagens, as tramas, além de dar continuidade à história da pelo legislador ou pelo administrador, mas também pelos advo-
melhor maneira possível. gados e, igualmente, pelas Cortes e pelos juízes.
Da mesma forma, o juiz ao receber um caso para julgamen- Assim, como a democracia é o exercício do poder pela de-
to, não tem como criar uma nova história e uma nova solução cisão da maioria, mas com respeito aos direitos das minorias, a
para a questão jurídica sem considerar tudo que já foi escrito leitura moral, segundo Dworkin (2006, p. 9), torna-se uma atitu-
por outros juízes no passado e o que as partes trazem para a de indispensável à democracia. Dworkin sustenta que, apesar de
discussão. O juiz deve buscar reconstruir a história, o que as par- o Poder Legislativo ser o competente para estabelecer leis gerais,
tes disseram e como se comportaram na época dos fatos. O juiz não se pode recusar que se a Suprema Corte, ao analisar uma lei
deve funcionar, ao mesmo tempo, como intérprete e criador, tal e considerá-la inconstitucional, essa decisão não estará violando o
como o romancista em cadeia. princípio democrático, mas reforçando-o. Isso porque, quando a
O juiz não deve buscar a solução apenas na intenção do le- Corte retira do ordenamento essa lei que viola as normas consti-
gislador, mas também não deve se afastar do que já foi decidido tucionais, na verdade, todos saem ganhando, pois embora tenha
no passado por outros juízes em casos semelhantes ou do que sido aprovada mediante votação majoritária, ela viola direitos in-
as partes trazem para o processo para criar uma solução para o dividuais ou princípios estabelecidos na Constituição.

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Além disso, Dworkin (2006, p. 9) Waldron (1999a. p. 1), é a base de nossa parlamento, formado por representantes
afirma que o princípio majoritário é sociedade atual e, para ele, devemos nos eleitos pelo povo, realmente pratica tira-
apenas uma forma de concretizar a de- debruçar sobre os direitos e sobre como nia apenas por ter decidido uma questão
mocracia, mais especificamente a de- chegar a uma decisão compatível com o controvertida pelo voto da maioria. Que
mocracia representativa, de modo que princípio democrático. legitimidade teria uma Corte para invali-
nem tudo deve ser resolvido pelo crité- O filósofo neozelandês, então, de- dar uma lei que foi votada pelo legisla-
rio da maioria, sob pena de se impossi- fende que a participação é o “direito dor, quando ele estivesse ciente das dis-
bilitar que as minorias um dia venham dos direitos”, citando William Cobbett, cordâncias envolvidas e tenha decidido
a se tornar maiorias. mas não como um direito que sempre por um ou outro lado?11
É sobre esse aspecto, dentro da con- se sobrepõe aos demais, mas como um É que, para Waldron, a democra-
cepção de democracia, que os críticos direito para solucionar o desacordo entre cia não dever ser meramente formal ou
da teoria de Dworkin abordam a leitura pessoas razoáveis que discordam sobre procedimental, mas sim, deve envolver
moral e a sua proposta de democracia. seus direitos (WALDRON, 1999a, p. 232). a participação efetiva dos interessados.
Vamos analisar no tópico seguinte no E essa participação deve ocorrer Quando há participação efetiva dos inte-
qual Jeremy Waldron discute o princí- por meio do legislador, que tem le- ressados nessa decisão, há consideração
pio majoritário e a recusa da concepção gitimidade para resolver o desacordo séria e razoável dos argumentos contrá-
de que o Poder Judiciário é a função do social, isso porque o formato em as- rios e isso já legitimaria a decisão tomada
Estado que deve resolver, em última ins- sembleia do povo, por intermédio de pelo processo da maioria.
tância, essas questões. representantes, e o processo decisório Embora não haja prevalência do
fazem com que a decisão tenha legiti- ponto de vista de quem não logrou ver
4 A CRÍTICA DE JEREMY WALDRON midade perante toda a sociedade. sua posição vencedora, se o processo
AO JUDICIAL REVIEW. O PRINCÍPIO Para essa discussão, Waldron (2006, de aplicação da regra da maioria res-
MAJORITÁRIO p. 1360), no artigo The core of the case peitou o direito de participação (o de-
Jeremy Waldron faz uma crítica con- against judicial review, de 2006 (p. 1315- vido processo), o resultado decorrente
sistente às ideias de Dworkin e questio- 1406)9, após realizar a distinção entre con- da decisão do parlamento será mais
na a legitimidade do Poder Judiciário trole de constitucionalidade forte e controle respeitado por todos do que quando
para resolver desacordos morais e para de constitucionalidade fraco10, sustenta que esse mesmo resultado for decorrente
a proteção dos direitos fundamentais. existem quatro requisitos para que a legisla- de uma decisão de uma Corte. 59
Waldron defende a prevalência do Poder ção seja utilizada em desfavor da jurisdição, Isso, no entender de Waldron, afas-
Legislativo, como local apropriado para quais sejam: (1) a existência de instituições taria o risco da tirania. A tirania, na con-
as decisões sobre direitos. democráticas em estado razoável de bom cepção de Waldron (2010, p. 145), ocor-
O cerne da crítica liga-se diretamen- funcionamento (democratic institutions); re quando uma maioria nega, oprime,
te à legitimidade democrática das Cortes, (2) a existência de instituições judiciais, discrimina, reduz injustificadamente um
que, segundo ele, na resolução dos de- também em razoável estado de funciona- direito de uma minoria ou de indivíduos.
sacordos morais deságua inevitavelmen- mento, para resolver disputas (judicial ins- Para sustentar essa posição, Waldron afir-
te para o ativismo. E mesmo quando não titutions); (3) compromisso da sociedade ma que nem sempre a maioria decisória
é ativista a decisão da Corte, a judicializa- e do Estado (funcionários) com os direitos é a mesma maioria tópica12, afastando a
ção tende a mover o locus de discussão individuais e direitos das minorias (commit- ideia de que, sempre quando uma maio-
pública, gerando restrição de participa- ment to rights), e (4) desacordo, persisten- ria decidir um assunto, isso será uma es-
ção de atores com ideias plurais, quan- te e de boa-fé, sobre os direitos na socieda- pécie de ditadura da maioria, mas ape-
do decidido pelo Parlamento, o assunto de (disagreement about rights). nas quando a maioria decisória coincide
passa a ser decidido por um grupo restri- A partir desses requisitos, Waldron com a maioria tópica e a ação visar a di-
to de magistrados, com linguagem alta- pretende discutir a importância da legis- minuição, restrição, opressão ou elimina-
mente técnica. lação e do procedimento de construção ção de um direito de minorias.
A defesa da legislação de Waldron da solução das discordâncias, inclusive Assim, como se percebe na defesa
parte da ideia de que os representantes em questões morais, a partir da legis- que Jeremy Waldron faz da legislação, as
eleitos, unidos, agirão com a finalidade lação ou do procedimento da maioria, decisões tomadas pelas Cortes não são
de estabelecer as medidas comuns (legis- em contraposição à teoria da decisão de legítimas ou são menos legítimas do que
lação), de modo solene e explícito, com Dworkin. Nessa crítica, Waldron é incisivo se essas decisões fossem tomadas pelos
respeito à opinião de todos. Waldron em contra Dworkin e contra a utilização da legisladores eleitos e que adotassem o
Law and Disagreement (1999a) e em A judicial review como campo adequado princípio da maioria.
dignidade da legislação (2003) busca re- para resolver questões morais.
cuperar o respeito da legislação perante Acrescenta, ainda, que o processo 5 A LEITURA MORAL PELO STF NO
a comunidade e demonstrar que a legis- decisório de legislador deve ser guiado JULGAMENTO DA CRIMINALIZAÇÃO DA
lação é uma fonte de direito respeitável. pelo princípio majoritário. Waldron é HOMOFOBIA E TRANSFOBIA
Nessa discussão, um ponto im- um verdadeiro defensor do princípio da O julgamento da Ação Direita de
portante é o desacordo que, segundo maioria e questiona se uma decisão do Inconstitucionalidade por Omissão n. 26

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e do Mandado de Injunção n. 4.733 insere-se nessa discussão, Observa-se do voto proferido pelo Ministro Celso de Mello,
porque alguns deverão entender que a decisão pela criminali- as seguintes conclusões:
zação das condutas de homofobia e transfobia como crime de Entendo, por tal motivo, Senhor Presidente, que este jul-
racismo é nitidamente ativista, tendo em sua base uma leitu- gamento impõe, tal como sucedeu no exame do HC 82.424/
ra moral da Constituição em detrimento do Poder Legislativo, RS (caso Ellwanger), que o Supremo Tribunal Federal reafir-
que é a função do poder do Estado que deveria resolver essa me a orientação consagrada em referido precedente histórico
questão. Outros, embora reconhecendo ter o Supremo Tribunal no sentido de que a noção de racismo – para efeito de con-
Federal realizado uma leitura moral, vão sustentar ser legítima figuração típica dos delitos previstos na Lei n. 7.716/89 – não
a decisão, porque resguarda com mais vigor a democracia, já se resume a um conceito de ordem estritamente antropológi-
que protege direitos de minorias que estão sendo violados pela ca ou biológica, projetando-se, ao contrário, numa dimensão
omissão da maioria. abertamente cultural e sociológica, abrangendo, inclusive, as
Como visto, a leitura moral é um método de ler e executar a situações de agressão injusta resultantes de discriminação ou
constituição, ou seja, de decisão para questões constitucionais, de preconceito contra pessoas em razão de sua orientação se-
em que há expressões vagas ou ambíguas nos textos constitu- xual ou em decorrência de sua identidade de gênero.15
cionais, de modo a não caber ao intérprete/aplicador, diante Em outro trecho há nítida atualização do conceito de racis-
de casos difíceis, decidir conforme sua discricionariedade, mas mo, para abranger a homofobia e a transfobia:
recorrendo aos princípios morais, políticos ou de justiça predo- Tenho para mim que a configuração de atos homofóbi-
minantes na sociedade. cos e transfóbicos como formas contemporâneas do racismo
É por isso que a leitura moral pode ser encarada como uma – e, nessa condição, subsumíveis à tipificação penal constante
forma de ativismo judicial, porque trata de resolver questões de da Lei n. 7.716/1989 – objetiva fazer preservar – no processo
interpretação de normas constitucionais a partir da moralidade de formação de uma sociedade sem preconceitos de origem,
atual, fazendo prevalecer nem sempre uma interpretação vinca- raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discrimi-
da numa leitura original das normas constitucionais, mas uma nação (CF, art. 3°, IV) – a incolumidade dos direitos da per-
leitura atualizada dessas normas e, muitas vezes, com apoio em sonalidade, como a essencial dignidade da pessoa humana,
outras normas, modificando totalmente aquilo que se imagina buscando inibir, desse modo, comportamentos abusivos que
que seria o direito estabelecido no texto escrito. possam, impulsionados por motivações subalternas, dissemi-
A Constituição Federal de 1988, em matéria de direitos in- nar, criminosamente, em exercício explícito de inadmissível
60 dividuais, apresenta uma generosa lista de direitos e garantias, intolerância, o ódio público contra outras pessoas em razão
com muitos dispositivos, com os quais se busca regular os direi- de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.
tos do cidadão, especialmente contra o Estado, e nisso controlar Nesses trechos é possível identificar claramente a funda-
as funções estatuais, na criação, execução ou aplicação das leis. mentação em bases morais (ou critérios de justiça) pela qual o
Contudo, como essas normas são geralmente expostas em textos Relator Ministro Celso de Mello elevou à categoria de crime de
abertos (com linguagem vaga ou ambígua), não é difícil imaginar racismo a conduta homofóbica ou transfóbica. O ministro utili-
a dificuldade para limitar essas funções na aplicação da lei. za em seus fundamentos a atualização do conceito de racismo,
“numa dimensão abertamente cultural e sociológica” e utiliza-
Quando há participação efetiva dos -se de decisão passada (o caso Ellwenger, HC n. 82.424/RS), em
interessados nessa decisão, há consideração julgamento em que se utilizou também do conceito de racismo,
para, com isso, enquadrar os atos homofóbicos e transfóbicos
séria e razoável dos argumentos contrários e
como formas contemporâneas do racismo – e, nessa condição,
isso já legitimaria a decisão tomada pelo subsumíveis à tipificação penal constante da Lei n. 7.716/89.
processo da maioria. No outro voto proferido naquela sessão conjunta, pelo
Ministro Edson Fachin, relator do Mandado de Injunção n.
No caso da ADO n. 26 e do Mandado de Injunção n. 4.733, 4.733, não há divergência dessa linha de argumentação, na qual
os requerentes buscavam a declaração de inconstitucionalida- se reconhece a omissão legislativa, a não violação do princípio
de da omissão do legislador em criminalizar a homofobia e a da legalidade e a utilização do conceito de racismo para abran-
transfobia, apesar da enorme quantidade de crimes praticados ger as condutas de homofobia e transfobia.
em razão da identidade de gênero ou da orientação sexual as- Desse voto deve-se observar o trecho que retrata a leitura moral:
sumida pelas vítimas. No que tange ao cumprimento desse dever constitucional
O Ministro Celso de Mello, ao iniciar o julgamento e proferir contido no art. 5°, XLI, é preciso registrar algumas iniciativas do
seu voto como relator da ADO n. 26 – apesar de sustentar que legislador nacional.
não houve violação do princípio da legalidade porque não criou Em relação à discriminação ou preconceito de raça, cor,
novo tipo penal – fez uso da interpretação conforme a consti- etnia, religião ou procedência nacional, foi editada, em 5 de
tuição (técnica de decisão) para fazer a atualização do conceito janeiro de 1989, a Lei 7.716, que define os crimes resultantes
de racismo e para incluir como sendo racismo a discriminação de preconceito de raça ou de cor.
contra pessoas que se reconhece LGBT e, assim, propôs que o Por meio da Lei 10.741, de 2003, deu-se nova redação ao
crime de racismo13 da Lei n. 7.716/198914 seja aplicado contra § 3° no art. 140 do Código Penal para tipificar a injúria consis-
condutas praticadas em razão dessa condição. tente na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia,

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religião, origem ou a condição de pes- foram acompanhados pelos Ministros nalização da homofobia e transfobia e o
soa idosa ou portadora de deficiência. Alexandre de Moraes e Luís Roberto desacordo moral sobre se essas condu-
Em que pesem as inovações legis- Barroso, sob o fundamento da omis- tas são consideradas racismo não deve-
lativas, não foram tipificadas discrimi- são do legislador como violadora dos ria ser resolvido pelo Supremo Tribunal
nações atentatórias dos direitos e liber- direitos desse grupo de pessoas que, Federal. A resolução dessa questão de-
dades fundamentais ligados ao sexo e em razão de suas orientações sexu- veria ser pelo Congresso Nacional, que
à orientação sexual. Tal omissão é ain- ais e da identidade de gênero, estão exerce a função legislativa da União e de-
da mais normativamente relevante, es- sendo atacadas por outros grupos de veria ter a última palavra nessa questão,
pecialmente em vista do direito à igual- pessoas. Não se pode, a princípio, principalmente porque tem a responsa-
dade, caso se tenha em conta que são identificar quem seja a maioria da po- bilidade política pela representatividade
distintos os parâmetros de proteção da pulação ou dos eleitores que estejam do voto dos eleitores que os elegeram.
população idosa ou negra, por exemplo, negando o direito desse grupo vulne- A judicialização dessa questão, na
relativamente à LGBT.16 rável de que trata essas duas ações verdade, modifica o local do debate so-
Em outras passagens do voto, o rela- constitucionais, mas há que se reco- bre considerar ou não a homofobia e a
tor deixa bem claro a utilização do recur- nhecer uma omissão do Parlamento transfobia crime de racismo. Por mais
so à ampliação, com base no princípio da brasileiro em criar normas que prote- que hoje, no procedimento de con-
igualdade, do conceito de racismo: jam adequadamente esse grupo. trole de constitucionalidade perante o
No presente caso, no entanto, há
uma especificidade que está a indicar [...] a legitimidade das decisões das Cortes, em temas morais,
que a lacuna não decorre exclusivamen- dá-se em razão de que nelas se debate e se decide em
te da falta de norma que tipifique o ato
atentatório, mas também da própria argumentos de princípios, não se recorrendo a razões de policy
ofensa à igualdade, uma vez que con- (princípio de política).
dutas igualmente reprováveis recebem
tratamento jurídico distinto. Nesse caso, portanto, deve-se reco- Supremo Tribunal Federal, haja abertura
[…] nhecer que a leitura moral foi utilizada no de participação de interessados no deba-
Por preconceito de raça, cor, et- julgamento, porque, em razão da omissão te, mediante audiências públicas ou ami-
nia, religião ou procedência nacional, reconhecidamente inconstitucional e da cus curiae, nunca será a mesma partici- 61
impedir ou obstar acesso à órgão da violação de direitos de minorias –, pesso- pação que haveria no parlamento se o
Administração Pública, ou negar em- as que têm orientação sexual e identidade tema fosse levado à votação.
prego em empresa privada, por exem- de gênero como lésbicas, gays, bissexuais, Deve-se reconhecer, também, a li-
plo, são condutas típicas, nos termos transexuais e outros – o Supremo Tribunal mitação na extensão da discussão. Para
da Lei 7.716/1989. Se essas mesmas Federal realizou a atualização de um con- Ronald Dworkin, a legitimidade das deci-
condutas fossem praticadas em vir- ceito (o de racismo) que é, nessa teoria sões das Cortes, em temas morais, dá-se
tude de preconceito a homossexual dworkiana, um conceito que demanda em razão de que nelas se debate e se de-
ou transgênero, não haveria crime. interpretação e deve ser considerado um cide em argumentos de princípios, não
Afirmar que uma República que tem conceito moral, compartilhado pela co- se recorrendo a razões de policy (prin-
por objetivo promover o bem de to- munidade política e jurídica brasileira. cípio de política). Porém, essa limitação
dos, sem preconceitos de origem, Na base desse raciocínio encontra-se não ocorre quando a questão é decidi-
raça, sexo, cor, idade e quaisquer ou- a ideia de que a democracia exige igual da pelo legislador, que pode utilizar ar-
tras formas de discriminação tolera al- consideração a todos e, na forma que gumento de princípios e argumentos de
guns atos atentatórios à dignidade da tem sido tratado os grupos de pessoas policy, ampliando uma solução confor-
pessoa humana, ao tempo em que pro- identificados como LGBTs, não há igual me o critério da maioria.
tege outros, é uma leitura incompatível consideração deferida pelo Congresso É preciso observar que a Constituição
com o Texto Constitucional. Nacional, que não aprova uma legisla- proíbe a criação de novos tipos penais se-
[…] ção contra aqueles que são intolerantes não em virtude de lei anterior (art. 5°, in-
Noutras palavras, a igualdade está em relação às opções existenciais, que ciso XXXIX17) e, inegavelmente, a partir da
a nos exigir, enquanto intérpretes da abrange a opção sexual de pessoas per- técnica de decisão utilizada no julgamento
Constituição, que se reconheça a igual tencentes a um grupo expressivo da po- (interpretação conforme a constituição),
ofensividade do tratamento discrimina- pulação. Essa decisão, conforme a teoria no âmbito de interpretação do conceito
tório, seja para afastar a alegação de do direito como integridade, concretiza, de racismo presente no texto do crime de
que judeus não seriam vítimas de racis- na verdade, a democracia, pois repara, racismo previsto na Lei n. 7.716/1989, não
mo, seja para tolerar a apologia ao ódio contra a suposta maioria, o direito das há expressões que possam caracterizar a
e à discriminação derivada da livre ex- pessoas que exercem o direito de existir conduta discriminatória de homofobia e
pressão da sexualidade. na forma que escolheram viver. transfobia como crime.
Há uma reivindicação do caráter Em contraponto, na visão de E isso é um risco alto que se corre
contramajoritário nesses votos, que Waldron, esse desacordo sobre a crimi- quando se permite a criação de tipos pe-

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nais a partir da interpretação de normas já existentes, mesmo com De fato, pode-se concluir que, em caso de criminalização
a alegação sincera de que não se estaria criando um novo tipo de condutas, por causa de uma proteção expressa em normas
penal e que se coloque claramente o impedimento de que essa de direitos fundamentais, a última palavra deve ser do legisla-
decisão possa valer para casos passados. Nada vai impedir, futu- dor, o qual deve criar por lei formal o tipo penal que se aplique
ramente, que não se coloque essa barreira de aplicação de tipos aos casos concretos específicos da vida dos indivíduos, evitando
penais em que haja ampliação de sua incidência por decisão ju- que decisões judiciais possam criar soluções ad hoc para fatos
dicial para fatos pretéritos, por um motivo de política criminal, em passados sem previsão legal de crime.
utilização, igualmente, da leitura moral. Embora a decisão esteja projetando sua aplicação para ca-
A proibição de criação de tipos penais senão por meio de sos futuros, após a conclusão do julgamento, a criminalização de
lei é para evitar arbitrariedade especialmente de quem vai julgar qualquer conduta por decisão judicial, sem lei anterior definindo
e quando se permite a criação de tipos penais por intermédio um tipo penal específico, cria um alto risco para a democracia po-
de decisão judicial, seja qual for o fundamento utilizado, não há der virar refém de uma decisão futura que criminalize ações pas-
mais necessidade de respeito a essa norma fundamental da exi- sadas, ampliando tipos penais com base em técnicas de decisões,
gência de lei estrita para a proteção do indivíduo. em nítida decisão ativista baseada nos critérios de justeza.
Não fosse apenas esse argumento, a criminalização da homo-
fobia e da transfobia por meio de lei aprovada pelo parlamento,
embora não resolvesse a questão de forma a agradar a todos, te- NOTAS
ria maior legitimidade, especialmente se todas as opiniões expres- 1 A leitura moral da constituição é tema do livro Direito da liberdade
(DWORKIN, 2006).
sadas fossem consideradas, de maneira sincera, nas discussões 2 A primeira vez que se falou em “ativismo judicial” foi em uma publicação
realizadas durante a tramitação do projeto de lei, para assegurar da Revista Fortune em que o jornalista e historiador Arthur Schlesinger
igual consideração e respeito a todas essas posições. Jr. escreveu o artigo The Supreme Court: 1947 ao apresentar uma crítica
à atuação da Suprema Court classificou de um lado os juízes Hugo
Black, Willian O. Douglas, Frank Murphy e Wiley Rutledge de “ativistas
6 CONCLUSÕES judiciais” (judicial activists) e, por outro grupo, os juízes Felix Frankfurter,
Este artigo tematiza haver uma tensão entre a legitimida- Harold Burton e Robert H. Jackson de “campeões do autocomedimento”
(champions of self-restraint). Cf. Hutzler (2018, p. 66).
de democrática de decisões (leis, por exemplo) adotadas pelo 3 O ativismo judicial nem sempre foi considerado uma postura progressista,
Poder Legislativo, porque adotam como critério de solução da já que na primeira fase os juízes da Suprema Corte americana tinham uma
discordância o critério da maioria e o papel contramajoritário postura interpretativista e conservadora. Em verdade, nesse primeiro mo-
62 mento, o ativismo judicial se caracterizou como uma reação ao pleito de
exercido pelas Cortes Constitucionais, que com base em valores parcela da sociedade para acabar com a segregação racial, mas a Suprema
objetivos (geralmente os direitos fundamentais) resolve ques- Corte daquele país negou tal direito (Dred Scott v. Sanford, 1857). Também
tões com aplicação de princípios, desconsiderando decisões do o ativismo, como uma postura reacionária, ocorreu durante todo o período
da Corte de Lochner (1905-1937), período em que houve a invalidação de
Legislador e até do constituinte derivado.
leis de cunho social e quando surgiu o embate sobre o New Deal, em que
Apesar de a leitura moral ser um método utilizado em jul- Roosevelt acabou confrontando a Suprema Corte. Da década de 1950 em
gamento com temas morais controversos, expressos em textos diante, o ativismo americano inverteu-se totalmente, passando a ser pro-
vagos ou ambíguos e de não haver controvérsia entre Dworkin gressista (ex. Brown v. Board of Education, 1954; Miranda v. Arizona, 1966
e Roe v. Wade, 1973), repercutindo em outros países, inclusive no Brasil,
e Waldron sobre a utilização da leitura moral, há uma séria di- a partir da década de 1990, período pós Constituição Federal de 1988. Cf.
vergência sobre o local onde deve ser realizada essa decisão Barroso (2012, p. 23-32).
sobre o desacordo, se pelo Parlamento ou pela Corte. 4 Não se pretende aqui fazer um aprofundamento sobre o conceito de ati-
vismo judicial, pois esse conceito já foi tratado de forma aprofundada por
A predominância da última palavra nas Cortes Elival da Silva Ramos e de forma didática por Marcelo Casseb Continentino.
Constitucionais, como, por exemplo, do Supremo Tribunal Pretende-se, na realidade, apenas polemizar o conceito de ativismo judi-
Federal no Brasil, é fonte de muitas críticas, especialmente sobre cial e judicialização da política, porque esses conceitos estão na base das
discussões sobre a utilização da leitura moral pelo Poder Judiciário e essa
a não legitimidade de seus membros para fazerem escolhas em atitude é sempre utilizada como forma de ativismo e, muitas vezes, apenas
casos difíceis, porque não são eleitos diretamente pelo povo. como uma espécie de judicialização da política.
Para os defensores da visão de Ronald Dworkin, os votos pro- 5 No original: Thus the judicialization of politics should normally mean
either (1) the expansion of the province of the courts or the judges at the
feridos pelos ministros relatores da ADO n. 26 e do Mandado de expense of the politicians and/or the administrators, that is, the transfer
Injunção n. 4.733, resolvem corretamente a questão da omissão of decisionmaking rights from the legislature, the cabinet, or the civil
da criminalização da homofobia e da transfobia, porque baseada service to the courts or, at least, (2) the spread of judicial decision-making
methods outside the judicial province proper. In summing up we might
a decisão em princípios e em direitos fundamentais que vedam a say that judicialization essentially involves turning something into a form
discriminação de minorias pelas maiorias, estando presente, nes- of judicial process. Cf. VALLINDER, T. When the courts go marching in. Cf.
sa situação, a legitimidade da decisão judicial que amplia o con- Vallinder e Tate (1995, p.13)
6 O direito como integridade [...] insiste em que as afirmações jurídicas são
ceito de racismo para abranger essas condutas.
opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que
Todavia, para os defensores de Waldron, essa postura é pre- se voltam tanto para o passado quanto para o futuro: interpretam a prá-
judicial à democracia, porque somente o legislador teria legitimi- tica jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvol-
dade para decidir se criminalizaria ou não essa conduta de ho- vimento.(DWORKIN, 2014, p. 271).
7 Assim, a coerência de princípio’ deve valorizar-se por si mesma e estende
mofobia ou transfobia. A decisão do legislador deve ser realizada exigências tanto ao legislador como ao juiz, o que se expressa em dois
pelo critério da maioria e deve considerar as opiniões em contrá- princípios: o princípio da integridade na legislação, que pede aos que
rio no debate parlamentar, optando por criminalizar ou não essas criam direito por legislação que o mantenham coerente quanto aos prin-
cípios, e o da integridade no julgamento, que pede aos responsáveis por
condutas, sem que isso represente uma tirania da maioria.

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decidir o que é a lei, que a vejam e façam cumprir como sendo coerente NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza,
nesse sentido. Cf. Streck e Motta (2018, p. 54-87).Nas páginas 72 e 73 – v.30, n.2, 2010, p. 151-169. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/hand-
excluiu-se as notas de rodapé existentes no original. le/riufc/12025. Acesso em: 11 abr. 2019.
8 OMMATI, José Emílio Medaur. Moralidade administrativa e leitura moral BUNCHAFT, Maria Eugenia. O julgamento da ADPF n. 54: uma reflexão à luz
do direito. Disponível em: https://washingtonbarbosa.com/page/68/?- de Ronald Dworkin. Sequência (Florianópolis), Florianópolis, n. 65, p. 155-188,
cat=25920. Acesso em: 20 mar. 2019. dez. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
9 Há uma tradução brasileira, na qual também me fundamento, em parte: d=S2177-70552012000200008&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 28 ago. 2018.
Waldron (2010) tradução de Adauto Villela. DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. Trad. Jefferson Luiz Camargo. Revisão de
10 As diferenças mais importantes são aquelas entre o que chamo de “con- Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
trole de constitucionalidade forte” e “controle de constitucionalidade fra- DWORKIN, Ronald. Direito da liberdade: a leitura moral da Constituição nor-
co”. Meu alvo é o controle de constitucionalidade forte. Em um sistema te-americana. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
de controle de constitucionalidade forte, os tribunais têm autoridade para DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais.
deixar de aplicar uma lei em um processo (mesmo que a lei em seus Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
próprios termos se aplicasse claramente a tal processo) ou para modifi- DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo:
car o efeito de uma lei para deixar sua aplicação em conformidade com Martins Fontes, 2002.
direitos individuais (de modo que a lei por si não vislumbra). Além disso, DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. Revisão
os tribunais, nesse sistema, têm autoridade para instituir como matéria de Silvana Vieira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
de direito que uma dada lei ou disposição legislativa não será aplicada, HART, Herbert L. A. O conceito de direito. Trad. Antônio de Oliveira Sette-
de modo que, em consequência da força vinculante dos precedentes e da Câmera. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
preclusão da questão, uma lei cuja aplicação foi recusada pelos tribunais HUTZLER, Fernanda Souza. O ativismo judicial e seus reflexos na seguridade
torna-se para todos os efeitos letra morta. Uma forma ainda mais forte de social. Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2018.
controle de constitucionalidade consistiria em dar poderes aos tribunais MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a teoria do direito
para excluir totalmente uma lei de uma vez por todas. […] Em um siste- contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2013. E-book.
ma de controle de constitucionalidade fraco, por outro lado, os tribunais MOTTA, Francisco José Borges. Ronald Dworkin e a construção de uma teoria
podem examinar minuciosamente a legislação quanto à sua conformi- hermeneuticamente adequada da decisão jurídica democrática. 2014. 291 f.
dade com direitos individuais, mas não podem se recusar a aplicá-la (ou Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade do
moderar sua aplicação) simplesmente porque os direitos seriam, em caso Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, 2014. Disponível em: http://www.
contrário, violados. (WALDRON, 2010, p.100). repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/3148. Acesso em: 22 jun. 2018.
11 Vamos propor, por ora, que o parlamento esteja amplamente ciente das OMMATI, José Emílio Medaur. Moralidade administrativa e leitura moral do
questões de direitos que um dado projeto levante e que, tendo deliberado direito. Disponível em: https://washingtonbarbosa.com/page/68/?cat=25920.
sobre o assunto, resolve – por meio de debate e votação – conciliar essas Acesso em: 20 mar. 2019.
questões de uma maneira específica. O Legislativo posiciona-se de um PEDRON, Flávio Quinaud. A superação da tese do livre convencimento moti-
dos lados de uma ou mais discordâncias que imaginamos na pressupo- vado do magistrado em face do dever de busca pela resposta correta na teoria
sição quatro. A questão que enfrentamos é saber se essa resolução do do direito como integridade de Ronald Dworkin. Revista Direito Sem Fronteiras,
Legislativo deveria ser dispositiva ou se há razão para que seja reavaliada Foz do Iguaçu, v. 1, n. 2, p. 55-70, jul./dez. 2017. Disponível em: https://do-
ou talvez anulada pelo Judiciário. (WALDRON, 2010, p. 117). cplayer.com.br/80040670-Direito-sem-fronteiras.html. Acesso em: 27 jun. 2018.
12 Por maioria ou minoria “decisória” Waldron traz como exemplo os legisla- RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2. ed. São 63
dores brancos, quando votam questões e direitos dos brancos em detrimen- Paulo: Saraiva, 2015.
to dos negros. Por maioria ou minorias “tópicas, Waldron faz referência, STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias
primeiro ao termo “tópico” que se refere ao tópico do tema/questão e aos discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
grupos majoritários e minoritários cujos direitos entram em jogo no proces- STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco José Borges. Relendo o debate entre Hart
so de decisão. (WALDRON, 2010, p. 147 [nota de rodapé n. 129]) e Dworkin: uma crítica aos positivismos interpretativos. Revista Brasileira de
13 CRFB de 1988: Art. 5º […] Direito, Passo Fundo, v. 14, n. 1, p. 54-87, abr. 2018. ISSN 2238-0604. Disponível
14 XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liber- em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/2451.
dades fundamentais; Acesso em: 20 mar. 2019.
15 XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, VALLINDER, T; TATE, C. Neal. The global expansion of judicial power: the
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; [...] judicialization of politics. New York: New York University, 1995. E-book.
16 Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989: Art. 1° Serão punidos, na forma desta VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais
Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
etnia, religião ou procedência nacional. WALDRON, Jeremy. A essência da oposição ao judicial review. Tradução de
17 O Supremo Tribunal Federal que disponibilizou uma versão do voto do Adauto Villela. In: BIGONHA, Antônio Carlos Alpino; MOREIRA, Luis (org.).
Ministro Celso de Mello. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/ Legitimidade da jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
noticiaNoticiaStf/anexo/ADO26votoMCM.pdf. Acesso em: 7 mar. 2019. p. 93-157.
18 Cópia da síntese do voto do Ministro Edson Fachin disponibilizado pelo WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Trad. Luis Carlos Borges.
Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/ Revisão de tradução Mariana Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
cms/noticiaNoticiaStf/anexo/MI4733mEF.pdf. Acesso em: 7 mar. 2019 WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. Oxford: Oxford University Press,
19 Art. 5° “[…] XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena 1999a. E-book.
sem prévia cominação legal; [...] WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review. Yale Law Jornal,
Yale, v. 115, n. 6, p. 1315-1406, 2006. Disponível em: https://digitalcommons.
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BUNCHAFT, Maria Eugenia. Judicialização e minorias: uma reflexão sobre a 12ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará e mestrando em
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Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 55-63, jan./jul. 2020


D I R E I TO C IVIL
Leonardo Estevam de Assis Zanini

64
AS CONDIÇÕES GERAIS DE CONTRATAÇÃO
NO DIREITO ALEMÃO
THE GENERAL CONDITIONS OF CONTRACTS IN GERMAN LAW
Leonardo Estevam de Assis Zanini

RESUMO ABSTRACT
Analisa a maneira como o Código Civil alemão permitiu a The text assesses how German Civil Law has admitted the
inclusão das condições gerais de contratação nos negócios incorporation of the general terms and conditions of contracts
jurídicos, bem como as situações em que o juiz está autori- into legal transactions, also assessing situations that allow the
zado a fazer um controle do seu conteúdo. Estuda o campo judge to evaluate the content thereof. It studies the field of
de atuação e a forma como devem ser interpretadas as con- activity and the way general terms and conditions of contracts
dições gerais de contratação. should be interpreted.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Direito Civil; sociedade massificada; Direito alemão; condições Civil Law; mass society; German Law; general terms and
gerais de contratação; proteção do consumidor. conditions of contracts; consumer protection.

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Leonardo Estevam de Assis Zanini

1 INTRODUÇÃO gerais de contratação contêm aditamentos e alterações das dispo-


A sociedade de massas produziu alterações bastante sensíveis sições legais. Essas cláusulas facilitam, sem dúvida, a vida do utili-
na dinâmica do direito contratual, não se fazendo mais adequado o zador (predisponente), trazendo vantagens em termos de custos,
modelo liberal clássico do contrato (LÔBO, 2011, p. 121). A acelera- mas também repercutem na esfera do cliente, pois proporcionam
ção do ritmo das negociações e a desigualdade, cada vez mais sig- preços mais favoráveis e atendimento mais eficiente (BÄHR, 2013,
nificativa, entre as partes contratantes, proporcionou o surgimento e p. 119-120). Isso ocorre, sobretudo, em relação a empresas que
o desenvolvimento de contratos padronizados. concluem transações comerciais repetidas com um grande núme-
Na atualidade os contratos padronizados, que muitas vezes ro de clientes, as quais apresentam direitos e deveres semelhan-
contam com condições gerais de contratação, são instrumen- tes, fazendo sentido registrar os termos gerais da contratação por
tos negociais imprescindíveis e onipresentes, situação que não escrito e, em seguida, apenas fazer referência a eles ao concluir a
é diferente na seara negocial alemã e brasileira (ZANINI, 2017, transação individual (LÔBO, 2011, p. 122).
p. 75-76). Sua utilização explica-se pelo desejo das empresas de Assim, as condições gerais de contratação (Allgemeiner
previamente redigirem seus contratos, afastando a aplicação de Geschäftsbedingungen – ABG) desempenham um importan-
regras contratuais livremente discutidas pelas partes, tudo em te papel na prática contratual (KLUNZINGER, 2013, p. 111).
proveito de regras massificadas impostas de forma unilateral Atualmente, elas são utilizadas por uma ampla gama de ativida-
(FÖRSCHLER, 2018, p. 79-80). des empresariais, como bancos, companhias de seguros, planos
Como essa técnica contratual apresenta vantagens e desvan- de saúde, empresas de telefonia, fabricantes de bens e presta-
tagens para os contraentes, é certo que hodiernamente a regula- dores de serviços (FÜHRICH, 2014, p. 148). Elas oferecem aos
mentação relativa às condições gerais de contratação ocupa um contratantes, particularmente aos fornecedores, a oportunidade
lugar importante na legislação atinente à teoria geral dos contra- de padronizar seus serviços, estruturar uniformemente seus ne-
tos, visto que essas cláusulas interferem na liberdade de organiza- gócios, reduzir os custos das transações, bem como possibili- 65
ção do conteúdo do contrato (BROX; WALKER, 2019, p. 39). tam o cálculo dos riscos em caso de inadimplemento (BROX;
Desse modo, este texto objetiva apresentar os fundamen- WALKER, 2019, p. 42).
tos da legislação alemã sobre as condições gerais de contrata-
ção. Trata-se de um estudo descritivo, no qual também serão [...] a legislação prevê a existência de muitas
feitos apontamentos sobre eventuais diferenças existentes em normas como direito dispositivo. Toma-se como
relação ao Direito brasileiro, que certamente permitirão uma
ponto de partida a concepção tradicional de
melhor compreensão do papel socioeconômico desse instituto.
Para tanto, serão abordados particularmente os seguintes temas: que a negociação de um contrato não depende
a) a área de atuação das condições gerais de contratação; b) a apenas de uma das partes [...]
sua incorporação nos contratos; c) o controle de seu conteúdo.
Por outro lado, apesar de suas inegáveis vantagens, o uso das
2 SIGNIFICADO PRÁTICO DAS CONDIÇÕES condições gerais também apresenta riscos (LOOSCHELDERS,
GERAIS DE CONTRATAÇÃO 2017, p. 121). Muitas vezes aquele que utiliza as condições ge-
A celebração de um contrato certamente não depende de rais de contratação tem de lidar com clientes inexperientes, que
qual das partes tenha formulado os seus termos, bem como os não conseguem ler as “cláusulas escritas em letras pequenas”
tenha fixado por escrito. Em realidade, o fator decisivo em uma (Kleingedrucktes) e acabam assinando, mais ou menos cega-
contratação é que as partes concordem exatamente com as con- mente, os formulários contratuais que lhes são apresentados
dições estabelecidas. (BOECKEN, 2019, p. 178). Com isso, existe o risco de os utili-
Nessa linha, a legislação prevê a existência de muitas nor- zadores das condições gerais de contratação estabelecerem a
mas como direito dispositivo. Toma-se como ponto de partida a seu favor, de forma unilateral, os termos e condições dos con-
concepção tradicional de que a negociação de um contrato não tratos por eles celebrados, obtendo, então, vantagens injustifi-
depende apenas de uma das partes, mas sim de concessões fei- cadas por abusarem da liberdade contratual concedida por lei
tas por ambas as partes, de maneira que uma parte contratual só (FÖRSCHLER, 2018, p. 80). É dizer: diante da hipossuficiência
estaria disposta a renunciar a direitos concedidos pela lei se lhe de uma das partes e da força econômica da outra, a liberdade
forem oferecidas outras vantagens como compensação. contratual permite que a parte mais forte desequilibre a relação
Todavia, como regra, não há discussão sobre as cláusulas con- contratual a seu favor, o que se agrava muito pelas particularida-
tratuais pré-formuladas quando uma das partes faz uso das con- des das condições gerais de contratação1.
dições gerais para alterar ou complementar um determinado tipo Por conseguinte, diante do uso constante das condições ge-
de contrato (SCHLECHTRIEM, 2003, p. 43). De fato, as condições rais de contratação, realidade que não pode ser ignorada e não

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Leonardo Estevam de Assis Zanini

pode ser evitada, o legislador alemão procurou fazer um contro- Direito brasileiro, existem regras minuciosas, claras e precisas
le dessas cláusulas para evitar a submissão da parte mais fraca acerca das condições gerais de contratação3. O legislador ale-
à vontade da parte economicamente mais forte, mantendo, as- mão não deu espaço para um modelo jurídico de caráter aber-
sim, o equilíbrio contratual e a justiça (BOECKEN, 2019, p. 179). to, como o adotado pelo Código Civil brasileiro, que preten-
samente “proporciona ao juiz a possibilidade de encontrar a
3 FONTES DA REGULAMENTAÇÃO ATUAL equidade” (REALE, 1986, p. 47).
O legislador alemão se ocupou do problema das condições Nessa linha, o § 305, 1, do BGB define as condições gerais
gerais de contratação na década de 1970, época em que o de contratação como todas as cláusulas contratuais pré-redigi-
tema já vinha sendo debatido na doutrina e na jurisprudên- das para uma multiplicidade de contratos, que uma das partes
cia há mais de uma década. Inicialmente, a temática foi trata- (utilizador) impõe à outra no momento da conclusão do contra-
da em 9 de dezembro de 1976, fora do Código Civil alemão to (SAKOWSKI, 2014, p. 96).
(BGB), no âmbito da “Lei sobre a regulamentação do direito Para a caracterização como condição geral de contratação,
das condições gerais de contratação” (Gesetz zur Regelung o Direito alemão considera irrelevante a maneira como ocorreu
des Rechts der Allgemeinen Geschäftsbedingungen – a sua fixação, qual o seu alcance, bem como se foi impressa ou
AGBG) (MEDICUS, 2010, p. 162). simplesmente escrita4. Não importa a forma do contrato, isto é,
Entretanto, desde o ano de 2002 a referida lei (AGBG) foi se foi celebrado por escrito ou se foi celebrado informalmente
integrada ao BGB, no livro 2, que trata das obrigações (Recht (de forma oral). As condições gerais de contratação, mesmo no
der Schuldverhältnisse). De fato, com a reforma do Direito das caso de contratos formais, não precisam ser incluídas no instru-
Obrigações, no ano de 2002, feita pela “Lei de modernização mento contratual, bastando sua exibição em um lugar visível
do Direito das obrigações” (Gesetz zur Modernisierung des no estabelecimento comercial, como na área dos caixas (BROX;
Schuldrechts), as disposições de direito material sobre as con- WALKER, 2019, p. 41).
dições gerais de contratação foram incluídas no BGB (§§ 305 a Em todo caso, é importante notar que os termos e con-
310)2. Para tanto, houve um amplo aproveitamento do texto das dições desse tipo de contrato foram formulados antecipa-
regras da AGBG, bem como foram feitas algumas correções na damente (vorformuliert) e apresentados unilateralmente na
redação da lei anterior (BROX; WALKER, 2019, p. 39-40). ocasião da celebração da avença (BÄHR, 2013, p. 121). Isso
Além disso, as disposições normativas em questão, pelo significa que essas cláusulas não foram particularmente ne-
menos em parte, constituem a transposição da Diretiva 93/13/ gociadas entre as partes, pois caso contrário, se realmente
66 CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas houve um sério debate entre as partes acerca das cláusulas
abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, valen- (KLUNZINGER, 2013, p. 111), não se estará diante de condi-
do, na dúvida, a interpretação em conformidade com a referida ções gerais de contratação (§ 305, 1, 3 do BGB)5. E aqui vale
diretiva (LOOSCHELDERS, 2017, p. 121). observar que não tem relevo o fato de que aquele que impôs
a cláusula apenas utilizou um modelo de contrato estabele-
[...] a qualificação como condição geral de cido por um terceiro (LOOSCHELDERS, 2017, p. 123). Nesse
contratação pode ser aceita mesmo se a ponto, fica claro porque a lei empregou o termo utilizador
(Verwender) e não a expressão estipulante, que é mais restrita
cláusula foi redigida para um número preciso
(FROMONT; KNETSCH, 2017, p. 126).
de contratos, falando a doutrina em pelo Outrossim, a cláusula deve ter sido redigida para uma mul-
menos três contratos [...] tiplicidade de contratos (für eine Vielzahl von Verträgen vor-
formulierten Vertragsbedingungen), ou seja, de maneira ge-
Ademais, é de se notar que os §§ 305 e seguintes do BGB, ral e impessoal, abstraindo situações contratuais específicas.
ao contrário da mencionada diretiva, não se aplicam unicamen- Com isso, a redação legal alemã buscou colocar fim a um
te às relações contratuais entre consumidores e fornecedores. entendimento jurisprudencial do Tribunal Federal de Justiça
Compreendem regras precisas sobre a incorporação de condi- (Bundesgerichtshof – BGH), que exigia ser a cláusula redigi-
ções gerais de contratação, bem como sua interpretação. Muito da para um número indeterminado de contratos (HIRSCH,
mais que um simples elemento do Direito do Consumidor, o 2012, p. 180). Desse modo, a qualificação como condição geral
Direito alemão vê a matéria como regulação da formação do de contratação pode ser aceita mesmo se a cláusula foi redi-
contrato (FROMONT; KNETSCH, 2017, p. 126). gida para um número preciso de contratos, falando a doutri-
Em todo caso, deve-se ressaltar que o legislador alemão, na em pelo menos três contratos (FÖRSCHLER, 2018, p. 80).
sob o pretexto de incorporar ao Direito interno as diretivas euro- Excepcionalmente, no que toca às relações de consumo, ad-
peias referentes aos contratantes vulneráveis, acabou indo além mite-se a proteção do consumidor pelas regras das condições
da proteção mínima exigida pelo Direito europeu, bem como gerais de contratação mesmo se existir apenas um contrato
promoveu a incorporação da matéria no BGB, retornando ao (BOECKEN, 2019, p. 180).
seio da codificação civil temática que tradicionalmente vinha Ademais, o § 305, 1 do BGB dispõe ser necessária a im-
sendo regrada por microssistemas (LÔBO, 2011, p. 127). posição das cláusulas pelo utilizador ao outro contratante, não
existindo, então, a possibilidade de modificação ou de nego-
4 CONCEITO DE CONDIÇÕES GERAIS DE CONTRATAÇÃO ciação do conteúdo das cláusulas em questão. Essa exigência
No Direito alemão, diferentemente do que ocorre no tem origem no objetivo inicial do legislador alemão de consti-

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Leonardo Estevam de Assis Zanini

tuir uma proteção à parte contratual que obrigações (Schuldrecht), têm aplicação, consumo, algumas disposições espe-
está impossibilitada de defender seus in- como regra, em todo tipo de contrata- cíficas, a respeito, particularmente, do
teresses diante das condições gerais de ção de Direito privado (WEILER, 2016, controle do conteúdo das cláusulas con-
contratação. Assim, as normas sobre as p. 125). tratuais, que muitas vezes podem ser
condições gerais de contratação não se Entretanto, conforme estabelece o desvantajosas para o consumidor (BÄHR,
enquadram como regras dispositivas, § 310, 4 do BGB, essas disposições não 2013, p. 121). Em contrapartida, as re-
mas sim como normas cogentes (BROX; são aplicáveis aos contratos da área de gras sobre as condições gerais de con-
WALKER, 2019, p. 41). Direito de família, sucessões, sociedades tratação, excepcionalmente, não têm
Desse modo, vê-se aqui mais uma (KLUNZINGER, 2013, p. 127), pois nes- aplicação quando as cláusulas foram in-
diferença entre o Direito alemão e o ses casos não há de se falar, em princí- troduzidas no contrato pelo próprio con-
Direito brasileiro, pois o Código Civil pio, em superioridade de uma parte em sumidor (SAKOWSKI, 2014, p. 97).
de 2002 não somente não apresentou relação à outra no que toca à conclusão Nessa hipótese, pode-se constatar
uma definição das condições gerais de de tais contratos (BROX; WALKER, 2019, que o critério de aplicação não é o esta-
contratação, como também não cui- p. 60). Também estão fora do campo de do de superioridade econômica específi-
dou da matéria de forma tão acurada, aplicação os contratos de fornecimento co das relações entre fornecedor e con-
preferindo um modelo jurídico aber- de determinados serviços, como eletri- sumidor, mas sim a efetiva possibilidade
to. Todavia, como observa Paulo Lôbo cidade, gás, água, entre outros (WOLF; de negociação individual. Aliás, mesmo
(2011, p. 126), a experiência no mundo NEUNER, 2016, p. 575-576). Dessa ma- um contrato estabelecido entre profissio-
inteiro provou o contrário, pois relações neira, tais disposições não fazem parte nais permite a aplicação da legislação re-
jurídicas desiguais, geradoras de confli- do campo de aplicação objetivo das con- lativa às condições gerais de contratação,
tos agudos e constantes, exigem regras dições gerais de contratação (sachlicher desde que o contrato não seja objeto de
de jogo claras e específicas, não se mos- Anwendungsbereich). negociação individual (§ 305 do BGB)
trando adequada a utilização do mode- Por outro lado, tais normas valem (FROMONT; KNETSCH, 2017, p. 126).
lo jurídico aberto. para os contratos individuais de traba- Vale notar que, na hipótese de uti-
Pois bem, apresentada a definição lho, uma vez que os vínculos entre em- lização das condições gerais de contra-
das condições gerais de contratação, pas- pregador e empregado constituem rela- tação em relação a um empresário (de
sa-se agora à análise do seu complexo ções jurídicas obrigacionais (BOECKEN, uma pessoa jurídica de Direito público),
sistema de controle, composto por três 2019, p. 181). Em todo caso, o § 310, 4, não se aplicam as disposições concer- 67
etapas: a) campo de aplicação; b) incor- 2 do BGB estipula que, na apreciação nentes à inclusão das condições gerais
poração no contrato e; c) controle do das condições gerais de contratação, de contratação (§ 305, 2 e 3) (BOECKEN,
conteúdo (BOECKEN, 2019, p. 179). “as particularidades aplicáveis em ma- 2019, p. 184). Todavia, ocorre o controle
téria de Direito do trabalho devem ser do conteúdo por meio da cláusula geral
5 CAMPO DE APLICAÇÃO DAS CONDIÇÕES levadas em conta de forma adequada” do § 307 (§ 310, 1, 2), que será analisa-
GERAIS DE CONTRATAÇÃO (BÄHR, 2013, p. 120). da adiante (BROX; WALKER, 2019, p. 59).
Com o objetivo de reforçar as solu-
ções jurisprudenciais elaboradas pelo 5.2 CAMPO DE APLICAÇÃO PESSOAL 6 INCORPORAÇÃO DAS CONDIÇÕES
Tribunal Federal de Justiça (BGH) após Em relação ao campo pessoal (per- GERAIS DE CONTRATAÇÃO
a Segunda Guerra Mundial, o legislador sönlicher Anwendungsbereich), as condi- As condições gerais de contratação
alemão procurou alargar ao máximo o ções gerais de contratação são aplicáveis não são normas jurídicas (KLUNZINGER,
campo de aplicação das condições ge- aos contratos envolvendo consumidores 2013, p. 111). Por isso, para ingressarem
rais de contratação (BOECKEN, 2019, (contratos celebrados entre um fornece- na esfera contratual, dependem tanto do
p. 180). Para isso, parte-se da definição dor e um consumidor). consentimento como do conhecimento
das condições gerais de contratação, que Com efeito, a obrigação de trans- de seu conteúdo pelas partes contratan-
tem seu campo de atuação modificado por a Diretiva 93/13/CEE do Conselho, tes (BRÖMMELMEYER, 2014, p. 67).
pelo § 310 do BGB, no qual são reco- de 5 de abril de 1993, relativa às cláu- A natureza contratual das condições
nhecidos um campo de aplicação obje- sulas abusivas nos contratos celebra- gerais de contratação requer, logica-
tivo (sachlicher Anwendungsbereich) e dos com os consumidores, forçou o le- mente, que as partes estejam de acor-
um campo de aplicação pessoal (persön- gislador alemão a rever vários pontos do com a sua aplicação (§ 305, 2, in
licher Anwendungsbereich), que abran- do campo de aplicação da legislação fine do BGB). Nesse ponto, a aceitação
gem tanto o cumprimento da obrigação sobre condições gerais de contratação. das condições não difere do consenti-
principal como da obrigação acessória Nesse contexto, vale notar que o § 310, mento dado em um contrato individu-
(WOLF; NEUNER, 2016, p. 575). 3, 1 do BGB prevê que as condições almente negociado. Assim, a aceitação
gerais de contratação são considera- das condições gerais pelas partes resul-
5.1 CAMPO DE APLICAÇÃO OBJETIVO das como impostas pelo fornecedor, ta do consentimento dado na conclu-
As normas a respeito das condições salvo se tiverem sido introduzidas no são do contrato (Konsensualprinzip),
gerais de contratação, a despeito de se contrato pelo consumidor. que pode ser expresso ou tácito
localizarem no âmbito do Direito das Aplicam-se, ainda, aos contratos de (EISENHARDT, 2018, p. 62).

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 64-72, jan./jul. 2020


Leonardo Estevam de Assis Zanini

Conforme o § 305, 2, 1 do BGB, as partes contratantes de- exemplo, se entre as cláusulas que tratam do prazo de entrega
vem estar de acordo com o fato das condições gerais de contra- da mercadoria é acrescentada uma cláusula de exclusão da res-
tação integrarem o que foi pactuado. Se não for feita expressa ponsabilidade do fornecedor, ficando evidente o contexto total-
referência à existência das condições, na conclusão do negócio, mente diverso de sua colocação (BOECKEN, 2019, p. 185-186).
a lei alemã considera que elas não se tornam parte integrante De todo modo, vale notar que a inclusão das condições ge-
do contrato (BROX; WALKER, 2019, p. 44). rais de contratação não constitui um negócio jurídico particular,
Além disso, é necessário, também, como regra, que a parte mas tão somente uma parte do próprio contrato.
contratante, de maneira razoável (in zumutbarer Weise), tenha
a possibilidade de tomar conhecimento do conteúdo das condi- 7 INTERPRETAÇÃO DAS CONDIÇÕES GERAIS DE CONTRATAÇÃO E
ções (§ 305, 2, 2 do BGB), o que inclui as condições disponibili- PREVALÊNCIA DOS ACORDOS INDIVIDUAIS
zadas na internet (FÖRSCHLER, 2018, p. 82). É dizer, considera- Na interpretação das condições gerais de contratação, não
-se tomar conhecimento de forma razoável quando as cláusulas havendo disposição em sentido contrário, aplicam-se as regras
são inteligíveis e acessíveis, o que exige, inclusive, que se leve gerais do BGB, que tratam da interpretação (§§ 133, 157) e
em consideração eventuais necessidades especiais dos contratan- da eficácia (§§ 134, 138) da declaração de vontade (BROX;
tes, como, por exemplo, a existência de deficiência visual (WOLF; WALKER, 2019, p. 43). Ao lado da utilização da interpretação
NEUNER, 2016, p. 577). Tal regra pode ser afastada, excepcional- comum dos contratos, também se exige uma interpretação tí-
mente, no que toca a determinadas áreas privilegiadas, como em pica das condições gerais de contratação (LÔBO, 2011, p. 123).
certos serviços de telecomunicações e transporte público, valendo Nessa senda, eventualmente são celebrados acordos individu-
o disposto no § 305a do BGB (EISENHARDT, 2018, p. 63). ais adicionais com o cliente, os quais contradizem as condições ge-
rais de contratação que foram simultaneamente acordadas. Assim,
[...] a aceitação das condições não difere do aplica-se o § 305b do BGB, o qual determina serem ineficazes as
consentimento dado em um contrato cláusulas que estiverem em contradição direta ou indireta com o
que foi pactuado expressamente e de forma individual pelas partes
individualmente negociado. Assim, a aceitação
(Vorrang der Individualabrede) (BÄHR, 2013, p. 122).
das condições gerais pelas partes resulta do O § 305b do BGB é uma regra de colisão (Kollisionsregel),
consentimento dado na conclusão do contrato [...] que dá prevalência aos acordos individuais em detrimento das
condições gerais de contratação (FÖRSCHLER, 2018, p. 82).
68 As condições gerais de contratação são particularmente pro- Essa regra se fundamenta na maior consideração dada pelo
blemáticas quando se desviam das disposições legais em detri- BGB aos acordos individuais que às disposições abstratas pre-
mento de uma das partes do contrato, introduzindo condições viamente formuladas por apenas uma das partes, o que repre-
atípicas, objetivamente não habituais (ungewöhnlich) para o senta evidente consagração do princípio da autonomia privada
tipo de transação concluída (BRÖMMELMEYER, 2014, p. 68). (BRÖMMELMEYER, 2014, p. 68).
Normalmente os clientes apenas concordam em se submete- Na ausência de incorporação, seja total ou parcial, das con-
rem a elas porque confiam que apenas modificam regras típicas dições gerais, o contrato permanece eficaz em virtude do § 306
do negócio jurídico, mas não alteram os princípios fundamen- do BGB (der Vertrag im Übrigen wirksam). Tal dispositivo, em
tais da transação realizada (BÄHR, 2013, p. 122). sua alínea 2, dispõe que “o conteúdo do contrato se regula con-
A fim de proteger esta confiança na normalidade das con- forme as disposições legais” (FROMONT; KNETSCH, 2017, p.
dições gerais de contratação, o § 305c do BGB estipula que as 130-134). Na falta de regras supletivas adequadas, o juiz deve-
“cláusulas surpresa” (Überraschungsklauseln), ou seja, aquelas rá preencher as lacunas do contrato por meio de interpretação
com as quais o contratante normalmente não contaria, não fa- completiva (ergänzende Vetragsauslegung), considerando os
zem parte do contrato (BOECKEN, 2019, p. 185). E, nesse senti- interesses das partes (BOECKEN, 2019, p. 189-190).
do, o Tribunal Federal de Justiça (BGH) deduz que não são ad- Excepcionalmente, o contrato será integralmente ineficaz,
missíveis, em relação ao contratante ordinário, as cláusulas que se a sua manutenção, tendo em conta a alteração prevista
tenham como efeito engano ou fraude (Überrumpelungs- und na alínea 2, representar um rigor excepcional para uma das
Übertölpelungseffekt) (FROMONT; KNETSCH, 2017, p. 128). partes (§ 306, 3 do BGB) (SAKOWSKI, 2014, p. 101). Nessa
Para isso, deve ser aplicado um critério objetivo, isto é, con- situação, não se pode simplesmente retirar a cláusula do con-
sidera-se a capacidade de compreensão de um cliente médio. trato, visto que a manutenção do acordado sem referida cláusu-
Assim, as condições gerais de contratação devem ser de fácil la levaria ao desequilíbrio de sua equação financeira (Störung
leitura para o cliente médio, o que toma em conta o tipo e o des Vertragsgleichgewichts). Semelhante solução será aplicada
tamanho da imagem escrita. Igualmente, é necessária a com- quando ocorrer a incorporação das condições gerais, mas seu
preensão das cláusulas pelo cliente, sem dispêndio excessivo de conteúdo for declarado ineficaz (BROX; WALKER, 2019, p. 56).
tempo (BROX; WALKER, 2019, p. 43). Por fim, vale lembrar que a interpretação das condições
Outrossim, também se utiliza o critério da localização da gerais de contratação, diferentemente do que ocorre com as
cláusula para se averiguar se é o caso de uma cláusula surpre- regras gerais do BGB, não parte da situação concreta do con-
sa. É dizer: causa surpresa ao contratante a colocação de uma tratante, mas considera um contratante médio (homo medius),
cláusula em local do contrato cuja temática não guarda nenhu- o que se extrai quando se pensa em uma multiplicidade de ne-
ma relação com o assunto tratado. Essa situação ocorre, por gócios jurídicos (BROX; WALKER, 2019, p. 46).

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8 CONTROLE DO CONTEÚDO DAS manobra, por isso o nome “lista negra” cem um direito de recusa de execução
CONDIÇÕES GERAIS DE CONTRATAÇÃO (NERY; NERY JUNIOR, 2016, p. 185). da prestação, as que proíbem a compen-
Superada a fase de incorporação das a) A “lista cinza” sação da dívida com créditos mútuos, as
condições gerais de contratação, passa- A “lista cinza” constante do § 308 que fixam prazos adicionais, as cláusulas
-se à fase de controle do seu conteúdo do BGB enumera tipos de cláusulas penais, as cláusulas de exoneração ou li-
(Inhaltskontrolle). Nos §§ 307 a 309 do que são vedadas se forem inapropria- mitação de responsabilidade em caso de
BGB, são estabelecidos os requisitos para das, não razoáveis ou objetivamente in- culpa grave, bem como as cláusulas que
que as condições gerais de contratação, justificadas. Como o juiz pode apreciar alterem a repartição do ônus da prova
que foram efetivamente incluídas no a eficácia dessas cláusulas, a legislação em detrimento do cocontratante (WOLF;
contrato, possam ser consideradas efica- apresenta normas que contêm concei- NEUNER, 2016, p. 583).
zes (FÖRSCHLER, 2018, p. 83). tos jurídicos indeterminados (unbes- Por conseguinte, no que toca ao
O controle de conteúdo segue a or- timmte Rechtsbegriffe), o que permite controle do conteúdo das condições ge-
dem inversa dos §§ 307 a 309 do BGB. a sua valoração em cada caso concreto rais de contratação, deve-se inicialmen-
Isso significa que primeiro são analisa- (BRÖMMELMEYER, 2014, p. 72). te examinar a presença de cláusulas que
das as regras do § 309, que proíbem Tais cláusulas suspeitas podem ser integrariam a lista do § 309. Em segui-
determinadas cláusulas sem necessida- reagrupadas em quatro categorias. A pri- da, não havendo enquadramento no §
de de valoração. Em seguida, passa-se meira categoria compreende as cláusulas 309, passa-se à verificação da existência
à análise do § 308, cujas cláusulas proi- relativas a prazos de aceitação, de paga- de cláusulas que possam ser subsumi-
bidas necessitam de valoração de con- mento, de verificação e de execução, que das no § 308. Por fim, analisa-se se há
teúdo (WOLF; NEUNER, 2016, p. 583). não devem ser nem excessivamente lon- alguma disposição contratual que vio-
Por fim, caso não tenha sido violada ne- gos nem insuficientemente determina- lou o § 307, regra que apresenta uma
nhuma proibição dos §§ 309 e 308, le- dos. A segunda categoria compreende cláusula geral de controle do conteúdo
va-se em conta a boa-fé objetiva (Treu as cláusulas que autorizam a resolução (Generalklausel der Inhaltskontrolle)
und Glauben), como está estabeleci- do contrato ou a modificação da presta- (BROX; WALKER, 2019, p. 48).
do na cláusula geral do § 307 do BGB ção sem um motivo preciso. O terceiro
(BOECKEN, 2019, p. 186-188). grupo engloba as cláusulas que dão a 8.2 A CLÁUSULA GERAL DE CONTROLE DE
Desse modo, considerando a sequ- um comportamento determinado do co- CONTEÚDO PREVISTA NO § 307 DO BGB
ência determinada pela legislação alemã contratante o sentido de uma declaração A partir da integração das disposi- 69
no que toca ao controle das cláusulas, se- de vontade ou que instituem uma pre- ções da Lei, de 9 de dezembro de 1976,
rão primeiro analisados os §§ 308 e 309 sunção de recepção por uma declaração no BGB, o legislador consagrou o contro-
(Klauselverbote). Na sequência, estudar- do utilizador. Por fim, o quarto grupo é le das condições gerais de contratação,
-se-á a cláusula geral (Generalklausel) do constituído de cláusulas que preveem que a jurisprudência, em um primeiro
§ 307 do BGB (SAKOWSKI, 2014, p. 97). que, em caso de resolução ou resilição, momento, tinha elaborado com base no
o cocontratante deverá pagar ao estipu- critério da desvantagem injustificada.
8.1 AS LISTAS PREVISTAS NOS §§ 308 E 309 lante somas exageradamente elevadas Desta feita, o principal objetivo das
DO BGB (FROMONT; KNETSCH, 2017, p. 132). normas em matéria de defesa da parte
Os §§ 308 e 309 do BGB contêm a) A “lista negra” que se subordina às condições gerais de
duas listas que enumeram diferentes A “lista negra” do § 309 do BGB enu- contratação é a verificação do conteúdo
categorias de cláusulas que o legisla- mera as cláusulas que são vedadas. O das cláusulas, isto é, se o utilizador das
dor presume abusivas. Essas listas não legislador presume, irrefragavelmente, cláusulas não está impondo regras que
são aplicáveis aos contratos entre pro- que essas cláusulas sempre prejudicam, prejudiquem injustamente a outra parte.
fissionais, pois seu campo de aplicação de forma desproporcional, a outra par- a) Desvantagem injustificada
se limita aos contratos celebrados entre te (BOECKEN, 2019, p. 188). Não existe O § 307, I, do BGB apresenta uma
particulares e aos contratos de consumo a possibilidade de uma ponderação de cláusula geral de controle de conteúdo
(FROMONT; KNETSCH, 2017, p. 133). interesses, ficando o juiz obrigado a de- (Generalklausel der Inhaltskontrolle),
A primeira lista contém as cláusu- clará-las ineficazes (Klauselverbote ohne estabelecendo que as condições gerais
las em que o juiz tem a possibilidade de Wertungsmöglichkeit) (BROX; WALKER, de contratação são ineficazes, quando,
constatar a ineficácia, dispondo de um 2019, p. 48). contrariando exigências da boa-fé objeti-
poder de apreciação (Klauselverbote Tais cláusulas são definidas de for- va (Treu und Glauben – § 242 do BGB),
mit Wertungsmöglichkeit) (RÜTHERS; ma precisa, são bastante numerosas e prejudicam injustificadamente o parcei-
STADLER, 2011, p. 252), o que justifi- mereceriam uma análise mais pormeno- ro contratual do utilizador (SAKOWSKI,
ca a utilização da expressão “lista cin- rizada, mesmo porque cada uma delas 2014, p. 100).
za”. A segunda lista enumera os tipos constitui objeto de julgados importantes Para apreciar se a cláusula litigio-
de cláusulas cuja ineficácia deve ser de- dos tribunais alemães. Sem exaurir a te- sa criou efetivamente uma desvanta-
clarada pelo juiz (Klauselverbote ohne mática, podem ser citadas as cláusulas gem injustificada (unangemessene
Wertungsmöglichkeit), ou seja, nesse caso, relativas ao aumento do preço após a Benachteiligung), o juiz deverá determi-
a lei não reconhece nenhuma margem de conclusão do contrato, as que estabele- nar os interesses em jogo das partes con-

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tratantes, sopesando a situação com a manutenção da cláusu- A revisão de conteúdo das condições gerais de contrata-
la e com a sua supressão (WOLF; NEUNER, 2016, p. 586). De ção considera ser possível a negociação em torno de normas
forma mais ampla, trata-se de investigar se o utilizador tentou de caráter dispositivo, que podem ser afastadas, alteradas ou
perseguir, ao recorrer às cláusulas padronizadas, exclusivamen- complementadas (§ 307, 3, 1 do BGB) (MEDICUS, 2010, p.
te seus próprios interesses, desconsiderando a situação do co- 176). Não se permite, por outro lado, negociações envolvendo
contratante (FROMONT; KNETSCH, 2017, p. 131). normas cogentes, de forma que qualquer cláusula que afas-
b) Regra da transparência te direito cogente será considerada inválida (BÄHR, 2013, p.
Entre as cláusulas que prejudicam injustificadamente o cocon- 123). Em todo caso, não se subordinam ao controle as cláu-
tratante, estão aquelas pouco claras e/ou não compreensíveis, que sulas que simplesmente repetem o conteúdo da lei, as quais
podem violar a regra da transparência (Transparenzgebot) das con- são chamadas de “cláusulas declaratórias” (deklaratorische
dições gerais de contratação (BOECKEN, 2019, p. 189). O dever de Klauseln) (BOECKEN, 2019, p. 187).
transparência está codificado no § 307, 1, 2 do BGB, o qual dispõe Com efeito, a desvantagem injustificada que conduz à inva-
que a falta de clareza e de inteligibilidade da cláusula pode constituir lidade das condições gerais de contratação decorre do seu grau
uma desvantagem injustificável (KLUNZINGER, 2013, p. 118). Isso de desvio em relação à regulamentação legal normal. Todavia,
decorre do fato de que os direitos e deveres dos contratantes devem para a aplicação dessa disposição, é necessária a existência
ser formulados em cláusulas contratuais que sejam apresentadas de de regulação detalhada pela legislação da relação contratual
forma clara, certa, determinada e compreensível (BROX; WALKER, (BÄHR, 2013, p. 123).
2019, p. 54). Assim, uma cláusula sem esses requisitos e que condu- Por fim, de acordo com o § 307, 3 do BGB, o controle de
za a uma desvantagem injustificada para o parceiro contratual pode conteúdo se aplica às disposições que derroguem regras su-
ser considerada globalmente ineficaz (BÄHR, 2013, p. 122). pletivas ou as complementem, mas ficam de fora as cláusulas
relativas ao preço e à prestação, que são objeto do contrato.
É dever do utilizador formular as cláusulas de Evita-se, com isso, que o juiz tenha que se pronunciar sobre o
maneira a evitar dificuldades em sua equilíbrio entre as prestações ou que ele possa modificar, pela
via do controle das condições gerais de contratação, o conteúdo
compreensão. Eventuais dúvidas sobre
da lei (FROMONT; KNETSCH, 2017, p. 130).
a interpretação das condições gerais
são ônus do seu utilizador [...] 9 RECONHECIMENTO JUDICIAL DA INEFICÁCIA
70 DAS CONDIÇÕES GERAIS
Outrossim, como o utilizador estabelece unilateralmente as Os contratantes podem invocar, em um litígio judi-
condições gerais, é ele que deve se preocupar com problemas cial individual, a ineficácia das condições gerais de contração
relacionados à sua clareza. É dever do utilizador formular as (Individualrechtsschutz) (BRÖMMELMEYER, 2014, p. 74). Tal
cláusulas de maneira a evitar dificuldades em sua compreensão. discussão judicial pode envolver a utilização de direito próprio
Eventuais dúvidas sobre a interpretação das condições gerais do contratante contra as cláusulas contratuais ou também pode
são ônus do seu utilizador, de forma que, se uma cláusula per- constituir meio de defesa (SAKOWSKI, 2014, p. 101).
mite várias interpretações possíveis, deve-se aplicar a interpreta- Por outro lado, como as condições gerais de contrata-
ção mais favorável ao cliente (SAKOWSKI, 2014, p. 100). ção frequentemente atingem os consumidores, a “Lei relati-
c) Casos de aplicação da desvantagem injustificada va às ações inibitórias em matéria de direitos dos consumido-
Conforme o § 307, 2 do BGB, em caso de dúvida, presume- res e outras infrações” (Gesetz über Unterlassungsklagen bei
-se a desvantagem injustificada quando uma disposição: a) não Verbraucherrechts- und anderen Verstößen ‒ UKlaG) concede a
é compatível com as ideias fundamentais da regulação legal que determinadas associações o direito de questionar judicialmente,
ela derrogou (Abweichung von wesentlichen Grundgedanken); via ação coletiva, a eficácia dessas condições gerais de contra-
b) quando ela restringe direitos e obrigações essenciais decor- tação, proibindo-se a sua utilização futura (RÜTHERS; STADLER,
rentes da natureza do contrato, de tal forma que compromete a 2011, p. 258-259).
realização do objetivo do contrato (Einschränkung wesentlicher Tal espécie de ação coletiva (Verbandsklage) pode
Rechte und Pflichten). Assim, pelo texto do § 307, 2 do BGB, ser ajuizada por associações de defesa do consumidor
procura o legislador concretizar o critério geral da desvantagem (Verbraucherschutzverbände), bem como por associa-
injustificada, apresentando dois casos de aplicação (gesetzliche ções de promoção de interesses da indústria e do comércio
Regelbeispiele) (KLUNZINGER, 2013, p. 117). (Wirtschftsverbände) (BOECKEN, 2019, p. 179). A proteção co-
Desse modo, a primeira disposição foca a incompatibilida- letiva contra condições gerais de contratação não depende da
de de uma cláusula padrão com o modelo das regras de um existência de um caso concreto (WOLF; NEUNER, 2016, p. 581),
tipo contratual determinado. A segunda regra, por seu turno, ponto que aproxima a tutela coletiva alemã do controle preven-
trata das cláusulas que comprometem a realização do objetivo tivo judicial brasileiro, feito principalmente pela via da ação civil
contratual (Vertragszweck) (RÜTHERS; STADLER, 2011, p. 253), pública (LÔBO, 2011, p. 131).
o que pode ser o caso das cláusulas exoneratórias ou limitado- No que diz respeito ao processamento dessa ação coletiva
ras de responsabilidade, notadamente quando elas se aplicam (Verbandsklage), valem as regras gerais do Código de Processo
ao descumprimento de uma obrigação fundamental do contra- Civil (Zivilprozessordnung – ZPO), ressalvadas regras especiais
to (FROMONT; KNETSCH, 2017, p. 132). da UKlaG (BROX; WALKER, 2019, p. 58).

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se tornou usual no Direito brasileiro. Apesar


10 CONCLUSÃO ver a obrigação de o juiz levar em conta disso, Rosa Maria de Andrade Nery e Nelson
O Direito alemão apresenta um sis- as circunstâncias que envolvem a conclu- Nery Junior (2016, p. 182) observam, com
tema de controle das cláusulas gerais de são do contrato quando da apreciação da bastante propriedade, que é mais adequada
tecnicamente a utilização do termo “cláusulas
contratação bastante elaborado. Tal sis- desvantagem injustificada. Isso incorpo- gerais dos contratos”. Esclarecem que condi-
tema, ao definir as condições gerais de rou certa dose de apreciação in concre- ção (Bedingung), conforme § 158 do BGB,
contratação, apresenta os pressupostos to, o que gerou uma parcial ruptura no tem o mesmo significado dado ao vocábulo
pelo art. 121 do Código Civil de 2002. Todavia,
necessários para que um contrato pos- sistema alemão, que se fundava apenas
destacam que se admite a continuidade do
sa ser submetido às regras dos §§ 305 na lógica objetiva, passando a expressar uso da “expressão condições gerais dos con-
a 310 do BGB. A definição e delimitação uma lógica mista, ou seja: objetiva e sub- tratos em face de sua imediata aceitação na
do campo de atuação das condições ge- jetiva. Mesmo assim, o modelo propos- doutrina ocidental moderna”.
4. § 305 do BGB (Einbeziehung Allgemeiner
rais de contratação pelo legislador ale- to pelo legislador europeu considerou Geschäftsbedingungen in den Vertrag):
mão certamente facilita muito o trabalho que os sistemas abertos são insuficientes (1) Allgemeine Geschäftsbedingungen
do operador do Direito. O mesmo infe- para o estabelecimento de controle razo- sind alle für eine Vielzahl von Verträgen
vorformulierten Vertragsbedingungen, die
lizmente não ocorre no Código Civil de ável das condições gerais de contratação, eine Vertragspartei (Verwender) der anderen
2002, haja vista a ausência de previsão entendimento que certamente se contra- Vertragspartei bei Abschluss eines Vertrags
legal específica sobre o assunto. põe ao sistema aberto brasileiro. stellt. Gleichgültig ist, ob die Bestimmungen
einen äußerlich gesonderten Bestandteil des
No sistema alemão, a proteção da Por conseguinte, é patente a insu- Vertrags bilden oder in die Vertragsurkunde
parte hipossuficiente é garantida, inicial- ficiência da legislação brasileira sobre o selbst aufgenommen werden, welchen
mente, pelo controle de introdução das tema, visto que o Código Civil de 2002 Umfang sie haben, in welcher Schriftart sie
verfasst sind und welche Form der Vertrag
cláusulas, o qual exige que a parte con- não trata diretamente das condições ge- hat. Allgemeine Geschäftsbedingungen liegen
tratante tenha conhecimento da existên- rais de contratação, apenas regulando, nicht vor, soweit die Vertragsbedingungen
cia das condições gerais de contratação, em dois artigos (arts. 423 e 424), o con- zwischen den Vertragsparteien im Einzelnen
ausgehandelt sind. Tradução livre do § 305
tenha acesso a elas, bem como esteja de trato de adesão. No que toca ao Código do BGB (Incorporação das condições gerais
acordo, proibindo-se cláusulas surpresa. de Defesa do Consumidor, a disciplina é de contratação no contrato): (1) São condi-
As regras de interpretação também são parcial e de determinados pontos do as- ções gerais de contratação todas as cláusulas
contratuais predispostas para uma pluralidade
bastante consistentes, pois, em caso de sunto (e.g. cláusulas abusivas), mas seu
de contratos, que uma parte contratual (uti-
dúvida, levam à interpretação em des- campo de abrangência é restrito ao con- lizador) apresenta à outra parte contratual
favor do utilizador das cláusulas e ain- sumidor. Assim, diante da importância e na conclusão do contrato. É irrelevante se as 71
da dão prevalência ao que foi contrata- da complexidade da matéria, da neces- cláusulas constituem uma parte indepen-
dente externa do contrato ou se fazem
do por meio de negociação individual. sidade de se controlar e inibir abusos, parte do próprio documento contratual,
Ademais, o controle de conteúdo é bas- bem como considerando a experiência qual extensão tenham, em que forma es-
tante detalhado, partindo de cláusulas alemã estudada, que introduziu a temá- crita estejam redigidas e a forma que tenha
o contrato. Não existem condições gerais
que sempre são proibidas, passando por tica no BGB e a tratou com considerável de contratação no caso em que as cláusu-
cláusulas que podem ser ou não afasta- minúcia, é premente a revisão do Direito las do contrato tenham sido negociadas in-
das pelo juiz e prevendo, também, uma positivo brasileiro. Faz-se mister o trata- dividualmente entre as partes contratuais.
5. Conforme já foi decidido pelo Tribunal Federal
cláusula geral de controle de conteúdo, mento de forma mais ampla e acurada de Justiça (BGH), somente pode-se falar em
que permite ao juiz resolver casos não das condições gerais de contratação no verdadeira negociação individual se o utiliza-
abrangidos pelas regras anteriores. Brasil, valendo o modelo alemão como dor das condições gerais realmente aceita que
as disposições possam ser alteradas, com real
Facilmente pode-se notar haver uma um bom paradigma para uma futura re- possiblidade de influenciar na formação do
oposição entre a apreciação in concreto forma do Código Civil de 2002. conteúdo das cláusulas contratuais. O simples
do Direito brasileiro e a apreciação in abs- fato de o parceiro contratual do utilizador po-
der escolher entre duas variantes, não haven-
tracto do Direito alemão, o que se extrai do a possibilidade de apresentar e aplicar, em
do campo de aplicação dos dispositivos NOTAS alternativa, propostas de texto próprias, não é
legais. Realmente, ao conceder ao juiz o 1. Como esclarece Paulo Lôbo (2011, p. 123), a suficiente para que se possa falar na existên-
desigualdade e o desequilíbrio “nas posições cia de negociação individual (BROX; WALKER,
poder de apreciar o caráter abusivo de contratuais sempre houve na sociedade de 2019, p. 41).
uma cláusula contratual, o legislador bra- economia de mercado. Todavia, as condições
sileiro optou por uma apreciação in con- gerais dos contratos não apenas resultam de
genético desequilíbrio dos poderes negociais, REFERÊNCIAS
creto, o que pode prejudicar a segurança mas assumem caráter geral, abstrato e inalte- BÄHR, Peter. Grundzüge des Bürgerlichen Rechts.
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2. O BGB apresenta um sistema de controle bas- Stuttgart: Kohlhammer, 2019.
condições gerais é realizado, como regra, tante complexo das condições gerais de con- BRÖMMELMEYER, Christoph. Schuldrecht
abstraindo-se considerações relacionadas tratação, diferentemente do que ocorreu no Allgemeiner Teil. München: C.H. Beck, 2014.
ao lugar, à qualidade pessoal das partes Código Civil brasileiro de 2002, que não trata BROX, Hans; WALKER, Wolf-Dietrich. Allgemeines
desse fenômeno, salvo em dois artigos (423
contratantes, o contexto de formação de e 424), que cuidam de regras básicas sobre
Schuldrecht. 49. ed. München: C.H. Beck, 2019.
EISENHARDT, Ulrich. Einführung in das Bürgerliche
contrato e as relações de força. o contrato de adesão, mas confundem con- Recht. 7. ed. Viena: Facultas, 2018.
Todavia, é de se notar que a diretiva teúdo com continente (LÔBO, 2011, p. 122). FÖRSCHLER, Peter. Grundzüge des
3. O termo “condições gerais de contratação” já
93/13 obrigou o legislador alemão a pre- Wirtschaftsprivatrechts. München: Franz Vahlen, 2018.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 64-72, jan./jul. 2020


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die Rechtsvergleichung: auf dem Gebiete des
Privatrechts. 3. ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 1996.

Artigo recebido em 19/5/2020.


Artigo aprovado em 19/6/2020.

Leonardo Estevam de Assis Zanini é juiz


federal, doutor em Direito Civil pela USP,
com pós-doutorado em Direito Civil pelo
Max-Planck-Institut für ausländisches und
internationales Privatrecht (Alemanha),
pós-doutorado em Direito Penal pelo
Max-Planck-Institut für ausländisches und
internationales Strafrecht (Alemanha).

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 64-72, jan./jul. 2020


D I R E I T O PRO C ESSUAL C IVIL
Cássio Benvenutti de Castro

A VERSÃO E A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA 73

NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR


THE VERSION AND THE REVERSAL OF THE BURDEN OF PROOF IN
CONSONANCE WITH CONSUMER RIGHTS LEGISLATION
Cássio Benvenutti de Castro

RESUMO ABSTRACT
Na abordagem do primado da tutela dos direitos, descreve a When addressing the power of rights protection, the text
distinção no tratamento do ônus da prova sob a perspectiva do portrays the distinction in the handling of the burden of proof
Código de Defesa do Consumidor e do Direito de Processo Civil. from the standpoint of both the Consumer Rights Legislation
and the Civil Procedure Law.
PALAVRAS-CHAVE
Direito Processual Civil; ônus da prova; standard; consumidor. KEYWORDS
Civil Procedure Law; burden of proof; standard; consumer.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 73-86, jan./jul. 2020


Cássio Benvenutti de Castro

1 INTRODUÇÃO decorrência da própria existência dos direitos e, assim, a con-


Em avassaladora maioria de demandas referentes ao trapartida da proibição da autotutela. O direito à prestação
Código de Defesa do Consumidor – CDC, um tópico levantado jurisdicional é fundamental para a própria efetividade dos di-
pelos operadores do Direito é referente à “inversão do ônus da reitos, uma vez que esses últimos, diante das situações de ame-
prova”. Também pudera, de maneira inédita, o CDC positivou o aça ou agressão, sempre restam na dependência da sua plena
art. 6°, inciso VIII, em seu texto, prevendo a inversão do ônus da realização. Não é por outro motivo que o direito à prestação
prova para amplificar a tutela da posição jurídica do consumidor. jurisdicional efetiva já foi proclamado como o mais importante
O texto do dispositivo não pode ser apreendido isolada- dos direitos, exatamente por constituir o direito a fazer valer os
mente, na medida em que o próprio conjunto do CDC já pre- próprios direitos (MARINONI, 2010, p. 143).
dispõe – explicitamente – uma nova “versão” do ônus da pro- Logo, a tutela jurisdicional efetiva é uma resposta qualificada
va, diferente do que acontece nas regras gerais do Código de a ser prestada pela jurisdição, sendo mais preciso, ou quiçá incisi-
Processo Civil – CPC. vo, tratar-se de acesso à tutela jurisdicional2 que tratar de acesso à
Assim, é necessário que os operadores tanto insistam na in- justiça ou, ainda, tratar de acesso à jurisdição3. Isso enfatiza a colo-
versão do ônus da prova? Qual o interesse em “inverter o que cação da tutela jurisdicional no epicentro da teoria do processo. A
já está vertido”? efetividade da tutela jurisdicional é um valor, um gênero, do qual
Este estudo apresenta essa sorte de reflexões, por meio de são desdobramentos: a adequação da tutela jurisdicional (pon-
uma metodologia mais descritiva que crítica, tendo em vista que deração entre princípio da efetividade e princípio da segurança
o texto do Código de Defesa do Consumidor é assertivo, basta jurídica), a especificidade da tutela jurisdicional (integridade, iden-
a análise de um sistema jurídico (a proteção do consumidor) tidade e integralidade) e a tempestividade da tutela jurisdicional.
como um sistema diferenciado das regras gerais do CPC. Não adiantaria prever direitos e posições jurídicas, abstra-
tamente, se a tutela não fosse alcançável no plano concreto
2 O PRIMADO DA TUTELA DOS DIREITOS E A DECORRENTE da vida das pessoas. Assim, a tutela jurisdicional qualificada
ADEQUAÇÃO DA TÉCNICA PROCESSUAL projeta uma crescente acessibilidade4 institucional, por inter-
A tutela jurisdicional do consumidor remete a um desdobra- médio de técnicas judiciais e extrajudiciais, que harmonizam
mento institucional da defesa do consumidor como direito funda- as necessidades sociais e econômicas do consumidor, promo-
mental (art. 5°, incisos XXXV e XXXII, da Constituição Federal). Por vendo a igualdade material entre os agentes do mercado. A
isso, a inafastabilidade da lesão ou da ameaça a direito do con- gratuidade da justiça (art. 5°, LXXIV, da CF e Lei n. 1.060/1950)
74 sumidor, ou seja, a proteção da posição jurídica do consumidor, e o reaparelhamento da Defensoria Pública (art. 134, § 2°, da
em um sentido amplo, torna-se um imperativo para que o Estado CF pela EC 45/2004) encerram um conjunto de perspectivas
elabore técnicas que estruturem essa solução de compromisso, o que permitem que o consumidor, economicamente débil, re-
que sobremaneira repercute no standard do convencimento judi- clame perante os órgãos do Judiciário.
cial e na “versão” do ônus da prova – em decorrência. Essas técnicas, que antecedem o ajuizamento da deman-
A tutela implica-se na técnica, pois o processo está impreg- da, possuem conexões à “maneira de ser” do processo, por-
nado pelo direito material. que a tutela jurisdicional adequada organiza o formalismo do
Desde a Constituição, ocorre um continuum normativo para processo de acordo com as finalidades a serem atingidas, so-
a proteção do consumidor, que está positivado no texto de dis- pesando internamente os princípios da efetividade (ou efetivi-
posições sobre as posições jurídicas, tanto na seara do direito dade no sentido estrito5) e da segurança jurídica. Com efeito,
material, como na administrativa e jurisdicional1. Em especial, um consumidor economicamente frágil reclama uma respos-
a proteção do consumidor entregue pela jurisdição consiste na ta mais rápida que uma resposta segura, uma resposta mais
tutela jurisdicional, que é o resultado do processo, um produto célere que uma resposta exauriente, vale dizer que quanto
que encerra a imperatividade e a deontologia preordenada pelo maior a efetividade acaba sendo menor o nível de segurança
Estado-juiz e que, portanto, subentende a organização de meca- (OLIVEIRA, 2008, p. 145), e vice-versa, uma polaridade assi-
nismos eficientes em busca desse alvitre. métrica que expressa o postulado da ponderação entre esses
A tutela jurisdicional é o valor que decorre do provimento ju- “sobreprincípios” do formalismo processual.
risdicional, um somatório de forças que enseja a tutela do direito, Duas baixas colaterais figuram ao lado da justiça gratuita e
pois ela ratifica a densidade normativa da tutela abstratamente da pontual preponderância da celeridade sobre a segurança – a
prevista pelo legislador. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (2008, gratuidade impulsiona o overload de demandas na jurisdição e,
p. 12) resume que a tutela normativa material (eficácia e efeitos quanto mais demandas, menos tempo para o juiz analisar a in-
de conteúdo material) – ressarcitória, restituitória, inibitória, de dividualidade dos casos.
remoção do ilícito etc. – mostra-se, contudo, abstrata, prevista A massificação é característica do mercado de consumo e
para o geral das espécies. Assim, a cada tutela material (ressar- resulta em uma resposta jurisdicional que intensifica ou procura
citória, restituitória, de remoção do ilícito etc.) deve corresponder, amplificar a defesa do consumidor, sendo que o compromisso
no plano processual, de modo concreto, uma tutela jurisdicional pelas soluções céleres internalizam o fator erro judicial como
adequada (eficácia e efeitos processuais ou jurisdicionais), regi- uma margem absorvida pelo “recursionismo”, e por mecanis-
da pelas normas próprias deste plano (declaratória, constitutiva, mos integracionistas de unificação de entendimentos jurispru-
condenatória, mandamental, executiva lato sensu). denciais (súmulas, recurso repetitivo e repercussão geral).
A efetividade da tutela jurisdicional (CRFB, art. 5°, XXXV) é Consoante as imposições valorativas do sistema, portanto,

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Cássio Benvenutti de Castro

na ponderação dos princípios que convi- to e processo, antes com a projeção de partes, ou erga omnes, como preferir o
vem para organizar o formalismo interno toda a dinâmica processual para satis- legislador (art. 103 do CDC). A despeito
do processo, hoje, as reformas legislati- fazer as necessidades do direito mate- da nomenclatura, para além da entropia
vas apreendem que prepondera a efeti- rial no plano da realidade, proporcio- eficacial está a “repercutividade” que a
vidade em detrimento da segurança ju- nando modalidades que concretizem realidade polariza por intermédio dessa
rídica, jogando a um segundo momento o direito. O histórico dualismo entre espécie de tutela, à medida que uma so-
a possibilidade de controlar o erro, como direito e processo é redimensionado lução de preceito ou de norma não pes-
um solve et repete processual. Note-se desde fora do processo, sendo que as soaliza, mas atende a categorias ou clas-
que a efetividade, aqui, é tratada como necessidades do direito material po- ses que a própria norma pré-seleciona.
um princípio que dialoga com a segu- larizam o sentido das técnicas que os A efetividade da tutela jurisdicional
rança jurídica e, assim, elas conformam a institutos processuais especializam 9. também deve ser integral e integrado-
adequação da tutela jurisdicional. A integridade da tutela jurisdicio- ra, portanto, em termos de transindi-
Assentada essa questão, fácil consta- nal determina a entrega ao jurisdiciona- vidualidade, ela alinha um estado de
tar que o juiz elabora a decisão com base do nada mais do que essa necessidade coisas jurídicas tanto retrospectiva-res-
nas narrativas processuais e nas provas do direito material. Finalmente, a inte- sarcitória como prospectiva-preventi-
apresentadas, e, somente em um segun- gralidade da tutela jurisdicional orienta vamente10, com o reflexo intersubjetivo
do momento, o sistema empresta outras a prestação ao jurisdicional de tudo o que a norma estabelece. Na verdade,
técnicas jurídicas que surpreendam uma que seria previsto pelo direito material. a tutela transindividual é funcional e
solução de reversibilidade da decisão, Considerada a complexidade e a frag- preponderantemente preventiva, por-
de alguma forma, solução ancorada por mentariedade de significativo acervo das que o maior interesse é remover ou
meio da repetição dos julgamentos – o relações em direito do consumidor – re- prevenir a ocorrência da contrariedade
que de comum acontece, o que repete tratos da própria massificação, onde o à norma. Justamente, essa modalidade
em termos de demandas e sentenças. volume numérico dos negócios encerra de tutela permite estruturar o processo
Basta analisar o grau de reversibilida- o lucro na contrapartida de preços indi- em outras bases, que não aquelas clas-
de de julgamentos em recurso repetitivo viduais que não estimulam o custo e o sicamente orientadas pelo direito pri-
para concluir que a sistematicidade dos tempo da demanda individual –, a inte- vado. Ora, como a proteção da norma
casos leva a medidas recursais ou cassa- gridade e a integralidade funcionalizam supera as contingências meramente in-
cionais. Afinal, a vulnerabilidade econô- técnicas processuais transindividuais. dividuais, assim o dano deixa de ser o 75
mica do consumidor pode ser irreversível
ou, ainda, pode ser reputada mais irre- [...] a proteção do consumidor entregue pela jurisdição
versível que a situação do fornecedor. consiste na tutela jurisdicional, que é o resultado do processo,
A adequação6 da tutela jurisdicional
firma uma moldura interna do forma- um produto que encerra a imperatividade e a deontologia
lismo para atender às necessidades do preordenada pelo Estado-juiz [...]
direito material. No caso do direito do
consumidor, isso acontece quando a A tutela transindividual (arts. 91 e único referencial para a prestação da
norma elabora procedimentos diferen- seguintes do CDC e Lei n. 7.347/1985) tutela jurisdicional, e sendo trabalhada
ciados e que se valem de técnicas de produz o efeito de englobar a cifra de a evitação do dano, ou melhor, com a
sumarização que internalizam os pró- consumidores que normalmente não re- antecipação da proteção devida pela
prios riscos remetidos ao reforço na re- clamaria em juízo, bem como evita de- tutela jurisdicional para que, assim, ela
versibilidade extroversa 7. cisões individuais contraditórias e eco- previna os danos perpetrados ou repe-
A tutela jurisdicional também deve nomizam o próprio serviço judiciário. tidos contra o consumidor (Ibidem, p.
ser específica, o que resulta no ponto Dentre outras consequências estimáveis, 709), a figura do ilícito é colocada no
de estrangulamento máximo entre pro- o foco é assinalar as seguintes repercus- epicentro do problema da tutela. O ilí-
cesso e direito material. A especificida- sões paradigmáticas dessa técnica. cito não depende da demonstração da
de é sintetizada pela teoria dos três “is” Quer dizer, é verdade que a tutela culpa, o que reaparelha como uma re-
– identidade, integridade, e integralidade transindividual pode ser reputada res- gra geral o nexo de imputação objetivo
da tutela jurisdicional para com o direito sarcitória, porém, mesmo quando ten- na tutela do consumidor.
material (CASTRO, 2014, p. 130). dencialmente ressarcitória, ela também Nesse plano evolutivo, a categoria
A especificidade da tutela juris- projeta efeitos prospectivos e assume do ilícito é vigorada como núcleo da
dicional afirma o dever de prestação inegável caráter preventivo, atualmente tutela jurisdicional da posição jurídi-
da tutela concreta o mais similar pos- batizado de “inibitório” ou de “remoção ca do consumidor, o que reflete um
sível àquilo que seria proporcionado do ilícito” (RAPISARDA, 1981, p. 708). A reaparelhamento do nexo de imputa-
pela normatividade do direito mate- preventividade ou prospectividade nada ção na operação jurídica. O ponto de
rial. Marinoni (2010, p. 22 e 114) re- mais representa que a proteção da nor- partida, em direito do consumidor, é
fere como uma proteção da norma8 , ma ou tutela do preceito, o que conso- a figura do ilícito, atualmente sendo
não com a velha dicotomia entre direi- lida uma juridicidade com efeitos ultra muito admitido, também, para a tu-

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Cássio Benvenutti de Castro

tela individual. Dispensável falar em culpa. Logo, um jul- legislação brasileira, para conferirem efetividade à tutela jurisdi-
gamento que analisa descumprimentos prima facie das cional, necessário constatar que o standard do convencimento
normas jurídicas – a contrariedade a normas – dispensa judicial não pode agravar ou dificultar a defesa da posição jurí-
um aprofundamento do convencimento judicial, porque é dica do consumidor.
dispensável analisar o velho elemento aberto da culpa, e é A duração razoável do processo não permitiria isso. A pre-
dispensável surpreender todas as derivações do dano. Em ponderância da efetividade sobre a segurança não permitiria
outras palavras, um julgamento cujo referencial é o ilícito isso. Muito pelo contrário, se todo o ordenamento jurídico bra-
relativiza o standard do convencimento judicial. As ques- sileiro, desde a previsão dogmática do texto das normas, encar-
tões referentes ao dano deixam de compor o instrumental rega o consumidor da produção de um mínimo de provas, para
pertinente à prova e passam a integrar o polo da leitura que lhe seja entregue a tutela jurisdicional, o juiz não pode exi-
normativa do efeito da imputação como uma quebra da gir provas intensas ou um grau de prova que dificulte a defesa
normalidade dos eventos do mercado – é o efeito borbole- da posição jurídica do consumidor.
ta das práticas consumeristas que repercute na solução das Por imperativo tendenciado nessa estruturação, o juiz esta-
demandas individuais. rá convencido antes mesmo do que ele estaria convencido na
Assentado que o debate entre a segurança e a efetivi- média geral dos casos de direito privado. Ora, o consumidor é
dade orienta o formalismo processual desde dentro do pro- um vulnerável, e tal posição jurídica impulsiona a balança do
cesso, considerando a adequação da tutela jurisdicional, formalismo em direção à tutela do direito do vulnerável. Dado
necessário surpreender, ainda, a tempestividade da tutela ju- isso, o consumidor deve produzir um mínimo de prova para
risdicional, que pondera o fator do tempo desde fora do pro- demonstrar a respectiva posição jurídica e o desdobramento da
cesso, mesmo, à medida que o processo deve observar uma relação que o colocou nessa posição – por exemplo, o fato de
duração razoável, e sem dilações destemperadas em cotejo ser consumidor e estar sendo cobrado abusivamente. Trata-se
à realidade social. Isso implica a relativização ou superação de um patamar de prova menor que o standard da preponde-
do excesso de formalismo, seja mediante técnicas, como a rância de provas.
criação de juizados especiais e da instrumentalização do seu A facilitação da defesa do consumidor repercute, inclusive,
rito sumaríssimo (Lei n. 9.099/1995), seja por intermédio no convencimento judicial, no grau de suficiência das provas
de técnicas conciliatórias que tornam obrigatória a audiência para evitar um julgamento com base na regra do ônus da prova.
preliminar no procedimento ordinário mesmo (art. 331 do
76 CPC na redação da Lei n. 8.952/1994 – e a perspectiva atual 3 OS TIPOS PRESUNTIVOS, O “VERTIMENTO LEGISLADO”
do CNJ e do novo CPC), seja por intermédio de mecanismos DO ÔNUS DA PROVA E O DESVIO DE NORMALIDADE LEGAL-
extrajudiciais de composição civil. NARRATIVA COMO VÉRTICE DA INVERSÃO JUDICIAL DO ÔNUS DA
PROVA NO CDC
A tutela transindividual [...] produz o efeito de No Direito brasileiro, cuja regulamentação geral é confe-
englobar a cifra de consumidores que rida pelo Código de Processo Civil, anota-se a normentheorie
para se atribuir ônus da prova ao demandante, para o encargo
normalmente não reclamaria em juízo, bem
de provar o fato constitutivo da respectiva afirmação. De outro
como evita decisões individuais contraditórias lado, o réu tem o ônus de provar o fato impeditivo, modificati-
e economizam o próprio serviço judiciário. vo ou extintivo da afirmação do demandante (art. 373 do CPC).
O ordenamento jurídico trata do tema nessa formatação geral,
Todas essas técnicas afirmam que a pontual preponde- hoje em dia, com a possibilidade da dinamização do ônus da
rância do valor do consenso por sobre uma busca epistemi- prova conforme o próprio CPC antecipa.
camente rígida, acaba sendo mais socialmente privilegiado; o A defesa do consumidor é um direito fundamental cuja
sistema privilegia a celeridade, nesse tipo de demanda. Por perspectiva objetiva, desde antes do CPC/2015, já viabilizava a
esse motivo, a inequivocidade probatória é relativizada pela relativização da regra geral sobre o ônus da prova. Nesse com-
internalização, na adequação do formalismo, do fator tempo promisso jusconstitucional, o legislador estabeleceu como um
como vértice na solução dos conflitos. A tese habermasiana dos direitos básicos do consumidor, no art. 6°, inciso VIII, do
sopesa procedimentalismo e substancialismo no paradigma Código de Defesa do Consumidor: a facilitação da defesa de
jusconstitucional, ponderando o diálogo e o consenso como seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu
soluções democraticamente válidas, em nome da pacificação favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil
social. Atualmente, mais vale um compromisso de consenso, e a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as re-
que ele seja efetivo/realizável entre os interessados, que uma gras ordinárias de experiências.
busca infinita em direção à verdade. Na prática do foro, tal dispositivo enseja uma avalanche de
O processo civil é polarizado pela tutela jurisdicional qua- verdadeiros pedidos, por meio dos quais se postula a “inversão
lificada, e a postura institucional determinada pelo jusconstitu- do ônus da prova”, nos termos do CDC.
cionalismo brasileiro estabelece uma metodologia que interco- Entretanto, em Direito do Consumidor, a inversão do ônus
necta fatores macro e intrassistêmicos, com isso, produzindo de provar por decisão judicial (ope judicis) é uma manobra sub-
reflexos extrajudiciais e intrajudiciais. No diálogo entre as nor- sidiária porque é excepcional. Logo, o pedido para inverter o
mas que estruturam as referidas técnicas, hoje, positivadas na ônus da prova – inversão que pode ser efetuada de ofício –, na

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melhor técnica, deveria ser um arrazoa- do convencimento judicial para a tutela do raciocínio inferencial, ambas em con-
do peculiar, raramente utilizado, tendo do consumidor. junto, permitem uma aproximação dog-
em vista que o próprio legislador se an- Com efeito, o texto do art. 6°, in- mática na busca do standard do con-
tecipou ao juiz para, no próprio texto do ciso VIII, do CDC estabelece um elen- vencimento na tutela jurisdicional do
CDC, “verter” o ônus da prova em uma co exemplificativo de ferramentas para consumidor, com base no texto da nor-
modalidade diferenciada em relação ao a facilitação da defesa do consumidor, ma. Na prática, essas questões desenham
Código de Processo Civil. em juízo, ao escrever – a facilitação da o critério que orienta o juiz, por isso um
Note-se que a rotina do CDC é tu- defesa de seus direitos, inclusive com a critério reclamado pelo âmbito de pro-
telar a posição jurídica do consumidor, inversão do ônus da prova. A palavra teção das normas do sistema jurídico,
inclusive, em juízo, por isso que a pró- “inclusive” surpreende que outras técni- e com a sorte de controlabilidade que
pria lei (ope legis) verte o ônus da prova cas para a facilitação da defesa do con- a regularidade dos enunciados jurídicos
em benefício do consumidor, na medida sumidor são possíveis, além da técnica promove – o primeiro indicativo legal,
em que o legislador elaborou um siste- da inversão judicial do ônus da prova. o tipo presuntivo, (a) opera no sentido
ma jurídico diferenciado, o qual se vale Dentre as outras técnicas, que podem positivo, afirmando uma posição jurídica
de diversos esquemas de tipos presun- ser lembradas pela referência positiva- em benefício do consumidor; o segundo
tivos, como um direcionamento da pro- da, evidente que está a redução da in- indicativo legal, o recurso inferencial, (b)
teção da posição jurídica do consumidor. tensidade do standard do convencimen- opera no sentido negativo, depurando as
Atualmente, na consolidação dos valores to judicial para a tutela do consumidor. hipóteses contrárias à posição jurídica do
que dialogam na feitura das normas, não
se trata de, meramente, impor um direito [...] quando a legislação demarca tipos presuntivos e,
subjetivo – pelo contrário, na era da des- dissonante da rotina do CPC, acaba por redistribuir o ônus de
codificação, os micro ou macrossistemas
jurídicos estipulam posições jurídicas, e provar, a modalidade da inversão do ônus da prova ope
dessas posições são extraídas formas es- judicis torna-se operação subsidiária à redistribuição legal.
peciais de tutela.
Logo, quando a legislação demarca A relativização do standard do con- consumidor e, assim, autorrestringe12 o
tipos presuntivos e, dissonante da roti- vencimento judicial, ou melhor, o preen- standard do convencimento.
na do CPC, acaba por redistribuir o ônus chimento do standard para que o juiz se Quando a própria lei redistribui o 77
de provar, a modalidade da inversão do repute convencido e, assim, afaste-se de ônus da prova, algo diverso da regra ge-
ônus da prova ope judicis torna-se ope- um julgamento com supedâneo no cri- ral tradicionalmente prevista no CPC (art.
ração subsidiária à redistribuição legal. tério processual do ônus da prova, é de- 373 do NCPC versus os tipos presuntivos
Vale dizer que a inversão do ônus da pro- corrente de uma metodologia por meio do CDC), em realidade, não ocorre uma
va, por determinação judicial, remanesce da qual o legislador articula os seguintes inversão do ônus da prova por operação
aos casos em que não é devida a redistri- modelos argumentativos consequenciais, do juiz, antes ocorre uma mera atribui-
buição dos encargos por intermédio dos ou modelos funcionais: (a) a elaboração ção do ônus da prova, daí com funda-
tipos presuntivos – em especial, a inver- de tipos presuntivos que, desde uma mento no direito material, desde o di-
são do ônus da prova é devida, se for o previsão abstrata, pelo legislador, já ver- reito material, que é preponderado pelo
caso, para a hipótese da responsabilida- tem o ônus da prova de maneira favorá- legislador que elaborou o CDC. O impor-
de do profissional liberal, onde é recla- vel ao consumidor; (b) e a previsão legal tante é constatar que o direito do consu-
mada a culpa como nexo de imputação. da inversão do ônus da prova por deci- midor brasileiro é comumente estrutura-
Desenvolvendo o texto do art. são do juiz, a depender do caso concre- do por intermédio de tipos presuntivos,
6°, inciso VIII, do CDC, a doutrina to, porém, quando a verossimilhança das que melhor ou otimamente privilegiam
(DALL’AGNOL JR., 2001, p. 92 e seguin- alegações ou a hipossuficiência do con- a defesa da posição jurídica do consumi-
tes) elabora considerações sobre a ve- sumidor podem ser inferenciadas “se- dor e que, por decorrência, reservam, ao
rossimilhança das alegações, bem como gundo regras ordinárias de experiência”. fornecedor, o encargo de afastar as pre-
sobre a hipossuficência do consumidor, Existe liberdade de critérios a serem sunções legalmente antecipadas em be-
como pressupostos para a inversão judi- eleitos pelo juiz? nefício do consumidor. A leitura do texto
cial do ônus da prova. Neste capítulo, o Justamente, quando o art. 6°, inci- de algumas normas remete a essa sorte
foco não é debater a ênfase no aspecto so VIII, do CDC se refere ao “critério do de proteção. A referência a alguns tipos
subjetivo11 da inversão judicial do ônus juiz”, é preciso trazer à reflexão que tal legais é autodidática.
da prova, mas chamar a atenção para de- critério está limitado pelo sistema jurídi- Na responsabilidade pelo fato do
terminadas peculiaridades dogmáticas a co, inclusive, com a força desses dois su- produto, o art. 12, §3°, do CDC esta-
partir do próprio texto da norma do art. portes metodológicos que encerram um belece que o fabricante, o construtor,
6°, inciso VIII, do CDC, que, embora im- compromisso, desde o legislador consti- o produtor ou importador só não será
plicitamente discorra sobre a distribuição tucional, até chegar à previsão do legisla- responsabilizado quando provar: I – que
do ônus da prova como regra de instru- dor infraconstitucional. não colocou o produto no mercado; II
ção, repercute, em especial, no standard A questão dos tipos presuntivos e a – que, embora haja colocado o produto

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Cássio Benvenutti de Castro

no mercado, o defeito inexiste; III – a culpa exclusiva do consu- que somente uma impugnação fundada pode retirar a força da
midor ou de terceiro. Na responsabilidade pelo fato do serviço, presunção legalmente atribuída.
o art. 14, §3° do CDC estabelece que o fornecedor de serviços A declaração da nulidade de cláusulas contratuais pode
só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo ocorrer de maneira direta (abstrata, art. 83 do CDC) ou com
prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa exclusiva do base no conteúdo mesmo das cláusulas contratuais, quan-
consumidor ou de terceiros. do a nulidade é decorrente da abusividade referenciada por
Vale dizer que os danos decorrentes do acidente de consu- critérios que repercutem a concretude dos casos (arts. 51,
mo somente não serão ressarcidos, ao consumidor, quando, e 53 e 6, V do CDC), salienta Cláudia Lima Marques (2011, p.
somente quando, o fornecedor excepcionar a presunção tipifi- 1150/1). Agora, qualquer ponderação judicial – mais abstra-
cada nas regras legais. ta ou mais concretista – deve perceber a natureza categórica
O art. 23 do CDC refere que a ignorância do fornecedor so- da legislação, quando se aponta a sanção da nulidade, até
bre os vícios de qualidade por inadequação dos produtos e ser- porque a própria lei estabelece que a interpretação do con-
viços não o exime de responsabilidade. O elemento normativo texto das cláusulas contratuais entre si, bem como a inter-
da culpa não permite afastar a consequência jurídica que tutela pretação do conteúdo das cláusulas, no confronto com as
o consumidor, em face dos vícios dos produtos e dos serviços, demais normas do sistema, deve resultar em uma interpre-
até porque a culpa não pode ser alegada como justificativa. O tação benéfica ao consumidor (art. 47 do CDC).
esquema de proteção contra os vícios, no direito do consumi- A tutela declaratória da nulidade de cláusulas, ou tutela
dor, é diferente da abordagem utilizada pelo Código Civil e, em revisional de cláusulas contratuais ou, ainda, a tutela descons-
geral, pelo direito privado. titutiva de cláusulas contratuais, são espécies que reclamam
uma adequação do contrato aos padrões estipulados pela lei
Na impossibilidade de o contrato não ser de ordem pública, que está entabulada nas regras do direito
apresentado, pelo consumidor, o próprio do consumidor. Assim, o maior trabalho para o judiciário, nes-
sas hipóteses, é coletar o contrato ao processo, porque nem
ordenamento fixa uma presunção de
sempre o contrato está à disposição do consumidor.
veracidade das afirmações, em benefício do Na impossibilidade de o contrato não ser apresentado,
consumidor, quando ocorre o descumprimento pelo consumidor, o próprio ordenamento fixa uma presun-
do dever da exibição do contrato [...] ção de veracidade das afirmações, em benefício do consu-
78 midor, quando ocorre o descumprimento do dever da exi-
Deveras, o sistema de defesa do consumidor enaltece a bição do contrato (art. 400 do NCPC), porque é ônus do
proteção da confiança como uma base do ordenamento, tanto fornecedor armazenar as informações sobre a contratação.
que a definição de vício que compromete o dever de adequa- Finalmente, a declaração de nulidade, ou a revisão de cláu-
ção do produto ou serviço é a segurança (arts. 12, §1° e 14, §1°) sulas contratuais, que enseja o exame de dispositivos do-
ou a finalidade (arts. 18 e 20, §2°), aspectos decorrenciais ou cumentados em contratos, o exame de provas que são
derivativos de um estado de coisas que o próprio legislador re- instrumentos pré-constituídos ao processo, ou provas que
gulamentou como padrão. Desse modo, o dolo ou o elemento preexistem ao processo, acaba dispensando um aprofunda-
normativo culpa possuem falhas estruturais na consideração da mento do convencimento judicial – isso ocorre porque o
responsabilidade, o que implicou o afastamento desses pressu- critério do convencimento é comparativo-linguístico entre as
postos em se tratando de direito do consumidor. normas categóricas elencadas em lei de ordem pública ver-
Exemplo mais candente está gravado na Medida Provisória sus as disposições contratuais, em contratos que devem ser
número 2.172-23, de 23 de agosto de 2001 que, recentemente, claros e precisos, porque é dever básico do fornecedor aten-
reforçou o esquema de imputações previsto pelo CDC, quan- der ao princípio da transparência.
do ela estabelece a nulidade das disposições contratuais que Com a juntada do contrato ao processo ou mesmo com
menciona e inverte, nas hipóteses que prevê, o ônus da prova a presunção da veracidade do afirmado pelo consumidor (art.
nas ações intentadas para sua declaração. 400 do NCPC), o juiz avalia as circunstâncias no entorno da for-
Essa Medida Provisória é veemente no respectivo art. mação, do desenvolvimento e dos efeitos da contratação. Óbvio
3°, ao estabelecer que nas ações que visem à declaração que ele avalia tudo isso sem utilizar subjetivismos ou intuições
de nulidade de estipulações com amparo no disposto nes- misteriosas, mas antes o juiz coteja o negócio jurídico com os
ta Medida Provisória, incumbirá ao credor ou beneficiário critérios13 objetivos que a lei indica como indispensáveis à pre-
do negócio o ônus de provar a regularidade jurídica das servação do equilíbrio material na relação negocial, valendo-se
correspondentes obrigações, sempre que demonstrada de fatores que vinculam a preservação da condição jurídica dos
pelo prejudicado, ou pelas circunstâncias do caso, a ve- sujeitos14. A cognição judicial percebe parâmetros jurídicos em
rossimilhança da alegação. confronto – contrato versus normas do ordenamento –, sendo
O texto da norma é clarividente, é implicativo no sentido de que, em geral, pondera sobre práticas correntes do mercado,
reputar provado quando, e sempre quando, não está contrapro- como juros, comissão de permanência, tarifa de serviços ban-
vado – trata-se de argumentação fundada em consequências cários, questão da adesividade ou hipervulnerabilidade15, o que
que, desde fora, desde o direito material, está avistada a qua- não representa uma intensificação ou majoração de grau do
lidade da posição jurídica privilegiada, ao consumidor, sendo convencimento judicial.

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Nesse diapasão, o legislador esque- Contudo, aqui, a derivabilidade é porque o afastamento da indenização não
matiza tipos presuntivos que consistem utilizada no sentido de coesão narrati- quebra o nexo de imputação que o legis-
em técnicas para facilitar a defesa do va ou de heterointegração16 da narrativa lador conectou funcionalmente.
consumidor em juízo. processual àquilo que está sendo argu- O afastamento da indenização so-
Tudo sopesado, evidente que no mentado no processo – nessa solução mente considera ausente um dano, en-
sistema do CDC – um sistema que reú- de presunção, está o rebaixamento do quanto um efeito mais consequencial que
ne normas de direito material e de di- standard, porquanto o juiz não elabora estrutural do fenômeno, isso quer dizer
reito processual – o ônus de provar é complexa operação mental para se repu- que a avaliação valorativa sobre o dano
organizado algo diferente da regra ge- tar convencido. O convencimento advém sopesa fatores mais econômicos que ju-
ral do Código de Processo Civil, por- ao natural das assertivas esquematizadas rídicos. O juiz se considera convencido
que o dever de tutelar o consumidor pelo legislador. quanto ao desdobramento da causa e da
abstrai o critério da posição jurídica do A derivabilidade, na virtude da consequência do evento, todavia, para ele,
autor ou do réu (art. 373 do NCPC), no norma, por exemplo, ocorre quando o dano está absorvido pela adequação so-
processo, para, então, determinar que um consumidor alega que viajou de cial ou pela ausência de lesão significativa.
o ônus de provar seja atribuído na fun- avião, e que houve o extravio de sua Trata-se de uma maneira de considerar o
ção da categoria jurídica do sujeito. A bagagem, sendo que a companhia fenômeno, que encontra certo respaldo
questão da posição jurídica: logo, cabe aérea somente devolveu os objetos na jurisprudência. O importante é deixar
ao fornecedor, em princípio, desfazer após transcorridos dez dias de viagem, claro que retirar o dano, e não condenar
a presunção legal. Conforme Barbosa oportunidade em que o consumidor o fornecedor, nessa hipótese, é coisa di-
Moreira (1998, p. 60), a presunção le- retornava ao seu país de origem. O ferente do nível de “standardização” do
gal é uma norma especial em relação consumidor postula a indenização por convencimento – simplesmente, porque
à regra geral: a pessoa a quem a pre- dano extrapatrimonial, e a lei refere, no o juiz já está convencido sobre a causa-
sunção desfavorece suporta o ônus e âmbito de proteção textual da norma, -efeito, ele apenas não reputou economi-
provar o contrário independentemen- que o fornecedor é responsável, quan- camente viável a indenização, porque se
te da sua posição processual, nada do ele presta o serviço de transporte, trataria de “mero incômodo”.
importando o fato de ser autor ou réu. e acontece esse tipo de evento, o que De qualquer maneira, o tipo presunti-
Isso não quer dizer que o consumi- normativamente liga o dever de res- vo, que é nota comum do CDC, não trata
dor esteja dispensado da produção de ponder ao fato-base alegado. de dinamizar o ônus da prova (o que ca- 79
qualquer prova, no processo. Ele deve
comprovar a própria posição jurídica Não é preciso que as provas sejam preponderantes ao
assim como deve demonstrar a “nor- consumidor; basta que sejam mínimas, em benefício do
malidade” do “evento-de-consumo”,
de maneira a conferir verossimilhança consumidor. Quando essa impressão acontece, o ônus de
à narrativa. O Código do Consumidor desfazer a presunção encarrega a contraparte.
que encerra toda uma gama de tipos
presuntivos, desde a previsão abstrata, Essa narrativa processual não mere- racterizaria uma inversão judicial do ônus).
o âmbito de proteção das normas, o ce reparos, ela está presumida como uma Em direito do consumidor, o tipo pre-
direito material, acaba, portanto, rebai- sucessão de acontecimentos (diacronia), suntivo atribui ou verte, desde a previsão
xando o ônus argumentativo do con- aos quais o contexto normativo confere abstrata, o ônus da prova, ao sujeito ou
sumidor, sendo que o consumidor so- coesão em narrativa processual (sincro- à categoria que funcionalmente está liga-
mente deve demonstrar a sua posição nia17), ou seja, não se discute sobre a vin- da às circunstâncias ou às condições que
jurídica (de consumidor), bem como a culação entre a categorização do sujeito e justificam a imputação normativa. O prin-
natureza da relação firmada (pretensão o evento que o teria prejudicado; a lei já cípio da proximidade18 da prova ou prin-
de tutela ressarcitória, revisional, man- presumiu essa ordem de eventos, essa or- cípio da referibilidade da prova, segundo
damental, dentre outras). dem de premissas, mesmo com base em Adolfo di Majo19, encarrega, à parte pro-
Ou seja, o consumidor – assim com- uma prova singela – um bilhete de passa- cessual, de comprovar o que está na sua
provado como tal – deve apontar e de- gem e o extrato de check in da bagagem. esfera de controle objetivo.
monstrar se houve um dano a ser res- O legislador efetua o nexo de imputação Nesse sentido, o importante é con-
sarcido, se existe risco de ilícito, se é caso entre as premissas da causa e efeito da vencer e demonstrar, ao juiz, que o con-
de algum vício do produto ou serviço, ou norma. Agora, se o juiz decide que não junto de fatos coloca o sujeito processual
se a questão é pela invalidade de cláu- houve dano extrapatrimonial porque a ba- na categoria jurídica de consumidor, sen-
sulas contratuais, porque a derivabilidade gagem, afinal, fora devolvida ao cabo da do que os vínculos fáticos desse ponto
desses enquadramentos é vinculada pela viagem, mesmo ultrapassados dez dias, e advindos não são elaboradas por um
norma. A derivabilidade posta pela nor- mesmo quando o sujeito retornava de sua processo mental (MOREIRA, 1998, p. 57)
ma jurídica liga uma situação jurídica aos empreitada, é necessário ressaltar que tal complexo e subjetivo; antes são conse-
eventos que ela mesma, a norma, reputa pronunciamento não quebra o standard quências legais, portanto, elas decorrem
socialmente relevantes. do convencimento judicial presumido, de uma derivabilidade presuntiva posta –

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não meramente suposta – pela norma jurídica. O tipo presunti- da preponderância das provas, porque todo o sistema legal pro-
vo antecipa-se ao processo mental do juiz, à medida que o legis- move a facilitação da defesa do direito do consumidor.
lador já considerou as conexões, que normalmente acontecem O consumidor está encarregado de uma mínima ativida-
entre os fatos que ensejam a categorização do sujeito como um de probatória no sentido de demonstrar a sua categoria jurídi-
consumidor, e as respectivas ocorrências em termos de merca- ca e, finalmente, não ter, contra si, argumentos contundentes
do de consumo (quod plerumque accidit). que afastem a presunção legal. A doutrina brasileira (BALTAZAR
O legislador previne conexões fáticas, ficando a descoberto JR, 2007, p. 158) salienta que o modelo de constatação ou o
soluções valorativas mais econômicas que jurídicas (o caso do standard do convencimento judicial denominado como “uma
dano). O que interessa para o standard do convencimento, por- mínima atividade probatória” é uma construção do Tribunal
tanto, é a prova do fato no conjunto de conexões imputativas Constitucional espanhol e consiste em um encerramento ope-
que ele encerra. rativo tendente a eliminar dúvidas ou variações subjetivas que
Conforme Taruffo, uma norma impõe ao juiz que tome por desqualificariam a racionalidade da solução judicial. Nisso ob-
verdadeiro um fato alegado por uma parte, sem que desse serva-se uma tendência em definir por método de eliminação,
seja dada qualquer prova (em particular por iniciativa da parte na medida em que a mínima atividade probatória seria tudo o
que alegou o fato); a verdade desse fato resta vinculante para que não pode ser afastado.
o juiz se a outra parte não prova o contrário. Poder-se-ia obser- A crítica corrente é que não estaria claro o significado des-
var, então, que as normas que estabelecem presunções fazem sa mínima atividade probatória, qualitativa e quantitativamente
com que a decisão final se ocupe dos fatos somente quando falando, porque definir por eliminação22 é exercício facultado a
a prova contrária for fornecida. Se não houver prova contrá- qualquer modalidade de standardização. Todavia, a caracteriza-
ria, a decisão não levará em consideração os fatos, visto que ção da mínima atividade probatória atende, em primeiro lugar,
derivará diretamente da aplicação da norma que determina a à normatividade que o direito material polariza para a tutela
presunção20. Os tipos presuntivos elaboram um metajuízo, em jurisdicional do consumidor brasileiro. Além disso, a defesa do
outras palavras, as presunções legais correntemente utilizadas consumidor deve ser facilitada, inclusive, em juízo, o que deter-
no direito do consumidor brasileiro elaboram “um juízo sobre mina o rebaixamento da intensidade ou do grau de confirma-
um juízo” de ponderação das normas. A própria legislação irra- ção para que o juiz se declare convencido e, assim, afaste um
dia uma tendência sobre o juízo do fato, quer dizer, para decidir julgamento com base na regra do ônus da prova. Em segundo
sobre os fatos da causa, o juiz não precisa formular complexas lugar, e também com reforço na dogmática do direito material,
80 operações mentais ou subjetivas, porque o prognóstico da cau- é necessário constatar que o próprio ordenamento jurídico bra-
sa já está, de antemão, assentado ou abreviado pelo módulo sileiro combate o desequilíbrio fático entre os debatedores do
que o legislador considerou. processo por meio de normas jurídicas que estabelecem um
norte para a definição da mínima atividade probatória, ou seja,
No direito do consumidor, inicialmente, esse uma suficiência de provas para convencer o juiz.
quadro de imputações também é válido. Não O modelo coerencial, o modelo hermenêutico e o mo-
delo argumentativo, para a correção das soluções normati-
para definir que a prova deve,
vas, são somados ao modelo dedutivista, no atual quadran-
necessariamente, ser documentada ou ter um te constitucional. Não bastasse a conjuração jusfilosófica,
“início de prova material”. Muito pelo contrário. o CDC estabelece uma cláusula de abertura, no art. 7°: Os
direitos previstos neste código não excluem outros decor-
O Código do Consumidor refere que um sujeito deve ser rentes de tratados ou convenções internacionais de que o
indenizado quando ele é reputado consumidor e quando não Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de
é afastada a presunção legal que lhe protege. A presunção so- regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas
mente é afastada por intermédio de exceções taxativas, sendo competentes, bem como dos que derivem dos princípios ge-
positivado na lei um critério verofuncionalizado21. Os tipos pre- rais do direito, analogia, costumes e equidade.
suntivos polarizam a balança em defesa do consumidor, assim, Para quem não confia nas tendências da teoria do direito,
eles afirmam que um standard do convencimento fundado em o texto da norma é cristalino, ao pontuar que a defesa do con-
um mínimo de atividade probatória enseja a tutela jurisdicional sumidor pode se valer de disposições previstas em outras leis,
do consumidor e afasta o julgamento com base na regra do inclusive na “legislação interna ordinária”. Ainda mais quando
ônus da prova. Não é preciso que as provas sejam preponde- se trata de outra lei que, assim como o CDC, adensa o princípio
rantes ao consumidor; basta que sejam mínimas, em benefício constitucional da igualdade, tutelando os vulneráveis23.
do consumidor. Quando essa impressão acontece, o ônus de A Lei n. 8.213/1991 é contemporânea do CDC e, além
desfazer a presunção encarrega a contraparte. da proximidade temporal, essa lei também protege um
Logo, o standard do convencimento judicial na tutela ju- vulnerável, contemplando a eficácia vertical24 dos direitos
risdicional do consumidor rebaixa o patamar comumente utili- fundamentais. É sabido que cada benefício previdenciá-
zado no direito privado. Trata-se de um standard diferenciado, rio possui uma peculiaridade processual, por exemplo, o
decorrente de um sistema protetivo diferenciado. Para evitar um auxílio-acidente, a aposentadoria por invalidez, o auxílio-
julgamento com base na regra do ônus da prova, em direito do -doença e a aposentaria especial, em geral, consistem em
consumidor, não deve ser buscado uma convicção com a força benefícios que judicialmente demandam uma prova peri-

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cial. No entanto, mesmo um meio de implica o manuseio do standard da mí- rentes da comercialização da produção;
prova pericial 25 não significa dizer que nima atividade probatória é a necessi- IX – cópia da declaração de imposto de
o convencimento deva ser aprofunda- dade do direito material (merit-based renda, com indicação de renda prove-
do, como algures referido. – critério externo ao processo), é a vul- niente da comercialização de produção
A leitura do texto da lei somada a nerabilidade do sujeito a ser tutelado rural; ou X – licença de ocupação ou per-
uma pequena dose de prática nas ro- pelo processo. Como o processo está missão outorgada pelo Incra.
tinas dos foros surpreendem que o impregnado do direito material, como O início de prova material é um indica-
benefício de aposentadoria – mesmo a tutela jurisdicional deve emprestar tivo, porque não seria apenas esse fato que
com a prova pericial – concedido ao uma solução qualificada às necessi- solucionaria a questão em juízo. Resulta o
trabalhador rural, seja a aposentadoria dades do sistema jurídico, o conven- seguinte: se a prova material é apenas um
por tempo de serviço rural ou a apo- cimento judicial deve observar esse “início” e se as testemunhas relatam fatos
sentadoria por idade, encerra o mais diálogo entre as fontes jurídicas, que antigos, quiçá, praticamente esquecidos no
difícil contexto de provas judiciais, em encerram um diálogo coordenativo de tempo, como conferir certeza à conclusão
processo previdenciário. Porém, a di- influências recíprocas. que exsurge desse contexto?
ficuldade para provar o fato jurídico
é decorrente do caráter histórico da [...] o caso limítrofe previsto pelo sistema de tutela do
lembrança relatada pela testemunha, consumidor acaba por confirmar a impressão sobre o
na medida em que o segurado previ-
denciário, de resto, está se aposentan- standard da mínima atividade probatória. Trata-se da
do porque trabalhou desde há muito responsabilidade pessoal do profissional liberal.
tempo. Isso não implica, por si só, uma
intensificação do standard do conven- Mais recentemente, a Lei n. O legislador subentende essas difi-
cimento judicial. Nesses casos, embora 11.718/2008 pormenorizou o que seria culdades, mais que isso, o sistema jurí-
se levante um particular museu sobre esse “início de prova material”, previsto dico presume que as provas são frágeis,
a vida do sujeito, algo histórico e per- na Lei de Benefícios Previdenciários, ao quando isoladas, no processo previden-
dido no tempo distante da juventude elencar um rol exemplificativo de do- ciário rural. Mesmo assim, o sujeito não
de uma pessoa idosa, a dificuldade das cumentos e ao conferir uma nova re- pode ser prejudicado, porque se trata
testemunhas, em relembrar os fatos dação ao art. 106 da Lei de Benefícios de um sujeito vulnerável, e ele não te- 81
antigos, é sopesada pela recorrência Previdenciários (LB): A comprovação do ria outros meios para produzir uma me-
dos próprios relatos, algo cultural. Com exercício de atividade rural será feita, al- lhor prova. Na prática previdenciária, em
efeito, é notório que os habitantes do ternativamente, por meio de: I – contra- juízo, aparecem três testemunhas para
meio rural brasileiro são pessoas hu- to individual de trabalho ou Carteira de dizer que o sujeito trabalhava com a fa-
mildes e possuem dificuldades para Trabalho e Previdência Social; II – con- mília, em uma pequena propriedade, e
arquivar demonstrações complexas. trato de arrendamento, parceria ou co- produzia X, Y e Z produtos. Isso não sig-
Inclusive, o legislador internaliza essa modato rural; III – declaração funda- nifica aprofundar a cognição. Isso não
condição, facilitando a ratificação da mentada de sindicato que represente o elucubra maiores complexidades no
prova oral, em processo previdenciá- trabalhador rural ou, quando for o caso, convencimento. De qualquer maneira,
rio, pelo que ele denominou de “início de sindicato ou colônia de pescadores, respeitando uma crítica em contrário, é
de prova material”, consoante previsão desde que homologada pelo Instituto necessário salientar que o legislador, des-
do art. 55, §3°26, da Lei n. 8.213/1991: Nacional do Seguro Social – INSS; IV – de o direito material, implantou um sis-
A comprovação do tempo de serviço comprovante de cadastro do Instituto tema protetivo do vulnerável, por meio
para os efeitos desta Lei, inclusive me- Nacional de Colonização e Reforma da lei de benefícios previdenciários, re-
diante justificação administrativa ou Agrária – INCRA, no caso de produto- percutindo a expressão inédita do “início
judicial, conforme o disposto no art. res em regime de economia familiar; V de prova material” como se ela fosse um
108, só produzirá efeito quando base- – bloco de notas do produtor rural; VI – “mínimo de provas”, como uma solução
ada em início de prova material, não notas fiscais de entrada de mercadorias, de alternatividade, algo diferente da ve-
sendo admitida prova exclusivamente de que trata o § 7° do art. 30 da Lei n. lha prova de evidência. Tudo sopesado,
testemunhal, salvo na ocorrência de 8.212, de 24 de julho de 1991, emitidas desde o direito material, está para tutelar
motivo de força maior ou caso fortuito, pela empresa adquirente da produção, a posição jurídica de um vulnerável (ido-
conforme disposto no Regulamento. com indicação do nome do segurado so, enfermo, rurícola).
A questão não é limitar a lei de como vendedor; VII – documentos fis- No direito do consumidor, inicial-
benefícios previdenciária em relação cais relativos a entrega de produção ru- mente, esse quadro de imputações tam-
ao direito do consumidor, antes é as- ral à cooperativa agrícola, entreposto de bém é válido. Não para definir que a
sinalar que a mínima atividade proba- pescado ou outros, com indicação do se- prova deve, necessariamente, ser docu-
tória – como um standard que rebaixa gurado como vendedor ou consignante; mentada ou ter um “início de prova ma-
o ônus de provar – não é algo inédito, VIII – comprovantes de recolhimento de terial”. Muito pelo contrário.
no sistema jurídico brasileiro. O que contribuição à Previdência Social decor- Ora, ninguém duvida que um sujeito

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possa deixar o celular, em uma loja, para o conserto, e, além de O caráter exemplificativo das técnicas para a facilitação da
a loja não entregar um documento em promessa de conserto, defesa do consumidor, anteriormente afirmado, remete-se a
ainda pode acontecer de devolver o celular com outros danos, duas percepções finais, situações que estão no texto da lei e
totalmente quebrado. Também, ninguém duvida que um sujei- aparelham a regra geral do standard do convencimento na tute-
to possa adentrar em um banco e, “de quebra”, ser assaltado, la jurisdicional do consumidor.
dentro do próprio banco. Os exemplos são infinitos. Ninguém Em primeiro lugar, o CDC refere (itens ‘b’ e ‘c’): “verossímil
dúvida que um sujeito deixe o carro na garagem de um sho- a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras
pping e, nesse meio tempo, ele tenha o som automotivo furta- ordinárias de experiências”.
do. As situações são corriqueiras, sobretudo massificadas. Observe-se que não existe vírgula entre “verossímil ou hi-
Um cenário que retoma a necessidade do direito material possuficiente”, o que confere uma solução de alternatividade
do consumidor, desde as implicações constitucionais que reme- em somatório. Ou seja, ambas as modalidades processuais che-
tem a um dever de proteção do vulnerável. Em direito do con- gam a serem alternativas entre si, mas elas duas devem ser ade-
sumidor, parte-se do pressuposto finalístico da vulnerabilidade quadas ao que está após a vírgula – “segundo as regras ordiná-
do sujeito. Condição jurídica reforçada pelo caráter massificado rias de experiência”.
dos negócios encetados. Não se trata de “longinquidade” dia- Portanto, a ordinariedade da experiência é uma condicio-
crônica (velhice) da prova, tampouco início de prova material, nante, tanto para a questão da verossimilhança27 como para
todavia, é devido tratar-se de posição de desvantagem argu- questão da hipossuficiência, o que, de resto, vai ao encontro do
mentativa por ocasião da inerente vulnerabilidade que o siste- critério da mínima atividade probatória que o sistema jurídico
ma pressupõe somada à massificação dos negócios. Por esse de proteção do consumidor afirma desde a Constituição. A ve-
motivo que a normalidade das narrativas, em direito do consu- rossimilhança e hipossuficiência, com efeito, são desdobramen-
midor, culmina no encerramento de uma mínima atividade pro- tos processuais de um mesmo substrato do direito material e da
batória como subproduto de uma metodologia processual que realidade social – a vulnerabilidade.
rearticula a verossimilhança, o que normalmente ocorre, para Em segundo lugar, as regras ordinárias de experiência (par-
com a desvantagem inerente, a vulnerabilidade. te final do dispositivo) são uma referência desde fora a todo um
O juiz é consumidor, o enfermo é consumidor, o pes- esquema de facilitação da defesa do consumidor (parte inicial
quisador é consumidor, o político é consumidor, o recém- do dispositivo) – o que acontece, inclusive, com a inversão ope
-nascido também é consumidor, até o governante é consu- judicis do ônus da prova.
82 midor. Enfim, todo mundo já foi, ou será, um consumidor, A diferença entre a verossimilhança28 e a probabilidade é
o que resulta na impossibilidade de o legislador elencar um polêmica. Contudo, mesmo sem aprofundar em definições 29,
rol de provas mínimas para a tutela da posição jurídica do pode-se identificar que a prática aproxima a verossimilhança e a
consumidor, assim como se formulou na Lei n. 8.213/1991. probabilidade30, compatibilizando-as por meio de um utilitaris-
No mesmo sentido, o legislador não poderia vincular o con- mo (GIULIANI, 1975, p. 32) argumentativo que, em um primei-
sumidor a provas documentais, até porque os grandes pro- ro momento, assinala uma referência objetiva do possível (as-
blemas estão quando não existem documentos para forma- pecto positivo) e, em um segundo momento, afasta uma razão
lizarem as relações. que deixaria anormal a narrativa afirmada.
Atento à massificação das demandas, bem como conside- Comenta-se que a doutrina alemã encampa o standard da
rando a premissa de que #somostodosconsumidores, o legis- verossimilhança, porque esse critério pormenoriza o requisito
lador conectou a facilitação da defesa do consumidor a regras da suficiência da prova para, assim, afastar o julgamento com
de experiência (quod plerumque accidit), sendo que o sistema base na regra do ônus da prova (art. 373 do NCPC). Nesses
reflete um acontecimento comum na vida das pessoas. termos, o convencimento reputar-se-á válido e legítimo na
Voltando ao texto do art. 6°, inciso VIII, do CDC, sem muito presença de um “alto grau de verossimilhança” em que as
esforço, é possível repartir a seguinte sistematização: dúvidas subjetivas, ou seja, as dúvidas do juiz ‘in concreto’
sejam descartáveis. Então, sob essa ótica, dever-se-á, pri-
meiramente, verificar se a convicção foi atingida, para, logo
Art. 6°, VIII: a facilita- (a) a facilitação da defesa de após, examinar os elementos que dela afastam, ou seja, as
ção da defesa de seus seus direitos, inclusive com a in- dúvidas. A qualificação teórica das dúvidas mencionadas na
direitos, inclusive com versão do ônus da prova, a seu fundamentação da decisão é que servirão de critério. As dú-
a inversão do ônus da favor, no processo civil, quando, vidas abstrato-negativas (teóricas) deverão ser desprezadas,
prova, a seu favor, no a critério do juiz, enquanto que as dúvidas concreto-positivas viciarão a con-
processo civil, quando, vicção judicial (KNIJNIK, 2007, p 39).
a critério do juiz, for (b) for verossímil a alegação ou Esse movimento metodológico que se atribui à doutrina
verossímil a alegação quando for ele hipossuficiente alemã, em princípio, efetua um exercício positivo para determi-
ou quando for ele hi- nar a intensidade da prova que convence o juiz e não descon-
possuficiente, segundo (c) segundo as regras ordinárias de sidera, para qualificar esse suporte, um outro movimento, ne-
as regras ordinárias de experiências; [...] gativo, que confronta aquele contexto probatório à normalidade
experiências. inferenciada das regras experienciais. É quase um procedimento
por eliminação, o que não elide a sua adoção como um critério

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acessório, proposta que ratifica a presente exposição. consumidor acaba por confirmar a impressão sobre o standard da
As normas-tipo e a inversão judicial do ônus da prova, am- mínima atividade probatória. Trata-se da responsabilidade pesso-
bas sopesadas pelas regras ordinárias de experiência – ainda al do profissional liberal (art. 14, § 4°, do CDC).
mais no cenário repetitivo e massificado das relações de con- Ninguém discute que, na responsabilidade civil do profis-
sumo –, refletem esse esquema circular, que se trata de uma sional liberal, pelo fato da teoria da proximidade, é necessário
compatibilização argumentativa em dicotomias, conforme o pa- dinamizar o ônus da prova ou inverter o ônus da prova, para
drão kantiano31. O ordenamento jurídico brasileiro elabora um que tal ônus seja atribuído ao fornecedor. Para essa inversão,
exercício argumentativo análogo, embora a nomenclatura ora basta comprovar a categorização jurídica do sujeito, como um
defendida, aqui, se reporte a um standard da “mínima atividade consumidor, o que supõe uma situação de vulnerabilidade e,
probatória”. Isso acontece tanto porque existe uma lei brasileira de outro lado, uma proximidade do fornecedor às circunstân-
(Lei n. 8.213/1991) que flerta com a definição ensaiada, como cias da prova.
porque a realidade social do consumidor brasileiro é algo diver- Logo, embora se sustente um maior encargo ao consumi-
sa da realidade em que aplicada a doutrina tedesca. dor, nesses casos, essa pontual inversão prevista pelo sistema
Com uma variação definicional, Marinoni parece defender, na acaba por meramente compensar os esquemas-tipo e as pre-
essência, o rebaixamento do standard do convencimento na tu- sunções que a grande maioria das hipóteses encerra. Vale dizer,
tela jurisdicional do consumidor, quando ele refere: Frise-se que, a inversão do ônus da prova impera nos claros do sistema do
em um caso com esse (de defeito na composição de remédio), CDC, conduzindo a uma solução de complementaridade àquela
a relação de consumo é marcada pela violação de uma norma que o legislador já tivera protegido o consumidor. O processo
que objetiva dar proteção ao consumidor. O fabricante que viola civil e o CDC não desprivilegiam o profissional liberal, mas, ela-
essa norma assume o risco da dificuldade de prova da causali- boram, desde o critério merit based, um esquema que preserva
dade. Se a prova da causalidade é difícil, basta que o juiz che- a responsabilidade subjetiva e, na volta, atribui um maior encar-
gue a uma convicção de verossimilhança para responsabilizar o go probatório ao fornecedor.
réu. Essa convicção de verossimilhança, é claro, não se confunde Ocorre uma prejudicialidade integrativa quando o mínimo de
com a convicção de verossimilhança da tutela antecipatória, pois provas não é suficiente para o julgamento. Em contrapartida, esse
não é uma convicção fundada em parcela das provas que ainda mínimo de provas acaba sendo suficiente para a inversão do ônus
podem ser feitas no processo, mas sim uma convicção que se da prova. Um esquema de imputação interfere no outro.
funda nas provas que puderam ser realizadas no processo, mas, Assim, as regras ordinárias da experiência implicam uma
diante da natureza da relação de direito material, devem ser solução-tampão aos vazios normativos dos tipos-padrão, que 83
consideradas suficientes para fazer crer que o direito pertence o próprio CDC estabelece. As regras ordinárias de experiência
ao consumidor. (MARINONI, 2006). O autor arremata: Essa con- são pontos de irrupção que até podem flexibilizar a frequência
vicção de verossimilhança nada mais é do que a convicção deri- do CDC, em um caso especial, quando a narrativa está desvia-
vada da redução das exigências de prova, e assim, em princípio, da do ordinário. Porém, em um estado ideal de coisas jurídi-
seria distinta da inversão do ônus da prova. cas, a exceção do sistema (art. 14, § 4º) ratifica os indicativos
No mesmo sentido, Eduardo Cambi (2006, p. 401)32 ad- textuais que conformam uma regra geral, no Direito brasileiro
verte sobre a especialidade da tutela jurisdicional do direito do – a mínima atividade probatória preenche o standard do con-
consumidor, na medida em que a essência dos institutos desse vencimento para a tutela jurisdicional do consumidor.
ramo do direito material implica uma solução de compensação O consumidor deve demonstrar que ele se trata de um con-
no locus processual. Ou seja, as regras do processo civil, como sumidor. Em decorrência, a vulnerabilidade atribuída pela rotina
o ônus da impugnação específica (art. 341 do NCPC), que ou- do sistema jurídica pressupõe a série de confirmações que os
trora foram pautadas pela autonomia privada e pela isonomia efeitos das normas fazem interagir para compensar tal desigual-
formal, devem observar a vulnerabilidade do consumidor e a dade fática.
massificação dos negócios, fenômenos contemporâneos, e que
não permitem uma aplicação pura e simples de uma presunção 4 CONCLUSÃO
contra o consumidor. Pelo contrário, o sistema jurídico estabe- O Código de Defesa do Consumidor encerra um sistema jurí-
lecido para a proteção do consumidor implementa uma reação dico com relativa autonomia aos demais ramos do Direito. Ainda,
aos ditames clássicos do direito privado e do velho processo as respectivas normas ostentam um sincretismo entre o direito
civil – por isso as presunções, as normas-tipo e a normalidade material e o direito processual. De maneira inédita, no ordena-
das experiências pendem para o lado do consumidor. Em con- mento positivo, o CDC estabeleceu a possibilidade da inversão do
trapartida, isso relativiza o standard do convencimento, nessas ônus da prova – art. 6°, inciso VIII, e art. 14, § 4°.
hipóteses, e onera o fornecedor. Tais previsões não precisam ser requeridas em qualquer
A doutrina é repleta de comentários sobre a inversão do ônus demanda referente à posição jurídica do consumidor. Em
da prova, festejando o advento do CDC. Todavia, é muito difícil primeiro lugar, porque o CDC já preestabeleceu um conjun-
haver incursões no tocante ao standard do convencimento. A ex- to de regras-tipo que implicam presunções narrativo-deci-
plicação para a lacuna, talvez, está no fato de a terminologia não sórias. Ou seja, o próprio legislador avisou: se o fornecedor
ser adotada no texto da lei, e a ponta do iceberg da questão obs- não se desincumbir de comprovar a falta do defeito ou a au-
curece o saneamento da compreensão. sência do dano, por exemplo, ele sofrerá as consequências
Com efeito, o caso limítrofe previsto pelo sistema de tutela do previstas pelo sistema jurídico.

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com o princípio da segurança jurídica, mesmo internamente ao processo,


O Código do Consumidor, portanto, atribuiu ou verteu o o que enseja uma solução de adequação que, de resto, atende à efetivi-
ônus da prova em benefício da maior amplitude de tutela do dade como um valor. Ou seja, a efetividade da tutela jurisdicional é um
consumidor. A lei supõe o que não precisa ser repetido na pe- princípio, mas também consiste em um valor, desde que observada a fun-
cionalização do formalismo no sentido de realizar a justiça e a pacificação,
tição. Até pela sequência argumentativa que as narrativas do de fora do processo.
consumidor bastam que sejam adequadas aos tipo-presun- 6 O processo está impregnado do direito material. Ou seja, o nexo teleoló-
ções pautadas pelo Código. Trata-se de um sistema à parte do gico será para satisfazer o direito material no plano da realidade. Todavia,
alguns aspectos da tutela genericamente chamada “efetiva” tocam ao direi-
Código de Processo Civil.
to material, no desdobramento do processo, como a adequação, e outros
Apenas subsidiariamente, nos casos previstos no próprio tocam ao direito material em linha de chegada, como a especificidade. Um
CDC (art. 14, § 4°), ocorre uma inversão do ônus da prova ope resultado de gênero pode ser sintetizado na efetividade, mas o cenário
judicis. Na grande maioria dos casos, o legislador antecipou-se, analítico permite separar o fio condutor ao ponto vertical, já que a tutela
jurisdicional efetua a ligação entre o processo e o direito.
por isso é dispensável falar em “inversão” do que já está “verti- 7 A reversibilidade introversa (ou introspectiva) reflete a clássica percepção
do” – o ônus da prova em benefício do consumidor. da mudança de orientação pelo próprio julgador, quando ele aprofunda a
cognição. Isso é juridicamente possível, mas pragmaticamente contingente
– basta observar as demandas correntes nos tribunais e refletir quantas ve-
zes um juiz muda de posição em seus julgamentos correntes. A reversibili-
NOTAS dade que possivelmente melhor atende às rotinas é extroversa, porquanto
1 A questão da sobreposição da tutela jurisdicional em relação à tutela do firmada em estruturas recursais e cassacionais, e que, de resto, preserva a
direito ratifica o dever institucional de assegurar uma convivência civilizada. celeridade da prestação jurisdicional.
Uma questão que pode ser observada pela dupla face da proporcionalida- 8 Proteção das normas, no sentido de tendente universalização, e a busca
de. Luciano Feldens (2005, p. 98/108) afirma que na atualidade, tem-se por uma igualdade material. Provável que o próprio Marinoni não tenha
como inequívoco que os direitos fundamentais, ao revés do que propug- imaginado uma proteção da norma no sentido jakobiano, cuja teoria fun-
nado por um modelo liberal clássico, não tem sua eficácia restringida cional exacerbada, em direito penal, faz antecipar a tutela para o fator da
a um plano negativo, ou seja, de direitos de defesa ou de omissão do punição, que acabam sendo considerados crimes os ilícitos formais ou de
indivíduo frente ao Estado. Mais que isso, como valores objetivos que mera conduta, independentemente do resultado material – por exemplo,
orientam por inteiro o ordenamento jurídico, reclamam dentro da lógica punir o porte de arma antes mesmo da prática do roubo; punir a embria-
do Estado Social, prestações positivas no sentido de sua proteção. O autor guez ao volante antes mesmo de um acidente culposo ou doloso. Não
define a dupla instrumentação da proporcionalidade, em direito penal (a que o Direito Civil não produza esse tipo de modalidade, inclusive, porque
ser refletido no plano dos direitos humanos e transnacionais): além de a figura das presunções e ficções legais é onipresente, em Direito. Ocorre
vedar uma excessiva voracidade punitiva, os mecanismos de tutela (prote- que a segurança de foro jakobiana é de uma rigidez que não comporta as
ção) também implicam medidas eficazes para a proteção dos anseios dos flexibilidades ou adequações concretistas defendidas por Marinoni repe-
ofendidos e, assim, promovem a manutenção do equilíbrio democrático tidamente e que parece ser assimilada à proteção do preceito, também
da situação triangular Estado, perturbador da ordem jurídica e vítima. Ele referenciada na doutrina italiana. Ver Rabitti, Bellelli, Dinacci (2012, p. 215).
84 conclui: a doutrina e a jurisprudência tradicionais costumam conjugar a Pelo menos, aparentemente interpretando o diálogo entre os autores. Ver
máxima da proporcionalidade à noção da proibição do excesso (über- Jakobs (2003, p. 10/13).
massverbot). Sem embargo, a proibição do excesso revela-se apenas 9 Non è certo il processo la sede nella quale si definiscono e qualificano i
com uma de suas faces. O desenvolvimento teórico dos direitos funda- bisogni di tutela, bensì la legge sostanziale, e con riferimento ai rimedi ivi
mentais como imperativos de tutela (deveres de proteção) tem sugerido riconosciuti, è tuttavia il processo la sede in cui tali scelte sono destinate a
que a estrutura da proporcionalidade conta com variações que fazem tradursi in tecniche e forme adeguate. Adolfo di Majo (2009, p. 07).
dela decorrer, ao lado da proibição de excesso, a proibição de infraprote- 10 A exigência de justiça formal, de tratar igualmente casos iguais, tem tanto
ção ou de proteção deficiente (üntermassverbot) a um direito inequivo- uma apflicação prospectigva quanto retrospectiva. É por isso que uma
camente reconhecido como fundamental. A defesa do consumidor, além decisão judicial justificável precisa estar fundada numa regra de Direito
do aspecto negativo, também se desdobra positivamente. que não seja nem ad hoc nem ad hominem, que pode ser um resumo da
2 O acesso à justiça encerra duas perspectivas: o aspecto formal, com a pos- ponderação ou da polaridade assimétrica que debate o movimento inte-
sibilidade instrumental do acesso a órgãos judiciários, e o aspecto substan- gracionista com o movimento pragmatista da experiência jurídica (Dworkin
cial, que afirma uma série de providências ao encargo do Estado visando versus Posner), sem uma solução de exclusão, assim como o procedimen-
a contemplar e a superar a situação de hipossuficiência do consumidor, talismo dialoga com o substancialismo (Maccormick, 2008, p. 197). Ainda,
assegurando a proteção jurídica, administrativa e técnica aos necessita- ver Dworkin (2010, p. 230 e seguintes).
dos, de modo a equilibrar a posição das partes no processo em vista de 11 O aspecto subjetivo do ônus da prova é uma regra de instrução, que repar-
uma decisão justa. (MIRAGEM,2014, p. 651/2). te os encargos de provar às partes. O aspecto objetivo do ônus da prova
3 A diferença é sublinhar o epicentro da teoria do processo – a tutela jurisdi- é uma regra de julgamento, decorrente daquele aspecto subjetivo, mas se
cional e não mais a jurisdição. trata de um critério do qual o juiz se vale quando as provas não preenchem
4 A doutrina de Cappelletti (2010, p. 76/7) inaugurou a preocupação da o standard do convencimento. Por esse motivo, o julgamento ocorre por
maior acessibilidade à justiça, demonstrando que a humanização do pro- um desempate de natureza processual. Um aspecto não sobrevive sem
cesso reclama a organização de institutos que amplifiquem o ingresso de o outro, mas a pontual ênfase é quanto à regra de julgamento, porque o
demandas, cujo foco é a pacificação social e a justiça do direito material. sistema jurídico reconhece juridicamente que a dúvida judicial é fundada
Uma frente de trabalho que também é avistada em Cristina Rapisarda quando ultrapassada a fase do convencimento judicial, quando o standard
(1981, p. 685/721), que praticamente seguiu os três passos outrora defi- não é cumprido para convencer o juiz. Por isso, a importância da definição
nidos por Cappelletti – a assistência judiciária, a transindividualização da do standard, o que é possível no entrechoque do preconceito com o texto.
tutela e a proposta de meios alternativos para resolução de conflitos –, 12 A denominação “autorrestrição” deve-se à natureza meramente dogmática
com a diferença que Rapisarda parece enfatizar uma reforma institucional da pretensão do ensaio, que não avança em questão de lógica ou, mesmo,
“desde dentro” do processo mesmo, com a utilização de parâmetros e pro- de fundamento jusfilosófico. Ver Mello (2004, p. 203 e seguinte) e Robert
cedimentos que aproximam o direito material do processo e resultam num Alexy, Teoria dos direitos fundamentais (op. cit., p. 276 e seguintes).
modo de ser do formalismo, tanto que a doutrina de Rapisarda influenciou 13 Cláudia Lima Marques (2011, p. 1151/2) refere os critérios que a doutrina
nitidamente autores brasileiros como Dinamarco e Marinoni. Talvez por ser alemã utiliza para reportar o controle do conteúdo do contrato, dentre os
um civilista ou, talvez, porque não aborda mais diretamente figuras insti- quais, exemplificativamente: o momento da contratação, a situação finan-
tucionais, apesar de sinceramente utilizar uma sistematização de remédios ceira dos negociantes, os efeitos decorrenciais a terceiros, por fato dessa
processuais como consectários das previsões do direito material (também contratação, a forma da contratação, o caráter adesivo ou paritário do con-
desde fora do processo e bem à semelhança da common law), a doutrina trato, a estraneidade ou a familiaridade entre os contratentes e o grau de
brasileira não utiliza (como deveria) assumidamente os ensinamento de desequilíbrio fático entre os negociantes.
Adolfo di Majo (2003) 14 A demonstração do desequilíbrio objetivo em uma contratação, o que so-
5 A efetividade no sentido estrito é um princípio endoprocessual que dialoga bremaneira é argumento repetitivo em contratos bancários, não requer dose

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significativa de particularismos. Vale dizer que o desequilíbrio que revisa, ou ou do objeto do processo, porque, de uma previsão abstrata do ordena-
não revisa, uma determinada cláusula contratual, é medida visualizada na mento, de um critério merit-based é que se fornecem os elementos sobre
virtude da repetição de demandas que, assim, salientam a falta de parâme- a intensidade do que significa a conclusão do “estar convencido”. O “estar
tros que o fornecedor acusa quando ele se desgarra das práticas correntes convencido”, em sistemática jurídico-argumentativa, de onde é inerente
do mercado. Uma posição semelhante em Miragem (2014, p. 721). a pretensão de correção das decisões, acaba não sendo uma conclusão
15 Respectivamente, artigos 54 e 39, inciso IV, do CDC. meramente pessoal – é uma conclusão decorrencial.
16 A coesão como justificação externa da narrativa, no sentido empregado 26 A normatividade desse texto da norma concretizou-se em diversos enun-
por Jerzy Wróblewski e Alexy (2011, p. 228 e seguintes). ciados jurisprudenciais, por exemplo: Súmula 6/TNU: «A certidão de casa-
17 Utilizando outros referenciais, porém, diferenciando o que é matéria perti- mento ou outro documento idôneo que evidencie a condição de trabalha-
nente à apuração dos fatos (probatória) e matéria pertinente a uma valo- dor rural do cônjuge constitui início razoável de prova material da atividade
ração de conceitos jurídicos, ver Moreira (1988, p. 70). rurícula.» Súmula 14/TNU: «Para a concessão de aposentadoria rural por
18 Taruffo (2009, p. 267) critica o critério da proximidade para a distribuição idade, não se exige que o início de prova material, corresponda a todo o
do ônus da prova, quando alerta que essa modalidade poderia ser epis- período equivalente à carência do benefício.» Súmula 34/TNU: «Para fins
temologicamente válida, porém, poderia levar a excessos. Para o autor, de comprovação do tempo de labor rural, o início de prova material deve
é mais aconselhável adotar um critério de sanções (disclosure) em que ser contemporâneo à época dos fatos a provar.» Súmula 73/ TRF 4ª: “Ad-
cada parte deveria produzir todas as provas que tivesse disponibilidade. A mitem-se como início de prova material do efetivo exercício de atividade
qualidade linguística do texto escrito por Michele Taruffo e a paixão com rural, em regime de economia familiar, documentos de terceiros, membros
que ele defende a dimensão epistêmica do processo são, evidentemente, do grupo parental”.
conquistadores. De qualquer maneira, um leitor brasileiro deve considerar, 27 Contra, afirmando que, no caso especial do CDC, a verossimilhança não
no mínimo, algumas particularidades. A jurisdição brasileira é diferente está atrelada ao id quod plerumque accidit – apenas a hipossuficiência é
da italiana e, sobretudo, é diferente da jurisdição dos países mais evo- que estaria atrelada às regras gerais de experiência, ver Oliveira e Mitidiero
luídos da Europa – a Alemanha e a Inglaterra. Além disso, qualquer dose (2012, p. 87).
de prática, nos tribunais brasileiros, é suficiente para constatar que uma 28 Nesse comentário sobre a verossimilhança também se encaixa a hipossufi-
vitória sem razão é mais comemorada que uma razão sem vitória. Um ciência pois, junto com a verossimilhança, a hipossuficiência está vinculada
modelo processual fundamentado na boa-fé e na cooperação é louvável, a regras ordinárias de experiência (art. 6º, inciso VIII, do CDC), pelo menos,
sempre, e as normas devem impor esse estado ideal de coisas, isso está segundo o texto da norma elaborada pelo legislador brasileiro.
no art. 10 do novo CPC. No entanto, um realismo moderado sopesa a 29 Calamandrei (1972, p. 620/1) elenca a possibilidade, a verossimilhança e
implicação normativo-ideal no confronto com a cultura da desigualdade a probabilidade como padrões em uma espécie de escala aproximativa à
brasileira, principalmente, no interior desse país continente, porque, aqui, questão da verdade.
são necessárias soluções socorristas em que, possivelmente, um imperati- 30 A probabilidade e a verossimilhança são operações que sempre se fundiram,
vo processual epistêmico fundado na confiança acabaria perdendo espaço. na prática, mesmo na vigência do revogado art. 273 do CPC/1973. Tanto é
O Estado-juiz deve prestar cooperação às partes, isso não se discute, mas que o novo CPC estabelece: “Art. 300. A tutela de urgência será concedida
normas rígidas de disclosure, que se estruturam por deveres interpartes, quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o
não necessariamente, assimilarão uma dimensão epistêmica ao processo perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo”. Note-se que a pro-
brasileiro, antes, elas poderão produzir baixas colaterais em termos de babilidade é um elemento que deve ser somado aos demais – o perigo de
aplicabilidade e alargamento do tempo no processo. O brasileiro não tem dano ou o risco ao resultado útil do processo; em cada uma dessas últimas
muito tempo, ele é pobre, ele trabalha demais, ele ganha pouco, ele depo- hipóteses, é caso da tutela de urgência satisfativa ou de tutela de urgência 85
sita muita esperança em uma solução célere do processo civil de resultado. cautelar. A probabilidade do direito é uma constante, embora a crítica co-
19 O autor utiliza a denominação princípio da “vicinanza” ou da “riferibilità” mente que o direito não seria provável, ele existe, ou não existe.
(DI MAJO, 2009, p. 259). 31 Kant, Lógica, p. 81.
20 Uma simples verdade, op. cit., p. 263/4. 32 O autor se reportava ao CPC/1973, todavia, a regra se manteve na dicção
21 Verofuncional é uma lógica que assimila polaridades – ela opera em di- do novo CPC.
cotomias, por intermédio de conjunção (“e”), disjunção (“ou”), negação
(“não”), ou implicação material (“se...então”). Um legado do silogismo,
sendo que os próprios corifeus do positivismo mais ortodoxo, mesmos REFERÊNCIAS
os que talvez refutem uma standardização do convencimento judicial, são ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional
obrigados considerar essa lógica, pois é a velha lógica. Ver Maccormick como teoria da fundamentação jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. 3.
(2008, p. 318). ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
22 A crítica também merece uma crítica em seus próprios termos, porque a BALTAZAR JR., José Paulo. Standards probatórios. In: KNIJNIK, Danilo (coord.).
standardização do convencimento não é um mecanismo de prova, porém, Prova judiciária: estudos sobre o novo direito probatório. Porto Alegre: Livr. do
com base em um grau de confirmação o standard afirma um critério. O Advogado, 2007.
tipo presuntivo – técnica mais utilizada pelo CDC – assenta uma maneira CALAMANDREI, Piero. Verità e verosimiglianza nel processo civile. In:
de olhar as coisas, equilibrando juridicamente o que é desigual faticamen- CAPPELLETTI, Mauro (a cura di). Opere Giuridiche. Napoli: Morano Editore,
te. Nessun ragionamento presuntivo è cosi evidente da sfuggire alla verifi- 1972. v. 5.
ca del contraddittorio: la presunzione insomma non è un mezzo legale di CAMBI, Eduardo. A prova civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: Revista
prova, ma um criterio orientativo della ricerca, e não apenas della ricerca, dos Tribunais, 2006.
mas que também afirma conclusões ou práticas sobre o juízo do fato. Ver CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça: conclusão de um projeto internacional de
Alessandro Giuliani (1988, p. 533). investigação jurídico-sociológica. In: CAPPELLETTI, Mauro. Processo, ideologias
23 Ver Marques, Miragem (2014). e sociedade. Trad. Hermes Zaneti Jr. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2010. v. 2.
24 O CDC reproduz a eficácia horizontal, a lei previdenciária regulamenta a CASTRO, Cássio Benvenutti de. Ação anulatória: de acordo com o CPC/73 e o
relação entre um particular e uma entidade pública, portanto, reflete a Projeto no Novo CPC. Curitiba: Juruá, 2014.
eficácia vertical do direito fundamental (drittwirkung). DALL’AGNOL JR., Antônio Janyr. Distribuição dinâmica dos ônus probatórios.
25 O meio de prova pericial não é sinônimo de convencimento judicial apro- Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 90, n. 788, p. 92-107, jun. 2001.
fundado. Com efeito, o juiz avalia a perícia lendo as conclusões do perito DI MAJO, Adolfo. La tutela civile dei diritti, 4. ed. Milano: Giuffrè, 2003. v. 3.
e tentando entender a linguagem técnica que o experto atestou. Um caso DI MAJO, Adolfo. Le tutele contrattuali. Torino: Giappichelli, 2009.
pode ser complexo sem ter perícia, e outros tantos casos podem ser sim- DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 3. ed. São
ples, embora tenha ocorrido a perícia. Agora, se a perícia for sinônima de Paulo: Martins Fontes, 2010.
convencimento judicial aprofundado, das duas, uma: ou o juiz não poderia FELDENS, Luciano. A constituição penal: a dupla face da proporcionalidade no
contrariar, jamais, a perícia; ou, de plano, o juiz deveria entregar o processo controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
ao perito, e que o próprio experto elabore o julgamento. Afinal, o conven- GIULIANI, Alessandro. Prova (prova in generale). In: ENCICLOPEDIA del diritto.
cimento seria do perito, não do juiz. Evidente que o sistema jurídico prevê Milano: Giuffrè, 1988. v. 37.
que o juiz pode se distanciar das conclusões periciais, justificadamente – o GIULIANI, Alessandro. b) Teoria dell’argomentazione. In: ENCICLOPEDIA del
juiz sempre deve justificar todas as suas impressões. Portanto, o sistema diritto. Milano: Giuffrè, 1975. v. 25.
jurídico encerra critérios que tornam o convencimento aprofundado, ou JAKOBS, Günther. Sociedade, norma e pessoa: teoria de um direito penal fun-
não, a depender da natureza do direito material em debate, da substância cional. Trad. Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri: Manole, 2003.

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Cássio Benvenutti de Castro

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Recebido em 2/7/2018.
Aprovado em 16/9/2018.

Cássio Benvenutti de Castro é Juiz de Direito no Rio Grande


do Sul e doutorando em Direito pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 73-86, jan./jul. 2020


D I R E I T O PRO C ESSUAL C IVIL
Rodrigo de Souza Gonçalves

A RELAÇÃO DA BAHIA E A INFLUÊNCIA DOS ARESTOS,


ASSENTOS E ESTILOS COMO INÍCIO DA METODOLOGIA
PRECEDENTALISTA EM TERRAE BRASILIS* 87

BAHIA’S ANCIENT COURT OF APPEALS AND THE INFLUENCE OF ARESTOS,


ASSENTOS AND ESTILOS AS A STARTING POINT TO THE PRECEDENT-
MAKING METHODOLOGY IN TERRAE BRASILIS
Rodrigo de Souza Gonçalves

RESUMO ABSTRACT
Demonstra que o Direito produzido em solo colonial brasilei- This paper points out that since Bahia’s court of appeals was
ro, a partir da instalação da Relação da Bahia, em 1609, sob set up, in 1609, the law developed in colonial Brazil, under
nítida influência das fontes jurídicas portuguesas, já utilizava de the clear influence of Portuguese legal literature, already
práticas e institutos típicos de uma metodologia decisória por used practices and institutes typical of a precedent-making
precedentes. Atesta que o período republicano é herdeiro de methodology. It sustains that the republican period is heir to a
uma metodologia decisória, com as devidas particularidades, decision-making methodology and its due particularities, that
aplicada há séculos em terrae brasilis, por meio da utilização has been applied for centuries throughout terrae brasilis, by
dos arestos, assentos e estilos. virtue of arestos, assentos and estilos.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Direito Processual Civil; precedentes judiciais; metodologia; Di- Civil Procedural Law; legal precedents; methodology;
reito luso-brasileiro. Portuguese-Brazilian Law.

Artigo apresentado no âmbito do Programa de Mestrado em Ciências Jurídico-Civilísticas, Menção em Direito Processual Civil, como critério de
conclusão da disciplina de História do Direito Português, lecionada pelo Prof. Dr. Rui Manuel de Figueiredo Marcos, professor Catedrático da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-PT.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 87-99, jan./jul. 2020


Rodrigo de Souza Gonçalves

1 INTRODUÇÃO organizasse um novo Código ou não fossem esses especial-


A teoria e a Filosofia do Direito têm dedicado grande mente alterados (MARTINS-COSTA, 2000, p. 238).
parte de sua atenção à tarefa de desvelar a real natureza do A intenção dessa investigação é, portanto, demonstrar, se-
procedente judicial, especialmente ao buscar o seu enqua- guindo um critério de periodização próprio, baseado e influen-
dramento teórico-político dentro dos sistemas fundados no ciado no Direito português e na distribuição burocrática do
civil law. No Brasil, o estudo do tema ganhou forças, so- poder judiciário, que o Sistema de Justiça em terrae brasilis ab-
bretudo, nos últimos anos, em razão da promulgação do sorve o precedente judicial como fonte do Direito e como téc-
CPC/2015, quando jusfilósofos uniram-se aos processualis- nica de julgamento desde o período colonial, perpassando pelo
tas, a fim de tentar encontrar a correta definição do papel período imperial, até ser “recepcionado” pela república e pelo
dos precedentes dentro do Sistema de Justiça brasileiro. Direito Processual Civil contemporâneo.
Nesse caminho, estudos sobre estrutura, técnicas de aplica-
ção e efeitos, típicos da Teoria dos Precedentes e que, até 1.1 PERIODIZAÇÃO ADOTADA
então, não pertenciam ao vocabulário do jurista brasileiro, O critério de periodização adotado toma o precedente ju-
são, atualmente, de obrigatória compreensão, aproximan- dicial não apenas como produto, mas primordialmente, como
do o bom manejo desses conceitos a um verdadeiro “míni- método decisório, desempenhado por um órgão oficial que re-
mo existencial” do jurista de terrae brasilis. úna as características necessárias para a prolação de decisões
Ocorre que, visando suprir a necessidade de explicar o que, futuramente, sejam admitidas como fonte jurídica, nortean-
novo sistema que se anunciava com o CPC/2015, o Brasil do a sua própria atuação e a dos demais juízes a ele vinculados
sofreu uma avalanche doutrinária de estudos historica- na solução de futuros casos semelhantes, e, sobretudo, que uti-
mente inconsistentes sobre a Teoria dos Precedentes, em lize a metodologia própria da Teoria dos Precedentes, por meio
especial, por considerarem a metodologia precedentalis- de aplicação de técnicas, procedimentos e institutos direciona-
ta um fenômeno recente no Direito brasileiro, que estaria dos à produção ou à observação de decisões anteriores sobre
vinculado, apenas, ao nosso período republicano. Ou seja, determinado tema.
quando a doutrina percorre a linha do tempo, encontra, no São, portanto, características que somente podem ser reuni-
período republicano, a fase primária do modelo de prece- das por um órgão oficial, com competências e atribuições especí-
dentes brasileiro, cujo ápice de desenvolvimento resultou ficas. Com isso, afasta-se a possibilidade de se adotar um critério
na promulgação do CPC/2015. meramente cronológico; o corte temporal que nos propomos a
88 fazer tem como referência um fato político-jurídico relevante para
[...] da dificuldade de acesso aos demais a compreensão histórica do objeto investigado: a criação do pri-
materiais jurídicos, seja em razão da raridade meiro Tribunal em solo brasileiro, a Relação da Bahia.
Por óbvio, sabemos que a tarefa de demonstrar a existência
dos documentos, seja em razão da barreira
de um “sistema colonial de precedentes” não é de fácil execução.
linguística, pois a língua oficial das ciências, As principais fontes oficiais, consubstanciadas nas decisões emiti-
à época, era o latim. das pela Relação da Bahia, em sua maior parte, não estão à dis-
posição do historiador. A exemplo, não há compilação dos casos
Sabemos que a maioria dos institutos que compõem – que tramitaram na Relação entre os anos 1609 a 1626; esses regis-
ou já compuseram – a metodologia decisória por precedentes tros cartoriais do primeiro período de funcionamento deixaram de
têm origem republicana (p. ex., as súmulas de jurisprudência, existir (SCHWARTZ, 2011, p. 131-132). Não se olvide, ainda, da di-
o recurso de revista da Justiça do Trabalho, o recurso extraor- ficuldade de acesso aos demais materiais jurídicos, seja em razão
dinário, a repercussão geral, os recursos repetitivos e a súmu- da raridade dos documentos, seja em razão da barreira linguística,
la vinculante), todavia, não podemos esquecer que, desde o pois a língua oficial das ciências, à época, era o latim.
período colonial, especialmente a partir da instalação, em solo Em nosso socorro, acreditamos que o Direito luso-brasileiro
brasileiro, de órgãos da burocracia portuguesa encarregados e suas fontes – oficiais e extraoficiais – fornecerá os elementos
de processar e julgar causas cíveis e criminais em grau recur- suficientes a cumprir a tarefa de demonstrar que o sistema pre-
sal, produz-se jurisprudência metodologicamente condiciona- cedentalista está arraigado, há muito, no sistema judicial brasi-
da por um sistema jurídico que possui institutos – e discussões leiro, e poder demonstrar, ainda, que o respeito aos precedentes
teóricas – típicas do precedentalismo. Afirmar, sem maior cui- é método que se iniciou e se desenvolveu no período colonial e,
dado, que o respeito aos precedentes, no Brasil, é fenômeno adentrando à fase do Império, sobreviveu às circunstâncias po-
recente – e que busca suplantar o romanismo e implantar o lítico-liberais impostas pela superação do Antigo Regime, como
stare decisis – é fomentar um mito teórico, desmerecendo a a elevação da lei à fonte jurídica predominante. Após, chegou
história e a tradição portuguesa, que regeu por tantos anos o ao período republicano, que herdou e colheu os frutos de uma
sistema de fontes jurídicas brasileiras, inclusive, mesmo após metodologia aplicada há mais de 400 anos em terrae brasilis.
a proclamação da Independência, em 1822, quando então o Dito isso, não negamos que toda tentativa de periodização
Governo Imperial brasileiro editou a Lei de 20 de outubro de possui uma inafastável artificialidade, em razão do contínuo fluir
1823, que determinou a continuidade das ordenações, leis, da realidade histórico-jurídica (MARCOS; MATHIAS; NORONHA,
regimentos, alvarás, decretos e resoluções promulgadas pe- 2015, p. 40), mas, nos propomos a fugir do trivial, pois enten-
los reis de Portugal até 25 de abril de 1821, enquanto não se demos ser obrigação do investigador que pretende um diálogo

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direto, sem a poeira de uma tradição jurí- de funções jurisdicionais (substitutivida- dinariamente, era permitido ao rei revi-
dica passiva – e que de forma meramen- de) e administrativas (interna corporis); sar o decidido), a força e credibilidade
te jornalística, promove a apresentação (IV) competência de segunda instância; de um Alto Tribunal – organicamente
neutra dos fatos – explicar e problema- e (V) composição colegiada, formada brasileiro – fundamenta o nascimento de
tizar criticamente a história (FONSECA, por letrados (nos mesmos moldes das um Direito com características próprias e
2012, p. 18). Relações da metrópole), é que se pode com autonomia para, a partir de então,
afirmar o início da práxis judiciária em se tornar a mais importante fonte norma-
1.2 A INSTALAÇÃO DA RELAÇÃO DA BAHIA E terrae brasilis. tiva do país.
O INÍCIO DA PRODUÇÃO JURISPRUDENCIAL Por óbvio, as regras de processo Por isso, embora não se possa afir-
BRASILEIRA. e de procedimento – e de direito ma- mar a existência de uma genuína cul-
Efetivamente, a cultura jurídica no terial – adotadas à época eram aque- tura jurídica brasileira antes da segun-
Brasil começou a se manifestar logo las em vigência e também aplicadas da metade do séc. XIX (pois o primeiro
quando da chegada da primeira mis- no Reino de Portugal. Aliás, o Direito curso jurídico surge apenas no Império,
são jesuítica enviada pelo rei D. João III Processual Civil brasileiro teve longo com a criação de uma faculdade em São
(NORONHA, 2008, p. 85) já no início da período da sua história regulado pe- Paulo, em 1827), a fase colonial produ-
colonização (séc. XVI), porém, em razão las Ordenações Filipinas, que entra- ziu “Direito brasileiro”, com caracterís-
da inexistência de um tribunal no terri- ram em vigor em 1595, por Alvará de ticas particulares, eis que, o produto da
tório, não se podia falar, propriamente, D. Felipe I, de Portugal. Mas foi com função exercida pela Relação da Bahia,
numa concreta atividade jurisdicional. o início das atividades judicantes da diante das peculiaridades dos casos con-
Nos anos que antecederam a instalação Relação da Bahia, por meio da produ- flituosos que afloravam da sociedade
da Relação da Bahia, o Brasil era adminis- ção e aplicação de arestos, assentos e brasileira, supria a carência e as lacunas
trado sob o regime burocrático de capita- estilos que, em nosso sentir, surgem da legislação específica para nosso terri-
nias hereditárias e a Justiça era exercida, os elementos necessários à análise da tório e, interpretando a legislação então
de modo geral, por ouvidores (pessoas problematização e a possibilidade de vigente e aplicando normas consuetudi-
nomeadas pelos capitães-donatários). se demonstrar o efetivo desenvolvi- nárias, reconstruía o ordenamento jurídi-
Entretanto, com a expansão do domínio mento da metodologia para a solução co brasileiro.
português em território brasileiro, mos- uniforme de casos análogos. Com isso, produziu-se inúmeros ca-
trou-se necessário que a Coroa lançasse 89
braços administrativos em direção à colô- [...] os arestos são decisões frutos do julgamento de
nia, dando seguimento ao plano de ma- determinado caso concreto, com determinadas partes
nutenção da exploração econômica e de
captação de riqueza. litigantes; os assentos, via de regra, são focos de intepretação
A particular complexidade da ocupa- autêntica; são, portanto, atos do poder Judiciário [...]
ção política exigia da metrópole especial
cuidado com sua empresa-colonial; a re- E mais: acreditamos que a criação de sos julgados cuja base fática e normati-
dução dos problemas administrativos e um tribunal superior em solo brasileiro va foi moldada de acordo com a neces-
sociais era condição essencial para a ma- representa a maior ocorrência político-ju- sidade surgida no seio social da época.
nutenção do domínio, sobretudo, nas vi- rídica da época, um verdadeiro reconhe- E assim, a ordem jurídica brasileira rein-
las litorâneas (Recife, Olinda, Salvador e cimento, pelo Reino, de que a sociedade ventou-se à luz de suas próprias necessi-
Rio de Janeiro), que concentravam a ati- brasileira ganhava importância e, em que dades, e a jurisprudência, diante do seu
vidade econômica da Coroa e, por isso, pese a preocupação primordialmente caráter eminentemente prático e cons-
necessitavam de postos da administração econômica do vínculo entre os povos, o truído consuetudinariamente, passou a
tributária e judiciária, a fim de garantir o desenvolvimento social brasileiro mere- preencher os espaços que o distancia-
modelo pensado no pacto colonial. ceu a atenção do Rei de Portugal. mento normativo e social em relação
A implementação dessa estratégica Reforça essa ideia o fato de o gover- à metrópole abriu ao longo do tempo
teve início em 1588 – como resultado no, no Antigo Regime, manter estreita (HESPANHA, 2006, p. 78-81).
da reforma judiciária de 1586 –, quando relação com o exercício do poder juris- Essa foi uma reação ao problema de
se criou a Relação da Bahia (por vezes dicional. A jurisdição, pelo menos des- incerteza normativa que já era enfrenta-
chamada de Relação do Estado do Brasil, de o século XIII, mostrava-se uma das do no Direito continental europeu, que
sendo este o nome oficial utilizado no re- mais importantes manifestações de for- vivia imerso em uma pluralidade de fon-
gimento de 1609), tribunal que se insta- ça e soberania da realeza (WEHLING, A.; tes (oficiais e extraoficiais) e opiniões te-
lou, efetivamente, em 1609. E aqui resi- WEHLING, M. J., 2004, p. 28-29). Muitas óricas sobre uma determinada questão
de nosso recorte histórico, pois, somente vezes, leis e decisões régias se confun- jurídica e não apresentava, à época, es-
com o funcionamento do primeiro órgão diam, pois os Tribunais “diziam o Direito” tabilidade e uniformidade estrutural, cau-
com: (I) específica previsão legal; (II) por delegação do rei e, ainda que a imu- sando grande insegurança jurídica. Esse
competência judicante no território bra- tabilidade das decisões fosse, por vezes, conjunto plural e desconexo de fontes
sileiro (territorialidade); (III) presença uma característica relativa (pois extraor- normativas era conhecido como Direito

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Comum (ius commune), e nessa fase, a autonomia de um di- 2.1 OS ARESTOS


reito não decorria principalmente da existência de leis próprias, Conceitua-se arestos como as decisões judiciaes, não sus-
mas, muito mais, da capacidade local de preencher os espaços ceptíveis de reforma, proferidas, em forma de julgamento de-
jurídicos de abertura ou indeterminações existentes na própria finitivo, pelos tribunaes superiores (JUNIOR, 1904, p. 10). São
estrutura do direito comum (HESPANHA, 2006, p. 59-61). espécies de decisões que não podem ser confundidas com os
O ius commune era aplicado de forma subsidiária ao assentos: os arestos são decisões frutos do julgamento de de-
direito nacional europeu. Havia, portanto, a liberdade e a terminado caso concreto, com determinadas partes litigantes;
possibilidade de influência de outras fontes normativas, que os assentos, via de regra, são focos de intepretação autêntica;
não as oficialmente reconhecidas. Essa abertura do sistema são, portanto, atos do poder Judiciário, mas não julgam um caso
permitia que razões de ordem prática – específicas e locais concreto, e aproximam-se das leis. Sendo assim, os arestos são
– fossem admitidas para suprir as necessidades regionais, simples exemplos que podem ser seguidos ou não em casos
em um verdadeiro movimento integrativo do direito nacio- semelhantes e que não obrigam senão às próprias partes que
nal (composto por normas gerais). intervieram no feito (JUNIOR, 1904, p. 12).
Foi, então, a partir de segunda metade do século XVI, que Mas por que os arestos são importantes e indicam a ado-
a atividade dos tribunais passou a ter maior relevância como ção, no direito pré-moderno, de um movimento precedentalis-
fonte jurídica no Direito europeu, pois era capaz de empre- ta por parte dos tribunais luso-brasileiros? Certamente porque,
gar maior segurança jurídica e previsibilidade aos Sistemas de durante o absolutismo, não vigorava a divisão de poderes, por
Justiça, por meio do reconhecimento e da chancela, com alto isso, a contribuição dos juízes e tribunais, mediante a prolação
grau de autoridade, das fontes jurídicas oficiais e extraoficiais. de decisões, era primordial para a composição do ordenamen-
Dito isso, entendemos que um quadro estrutural muito pa- to jurídico. Como se sabe, o Direito, como sistema de normas
recido com o europeu da época pode ser compreendido no de caráter vinculante, condicionante “da” e condicionado “pela”
Brasil colonial, uma vez que, alterada a metodologia jurídica eu- realidade social, existe antes da lei, sendo, portanto, anterior ao
ropeia, a fim de erigir o produto da função dos tribunais (ju- movimento liberal que reconheceu nela o instrumento de esta-
risprudência) como a principal fonte normativa, a simetria e o bilização da luta política e promovedor de segurança jurídica e
vínculo entre a Justiça portuguesa e as instâncias judiciais no igualdade entre as pessoas. Por esse motivo que, mesmo antes
Ultramar acarretou, consequentemente, o aumento do interes- do surgimento do Estado Liberal, o julgamento por exemplos
se pela jurisprudência (e seus produtos oficiais) como fonte jurí- servia como metodologia e parâmetro para a solução de casos
90 dica norteadora também na instância colonial brasileira. idênticos ou análogos.
Nas próximas linhas, portanto, passaremos a demonstrar a O julgamento de casos futuros, utilizando-se como base
existência de institutos que são produtos da atividade dos tribu- normativa casos já julgados, foi amplamente utilizado pelos tri-
nais tendentes a buscar a racionalidade decisória e a uniformi- bunais portugueses, inclusive os Ultramarinos, como a Relação
dade da jurisprudência no Direito luso-brasileiro, e que foram da Bahia. Não se cogitava, entretanto, da prolação de arestos
produzidos e aplicados por força do vínculo sistêmico criado com conteúdo político, decidindo questões administrativas ou
entre a instância portuguesa e a instância brasileira, após o iní- políticas (arestos de registros ou de regulamento). A atuação
cio do funcionamento da Relação da Bahia, os quais operaram judiciária cingia-se a analisar direitos e interesses de particulares.
nos moldes de um “antigo microssistema de precedentes” em Classificavam-se, inicialmente, pela qualidade de quem
terrae brasilis. São eles: os arestos, os assentos e os estilos. o prolatava, variando entre o Rei, os Magistrados ou os
Árbitros; após, com a organização judiciária promovida pelas
2 INSTITUTOS DO ANTIGO DIREITO LUSO-BRASILEIRO: OS Ordenações, os arestos distinguiam-se pelos tribunais que os
ARESTOS, OS ASSENTOS E OS ESTILOS proferiam (JUNIOR, 1904, p. 14), por isso, foram classificados
Como vimos, em razão da feição plural das fontes do em (I) arestos da Casa de Suplicação de Lisboa; (II) arestos da
Direito na Europa continental, criando uma multiplicidade Casa do Porto e (III) arestos das Relações, sendo que os primei-
de soluções para um mesmo caso, o desenvolvimento so- ros tinham maior autoridade que os segundos e estes do que
cial não ficou indiferente à necessidade de uniformização os últimos (JUNIOR, 1904, p. 14).
do conteúdo das decisões e das práticas forenses. Por isso, Outra característica que demonstra a metodologia prece-
uma das principais fontes jurídicas do antigo Direito luso- dentalista adotada pelos tribunais portugueses e ultramarinos
-brasileiro, reconhecida também nas colônias do Ultramar, no uso dos arestos como produto para a solução de casos futu-
foi a jurisprudência dos tribunais. ros, tem relação com a originalidade do conteúdo da decisão.
Miguel Reale (2014, p. 167) define jurisprudência como Quando as decisões dos tribunais apenas confirmavam, em
a forma de revelação do direito que se processa através do grau recursal, a decisão do juiz, não se cogitava da formação
exercício da jurisdição, em virtude de uma sucessão harmônica de um aresto, sobretudo porque, à época, não vigia a obrigato-
de decisões dos tribunais. Esse quadro decisório constante em riedade de fundamentação das decisões e, somente no século
determinado sentido jurídico, dotado de elevado grau de au- XVIII, a obrigação de fundamentar os julgamentos surge em al-
toridade, tinha como veículo processual os chamados arestos, guns países: Itália, Portugal, alguns Länder alemães (GILISSEN,
instituto que não se encontra no texto das Ordenações ou em 2013, p. 396). Até então, os tribunais utilizavam-se, simples-
leis extravagantes, mas sim, nos “trabalhos dos decisionistas e mente da técnica de “confirmar a decisão por seus próprios
praxistas reinicolas” (JUNIOR, 1904, p. 9). fundamentos”, deixando, assim, de produzir conteúdo norma-

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tivo próprio, produto da fundamentação (MILLETI, 1995, p. 85-90). equivalente, chamado efeito vinculante
como exercício de racionalidade. De qualquer forma, a análise histo- (GONÇALVES, 2020, p. 143).
Inclusive, João Mendes Junior (1904, riográfica do tema indica, ainda, que a A verificação histórica nos dá vários
p. 11) lecionava que as decisões dos tri- autoridade dos precedentes teve maior exemplos: (I) na Toscana, ainda no séc.
bunaes soberanos, quando se limitam a adesão na tradição do common law in- XVII, foi desenvolvida uma regra con-
confirmar as sentenças dos tribunaes su- glês, que teve origem ainda no séc. XI, suetudinária segundo a qual dois pre-
balternos ou dos juízes singulares, não mas que passou a adotar o mecanismo cedentes da Rota Senese (ou Fiorentina
podem constituir arestos; pois, só po- do stare decisis apenas no final do séc. ou Luchese) tinham força de lei; (II) no
dem ser como taes consideradas as de- XIX. Vejamos: a autoridade dos prece- Stato Pontificio as decisões da Sacra Rota
cisões proferidas pelos próprios tribuna- dentes é considerável na common law eram também vinculantes; uma constitu-
es soberanos, como julgamento formal, inglesa. Embora a teoria do respeito zione do ano 1561, confirmada no ano
posto que em gráo de recurso, contendo estrito dos precedentes, o stare decisis, de 1611, estabelecia que os precedentes
os nomes e qualidades das partes liti- não se tenha imposto definitivamen- contidos em uma coleção de decisões
gantes, as questões de facto e de direito te em Inglaterra senão no século XIX, a publicadas com a estampa oficial não
estabelecidas com precisão, o resultado autoridade dos casos julgados (cases) poderiam ser desatentidos senão com a
dos factos reconhecidos pela prova, as foi muito grande a partir da época de maioria de dois terços de todos os julga-
razões de decidir e o dispositivo. Bracton (século XIII). Em França e nos dores; (III) uma única decisão era por si
Cabe mencionar, também, que, por Países Baixos, o princípio do stare de- só considerada vinculante, durante o pe-
consequência lógica, os arestos prola- cisis nunca se impôs oficialmente. Mas, ríodo dos séculos XV e XVI, na Suprema
tados pela Casa da Suplicação tinham de facto, a jurisprudência das grandes Corte do Reino de Nápoles (Sacro Regio
maior hierarquia, mas, para além disso, jurisdições, tais como os Parlamentos Consiglio); (IV) o mesmo se deu no perí-
eles deveriam ser observados no julga- em França e os Conselhos de Justiça nos odo de 1729-1837 nos Senati dos Estado
mento de casos futuros semelhantes. Países Baixos, foi relativamente estável Sardos; (V) no Piemonte e na Savóia foi
Nesse sentido é a lição de João Mendes (GILISSEN, 2013, p. 393-394). estabelecida uma legislação em 1729 que
Junior (1904, p. 14) ao afirmar que As de-
cisões da Casa de Supplicação de Lisboa [...] a utilização das decisões dos altos tribunais como fonte
[...] chama arestos do Parlamento, quan- normativa foi tema frequente na literatura lusitana,
do tomadas diante d’El Rey e mandan- 91
do-o elle guardar em casos semelhantes. formando um importante movimento jurídico-literário
O fundamento de autoridade dos que perdurou até o séc. XVIII.
arestos, tem relação direta com a cien-
tificidade do campo no qual eram pro- Ainda no direito comum medieval, reconhecia o caráter de fonte do Direito
duzidos (ou seja, dentro do processo e era possível observar o respeito ao resul- aos precedentes publicados a stampa e;
perante um tribunal) e na racionalidade tado dos julgamentos anteriores, e sua (VI) na Baviera, o Codex Maximilianeus
do Sistema de Justiça antigo, pois, o con- aplicação em casos futuros, sem que, to- Bavaricus Civilis estabelecia que os ju-
teúdo dessa decisão, em razão da for- davia, fosse obrigatória sua vinculação, ou ízes deveriam ter “sumo respeito aos
ça da autoridade que a produziu e pela houvesse a possibilidade de mudança de precedentes do Tribunal Supremo”
roupagem técnica que reveste o embate entendimento ou controle metodológico (BUSTAMANTE, 2012, p. 79-80).
processual, cria uma tradição e experiên- por meio de uma técnica de superação ou O fenômeno da vinculação das deci-
cia no mundo jurídico que não pode ser distinção. Ou seja, ainda que importante sões dos tribunais continentais europeus,
futuramente desperdiçada. parâmetro para a solução de casos futu- no curso do ius commune, aponta para o
Aliás, o prestígio que os arestos goza- ros, nos tribunais medievais do common fortalecimento do Direito jurisprudencial
ram na metodologia jurisdicional dos tri- law não havia maiores restrições para se e demonstra que o fenômeno de interfe-
bunais luso-brasileiros levou a doutrina divergir de decisões passadas, e os prece- rência horizontal entre sistemas de com-
especializada da época a debater sobre o dentes eram tratados como evidência de mon law e de civil law é um movimento
alcance da força vinculante dessas decisões. direito, e não tinham caráter vinculante de aproximação que se iniciou há séculos.
2.1.1 PANORAMA SOBRE A (DUXBURY, 2008, p. 33). Outra consequência do fenômeno
VINCULATORIEDADE NO DIREITO EUROPEU E em que pese ter sido acolhido com da prevalência jurisprudencial na tra-
E AS DOUTRINAS DE VALORIZAÇÃO DA maior força pelo Direito Inglês, não foi dição romano-germânica foi que, ain-
JURISPRUDÊNCIA EM PORTUGAL. apenas no common law que a força vin- da no séc. XVI, iniciou-se uma onda de
Parte da literatura especializada atri- culante da jurisprudência teve reconhe- publicação de coletâneas de arestos,
bui a Acúrsio a ideia de aplicação da me- cimento, pois também se começou a estilos e assentos, demonstrando, de
todologia dos precedentes nos antigos aplicar a noção de vinculatoriedade em forma inegável, que a decisão judicial
tribunais europeus. Outra parte, atribui a alguns sistemas jurídicos de civil law do (em suas variadas formas) era, à épo-
Vicente De Franchis, já no séc. XVI, a ino- medievo. Ou seja, a doutrina do stare de- ca, a fonte jurídica mais relevante. E
vação de se aplicar as decisões anteriores cisis, desenvolvida e operada no campo no momento de decidir, quando os
para a solução de casos futuros similares do common law, possuía no civil law um julgadores se viam diante da pluralida-

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de e desconexão das fontes, era para os tribunais que vol- cedente realizam uma importante função disciplinadora da
tavam os olhos, buscando direcionamento para a decisão. doutrina, aquela mesma que antes era desempenhada pela
É assim que, a partir da segunda metade do século XVI, vai communis opinio. Essa valorização da jurisprudência promovi-
assumir importante papel a jurisprudência dos tribunais supe- da pela literatura jurídica portuguesa foi interpretada como uma
riores do Reino: é o tribunal que passa a conduzir a doutrina alteração paradigmática da estrutura jurídica, na medida em que
(SILVA, 2011, p. 421). Em outras palavras, a jurisprudência pas- refletiu a crise de autoridade do direito romano e da opinião
sou a funcionar como elemento de estabilidade, promovendo dos doutores e uma tentativa de resolver o momentoso proble-
previsibilidade e isonomia no tratamento das questões jurídicas, ma da certeza do direito (HOMEM, 2003, p. 306).
sem olvidar, ainda, a simplificação metodológica que a adoção Esse movimento jurídico-literário acabou por valorizar a
de um sistema precedentalista acarreta, facilitando a atuação prática judiciária e o Direito nacional, produzido genuinamente
dos juízes na aplicação do Direito (GILISSEN, 2013, p. 393). pelos tribunais lusitanos, em detrimento da opinião comum que
Importante salientar que o desenvolvimento dessa meto- vigorava na Europa continental contemporânea. Por isso se ter
dologia jurídica, voltada à realidade prática do Direito, teve seu afirmado que à Idade da Glosa e, depois, da Opinião Comum,
ápice em Portugal entre o final do séc. XVI e meados do séc. se seguira, conforme conceituou Miguel Gribner, a Idade das
XVII. Coincidentemente, período em que se instalou a Relação Decisões e Casos Julgados (SILVA, 2011, p. 421-422).
da Bahia, durante o colonialismo brasileiro. Nessa época, a utili-
zação das decisões dos altos tribunais como fonte normativa foi 2.1.2 A DOUTRINA DECISIONISTA E A DISCUSSÃO SOBRE A
tema frequente na literatura lusitana, formando um importan- VINCULATORIEDADE NO DIREITO LUSO-BRASILEIRO.
te movimento jurídico-literário que perdurou até o séc. XVIII. A Desse corpo doutrinário que se desenvolveu em Portugal,
doutrina encarregada da análise prática do Direito e dos casos interessa, para o âmbito desse artigo, apenas aquele que se pre-
julgados foi dividida em três escolas: comentaristas, decisionista ocupou em debater os aspectos da técnica de vinculação dos
(ou casuístas) e praxistas. juízes às decisões dos tribunais, tarefa que foi executada pela
Os comentaristas, analisavam minuciosamente cada dispo- doutrina decisionista.
sitivo legal, e indicavam em relação a cada dos preceitos (e, A doutrina decisionista não foi desenvolvida para o campo
por vezes mesmo, a propósito de cada uma das suas divisões acadêmico ou historiográfico, mas sim, para uso dos práticos-
lógicas, ou, mesmo, palavras) a interpretação literal, as refe- -juristas. E essa característica reforça a ideia de elevar a jurispru-
rências que lhe são feitas pelos autores, os lugares paralelos, dência a uma fonte de direito, fornecendo o grau de importân-
92 as questões controvertidas pelos intérpretes, as ampliações ou cia que, na família romano-germânica, a jurisprudência possuía,
restrições que devem ser feitas à letra do preceito e a indicação a ponto de promover o desenvolvimento de toda uma literatura
da razão de ser (ratio) deste último (HESPANHA, 1982, p. 520). especializada (DAVID, 1978, p. 150).
Os praxistas, voltaram suas atenções para as questões do A discussão acerca da vinculatoriedade encontrou múlti-
cotidiano forense, editando obras dedicadas à prática notarial plas vozes no antigo Direito português, as quais não apresenta-
e forense em que eram tratadas, segundo a ordem normal do ram unanimidade sobre o assunto. Para alguns, como António
decurso processual, as questões que usualmente aí se levanta- Gama, os arestos da Casa da Suplicação tinham eficácia vin-
vam. (HESPANHA, 1982, p. 521-522). culante, pois constituíam direito para casos futuros semelhan-
E os decisionistas, que editavam compilações ou repositó- tes (apud HOMEM, 2003, p. 304); para outros, como António
rios de suma importância para a prática jurídica da época, ten- Amaral, essa eficácia não poderia ser admitida, pois os arestos
do em vista a importância que se dava à jurisprudência como da Suplicação não teriam qualquer autoridade vinculante, se-
fonte do Direito. Bem como, foi na doutrina decisionista que se não para o caso concreto, uma vez que os juízes devem julgar
discutiu, com maior detalhamento, certos aspectos sobre a pos- segundo a lei e não segundo os exemplos, pois que, se alguns
sibilidade de vinculação dos tribunais e juízes aos precedentes juízes errarem, não erra também o magistrado que julga se-
judiciais (HOMEM, 2003, p. 302). gundo a lei (apud HOMEM, 2003, p. 303).
O uso desse tipo de literatura facilitava o acesso às decisões Em verdade, não se sabe ao certo, até hoje, qual era a
dos grandes tribunais, possibilitando que se conhecesse a ratio margem da discricionariedade dos juízes na aplicação do di-
decidendi dos casos julgados. Era necessário, portanto, um ele- reito, embora tudo indique que – apesar da fama de legalis-
mento aglutinador para facilitar o desenvolvimento do sistema mo que envolve este período – a liberdade deixada aos juízes
das fontes jurídicas. E quando uma determinada questão havia para construir uma solução era muito grande (SUBTIL, 2010,
sido analisada por um tribunal, para além de ganhar contornos p. 9). Entretanto, considerando que os arestos eram emanados
de autoridade, tendo em vista a força e prestígio desses órgãos, pela Casa da Suplicação, não é incorreto afirmar que a esses
acabava por filtrar a pluralidade de fontes ou soluções encontra- precedentes era conferida grande autoridade e credibilidade.
das na opinião comum dos doutores, facilitando a extração das Ademais, a vinculação aos precedentes judiciais surge, natural-
razões e fundamentos determinantes dos julgados. As decisões mente, como um critério de certeza jurídica na interpretação e
dos tribunais forneciam, assim, vasto e qualificado material de aplicação das leis nacionais, de tal modo que, como escreveu
pesquisa, que possibilitava a compreensão da interpretação do Francisco de Caldas Pereira, os estilos e as decisões dos tribu-
Direito pela fonte de maior prestígio: os próprios tribunais. nais se transformassem em ´guia inviolável para casos futuros
Como bem pontua Hespanha (1982, p. 516), a referência (HOMEM, 2003, p. 304).
às decisões jurisprudenciais e a invocação da regra do pre- O panorama teórico da época era pouco conclusivo. Mas,

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diante da pluralidade de entendimentos não funcionou no período colonial, e encontramos a demonstração do pensa-
doutrinários, prevaleceu, quanto aos au- como se sabe, não se cogitava da vincu- mento da época sobre a incompatibilida-
tores que defendiam a vinculatoriedade, latividade das decisões prolatadas pelas de do efeito vinculante com o modelo de
a tese que restringia esse efeito apenas Relações, dentre elas, a extinta Relação Estado Liberal: deverá porém uma tal
às decisões dos tribunais superiores, do Rio de Janeiro. decisão servir de regra obrigatoria para
tendo em vista que os juízes que com- Ocorre que, essa mudança no pa- o futuro enquanto não houver medida
punham o colegiado gozavam de vitali- radigma da Justiça brasileira aconteceu legislativa? Certamente não. Póde tal de-
ciedade, ao contrário dos demais juízes em período de ebulição sócio-político cisão laborar em erro, e não convem im-
dentro da burocracia judiciária, que go- no mundo ocidental, onde se combatia pedir uma nova discussão, quando rea-
zavam, na maioria das vezes, de condi- o absolutismo, modelo político-jurídico ppareça questão perfeitamente identica,
ção temporária na ocupação do cargo do Ancien Régime que, em razão da cen- o que será difficil.
(HOMEM, 2003, p. 305). tralização de todas as competências esta- A preocupação da doutrina da época
E ainda que a doutrina não tenha en- tais, era propício à difusão de abusos e era que o Judiciário não invadisse a esfe-
contrado um caminho comum sobre o excessos. E ao se deixar nas mãos do so- ra de competência do poder legislativo.
tema, a pesquisa historiográfica nos for- berano a definição do justo e do injusto, Por isso, atribuir ao Judiciário a possibi-
nece ao menos uma ocorrência legal da do lícito e do ilícito, a função jurisdicional lidade de prolatar decisões vinculantes
época, da qual podemos extrair a confir- não se prestava a proteger, sequer, pres- aproximaria sua função à do legislador,
mação sobre uma técnica de vinculativi- supostos mínimos para a unidade e coe- e isso era de todo reprovável no Estado
dade dentro do Direito português. Trata- são social, como a igualdade, a liberdade Liberal. Por esse motivo a doutrina deixa
se de dispositivo constante no Liv. III, Tit. e a segurança jurídica. clara sua opção pela não-vinculação, afir-
LXIV, § 2º, das Ordenações Filipinas, que
confere ao Rei em atividade a possibili- [...] o novo regime constitucional do império influenciou a
dade de proferir decisão para integração forma de decidir dos juízes, numa clara demonstração de
de lacuna jurídica, verbis: E acontencen-
do caso, ao qual por nenhum dos ditos prevalência da lei e do novo modelo de Estado, fundado na
modos fosse provido, mandamos que o separação de poderes.
notifiquem a Nós, para determinarmos;
porque não sómente taes determina- Diante desse cenário, surge uma mando que uma decisão obrigatoria em 93
ções são desembargo daquelle feito que burguesia que, sufocada pelas amarras caso singular dispõe só dele, mas quan-
se trata, mas são Leis para dezembarga- do Leviatã, carrega consigo um ânimo do ella vale disposição geral toma o ca-
rem outros semelhantes. revolucionário, na ânsia pela limitação da ráter de lei, crea direitos e obrigações,
Como se vê, essa é uma hipótese atividade do Estado apenas ao necessá- torna-se uma norma social, e isso é de
de previsão legal e expressa dentro do rio para a sobrevivência da comunidade alçada exclusiva do legislador (BUENO,
Direito português, sobre a possibilidade (BOBBIO, 2013, p. 37). Buscava-se, por- 1857, p. 378-379).
de aplicação de decisão régia a casos fu- tanto, um modelo que respeitasse uma Como se vê, o novo regime cons-
turos semelhantes. estrutura mínima de liberdade, igualda- titucional do império influenciou a for-
No Brasil, o tema também foi objeto de e segurança jurídica, possibilitando o ma de decidir dos juízes, numa clara
de discussão, mas com relevância, apenas, desenvolvimento do corpo social; nele, demonstração de prevalência da lei e
no período imperial, tendo em vista que a lei (geral e abstrata) assumiria o papel do novo modelo de Estado, fundado na
somente com a chegada da família real no de fonte e expressão da razão humana separação de poderes. Por isso, prevale-
território brasileiro (1808) houve a trans- (JUSTO, 2014, p. 48), rompendo-se com ceu o entendimento de que as decisões
formação da justiça régia portuguesa no o modelo centralizador, consolidando-se da Casa de Suplicação não tinham força
Poder Judiciário nacional. Em outras pala- a forma tripartite de divisão das compe- obrigatória para casos futuros, podendo
vras, a transferência da Corte para o Brasil tências estatais. ser utilizadas apenas com eficácia per-
impossibilitou a continuidade da remes- Por isso, esperava-se do Poder suasiva, de onde o uso constante con-
sa dos processos para serem julgados na Judiciário, no Estado pós-revolucionário, figuraria um estilo de julgar, refletindo
Casa de Suplicação de Lisboa, motivo pelo a atuação como corpo burocrático autô- jurisprudência uniforme, mas não um
qual, por meio do Alvará de 10 de maio nomo, independente, que aplicasse as precedente obrigatório.
de 1808, D. João converteu a Relação do leis de acordo com sua mens legis, preo- Essa abordagem sobre a celeuma te-
Rio de Janeiro em Casa da Suplicação do cupando-se apenas com a jurisdição or- órica da vinculatoriedade dos arestos da
Brasil, tribunal que tinha competências e dinária, sem intromissão no político. Falar Casa de Suplicação não tem o objetivo
atribuições semelhantes com seu corres- sobre vinculação a precedentes, nesse de resolver ou assumir posição dogmáti-
pondente em Portugal. modelo, era importante, pois a liberdade ca; a intenção é, apenas, demonstrar que
Até este ponto não era relevante a e segurança jurídica era condicionada ao do antigo Direito luso-brasileiro ema-
discussão, no Brasil, sobre a vinculato- bom funcionamento das instituições e ao na outro indício sobre a adoção de um
riedade dos arestos, na medida em que respeito pela divisão de poderes. “microssistema” metodológico de res-
a Casa de Suplicação do Rio de Janeiro E na obra de Bueno (1857, p. 378) peito aos precedentes, pois houve gran-

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de debate doutrinário sobre um elemento típico da Teoria do savam eliminar os tormentosos desencontros interpretativos,
Precedente, qual seja, o efeito vinculante e sua abrangência. de molde a fixar a jurisprudência a entendimentos unifor-
Seria uma tarefa muito mais simples analisar o precedente mes da lei (MARCOS, 2006, p. 278). Ao contrário dos arestos
judicial com base na tradição do common law. Lá, como vimos, (que decidiam casos concretos), os assentos desprendiam-se
desde o medievo se adota uma metodologia própria do prece- das decisões em que eram criados e passavam a valer como
dentalismo. Por outro lado, quando se analisa o sistema de pre- lei, passando a integrar o ordenamento jurídico. Nos dizeres
cedentes à luz da tradição do civil law luso-brasileiro, é necessá- de Castanheira Neves (1982, p. 02-04), trata-se de um institu-
rio grande esforço investigativo para desmistificar a ideia de que to jurídico original e dificilmente compreensível, pois confere a
sua adoção ocorreu, no Brasil, apenas no período republicano. um órgão judicial (a um tribunal) a possibilidade de prescre-
A verdade é outra: não podemos esquecer que a história do ver critérios jurídicos universalmente vinculantes, mediante o
Direito brasileiro não é pura desde seu início; ela passa, neces- enunciado de normas (no sentido estrito de normas gerais, ou
sariamente, pela compreensão do Direito português, com suas de preceitos gerais e abstratos), que, como tais, abstraem (na
fontes, influências, institutos e metodologia. sua intenção) e se destacam (na sua formulação) dos casos
Estudar o Direito brasileiro da época é estudar, de forma ou decisões jurisdicionais que tenham estado na sua origem,
direta, o Direito português; não há como escapar dessa vincula- com o propósito de estatuírem para o futuro, de se imporem
ção, que é teórica, jurídica e burocrática. E ainda que não pos- em ordem a uma aplicação futura.
samos dizer que existia um Direito culto, produzido por juristas Via de regra, os assentos eram emitidos para que não hou-
brasileiros – em universidades ou outros espaços de discussão vesse variação hermenêutica indevida, cabendo ao Rei dar uni-
acadêmica – no período colonial, não podemos fechar os olhos dade interpretativa, conferindo sentido uniforme às normas
para o Direito institucionalizado, fruto do exercício da jurisdição jurídicas. Nesse sentido, o Assento de 24 de março de 1753
em solo brasileiro. vensinava que se devia tomar assento ´para se não experimen-
tar variedade de julgar` e o Assento de 24 de maio de 1785
2.2 OS ASSENTOS sustentava, em termos também pedagógicos, que cumpria ao
O Direito português antigo tinha, no procedimento de inter- ´Supremo Tribunal das Justiças` decidir sobre a inteligência das
pretação da lei, uma expressão autêntica da vontade do Rei, que leis, sempre que se movesse dúvida, ou entre os magistrados,
a exercia, inicialmente, mediante a edição de leis interpretativas, ou entre advogados, acerca do verdadeiro sentido das normas
ou então, pessoalmente, na presidência das sessões da Casa de jurídicas, tal qual prescrevia a Lei de 18 de agosto de 1769
94 Suplicação e do Cível, por meio dos chamados assentos. (MARCOS; MATHIAS; NORONHA, 2015, p. 195).
Para parte da doutrina historiográfica, esse instituto, que se Com o tempo, em razão do acúmulo de atribuições admi-
espraiou para as colônias Ultramarinas e existiu por vários sé- nistrativas do monarca, e a impossibilidade de participação con-
culos, teve origem em outro instituto do Direito antigo: as fa- tinua nas sessões de julgamento, foi delegada exclusivamente à
çanhas. Por façanha se pode entender “as sentenças ou casos Casa de Suplicação, em 1518, a tarefa de promover a interpreta-
julgados que valiam como precedentes obrigatoriamente vincu- ção da lei em substituição à vontade do Rei (MARCOS, 2006, p.
lativos” (MARCOS, 2006, p. 192). Esse instituto ibérico medieval 177). Essa regra de competência não constava nas Ordenações
já apresentava, portanto, uma característica semelhante à dos Afonsinas, mas foi inserida nas Ordenações Manuelinas (Liv. V,
assentos: a vinculatividade obrigatória, que decorria do prestígio Tit. LVIII, §1) e mantida nas Ordenações Filipinas (Liv. I, Tit. V, §5).
de quem as prolatava e da qualidade do exemplo que retratava. Quando da implementação dessa técnica decisória, fos-
Aliás, por isso se compreende que julgar por façanhas é se a decisão emitida pela Casa de Suplicação, deveria ser
julgar por exemplos, já que a memorabilidade do fato deter- seguida do registro em livro, o chamado “livro de assentos”,
minava que, em situações futuras, fossem imitadas e seguidas para que não se perdesse ou esquecesse no tempo. Esse li-
(NEVES, 1982, p. 6), principalmente em casos de lacuna ou vro, “muitas vezes mencionado como ´livrinho`, passou a ser
dúvida interpretativa da lei. Essa fonte jurídica ibérica, anterior chamado de ´Livro Verde` e, mais tarde, ´Livro dos Assentos
à reconquista, continha o gérmen metodológico adotado por da Relação” (TUCCI, 2004, p. 135).
Portugal para a solução de tais problemas normativos. Tal como as leis, os assentos tinham valor normativo, ou
Inclusive, a integração do texto foi preocupação sempre seja, da interpretação autêntica da lei surgia um novo produto
presente no Direito antigo, que padecia de critérios uniformes normativo, também com força de lei. E conforme aponta a dou-
para a definição das fontes subsidiárias, situação que levava à trina, os assentos assumiram, ao longo do tempo, cinco formas
oscilação constante da linha decisória dos tribunais. Era preci- diversas: (I) assento por efeito de dúvidas de interpretação; (II)
so unificar a interpretação e, por conseguinte, a jurisprudên- assento por efeito de glosa do Chanceler; (III) assento para defi-
cia, pois os dissídios jurisprudenciais eram fontes de inquie- nição de estilos antigos da Casa de Suplicação; (IV) assento por
tação e desigualdade no tratamento das partes litigantes e efeito de dissidência entre os advogados dos litigantes quanto
de descrédito público na administração da justiça (MARCOS, ao entendimento da lei aplicável; e (V) assento por efeito de
2006, p. 258). Por isso, podemos afirmar que os assentos re- ordem régia, transmitida por aviso de um secretário de Estado.
presentavam uma clara opção de adesão à segurança jurídica É possível perceber, diante da variedade de espécies,
e à uniformização da voluntas legis. que a função dos assentos não se resumia a mecanismo de
Conceitualmente, tratavam-se de proposições normativas identificação da interpretação autêntica da lei. Se bem obser-
com conteúdo geral e abstrato, legais e obrigatórias, que vi- varmos o conteúdo de alguns assentos, podemos notar que

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um dos seus objetivos, para além da quella Cidade não aceitasse assucares, risprudenciais. Estilos também foram
mera interpretação (de forma geral e com que aquelle Povo contribuía para criados e seguidos por esses tribunais
abstrata), era uniformizar entendimen- o dote de Inglaterra e paz de Hollanda (como veremos oportunamente), em
tos jurídicos dissidentes dos tribunais. (ANDRADE E SILVA, 1859, p. 235). um movimento que atingiu, também, as
A forma e o conteúdo dos assentos O segundo, foi encontrado no ar- demais Relações (Goa e Rio de Janeiro).
demonstram que não há uma indicação quivo de códices do Arquivo Histórico A prática de emitir assentos, que aca-
precisa dos casos nos quais a controvér- Ultramarino, em Portugal, e conforme bava por usurpar a competência atribu-
sia se originou. Há, apenas, a indicação do nos demonstra Marcus Souza, trata-se de ída a tais tribunais, teve seu fim com a
texto das Ordenações (ou outro dispositi- um documento oficial manuscrito com edição da lei de 18 de agosto de 1769,
vo passível de interpretação) para, na se- o traslado de alguns assentos tomados conhecida como Lei da Boa Razão. Esse
quência, expor-se a interpretação adotada pela Relação do Rio de Janeiro até 1752 corpo legislativo gozava de muito res-
e indicar o resultado da votação (maioria (um ano após a criação da Relação peito e autoridade, pois representava “o
ou unanimidade). Ao firmar a tese a ser daquela Província), fato esse que com- dogma supremo da atividade interpreta-
seguida futuramente, uniformizando o prova a existência de um livro específi- tiva e integrativa”, e teve, como uma de
entendimento do tribunal, utilizava-se da co para o registro dos assentos que vies- suas razões, impedir a perpetração do
técnica prevista no texto das Ordenações, sem a ser tomados na Relação do Rio de movimento criativo de assentos por par-
fazendo constar ao final a expressão “para Janeiro (SOUZA, 2014, p. 307). te das Relações.
não vir isto mais em dúvida”.
Qualquer que fossem as caracterís- A prática de emitir assentos, que acabava por usurpar a
ticas assumidas (interpretativos ou de competência atribuída a tais tribunais, teve seu fim
uniformização), os assentos não eram
imutáveis, podendo ser derrogados pelo com a edição da lei de 18 de agosto de 1769,
Rei ou superados por um novo assento, conhecida como Lei da Boa Razão.
demonstrando que, já no Direito antigo,
com as particularidades da época, as téc- E complementa Marcus Souza dizen- A Lei da Boa Razão conferiu autori-
nicas de aplicação (no caso, a supera- do que, das seis anotações constantes no dade exclusiva à Casa da Suplicação, que
ção) dos precedentes judiciais já existiam documento, três delas são relevantes e se era o tribunal supremo do Reino, para
e faziam parte do cotidiano forense. tratam de assentos efetivamente tomados emitir assentos. Com isso, os assentos 95
Especificamente, com relação ao pela Relação do Rio de Janeiro: a primei- das Relações somente viriam adquirir
Brasil, há notícia da emissão de assen- ra delas data de 29 de julho de 1752 e valor normativo e vinculativo se fossem
tos durante o período colonial, seja pela se refere à dúvida referente às assinatu- confirmados pela Suplicação. A unifica-
Relação da Bahia, seja pela Relação do Rio ras (os salários) dos desembargadores ção da fonte produtora e legitimadora
de Janeiro. Mário Júlio de Almeida Costa (discute a interpretação do Tit. V, §68 do de assentos na Casa de Suplicação, para
(2007, p. 2007) afirma que os desembar- Regimento da Relação para o fim de es- além de frear a iniciativa “legislativa” das
gadores da Relação da Bahia (assim como tipular o pagamento dos desembargado- Relações, auxiliou a erradicar a existência
das demais Relações criadas no Ultramar), res da Relação), a segunda data de 2 de de assentos com conteúdo contraditório
proferiam assentos normativos, embora setembro de 1752, e trata da dúvida re- no período colonial.
nenhum texto legal lhes outorgasse essa ferente à possibilidade de os desembar- Vale dizer, todavia, que a utilização
faculdade, que era, oficialmente, atribuída gadores da nova Relação que tivessem dos assentos como técnica decisória
apenas à Casa de Suplicação. E para de- atuado ou se manifestado, no tempo em adentrou a fase imperial brasileira, o que
monstrar a utilização dos assentos como que atuavam na Relação da Bahia e a se comprova por força de citação biblio-
efetiva metodologia decisória colonial, terceira se refere a um assento referente gráfica indicando a produção de assento
trazemos à colação dois casos, cada um à dúvida sobre a interpretação do Tit. VIII, em 26 de fevereiro de 1825, pela Casa
oriundo das Relações em solo brasileiro §94 do Regimento da Relação do Rio de de Suplicação do Brasil. Nos anais do
Relação da Bahia. Janeiro (SOUZA, 2014, p. 307-308). Senado do Império do Brasil consta que,
O primeiro, referente à Relação da Esses exemplos são capazes de de- na sessão de 1838 a comissão, para dar
Bahia, foi encontrado em doutrina espe- monstrar que, utilizando-se – por usurpa- seu parecer, requereu que, por interme-
cífica sobre o tema. A existência do assen- ção – da mesma competência atribuída à dio do ministerio da justiça, se requisi-
to, nesse caso, foi descoberta de forma Casa de Suplicação (em um movimento tasse ao governo o assento da extinta
indireta, ou seja, não pela consulta direta iniciado pela Relação do Porto que, mes- casa da suplicação do Rio de Janeiro
no livro de assentos ou outro documento mo sendo subordinada à Suplicação, en- de 26 de fevereiro de 1825, a respeito
oficial emitido pelo próprio Tribunal da tendeu ser competente para emitir as- da autoridade que depois da sua crea-
Bahia, mas sim, pela localização de um sentos), a Relação Ultramarina da Bahia ção tinhão no Brasil os assentos da casa
Alvará Real emitido para executar o con- (e posteriormente a Relação do Rio de de supplicação de Lisboa (ANNAES DO
teúdo do assento. Trata-se do Alvará Real Janeiro) passou a adotar a metodologia SENADO, 1867, p. 126).
de 1 de fevereiro de 1690, que determi- dos assentos para a solução de proble- Entretanto, o novo regime constitu-
nava para que o Thesoureiro Geral da- mas interpretativos e de dissidências ju- cional, imposto em 1824, notoriamente

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de raízes liberais, promovedor da separação de poderes e da sua ligação a um costume judiciário sobre a prática processual
segurança jurídica, praticamente inviabilizou, por algumas déca- de um determinado tribunal superior. A distinção entre praxe
das, a prática dos assentos em solo brasileiro. À época, como já decisória e a formação do estilo prende-se com a natureza
analisamos, competia aos tribunais, somente, a estrita aplicação do estilo como fonte de direito, isto é, com a obrigatoriedade
da lei, não cabendo a função de interpretar e desvendar a volun- conferida a esta prática uniforme para a instituição judiciária.
tas legis, sob pena de usurpação do poder Legislativo. Neste sentido, o estilo constitui uma espécie de costume.
Tal quadro permaneceu no Brasil até que o Decreto 738 de Essa representação normativa, baseada na reiteração de
1850, que regulamentou os Tribunais do Comércio e os pro- usos e tarefas habituais do cotidiano interna corporis dos tribu-
cessos de “quebra”, definiu, em seu art. 13, que se tomasse nais, é decorrente do reconhecimento de um modo de julgar
assento sempre que os Membros de algum dos Tribunaes do em determinado sentido. Sua validade como fonte jurídica era
Commercio se não puderem accordar sobre a intelligencia de notória. Inclusive, no período de mutações pombalinas, força-
algum Artigo do Codigo, Leis, Regulamentos, lnstrucções ou das pela Lei da Boa Razão e a busca pela modernização e se-
assentos commerciaes; ouvindo-se previamente a opinião de gurança da ordem jurídica portuguesa, os estilos encontraram
pessoas entendidas na materia, e consultando-se os outros guarida no seu reduto máximo: a Casa de Suplicação.
Tribunaes do Commercio. Estes assentos, sendo tomados com A exemplo, o assento de 23 de março de 1786, que ficou
accordo unanime dos referidos Tribunaes, obrigarão a todos conhecido como “assento praxístico” dispôs, expressamente,
os seus Membros, em quanto o contrario não for determinado que uma determinada interpretação da Ordenação, confirma-
pelo Poder Legislativo. da pela praxe, Estilo de julgar, e decisão de Arestos, que he
Essa curiosa atribuição funcional dos Tribunais do Comércio o melhor interprete das Leis, e seguida universalmente dos
para emitir assentos relativos às matérias de sua competência Doutores do Reino, deve ella servir de regular os casos ocor-
permaneceu em vigor até a publicação do Decreto 2.684, de rente no Foro (MARCOS, 2006, p. 257-260).
23 de outubro de 1875, que implantou e atribuiu ao Supremo Essa passagem demonstra que a metodologia de aplicação
Tribunal de Justiça (antecessor do Supremo Tribunal Federal) a do Direito voltada à prática do foro e à realidade do cotidiano
função de tomar assentos. forense era fonte obrigatória, pois retratava um modo de apli-
O instituto dos assentos, com tal denominação, deixou de cação e de individualização das regras processuais nos antigos
existir em solo brasileiro decorrido apenas 13 anos após a edi- tribunais portugueses.
ção do Decreto 2.684, tendo em vista o início do período repu- E os estilos, que deveriam ser observados nos tribunais, tam-
96 blicano e a superveniência da nova ordem constitucional, que, bém deveriam ser pelos juízes singulares, escrivães e demais ofi-
influenciada pelos ditames liberais, não recepcionou diretamen- ciais do Juízo, incluindo os foros extrajudiciais. Disso advém sua
te essa fonte jurídica no ordenamento brasileiro. importância como elemento do sistema precedentalista antigo:
Pelo que foi exposto, entendemos que a criação e utilização sua observância era obrigatória, emitindo efeitos vinculativos ver-
de assentos pelos tribunais ultramarinos, primeiro, pela Relação tical e horizontal, representando uma continuidade decisória, ou
da Bahia, seguido da Relação do Rio de Janeiro e da Casa de seja, um “costume judiciário” ao qual a praxe e a doutrina atribuí-
Suplicação do Brasil, demonstra que o produto da função de- am caráter vinculante para regular os feitos do Foro.
cisória dos tribunais, mesmo que sobre questões abstratas de O fato de ser uma fonte estritamente ligada à prática, aca-
interpretação, sem lide originária, serviam como guia para deci- bava por lhe conferir a característica de preencher as lacunas
sões futuras em casos semelhantes, vinculando seus membros existentes nas regras processuais das Ordenações. Assim, na
com força de lei e aproximando o antigo modelo brasileiro a um falta de norma processual específica sobre determinado pro-
“microssistema de precedentes judiciais”. cedimento, a própria organização interna dos tribunais régios
A revelação dessa importante parte da historiografia jurídica definia a regra a ser adotada. Por isso, “estilo e costume seriam,
luso-brasileira não para por aqui. É momento de analisarmos ambos, fontes de direito não escrito, introduzido pelo uso: a dis-
outro instituto vinculado à metodologia precedentalista com ori- tingui-los, estaria o facto de o estilo ser um uso introduzido por
gem no Direito antigo. Seguimos, agora, com os estilos. juiz, enquanto o costume teria como fundamento a conduta de
toda ou parte da comunidade” (SILVA, 2011, p. 379).
2.3 OS ESTILOS É possível perceber que a definição do conceito de stylus
Trata-se de espécie de fonte do antigo Direito Português, se aproxima àquela atual de jurisprudência constante (JUSTO,
com ocorrência inicial anterior à segunda metade do séc. XIII, 2001, p. 4), sendo que, para uma corrente, o estilo abrange
e derivada do gênero costumes. Os estilos (ou stylus curiae) somente a ordem do processo, e para outra, abrange a pró-
podem ser conceituados como um costume judiciário, ou seja, pria decisão (SILVA, 2011, p. 384). Ou seja, para alguns au-
a solidificação e concretização de uma prática procedimental tores, os estilos seriam a espécie de costume que trataria do
reiterada nos tribunais; o modo de se construir a decisão, reve- Direito processual, para outros, o próprio conteúdo da decisão
lando uma ideologia do processo judiciário. judicial. Detalhadamente, o costume resultava da conduta da
Na lição de Barbas Homem (2003, p. 297), Por stylus curiae colectividade, ao passo que o estilo seria introduzido pela prá-
designa-se a praxe de julgar de forma uniforme e constante tica de entidades públicas, em especial de órgãos judiciais.
dos tribunais superiores. Fonte do direito medieval e não ape- Segundo outra corrente, que se baseava na matéria discipli-
nas uma fonte renascentista [...], os estilos vêm definidos pelos nada, os estilos circunscreviam-se aos aspectos de processo
juristas portugueses dos séculos XVI a XIX precisamente pela (praxe de julgar), deles se autonomizando os costumes, em

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sentido próprio, de direito substantivo, tica pretoriana somente ganhava eficácia luição dos estilos nos assentos da Casa
que pudessem surgir no âmbito do tri- ad futurum quando atingia contornos de de Suplicação retirava qualquer impor-
bunal (conteúdo da decisão). Entre nós, constância e uniformidade. Assim, mes- tância com relação ao lapso prescritivo
o conceito de estilo adquiriu o sentido mo diante das divergências doutrinárias, (praescriptio) de sua aplicação, que an-
generalizado de jurisprudência unifor- nos filiamos à linha doutrinária que sepa- teriormente era de 10 anos, dado que,
me e constante dos tribunais superiores ra ambos os institutos. “enquanto os estilos da corte não fos-
(COSTA, 2007, p. 305). Para nós, o estilo tem maior relação sem confirmados por assentos, não exi-
Essa celeuma a respeito do tema se com o uso, uma prática procedimental biam obrigatoriedade jurídica alguma”
deve, ao que indica a historiografia, à adotada por um tribunal, inserida pelo (MARCOS, 2006, p. 276).
afirmação de Bártolo, segundo a qual os próprio Poder Judiciário, e que não Dito isso, importante salientar que
estilos apenas poderiam referir-se à or- pode ser introduzido por lei, pois, ha- a produção de estilos não ficou restrita
dem do processo, nunca sobre o Direito vendo lei, deixa de ser um estilo e tor- a Portugal. Em terrae brasilis também
substancial desta própria decisão. Barbas na-se um preceito legal; já o costume houve o reconhecimento desse instituto
Homem (2003, p. 298-299) resume bem advém da comunidade e expressa um como importante fonte do Direito, pois,
essa discussão, quando afirma que na atuar num determinado sentido, fora ainda que a Carta Real de 16 de junho
elaboração doutrinária da escola dos co- dos domínios judiciais, ainda que por de 1609 tivesse ordenado a observação
mentadores, os estilos distinguiam-se do ele possa ser reconhecido (neste caso, vinculante, apenas, dos Estilos da Casa
poder normativo do magistrado e do cos- não como prática processual, mas como do Porto à da Suplicação em quanto fo-
tume; na lição de Bártolo distingue-se en- prática comunitária), servindo como rem applicaveis, a prática de se observar
tre o estilo, costume judiciário que respei- conteúdo de uma decisão judicial. e preservar os bons estilos estendeu-se
ta à ordem do processo, e o costume em Aliás, tanto as Ordenações Manuelinas aos tribunais ultramarinos.
sentido próprio, que respeita à decisão. (Liv. II, Tit. V) quanto as Filipinas (Liv. III, Tit. É o que demonstra o item 13, do
O autor ainda aponta a existência de LXIV) referem-se ao estilo e ao costume Título I, do Regimento da Relação do
outro fundamento para a lição de Bártolo, como institutos diferentes, empregando Rio de Janeiro, de 1751, quando dispôs
baseado na exclusividade, pelos tribunais a partícula alternativa “ou” para defini-las que, na forma dos despachos, e dos
superiores (que contam apenas com ma- como fontes autônomas (estillo de nossa processos, guardaraõ inteiramente as
gistrados vitalícios), de emitir éditos que Corte ou custume em os ditos Regnos, ou Ordenaçoens do Reyno, acomodan-
digam respeito não apenas à solução de em cada hua parte deles longamente usa- do-se porém sempre os estylos pra- 97
casos (ius dicere), mas também, da for- do, e tal que por Direito se deva guardar). ticados na Casa de Supplicaçaõ, em
ma de edição do Direito (ius edicere); ou Existe diferença, portanto, entre o es- quanto se puderem aplicar ao uso do
seja, o ius dicere (jurisdição), relativo à tilo e a decisão que reconhece e aplica o paiz, se por este Regimento se não dis-
solução de casos concretos, era exercido estilo (seja um aresto ou uma sentença), puser o contrario (p. 4).
tanto pelos juízes inferiores (temporá- tal como existe diferença entre preceden- Extraímos, ainda, um exemplo con-
rios) quanto superiores (vitalícios), mas te e jurisprudência dominante. Ambos, creto acerca do teor dos estilos pratica-
a construção normativa (norma geral e porém, fazem parte do mesmo Sistema dos pelos tribunais brasileiros, da obra
abstrata), por meio de um édito vincu- de Justiça. São faces da mesma moeda: a de Vanguerve Cabral (1730, p. 6). Nesse
lante e perpétuo, era atribuição exclusiva “cara” é processual; a “coroa” conteúdo estilo, firma-se a prática, no Brasil, so-
dos magistrados vitalícios, dos tribunais de Direito Processual. bre a citação (ato inicial do processo),
superiores (HOMEM, 2003, p. 298-299). Importante destaque deve ser feito à luz de estilo existente na Relação do
A singela aproximação dogmática sobre a aplicação dos estilos em terras Porto, in verbis: No Brazil o vi praticar.
que entendemos haver entre costume e portuguesas após a edição da Lei da Boa Esta pratica poderá ter lugar pela Ord.
estilo é a de que ambos não eram escri- Razão (1769). O §14 do texto pombali- Lib. 3, tit. 1, §1, que falla nos arrabaldes:
tos, e por isso, somente tinham reconhe- no, ao promover a filtragem dessa fon- que se as Citações se hão de fazer no
cimento por meio de seu uso reiterado. te de acordo com a nova ordem jurídica, mesmo lugar, ou huma legoa ao redor
No mais, em nosso sentir, o trato dado concluiu que seu uso excessivo e desar- delle, não he necessário despacho do
pela doutrina confere singularidade e au- razoado tinha se tornado pretexto para Ministro, mais do que a Parte requerer
tonomia a cada um dos institutos. Veja-se a fraude à lei, por isso, declarou que os ao Official que cite a N. para tal acção,
por exemplo que, com relação ao estilo, estylos da Côrte devem ser somente os na qual lhe quer pedir tal quantia, ou
a práxis estabeleceu três requisitos con- que se acharem estabelecidos, e appro- cousa, & fazendo a Citação, lhe passa
juntos para o seu reconhecimento: não vados pelos sobreditos Assentos na Casa Certidão, para a accusar na Audiência,
devia ser contra legem, devia ser obser- da Supplicação [...]. para que o Reo foy citado, Ord. liv. 3, tit.
vado durante 10 anos [ou seja, ´prescri- Com isso, ao condicionar a validade 20, §1. No Porto basta pedir ao Escrivaõ
to`] e introduzido, pelo menos, por dois dos estilos à sua confirmação via assento que passe Mandado para citar a Parte,
ou – segundo alguns – três actos, embo- da Suplicação, a Lei da Boa Razão prati- & o Juis o assina.
ra houvesse divergência sobre o número camente promoveu a extinção desse ins- No item seguinte a esta citação,
mínimo de atos a ser observado (SILVA, tituto como fonte autônoma do Direito Cabral (1730, p. 6) faz menção de que
2011, p. 384). Portanto, determinada prá- (MARCOS, 2006, p. 276). E não só: a di- promoveu consulta à Relação da Bahia

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Rodrigo de Souza Gonçalves

sobre a questão, que lhe respondeu determinando que usasse te o campo processual do território (técnica).
os estylos, que nesta materia achey, em Carta de 19 de Mayo Temas como a vinculatividade das decisões da Casa de
de 1704, para a solução de eventual dúvida. Suplicação, a distinção entre aresto e jurisprudência, a função
Nota-se com essa norma que os modos de proceder, no de uniformização do ordenamento jurídico promovida pelos
Brasil e em Portugal, eram diversos, coexistindo estilos de vá- tribunais (por meio dos assentos) e o fato de se considerar a
rias Relações com conteúdos divergentes, situação que, certa- repetição de costumes judiciários como metodologia decisória,
mente, pode ser justificada, tendo em vista as peculiaridades indica que o Direito lusitano antigo já adotava mecanismos pro-
da colônia brasileira, sobretudo relativas à citação em local cessuais próximos de uma metodologia precedentalista, tornan-
diverso ou Comarca contígua (dada a extensão do território), do-se, assim, um Sistema de Justiça preocupado com a unifor-
como parece retratar o referido estilo. midade de tratamento dos casos concretos.
Esse apontamento historiográfico nos faz perceber Por isso, é possível afirmar que o Direito luso-brasileiro
quão importante foram os estilos, como agente de integra- tem, há muito, a jurisprudência como produto e método,
ção das lacunas e uniformização do sistema e fixação da e que essa tradição foi passada para o Brasil desde a fase
prática processual específica a atender às necessidades dos colonial, com influência direta do exercício do poder juris-
tribunais ultramarinos. dicional em solo brasileiro, por meio da Relação da Bahia
Cabe salientar que o Brasil parece não ter sofrido os (1609), passando pelo período imperial – com a transfor-
efeitos direitos da Lei da Boa Razão (1769), que condicio- mação da Relação do Rio de Janeiro em Casa da Suplicação
nou a validade de um estilo à sua confirmação via assen- do Brasil – até desaguar no período republicano.
to da Casa de Suplicação. Ou seja, ainda que a promul- Vimos que o sistema de precedentes e toda a metodo-
gação dessa Lei tenha feito ruir, de um só golpe, todo o logia que lhe cerca, ocupou lugar de destaque na organi-
edifício do direito subsidiário herdado do Código Filipino zação das fontes normativas brasileiras. Considerando que
(MARCOS, 2006, p. 153), o impacto no Brasil foi ameniza- a composição dos litígios teve de se aproximar dos usos
do por uma produção legislativa que reconheceu autono- e costumes locais, produzindo um sistema normativo, se
mia dos estilos como fonte do Direito, permitindo a espe- não autônomo, com traços bem particulares, implemen-
cialização e desenvolvimento de nossa Justiça. tou-se desde muito cedo na mesma metodologia utilizada
Dada, então, sua importância prática, o uso dos estilos foi em Portugal, que utilizava de técnicas e institutos (arestos,
permitido no Brasil e adentrou ao período imperial, por meio do assentos e estilos) que condicionam e são condicionantes
98 Decreto 737 de 1850, primeira disposição legal sobre matéria de uma metodologia própria de julgar.
processual genuinamente brasileira, que determinava, em seu Sabemos que não pode haver uma história do passado
art. 232, que a sentença deve ser clara, summariando o Juiz o tal como efectivamente ocorreu; pode apenas haver interpre-
pedido e a contestação com os fundamentos respectivos, mo- tações históricas, e nenhuma delas definitiva; e cada geração
tivando com precisão o seu julgado, e declarando sob sua res- tem direito de arquitectar a sua (POPPER, 1993, p. 263), mas
ponsabilidade a lei, uso ou estylo em que se funda. o estudo crítico e problematizado da História do Direito Luso-
Por refletirem a jurisprudência uniforme e constante dos tri- brasileiro fornece elementos para que o processualista moder-
bunais sobre a praxe de julgar, os estilos constituíam importan- no conheça os institutos que ajudaram a construir, desde a pré-
te instrumento do Sistema de Justiça luso-brasileiro. Sobretudo -modernidade, o sistema de decisões vinculantes incorporado
no Direito brasileiro, pois, à falta de normas específicas para a atualmente pelo CPC/15.
realidade de terrae brasilis, os estilos se impunham tanto pela Essa codificação, como demonstramos, foi o ápice de uma
autoridade de sua fonte (tribunais), quanto pela especificidade linha evolutiva que se iniciou ainda no período colonial. É cer-
de seu conteúdo e pela particularização territorial, podendo ser to que suas bases estão lá, ademais, nos alertou Pontes de
chamada de “jurisprudência geográfica” (SOUZA, 2014, p. 305). Miranda que não se pode estudar o Direito no Brasil desde as
Os estilos da Relação da Bahia e Rio de Janeiro, bem como, sementes, pois nasceu já em galho de planta trazido pelo colo-
as disposições legais específicas sobre o instituto, demonstram nizador português (1981, p. 27).
que a mecânica antiga de respeito aos precedentes e práticas Nossa conclusão, portanto, é que o processualista brasileiro
cotidianas do foro contava com mecanismo particular, que mui- não deve afirmar que o sistema vinculante do CPC/2015 é resul-
to auxiliava a uniformização do ordenamento e a autonomia da tado de um movimento iniciado somente nos Novecentos. Ao
praxe judiciária em solo brasileiro. contrário, esse movimento foi iniciado já no período colonial,
com a instalação da Relação da Bahia, em 1609, e o início da
3 CONCLUSÃO burocracia judicial em solo brasileiro.
Utilizando o método crítico de desvelar o passado para cons- E a ciência processual não pode fechar os olhos para esse
truir o futuro, demonstramos que não foi apenas a partir do perí- tipo de constatação, pois, quanto mais próximos estivermos de
odo republicano que o Direito brasileiro passou a valorizar os pre- um fenômeno histórico, iluminando-o com o facho de luz da
cedentes judiciais, como produto e técnica de solução de casos e atualidade, poderemos construir uma ciência que respeita sua
administração judiciária. Desde a instalação da Relação da Bahia, genética e, partindo do passado – dos erros e acertos já pratica-
ainda no período colonial, passou-se a produzir Direito com as dos –, poderemos melhor entender as funções e características
particularidades da sociedade brasileira (conteúdo), e que, am- dos seus objetos de investigação, fato que auxiliará no aperfei-
plamente iluminado pelas fontes lusitanas, influenciou diretamen- çoamento e na otimização da Justiça Civil brasileira.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 87-99, jan./jul. 2020


Rodrigo de Souza Gonçalves

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E NS I N O J U RÍDIC O
Marcio Lázaro Pinto

100 A DOCÊNCIA JURÍDICA NO BRASIL: A influência da


prática no exercício da cátedra sem formação didático-
pedagógica específica

LAW TEACHING IN BRAZIL: the influence of practice on professorship


with no specific pedagogical-didactic training
Marcio Lázaro Pinto

RESUMO ABSTRACT
Aborda a necessidade premente de mudança na concepção da This text addresses the urgent need for a change in the
docência jurídica no Brasil, com a análise de conteúdo da litera- concept of law teaching in Brazil, by assessing the content
tura acadêmica e especializada sobre o tema. of the academic and specialized literature on the topic. It
Enfoca como caminho viável a esta mudança a formação didáti- highlights as a viable path to this transition the pedagogical-
co-pedagógica do docente da área jurídica. didactic training for law teachers.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Ensino Jurídico; Educação Jurídica; Direito – formação docente em; Law teaching; legal education; Law – teacher training in;
Docência Jurídica; Pedagogia Jurídica; Pós-Graduação Jurídica. teacher of law; legal Pedagogy; post-graduation in law.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 100-106, jan./jul. 2020


Marcio Lázaro Pinto

1 INTRODUÇÃO tado é concernente à grade curricular.


Nas últimas décadas assistimos no cenário educacional Os cursos jurídicos brasileiros insistem em manter o foco
brasileiro uma grande degradação na qualidade do ensino nas disciplinas profissionalizantes3 eivadas de normatividade e
universitário. tecnicismo, sob a áurea? de transmissão de saber jurídico, des-
Enfrenta-se recorrentemente a dicotomia entre o nível aca- pojando-se de qualquer comprometimento com os objetivos da
dêmico e a massificação da universidade1, sem que respostas prática educativa.
concretas e objetivas sejam dadas à sociedade, com inegáveis Dessa forma, contribuem para o descaso, o desânimo e o
reflexos negativos no mercado de trabalho. Importante ressaltar, mecanicismo do corpo discente. Perceba-se que, neste cená-
formamos mal os nossos alunos e não os capacitamos para o rio, é um curso universitário para “se fazer passar no exame da
exercício laboral digno, com graves reflexos, além dos educacio- OAB” e em uma infindável modalidade de concursos públicos.
nais, nas esferas psíquica e econômica destes. Foram abandonadas as disciplinas propedêuticas, tais como,
Os cursos de Direito não fogem à regra. Cativos de um mo- Filosofia4, Sociologia, Ética e Hermenêutica5 Jurídicas, que bem
delo legalista e dogmático, surgidos desde a implantação em São ministradas e complementadas com a leitura atenta das princi-
Paulo e Olinda a partir de 1828, com a finalidade precípua de pais obras, dariam um cabedal6 maior ao aluno, no sentido de
atender às exigências culturais e ideológicas e as necessidades da melhor “pensar o Direito7”.
burocracia de um Estado Nacional emergente, privilegiam desde Ora, não se pode admitir que um aluno que decore parte
lá a experiência adquirida na atividade cotidiana de magistrados, dos códigos e domine a posição doutrinária dos tribunais supe-
promotores, procuradores, advogados e delegados de polícia. riores possa ser considerado, ao final do curso, um profissional
Percebe-se que um ensino superior2 que está associado a um apto a exercer a sua profissão com excelência. E o profissional
grau científico e tecnológico de excelência, que tem como mister reflexivo que é uma das metas preconizadas pelo ensino supe-
desenvolver nos seus alunos um senso crítico, humanístico e poli- rior8? Há que se definir qual é o profissional que se deseja for- 101
disciplinar, não pode nem deve ficar refém de cessão de habilida- mar e que resulte na conformação dos anseios da sociedade.
des técnicas, como se fosse possível se ensinar Direito por osmose. Acrescente-se a este fato, a fragmentação do Direito em
É óbvio que a arregimentação de profissionais de inegável segmentos estanques, a denominada hiperespecialização
saber jurídico no mercado de trabalho confere às Faculdades de do ensino, que, em primeiro lugar, afasta-o dos cânones
Direito um status distintivo, mais valia e um atrativo mercadológico da Ciência Social Aplicada9 em que ele é parte, ao impedir
de grande monta, sobretudo as oriundas da iniciativa privada, mas uma percepção dos pleitos globais e dos essenciais, termi-
isto não é tudo. É preciso pensar no aluno e na aprendizagem. nando por compartimentar os saberes e dificultando sobre-
Nesse sentido, converge Masetto (2013, p. 109): Grande maneira a sua contextualização.
parte do corpo docente dos cursos superiores é recrutada entre Neste momento histórico, é imenso o desafio de ensinar
profissionais da área, e o valor que agrega aos cursos é indis- Direito no Brasil.
cutível, mas trata-se de ‘especialistas’, não de profissionais cuja
identidade é ser professor. 2 IDENTIDADE E SABERES DOCENTES
A estrutura engendrada impede que um curso de Direito Partimos do pressuposto de que a identidade do professor
forme um professor de Direito, mas, possibilita a formação, no é construída na prática contínua de sua atividade. É ela decor-
mais das vezes deficiente, de um profissional tendente a seguir rente de seus valores, ideais, referências, dúvidas, escolhas, ex-
uma carreira jurídica. periências pessoais, institucionais e sociais. Essa se engendra no
Entendemos que este modelo está esgotado, e os resulta- coletivo, vai se formando. paulatinamente, no embate entre as
dos negativos são colhidos a cada exame da OAB: uma grande perspectivas individuais e coletivas, entre o pessoal e o social,
massa de bacharéis não consegue a aprovação que lhes tornaria entre o subjetivo e o objetivo; e em uma atmosfera evolucionis-
aptos a exercer a profissão, inicialmente, de advogado. ta, entre o que se é agora e o que se virá a ser.
Desse modo, Nesse diapasão, não é difícil afirmar a neces- É convergente, neste aspecto, a posição de Arroyo (2013,
sidade de que o ensino jurídico brasileiro precisa ser (re) pen- p. 24): O lugar onde marcamos nossa formação é no traba-
sado. Na hipótese, porém, o (re) pensar não significa encontrar lho. Nós aprendemos e vamos conformando nossas identida-
uma forma de (re) adequá-lo, mas antes transformá-lo. (Re) des docentes na própria docência, no cotidiano das salas de
pensar o ensino jurídico é tratar do futuro do país, é preparar aula, na prática de preparar, ensinar nossa matéria. A discipli-
pessoas para a pós-modernidade, para enfrentar os novos de- na que lecionamos e em que nos licenciamos é referente de
safios que exsurgirão de uma sociedade cada vez mais comple- nossa identidade profissional.
xa e global. (CAMPELO FILHO, 2015). Se considerarmos que a identidade docente é um processo
Defendemos, também, que um dos problemas a ser enfren- subjetivo e contínuo e que o constante burilamento é o resul-

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 100-106, jan./jul. 2020


Marcio Lázaro Pinto

tado da atividade de estudos e pesquisas testados, adotados e uma formação humanista, mais adequada às suas atividades.
modificados diuturnamente no desenrolar da profissão exercida Conclui-se, à primeira vista, que há uma causa estrutural nos
na lida, concluir-se-á que esta identidade é de uma tez única, cursos que determina a baixa qualidade do nível científico e cul-
ela é própria de cada professor, e o torna protagonista de seu tural da educação jurídica no país, com consequências nefastas às
próprio destino profissional. carreiras jurídicas indistintamente e à sociedade como um todo.
Nesta acepção, assim leciona Silva (2006, p. 61): Para Berger Referimo-nos ao modelo normativo11 e tecnicista de difusão
e Luckmann (1985), a identidade10 se configura como um ele- do saber jurídico, considerado o único modelo de ensino do
mento-chave da subjetividade e da sociedade, formando-se, Direito, desde os anos de 1828, que tem como objetivo princi-
sendo remodelada através dos processos e relações sociais. As pal ensinar o exercício das profissões jurídicas12 e, mais moder-
identidades são singulares ao sujeito e produzidas a partir de namente, preparar os alunos para o exame da OAB13 e para os
interações do indivíduo, da consciência e da estrutura social na concursos públicos.
qual ele está inserido, sendo a “identidade um fenômeno que Outras causas se acham ligadas à questão estrutural, dentre
deriva da dialética entre um indivíduo e a sociedade” (p. 230). elas destacamos:
A par deste raciocínio, haveremos de considerar o papel pre- a) baixo nível de ensino secundário14;
ponderante da Universidade na formação do Professor, sobre- b) massificação do ensino;
tudo na graduação, e na higidez de sua identidade profissional. c) abertura indiscriminada das faculdades de Direito;
d) ausência de um programa de formação docente15; e
[...] o saber docente é constituído de um saber e) aulas enfadonhas16 e distante da realidade imediata do aluno.
empírico, experimentado e forjado por O estudo pormenorizado da situação atual da docência ju-
rídica no Brasil aponta para atuação do professor17 em primeiro
pressupostos ligados ao coletivo. São estes
plano — postura, formação, atualização —, para o desempenho
saberes que marcam indelevelmente a didática das coordenadorias de ensino no âmbito da graduação ou da
peculiar do professor, ao longo da carreira [...] pós-graduação, para o papel da faculdade enquanto instituição
de ensino e permissionária de um serviço público.
É necessário enfatizar que muitos dos cursos universitá- Para Sanches e Soares (2014, p. 58):
rios primam por oferecer conhecimentos teórico-práticos sem Existe, em quase todo segmento acadêmico da educação
vinculação com a atividade docente. O curso de Direito é um jurídica, uma indefinição quanto ás reais funções e estratégias
102 exemplo desta nefasta prática. de formação de profissionais docentes, tendo como resultado,
Ao se tornar professor, o profissional vê-se despojado dos e por isso mesmo, a perpetuação do profissional tradicional,
conhecimentos básicos para o exercício de sua atividade. preocupado com o repasse de informações e com a forma-
Nesta conjuntura, emerge a necessidade intrínseca da ção predominantemente técnica de seus alunos, sem a pre-
reflexão de seus saberes caminhando lado a lado com a prá- ocupação de ser um agente de transformação social.
tica e, com o intuito de encaminhá-los segundo as necessi- Por ser o Direito uma consequência natural de fatos so-
dades e deficiências de seus alunos, tendo em vista, ainda, a ciais, requer de seus profissionais, dentre eles o docente uni-
realidade em que vive. versitário, habilidade intelectual pontuada pela criatividade,
Na mesma esfera de raciocínio, ousamos afirmar que o sa- poder de reflexão, inovação e articulação quanto á matéria
ber docente é constituído de um saber empírico, experimen- a ser apresentada.
tado e forjado por pressupostos ligados ao coletivo. São estes A limitada visão de reproduzir o conhecimento existen-
saberes que marcam indelevelmente a didática peculiar do pro- te, que no âmbito jurídico redunda num ensino legalista,
fessor, ao longo da carreira, resumida no “saber ensinar”. alienante e descompassado com as transformações sociais
— cada vez mais céleres e profundas — já não satisfaz o an-
3 OS CURSOS JURÍDICOS DO BRASIL seio da sociedade, porquanto constitui em fator de estagna-
Não pode passar despercebido que os conceitos retro ex- ção social, correspondendo a um inevitável retrocesso na linha
planados passam ao largo das preocupações e metas na elabo- evolutiva da própria sociedade.
ração de um curso jurídico no Brasil. Certamente, as práticas realizadas no Curso de Direito
Há que se entender que urge uma reforma da maneira como não podem redundar num conhecimento jurídico abstra-
o Direito é ensinado e que é de extrema urgência a modificação to18, dogmático, a- histórico, ineficiente, desconectado da
das práticas jurídicas, bem como a convivência entre a teoria e a realidade social na qual será utilizado, mas, sim, num co-
prática, entre a Faculdade, a profissão e o mercado de trabalho, nhecimento contextualizado e em consonância com a socie-
e ainda, entre a reflexão acadêmica atenta às constantes mudan- dade concretamente existente, que viabilize as novas práticas
ças da vida hodierna e as institucionais que se fazem necessárias. exigidas pela modernidade e que tenha por atributo principal
Ao nosso sentir, a hora é de readequação do ensino jurídi- a justiça. [grifos nossos]
co brasileiro. Dessa forma, as palavras de ordem são estudo, reflexão,
O nosso raciocínio se conforma na análise dos altos índices criatividade, inovação, contextualização e justiça.
de reprovações que todos os anos experimentam uma grande Pelo exposto, é de compreensão cristalina que enxergamos
massa de bacharéis ao prestar o exame da OAB, nas angústias uma série de deficiências no curso de Direito a serem sanadas e
dos advogados e outros “operadores do Direito”, carentes de desta forma externaremos a nossa posição com o fito de sugerir

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medidas a serem tomadas baseadas na níveis de abstração dos fenômenos jurí- (1995, p. 198). Em nosso “aqui” enxerga-
nossa experiência profissional, nas nos- dicos e refletir sobre os problemas jurídi- mos outros aspectos da beleza da estra-
sas carências intelectuais e na análise de- cos complexos21. da que resolvemos mapear, cujo percur-
tida da bibliografia consultada. São essas, em linhas gerais, nossas so conhecíamos em parte e que, somente
Mantida a coerência de propósitos, a propostas. Não são utópicas. Apontam por causa da caminhada que se fez pos-
nossa postura ante o enfrentamento do caminhos para reformulação das práticas sível, com nossos próprios passos e por
tema edifica-se na proposição de leitu- jurídicas e devem se adequar às possibi- seguirmos as pegadas de outros cami-
ras e atividades que visam oferecer aos lidades de cada Faculdade em particular nhantes, tornou-se visível. Visibilidade
alunos a oportunidade de estudar, pes- e à disponibilidade de cada membro do que pode auxiliar outros caminhantes,
quisar e experimentar as interfaces entre corpo docente. sem desconsiderar os percursos já feitos,
o Direito Positivo, o Direito Natural, as Representam parte dos anseios de mas propondo outras paradas e uma sig-
Ciências Sociais e as teorias formadoras um grande número de estudiosos, pes- nificação mais ampla das trajetórias do-
dos sistemas jurídicos. quisadores e educadores, ao lado de centes, abrindo mão de continuar classi-
Contando com os ensinamentos grande parte dos “operadores do Direito” ficando todos os percursos como sendo
adquiridos no contato objetivo, mas e, por óbvio, supõe um curso com pelo idênticos. (grifos nossos) e uma significa-
profundo, com a Filosofia e Sociologia menos mais dois semestres22. ção mais ampla das trajetórias docentes,
Jurídicas, além do estudo da Ética, da Neste sentido, converge Silva (2017, abrindo mão de continuar classificando
Hermenêutica Jurídica, da Iniciação ao p. 133-134): As propostas podem acon- todos os percursos como sendo idênticos.
Estudo do Direito e do Direito Romano, tecer de acordo com a periodicidade (grifos nossos)
ansiamos desde os primeiros momen- mais adequada a cada instituição de
tos que os alunos tenham contato com ensino e seu respectivo corpo docen- 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
os elementos atinentes aos campos so- te. Não é tarefa fácil devido aos horá- Enfocamos, neste artigo, a perpetua-
ciológicos e antropológicos e se apli- rios de trabalho de cada um. Todavia, ção do modelo legalista e dogmático dos
quem nos debates sobre a natureza do há que se pensar num “movimento que cursos de Direito no Brasil, desde 1828,
Direito, sua formação principiológica e aponta na direção de um lugar de ação, até os dias atuais.
a sua interpretação. interação de construção de conhecimen- Demonstramos que a adoção desta
Entendemos que, desse modo, o to e educação. [...] longe de serem utó- prática tem acarretado a reprovação em
aluno terá o embasamento necessário picas buscam contribuir com as ques- massa dos bacharéis que chegam às por- 103
para melhor aprender e aplicar os co- tões atuais no repensar das práticas tas dos exames da OAB, indicando uma
nhecimentos adquiridos nas chamadas (FAZENDA E SILVA, 2014, p. 20), sempre formação educacional deficiente.
disciplinas profissionalizantes19. levando em consideração a especificida- Apontamos que o professor de
Em um deslocamento sequencial de de cada contexto. Direito se vale da sua experiência ad-
e pelo fato presumido de que o corpo Por meio dessas ações, poderá ser quirida na lide jurídica para ministrar as
discente estará, nesta etapa, à altura de possibilitada uma contínua reflexão so- aulas. Sem o mínimo comprometimento
analisar com profundidade os problemas bre a prática e, a partir dela, mobilizar com as práticas pedagógicas modernas,
sócio- jurídicos, justificar-se-ia o estudo outras ações que contribuirão para o a estrutura curricular jurídica privilegia o
da norma jurídica, a constitucionalização exercício docente, com propostas que derrame de conhecimentos normativos e
do Direito Civil, as Garantias e Direitos contribuam para a construção de co- técnicos, sob a áurea? de transmissão de
Fundamentais e as relações do Direito nhecimento da docência, na docência saber jurídico e impede o aluno carente
com a moral e a política. e também da construção de conheci- das ‘ferramentas’ necessárias para “pen-
Adotar-se-ia o método socrático, mento por parte do aluno, levando-se sar o Direito”.
onde o alunado, previamente, pelas lei- em consideração as expectativas des- Denunciamos o abandono das
turas dos principais autores indicados em ses e suas performances acadêmicas. disciplinas propedêuticas (Filosofia,
ampla bibliografia, construiria seu pró- Enquanto realizávamos esta pesquisa, Sociologia, Ética e Hermenêutica
prio saber, através da reflexão subjetiva e pudemos perceber que há caminhantes Jurídicas) com evidente prejuízo ao alu-
coletiva, com vistas à formação de um ra- que resolvem andar diferente23, aprendem nado, no que tange à compreensão do
ciocínio crítico a partir dos temas propos- a fazer fazendo, ancorados na prática do Direito e sua aplicação.
tos e contextualizados à vida moderna. dia a dia, construindo seu fazer e seu saber Enfatizamos a identidade e saberes
A intervenção do aluno na aula deve- com singularidades que podem (e preci- docentes e o papel preponderante da
rá ser amplificada com a redação de tex- sam) ser compartilhadas, a fim de que haja Universidade na formação do professor.
tos e debates, com a exposição de temas também a construção da identidade docen- Na sequência, tratamos da atividade
e ideias tanto oral quanto escrita e serão te coletiva nos espaços universitários. docente nos cursos jurídicos do Brasil, tra-
atinentes às teses complexas, merecendo Nessa perspectiva, ponderamos so- zendo a nossa preocupação de uma prática
deste críticas pertinentes. bre como veremos o caminho que nos tendente a ensinar o exercício das profis-
O curso objetivará20, dentre outros, fez chegar “aqui”, depois de “aqui” ter- sões jurídicas, tendo como alvo primordial
o desenvolvimento da capacidade do mos chegado e de sabermos como é este o exame da OAB e os concursos públicos.
corpo discente de enfrentar os diversos “aqui” e aquilo de que é capaz? Bauman Aludimos que a causa estrutural do

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7 Nesse sentido, acreditamos que a linha propedêutica adotada pelo Prof. Mi-
insucesso dos cursos jurídicos é o antigo modelo de ensino nor- chael J. Sandel, da Universidade de Harvard, expressa entre outros, no livro
mativista e tecnicista, aliado ao baixo nível do ensino secundá- Justice: What’s the Right Thing to Do?, parece-nos sobejamente adequada
rio, a massificação do ensino em geral, a abertura indiscrimina- para a adoção de novos paradigmas para os cursos de Direito no Brasil.
8 Nesse sentido, a Lei n. 9.394/1996 que estabelece as diretrizes e bases da
da das Faculdades de Direito, a ausência de um programa de educação nacional – Art. 43. A educação superior tem por finalidade:
formação docente, bem como as aulas enfadonhas e distantes I – estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científi-
da realidade do aluno. co e do pensamento reflexivo; II – formar diplomados nas diferentes
áreas de conhecimento, aptos para a inserção em setores profissio-
Após tecermos várias considerações, explanamos a nossa
nais e para a participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e
proposta de mudança na estrutura curricular dos cursos jurídi- colaborar na sua formação contínua; [...] VI – estimular o conhecimento
cos no Brasil e adoção de práticas que intensifiquem a formação dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e re-
adequada do corpo discente visando uma atividade laboral de gionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer
com esta uma relação de reciprocidade;[...]. (grifei)
excelência, um comprometimento com os anseios da sociedade 9 O CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Supe-
e os desígnios do país e da Justiça. rior – estabeleceu que o grupo das Ciências Sociais Aplicadas comporta os
As nossas assertivas são baseadas na nossa experiência pro- nas áreas de Administração, Arquitetura e Urbanismo, Ciências Contábeis,
Ciência da Informação, Comunicação, Desenho Industrial, Demografia, Di-
fissional e no estudo das mais diversas fontes atinentes ao as- reito, Museologia, Planejamento Rural e Urbano e Serviço Social.
sunto, reconhecidas as falhas em nossa formação jurídica. 10 Podemos definir a identidade profissional docente como um processo
O nosso artigo é uma constatação e uma proposta de mudança contínuo, subjetivo, que obedece às trajetórias individuais e sociais, que
tem como possibilidade a construção/desconstrução/reconstrução, atri-
de paradigma tanto do curso em si, como também, na atuação do buindo sentido ao trabalho e centrado na imagem e auto-imagem social
professor de Direito24. Esperamos ter, de alguma forma, contribuído. que se tem da profissão e também legitimado a partir da relação de per-
tencimento a uma determinada profissão, no caso, o Magistério. (SILVA,
2006, p. 76-77)
11 A transmissão do saber jurídico, tendo como paradigma epistemológico
NOTAS o normativismo positivista, parte da concepção autárquica do direito, em
1 A expansão quantitativa da universidade, desacompanhada de medidas que a ciência jurídica se apresenta confinada dentro dos limites dogmáti-
que garantam a qualidade do ensino, acarreta numa deteriorização do cos, cuja dogmática jurídica, enquanto interpretação de normas — e ela-
nível acadêmico, surtindo dois efeitos principais: a neutralização das boração conceitual em torno de normas —, representa o único sistema —
consequências da democratização e a confirmação da tese tecnocrática considerado este como “conjunto de conhecimentos ordenados segundo
que opõe a massificação à qualidade de ensino. Desse modo, conforme princípios” (Kant) ou “uma unidade totalmente coordenada” (Stammler)
Tedesco (1995), estabelece-se uma espécie de círculo vicioso que se au- — que realmente reúne consistência científica no campo do conhecimento
to-alimenta e sugere que a universidade esteja condenada a permanecer jurídico. (MACHADO, 2009, p. 53)
patrimônio de certas elites ou a se transformar numa agência de sociali- 12 [...] é preciso reconhecer que, nos dias atuais, quando se fala em Ciência
104 zação política. (SANCHES; SOARES, 2014, p. 13-14) do Direito, no sentido do estudo que se processa nas Faculdades de Direi-
2 O ensino superior é justamente aquele que possibilita, além das habilidades to, há uma tendência em identificá-la com um tipo de produção técni-
e do desenvolvimento das técnicas profissionais, o pensamento crítico, criati- ca, destinada apenas a atender às necessidades profissionais (o juiz,
vo e contextualizante, acerca da própria técnica e do conhecimento científico o advogado, o promotor) no desempenho imediato de suas funções.
em geral, examinando-lhes a eficácia dos efeitos, bem como os usos políti- Na verdade, nos últimos cem anos, o jurista teórico, pela sua formação
cos, sociais e econômicos que se possa fazer deles. (MACHADO, 2009, p. 51) universitária, foi sendo conduzido a esse tipo de especialização fechada e
3 Referimo-nos às disciplinas, entre outras, de Direito Civil, Processual Civil, formalista. (FERRAZ JÚNIOR, 2016, p. 63) [grifos nossos]
Direito Penal e Processual Penal, mais objetivamente. 13 O direito de exercer a advocacia é dependente da aprovação do egresso
4 O direito ideal, que forma o objeto da filosofia do direito, expressa o que de uma law school no bar examination, que é vulgarmente traduzido por
há de universal na vida histórica e positiva do direito. As próprias solu- exame de ordem, embora sua natureza e suas características sejam bem
ções que negam a existência de um direito ideal, de um critério absoluto diversos do equivalente brasileiro. Cada bar association estadual tem re-
de justiça e se limitam a relevar a infinita variedade das instituições gras próprias para admitir novos advogados a seus quadros. Pré-condição
jurídicas e as avaliações empíricas em matéria de justiça, não podem mínima para se apresentar ao exame é possuir um título de juris doctor.
subtrair-se a uma indagação filosófica sobre o fundamento do direi- Sem o juris doctor, é possível ao titular de um juridical science doctor pres-
to. O contraste entre as exigências ideais e empíricas é o contraste tar o bar examination, o que se torna muito conveniente para estrangeiros.
fundamental da filosofia do direito no seu desenvolvimento histórico. São poucas as universidades americanas que oferecem cursos de prepara-
(CARLETTI, 2000, p. 21) [grifos nossos] ção para o exame de ordem. Existem cursinhos preparatórios (bar review)
5 A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a sistematização dos para o bar examination ou os próprios alunos se organizam para estudar
processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões em grupo em ordem a prestar esse exame.
do Direito. As leis positivas são formuladas em termos gerais; fixam regras, O conteúdo do bar examination é variável de estado para estado. Há al-
consolidam princípios, estabelecem normas, em linguagem clara e precisa, guns exames de caráter interestadual e que permitem a portabilidade de
porém, ampla, sem descer a minúcias. É tarefa primordial do executor a pontos. O bar examination do estado de New York, na versão de 2011,
pesquisa da relação entre o texto abstrato e o caso concreto, entre a compôs-se de questões dissertativas complexas, envolvendo casos práticos
norma jurídica e o fato social, isto é, aplicar o Direito. Para o conseguir, que deveriam ser resolvidos pelos candidatos em matérias como Contra-
se faz mister um trabalho preliminar: descobrir e fixar o sentido verdadeiro tos, Propriedade, Direito Societário, Processo Civil, Responsabilidade Civil,
da regra positiva; e logo depois, o respectivo alcance, a sua extensão. Em Questões Deontológicas, Direito Penal, Direito de Família e Direito das
resumo, o executor extrai da norma tudo o que na mesma se contém: é Sucessões. (RODRIGUES JÚNIOR, 2015) (Parte 24).
o que se chama interpretar, isto é, determinar o sentido e o alcance das 14 Além dessas duas importantes características, o pluralismo na formação e
expressões do Direito. (MAXIMILIANO, 2001, p. 1). [grifei] a baixa normatividade estatal, existe uma terceira que coloca o ensino de
6 De inegável importância está, nessa linha de raciocínio, a adoção do Di- Direito nos Estados Unidos em uma posição insólita, em comparação com
reito Romano na grade curricular, como a mater do Direito Civil e suas a Europa e o restante da América: não se cursa Direito após a conclusão
instituições. Neste sentido leciona, Venosa (2007, p. 28): Nenhum princi- da high school e sim depois de um período de estudos graduados.
piante no estudo da ciência jurídica pode prescindir, ainda que per- (RODRIGUES JÚNIOR, 2015) (Parte 20). [grifei]
functoriamente, do significado das instituições romanas. Seu estudo 15 Tradicionalmente, a capacitação didático-pedagógica dos professores de
facilita, prepara e eleva o espírito iniciante para as primeiras linhas Direito fora relegada a um segundo plano. Privilegia-se a vida e a experi-
de nosso Direito Civil. Daí a importância de situarmos no tempo e no ência profissional fora dos limites da Universidade, e via de consequência,
espaço o direito Romano, a Lei das XII Tábuas até a época da decadência a hipervalorização da prática e do domínio da teoria. Usualmente, nos
bizantina, perpassando por séculos de mutações jurídicas que até hoje países que primam pela qualidade do ensino do Direito, a valorização da
são fundamentos de nosso Direito. [grifos nossos) experiência se dá intramuros, no contato do professor com seus pares, na

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pesquisa constante visando o aprimoramento das instituições e na adequa- ARROYO, Miguel G. Currículo, território em disputa. 1. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
ção do Direito à vida moderna e, ainda, principalmente, no diálogo aberto 2013. 376 p.
com os alunos, dentro do ideal de bem ensinar. CAMPELO FILHO, Francisco. O advogado e a sua formação: é preciso (re)
16 Ninguém achará maçante uma aula, se o professor conseguir mostrar pensar o ensino jurídico no Brasil. Revista Consultor Jurídico, 21 ago. 2017.
ao seu aluno que é o Direito que redime as pessoas de suas angústias. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-ago-19/campelo-filho-preciso-
O Direito neutraliza as diferenças, premia as ações de acordo com o seu -repensar-ensino- juridico-brasil. Acesso em: 21 ago. 2017.
mérito, restaura situações afetadas por desequilíbrio, restitui a paz, o CARLETTI, Amilcare. Curso de direito romano. 1. ed. São Paulo: Livraria e Editora
patrimônio e a liberdade. As situações de injustiça vivenciadas pelo alu- Universitária de Direito, 2000. 149p.
nado precisam ser trazidas ao ambiente universitário, para merecerem CELESTINO, Graciane Cristina M.; CARVALHO, Gustavo Ferreira de; SANTOS,
análise e a alternativa de encaminhamento para solução possível. Com Júlio Edstron S. (org.). Desafios do direito na atualidade. 1. ed. Goiânia: Espaço
esse proceder, não haverá desencanto, nem passividade, muito menos Acadêmico, 2018. 478 p.
sensaboria. (NALINI, 2007, p. 291) COELHO, Nuno Manoel Morgadinho dos Santos. Emoção, direito e educação
17 Defendemos que o desenvolvimento profissional docente não se edifica jurídica. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 32,
sem uma formação pedagógica robusta e que ele não ocorrerá distante n. 2, 143-162, jul./dez. 2016.
de um desenvolvimento pessoal e institucional simultâneos. Entendemos COSTA, Bárbara Silva. Educação à distância e ensino jurídico no Brasil: um de-
que estas assertivas são corolários de uma política educacional de sucesso, bate necessário. Revista de Pesquisa e Educação Jurídica, Salvador, v. 4, n. 1,
bem como, de caminho para comunidade acadêmica. Por óbvio, somente p. 1-17, jan./jun. 2018.
uma formação pedagógica robusta não garante um ensino do Direito de COSTA, Fabrício Veiga. Liberdade de cátedra do docente nos cursos de bacha-
qualidade. É necessário que se alie a esta, a didática e os conhecimentos relado em Direito: um estudo crítico da constitucionalidade do projeto de lei
teóricos e práticos da disciplina lecionada. escola sem partido. Revista Jurídica, Curitiba, v. 1, n. 50, 2018.
18 Ao longo dos anos, cristalizou-se na sociedade brasileira a ideia de que o COSTA, Fabrício Veiga; MOTTA, Ivan Dias da; FREITAS, Sérgio Henrique Zandona
“profissional do Direito” seria a pessoa mais abalizada para levar adiante (org.). Conjecturas e proposições críticas sobre a educação e o ensino jurídico
uma disciplina afeita ao curso jurídico, por ser este o ensino das leis, partin- no Brasil. 1. ed. Maringá: IDDM, 2018. 488 p.
do-se do pressuposto de que quem sabe fazer, sabe ensinar. Ledo engano! DOTTA, Alexandre Godoy. A avaliação da educação jurídica no Brasil: questões
Nem sempre isto ocorre. de eficiência e de qualidade aplicadas ao processo pedagógico de formação
19 Direito Administrativo, Constitucional, Civil, Penal, do Trabalho, Tributário, Pro- do Bacharel em Direito. In: PETRY, Alexandre Torres; MIGLIAVACCA, Carolina;
cessual Civil, Processual Penal, Processual do Trabalho e Processual Tributário. OSÓRIO, Fernanda; DANILEVICZ, Igor; FUHRMANN, Ítalo Roberto. Ensino ju-
20 A aferição de conhecimentos deverá ser realizada com uma prova discur- rídico no Brasil: 190 anos de história e desafios. 1. ed. Porto Alegre: OAB/RS,
siva, sem consulta aos manuais, entremeada com exercícios-testes com a 2017, p. 37-63.
justificação, por escrito, da alternativa escolhida. Estes últimos se justificam FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, de-
na permanência inevitável do Exame da OAB. Deste modo, o aluno já iria cisão, dominação. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2016. 360 p.
se familiarizando com as duas provas. Não se trata, neste particular, de uma GHIRARDI, José Garcez; FEFERBAUM, Marina (org). Ensino do direito em deba-
incoerência de nossa parte. O referido exame deverá se perpetuar no tempo. te: reflexões a partir do 1° Seminário Ensino Jurídico e Formação Docente. 1. ed.
Diante desta constatação, aulas de Prática Jurídica devem ter um aumento São Paulo: Direito FGV-SP, 2013. 266 p.
significativo na grade. Além disto, aulas de Redação Forense deverão ser in- LACERDA, Gabriel; FALCÃO, Joaquim; RANGEL, Tânia (org.). Aventura e legado
corporadas à disciplina, com a urgência que o bom senso determina. no ensino jurídico. 1. ed. Rio de Janeiro: FGV-Direito Rio, 2012. 378 p.
21 Um estudo de Conciliação e Arbitragem deve fazer parte da grade curricu- LAUXEN, Sirlei de Lourdes. A docência no ensino superior: saberes e práticas. 105
lar, uma vez que é este o caminho que deverá ser seguido doravante, de Revista Eventos Pedagógicos, Sinop, Mato Grosso, v. 5, n. 3, p. 138-151, ago./
acordo com as estratégias adotadas pela CNJ – Conselho Nacional de Jus- out. 2014. Edição especial temática, n. 12.
tiça e pelos Tribunais de todo o País, no sentido de desafogar o Judiciário, MACHADO, Antônio Alberto. Educação jurídica e mudança social. 2. ed. São
diminuindo sobremaneira o número de processos entrantes. Paulo: Atlas, São Paulo: 2009. 190 p.
22 Uma preparação mais extensa e intensa estenderia o curso jurídico no Brasil MARTÍNEZ, Sérgio Rodrigo. A evolução do ensino jurídico no Brasil. Jus
a doze semestres, mas ao final, emergiriam profissionais qualificados a aten- Navigandi, Teresina, ano 10, n. 969, 26 fev. 2006. Disponível em: https://jus.
der condignamente a sociedade, reformariam com destreza as instituições e com.br/ artigos/8020/a-evolucao-do-ensino-juridico-no-brasil. Acesso em: 7
construiríamos um país mais justo com acesso rápido e facilitado à Justiça. nov. 2018.
23 O inconformismo e a sensação de estagnação é que geram estas atitudes. MASSETO, Marcos Tarcísio. Competência pedagógica do professor universitá-
É o desejo profundo de mudança e de ruptura com o status quo. É uma rio. 2. ed. São Paulo: Summus Editorial, 2013. 212 p.
tarefa árdua, mas necessária. Devemos romper com o modelo arcaico que MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de
caracteriza os cursos jurídicos no Brasil. Lembremos que o docente de hoje Janeiro: Forense, 2001. 342 p.
formará profissionais que, amanhã, reproduzirão o mesmo espectro de NALINI, José Renato. O ensino da justiça (ou a renovação da docência jurídi-
que são “vítimas” agora. ca). In: ALMEIDA FILHO, José Carlos de Araújo; CARLINI, Angélica; CERQUEIRA,
24 A identidade do docente jurídico pode ser entendida como aquele Daniel Torres de. (org). 180 anos do ensino jurídico no Brasil. Campinas-SP:
profissional que, independente da atividade que exerce em outras Millenium, 2007, p. 283-292.
carreiras jurídicas, compreende docência como dedicação exclusi- RODRIGUES, Horácio Wanderlei; MEZZAROBA, Orides; MOTTA, Ivan Dias
va, sempre estudando, renovando-se, ensinando, impondo respeito, (orgs). Direito, educação, ensino e metodologia jurídicos. 1. ed. Florianópolis:
criando vínculos com o aluno, valorizando o processo de ensino- Funjab, 2013. 492 p.
-aprendizagem. RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Direito, poder e formação: como se produz
Se o docente de Direito procurar agregar a sua atuação essas caracte- um jurista em alguns lugares do mundo? Revista Consultor Jurídico, 28 jan.
rísticas, estará construindo uma nova identidade de educador e, até, de 2015. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-jan-28/direito-compara-
profissional, trazendo confiança para os alunos e às instituições para as do-produz- jurista-alguns-lugares-mundo. Acesso em: 28 jan. 2015.
quais prestar serviço, além de promover a construção de uma sociedade RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Como se produz um jurista? O modelo nor-
mais justa e igualitária. Assim, cabe ao docente o exercício de autoavalia- te-americano (Parte 20). Revista Consultor Jurídico, 8 jul. 2015. Disponível em:
ção, no sentido de observar a postura que adota diante e nas situações https://www.conjur.com.br/2015-jul-08/direito-comparado-produz-jurista-mo-
de ensino de Direito. Nesse sentido, todo professor é crítico de si mesmo e delo- norte-americano-parte-20. Acesso em: 8 jul. 2015.
responsável pelas mudanças que devem proceder a partir de sua própria RODRIGUES JÚNIOR, Otávio Luiz. Como se produz um jurista? O modelo nor-
prática” (SANCHES; SOARES, 2014, p. 122) [grifos nossos] te-americano (Parte 24). Revista Consultor Jurídico, 5 ago. 2015. Disponível
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Marcio Lázaro Pinto

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da Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, 15 jun. 2016.

Artigo recebido em 19/11/2019.


Artigo aprovado em 18/3/2020.

106

Márcio Lázaro Pinto é advogado em São Paulo, Pós-Graduado


em Docência do Ensino Superior e Pós-Graduando em Direito
Previdenciário.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 100-106, jan./jul. 2020


D I R E I T O PO RT UGUÊS
João António Bahia de Almeida Garrett

COOPERATIVA E SOCIEDADE NO DIREITO 107

COMERCIAL DA LUSOFONIA
CO-OP AND CORPORATION PURSUANT TO
THE LUSOPHONE COMPANY LAW
João António Bahia de Almeida Garrett

RESUMO ABSTRACT
Baseado na perspectiva do Direito da Lusofonia, compara as dife- From the standpoint of the Lusophone legal system, this text
rentes modalidades de iniciativa econômica e de organização em- compares the different types of an economic enterprise and
presarial do capitalismo e do socialismo, propondo reavaliar solu- business organization of both capitalism and socialism, setting
ções de compromisso baseadas na cooperação e na solidariedade. out to reassess trade-offs based on cooperation and solidarity.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Direito português; capitalismo, socialismo, cooperativismo, so- Portuguese Law; capitalism; socialism; cooperativism;
ciedade, cooperativa. corporation; co-op.

Revista CEJ, Brasília, Ano XXIV, n. 79, p. 107-115, jan./jul. 2020


João António Bahia de Almeida Garrett

Este trabalho foi escrito em homenagem a dois grandes vultos do pensamento e da cultura de língua portuguesa:
António Sérgio (1883-1969), teorizador do cooperativismo1 , e Alberto Luís (1921-2017), humanista,
pintor e advogado, autor de um notável artigo sobre a natureza jurídica da cooperativa, publicado
na Revista da Ordem dos Advogados Portugueses em 1966 e aqui citado2.

1 INTRODUÇÃO pitalista foi deixando atrás de si multidões de miseráveis, designa-


O desenvolvimento econômico dos povos tem sido uma damente os trabalhadores das grandes fábricas, homens, mulhe-
constante preocupação dos governantes, independentemente res e crianças desprotegidos, sem horário de trabalho, sem salário
do tempo e do lugar, das ideologias e dos regimes políticos: mínimo, sem condições de higiene e salubridade, entregues à fic-
basta lembrar a política econômica de Colbert, no século XVII, o ção da igualdade perante a lei e da vontade das partes4.
liberalismo comercial e industrial dos dois séculos seguintes, a E foi justamente como reação às duras leis do sistema ca-
estatização da economia e o comunismo no século XX. Durante pitalista que, pouco antes do séc. XIX, mas com grandes de-
grande parte deste século, capitalismo e comunismo, confron- senvolvimentos durante esse século – lembrem-se os probos
tando-se, embora em várias frentes, partilharam a ambição de pioneiros de Rochdale – (LUÍS, 1966, p. 161), os trabalhadores
constituir o melhor meio de desenvolvimento dos países mais se organizaram em associações de exercício direto da empresa,
pobres. Desfeita a ilusão do fim da História pela implosão da nos campos do consumo, da produção, do crédito, por meio
União Soviética e o fim da economia de planificação central, per- das cooperativas, assumindo a tripla qualidade de empresários
dida a fé no neoliberalismo, compreendidos os perigos da des- (patrões), trabalhadores e clientes, substituindo o critério do lu-
materialização da riqueza e da economia global sem regulação, cro pelo da satisfação das necessidades5 e abrindo o caminho
confrontados com os abusos e delitos do capitalismo financeiro, para o que hoje se designa por economia cooperativa.
é hora de reavaliar soluções de compromisso baseadas no me- Iniciativa cujo reconhecimento legislativo tardou e nem
lhor do ser humano: a cooperação e a solidariedade. sempre mereceu os favores do Estado impregnado da fé abso-
Neste trabalho, olhamos para a empresa, sede da criação luta no liberalismo burguês, tampouco daquele outro que, subs-
de riqueza e do desenvolvimento, comparando as suas mani- tituído o socialismo utópico pelo “científico”, haveria de assu-
festações concretas de acordo com os modelos de organização mir a propriedade plena e praticamente exclusiva dos meios de
108 econômica atualmente disponíveis: capitalismo e cooperação. E produção, acentuando afinal a proletarização dos “proletários”.
fazemo-lo, seguindo uma linha de investigação a que, há muito, Ilhas perdidas no mercado do lucro ou marginalizadas na
propusemo-nos, numa perspetiva do Direito da Lusofonia. economia estatizada, as cooperativas perderam a força quase
mítica com que haviam nascido, forjada por probos pioneiros
2 CAPITALISMO E SOCIALISMO EM UM MUNDO SÓ3: ECONOMIA dotados de uma natureza humana diferente de qualquer outra
DE MERCADO, ECONOMIA SOCIALISTA, ECONOMIA COOPERATIVA parte (LUÍS, 1966, p. 161) 6.
Sabemos que a experiência humana, pelo menos a partir da Desenharam-se, assim, historicamente, três diferentes mo-
sedentarização, é uma experiência comunitária, reveladora, por dalidades de iniciativa econômica e de organização empresarial:
um lado, da inelutável interdependência e, por outro, da sua or- a empresa capitalista, caracterizada pela maximização do lucro e
ganização em grupos unidos por algo em comum: lembremos pelo enriquecimento pessoal do detentor do capital (fatores mate-
as primeiras comunidades cristãs, as ordens religiosas, as corpo- riais da produção); a empresa socialista, estatizada e dependente
rações medievais. Foi o tempo do comunitarismo, da “união faz do plano econômico centralizado; e a empresa cooperativa, asso-
a força”, da crença. ciação autônoma de assalariados que desempenhavam, simulta-
Sabemos também que é com o Renascimento que se abre neamente, os papéis de patrão, trabalhador e cliente, norteados
uma brecha neste espírito comunitário por onde surge o ho- pelo desígnio da satisfação das necessidades de cada um7.
mem como indivíduo, considerado em si mesmo, diferente e Em um mundo que insiste em confundir felicidade com ri-
autônomo – brecha que, inicialmente pequena, vai-se dilatando queza – esquecendo que aquela tem dimensões sobretudo es-
com o Iluminismo, com a afirmação da razão, do homem não pirituais–, a lógica da satisfação das necessidades parecerá de-
somente como a “medida de todas as coisas” mas como aquele masiado austera: mas não falta quem anteveja, num futuro que
que compreende, explica e é capaz de dominar todas as coisas. já começou, uma economia e uma sociedade cooperativa, inclu-
E é assim que, no século XIX, orgulhoso dos seus feitos na sivamente em áreas essenciais, como os seguros e os serviços
ciência e na técnica, declara-se senhor do universo, deus ex ma- financeiros em geral (NADEAU E. G.; NADEAU LUC, 2016).
china, positivista que recusa o que não sabe explicar, fanático
do sucesso que idolatra os mais capazes e despreza os outros, 3 A SOCIEDADE COMO FIGURA JURÍDICA DO CAPITALISMO
demolidor das barreiras que se opõem aos seus desígnios. Se há uma figura jurídica típica do capitalismo, ela é, sem
O percurso histórico do comunitarismo ao liberalismo é, em dúvida, a sociedade, mecanismo de atração e canalização de
essência, o caminho da consciencialização do homem como ser capitais cuja evolução acompanhou as crescentes necessidades
dotado de razão, capaz de dominar a natureza, de concorrer de acumulação impostas pela sucessiva transição da fase do ca-
com os outros homens e de lhes ganhar a partida. pitalismo comercial para o industrial e deste para o financeiro
Só que o caminho de sucesso percorrido pelo liberalismo ca- – linha evolutiva revelada pela substituição da empresa indivi-

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João António Bahia de Almeida Garrett

dual pela sociedade8 e pelo aperfeiçoa- –, ligam-se aos grandes empreendimen- radora (a partir de 1974).
mento dos tipos sociais segundo a lógica tos, que necessitavam de apoio público e As primeiras cooperativas portugue-
da acumulação capitalista: da sociedade dinheiro privado; e elas são hoje, indubi- sas, seguindo o exemplo de Rochdale,
em nome coletivo à sociedade anônima. tavelmente, o modelo de estruturação das eram polivalentes, procuravam satisfazer
Como se sabe, a sociedade em grandes empresas – tipo legalmente obri- as necessidades dos seus membros em
nome coletivo nasce no mundo do co- gatório ou predominante em setores vitais11 aspetos vários, como consumo, crédito,
mércio, na Itália, a partir do séc. XII, como –, da intervenção econômica do Estado12 e habitação, aquisição de matérias-primas,
forma jurídica de empresas familiares, da democratização do capital, que tem vin- comercialização de produtos. E foram
tendo sido acolhida pela Ordenança do do a acentuar a sua natureza “anônima” impulsionadas pelas ideias importadas
Comércio de Luís XIV (1673) – que tra- (CORDEIRO, 2014, p. 483). da Inglaterra e, mais tarde, da França por
tava as “sociedades gerais” por oposição Como instrumento de criação e acu- pensadores e ativistas socialistas, como
às “sociedades em comandita” – e defini- mulação de riqueza, a sociedade, inde- Antero de Quental ou José Fontana, além
da por Pothier como sociedade formada pendentemente do tipo que revista, tem de outros, anarquistas, proudhonistas,
por “dois ou mais comerciantes, para de- necessariamente (ontologicamente) fim sindicalistas e maçons.
senvolver em comum um certo comér- lucrativo, seja como fim imediato ou di- Apesar de, até 1910, terem sido cons-
cio em nome de todos os associados”9. reto, seja como fim mediato ou indireto tituídas muitas cooperativas, em regra de
Noção que, no essencial, transitaria para (também designado por teleológico). O consumo, o movimento cooperativo era
o Code de commerce de 1807 (atual art. conceito genérico de sociedade, consagra- muito frágil, com inúmeros casos de in-
L221-1) e para a sua longa “progénie”: do no art. 980 do Código Civil português, sucesso. Talvez por isso, por um impulso
vejam-se os arts. 548 e 552 do Código de é paradigmático a esse respeito: a socie- de modernidade importada, tipicamente
Ferreira Borges (1833) e 315 do Código dade só pode exercer uma atividade eco- portuguesa, talvez sob a pressão do pro-
Comercial do Império do Brasil (1850). nômica, que não seja de mera fruição – blema social causado pela proletarização
A sociedade anônima corresponde a ou seja, uma atividade criadora de riqueza das “classes laboriosas”, é nossa a segun-
um outro patamar da empresa, que deixa nova, que aumente o patrimônio reunido da lei cooperativa em nível mundial, a Lei
os limites familiares ou de círculos restri- pelos sócios, não se limitando a explorar Basilar, de 2 de julho de 1867, proposta
tos de comerciantes para alcançar novas as utilidades econômicas dos bens que in- pelo Ministro Andrade Corvo.15
dimensões, só possíveis pela disponibili- tegram esse patrimônio –,13 sendo que o Poucos dias antes, por iniciativa do
zação de vultuosos capitais captados jun- aumento patrimonial assim obtido se des- mesmo ministro, publicara-se a Lei de 109
to de um número indeterminado, e cada tina à distribuição pelos sócios, incremen- 22 de junho de 1867, que dispensou a
vez mais amplo, de grandes, médios e tando os respetivos patrimônios. A affectio constituição das sociedades anônimas
pequenos aforradores. Mecanismo por societatis é, afinal, affectio lucri.14 da autorização governamental prévia exi-
excelência de acumulação de riqueza,
opera segundo o velho aforismo de que O percurso histórico do comunitarismo ao liberalismo é, em
“o pouco de muitos, todo somado, faz essência, o caminho da consciencialização do homem como
milhões”, para o que congrega quatro
características fundamentais: fragmen- ser dotado de razão, capaz de dominar a natureza, de
tação (ou pulverização) do capital, divi- concorrer com os outros homens e de lhes ganhar a partida.
dido em múltiplas parcelas de reduzido
valor unitário, o que permite a participa- E tal intuito lucrativo, traduzido na gida pelo art. 546 do Código Comercial
ção de sócios com disponibilidades mais dupla dimensão de criação de riqueza de Ferreira Borges16, dando resposta à li-
modestas; representação de cada parce- e de retorno do investimento, é afinal a berdade exigida pelo grande capital, pelo
la em títulos de crédito especiais (títulos chave de todo o seu modo de organiza- monopólio do dinheiro, pelos barões da
de participação ou títulos corporativos), ção e funcionamento, visto que todas as indústria (MEIRA; RAMOS, 2017, p. 93) ,
denominados “ações”, para garantia das posições e relações jurídicas que, com sendo natural que um governo reforma-
entradas e da participação na sociedade; ela e por via dela, os sócios estabelecem, dor como foi o da Regeneração – nome
princípio da livre transmissão desses tí- assentam no critério do capital. português do capitalismo (LUÍS, 1966, p.
tulos e das participações sociais que in- 157) – quisesse dar uma certa satisfação
corporam, o que assegura a liquidez tão 4 A COOPERATIVA COMO INSTRUMENTO a todos os setores envolvidos na moder-
desejada por pequenos investidores; ri- DO SOCIALISMO nização do país: os capitalistas e os tra-
gorosa limitação da responsabilidade de Revisitando a história da cooperativa balhadores, sem esquecer os pequenos
cada sócio à realização do capital, à libe- em Portugal, podemos, seguindo a expo- e médios comerciantes e empresários
ração das ações subscritas, limitando à sição de João Salazar Leite (2011) , divi- (MEIRA; RAMOS, 2017, p. 93).
partida o risco do investimento10. di-la em três grandes períodos ou fases: a Aos primeiros deu-se a liberdade de
As suas origens, com relevo para a ex- fase paternalista (de meados do séc. XIX constituição das sociedades anônimas,
traordinária experiência das Companhias até 1926), a fase intervencionista (cor- forma por excelência das grandes em-
das Índias – e, em Portugal e no Brasil, das respondente, grosso modo, ao Estado presas; aos segundos, a Lei Basilar, ex-
Companhias Pombalinas (MARCOS, 1997) Novo, de 1926 a 1974), e a fase estrutu- pressamente reconhecendo e regulando

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João António Bahia de Almeida Garrett

as cooperativas; e aos últimos, que recusavam submeter-se ao sua organização e fiscalizando o seu funcionamento. Mas não
“moderno feudalismo dos barões da indústria” e eram naturais deixou de apoiar o setor cooperativo, em particular no cam-
inimigos das cooperativas por temerem que a expansão destas, po agrícola, fundamentalmente por meio de benefícios fiscais.
apostadas em eliminar a intermediação nas trocas, acabasse por Inversamente, tolerou mal as cooperativas de fim não econô-
significar a sua expulsão do mercado ou, pelo menos, uma forte mico, pois era nestas que se reuniam os opositores do regi-
redução deste (LUÍS, 1966, p. 163 ; MEIRA; RAMOS, 2017, p. 93), me, particularmente após a publicação, em maio de 1954, do
ofereceu o legislador o recorte da cooperativa segundo a matriz Decreto-Lei n. 39.660, que colocou sob controle administrativo
da sociedade comercial: de fato, apesar de surgir formalmente todas as associações.
autonomizada do Código Comercial então em vigor e, em parti- É interessante notar que um dos aspetos combatidos nes-
cular, das suas disposições sobre as sociedades, a lei de 2 de julho sa fase de intervenção foi o das operações da cooperativa com
de 1867 define-as como sociedades (art. 1°) comerciais (art. 9°), terceiros: o Decreto-Lei n. 22.513, de 12 de maio de 1933, re-
sendo que este qualificativo é independente do objeto prossegui- servou a isenção de contribuição industrial (imposto sobre o
do (MEIRA; RAMOS, 2017, p. 68 e 73), e autoriza a realização de rendimento) às cooperativas que realizavam operações exclusi-
operações com estranhos (art. 2º), dando-lhe uma feição mais vamente com os seus membros, medida que se propunha apla-
especulativa do que cooperativa (LUÍS, 1966, p. 168). car as inquietações do comércio retalhista quanto à distorção da
concorrência (LEITE, 2011, p. 5-7).
[…] não havia sociedades cooperativas, mas Sendo o cooperativismo tão caro aos opositores do Estado
apenas sociedades em nome coletivo, anônimas, Novo, é natural que, a partir de 1974, o novo poder político lhe de-
dique especial atenção, com um renovado enquadramento jurídico.
em comandita ou por quotas, que adotavam a
A Constituição de 1976 vem consagrar três setores de inicia-
cláusula da variabilidade do capital social e da tiva econômica – público, privado e cooperativo e social (atual
ilimitação do número de sócios. art. 82) e, em 1980, surge o primeiro Código Cooperativo como
corpo legislativo autônomo do setor, a que se seguiu um outro
Posteriormente, em pleno auge do liberalismo oitocentis- em 1996, datando o último de 201518. Em 2013, a Lei de Bases
ta português, o Código Comercial tardio ou da segunda gera- da Economia Social (Lei n. 30/2013, de 8 de maio) agrupou
ção – de 1888, ainda (muito) parcialmente em vigor (GARRETT, nesse “terceiro setor” as cooperativas, as associações mutualis-
2018), – viria a enquadrar a cooperativa no elenco das socie- tas, as misericórdias, as fundações, outras instituições particula-
110 dades com forma comercial: o art. 207 definia as características res de solidariedade social e as associações com fins altruísticos
individualizadoras da sociedade cooperativa – variabilidade do que atuem no âmbito cultural, recreativo, do desporto e do de-
capital social e ilimitação do número de sócios – , obrigando-as senvolvimento local (art. 4°).
a adotar um dos tipos legais previstos no art. 105: sociedade em Todavia, apesar da autonomização formal e de inegáveis
nome coletivo, anônima ou em comandita17. atualizações e aperfeiçoamentos do seu regime, continua em
Na economia desse código, a qualificação comercial da aberto a questão fundamental da natureza jurídica das coopera-
sociedade cooperativa dependia, como para as demais socie- tivas, em especial das de objeto comercial, e fazem-se ouvir críti-
dades, dos requisitos previstos no art. 104 – ter por objeto a cas quanto à persistência de uma clara proximidade às socieda-
prática de atos de comércio, adotar um dos tipos e observar o des comerciais, em particular – ironia das ironias – às anônimas.
processo de constituição legalmente previstos: ou seja, a coope-
rativa que se propusesse um objeto comercial – constituído pela 5 FISIONOMIA DA COOPERATIVA À LUZ DO CÓDIGO
prática de um ou mais atos de comércio, segundo a definição COOPERATIVO EM VIGOR
do art. 2°, ou dedicando-se a qualquer das atividades (“empre- Analisando o atual Código Cooperativo, verificamos que,
sas”) enumeradas no art. 230 ou outras análogas – seria uma caracterizada embora como “pessoa coletiva autônoma”, a co-
sociedade comercial; a que se constituísse com objeto civil – por operativa tem base associativa, é uma associação – não decer-
exemplo, atividade agrícola ou artesanal (art. 230, § 1°), seria to a associação regulada no Código Civil (arts. 157 e ss.) mas,
uma sociedade civil sob forma comercial (art. 106). Mas, inexis- em todo o caso, associação de pessoas, tal como a sociedade19.
tindo normas sobre a cooperativa na lei civil, o seu regime jurí- Adquire personalidade jurídica pelo registo, estando sujeita ao
dico era, independentemente do objeto, comercial. registo comercial20. Pode exercer qualquer atividade econômi-
Olhando para esse período da história jurídica da coopera- ca, desde que respeite os princípios cooperativos – e, portanto,
tiva em Portugal, pode dizer-se, com Alberto Luís (1966, p. 174) também uma atividade comercial21.
, que não havia sociedades cooperativas, mas apenas socieda- As vantagens econômicas resultantes para os seus membros
des em nome coletivo, anônimas, em comandita ou por quotas, não são lucros, mesmo no sentido amplo de aumento patrimo-
que adotavam a cláusula da variabilidade do capital social e da nial: os “excedentes” que, nos termos do art. 100, podem retornar
ilimitação do número de sócios. aos cooperadores, resultando exclusivamente das relações que es-
O Estado Novo, de cariz autoritário, mantendo as dispo- tes estabelecem com a cooperativa. São o saldo de uma espécie de
sições sobre as sociedades cooperativas do Código Comercial conta-corrente entre a cooperativa e os cooperadores. Excluído ex-
de 1888 em vigor, estabeleceu um quadro jurídico que visava pressamente o retorno de excedentes “provenientes de operações
controlá-las, enquadrando-as no sistema corporativo e na pla- realizadas com terceiros”, estamos longe dos “lucros de tipo clássi-
nificação econômica, por um lado, e, por outro, intervindo na co” de que fala Menezes Cordeiro (2011, p. 414)22.

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Impedida de se transformar em so- associações, fundações e sociedades27. tiva com objeto comercial.
ciedade (art. 111), aplica-se-lhe, sub- Tem como notas essenciais: a liberdade Será a cooperativa, mesmo na atu-
sidiariamente, o direito comercial das de constituição, a variabilidade do capital al configuração de “pessoa coletiva au-
sociedades, nomeadamente [a]os pre- e dos membros, a mutualidade ou espí- tônoma”, uma figura jurídica comercial?
ceitos aplicáveis às sociedades anóni- rito mutualístico, a obediência aos princí- Assumirá a cooperativa com objeto co-
mas (art. 9°) – se bem que após recur- pios cooperativos, fim não lucrativo. mercial – por exemplo, construção e ha-
so à legislação complementar aplicável Pode, em princípio, exercer qual- bitação, produção, comercialização – a
aos diversos ramos do setor cooperati- quer atividade econômica ou não qualidade de comerciante?
vo e na medida em que se não desres- econômica, incluindo atividades co- Sabemos já que tanto a Lei Basilar,
peitem os princípios cooperativos. merciais e, mesmo, dedicar-se simulta- como o Código Comercial de 1888 con-
A cooperativa caracteriza-se por neamente a várias atividades (coopera- cebiam a cooperativa, respetivamente,
uma dupla posição dos cooperadores tivas multissectoriais: art. 4°, 2). como sociedade comercial ou como so-
(empresário e cliente) e, por vezes, tri- Só acessoriamente pode realizar ope- ciedade (comercial ou civil) em forma
pla posição (empresário, trabalhador e rações com não membros, não podendo comercial: no Direito luso, a cooperati-
cliente) – “empresa de serviço”, autô- distribuir aos cooperadores os exceden- va surge, pois, disfarçada de sociedade
noma em relação à iniciativa empresa- tes dessas operações – apenas podem (NAMORADO, 1983, p. 113).
rial capitalista23. retornar aos membros os excedentes ob- Nesse período, a resposta às nos-
As operações com terceiros (não tidos com as operações internas. sas questões era simples: na vigência
cooperadores) são permitidas, mas as- Admitem-se membros investido- da lei de 1867, a cooperativa era uma
sumem um caráter acessório ou com- res (art. 20), de estatuto diferente dos sociedade comercial de pleno direito,
plementar (art. 2°, 2): a cooperativa membros produtores ou utilizadores, regendo-se pela lei comercial, salvas
trabalha essencialmente para dentro,e e títulos de investimento (art. 91), com as disposições da presente lei (art.
com os membros, enquanto a empresa um perfil próximo das obrigações das 9°); no regime do Código Comercial
capitalista trabalha para o mercado24. O sociedades anônimas e suscetíveis de de 1888, a cooperativa era uma socie-
caráter acessório das operações com subscrição pública (art. 93). Os coope- dade em forma comercial (art. 207, §
terceiros resulta claramente do texto radores podem assumir, num leque am- 1°), sendo comercial ou civil consoante
do citado art. 2°, 2, ao estabelecer dois plo de possibilidades, responsabilidade a natureza do objeto (art. 104 e 106)
limites: que essas operações se reali- limitada ou ilimitada (art. 23). e revestindo, na primeira hipótese, a 111
zem na prossecução dos objetivos da
cooperativa e dentro de eventuais limi- Permite-se a associação da cooperativa com outras pessoas
tes fixados pelas leis próprias de cada coletivas, públicas ou privadas, incluindo sociedades
ramo cooperativo25.
comerciais (art. 8°), e consagra-se, como direito subsidiário, o
Nota essencial e distintiva do concei-
to de cooperativa é a sua obediência aos Código das Sociedades Comerciais […]
princípios cooperativos internacionalmen-
te reconhecidos (arts. 2° e 3°). São eles: a) Permite-se a associação da coope- qualidade de comerciante (art. 13, 2º).
princípio da porta aberta (dentro de lo que rativa com outras pessoas coletivas, pú- E perante o direito positivo atual?
cabe: art. 19, 1): abertura, não discrimina- blicas ou privadas, incluindo socieda- Menezes Cordeiro (2011, p. 414)
ção e ampla acessibilidade (entrada míni- des comerciais (art. 8°), e consagra-se, entende que não há razões conceptu-
ma de 3 títulos de capital, no valor de 15€: como direito subsidiário, o Código das ais para não considerar as cooperativas
arts. 83, 2 e 82°, 1); b) princípio da gestão Sociedades Comerciais, em especial as como sociedades, desvalorizando o con-
democrática (um homem, um voto – por normas sobre as sociedades anónimas ceito enunciado no art. 980 do Código
contraposição ao poder do capital); c) prin- (art. 9°), sempre com respeito pelos prin- Civil, que Ferrer Correia já considerara
cípio da participação econômica dos mem- cípios cooperativos. não ser vinculativo em matéria de so-
bros (em especial, benefício dos membros Está sujeita ao registo comercial ciedade comercial28. Para o Professor de
em proporção das suas transações com a (Código do Registo Comercial, art. 4°), Lisboa, as cooperativas são sociedades
cooperativa); d) princípio da autonomia e sendo que o registo da constituição é o e, assim sendo, poderão ser, conforme
independência (arts. 8° e 111); e) princí- momento do reconhecimento da coope- a natureza da atividade desenvolvida, so-
pios de proselitismo cooperativo – art. 3°: rativa como pessoa jurídica (art. 17). ciedades civis ou sociedades comerciais.
educação, formação e informação; interco- Entende também que, apesar de se-
operação; interesse pela comunidade26. 6 O PROBLEMA DA NATUREZA JURÍDICA rem sociedades, não são comerciantes
No Direito português atual, a coopera- DA COOPERATIVA por não terem fins lucrativos: A profissão
tiva é, assim, uma pessoa coletiva autôno- Apesar da já assinalada evolução do de comércio implica necessariamente um
ma, se bem que de base associativa – isto tratamento jurídico da cooperativa no fim lucrativo. (CORDEIRO, 2016, p. 282).
é, o seu substrato é constituído por pesso- Direito português, continua na ordem do Posição que não deixa de suscitar di-
as físicas – , que se distingue dos restan- dia o problema da sua natureza jurídica, ficuldades: as cooperativas com objeto
tes tipos de pessoas jurídicas (coletivas): em particular no que respeita à coopera- comercial seriam sociedades comerciais,

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mas não comerciantes (o que contraria o art. 13, 2°, do Código exercício em comum de atividades econômicas ou equipará-
Comercial, segundo o qual todas as sociedades comerciais são veis), teleológico (a cooperativa obtém e distribui lucros, ain-
comerciantes). da que por técnicas específicas e sob reconversões linguísticas;
Coutinho De Abreu (2017, p. 41-42, 2018, p. 126.) entende, além de lucros de tipo clássico), a que acrescem considerações
pelo contrário, que as cooperativas não são sociedades, mas são sobre a tradicional ideia de menor dignidade do comércio em
comerciantes, desde que tenham objeto comercial. relação a outras atividades e profissões, as consequências ne-
A primeira asserção sustenta-a o Professor de Coimbra nos gativas da retirada da cooperativa do âmbito das sociedades
seguintes argumentos: a) o art. 2°, 1, do Código Cooperativo no que toca ao seu estudo nas universidades (ficará fora dos
qualifica-as como pessoas coletivas autônomas e não como so- roteiros curriculares, dos manuais e das preocupações diárias
ciedades ou associações; b) têm capital e composição variá- das faculdades) e a sua exclusão dos tribunais de competên-
veis, assim se permitindo a fácil e rápida entrada e saída de cia especializada comercial, sede adequada para o julgamento
cooperadores e as correspondentes mutações de capital (bem das questões relacionadas com matérias de funcionamento da
diverso é o regime societário quanto à entrada e saída de só- cooperativa, em que se aplica subsidiariamente o Código das
cios na generalidade das sociedades e quanto às alterações do Sociedades Comerciais, como, por exemplo, a suspensão e anu-
capital); c) não têm fins lucrativos fundamentalmente diferente lação de deliberações sociais.
é a realidade societária; d) a organização e o funcionamento São argumentos interessantes, mas artificiosos: como
das cooperativas obedecem aos ‘princípios cooperativos’, que Alberto Luís bem demonstrou e assinalamos, a concepção da
se afastam em muitos pontos da disciplina das sociedades; e) cooperativa como sociedade comercial resultou do compromis-
a lei impede a transformação das cooperativas em sociedades so possível entre os vários interesses em presença arbitrado por
(Código Cooperativo, art. 100), óbvio sintoma de que o legisla- um legislador imbuído do espírito do liberalismo oitocentista –
dor não considera as cooperativas como sociedades. mas foi sempre uma sociedade singularmente diferente, com as
E a segunda fundamenta-a numa interpretação “objetivo- apontadas características da variabilidade do capital e da ilimita-
-actualista” do art. 13, 1° do Código Comercial: Embora não ção do número de sócios; a base associativa não é exclusiva da
qualificáveis hoje como sociedades (sobretudo, também, por sociedade, que a partilha com todas as pessoas coletivas exceto
não terem escopo lucrativo – v. logo o art. 2° do CCoop.), nada a fundação; o mesmo se diga quanto ao exercício de atividade
impede que as cooperativas com objeto comercial sejam consi- econômica lucrativa, como a atividade comercial: relativamente
deradas comerciantes (art. 13, 1°, do CCom.). Este autor admi- às associações, o princípio da especialidade do fim é tenden-
112 te, assim, comerciantes sem intuito lucrativo, o que parece não cialmente compatível quer com o desenvolvimento de ativida-
atender à natureza profunda das atividades econômicas a que o de económica lucrativa quer com a produção direta na esfera
Direito comercial se dirige. dos associados de vantagens econômicas em consecução do
objeto estatutário. O que lhes está vedado é a distribuição de
Não sendo sociedade, mas podendo ter objeto lucros aos associados […] (HENRIQUES, 2006, p. 291); como
comercial, a cooperativa só seria comerciante, notamos, as vantagens econômicas resultantes para os coopera-
dores da atividade interna da cooperativa não são lucros, muito
no estado presente do nosso Direito Comercial,
menos de tipo clássico. Quanto às restantes observações deste
se pudesse ser enquadrada na norma do ilustre Professor, diremos apenas que o mundo das pessoas co-
art. 13, 1°, do Código Comercial. letivas não começa e acaba nas sociedades e que as questões
de foro das matérias mais próximas das societárias podem ser
Paulo Olavo Cunha (2018, p. 150), em uma posição pou- facilmente resolvidas pelo legislador em sede própria, até por-
co clara, admite que a cooperativa não integra propriamente a que a competência dos agora denominados “juízos de comér-
categoria dos comerciantes, tendo em conta a sua natureza e cio” foi estabelecida ad hoc, com preocupações pragmáticas,
fins, mas parece reconduzi-la ou associá-la a essa categoria, na não se reportando a um critério, antigo ou novo, de qualificação
medida em que se encontra subsidiariamente sujeita ao regime da matéria mercantil29.
jurídico das sociedades comerciais. Cremos, que a cooperativa, tal como consagrada no Direito
Para Carlos Mota Pinto (2005, p. 293), as cooperativas português atual, não tem a natureza de sociedade, constituindo
[...] nem formal, nem substancialmente, são […] sociedades. antes uma pessoa coletiva autônoma, ou seja, um quarto tipo de
Devem considerar-se incluídas no género ‘associações’. pessoas coletivas, a par das associações, fundações e sociedades.
O que dizer destas posições doutrinárias? Não sendo sociedade, mas podendo ter objeto comercial, a
Menezes Cordeiro (2011, p. 409-416) justifica a qualifica- cooperativa só seria comerciante, no estado presente do nosso
ção da cooperativa como sociedade – a permanência (ou o re- Direito Comercial, se pudesse ser enquadrada na norma do art.
gresso) das cooperativas à grande casa-mãe das sociedades – 13, 1°, do Código Comercial. Teríamos, assim, uma pessoa (co-
com argumentos de caráter histórico (a cooperativa não nasceu letiva) com capacidade para a prática de atos de comércio (fim)
em Portugal por iniciativa basista, popular ou particular filan- e que efetivamente prossegue esse fim estatutário.
trópica, mas por iniciativa governamental e logo com natureza A aplicação, por interpretação extensiva, desta norma a pes-
de sociedade comercial), comparatístico (as experiências alemã, soas coletivas tem dividido a doutrina, com autores consagrados,
francesa e italiana, em especial as duas últimas), estrutural (a como Ferrer Correia, Fernando Olavo ou Menezes Cordeiro, a
cooperativa tem evidente base associativa), finalístico (visa ao recusá-la, e outros, não menos importantes, como José Tavares,

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Barbosa De Magalhães, Oliveira Ascensão perativa em moldes muito próximos da neo não considera a cooperativa figura
ou Coutinho De Abreu, a admiti-la30. lei portuguesa atual. digna da sua atenção, nos deixa alguma
No entanto, e independentemente No Brasil, as cooperativas são con- perplexidade pela dificuldade em com-
do problema de saber se o art. 13, 1°, sideradas sociedades simples (civis), patibilizar o regime originário do Código
do Código Comercial se aplica apenas a ainda que prossigam objeto comercial Comercial de 1888 (arts. 207° a 223°)
pessoas singulares ou também a pesso- (Lei n. 5.764, de 16.12.1971, arts. 4° com o novo regime societário constante
as coletivas – problema em que acom- e 5°; Código Civil, art. 982, parágrafo do Código Comercial de 1999.
panhamos o primeiro entendimento – , único), abstendo-se o anteprojeto do Em Moçambique, o diploma que
propendemos para a exclusão da coope- novo Código Comercial de as regular aprovou o Código Comercial manteve
rativa com objeto comercial da categoria (art. 49., § 3º) (COELHO, 2016, p. 20). em vigor o Código Comercial português
de comerciante pelas seguintes razões: Interessante notar que o legislador, ao de 1888, na parte relativa à sociedade
a) existe hoje uma clara separação cons- fomentar as experiências autogestioná- cooperativa (Decreto-Lei 2/2005, art. 2°,
titucional dos setores privado e social e rias, utilizou a figura jurídica da coope- 1), seguindo os passos do legislador ma-
cooperativo: Constituição da República, rativa denominando o novo instituto caense. Em 2009, foi publicada uma lei
arts. 61 e 82; e 288, f); b) o animus co- “cooperativa de trabalho” e mantendo específica para as cooperativas (Lei n.
operativo, revelado e salvaguardado pe- a sua qualificação como sociedade sim- 23/2009, de 8 de setembro) cujo regi-
los princípios cooperativos, é completa- ples, para além das características es- me é praticamente idêntico ao da atual
mente diferente, oposto até no essencial senciais da cooperativa32. lei portuguesa.
ao animus capitalista, espírito de lucro e Em Cabo Verde, o Código das Em São Tomé e Príncipe vigora ainda
enriquecimento que norteia e anima a fi- Empresas Comerciais, aprovado pelo o Código Comercial português de 1888.
gura do comerciante; c) modo diferente Decreto Legislativo n. 3/99, de 29 de Timor- Leste aprovou, em 2004, a Lei das
de encarar as atividades econômicas que março, considera a cooperativa um tipo Cooperativas, que reproduz o Código
se reflete em profundidade na estrutura de sociedade comercial (art. 104, 3), o Cooperativo português então em vigor.
e funcionamento da cooperativa. que se coaduna mal com a noção de Em Goa, estado da União Indiana
Em nosso entendimento, a coopera- sociedade comercial constante do n. 1 que, apesar de não pertencer ao mun-
tiva não é nem sociedade nem, quando do mesmo artigo, decalcada do art. 980 do lusófono, mantém o Código Civil
tenha objeto comercial, comerciante. É do Código Civil, e, portanto, empresá- português de 1867 parcialmente em vi-
uma figura civil, independentemente do rio comercial/comerciante (art. 76, b). gor33, a matéria consta do The Goa Co- 113
objeto, sendo que o fato de o código res- O respetivo regime consta dos arts. 474 operative Societies Act, de 18 de maio
pectivo mandar aplicar subsidiariamente e ss., em um registro próximo, se bem de 2001, que, num registro de common
o direito societário em nada altera esta que atualizado, dos arts. 207 a 223 do law, trata a cooperativa segundo os
conclusão porque, por um lado, tal apli- Código de Veiga Beirão. princípios cooperativos internacionais
cação fica dependente da integração por Na Guiné-Bissau, país que, apesar e de modo que se aproxima muito, em
via da legislação complementar aplicável de lusófono, enquadra-se na OHADA, substância, do nosso Direito.
aos diversos ramos do setor cooperativo organização francófona para a harmo-
e condicionada ao respeito pelos princí- nização do Direito comercial na África, 8 CONCLUSÃO
pios cooperativos, e, por outro, há muito vigora o Acte Uniforme Relatif au Droit No Direito português atual, a coope-
se sabe que o aperfeiçoamento dos regi- des Societes Cooperatives, de 15 de de- rativa não é uma sociedade, nem, quan-
mes e institutos comerciais os torna par- zembro de 2010, o qual, depois de de- do tenha objeto comercial, pode ser qua-
ticularmente aptos a responder a neces- finir a sociedade cooperativa como um lificada como comerciante; é um quarto
sidades de regulamentação postas por groupement autonome de personnes tipo de pessoa coletiva, a par das asso-
relações jurídicas civis. (art. 4°), num registo próximo da lei ciações, fundações e sociedades, regula-
portuguesa, a decalca sobre o regime da pelo Direito Civil. Entendimento hoje
7 O PROBLEMA NO DIREITO DA geral das sociedades, designadamente igualmente sufragado pelos Direitos an-
LUSOFONIA na consideração da sua natureza civil ou golano, moçambicano, timorense e, no
Em Angola, o Anteprojeto de novo comercial, conforme o objeto prosse- essencial, goês.
Código Comercial, de novembro de guido (art. 21), na possibilidade de pes- O Direito brasileiro considera a coo-
2014, inclui uma parte da disciplina da soas coletivas serem cooperadores (art. perativa uma sociedade simples, mesmo
cooperativa (Livro IV: cfr. art. 607), per- 7), no processo de constituição (arts. 85 com objeto comercial: a empresa coo-
mitindo-lhe o exercício de atividades e ss.), na repartição de todos os exce- perativa, independentemente do objeto,
comerciais (art. 602), mas recusando- dentes aos cooperadores (art. 46). será, assim, sempre civil.
-lhe, em qualquer caso, a qualificação Em Macau, o Decreto-Lei n. 40/99/M, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau e
de sociedade comercial (art. 145) e, que aprovou o Código Comercial, man- São Tomé e Príncipe consideram a coope-
consequentemente, de empresário co- teve em vigor o Código de Veiga Beirão rativa sociedade comercial ou sociedade ci-
mercial (art. 5)31. Entretanto, foi publi- na parte relativa à sociedade cooperati- vil em forma comercial, consoante o objeto.
cada a Lei n. 31/2015, de 31 de agosto, va (art. 3°, 1, a). Solução que, indiciando Compreendendo-se, por motivos
que consagra o regime jurídico da coo- que o legislador mercantil contemporâ- históricos, a concepção da cooperativa

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seguradoras (Decreto-Lei n. 94-B/98, de 17 de abril, art. 7°).


como sociedade de tipo comercial, a sua autonomização, em 12 Depois de um período em que as empresas públicas revestiram a forma
termos de a considerar sempre uma figura jurídica civil inde- de pessoas coletivas de Direito Público (Decreto-Lei n. 260/76, de 8 de
pendentemente do objeto estatutário, é a solução que cremos abril), elas são, desde 1999, sociedades comerciais (constituídas […] nos
termos da lei comercial: Decreto-Lei n. 133/2013, de 3 de outubro, art.
mais adequada ao papel de protagonista da iniciativa empresa- 5°, 1), acompanhando o movimento de privatização geral da economia e
rial numa ordem econômica mais solidária, logo, mais humana. da sociedade portuguesas das últimas décadas. De igual modo no Direito
brasileiro, em que, por determinação constitucional, as empresas públicas
estão sujeitas ao regime de direito privado (COELHO, 2016, p. 75).
13 É claro que este conceito abrange tanto as atividades que criam riqueza
NOTAS diretamente (por exemplo, a exploração de uma fábrica ou de um hotel)
1 Disponível em: https://paginas.fe.up.pt/~gtd/antoniosergio/biografia.html. como as que o fazem indiretamente (caso das sociedades holding, cor-
Acesso em: 19 abr.2020. respondentes em Portugal às sociedades gestoras de participações sociais
2 Disponível em: https://portal.oa.pt/comunicacao/noticias/2017/11/faleci- – Decreto-Lei n. 495/88, de 30 de dezembro – e, no Brasil, ao grupo de
mento-do-dr-alberto-luis/; https://www.publico.pt/2017/11/14/sociedade/ sociedades – LSA, arts. 265. e ss. Mas já não as atividades de mera fruição
opiniao/alberto-luis-quando-o-humanismo-se-fez-homem-1792423. Aces- ou mera administração de bens (por exemplo, arrendamento de imóveis,
so em: 19 abr.2020. incluindo a sua conservação e recebimento de rendas).
3 Ribeiro (1960, p. 1-17). 14 Desvalorizando o fim lucrativo na sociedade, Costa (2006, p. 319), com indi-
4 O expoente da concepção individualista do homem é o conceito jurídico cação bibliográfica sobre esta posição, partindo da utilização do esquema so-
de pessoa, conceito igualitário, em que se equilibram e nivelam todas cietário para fins não correspondentes à economia de mercado – por exem-
as diferenças existentes entre os homens; a liberdade da propriedade, plo, empresas públicas atuando em setores estruturalmente deficitários, em
combinada com a liberdade contratual, forma, sobre a base do conceito que o interesse público imporia inexoravelmente défices de exploração –,
formal de igualdade da pessoa, o fundamento jurídico do capitalismo e, extrai princípios de situações marginais, por vezes forçando a realidade, na
portanto, da desigualdade efectiva ou material. (LUÍS, 1966, p. 156-157). medida em que a tendência que entre nós se verifica, aponta exatamente
Carvalho (1968-69 ,p. 22). no sentido contrário: o Estado, sozinho ou acompanhado por investidores
5 Distribuía-se então a cada um conforme a sua necessidade. (ATOS DOS privados, tem vindo a transformar as empresas públicas societárias em orga-
APÓSTOLOS 4, 32-35). nizações lucrativas. Aliás, não será outra a razão de a lei atual do setor público
6 Sobre as origens e evolução do movimento cooperativo, ver Sales (2010, empresarial (Decreto-Lei n. 133/2013) ter mantido, a par das empresas pú-
p. 23-34). blicas como pessoas jurídicas de direito privado (art. 5°), as entidades públi-
7 Em Portugal, a noção de empresa continua demasiado obscura e contro- cas empresariais, pessoas jurídicas de direito público (art. 56). Sublinhando
versa, com inúmeras e contraditórias aproximações legislativas, inexistindo o fim lucrativo da sociedade em geral, mesmo na sociedade simples (não
um regime jurídico próprio, sistematizado e coerente, à semelhança do empresárial) do Direito brasileiro (COELHO, 2016, p. 76).
que se verifica no Código Comercial de Macau (arts. 95 e ss.): conceito 15 Para uma interessante e completa análise desta lei, ver Meira; Ramos
vago e difuso (uma “noção-quadro”), instituição, entidade institucionaliza- (2017).
da a caminho da personificação, distinta do estabelecimento comercial; ou, 16 Sobre esta lei, Cordeiro (2017).
identificada com o estabelecimento (em sentido amplo), universalidade de 17 A estes três tipos sociais acrescentar-se-ia, por importação da alemã GmbH
114 fato, universalidade de direito, coisa (bem imaterial sui generis). No Brasil, feita pela Lei de 11 de abril de 1901, a sociedade por quotas (correspon-
Fábio Ulhoa Coelho (2016, p. 16) define-a como atividade, na linha do dente à sociedade limitada do Direito brasileiro).
Código Comercial português de 1888 (art. 230) e, mais explicitamente, do 18 Aprovados, respetivamente, pelo Decreto-Lei n. 454/80, de 9 de outubro,
art. 2082 do Código Civil italiano de 1942. Por nós, identificando empre- pela Lei n. 51/96, de 7 de setembro, e pela Lei n. 119/2015, de 31 de agosto.
sa e estabelecimento em sentido amplo – como negócio do comerciante 19 Código Cooperativo, art. 2°,1. Sublinhando este aspeto, Abreu (1996, p. 165).
em movimento ou apto para entrar em movimento (CORREIA, 1968) –, 20 Idem, art. 17; Código do Registo Comercial, art. 4°.
vemo-la como um bem imaterial especial (sui generis), objeto de direitos 21 Idem, art. 7°; ver, por exemplo, art. 4°, 1, alíneas c), e), h) e k).
reais, integrada no patrimônio de um sujeito jurídico singular ou coletivo, 22 E sempre se poderá dizer, com Ascarelli, que o excedente ativo resultante
por considerarmos ser esta a concepção que melhor defende os vários in- das operações da empresa cooperativa é, não um lucro que se reparte
teresses envolvidos, designadamente do seu titular, seguindo parte impor- pelos membros, mas um “saldo” que se lhes restitui em função da medi-
tante da doutrina e a generalidade da jurisprudência portuguesa, posição da de colaboração nos serviços da empresa – e não em função da sua
adotada pelo código macaense (GARRETT, 2018). quota de participação no capital. Luís (1966, p. 173).
Noutro plano, deve notar-se que, para além da cooperativa, há outras 23 Distinguindo a empresa de serviço da empresa de relação (capitalista).
manifestações de cooperação – pertencentes ao mesmo gênero de Abreu (1996, p. 165).
“mutualidade” (LUÍS,1966, p. 165), já protegidas pela Constituição por- 24 Caráter acessório bem visível, por exemplo, no caso das cooperativas de
tuguesa de 1933 (art. 41) e que integram um dos setores de iniciativa habitação: art. 14, 1, do Decreto-Lei n. 502/99, de 19 de novembro.
econômica reconhecidos pela Constituição de 1976 (art. 82). 25 São os seguintes os ramos cooperativos admitidos, neste momento, em
8 Referimo-nos à empresa individual tradicional, integrada no patrimônio do Portugal: agrícola, artesanato, comercialização, consumidores, crédito, cul-
comerciante (empresário) pessoa singular (física), e não à moderna empresa tura, ensino, habitação e construção, pescas, produção operária, serviços,
individual institucionalizada, como é o caso do EIRL português ou, em maior solidariedade social (art. 4°, 1, do Código Cooperativo). A respetiva legis-
grau, da EIRELI brasileira (dotada esta de personalidade jurídica – conside- lação está dispersa, tendo-se desperdiçado já três oportunidades para a
rando a EIRELI uma sociedade, Coelho (2016, p. 113); sobre o ponto, numa reunir, sistematizar e harmonizar no código cooperativo. Desta norma do
perspetiva luso-brasileira, Moreira (2016, p. 57). Com a previsão da figura código atual resulta a resposta a duas críticas antigas dos cooperativistas
da sociedade limitada unipessoal no projeto de novo Código Comercial, (NAMORADO, 1983, p. 115): o numerus clausus do elenco dos ramos
o Direito brasileiro parece aproximar-se do português, em que a limitação cooperativos e a proibição da polivalência (multissectorialidade), hoje ex-
da responsabilidade do comerciante individual se operou, num primeiro pressamente permitida (art. 4°, 2).
momento, pela autonomia patrimonial da empresa (EIRL) para acabar na 26 Sublinhando a importância das organizações sem fim lucrativo
sociedade unipessoal por quotas (limitada) (GARRETT, 2013). Falamos de (nonprofit) para o fomento do capital de socialização – isto é, para a
institucionalização no sentido de criação de uma entidade autônoma do seu afirmação das liberdades fundamentais de expressão e de associação
titular, se bem que com graus de autonomia diferentes consoante se lhe bem como dos valores da tolerância, do pluralismo e da solidariedade
reconheça, ou não, personalidade jurídica; não no sentido que lhe é dado (HENRIQUES, 2006, p. 278-279).
no Direito brasileiro das sociedades, que opõe as sociedades contratuais às 27 As pessoas coletivas (pessoas jurídicas, na nomenclatura adotada no Di-
sociedades institucionais(COELHO ,2016, p. 82). reito brasileiro), segundo o Código Civil (art. 157), são as associações e
9 Cordeiro (2014, p. 113). as fundações, uma vez que a sociedade civil ou pura (correspondente à
10 Para a caracterização da sociedade anônima no Direito brasileiro, com al- sociedade não empresária) não tem, segundo a doutrina maioritária que
gumas diferenças de relevo, ver Coelho (2016, p. 123). temos perfilhado, personalidade jurídica (arts. 980 e ss.). Mas as socieda-
11 Por exemplo, em Portugal os bancos têm necessariamente de revestir a des comerciais, que obedecem ao conceito genérico desta norma, têm
forma de sociedade anônima (Decreto-Lei n. 298/92, de 31 de dezembro, personalidade jurídica (Código das Sociedades Comerciais, art. 5°).
art. 14, 1, b), sendo esta mais comum, se bem que não exclusiva, das 28 Correia (1968, p. 21). Este Professor de Coimbra assenta a sua argumen-

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tação justamente no fato de o Código Comercial, ao tempo, qualificar a rias de uma Lei precursora e contraditória. Revista da Ordem dos Advogados,
cooperativa como sociedade, que seria indicação de que o legislador co- Lisboa, ano 77, v. 1/2, p. 63-93, 2017.
mercial teria adotado um conceito mais aberto de sociedade, do que o MOREIRA, Welliton Luiz. A sociedade unipessoal e a limitação da respon-
conceito genérico do Código Civil, não considerando o fim lucrativo como sabilidade patrimonial do empresário individual. Orientador: Professor
elemento essencial da sociedade comercial. Dois comentários sugerem- Doutor Alexandre Libório Dias Pereira. 2016. 136 f. Dissertação (Mestrado
-nos esta argumentação: em primeiro lugar, compreender-se-ia mal, mes- em Ciências Jurídico-Empresariais) – Faculdade de Direito, Universidade de
mo nesse período, que a sociedade civil tivesse um fim necessariamente Coimbra, Coimbra, 2016. Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstre-
lucrativo, no duplo aspeto de objeto criador de riqueza nova e de distri- am/10316/42503/1/Welliton%20Moreira.pdf. Acesso em: 27 abr. 2020.
buição dos lucros pelos sócios, e a sociedade comercial, que se dedica por NADEAU, E. G. ; NADEAU, Luc. The cooperative society: the next stage in human
definição à criação de riqueza e ao enriquecimento, poderia ter um fim history. Madison, WI: E. G. Nadeau and Luc Nadeau, 2016.
não lucrativo; em segundo lugar, a retirada da cooperativa do elenco legal NAMORADO, Rui. Comentando o Código Cooperativo. Revista Crítica de
dos tipos de sociedade em forma comercial e a consagração das figuras Ciências Sociais. Coimbra, n. 12, p. 111-123, out. 1983.
do agrupamento complementar de empresas (Lei n. 4/73, de 4 de junho PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. Coimbra: Coimbra
e Decreto-Lei n. 430/73, de 25 de agosto) e do agrupamento europeu Editora, 2005.
de interesse econômico (Regulamento CEE n. 2137/85, do Conselho, de RIBEIRO, J. J. Teixeira. Capitalismo e socialismo em um mundo só. Boletim de
25 de julho de 1985) vieram reforçar a ideia de que a sociedade, civil ou Ciências Económicas, Faculdade de Direito, Coimbra, v. 8, p. 1-17, 1959-1964.
comercial, tem fim lucrativo, de produção de lucros como resultado da sua SALES, João Eder. Cooperativismo: origens e evolução. Revista Brasileira de
atividade e de posterior repartição dos lucros gerados pelos sócios – não Gestão e Engenharia, São Gotardo, MG, n. 1, p. 23-34. jan./jun. 2010.
cabendo no conceito de sociedade figuras que visam apenas facilitar ou
proporcionar a obtenção de lucros pelos associados.
29 Cfr. art. 128 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n. 62/2013, Artigo recebido em 5/5/2020.
de 26 de agosto).
30 Cordeiro (2016, p. 279-283). Artigo aprovado em 5/6/2020.
31 Sobre o Anteprojeto de Código Comercial de Angola, ver Garrett (2018)
32 Lei n. 12.690, de 19 de julho de 2012.
33 Disponível em: https://www.barandbench.com/news/portuguese-civil-co-
de-applies-to-goans-even-with-respect-to-property-outside-goa-supreme-
-court. Acesso em: 27 abr. 2020.

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I N D I C A ÇÕ ES L IT E RÁR IAS
1

raciocínio jurídico. Trabalhou no STJ até desembocou naturalmente no recém-


sua posse como Juiz Federal vinculado -criado Supremo Tribunal Federal
ao TRF da Quarta Região, onde vem (STF), continuamente provocado a se
tendo destacada atuação. manifestar acerca de temas ligados a
A escolha do tema reflete um pouco graves questões ensejadas pela Revolta
da personalidade meticulosa do seu da Armada, pela Revolução Federalista
autor e sua capacidade de identificação e pelo próprio atentado ao Presidente
de um assunto aparentemente sem inte- Prudente de Moraes, mediante a atuação
O STF NO INÍCIO DA PRIMEIRA resse na atualidade, mas que, explorado de grandes juristas da época, com
REPÚBLICA com percuciência, permite observar a sua destaque para Rui Barbosa.
Por Paulo de Tarso Vieira Sanseverino importância para a formatação de uma A obra divide-se em duas grandes
O protagonismo do Supremo instituição fundamental para a vida repu- partes correspondentes a cada um
Tribunal Federal (STF), nos dias atuais, blicana, especialmente ao se comparar desses períodos políticos: “República
tem chamado a atenção de toda a com o atual momento político brasileiro. da Espada” (1889-1994) e “República
sociedade brasileira. A leitura da obra, escrita com cuidado Oligárquica” (1894-1898).
A presente obra, elaborada com e objetividade, é extremamente agra- Na parte correspondente à “República
esmero pelo jovem Magistrado Raphael dável, relembrando episódios marcantes da Espada” (1889-1994), é analisada a
Petersen, fruto de cuidadosa pesquisa do início do período republicano para criação do Supremo Tribunal Federal
acadêmica destinada à elaboração de sua contextualizar os primeiros grandes pelo Decreto n. 848/1890, inspirado na
Dissertação de Mestrado no Programa de precedentes do Supremo Tribunal Suprema Corte norte-americana, e a sua
Pós-Graduação da Faculdade de Direito Federal na busca de sua afirmação afirmação político-institucional mediante
da Universidade Federal do Rio Grande política e institucional. a efetiva demarcação de suas compe-
do Sul, denominada de “O Supremo O período histórico escolhido não tências em face de um Poder Executivo
116 Tribunal Federal no início da Primeira poderia ser mais rico e instigante em forte. Começam a ser desenvolvidos
República: entre o Direito e a Política”, face da turbulência política que marcou os instrumentos para controle jurisdi-
remete aos primeiros anos de funcio- os primeiros anos da República, rece- cional dos atos do Poder Público, com
namento do STF, criado logo após a bendo merecidamente a qualificação de destaque para a reiterada utilização do
Proclamação da República, em que “década do caos”. “Habeas Corpus” para diferentes situ-
as graves questões políticas ocorridas Com efeito, o início do período repu- ações. Avulta, nesse ponto, a atuação
nesse período histórico tiveram direta blicano, além das naturais dificuldades de Rui Barbosa, esgrimindo o instituto
influência na sua afirmação institucional políticas na passagem da Monarquia do “Habeas Corpus” em momentos
não apenas como órgão de cúpula do para a República, foi marcado pela insta- diversos, como no caso dos presos e
Poder Judiciário brasileiro, mas também bilidade política, econômica e social, desterrados durante o Estado de Sítio
como ponto de equilíbrio da vida política com graves conflitos que permearam de abril de 1891 (Petição de “Habeas
nacional em substituição ao antigo Poder os governos militares dos Presidentes Corpus” n. 300) ou no Caso do Navio
Moderador do período imperial. Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, Júpiter de maio de 1893 (Petições de
A qualidade da obra não surpreende como a Revolta da Armada e a Revolução “Habeas Corpus” n. 406 e 410), contri-
quem acompanhou a trajetória do seu Federalista, sendo por isso denominado buindo decisivamente para a construção
autor desde os bancos acadêmicos na de “República da Espada” (1889-1994). da doutrina das garantias constitucionais
Faculdade de Direito da PUCRS, quando O período seguinte, abrangendo como limite para atuação do Poder
já se destacava como excelente aluno, o mandato do Presidente Prudente de Executivo federal. O aprofundamento da
o que ensejou a formulação de convite Moraes (1894-1898), recebeu a denomi- crise política faz com que o governo do
para atuar, inicialmente, como estagiário nação de “República Oligárquica”, também Presidente Floriano Peixoto provoque a
em meu gabinete de Desembargador marcado pela instabilidade política, com paralisação relativa do tribunal, deixando
no Tribunal de Justiça do Rio Grande do forte polarização entre os apoiadores civis de nomear os novos integrantes em
Sul e, posteriormente, como Secretário do governo federal e a oposição floria- substituição aos aposentados e fazendo
e Assessor. Quando nomeado Ministro nista, composta predominantemente por com que passasse a funcionar com o
do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em militares, ensejando a cisão do Partido número mínimo de membros (oito de
2010, convidei o Raphael para trabalhar Republicano Federal e culminando com quinze integrantes).
em Brasília como Assessor, mantendo o atentado à vida do Presidente em que Na parte relativa à “República
sempre as mesmas características de um dos envolvidos seria o próprio Vice- Oligárquica” (1894-1898), é analisada
trabalho sério e disciplinado, com grande Presidente da República. a atuação do Supremo Tribunal Federal
profundidade na pesquisa e notável Toda essa turbulência política durante o mandato do Presidente

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Prudente de Moraes, com ênfase na
consolidação da organização da Corte
com a edição da Lei n. 221/1894, bem
como dois casos de grande relevo. De
um lado, a ação sumária ajuizada por
Rui Barbosa para ampliar os efeitos
do decreto de anistia em favor dos
envolvidos na Revolução Federalista e,
de outro lado, os sucessivos “Habeas
Corpus” impetrados para impugnação
de medidas decretadas durante o estado
de sítio de 1897/1898 logo após o
atentado à vida do Presidente Prudente
de Moraes. Finalmente, é examinada a
atuação do STF no exame dos recursos
eleitorais em uma época em que ainda
não havia sido criada a Justiça Eleitoral.
Enfim, o presente livro, apesar de
versar acerca de episódios ocorridos na
última década do Século XIX, mostra-se
extremamente atual, permitindo observar
as tensões internas e externas, inclusive
em termos de opinião pública, provo-
cadas pelos julgamentos do Supremo 117

Tribunal Federal, que, já naquela época,


atuava como “caixa de ressonância” da
vida política nacional.
Estão de parabéns o seu ilustre
autor, o Programa de Pós-Graduação da
UFRGS e, principalmente, a comunidade
jurídica, presenteada com uma obra de
extrema qualidade e atualidade para a
compreensão da importância política e
institucional, desde o seu nascimento, do
Supremo Tribunal Federal!

Paulo de Tarso Vieira Sanseverino é


ministro do Superior Tribunal de Justiça.

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I N D I C A ÇÕ ES L IT E RÁR IAS
2

os benefícios previstos na legislação, com algum prejuízo ao contraditório e


especialmente no Direito Tributário, à ampla defesa, valores constitucionais”.
sujeitando-se apenas às ressalvas e limi- Trata-se de afirmação que sensibiliza
tações previstas na lei. qualquer operador do Direito Tributário,
O tema relativo ao “planejamento sobretudo magistrados que atuam no
tributário” também é tratado com muita âmbito das execuções fiscais.
RESPONSABILIDADE atenção na presente obra. Os conceitos Enfim, a presente obra chega ao
TRIBUTÁRIA DE GRUPOS de elisão fiscal (“economia fiscal dentro universo jurídico de modo distinto,
ECONÔMICOS da lei”) e evasão fiscal (“quando o contri- com notória preocupação não apenas
Por Mauro Campbell Marques buinte desborda dos limites permitidos de retratar o cenário atual, no que se
Registro, inicialmente, a satisfação pelo direito”) foram trabalhados de refere à responsabilidade de empresa
gerada pelo convite do eminente e culto forma didática. Complementando, o integrante de grupo econômico, mas de
Juiz Federal Nórton Luís Benites para autor, com base na doutrina de Heleno propor novas reflexões acerca do tema.
prefaciar a presente obra, sobretudo Taveira Tôrres, aborda a “elusão” tribu-
pela ousadia de também ter tomado tária, colocando-a na “zona cinzenta”
para análise acórdãos por mim rela- entre a licitude e a ilicitude. Em conclusão,
tados à elaboração da obra. A discussão bem observa que o quadro de licitude
acerca da responsabilidade tributária de ou ilicitude pode ser analisado tanto na
grupos econômicos transcende o Direito esfera administrativa quanto na judicial,
Tributário e gera interesse em outros levando-se em consideração o caso
ramos da ciência jurídica, como no Direito concreto, o contraditório e a atividade
Civil, Empresarial, Trabalhista e etc. probatória desenvolvida pelas partes.
118 Ressalto a preocupação didática do Ao iniciar o tópico específico da
autor, ao conceituar grupo econômico. “abordagem pragmática da responsabi-
A distinção entre “grupo econômico de lidade tributária de grupos econômicos”,
direito” e “grupo econômico de fato” está o autor trata das “doutrinas judiciais
estabelecida de maneira clara e precisa, tributárias americanas”, especialmente
com análise da respectiva legislação. da “Business Purpose Doctrine”, também
Trata-se de obra atualizada, que conhecida como doutrina da substância
leva em consideração as alterações econômica. Atento ao princípio da
efetuadas no art. 50 do Código Civil, legalidade, afirma com maestria que,
pela Lei 13.874/2019, especialmente a no Brasil, não é possível que “alguma
inclusão do § 4º, o qual dispõe que “a doutrina de cunho judicial afete os
mera existência de grupo econômico contornos da obrigação tributária”. É
sem a presença dos requisitos de que preciso que a “doutrina judicial” esteja
trata o caput deste artigo não autoriza baseada na lei para que possa haver
a desconsideração da personalidade da reconhecimento de ilicitude no negócio
pessoa jurídica”. Ao interpretar a novel jurídico realizado pelo contribuinte.
legislação, o autor bem observa que: (a) A questão relativa à aplicação do inci-
para fins de responsabilização, não basta dente de desconsideração da persona-
a mera existência do grupo econômico, lidade jurídica, no âmbito das execuções
sendo necessário a verificação de abuso fiscais, também foi enfrentada na
da personalidade jurídica por meio de presente obra. A despeito das posições
desvio de finalidade ou de confusão em sentido contrário (sobretudo do
patrimonial; (b) a regra em comento enunciado de número 53 da ENFAM,
pode gerar a responsabilização do grupo citado na obra), o autor afirma que a
econômico de fato. Alinho-me a essa instauração do incidente traz “um maior
interpretação. A existência de grupo cuidado, uma maior cautela no meca-
econômico, por si só, não é indício nismo de inclusão de terceiros no polo
de fraude. Agindo de forma lícita e passivo das execuções fiscais”, porquanto
cumprindo os respectivos deveres, o essa inclusão, atualmente, ocorre “de Mauro Campbell Marques é Ministro
grupo econômico pode usufruir de todos maneira casuística, sem rito definido, do Superior Tribunal de Justiça.

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