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Volume 1

Semana 1 a 15.1

Filosofia
e
Sociologia

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Sumário
Semana 1 - Mito, origem da filosofia e pré - socráticos........................ 3

Semana 2 - Sofistas, Sócrates e Platão.......................................................21

Semana 3 - Aristóteles.................................................................................45

Semana 4 - Filosofia Helenística e o Legado da filosofia......................70

Semana 5 - Filosofia medieval I.................................................................86

Semana 6 - Filosofia Medieval II...............................................................106

Semana 7 - Renascimento Cultural...........................................................119

Semana 8 - Formação e Consolidação do Estado..................................140

Semana 9 - Descartes, Espinosa, Pascal e Leibniz.................................160

Semana 10 - Bacon, Newnton, Locke e Berkeley..................................189

Semana 11 - Iluminismo........................................................................... 211

Semana 12 - Bentham, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche.................. 236

Semana 13 - Surgimento da Sociologia...................................................262

Semana 14 - Foeurbach e Marx................................................................282

Semana 15 - Sociologia Brasileira.............................................................301

Semana 15.1 - Durkheim e Weber............................................................325

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FILOSOFIA ANTIGA 1. ORIGEM DA FILOSOFIA

Todos nós sabemos que os primeiros filósofos Na antiguidade a região conhecida como Grécia
da humanidade foram gregos. Isso significa que embora não era um estado unificado, com poder centralizado,
tenhamos referências de grandes homens na China governo único, e suas cidades-estados (póleis)
(Confúcio, Lao Tsé), na Índia (Buda), na Pérsia obedecendo a esse poder. Era na verdade, uma região
(Zaratustra), suas teorias ainda estão por demais que por suas peculiaridades históricas e geográficas
vinculadas à religião para que se possa falar abrigava povos de origem, costumes e crenças comuns,
propriamente em reflexão filosófica. unidos por uma mesma língua.
O que veremos agora é o processo pelo qual se A sua formação se dá pela união das civilizações
tornou possível a passagem da consciência mítica para Cretense e Micênica no período que ficou
a filosófica na civilização grega, constituída por diversas convencionado chamar de pré-homérico (Séc. XX a
regiões politicamente autônomas. XII a. C.), cujo fim ocorre com a invasão dórica que
A história desse povo na antiguidade é dividida ocasionou a primeira diáspora grega, quando eles
em quatro períodos. ocuparam todas as áreas banhadas pelo mar Egeu na
- Civilização micênica - desenvolve-se desde o início forma de pequenos núcleos rurais.
do segundo milênio a.C. e tem esse nome pela Começa a partir de então o período homérico
importância da cidade de Micenas, de onde, no século (Sécs. XII a VIII a. C.), que leva esse nome por causa
XII a.C., partem Agamemnon, Aquiles e Ulisses para das obras costumeiramente atribuídas ao grande poeta
sitiar e conquistar Tróia. Homero, que nos conta, por meio da Ilíada e Odisseia,
como foi essa época.
Os pequenos núcleos rurais deram origem aos
genos que, comandado por um pater, eram formados
por pessoas que acreditavam ser de uma mesma
descendência. Apesar de terem um líder, a terra era de
propriedade de todos.
Nesse período, houve um grande aumento
populacional que não foi acompanhado pela produção
de alimentos, pois haviam poucas terras férteis.
Muitos genos se dividiram, houve disputas e
distribuição desigual de terras que passaram a ser
propriedade privada. Foi um período de turbulência e
muitas pessoas ficaram marginalizadas.
Essa instabilidade gerou a necessidade de alguns
genos se aliarem. Dessas alianças resultaram as fratrias,
e da união destas, as tribos. O poder do pater passou a
- Tempos homéricos (séculos XII a VIII a.C.) - são ser exercido por grupos de latifundiários bem nascidos
assim chamados porque nesse período teria vivido conhecidos como eupátridas. Até que finalmente
Homero (século IX ou VIII). Na fase de transição de foram formados os demos que tinha como líder o
um mundo essencialmente rural, o enriquecimento dos basileu (rei), que era o mais fodão dos eupátridas.
senhores faz surgir a aristocracia proprietária de terras Desse modo, a sociedade, que era
e o desenvolvimento do sistema escravista. essencialmente agrária e patriarcal, ficou estruturada da
- Período arcaico (séculos VIII a VI a.C.) - grandes seguinte forma:
alterações sociais e políticas com o advento da pólis e 1) Eupátridas = os paters e seus parentes mais
desenvolvimento do comércio e consequente próximos que detinham as maiores e melhores
movimento de colonização grega. terras;
- Período clássico (séculos V e IV a.C -) - apogeu da 2) Demiurgos = trabalhadores livres
civilização grega. Na política, expressão da democracia 3) Georgoi = pequenos proprietários de terras;
ateniense; explosão das artes, literatura e filosofia. 4) Thetas = homens livres, mas marginalizados por
Época em que viveram os sofistas, Sócrates, Platão e que sobraram na divisão e disputas por terras;
Aristóteles. 5) Escravos
- Período helenístico (séculos III e II a.C.) - Para sobreviver, muitos gregos tiveram que
decadência política da Grécia, com o domínio buscar terras férteis para o cultivo de alimentos. Eles se
macedônico e conquista pelos romanos. Culturalmente lançaram ao mar à procura dessas regiões e se
se dá a influência das civilizações orientais. estabeleceram, além do Mar Egeu, por quase toda
região europeia banhada pelo Mar Mediterrâneo
(principalmente no sul da península itálica e na região
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da Sicília, que ficou conhecida como Magna Grécia), deixando vários questionamentos em aberto,
adentrando também na região do Mar Negro fundando perpetuando a forma de ver e entender tanto o mundo
apoikias (novos demos - colônias) em todos esses natural quanto o social.
territórios. Essa busca de novas terras foi Segunda
Diáspora grega. Mito e estrutura social

O mito é também uma forma de justificação da


estrutura social da época. Dito de outro jeito, o mito é
uma forma de ver não só o mundo natural, como
também de entender e aceitar a divisão e
funcionamento da sociedade. Perceba que os grandes
reis (basileu) são protegidos ou escolhidos pelos
deuses e os grandes guerreiros, como Aquiles, possuem
vínculos com eles. Você se atreveria a discutir com eles,
ou questionar sua autoridade? Fica difícil, não é?
No entanto, as condições de vida social que
eram fundamentadas pelos mitos, e que também os
fundamentavam, mudaram muito e sucessivos
acontecimentos acabaram derrubando muitas dessas
explicações fabulosas sobre a realidade tanto natural
Foi basicamente nessa época que houve o quanto social, e uma nova forma de ver o mundo
ressurgimento da escrita entre os gregos, quando eles (incluindo a sociedade) precisava ser criada. É aí que
adaptaram o alfabeto fenício à sua língua. entra em cena a Filosofia como veremos mais a diante.
Homero foi o poeta-
2. O MITO rapsodo a quem costumeiramente
se atribui a autoria de dois poemas
Antes mesmo do advento da Filosofia o homem épicos (epopeias): Ilíada, que trata
já possuía a curiosidade de saber sobre a origem das da guerra de Tróia (Tróia em grego
coisas, e mesmo sem ter a tecnologia de que dispomos é Ilion), e Odisseia, que relata o
hoje, eles tinham a imaginação trabalhando a todo retorno de Ulisses a Ítaca, após a
vapor. Com ela criaram diversas histórias que foram guerra de Tróia (Odisseus é o nome
passadas de forma oral por várias gerações. A palavra grego de Ulisses). Por vários motivos, inclusive pelo
grega mythos significa contar, narrar, conversar. estilo diferente dos dois poemas, alguns intérpretes
O mito é uma narrativa fantasiosa que visa dar acham que são obras de diversos autores.
uma explicação para a origem de determinada coisa, Ao descrever na Ilíada e na Odisseia vários
sejam ela o homem, o amor, a doença, o mundo, os aspectos da cultura e as diversas formas de
deuses, etc. relacionamento social dessa época, influencia muito as
Os primeiros modelos de construção do real são várias gerações gregas que tiveram o guerreiro bom e
de natureza sobrenatural, isto é, o homem recorre aos belo como um ideal de formação a ser alcançado.
deuses para apaziguar sua aflição. Belo porque seu corpo era formado pela
Basicamente, existem dois tipos de mitos. As ginástica, pela dança e pelos jogos de guerra, imitando
narrativas que procuram explicar a origem do mundo os heróis da Guerra de Troia (Aquiles, Heitor, Ajax,
são as cosmogonias (cosmos = mundo ordenado + Ulisses). Bom porque seu espírito era formado
gonia = gerar), já as histórias que narram a origem dos escutando poetas como Homero, Píndaro e Hesíodo,
deuses são as teogonias (theos = seres divinos + gonia aprendendo com eles as virtudes admiradas pelos
= gerar). deuses e praticadas pelos heróis; a principal delas era a
Os mitos se sustentam apenas na autoridade de coragem diante da morte, na guerra. A virtude era a
quem os conta. O poeta-rapsodo, tem autoridade aretê , própria dos melhores, ou, em grego, própria dos
inquestionável, seja porque recebeu a narrativa de uma aristoi.
tradição oral respeitada, seja porque é considerado As epopeias tiveram função didática importante
alguém escolhido pelos deuses para receber uma na vida dos gregos porque descrevem o período da
revelação e passá-la aos outros. Esses devem receber a civilização micênica e transmitem os valores da cultura
informação como verdade inquestionável. por meio das histórias dos deuses e antepassados,
Desse modo, os mitos não dão espaço para expressando uma determinada concepção de vida. Por
questionamentos e nem reflexão, admitem isso desde cedo as crianças decoravam passagens dos
incoerências, contradições e são muito limitados poemas de Homero.
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As ações heroicas relatadas nas epopeias
mostram a constante intervenção dos deuses, ora para
auxiliar um protegido seu, ora para perseguir um
inimigo. O homem homérico é presa do Destino
(Moira), que é fixo, imutável, e não pode ser alterado.
Até distúrbios psíquicos como o desvario momentâneo
de Agamêmnon são atribuídos à ação divina. É nesse
sentido a fala de Heitor: “Ninguém me lançará ao
Hades contra as ordens do destino! Garanto-te que
nunca homem algum, bom ou mau, escapou ao seu
destino, desde que nasceu!”

Como o mito narra a origem do mundo e de


tudo o que nele existe? De três maneiras principais:
1º) Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos
seres. Isto é, tudo o que existe decorre de relações
sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações
geram os titãs (filhos da primeira mãe e do primeiro pai
e seus sucessores como governantes do Universo), os
deuses (filhos de um dos titãs e seus sucessores), os
heróis (filhos de um deus com uma humana ou de uma
deusa com um humano), os humanos, os metais, as
plantas, os animais, as qualidades (como quente e frio,
O herói vive, portanto, na dependência dos claro e escuro, bom e mau, belo e feio, etc.).
deuses e do destino, faltando a ele a nossa noção de Trata-se, assim, de uma genealogia, isto é, de
vontade pessoal, de livre-arbítrio. Mas isto não o uma narrativa da geração dos seres, das coisas, das
diminui diante dos homens comuns. Ao contrário, ter qualidades por outros seres, que são seus pais ou
sido escolhido pelos deuses é sinal de valor e em nada antepassados.
tal ajuda desmerece a sua virtude. 2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança
A virtude do herói se manifesta pela coragem e entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo.
pela força, sobretudo no campo de batalha, mas Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre as forças
também na assembléia, no discurso, pelo poder de divinas ou uma aliança entre elas para provocar alguma
persuasão. coisa no mundo dos homens.
O preceptor de Aquiles diz: "Para isso me É assim, por exemplo, que o poeta Homero
enviou, a fim de eu te ensinar tudo isto, a saber fazer explica na Ilíada por que, em certas batalhas da Guerra
discursos e praticar nobres feitos". Nessa perspectiva, a de Troia, os troianos eram vitoriosos e, em outras, a
noção de virtude não deve ser confundida com o vitória cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos.
conceito moral de virtude como o conhecemos A cada vez, o rei dos deuses, Zeus, aliava-se a um grupo
posteriormente, mas como excelência, superioridade, e fazia um dos lados vencer uma batalha.
alvo supremo do herói. Trata –se da virtude do A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre
guerreiro belo e bom. as deusas. Elas apareceram em sonho para o príncipe
Hesíodo, outro poeta que teria vivido por volta troiano Páris, oferecendo-lhe seus dons, e ele escolheu
do final do século VIII e princípios do VII a.C., produz a deusa do amor, Afrodite. As outras deusas,
uma obra com características que apontam para a época enciumadas, o fizeram raptar Helena, esposa do general
que se vai iniciar a seguir, com particularidades que grego Menelau. Isso deu início à guerra entre os
tendem a superar a poesia impessoal e coletiva das humanos.
epopeias.
Mas mesmo assim, sua obra Teogonia reflete
ainda a preocupação com a crença nos mitos. Nela
Hesíodo relata as origens do mundo e dos deuses, e as
forças que surgem não são a pura natureza, mas sim as
próprias divindades: Gaia é a Terra, Urano é o Céu,
Cronos é o Tempo, surgindo ora por segregação, ora
pela intervenção de Eros, princípio que aproxima os
opostos.

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3. Encontrando as recompensas ou castigos que brotará da terra, a mulher não será fecundada, a árvore
os deuses dão a quem os obedece ou desobedece. não dará frutos, o dia não sucederá à noite.
Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos A forma sobrenatural de descrever a realidade é
homens, essencial para diferenciá-los dos animais? O coerente com a maneira mágica pela qual o homem age
mito conta que um titã, Prometeu, mais amigo dos sobre o mundo, como, por exemplo, com os inúmeros
homens do que dos deuses, roubou uma centelha de ritos de passagem do nascimento, do casamento, da
fogo e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu morte, da infância para a idade adulta. Sem os ritos, é
foi castigado, sendo amarrado num rochedo para que como se os fatos naturais descritos não pudessem se
uma ave de rapina devorasse seu fígado eternamente. concretizar de fato.

Os mitos estão apenas no passado?

Uma leitura apressada, na busca do sentido do


mito, pode nos levar a pensar que se trata apenas de
uma maneira fantasiosa de explicar a realidade ainda
não justificada pela razão. Essa compreensão do mito
não esconde o preconceito comum de identificá-lo com
as lendas ou fábulas, e, portanto, como uma forma
menor de explicação do mundo, prestes a ser superada
por explicações mais racionais.
E qual foi o castigo dos homens? Os deuses No entanto, a noção de mito é complexa e mais
criaram a primeira mulher humana, Pandora, uma figura rica do que essa posição redutora. Mesmo porque o
encantadora a quem foi entregue uma caixa que conteria mito não é exclusividade de povos primitivos, nem de
coisas maravilhosas, mas que nunca deveria ser aberta. civilizações nascentes, mas existe em todos os tempos e
Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de culturas como componente indissociável da maneira
curiosidade e de vontade de dar-lhes as maravilhas, humana de compreender a realidade.
abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças, O mito não é resultado de delírio, nem uma
pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, simples mentira, ele ainda faz parte da nossa vida
a origem dos males no mundo. cotidiana, como uma das formas indispensáveis do
existir humano.

QUESTÕES

1. (UNICENTRO 2015) Sobre a Ética do período


homérico, considere as afirmativas a seguir.
I. A não separação entre ética e estética era a
característica do pensamento grego primitivo.
II. Nesse período não havia um pensamento ético
sistematizado, sendo o exemplo dos grandes homens o
guia para a ação.
Embora tenhamos nos referido ao mito III. No período homérico, a compaixão era o elemento
enquanto forma de compreensão, a sua função não é, que guiava as ações humanas.
primordialmente, explicar a realidade, mas acomodar e IV. Era uma ética fundamentalmente racional.
tranquilizar o homem em um mundo assustador. Assinale a alternativa correta.
É um discurso de tal força, que se estende por a) Somente as afirmativas I e II são corretas.
todas as dependências da realidade vivida, e não apenas b) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
no campo sagrado (ou seja, da relação entre o homem c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
e o divino), mas existe em toda a atividade humana. d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
Como não existiam códigos morais e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.
sistematizados que pudessem nortear a ação das
pessoas, podemos afirmar que uma outra função do 2. (UNICENTRO 2015) O homem arcaico se
mito é fixar os modelos exemplares de todos os ritos e reconhece como real na medida em que ele participa de
de todas as atividades humanas significativas. um arquétipo que confere ao mundo um sentido.
Dessa forma, o homem imita os gestos Todos os atos importantes da vida foram revelados, na
exemplares dos deuses, repetindo nos ritos as ações sua origem, por deuses e heróis, e os homens procuram
deles que atualizam os mitos primordiais, pois, caso repetir esses gestos paradigmáticos e exemplares. Cada
contrário, estão convencidos de que a semente não ritual resgata um início, um ato criador, um instante
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eterno. Com isso ele busca superar o horror ao evento, 04) Uma das funções do mito é fixar os modelos
que traz a mudança e o novo: a memória primitiva é exemplares de todos os ritos e de todas as atividades
anti-histórica. humanas significativas. Portanto, o mito é um meio de
Sobre as funções do mito e sua relação com a orientação das sociedades humanas.
posterioridade filosófica, considere as afirmativas a 08) O mito é uma intuição compreensiva da realidade,
seguir. cujas raízes se fundam na emoção e na afetividade. O
I. Na medida em que busca superar a evasão do tempo, mito expressa o que desejamos ou tememos, como
o mito é contraposto à metafísica filosófica. somos atraídos pelas coisas ou como delas nos
II. A lembrança mítica é poética e não factual. afastamos.
III. Através de rituais, o homem arcaico transforma as 16) O mito é uma forma predominante de narrativa nas
ações profanas – caça, pesca, agricultura, jogos, culturas que não conhecem a escrita. Um de seus
conflitos, sexualidade – em algo que participa de um objetivos é contar a origem de um grupo humano.
sentido sagrado.
IV. Os rituais periódicos são purificações: a cada ano se
recria o mundo, renova-se a esperança. 3. A PÓLIS E O SURGIMENTO DA FILOSOFIA
Assinale a alternativa correta.
a) Somente as afirmativas I e II são corretas. “Advento da Polis, nascimento da filosofia: entre as duas ordens
b) Somente as afirmativas I e IV são corretas. de fenômenos os vínculos são demasiado estreitos para que o
c) Somente as afirmativas III e IV são corretas. pensamento racional não apareça, em suas origens, solidário das
d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas. estruturas sociais e mentais próprias da cidade grega.”
e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas. (Jean-Pierre Vernant)

3. (UNICENTRO 2011) Em relação ao mito, Com a segunda diáspora, começa o período


identifique com V as afirmativas verdadeiras e, com F, arcaico (Sécs. VIII a VI a. C.), quando tivemos a
as falsas. formação de vários demos espalhados por todo o
( ) Nas sociedades primitivas, o mito nasce do desejo mediterrâneo, intensificando as trocas de mercadorias e
de dominação do mundo, para afugentar o medo e a fazendo florescer novamente o comércio. É importante
insegurança. destacar que nessa época surge a moeda como um
( ) O homem, à mercê das forças naturais, que são meio de facilitar as transações comerciais.
assustadoras, passa a emprestar-lhes qualidades A partir daí, foi só questão de tempo para que
emocionais. os demos se unissem e formassem as póleis (eram
( ) É a primeira forma que o homem utiliza para dar mais de 1.000), que foram governadas por conselhos
significado ao mundo. de eupátridas (proprietários de terras) dando início aos
( ) Fundado no desejo de segurança, o mito é uma regimes oligárquicos (governo de poucos). Eles
narrativa que conta histórias que tranquilizam os seres. desenvolveram leis, distribuíam a justiça, e ditavam a
( ) Faz parte do desenvolvimento do pensamento divindade a ser cultuada.
reflexivo e do pensamento científico. Agora, com um número muito maior de póleis,
A alternativa que indica a sequência correta, de cima e várias delas sendo importantes centros comerciais e
para baixo, é a portos estratégicos para a navegação, a principal
A) V F V F V atividade econômica deixou de ser a agricultura, e o
B) F V F V F comércio passa a ser o seu principal fator de
C) V F V F F desenvolvimento econômico.
D) V V V V F Esse desenvolvimento econômico
E) F V F V V proporcionou uma melhora significativa na qualidade
de vida material da população. A partir daí os gregos
4. (UEM 2011) O mito é um modo de consciência que passaram a ter tempo para fazer algo além de
predomina nas sociedades tribais e que, nas civilizações comercializar, eles agora iriam pensar.
da antiguidade, também exerceu significativa influência. A consolidação das póleis seguido de uma
Ao contrário, porém, do que muitos supõem, o mito relativa estabilidade política e econômica, e um longo
não desapareceu com o tempo. Sobre os significados do período de prosperidade foi o terreno fértil para o
mito, assinale o que for correto. nascimento da Filosofia. Algumas invenções e
01) O mito, como as lendas, é pura fantasia, pois não atividades que se desenvolveram, ou foram criadas,
possui nenhuma coerência lógica e, por ser dissociado juntamente com a polis foram cruciais para o seu
da realidade, não expressa nenhuma forma de verdade. surgimento. São elas:
02) O mistério é um dos componentes do mito: A escrita alfabética – Geralmente a
apresenta um enigma a ser decifrado e expressa o consciência mítica predomina nas culturas de tradição
espanto do homem diante do mundo. oral, onde ainda não há escrita. É interessante observar
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que mythos significa “palavra”, “o que se diz”. A palavra Magna Grécia (atual sul da Itália) e Jônia (atual
antes da escrita, ligada a um suporte vivo que a Turquia). O enriquecimento dos comerciantes
pronuncia, repete e fixa o evento por meio da memória promoveu profundas transformações decorrentes da
pessoal. Aliás, etimologicamente, epopeia significa "o substituição dos valores aristocráticos pelos valores da
que se exprime pela palavra" e lenda é "o que se conta". nova classe em ascensão.
É bem verdade que, de início, a primeira escrita Na época da predominância da aristocracia rural,
é mágica e reservada aos privilegiados, aos sacerdotes e cuja riqueza se baseava em terras e rebanhos, a
aos reis. economia era pré-monetária e os objetos usados para
Entre os egípcios, por exemplo, hieróglifos troca vinham carregados de simbologia afetiva e
significa literalmente “sinais divinos”. Na Grécia, a sagrada, decorrente da posição social ocupada por
escrita surge por influência dos fenícios e já no século homens considerados superiores e do caráter
VIII a.C. se acha suficientemente desligada de sobrenatural que impregnava as relações sociais.
preocupações esotéricas e religiosas. A fim de facilitar os negócios, a moeda, que tinha
Enquanto os rituais religiosos são cheios de sido inventada na Lídia, aparece na Grécia por volta do
fórmulas mágicas, termos fixos e inquestionados, os século VII a.C. A moeda torna-se necessária porque,
escritos deixam de ser reservados apenas aos que detêm com o comércio, os produtos que antes eram feitos
o poder e passam a ser divulgados em praça pública, sobretudo com valor de uso passam a ter valor de troca,
sujeitos à discussão e à crítica. isto é, transformam-se em mercadoria,
Apenas um parêntese esclarecedor: isso não Daí a exigência de algo que funcionasse como valor
significa que a escrita tenha se tornado acessível a todos. equivalente universal das mercadorias.
Muito ao contrário, permanece ainda grande o número A invenção da moeda desempenha papel
de analfabetos. O que está em questão, no entanto, é a revolucionário, pois está vinculada ao nascimento do
dessacralização da escrita, ou seja, seu desligamento da pensamento racional.
religião. Isso porque passa a ser emitida e garantida pela
A escrita gera uma nova idade mental porque Cidade, revertendo benefícios para a própria
exige de quem escreve uma postura diferente daquela comunidade. Além desse efeito político de
de quem apenas fala. Como a escrita fixa a palavra, e democratização, a moeda sobrepõe aos símbolos
consequentemente o mundo, para além de quem a sagrados e afetivos o caráter racional de sua concepção:
proferiu, necessita de mais rigor e clareza, o que muito mais do que um metal precioso que se troca por
estimula o espírito crítico. Além disso, a retomada qualquer mercadoria, a moeda é um artifício racional,
posterior do que foi escrito e o exame pelos outros - uma convenção humana, uma noção abstrata de valor
não só de contemporâneos, mas de outras gerações - que estabelece a medida comum entre valores
abrem os horizontes do pensamento, propiciando o diferentes.
distanciamento do vivido, o confronto das ideias, a A política – Esse ponto é bastante importante
ampliação da crítica. porque marca uma ruptura no modo de encarar a
Portanto, a escrita aparece como possibilidade organização social. A pólis é um lugar onde os homens
maior de abstração, uma reflexão da palavra que tenderá decidem o seu próprio destino, e não mais os deuses.
a modificar a própria estrutura do pensamento. E esse governo dos homens só era possível
As navegações – Ao desbravarem os mares os porque eles eram livres para criarem suas próprias leis,
gregos iriam realmente descobrir se existiam os que eram fruto do debate público, ou seja, da palavra
monstros e sereias que os mitos contavam. que era posta sob questionamento.
A invenção do calendário – uma forma de E esse tipo de discurso proporcionado pela
calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas atividade política foi fundamental para o surgimento do
do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, discurso filosófico, que nasceu como diálogo. A palavra
com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma que sempre pode ser debatida e questionada. Lembre-
percepção do tempo como algo natural, e não como se que no mito, a palavra era inquestionável.
uma força divina incompreensível; A invenção da política, que introduz três
A moeda – Você certamente sabe quanto custa aspectos novos e decisivos para o nascimento da
uma caneta, um caderno ou uma meia. Mas você sabe filosofia:
quanto vale um real? Sabe porque um real vale um real, 1º) A ideia da lei como expressão da vontade de
e cem reais vale cem reais? Pois é, esse é um exercício uma coletividade humana que decide por si mesma o
de abstração que requerem cálculos complexo. Os que é melhor para si e como ela definirá suas relações
gregos deixaram de trocar as coisas e passaram a usar a internas.
moeda quando adquiriam essa capacidade de abstração. Drácon (séc. VII a.C.), Sólon e Clístenes (séc.
Por volta dos séculos VIII a VI a.C. houve o VI a.C.) são os primeiros legisladores que marcam uma
desenvolvimento do comércio marítimo decorrente da nova era: a justiça, até então dependente da
expansão do mundo grego mediante a colonização da
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arbitrariedade dos reis ou da interpretação da vontade causas que fazem haver ordem, lei e justiça na natureza
divina, é codificada numa legislação escrita. e na pólis. Justo é o que segue a ordem natural e respeita
Regra comum a todos, norma racional, sujeita à a lei natural.
discussão e modificação, a lei escrita passa a encarnar Mas a pólis existe por natureza ou é instituída
uma dimensão propriamente humana. por convenção entre os homens? A justiça e a lei
Essa característica da pólis grega – um espaço política são naturais ou estabelecidas pelos humanos,
legislado e regulado – servirá de modelo para a filosofia isto é, convencionais? Essas indagações colocam, de um
propor que também o mundo é racionalmente lado, os sofistas, defensores do caráter convencional da
legislado, regulado e ordenado. justiça e da lei, e, de outro, Platão e Aristóteles,
2º) O surgimento de um espaço público, que faz defensores do caráter natural da justiça e da lei.
aparecer um novo tipo de discurso, diferente daquele O cidadão da pólis - Jean-Pierre Vernant,
que era preferido pelo mito. Neste, um poeta-vidente helenista e pensador francês, vê no nascimento da pólis
recebia das deusas ligadas à memória (a deusa (por volta dos séculos VIII e VII a.C.) um
Mnemosyne, mãe das musas, entidades que guiavam o acontecimento decisivo que "marca um começo, uma
poeta) uma iluminação ou uma revelação sobrenatural verdadeira invenção", que provocou grandes alterações
e, então, dizia aos homens quais eram as decisões dos na vida social e nas relações entre os homens.
deuses que eles deveriam obedecer. A originalidade da pólis grega é que ela está
Agora, com a pólis, a palavra constitui-se como centralizada na ágora (praça pública), espaço onde se
direito de cada cidadão emitir em público sua opinião, debatem os problemas de interesse comum. Separam-
discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma se na pólis o domínio público e o privado: isto
decisão proposta por ele. Desse modo, surge o discurso significa que ao ideal de valor de sangue, restrito a
político como palavra humana compartilhada, como grupos privilegiados em função do nascimento ou
diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como fortuna, se sobrepõe a justa distribuição dos direitos dos
decisão racional e exposição dos motivos ou das razões cidadãos enquanto representantes dos interesses da
para fazer ou não fazer alguma coisa. cidade. Está sendo elaborado o novo ideal de justiça,
Com a política, valorizou-se o pensamento pelo qual todo cidadão tem direito ao poder. A nova
racional, criando condições para que surgisse o discurso noção de justiça assume caráter político, e não apenas
ou a palavra filosófica. moral, ou seja, ela não diz respeito apenas ao indivíduo
3º) A noção de discussão pública das opiniões e e aos interesses da tradição familiar, mas se refere a sua
ideias, pois a política estimula um pensamento e um atuação na comunidade.
discurso públicos, ensinados, transmitidos, A pólis se faz pela autonomia da palavra, não
comunicados e discutidos, que não sejam formulados mais a palavra mágica dos mitos, palavra dada pelos
por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados. deuses e, portanto, comum a todos, mas a palavra
A ideia de um pensamento que todos podem humana do conflito, da discussão, da argumentação. O
compreender, discutir e transmitir é fundamental para a saber deixa de ser sagrado e passa a ser objeto de
filosofia. discussão.
Para os gregos, a finalidade da vida política A expressão da individualidade por meio do
era a justiça na comunidade. A noção de justiça fora, debate faz nascer a política, libertando o homem dos
inicialmente, elaborada em termos míticos com base em exclusivos desígnios divinos, e permitindo a ele tecer
três figuras principais: thémis, a lei divina trazida pela seu destino na praça pública. A instauração da ordem
deusa Thémis, que institui a ordem do Universo; humana dá origem ao cidadão da pólis, figura
kósmos, a ordem universal estabelecida pela lei divina; inexistente no mundo coletivista da comunidade tribal.
diké, a justiça que a deusa Diké instituiu entre as coisas Portanto, o cidadão da pólis participa dos
e entre os homens, no respeito às leis divinas e à ordem destinos da cidade por meio do uso da palavra em praça
cósmica. pública. Mas para que isso fosse possível, desenvolveu-
Pouco a pouco, a noção de diké identificou-se se uma nova concepção a respeito das relações entre os
com a regra natural para a ação das coisas e dos homens homens, não mais assentadas nas suas diferenças, na
e o critério para julgá-las. A ideia de justiça se refere, hierarquia típica das relações de submissão e domínio.
portanto, a uma ordem divina e natural, que regula, Ou seja, “os que compõem a cidade, por mais diferentes
julga e pune as ações das coisas e dos seres humanos. A que sejam por sua origem, sua classe, sua função,
justiça é a lei e a ordem do mundo, isto é, da natureza aparecem de uma certa maneira "semelhantes" uns aos
ou physis. Lei (nómos), natureza (physis) e ordem outros”.
(kósmos) constituem assim o campo da ideia de justiça. De início a igualdade existe apenas entre os
A invenção da política exigiu que as explicações guerreiros, mas “essa imagem do mundo humano
míticas fossem afastadas — thémis e diké deixaram de encontrará no século VI sua expressão rigorosa num
ser vistas como duas deusas que impunham ordem e leis conceito, o de isonomia: igual participação de todos os
ao mundo e aos seres humanos, passando a significar as cidadãos no exercício do poder”.
9
7
Nas póleis gregas não havia muita diferença de outros povos, tanto os que os antecederam, quanto os
riqueza entre os cidadãos e a monarquia não era a forma que foram seus contemporâneos. Mas também é
de governo predominante entre eles. inegável como eles souberam transformar esses
Os gregos acreditavam que um homem livre conhecimentos adquiridos em alto totalmente novo e
que vivia em pleno gozo de suas faculdades mentais e melhor.
corporais deveria viver em uma comunidade política Do oriente eles aprenderam alguns
que se autodeterminava por leis que ela mesma criava conhecimentos como a matemática e astronomia, e
por meio do debate, e não por um homem (rei) ou souberam dar a eles uma dimensão teórica, enquanto os
alguma divindade. orientais os concebiam em sentido puramente prático.
A vida na pólis era voltada para que eles Se os egípcios desenvolveram e transmitiram a arte do
desenvolvessem plenamente suas capacidades cálculo, os gregos, particularmente a partir dos
humanas, fruto de sua natureza. Cada cidadão era Pitagóricos, elaboraram uma teoria sistemática do
estimulado a exercitar as virtudes e reprimir os vícios. E número. Se os babilônios fizeram uso de observações
a justiça necessária para controlar esse lado ruim só astronômicas particulares para traçar rotas para os
pode ser encontrada em uma comunidade bem navios, os gregos as transformaram em teoria
ordenada, de homens virtuosos, justos e livres, que astronômica.
governam a si mesmos, ou seja, na pólis. Como podemos perceber, a Filosofia não foi
Essa visão histórica da formação da sociedade um “milagre” repentino do povo grego, mas o resultado
grega desde os núcleos rurais até a formação das póleis, de uma gestação que vinha acontecendo no seio das
nos ajuda a entender não apenas o surgimento da transformações ocorridas na sociedade grega durante
filosofia, mas o por que dela ter sido uma invenção séculos.
grega.
Ela também não foi uma cópia do pensamento QUESTÕES
das civilizações orientais, a filosofia foi criação do gênio
helênico (os antigos gregos autodenominavam- 01. (UEM 2015) “O nascimento da filosofia pode ser
se helenos, e a seu país chamavam Hélade, nunca tendo entendido como o surgimento de uma nova ordem do
chamado a si mesmos de gregos nem à sua pensamento, complementar ao mito, que era a forma de
civilização Grécia, essas palavras são latinas, pois era pensar dos gregos. Uma visão de mundo que se formou
assim que os romanos denominavam os gregos). de um conjunto de narrativas contadas de geração a
Além dessas condições históricas e geração [...]. Os mitos apresentavam uma religião
sociopolíticas, temos também a influência da poesia politeísta, sem doutrina revelada, sem teoria escrita, isto
e da religião grega na criação da filosofia. A poesia é, um sistema religioso, sem corpo sacerdotal e sem
antecipou o gosto pela harmonia, pela proporção e pela livro sagrado, apenas concentrada na tradição oral, é
justa medida (Homero) e um modo particular de isso que se entende por teogonia”.
fornecer explicações remontando às causas, mesmo que (Filosofia / vários autores. Curitiba: SEED-PR, 2006. p. 18).
em nível fantástico-poético (Hesíodo e sua Teogonia). Sobre o surgimento da filosofia, assinale o que for
A religião grega se diferenciou em religião pública correto.
(inspirada em Homero e Hesíodo) e em religião dos 01) Na Grécia Antiga, o conhecimento dos mitos era
mistérios, em particular a órfica. transmitido pelos padres da Igreja.
A religião pública considera os deuses como 02) O livro do Gênesis repete o primeiro capítulo da
forças naturais ampliadas na dimensão do divino, ou Teogonia de Hesíodo, que trata da criação do mundo.
como aspectos característicos do homem sublimado. 04) A teogonia visa explicar a genealogia dos deuses e
A religião órfica considera o homem de modo sua relação com os fenômenos do mundo.
dualista: como alma imortal que por sua culpa originária 08) A oralidade constitui a forma privilegiada de
foi condenada a viver em um corpo, entendido como transmissão do pensamento mítico.
tumba e prisão. Do Orfismo deriva a moral que põe 16) O mito representa uma forma de pensamento
limites precisos a algumas tendências irracionais do religioso contrário à racionalidade filosófica de Platão e
homem. dos filósofos pré-socráticos.
O que agrupa essas duas formas de religião é a
ausência de dogmas fixos e vinculantes em sentido 02. (UNICENTRO 2012) No período arcaico
absoluto, de textos sagrados revelados e de intérpretes (séculos VIII a VI a.C.), na Grécia antiga, alguns fatos
e guardiões dessa revelação (sacerdotes preparados para contribuíram para o processo de ruptura com o
essas tarefas precisas). Por esse motivo, o pensamento pensamento mítico e a emergência do pensamento
filosófico teve desde o início ampla liberdade de filosófico.
expressão. Com base nessa informação, a alternativa que contém
No processo de construção do saber filosófico, alguns desses fatos é a
é inegável o quanto que os gregos aprenderam com os
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A) A invasão dórica; o apogeu do escravismo; as guerras Filosofia, como foram os únicos a criar as ciências e a
púnicas. dar às artes uma elevação que nenhum outro povo
B) A invasão da Grécia pelos bárbaros; a lei escrita; a conseguiu, nem antes e nem depois deles.
guerra de Troia. A) V – V – V – F.
C) Os pensamentos dos sofistas; a invenção da moeda; B) F – F – V – F.
a conquista de Troia. C) F – V – V – F.
D) A fundação da Pólis (cidade-estado); os poemas de D) V – V – F – V.
Homero; as guerras médicas. E) V – V – F – F.
E) A invenção da escrita e da moeda; a lei escrita; a
fundação da Pólis (cidade-estado). 05. (UEM) “Para referir-se à palavra e à linguagem, os
gregos possuíam duas palavras: mythos e lógos.
03. (UNICENTRO 2011) A geração da ordem do Diferentemente do mythos, lógos é uma síntese de três
mundo, na Grécia Arcaica, é apresentada por mitos que ideias: fala/palavra, pensamento/ideia e realidade/ser.
narram a genealogia e a ação de seres sobrenaturais. A Lógos é a palavra racional em que se exprime o
filosofia da escola jônica caracteriza-se por explicar a pensamento que conhece o real. É discurso (ou seja,
origem do cosmos, recorrendo a elementos ou a argumento e prova), pensamento (ou seja, raciocínio e
processos encontrados na natureza. demonstração) e realidade (ou seja, as coisas e os nexos
Sobre esses aspectos da cultura grega antiga, é correto e as ligações universais e necessárias entre os seres). [...]
afirmar: Essa dupla dimensão da linguagem (como mythos e
A) A transformação de uma representação lógos) explica por que, na sociedade ocidental,
dominantemente mítica do mundo, para uma podemos comunicar-nos e interpretar o mundo sempre
concepção filosófica, expressa, entre os séculos VIII e em dois registros contrários e opostos: o da palavra
VI a.C., na antiga Grécia, uma mudança estrutural na solene, mágica, religiosa, artística e o da palavra leiga,
sociedade. científica, técnica, puramente racional e conceitual.”
B) Homero foi o primeiro historiador grego e, nas suas (CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2011, p. 187- 188).

obras, a Ilíada e a Odisséia, ele descreve o A partir do texto, assinale a(s) alternativa(s) correta(s).
comportamento de homens heroicos, em cujas ações os 01) O mythos é uma linguagem que comunica saberes
componentes mitológicos inexistem. e conhecimentos.
C) Os filósofos da escola jônica realizaram uma ruptura 02) As coisas próprias do domínio religioso são
definitiva entre a mitologia e a filosofia e, a partir de inefáveis, ou seja, não podem ser pronunciadas e ditas
então, é impossível encontrar, no pensamento pela linguagem humana.
filosófico, a presença de mitos. 04) O mythos não possui o mesmo poder de
D) O mito é incapaz de instituir uma realidade social, convencimento e de persuasão que o lógos.
pois seu caráter fantasioso não passa qualquer 08) O lógos é, ao mesmo tempo, o exercício da razão e
credibilidade para seus ouvintes. sua enunciação para os seres humanos.
E) O mito consiste em uma história religiosa, revelada 16) O lógos é muito mais do que a palavra, é a expressão
por autoridades supostamente indiscutíveis. das qualidades essenciais do ser, a possibilidade de
conhecer as coisas nos seus fundamentos primeiros.
04. (UNICENTRO 2013) Informe se é verdadeiro (V)
ou falso (F) o que se afirma a seguir e assinale a
alternativa com a sequência correta. 4. A TRAGÉDIA GREGA
( ) Os historiadores da Filosofia dizem que ela possui
data e local de nascimento: final do século VI antes de Uma das características da consciência mítica é
Cristo, nas colônias gregas da Ásia Menor a aceitação do destino: os costumes dos ancestrais têm
(particularmente as que formavam uma região raízes no sobrenatural; as ações humanas são
denominada de Jônia), na cidade de Mileto. E o determinadas pelos deuses; em consequência, não se
primeiro filósofo foi Tales de Mileto. pode falar propriamente em comportamento ético, uma
( ) A Filosofia possui um conteúdo preciso ao nascer: vez que falta a dimensão de subjetividade que
é uma cosmologia, isto é, nasce como conhecimento caracteriza o ato livre e autônomo.
racional da ordem do mundo ou da Natureza. Ao analisarmos a passagem do mito à razão há
( ) A origem oriental (egípcia, persa, caldéia e um período intermediário caracterizado pela
babilônica) da Filosofia ainda é, atualmente, a tese mais consciência trágica que representa o momento em que
aceita entre os historiadores da filosofia. o mito não foi totalmente superado e ainda não se
( ) A tese mais aceita entre os estudiosos da Filosofia firmou a consciência filosófica.
é, ainda hoje, aquela que a concebe como sendo um A tragédia grega floresceu por curto período, e
“milagre grego”, isto é, somente os gregos, povo os autores mais famosos foram Ésquilo (525-456a.C.),
excepcional, poderiam ter sido capazes de criar a Sófocles (496-c.406a.C.) e Eurípedes (c.480-406a.C.).
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O conteúdo das peças é retirado dos mitos, mas famosos são Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Com base
há algo de novo no tratamento que os autores - na afirmação acima, assinale o que for correto.
sobretudo Sófocles – dão ao relato das façanhas dos 01) A tragédia tem por matéria-prima as fábulas de
heróis. Esopo e de La Fontaine, densas de personagens míticos
Tomemos por exemplo a tragédia Édipo-Rei e ação dramática.
de Sófocles. Nela conta-se que Laio, senhor de Tebas, 02) Platão, como se sabe, escreveu tragédias e
soube pelo oráculo que seu filho recém-nascido haveria manifestou, na sua obra mais importante, A República, o
um dia de assassiná-lo, casando-se em seguida com a apreço pelos rapsodos e poetas.
própria mãe. Por isso, Laio antecipa-se ao destino e 04) Ao assassinar Laio e se casar com Jocasta, Édipo,
manda matá-lo, mas suas ordens não são cumpridas, e na trilogia tebana, é acusado de três crimes: regicídio,
a criança cresce em Lugar distante. patricídio e incesto.
08) A tragédia grega exprime um conflito insolúvel,
levado a termo pela morte ou confinamento de suas
partes conflitantes.
16) A tragédia confronta, no personagem do herói, o
destino e a liberdade, recorrendo ao mito e aos esboços
de um ser de vontade.

5. PRÉ-SOCRÁTICOS – OS PRIMEIROS
FILÓSOFOS
Quando adulto, Édipo consulta o oráculo e ao
tomar conhecimento do destino que lhe fora reservado, Tendo Sócrates como a grande referência na
foge da casa dos supostos pais a fim de evitar o filosofia antiga, os historiadores consentiram em
cumprimento daquela sina. No caminho desentende -se chamar esse primeiro período filosófico de pré-
com um desconhecido e o mata. Esse desconhecido era, socrático.
sem que Édipo soubesse, seu verdadeiro pai. Entrando É de se ressaltar que essa convenção tem como
em Tebas, casa com Jocasta, viúva de Laio, ignorando critério não apenas uma ordem cronológica, mas a linha
ser ela sua mãe. E assim se cumpre o destino. de investigação filosófica, pois ao tempo de Sócrates
Mesmo que Sófocles tenha tomado do mito o ainda haviam pré-socráticos.
enredo da história, as figuras lendárias apresentam-se Os principais filósofos pré-socráticos foram:
com a face humanizada, agitam-se e questionam o  Os da Escola Jônica: Tales de Mileto,
destino. A todo momento emerge a força nova da Anaxímenes de Mileto, Anaximandro de Mileto
vontade que se recusa a sucumbir aos desígnios divinos e Heráclito de Éfeso;
e tenta transcender o que lhe é dado com um ato de  Os da Escola Itálica: Pitágoras de Samos;
liberdade. E, mesmo quando a intuição de Édipo lhe  Os da Escola Eleata: Parmênides de Eleia e
indica ser ele próprio o assassino procurado em Tebas, Zenão de Eleia;
leva o inquérito até o fim, como se estivesse em busca  Os da Escola da Pluralidade: Empédocles de
da própria identidade (“O dia de hoje te fará nascer e te Agrigento, Anaxágoras, Leucipo de Abdera e
matará”). Demócrito de Abdera.
Mas, se no final vence o irracional, Édipo não
foi um ser passivo. E a tragédia consiste justamente na Esses primeiros filósofos se preocuparam em
contradição entre determinismo e liberdade, na luta tentar explicar a physis (palavra grega que pode ser
contra o destino levada a cabo pelo homem que surge traduzida por natureza) por isso eles serem conhecidos
como um ser de vontade. Quando no final Édipo se também como naturalistas, ou mesmo físicos, pois
cega, diz: “Apolo me culminou com os mais horrorosos estavam tentando entender o mundo físico de uma
sofrimentos. Mas estes olhos vazios não são obra dele, forma racional (cosmologia), dando uma explicação
mas obra minha”. diferente da dos mitos, que recorriam aos deuses.
A tentativa de reflexão retrata o logos nascente. Diferentemente da explicação mítica que dizia
Daí em diante a filosofia representará o esforço da que o universo havia sido criado do nada, para eles o
razão em compreender o mundo e orientar a ação. universo havia sido gerado de um princípio universal.
E descobrir essa arché seria a chave para entender todas
QUESTÕES as coisas.
Os Pré-Socráticos acreditavam que a physis
01. (UEM 2010) A tragédia grega floresceu em um apesar de estar em constante movimento (devir) possuía
período curto (525–406 a.C.). Seus autores mais um elemento de permanência e que este seria o seu

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princípio originador, seu fundamento, e explicaria a O ar sustenta e governa o universo, e gera todas
causa da mudança. as coisas, transformando-se mediante a condensação
O “princípio” é, propriamente, aquilo de que em água e terra, e em fogo pela rarefação.
derivam e em que se resolvem todas as coisas, e aquilo Pitágoras de Samos
que permanece imutável mesmo nas várias formas que (570-490 a. C.) e os
pouco a pouco assume. Pitagóricos deslocam a
Dentre esses filósofos haviam os que problemática do princípio a um
acreditavam que a arché era um único elemento, estes novo e mais elevado plano.
eram os monistas. Mais tardiamente, outros pré- O princípio da realidade
socráticos começaram a defender que eram vários, e é para os pitagóricos não um
ficaram conhecidos como pluralistas. elemento físico, mas o
“número”. Segundo eles,
5.1 MONISTAS todos os fenômenos mais significativos acontecem
Tales de Mileto (640-546 a. segundo regularidade mensurável e exprimível com
C.), que talvez tenha sido o números. O número, portanto, é a causa de cada coisa
primeiro filósofo. Foi ele o e determina a sua essência e a recíproca relação com as
criador, do ponto de vista outras.
conceitual, do problema Para os Pitagóricos, não são os números
concernente ao princípio (arché). enquanto tais o fundamento último da realidade, mas os
Tales identificou o princípio elementos do número, ou seja, o “limite” (princípio
com a água, pois contatou que o elemento líquido está determinado e determinante) e o “ilimitado” (princípio
presente em todo lugar em que há vida. indeterminado).
Anaximandro de Se tudo é número, tudo é “ordem” e o universo
Mileto (610-547 a. C.) foi inteiro aparece como um kósmos (termo que significa
provavelmente discípulo de Tales justamente “ordem”) que deriva dos números, e
e continuou a pesquisa sobre o enquanto tal é perfeitamente cognoscível também nas
princípio. Criticou a solução do suas partes.
problema proposta pelo mestre, Os Pitagóricos derivam do Orfismo o conceito
salientando sua incompletude pela de vida como expiação/purificação para poder retornar
falta de explicações das razões e junto aos deuses, mas atribuem a virtude catártica não a
do modo pelo qual do princípio derivam todas as coisas. ritos e práticas, como queriam os órficos, mas ao
Se o princípio deve poder tornar-se todas as conhecimento e à ciência, isto é, à “vida contemplativa”
coisas que são diversas tanto por quantidade quanto por em grau supremo, chamada “vida pitagórica”, a qual
qualidade, deve em si ser privado de indeterminações eleva o homem e o leva à contemplação da verdade.
qualitativas e quantitativas, deve ser infinito Creditava aos números a origem de tudo, mas
espacialmente e indefinido qualitativamente: conceitos desde que entendidos como harmonia e proporção. Ou
estes que se expressam em grego com o único termo, seja, tudo na natureza é proporcional e harmônico.
ápeiron (indeterminado). Heráclito de Éfeso (535-475 a. C.), um dos
O princípio - que pela primeira vez filósofos mais importantes desse período, dizia que o
Anaximandro designa com o termo técnico de arché – universo está em constante mudança, tudo flui, tudo
é, portanto, o ápeiron . Dele as coisas derivam por uma está em transformação constante. Ele é o autor da
espécie de injustiça originária (o nascimento das coisas famosa frase que caracteriza bem o seu pensamento:
está ligado com o nascimento dos contrários, que “Um homem não pode se banhar duas vezes no mesmo rio, porque
tendem a subjugar um no outro) e a ele retornar por na segunda vez o rio e o homem não serão os mesmos.”
uma espécie de expiação (a morte leva à dissolução e, Para ele, o devir é uma
portanto, à resolução dos contrários um no outro). característica estrutural de toda
Para ele, o princípio criador, o ápeiron, não a realidade. E isso é assim
poderia ser conhecido pelos sentidos, mas somente porque todas as coisas possuem
pelo intelecto. os opostos em constante
Anaxímenis (588-524 a. guerra. O real é a mudança e a
C.), discípulo de Anaximandro, permanência é ilusória.
continua a discussão sobre o Não se trata de um
princípio, mas critica a solução devir caótico, mas de passagem dinâmica ordenada de
proposta pelo mestre: a arché é o um contrário ao outro, é uma guerra de opostos que no
ar infinito, difuso por toda a parte, conjunto se compõe em harmonia de contrários. O
perene em movimento. mundo é, portanto, guerra nos particulares, mas paz e
harmonia no conjunto.
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Nesse contexto, o princípio para Heráclito é o Primeiramente, fora do ser não existe nada e,
fogo, que é perfeita expressão do movimento perene, e portanto, também o pensamento é ser (não é possível
justamente na dinâmica da guerra dos contrários, que para Parmênides pensar o nada). Em segundo lugar, o
tem esse elemento como sua causa. ser é não gerado (porque de outro modo deveria derivar
O fogo está estreitamente ligado ao conceito de do não-ser, mas o não-ser não existe). Em terceiro
racionalidade (logos), razão de ser da harmonia do lugar, é incorruptível (porque de outro modo deveria
cosmo. terminar no não-ser).
Portanto não há ser estático, e o dinamismo Além disso não tem passado nem futuro (de
pode bem ser representado pela metáfora do fogo, outro modo, uma vez passado, não existiria mais, ou na
forma visível da instabilidade, símbolo da eterna espera de ser no futuro, ainda não existiria), e, portanto,
agitação do devir, "o fogo eterno e vivo, que ora se existe em um eterno presente, é imóvel, é homogêneo
acende e ora se apaga". (todo igual a si, porque não pode existir mais ou menos
Para Heráclito o ser é o múltiplo. Não no ser), é perfeito, é limitado e uno.
sentido apenas de que existe a multiplicidade das coisas, Portanto, aquilo que os sentidos atestam em
mas de que o ser é múltiplo por estar constituído de como em devir e múltiplo, e consequentemente tudo
contrários, pois "a guerra é pai de todos, rei de todos". aquilo que eles testemunham, é falso.
E é da luta que nasce a harmonia, como síntese dos A segunda via é a do erro, a qual, confiando nos
contrários. sentidos, admite que existia o devir, e cai, por
Pode-se dizer que Heráclito teve a intuição da conseguinte, no erro de admitir a existência do não-ser.
lógica dialética, a ser elaborada por Hegel e depois A terceira via procura certa medição entre as
Marx, no século XIX. duas primeiras, reconhecendo que também os opostos,
Parmênides (510-470 como a “luz” e a “escuridão”, devam identificar-se no
a. C.) de Eleia, rompe com os ser (a luz “é”, a noite “é”, e, portanto, ambas são, ou
filósofos que o precederam na seja coincidem no ser). Os testemunhos dos sentidos
maneira de pensar o mundo. E devem ser repensados em nível de razão.
por isso não se adequa a Em essência, para Parmênides, a mudança
classificação de monista ou (devir) não existe, é uma ilusão dos sentidos, Heráclito
pluralista. estava errado. “O Ser é e o não ser não é”. O Ser é o
Ele se apresenta como Logos (razão), a permanência, é imutável e sem
inovador radical e, em certo contradições.
sentido, como pensador
revolucionário. Efetivamente com ele a cosmologia O surgimento da ontologia
recebe um profundo e benéfico abalo do ponto de vista
conceitual, transformando-se em uma ontologia (teoria Foi Parmênides o primeiro filósofo a afirmar
do ser). que o mundo percebido por nossos sentidos — o
Segundo esse filósofo, o elemento de cosmo estudado pela cosmologia — é um mundo
permanência, de origem, de fundamento, das ilusório, feito de aparências, sobre as quais formulamos
coisas/mundo (physis) não pode ser encontrado na sua nossas opiniões. Foi ele também o primeiro a contrapor
mutabilidade constante. a esse mundo mutável a ideia de um pensamento e de
Melhor dizendo, não se pode encontrar o um discurso verdadeiros referidos àquilo que é
princípio (arché) imutável do universo na sua própria realmente, ao Ser — tò on, on.
mudança, ainda mais quando a investigação é O Ser é, diz Parmênides. Com isso, pretendeu
conduzida pelos sentidos. dizer que o Ser é sempre idêntico a si mesmo, imutável,
Para ele a mudança seria apenas uma ilusão dos eterno, imperecível, invisível aos nossos sentidos e
sentidos, e o que é essencial nas coisas só pode ser visível apenas para o pensamento. Foi Parmênides o
captado pelo pensamento. Por esse motivo, é que primeiro a dizer que a aparência sensível das coisas da
haviam tantas opiniões contrárias sobre o Ser das natureza não possui realidade, não existe real e
coisas, porque os filósofos estavam trilhando um verdadeiramente, não é. Contrapôs, assim, o Ser (on) ao
caminho errado que só os levava à ilusão. Não-Ser (me on), declarando: “o Não-Ser não é”. A
Parmênides no seu poema Sobre a natureza filosofia é chamada por Parmênides de “a Via da
descreve três vias de pesquisa Verdade” (alétheia), que nega realidade e conhecimento
1) A da verdade absoluta; à “Via de Opinião” (dóxa), pois esta se ocupa com as
2) A das opiniões falazes; aparências, com o Não-Ser.
3) A da opinião plausível Ora, a cosmologia ou física ocupava-se
A primeira via afirma que “o Ser existe e não justamente com o mundo que percebemos e no qual
pode não existir”, e que “o não-ser não existe”, e disso vivemos com as demais coisas naturais. Ocupava-se
tira toda uma série de consequências. com a natureza como um cosmo ou ordem regular e
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12
constante de surgimento, transformação e QUESTÕES
desaparecimento das coisas.
A cosmologia buscava a explicação para o devir, 01. (UNICENTRO 2012) A primeira escola filosófica
isto é, para a passagem de uma coisa a um outro modo grega é a de Mileto e seus principais representantes são
de existir, contrário ao que possuía. Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Esses filósofos são
Parmênides tornou a cosmologia impossível ao considerados monistas, pois propõem
afirmar que o pensamento verdadeiro exige a A) um único elemento como princípio original de tudo.
identidade, a não transformação e a não contradição do B) dois elementos principais como princípio original de
Ser. Considerando a mudança de uma coisa em outra tudo.
contrária como o Não-Ser, Parmênides também C) três elementos como princípio original de tudo.
afirmava que o Ser não muda porque não tem como D) quatro elementos principais como princípio original
nem por que mudar e não tem no que mudar, pois, se de tudo.
mudasse, deixaria de ser o Ser, tornando-se contrário a E) vários elementos como princípio original de tudo.
si mesmo, o Não-Ser. Como consequência, mostrou
que o pensamento verdadeiro não admite a 02. (UNICENTRO 2012) “O número é a essência de todo
multiplicidade ou pluralidade de seres e que o Ser é uno o existente. Toda a harmonia do cosmo é justificada pelos
e único. números”.
Os argumentos da Escola Eleata eram Essa frase está relacionada a
rigorosos: A) Leucipo.
 admitamos que o Ser não seja uno, mas B) Sócrates.
múltiplo. Nesse caso, cada ser é ele mesmo e não C) Pitágoras.
é os outros seres; portanto, cada ser é e não é ao D) Aristóteles.
mesmo tempo, o que é impensável ou absurdo. E) Anaxímenes.
O Ser é uno e não pode ser múltiplo;
 admitamos que o Ser não seja eterno, mas teve 03. (UEL 2016) A conexão que Pitágoras estabeleceu
um começo e terá um fim. Antes dele, o que entre a Música e a Matemática foi absorvida pelo
havia? Outro Ser? Não, pois o Ser é uno. O espírito grego. Nessa fonte, alimentam-se novos
Não-Ser? Não, pois o Não-Ser é o nada. conhecimentos normativos, que banham todos os
Portanto, o Ser não pode ter tido um começo. domínios da existência entre os gregos. Um momento
Terá um fim? Se tiver, o que virá depois dele? decisivo é a nova concepção da estrutura da música. A
Outro Ser? Não, pois o Ser é uno. O Não-Ser? harmonia exprime a relação das partes com o todo. Está
Não, pois o Não-Ser é o nada. Portanto, o Ser nela implícito o conceito matemático de proporção que
não pode acabar. Sem começo e sem fim, o Ser o pensamento grego figura em forma geométrica e
é eterno; intuitiva. A harmonia do mundo é um conceito
 admitamos que o Ser não seja imutável, mas complexo em que estão compreendidas a representação
mutável. No que o Ser mudaria? Noutro Ser? da bela combinação dos sons no sentido musical e a do
Não, pois o Ser é uno. No Não-Ser? Não, pois rigor do número, a regularidade geométrica e a
o Não-Ser é o nada. Portanto, se o Ser mudasse, articulação tectônica. A ideia grega de harmonia
tornar-se-ia Não-Ser e desapareceria. O Ser é abrange a arquitetura, a poesia e a retórica, a religião e a
imutável e o devir é uma ilusão de nossos ética.
sentidos. (Adaptado de: JAEGER, W. Paideia: a formação do homem
O que Parmênides afirmava era a diferença entre grego. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.207.)
pensar e perceber. Percebemos a natureza na Com base no texto e nos conhecimentos sobre o
multiplicidade e na mutabilidade das coisas que se surgimento da filosofia e dos primeiros filósofos,
transformam umas nas outras. Mas pensamos o Ser, assinale a alternativa correta.
isto é, a identidade, a unidade, a imutabilidade e a a) A concepção pitagórica de mundo permitiu que os
eternidade daquilo que é em si mesmo. Perceber é ver gregos formassem a consciência de que, na ação prática
aparências. Pensar é contemplar a realidade como dos cidadãos, existe uma norma do que é proporcional,
idêntica a si mesma. Pensar é contemplar o tò on, o Ser. que deve ser seguida também na esfera do direito.
Multiplicidade, mudança, nascimento e b) A filosofia pitagórica do número corresponde à ideia
perecimento são aparências, ilusões dos sentidos. Ao de que os números exprimem relações concretas entre
abandoná-las, a filosofia passou da cosmologia à as coisas, o que possibilita dizer que os fenômenos
ontologia. naturais são reduzidos a relações quantitativas e
calculáveis.
c) Inspirando-se nos estudos sobre a música e na
observação da natureza, Pitágoras concluiu que há uma
relação de proporção entre cosmos e música, qual seja,
15
13
ambas são disformes e caóticas; essa ideia norteará a debate filosófico posterior, em relação ao modo como
concepção pitagórica de ação humana. conceber o ser.
d) O estudo das proporções em música verifica a Para Parmênides e seus discípulos:
existência de uma relação assimétrica entre o número A) A imobilidade é o princípio do não-ser, na medida em
de vibrações e o comprimento das cordas da lira; a que o movimento está em tudo o que existe.
partir disso, Pitágoras estabeleceu a ideia de assimetria B) O movimento é princípio de mudança e a
geométrica rigorosa do cosmos. pressuposição de um não-ser.
e) Pitágoras compreendeu que a diversidade com que a C) Um Ser que jamais muda não existe e, portanto, é
natureza se manifesta permite inferir que a realidade fruto de imaginação especulativa.
última das coisas assenta-se na matéria sensível e no D) O Ser existe como gerador do mundo físico, por isso
modo como as coisas se apresentam aos sentidos a realidade empírica é puro ser, ainda que em
humanos. movimento.

04. (UFU 2015) Em nós, manifesta-se sempre uma e a


mesma coisa, vida e morte, vigília e sono, juventude e 5.2 PLURALISTAS
velhice. Pois a mudança de um dá o outro e
reciprocamente. Empédocles (490-430
Heráclito, fragmento 88. ln: BornHeim, g. a. (org.). Os filósofos a. C.), o primeiro dos
pré-socráticos. São Paulo: editora cultrix, 1998. P. 41. pluralistas, herda de
Assinale a alternativa que explica o fragmento de Parmênides o conceito da
Heráclito. impossibilidade do nascer
A) A oposição é a afirmação da força irracional que como um derivar do ser a partir
sustenta o mundo e explica a constante mudança de do não-ser e do perecer como
tudo que existe. passagem do ser ao não-ser.
B) A oposição dos contrários nada mais é que o Todavia procura superar a paradoxalidade desta tese,
equilíbrio das forças, pois no mundo tudo é “uno e que vai contra aquilo que a experiência atesta,
constante, tudo mais é apenas ilusão. recorrendo a uma pluralidade de princípios, cada um
C) A mudança permite afirmar que a constância do dos quais mantém as características do ser de
mundo das ideias é a única realidade, na qual as Parmênides.
essências determinam tudo. “Nascer” e “perecer”, como desejava
D) A oposição é a confirmação de que a realidade é o Parmênides, não consistem do “vir do” ou em “ir no”
eterno fluxo de mudanças, e da tensão dos contrários não-ser, e sim no “agregar-se” e “compor-se” e no
nasce a harmonia e a unidade do mundo. “desagregar-se” e “decompor-se” dos quatro elementos
originários (raízes de todas as coisas), que são ar, água,
05. (UFU 2017) Leia o fragmento de autoria de terra e fogo. Cada um desses elementos é incorruptível,
Heráclito. homogêneo, eterno, inalterável, ou seja, tem as
Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, características fundamentais do ser de Parmênides.
abundância e fome. Mas toma formas variadas assim Com a recíproca agregação e desagregação, esses
como o fogo, quando misturado com essências, toma o elementos dão lugar a um mundo múltiplo e em devir.
nome segundo o perfume de cada uma delas. Água, terra, ar e fogo são movidos e governados
BORNHEIM, G. (Org.). Os filósofos pré-socráticos. São Paulo:
Cultrix, 1998, p. 40.
por duas forças cósmicas, o Amor e o Ódio: uma
Conforme o exposto, “Deus”, no pensamento de agrega, a outra desagrega. Quando prevalece o Amor
Heráclito, significa: temos perfeita unidade (o Esfero); quando prevalece o
A) A unidade dos contrários. ódio em sentido extremo, temos ao invés o máximo de
B) O fundamento da religião monoteísta do período desagregação (o Caos). Nas fases de relativo
arcaico. predomínio do Ódio, gera-se o cosmo.
C) Uma abstração para refutar o logos. Empédocles procurou explicar também o
D) A impossibilidade da harmonia no mundo. conhecimento, sustentando que das coisas se
desprendem eflúvios que atingem os sentidos. Como
06. (UFU 2013) De um modo geral, o conceito de physis nossos sentidos são feitos dos mesmos elementos de
no mundo pré-socrático expressa um princípio de que é composto o mundo, o fogo que está em nós
movimento por meio do qual tudo o que existe é gerado reconhece o fogo que está nas coisas, a terra reconhece
e se corrompe. A doutrina de Parmênides, no entanto, a terra, e assim por diante. Consequentemente, é válido
tal como relatada pela tradição, aboliu esse princípio e o princípio geral que o semelhante conhece o
provocou, consequentemente, um sério conflito no semelhante.

16
14
Anaxágoras (499-428 elementos compostos: nascimento não é mais do que
a. C.), que foi mestre de um nome usado pelos homens”.
Péricles, defendia que o (EMPÉDOCLES. Apud ARANHA/ MARTINS. Filosofando:
princípio gerador de todas as Introdução à Filosofia. 3ª Ed., São Paulo: Moderna, 2006 - p. 86.).
coisas não é único, que a physis A respeito da relação entre mythos e logos (razão) no início
era formada de várias partículas da filosofia grega, analise as assertivas e assinale a
(sementes – espermatas) que se alternativa que aponta as corretas.
agregam e desagregam sendo I. O fragmento acima denota a “luta de forças” opostas
ordenadas por uma inteligência universal. na massa dos membros humanos, que ora unem-se pelo
Com agregar-se das sementes, nascem todas as amor – no início todos os membros que atingiram a
coisas que existem. E em cada uma das coisas que assim corporeidade da vida florescente –, ora divididos pela
se produzem estão presentes, em diversas proporções, força da discórdia, erram separados nas linhas da vida.
todas as sementes, sendo que as que prevalecem Assim ocorre também com todos os outros seres na
determinam as diferenças específicas. natureza.
Isso acontece de tal forma que em todas as II. A verdade filosófica apresenta-se no pensamento de
coisas estão presentes todas as qualidades (“tudo está Empédocles através de uma estrutura lógica muito
em tudo”), e deste modo se explica a razão pela qual as distante da “verdade” expressa nos relatos míticos dos
coisas podem se transformar uma na outra. gregos arcaicos.
III. Nascimento e morte, no texto de Empédocles, são
Demócrito (460-370 a. C.) e Leucipo (séc. V apresentados por meio de representações míticas que o
a. C) eram contemporâneos de Sócrates, mas como o filósofo retira de uma tradição religiosa presente ainda
objeto de suas investigações ainda era a physis, eles são em seu tempo. Essas imagens, consequentemente, se
considerados pré-socráticos. São os fundadores da transpõem, sem deixarem de ser místicas, em uma
Escola Atomista e procuram dar também uma saída filosofia que quer captar a verdadeira essência da
para o impasse de Parmênides sobre a realidade, o Ser. realidade física.
Segundo eles, o ser IV. O fragmento denota continuidade do pensamento
que não nasce, não morre e mítico no início da filosofia, pois estão presentes ainda
não entra em devir, não se o uso de certas estruturas comuns de explicação.
adapta à realidade sensível, a) Apenas II, III e IV estão corretas.
isto é, aos átomos (partes b) Apenas I, III e IV estão corretas.
indivisíveis da physis). c) Apenas I e II estão corretas.
O átomo é uma d) Apenas I e IV estão corretas.
realidade captável apenas com o intelecto, não tem e) Apenas I, II e IV estão corretas.
qualidade, mas apenas forma geométrica, e é
naturalmente dotado de movimento.
As coisas sensíveis nascem, morrem e sofrem
mutação, apenas em virtude da agregação e 6. RUPTURA ENTRE MITO E FILOSOFIA
desagregação dos átomos e, portanto, toda a realidade
pode ser explicada em sentido mecanicista a partir dos Após estudarmos o mito e o surgimento da
átomos e do vazio. filosofia temos de nos confrontarmos com a seguinte
Os atomistas explicaram o conhecimento questão: a filosofia nasceu realizando uma
recorrendo à teoria dos eflúvios, isto é, admitindo a transformação gradual dos mitos gregos ou produzindo
existência de fluxos de átomos que, destacando-se das uma ruptura radical com eles?
coisas, se imprimem sobre os sentidos. Nesse contato, Vimos que o mito narra a origem das coisas por
os átomos semelhantes que estão fora de nós meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças
impressionam os átomos semelhantes que estão em nó, sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos
fundando – de modo não diferente d Empédocles – o homens. E que basicamente temos as cosmogonias e
conhecimento. teogonias.
Ao surgir, a filosofia não é uma cosmogonia, e
QUESTÕES sim uma cosmologia, uma explicação racional sobre a
origem do mundo e sobre as causas das transformações
01. (UNICENTRO 2010) Leia o fragmento de um e repetições das coisas.
texto pré-socrático: Os estudiosos chegaram à conclusão de que as
“Ainda outra coisa te direi. Não há nascimento para contradições e limitações dos mitos para explicar a
nenhuma das coisas mortais, como não há fim na morte realidade natural e humana levaram a filosofia a retomá-
funesta, mas somente composição e dissociação dos los, porém reformulando e racionalizando as narrativas
17
15
míticas, transformando-as numa explicação filosófica, que está direcionada para as questões do
inteiramente nova e diferente. tempo presente.
Assim, podemos apontar as três diferenças mais 08) A finalidade dos concursos trágicos, no século V
importantes entre mito e filosofia: a.C., é a de fazer renascer, nos habitantes da polis,
1. O mito pretendia narrar como as coisas eram aspectos do mito, sob a forma do drama.
no passado imemorial, longínquo e fabuloso, voltando- 16) Segundo a elaboração do mito, Édipo é o primeiro
se para o que era antes que tudo existisse tal como no cidadão que defende o livre arbítrio e uma explicação
presente. A filosofia, ao contrário, se preocupa em racional para a permanência, a mudança e a
explicar como e por que, no passado, no presente e no continuidade das coisas.
futuro, as coisas são como são.
2. O mito narrava a origem por meio de 02. (UNICENTRO 2011) Há [...] algo de
genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas fundamentalmente novo na maneira como os gregos
sobrenaturais e personificadas. A filosofia, ao contrário, puseram a serviço do seu problema último — da origem
explica a produção natural das coisas por elementos e essência das coisas — as observações empíricas que
naturais primordiais (água ou úmido, fogo ou quente, ar receberam do Oriente e enriqueceram com as suas
ou frio, terra ou seco), por meio de causas naturais e próprias, bem como no modo de submeter ao
impessoais (pela combinação, composição e separação pensamento teórico e casual o reino dos mitos, fundado
entre os quatro elementos primordiais). na observação das realidades aparentes do mundo
Assim, por exemplo, o mito falava nos deuses sensível: os mitos sobre o nascimento do mundo.
Urano, Ponto e Gaia; a filosofia fala em céu, mar e terra. (JAEGER, 1995, p. 197).
O mito narrava a origem dos seres celestes, terrestres e Com base no texto e nos conhecimentos sobre a relação
marinhos pelos casamentos de Gaia (a terra) com entre mito e filosofia na Grécia Antiga, é correto
Urano (o céu) e Ponto (o mar). A filosofia explica o afirmar:
surgimento do céu, do mar e da terra e dos seres que A) A filosofia, em que pese ser considerada como
neles vivem pelos movimentos e ações de composição, criação dos gregos, originou-se no Oriente, sob o
combinação e separação dos quatro elementos – úmido, influxo da religião e, apenas posteriormente, alcançou a
seco, quente e frio. Grécia.
3. O mito não se importava com contradições, B) A filosofia representa uma ruptura radical em relação
com o fabuloso e o incompreensível, não só porque aos mitos, tendo sido uma nova forma de pensamento
esses são traços próprios da narrativa mítica, como plenamente racional, desde a sua origem.
também porque a confiança e a crença no mito vinham C) A filosofia e o mito sempre mantiveram uma relação
da autoridade religiosa do narrador. de interdependência, uma vez que o pensamento
A filosofia, ao contrário, não admite filosófico necessita do mito para se expressar.
contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas D) A filosofia, apesar de ser pensamento racional,
exige que a explicação seja coerente, lógica e racional. desvinculou-se dos mitos de forma gradual.
Além disso, a autoridade da explicação não vem da E) O mito busca respostas para problemas que são
pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em objeto da pesquisa filosófica e, nesse aspecto, é
todos os seres humanos. considerado parte integrante da filosofia.

QUESTÕES 03. (UFU) No início do século XX, estudiosos


esforçaram-se em mostrar a continuidade, na Grécia
01. (UEM 2010) Ordem e desordem são princípios Antiga, entre mito e filosofia, opondo-se a teses
presentes nos deuses olímpicos (forças medidas) e nos anteriores, que advogavam a descontinuidade entre
deuses titânicos (forças desmesuradas, fora de medida), ambos.
respectivamente, representantes da passagem do caos A continuidade entre mito e filosofia, no
para a ordem, conforme a descrição mítica do mundo, entanto, não foi entendida univocamente. Alguns
anterior ao surgimento da Filosofia. estudiosos, como Cornford e Jaeger, consideraram que
Sobre a herança mítica na Filosofia, assinale o que for as perguntas acerca da origem do mundo e das coisas
correto. haviam sido respondidas pelos mitos e pela filosofia
01) Sófocles, Aristófanes, Hesíodo e Homero são nascente, dado que os primeiros filósofos haviam
autores que legaram à Filosofia a compreensão mítica, suprimido os aspectos antropomórficos e fantásticos
não racionalizada, do pensamento grego arcaico. dos mitos.
02) O livro do Gênesis, na Bíblia Sagrada, contém o ato Ainda no século XX, Vernant, mesmo
divino da criação do mundo, presente no primeiro aceitando certa continuidade entre mito e filosofia,
capítulo da Teogonia, de Hesíodo. criticou seus predecessores, ao rejeitar a ideia de que a
04) O advento da pólis e a invenção da moeda e da filosofia apenas afirmava, de outra maneira, o mesmo
escrita colaboraram para a passagem do mito à razão
18
16
que o mito. Assim, a discussão sobre a especificidade 05. (UFU 2011) Leia o texto e as assertivas abaixo a
da filosofia em relação ao mito foi retomada. respeito das relações entre o nascimento da filosofia e a
Considerando o breve histórico acima, concernente à mitologia.
relação entre o mito e a filosofia nascente, assinale a O nascimento da filosofia na Grécia é marcado pela
opção que expressa, de forma mais adequada, essa passagem da cosmogonia para a cosmologia. A cosmogonia,
relação na Grécia Antiga. típica do pensamento mítico, é descritiva e explica
A) O mito é a expressão mais acabada da religiosidade como do caos surge o cosmos, a partir da geração dos
arcaica, e a filosofia corresponde ao advento da razão deuses, identificados às forças da natureza. Na
liberada da religiosidade. cosmologia, as explicações rompem com a
B) O mito é uma narrativa em que a origem do mundo religiosidade: a arché (princípio) não se encontra mais na
é apresentada imaginativamente, e a filosofia ordem do tempo mítico, mas significa princípio teórico,
caracteriza-se como explicação racional que retoma enquanto fundamento de todas as coisas. Daí a
questões presentes no mito. diversidade de escolas filosóficas, dando origem a
C) O mito fundamenta-se no rito, é infantil, pré-lógico fundamentações conceituais (e portanto abstratas)
e irracional, e a filosofia, também fundamentada no rito, muito diferentes entre si.
corresponde ao surgimento da razão na Grécia Antiga. ARANHA, M. L. A; MARTINS, M. H. P. Filosofando. São Paulo: Moderna,
1993, p. 93.
D) O mito descreve nascimentos sucessivos, incluída a I - Uma corrente de pensamento afirma que houve
origem do ser, e a filosofia descreve a origem do ser a ruptura completa entre mito e filosofia, tal corrente é a
partir do dilema insuperável entre caos e medida. que defende a tese do milagre grego.
II - Outra corrente de pensamento afirma que não
04. (UFU) No início do século XX, estudiosos houve ruptura completa entre mito e filosofia, mas certa
esforçaram-se em mostrar a continuidade, na Grécia continuidade, é a que defende a tese do mito noético.
Antiga, entre mito e filosofia, opondo-se a teses Assinale a alternativa correta.
anteriores, que advogavam a descontinuidade entre A) I é falsa e II verdadeira.
ambos. A continuidade entre mito e filosofia, no B) I é verdadeira e II falsa.
entanto, não foi entendida univocamente. Alguns C) I e II são verdadeiras.
estudiosos, como Cornford e Jaeger, consideraram que D) I e II são falsas.
as perguntas acerca da origem do mundo e das coisas
haviam sido respondidas pelos mitos e pela filosofia 06. (UFU 2014) Dentre as teorias que explicam o
nascente, dado que os primeiros filósofos haviam nascimento da filosofia na Grécia Antiga, há uma que
suprimido os aspectos antropomórficos e fantásticos enfatiza o seu surgimento político. Qual característica
dos mitos. Ainda no século XX, Vernant, mesmo da polis grega teria contribuído para o nascimento da
aceitando certa continuidade entre mito e filosofia, filosofia?
criticou seus predecessores, ao rejeitar a ideia de que a A) A proeminência, no espaço público, do pensamento
filosofia apenas afirmava, de outra maneira, o mesmo e da reflexão sobre a palavra.
que o mito. Assim, a discussão sobre a especificidade B) Com a polis advém uma revolução social na Grécia:
da filosofia em relação ao mito foi retomada. o surgimento da nova classe dirigente dos sábios ou
Considerando o breve histórico acima, concernente à Reis filósofos.
relação entre o mito e a filosofia nascente, assinale a C) A existência de um discurso público e dialogado,
opção que expressa, de forma mais adequada, essa baseado na troca de opiniões e no desenvolvimento de
relação na Grécia Antiga. argumentos persuasivos.
a) O mito é a expressão mais acabada da religiosidade D) A fundação de um cosmo social laico, expulsando,
arcaica, e a filosofia corresponde ao advento da razão dos domínios da polis, a religião, o sagrado e os
liberada da religiosidade. sacerdotes.
b) O mito é uma narrativa em que a origem do mundo
é apresentada imaginativamente, e a filosofia
caracteriza-se como explicação racional que retoma
questões presentes no mito.
c) O mito fundamenta-se no rito, é infantil, pré-lógico
e irracional, e a filosofia, também fundamentada no rito,
corresponde ao surgimento da razão na Grécia Antiga.
d) O mito descreve nascimentos sucessivos, incluída a
origem do ser, e a filosofia descreve a origem do ser a
partir do dilema insuperável entre caos e medida.

19
17
GABARITO

QUESTÕES MITO
1. a
2. e
3. d
4. 2/4/8/16

QUESTÕES SUGIMENTO FILOSOFIA


1. 4/8
2. e
3. a
4. e
5. 1/8/16

QUESTÕES TRAGÉDIA
1. 4/8/16

QUESTÕES MONISTAS
1. a
2. c
3. a
4. d
5. a
6. b

QUESTÕES PLURALISTAS
1. a

QUESTÕES RUPTURA
1. 1/4/8
2. d
3. b
4. b
5. c
6. c

20
18
FILOSOFIA CLÁSSICA • Criou a boulé, que era um conselho de 400
membros escolhidos pela Eclésia, e que tinha a
A maturação e desenvolvimento da filosofia função de criar projetos de leis para serem
clássica ocorre em Atenas devido a uma série de votados por esta;
acontecimentos que passaremos a analisar a seguir. • Deu cidadania a todo aquele que contribuísse
É importante entendermos o contexto histórico com a pólis.
para que as teorias filosóficas desse período possam Ficou decidido que, o que Sólon fizesse não
fazer sentido, pois a Filosofia como construção humana poderia ser modificado por 10 anos. Então, depois de
está limitada a seu tempo e contexto social, embora fazer essas reformas Sólon deixou Atenas, tanto para
muitos queriam fazer parecer que não. não perder sua vida, quanto para não usar de seu
prestígio e tornar-se um tirano.
1 - ATENAS EM QUESTÃO Apesar de profundas, essas reformas trouxeram
ainda mais tensões. E de toda insatisfação emergiu em
Atenas foi fundada pelos jônios na região da 546 a. C. o primeiro tirano de Atenas, Pisístrato.
Ática. Inicialmente esteve sob o regime monárquico, e Nessa época o termo tirano não tinha toda a
depois oligárquico. Era governada pelos Eupátridas carga negativa que tem hoje, e designava apenas uma
(bem nascidos), que além de possuírem as maiores e forma ilegítima de governo. Não é que o tirano fosse
melhores terras, ainda tinham como escravos outros cruel e mandasse cortar a cabeça de quem olhasse torto
atenienses, que foram pequenos proprietários de terras pra ele, é que ele não chegou ao poder com o apoio dos
que não conseguiram saldar suas dívidas. que detinham o poder.
Sem um solo propício para agricultura, e com Pisístrato foi até um bom governante, manteve
um porto (Pireu) estrategicamente localizado no inalteradas as leis de Sólon, construiu grandes obras,
Mediterrâneo, os Atenienses se lançaram ao mar. patrocinou as artes, os jogos e os festivais, e projetou
Tornaram-se grandes marinheiros e desenvolveram o Atenas como grande centro comercial e cultural da
comércio de forma significativa. Grécia.
O comércio enriqueceu muitos atenienses que Seus sucessores foram uns bocós e não
não tinham o sangue azul dos eupátridas e estavam souberam se manter no poder, abrindo espaço
doidos por participação política. A isso, some a novamente para conflitos internos, quando Clístenes
insatisfação dos escravizados por dívidas, dos toma o poder em 510 a. C.
potencialmente escravos, e ainda, rebeliões provocadas Clístenes governou
por estes. Pronto, o barril de pólvora estava cheio e Atenas de 510 a 507 a. C, e
prestes a explodir. ousou muito ao dividir o
Drácon em 620 a. C., tentou acalmar os ânimos território da Ática em 10 tribos,
tornando públicas por meio da escrita, as leis da pólis, e cada tribo em 03 DEMOS.
que antes eram conhecidas só pelos eupátridas. Não Com isso ele queria acabar
adiantou muita coisa. com a influência das
Agora pasmem, em 594 a. C., os grupos tradicionais famílias nobres
dominantes da época, decidiram eleger um homem aristocráticas.
sábio para fazer reformas que pudessem colocar fim ao É claro que para ocupar cargos públicos ainda
clima de guerra que afligia a sociedade ateniense. era necessário ter uma certa quantidade de riqueza,
Escolheram Sólon, um dos sete sábios da como Sólon havia estipulado. Mas cada vez menos isso
Grécia, que instituiu profundas reformas na sociedade. dependia da família a que se pertencia.
Dentre as quais podemos citar: A boulé (que criava projeto de lei) passou a ter
• Perdoou a dívida dos atenienses escravizados, 500 membros. Cada tribo elegia 50, e cada tribo a
e acabou com a escravidão por dívidas; presidia sucessivamente durante o ano. Perceba o salto
• Limitou o tamanho da propriedade; qualitativo nesse regime de participação política que
• Modificou o critério de classificação social, do mais tarde viária a ser chamado de DEMOCRACIA.
nascimento para a riqueza; A Eclésia (assembleia popular) passou também
• Com isso, modificou o critério para a, além de votar, discutir os projetos de lei.
participação nos cargos públicos Provavelmente a boulé tinha mais poderes que a Eclésia
(magistraturas), permitindo a participação no início do processo de construção desse novo regime,
dos comerciantes na política; mas com o tempo a situação se inverteu.
• Permitiu a participação de todos os atenienses O OSTRACISMO foi uma instituição muito
na Assembleia (Eclésia), mesmo o mais famosa criada também por ele. Não era uma pena, mas
pobre; uma forma de defender o novo regime contra
levantes tirânicos. Se uma pessoa estava se tornando
21
1
demasiadamente famosa, prestigiada, e influente, ela era É inegável que toda a glória alcançada por
banida da pólis por um período de 10 anos e depois Atenas teve como sustentação material a submissão das
retornava como se nada tivesse acontecido. outras póleis. No entanto, deve-se deixar bem claro que
Pense bem. Num regime onde todos devem ser apesar da relação dos atenienses com os outros fosse de
iguais, não deve haver essas grandes personalidades, hostilidade, entre eles, imperava os ideais mais nobres
senão, não haveria isonomia, que era a base do sistema. como igualdade, liberdade e justiça. Em virtude disso, a
As reformas provocadas pela legislação de forma de governo que tem por base esses ideais pôde
Clístenes fundam a pólis sobre uma base nova: a antiga florescer em sua plenitude.
organização tribal é abolida e estabelecem-se novas Em Atenas o exercício da atividade política era
relações, não mais baseadas na consanguinidade, mas básico, algo comum na vida de seus habitantes. A
determinadas por nova organização administrativa. Tais participação na tomada de decisões dos assuntos que
modificações expressam o ideal igualitário que prepara dizem respeito à administração da pólis era a principal e
a democracia nascente, pois a unificação do corpo mais nobre atividade que um homem livre poderia se
social abole a hierarquia fundada no poder aristocrático dedicar.
das famílias. Foi nessa época que surgiu na cena política
Essas reformas de Clístenes no sistema político ateniense um grande orador, de família aristocrática, e
de Atenas acabaram influenciando toda a Grécia, e seu excelente estrategista militar.
governo foi a transição entre o período arcaico e o Péricles (495 – 429 a.C.) liderou Atenas em seu
clássico. esplendor (não é à toa que esse século recebeu seu
No período clássico (Sec. V ao IV a. C.), as nome), quando na assembleia, juntamente com seus
Guerras Médicas (os medos faziam parte do povo concidadãos, aprimorou o regime democrático a ponto
Persa, daí o nome) foram o pano de fundo para um de afirmar o seguinte em seu discurso fúnebre:
maior destaque de Atenas dentre todas as póleis gregas. “Nosso regime político não se
Eles já estavam se sentido os maiorais por terem suas propõe tomar como modelo as leis
instituições como modelo do que de melhor se poderia de outros: antes somos modelos que
ter. Agora, iam colocar os músculos para trabalharem. imitadores. Como tudo nesse
Diante dessas invasões as póleis gregas, regime depende não de poucos, mas
persuadidas por Atenas, fizeram uma aliança militar da maioria, seu nome é
conhecida como Liga de Delos. Claro que isso tinha democracia. Nela, enquanto no
um custo, e que ninguém era obrigado a participar. No tocante às leis todos são iguais
entanto, seria bom contar com uma certa segurança não para a solução de suas divergências
é mesmo? particulares, no que se refere à
Inicialmente os recursos obtidos ficaram na ilha atribuição de honrarias o critério
de Delos (por isso o nome), mas com o tempo foram se baseia no mérito e não na
transferidos para Atenas. Mesmo com o fim das categoria a que se pertence...”
ameaças externas a Liga permaneceu, e ninguém mais O primeiro cidadão ateniense instituiu a
poderia dela se desligar, pois Atenas logo interferia. O mistoforia , que era uma justa quantia em dinheiro para
que antes não era obrigação, tornou-se submissão. que mesmo o mais lascado dos homens livres pudesse
Dessa maneira, portanto, Atenas, sob a participar diretamente da administração da cidade.
liderança de um líder democrático, construiria com as Agora, não precisava mais nem ser de família nobre, e
riquezas dos outros a sua ERA DE OURO. Foi nessa nem ter riqueza suficiente para ocupar determinado
época que a cidade foi embelezada com grandes cargo.
templos e obras públicas. Só para se ter uma ideia, o Tal salário era necessário porque esses gregos
Partenon, um dos maiores feitos de arquitetura da acreditavam que todos os cidadãos eram iguais
humanidade, foi erguido nesta época. (isonomia) e por esta razão, tinham direito de se
expressar (isegoria) na assembleia, e de ter
participação no poder (isocracia). Para eles não havia
outra maneira, a única forma de DEMOCRACIA era
a DIRETA.
Basicamente, a estrutura política estava
arquitetada da seguinte forma:
ASSEMBLÉIA – Conselho de cidadãos que
tomavam as decisões mais importantes da pólis. Eles
se reuniam no monte Pinyx (imagem abaixo). Claro
que não tinham essas cadeiras, mas olhe a vista que eles
tinham da acrópole. Imagine os atenienses tomando as
22
2
decisões da pólis com a vista das maravilhas que eles igualdade de todos os homens adultos livres perante as
foram capazes de fazer. Era mesmo algo grandioso. leis, a garantia de todos participarem diretamente no
governo da pólis, e de exprimir, discutir e defender em
público suas opiniões sobre as decisões que a cidade
deveria tomar, faz surgir a figura política do cidadão.
Mas, para conseguir que sua opinião fosse aceita
nas assembleias, o cidadão precisava ser capaz de
persuadir os demais. Com isso, uma mudança profunda
vai ocorrer na educação grega.
Antes da instituição da democracia, as cidades
eram dominadas pelas famílias aristocráticas, senhoras
das terras e do poder militar. Essas famílias criaram um
padrão de educação pelo qual o homem ideal ou
perfeito era o guerreiro belo e bom, típico dos poemas
BOULÉ – Conselho de 500 cidadãos que homéricos.
propunham as leis. Mas quando a economia agrária foi sendo
ESTRATEGO – 10 generais com mandatos de suplantada pelo artesanato e pelo comércio, surgiu nas
01 ano. cidades (particularmente em Atenas) uma classe social
Para todos os cargo públicos uma pessoa só urbana rica que desejava exercer o poder político, até
podia ser eleita uma única vez na vida, para dar então privilégio da classe aristocrática.
oportunidade para outros participarem do poder. Na É para responder aos anseios dessa nova classe
boulé podia-se eleger duas vezes, e para estrategos social que a democracia é instituída. Com ela, o poder
podia ser indefinidas vezes, isso por que esse cargo vai sendo retirado dos aristocratas e passado para os
exigia habilidades especiais de guerra. cidadãos.
Somente podiam participar desses cargos os Dessa maneira, o antigo ideal educativo ou
homems filhos de pais atenienses maiores de 20 anos, pedagógico também foi sendo substituído por outro. O
pois apenas eles eram considerados Zoôn politikons. ideal da educação do Século de Péricles já não é a
Eram membros de famílias aristocráticas, pequenos formação do jovem guerreiro, belo e bom, e sim a
proprietários de terras, comerciantes e artesãos. formação do bom cidadão.
Mas a sociedade ateniense não era formada Ora, qual é o momento em que o cidadão mais
apenas por eles; haviam também os que eram excluidos aparece e mais exerce sua cidadania? Quando opina,
da cidadania. Nesse grupo temos os metecos, que eram discute, delibera e vota nas assembleias. Assim, a nova
os estrangeiros residentes ou não na pólis; as mulheres, educação estabelece como padrão ideal a formação do
que serviam basicamente para cuidar da casa e bom orador, isto é, aquele que sabe falar em público e
reproduzir; e finalmente os escravos, que eram os persuadir os outros na política.
prisioneiros de guerra. Para dar aos jovens essa educação, substituindo
Não por coincidencia, os escravos começaram a educação antiga dos poetas, surgiram, na Grécia, os
a aumentar quando a democracia estava em seu auge. sofistas.
Ora, para haver tempo livre para os cidadãos se
dedicarem à política alguem tinha que ficar trabalhando. 2 - SOFISTAS
Estimasse que eles fossem ¼ da população, no máximo.
Em Atenas não havia tratamento duro com os Os sofistas eram homens que viviam viajando
escravos, não existiam pessoas acorrentadas andando entre as póleis vendendo seu conhecimento, pois não
pelas ruas, chicotadas e esquartejamentos em praça eram ricos para se manter no ócio intelectual. A
pública. Pelo contrário, era muito comum os escravos sofística constitui radical inovação da
serem libertados. Habitantes de outras póleis problemática filosófica, deslocando o eixo das
estranhavam quando andavam nas ruas de Atenas e pesquisas do cosmo para o homem. Inaugurando o
viam escravos andando na rua como se fossem livres. período “humanista” da filosofia grega que tem sua
Nas fazendas e no mercado eles trabalhavam lado a lado razão de ser na crise da aristocracia e a ascensão da nova
com o seu senhor. Não há nenhum registro de rebeliam classe social dos comerciantes.
de escravos em Atenas. A possibilidade de conquista da O século de Péricles (V a.C.) constitui o período
liberdade que estava no horizonte, abrandava a relação áureo da cultura grega, quando a democrática Atenas
entre senhor e escravo. desenvolve intensa vida cultural e artística. Os
Com o florescimento da democracia a pensadores do período clássico, embora ainda discutam
isonomia, a isegoria e a isocracia são características de questões referentes à natureza, desenvolvem o enfoque
grande importância para o futuro da filosofia. A antropológico, abrangendo a moral e a política.
23
3
A palavra sofista, etimologicamente, vem de homens saídos da classe média, faziam das aulas seu
sophos, que significa “sábio”, ou melhor, “professor de ofício, já que não eram suficientemente ricos para
sabedoria”. Posteriormente adquiriu o sentido filosofarem descompromissadamente. Se alguns
pejorativo de “homem que emprega sofismas”, ou seja, sofistas de menor valor podiam ser chamados de
alguém que usa de raciocínio capcioso, de má-fé, com mercenários do saber, isso não poderia ser estendido a
intenção de enganar. todos.
Os sofistas sempre foram mal interpretados Vimos que os primeiros filósofos pré-socráticos
devido às críticas que sobre eles fizeram Sócrates e preocupam-se sobretudo com a natureza, e as
Platão. explicações cosmológicas se desenvolvem em torno da
procura da arché (princípio) de todas as coisas. Entre os
primeiros filósofos não há textos referentes à política.
São os sofistas que irão proceder a
passagem para a reflexão propriamente
antropológica, centrando suas atenções na questão
moral e política. Elaboram teoricamente e legitimam
o ideal democrático da nova classe em ascensão, a dos
comerciantes enriquecidos.
Os sofistas elaboram o ideal teórico da
A imagem, de certa forma caricatural da democracia, valorizada pelos comerciantes em
sofística, tem sido reelaborada no sentido de procurar ascensão, cujos interesses se contrapõem aos da
resgatar a verdadeira importância do seu pensamento. aristocracia rural. Apesar de suas contradições, o ideal
Desde que os sofistas foram reabilitados por Hegel no democrático devia ser justificado. Coube aos sofistas,
século XIX, o período por eles iniciado passou a ser no século V a.C., a função de elaborar a teorização que
denominado Aujklãrung grega (imitando a expressão interessava à nova classe dos comerciantes.
alemã que designa o iluminismo europeu do século Mas a exigência que os sofistas vêm satisfazer
XVIII). não é apenas de ordem teórica, era também de ordem
São muitos os motivos que levaram à visão essencialmente prática, voltada para a vida. Eles são os
deturpada dos sofistas que a tradição nos oferece. Em mestres da nova areté política, e o instrumento desse
primeiro lugar, há enorme diversidade teórica entre os processo será a retórica, ou seja, a arte de bem falar, de
pensadores reunidos sob a designação de sofista. Talvez utilizar a linguagem em um discurso persuasivo,
o que possa identificá-los é o fato de serem instrumento indispensável para o brilhantismo da
considerados sábios e pedagogos. participação no debate público na assembléia
Vindos de todas as partes do mundo grego, democrática.
desenvolvem um ensino itinerante pelos locais em que Isso era tão importante para as novas classes
passam, mas não se fixam em lugar algum. Deve -se a emergentes porque a capacidade de discursar e
isso o gosto pela crítica, o exercício do pensar resultante convencer, era considerada o melhor meio de ascender
da circulação de ideias diferentes. social e politicamente.
Segundo Jaeger, historiador da filosofia, os À virtude (areté) de uma aristocracia guerreira
sofistas exercem influência muito forte, vinculando-se à opõe-se a virtude do cidadão: a maior das virtudes é a
tradição educativa dos poetas Homero e Hesíodo. Eles justiça, e todos, desde que cidadãos da polis, devem ter
deram importante contribuição para a direito ao exercício do poder.
sistematização do ensino. Formaram um currículo de Enquanto na aristocracia predomina a areté
estudos: gramática (da qual foram os iniciadores), ética, para o cidadão ela é política e mais objetiva que a
retórica e dialética; por influência dos pitagóricos, anterior, pois o critério do justo e do injusto se acha na
desenvolveram a aritmética, a geometria, a astronomia lei escrita.
e a música. Através da Paidéia (conceito complexo que só
Essa divisão será retomada no ensino medieval, de forma inadequada pode ser traduzido como
constituindo o triviam (referente aos três primeiros) e o formação da cultura, tradição e educação gregas), os
quadrivium (referente aos quatro últimos). gregos elaboram a nova educação capaz de satisfazer os
Para escândalo de seus contemporâneos, ideais do homem da pólis, e não mais do aristocrata,
costumavam cobrar pelas aulas e por esse motivo superando, assim, os privilégios da antiga educação,
Sócrates os acusava de prostituição. Cabe aqui um para a qual a areté só era acessível aos que pertenciam a
reparo: na Grécia Antiga, apenas os nobres se uma linhagem de origem divina.
ocupavam com o trabalho intelectual, pois gozavam do É bem verdade que esse movimento não se
ócio, ou seja, da disponibilidade de tempo decorrente dirige ao povo em geral, mas a uma elite, àqueles bons
do fato de que o trabalho manual, de subsistência, era oradores que poderiam, nas assembléias públicas, fazer
ocupação de escravos. Ora, os sofistas, geralmente uso da palavra livre e pronunciar discursos
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4
convincentes e oportunos. Com o brilhantismo da divino, mas decorre do exercício técnico da razão
participação no debate público, deslumbram os jovens humana.
do seu tempo. Desenvolvem o espírito crítico e a Górgias de Leontine (485 a. C. a 380 a. C.)
facilidade de expressão. herda de Parmênides a temática ontológica (o ser existe,
Com frequência os sofistas são acusados de e o não-ser não existe), mas inverte os termos (o ser não
superficialidade e de pronunciar um discurso vazio, um existe, e o não-ser existe). Os pontos chaves de seu
palavreado oco. Talvez essa fama se deva a excessiva pensamento se exprimem nas três proposições
atenção dada por alguns deles ao aspecto formal da seguintes:
exposição e defesa das ideias, já que se achavam tão 1) “O nada existe” – isto se deduz do fato de
preocupados com a persuasão, instrumento por que do ser (do princípio) os filósofos
excelência do cidadão na cidade democrática. precedentes deram definições diversas e
Os melhores deles, no entanto, buscaram opostas, demonstrando com isso, que ele
aperfeiçoar os instrumentos da razão, ou seja, a não existe.
coerência e o rigor da argumentação, porque não basta 2) “Mesmo que existisse, não seria
dizer o que se considera verdadeiro, é preciso cognoscível” – o pensamento, com efeito
demonstrá-lo pelo raciocínio. Pode-se dizer que aí se não se refere necessariamente ao ser – como
encontra o embrião da lógica, mais tarde desenvolvida queria Parmênides -, mas existem coisas
por Aristóteles. pensadas que são não existentes (como, por
Tal como ocorreu com os pré-socráticos, dos exemplo, a quimera).
sofistas só nos restam fragmentos de suas obras, além 3) “Mesmo que fosse pensável, o ser não seria
das referências – como vimos, tendenciosas - feitas por exprimível” – a palavra, sendo um som,
filósofos posteriores. significa quando muito um som, mas não
Os mais famosos sofistas foram: Protágoras, de deriva dos outros sentidos, como por
Abdera (485-411 a.C.); Górgias, de Leôncio, na Sicília exemplo uma cor ou um odor.
(485 -380 a.C.); Híppias, de Élis, e ainda Trasímaco, Esta doutrina toma o nome de “niilismo”,
Pródico, Hipódamos e outros. enquanto põe o nada como fundamento de tudo.
Vejamos agora alguns dos principais sofistas. A palavra, perdendo qualquer relação com o ser,
Protágoras (480-410 não é mais veículo de verdade, mas torna-se portadora
a. C.) foi o primeiro e mais de persuasão e sugestão: se esta ação tem propósito
ilustre dos sofistas. Nascido em prático (por exemplo, convencer o público em uma
Abdera, mudou-se para Atenas assembleia, os juízes em um processo), temos a retórica
onde se tornou muito famoso e (oratória); se, ao invés, tem propósito puramente
requisitado pelas famílias ricas. estético, temos a arte.
Defendia que não havia O maior crédito que se deve atribuir aos sofistas
um conhecimento e uma foi o de ter voltado o debate filosófico da cosmologia,
verdade absoluta sobre as para a área do humano, da pólis, da ética, da política.
coisas, e que o mundo era relativo ao que os homens Pois foi por se contrapor a eles que Sócrates deu início
percebiam dele. Daí sua famosa frase: “o homem é a ao conhecimento filosófico herdado pelo ocidente.
medida de todas as coisas”.
Para cada tese é possível termos argumentos QUESTÕES
contra e a favor, sendo possível com técnica apropriada,
da qual ele se dizia mestre, tornar mais forte o 03. (UNICENTRO 2011) A questão da verdade é
argumento mais fraco. Essa era a virtude do homem, ou encarada pelos sofistas como
seja, sua habilidade primordial. A) um a priori do espírito.
Para seus críticos, sua doutrina é relativista e B) proveniente da divindade.
impossibilita a construção de um saber objetivo no qual C) expressão de poder absoluto.
se pudesse chegar a critérios que estabelecessem e D) produção técnica da racionalidade.
diferenciassem o verdadeiro do falso, o certo do errado. E) expressão absoluta do conhecimento
Tudo dependia de quem ou que grupo estava falando.
As regras sociais, bem como a própria pólis são 04. (UEM 2012) Os sofistas são conhecidos por serem
convenções, e como tal, mudam de acordo com quem os “antifilósofos”, os adversários preferidos dos
as convencionou, sendo, portanto, relativas. primeiros filósofos gregos. Entre as acusações a eles
Para outros, quando Protágoras, diz que "o endereçadas estava que “aboliram o critério, porque
homem é a medida de todas as coisas", esse fragmento afirmam que todas as aparências e todas as opiniões são
deve ser entendido não como expressão do relativismo verdadeiras e que a verdade é algo relativo, pois que
do conhecimento, mas enquanto exaltação da
capacidade de construir a verdade: o logos não mais é
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5
tudo o que é aparência ou opinião para um indivíduo IV. O ideal do cidadão era expresso pela sua
existe [deste modo] para ele.” participação nas ações e decisões da pólis, o que incluía
(MARQUES, M. P. Os sofistas: o saber em questão. In: a busca da beleza e do equilíbrio entre as formas.
FIGUEIREDO, V. de (Org.) Filósofos na Sala de Aula. São Paulo: Assinale a alternativa correta.
Berlendis & Vertecchia, 2007, v. 2, p. 31).
a) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
Sobre a atitude filosófica dos sofistas, é correto afirmar
b) Somente as afirmativas II e III são corretas.
que
c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
01) os sofistas não desejam a busca da verdade, pois
d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
essa era uma tarefa dos filósofos.
e) Somente as afirmativas I, II e IV são corretas.
02) os sofistas não negavam a verdade, apenas
apontavam os problemas relativos à sua aquisição.
06. O homem é a medida de todas as coisas. Das coisas
04) os sofistas apresentavam, com suas
que são o que são e das coisas que não são o que não
contraargumentações, problemas relevantes para os
são. A frase acima é atribuída a Protágoras, um dos mais
filósofos.
celébres sofistas. A partir dela deve-se inferir que um
08) filósofos e sofistas perfazem duas personagens
dos traços distintivos de sua filosofia é o
relevantes da filosofia na Grécia antiga.
A) positivismo.
16) os sofistas pretendiam desmascarar os filósofos na
B) relativismo.
sua capacidade de desvirtuar e iludir a juventude.
C) dogmatismo.
D) humanismo.
05. (UEL) Observe a figura e responda à questão.
E) niilismo.

07. (UEM 2013) Protágoras de Abdera (480-410 a.C.)


é considerado um dos mais importantes sofistas.
Ensinou por muito tempo em Atenas, sendo atribuído
à sua autoria a seguinte máxima da filosofia: “O homem
é a medida de todas as coisas”.
Sobre Protágoras e os sofistas, assinale o que for
correto.
01) De forma semelhante a pensadores
contemporâneos, os sofistas problematizam a
multiplicidade de perspectivas do conhecimento.
02) O relativismo de Protágoras pode ser defendido
filosoficamente a partir da percepção do movimento,
tese já defendida anteriormente por Heráclito.
04) Platão e Aristóteles contrapuseram-se aos sofistas,
ao não defender o homem como medida de todas as
coisas.
08) Em razão de seu humanismo, atribui-se a
Protágoras a inversão copernicana, isto é, a tese de que
A escultura Discóbolo de Míron, do século V a. C., não é o sol que gira em torno da Terra, mas a Terra que
expressa o ideal de homem na pólis ateniense. Com gira em torno do sol.
base nos valores deste ideal clássico, considere as 16) O saber contido na frase de Protágoras é prático,
afirmativas a seguir. além de teórico, ou seja, mobiliza o campo da filosofia
para a retórica.
I. Ao cidadão, cabia tempo livre para se dedicar
integralmente ao que era próprio do ser político, como
a especulação filosófica e a prática desportiva, visando
à realização do humano.
II. Na pólis governada por juristas apoiados por atletas
com poder de comando das tropas, o cidadão
considerava a igualdade econômica como a realização
do ser humano.
III. O cidadão era o elemento que integrava a pólis à
natureza e tal integração era representada pela
corpolatria e pelas atividades físicas impostas pelo
Senado.
26
6
3 - SÓCRATES os tornavam humanos. “Conhece-te a ti mesmo” estava
Sócrates (470 – 399 escrito no pórtico do oráculo que afirmou ser ele o mais
a. C.) foi um marco na sábio dos homens.
filosofia grega. Não deixou Como a essência não é dada pela percepção
nada escrito e o que sabemos sensorial, pelo que os sentidos nos trazem, e sim pelo
de seu pensamento é o trabalho do pensamento, procurá-la é procurar o que o
relatado por seu discípulo pensamento conhece da realidade e da verdade de uma
Platão. Ele nasceu em coisa, de uma ideia, de um valor. Isso que o pensamento
Atenas, foi contemporâneo conhece da essência chama-se conceito.
de Péricles, e crítico do Assim, Sócrates parte me busca da verdade das
regime democrático. coisas através do conceito, ou seja, a definição
Viveu na época da verdadeira (universal) do que sejam as coisas.
GUERRA DO Sócrates procurava o conceito, e não a mera
PELOPONESO (431-404 a. C.), que foi motivada opinião (doxa em grego) que temos de nós mesmos,
pela forma autoritária e abusiva com que Atenas tratava das coisas, das ideias e dos valores. Qual a diferença
os seus aliados. entre uma opinião e um conceito?
Um grupo de póleis cansada da tirania Ateniense, A opinião varia de pessoa para pessoa, de lugar
sob a liderança de Esparta, formaram a Liga do para lugar, de época para época. É instável, mutável,
Peloponeso, para enfrentá-la. Essa guerra foi o grande depende de cada um. O conceito, ao contrário, é uma
motivo da decadência das póleis gregas, pois elas foram verdade intemporal, universal e necessária que o
se destruindo e abrindo espaço para que inimigos pensamento descobre, pois mostra que é a essência
externos pudessem conquista-las. Sócrates participou universal, intemporal e necessária de alguma coisa.
de algumas batalhas, sendo condecorado por bravura. Por isso, Sócrates não perguntava se uma coisa
era bela – pois nossa opinião sobre ela pode variar –, e
O embate com os sofistas sim “O que é a beleza?”, “Qual é a essência ou o
conceito do belo, do justo, do amor, da amizade?”.
Ele travou um grande embate com os sofistas Sócrates perguntava: “Que razões rigorosas
ao dizer que eles não eram filósofos, pois não tinham você possui para dizer o que diz e para pensar o que
amor pela sabedoria nem respeito pela verdade, pensa?”, “Qual é o fundamento racional daquilo que
defendendo qualquer ideia, se isso fosse vantajoso. você fala e pensa?”.
Corrompiam o espírito dos jovens, pois faziam o erro e As questões que Sócrates privilegia, portanto,
a mentira valerem tanto quanto a verdade. Dizia são as referentes à moral, daí perguntar em que consiste
também que os sofistas estavam errados, que a coragem, a covardia, a piedade, a justiça e assim por
poderíamos sim obter um conhecimento objetivo, um diante.
saber verdadeiro. Diante de diversas manifestações de coragem,
Apesar disso, Sócrates concordava com os quer saber o que é a "coragem em si", o universal que a
sofistas em dois pontos: por um lado, a educação antiga representa. Ora, enquanto a filosofia ainda é nascente,
do guerreiro belo e bom já não atendia às exigências da precisa inventar palavras novas, ou usar as antigas
sociedade grega e, por outro, os filósofos cosmologistas dando-lhes sentido diferente. Por isso Sócrates utiliza o
defendiam ideias tão contrárias entre si que também termo logos, que na linguagem comum significava
não eram fonte segura para o conhecimento verdadeiro. “palavra”, “conversa”, e que no sentido filosófico passa
Discordando dos antigos poetas, dos antigos a significar “a razão que se dá de algo”, ou mais
filósofos e dos sofistas, o que propunha Sócrates? propriamente, conceito.
Propunha que, antes de querer conhecer a natureza ou Para ele, se a essência do homem é a busca pela
persuadir os outros, cada um deveria conhecer-se a si consciência de si, esse olhar para dentro de si através da
mesmo. atividade re-flexiva, descobrindo que na realidade ele é
a sua alma, a virtude primordial do homem atua como
A filosofia se volta para a ética a “cura da alma”, fazendo com que ela se realize da
melhor forma possível. E como a alma é atividade
A sabedoria humana de que Sócrates se diz cognoscitiva, a virtude será essencialmente a
mestre consiste na busca de justificação filosófica (isto potencialização dessa atividade, ou seja, será a busca
é, de um fundamento) da vida moral. Esse fundamento pelo conhecimento. E dado que o corpo é instrumento
consiste na própria natureza ou essência do homem, da alma, também os valores ligados ao corpo estão
entendida como consciência de si, a personalidade subordinados a ela, estando a seu serviço.
intelectual e moral. É isso que distingue o homem dos Na sua busca pelos fundamentos da moral,
outros animais. Não é à toa que ele instigava seus Sócrates indaga não apenas qual o sentido dos costumes
discípulos a terem esse conhecimento, pois era isso que
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7
estabelecidos (os valores éticos ou morais da “perguntar”). Nas discussões afirma inicialmente nada
coletividade, transmitidos de geração em geração), mas saber, diante do oponente que se diz conhecedor de
também o que é a virtude, e quais são as virtudes determinado assunto. Com hábeis perguntas, desmonta
as certezas até o outro reconhecer a ignorância. Parte
(disposições de caráter, características pessoais,
então para a segunda etapa do método, a Maiêutica
sentimentos, atitudes, condutas individuais) que levam (em grego, "parto"). Dá esse nome em homenagem a
alguém a respeitar ou não os valores da cidade, e por sua mãe, que era parteira, acrescentando que, se ela fazia
quê. parto de corpos, ele "dava à luz" ideias novas.
Ao indagar o que são a virtude e o bem, Sócrates O que é a ironia socrática? O próprio Sócrates,
realiza, na verdade, duas interrogações. Por um lado, nos diálogos platônicos, diz que seu destino é investigar,
interroga a sociedade para saber se o que ela costuma já que a única verdade que detém é a certeza de que nada
considerar virtuoso e bom corresponde efetivamente à sabe. Interrogava, portanto, para saber e, empenhado
virtude e ao bem; por outro, interroga os indivíduos nessa tarefa, não raro surpreendia as pessoas em
para saber se têm efetivamente consciência do contradições, resultantes de crenças aceitas de modo
significado e da finalidade de suas ações, se seu caráter dogmático, de pretensas verdades admitidas sem crítica.
ou sua índole são virtuosos e bons realmente. A Sócrates, por meio de perguntas, destrói o saber
indagação ética socrática dirige-se, portanto, à constituído para reconstruí-lo na procura da definição
sociedade e ao indivíduo. do conceito. Sócrates é aquele que chega de mansinho
As questões socráticas inauguram a ética como e, sem que se espere, lança uma pergunta que faz o
parte da filosofia porque definem o campo no qual sujeito olhar para si e perguntar: afinal, o que faço aqui?
valores e obrigações morais podem ser estabelecidos: a É isso o que realmente procuro ou desejo?
consciência do agente moral. É sujeito moral ou ético Ele andava pelas ruas e praças de Atenas, pelo
somente aquele que sabe o que faz, conhece as causas e mercado e pela assembleia indagando a cada um: “Você
os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de sabe o que é isso que você está dizendo?”, “Você sabe
suas atitudes e a essência dos valores éticos. o que é isso em que você acredita?”, “Você acha que
Sócrates afirma que apenas o ignorante é vicioso conhece realmente aquilo em que acredita, aquilo em
ou incapaz de virtude, pois quem sabe o que é o bem que está pensando, aquilo que está dizendo?”. “Você
não poderá deixar de agir virtuosamente. Ninguém diz”, falava Sócrates, “que a coragem é importante, mas
pode errar voluntariamente, porque quem erra se o que é a coragem?”, “Você acredita que a justiça é
engana sobre o valor daquilo que a própria ação tende; importante, mas o que é a justiça?”, “Você diz que ama
considera um bem aquilo que é mal, aquilo que é bem as coisas e as pessoas belas, mas o que é a beleza?”,
apenas na aparência. Bastaria mostrar a quem erra a “Você crê que seus amigos são a melhor coisa que você
verdade, e este corrigiria o próprio erro. tem, mas o que é a amizade?”.
Desse conceito de consciência deriva também a Sócrates fazia perguntas sobre as ideias, sobre
descoberta socrática da liberdade, entendida como os valores nos quais os gregos acreditavam e que
liberdade interior e, em última análise, como julgavam conhecer. Ao suscitar dúvidas, Sócrates os
“autodomínio”. Uma vez que a alma é racional, ela fazia pensar não só sobre si mesmos, mas também
alcança sua liberdade quando se livra de tudo que é sobre a pólis. Aquilo que parecia evidente acabava
irracional, ou seja, das paixões e dos instintos. Dessa sendo percebido como duvidoso e incerto.
forma, o homem se liberta o máximo possível das coisas Suas perguntas deixavam os interlocutores
que pertencem ao mundo externo e que alimentam suas embaraçados, irritados, curiosos, pois, quando
paixões. tentavam responder ao célebre “o que é?”, descobriam,
Também a felicidade assume valência surpresos, que não sabiam responder e que nunca
espiritual e se realiza quando na alma prevalece a ordem tinham pensado em suas crenças, valores e ideias.
adquirida com a virtude. É por isso que A ironia tinha que ser acompanhada da
Sócrates afirma que devemos buscar a virtude pelo maiêutica, isto é, o método socrático constituía-se de
valor que ela tem em si mesma. duas partes: a primeira mostrava os limites, as falhas, os
O método socrático preconceitos do pensamento comum e a segunda
iniciava no processo de busca da verdadeira sabedoria.
Sócrates costumava conversar com todos, Numa situação de conflito e de incertezas o
fossem velhos ou moços, nobres ou escravos, ironista, depois de realizar o exercício da desconstrução
preocupado com o método do conhecimento. Sócrates e da negatividade, deve ajudar as pessoas a darem à luz
parte do pressuposto "só sei que nada sei", que consiste as verdades que, no entender de Sócrates, traziam
justamente na sabedoria de reconhecer a própria dentro de si. O exercício do filosofar, a partir das
ignorância, ponto de partida para a procura do saber. verdades encontradas, abria caminhos para múltiplas
Por isso seu método começa pela parte possibilidades de escolha e ação.
considerada "destrutiva", chamada ironia (em grego,
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8
As perguntas de Sócrates não visavam “Será mesmo que vivemos uma democracia,
confundir as pessoas e ridicularizar seu conhecimento quando temos um regime político que permite a um
das coisas, mas, motivá-las a alcançar um conhecimento bom orador ir à assembleia e fazer um discurso bonito
mais profundo, não só de si próprias, mas também dos e pomposo que leve o povo a aprovar o que ele quer
outros, dos objetos e do mundo que as rodeava, sem o mínimo de reflexão?”, “será que é certo
provocando nelas novas ideias. tratarmos nossos aliados com toda essa arrogância, e
Essa era a sua maneira de filosofar, sua “arte de usando mais a força que a justiça em nossas relações?”,
partejar”, de ajudar as pessoas a parir, a dar à luz as “será mesmo bom essa democracia onde qualquer um
novas ideias, arte que dizia ter aprendido com sua mãe, possa influir nos destinos da pólis, mesmo não tendo
que ajudava as mulheres a dar à luz aos seus filhos. conhecimento do que seja bom e justo?”.
A interrogação de Sócrates expunha os saberes Entendem agora porque Sócrates era um perigo
dos sujeitos e, ao mesmo tempo, mostrava o quanto as a ser exterminado o mais rápido possível? Era um
pessoas não tinham consciência daquilo que realmente traidor, um corruptor da juventude.
sabiam. A Guerra do Peloponeso durou 27 anos e
Com a ironia, ao trazer à tona os limites dos terminou com a vitória de Esparta, no entanto, acabou
argumentos comuns, ao mostrar as contradições deixando as partes envolvidas enfraquecidas.
ocultas na ordem comumente aceita, ao revelar, ao Desde a derrota de Atenas nessa guerra, o
abalar as certezas que fundavam o cotidiano, Sócrates regime democrático ficou desacreditado pelos próprios
convida ao filosofar como um processo metódico de ateniense, e muitos deles começaram a criticá-lo. Eles
elaboração de novos saberes. argumentavam que em momentos cruciais da guerra,
Ao afirmar que também ele nada sabia, queria foram tomadas muitas decisões estúpidas por que foi
apenas dizer que um novo caminho para chegar-se a colocado para a maioria decidir, e isso levou à derrota
uma nova verdade seria indispensável. Se ele soubesse de Atenas.
esta nova verdade, ele não diria que nada sabia, pois O regime democrático ateniense foi substituído
apenas sabia o caminho, isto é, o começo do por uma oligarquia comandada por 30 tiranos indicados
conhecimento e ele queria saber mais. por Esparta. Nesse tempo ficou proibido o debate em
Sócrates, por meio de sua atividade, mostra-nos público e o ensino de retórica. Mas, alguns anos depois
que o exercício do filosofar é, essencialmente, o a democracia foi restaurada e Sócrates voltou a
exercício do questionamento, da interrogação sobre o importunar.
sentido do homem e do mundo. Ele foi acusado e, por mais forte que fossem
seus argumentos de defesa, foi condenado, porque sua
A condenação condenação já era certa desde antes mesmo do
julgamento começar. Demonstrando a liberdade da
Essa atitude, como dizem os historiadores, fez alma que sempre ensinara a seus alunos, ele bebeu
de Sócrates uma figura singular e lhe angariou alguns cicuta mas não renunciou ao que disse.
amigos e muitos inimigos. Embora parecesse neutra e
sem um objetivo preciso (Sócrates parecia não ser A acusação contra Sócrates
partidário de nenhuma das tendências da época e não
defendeu explicitamente nenhum regime político), essa Vós tendes conhecimento de que os jovens que
atitude questionava poderes instituídos, valores dispõem de mais tempo que os outros, os filhos das
consolidados e, por isso, também pedia mudanças. famílias mais ricas, seguem-me de livre e espontânea
A partir dessa atividade Sócrates enfrentou vontade, e se regozijam em assistir a esta minha análise
problemas, foi julgado e condenado à morte. Na dos homens; inúmeras vezes procuram imitar-me e
história, a filosofia questionadora incomoda o poder tentam, por sua própria conta, analisar alguma pessoa.
instituído, porque põe em discussão relações e situações Logicamente, deparam-se com numerosos homens que
que são tidas como verdadeiras. julgam saber alguma coisa e sabem pouco ou nada, e
Ora, pensemos um pouco. No auge do então, aqueles que são analisados por eles voltam-se
imperialismo ateniense, quando eles eram tomados contra mim e não contra quem os analisou, declarando
como modelos pelas outras pólis (como o próprio que Sócrates é homem por demais infame e corruptor
Péricles afirmou acima); quando eles tratavam seus dos jovens. E se alguém indaga: “Afinal, o que faz e o
“aliados” da Liga de Delos como bem entendiam, que ensina este Sócrates para corromper os jovens?”,
usando os recursos da Liga para tornar Atenas a mais nada respondem, porque o desconhecem, e, só para não
bela e poderosa pólis que já existira; quando eles evidenciar que estão confusos, dizem as coisas que
estavam maravilhados com seu regime político, que eles comumente são ditas contra todos os filósofos, além de
próprios criaram; vem um cara e começa a botar afirmarem que ele especula sobre as coisas que se
caraminholas na cabeça dos jovens perguntando: encontram no céu e as que ficam embaixo da terra, e
que também ensina a não acreditar nos deuses e
29
9
apresenta como melhores as piores razões. A verdade, o que é o verdadeiro e como alcançá-lo em tudo o que
porém, é que esses homens demonstraram ser pessoas investigamos.
que dão a impressão de saber tudo, porém,  Ao buscar a definição das virtudes
naturalmente, não querem dizer a verdade. Desta morais (do indivíduo) e das virtudes políticas (do
maneira, ambiciosos, dominados pela paixão e cidadão), a filosofia toma como objeto central de suas
numerosos como são, e todos da mesma opinião nesta investigações a moral e a política. Cabe a ela encontrar
difamação a meu respeito e com argumentos que a definição, o conceito ou a essência dessas virtudes,
podem parecer também convincentes, sem escrúpulo para além da variedade das opiniões contrárias e
algum encheram vossos ouvidos com suas calúnias. diferentes.
Este é o motivo pelo qual, finalmente, lançaram-se  É feita, pela primeira vez, uma
contra mim Meleto, Ânito e Lícon: Meleto separação radical entre, de um lado, a opinião e as
profundamente irado por causa dos poetas, Ânito por imagens das coisas, trazidas pelos nossos órgãos dos
causa dos artesãos e dos políticos, Lícon por causa dos sentidos, pelos hábitos, pelas tradições, pelos interesses,
oradores. Contudo, como vos disse desde o início seria e, de outro lado, os conceitos ou as ideias. As ideias se
de fato um verdadeiro milagre se eu tivesse a capacidade referem à essência invisível e verdadeira das coisas e só
de arrancar-vos do coração esta calúnia que possui podem ser alcançadas pelo pensamento puro, que afasta
raízes tão firmes e profundas. Esta é, ó cidadãos, a os dados sensoriais, os hábitos recebidos, os
verdade, e eu a revelo por completo, sem ocultar-vos preconceitos, as opiniões.
nada, nem mesmo esquivando-me dela, embora saiba  A reflexão e o trabalho do pensamento
que sou odiado por muitos exatamente por isso. Por são tomados como uma purificação intelectual que
sinal, é outra prova de que digo a verdade, e que esta é permite ao espírito humano conhecer a verdade
a calúnia contra mim e esta a causa. Indagai quanto invisível, imutável, universal e necessária.
quiserdes, agora ou depois, e recebereis sempre a  Sócrates e Platão se diferenciam dos
mesma resposta. sofistas porque não aceitam a validade das opiniões e
Platão. Apologia de Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, das percepções sensoriais, vistas como fonte de erro,
1999. p. 73-74. (os pensadores). mentira e falsidade, e repudiam que elas sejam usadas
para produzir argumentos de persuasão. Só assim o
pensamento pode seguir seu caminho próprio rumo
ao conhecimento verdadeiro.
São essas ideias que, de maneira alegórica ou
simbólica, encontramos na exposição platônica do
Mito da Caverna. Nesse mito ou alegoria, Platão
estabelece uma distinção decisiva para toda a história
da filosofia e das ciências: a diferença entre o
sensível e o inteligível.

QUESTÕES
O legado de Sócrates
01. (UFU) O método argumentativo de Sócrates (469
Podemos encontrar algumas características – 399 a.C.) consistia em dois momentos distintos: a
gerais do período socrático: ironia e a maiêutica. Sobre a ironia socrática, pode-se
 A filosofia se volta para as questões afirmar que:
humanas no plano da ação, dos comportamentos, das I – Torna o interlocutor um mestre na argumentação
ideias, das crenças, dos valores e, portanto, se preocupa
sofística.
com as questões morais e políticas.
 A filosofia parte da confiança no II – Leva o interlocutor à consciência de que seu saber
pensamento ou no homem como um ser racional, capaz era baseado em reflexões, cujo conteúdo era repleto de
de conhecer-se a si mesmo e, portanto, capaz de conceitos vagos e imprecisos.
reflexão. III – tinha um caráter purificador, à medida que levava
 Como se trata de conhecer a capacidade o interlocutor confessar suas próprias contradições e
de conhecimento do homem, os filósofos procuram ignorâncias.
estabelecer procedimentos que garantam que se
IV – tinha um sentido depreciativo e sarcástico da
encontre a verdade. Isto é, considera-se que o
pensamento deve oferecer a si mesmo caminhos posição do interlocutor.
próprios, critérios próprios e meios próprios para saber Assinale:
a) se apenas a afirmação III é correta.
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b) Se as afirmações I e IV são corretas. Na Apologia de Sócrates, a acusação contra o filósofo
c) Se apenas a afirmação IV é correta. é assim enunciada:
d) Se as afirmações II e III são corretas. Sócrates [...] é culpado de corromper os moços e não
acreditar nos deuses que a cidade admite, além de
02. (UFU) O trecho abaixo faz uma referência ao aceitar divindades novas (24b-c).
Ao final do escrito de Platão, Sócrates diz aos juízes:
procedimento investigativo adotado por Sócrates. Mas, está na hora de nos irmos: eu, para morrer; vós,
“O fato é que nunca ensinei pessoa alguma. Se alguém para viver. A quem tocou a melhor parte, é o que
deseja ouvir-me quando falo ou me encontro no nenhum de nós pode saber, exceto a divindade. (42a).
desempenho de minha missão, quer se trate de moço (PLATÃO. Apologia de Sócrates. Trad. Carlos Alberto Nunes.
Belém: EDUFPA, 2001. p. 122-23; 147.)
ou velho (...) me disponho a responder a todos por
Com base no texto e nos conhecimentos sobre a
igual, assim os ricos como os pobres, ou se o disputa entre filosofia e tradição presente na
preferirem, a formular-lhes perguntas, ouvindo eles o condenação de Sócrates, assinale a alternativa correta.
que lhes falo.” a) O desprezo socrático pela vida, implícito na
PLATÃO. Apologia de Sócrates. Belém: EDUFPA, 2001. resignação à sua pena, é reforçado pelo reconhecimento
Marque a alternativa que melhor representa o “método” da soberania do poder dos juízes.
socrático. b) A aceitação do veredito dos juízes que o condenaram
a) Sócrates nada ensina porque apenas transmite aquilo à morte evidencia que Sócrates consentiu com os
argumentos dos acusadores.
que ouve do seu daímon. Seu procedimento consiste em
c) A acusação a Sócrates pauta-se na identificação da
discursar, igualmente para qualquer ouvinte, com insuficiência dos seus argumentos, e a corrupção que
longos discursos demonstrativos retirados da tradição provoca resulta das contradições do seu pensamento.
poética ou com perguntas que levam o interlocutor a d) A crítica de Sócrates à tradição sustenta-se no
fazer o mesmo. A ironia é o expediente utilizado contra repúdio às instituições que devem ser abandonadas em
os adversários, cujo objetivo é somente a disputa verbal. benefício da liberdade de pensamento.
b) A profissão de ignorância e a ironia de Sócrates e) A sentença de morte foi aceita por Sócrates porque
morrer não é um mal em si e o livre pensar permite
fazem parte do seu procedimento geral de refutação por apreender essa verdade.
meio de perguntas e respostas breves (o élenkhos), e
constituem um meio de reverter os argumentos do 04. (UFU 2013) O diálogo socrático de Platão é obra
interlocutor para fazê-lo cair em contradição. A baseada em um sucesso histórico: no fato de Sócrates
refutação socrática revela a presunção de saber do ministrar os seus ensinamentos sob a forma de
adversário, pela insuficiência de suas definições e perguntas e respostas. Sócrates considerava o diálogo
como a forma por excelência do exercício filosófico e o
pela aporia.
único caminho para chegarmos a alguma verdade
c) Sócrates nunca ensina pessoa alguma, porque a legítima.
profissão de ignorância caracteriza o modo pelo qual De acordo com a doutrina socrática,
encoraja seus discípulos a adquirirem sabedoria A) a busca pela essência do bem está vinculada a uma
diretamente do deus do Oráculo de Delfos. A ironia visão antropocêntrica da filosofia.
socrática é uma dissimulação que, pela zombaria, revela B) é a natureza, o cosmos, a base firme da especulação
as verdadeiras disposições do pequeno número dos que filosófica.
C) o exame antropológico deriva da impossibilidade do
se encontram aptos para a Filosofia.
autoconhecimento e é, portanto, de natureza sofística.
d) Sócrates nunca ensina pessoa alguma sem antes D) a impossibilidade de responder (aporia) aos dilemas
testar sua aptidão filosófica por meio de perguntas e humanos é sanada pelo homem, medida de todas as
respostas. Seu procedimento consiste em destruir as coisas.
definições do adversário por meio da ironia. A
ignorância socrática encoraja o adversário a revelar suas 05. (UFU 2012) Leia o trecho abaixo, que se encontra
opiniões verdadeiras que, pela refutação, dão a medida na Apologia de Sócrates de Platão e traz algumas das
concepções filosóficas defendidas pelo seu mestre.
da aptidão para a vida filosófica.
Com efeito, senhores, temer a morte é o mesmo que se
03. (UEL 2018) Sócrates, Giordano Bruno e Galileu supor sábio quem não o é, porque é supor que sabe o
foram pensadores que defenderam a liberdade de que não sabe. Ninguém sabe o que é a morte, nem se,
pensamento frente às restrições impostas pela tradição. porventura, será para o homem o maior dos bens; todos
a temem, como se soubessem ser ela o maior dos males.
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11
A ignorância mais condenável não é essa de supor saber 07. (UNICENTRO 2010) De acordo com muitos
o que não se sabe? interpretes, Sócrates (470-399 a.C.) é considerado o
Platão, A Apologia de Sócrates, 29 a-b, In. HADOT, P. O que é a Filosofia
Antiga? São Paulo: Ed. Loyola, 1999, p. 61.
primeiro filósofo da ética. Qual das alternativas abaixo
Com base no trecho acima e na filosofia de Sócrates, NÃO caracteriza corretamente seu pensamento.
assinale a alternativa INCORRETA. A) Sócrates transporta a antiga especulação racional
A) Sócrates prefere a morte a ter que renunciar a sua para o terreno ateniense da moralidade, tentando
missão, qual seja: buscar, por meio da filosofia, a superar a crise dos valores de Atenas para dar
verdade, para além da mera aparência do saber. novamente à sua moral um fundamento sólido porque
B) Sócrates leva o seu interlocutor a examinar-se, pessoal (não-Estatal) e racional (não-religioso).
fazendo-o tomar consciência das contradições que traz B) De física, nossa interpretação torna-se moral, de
consigo. meditação solitária, torna-se diálogo. Assim, Sócrates,
C) Para Sócrates, pior do que a morte é admitir aos filósofo urbano, vai onde estão os atenienses: nos
outros que nada se sabe. Deve-se evitar a ignorância a banquetes, no ginásio, sobretudo na ágora, coração da
todo custo, ainda que defendendo uma opinião não cidade e centro de encontros.
devidamente examinada. C) Com Sócrates a moral se torna uma questão de
D) Para Sócrates, o verdadeiro sábio é aquele que, Estado. Vivendo o apogeu da cidade de Atenas, em
colocado diante da própria ignorância, admite que nada pleno século V a.C., Sócrates faz de Atenas a
sabe. Admitir o não-saber, quando não se sabe, define “civilização do discurso político”, lugar onde todo
o sábio, segundo a concepção socrática. projeto, toda decisão importante, passa pela discussão
pública em comum.
06. (UFU 2007) O trecho seguinte, do diálogo D) Para a moral grega – que era outrora uma questão
de crenças, que fazia parte das coisas indiscutíveis –,
platônico Górgias, refere-se ao modo de filosofar de
Sócrates busca um fundamento mais estável do que os
Sócrates. costumes relativos e as normas efêmeras: um
“Assim, Cálicles, desmanchar o nosso convênio e te fundamento racional, baseado na interrogação e
desqualificas para investigar comigo a verdade, se discussão individual.
externares algo com tua maneira de pensar” E) Sócrates domina a arte sutil do diálogo, a dialética,
PLATÃO. Górgias. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: jogo de espírito e de finura, feito de fintas e de esquivas,
EDUFPA, 2002, p. 198, 495a. torneio de argumentadores pleno de subentendidos e
Marque a alternativa que expressa corretamente o de alusões. Nesse terreno, o da interrogação moral,
procedimento empregado por Sócrates. interessa a Sócrates apenas isto: o que os homens dizem
a) A base da filosofia socrática é a procura da acerca do que fazem e como justificam o que querem.
perfeição da alma, mediante o exame de si mesmo e dos 08. (UNICENTRO 2011) Sócrates foi um dos mais
concidadãos, que é a condição da excelência moral. A importantes filósofos da Antiguidade. Para ele, a
refutação socrática é, sobretudo, um modo de testar a filosofia não era um simples conjunto de teorias, mas
verdade da excelência da vida. uma maneira de viver. Sobre o pensamento e a vida de
b) A base da filosofia socrática é a procura da Sócrates, é correto afirmar:
verdade acerca do conhecimento da Natureza e da A) Sócrates acreditava que passar a vida filosofando,
isto é, a examinar a si mesmo e a conduta moral das
maneira de pensar sobre os princípios racionais que
pessoas, era uma missão divina, na qual um deus pessoal
governam o cosmos a partir do conhecimento o auxiliava.
acumulado pelos filósofos anteriores. B) Nas conversações que mantinha nos lugares
c) A base da filosofia socrática é a refutação, a partir públicos, da Atenas do século V a.C., Sócrates repetia
de um convênio em busca da verdade, de todas as nada saber para, assim, não responder às questões que
proposições de seus interlocutores com o intuito de formulava e motivar seus interlocutores a darem conta
demonstrar que o conhecimento das questões morais é de suas opiniões.
C) Em polêmica com Aristóteles, para quem a cidade
impossível.
nasce de um acordo ou de um contrato social, Sócrates
d) A base da filosofia socrática é a educação escreveu a “República”, na qual demonstra ser o
mediante os discursos políticos e jurídicos encenados homem um animal político.
nos tribunais atenienses. Sócrates parte das proposições D) O exercício da filosofia, para Sócrates, consistia em
dos adversários para encontrar um discurso oposto que questionar e em investigar a natureza dos princípios e
seja retoricamente persuasivo. dos valores que devem governar a vida e, devido a esse
comportamento, contraiu inimizades de homens
poderosos, que o executaram sob a acusação de
impiedade e de corromper a juventude.
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E) A maiêutica socrática é a arte de trazer à luz, por 11. (UNICENTRO 2013) Ao dizer-se “parteiro das
meio de perguntas e de respostas, a verdade ou os almas”, Sócrates queria dizer que
conhecimentos mais importantes à vida que cada A) a verdade não está fora de nós, mas dentro de nós.
pessoa retém em sua alma. B) não existe uma única verdade, mas verdades, no
plural.
09. (UNICENTRO 2012) Sobre o pensamento C) o pensamento deve deslocar-se da contemplação
socrático, analise as afirmativas e marque com V, as interior para a contemplação exterior.
verdadeiras e com F, as falsas. D) devemos contemplar a verdade na natureza.
( ) Sócrates é autor da obra Ética a Nicômaco. E) era o pai das ideias que nasciam da alma de seu
( ) O pensamento socrático está escrito em hebraico. interlocutor, devendo ajudá-lo a realizar seus sonhos.
( ) A ironia e a maiêutica são as bases de sua filosofia.
( ) Sócrates não criticou o saber dogmático, sendo, por
isso, conselheiro dos governantes de Atenas.
4. PLATÃO
( ) Os diálogos platônicos são importantes textos
Platão (427 – 347 a. C.)
filosóficos que relatam, na maioria, o pensamento de
foi o maior discípulo de
Sócrates.
Sócrates, era um homem de
A partir da análise dessas afirmativas, a alternativa que
família aristocrática e influente
indica a sequência correta, de cima para baixo, é a
na política. Como todo jovem
A) F V F V V
ateniense, era um entusiasta do
B) V F V V F
regime democrático até
C) F F V F V
conhecer seu mestre aos vinte
D) V F F F V
anos de idade.
E) F V V V F
Sob influência de
Sócrates passou a ser também
10. (UNICENTRO 2013) Analise as assertivas e
crítico do regime, e depois de
assinale a alternativa que aponta as corretas.
sua morte deixou de acreditar na possibilidade de uma
I. Assim como os sofistas, Sócrates dizia que a verdade
vida justa e feliz. Deixou Atenas para fazer uma longa
existe e podemos conhecê-la. Eis porque suas preleções
viagem, quando voltou e fundou a Academia, onde
eram aulas onde essa verdade era ensinada. Tais
pôde desenvolver suas teorias e repassá-las a seus vários
preleções eram solilóquios, isto é, apenas Sócrates
discípulos.
falava enquanto os outros o escutavam.
Escrevendo, Platão reproduziu o método
II. Tanto para Sócrates quanto para os sofistas, o
dialógico socrático, fundando novo gênero literário:
conhecimento não é um estado (o estado da sabedoria),
deste modo seu filosofar assume uma dinâmica
mas um processo, uma busca, uma procura da verdade.
socrática, na qual o próprio leitor é envolvido na tarefa
Isso não significa que a verdade não exista, e sim que
de extrair maieuticamente a solução dos problemas
deve ser procurada e que sempre será maior do que nós.
suscitados e não explicitamente resolvidos.
III. Como os sofistas, Sócrates se interessa pela virtude.
Platão recupera, além disso, o valor
Todavia, os sofistas, mantendo-se no plano dos
cognoscitivo do mito como complemento do logos: a
costumes estabelecidos, falavam da virtude no plural,
filosofia platônica se torna, na forma do mito, uma
isto é, falavam de virtudes (coragem, temperança,
espécie de fé raciocinada, no sentido de que, quando a
amizade, justiça, piedade, prudência), mas Sócrates fala
razão chega aos limites extremos de suas capacidades,
no singular: a virtude.
deve superar intuitivamente tais limites, desfrutando as
IV. Diferentemente dos sofistas, Sócrates mantém a
possibilidades que se lhe oferecem na dimensão da
separação entre aparência e realidade, entre percepção
imagem e do mito.
sensorial e pensamento. Por isso, sua busca visa
Na busca de um conhecimento verdadeiro,
alcançar algo muito preciso: passar da multiplicidade
buscou um meio de contornar o beco sem saída deixado
das aparências opostas, da multiplicidade das
por Heráclito e Parmênides. Grande parte de suas ideias
percepções divergentes, à unidade da ideia (que é a
estão escritas em sua mais famosa obra, A República.
definição universal e necessária da coisa procurada).
A) Apenas I e III.
4.1 Metafísica
B) Apenas II e III.
C) Apenas IV.
Platão considerou que Parmênides tinha razão
D) Apenas III e IV.
no que se refere ao mundo material e sensível, mundo
E) Apenas II, III e IV.
das imagens e das opiniões. A matéria, diz Platão, é, por
essência e por natureza, algo imperfeito, que não
consegue manter a identidade das coisas, mudando sem
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13
cessar, passando de um estado a outro, contrário ou subsistem em si e por si em um sistema hierárquico bem
oposto. organizado, e que constituem o verdadeiro Ser.
Assim, do mundo material só nos chegam as O mundo sensível é o mundo das coisas. O
aparências das coisas e sobre ele só podemos ter mundo das ideias é o mundo do Ser; o mundo sensível
opiniões contrárias e contraditórias. das coisas é o mundo do Não-Ser. O mundo sensível é
Por esse motivo, diz Platão, Parmênides está uma sombra, uma cópia deformada ou imperfeita do
certo ao exigir que a filosofia abandone esse mundo mundo das ideias. Mas como foi que aconteceu essa
sensível e ocupe-se com o mundo verdadeiro, invisível cópia? Como explicar a gênese das coisas do mundo?
aos sentidos e visível apenas ao puro pensamento. O Geralmente os gregos consideram a matéria
verdadeiro é o Ser, uno, imutável, idêntico a si mesmo, eterna, não-criada. Também Platão atribui a um
eterno, imperecível, puramente inteligível. Demiurgo, enquanto princípio que organiza a matéria
Eis por que a ontologia platônica introduz uma pré-existente, a função de pôr ordem no Caos inicial.
divisão, afirmando a existência de dois mundos
inteiramente diferentes e separados: o mundo sensível
da mudança, da aparência, do devir dos contrários, e o
mundo inteligível (da ideia/das formas) da
identidade, da permanência, da verdade, conhecido pelo
intelecto puro, sem nenhuma interferência dos sentidos
e das opiniões.
Na tradição de Parmênides e Platão, a filosofia
grega estabelece a hierarquia entre razão e sentidos,
indicando que a razão atinge com dificuldade o
verdadeiro conhecimento por causa da deformação que
os sentidos inevitavelmente provocam. Por isso, cabe à
razão depurar os enganos que os sentidos nos levam a
cometer, para que o espírito possa atingir a verdadeira
contemplação das ideias. A teoria cosmológica de Platão se encontra
Para Platão, se o homem permanecesse sobretudo no diálogo Timeu. Em algumas passagens,
dominado pelos sentidos, só poderia ter um pode-se interpretar que esse princípio divino é também
conhecimento imperfeito, restrito ao mundo dos identificado à ideia do Bem e, como tal, é o fim último
fenômenos, das coisas que são meras aparências e que para onde tendem todas as coisas, na busca da
estão em constante fluxo. A esse conhecimento Platão perfeição.
chama de doxa (opinião). Mas existe uma diferença entre a ontologia de
O verdadeiro conhecimento, a episteme Parmênides e a de Platão. Para o primeiro, o mundo
(ciência), é, ao contrário, aquele pelo qual a razão sensível das aparências é o Não-Ser em sentido forte,
ultrapassa o mundo sensível e atinge o mundo das isto é, não existe, não tem realidade nenhuma, é o nada.
ideias, lugar das essências imutáveis de todas as coisas, Para Platão, porém, o Não-Ser não é o puro nada. Ele
dos verdadeiros modelos (arquétipos). é alguma coisa. O que ele é? Ele é o outro do Ser, o que
Esse é o único mundo verdadeiro, e o mundo é diferente do Ser, o que é inferior ao Ser, o que nos
sensível só existe enquanto participa do mundo das engana e nos ilude, a causa dos erros. Em lugar de ser
ideias, do qual é apenas sombra ou cópia. um puro nada, o Não-Ser é um falso ser, uma sombra
Tudo que existe nesse mundo material é porque do Ser verdadeiro, aquilo que Platão chama de
tem sua ideia no mundo superior. Apesar da Pseudosser.
multiplicidade com que ela possa aparecer no mundo Há ainda outra diferença importante entre a
sensível, a ideia é uma só, indestrutível e eterna. ontologia de Parmênides e a de Platão. O primeiro
Segundo afirmava que o Ser, além de imutável, eterno e idêntico
Platão, apesar de a si mesmo, era único ou uno. Havia o Ser. Qual o
existirem diferentes problema dessa afirmação parmenideana?
tipos de cavalo, a ideia Se Parmênides não admitia a multiplicidade
de cavalo é uma só. infinita de seres contrários uns aos outros e a si mesmos
Quando pensamos do devir heraclitiano, visto que o pensamento exige a
em cavalo, pensamos identidade do pensado, o que restava à filosofia ao se
a ideia e não admitir uma identidade una-única? Só lhe restava pensar
determinado cavalo. Um cavalo só é cavalo na medida e dizer três frases: “o Ser é”, “o Não-Ser não é” e “o Ser
em que participa da ideia de “cavalo em si”. é uno, idêntico, eterno e imutável”. Assim, Parmênides
As ideias platônicas não são simples conceitos paralisava a filosofia.
mentais, mas são “entidades” ou “essências” que
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Se a filosofia quisesse prosseguir como Cabe à filosofia passar das cópias imperfeitas
investigação da verdade e se tivesse mais objetos a aos modelos perfeitos, abandonando as imagens pelas
conhecer, era preciso quebrar essa unidade-unicidade essências, as opiniões pelas ideias, as aparências pelas
do Ser. Foi o que fez Platão. O que disse ele? essências.
Em primeiro lugar, seguindo Sócrates e os Mas como fazer isso? Como conhecer esse
sofistas, Platão distinguiu três sentidos para a palavra mundo ideal e verdadeiro para viver de acordo com o
ser: que é bom e justo nesse mundo de erros, se eu estou
1 - o sentido de substantivo, isto é, de nesse segundo e tudo que percebo vem dele?
realidade existente (‘o ser’, ‘um ser’); O pensamento, empregando a dialética, deve
2 - o sentido verbal forte, em que é significa passar da instabilidade contraditória das coisas sensíveis
‘existe’ e ser quer dizer ‘existência’ (“O homem é”, isto à identidade racional das coisas inteligíveis.
é, “existe”); e
3 - o sentido verbal mais fraco, predicativo, 4.2 Dialética
em que o verbo ser é o verbo de ligação, isto é, o verbo
que permite ligar um sujeito e seu predicado (“O Para Platão, conhecimento é anamnese, isto é,
homem é mortal”). recordação de verdades desde sempre conhecidas pela
Em segundo lugar, afirmou que, no sentido alma e que reemergem de vez em quando na experiência
forte de ser (isto é, como substantivo e como verbo concreta. Ele apresenta esta teoria do conhecimento
existencial), existem múltiplos seres e não um só, mas tanto em modo mítico (as almas são imortais e
cada um deles possui os atributos do Ser de Parmênides contemplaram as ideias antes de descer nos corpos –
(identidade, unidade, eternidade, imutabilidade). Esses teoria da reminiscência da alma) quanto em modo
seres são as ideias ou formas inteligíveis, totalmente dialético (todo homem pode aprender por si verdades
imateriais, que constituem o mundo verdadeiro, o antes ignoradas, como por exemplo, os teoremas
mundo inteligível. matemáticos).
Em terceiro lugar, afirmou que, no sentido mais Platão afirma que somente pela dialética é
fraco do verbo ser, isto é, como verbo de ligação, cada possível alcançar gradativamente o que é verdadeiro, e
ideia é um ser real, que possui um conjunto de passar das ilusões ao real, ou seja, da simples opinião
predicados reais ou de propriedades essenciais e que a (em grego doxa) para a ciência (em grego episteme).
fazem ser o que ela é em si mesma. Uma ideia é (existe) Importante deixar claro que a dialética Platônica é o que
e uma ideia é uma essência ou conjunto de qualidades a etimologia da palavra sugere, um diálogo crítico em
essenciais que a fazem ser o que ela é necessariamente. busca da verdade que se passa do senso comum ao
Por exemplo, a justiça é (há a ideia de justiça) e há seres conhecimento verdadeiro.
humanos que são justos (possuem o predicado da Como a própria palavra indica, dialética é um
justiça como parte de sua essência). diálogo, um discurso compartilhado por dois
Dessa maneira, cada ideia, em si mesma, é como interlocutores, ou uma conversa em que cada um possui
o Ser de Parmênides: una, idêntica a si mesma, eterna e opiniões opostas sobre alguma coisa e deve discutir ou
imutável — uma ideia é. Ao mesmo tempo, cada ideia argumentar com o outro de modo a superar essa
difere de todas as outras pelo conjunto de qualidades ou oposição e chegar à unidade de uma ideia que é a mesma
propriedades internas e necessárias pelas quais ela é para ambos e para todos os que buscam a verdade.
uma essência determinada, diferente das demais (a ideia Deve-se passar de imagens contraditórias a
de homem é diferente da ideia de planeta, que é conceitos idênticos para todos os pensantes. Em outras
diferente da ideia de beleza, etc.). palavras, a dialética é um procedimento com o qual
A tarefa da filosofia é dupla: passamos das opiniões contrárias à identidade da ideia,
1. deve conhecer quais ideias existem, isto é, das oposições do devir à unidade da essência.
quais ideias são; A dialética platônica é um procedimento
2. deve conhecer quais são as qualidades ou intelectual e linguístico que parte de alguma coisa que
propriedades essenciais de uma ideia, isto é, o que uma deve ser separada ou dividida em duas partes contrárias
ideia é, sua essência. ou opostas, de modo que se conheça sua contradição e
As ideias ou formas inteligíveis (ou essências se possa determinar qual dos contrários é verdadeiro e
inteligíveis), diz Platão, são seres perfeitos e, por isso, qual é falso. A cada divisão surge um par de contrários,
tornam-se modelos inteligíveis ou paradigmas que devem ser separados e novamente divididos, até
inteligíveis perfeitos que as coisas sensíveis materiais que se chegue a um termo indivisível, isto é, não
tentam imitar imperfeitamente. formado por nenhuma oposição ou contradição: este
O sensível é, pois, uma imitação imperfeita do será a ideia verdadeira ou a essência da coisa investigada.
inteligível: as coisas sensíveis são imagens das ideias, são Partindo de sensações, imagens, opiniões
Não-Seres tentando inutilmente imitar a perfeição dos contraditórias sobre alguma coisa, a dialética vai
seres inteligíveis. separando os opostos em pares, mostrando que um dos
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15
termos é ilusório e o outro, verdadeiro, até chegar à Depois, ele volta para alertar os outros de sua
essência da coisa. condição, mesmo sabendo que eles podem não
Superar os contraditórios e chegar ao que é acreditar no que ele estava dizendo. Alguns dizem que
sempre idêntico a si mesmo é a tarefa da discussão ele está louco e outros decidem acompanhá-lo.
dialética, que revela o mundo sensível como
heraclitiano (a luta dos contrários, a mudança O Mito da Caverna
incessante) e o mundo inteligível como parmenidiano
(a perene identidade de cada ideia ou de cada essência). Depois disto – prossegui eu – imagina a nossa
Caberá ao sábio, ao filósofo, empreender a natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de
caminhada desde o mundo obscuro das sombras da acordo com a seguinte experiência. Suponhamos uns
realidade sensível até a proximidade da luz representada homens numa habitação subterrânea em forma de
pela ideia do Bem. Ou seja, elevar o conhecimento de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se
simples opinião (que é o conhecimento do vir-a-ser) a estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá
ciência (que é o conhecimento do ser verdadeiro). dentro desde a infância, algemados de pernas e
Para que esse processo do conhecimento seja pescoços, de tal maneira que só lhes é dado permanecer
possível, é necessário o estudo da matemática. Aliás, no no mesmo lugar e olhar em frente; são incapazes de
pórtico da Academia de Platão existia um dístico com voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve-lhes de
os seguintes dizeres: "Não entre aqui quem não souber iluminação um fogo que se queima ao longe, numa
geometria". Isso porque a matemática descreve as eminência, por detrás deles; entre a fogueira e os
realidades não sensíveis e é capaz de se dissociar dos prisioneiros há um caminho ascendente, ao longo do
sentidos e da prática; na geometria, a figura sobre a qual qual se construiu um pequeno muro, no gênero dos
raciocinamos independe da figura sensível que tapumes que os apresentadores de fantoches colocam
representa. diante do público, para mostrarem as suas habilidades
Além disso, os gregos têm uma tradição de por cima deles.
aplicação desinteressada da matemática na astronomia – Estou a ver – disse ele.
e na música. Desde Pitágoras eram estudadas as – Visiona também ao longo deste muro,
relações proporcionais entre os diferentes homens que transportam toda a espécie de objetos, que
comprimentos da corda, bem como as alterações de o ultrapassam: estatuetas de homens e de animais, de
tensão ou espessura que mudam os sons emitidos pela pedra e de madeira, de toda a espécie de lavor; como é
lira. Portanto, a matemática e a geometria são natural, dos que os transportam, uns falam, outros
consideradas como prelúdio da ciência que é a dialética, seguem calados.
graças à qual o filósofo poderá chegar ao conhecimento – Estranho quadro e estranhos prisioneiros são
das essências. esses de que tu falas – observou ele.
Ele ilustra essa passagem do falso – Semelhantes a nós – continuei -. Em primeiro
(opinião/doxa) ao real (ciência/ episteme) pela alegoria lugar, pensas que, nestas condições, eles tenham visto,
do mito da caverna. Aqueles caras deitados no chão de si mesmo e dos outros, algo mais que as sombras
nasceram e cresceram ali, e a única coisa que eles viam projetadas pelo fogo na parede oposta da caverna?
eram aquelas sombras. Por nunca terem visto outra – Como não – respondeu ele – se são forçados
coisa, eles julgavam que aquelas sombras eram os a manter a cabeça imóvel toda a vida?
objetos verdadeiros. – E os objetos transportados? Não se passa o
mesmo com eles?
– Sem dúvida.
– Então, se eles fossem capazes de conversar
uns com os outros, não te parece que eles julgariam
estar a nomear objetos reais, quando designavam o que
viam?
– É forçoso.
– E se a prisão tivesse também um eco na
parede do fundo? Quando algum dos transeuntes
falasse, não te parece que eles não julgariam outra coisa,
senão que era a voz da sombra que passava?
Só que um dia, um deles consegue se soltar e – Por Zeus, que sim!
sair da caverna. Lá fora, ele não consegue enxergar nada – De qualquer modo – afirmei – pessoas nessas
porque é quase cegado pela luz do sol. Aos poucos ele condições não pensavam que a realidade fosse senão a
vai conseguindo ver as coisas e se dá conta que aquilo sombra dos objetos.
que viam na caverna eram apenas as sombras, que eles – É absolutamente forçoso – disse ele.
tomavam por verdadeiro aquilo que era falso.
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– Considera pois – continuei – o que – E as honras e elogios, se alguns tinham então
aconteceria se eles fossem soltos das cadeias e curados entre si, ou prêmios para o que distinguisse com mais
da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, agudeza os objetos que passavam e se lembrasse melhor
as coisas se passavam deste modo. Logo que alguém quais os que costumavam passar em primeiro lugar e
soltasse um deles, e o forçasse a endireitar-se de quais em último, ou os que seguiam juntos, e àquele que
repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia
ao fazer tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento acontecer – parece-te que ele teria saudades ou inveja
impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas sombras via das honrarias e poder que havia entre eles, ou que
outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe experimentaria os mesmos sentimentos que em
afirmasse que até então ele só vira coisas vãs, ao passo Homero, e seria seu intenso desejo “servir junto de um
que agora estava mais perto da realidade e via de homem pobre, como servo da gleba”, e antes sofrer
verdade, voltado para objetos mais reais? E se ainda, tudo do que regressar àquelas ilusões e viver daquele
mostrando-lhe cada um desses objetos que passavam, o modo?
forçassem com perguntas a dizer o que era? Não te – Suponho que seria assim – respondeu – que
parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os ele sofreria tudo, de preferência a viver daquela
objetos vistos outrora eram mais reais do que os que maneira.
agora lhe mostravam? – Imagina ainda o seguinte – prossegui eu –. Se
– Muito mais – afirmou. um homem nessas condições descesse de novo para o
– Portanto, se alguém o forçasse a olhar para a seu antigo posto, não teria os olhos cheios de trevas, ao
própria luz, doer-lhe-iam os olhos e voltar-se-ia, para regressar subitamente da luz do Sol?
buscar refúgio junto dos objetos para os quais podia – Com certeza.
olhar, e julgaria ainda que estes eram na verdade mais – E se lhe fosse necessário julgar daquelas
nítidos do que os que lhe mostravam? sombras em competição com os que tinham estado
– Seria assim – disse ele. sempre prisioneiros, no período em que ainda estava
– E se o arrancassem dali à força e o fizessem ofuscado, antes de adaptar a vista – e o tempo de se
subir o caminho rude e íngreme, e não o deixassem habituar não seria pouco – acaso não causaria o riso, e
fugir antes de o arrastarem até à luz do Sol, não seria não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior,
natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim estragara a vista, e que não valia a pena tentar a
arrastado, e, depois de chegar à luz, com os olhos ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzí-los até
deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?
que agora dizemos serem os verdadeiros objetos? – Matariam, sem dúvida – confirmou ele.
– Não poderia, de fato, pelo menos de repente. – Meu caro Gláucon, este quadro – prossegui
– Precisava de se habituar, julgo eu, se quisesse eu – deve agora aplicar-se à tudo quanto dissemos
ver o mundo superior. Em primeiro lugar, olharia mais anteriormente, comparando o mundo visível através
facilmente para as sombras, depois disso, para as dos olhos à caverna da prisão, e a luz da fogueira que lá
imagens dos homens e dos outros objetos, refletidas na existia à força do Sol. Quanto à subida ao mundo
água, e, por último, para os próprios objetos. A partir superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares
de então, seria capaz de contemplar o que há no céu, e como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não
o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo
estrelas e da Lua, mais facilmente do que se fosse o Sol conhecê-la. O Deus sabe se ela é verdadeira. Pois,
e o seu brilho de dia. segundo entendo, no limite do cognoscível é que se
– Pois não! avista, a custo, a idéia do Bem; e, uma vez avistada,
– Finalmente, julgo eu, seria capaz de olhar para compreende-se que ela é para todos a causa de quanto
o Sol e de o contemplar, não já a sua imagem na água há de justo e belo; que, no mundo visível, foi ela que
ou em qualquer sítio, mas a ele mesmo, no seu lugar. criou a luz, da qual é senhora; e que, no mundo
– Necessariamente. inteligível, é ela a senhora da verdade e da inteligência,
– Depois já compreenderia, acerca do Sol, que e que é preciso vê-la para se ser sensato na vida
é ele que causa as estações e os anos e que tudo dirige particular e pública.
no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo (Platão, A República, livro VII)
de que eles viam um arremedo.
– É evidente que depois chegaria a essas Os diálogos de Platão põem em marcha a
conclusões. dialética, isto é, o caminho seguro (méthodos, em
– E então? Quando ele se lembrasse da sua grego) que nos conduz das sensações, das percepções,
primitiva habitação, e do saber que lá possuía, dos seus das imagens e das opiniões à contemplação intelectual
companheiros de prisão desse tempo, não crês que ele do ser real das coisas, à ideia verdadeira. A dialética
se regozijaria com a mudança e deploraria os outros? permite a passagem da dóxa (opinião) à episteme
– Com certeza. (ciência ou saber).
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O amor festa para os deuses, mas esqueceram-se de convidar a
deusa Penúria (Pênia). Miserável e faminta, Penúria
Tomemos um outro diálogo para esperou o fim da festa, esgueirou-se pelos jardins e
acompanharmos o procedimento platônico. O banquete comeu os restos, enquanto os demais deuses dormiam.
busca a ideia ou a essência do amor. Num canto do jardim, viu Engenho Astuto (Poros) e
Numa festa, oferecida por um poeta premiado, desejou conceber um filho dele, deitando-se ao seu
conversam cinco amigos e Sócrates. Um deles afirma lado. Desse ato sexual nasceu Eros, o amor. Como sua
que todos os deuses recebem hinos e poemas de louvor, mãe, Eros está sempre carente, faminto, miserável;
mas nenhum foi feito ao melhor dos deuses, Eros, o como seu pai, Eros é astuto, sabe criar expedientes
amor. Propõe, então, que cada um faça uma engenhosos para conseguir o que quer.
homenagem a Eros dizendo o que é o amor. Qual o sentido do mito? Nele descobrimos que
Para um deles, o amor é o mais bondoso dos o amor é carência e astúcia, desejo de saciar-se, de
deuses, porque nos leva ao sacrifício pelo ser amado, completar-se e de encontrar a plenitude. Amar é desejar
inspira-nos o desejo de fazer o bem. Para o seguinte, é fundir-se na plenitude do amado e ser um só com ele.
preciso distinguir o amor sexual e grosseiro do amor
espiritual entre as almas, pois o primeiro é breve e logo O que pode completar e dar plenitude a um ser carente?
acaba, enquanto o segundo é eterno. Já o terceiro afirma Somente aquilo que é em si mesmo completo e pleno,
que os que o antecederam tinham limitado muito o isto é, o que é perfeito. O amor é desejo de perfeição.
amor, tomando-o apenas como uma relação entre duas O que é a perfeição?
pessoas. O amor, diz ele, é o que ordena, organiza e A harmonia, a proporção, a integridade ou
orienta o mundo, pois faz os semelhantes se inteireza da forma. Desejamos as formas perfeitas. O
aproximarem e os diferentes se afastarem.
que é uma forma perfeita? A forma acabada, plena,
O quarto prefere retornar ao amor entre as
pessoas e narra um mito. No princípio, os humanos inteiramente realizada, sem falhas, sem necessidade de
eram de três tipos: havia o homem duplo, a mulher transformar-se, isto é, sem necessidade de mudança. A
dupla e o homem-mulher, isto é, o andrógino. Tinham forma perfeita é o que chamamos de beleza.
um só corpo, com duas cabeças, quatro braços e quatro Onde está a beleza nas coisas corporais? Nos
pernas. Como se julgavam seres completos, decidiram corpos belos, cuja união engendra uma beleza: a
habitar no céu. Zeus, rei dos deuses, enfureceu-se, imortalidade dos pais por meio dos filhos. Onde está a
tomou de uma espada e os cortou pela metade.
beleza nas coisas incorporais? Nas almas belas, cuja
Decaídos, separados e desesperados, os
humanos teriam desaparecido se Eros não lhes tivesse beleza está na perfeição de seus pensamentos e ações,
dado órgãos sexuais e os ajudasse a procurar a metade isto é, na inteligência. Que amamos quando amamos
perdida. Os que eram homens duplos e mulheres duplas corpos belos? O que há de imperecível naquilo que é
amam os de mesmo sexo, enquanto os que eram perecível, isto é, amamos a descendência. Que amamos
andróginos amam a pessoa do sexo oposto. Amar é quando amamos almas belas? O que há de imperecível
encontrar a nossa metade e o amor é esse encontro.
na inteligência, isto é, as ideias.
Finalmente, o poeta, anfitrião da festa, toma a
palavra dizendo: “Todos os que me precederam Se o amor é desejo de identificar-se com o
louvaram o amor pelo bem que faz aos humanos, mas amado, então a qualidade ou a natureza do ser amado
nenhum louvou o amor por ele mesmo. É o que farei. determina se um amor é plenamente verdadeiro ou uma
O amor, Eros, é o mais belo, o melhor dos deuses. O aparência de amor. Amar o perecível é tornar-se
mais belo, porque sempre jovem e sutil, porque penetra perecível também. Amar o mutável é tornar-se mutável
imperceptivelmente nas almas; o melhor, porque odeia também. O perecível e o mutável são sombras, cópias
a violência e a desfaz onde existir; inspira os artistas e
imperfeitas do ser verdadeiro, imperecível e imutável.
poetas, trazendo a beleza ao mundo”.
Resta Sócrates, que diz: “Não poderei falar. Não As formas corporais belas são sombras ou imagens da
tenho talento para fazer discursos tão belos”. Os verdadeira beleza imperecível. Abandonando-as pela
outros, porém, não se conformam e o obrigam a falar. verdadeira beleza, amamos não esta ou aquela coisa
“Está bem”, retruca ele. “Mas falarei do meu jeito.” bela, mas a ideia ou a essência da beleza, o belo em si
Com essa pequena frase, o tom do diálogo se mesmo, único, real.
altera, pois “falar do meu jeito” significa que “não vou As almas belas são belas porque nelas há a
fazer elogios e louvores às imagens e aparências do presença de algo imperecível: o intelecto, parte imortal
amor, não vou emitir mais uma opinião sobre o amor, de nossa alma. Que ama o intelecto? Outro intelecto
mas vou buscar a essência do amor, a ideia do amor”. que seja mais belo e mais perfeito do que ele e que, ao
Sócrates também começa com um mito. ser amado, torna perfeito e belo quem o ama. O que é
Quando a deusa Afrodite nasceu, houve uma grande
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um intelecto verdadeiramente belo e perfeito? O que filosófica o leva a conceber uma "sofocracia"
ama a beleza perfeita. Onde se encontra a tal beleza? (etimologicamente, "poder da sabedoria"). Segundo ele,
Nas ideias. os homens comuns são vítimas do conhecimento
O que é a essência ou a ideia do amor? O amor imperfeito, da "opinião", e, portanto, devem ser
é o desejo da perfeição imperecível pelas formas belas, dirigidos por homens que se distinguem pelo saber.
daquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo,
daquilo que pode ser contemplado plenamente pelo A pólis ideal e a justiça
intelecto e conhecido plenamente pela inteligência.
Sendo amor intelectual pelo inteligível ou pelas ideias, o Para Platão, os seres humanos e a pólis possuem
amor é o desejo de saber: philosophia, ‘amor a a mesma estrutura.
sabedoria’. Pelo amor, o intelecto humano participa do Platão entendia o homem como sendo corpo e
inteligível, toma parte no mundo das ideias ou das alma. Esta, que antes era livre no mundo das ideias,
essências, conhecendo o ser verdadeiro. agora vive prisioneira no corpo, esquecendo-se de tudo
A ontologia é, assim, a própria filosofia e o que já havia contemplado.
conhecimento do Ser, isto é, das ideias; é a passagem Os humanos são dotados de três almas ou três
das opiniões sobre as coisas sensíveis mutáveis rumo ao princípios de atividade:
pensamento sobre as essências imutáveis. Passar do 1 - a alma apetitiva ou desejante (situada nas
sensível ao inteligível — tarefa da filosofia — é passar entranhas ou no baixo-ventre), representada pelos
da aparência ao real, do Não-Ser ao Ser. desejos carnais de sobrevivência e reprodução, que
A principal novidade da filosofia platônica busca satisfação dos apetites do corpo, tanto os
consiste na descoberta de uma realidade superior, ou necessários à sobrevivência como os que apenas
seja, uma dimensão suprafísica do Ser. causam prazer;
2 - a alma irascível, emotiva ou colérica
1.3 Arte (situada no peito ou no coração), representada pelas
emoções e que defende o corpo contra as agressões do
Em sua filosofia, Platão tem uma visão meio ambiente e de outros humanos, reagindo à dor
negativa da arte. Ele liga o tema da arte à sua para proteger nossa vida; e
metafísica: se o mundo é cópia da Ideia, e a arte é cópia 3 - a alma racional ou intelectual (situada na
do mundo, então, a arte é cópia de uma cópia, imitação cabeça) representada pela inteligência, que se dedica ao
de uma imitação e, portanto, afastamento do conhecimento.
verdadeiro. Se livrar das emoções e desejos carnais era
Para ele a arte não revela, mas esconde o necessário para contemplar o mundo das ideias, porque
verdadeiro, porquanto não constitui uma forma de eles não fazem parte daquele mundo.
conhecimento nem melhora o homem, mas o Também a pólis possui uma estrutura tripartite,
corrompe, porque é mentirosa. Ela não educa o formada por três grupos de pessoas: os produtores,
homem, mas o deseduca, porque se volta para as artesãos e comerciantes, que cuidam da subsistência
faculdades irracionais da alma que constituem as partes e garantem a sobrevivência material da pólis; os
inferiores de nós mesmos. guardiões, responsáveis pela defesa da pólis; e os
governantes, que legislam e administram a pólis.
1.4 Política Para uma pólis ser bem ordenada os seus
habitantes seriam divididos nesses três grupos, de
O pensamento político de Platão está sobretudo acordo com a alma preponderante e suas virtudes. Cada
nas obras A República e Leis. Ele os escreveu em um, ao exercitar suas virtudes, desempenha um papel
diálogos, tendo o seu mestre Sócrates como principal na sociedade, contribuindo como podem para o seu
interlocutor. bom funcionamento.
Sempre foi fascinado pela política, apesar de ter Um homem, diz Platão, é injusto quando a alma
sofrido pesados reveses. Na Sicília, tentou em vão desenjante (os apetites e prazeres) é mais forte do que
convencer Dionísio, o Velho, a respeito de suas teorias as outras duas, dominando-as. Também é injusto
políticas. Inicialmente bem recebido, após sérias quando a alma colérica (a agressividade) é mais
desavenças Platão acabou sendo vendido como escravo poderosa do que a racional, dominando-a.
e só por sorte foi reconhecido e libertado por um rico O que é, pois, o homem justo? Aquele cuja alma
armador. Nem por isso desistiu, retornando outras duas racional é mais forte do que as outras duas almas,
vezes à Sicília, mais cauteloso, porém sem sucesso. A impondo à alma desejante a virtude da temperança (ou
amargura dessas tentativas frustradas transparece nas moderação) e à alma colérica, a virtude da coragem, que
Leis, sua última obra. deve controlar a raiva.
De origem aristocrática, Platão concebe um seu O homem justo é o homem virtuoso; a virtude,
posicionamento teórico de valorização da reflexão domínio racional sobre o desejo e a cólera. A justiça
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ética é a hierarquia das almas, em que a racional domina Esses filósofos não pertenceriam a classe social
as inferiores. alguma. Para ele não deveria haver classes sociais, e
O que é a justiça política? Essa mesma deveria existir um processo de educação em que todos
hierarquia, mas aplicada à comunidade. A realização da participam, independente da classe social e do sexo.
justiça acontece quando a pólis funciona dessa maneira Isso mesmo, Platão defendia que as mulheres poderiam
que ele descreve, com cada pessoa exercendo o seu também serem educadas para participar da vida pública.
papel social, exercitando as virtudes da parte Platão afirma que a pólis, e não a família, deveria
preponderante de sua alma. se incumbir da educação das crianças. Para isso, propõe
Assim, os sábios legisladores devem governar, estabelecer-se uma forma de comunismo em que é
os guardiões, subordinados aos legisladores, devem eliminada a propriedade e a família, a fim de evitar a
defender a cidade, e os membros que cuidam da cobiça e os interesses decorrentes dos laços afetivos,
subsistência, subordinados aos legisladores, devem além da degenerescência das ligações inadequadas.
assegurar a sobrevivência da pólis. A pólis orientaria as formas de eugenia para
A pólis justa é governada pelos filósofos, evitar casamentos entre desiguais, oferecendo melhores
protegida pelos guardiões e mantida pelos produtores. condições de reprodução e, ao mesmo tempo, criando
Cada grupo cumprirá sua função para o bem da pólis, creches para a educação coletiva das crianças.
racionalmente dirigida pelos filósofos. A educação promovida pela pólis deveria,
Em contrapartida, a pólis injusta é aquela na segundo Platão, ser igual para todos até os 20 anos,
qual o governo está nas mãos dos produtores — que quando dar-se-ia o primeiro corte identificando as
não pensam no bem comum da pólis e lutarão por pessoas que, por possuírem "alma de bronze", têm a
interesses econômicos particulares — ou na dos sensibilidade grosseira e por isto devem se dedicar à
guardiões — que mergulharão a cidade em guerras para agricultura, ao artesanato e ao comércio. Estes
satisfazer seus desejos particulares de honra e glória. cuidariam da subsistência da pólis.
Somente os filósofos têm como interesse o bem geral Os outros continuariam os estudos por mais
da pólis e somente eles podem governá-la com justiça. dez anos, até o segundo corte. Aqueles que tivessem a
Mas quais são os critérios usados na escolha das "alma de prata" e a virtude da coragem essencial aos
pessoas que desempenharão os papeis fundamentais guerreiros constituiriam a guarda da pólis, os soldados
para o bom funcionamento da pólis? Como realizar a que cuidariam da defesa da cidade. É importante
cidade justa? ressaltar o papel da música na educação dos guardiões,
A resposta está no livro VII de A República, no servindo para acalmar o espírito e desenvolver
mito da caverna que dá margem a uma interpretação sentimentos nobres para que eles possam desempenhar
epistemológica, pela qual se explica a teoria das ideias, bem sua função.
onde o filósofo, representado por aquele que se liberta Os mais notáveis, que sobrariam desses cortes,
das correntes ao contemplar a verdadeira realidade, por terem a "alma de ouro", seriam instruídos na arte
passa da opinião à ciência e deve retornar ao meio dos de pensar a dois, ou seja, na arte de dialogar. Estudariam
homens para orientá-los. filosofia, que eleva a alma até o conhecimento mais
Daí deriva a segunda interpretação, que resulta puro e é a fonte de toda verdade.
da dimensão política surgida da pergunta: Como Esse processo educacional, serviria para fazer a
influenciar os homens que não veem? alma atingir o mundo das ideias, ou seja, relembrar
Cabe ao sábio ensinar e dirigir. Trata-se da (processo de reminiscência da alma) do lugar de
necessidade da ação política, da transformação dos onde veio. Por isso, só completariam todo o percurso
homens e da sociedade, desde que essa ação seja dirigida educacional aqueles que adquirissem e exercitassem as
pelo modelo ideal contemplado. É nesse sentido que virtudes necessárias a fazer com que a alma racional se
Platão imagina a pólis ideal do mundo inteligível. E sobrepusesse acima das outras (emotiva e apetitiva) que
assim, a pólis deve ser organizada de acordo com ela, o deixam preso nesse mundo de aparências. Somente
para que seus habitantes pudessem viver de acordo com esses seriam filósofos.
o supremo bem e a justiça, partindo do princípio de que Aos cinquenta anos, aqueles que passassem
as pessoas são diferentes e por isso devem ocupar com sucesso pela série de provas estariam aptos a ser
lugares e funções diversas na sociedade, admitidos como governantes. Caberia a eles o governo
Por isso que ele defende que quem deve da cidade, o exercício do poder, pois apenas eles teriam
governar a pólis são os filósofos, aqueles que saíram da a ciência da política. Sua função seria manter a cidade
caverna (mundo sensível) e conheceram a realidade coesa. Por serem os mais sábios, também seriam os
(mundo das ideias). Só eles possuem as virtudes e o mais justos, uma vez que justo é aquele que conhece a
conhecimento necessário (as ideias) para dar à pólis justiça. A justiça constitui a principal virtude, a própria
uma estrutura bem ordenada de forma que o bem e a condição das outras virtudes.
justiça possam reger as relações entre seus habitantes. Se para Platão a política é "a arte de governar os
homens com o seu consentimento" e o político é
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precisamente aquele que conhece essa difícil arte, só Sobre o modo como Platão expressou seu pensamento,
poderá ser chefe quem conhece a ciência política. Por assinale a alternativa correta.
isso a democracia é inadequada, pois desconhece que a A) Platão jamais escreveu textos filosóficos.
igualdade deve se dar apenas na repartição dos bens, B) Platão escreveu textos filosóficos na forma de
mas nunca no igual direito ao poder. Para que a pólis romances.
seja bem governado, é preciso que "os filósofos se C) Platão escreveu textos filosóficos na forma de
tornem reis, ou que os reis se tornem filósofos". poesias.
Platão propõe um modelo aristocrático de D) Platão escreveu textos filosóficos na forma de
poder. No entanto, como já vimos, não se trata de uma diálogos.
aristocracia da riqueza, mas da inteligência, em que o
poder é confiado aos melhores, ou seja, é uma 02. (UFU 2007) O trecho a seguir, do diálogo
sofocracia. platônico Fédon, concerne ao modo de aquisição do
conhecimento.
As formas de governo “É preciso, portanto, que tenhamos conhecido a
igualdade antes do tempo em que, vendo pela primeira
Com a utopia, Platão critica a política do seu vez objetos iguais, observamos que todos eles se
tempo e recusa as formas de poder degeneradas. A esforçavam por alcançá-la, porém lhe eram
aristocracia, por exemplo, pode se corromper em inferiores.”
timocracia, quando o culto da virtude é substituído pela (PLATÃO. Fédon. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Belém:
forma guerreira; ou em oligarquia, quando prevalece o EDUFPA, 2002, p. 275, 75a.)
gosto pelas riquezas, e o censo é a medida de capacidade A partir do fragmento apresentado, marque a
para o exercício do poder. alternativa que expressa corretamente o pensamento de
No livro VIII de A República, Platão explica Platão sobre o conhecimento.
como essas formas degeneradas podem fazer surgir a A) Platão distingue uma realidade inteligível de outra
democracia. Como vimos, a democracia não sensível. O conhecimento de todas as coisas só é
corresponde aos ideais platônicos porque, por possível porque as percepções advindas dos sentidos
definição, o povo é incapaz de possuir a ciência política. desencadeiam a reminiscência das Formas inteligíveis,
Quando o poder pertence ao povo, é fácil apreendidas pela razão antes do nascimento.
prevalecer a demagogia, característica do político que B) Platão não distingue a realidade inteligível de outra
manipula e engana o povo (etimologicamente, “o que sensível. O conhecimento é o produto das sensações. O
conduz o povo”). conhecimento nada mais é do que a reminiscência
Platão critica a noção de igualdade na dessas sensações.
democracia, pois para ele a verdadeira igualdade é de C) Platão distingue duas ordens de realidade: o mundo
ordem geométrica, porque se baseia no valor pessoal sensível e a alma. O conhecimento de todas as coisas só
que é sempre desigual (já que uns são melhores do que é possível porque as sensações informam a alma sobre
outros), não considerando todos igualmente cidadãos. o mundo sensível e, a partir disso, formam a
Por fim, a democracia levaria fatalmente à reminiscência.
tirania, a pior forma de governo, exercido pela força por D) Platão distingue duas ordens de realidade: o mundo
um só homem e sem ter como objetivo o bem comum. sensível e o mundo dos deuses. O conhecimento só é
O tirano é a antítese do rei-filósofo. possível porque a alma recebe uma informação divina
Platão não via a democracia como um bom antes que tenha percebido os objetos sensíveis, pois
regime, foi a democracia que matou o mais sábio dos todo conhecimento vem dos deuses.
homens. E foi a democracia que levou Atenas à guerra
e à ruía. Como é que pessoas não instruídas sobre 03. (UEL 2006) Para Platão, havia outra forma de
valores como o bem comum, amizade, virtudes, justiça, conhecer além daquela proveniente da experiência. Em
podem governar? Já imaginou dar poder de governar sua Teoria da reminiscência, a razão é valorizada como
àqueles caras acorrentados na caverna que só veem o meio de acesso ao inteligível. De acordo com a Teoria
sombras? Seria um desastre. Como de fato foi. da Reminiscência de Platão, é correto afirmar que o
conhecimento é:
QUESTÕES a) Estruturado empiricamente como condição para a
realização das atividades da razão.
01. (UFU) Platão (428 347 a.C.), discípulo de Sócrates b) Proveniente da percepção sensível, na qual os
e mestre de Aristóteles, fundador da Academia, é até sentidos retêm informações evidentes sobre o mundo
hoje um dos filósofos mais importantes da história da material.
filosofia. Círculos culturais e intelectuais no mundo c) Originado da ação que os objetos exercem sobre os
inteiro dedicam-se a estudar sua obra. órgãos dos sentidos, produzindo um conhecimento
inquestionável do ponto de vista da razão.
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d) Reconhecido mediante intuição intelectual, ao se d) aristocrático, cujo governo deveria ser confiado aos
referir às ideias adquiridas anteriormente e relembradas melhores em inteligência e em conduta ética.
na vida presente.
e) Fruto da ação divina que, por meio da iluminação 07. (UFU) Sobre a Alegoria da Caverna de Platão
interior, revela ao ser humano verdades eternas. pode-se afirmar que
a) o filósofo deve ter uma vida exclusivamente
04. (UFU 2015) Em Platão, as questões metafísicas contemplativa
mais importantes — e a possibilidade de serem b) a educação do filósofo visa também a atividade
solucionadas — estão vinculadas aos grandes política.
problemas da geração, da corrupção e do ser das coisas. c) os sentidos são fundamentais para o conhecimento
Para Platão, d) qualquer um pode encontrar em si mesmo, pela
A) o dualismo ontológico é uma impossibilidade, intuição, a luz para o conhecimento.
enquanto o mundo sensível traz em si a causa da sua
própria existência. 08. (UFU 2015) Somente uns poucos indivíduos, se
B) a Ideia é um ente puro de razão, uma representação aproximando das imagens através dos órgãos dos
mental: não um ser dotado de realidade ontológica ou sentidos, com dificuldade nelas entreveem a natureza
de potência causal. daquilo que imitam.
C) há inteligibilidade e, então, possibilidade de se PLATÃO. Fedro. Ln: __ . Diálogos socráticos. v. 3. Tradução de
produzir ciência (episteme) no mundo da sensibilidade, Edson Bini. Bauru/SP: Edipro, 2008, P. 64 [250B].
do corpóreo, do múltiplo. Assinale a alternativa que explicita a teoria de Platão
D) as coisas sensíveis não se explicam com apresentada no trecho acima.
elementos físicos (cor, figura, extensão), mas em função A) A teoria materialista que fixa a imagem como o
de uma causa-em-si, verdadeira e não física. reflexo de corpos físicos que constituem a única
realidade existente.
05. Segundo Platão, as opiniões dos seres humanos B) A teoria das ideias que estabelece a distinção entre o
sobre a realidade são quase sempre equivocadas, mundo sensível e o mundo inteligível, sendo que as
ilusórias e, sobretudo, passageiras, já que eles mudam imagens captadas pelos sentidos humanos despertam a
de opinião de acordo com as circunstâncias. Como alma para as ideias que habitam o mundo inteligível.
agem baseados em opiniões, sua conduta resulta quase C) A teoria existencialista que delimita o espaço vital do
sempre em injustiça, desordem e insatisfação, ou seja, homem e lhe impede de transcender para além do
na imperfeição da sociedade. mundo sensível.
Em seu livro A República, ele, então, idealizou uma D) A teoria niilista que admite dois mundos, mas que
sociedade capaz de alcançar a perfeição, desde que seu nega qualquer possibilidade de conhecimento das coisas
governo coubesse exclusivamente e das ideias.
a) aos guerreiros, porque somente eles teriam força para
obrigar todos a agirem corretamente. 09. A opinião (doxa, em grego), no pensamento de
b) aos tiranos, porque somente eles unificariam a Platão (427-347 a.C.) representa um saber sem
sociedade sob a mesma vontade. fundamentação metódica. É um saber que possui sua
c) aos mais ricos, porque somente eles saberiam aplicar origem
bem os recursos da sociedade. A) nos mitos religiosos, lendas e poemas da Grécia
d) aos demagogos, porque somente eles convenceriam arcaica.
a maioria a agir de modo organizado. B) nas impressões ou sensações advindas da experiência
e) aos filósofos, porque somente eles disporiam do sensível.
conhecimento verdadeiro e imutável. C) no discurso dos sofistas na época da democracia
ateniense.
06. (UFU) A Alegoria da Caverna de Platão, além de D) num saber eclético, proveniente de algumas ideias
ser um texto de teoria do conhecimento, é também um dos filósofos pré-socráticos.
texto político. No sentido político, é correto afirmar
que Platão sustentava um modelo. 10. (UEM 2016) “Agora – continuei – representa da
a) monárquico, cujo governo deveria ser exercido por seguinte forma o estado de nossa natureza
um filósofo e cujo poder deveria ser absoluto, relativamente à instrução e à ignorância. Imagina
centralizador e hereditário. homens em morada subterrânea, em forma de caverna,
b) aristocrático, baseado na riqueza e que representava que tenha em toda a largura uma entrada aberta para a
os interesses dos comerciantes e nobres atenienses, por luz; estes homens aí se encontram desde a infância, com
serem os mecenas das artes, das letras e da filosofia. as pernas e o pescoço acorrentados, de sorte que não
c) democrático, baseado, principalmente, na experiência podem mexer-se nem ver alhures exceto diante deles,
política de governo da época de Péricles. pois a corrente os impede de virar a cabeça; a luz lhes
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vem de um fogo que brilha a grande distância, no alto e nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, humanas,
por trás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa um de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o
caminho elevado; imagina que, ao longo deste caminho, próprio divino belo pudesse em sua forma única
ergue-se um pequeno muro [...]. contemplar? Porventura pensas, disse, que é vida vã a
Considera agora o que lhes sobrevirá naturalmente se de um homem olhar naquela direção e aquele objeto,
forem libertos das cadeias e curados da ignorância. Que com aquilo [a alma] com que deve, quando o contempla
se separe um desses prisioneiros, que o forcem a e com ele convive? Ou não consideras, disse ela, que
levantar-se imediatamente, a volver o pescoço, a somente então, quando vir o belo com aquilo com que
caminhar, a erguer os olhos à luz: ao efetuar todos esses este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras
movimentos sofrerá, e o ofuscamento o impedirá de de virtude, porque não é em sombras que estará
distinguir os objetos cuja sombra enxergava há pouco”.
PLATÃO, República, l. VII [514a-b; 515d]. Guinsburg (org), São
tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará
Paulo: Perspectiva, 2006, p. 263 e 264. tocando?”
A partir do texto citado, assinale o que for correto. Platão. O Banquete. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo:
01) A metáfora da busca da luz representa o processo Abril Cultural, 1979, pp.42-43.
de obtenção do conhecimento. A partir do trecho de Platão, analise as assertivas abaixo:
02) Platão faz uma metáfora das sociedades que, I – O belo verdadeiro para Platão encontra-se no
mergulhadas na ignorância, estão como que presas a conhecimento obtido pela observação das coisas
grilhões.
humanas.
04) O conhecimento é fruto de um exercício à
semelhança da ginástica para o corpo; assim como a II – A contemplação do belo puro e simples é atingida
falta de atividade física enrijece o corpo, a falta de por meio da alma.
reflexão enrijece a atividade do conhecimento. III – Cores e sombras são virtudes reais, visto que se
08) Para Platão é impossível conhecer algo, visto que possa, ao tocar nelas, tocar no próprio real.
tudo é uma representação das coisas, donde o ser IV – Há, como na Alegoria da Caverna, uma relação direta
humano estar fadado a ficar acorrentado à ignorância. para Platão entre o conhecimento e a virtude.
16) A luz é identificada com o conhecimento, pois o
Assinale a alternativa que contém as assertivas corretas.
conhecimento gera na alma o reconhecimento das
coisas, à semelhança de um objeto quando iluminado. A) I e II são corretas.
B) II e IV são corretas.
11. (UFU) E que existe o belo em si, e o bom em si, e, C) III e IV são corretas.
do mesmo modo, relativamente a todas as coisas que D) I, II e III são corretas.
então postulamos como múltiplas, e, inversamente,
postulamos que a cada uma corresponde a uma ideia, 13. (UFU 2009) “SÓCRATES: Portanto, como
que é única, e chamamos-lhe que é sua essência (507b poderia ser alguma coisa o que nunca permanece da
– c). mesma maneira? Com efeito, se fica momentaneamente
PLATÃO. República. Trad. De Maria Helena da Rocha Pereira.
8ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
da mesma maneira, é evidente que, ao menos nesse
Marque a alternativa que expressa corretamente o tempo, não vai embora; e se permanece sempre da
pensamento de Platão. mesma maneira e é ‘em si mesma’, como poderia mudar
a) Somente por meio dos sentidos, em especial da visão, e mover-se, não se afastando nunca da própria Ideia?
pode o filósofo obter o conhecimento das ideias. CRÁTILO: Jamais poderia fazê-lo.
b) No pensamento platônico, o conhecimento das SÓCRATES: Mas também de outro modo não poderia
ideias permite ao filósofo discernir a unidade inteligível ser conhecida por ninguém. De fato, no próprio
em face da multiplicidade sensível. momento em que quem quer conhecê-la chega perto
c) Para que a alma humana alcance o conhecimento das dela, ela se torna outra e de outra espécie; e assim não
ideias, ela deve elevar-se às alturas do inteligível, o que se poderia mais conhecer que coisa seja ela nem como
somente é possível após a morte ou por meio do seja. E certamente nenhum conhecimento conhece o
contato com os deuses gregos. objeto que conhece se este não permanece de nenhum
d) Tanto a dialética quanto a matemática elevam o modo estável.
conhecimento ao inteligível; mas, somente a CRÁTILO: Assim é como dizes.”
PLATÃO, Crátilo, 439e-440a
matemática, por seu caráter abstrato, conduz a alma ao Assinale a alternativa correta, de acordo com o
princípio supremo: a ideia de Bem. pensamento de Platão.
A) Para Platão, o que é “em si” e permanece sempre da
12. “(…) Que pensamentos então que aconteceria, disse mesma forma, propiciando o conhecimento, é a Ideia,
ela, se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, o ser verdadeiro e inteligível.
43
23
B) Platão afirma que o mundo das coisas sensíveis é o GABARITO
único que pode ser conhecido, na medida em que é o
único ao qual o homem realmente tem acesso. QUESTÕES - SOFISTAS
C) As Ideias, diz Platão, estão submetidas a uma
transformação contínua. Conhecê-las só é possível 1. d
porque são representações mentais, sem existência 2. 2/4/8
objetiva.
D) Platão sustenta que há uma realidade que sempre é 3. a
da mesma maneira, que não nasce nem perece e que não 4. b
pode ser captada pelos sentidos e que, por isso mesmo,
cabe apenas aos deuses contemplá-la. 5. 1/2/4/16

QUESTÕES SÓCRATES
1. d
2. b
3. e
4. a
5. c
6. a
7. c
8. e
9. c
10. d
11. a

QUESTÕES PLATÃO
1. d
2. a
3. d
4. d
5. e
6. d
7. b
8. b
9. b
10. 1/2/4/16
11. b
12. b
13. a

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24
ARISTÓTELES Ciências práticas: ciências que estudam as
práticas humanas que têm seu fim nelas mesmas. Em
Juntamente com outras palavras, aquelas em que a finalidade da ação é
Platão, Aristóteles (384 – ela mesma, e não há distinção entre o agente e o ato que
322 a. C.) é a grande ele realiza. São elas: ética, em que a vontade guiada pela
referência da filosofia grega razão leva à ação conforme as virtudes morais
antiga que vai influenciar na (coragem, generosidade, fidelidade, lealdade, clemência,
construção do mundo prudência, amizade, justiça, modéstia, honradez, etc.),
ocidental. Dante Alighieri tendo como finalidade o bem do indivíduo; e política,
dizia que ele foi o mestre em que a ação racional voluntária tem como fim o bem
dos mestres, e São Tomaz da comunidade ou o bem comum.
de Aquino se referia a ele Ciências teoréticas ou contemplativas: são
como “o” filósofo. aquelas que estudam coisas que existem
Ele foi o pensador que analisou todo o independentemente dos homens e de suas ações e que,
pensamento grego e o melhorou; escreveu sobre quase não tendo sido feitas pelos homens, podem apenas ser
tudo, de metafísica à biologia. Em resumo, ele foi “o contempladas por eles. O que são as coisas que existem
cara”. Por isso, devemos estudar Aristóteles como o por si mesmas e em si mesmas, independentemente de
porta-voz dos gregos instruídos, pois era assim que ele nossa ação técnica e de nossa ação moral e política?
se considerava. São as coisas da natureza e as coisas divinas.
Apesar de ter sido um dos maiores pensadores Aristóteles, aqui, classifica as ciências teoréticas por
que Atenas produziu, ele era um meteco, e como tal, graus de superioridade, indo da mais inferior à superior:
sem direitos políticos. De Estagira, na Macedônia, 1. ciência das coisas naturais submetidas à
Aristóteles sai aos 18 anos para estudar na Academia de mudança ou ao devir: física, biologia, meteorologia,
Platão em Atenas. Isso, provavelmente, uns 10 anos psicologia (a alma – em grego, psyché – é um ser natural
antes do domínio macedônico sobre a Grécia. Com que existe de formas variadas em todos os seres vivos,
uma mente notável, permanece por lá durante 20 anos plantas, animais e seres humanos);
até a morte de Platão. 2. ciência das coisas naturais que não estão
Após a morte do mestre, a quem Aristóteles era submetidas à mudança ou ao devir: as matemáticas e a
muito amigo e admirador, não vê mais motivos de astronomia (os gregos julgavam que os astros eram
continuar na academia e sai de Atenas para viajar por eternos e imutáveis);
um bom tempo. 3. ciência da realidade pura, que estuda o que
Em 335 a. c., o rei Felipe II o chama para morar Aristóteles chama de Ser ou substância de tudo o que
em Pela, capital do império macedônico, e ser professor existe. Ou seja, trata-se daquilo que deve haver em toda
de seu filho Alexandre, condição na qual permaneceu e qualquer realidade – natural, matemática, ética,
até este assumir o poder. Essa proximidade com a corte política ou técnica – para ser realidade. A ciência
macedônica se dava pelo fato de Nicômaco, seu pai, ter teorética que estuda o puro Ser foi chamada Filosofia
sido o médico do rei Amintas, pai de Felipe. Primeira por Aristóteles. Alguns séculos depois, como
Aristóteles se diferenciava de Platão em três os livros que a expunham estavam localizados nas
aspectos gerais: bibliotecas depois dos livros que expunham a física, ela
1) O abandono do componente mítico; passou a ser chamada metafísica (em grego, meta
2) O escasso interesse pelas ciências significa ‘o que vem depois, o que está além’; ou seja,
matemáticas e, ao contrário, a viva atenção no caso, os livros que vinham depois da física e que
pelas ciências naturais; tratavam da realidade para além da física);
3) O método sistemático em vez do dialético- 4. ciência das coisas divinas que são a causa e a
dialógico; finalidade de tudo o que existe na natureza e no homem.
Aristóteles foi um grande pensador sistemático,
que dividiu os saberes em: 1. O CONHECIMENTO
Ciências produtivas/poéticas: ciências que
estudam as práticas produtivas ou as técnicas, isto é, as
Vimos que Heráclito considerava a natureza (o
ações humanas que visam à produção de um objeto, de
kosmos) um “fluxo perpétuo”, o escoamento contínuo
uma obra. São elas: arquitetura, economia, medicina,
dos seres em mudança perpétua.
pintura, escultura, poesia, teatro, oratória, arte da
Ele comparava o mundo à chama de uma vela
guerra, da caça, da navegação, etc. Em suma, são objeto
que queima sem cessar e transforma a cera em fogo, o
das ciências produtivas todas as atividades humanas
fogo em fumaça e a fumaça em ar. O verão se torna
técnicas e artísticas que resultam num produto ou numa
outono, o novo fica velho, o quente esfria, o úmido
obra distintos do produtor.
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1
seca; cada ser é um movimento em direção ao seu O pensamento parece seguir certas leis para
contrário. conhecer as coisas e há uma diferença entre perceber e
A realidade, para Heráclito, é a harmonia dos pensar. Pensamos com base no que percebemos ou
contrários, que não cessam de se transformar uns nos negando o que percebemos? O pensamento continua,
outros. Se assim for, como explicar que nossa nega ou corrige a percepção? O modo como os seres
percepção nos ofereça as coisas como se fossem nos aparecem é o modo como eles realmente são?
estáveis, duradouras e permanentes? Com essa O problema sobre o conhecimento estava posto
pergunta, ele indicava a diferença entre o conhecimento e preocupações como essas levaram a duas atitudes
que nossos sentidos nos oferecem e o conhecimento filosóficas: a dos sofistas e a de Sócrates. Com eles, os
que nosso pensamento alcança: o primeiro nos oferece problemas do conhecimento tornaram-se centrais.
a permanência ilusória, enquanto o segundo conhece a Diante da pluralidade das ontologias anteriores,
mudança como verdadeira realidade. os sofistas concluíram que não podemos conhecer o
Parmênides, porém, opunha-se a Heráclito, ser, pois, se pudéssemos, pensaríamos da mesma
afirmando que só podemos pensar sobre aquilo que maneira e haveria uma única filosofia.
permanece sempre idêntico a si mesmo. Para ele, se Consequentemente, só podemos ter opiniões subjetivas
nada permanece, então nada pode ser pensado. sobre a realidade.
Conhecer é alcançar o idêntico, o imutável. Por isso, os homens devem valer-se de um
Nossos sentidos nos oferecem a imagem de um mundo instrumento – a linguagem – para persuadir os outros
em incessante mudança, no qual tudo se torna o de suas próprias ideias e opiniões. A verdade é uma
contrário de si mesmo: o dia vira noite, o inverno vira questão de opinião e de persuasão, e a linguagem é mais
primavera, o doce se torna amargo, o líquido se importante do que a percepção e o pensamento.
transforma em vapor ou em sólido. Opondo-se aos sofistas, Sócrates afirmava que
Como pensar o que é e não é ao mesmo tempo? a verdade pode ser conhecida quando compreendemos
Como pensar o instável? Não é possível, dizia que precisamos começar afastando as ilusões dos
Parmênides. sentidos, as imposições das palavras e a multiplicidade
Pensar é apreender um ser em sua identidade das opiniões.
profunda e permanente. Com isso, afirmava o mesmo Os órgãos dos sentidos, diz Sócrates, dão-nos
que Heráclito – perceber e pensar são diferentes –, mas somente as aparências das coisas, e as palavras, meras
dizia isso em sentido oposto: nossos sentidos percebem opiniões sobre elas. A aparência e a opinião variam de
mudanças impensáveis, mas o pensamento conhece a pessoa para pessoa e em um mesmo indivíduo. Mas não
realidade, isto é, a identidade e a imutabilidade. só variam: também se contradizem.
A distinção entre perceber e pensar é mantida Conhecer é começar a examinar as contradições
também pela filosofia atomista ou o atomismo das aparências e das opiniões para poder abandoná-las
proposto por Demócrito de Abdera. Para ele, os seres e passar da aparência à essência, da opinião ao conceito.
surgem por composição dos átomos, transformam-se O exame das opiniões é aquele procedimento que
por novos arranjos e desaparecem pela separação deles. Sócrates chamava ironia, com o qual o filósofo
Os átomos possuem formas e consistências conseguia que seus interlocutores reconhecessem que
diferentes, de cuja combinação surge a variedade de não sabiam o que imaginavam saber.
seres, suas mudanças e desaparições. Por meio de Sócrates fez a filosofia voltar-se para nossa
nossos órgãos dos sentidos, percebemos o quente e o capacidade de conhecer e indagar as causas das ilusões,
frio, o grande e o pequeno, o duro e o mole, sabores, dos erros, do falso e da mentira.
odores, texturas, o agradável e o desagradável, sentimos Platão e Aristóteles herdaram de Sócrates o
prazer e dor, porque percebemos os efeitos das procedimento filosófico de começar a abordar uma
combinações dos átomos que, em si mesmos, não questão pela discussão e pelo debate das opiniões
possuem tais qualidades. contrárias sobre ela a fim de superá-las num saber
Somente o pensamento pode conhecer os verdadeiro. Além disso, passaram a definir as formas de
átomos, que são invisíveis para nossa percepção conhecer e as diferenças entre o conhecimento
sensorial. Dessa maneira, Demócrito concordava com verdadeiro e a ilusão, introduzindo na filosofia a ideia
Heráclito e Parmênides que há uma diferença entre o de que existem diferentes maneiras de conhecer.
que conhecemos por meio de nossa percepção e o que Platão distingue quatro formas ou graus de
conhecemos apenas pelo pensamento. Porém, conhecimento, que vão do grau inferior ao superior:
divergindo deles, Demócrito não considerava a crença, opinião, raciocínio e intuição intelectual. Os
percepção ilusória, mas sim um efeito da realidade dois primeiros formam o que ele chama conhecimento
sobre nós. O conhecimento sensorial é verdadeiro, sensível; os dois últimos, o conhecimento inteligível.
embora seja de uma verdade diferente e menos A crença é nossa confiança no conhecimento
profunda ou menos relevante do que aquela alcançada sensorial: cremos que as coisas são tal como as
pelo puro pensamento. percebemos. A opinião é nossa aceitação do que nos
46
2
ensinaram sobre as coisas ou o que delas pensamos como ser corporal e psíquico individual. Sensações,
conforme nossas sensações e lembranças. Esses dois lembranças, imagens, sentimentos, desejos e
primeiros graus nos oferecem apenas a aparência das percepções variam de pessoa para pessoa e numa
coisas ou suas imagens e correspondem à situação dos mesma pessoa em decorrência de mudanças em seu
prisioneiros do Mito da Caverna. Por serem ilusórios, corpo, em sua mente ou nas circunstâncias em que o
devem ser afastados por quem busca o conhecimento conhecimento ocorre.
verdadeiro; portanto, somente os dois últimos graus Assim, a marca da intuição empírica é sua
devem ser considerados válidos. singularidade; por um lado, está ligada à singularidade
O raciocínio exercita nosso pensamento, do objeto intuído (ao “isto” oferecido à sensação e à
purifica-o das sensações e opiniões e o prepara para a percepção) e, por outro, à singularidade do sujeito que
intuição intelectual, que conhece a essência das coisas, intui (aos meus estados psíquicos, às minhas
o que Platão denomina ideia. As ideias são a realidade experiências). A intuição empírica não capta o objeto
verdadeira e conhecê-las é ter o conhecimento em sua universalidade, e a experiência intuitiva não é
verdadeiro. A ironia e a maiêutica socráticas são transferível para outro objeto.
transformadas por Platão no procedimento da dialética. A intuição intelectual difere da sensível
A finalidade do percurso dialético é chegar à intuição justamente por sua universalidade e necessidade.
intelectual de uma essência ou ideia. Quando penso: “Uma coisa não pode ser e não ser ao
Aqui precisamos deixar claro que uma intuição mesmo tempo”, sei, sem necessidade de
é uma compreensão completa e imediata de um objeto, demonstrações, que isto é verdade e que é necessário
de um fato. Nela, de uma só vez, a razão capta todas as que seja sempre assim, ou que é impossível que não seja
relações que constituem a realidade e a verdade da coisa sempre assim. Em outras palavras, tenho conhecimento
intuída. É um ato intelectual de discernimento e intuitivo do princípio da contradição.
compreensão, sem necessidade de provas ou Quando afirmo: “O todo é maior do que as
demonstrações para saber o que conhece. partes”, sei, sem necessidade de provas e
Ela pode depender de conhecimentos demonstrações, que isto é verdade porque intuo uma
anteriores e ela ocorre quando esses conhecimentos são forma necessária de relação entre as coisas.
percebidos de uma só vez, numa síntese em que Diante de todos esses posicionamentos sobre o
aparecem articulados e organizados num todo (sua conhecimento e a forma que conhecemos, Aristóteles
forma, seu conteúdo, suas causas, suas propriedades, distingue sete formas ou graus de conhecimento:
seus efeitos, suas relações com outros, seu sentido).
Isso significa que a intuição pode ser o 1 - sensação,
momento final de um processo de conhecimento. E 2 - percepção,
justamente por ser o momento de conclusão de um 3 - imaginação,
percurso, ela pode ser o ponto inicial de um novo 4 - memória,
percurso de conhecimento em cujo ponto final haverá 5 - linguagem,
uma nova intuição. 6 – raciocínio,
A intuição racional pode ser de dois tipos: 7 - intuição.
intuição sensível ou empírica e intuição intelectual.
A primeira é o conhecimento que temos a todo Enquanto Platão concebia o conhecimento
momento de nossa vida. Assim, com um só olhar ou como abandono de um grau inferior por um superior,
num só ato de visão percebemos uma casa, um homem, Aristóteles o considerava continuamente formado e
uma mulher, uma flor, uma mesa. enriquecido por acúmulo das informações trazidas por
Num só ato, por exemplo, capto que isto é uma todos os graus. Desse modo, em lugar de uma ruptura
flor: vejo sua cor e suas pétalas, sinto a maciez de sua entre o conhecimento sensível e o intelectual, há uma
textura, aspiro seu perfume, tenho-a por inteiro e de continuidade entre eles.
uma só vez diante de mim. As informações trazidas pelas sensações se
A intuição empírica é o conhecimento direto e organizam e permitem a percepção. As percepções, por
imediato das qualidades do objeto externo sua vez, organizam-se e permitem a imaginação. Juntas,
denominadas qualidades sensíveis: cor, sabor, odor, conduzem à memória, à linguagem e ao raciocínio.
paladar, som, textura. É a percepção direta de formas, Aristóteles concebe, porém, uma separação
dimensões, distâncias das coisas percebidas. É também entre os seis primeiros graus e a intuição intelectual, que
o conhecimento direto e imediato de nossos estados é um ato do pensamento puro e não depende dos graus
internos ou mentais que dependem ou dependeram de anteriores.
nosso contato sensorial com as coisas: lembranças, A intuição intelectual é o conhecimento direto
desejos, sentimentos, imagens. e imediato dos princípios da razão, os quais, por serem
A intuição sensível ou empírica é psicológica, princípios, não podem ser demonstrados (para
isto é, refere-se aos estados do sujeito do conhecimento demonstrá-los, precisaríamos de outros princípios e,
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3
para demonstrar estes outros princípios, precisaríamos que a mudança se realiza sob a forma da contradição,
de outros, num processo interminável). isto é, que as coisas se transformam nos seus opostos.
Essa separação não significa que os outros graus A mudança ou transformação é a maneira pela
ofereçam conhecimentos ilusórios ou falsos, e sim que qual as coisas realizam todas as potencialidades contidas
oferecem tipos de conhecimentos diferentes, que vão em sua essência, e esta não é contraditória, mas uma
de um grau menor a um grau maior de verdade. identidade que o pensamento pode conhecer.
Em cada um deles temos acesso a um aspecto Assim, por exemplo, quando a criança se torna
do ser ou da realidade; na intuição intelectual, temos o adulta ou quando a semente se torna árvore, nenhuma
conhecimento dos princípios universais e necessários delas tornou-se contrária a si mesma, mas desenvolveu
do pensamento (identidade, não contradição, terceiro uma potencialidade definida pela identidade própria de
excluído) e dos primeiros princípios e causas da sua essência.
realidade ou do ser. Cabe à filosofia conhecer como e por que as
A diferença entre os seis primeiros graus e o coisas, sem mudarem de essência, transformam-se,
último decorre da diferença do objeto do assim como cabe à filosofia conhecer como e por que
conhecimento: os seis primeiros graus conhecem há seres imutáveis (como as entidades matemáticas e as
objetos que se oferecem a nós na sensação, na divinas).
imaginação, no raciocínio, enquanto o sétimo lida com Parmênides tem razão: o pensamento e a
princípios e causas primeiras da realidade em si. linguagem exigem a identidade. Heráclito tem razão: as
Em outras palavras, nos outros graus, o coisas mudam. Ambos se enganaram ao supor que deve
conhecimento é obtido por indução ou por dedução, haver somente identidade ou somente mudança.
mas no último grau conhecemos o que é Ambas existem sem que seja preciso dividir a realidade
indemonstrável (princípios e causas primeiras) porque é em dois mundos, à maneira platônica.
condição para todas as demonstrações e raciocínios. Aristóteles considera que a dialética não é um
procedimento seguro para o pensamento e a linguagem
2. A LÓGICA da filosofia e da ciência, pois parte de opiniões
contrárias dos debatedores, e a escolha de uma opinião
Vimos que Aristóteles propôs a primeira em vez de outra não garante que se possa chegar à
classificação geral dos conhecimentos ou das ciências essência da coisa investigada. A dialética, diz
dividindo-as em três tipos: teoréticas (ou Aristóteles, é boa para as disputas oratórias da política
contemplativas), práticas (ou da ação humana) e e do teatro, para a retórica, para os assuntos sobre os
produtivas (ou relativas à fabricação e às técnicas). quais só existem opiniões e nos quais só cabe a
Todos os saberes referentes a todos os seres, persuasão. Não é o caso da filosofia e da ciência, porque
todas as ações e produções humanas encontravam-se a estas interessa a demonstração ou a prova de uma
distribuídos nessa classificação que ia da ciência mais verdade.
alta — a Filosofia Primeira — até o conhecimento das Substituindo a dialética por um conjunto de
técnicas criadas pelos homens para a fabricação de procedimentos de demonstração e prova, Aristóteles
objetos. criou a lógica propriamente dita, que ele chamava de
Mas nessa classificação não encontramos a analítica.
lógica. Isso por que a lógica não era nem uma ciência Qual a diferença entre a dialética platônica e a
teorética, nem prática, nem produtiva, mas um lógica (ou analítica) aristotélica?
instrumento para as ciências, ordenado por um Em primeiro lugar, a dialética platônica é o
conjunto de regras. É a maneira certa de raciocinarmos exercício direto do pensamento e da linguagem, um
para podermos produzir um conhecimento certo e modo de pensar que opera com os conteúdos do
seguro. Desse modo, depois de definir como pensar, ele pensamento e do discurso. A lógica aristotélica é um
se volta para as questões centrais da Filosofia de seu instrumento para o exercício do pensamento e da
tempo. linguagem: ela oferece os meios para realizar o
Assim, à oposição entre contradição-mudança conhecimento e o discurso.
(Heráclito) e identidade-permanência (Parmênides) dos Para Platão, a dialética é um modo de conhecer.
seres, Aristóteles apresenta uma terceira via diferente da Para Aristóteles, a lógica (ou analítica) é um
escolhida por Platão e radicalmente nova. instrumento para o conhecer.
Considera desnecessário separar a realidade e a Em segundo lugar, a dialética platônica é uma
aparência em dois mundos (há um único mundo no atividade intelectual destinada a trabalhar contrários e
qual existem essências e aparência) e não aceita que a contradições para superá-los, chegando à identidade da
mudança ou o devir seja mera aparência ilusória. essência ou da ideia imutável. Depurando e purificando
Há seres cuja essência é mutável e há seres cuja as opiniões contrárias, a dialética platônica chega ao que
essência é imutável. Porém, Heráclito errou ao supor é verdadeiro para todas as inteligências.
48
4
Já a lógica aristotélica oferece procedimentos a Aristóteles define os termos ou categorias como
serem empregados naqueles raciocínios que se referem “aquilo que serve para designar uma coisa”. São
a todas as coisas das quais possamos ter um palavras que aparecem em tudo quanto pensamos e
conhecimento universal e necessário. Seu ponto de dizemos.
partida não são opiniões contrárias, mas princípios, Há dez categorias ou termos:
regras e leis necessários e universais do pensamento. 1. substância (por exemplo, homem, Sócrates, animal);
2. quantidade (por exemplo, dois metros de
Principais características comprimento);
3. qualidade (por exemplo, branco, grego, agradável);
A palavra grega Órganon (‘instrumento’), nome 4. relação (por exemplo, o dobro, a metade, maior que);
dado por estudiosos ao conjunto das obras sobre lógica 5. lugar (por exemplo, em casa, na rua, no alto);
escritas por Aristóteles, condiz com a própria 6. tempo (por exemplo, ontem, hoje, agora);
concepção que ele tinha do uso desse conhecimento, 7. posição (por exemplo, sentado, deitado, de pé);
caracterizado por ser: 8. posse (por exemplo, armado, isto é, na posse de uma
Instrumental: é o instrumento do pensamento arma);
e da linguagem para pensar e dizer corretamente a fim 9. ação (por exemplo, corta, fere, derrama);
de verificar a correção do que está sendo pensado e 10. paixão ou passividade (por exemplo, está cortado,
dito; está ferido).
Formal: não se ocupa com os conteúdos As categorias ou termos indicam o que uma
pensados ou com os objetos referidos pelo coisa é ou faz, ou como está. São aquilo que nossa
pensamento, mas apenas com a forma pura e geral dos percepção e nosso pensamento captam imediata e
pensamentos, expressos por meio da linguagem; diretamente numa coisa, sem precisar de nenhuma
Propedêutica ou preliminar: é o que devemos demonstração, pois nos dão a apreensão direta de uma
conhecer antes de iniciar uma investigação científica ou entidade simples. Possuem duas propriedades lógicas: a
filosófica, pois somente ela pode indicar os extensão e a compreensão.
procedimentos (métodos, raciocínios, demonstrações) Extensão é o conjunto de objetos designados
que devemos empregar para cada modalidade de por um termo ou uma categoria. Compreensão é o
conhecimento; conjunto de propriedades que esse mesmo termo ou
Normativa: fornece princípios, leis, regras e essa categoria designa.
normas que todo pensamento deve seguir se quiser ser Por exemplo: uso a palavra homem para
verdadeiro; designar Pedro, Paulo, Sócrates, e uso a palavra metal
Doutrina da prova: estabelece as condições e para designar ouro, ferro, prata, cobre. A extensão do
os fundamentos necessários de todas as demonstrações. termo homem será o conjunto de todos os seres que
Dada uma hipótese, permite verificar as consequências podem ser designados por ele e que podem ser
necessárias que dela decorrem; dada uma conclusão, chamados de homens; a extensão do termo metal será
permite verificar se é verdadeira ou falsa; o conjunto de todos os seres que podem ser designados
Geral e atemporal: as formas do pensamento, como metais. Se, no entanto, tomarmos o termo
seus princípios e suas leis não dependem do tempo e do homem e dissermos que é um animal, vertebrado,
lugar, nem das pessoas e circunstâncias, mas são mamífero, bípede, mortal e racional, essas qualidades
universais, necessárias e imutáveis. formam sua compreensão. Se tomarmos o termo metal
O objeto da lógica é a proposição, que exprime, e dissermos que é um bom condutor de calor, reflete a
por meio da linguagem, os juízos formulados pelo luz, etc., teremos a compreensão desse termo.
pensamento. Quanto maior a extensão de um termo, menor
A proposição é a atribuição de um predicado a sua compreensão, e quanto maior a compreensão,
um sujeito: S é P. O encadeamento dos juízos constitui menor a extensão. Tomemos, por exemplo, o termo
o raciocínio e este se exprime logicamente por meio da Sócrates: sua extensão é a menor possível, pois se refere
conexão de proposições; essa conexão chama-se a um único ser; no entanto, sua compreensão é a maior
silogismo. A lógica estuda os elementos que constituem possível, pois possui todas as propriedades do termo
uma proposição, os tipos de proposições e de homem e mais suas propriedades específicas na
silogismos e os princípios necessários a que toda qualidade de uma pessoa determinada. Essa distinção
proposição e todo silogismo devem obedecer para permite classificar os termos ou categorias em três
serem verdadeiros. tipos:
1. gênero: extensão maior, compreensão
A proposição menor. Exemplo: animal;
2. espécie: extensão média e compreensão
Uma proposição é constituída por elementos média. Exemplo: homem;
que são seus termos.
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3. indivíduo: extensão menor, compreensão “Todo triângulo é uma figura de três lados”, “Todo
maior. Exemplo: Sócrates. homem é mortal”;
Na proposição, a categoria da substância é o Impossíveis: quando o predicado não pode, de
sujeito (S) e as demais categorias são os predicados (P) modo algum, ser atribuído ao sujeito. Por exemplo:
atribuídos ao sujeito. A atribuição ou predicação se faz “Nenhum triângulo é figura de quatro lados”,
por meio do verbo de ligação ser. Exemplo: Pedro é “Nenhum planeta é um astro com luz própria”;
alto. Possíveis: quando o predicado pode ser ou
A proposição reúne ou separa verbalmente o deixar de ser atribuído ao sujeito. Por exemplo: “Alguns
que o juízo reuniu ou separou mentalmente. A reunião triângulos são dotados de lados iguais”, “Alguns
de termos se faz pela afirmação: S é P. A separação se homens são justos”.
faz pela negação: S não é P. A reunião ou separação dos Como todo pensamento e todo juízo, a
termos é considerada verdadeira ou recebe a proposição está submetida aos três princípios lógicos
denominação de verdade quando o que foi reunido ou fundamentais, condições de toda verdade: os princípios
separado em pensamento e na linguagem está de identidade, de não contradição e de terceiro excluído.
efetivamente reunido ou separado na realidade. Em Princípio da identidade cujo enunciado pode
contrapartida, a reunião ou separação dos termos é parecer surpreendente: “A é A” ou “O que é, é”. O
considerada falsa ou recebe a denominação de falsidade princípio da identidade é a condição do pensamento e
quando o que foi reunido ou separado em pensamento sem ele não podemos pensar. Ele afirma que uma coisa,
e na linguagem não está efetivamente reunido ou seja ela qual for, só pode ser conhecida e pensada se for
separado na realidade. percebida e conservada com sua identidade. Esse
Do ponto de vista do sujeito, há dois tipos de princípio, cujo enunciado parece absurdo (achamos
proposições: óbvio que uma coisa seja idêntica a si mesma), é usado
1. proposição existencial: declara a existência, por nossa sociedade sem que percebamos. Onde é
posição, ação ou paixão do sujeito. Por exemplo: “Um usado? Na chamada “carteira de identidade” (o nosso
homem é (existe)”, “Um homem anda”, “Um homem RG), por exemplo, com a qual se afirma e se garante
está ferido”. E suas negativas: “Um homem não é (não que “A é A”.
existe)”, “Um homem não anda”, “Um homem não O princípio da identidade é a condição para
está ferido”; definirmos as coisas e podermos conhecê-las com base
2. proposição predicativa: declara a atribuição em suas definições. Por exemplo, depois que a
de alguma coisa a um sujeito por meio do verbo de matemática determinou a identidade do triângulo como
ligação é. Por exemplo: “Um homem é justo”, “Um figura de três lados e de três ângulos internos cuja soma
homem não é justo”. é igual à soma de dois ângulos retos, nenhuma outra
As proposições se classificam segundo a figura a não ser esta poderá ser denominada triângulo.
qualidade e a quantidade. Do ponto de vista da Princípio da não contradição (também
qualidade, as proposições se dividem em: conhecido como princípio da contradição), cujo
Afirmativas: as que atribuem alguma coisa a enunciado é “A é A e é impossível que seja, ao mesmo
um sujeito: S é P. tempo e na mesma relação, não A”.
Negativas: as que separam o sujeito de alguma Assim, é impossível que a árvore que está diante
coisa: S não é P. de mim seja e não seja, ao mesmo tempo, uma árvore;
Do ponto de vista da quantidade, as que o homem seja e não seja, ao mesmo tempo, mortal;
proposições se dividem em: que o vermelho seja e não seja, ao mesmo tempo,
Universais: quando o predicado se refere à vermelho, etc.
extensão total do sujeito, afirmativamente (Todos os S Sem o princípio da não contradição, o princípio
são P) ou negativamente (Nenhum S é P); da identidade não poderia funcionar. Se uma coisa ou
Particulares: quando o predicado é atribuído a uma ideia se negarem a si mesmas, elas se autodestroem.
uma parte da extensão do sujeito, afirmativamente Eis por que o princípio enuncia que as coisas e
(Alguns S são P) ou negativamente (Alguns S não são as ideias contraditórias são impensáveis e impossíveis.
P); Devemos, porém, estar atentos às duas condições no
Singulares: quando o predicado é atribuído a enunciado desse princípio nas quais há contradição.
um único indivíduo, afirmativamente (Este S é P) ou De fato, o princípio enuncia que é impossível
negativamente (Este S não é P). afirmar e negar a mesma coisa a respeito de algo ao
Além da distinção pela qualidade e pela mesmo tempo e na mesma relação. Por que essas duas
quantidade, as proposições se distinguem pela condições? Porque há coisas que podem mudar no
modalidade, sendo classificadas como: correr de suas existências ou no correr do tempo, de tal
Necessárias: quando o predicado está incluído maneira que poderão tornar-se diferentes do que eram
na essência do sujeito, fazendo parte dela. Por exemplo: e até mesmo opostas ao que eram sem que isso
signifique contradição. Por exemplo, é contraditório
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6
que, aqui e agora (nesta relação e neste tempo), uma sujeito e predicado. Por exemplo: “Todos os seres
criança seja e não seja criança; porém, não será humanos são bípedes” e “Os gregos são bípedes”.
contraditório dizer que esta criança é, agora, uma
criança e não será uma criança, quando crescer. Ou seja, O silogismo
num outro tempo e sob outra relação, a mudança de
alguém ou de alguma coisa não é contraditória. Aristóteles elaborou uma teoria do raciocínio
As duas condições para que haja contradição como inferência. Inferir é obter uma proposição como
indicam também que as coisas que não estão conclusão de uma ou de várias outras proposições que
submetidas ao tempo ou que não são temporais, a antecedem e são sua explicação ou sua causa. O
justamente porque não mudam ou não se transformam, raciocínio realiza inferências.
são aquelas para as quais o princípio de não contradição O raciocínio é uma operação do pensamento
opera sempre da mesma maneira. Assim, será sempre realizada por meio de juízos. Quando o raciocínio é
contraditório dizer que a figura geométrica triângulo é, enunciado por meio de proposições encadeadas, forma-
ao mesmo tempo e na mesma relação, triângulo e não se um silogismo.
triângulo, embora uma caixa de papelão triangular possa Inferir significa conhecer alguma coisa (a
perder essa forma com o correr do tempo ou com uma conclusão) pela mediação de outras coisas. Portanto, o
intervenção humana. O triângulo geométrico não raciocínio e o silogismo diferem da intuição, que, é um
muda; uma caixa triangular de papelão pode mudar de conhecimento direto ou imediato de alguma coisa ou de
forma (por exemplo, se ficar sob a água, vira uma pasta). alguma verdade.
Princípio do terceiro excluído, cujo A teoria aristotélica do silogismo é o coração da
enunciado é: “Ou A é x ou não é x, e não há terceira lógica. Ela constitui a teoria das demonstrações ou das
possibilidade”. Por exemplo: “Ou este homem é provas, da qual depende o pensamento científico e
Sócrates ou não é Sócrates”; “Ou faremos a guerra ou filosófico.
faremos a paz”. Este princípio define a decisão de um O silogismo possui três características
dilema – “ou isto ou aquilo” –, no qual as duas principais:
alternativas são possíveis, e a solução exige que apenas 1. é mediato: exige um percurso de
uma delas seja verdadeira. Mesmo quando temos um pensamento e de linguagem para que se chegue a uma
teste de múltipla escolha, escolhemos na verdade conclusão;
apenas entre duas opções – “ou está certo ou está 2. é demonstrativo (dedutivo ou indutivo): é
errado” –, e não há terceira possibilidade. um movimento de pensamento e de linguagem que
Graças a esses princípios, obtemos a última parte de certas afirmações verdadeiras para chegar a
maneira pela qual as proposições se distinguem. outras também verdadeiras e que dependem
Trata-se da classificação das proposições necessariamente das primeiras;
segundo a relação: 3. é necessário: porque é demonstrativo (as
Contraditórias: quando, tendo o mesmo consequências a que se chega na conclusão resultam
sujeito e o mesmo predicado, uma das proposições é necessariamente da verdade do ponto de partida).
universal afirmativa (Todos os S são P) e a outra é Por isso, Aristóteles considera o silogismo que
particular negativa (Alguns S não são P); ou quando se parte de proposições apodíticas superior ao que parte
tem uma universal negativa (Nenhum S é P) e uma de proposições hipotéticas ou possíveis, designando-o
particular afirmativa (Alguns S são P). Por exemplo: ostensivo, pois mostra claramente a relação necessária
“Todos os homens são mortais” e “Alguns homens não e verdadeira entre o ponto de partida e a conclusão. O
são mortais”. Ou então: “Nenhum homem é imortal” e exemplo mais famoso de silogismo ostensivo é:
“Alguns homens são imortais”;
Contrárias: quando, tendo o mesmo sujeito e o “Todos os homens são mortais.
mesmo predicado, uma das proposições é universal Sócrates é homem.
afirmativa (Todo S é P) e a outra é universal negativa Logo, Sócrates é mortal.”
(Nenhum S é P); ou quando uma das proposições é
particular afirmativa (Alguns S são P) e a outra é Um silogismo é constituído por três
particular negativa (Alguns S não são P). Por exemplo: proposições. A primeira é chamada premissa maior (no
“Todas as estrelas são astros com luz própria” e nosso exemplo, “Todos os homens são mortais”); a
“Nenhuma estrela é um astro com luz própria”. Ou segunda, premissa menor (no nosso exemplo, “Sócrates
então: “Alguns homens são justos” e “Alguns homens é homem”); e a terceira, conclusão (no nosso exemplo,
não são justos”; “Sócrates é mortal”).
Subalternas: quando uma proposição universal A conclusão é inferida das premissas pela
afirmativa subordina uma particular afirmativa de mediação do chamado termo médio (no nosso
mesmo sujeito e predicado, ou quando uma universal exemplo, o termo médio é “homem”). As premissas
negativa subordina uma particular negativa de mesmo possuem termos denominados extremos; há um
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extremo maior (no nosso exemplo, “mortais”) e um brasileiros” e “Os sulistas são brasileiros”, não poderei
extremo menor (no nosso exemplo, “Sócrates”), e a tirar conclusão alguma, pois o termo médio
função do termo médio é liga-los. “brasileiros” não foi tomado nenhuma vez no todo de
Essa ligação é a inferência, e sem ela não há sua extensão.
raciocínio nem demonstração. Por isso, a arte do 3. Nenhum termo pode ser mais extenso na
silogismo consiste em saber encontrar o termo médio conclusão do que nas premissas, pois, nesse caso,
que ligará os extremos e permitirá chegar à conclusão. concluiremos mais do que seria permitido. Isso significa
Aristóteles dizia que em toda ciência, afora o que uma das premissas sempre deverá ser universal
conhecimento intuitivo de seus princípios necessários, (afirmativa ou negativa).
o ponto mais importante era o conhecimento dos 4. A conclusão não pode conter o termo médio,
termos médios, porque eram estes que permitiam pois a função deste se esgota na ligação entre o maior e
encadear as premissas à conclusão, isto é, articular uma o menor.
afirmação ou negação particular às suas condições 5. De duas premissas negativas nada pode ser
universais. concluído, pois o médio não terá ligado os extremos.
Para que se chegue a uma conclusão verdadeira, 6. De duas premissas particulares nada poderá
o silogismo deve obedecer a um conjunto complexo de ser concluído, pois o médio não terá sido tomado em
regras. Dessas regras, apresentaremos as mais toda a sua extensão pelo menos uma vez e não poderá
importantes, tomando como referência o silogismo ligar o maior e o menor.
clássico que oferecemos anteriormente: 7. Duas premissas afirmativas devem ter a
A premissa maior deve conter o termo conclusão afirmativa, o que é evidente por si mesmo.
extremo maior (no caso, “mortais”) e o termo médio 8. A conclusão sempre acompanha a parte mais
(no caso, “homens”); fraca. Isto é, se houver uma premissa negativa, a
A premissa menor deve conter o termo conclusão será negativa; se houver uma premissa
extremo menor (no caso, “Sócrates”) e o termo médio particular, a conclusão será particular; se houver uma
(no caso, “homem”); premissa particular negativa, a conclusão será uma
A conclusão deve conter o maior e o menor e particular negativa. Essas regras dão origem às figuras e
jamais deve conter o termo médio (no caso, deve conter aos modos do silogismo.
“Sócrates” e “mortal” e jamais deve conter “homem”).
Como a função do médio é ligar os extremos, ele deve O silogismo científico
estar nas duas premissas, mas nunca na conclusão.
A proposição é uma predicação ou atribuição. Aristóteles distingue dois grandes tipos de
As premissas fazem a atribuição afirmativa ou negativa silogismos: os dialéticos e os científicos.
do predicado ao sujeito, estabelecendo a inclusão ou Nos primeiros, as premissas se referem ao que
exclusão do médio no maior e a inclusão ou exclusão é apenas possível ou provável, ao que pode ser de uma
do menor no médio. Graças a essa dupla inclusão ou maneira ou de outra, contrária e oposta. Suas premissas
exclusão, o menor estará incluído no maior ou excluído são hipotéticas e por isso sua conclusão também é
dele. hipotética.
Por ser um sistema de inclusões (ou exclusões) O silogismo dialético comporta argumentações
entre sujeitos e predicados, o silogismo declara a contrárias, porque suas premissas são meras opiniões
inerência do predicado ao sujeito. Ou seja, quando há sobre coisas ou fatos possíveis ou prováveis. As
uma inerência afirmativa, o predicado está opiniões não são objeto de ciência, mas de persuasão.
necessariamente incluído no sujeito; quando há uma A dialética é uma discussão entre opiniões contrárias
inerência negativa, o predicado está necessariamente que oferecem argumentos contrários, vencendo aquele
excluído do sujeito. A ciência é a investigação dessas cuja conclusão for mais persuasiva. O silogismo
inerências, por meio das quais se alcança a essência do dialético é próprio da retórica, ou arte da persuasão, na
objeto investigado. qual aquele que fala procura tocar as emoções e paixões
A inferência silogística deve obedecer a oito dos ouvintes e não o raciocínio ou a inteligência deles.
regras, sem as quais não terá validade, não sendo Já o silogismo científico se refere ao que é
possível dizer se a conclusão é verdadeira ou falsa: universal e necessário, ao que é de uma maneira e não
1. Um silogismo deve ter um termo maior, um pode deixar de ser tal como é, ao que acontece sempre,
menor e um médio e somente três termos, nem mais, e sempre acontece da mesma maneira. Suas premissas
nem menos. são apodíticas e sua conclusão também é apodítica.
2. O termo médio deve aparecer nas duas O silogismo científico não admite premissas
premissas. Além disso, deve ser tomado em toda a sua contraditórias. Suas premissas são universais
extensão (isto é, como um universal) pelo menos uma necessárias e sua conclusão não admite discussão ou
vez, pois, do contrário, não se poderá ligar o maior e o refutação, mas exige demonstração. Por esse motivo, o
menor. Por exemplo, se eu disser “Os cearenses são
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silogismo científico deve obedecer a quatro regras, sem silogismo científico não lida com os predicados ou
as quais sua demonstração não tem valor: atributos acidentais.
1. as premissas devem ser verdadeiras (não A ciência é um conhecimento que vai do gênero
podem ser possíveis ou prováveis, nem falsas); mais alto de um ser às suas espécies mais singulares. A
2. as premissas devem ser primárias ou passagem do gênero à espécie singular se faz por uma
primeiras, isto é, indemonstráveis, pois, se tivermos de cadeia dedutiva ou silogística, na qual cada espécie
demonstrar as premissas, teremos de ir de regressão em funciona como gênero para suas subordinadas e cada
regressão, indefinidamente, e nada demonstraremos; uma delas se distingue das outras por uma diferença
3. as premissas devem ser mais inteligíveis do específica. Definir é encontrar a diferença específica
que a conclusão, pois a verdade desta depende entre seres do mesmo gênero.
inteiramente da absoluta clareza e compreensão que A tarefa da definição é delimitar o gênero e a
tenhamos das suas condições, isto é, das premissas; diferença específica essencial que distingue uma espécie
4. as premissas devem ser causa da conclusão, da outra. A demonstração (o silogismo) partirá do
isto é, devem estabelecer as coisas ou os fatos que gênero, oferecerá a definição da espécie e incluirá o
causam a conclusão e que a explicam, de tal maneira indivíduo na espécie e no gênero, de sorte que a
que, ao conhecê-las, estamos obedecendo às causas da essência ou o conceito do indivíduo nada mais é do que
conclusão. Esta regra é da maior importância porque, sua inclusão ou sua inerência à espécie e ao gênero. A
para Aristóteles, conhecer é conhecer as causas ou pelas demonstração parte da definição do gênero e dos
causas. O que são as premissas de um silogismo axiomas e postulados referentes a ele; deve provar que
científico? o gênero possui realmente os atributos ou predicados
São verdades indemonstráveis, evidentes e que a definição, os axiomas e postulados afirmam que
causais. Há três tipos de premissa: ele possui. O que é essa prova? É a prova de que as
1. axiomas, isto é, verdades indemonstráveis que espécies são os atributos ou predicados do gênero e são
servem de base para todas as demonstrações de uma elas o objeto da conclusão do silogismo.
ciência. Por exemplo, os três princípios lógicos, ou Com isso, percebe-se que uma ciência possui
afirmações como “O todo é maior do que as partes”; três objetos: os axiomas e postulados, que
2. postulados, isto é, os pressupostos de que se fundamentam a demonstração; a definição do gênero,
vale uma ciência para iniciar o estudo de seus objetos. cuja existência não precisa nem deve ser demonstrada;
Por exemplo, o espaço plano, na geometria; o e os atributos essenciais ou predicados essenciais do
movimento e o repouso, na física; gênero, que são suas espécies – às quais chega a
3. definições do objeto da ciência investigada ou conclusão.
do gênero de objetos que ela investiga. A definição deve Numa etapa seguinte, a espécie a que se chegou
dizer o que a coisa estudada (o sujeito da proposição) é, na conclusão de um silogismo torna-se gênero, do qual
como é, por que é, sob quais condições ela é. Para parte uma nova demonstração, e assim sucessivamente.
Aristóteles, as definições são as premissas mais Para que o silogismo científico cumpra sua
importantes de uma ciência. função, ele deve respeitar as regras gerais e suas
A definição refere-se ao termo médio, pois é ele premissas devem ser:
que pode preencher as quatro exigências (quê, como, 1. verdadeiras para todos os casos de seu
por quê, se) e é por seu intermédio que o silogismo sujeito;
alcança o conceito da coisa investigada. A definição 2. essenciais, isto é, a relação entre o sujeito e
oferece o conceito da coisa por meio das categorias o predicado deve ser sempre necessária. Isso ocorre
(substância, quantidade, qualidade, lugar, tempo, quando o predicado está contido na essência do sujeito
relação, posse, ação, paixão, posição) e da inclusão (por exemplo, o predicado “linha” está contido na
necessária do indivíduo na espécie e no gênero. essência do sujeito “triângulo”), quando o predicado é
O conceito nos oferece a essência da coisa uma propriedade essencial do sujeito (por exemplo, o
investigada (suas propriedades necessárias ou predicado “curva” tem de necessariamente referir-se ao
essenciais), e o termo médio é o atributo essencial para sujeito “linha”) ou quando existe uma relação causal
chegar à definição. Por isso, a definição consiste em entre o predicado e o sujeito (por exemplo, o predicado
encontrar para um sujeito (uma substância) seus “equidistantes do centro” é a causa do sujeito
atributos essenciais (seus predicados). “circunferência”, uma vez que esta é a figura geométrica
Um atributo é essencial quando faz uma coisa que tem todos os pontos equidistantes do centro). Em
ser o que ela é ou quando, por estar ausente, impede a resumo, as premissas devem estabelecer a inerência do
coisa de ser tal como é (“mortal” é um atributo essencial predicado à essência do sujeito;
de Sócrates). Um atributo é acidental quando sua 3. próprias, isto é, devem referir-se
presença ou sua ausência não afetam a essência da coisa exclusivamente ao sujeito daquela ciência e de nenhuma
(“gordo” é um atributo acidental de Sócrates). O outra. Por isso, não posso buscar premissas da
geometria (cujo sujeito são as figuras) na aritmética
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(cujo sujeito são os números), nem as da biologia (cujo C) o argumento é válido, pois a conclusão é uma
sujeito são os seres vivos) na astronomia (cujo sujeito consequência lógica das premissas.
são os astros). D) o argumento é inválido, pois a conclusão é falsa.
Em outras palavras, o termo médio do
silogismo científico se refere aos atributos essenciais 3. (UFU 2010) Conforme o Dicionário de Filosofia de
dos sujeitos de uma ciência determinada e de nenhuma Nicola Abbagnano, Platão emprega a palavra silogismo
outra; para definir o raciocínio em geral. Aristóteles, por sua
4. gerais, isto é, nunca devem referir-se aos vez, o define como o tipo perfeito de raciocínio
indivíduos, mas aos gêneros e às espécies, pois o dedutivo, “um discurso em que, postas algumas coisas,
indivíduo define-se por eles e não o contrário. outras se seguem necessariamente.” Considere que a
Bom, agora que Aristóteles definiu como premissa “Todo atleta treina”, sentença universal e
proceder com o pensamento para que possamos afirmativa, é a premissa maior de um silogismo, cuja
conhecer as coisas e chegar a verdade, é hora de conclusão é: “Logo, Maria treina”.
começar a teorizar. E o início se dará pelo que ele (ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. Trad. Alfredo
chamava de Filosofia Primeira, pelo estudo do Ser Bosi e Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003.)
(ontologia) que mais tarde fica conhecida como De acordo com tal definição, assinale a alternativa que
metafísica. indica, corretamente, a premissa menor:
A) Maria não é atleta.
B) Maria não treina.
QUESTÕES
C) Maria é atleta.
D) Maria é atleta, mas não treina.
1. (UNICENTRO 2011) A lógica formal aristotélica
pode ser definida como 4. (UFU 2014) Em relação ao silogismo categórico de
A) o estudo dos métodos e princípios usados para Aristóteles é INCORRETO afirmar que
distinguir o raciocínio correto do incorreto. A) o termo médio aparece na conclusão do silogismo e
B) o corpo de proposições que tem por finalidade nunca nas premissas.
garantir o estatuto do que é legítimo ou razoável. B) a primeira proposição é chamada premissa maior; a
C) o estudo da arte de convencer, que tem como segunda, premissa menor, e a terceira conclusão.
objetivo demonstrar que qualquer raciocínio é lógico. C) o termo médio é aquele que produz a ligação entre
D) a arte de convencer, pautada na mobilização de os termos das premissas, produz a conclusão e, assim,
emoções, como o medo, a hostilidade ou a reverência. ele se faz presente nas premissas maior e menor.
E) a estruturação simbólica do real, que tem por D) sendo as premissas verdadeiras, a conclusão também
objetivo demonstrar as origens religiosas e metafísicas será, necessariamente, verdadeira.
do homem.
5. (UEM 2008) Uma proposição pode ser descrita
2. (UFU 2009) Na escola, Joana se queixava a uma como um discurso declarativo que expressa
amiga sobre um namorado que a abandonara para ficar verbalmente a operação mental em que se afirma ou
com outra colega da turma. Tentando consolá-la, a nega a inerência ou a relação entre dois ou mais termos;
amiga lhe disse que ela deveria se acostumar com isso, um enunciado suscetível de verdade ou de falsidade.
ou então, nunca mais tentar namorar, pois, disse ela, “os Conforme essa descrição, assinale o que for uma
garotos são todos interesseiros”. Deixando a dor de proposição.
Joana de lado, poderíamos sistematizar o argumento da 01) O homem é um animal político.
amiga na forma de um silogismo tal como definido pelo 02) Vá embora!
filósofo Aristóteles, da seguinte maneira: 04) caneta, lápis, caderno...
08) Por que somente o homem está sujeito a se tornar
Todo garoto é interesseiro. (Premissa maior) imbecil?
Ora, o namorado de Joana é um garoto. (Premissa 16) As transformações naturais sempre levam a um
menor) aumento na entropia do Universo.
Logo, o namorado de Joana é interesseiro. (Conclusão).
6. (UEM 2008) Do ponto de vista da qualidade, as
A respeito desse argumento, e de acordo com as regras proposições dividem-se em afirmativas e negativas. De
da lógica aristotélica, é correto afirmar que acordo com a quantidade, as proposições podem ser
A) o argumento é inválido, pois a premissa maior é universais, quando o sujeito se refere a toda uma classe;
falsa. particulares, quando o sujeito se refere à parte de uma
B) o argumento é válido, pois a intenção da amiga era classe; singulares, quando o sujeito se refere a um
ajudar Joana. indivíduo.

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Dentre as proposições abaixo, identifique a(s) que 3. ONTOLOGIA
for(em) universal afirmativa, universal negativa,
particular afirmativa. Com Parmênides, vimos que o Ser verdadeiro,
01) Todos os homens são racionais. imutável, único e eterno, que constitui a realidade
02) Nenhum homem é alado. última do mundo, se opõe ao Não-Ser, ao aparente, ao
04) Alguns peixes vivem em rios. mutável, ao múltiplo e diverso na natureza. Segundo
08) O homem não é quadrúpede. Platão, deve-se buscar no mundo das ideias a realidade
16) Sócrates é filósofo. verdadeira e inteligível dos seres, e não se ater ao mundo
sensível, uma realidade inferior, composta de imagens
7. (UEM 2008) Considere o argumento a seguir: contraditórias e ilusórias – cópias das ideias verdadeiras.
Discordando de Parmênides e de Platão (seu
“Alguns homens são inteligentes; mestre), Aristóteles conduz a metafísica em uma
ora, alguns homens são professores; direção oposta.
logo, os professores são inteligentes.” Embora mantenha a indagação ontológica “O
que é?”, ele não acredita que o caminho do Ser passa ao
Sabendo que o argumento é inválido, identifique largo do mundo sensível. Para Aristóteles, é refletindo
qual(is), dentre as regras do silogismo abaixo, ele falha sobre a própria natureza em nossa volta que o Ser é
em observar. alcançado.
01) De duas premissas particulares nada resulta.
02) O termo médio nunca entra na conclusão. Diferença entre Aristóteles e seus predecessores
04) Nenhum termo pode ser total na conclusão sem ser
total nas premissas. Embora a ontologia tenha começado com
08) De duas premissas afirmativas não se conclui uma Parmênides e Platão, costuma-se atribuir seu
negativa. nascimento a Aristóteles quando este explicitamente
16) De duas premissas negativas nada pode ser formula a ideia de uma ciência ou disciplina que tem
concluído. como finalidade própria o estudo do Ser,
denominando-a Filosofia Primeira.
8. (UEM 2009) Na lógica clássica, três princípios Além disso, três outros motivos levam a atribuir
lógicos (as três leis do pensamento), a saber, os a Aristóteles o início da metafísica:
princípios de identidade, de não contradição e do 1. diferentemente de seus predecessores,
terceiro excluído, condicionam o valor de verdade de Aristóteles não julga o mundo das coisas sensíveis – ou
todo pensamento e de todo discurso. a natureza – um mundo aparente e ilusório. Pelo
Assinale o que for correto. contrário, é um mundo real e verdadeiro cuja essência
01) O princípio de identidade afirma que cada coisa é é, justamente, a multiplicidade de seres e a mudança
aquilo que é; uma proposição verdadeira é então incessante.
verdadeira. Em lugar de afastar a multiplicidade e o devir
02) O princípio de não contradição estabelece que não como ilusões ou sombras do verdadeiro Ser, Aristóteles
se pode afirmar e negar o mesmo predicado do mesmo afirma que o ser da natureza existe, é real, que seu modo
sujeito, ao mesmo tempo e na mesma relação. próprio de existir é a mudança e que esta não é uma
04) De acordo com o princípio de não contradição, é contradição impensável. É possível uma ciência
possível que proposições contraditórias possam ser teorética verdadeira sobre a natureza e a mudança: a
ambas verdadeiras, mas jamais falsas. física. Mas é preciso, primeiro, demonstrar que o objeto
08) O princípio do terceiro excluído afirma que uma da física é um ser real e verdadeiro, e isso é tarefa da
proposição é verdadeira ou é falsa, vale dizer, que é Filosofia Primeira ou “meta-física”.
verdadeira a disjunção p ou não-p. 2. diferentemente de seus predecessores,
16) De acordo com o princípio do terceiro excluído, há Aristóteles considera que a essência verdadeira das
casos em que uma proposição é parcialmente coisas naturais e dos seres humanos e de suas ações não
verdadeira ou incompletamente falsa. está no mundo inteligível, separado do mundo sensível.
As essências estão nas próprias coisas, nos próprios
homens, nas próprias ações, e é tarefa da filosofia
conhecê-las ali mesmo onde existem e acontecem.
Como conhecê-las?
Partindo da sensação até alcançar a intelecção.
A essência de um ser ou de uma ação é conhecida pelo
pensamento, que capta as propriedades internas e

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11
necessárias desse ser ou dessa ação, sem as quais ele ou diferencia os seres conforme estejam ou não em
ela não seriam o que são. movimento.
A metafísica não precisa abandonar este Existe a essência dos seres que são e estão em
mundo, mas, ao contrário, é o conhecimento da movimento, isto é, os seres físicos ou naturais (minerais,
essência do que existe em nosso mundo. vegetais, animais, humanos), cujo modo de ser se
3. ao se dedicar à Filosofia Primeira ou caracteriza por nascer, viver, mudar, reproduzir-se e
metafísica, a filosofia descobre que há diferentes tipos desaparecer. São seres em devir e que existem no devir.
de seres ou entes que se diferenciam justamente por Existe a essência dos seres matemáticos, que
suas essências. não existem em si mesmos, mas existem como formas
Em outras palavras, para Parmênides havia das coisas naturais, podendo, porém, ser separados
apenas o Ser único, uno e imutável; para Platão, havia delas pelo pensamento e ter suas essências conhecidas;
as coisas materiais ou sensíveis, sujeitas à mudança, e são seres que, por essência, são imóveis, isto é, não
que eram cópias imperfeitas ou sombras do ser nascem, não mudam, não se transformam nem
verdadeiro ou da realidade, as Ideias. Podemos perceber perecem, não estando em devir nem no devir.
que o critério de Parmênides e de Platão para distinguir Existem seres cuja essência é imutável ou
realidade verdadeira e aparência é a ausência ou a imóvel — não nascem, não se transformam e nem
presença de mudança. Aristóteles também usará a perecem —, mas que realizam um movimento local
mudança como critério de diferenciação dos seres, perfeito, eterno, sem começo e sem fim: os astros, que
porém o fará de maneira completamente nova. realizam o movimento circular.
E, finalmente, existe a essência de um ser
O movimento eterno, imutável, imperecível, sempre idêntico a si
mesmo, perfeito, imaterial, do qual o movimento está
“Mudança”, em grego, se diz “movimento”. A inteiramente excluído, conhecido apenas pelo intelecto,
palavra grega para movimento é kinésis (de onde vêm os que o conhece como separado de nosso mundo,
termos cinético, cinema, cinemática, em português). superior a tudo o que existe, e que é o ser por
Movimento não significa, porém, simplesmente excelência: o ser divino.
mudança de lugar ou locomoção. Significa toda e Para cada um desses tipos de ser e suas essências
qualquer mudança que um ser sofra ou realize. É existe uma ciência teorética própria (física, biologia,
movimento: psicologia, matemática, astronomia, teologia). Mas
 toda mudança qualitativa de um ser qualquer também deve haver uma ciência geral, mais ampla, mais
(por exemplo, uma semente que se torna universal, anterior a todas essas, cujo objeto não seja
árvore, um objeto branco que amarelece, um esse ou aquele tipo de Ser, essa ou aquela modalidade
animal que adoece, algo quente que esfria, algo de essência, mas o Ser em geral, a essência em geral.
frio que esquenta, o duro que amolece, o mole Trata-se de uma ciência que investiga o que é a essência
que endurece, etc.); e aquilo que faz com que haja essências particulares e
 toda mudança ou alteração quantitativa (por diferenciadas. Em outras palavras, deve haver uma
exemplo, um corpo que aumente ou diminua, ciência que estude o Ser enquanto Ser, sem considerar
que se divida em outros menores, que as diferenciações dos seres.
encompride ou encurte, alargue ou estreite, Essa ciência mais alta, mais ampla, mais
etc.); universal é a Filosofia Primeira, escreve Aristóteles no
 toda mudança de lugar ou locomoção (subir, primeiro livro da obra conhecida como Metafísica.
descer, cair, a trajetória de uma flecha, o
deslocamento de um barco, a queda de uma
pedra, o levitar de uma pluma, etc.); Na Metafísica, Aristóteles afirma que a Filosofia
 toda alteração em que um ser passe da ação à Primeira estuda os primeiros princípios e as causas
paixão ou passividade (por exemplo, ser primeiras de todas as coisas e investiga “o Ser enquanto
cortado, amado, desejado), ou da passividade à Ser”. A Filosofia Primeira estuda as essências sem
atividade (por exemplo, cortar, amar, desejar); diferenciá-las em essências físicas, astronômicas,
 toda geração ou nascimento e toda corrupção humanas, etc., pois cabe às diferentes ciências estudá-
ou morte dos seres; nascer, viver e morrer são las como diferentes entre si. À metafísica cabem três
movimentos. estudos:
Numa palavra: o devir, em todos os seus aspectos, 1. o estudo do ser divino, a realidade
é o movimento. Parmênides e Platão excluíram o primeira e suprema da qual todo o restante procura
movimento da essência do Ser. aproximar-se, imitando sua perfeição imutável. As
Que faz Aristóteles? Nega que movimento ou coisas se transformam incessantemente, diz Aristóteles,
mudança e Não-Ser ou irrealidade sejam o mesmo. E porque desejam encontrar sua essência total e perfeita,
imutável como a essência divina. Por isso, o ser divino
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é o Primeiro Motor Imóvel do mundo, isto é, aquilo si mesmo ou aquilo que o define em sua identidade e
que, sem agir diretamente sobre as coisas, ficando a diferença com relação a todos os outros;
distância delas, as atrai, é desejado por elas. Tal desejo 3. causa eficiente ou motriz, isto é, aquilo que
as faz mudar para, um dia, não mais mudar (esse desejo, explica como uma matéria recebeu uma forma para
diz Aristóteles, explica por que há o devir e por que o constituir uma essência (por exemplo, o ato sexual é a
devir é eterno, pois as coisas naturais nunca poderão causa eficiente que faz a matéria do óvulo, ao receber o
alcançar a perfeição imutável). esperma, adquirir a forma de um novo animal ou de
A mudança ou o devir são a maneira pela qual a uma criança; o carpinteiro é a causa eficiente que faz a
natureza, ao seu modo, se aperfeiçoa e busca imitar a madeira receber a forma da mesa; etc.);
perfeição do imutável divino. O ser divino chama-se 4. a causa final, isto é, a causa que dá o motivo, a
Primeiro Motor Imóvel porque é o princípio que move razão ou a finalidade para alguma coisa existir e ser tal
toda a realidade ao mesmo tempo que não se move e como ela é (por exemplo, o bem comum é a causa final
não é movido por nenhum outro ente. Como já vimos, da política; a flor é a causa final da transformação da
movimento significa ‘mudança’, ‘alterações qualitativas semente em árvore; o Primeiro Motor Imóvel é a causa
e quantitativas sofridas’; nascer é perecer, e o ser divino, final do movimento dos seres naturais, etc.);
perfeito, não foi gerado; por isso, nunca muda;  matéria: é o elemento de que as coisas da
2. o estudo dos primeiros princípios e natureza, os animais, os homens, os artefatos
causas primeiras de todos os seres ou essências são feitos; sua principal característica é possuir
existentes; virtualidades ou conter em si mesma
3. o estudo das propriedades ou atributos possibilidades de transformação, isto é, de
gerais de todos os seres, graças aos quais podemos mudança;
determinar a essência particular de um ser particular  forma: é o que individualiza e determina uma
existente. A essência ou ousía é a realidade primeira e matéria, fazendo existir as coisas ou os seres
última de um ser, aquilo sem o qual um ser não poderá particulares; sua principal característica é ser
existir ou deixará de ser o que é. À essência, entendida aquilo que uma essência é;
dessa perspectiva universal, Aristóteles dá o nome de  potência: é a virtualidade que está contida
substância, e a metafísica estuda a substância em geral. numa matéria e pode vir a existir, se for
atualizada por alguma causa; por exemplo, a
Principais conceitos criança é um adulto em potência ou em
potencial; a semente é a árvore em potência ou
De maneira muito breve e simplificada, os em potencial;
principais conceitos da metafísica aristotélica (e que se  ato: é a atualização de uma matéria por uma
tornarão as bases de toda a metafísica ocidental) podem forma e numa forma; o ato é a forma que
ser assim resumidos: atualizou uma potência contida na matéria. Por
 primeiros princípios: são os três princípios exemplo, a árvore é o ato da semente, o adulto
que estudamos na lógica, isto é, identidade, não é o ato da criança, a mesa é o ato da madeira,
contradição e terceiro excluído. Os princípios etc.
lógicos são ontológicos porque definem as Potência e matéria são idênticas, assim como forma
condições sem as quais um ser não pode existir e ato são idênticos. A matéria ou potência é uma
nem ser pensado; os primeiros princípios realidade passiva que precisa do ato e da forma, isto é,
garantem, simultaneamente, a realidade e a da atividade que cria os seres determinados. Graças aos
racionalidade das coisas; conceitos de potência e ato, a metafísica aristotélica
 causas primeiras: são aquelas que explicam o pode explicar a causa e a racionalidade de todos os
que a essência é e também a origem e o motivo movimentos naturais ou dos seres físicos, isto é, de
da sua existência. Causa (para os gregos) todos os seres dotados de matéria e forma. O devir não
significa não só o porquê de alguma coisa, mas é aparência nem ilusão, ele é o movimento pelo qual a
também o quê e o como uma coisa é o que ela potência se atualiza, a matéria recebe a forma e muda
é. As causas primeiras nos dizem o que é, como de forma.
é, por que é e para que é uma coisa. São quatro  essência: é a unidade interna e indissolúvel
as causas primeiras: entre uma matéria e uma forma. Essa unidade
1. causa material, isto é, aquilo de que um ser é lhe dá um conjunto de propriedades ou
feito, sua matéria (por exemplo, água, fogo, ar, terra); atributos que a fazem ser necessariamente
2. causa formal, isto é, aquilo que explica a forma aquilo que ela é. Assim, por exemplo, um ser
que um ser possui (por exemplo, o rio ou o mar são humano é por essência um animal mortal
formas da água; a mesa é a forma assumida pela matéria racional dotado de vontade, gerado por outros
madeira com a ação do carpinteiro). A forma é
propriamente a essência de um ser, aquilo que ele é em
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semelhantes a ele e capaz de gerar outros sua essência, pois toda realidade pode ser
semelhantes a ele, etc.; conhecida porque: possui qualidades (mortal,
 acidente: é uma propriedade ou atributo que imortal, finito, infinito, bom, mau, etc.);
uma essência pode ter ou deixar de ter sem quantidades (um, muitos, alguns, pouco, muito,
perder seu ser próprio. Por exemplo, um ser grande, pequeno); relaciona-se com outros
humano mortal por essência, mas é baixo ou (igual, diferente, semelhante, maior, menor,
alto, gordo ou magro, negro ou branco, por superior, inferior); está em algum lugar (aqui, ali,
acidente. A humanidade é a essência primordial perto, longe, embaixo, atrás, etc.); está no
(animal, mortal, racional, voluntário), enquanto tempo (antes, depois, agora, ontem, hoje,
o acidente é o que, existindo ou não, nunca afeta amanhã, de dia, de noite, sempre, nunca); realiza
o ser da essência (magro, gordo, alto, baixo, ações ou faz alguma coisa (anda, pensa, dorme,
negro, branco). A essência é o universal; o corta, cai, prende, cresce, floresce, etc.) e sofre
acidente, o particular; ações de outros seres (é cortado, é preso, é
 substância: é aquilo em que se encontram a puxado, é atraído, é curado, é envenenado, etc.).
matéria-potência, a forma-ato, onde estão os As categorias ou predicados podem ser essenciais
atributos essenciais e acidentais, sobre o qual ou acidentais, isto é, podem ser necessários e
agem as quatro causas; em suma, é o Ser indispensáveis à natureza própria de um ser ou podem
propriamente dito. ser algo que um ser possui por acaso ou que lhe
Aristóteles usa o conceito de substância em dois acontece por acaso, sem afetar sua natureza.
sentidos: num primeiro sentido, substância é o ser Tomemos um exemplo. Se eu disser “Sócrates é
individual; num segundo sentido, é o gênero ou a homem”, necessariamente terei de lhe dar os seguintes
espécie a que um ser individual pertence. No primeiro predicados: mortal, racional, finito, animal, pensa,
sentido, a substância é um ser individual existente; no sente, anda, reproduz, fala, adoece, é menor que uma
segundo, é o conjunto das características gerais que os montanha e maior que um gato, ama, odeia.
indivíduos de um gênero e de uma espécie possuem. Acidentalmente, ele poderá ter outros predicados: é
Aristóteles fala em substância primeira para referir- feio, é baixo, é diferente da maioria dos atenienses, é
se aos seres individuais realmente existentes, com sua casado, conversou com Laques, esteve no banquete de
essência e seus acidentes (por exemplo, Sócrates); e em Agáton, foi forçado a envenenar-se pelo tribunal de
substância segunda para referir-se aos sujeitos Atenas.
universais, isto é, gêneros e espécies que não existem Se nosso exemplo, porém, fosse uma substância
em si e por si mesmos, mas só existem encarnados nos genérica ou específica, todos os predicados teriam de
indivíduos, podendo, porém, ser conhecidos pelo ser essenciais, pois o acidente acontece somente para o
pensamento (por exemplo, ser humano). indivíduo existente, e o gênero e a espécie são universais
O gênero é um universal formado por um conjunto que só existem no pensamento e encarnados nas
de propriedades da matéria e da forma que caracterizam essências individuais.
o que há de comum nos seres de uma mesma espécie. Com esse conjunto de conceitos forma-se o quadro
A espécie também é um universal, formado por um da ontologia ou metafísica aristotélica como explicação
conjunto de propriedades da matéria e da forma que geral, universal e necessária do Ser, isto é, da realidade.
caracterizam o que há de comum nos indivíduos Esse quadro conceitual será herdado pelos filósofos
semelhantes. Assim, o gênero é formado por um posteriores, que problematizarão alguns de seus
conjunto de espécies semelhantes e as espécies, por um aspectos, estabelecerão novos conceitos, suprimirão
conjunto de indivíduos semelhantes. Os indivíduos ou alguns outros, desenvolvendo o que conhecemos como
substâncias primeiras são seres realmente existentes; os metafísica ocidental.
gêneros e as espécies ou substâncias segundas são A metafísica aristotélica inaugura, portanto, o
universalidades que o pensamento conhece por meio estudo da estrutura geral de todos os seres ou as
dos indivíduos. condições universais e necessárias que fazem com que
 predicados: são categorias lógicas e também exista um ser e que ele possa ser conhecido pelo
ontológicas, porque se referem à estrutura e ao pensamento. Afirma que a realidade no seu todo é
modo de ser da substância ou da essência inteligível ou conhecível e apresenta-se como
(quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, conhecimento teorético da realidade em todos os seus
posse, ação, paixão). Na lógica, a substância é a aspectos gerais ou universais, devendo preceder as
primeira categoria. Aristóteles explica que, investigações que cada ciência realiza sobre um tipo
enquanto todas as categorias são predicados determinado de ser.
atribuídos a um sujeito, a substância não é A metafísica investiga:
atribuída a ninguém porque ela é, justamente, o  aquilo sem o que não há seres nem
sujeito que recebe os predicados. Os predicados conhecimento dos seres: os três princípios
atribuídos a uma substância são constitutivos de lógico-ontológicos e as quatro causas;
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 aquilo que faz um ser ser necessariamente o que 3. (UFU 2013) [...] após ter distinguido em quantos
ele é: matéria, potência, forma e ato; sentidos se diz cada um [destes objetos], deve-se
 aquilo que faz um ser ser necessariamente como mostrar, em relação ao primeiro, como em cada
ele é: essência e predicados ou categorias; predicação [o objeto] se diz em relação àquele.
Aristóteles, Metafísica. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola,
 aquilo que faz um ser existir como algo 2002.
determinado: a substância individual De acordo com a ontologia aristotélica,
(substância primeira) e a substância como A) a metafísica é ―filosofia primeira‖ porque é ciência
gênero ou espécie (substância segunda). É isto do particular, do que não é nem princípio, nem causa
estudar “o Ser enquanto Ser”. de nada.
B) o primeiro entre os modos de ser, ontologicamente,
QUESTÕES é o ― por acidente‖, isto é, diz respeito ao que não é
essencial.
1. (UEM) Elaborando a teoria das quatro causas e a C) a substância é princípio e causa de todas as
distinção entre ato e potência, Aristóteles busca explicar categorias, ou seja, do ser enquanto ser.
a realidade do devir e da mudança a que estão D) a substância é princípio metafísico, tal como exposto
submetidas as coisas causadas. Assinale o que por Platão em sua doutrina.
for correto.
01) Para Aristóteles, a mudança implica uma passagem 4. (UFU 2011) Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C), apesar
de ter sido discípulo de Platão, criou sua própria
da potência ao ato; o ato é o estado de plena realização
filosofia. Uma das diferenças marcantes entre os dois é
de uma coisa; a potência, a capacidade que algo tem para a importância dada aos fenômenos naturais do
assumir uma determinação. chamado mundo sensível. No mundo sensível, a mudança
02) Segundo Aristóteles, tudo que acontece tem suas é constante, característica que Aristóteles procura
causas, essas são a explicação ou o porque de certa coisa explicar a partir das concepções de matéria, forma,
ser o que é. potência e ato.
04) Causa material, causa formal, causa eficiente e causa Com base nos seus conhecimentos e no texto acima,
assinale a alternativa que define corretamente a
final são os quatro sentidos que Aristóteles distinque no concepção aristotélica de ato e potência.
termo causa A) A potência e o ato são conceitos que não se referem,
08) Segundo Aristóteles, a causa material e a causa de fato, às coisas materiais sujeitas à transformação.
formal de uma coisa são, respectivamente, aquilo de que B) A potência é o momento presente, atual da matéria;
a coisa é feita e aquilo que ela essencialmente é. ato é o que ela poderá vir a fazer.
16) Segundo Aristóteles, a causa eficiente e a causa final C) A potência e o ato não se relacionam com a matéria.
D) A potência é o que a matéria virá a ser, seu devir, o
de uma coisa são, respectivamente, o agente que atua
princípio do movimento; ato é aquilo que ela é no
sobre essa coisa e o fim que ela se destina. presente.

2. (UFU) A filosofia de Aristóteles representou uma 5. (UFU 2011) “Segundo Aristóteles, tudo tende a
nova interpretação sobre o problema do ser. Nesse passar da potência ao ato; tudo se move de uma para
sentido, Aristóteles define a ciência como outra condição. Essa passagem se daria pela ação de
A) conhecimento verdadeiro, isto é, conhecimento que forças que se originam de diferentes motores, isto é,
coisas ou seres que promoveriam esta mudança. No
se fundamenta apenas na compreensão do mundo
entanto, se todo o Universo sofre transformações, o
inteligível porque as idéias, enquanto entidades estagirita afirmava que deveria haver um primeiro
metafísicas, não mudam. motor [...]”.
B) conhecimento verdadeiro, isto é, conhecimento CHALITA, Gabriel. Vivendo a filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2006, p. 58.
Com base em seus conhecimentos e no texto acima,
pelas causas, capaz de compreender a natureza do devir
assinale a alternativa que contenha duas características
e superar os enganos da opinião. do primeiro motor.
C) conhecimento relativo porque o ser é mobilidade, A) O primeiro motor é imóvel, caso contrário, alguma
eterno fluxo e a verdade não pode, portanto, ser causa deveria movê-lo e ele não seria mais o primeiro
absoluta. motor; é imutável, porque é ato puro.
D) conhecimento relativo porque a ciência, enquanto B) O primeiro motor é imóvel, mas não imutável, pois
produção do homem é determinada pelo pode ocorrer de se transformar algum dia, como tudo
no Universo.
desenvolvimento histórico.

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C) O primeiro motor é imutável, mas não imóvel, pois para o ato, é preciso examinar os tipos de causa que
do seu movimento ele gera os demais movimentos do ocasionam o devir.
Universo. Para explicar esse processo, lembremos o
D) O primeiro motor não é imóvel, nem imutável, pois exemplo do artesão esculpindo uma estátua, atividade
isto seria um absurdo teórico. Para Aristóteles, o em que podemos distinguir quatro causas: a causa
primeiro motor é móvel e mutável, como tudo. material é o mármore; a causa eficiente é o escultor; a
causa formal é a forma que a estátua adquire; e a causa
6. (UEM 2008) Elaborando a teoria das quatro causas final é o motivo ou a razão pela qual a matéria passa a
e a distinção entre ato e potência, Aristóteles busca ter determinada forma, ou, dito de outra maneira, é a
explicar a realidade do devir e da mudança a que estão finalidade para a qual a estátua foi feita.
submetidas as coisas causadas. Assinale o que for Ou seja: a causa material é aquilo de que uma
correto. coisa é feita; a eficiente é aquilo com que a coisa é feita;
01) Para Aristóteles, a mudança implica uma passagem a formal é aquilo que a coisa vai ser; a final é aquilo para
da potência ao ato; o ato é o estado de plena realização o qual a coisa é feita.
de uma coisa; a potência, a capacidade que algo tem para Convém lembrar que nem sempre é fácil
assumir uma determinação. distinguir (mesmo para Aristóteles) as diferenças entre
02) Segundo Aristóteles, tudo o que acontece tem suas a causa formal e a final.
causas, essas são a explicação ou o porquê de certa coisa
ser o que é. A física aristotélica
04) Causa material, causa formal, causa eficiente e causa
final são os quatros sentidos que Aristóteles distingue A física geral é a ciência que trata do ser em
no termo causa. movimento. Já explicitamos os pressupostos
08) Segundo Aristóteles, a causa material e a causa metafísicos da teoria do devir e das quatro causas,
formal de uma coisa são, respectivamente, aquilo de que elaborados com a finalidade de superar as ilusões dos
essa coisa é feita e aquilo que ela essencialmente é. sentidos.
16) Segundo Aristóteles, a causa eficiente e a causa final Para Aristóteles, os corpos são classificados a
de uma coisa são, respectivamente, o agente que atua partir da teoria dos quatro elementos, elaborada pelo
sobre essa coisa e o fim a que ela se destina. pré-socrático Empédocles, segundo a qual os elementos
constitutivos de todos os seres são: terra, água, ar e
fogo. Essa teoria foi aceita até o século XVIII, quando
4. A FÍSICA Lavoisier demonstrou que não se tratava de elementos,
mas de substâncias compostas.
Recusando o idealismo do mundo das ideias, No universo aristotélico, todos os corpos estão
admite que só o homem concreto existe. Quanto ao dispostos de modo bem determinado, possuindo um
movimento, parte da constatação da sua existência, lugar natural conforme sua essência. Segundo a teoria
explicando-lhe a origem e a natureza. Vejamos que tipo da queda dos corpos, o peso e a leveza são qualidades
de ciência surge daí. dos corpos e determinam formas diferentes do
movimento. Então, a terra e a água, por serem corpos
Pressupostos metafísicos pesados, têm o lugar natural embaixo; o ar e o fogo,
sendo leves, têm o lugar natural em cima.
Por trás das afirmações da ciência aristotélica há Consequentemente, o movimento natural é
uma série de noções metafísicas, quanto à natureza dos aquele em que as coisas retornam ao seu lugar natural,
corpos e do movimento. na ordem estática do cosmos. Uma vez no seu lugar
O movimento é, pois, a passagem da potência natural, o ser estará realizado e permanecerá em
para o ato. O movimento é "o ato de um ser em repouso.
potência enquanto tal", é a potência se atualizando. Para os gregos, portanto, não há necessidade de
Aristóteles não se refere apenas ao conceito de explicar o repouso, pois a própria natureza do corpo o
movimento local. Movimento também pode ser explica. O que precisa ser compreendido é o
compreendido como movimento qualitativo, pelo qual movimento: a ordem natural pode ser alterada por um
o corpo tem uma qualidade alterada, por exemplo, movimento violento causado pela aplicação de uma
quando o analfabeto aprende a ler. Ou, ainda, como força exterior.
movimento quantitativo da planta que cresce, pois há Enquanto o movimento natural é o da pedra
alteração de tamanho. que cai, do fogo que sobe, o movimento violento é o da
Há também a mudança substancial, pela qual pedra lançada para cima, da flecha arremessada pelo
um ser começa a existir (geração) ou deixa de existir arco. Esse movimento necessita, durante toda sua
(destruição das essências). Ainda mais: se Aristóteles duração, de um motor unido ao móvel, de modo que,
considera que o movimento é a passagem da potência suprimido o motor, cessará o movimento. Isso é fácil
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de explicar no caso do cavalo que puxa carroça, mas o Todos os modelos propostos pelos gregos eram
exemplo do arremesso de projétil requer de Aristóteles geocêntricos, e a única exceção é a de Aristarco de
alguns artifícios: ao lançar a pedra, a mão comunica o Samos (310 -230 a.C.), que propôs um revolucionário
seu próprio poder ao ar próximo a ela, provocando um modelo heliocêntrico (hélios: “Sol”), nunca aceito e até
turbilhão que mantém a pedra em movimento; esse considerado subversivo.
poder comunica-se por contiguidade e, porque a
intensidade diminui a cada transmissão, o movimento A hierarquização do cosmos
acaba cessando, pelo movimento natural o corpo
retorna ao lugar natural. Outra característica importante na cosmologia
Mais adiante veremos como a física qualitativa aristotélica se encontra na hierarquização pela qual a
de Aristóteles, baseada na análise da essência dos natureza do Céu é considerada superior à natureza da
corpos pesados e leves, será alterada pelas inovações Terra.
introduzidas por Galileu, no século XVII. O universo está dividido em: mundo
supralunar, constituído pelos Céus, que incluem, na
A astronomia aristotélica ordem: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter,
Saturno e, finalmente, a esfera das estrelas fixas.
A preocupação com o movimento dos astros é São corpos constituídos por uma substância
muito antiga. Povos como os babilônios já tinham desconhecida por nós, o éter (não confundir com a
conhecimento de astronomia há dois ou três mil anos substância química), que é cristalino, inalterável,
antes de Cristo, e com frequência esses conhecimentos imperecível, transparente e imponderável. O éter é
misturavam-se a analogias com o destino dos homens, também conhecido como quinta-essência, em
comandado pela junção dos astros. contraposição aos quatro elementos.
São os gregos que, pela primeira vez, tentam Por esse motivo os corpos celestes são
explicar racionalmente o movimento dos astros, incorruptíveis, perfeitos, não-sujeitos a transformações.
procurando entender a natureza do cosmos (palavra O movimento das esferas é circular, considerado o
que, em grego, significa "ordem", "beleza", e se opõe a movimento perfeito.
caos, "desordem"). O mundo sublunar, correspondente à região
Persiste, no entanto, certa mística nessas da Terra, que, embora imóvel ela mesma, é o local dos
explicações, decorrente do privilégio dado a algumas corpos em constante mudança, portanto perecíveis,
formas e noções tais como perfeição, eternidade, corruptíveis, sujeitos a movimentos imperfeitos: aí não
repouso e o círculo como forma perfeita. Daí o mais acontece o movimento circular das esferas, mas o
movimento uniforme ser considerado o movimento movimento retilíneo para baixo e para cima. Os
perfeito, sempre idêntico a si mesmo, e por isso mesmo elementos constitutivos são os já referidos quatro
imutável e eterno. O movimento circular não tem início elementos (terra, água, ar e fogo).
nem fim; volta sobre si mesmo e continua sempre; é As ideias de Aristóteles referentes ao universo
movimento sem mudança. serão retomadas pelo matemático e geômetra Cláudio
Acrescente-se a isso a concepção do universo Ptolomeu, no século II da era cristã, na obra conhecida
finito, limitado pela esfera do Céu, fora do qual não há como Almagesto, cuja influência se exerce durante a
lugar, nem vácuo, nem tempo... Idade Média até ser contestada por Copérnico e Galileu.

O geocentrismo Considerações sobre a física de Aristóteles

O modelo astronômico de Aristóteles baseia-se Essa hierarquia do cosmos proposta por


na cosmologia de Eudoxo (400 -347) um dos discípulos Aristóteles, em que o mundo é dividido em supralunar
de Platão. Esse modelo é geocêntrico (pois tem a Terra e sublunar, estabelece a distinção de natureza entre a
no centro) e é conhecido como "modelo das esferas astronomia e a física aristotélicas. Apenas no
homocêntricas", em que os sete as intermediárias Renascimento essa dicotomia será desfeita, quando
possam fornecer ligações mecânicas necessárias para a Galileu e depois Kepler e Newton "igualam Céu e
reprodução do movimento. Mas de onde vem o Terra", isto é, explicam a física e a astronomia pelas
movimento inicial? mesmas leis.
Só pode ser de Deus, o Primeiro Motor Imóvel, A partir da cosmologia, percebemos que os
que determina o movimento da última esfera, a esfera gregos associam a perfeição ao equilíbrio, ao repouso, e
das estrelas fixas, transmitido por atrito às esferas que a descrição do cosmos é a de um mundo estático.
contíguas. Esse movimento vai até a Lua, última esfera Mesmo no mundo das mutações, a ciência
interna. No centro acha-se a Terra, também esférica, aspira ao ideal de imobilidade, procurando, por trás das
mas imóvel. aparências mutáveis das coisas, as essências imutáveis:
pois é em função da substância, da essência, que em
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determinadas condições tal corpo se comporta de tal ánthropos (homem) que não fosse o mesmo do zoôn
maneira. Por isso a física aristotélica é qualitativa, politikon (animal político). Ser homem para ele era ser
porque construída sobre os princípios que definem as político/cidadão.
coisas, a partir dos quais são deduzidas as Tanto é que a palavra ética vem de ethos que de
consequências. Trata-se da valorização do método forma abrangente quer dizer modo de ser, e a palavra
dedutivo, cujo modelo de rigor se encontra na política vem de polis + ética, ou seja, o modo de ser da
matemática. Apesar disso, os gregos não pólis. Não existe comportamento racional/inteligível
matematizaram a física, obra que coube a Galileu. que não seja dentro da pólis.
Da mesma forma, Aristóteles não recorre a Segundo ele, um homem que não vivesse em
experiência, embora utilize a observação. Aliás, justiça comunidade, ou era um deus, ou uma fera. E se vivesse
seja feita à sua inestimável contribuição aos estudos de em comunidade que não fosse uma pólis, seria inferior.
biologia. Sendo filho de médico, herdou o gosto pelo Por isso que um estrangeiro era inferior a um grego e
assunto e chegou a classificar cerca de 540 espécies de era legítimo que ele fosse escravizado.
animais, estabelecendo relações entre eles, além de ter Daí Aristóteles condenava a escravidão entre os
feito dissecações para estudar suas estruturas gregos livres, por ser contrário à natureza das coisas.
anatômicas. Afirma que algumas pessoas merecem ser escravizadas.
O fato de não recorrer à experiência pode ser Os escravos "naturais" são o tipo de pessoas que têm a
entendido pela resistência dos gregos em utilizarem as capacidade de aceitar ordens, mas não têm inteligência
técnicas manuais em campos que consideravam suficiente para pensar por si mesmas. São pessoas
restritos ao saber contemplativo. Por isso, diante da mecânicas. Não são muito melhores que os animais.
queda dos corpos, Aristóteles pergunta "por quê"?" e Aí você pode pensar, mas não é todo mundo
não "como"?". Se fizesse essa última pergunta, gente do mesmo jeito? Nananinanan, não. Vamos botar
procederia à descrição do fenômeno, processo este que os pingos nos ís. Aristóteles tinha em mente que todos
só foi iniciado pelos modernos. Mas, perguntando “por nós, gregos ou não, somos zoôn (animais), mas apenas
quê?” envereda pela procura das causas, desembocando os que vivem numa comunidade política, numa pólis,
inevitavelmente na discussão metafísica da essência dos são zoôn polítikon, são ánthropos (ανθρώπου).
corpos. Por isso, a ciência aristotélica é filosófica, Ora, nós já vimos que o pensamento racional
centrada na argumentação baseada nos princípios. surgiu com a pólis. A racionalidade, que é uma
Além disso, esse procedimento valoriza a descoberta grega, que era, portanto, grega, é uma
perspectiva finalista que torna a ciência grega racionalidade política, no sentido de comunitária, e o
tipicamente teleológica (telos: “fim”). Segundo que faz o ánthropos (homem) ser superior aos outros
Aristóteles, todo corpo tende a realizar a perfeição que animais é justamente isso, ser racional. Mas ele só
tem em potência, a atingir a forma que lhe é própria e o pode ser racional se fizer parte dessa comunidade
fim a que se destina. "A natureza é o que tende para um política que é a pólis, pois somente nela, ele pode
fim, em movimento contínuo, em virtude de um desenvolver a sua natureza racional. E se é assim, a pólis
princípio imanente." Como vimos, o corpo pesado também é algo natural ao homem.
tende para baixo, que é seu lugar natural; a semente As leis que regem a pólis são criações da palavra
tende a se transformarem árvore: as raízes adentram no (logos/razão), que não é mais ditada pelos deuses a um
solo para nutrir a planta etc. A concepção teleológica sacerdote que a transmite aos homens. Ela é
será criticada na ciência moderna, no século XVII. genuinamente humana, fruto do debate, da dialética,
Outro aspecto importante da metafísica expressão do logos (razão) que organiza a pólis e reina
aristotélica é que, ao explicar o movimento como sobre os homens, não todos os homens, mas sobre os
passagem da potência para o ato, Aristóteles faz a física gregos.
desembocar numa teologia: de causa em causa, é É essa palavra (logos) que é o conhecimento do
preciso parar numa primeira causa (incausada), num que é útil, do bem e do mal, do justo e do injusto; e
primeiro motor (imóvel), evidentemente de natureza viver de acordo com a justiça é viver a boa vida,
divina, e que daria movimento a todas as coisas. permitida apenas na pólis. É isso que faz de um grego,
Aristóteles chama esse Deus de Ato Puro (pois não tem um zoôn (animal) politikon (superior), e somente este é
potência alguma) e de Primeiro Motor Imóvel. ánthropos (ανθρώπου).
Repito, tudo isso de que estamos falando foi
5. A SUPERIORIDADE DOS GREGOS construído por eles, por isso, não é obra do homem em
geral, mas dos gregos em particular. Aristóteles está
Para compreendermos bem o pensamento falando para os gregos, ele está ensinando a eles, e não
aristotélico sobre a ética e a política é importantíssimo a todos os homens do planeta. E por que não?
sabermos que ele não entendia as duas separadamente. Por que ele acreditava que só os gregos eram
Isso porque ele, assim como os gregos instruídos, não capazes de entender o que ele estava dizendo, e é aqui
entendia um modo de ser, um comportamento do
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que reside o preconceito que não é só de Aristóteles, regem determinam que devam acontecer. Não
mas dos gregos em geral. deliberamos sobre as estações do ano, o movimento
dos astros, a forma dos minerais ou dos vegetais. Não
6. A ÉTICA deliberamos nem decidimos sobre aquilo que é regido
pela natureza, isto é, pela necessidade.
Como viver essa boa vida, que só era possível Mas deliberamos e decidimos sobre tudo aquilo
participando da pólis? Aristóteles deixou essa resposta que, para ser e acontecer, depende de nossa vontade e
em sua obra Ética a Nicômaco. Como já vimos, ele de nossa ação. Não deliberamos e não decidimos sobre
concebia que tudo tem um fim, e não seria diferente o necessário, pois o necessário é o que é e será sempre
com as ações humanas, que devem ser realizadas tal como é, independentemente de nós. Deliberamos e
objetivando atingir o bem supremo que é a decidimos sobre o possível, sobre aquilo que pode ser
eudaimonia , comumente traduzida por felicidade. ou deixar de ser, porque para ser e acontecer depende
Não devemos entender essa felicidade como de nós, de nossa vontade e de nossa ação.
uma emoção que temos quando algo bom nos acontece. Com isso, Aristóteles acrescenta à consciência
Ela está mais para um estado de plenitude, uma forma moral, trazida por Sócrates, a vontade guiada pela
de viver plena, voltada para o bem, para o saber, para a razão como o outro elemento fundamental da vida
justiça, no aperfeiçoamento constante do caráter. ética.
Precisamos ter em mente que a ética e a política Devemos a Aristóteles uma distinção central em
são saberes práticos. E o saber prático pode ser de dois todas as formulações ocidentais da ética: a diferença
tipos: práxis ou técnica. entre o que é por natureza (ou conforme à physis) e o
Na práxis, o agente, a ação e a finalidade do agir que é por vontade (ou conforme à liberdade). O
são inseparáveis, pois o agente, o que ele faz e a necessário é por natureza; o possível, por vontade.
finalidade de sua ação são o mesmo. Assim, por A importância dada por Aristóteles à vontade
exemplo, dizer a verdade é uma virtude do agente, racional, à deliberação e à escolha o levou a considerar
inseparável de sua fala verdadeira e de sua finalidade, uma virtude como condição de todas as outras e
que é proferir uma verdade; não podemos distinguir o presente em todas elas: a prudência ou sabedoria
falante, a fala e o conteúdo falado. prática.
Para Aristóteles, na práxis ética somos aquilo Ela é a sabedoria, o saber prático necessário, a
que fazemos e o que fazemos é a finalidade boa ou chave da felicidade, para viver moderadamente. É a
virtuosa. Ao contrário, na técnica o agente, a ação e a prudência que nos permite viver sem exageros e nem
finalidade da ação são diferentes e estão separados, deficiências, ou seja, no meio termo. É essa virtude que
sendo independentes uns dos outros. nos permite saber como agir moderadamente em cada
Um carpinteiro, por exemplo, ao fazer uma situação particular.
mesa, realiza uma ação técnica, mas ele próprio não é Prudente é aquele que, em todas as situações,
essa ação nem é a mesa produzida por ele. A técnica julga e avalia qual atitude e qual ação melhor realizarão
tem como finalidade a fabricação de alguma coisa a finalidade ética, ou seja, garantirão que o agente seja
diferente do agente (a mesa não é o carpinteiro, virtuoso e realize o que é bom para si e para os outros.
enquanto uma fala verdadeira é o ser do próprio falante Na Ética a Nicômaco, encontramos a síntese das
que a diz) e da ação fabricadora (a ação técnica de virtudes que constituíam a excelência e a moralidade da
fabricar a mesa implica o trabalho sobre a madeira com Grécia clássica. Nessa obra distinguem-se vícios e
instrumentos apropriados, mas isso nada tem a ver com virtudes pelo critério do excesso, da falta e da
a finalidade da mesa, uma vez que o fim é determinado moderação: um vício é um sentimento ou uma conduta
pelo uso e pelo usuário). Assim, a ética e a técnica são excessivos (temeridade, libertinagem, irascibilidade,
distinguidas como práticas que diferem pela relação do etc.), ou, ao contrário, deficientes (covardia,
agente com a ação e com a finalidade da ação. insensibilidade, indiferença, etc.); uma virtude é um
sentimento ou uma conduta moderados (coragem,
Prudência ou sabedoria prática temperança, gentileza, etc.).
As virtudes são as qualidades do caráter que
Também devemos a Aristóteles a definição do nos permitem conseguir os bens necessários
campo das ações éticas. Estas não só são definidas pela (materiais e imateriais) para viver plenamente, ou
virtude, pelo bem e pela obrigação, mas também seja, ter uma vida feliz.
pertencem àquela esfera da realidade na qual cabem a
deliberação e a decisão ou escolha.
Em outras palavras, quando o curso da
realidade segue leis necessárias e universais, não há
como nem por que deliberar e escolher, pois as coisas
acontecerão necessariamente tais como as leis que as
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QUESTÕES c) A reflexão ética preocupa-se com os interesses do
sujeito, independentemente das relações com os
1. A virtude é, pois, uma disposição de caráter demais.
relacionada com a escolha e consiste numa mediania, d) O ser humano que age no mundo permanece
isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada acrítico, posto que os acontecimentos que o atingem
são pura facticidade histórica.
por um princípio racional próprio do homem dotado
e) O valor do saber prático consiste em estabelecer os
de sabedoria prática. princípios da vida ética desvinculados da práxis, tendo
(Aristóteles. Ética a Nicômaco. Trad. de Leonel Vallandro e Gerd
como referencial o saber teorético.
Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Livro II, p. 273.)
Com base no texto e nos conhecimentos sobre a situada 4. “[...] uma pessoa age injustamente ou justamente
ética em Aristóteles, pode-se dizer que a virtude ética sempre que pratica tais atos voluntariamente; quando
A) reside no meio termo, que consiste numa escolha os pratica involuntariamente, ela não age injustamente
situada entre o excesso e a falta. nem justamente, a não ser de maneira acidental. O que
B) implica na escolha do que é conveniente no excesso determina se um ato é ou não é um ato de injustiça (ou
e do que é prazeroso na falta. de justiça) é sua voluntariedade ou involuntariedade;
C) consiste na eleição de um dos extremos como o mais quando ele é voluntário, o agente é censurado, e
adequado, isto é, ou o excesso ou a falta. somente neste caso se trata de um ato de injustiça, de
D) pauta-se na escolha do que é mais satisfatório em tal forma que haverá atos que são injustos mas não
razão de preferências pragmáticas. chegam a ser atos de injustiça se a voluntariedade
E) baseia-se no que é mais prazeroso em sintonia com também não estiver presente.”
o fato de que a natureza é que nos torna mais perfeitos. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural,
1996. p. 207.
2. (UFU 2011) Em sua obra Ética a Nicômaco, Com base no texto e nos conhecimentos sobre a
Aristóteles propôs a ideia de que a virtude é a disposição concepção de Justiça em Aristóteles, é correto afirmar:
para buscar o meio termo ou a justa medida entre o a) Um ato de justiça depende da consciência do agente
excesso e a falta em determinada conduta. e de ter sido praticado voluntariamente.
Com base nessa afirmação e em seus conhecimentos b) A noção de justo desconsidera a discriminação de
sobre a obra de Aristóteles, assinale a alternativa atos voluntários e involuntários quanto ao
correta. reconhecimento de mérito.
A) Coragem é o justo meio entre covardia e c) A justiça é uma noção de virtude inata ao ser humano,
temeridade. a qual independe da voluntariedade do agente.
B) Covardia é o justo meio entre temeridade e d) O ato voluntário desobriga o agente de
coragem. imputabilidade, devido à carência de critérios para
C) Temeridade é o justo meio entre coragem e distinguir a justiça da injustiça.
covardia. e) Quando um homem delibera prejudicar outro, a
D) Coragem, covardia e temeridade não são termos injustiça está circunscrita ao ato e, portanto, exclui o
que se relacionam à ética. agente.

3. (UNICENTRO 2014) Livre, para Aristóteles, é o 5. (UEL 2006) “Aristóteles foi o primeiro filósofo a
que vive para si e não para outro, mas a liberdade não elaborar tratados sistemáticos de Ética. O mais
tem sua existência na vida do indivíduo isolado, mas na
influente desses tratados, a Ética a Nicômaco, continua a
vida inserida nas instituições éticas da pólis.
(OLIVEIRA, M. A. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, ser reconhecido como uma das obras-primas da
1993. p.61.) filosofia moral. Ali nosso autor apresenta a questão que,
Com base no texto e nos conhecimentos sobre de seu ponto de vista, constitui a chave de toda
Aristóteles, assinale a alternativa correta.
investigação ética: Qual é o fim último de todas as
a) A ética é entendida como ciência neutra, uma vez que
aquele que reflete filosoficamente com objetivos ético- atividades humanas?”
práticos comporta-se como um observador. CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio. Ética. Trad. Silvana
Cobucci Leite. São Paulo: Loyola, 2005. p. 57.
b) A filosofia prática pretende refletir sobre a ação
humana em que o indivíduo é entendido enquanto Com base no texto e nos conhecimentos sobre a ética
pertencente a uma comunidade de cidadãos. aristotélica, é correto afirmar:

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a) É uma ética que desconsidera os valores culturais e a num meio-termo (meio-termo relativo a nos)
participação discursiva dos envolvidos na escolha da determinado pela razão (a razão graças a qual um
concepção de bem a ser perseguida. homem de discernimento o determinaria)”.
Assinale a alternativa que NAO faz parte da definição
b) É uma ética do dever que, ao impor normas de ação
aristotélica de excelência (virtude).
universais, transcende a concepção de vida boa de uma A) A excelência moral consiste numa mediania entre
comunidade e exige o cumprimento categórico das dois extremos.
mesmas. B) A excelência moral tem como princípio o exercício
c) É uma ética compreendida teleologicamente, pois o ativo da razão que determina, na escolha, o meio-termo
bem supremo, vinculado à busca e à realização plena da entre dois extremos.
felicidade, orienta as ações humanas. C) A excelência moral é uma disposição que tem como
alvo a escolha de um meio-termo relativo a nós.
d) É uma ética que orienta as ações por meio da bem-
D) A excelência moral se realiza do modo inconsciente,
aventurança proveniente da vontade de Deus, porém por depender exclusivamente das paixões e apetites
sinalizando para a irrealização plena do bem supremo humanos.
nesta vida. E) O ser humano dotado de discernimento é o mais
e) É uma ética que compreende o indivíduo virtuoso capacitado para determinar o meio-termo entre dois
como aquele que já nasce com certas qualidades físicas extremos.
e morais, em função de seus laços sanguíneos.

6. (UEM 2014) “A virtude é, pois, uma disposição de 7. A POLÍTICA


caráter relacionada com a escolha e consistente numa
Assim como o próprio Platão percebeu mais
mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é tarde que seu projeto de funcionamento de uma pólis
determinada por um princípio racional próprio do ideal governada por reis filósofos não era viável,
homem dotado de sabedoria prática. E é um meio- Aristóteles também sabia que esse projeto nunca daria
termo entre dois vícios, um por excesso e outro por certo.
falta; pois que, enquanto os vícios ou vão muito longe Tendo isso em mente, ele elaborou um projeto
político que fosse viável, e desenvolveu uma política
ou ficam aquém do que é conveniente no tocante às
para o homem comum. Mas não entenda esse homem
ações e paixões, a virtude encontra e escolhe o meio- como qualquer um. É o homem bem instruído, e de
termo.” determinadas posses, que o permitisse ter ócio
(ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, Livro II, cap. 6. Coleção Os suficiente para se voltar aos estudos e à política.
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 73). Nessa linha de raciocínio, a polis que esse
A partir do trecho citado, assinale o que for correto. homem habitaria seria a melhor possível. Ela teria sua
01) A virtude é uma disposição decorrente de um constituição como sendo um reflexo desse tipo de
raciocínio que busca um agir equilibrado ou moderado. homem, sendo, portanto, uma construção natural já que
02) Os vícios são disposições que fogem à moderação, é da essência do homem viver em comunidade, ou seja,
seja porque não atingem esse equilíbrio, seja porque o ser um animal político. Ele até nos compara com as
abelhas que são gregárias por natureza.
ultrapassam.
04) O meio-termo da ação virtuosa não é uma regra “A pólis é uma criação natural, e o
única e absoluta, mas deve ser considerada em relação homem é, por natureza, um animal
ao indivíduo que age, por isso é uma mediania e não social, e um homem que por natureza,
uma média. e não por mero acidente, não fizesse
08) A coragem é uma ação virtuosa que está a meio- parte de pólis alguma, seria
desprezível ou estaria acima da
termo entre os vícios da covardia e do destemor.
humanidade, e se poderia compará-lo
16) O meio-termo da ação virtuosa implica a concessão a uma peça isolada do jogo de gamão.
de algo e impede que o agente defenda, com Agora é evidente que o homem, muito
contundência, seu ponto de vista. mais que a abelha ou outro animal gregário, é um animal social.”
Aristóteles. Política, 1253 a-b. Mario da Gama Kury (Trad.).
7. (UNIOESTE 2009) Na concepção ética de Brasília: Ed. UnB, 1997 (com adaptações).
Aristóteles, encontra-se o conceito de excelência E como seria essa polis? Para dar essa resposta,
(virtude), assim definida pelo filosofo: “A excelência Aristóteles analisou 158 constituições diferentes, e
moral e uma disposição da alma relacionada com a definiu os tipos possíveis de governo conforme o
escolha de ações e emoções, disposição esta consistente quadro a seguir:
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Isso implica afirmar que numa pólis em que a
BOM RUIM diferença entre ricos e pobres é muito grande a injustiça
vigora, pois não se dá a todos o que lhes é devido como
UM MONARQUIA TIRANIA seres humanos.
Na pólis injusta, as leis, em lugar de permitirem
POUCOS ARISTOCRACIA OLIGARQUIA aos pobres o acesso às riquezas (por meio de limitações
impostas à extensão da propriedade, de fixação da boa
MUITOS REPÚBLICA DEMOCRACIA remuneração aos trabalhadores pobres, de impostos e
tributos que recaiam sobre os ricos apenas, etc.),
vedam-lhes tal direito.
A corrupção de um regime a outro, acontece Ora, somente os que não são forçados às
quando quem governa se desvia do objetivo de atingir labutas ininterruptas para a sobrevivência são capazes
o bem comum, e passa a governar de acordo com seus de uma vida plenamente humana e feliz. A pólis injusta,
interesses. Quanto à melhor forma de governo, portanto, impede que uma parte dos cidadãos tenha
Aristóteles diz que vai depender do tipo de povo. assegurado o direito à vida boa.
Segundo ele, existe uma disposição natural em cada Quanto à justiça do participável, trata-se do
povo que o torna propício a determinada forma de direito de todos os cidadãos de participar do poder. Ao
governo. Particularmente, ele prefere a monarquia, e apresentar os diferentes regimes políticos conforme o
argumenta que dentre as formas corrompidas de número dos que participam do poder — na monarquia,
governo, a democracia é a melhor. um só; na aristocracia, alguns, considerados os
melhores; na democracia, todos.
A justiça Enquanto Platão se preocupa com a educação e
formação do dirigente político (o governante filósofo),
Para determinar o que é a justiça, diz ele, Aristóteles se interessa pela qualidade das instituições
precisamos distinguir dois tipos de bens: os partilháveis políticas (assembleias, tribunais, forma da coleta de
e os participáveis. impostos e tributos, distribuição da riqueza,
Um bem é partilhável quando é uma quantidade organização do exército, etc.).
que pode ser dividida e distribuída — a riqueza é um Com isso, ambos legam para as teorias políticas
bem partilhável. Um bem é participável quando é uma subsequentes duas maneiras de conceber a qualidade
qualidade indivisível, que não pode ser repartida nem justa da cidade: platonicamente, essa qualidade depende
distribuída, podendo apenas ser participada — o poder das virtudes do dirigente; aristotelicamente, das virtudes
político é um bem participável. das instituições.
Existem, pois, dois tipos de justiça na pólis: a
distributiva, referente aos bens econômicos Conclusão: o bom governo
partilháveis, e a participativa, referente ao poder
político participável. A teoria política grega está voltada para a busca
A pólis justa saberá distinguir esses dois tipos de dos parâmetros do bom governo. Platão e Aristóteles
justiça e realizar ambos. envolvem-se nas questões políticas do seu tempo e
A justiça distributiva consiste em dar a cada criticam os maus governos. Se por um lado Platão
pessoa o que lhe é devido e sua função é dar tentou efetivamente implantar um governo justo na
desigualmente aos desiguais para torná-los iguais. Sicília, por outro esboçou a idealizada Cailipolis como
Suponhamos que a pólis esteja atravessando um modelo a ser alcançado. Aristóteles, mesmo recusando
período de fome em decorrência de secas ou enchentes a utopia do seu mestre, aspira também a uma cidade
e que adquira alimentos para distribuí-los a todos. Para justa e feliz.
ser justa, a cidade não poderá reparti-los de modo igual Isso significa que esses filósofos elaboram uma
para todos. De fato, aos que são pobres, deve doá-los, teoria política de natureza descritiva, já que a reflexão
mas, aos que são ricos, deve vendê-los, de modo a parte da análise da política de fato, mas é também de
conseguir fundos para adquirir novos alimentos. Se natureza normativa e prescritiva, porque pretende
doar a todos ou vender a todos, será injusta. Também indicar quais são as boas formas de governo.
será injusta se atribuir a todos as mesmas quantidades A ligação entre ética e política é evidente, na
de alimentos, pois dará quantidades iguais para famílias medida em que a questão do bom governo, do regime
desiguais, umas mais numerosas do que outras. justo, da cidade boa, depende da virtude do bom
Em suma, é injusto tratar igualmente os governante.
desiguais e é justo tratar desigualmente os desiguais para Veremos como essa tendência persiste na Idade
que recebam os bens partilháveis segundo suas Média, até ser criticada no século XVI, a partir de
condições e necessidades. Maquiavel.
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Outra característica típica das teorias políticas em certas causas; tal exame será, portanto, útil ao nosso
antigas é a concepção cíclica da história, segundo a qual estudo, porque ou descobriremos uma outra espécie de
os governos se alternam passando de uma forma para causas, ou daremos mais crédito às que acabamos de
outra (de desenvolvimento ou de decadência), enumerar. A maior parte dos primeiros filósofos
representando um curso fatal dos acontecimentos considerou como princípios de todas as coisas
humanos. Assim, por exemplo, quando a monarquia unicamente os que são da natureza da matéria.
degenera em tirania, acontece a reação aristocrática que, É aquilo de que todos os seres são constituídos,
decaindo em oligarquia, gera a democracia e assim por e de que primeiro se geram, e em que por fim se
diante. dissolvem, enquanto a substância subsiste, mudando-se
unicamente as suas determinações, tal é, para eles, o
Aristóteles. Metafísica elemento e o princípio dos seres.
(Aristóteles, Metafísica, Col. Os Pensadores, São Paulo, Abril
É, portanto, verossímil que quem primeiro Cultural, 1973, p. 212 -213 e 216.)
encontrou uma arte qualquer, fora das sensações
comuns, excitasse a admiração dos homens, não
somente em razão da utilidade da sua descoberta, mas
por ser sábio e superior aos outros. E com o
multiplicar-se das artes, umas em vista das necessidades,
outras da satisfação, sempre continuamos a considerar
os inventores destas últimas como mais sábio s que os QUESTÕES
das outras, porque as suas ciências não se subordinam
ao útil. 1. O mesmo ocorre com os membros da Cidade:
De modo que, constituídas todas as (ciências) nenhum pode bastar-se a si mesmo. Aquele que não
deste gênero, outras se descobriram que não visam nem precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a
ao prazer nem à necessidade, e primeiramente naquelas ficar com eles, ou é um deus, ou é um bruto. Assim, a
regiões onde (os homens) viviam no ócio. É assim que, inclinação natural leva os homens a este gênero de
em várias partes do Egito, se organizaram pela primeira sociedade.
ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 5.
vez as artes matemáticas, porque aí se consentiu que a A ética e a política, chamadas por Aristóteles (384-322
casta sacerdotal vivesse no ócio. a.C.) de ciências práticas, são importantes objetos de
Já assinalamos na Ética a diferença que existe estudos para este filósofo. Assinale a alternativa que se
entre a arte, a ciência e as outras disciplinas do mesmo refere corretamente à tese aristotélica da inclinação
gênero. O motivo que nos leva agora a discorrer é este: natural dos homens para a sociedade política.
que a chamada filosofia é por todos concebida como a) Apenas na sociedade política os homens realizam-se
tendo por objeto as causas primeiras e os princípios; de como seres éticos, ou seja, atualizam sua potência como
maneira que, como acima se notou, o empírico parece seres racionais e virtuosos, capazes de proceder com
ser mais sábio que o ente que unicamente possui uma mediania.
sensação qualquer, o homem de arte mais do que os b) A sociedade política deve servir unicamente à
empíricos, o mestre-de-obras mais do que o operário, e satisfação das necessidades naturais dos homens, uma
as ciências teoréticas mais que as práticas. Que a vez que razão, ética e virtude são qualidades que se
filosofia seja a ciência de certas causas e de certos manifestam somente na vida privada.
princípios é evidente. c) Os homens são movidos apenas por seus interesses
É pois manifesto que a ciência a adquirir é a das individuais, sendo, então, necessária a sociedade política
causas primeiras (pois dizemos que conhecemos cada para conter suas disposições antissociais e naturalmente
coisa somente quando julgamos conhecer a sua agressivas.
primeira causa); ora, causa diz-se em quatro sentidos: d) A sociedade política tem sua forma perfeita na
no primeiro, entendemos por causa a substância e a democracia, o que revela a disposição natural e a
qüididade (o “porquê” reconduz-se pois à noção última, inclinação de todos os seres humanos à razão, à virtude
e o primeiro “porquê” é causa e princípio); a segunda e à igualdade.
(causa) é a matéria e o sujeito; a terceira é a de onde e) Para Aristóteles, os fins justificam os meios, ou seja,
(vem) o início do movimento; a quarta (causa), que se se a sociedade política é o único meio de os homens
opõe à prece dente, é o “fim para que” e o bem (porque viverem juntos, não se devem considerar os aspectos
este é, com efeito, o fim de toda a geração e éticos da vida humana.
movimento). Já estudamos suficientemente estes
princípios na Física; todavia queremos aqui associar- 2. (UNICENTRO 2014) Vemos que toda cidade é
nos aos que, antes de nós, se aplicaram ao estudo dos uma espécie de comunidade, e toda comunidade se
seres e filósofo faram sobre a verdade. (2) E, com efeito, forma com vistas a algum bem, pois todas as ações de
evidente que eles também falam em certos princípios e
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todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes magistraturas, ou então, do maior número possível
parece um bem; se todas as comunidades visam a algum delas; atribuir administração da justiça a todos os
bem, é evidente que a mais importante de todas elas e cidadãos escolhidos entre todos; depor a supremacia
que inclui todas as outras tem mais que todas este das decisões nas mãos da assembleia no tocante a todos
objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela os assuntos. Outro aspecto decisivo é o fato de
se chama cidade e é a comunidade política. nenhuma magistratura ser vitalícia e, no caso de um
ARISTÓTELES. Política. 3.ed. Tradução de Mário da Gama determinado cargo ter resistido a uma antiga reforma,
Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p.13. ser democrático o fato de restringir o seu poder fazendo
Com base no texto e nos conhecimentos sobre que a magistratura seja ocupada por sorteio em vez de
Aristóteles e a constituição da Cidade-Estado, assinale eleição.”
a alternativa correta. (ARISTÓTELES. Política. In: Filosofia. Livro Didático Público.
a) É constituída independentemente da vontade Curitiba: SEED-PR, 2006. p.170).
humana, sendo empecilho para a liberdade. A partir dessas informações, assinale o que for correto.
b) É uma construção natural, pois o fim dos seres 01) Pode-se afirmar, segundo o texto, que o sorteio de
humanos é viver em comunidade. cargos políticos é preferível ao pleito eleitoral, uma vez
c) Conjuntamente com as leis, são entraves à liberdade que a eleição pode favorecer a aristocracia e a oligarquia,
do indivíduo que lhes impõem o comando. bem como ameaçar a democracia.
d) Impede que os seres humanos conquistem a 02) Os ideais democráticos descritos pelo texto estão de
condição de cidadãos do mundo, ficando restritos. acordo com os princípios de isonomia (igualdade de
e) Resulta dos caprichos dos seres humanos em querer direitos perante a lei) e isègoria (igualdade de direitos ao
garantir vantagens individuais. uso político e público da palavra).
04) Segundo o texto, a escolha dos magistrados é
3. (UEM 2011) Aristóteles, acerca do cidadão, afirma: endereçada apenas àqueles que têm experiência e estão
“Em nada se define mais o cidadão, em sentido pleno, aptos a este ofício, já que nem todos os cidadãos têm
do que no participar das decisões judiciais e dos cargos direito a ocupar cargos públicos.
de governo. Desses, uns são limitados no tempo, de 08) As reformas administrativas, segundo o texto, entre
modo a não ser possível jamais a um cidadão exercer outras virtudes no campo democrático, servem para
duas vezes seguidas o mesmo cargo, mas apenas depois provocar novas eleições.
de um intervalo definido. [...] Consideramos cidadão o 16) No texto, o estado de exceção, suscitado pela
que assim pode participar, como membro, (quer da guerra, representa o ponto mais alto para o exercício
assembleia quer da judicatura)”. das ideias democráticas.
(ARISTÓTELES, Política. In: Antologia de textos filosóficos. Curitiba:
SEED-PR, 2009, p. 76).
Esse conceito clássico de cidadania ainda é aplicável aos
nossos dias. Com base no texto, é correto afirmar que
01) nas ditaduras, quando a população não pode
participar das decisões políticas, não há cidadania plena.
02) recusar-se a tomar parte nas decisões políticas não
é um direito, mas uma afronta à cidadania.
04) a cidadania é uma concessão dos governantes ao
povo.
08) não há cidadania plena quando a população não tem
como acessar às instituições públicas, como participar
delas.
16) a cidadania se resume à democracia, que é o direito
de escolher os governantes.

4. (UEM 2011) “São de índole democrática os


seguintes procedimentos: eleger todas as magistraturas
entre todos os cidadãos; governar todos a cada um, e
cada um a todos, em alternância; sortear as
magistraturas ou na totalidade, ou então só as que não
exijam experiência ou habilitação; impedir que o mesmo
cidadão exerça duas vezes a mesma magistratura, a não
ser em raras circunstâncias e apenas naquelas escassas
magistraturas que não se relacionam com a guerra;
reduzir ao mínimo o período de vigência de todas as
68
24
GABARITO
QUESTÕES LÓGICA
1. a
2. c
3. c
4. a
5. 1/16
6. 1/2/4/8
7. 1
8. 1/2/8

QUESTÕES ONTOLOGIA
1. 01/02/04/08/16
2. b
3. c
4. d
5. a
6. 1/2/4/8/16

QUESTÕES ÉTICA
1. a
2. a
3. b
4. a
5. c
6. 1/2/4/8
7. d

QUESTÕES POLÍTICA
1. a
2. b
3. 1/2/8
4. 1/2

69
25
FILOSOFIA HELENÍSTICA a partir do momento que na dimensão política (isto é,
na vida dentro da pólis) se reconheciam todos os
1. TRANSFORMAÇÕES CULTURAIS grandes filósofos gregos, os quais justamente sobre este
fundamento construíram seus sistemas e sua
Enfraquecidos pela Guerra do Peloponeso, os antropologia.
gregos não resistiram ao ataque macedônico na Alexandre com sua expansão promove
BATALHA DE QUERONEIA (338 a. C.) e gradualmente a queda da pólis. Ele dá início ao primeiro
sucumbiram diante do rei Filipe II. projeto de globalização, com a convivência de povos de
O domínio macedônico não ficou só na Grécia. diferentes costumes vivendo sob um mesmo território
Com a morte do rei Felipe II, seu filho Alexandre (336 e domínio.
– 323 a. C.) de apenas 18 anos, assume o poder e O ideal da pólis, portanto, é substituído pelo
conquista os grandes domínios do Império Persa, ideal “cosmopolita” (o mundo inteiro é uma pólis), e o
expandindo o poderio macedônico até a Índia. homem-político é substituído pelo homem-indivíduo; a
Alexandre foi contraposição grego-bárbaro em larga medida é
educado nos costumes superada pela concepção do homem em uma dimensão
gregos, teve Aristóteles de igualitarismo universal.
como seu professor, e Esse novo mundo que Alexandre estava
espalhou a cultura grega por criando requeria um novo homem, que deixaria de ser
um vastíssimo território. A um cidadão da pólis para ser um cidadão do mundo, da
expansão e mistura da cosmo-pólis, ou seja, um cosmopolita.
cultura grega com a dos Dessa maneira, todo aquele corpo teórico
povos orientais originou o sustentado pelos filósofos gregos, que concebia a pólis
que foi conhecido de como sendo o único lugar onde o homem poderia
Helenismo. exercitar suas virtudes e fazer florescer suas
Seu império não resistiu à sua morte, foi potencialidades, foi perdendo sentido, pois a pólis
dividido entre seus generais, e foi conquistado pelos estava deixando de existir em seu formato original.
romanos. No entanto, as cidades fundadas por ele Compreendemos então por que as filosofias até
continuaram transmitindo a cultura grega para diversos então elaboradas (com exceção da socrática) arriscaram
povos ao longo de séculos. Como exemplo, podemos tornar-se desatualizadas e superadas pelos tempos.
citar Alexandria no Egito, Pérgamo na Ásia Menor, e a Surgiu assim fortemente a exigência de novas filosofias
Ilha de Rodes no Mar Egeu. mais eficazes do ponto de vista prático, que ajudassem
Abaixo, mapa indicando o tamanho da a enfrentar os novos acontecimentos e a inversão dos
expansão do Império Macedônico. antigos valores aos quais estavam estreitamente ligadas.
De tal modo, a cultura helênica, difundiu-se em
vários lugares, tornou-se cultura helenística, e o centro
da cultura passou de Atenas para Alexandria, cidade que
mais se destacou ao possuir a maior biblioteca do
mundo de sua época, e por ter formado uma escola com
grandes pensadores.
É nesse contexto que surgem novas correntes
de pensamento filosóficas, como respostas às novas
questões postas por essas transformações.
Como expressões das novas exigências
impuseram-se de modo particular a filosofia cínica, a
epicurista, a estoica, e a cética, enquanto o Platonismo
e o Aristotelismo caíram em grande medida no
esquecimento. Essas mudanças na forma de ver o
mundo colocavam novas questões que não podiam ser
respondidas pelos escritos filosóficos já existentes.

A grande expedição de Alexandre Magno para 2. CINISMO


o oriente e as sucessivas conquistas territoriais, com a
formação de um império vastíssimo e a teorização de Embora fundado por Antístenes depois da
uma monarquia universal divina, tiveram como efeito morte de Sócrates, o Cinismo encontrou uma espécie
imediato o de colocar em gravíssima crise a pólis. de refundação com Diógenes de Sinope (400-325 a. C.),
Não se tratou apenas de revolução política, mas mais conhecido como Diógenes o cão, que levou essa
também e sobretudo de revolução espiritual e cultural, corrente filosófica a grande sucesso.
70
1
Ele imprimiu ao movimento uma clara depois de participar das
orientação anticulturalista, no sentido de que declarou expedições de Alexandre o
completamente inútil a pesquisa filosófica abstrata e Grande, onde percebeu, ao ter
teórica para fins de alcançar a felicidade. Eram contato com diversas culturas,
necessários, sobretudo, o exemplo e a ação. Por isso, o que não há como se ter
ensinamento de Diógenes se concentrou sobre uma conhecimento do que seja
vida vivida fora de qualquer convenção social e verdadeiro ou falso, e que a
reduzindo as necessidades ao essencial. maior sabedoria que o homem
Ele viveu em Atenas de acordo com o que poderia alcançar é a aceitação
acreditava, morando em um barril e comendo apenas o desse fato. E negar isso é a causa
os outros lhe davam, já que o cinismo pregava que a de todos os males e infelicidades.
pessoa deveria viver da forma mais simples possível, Segundo Pirro as coisas são em si
como um animal, desprezando todas as convenções indiferenciadas, incomensuráveis e indiscrimináveis, ou
sociais. seja, não têm em si uma essência estável, e por isso seu
Tudo que era natural deveria ser feito aos olhos ser se reduz a puras aparências. Seu caráter de
de todos, e considerava coisas tolas a riqueza, fama, provisoriedade e de inconsistência emerge sobretudo
poder e honras. quando as comparamos com a natureza do divino, que
O ideal foi o da autarquia, do bastar a si mesmo, é absolutamente estável e sempre igual.
e do tornar-se independente dos outros. Ou seja, a vida Se as coisas assim se apresentam, os sentidos e
cínica se concretizava em conduta inteiramente livre, a razão não estão em grau de discriminar a verdade e a
sem regras. Para alcançar tal objetivo era preciso ter falsidade. Portanto, o homem deve permanecer sem
total desprezo pelo prazer e libertar-se dele, e até atuar opinião e abster-se de qualquer julgamento definitivo.
uma revalorização da fadiga, capazes de temperar o Por conseguinte, não tem sentido agitar-se por
espírito e torná-lo independente das necessidades nenhum acontecimento, dado, justamente, que este é
supérfluas. pura aparência.
A atitude que o sábio deverá assumir é a da
afasia, ou seja, o calar e jamais expressar qualquer
julgamento definitivo, e assim atingir a ataraxia ou
imperturbabilidade (não se deixará perturbar por
nada). Pondo-se a parte de tudo aquilo que pode
perturbá-lo ou tocá-lo, o sábio poderá viver a vida
“mais igual” e, portanto, viver feliz.
Portanto, o homem deve permanecer sem
opinião e abster-se de qualquer julgamento definitivo.
Não faz sentido agitar-se por nenhum acontecimento,
dado, justamente, que este é pura aparência.
O sucesso de Pirro foi notável, e isso mostra
como o seu modo de ver estava em sintonia com o de
sua época.

4. EPICURISMO

Epicuro de Samos (341 –


271 a. C), que fundou sua Escola
Em busca de uma pessoa que não fosse em Atenas em 307/306 a.C.,
corrupta, ele andava com uma lanterna interpelando a retomou de Leucipo e Demócrito
todos que encontrava. a teoria atomista, de Sócrates o
Certa vez o imperador Alexandre foi ao seu conceito de filosofia como arte de
encontro e disse-lhe que daria qualquer coisa que viver, e estabeleceu uma estreita
pedisse, quando então, Diógenes pediu apenas que ele relação entre felicidade e prazer.
saísse da frente do sol, pois estava impedindo-o de Epicuro ensinava que os
receber sua luz. homens devem se libertar dos
medos e viver uma vida voltada para os simples
3. CETICISMO prazeres (hedonismo), como beber quando se tem sede,
comer quando se tem fome, aproveitar a presença dos
Pirro de Élida (360-270 a.C.) foi o maior nome amigos e familiares. Tudo com moderação.
dessa corrente filosófica. Ele tirou suas conclusões
71
2
Estes prazeres seriam entendidos como a número), tanto no espaço como no tempo (se regenera
superação dos desejos estimulados em sociedade, como infinitas vezes).
a busca por fama, riqueza e poder. Também a alma (distinta em racional e
Epicuro dividiu sua filosofia (finalizando as irracional) é um agregado de átomos; trata-se porem, de
primeiras duas partes com a terceira), em: átomos diferentes dos outros.
1) Lógica (chamada “cânon”); E ainda átomos de caráter especial são os que
2) física; constituem os deuses, de cuja existência Epicuro se
3) ética. mostra absolutamente certo. Os deuses de Epicuro tem
numerosas características em comum com os deuses da
A lógica religião tradicional, exceto por um detalhe: não se
ocupam de modo nenhum do mundo e dos homens, e
Para Epicuro o conhecimento se fundamenta vivem urna vida absolutamente feliz e beata.
sobre a sensação, sobre a prolepse e sobre os sentimentos
de dor e de prazer. A ética
A sensação nasce do impacto de fluxos de
átomos, provenientes dos objetos (chamados de Para Epicuro o verdadeiro bem é o prazer; o
"simulacros") sobre nossos sentidos, os quais, nesta máximo prazer é a ausência de dor, sendo os prazeres
relação, tem um papel passivo e mecânico, de modo que (e as dores) da alma superiores aos do corpo. Com
a marca do mundo externo (ou pelo menos dos efeito, a alma sofre também por causa das experiências
eflúvios) registrada pelos sentidos e perfeitamente passadas e por causa das futuras, enquanto o corpo
correspondente ao original, tanto que Epicuro pode sofre apenas por aquelas presentes.
afirmar que a sensação é sempre verdadeira e objetiva. A ausência da dor, tanto em relação a alma
Tais sensações, por repetir-se inumeráveis vezes (ataraxia) como em relação ao corpo (aponia), é
e mantendo-se na alma, dão lugar a imagens apagadas, considerada como sumo prazer, porque é o único que
que, por sua menor nitidez, podem se adaptar a não pode crescer ulteriormente e, portanto, não pode
múltiplos objetos do mesmo gênero, e, portanto, nos deixar insatisfeitos.
antecipar as características das coisas antes que estas se Para poder alcançar a ataraxia, Epicuro
apresentem (por isso as chamadas prolepses, isto é, distinguiu acuradamente os vários tipos de prazeres: os
antecipações), ou representa-las em sua ausência (do naturais e necessários (comer o suficiente para matar a
correspondente sensista do conceito). fome, beber o suficiente para matar a sede etc.), os
Os sentimentos de dor e de prazer nascem da naturais e não necessários (comer alimentos refinados,
ressonância interna das sensações, ou seja, do efeito que beber bebidas refinadas etc.), e, por fim, os não naturais
elas produzem sobre nós, e servem de fundamento para e não necessários (os prazeres ligados a riqueza, as
a ética, enquanto constituem os critérios para honras, ao poder).
discriminar o bem do mal. Portanto, apenas os primeiros devem sempre
O homem pode também construir, por via de ser buscados, porque são os únicos que encontram em
meditação, partindo das prolepses, dos julgamentos. si um limite preciso; os segundos, podemos nos
Temos assim a opinião. Neste caso, porém, falta a conceder apenas de vez em quando; os últimos, que nos
garantia da evidência e, por isso, é preciso um critério tornam insaciáveis, nunca.
de avaliação. Portanto, nem todas as opiniões resultam E o que dizer do mal físico, do moral e da
verdadeiras, mas apenas as que são confirmadas pela morte? Não são eles obstáculos insuperáveis que se
sensação ou não desmentidas por ela. opõem à felicidade do homem? A resposta de Epicuro
é um não categórico. Com efeito, o mal físico ou é
A física facilmente suportável, ou, se é insuportável, dura pouco
e leva a morte. E a morte não é um mal: quando
Para fundamentar uma “ontologia materialista”, existimos, ela não existe, e quando ela existe, nós não
Epicuro tomou dos Atomistas o conceito de átomo e a existimos. Com a morte vamos para o nada. No que se
ideia de que não existe geração do nada nem refere aos males da alma, a filosofia está em grau de
aniquilamento, mas que o todo (a totalidade dos curá-los e de nos libertar completamente deles.
átomos, que para o materialista Epicuro esgota a Para realizar seu ideal de vida, o homem deve
totalidade do ser) se mantem idêntico. fechar-se em si, e permanecer distante da multidão e
O cosmo, portanto, que é infinito, é composto dos encargos políticos, que só trazem perturbação e
de "corpos" e de vazio, e os corpos são ou simples fastio.
(justamente os átomos) ou compostos (toda a A única ligação com os outros a ser cultivada
realidade). deve ser a amizade, que nasce certamente pela busca do
O mundo, que deriva do encontro dos átomos útil ou para ter determinadas vantagens, mas depois,
é infinito (os átomos, com efeito, são infinitos de
72
3
uma vez nascida, torna-se ela própria fonte autônoma estrutura fundamental, ou seja, aquilo sem o que não
de prazer. existiria o pomar; finalmente, os frutos, que são aquilo
Epicuro forneceu uma síntese de sua mensagem a que todo o plantio visa, representam a ética.
no assim chamado quadri-fármaco, ou seja, no Assim como os Epicuristas, os Estóicos
quadruplo remédio para os males do mundo: atribuíam primariamente à lógica a tarefa de fornecer
1) são vãos os temores dos deuses e do além; um critério de verdade. E, como os Epicuristas,
2) é absurdo o medo da morte; indicavam a base do conhecimento na sensação, que é
3) o prazer, quando for entendido de modo uma impressão provocada pelos objetos sobre os
justo, está a disposição de todos; nossos órgãos sensoriais, a qual se transmite à alma e
4) o mal ou é de breve duração ou é facilmente nela se imprime, gerando a representação.
suportável. Porém, segundo os Estóicos, a representação da
Aplicando estas regras, o homem pode assumir verdade não implica só um "sentir", mas postula
a atitude de absoluta imperturbabilidade que distingue ademais um "assentir", um consentir ou aprovar
o sábio e que lhe concede felicidade intangível, análoga proveniente do logos que está em nossa alma. A
a divina: com exceção da eternidade - diz Epicuro -, impressão não depende de nós, mas da ação que os
Zeus não possui nada mais que o sábio. objetos exercitam sobre nossos sentidos; nós não
A felicidade seria, portanto, essa libertação dos somos livres de acolher essa ação ou de nos subtrair a
desejos e prazeres, com o objetivo de se levar uma vida ela, mas estamos livres para tomar posição diante das
serena e simples, própria de um sábio, com uma alma impressões e representações que se formulam em nós,
imperturbável, em serenidade, para eles, em ataraxia (do dando-lhes o assentimento de nosso logos ou recusando
grego a, que é um prefixo de negação, e taraxia, que quer dar-lhes nosso assentimento.
dizer agitação, perturbação). Só quando existe o assentimento é que temos a
“apreensão”. E a representação que recebeu nosso
5. ESTOICISMO assentimento é ''representação compreensiva ou
cataléptica, constituindo o único critério ou garantia de
A filosofia Estóica verdade.
formou-se principalmente pela Para os Estoicos, a verdade própria da
ação de três filósofos que, um representação cataléptica deve-se ao fato de que esta é
depois do outro, deram cada um uma ação e uma modificação material e "corpórea" que
a própria contribuição às as coisas produzem sobre nossa alma, provocando
doutrinas da Escola, chamada resposta igualmente material e "corpórea" por parte da
Estoá (termo que significa nossa alma. Por razões que esclareceremos melhor
"pórtico", lugar em que os adiante, a própria verdade, segundo os Estóicos, é algo
filósofos se encontravam). de material, “é um corpo".
O primeiro deles foi Zenão de Cicio (que Contudo, os Estoicos admitiram que passamos
chegou em Atenas em 312/311 a.C.), o segundo foi da representação cataléptica à intelecção o e ao
Cleanto de Assos (que dirigiu a Escola entre 262 e 232 conceito. Admitiam, ademais, "noções ou prolepses
aproximadamente), e o terceiro, ao qua1 se deve a inatas na natureza humana". E, em consequência,
sistematização definitiva da doutrina, foi Crisipo de Sôli obrigaram-se a dar conta da natureza dos universais.
(que foi escolarca de 232 até quase o fim do século). O ser, para os Estoicos, é sempre e somente
Os estudiosos dividem a história da Estoá em “corpo” e, ademais, individual; portanto, o universal
dois antiga Estoá (de Zenão, Cleanto e Crisipo) e a nova não pode ser corpo, é um incorpóreo, não no sentido
Estoá de Sêneca e Marco Aurélio. positivo platônico, mas no sentido negativo de
“realidade empobrecida de ser”, uma espécie de ser
A lógica ligado somente à atividade do pensamento.

Tanto Zenão quanto a Estoá aceitam a A física


tripartição da filosofia estabelecida pela Academia (que
fora substancialmente acolhida por Epicuro, como já O ser, dizem os Estóicos, se identificava com o
vimos), inclusive acentuando-a e não se cansando de “corpo”, razão pela qual tudo o que existe (também os
forjar novas imagens para ilustrar do modo mais eficaz vícios, o bem e as virtudes) são “corpos”. E todo corpo
a relação existente entre as três partes. é formado pela ação de uma causa ativa com uma causa
A filosofia em seu conjunto é comparada por passiva, isto é, pela ação da razão (logos) sobre a
eles a um pomar, no qual a lógica corresponde ao muro matéria, produzindo entes de caráter “hilemórfico”, isto
circundante, que delimita o âmbito do pomar e que é, feitos de matéria e forma.
cumpre ao mesmo tempo o papel de baluarte de defesa;
as árvores representam a física, porque são como que a
73
4
A forma de cada objeto seria, portanto, o Aqui, porém, surge um problema: se a razão
resultado da ação de uma única força racional que dá imanente implica necessidade imanente, então, também
forma (definição) a um substrato indefinido. o homem continua implicado nesta necessidade. O que
Esta força racional identifica-se com a natureza será, portanto, da sua livre vontade?
(physis), e, portanto, com o princípio divino, e em A vontade do homem (dizem os Estóicos) não
sentido mais específico com o fogo ou sopro (pneuma) é livre, ou seja, ela encontra obstáculos que impedem
afogueado que penetra toda a realidade, aquece-a e sua realização, apenas quando se opõe ao destino (ao
(segundo as concepções científicas da época, que viam logos); ao contrário, quando o atende e quer aquilo que
no calor o princípio vital) lhe dá vida. o destino quer, então não só não encontra
Aparece, portanto, evidente que para o Estóicos impedimentos, mas tem efeito seguro. A verdadeira
o cosmo é como um imenso organismo vivo em que liberdade, portanto, estaria em uniformizar-se ao logos,
tudo é vida. querer o que o Destino quer.
Todavia, neste ponto surgem dois problemas: A ideia de que o mundo seja formado de fogo
1 – Como é possível que o fogo (natureza- implica que nele se manifestem, embora em tempos
Deus), que, como sabemos é corpóreo e material, diversos, os dois aspectos típicos da atividade do fogo,
penetre o cosmos que é também material? É possível isto é, o vivificante (lembremo-nos da relação fogo-
que os corpos se penetrem mutuamente? calor-vida, mais vezes salientado) e o destrutivo. Assim,
2 – Como pode o fogo (logos), que é único, enquanto prevalece o primeiro aspecto o cosmo vive,
produzir infinidades de forma? quando prevalece o segundo ele se consuma em total
Para resolver o primeiro problema os estóicos combustão.
introduziram o princípio da infinita divisibilidade dos Todavia, desta conflagração o mundo renascerá,
corpos e, portanto, admitiram a possibilidade de que as e renascerá igual, porque a lei que o dirige e sempre a
partes de um corpo penetrem completamente entre as mesma, justamente a do logos, e também os eventos da
partes de outro (princípio da “mistura total dos história se repetirão idênticos até a sucessiva
corpos”). conflagração; e assim por diante.
Para responder ao segundo problema eles O logos que penetra o universo se manifesta, em
representaram o logos como “semente de todas as particular medida, na alma humana que é fogo ou
coisas”, ou seja, como semente capaz de gerar muitas pneuma (uma parte do fogo ou pneuma cósmico) e é
outras sementes (razões seminais). Como a semente, dividida em oito partes: os cinco sentidos, uma parte
que é única consegue produzir a infinita variedade das destinada a fonação, uma a reprodução, e a parte
frondes, dos ramos, das flores e dos frutos de uma racional chamada de "hegemônico", ou seja, que
árvore, do mesmo modo o único logos produz a infinita domina as outras.
variedade das formas presentes no mundo.
Se todas as formas derivam de uma única A ética
semente, elas têm reciprocamente uma relação
orgânica, isto é, “simpatizam” entre si, de modo que Todos os seres vivos são dotados de um
cada parte do cosmo está em conexão com todas as princípio de conservação (chamado oikéiosis), que
outras (princípio da “simpatia cósmica”). instintivamente os leva a evitar aquilo que os prejudica
Os Estóicos, além disso, não hesitaram em e a buscar aquilo que os beneficia, que acresce seu ser:
chamar de Deus esta razão (logos) inerente ao mundo, em uma palavra, o bem de um ser é aquilo que lhe é
pelo fato de que ela efetivamente atende as funções de benéfico, e o mal é o que danifica.
Deus. De um lado, dá forma às coisas; do outro, move- Por conseguinte, todo ser vivo pode e deve
as e às dispõe racionalmente. viver segundo a natureza, segundo a sua natureza. Ora,
Deste modo, eles formularam a primeira a natureza do homem é racional e a sua essência e a
concepção explícita e sistemática do panteísmo, isto é, razão. Assim, para o homem atuar o princípio de
da doutrina que identifica o cosmo com Deus. conservação deve buscar as coisas e apenas as coisas
A presença do Deus-logos na realidade implica que incrementam sua razão e fugir das que o
que tudo seja por ele dirigido de modo infalível, isto é, prejudicam.
que tudo seja endereçado ao melhor fim (o logos não As realidades que correspondem a estas
pode errar). Neste sentido, o finalismo universal se características são a virtude e o vício, portanto, apenas
traduz em Providência, uma forma de providência a virtude é "bem" e só o vício é "mal".
geral. Mas esta forma de "providência" coincide com o Os Estoicos elaboraram também um quadro
destino inelutável, que não é mais do que aquilo que se das ações, distinguindo as "ações retas" (ou moralmente
segue a ordem necessária de todas as coisas devida ao perfeitas) e as "ações convenientes" ou "deveres". A
logos. diferença entre os dois tipos depende não da natureza
da ação (uma mesma ação pode ser tanto dever como
ação correta), mas sobretudo da intenção de quem a
74
5
realiza. Se quem a realiza está em sintonia com o logos e, Na geometria sobressai o nome de Euclides
portanto, é um sábio, suas ações serão sempre ações (330-277 a.C.), que nos seus Elementos apresentou de
corretas; se, ao contrário, age sem esta consciência, suas modo sistemático e rigoroso todas as descobertas da
ações, embora formalmente conformes a natureza, são geometria helênica, segundo a metodologia fornecida
deveres. por Aristóteles na sua lógica, ou seja, sobre a base de
Disso derivam duas consequências definições, postulados e axiomas (que são
significativas; de um lado, que quem não é sábio, faça o
que fizer, jamais realizará uma ação correta; do outro,
que quem é sábio, qualquer coisa queira ou faça,
realizará sempre ações corretas, justamente porque sua
vontade quer aquilo que o logos quer.
Os Estoicos consideravam que a oikéiosis não
era um fato apenas individual, mas devia estender-se a
família e a toda a humanidade, de modo a definir o
homem "animal comunitário" (isto é, participante da
comunidade humana), e não mais, como queria especificações do princípio de não-contradição).
Aristóteles, "animal político" (isto é, inserido na Pólis).
Esta mudança de perspectiva favoreceu a No âmbito da geometria é necessário também
difusão de ideais de igualitarismo e de aversão a mencionar o nome de Apolônio de Perga (séc. III a.C.)
escravidão (todos os homens participam do logos e, por seus estudos fundamentais sobre as secções
portanto, todos os homens são iguais, e ninguém é por cônicas.
natureza escravo). No que se refere a mecânica o nome de maior
Não se deve pensar que o sábio provê um destaque é o de Arquimedes (287-212 a.C.), que foi um
“sentimento” de simpatia ou solidariedade com os gênio, pois ocupou-se de hidrostática, de estática
outros homens. Com efeito, os sentimentos de (descobriu as leis da alavanca), de matemática e de
misericórdia, de participação humana, de amor são engenharia.
entendidos como "paixões" e, portanto, como vícios da
alma.
O ideal do sábio é a "impassibilidade" (apatia),
pela qual não se trata apenas de moderar as paixões, mas
de eliminá-las inteiramente, nem mesmo senti-las. E
isso se compreende bem, se considerarmos que as
paixões são a fonte do mal e do vício e se configuram
como erros do logos. É claro, portanto, que os erros não
podem ser moderados ou atenuados, mas devem ser
cancelados.

6. A CIÊNCIA NA ERA HELENÍSTICA Particular consideração merece o


desenvolvimento da astronomia, pelas relações que ela
A grande expedição de Alexandre no Oriente teve com a filosofia.
teve, entre outras coisas, o efeito de deslocar de Atenas A concepção astronômica dos gregos era
o baricentro da cultura de língua grega. Sobretudo a geocêntrica e os astrônomos imaginavam que os corpos
cientifica encontrou sede ideal em Alexandria (fundada celestes estivessem colocados sobre uma esfera
em 332 a.C.). Aqui, promovido pela dinastia dos imaginária.
Ptolomeus, nasceu o Museu (que significa "Instituição Já Platão percebera que a rotação perfeitamente
consagrada as Musas), ao qual estava anexa à Biblioteca: circular não bastava para explicar coerentemente os
o primeiro continha os laboratórios científicos, a movimentos dos planetas. Eudóxio, Calipo e
segunda todos os livros que era possível recolher (várias Aristóteles procuraram introduzir estas anomalias no
centenas de milhares). modelo geral das esferas concêntricas, multiplicando-
Como efeito dessas instituições houve o grande as. Todavia foi Hiparco de Nicéia que forneceu uma
florescimento da ciência que, da filosofia, ampliou-se explicação das anomalias das revoluções dos planetas,
para a gramática, a geografia, a medicina, a geometria, a introduzindo a hipótese de uma órbita excêntrica do
mecânica e a astronomia. sol.
Além desses astrônomos é digno de menção
As ciências particulares Aristarco de Samos (século II a. C.), que procurou
superar a hipótese geocêntrica, e desenhou um modelo
75
6
do cosmo em que todos os astros giram em torno do especial sofrida pela problemática da última época do
sol. estoicismo.
Não sem implicações filosóficas foi também o a) Em primeiro lugar, o interesse pela ética, sem
desenvolvimento da medicina (especialmente dos dúvida tornou-se predominante na Estoá romana da
estudos anatômicos-fisiológicos) e da geografia, que época imperial e, em alguns pensadores, quase
alçou tal precisão de cálculo de modo a permitir que exclusivo.
b) O interesse pelos problemas lógicos e físicos
reduziu-se consideravelmente e a própria teologia, que
era uma parte da física, assumiu colorações que
podemos qualificar pelo menos de exigencialmente
espiritualistas.
C) Reduzidos consideravelmente os laços com
o Estado e com a sociedade, o indivíduo passou a
buscar a própria perfeição na interioridade da
consciência, criando assim um clima intimista, nunca
encontrado até então na filosofia, pelo menos nessa
medida.
d) Irrompeu forte sentimento religioso,
transformando de modo bastante acentuado a tempera
espiritual da velha Estoá. Mais ainda: nos escritos dos
novos Estóicos encontramos inclusive uma série de
Erastótenes avaliasse com boa aproximação as preceitos que lembram preceitos evangélicos paralelos,
dimensões da terra. como o parentesco comum de todos os homens com
Em uma avaliação da ciência helenística salta Deus, a fraternidade universal, a necessidade do perdão,
aos olhos o caráter especializado que ela assumiu, bem o amor ao próximo e até o amor por aqueles que nos
como sua autonomia tanto em relação a religião como fazem mal.
em relação com a filosofia, autonomia que lhe adveio e) O platonismo, inspirou não poucas páginas
sobretudo a partir da sua origem aristotélico- dos estoicos romanos, com suas novas características
peripatética. Mas a independência da filosofia vale "médio-platônicas". Em especial, merece relevo o fato
apenas quanto ao objeto de pesquisa (que no caso da de que o conceito de filosofia e de vida moral como
ciência é parcial e específico, e no caso da filosofia é "assimilação a Deus" e como "imitação de Deus"
universal e geral), e não quanto a intenção que passou a exercer influência inequívoca.
permaneceu contemplativa, isto é, teorética.
7. SÊNECA
7. ESTOICISMO ROMANO

O último grande florescimento da filosofia do


Pórtico deu-se em Roma, onde assumiu características
peculiares e específicas, tanto que os historiadores da
filosofia utilizam unanimemente o termo "Neo-
estoicismo" para designá-lo.
A propósito, deve-se observar que o Estoicismo
foi a filosofia que, em Roma, sempre teve maior
número de seguidores e admiradores, tanto no período
republicano como no período imperial.
Aliás, o desaparecimento da República, com a Lúcio Aneu Sêneca nasceu em Córdoba, na
consequente perda de liberdade do cidadão, fortaleceu Espanha, entre o fim da era pagã e o início da era crista.
notavelmente nos espíritos mais sensíveis o interesse Em Roma, participou ativamente e com sucesso da vida
pelos estudos em geral e pela filosofia estoica em política. Condenado por Nero ao suicídio em 65 d.C.
particular. Sêneca matou-se com estoica firmeza e admirável força
Ora, precisamente as características gerais do de espirito.
espirito romano, que se sentia como verdadeiramente Sêneca é um dos expoentes da Estoá em que
essenciais os problemas práticos e não os puramente mais se evidenciam a oscilação em relação ao
teoréticos, juntamente com as características pensamento de Deus, a tendência a sair do panteísmo e
particulares do momento histórico de que falamos, é as instâncias espiritualistas de que falamos, inspiradas
que nos permitem explicar com facilidade a curvatura em acentuado sopro religioso. Na verdade, em muitas
passagens, Sêneca parece perfeitamente alinhado com o
76
7
dogma panteísta da Estoá que afirma ser Deus a No âmbito da Estoá, Sêneca talvez tenha sido o
Providencia imanente, a Razão intrínseca que plasma a pensador que mais acentuadamente contrariou a
matéria, é a Natureza. instituição da escravidão e as distinções sociais: o
Entretanto, onde a reflexão de Sêneca é mais verdadeiro valor e a verdadeira nobreza são dados
original, ou seja, no captar e interpretar o sentimento do somente pela virtude, que está indistintamente a
divino, seu Deus assume traços espirituais e até disposição de todos, pois exige unicamente o “homem
pessoais, que ultrapassam os marcos da ontologia nu”.
estóica. A nobreza e a escravidão social dependem da
Um fenômeno análogo descobre-se também na sorte; todos incluem servos e nobres entre seus mais
psicologia. Sêneca destaca o dualismo entre alma e antigos antepassados; na origem, todos os homens eram
corpo com acentos que não raramente recordam de inteiramente iguais. A única nobreza que tem sentido é
perto o Fédon platônico. O corpo é peso, vínculo, a que o homem constrói para si na dimensão do
cadeia, prisão da alma; a alma é o verdadeiro homem, espírito. E eis a norma que Sêneca propõe para regular
que tende a libertar-se do corpo para alcançar sua o modo como o senhor deve se comportar em relação
pureza. É evidente que essas concepções atingem as ao escravo e o superior em relação ao inferior:
afirmações estóicas de que a alma é corpo, substância “Comporta-te com os inferiores como gostarias que se
pneumática, afirmações que Sêneca, no entanto, comportassem contigo aqueles que te são superiores.”
reafirma. Trata-se de máxima que se aproxima bastante do
A verdade é que, em nível intuitivo, Sêneca vai espirito evangélico.
além do materialismo estóico; depois, porém, faltando- No que se refere as relações entre os homens
lhe as categorias ontológicas para fundamentar e em geral, Sêneca põe como fundamento a fraternidade
desenvolver tais intuições, as deixa suspensas no ar. e o amor. A passagem seguinte expressa seu
Ainda com base na análise psicológica, da qual pensamento de modo paradigmático:
é mestre, Sêneca descobre a "consciência" (conscientia) “A natureza nos produz como irmãos, gerando-
como força espiritual e moral fundamental do homem, nos dos mesmos elementos e destinando-nos aos
colocando-a em primeiro plano corno, antes dele, mesmos fins.
ninguém fizera no âmbito da filosofia grega e romana. Ela inseriu em nós um sentimento de amor
A consciência é o conhecimento do bem e do mal, reciproco, com que nos fez sociáveis, deu a vida uma lei
originário e ineliminável. Ninguém pode esconder-se de equidade e justiça e estabeleceu, segundo os
dela, porque o homem não pode esconder-se de si princípios ideais de sua lei, que é coisa mais mísera
mesmo. ofender que ser ofendido. Ela ordena que nossas mãos
Como vimos, a Estoá insistia no fato de que a estejam sempre prontas a fazer o bem. Conservemos
“disposição de espirito” determina a moralidade da sempre no coração e nos lábios aquele verso: 'Sou
ação. Entretanto, em conformidade com a tendência homem e não considero estranho a mim nada do que é
fundamentalmente intelectualista de toda a ética grega, humano.'
essa disposição de espirito deriva do "conhecimento", Tenhamos sempre presente esse conceito de
que é próprio do sábio e nele se resolve. Indo além, que nascemos para viver em sociedade. E nossa
Sêneca fala expressamente de "vontade". E mais: pela sociedade humana é precisamente semelhante a um
primeira vez no pensamento clássico, fala da vontade arco de pedras que não cai justamente porque as pedras,
como de uma faculdade distinta do conhecimento. opondo-se umas às outras, sustentam-se
Nessa descoberta, Sêneca foi ajudado de modo reciprocamente e, assim, sustentam o arco.”
determinante pela língua latina: com efeito, o grego não
tem um termo que corresponda perfeitamente a 8. O NEOPLATONISMO DE PLOTINO
voluntas. Entretanto, não soube dar um adequado
fundamento teorético a essa descoberta. Amônio Sacas fundou a
Outro trago diferencia Sêneca da antiga Estoá, Escola Neoplatônica de
bem como da totalidade dos filósofos gregos: o Alexandria. Entre seus
acentuado sentido de pecado e de culpa de que cada discípulos sobressai Plotino
homem está maculado. (205-270 d.C.), o último dos
O homem é estruturalmente pecador, diz nosso grandes pensadores gregos que,
filosofo. E, indubitavelmente, essa é uma afirmação que com um imponente sistema, se
se coloca em clara antítese em relação à pretensão de coloca, em certa medida, no
perfeição que, dogmaticamente, o estóico antigo mesmo plano de Platão e
atribuía ao seu sábio. Sêneca já pensava diferente: se Aristóteles.
alguém nunca pecasse, não seria homem; o próprio Para Plotino a realidade
sábio, enquanto permanece homem, não pode deixar de se articula em três hipóstases (substâncias): o Uno, a
pecar. Inteligência/Espirito, a Alma.
77
8
Todo ser subsiste e é aquilo que é em virtude de produzir o Espirito se queria se atuar como
sua “unidade”, a qual é superior ao ser, porque é sua pensamento.
causa. No vértice da realidade uma hipóstase, o Uno- Desse processo temos consequências
bem, capaz de dar unidade a todas as coisas, de infinita significativas:
potência. 1) antes de tudo, o Nous, Inteligência ou
Todavia, nosso raciocínio pode captar apenas Espirito, se qualifica como Ser (o cosmo inteligível das
entes finitos e conotações definidas das coisas. Por ideias que contem), como Pensamento (a atividade que
conseguinte, deste Um supremo se pode falar desenvolve) e como Vida (justamente enquanto vida de
prevalentemente em termos negativos, ou seja, pode-se pensamento);
dizer sobretudo o que não é. Ou se pode falar dele em 2) em segundo lugar, com o pensamento nasce
termos positivos, mas por via analógica: por exemplo, a multiplicidade sob a forma de dualidade de
pode-se dizer que é pensamento, entendendo com isso “pensamento” e “pensado”.
que se “assemelha” ao pensamento, mas, na realidade, Além disso, devemos salientar que a produção
é “super-pensamento”; ou se pode dizer que é “vida”, de toda realidade, a "criação" em geral e em particular,
mas na realidade é “super-vida”. ocorre por meio da "contemplação", e os dois termos
Plotino também se põe o problema, totalmente criação e contemplação em sentido filosófico se
novo no pensamento grego, do por que o Uno existe, e identificam.
por que é o que é. Como o Uno para pensar deve tornar-se
A esta pergunta ele responde, introduzindo o Espírito, também para criar deve tornar-se Alma. E o
revolucionário conceito de “autocriação”. O Uno existe modo de produção da Alma por parte do Espirito é
porque se auto-criou; e é aquilo que é, ou seja, Bem idêntico ao do Espirito por parte do Uno: também aqui
absoluto, porque quis ser no melhor modo possível. é preciso distinguir a atividade do e a atividade a partir
Outro problema de grande importância de (desta vez do e a partir do Espirito), ou seja, o
metafisica é “por que e como do Uno derivaram as nascimento de uma potência, a definição desta potência
coisas”; com efeito, se o Uno gozava já de absoluta por via de contemplação (desta vez do Espirito, e,
perfeição, por qual motivo produziu algo diferente de através do Espirito, do Uno), e por fim a
si? autocontemplação (da Alma).
Plotino responde, notando primeiro que o gerar Como, à medida que nos afastamos do Uno, a
do Uno não o empobrece (como a luz produzida por força unificante diminui, a Alma como hipóstase perde
uma fonte não empobrece aquela fonte), e além disso em parte a forte unidade, que era própria do Espirito e
que o gerado é sempre de natureza inferior em relação ainda mais do Uno. A Alma se articula em três almas:
àquele que gera. 1) a Alma Suprema, que contempla a hipóstase
A geração dos entes a partir do Uno não deve superior;
ser entendida como "emanação”, mas como 2) a Alma do Todo, que é a que cria o mundo;
“processão”, fruto de uma atividade particular. 3) e por fim as almas particulares, que dão vida
Para sermos precisos, o Uno (como qualquer aos corpos.
outra hipóstase) tem duas atividades: Exatamente porque a tarefa da Alma é a de criar
1 - uma, chamada atividade do Uno, que lhe o cosmo, dando-lhe vida, ela se encontra, por assim
permite subsistir; dizer, dividida no mundo material, sem, por isto, perder
2 - outra, chamada atividade a partir do Uno, completamente sua unidade, porque - diz Plotino - ela
que faz com que do Uno derivem todas as coisas. se encontra toda em tudo.
E se a primeira é atividade livre, a segunda é Também a matéria, apesar da sua negatividade,
necessária, como é necessário que, uma vez acesa a tem razão de ser no sistema plotiniano. Ela constitui a
chama, desta derive o calor. De um ponto de vista etapa extrema da processão a partir do Uno, em que a
metafisico, poderemos dizer que o Uno deve gerar as potência que deriva do Uno se enfraqueceu, a ponto de
outras hipóstases para realizar toda a sua potência não ter mais a força para contemplar.
infinita. E, uma vez que a contemplação é a força que
A partir do Uno, observa Plotino, deriva uma permite criar, a matéria é um negativo. Mas, enquanto
potência informe (que é como matéria inteligível), a ela é vivificada e como que resgatada pela Alma, de
qual, para subsistir, deve voltar-se para contemplar o algum modo espelha as formas das hipóstases
princípio do qual derivou, e depois deve superiores e assume, à medida do possível, o positivo.
autocontemplar-se. O homem é fundamentalmente sua alma, e a
Quando a matéria inteligível contempla o Uno, alma humana é um momento da hipóstase Alma, da
ela “se fecunda”, ou seja, se enche das Ideias, qual participa o caráter de atividade; portanto, também
entendidas no sentido platônico do verdadeiro ser; quando está no corpo, a alma exercita todas as
quando, ao contrário, se autocontempla, nasce o atividades cognoscitivas, incluindo a sensação, que
pensamento verdadeiro e próprio. O Uno devia
78
9
Plotino não entende como momento passivo, mas B) importância que confere à lógica, à ética e à estética,
como "pensamento oculto" da alma. como investigações necessárias para se alcançar a
A condição ideal da alma é a liberdade; mas esta satisfação individual ou felicidade.
se obtém apenas na tensão para o Bem, ou seja, C) centralidade que atribui à ética, em meio a
mediante a separação do corpóreo e a reunião com o significativas teorizações sobre a natureza, em um
Uno. Exatamente nisso está o vértice da ética momento de crescente desagregação da pólis grega.
plotiniana, na "unificação" (ou, como também diz, no D) valorização do indivíduo e sua ação, em detrimento
"êxtase"), ou seja, na capacidade de despojar-se de tudo, da investigação lógica, fundamental em uma perspectiva
de toda alteridade, e de unir-se ao Uno. Tal itinerário é como a de Aristóteles.
chamado também de via do "retorno" ou da E) predominância de sistemas metafísicos voltados para
"conversão", enquanto devolve o homem às origens de a busca do bem comum, em oposição às perspectivas
seu ser. epistemológicas de Platão e Aristóteles.

9. FIM DA FILSOFIA PAGÃ 2. Quais das correntes filosóficas abaixo podem ser
consideradas do período helenístico:
O fim da filosofia pagã antiga tem data oficial, a) modismo, marxismo e capitalismo
ou seja, 529 d.C., ano em que Justiniano proibiu aos b) estoicismo, epicurismo e modismo
pagãos qualquer oficio público e, portanto, também a c) epicurismo, cinismo, estoicismo e pirronismo
possibilidade de manter escolas e ensinar. (ceticismo)
Eis um trecho significativo do Códex de d) platonismo e neoplatonismo
Justiniano: “Nós proibimos que seja ensinada qualquer e) epicurismo, platonismo, estoicismo e pirronismo
doutrina por parte daqueles que estão afetados pela (ceticismo)
loucura dos ímpios pagãos. Por isso, que nenhum pagão
simule estar instruindo aqueles que, 3. Quais dos filósofos fizeram parte da escola
desventuradamente, frequentam sua casa enquanto, na helenística dos cínicos?
realidade, nada mais está fazendo do que corromper as a) Aristóteles e Diógenes de Sínope.
almas dos discípulos. Ademais, que não receba b) Antístenes e Diógenes de Sínope.
subvenções públicas, já que não tem nenhum direito c) Platão e Diógenes de Sínope.
derivado de escrituras divinas ou de éditos estatais para d) Tales e Diógenes de Sínope.
obter licença para coisas desse gênero. Se alguém, aqui e) Demócrito e Diógenes de Sínope.
(em Constantinopla) ou nas províncias, resultar culpado
desse crime e não se apressar a retornar ao seio de nossa 4. (UEM 2008) O Período Helenístico inicia-se com a
santa Igreja, juntamente com sua família, ou seja, conquista macedônica das cidades-Estado gregas. As
juntamente com a mulher e os filhos, recairá sob as correntes filosóficas desse período surgem como
referidas sanções, suas propriedades serão confiscadas tentativas de remediar os sofrimentos da condição
e ele próprio será enviado ao exílio.” humana individual: o epicurismo ensinando que o
Esse édito é sem dúvida muito importante para prazer é o sentido da vida; o estoicismo instruindo a
o destino da filosofia greco-pagã, bem como a data em suportar com a mesma firmeza de caráter os
que foi promulgado. acontecimentos bons ou maus; o ceticismo de Pirro
Entretanto, devemos destacar que o ano de 529 orientando a suspender os julgamentos sobre os
d.C., como todas as datas que abrem ou encerram uma fenômenos.
época, nada mais faz do que sancionar com um Sobre essas correntes filosóficas, assinale o que for
acontecimento de repercussão aquilo que já era correto.
realidade produzida por toda uma série de 01) Os estóicos, acreditando na idéia de um cosmo
acontecimentos anteriores. harmonioso governado por uma razão universal,
O édito de 529 d.C., portanto, nada mais fez do afirmaram que virtuoso e feliz é o homem que vive de
que acelerar e estabelecer de direito aquele fim ao qual, acordo com a natureza e a razão.
de fato e por si mesma, a filosofia pagã antiga estava 02) Conforme a moral estóica, nossos juízos e paixões
destinada inexoravelmente. dependem de nós, e a importância das coisas provém
da opinião que delas temos.
QUESTÕES 04) Para o epicurismo, a felicidade é o prazer, mas o
verdadeiro prazer é aquele proporcionado pela ausência
1. O helenismo é um período da história da filosofia que de sofrimentos do corpo e de perturbações da alma.
se caracteriza pela 08) Para Epicuro, não se deve temer a morte, porque
A) exclusividade que dá à dimensão prática da filosofia, nada é para nós enquanto vivemos e, quando ela nos
em contraposição à dimensão investigativa das sobrevém, somos nós que deixamos de ser.
filosofias platônica e aristotélica.
79
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16) O ceticismo de Pirro sustentou que, porque todas 04) comer uma refeição nutritiva e saborosa em demasia
as opiniões são igualmente válidas e nossas sensações é ruim porque as consequências são danosas ao bem-
não são verdadeiras nem falsas, nada se deve afirmar estar do corpo.
com certeza absoluta, e da suspensão do juízo advém a 08) a beleza corporal é uma finalidade da vida humana
paz e a tranqüilidade da alma. porque o prazer de ser admirado é a maior felicidade
para o ser humano.
5. (UEM 2009) A filosofia de Epicuro (341 a 240 a.c.) 16) o prazer não é necessariamente felicidade porque
pode ser caracterizada por uma filosofia da natureza e ele pode gerar o seu contrário, a dor.
uma antropologia materialista; por uma ética
7. (UEM 2013) “Acostuma-te à ideia de que a morte
fundamentada na amizade e a busca da felicidade nos para nós não é nada, visto que todo bem e todo mal
princípios de autarquia (autonomia e independência do residem nas sensações, e a morte é justamente a
sujeito) e de ataraxía (serenidade, ausência de privação das sensações. A consciência clara de que a
perturbação, de inquietação da mente). morte não significa nada para nós proporciona a fruição
Sobre a filosofia de Epicuro, assinale o que for correto. da vida efêmera, sem querer acrescentar-lhe tempo
01) A filosofia de Epicuro fundamenta-se no atomismo infinito e eliminando o desejo de imortalidade. Não
de Demócrito. Epicuro acredita que a alma humana é existe nada de terrível na vida para quem está
formada de um agrupamento de átomos que se perfeitamente convencido de que não há nada de
desagregam depois da morte, mas que não se terrível em deixar de viver. É tolo, portanto, quem diz
extinguem, pois são eternos, podendo reagrupar-se ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará
infinitamente. sofrimento, mas porque o aflige a própria espera.”
02) Para Epicuro, a amizade se expressa, sobretudo, por (Epicuro, Carta sobre a felicidade [a Meneceu]. São Paulo: ed.
Unesp, 2002, p. 27. In: COTRIM, G. Fundamentos da Filosofia. SP:
meio do engajamento político como forma de amar Saraiva, 2006, p. 97).
todos os homens representados pela pátria. A partir do trecho citado, é correto afirmar que
04) Epicuro, como seu mestre Demócrito, foi ateu, 01) a morte, por ser um estado de ausência de sensação,
considera que a crença nos deuses é o resultado da não é nem boa, nem má.
fantasia humana produzida pelo medo da morte. 02) a vida deve ser considerada em função da morte
08) Epicuro critica os filósofos que ficavam reclusos no certa.
jardim das suas academias e ensinavam apenas para um 04) o tolo não espera a morte, mas vive apoiado nas
grupo restrito de discípulos. Acredita que a filosofia suas sensações e nos seus prazeres.
deve ser ensinada nas praças públicas. 08) a certeza da morte torna a vida terrível.
16) Para Epicuro, não devemos temer a morte, pois, 16) a espera da morte é um sofrimento tolo para aquele
enquanto vivemos, a morte está ausente e quando ela que a espera.
for presente nós não seremos mais; portanto, a vida e a
morte não podem encontrar-se. Devemos exorcizar
8. (UEM 2013) “O prazer é o início e o fim de uma
todo temor da morte e sermos capazes de gozar a
vida feliz. Com efeito, nós o identificamos com o bem
finitude da nossa vida.
primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele
praticamos toda escolha e toda recusa e a ele chegamos
6. (UEM 2012) Afirma o filósofo Epicuro (séc. III escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre
a.C.), conhecido pela defesa de uma filosofia hedonista: prazer e dor. Embora o prazer seja nosso bem primeiro
“(...) o prazer é o começo e o fim da vida feliz. É ele que e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há
reconhecemos como o bem primitivo e natural e é a ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando
partir dele que se determinam toda escolha e toda deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis;
recusa e é a ele que retornamos sempre, medindo todos ao passo que consideramos muitos sofrimentos
os bens pelo cânon do sentimento. Exatamente porque preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier
o prazer é o bem primitivo e natural, não escolhemos depois de suportarmos essas dores por muito tempo”
todo e qualquer prazer; podemos mesmo deixar de lado EPICURO. Carta sobre a felicidade. In: ARANHA, M. Filosofar
muitos prazeres quando é maior o incômodo que os com textos: temas e história da filosofia. São Paulo: Moderna, 2012,
segue.” p. 330.
(EPICURO, A vida feliz. In: ARANHA, M. L.; MARTINS, M. P. A partir do trecho citado, assinale o que for correto.
Temas de filosofia. 3.ª ed. rev. São Paulo: Moderna, 2005, p. 228.) 01) Todos os seres humanos buscam prazer sempre e
Considerando os conceitos de Epicuro, é correto em tudo, evitando toda e qualquer dor.
afirmar que 02) Os prazeres imediatos anulam as dores que podem
01) estudar todo dia não é bom porque a falta de prazer decorrer desses.
anula todo conhecimento adquirido.
02) todas as escolhas são prazerosas porque
naturalmente os seres humanos rejeitam toda dor.
80
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04) Dor e prazer não são contraditórios, pois de atos 02) Pitágoras de Samos considera que a arché de todos
dolorosos podem advir situações prazerosas e vice- as coisas, princípios de onde deriva a harmonia da
versa. natureza, é feita à imagem da harmonia do número.
08) A noção de prazer não está ligada somente à 04) Os gregos deram uma grande contribuição para o
sensação imediata, mas aos efeitos que uma ação pode avanço da ciência matemática quando introduziram o
gerar no ser humano. número cardinal zero como expressão da ausência de
16) A busca da felicidade na vida não se restringe a quantidade.
escolhas prazerosas, mas a ações que geram prazer, 08) Na Academia de Platão, só eram aceitas a álgebra e
apesar de essas conterem, às vezes, algumas doses de a aritmética; a geometria era excluída, pois representava
sacrifício. os objetos do mundo sensível.
16) A matemática na Grécia clássica concebeu o
9. (UEM 2015) “O prazer é o início e o fim de uma número da mesma maneira como é conceituado pela
vida feliz. Com efeito, nós o identificamos com o bem matemática moderna. Por essa razão, a matemática
pode ser considerada uma ciência que nunca mudou, no
primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele
decorrer da história, seus paradigmas.
praticamos toda escolha e toda recusa, e a ele chegamos
escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre
prazer e dor. Embora o prazer seja nosso bem primeiro
e inato, nem por isso escolhemos qualquer prazer: há
ocasiões em que evitamos muitos prazeres, quando
deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis;
ao passo que consideramos muitos sofrimentos
preferíveis aos prazeres, se um prazer maior advier
depois de suportarmos essas dores por muito tempo.”
EPICURO. Carta sobre a felicidade. In ARANHA, M. L. de A.;
MARTINS, M. H. P. Filosofando. São Paulo: Moderna, 2009, p.
251.
A partir desta citação de Epicuro, assinale o que for
correto.
01) Felicidade e infelicidade são estabelecidas pelos
efeitos do prazer e da dor.
02) O sentimento de prazer é inato à natureza humana.
04) Epicuro defende o prazer sem medidas.
08) O prazer corporal é um mal causado pelo pecado
original.
16) O hedonismo de Epicuro não é imediatista, mas
moderado.

10. (UEM 2009) A matemática origina-se das


necessidades que surgem de determinadas atividades
práticas, tais como medir terrenos para reparti-los entre
os membros de uma comunidade, avaliar distâncias
entre lugares geográficos no exercício da navegação,
quantificar bens econômicos para distribuí-los ou
vendê-los. Pode-se afirmar que na sua origem a
matemática é um conjunto de atividades práticas não
constituídas por um sistema de conhecimento
científico.
Sobre o exposto, assinale o que for correto.
01) Foram os gregos que transformaram o
conhecimento empírico da arte de contar e medir em
ciência. Na obra de Euclides, que trata da geometria e
da teoria dos números, encontra-se a matemática
constituída num sistema científico.
81
12
O LEGADO DA FILOSOFIA GREGA Mesmo que a razão humana não possa conhecer
tudo, tudo o que ela pode conhecer conhece plena e
A filosofia pode ser entendida como aspiração verdadeiramente, e ela é a condição de todo
ao conhecimento racional, lógico, demonstrativo e conhecimento verdadeiro.
sistemático: Por isso mesmo, a própria razão ou o próprio
a) da realidade natural e humana; pensamento deve conhecer as leis, regras, princípios e
b) da origem e das causas da ordem do mundo normas de suas operações e de seu exercício correto.
e de suas transformações; II) Recusa de explicações preestabelecidas e,
c) da origem e das causas das ações humanas e por isso mesmo, exigência de que para cada fato seja
do próprio pensamento. encontrada uma explicação racional e que para cada
problema ou dificuldade sejam investigadas e
encontradas as soluções que eles exigem.
III) Tendência à argumentação e ao debate
para oferecer respostas conclusivas a questões,
dificuldades e problemas, de modo que nenhuma
solução seja aceita se não houver sido demonstrada
conforme os princípios e as regras do pensamento
verdadeiro.
Capacidade de generalização, isto é, de
mostrar que uma explicação é válida para muitas
coisas diferentes ou para muitos fatos diversos,
porque, sob a aparência da diversidade e da variação,
o pensamento descobre semelhanças e identidades.
Trata-se de uma instituição cultural tipicamente Essa capacidade racional é a síntese. Por exemplo,
grega que, por razões históricas e políticas, tornou-se o para meus olhos, meu tato e meu olfato, o gelo é
modo de pensar e de se exprimir predominante da diferente da neblina, que é diferente do vapor de uma
chamada cultura europeia ocidental, da qual, devido à chaleira, que é diferente da chuva, que é diferente da
colonização europeia das Américas, também fazemos correnteza de um rio.
parte – ainda que de modo inferiorizado e colonizado. No entanto, o pensamento mostra que se trata
Dizer que a filosofia é tipicamente grega não sempre de um mesmo elemento (a água), que passa por
significa, evidentemente, que outros povos, como os diferentes estados e formas (líquido, sólido, gasoso) em
chineses, os hindus, os japoneses, os árabes, os persas, decorrência de causas naturais diferentes (condensação,
os hebreus, as sociedades africanas ou as indígenas da liquefação, ebulição).
América não possuam sabedoria, pois possuíam e O pensamento generaliza, isto é, encontra sob
possuem. as diferenças a identidade ou a semelhança, reúne os
Também não quer dizer que todos esses povos traços semelhantes e faz uma síntese.
não tivessem desenvolvido o pensamento e formas de IV) Capacidade de diferenciação, isto é, de
conhecimento da natureza e dos seres humanos, pois mostrar que fatos ou coisas que aparecem como iguais
desenvolveram e desenvolvem. ou semelhantes são, na verdade, diferentes, quando
Quando se diz que a filosofia é grega, o que se examinados pelo pensamento ou pela razão. Essa
quer dizer é que ela apresenta certas características e capacidade racional é a análise.
certas formas de pensar e de exprimir os pensamentos, Um exemplo nos ajudará a compreender como
estabelece certas concepções sobre o que sejam a procede a análise. Em 1992, no Brasil, jovens
realidade, a razão, a linguagem, a ação, as técnicas, estudantes pintaram a cara com as cores da bandeira
completamente diferentes das formas de pensar de nacional e saíram às ruas para exigir a destituição do
outras culturas. presidente da República.
Quando nos acercamos da filosofia nascente, Logo depois, candidatos a prefeituras
podemos perceber os principais traços que definem a municipais contrataram jovens para aparecer na
atividade filosófica na época de seu nascimento: televisão com a cara pintada, defendendo tais
I) Tendência à racionalidade, pois os gregos candidaturas. A seguir, as Forças Armadas brasileiras,
foram os primeiros a definir o ser humano como animal para persuadir jovens a servi-las, contrataram jovens
racional, ou seja, foram os primeiros a considerar que o caras-pintadas para aparecer como soldados,
pensamento e a linguagem definem a razão, que o marinheiros e aviadores. Ao mesmo tempo, várias
homem é um ser dotado de razão e que a racionalidade empresas, pretendendo vender seus produtos aos
é seu traço distintivo. jovens, contrataram artistas jovens para, de cara
pintada, fazer a propaganda de tais produtos.
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13
Aparentemente, teríamos sempre a mesma ou diferentes do que são – e universais – são os mesmos
coisa: jovens rebeldes e conscientes, de cara pintada, em toda parte e em todos os tempos. Ou, em outras
símbolo da esperança do país. No entanto, o palavras, uma lei natural é necessária porque nenhum
pensamento pode mostrar que, sob a semelhança ser natural escapa dela nem pode operar de outra
percebida, há diferenças, pois os primeiros caras- maneira que não desta; e uma lei da natureza é universal
pintadas fizeram um movimento político espontâneo; porque é válida para todos os seres naturais em todos
os segundos fizeram propaganda política para um os tempos e lugares.
candidato (e receberam dinheiro para isso); os terceiros A ideia de ordem natural necessária e universal
tentaram ajudar as Forças Armadas a aparecer como é o fundamento da filosofia em sua primeira expressão
divertidas e juvenis; e os últimos, mediante conhecida, a cosmologia. É, pois, responsável pelo
remuneração, estavam transferindo para produtos surgimento da chamada “filosofia da natureza” ou
industriais (roupas, calçados, vídeos, margarinas, discos, “ciência da natureza”, ou o que os gregos chamaram
iogurtes) um símbolo político inteiramente física, palavra derivada do vocábulo grego physis,
despolitizado e sem nenhuma relação com sua origem. ‘natureza’.
Separando as aparentes semelhanças, Assim, por exemplo, a ideia de que a natureza é
distinguindo-as, o pensamento descobriu diferenças e uma ordem que segue leis universais e necessárias
realizou uma análise. levou, no século XVII, Galileu Galilei a demonstrar as
Argumentar e demonstrar por meio de leis do movimento e as leis da queda dos corpos. Ou,
princípios e regras necessários e universais, apreender naquele mesmo século, levou Isaac Newton a
pelo pensamento a unidade real sob a multiplicidade estabelecer uma lei física válida para todos os corpos
percebida ou, ao contrário, apreender pelo pensamento naturais, a lei da gravitação universal.
a multiplicidade e diversidade reais de algo percebido E, no século XX, levou Albert Einstein a
como uma unidade ou uma identidade, eis aí algumas estabelecer uma lei da conservação de toda a matéria e
das características do que os gregos chamaram filosofia. energia do Universo, lei que se exprime na fórmula E =
Do legado filosófico grego, podemos destacar mc² (em que E é a energia, m é a massa e c é a velocidade
como principais contribuições as seguintes ideias: da luz), segundo a qual toda massa tem uma energia
1 - O conhecimento verdadeiro deve encontrar associada, cujo valor se descobre multiplicando a massa
as leis e os princípios universais e necessários do objeto pelo quadrado da velocidade da luz.
conhecido e deve demonstrar sua verdade por meio de 3 - As leis necessárias e universais da natureza
provas ou argumentos racionais. Ou seja, em primeiro podem ser plenamente conhecidas pelo nosso
lugar, a ideia de que um conhecimento não é algo que pensamento.
alguém impõe a outros, e sim algo que deve ser Isto é, não são conhecimentos misteriosos e
compreendido por todos, pois a razão ou a capacidade secretos, que precisariam ser revelados por divindades,
de pensar e conhecer é a mesma em todos os seres mas sim conhecimentos que o pensamento humano
humanos. Em segundo lugar, a ideia de que um pode alcançar por sua própria força e capacidade.
conhecimento só é verdadeiro quando explica 4 - A razão também obedece a princípios, leis,
racionalmente o que é a coisa conhecida, como ela é e regras e normas universais e necessários, com os quais
por que ela é. podemos distinguir o verdadeiro do falso. Em outras
É assim, por exemplo, que a matemática deve palavras: por sermos racionais, nosso pensamento é
ser considerada um conhecimento racional verdadeiro, coerente e capaz de conhecer a realidade porque segue
pois define racionalmente seus objetos. Ninguém leis lógicas de funcionamento.
impõe aos outros que o círculo é uma figura geométrica Nosso pensamento diferencia uma afirmação
em que todos os pontos são equidistantes do centro, de uma negação porque, na afirmação, atribuímos
pois essa definição simplesmente ensina que qualquer alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que
figura desse tipo será necessariamente denominada “Sócrates é um ser humano”, atribuímos humanidade a
círculo; da mesma maneira, ninguém impõe aos outros Sócrates); já na negação, retiramos alguma coisa de
que o triângulo é uma figura geométrica em que a soma outra (quando dizemos “Este caderno não é verde”,
dos ângulos internos é igual à soma de dois ângulos estamos retirando do caderno a cor verde). Por isso
retos, pois essa definição simplesmente estabelece que mesmo, nosso pensamento percebe o que é a
uma figura com tal propriedade será denominada identidade, isto é, que devemos sempre e
triângulo. Além de definir seus objetos, a matemática os necessariamente afirmar que uma coisa é idêntica a si
demonstra por meio de provas (os teoremas) fundadas mesma (“Sócrates é Sócrates”), pois, se negarmos sua
em princípios racionais verdadeiros (os axiomas e os identidade, estaremos retirando dela ela própria. Graças
postulados). à afirmação da identidade, o pensamento pode
2 - A natureza segue uma ordem necessária, e distinguir e diferenciar os seres (“Sócrates é diferente de
não casual ou acidental. Ou seja, ela opera obedecendo Platão e ambos são diferentes de uma pedra”).
a leis e princípios necessários – não poderiam ser outros
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14
Nosso pensamento também percebe o que é encontro acidental de coisas que em si mesmas são
uma contradição, ou seja, que é impossível afirmar e necessárias.
negar ao mesmo tempo algo de alguma coisa (“O Todavia, a situação das ações humanas é
infinito é ilimitado e não é ilimitado”). Por isso, ele bastante diversa dessa. É verdade que é por uma
também percebe a diferença entre uma contradição e necessidade natural ou por uma lei da natureza que
uma alternativa, pois, nesta, ou a afirmação será ando. Mas é por deliberação voluntária que ando para
verdadeira e a negação será falsa, ou vice-versa (“Ou ir à escola em vez de andar para ir ao cinema, por
haverá guerra ou não haverá guerra”). exemplo. É verdade que é por uma lei necessária da
Nosso pensamento distingue quando uma natureza que os corpos pesados caem, mas é por uma
afirmação é verdadeira ou falsa porque distingue o não deliberação humana e por uma escolha voluntária que
contraditório do contraditório e porque reconhece o fabrico uma bomba, a coloco num avião e a faço
verdadeiro como a conclusão de uma demonstração, de despencar sobre Hiroxima. Essa escolha faz com que a
uma prova ou de um argumento racional. Se alguém ação humana introduza o possível no mundo, pois o
apresentar o seguinte raciocínio: “Todos os homens são possível é o que pode acontecer ou deixar de acontecer,
mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal”, dependendo de uma escolha voluntária e livre.
diremos que a afirmação “Sócrates é mortal” é Um dos legados mais importantes da filosofia
verdadeira porque foi concluída de outras afirmações grega é, portanto, a diferença entre o necessário (o que
que já foram demonstradas verdadeiras (“Todos os não pode ser senão como é) e o contingente (o que
seres que nascem e perecem existem no tempo. Todos pode ser ou não ser), bem como a diferença entre o
os seres que existem no tempo são mortais”; “Todos os acaso (o que pode ou não acontecer na natureza) e o
homens existem no tempo. Todos os homens são possível (o que pode ou não acontecer nos
mortais”). acontecimentos humanos).
As práticas humanas dependem da vontade Dessa maneira, temos a ideia de que podemos
livre, da deliberação e da discussão, de uma escolha diferenciar entre o necessário, o acaso e o possível em
emocional ou racional, de nossas preferências e nossas ações: o necessário é o que não está em nosso
opiniões. poder escolher, pois acontece e acontecerá sempre (não
Estes fatores se realizam segundo certos valores depende de nós que o Sol brilhe, que haja dia e noite);
e padrões estabelecidos pela natureza ou pelos próprios o acaso é o que também não está em nosso poder
seres humanos, e não por imposições misteriosas e escolher (não escolho que aconteça uma tempestade
incompreensíveis. justamente quando estou fazendo uma viagem de navio
5 - O fato de os acontecimentos naturais e ou de avião, nem escolho estar num veículo que será
humanos serem necessários porque obedecem a leis (da atingido por outro, dirigido por um motorista
natureza humana) não exclui a compreensão de que eles embriagado); o possível, ao contrário do necessário e
também podem ser acidentais, seja porque um do acaso, é exatamente o que temos poder de escolher
concurso de circunstâncias os faz ocorrer por acaso na e fazer.
natureza, seja porque as ações humanas dependem das Essas diferenciações legadas pela filosofia grega
escolhas e deliberações dos homens. nos permitem evitar tanto o fatalismo – “Tudo é
Uma pedra lançada ao ar cai necessariamente necessário, temos de nos conformar com o destino e
porque pela lei natural da gravitação ela nos resignar com nosso fado” – como a ilusão de que
necessariamente deve cair e não pode deixar de cair; um podemos tudo quanto quisermos, pois a natureza segue
ser humano é capaz de locomoção e anda porque as leis leis necessárias que podemos conhecer e nem tudo é
anatômicas e fisiológicas que regem seu corpo fazem possível por mais que o queiramos.
com que tenha os meios necessários para isso. No Os seres humanos naturalmente aspiram ao
entanto, se uma pedra, ao cair, atingir a cabeça de um conhecimento verdadeiro (porque são racionais), à
passante, esse acontecimento é acidental. justiça (porque são dotados de vontade livre) e à
Por quê? Porque se o passante não estivesse felicidade (porque são dotados de emoções e desejos).
andando por ali naquela hora, a pedra não o atingiria. Isto é, os seres humanos não vivem nem agem
Assim, a queda da pedra é necessária e o andar cegamente, nem são comandados por forças
de um ser humano é necessário, mas, se uma pedra cai extranaturais secretas e misteriosas, mas instituem por
sobre minha cabeça quando ando, isto é inteiramente si mesmos valores pelos quais dão sentido à sua vida e
acidental. É o acaso. Contudo, o próprio acaso não é às suas ações.
desprovido de uma lei natural. Como explica
Aristóteles, o acaso é o encontro acidental de duas
séries de acontecimentos necessárias (é por necessidade
natural que a pedra cai e é por necessidade natural que
o homem anda). A lei natural do acaso é, portanto, o
84
15
GABARITO

QUESTÕES HELENISMO
1. c
2. c
3. b
4. 1/2/4/8/16
5. 1/16
6. 4/16
7. 1/16
8. 4/8/16
9. 1/2/16
10. 1/2

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16
FILOSOFIA MEDIEVAL que ela para dizer como Deus queria que a sociedade
(agora baseada nas relações de suserania e vassalagem
1. INTRODUÇÃO estabelecida entre o senhor feudal e os seus servos)
fosse organizada, legitimando assim, uma sociedade
A Idade Média abarca um período tão extenso hierarquizada, desigual e sem mobilidade social.
que é difícil caracterizá-la sem incorrer no risco da Definida pelo critério de sangue, quem nascia nobre
simplificação. Afinal, são mil anos (de 416 a 1455), entre morria nobre, quem nascia servo, morria servo.
a queda do Império Romano do Ocidente e a tomada Nesse contexto, a Igreja exerce enorme
de Constantinopla pelos turcos. influência, na medida em que mantém o monopólio do
A Alta Idade Média, período que se sucedeu à saber, pois são os monges os únicos letrados em um
queda do Império, é caracterizada por um estado de mundo onde nem os servos nem os nobres sabem ler.
desagregação da antiga ordem e pela divisão do Império Desde a invasão dos bárbaros, a cultura greco-
em diversos reinos bárbaros. latina permanecera por muito tempo confinada aos
mosteiros, ressurgindo lentamente após o século VIII,
no período conhecido como renascimento carolíngio,
ocasião em que Carlos Magno mandou fundar inúmeras
escolas junto às igrejas e mosteiros.
Dessa forma, os intelectuais pertencem às
ordens religiosas e, consequentemente, as principais
questões filosóficas referem-se às relações entre fé e
razão, sendo que esta se encontra sempre subordinada
àquela.
Se a fé é o conhecimento mais elevado e o
critério mais adequado da verdade, a filosofia não é a
busca da verdade, pois esta já foi encontrada, mas a ela
cabe apenas o trabalho de demonstração racional dessa
Mas, antes da queda, numa tentativa verdade.
desesperada de salvar o Império Romano, em 380 o No entanto, não devemos considerar todo o
imperador Teodósio torna o cristianismo, que já era a período medieval (sécs. V a XV, portanto mil anos)
seita religiosa com o maior número de seguidores, a como sendo de obscuridade. Em vários momentos, há
religião oficial. Desse modo, estabelece-se a ligação expressões diversas de produção cultural às vezes tão
entre Estado e Igreja, pois esta legitima o poder do heterogênea que se torna difícil reduzir o período àquilo
Estado, atribuindo-lhe uma origem divina. que se poderia chamar pensamento medieval.
Não deu muito certo! O Império caiu, mas a Uma constante se faz notar no pano de fundo
Igreja Católica (do grego καθολικος /katholikos = desse pensamento: a tentativa de conciliar a razão e a fé.
universal) Apostólica, e agora, Romana, emergiu e se A temática religiosa predomina a preocupação
tornou a maior instituição do mundo (até hoje). O apologética, isto é, na defesa da fé cristã e no trabalho
desejo de unidade de poder, de restauração da antiga de conversão dos não-cristãos.
unidade perdida, se expressa na difusão do cristianismo
que representa, na Idade Média, o ideal de Estado
universal.
Nesse cenário de fragmentação, a Igreja surgia
como um elemento de união, crescendo no vácuo que
foi deixado pelo desaparecimento do império. Assim, a
religião surge lentamente como elemento agregador dos
inúmeros reinos bárbaros formados após sucessivas
invasões; seus chefes são pouco a pouco convertidos ao
cristianismo, e a Igreja se transforma em soberana
absoluta da vida espiritual do mundo ocidental.
Ponte entre o homem e Deus, ela teria a última
palavra (a única) sobre como deveria ser a vida de seu
rebanho e sobre o que era o bem e o mal, o certo e o
errado, o justo e o injusto. Seria, portanto, a dona da A máxima predominante é "Crer para
mente e, por conseguinte, dos corpos das pessoas. compreender, e compreender para crer". A filosofia,
Poderosa não apenas do ponto de vista embora se distinguindo da teologia, é instrumento
espiritual, mas também político, ninguém melhor do desta, é serva da teologia.
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1
De início os religiosos têm receios quanto à 2. os que julgavam fé e razão conciliáveis, mas
produção dos gregos, por serem eles pagãos, mas com subordinavam a razão à fé (diziam: “Creio para
as devidas interpretações e adaptações segundo a fé compreender”);
cristã, o pensamento medieval é fertilizado inicialmente 3. os que julgavam razão e fé irreconciliáveis,
pelo pensamento de Platão (nas obras da patrística, mas afirmavam que cada uma delas tem seu campo
sobretudo de Santo Agostinho) e depois pelo de próprio de conhecimento e não devem se misturar (a
Aristóteles (no pensamento de Santo Tomás). razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal
Apesar do risco de simplificação, divide-se a dos homens no mundo; a fé, a tudo o que se refere à
Idade Média em duas tendências fundamentais: a salvação da alma e à vida eterna futura).
filosofia patrística e a escolástica.
4.1 SANTO AGOSTINHO
4. A PATRÍSTICA (Séc. II ao VII)
O principal nome da
Na decadência do Império Romano, surge a patrística é Santo Agostinho (354 -
partir do século II a filosofia dos Padres da Igreja, 430), bispo de Hipona, cidade do
conhecida também como patrística, isto é, dos norte da África. Viveu no final da
primeiros dirigentes espirituais e políticos do Antiguidade; logo depois Roma cai
cristianismo, após a morte dos apóstolos. nas mãos dos bárbaros, tendo
A patrística resultou do esforço para conciliar a início o longo período da Idade
nova religião com o pensamento filosófico dos gregos Média.
e romanos, pois somente assim seria possível combater O primeiro grande doutor da igreja foi o cara
as heresias e justificar a fé para convencer os pagãos da mais cachaceiro e raparigueiro que existia na cidade de
nova verdade e convertê-los a ela. Tagaste, uma província romana no norte da África.
A filosofia patrística liga-se, portanto, à Depois de passar por uma grande crise existencial na
evangelização e à defesa da religião cristã contra os qual se perguntava pelo sentido da vida, Agostinho (354
ataques teóricos e morais que recebia dos antigos. – 430) se converteu ao cristianismo e passou a ser um
A patrística introduziu ideias desconhecidas grande pregador. Essa crise está descrita em sua obra
para os filósofos greco-romanos: a ideia de criação do autobiográfica As Confissões .
mundo a partir do nada, de pecado original do homem, Não via como antagônicas fé e razão, mas
de Deus como trindade una, de encarnação e morte de afirmava que para se compreender era necessário crer,
Deus, de juízo final ou de fim dos tempos e ressurreição subordinando, portanto, a razão à fé. Apropriou-se de
dos mortos, etc. muitos elementos da filosofia platônica para
Precisou também explicar como o mal pode fundamentar sua explicação da doutrina cristã. Ele
existir no mundo, uma vez que tudo foi criado por retoma a dicotomia platônica referente ao mundo
Deus, que é pura perfeição e bondade. sensível e ao mundo das ideias e substitui esse último
Introduziu, sobretudo com Santo Agostinho, a pelas ideias divinas. Muitos autores afirmam que Santo
ideia de “homem interior”, isto é, da consciência moral Agostinho cristianizou Platão.
e do livre-arbítrio da vontade, pelo qual o homem, por Assim como Platão julgava o intelecto superior
ser dotado de liberdade para escolher entre o bem e o à matéria, Santo Agostinho pregava a superioridade da
mal, é o responsável pela existência do mal no mundo. alma ante o corpo, e sendo a alma um presente de Deus,
Para impor as ideias cristãs, os padres da Igreja devíamos nos voltar inteiramente à Ele.
católica as transformaram em verdades reveladas por
Deus (por meio da Bíblia e dos santos) que, por serem O caminho até Cristo
decretos divinos, seriam dogmas, isto é, verdades
irrefutáveis e inquestionáveis. Todas as fases de sua vida e os acontecimentos
Com isso, criou-se uma distinção entre verdades a elas relacionados, em muitos aspectos, mostraram-se
reveladas ou da fé e verdades da razão ou humanas, ou decisivas para a formação espiritual e a evolução do
seja, entre verdades sobrenaturais e verdades naturais, pensamento filosófico e teológico de Agostinho.
as primeiras introduzindo a noção de conhecimento A primeira personalidade que incidiu
recebido por uma graça divina, superior ao simples profundamente sobre a alma de Agostinho, sem dúvida,
conhecimento racional. Dessa forma, o grande tema da foi a de sua mãe, Mônica. Foi ela quem, com sua firme
filosofia patrística é o da possibilidade ou fé e seu coerente testemunho cristão, lançou em certo
impossibilidade de conciliar a razão com a fé. sentido as bases e construiu as premissas da futura
A esse respeito, havia três posições principais: conversão do filho, sobre o qual, depois, exerceu
1. os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a estímulo muito tenaz.
fé superior à razão (diziam eles: “Creio porque
absurdo”);
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2
Mônica tinha cultura modesta, mas possuía a certo de nada. Mas, outra vez, não se sentiu em
força daquela fé que, na religião pregada por Cristo, condições de seguir os céticos porque em seus escritos
mostra aos humildes as verdades que oculta aos doutos não encontrava o nome de Cristo.
e sábios. Entretanto, do maniqueísmo ainda guardava o
Assim, as verdades de Cristo vistas através da materialismo, que lhe parecia o único modo possível de
forte fé de sua mãe constituíram o ponto de partida da entender a realidade, e o dualismo, que lhe parecia
evolução de Agostinho, embora por diversos anos ele explicar os fortes conflitos entre bem e mal que sentia
não aceitasse a religião cristã católica e continuasse a em seu espirito.
procurar sua identidade em outras partes. Um encontro decisivo para Agostinho foi com
O segundo encontro fundamental foi com a o bispo Ambrósio, com quem aprendeu o modo
obra Ortênsio, de Cicero, que converteu Agostinho à correto de abordar a Bíblia.
filosofia quando estudava em Cartago. Nesse escrito, O contato com os neoplatônicos revelou-lhe a
Cicero defendia um conceito de filosofia entendida e realidade do imaterial e a não realidade do mal; Plotino
modo tipicamente helenístico, como sabedoria e arte de e Porfirio, sugeriram-lhe finalmente a solução das
viver que traz a felicidade. dificuldades ontológico-metafisicas em que se
O ardor despertado pelo Ortênsio, entretanto, encontrava envolvido.
era atenuado pelo fato de que nele Agostinho não Além da concepção do incorpóreo e da
encontrava o nome de Cristo. demonstração de que o mal não é substância, mas
Agostinho voltou-se então para a Bíblia, mas simples privação, Agostinho também encontrou nos
não a entendeu. O estilo com o qual estava redigida, tão Platônicos muitos pontos comuns com as Escrituras,
diverso do estilo rico em refinamento da prosa mas, ainda outra vez, neles não encontrou um ponto
ciceroniana, e o modo antropológico com que parecia essencial, ou seja, que Cristo morreu para a remissão
falar de Deus, dificultaram sua compreensão, dos pecados dos homens.
constituindo bloqueio insuperável. Agostinho não podia encontrar em nenhum dos
Aos dezenove anos (373), Agostinho abraçou o filósofos a verdade do Cristo crucificado para a
maniqueísmo, que parecia oferecer-lhe ao mesmo remissão dos pecados dos homens porque, segundo a
tempo urna doutrina de salvação em nível racional e um doutrina cristã, Deus quis mantê-la oculta aos sábios
espaço também para Cristo. O maniqueísmo, uma para revela-la aos humildes, sendo, portanto, uma
religião herética fundada pelo persa Mani no século III, verdade que, para ser adquirida, requer uma revolução
implicava um vivo racionalismo; um marcado interior, não de razão, mas de fé. E Cristo crucificado é
materialismo; um dualismo radical na concepção do precisamente o caminho para operar essa revolução
bem e do mal, entendidos não apenas como princípios interior. É sobretudo com Paulo que Agostinho
morais, mas também como princípios ontológicos e aprende isso.
cósmicos.
Em seu dualismo extremo, os maniqueístas Filosofar na fé
chegavam até mesmo a não atribuir o pecado ao livre-
arbítrio do homem, mas sim ao princípio universal do Plotino mudou o modo de pensar de
mal que atua também em nós. Agostinho, oferecendo-lhe as novas categorias que
Mani era oriental e, como tal, abria amplo iriam romper os esquemas do seu materialismo e de sua
espaço para a fantasia e a imaginação. Assim, sua concepção maniqueísta da realidade substancial do mal.
doutrina revela-se mais próxima das teosofias do Então, todo o universo e o homem apareceram-
Oriente do que da filosofia dos gregos. lhe sob nova luz. Mas a conversão e a fé em Cristo e em
O “racionalismo” dessa religião, considerada sua Igreja mudaram também o modo de viver de
mais tarde herética por Agostinho, estava na eliminação Agostinho, abrindo-lhe novos horizontes para seu
da necessidade da fé, muito mais do que na explicação próprio pensar.
de toda a realidade pela pura razão. A fé tornou-se substância de vida e pensamento
Agostinho, consequentemente, logo foi colhido e, assim, tornou-se não só o horizonte de sua vida, mas
por muitas dúvidas. Um encontro com o bispo também de seu pensamento. E, estimulado e
maniqueu, Fausto, convenceu-o da insustentabilidade comprovado pela fé, seu pensamento adquiriu nova
da doutrina maniqueísta. Ele, que era considerado estatura e nova essência.
como a maior autoridade da seita naquele momento, Nascia o filosofar-na-fé, nascia a “filosofia
não conseguiu resolver nenhuma das dúvidas de cristã”, amplamente preparada pelos Padres gregos,
Agostinho, inclusive admitindo-o sinceramente. mas que só iria chegar ao perfeito amadurecimento com
Agostinho se afastava inteiramente do Agostinho.
maniqueísmo, sendo tentado a abraçar a filosofia da A conversão, com a consequente conquista da
Academia cética, segundo a qual o homem deve fé, foi, com efeito, o eixo em torno do qual passou a
duvidar de tudo, porque não pode ter conhecimento
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3
girar todo o pensamento de Agostinho, e, portanto, Na verdade, Agostinho vale-se ainda também
constitui o caminho de acesso para a sua compreensão. de formulas gregas para definir o homem,
Será que se trata de urna forma de fideísmo? particularmente a formula de gênese socrática que se
Não, Agostinho está bem distante do fideísmo, que não tornou famosa com o Alcibíades de Platão, segundo a
deixa de ser urna forma de irracionalismo. A fé não qual o homem "É uma alma que se serve de um corpo".
substitui nem elimina a inteligência; pelo contrário, a fé Nele, porém, tanto o conceito de alma como o
estimula e promove a inteligência. de corpo assumem novo significado em virtude do
A fé é um modo de pensar assentindo; por isso, conceito de criação (de que falaremos adiante), do
sem pensamento não haveria fé. E analogamente, por dogma da "ressurreição e, sobretudo, do dogma da
seu turno, a inteligência não elimina a fé, mas a fortalece encarnação de Cristo. O corpo torna-se algo bem mais
e, de certo modo, a clarifica. Em suma pode-se afirmar importante do que o "vão simulacro" de que os
que fé e razão são complementares. platônicos falavam.
Desse modo, nasce aquela posição que, mais Mas a novidade está sobretudo no fato de que,
tarde, seria resumida nas formulas “credo ut intelligam” e para Agostinho, o homem interior é imagem de Deus e da
“intelligo ut credam”, formulas que, de resto, o próprio Trindade. E a problemática da Trindade, centrada
Agostinho antecipou na substância e em parte na precisamente nas três pessoas e em sua unidade
forma. A marca mais autentica do seu filosofar está na substancial e, portanto, na temática especifica da
concepção de que o homem olha para o que é pessoa, mudaria radicalmente a concepção do eu, que,
verdadeiro tanto com a fé como com a inteligência. à medida que reflete as três pessoas da Trindade e sua
unidade, torna-se ele próprio pessoa. E Agostinho
O homem concreto e sua interioridade encontra no homem toda uma série de tríades, que
refletem de vários modos a Trindade, tendo no vértice
Para Agostinho, o verdadeiro grande problema a tríade ser, conhecer e amar, que espelha as três pessoas
não é o do cosmo, mas o do homem. O verdadeiro mistério da Trindade e sua estrutura uno-trina.
não é o mundo, mas nós para nós mesmos. Assim, Deus se espelha na alma. E “alma” e
Mas Agostinho não propõe o problema do “Deus” são os pilares da "filosofia cristã" agostiniana.
homem em abstrato, ou seja, o problema da essência do Não é indagando o mundo, mas escavando a alma que
homem em geral: o que ele propõe é o problema mais se encontra Deus.
concreto do eu, do homem como individuo irrepetível,
como pessoa, como individuo, poder-se-ia dizer com A doutrina da iluminação divina
terminologia posterior.
Nesse sentido, o problema de seu eu e o de sua Para se compreender a doutrina agostiniana da
pessoa tornam-se significativos. Como pessoa, Agostinho iluminação divina, é importante perceber que, para
torna-se protagonista de sua filosofia; ao mesmo tempo Agostinho, existem dois tipos inteiramente diferentes
observante e observado. Uma comparação com o de conhecimento.
filósofo grego a ele mais próximo pode nos mostrar a O primeiro, limitado aos sentidos e referente
grande novidade dessa atitude. aos objetos exteriores ou suas imagens, não é
Embora pregue a necessidade de nos retirarmos necessário, nem imutável e nem eterno; o segundo,
das coisas exteriores para o interior de nós mesmos, na encontrado na matemática e nos princípios
alma, para encontrar a verdade, Plotino fala da alma e fundamentais da sabedoria, constitui a verdade.
da interioridade do homem em abstrato, ou melhor, em Essa distinção permite que se indague: Será o
geral, despojando rigorosamente a alma de sua próprio homem a fonte dos conhecimentos perfeitos? Contra a
individualidade e ignorando a questão concreta da resposta afirmativa depõe o fato de ser o homem tão
personalidade. Plotino não apenas nunca falou de si mutável quanto as coisas dadas à percepção. Assim, só
mesmo em sua própria obra, mas também não queria haveria uma resposta possível: a aceitação de que
falar nem aos amigos. alguma coisa transcende a alma individual e dá
Agostinho, ao contrário, fala continuamente de fundamento à verdade. Seria Deus.
si mesmo. E sua obra-prima são exatamente as Para explicar como é possível ao homem
Confissões, nas quais não só fala amplamente dos seus receber de Deus o conhecimento das verdades eternas,
pais, de sua terra, das pessoas que lhe eram caras, mas Agostinho elabora a doutrina da iluminação divina.
também põe a nu seu espírito em todos os seus mais Trata-se de uma metáfora recebida de Platão, que na
recônditos cantos e em todas as tensões intimas de sua célebre alegoria da caverna mostra ser o conhecimento,
“vontade”. em última instância, o resultado do bem, considerado
Estamos aqui bem distantes do intelectualismo como um sol que ilumina o mundo inteligível.
grego, que só havia deixado um escasso espaço para a Agostinho louva os platônicos por ensinarem
“vontade”. que o princípio espiritual de todas as coisas é, ao mesmo
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4
tempo, causa de sua própria existência, luz de seu aquilo que ele já sabia, sem ter consciência de que sabia,
conhecimento e regra de sua vida. e que o leva à redenção divina.
Por conseguinte, todas as proposições que se Nesse tipo de conhecimento a própria luz
percebem como verdadeiras seriam tais porque divina não é vista, mas serve apenas para iluminar as
previamente iluminadas a extrair da alma sua própria ideias. Um outro tipo seria aquele no qual o homem
inteligibilidade e nada se poderia conhecer contempla a luz divina, olhando o próprio sol: a
intelectualmente que já não se possuísse antes, de modo experiência mística.
infuso.
Ao afirmar esse saber prévio, Agostinho Deus
aproxima-se da doutrina platônica segundo a qual todo
conhecimento é reminiscência. Não obstante as Alcançando a Verdade, o homem também
evidentes ligações entre os dois pensadores, Agostinho alcança Deus, ou estará Ele ainda acima da Verdade?
afasta-se, porém, de Platão ao entender a percepção do Agostinho entende "Verdade" em muitos significados.
inteligível na alma não como descoberta de um Quando a entende em seu significado mais forte, ou
conteúdo passado, mas como irradiação divina no seja, como Verdade suprema, ela coincide com Deus.
presente. Por conseguinte, a demonstração da
Assim, nenhum conhecimento verdadeiro pode existência da certeza e da Verdade coincide com a
ser introduzido na mente de um indivíduo vindo de demonstração da existência de Deus.
fora, por meio do ensino, da reflexão ou da observação Como os estudiosos já observaram há tempo,
do mundo. todas as provas que Agostinho fornece da existência de
O saber sobre as formas dos seres e objetos, Deus reduzem-se, em última análise, ao esquema das
sobre a matéria em geral, os conceitos geométricos e argumentações acima expostas. Primeiro passa-se da
matemáticos, as virtudes, as emoções encontram-se na exterioridade das coisas à interioridade do espirito
alma, porque ela se origina da substância divina. Os humano, depois da Verdade que está presente no
conhecimentos de que temos consciência são os que já espirito ao Princípio de toda verdade, que é
encontramos em nossa alma, como que ativados em precisamente Deus.
nossa memória. Agostinho não demonstra Deus como, por
A alma não passaria por uma existência anterior, exemplo, o demonstra Aristóteles, ou seja, com
na qual contempla as ideias, ao contrário, existiria uma intenções puramente intelectuais e a fim de explicar o
luz eterna da razão que procede de Deus e atuaria a todo cosmo, mas sim para "fruir a Deus", e, portanto, para
momento, possibilitando o conhecimento das verdades amá-lo, para preencher o vazio do seu espírito, para pôr
eternas. Assim como os objetos exteriores só podem ser fim à inquietude do seu coração, para ser feliz.
vistos quando iluminados pela luz do Sol, também as Ser, Verdade, Bem (e Amor) são os atributos
verdades da sabedoria precisariam ser iluminadas pela essenciais de Deus para Agostinho. Ele se exprime com
luz divina para se tornarem inteligíveis. clareza, unindo a ontologia grega com a revelação
A iluminação divina, contudo, não dispensa o bíblica. Os gregos tinham dito que Deus é o ser
homem de ter um intelecto próprio; ao contrário, supõe supremo (a substância primeira), na Bíblia Deus diz de
sua existência. Deus não substitui o intelecto quando o si mesmo: "Eu sou o que sou". Justamente enquanto ser
homem pensa o verdadeiro; a iluminação teria apenas a supremo, Deus, criando as coisas, participa com eles o
função de tornar o intelecto capaz de pensar ser, mas não o Ser sumo como ele é, e sim um ser com
corretamente em virtude de uma ordem natural diferentes graus em escala hierárquica.
estabelecida por Deus. Apesar de todas estas noções, permanece claro
Essa ordem é a que existe entre as coisas do para Agostinho que é impossível para o homem uma
mundo e as realidades inteligíveis correspondentes, definição da natureza de Deus e que, em certo sentido,
denominadas por Agostinho com diferentes palavras: é mais fácil saber aquilo que ele não é do que aquilo que
ideia, forma, espécie, razão ou regra. ele é. No entanto, Deus é todo o positivo que se
A teoria agostiniana estabelece, assim, que todo encontra na criação, sem os limites que nela existem.
conhecimento verdadeiro é o resultado de um processo
de iluminação divina, que possibilita ao homem A Trindade
contemplar as ideias, arquétipos eternos de toda a
realidade. Todavia, este Deus, que é "Aquele que é", para
Aquilo que ignoramos também está na alma, e Agostinho é essencialmente Trindade. A esse tema ele
simplesmente precisa ser desperto pela memória por dedica um de seus livros mais profundos, que, sob
meio da pesquisa em nosso mundo interior. Santo vários aspectos, se impôs como sua obra-prima
Agostinho afirmava ainda que as maiores verdades são doutrinaria.
atingidas quando a alma é conduzida por Jesus Cristo, Devemos salientar três núcleos particularmente
o mestre interior que faz o homem enxergar claramente importantes dessa obra.
90
5
a) O conceito básico sobre o qual ele alicerça como em um espelho, de modo admirável, realizando
sua interpretação é a identidade substancial das três Pessoas. perfeitamente o projeto do filosofar agostiniano,
Os gregos, precisa Agostinho, para exprimir conhecer Deus e a própria alma, Deus através da alma,
conceitualmente a Trindade falaram de “uma essência, a alma através de Deus.
e três substâncias”; os latinos, porém, falam de "uma
essência ou substância, e três Pessoas", porque, para os A criação
latinos, essência e substância são considerados sinônimos.
Todavia, mesmo com essa diferença O problema metafisico que mais preocupara os
terminológica, uns e outros pretenderam dizer a mesma antigos era o da derivação do múltiplo a partir do Uno.
coisa. Isto implica que Pai, Filho e Espirito Santo Por que e como os múltiplos derivaram do Uno (ou de
tenham justamente uma substancial igualdade e não algumas realidades originarias)? Por que e como, do Ser
sejam hierarquicamente distinguíveis. Deus, portanto, que não pode não-ser, nasceu também o devir, que
em sentido absoluto, é tanto o Pai, como o Filho e como o implica a passagem de ser a não-ser e vice-versa?
Espirito Santo, eles são inseparáveis no Ser e operam Ao tentar resolver esses problemas, nenhum
inseparavelmente. dos antigos filósofos chegou ao conceito de criação,
Portanto, não havendo diferença ontológica e que, como sabemos, é de origem bíblica.
hierárquica nem diferença de funções, a igualdade Os Platônicos foram os filósofos que chegaram
absoluta das três Pessoas implica que a Trindade seja “o às posições menos distantes do criacionismo.
único verdadeiro Deus”. Entretanto, mesmo assim, ainda permaneceu
b) Agostinho realiza a distinção entre as Pessoas significativa a distância entre suas posições e o
com base no conceito de relação. Isto significa que, para criacionismo bíblico.
Agostinho, cada uma das três Pessoas é distinta das
outras, mas não ontologicamente diversa. O Pai tem o
Filho mas não é o Filho, e o Filho tem o Pai, mas não é
o Pai; e o mesmo se diga do Espirito Santo.
Tais atributos, portanto, não pertencem à
dimensão do ser e da substância, e sim, justamente, da
relação. Mas nem por isso se reduzem ao nível de meros
acidentes. Os acidentes são atributos mutáveis, enquanto
o tipo de relação que distingue as três Pessoas da
Trindade não é mutável e se coloca na dimensão da
eternidade.
c) Um terceiro ponto fundamental da doutrina No Timeu, Platão havia introduzido a figura do
trinitária agostiniana consiste nas analogias triádicas que demiurgo. Entretanto, embora sendo racional, livre e
ele descobre no criado, as quais, de simples vestigios da motivada pela causa do bem, a atividade do demiurgo é
Trindade nas coisas e no homem exterior, tornam-se, gravemente limitada, tanto acima como abaixo dele.
na alma humana, verdadeira imagem da própria Acima do demiurgo está o mundo das Ideias, que o
Trindade, como já vimos. transcende e no qual ele se inspira como em um
Entre as muitas analogias, recordemos duas. modelo; abaixo, ao contrário, está a chora ou matéria
Todas as coisas criadas apresentam unidade, forma e informe, também eterna como as Ideias e como o
ordem, tanto as coisas corpóreas como as almas próprio demiurgo.
incorpóreas. Ora, assim como das obras remontamos A obra do demiurgo, portanto, é obra de
ao Criador, que é Deus uno e trino, podemos considerar fabricação e não de criação, porque pressupõe como
essas três características como vestígios de si deixados preexistente e independente aquilo de que se vale para
pela Trindade em sua obra. construir o mundo.
Analogamente, em um nível mais alto, a mente Plotino, no entanto, deduziu as Ideias e a
humana é imagem da Trindade, porque também é una- própria matéria do Uno, muito engenhosamente, do
e-trina, no sentido que é mente e, como tal, conhece-se a modo como vimos. Todavia, seu impulso o levou aos
si mesma e ama-se a si mesma. Portanto, a "mente", o limites de um verdadeiro acosmismo e, oportunamente
seu "conhecimento" e o "amor" são três coisas e ao reformadas, suas categorias poderiam servir para
mesmo tempo não são mais que uma, e, quando são interpretar a dialética da trindade, mas não para
perfeitas, coincidem. interpretar a criação do mundo.
Na investigação das analogias trinitárias do A solução criacionista, que, para Agostinho, é
espirito humano está uma das maiores novidades de ao mesmo tempo verdade de fé e de razão, revela-se de
Agostinho em relação a esse tema. uma clareza exemplar. A criação das coisas se dá do nada
Conhecimento do homem e conhecimento de (ex nihilo), ou seja, não da substância de Deus nem de algo
Deus Uno-Trino iluminam-se mutuamente, quase que que preexistia.
91
6
Com efeito, explica Agostinho, que uma “razões seminais” e, portanto, um prolongamento da
realidade pode derivar de outra de três modos: ação criadora de Deus.
a) por geração, caso em que deriva da própria
substância do gerador como o filho deriva do pai, O tempo
constituindo algo de idêntico ao gerador;
b) por fabricação, caso em que a coisa que é “O que fazia Deus antes de criar o céu e a
fabricada deriva de algo preexistente fora do fabricante terra?”. Essa foi a pergunta que levou Agostinho a uma
(de uma matéria), como ocorre com todas as coisas que análise do tempo e o conduziu a soluções geniais, que
o homem produz; se tornaram muito famosas.
C) por criação a partir do nada absoluto, ou seja, não Antes de Deus criar o céu e a terra não havia
da própria substância nem de uma substância externa. tempo e, portanto, como já indicamos, não se pode falar
O homem sabe "gerar" (os filhos) e sabe de um "antes" anterior à criação do tempo. O tempo é
"produzir" (os artefatos), mas não sabe "criar", porque é criação de Deus e, por isso, a pergunta proposta não
um ser finito. Deus "gera" de sua própria substância o tem sentido, pois põe para Deus uma categoria que vale
Filho, que, como tal, é idêntico ao Pai, ao passo que só para a criatura, cometendo-se assim um erro
"cria" o cosmo do nada. Portanto, há diferença enorme estrutural.
entre "criação" e "geração”, porque, diferentemente da “Tempo” e “eternidade” são duas dimensões
primeira, esta última pressupõe o vir (a ser) por outorga incomensuráveis; muitos dos erros cometidos pelos
de ser por parte do criador para "aquilo que homens, quando falam de Deus, como na pergunta
absolutamente não existia". E tal ação é "dom divino" proposta acima, nascem da aplicação indevida do
gratuito, devido a livre vontade e à bondade de Deus, conceito de tempo ao eterno, que é coisa totalmente
além de sua infinita potência. diferente de tempo.
Mas o que é o tempo? O tempo implica
A doutrina das Ideias e as razões seminais passado, presente e futuro. Mas o passado não é mais e
o futuro não é ainda. E o presente, “se existisse sempre
As Ideias têm um papel essencial na criação. e não transcorresse no passado, não seria mais tempo,
Mas, de paradigmas absolutos fora e acima da mente do mas eternidade”. Na realidade, o ser do presente é um
demiurgo, como eram em Platão, elas se transformam, contínuo deixar de ser, um tender continuamente ao
como já dissemos, em “pensamentos de Deus” ou não-ser.
também como “Verbo de Deus”. Agostinho destaca que, na realidade, o tempo
Agostinho declara a teoria das Ideias como um existe no espirito do homem, porque é no espirito do homem
pilar absolutamente fundamental e irrenunciável, que se mantêm presentes tanto o passado como o
porque está intrinsecamente vinculada à doutrina da presente e o futuro. Mais propriamente, deveríamos
criação. dizer que “os tempos são três: o presente do passado, o
Deus, com efeito, criou o mundo conforme a presente do presente e o presente do futuro. E, de
razão e, portanto, criou cada coisa conforme um qualquer forma, é em nosso espírito que se encontram
modelo que ele próprio produziu como seu esses três tempos, que não são vistos em outra parte: o
pensamento, e as Ideias são justamente estes presente do passado, vale dizer, a memória; o presente do
pensamentos-modelo de Deus, e como tais são a presente, isto é, a intuição; o presente do futuro, ou seja,
verdadeira realidade, ou seja, eternas e imutáveis, e por a espera”. Assim, embora tendo urna ligação com o
participação delas existem todas as coisas. movimento, o tempo não está no movimento e nas
Mas Agostinho utiliza, para explicar a criação, coisas em movimento, mas sim na alma. Mais
além da teoria das Ideias, também a teoria das “razões precisamente, conforme se revela estruturalmente
seminais”, criada pelos Estóicos e posteriormente ligado à memória, à intuição e à espera, o tempo pertence à
retomada e reelaborada em bases metafisicas por alma, sendo predominantemente “uma extensão da
Plotino. A criação do mundo ocorre de modo alma”, precisamente urna extensão entre “memoria”,
simultâneo. Mas Deus não cria a totalidade das coisas “intuição” e “espera”.
possíveis como já concretizadas, ele insere no criado as
“sementes” ou “germes” de todas as coisas possíveis, as O problema do mal
quais, posteriormente, ao longo do tempo,
desenvolvem-se pouco a pouco, de vários modos e com Ao problema da criação está ligado o grande
o concurso de várias circunstâncias. problema do mal, para o qual Agostinho conseguiu
Em suma, juntamente com a matéria, Deus criou apresentar urna explicação que constituiu ponto de
virtualmente todas as possibilidades de sua concretização, referência durante séculos e ainda guarda a sua validade
infundindo nela, precisamente, as raízes seminais de cada coisa. Se tudo provém de Deus, que é Bem, de onde provém
A evolução do mundo ao longo do tempo outra coisa o mal?
não é do que a concretização e a realização de tais
92
7
Depois de ter sido vítima da explicação dualista desconhecido para os gregos, permitiram-lhe entender
maniqueísta, como vimos, Agostinho encontrou em a mensagem bíblica precisamente em sentido
Plotino a chave para resolver a questão: o mal não é um "voluntarista", fora dos esquemas intelectualistas do
ser, mas deficiência e privação de ser. mundo grego. De resto, Agostinho foi o primeiro
Mas Agostinho aprofunda ainda mais a questão. escritor a nos apresentar os conflitos da vontade em termos
O problema do mal pode ser examinado em três planos: precisos.
a) Do ponto de vista metafísico-ontológico, A liberdade é própria da vontade e não da razão,
não existe mal no cosmo, mas apenas graus inferiores de no sentido em que a entendiam os gregos. E assim se
ser em relação a Deus, que dependem da finitude da coisa resolve o antigo paradoxo socrático de que é impossível
criada e dos diferentes níveis dessa finitude. conhecer o bem e fazer o mal.
Mas, mesmo aquilo que, numa consideração A razão pode conhecer o bem e a vontade pode
superficial, parece um "defeito" (e, portanto, poderia rejeita-lo, porque, embora pertencendo ao espirito
parecer um mal), na realidade, na ótica do universo visto humano, a vontade é uma faculdade diferente da razão, tendo
em seu conjunto, desaparece. De fato, os graus urna autonomia própria em relação à razão, embora seja
inferiores do ser e as coisas finitas, mesmo as mais a ela ligada. A razão conhece e a vontade escolhe,
ínfimas, revelam-se momentos articulados de um podendo escolher até o irracional, ou seja, aquilo que
grande conjunto harmônico. Quando, por exemplo, não está em conformidade com a reta razão. E desse
julgamos que a existência de certos animais nocivos seja modo se explica a possibilidade da aversão a Deus e a
um "mal", na realidade nós estamos medindo com o escolha de um ser inferior ao invés do ser supremo.
metro da nossa utilidade e da nossa vantagem O pecado original foi um pecado de soberba,
contingente e, portanto, numa ótica errada. sendo o primeiro desvio da vontade. O arbítrio da
Medida com o metro do todo, cada coisa, vontade é verdadeiramente livre, em sentido pleno, quando não
mesmo aquela aparentemente mais insignificante, tem faz o mal. Esta é, precisamente, a sua condição natural:
seu sentido e sua razão de ser e, portanto, constitui algo assim ele foi dado ao homem originalmente. Mas,
positivo. depois do pecado original, a verdade se corrompeu e se
b) Já o mal moral é o pecado. E o pecado enfraqueceu, tornando-se necessitada da graça divina.
depende da má vontade. E a má vontade depende de que? Consequentemente, o homem não pode ser
A resposta de Agostinho é bastante engenhosa. “autárquico” em sua vida moral, ele necessita de tal
A má vontade não tem uma "causa eficiente", ajuda divina. Portanto, quando o homem procura viver
mas, muito mais, uma "causa deficiente". Por sua retamente valendo-se unicamente de suas próprias forças, sem
natureza, a vontade deveria tender ao Bem supremo. ajuda da graça divina libertadora, então ele é vencido
Mas, como existem muitos bens criados e finitos, a pelo pecado; liberta-se do mal com o poder de crer na
vontade pode tender a eles e, subvertendo a ordem graça que o salva, e com a livre escolha dessa graça.
hierárquica, pode preferir a criatura a Deus, preferindo
os bens inferiores aos bens superiores. Sendo assim, o As duas cidades
mal deriva do fato de que não há um único Bem, mas muitos
bens, consistindo, precisamente, em urna escolha Contemporâneo do declínio do Império
incorreta entre esses bens. Romano, Agostinho respondeu à acusação de que fora
O mal moral, portanto, é urna aversão a Deus e o cristianismo o culpado pela queda, e pôs a culpa no
uma escolha de um ser inferior ao invés do ser supremo. paganismo. Sua resposta veio na obra Cidade de Deus ,
O fato de ter recebido de Deus uma vontade livre é um onde, segundo ele, há a cidade espiritual de Deus e a
grande bem. O mal é o mau uso desse grande bem, que cidade material dos homens. Elas não coexistem
se dá do modo que vimos. Por isso, Agostinho pode separadamente, mas no plano de nossa existência a
dizer: “O bem que está em mim é obra tua, é teu dom; depender de nossa vontade de viver uma vida de
o mal em mim é meu pecado”. pecado na cidade terrena dos homens, ou se voltar para
C) O mal físico, como as doenças, os deus e viver em sua graça como um de seus servos.
sofrimentos, os tormentos do espirito e a morte, tem O mal é amor a si mesmo (soberba), o bem é
significado bem preciso para quem filosofa na fé: é a amor a Deus. Isso vale tanto para o homem como
consequência do pecado original, ou seja, é uma consequência individuo quanto para o homem que vive em
do mal moral. Na história da salvação, porém, também comunidade com os outros.
ele tem um significado positivo. O conjunto dos homens que vivem para Deus
constitui a Cidade celeste. Escreve Agostinho:
A vontade, liberdade e a graça “Dois amores diversos geram as duas cidades: o
amor a si mesmo, levado até o desprezo por Deus,
A atormentada vida interior de santo Agostinho gerou a Cidade terrena. O amor a Deus, levado até o
e sua formação espiritual, realizada inteiramente na desprezo por si, gerou a Cidade celeste. Aquela gloria-
cultura latina, que dava à voluntas um relevo
93
8
se de si mesma, esta de Deus. Aquela procura a gloria O saber e a iluminação divina
dos homens, esta tem por máxima glória a Deus”.
E ainda: “A Cidade terrena é a cidade daqueles Nosso saber consta de coisas que vemos e
que vivem segundo o homem; a divina é a daqueles que coisas em que acreditamos; das primeiras, somos
vivem segundo Deus”. testemunhas diretas, das segundas, temos o testemunho
As duas Cidades têm um correspondente no idôneo de outros que nos fazem crer porque, por meio
céu, mais precisamente nas fileiras dos anjos rebeldes e de palavras e escritos, nos oferecem sinais dessas coisas
dos que permaneceram fiéis a Deus. Na terra, essa que não vemos. Podemos com razão dizer que há saber
correspondência revelou-se em Caim e Abel; as duas quando cremos em algo com certeza e dizemos que
personagens bíblicas assumem assim o valor de vemos com a mente essas coisas nas quais cremos,
símbolos das duas Cidades. ainda que não estejam presentes aos nossos órgãos dos
Nesta terra, o cidadão da Cidade terrena parece sentidos [...] Realmente, a fé se vê com a mente [...] Por
ser o dominador, enquanto o cidadão da Cidade celeste isso o apóstolo Pedro diz: “Aquele em quem agora crês,
é peregrino. Mas o primeiro está destinado a eterna não o vês”; e disse o Senhor: “Bem-aventurados os que
danação, enquanto o segundo está destinado eterna não viram e creram”. [...] Terás, assim, reconhecido a
salvação. diferença entre ver com os olhos do corpo e com os
Ou seja, todos têm uma dimensão terrena que olhos da mente [...] Crer se realiza com a mente e se vê
se refere à sua história natural, à moral, às necessidades com a mente e as coisas em que com essa fé cremos
materiais e que diz respeito a tudo que é perecível e distam do olhar de nossos olhos. Por isso vejo a minha
temporal. Outra dimensão é a celeste, que corresponde fé, mas não posso ver a tua, assim como tu vês a tua fé
à comunidade dos cristãos, inspirada no amor a Deus e e não podes ver a minha, pois ninguém sabe o que se
que vive da fé. passa no espírito que está em cada homem até que
A história se concluirá com o Dia do Senhor, venha o Senhor e ilumine os segredos das trevas e
que será como que o oitavo dia consagrado com a manifeste os pensamentos do coração para que cada um
ressurreição de Cristo e no qual se realizará, em sentido possa ver não somente os seus, mas também os alheios.
global, o repouso eterno. SANTO AGOSTINHO. Carta a Paulina. In: FERNÁNDEZ,
Assim, a história adquire um sentido totalmente Clemente (Org.). Los filósofos medievales. Selección de textos.
Madrid: Editorial Católica, 1979.p. 493-494. Texto traduzido.
desconhecido para os gregos, pois ela tem um princípio,
com a criação, e um termo, com o fim do mundo, ou
seja, com o juízo final e com a ressurreição. E tem três
QUESTÕES
momentos essenciais, que marcam o seu decurso: o
pecado original com suas consequências, a espera da
1. (UEM 2008) A Patrística foi a Filosofia Cristã dos
vinda do Salvador e a encarnação e paixão do Filho de
primeiros séculos de nossa era. Consistia na elaboração
Deus, com a constituição de sua Igreja.
doutrinal das crenças religiosas do cristianismo e na sua
Para Santo Agostinho, a relação entre as duas
defesa contra os ataques dos pagãos e contra as
dimensões é de ligação e não de oposição, mas a
heresias. Dado o encontro entre a nova religião e o
repercussão do seu pensamento, à revelia do autor,
pensamento filosófico greco-romano, o grande tema da
desemboca na doutrina chamada agostinismo político,
Filosofia Patrística foi o da possibilidade ou
que marca toda a Idade Média e significa o confronto
impossibilidade de conciliar fé e razão. Santo
entre o poder do Estado e o da Igreja, considerando a
Agostinho, expoente dessa filosofia, sobre a relação fé
superioridade do poder espiritual sobre o temporal.
e razão, defendia a tese que se pode resumir nesta frase:
Percebam que a boa vida não é mais aquela
“Credo ut intelligam” (Creio para entender).
voltada para o desenvolvimento da racionalidade
A esse respeito, assinale o que for correto.
humana dentro de uma comunidade política, cujo Bem
01) Santo Agostinho retoma a célebre teoria platônica
era encontrado por meio da razão e ensinado por meio
das Idéias à luz do cristianismo e formula a teoria da
de um processo educacional virtuoso, como teorizaram
iluminação segundo a qual o homem recebe de Deus o
os gregos.
conhecimento das verdades eternas: à semelhança do
Agora, o conhecimento do bem não dependia
sol, Deus ilumina a razão e torna possível o pensar
mais de uma instrução racional, mas apenas da vontade
correto.
individual de cada um, por meio do livre-arbítrio, de
02) De acordo com Santo Agostinho, a razão é superior
viver uma vida voltada para Deus. E a compreensão de
e precede a fé; pois, se o homem, ser racional, for
como vivê-la é obra da graça divina que ilumina o
incapaz de entender os ensinamentos religiosos, não
coração de quem estiver aberto para isso.
poderá acreditar neles.
Mas quem dizia o que era ter uma vida voltada
04) Segundo Santo Agostinho, a fé não conflita com a
para Deus? E ainda, quais pessoas viviam dessa
razão, esta última seria auxiliar da fé e estaria a ela
maneira? A Igreja. Aí meu amigo, deu no que deu.
subordinada.
94
9
08) Para Santo Agostinho, fé e razão são inconciliáveis, 08) Um dos principais temas da Filosofia patrística é o
pois os mistérios da fé são insondáveis e manifestam-se da possibilidade ou impossibilidade de conciliar razão e
como uma loucura para a razão humana. fé. Santo Agostinho considerava que a razão e a fé são
16) A fé, para Santo Agostinho, não oprime a razão, conciliáveis, mas subordinava a razão à fé.
mas, ao contrário, abre-lhe os olhos que a falta de fé 16) A Filosofia medieval conserva e discute problemas
mantinha fechados. A partir dos princípios da fé, a da patrística e acrescenta outros, como o problema dos
razão, por suas próprias forças, deduzirá conseqüências universais. A partir do séc. XII, a Filosofia medieval
e tentará resolver os problemas que Deus deixou para passa a ser chamada de escolástica.
nossas livres discussões.
4. (UFU 2014) Segundo Chauí (2000),
2. (UEM 2009) A patrística surge no séc. II d.c. e
estende-se por todo o período medieval conhecido [...] na Idade Média o pensamento estava subordinado
como alta Idade Média. É considerada a filosofia dos ao princípio da autoridade, isto é, uma ideia é
Padres da Igreja. Entre seus objetivos encontramos a considerada verdadeira se for baseada nos argumentos
conversão dos pagãos, o combate às heresias e a de uma autoridade reconhecida [...]
consolidação da doutrina cristã. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000, p. 45.

Sobre a patrística, assinale o que for correto. Sobre a filosofia da Idade Média é INCORRETO
01) A patrística deixa de ser predominante como afirmar que
doutrina do cristianismo quando, a partir do séc. IX, A) A filosofia se tornou serva do cristianismo e, com
surge uma nova corrente filosófica denominada isso, rejeitou a filosofia pagã, Platão e Aristóteles.
escolástica, que atinge o apogeu no séc XIII. B) O tema principal de que se ocupou a filosofia na
02) Fundador da patrística, o apóstolo São Paulo Idade Média foi o das relações entre a razão e a fé.
escreveu o livro Confissões, razão pela qual é considerado C) Para essa filosofia, a fé na revelação proporciona o
o primeiro filósofo cristão. conhecimento mais elevado, superior àquele da razão.
04) Vários pensadores da patrística, entre eles Santo D) A doutrina da iluminação divina explica como a
Agostinho, tomam ideias da filosofia clássica grega, filosofia pagã provém das mesmas fontes das verdades
particularmente de Platão, que são adaptadas às cristãs.
necessidades das verdades expressas pela teologia cristã.
08) A aliança que a patrística estabelece entre fé e razão 5. (UFU 2012) Na medida em que o Cristianismo se
caracteriza-se por um predomínio da fé sobre a razão; consolidava, a partir do século II, vários pensadores,
em Santo Agostinho, a razão é auxiliar da fé e a ela convertidos à nova fé e, aproveitando-se de elementos
subordinada. da filosofia greco-romana que eles conheciam bem,
16) A leitura dos filósofos árabes, entre eles Averróis, começaram a elaborar textos sobre a fé e a revelação
ajudou Santo Agostinho a compreender os princípios cristãs, tentando uma síntese com elementos da
da filosofia de Aristóteles, sem a qual Santo Agostinho filosofia grega ou utilizando-se de técnicas e conceitos
não poderia construir seu próprio sistema filosófico. da filosofia grega para melhor expor as verdades
reveladas do Cristianismo. Esses pensadores ficaram
3. (UEM 2010) A Filosofia patrística, representada conhecidos como os Padres da Igreja, dos quais o mais
principalmente por Santo Agostinho, inicia no séc. I importante a escrever na língua latina foi santo
d.C. e termina no séc. VIII d.C., quando teve início a Agostinho.
COTRIM, Gilberto. Fundamentos de Filosofia: Ser, Saber e
Filosofia medieval. Fazer. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 128. (Adaptado)
Com base na afirmação acima, assinale o que for Esse primeiro período da filosofia medieval, que durou
correto. do século II ao século X, ficou conhecido como
01) Um dos motivos pelo qual Santo Agostinho escreve A) Escolástica.
A cidade de Deus foi para eximir o cristianismo, depois B) Epicurismo
da tomada de Roma por Alarico, das acusações de ser a C) Neoplatonismo.
causa da decadência do Império Romano. D) Antiguidade tardia.
02) A patrística introduziu, no pensamento filosófico, E) Patrística.
ideias desconhecidas pelos filósofos greco-romanos,
como a ideia de criação do mundo a partir do nada, a 6. (UFU 2010) A filosofia de Agostinho (354 – 430) é
escatologia do fim dos tempos e a ressurreição dos estreitamente devedora do platonismo cristão milanês:
mortos. foi nas traduções de Mário Vitorino que leu os textos
04) A patrística é um esforço para conciliar o de Plotino e de Porfírio, cujo espiritualismo devia
cristianismo com o pensamento filosófico dos gregos e aproximá-lo do cristianismo. Ouvindo sermões de
romanos, pois acreditava que somente com tal Ambrósio, influenciados por Plotino, que Agostinho
conciliação seria possível a conversão dos pagãos. venceu suas últimas resistências (de tornar-se cristão).
95
10
PEPIN, Jean. Santo Agostinho e a patrística ocidental. In: 9. A teoria da iluminação divina, contribuição original
CHÂTELET, François (org.) A Filosofia medieval. Rio de de Agostinho à filosofia da cristandade, foi influenciada
Janeiro Zahar Editores: 1983, p. 77.
pela filosofia de Platão, porém, diferencia-se dela em
Apesar de ter sido influenciado pela filosofia de Platão,
seu aspecto central.
por meio dos escritos de Plotino, o pensamento de
Assinale a alternativa abaixo que explicita esta diferença.
Agostinho apresenta muitas diferenças se comparado
A) A filosofa agostiniana compartilha com a filosofia
ao pensamento de Platão.
platônica do dualismo, tal como este foi definido por
Assinale a alternativa que apresenta, corretamente, uma
Agostinho na Cidade de Deus. Assim, a luz da teoria da
dessas diferenças.
iluminação está situada no plano suprasensivel e só é
A) Para Agostinho, é possível ao ser humano obter o
alcançada na transcendência da existência terrena para
conhecimento verdadeiro, enquanto, para Platão, a
a vida eterna.
verdade a respeito do mundo é inacessível ao ser
B) A teoria da Iluminação, tal como sugere o nome, está
humano.
fundamentada na luz de Deus, luz interior dada ao
B) Para Platão, a verdadeira realidade encontra-se no
homem interior na busca da verdade das coisas que não
mundo das Ideias, enquanto para Agostinho não existe
são conhecidas pelos sentidos; esta luz é Cristo, que
nenhuma realidade além do mundo natural em que
ensina e habita no homem interior.
vivemos.
C) Agostinho foi contemporâneo da Terceira
C) Para Agostinho, a alma é imortal, enquanto para
Academia, recebendo os ensinamentos de Arcesilau e
Platão a alma não é imortal, já que é apenas a forma do
Carnéades, o que resultou na posição dogmática do
corpo.
filósofo cristão quanto à impossibilidade do
D) Para Platão, o conhecimento é, na verdade,
conhecimento da verdade, sendo o conhecimento
reminiscência, a alma reconhece as Ideias que ela
humano apenas verossímil.
contemplou antes de nascer; Agostinho diz que o
D) A alma é a morada da verdade, todo conhecimento
conhecimento é resultado da Iluminação divina, a
nela repousa. Assim, a posição de Agostinho afasta-se
centelha de Deus que existe em cada um.
da filosofia platônica, ao admitir que a alma possui uma
existência anterior, na qual ela contemplou as ideias, de
7. (UFU 2011) Segundo o texto abaixo, de Agostinho
modo que o conhecimento de Deus é anterior à
de Hipona (354-430 d. C.), Deus cria todas as coisas a
existência.
partir de modelos imutáveis e eternos, que são as ideias
divinas. Essas ideias ou razões seminais, como também
10. Sobre a doutrina da iluminação divina de Santo
são chamadas, não existem em um mundo à parte,
Agostinho, considere o conteúdo das assertivas abaixo:
independentes de Deus, mas residem na própria mente
I) A iluminação divina dispensa o homem de ter
do Criador, [...] a mesma sabedoria divina, por quem
intelecto próprio.
foram criadas todas as coisas, conhecia aquelas
II) A iluminação divina capacita o intelecto humano
primeiras, divinas, imutáveis e eternas razões de todas
para entender que há determinada ordem entre o
as coisas, antes de serem criadas [...]. Sobre o Gênese,
mundo criado e as realidades inteligíveis.
V
III) Agostinho nomeia as realidades inteligíveis de
Considerando as informações acima, é correto afirmar
forma pouco precisa como, por exemplo, idéia, forma,
que se pode perceber:
espécie, regra ou razão e afirma, platonicamente, que
A) que Agostinho modifica certas ideias do cristianismo
essas realidades já foram contempladas pela alma.
a fim de que este seja concordante com a filosofia de
IV) A iluminação divina exige que o homem tenha
Platão, que ele considerava a verdadeira.
intelecto próprio, a fim de pensar corretamente os
B) uma crítica radical à filosofia platônica, pois esta é
conteúdos da fé postos pela revelação.
contraditória com a fé cristã.
Assinale a alternativa que contém somente as
C) a influência da filosofia platônica sobre Agostinho,
afirmações corretas:
mas esta é modificada a fim de concordar com a
A) II e III
doutrina cristã.
B) I e III
D) uma crítica violenta de Agostinho contra a filosofia
C) II e IV
em geral.
D) III e IV
8. Para Santo Agostinho, o homem chega a verdade:
11. Nos Solilóquios, Agostinho escreveu: “A luz
A) Apenas pela fé em Deus,
comum, à medida que pode, nos indica como é aquela
B) Pelo método alegórico aplicado à interpretação da
luz. Pois há alguns olhos tão sãos e vivos que, ao se
Bíblia,
abrirem, fixam-se no próprio sol sem nenhuma
C) Pela iluminação divina,
perturbação. Para esses a própria luz é, de algum modo,
D) Pela recordação da alma que estava junto a Deus,
saúde, sem necessidade de alguém que lhes ensine,
E) Pelos sentidos e pelo intelecto.
96
11
senão talvez apenas de alguma exortação. Para eles é Durante esse período surge propriamente a
suficiente crer, esperar, amar”. filosofia cristã, que é, na verdade, uma teologia fundada
Agostinho, Solilóquio e Vida feliz. São Paulo: Paulus, 1998, p.23. na nova fé dominante no Ocidente.
Em conformidade com a Teoria da Iluminação, analise Alguns de seus grandes temas são:
as assertivas abaixo. 1) a diferença e separação entre infinito (Deus)
I – A luz comum é o conhecimento humano, obtido e finito (homem, mundo);
por intermédio das demonstrações da lógica e da 2) a diferença entre razão e fé (a primeira deve
matemática, porém, ainda resta saber como tal subordinar-se à segunda);
conhecimento é possível. 3) a diferença e separação entre corpo (matéria)
II – A luz, que é superior à luz comum, é o intelecto e alma (espírito);
humano, que, servindo-se unicamente de si mesmo, 4) o Universo como uma hierarquia de seres,
encontra em si toda a certeza e o fundamento da pela qual os superiores (Deus, serafins, querubins,
verdade. arcanjos, anjos, alma) dominam e governam os
III – O intelecto humano, pela sua natureza perecível, inferiores (corpo, animais, vegetais, minerais);
não pode se colocar como a certeza do conhecimento, 5) a subordinação do poder temporal dos reis e
pois a verdade é eterna. Aquela luz, então, acima da luz nobres ao poder espiritual de papas e bispos.
comum, é Deus. Outra característica marcante da escolástica foi
IV – A saúde é alcançada por todos, uma vez que a o método por ela inventado para expor as ideias
salvação e a felicidade são unicamente o resultado do filosóficas, conhecido como disputa. Apresentava-se
esforço do homem nesta vida terrena. uma tese e esta devia ser ou refutada ou defendida com
Assinale a ÚNICA alternativa que contém as assertivas argumentos tirados da Bíblia, de Aristóteles, de Platão
verdadeiras. ou de padres da Igreja, particularmente Pedro
A) II e IV Lombardo.
B) II, III e IV Assim, uma ideia era considerada uma tese
C) I, II e IV verdadeira ou falsa dependendo da força e da qualidade
D) I e III dos argumentos encontrados nos vários autores. Por
causa desse método de disputa, costuma-se dizer que,
na Idade Média, o pensamento estava subordinado ao
princípio da autoridade, isto é, uma ideia é
considerada verdadeira se tiver respaldo nos
argumentos de uma autoridade reconhecida – Bíblia,
5. A ESCOLÁSTICA (Séc. VIII ao XIV) Platão, Aristóteles, um papa, um santo.
A partir do século XI, com o renascimento
Abrange pensadores europeus, muçulmanos e urbano, começam a surgir ameaças de ruptura da
judeus. É o período em que a Igreja Romana dominava unidade da Igreja, e as heresias anunciam o novo tempo
a Europa, ungia e coroava reis, organizava Cruzadas à de contestação e debates em que a razão busca sua
chamada Terra Santa e criava, à volta das catedrais, as autonomia. Inúmeras universidades aparecem por toda
primeiras universidades ou escolas. A partir do século a Europa (de Paris, Bologna, Oxford etc.), tornando-se
XII, por ter sido ensinada nas escolas, a filosofia locais de fecunda reflexão filosófica, e são indicativas
medieval também é conhecida com o nome de do gosto pelo racional, focos por excelência de
escolástica. fermentação intelectual.
A escolástica é a filosofia cristã que se No século XII, aparecem traduções de obras de
desenvolve desde o século VIII, tem o seu apogeu no Arquimedes, Euclides, Aristóteles e Ptolomeu. Muitas
século XIII e começo do século XIV, quando entra em vezes o pensamento desses autores chegava deformado
decadência. Tem esse nome por ter sido dominante nas à Europa, pois era traduzido do grego para o sírio, do
escolas que começaram a surgir durante o sírio para o árabe, do árabe para o hebraico e do
Renascimento carolíngio. hebraico para o latim medieval. Por isso, a Igreja
Carlos Magno (séc. VIII), preocupado em condenou de início o pensamento aristotélico, que na
incrementar a cultura, funda as escolas monacais e tradução árabe adquirira contornos panteístas.
catedrais (junto aos mosteiros e igrejas), contratando A partir do século XIII, consultando na
diversos sábios, como o inglês Alcuíno. O ensino aí tradução feita diretamente do grego, Santo Tomás de
desenvolvido baseia-se sobretudo no trivium Aquino recuperou o pensamento original de Aristóteles
(gramática, retórica e dialética) e no quadrivium e faz a síntese mais fecunda da escolástica. Mais que
(aritmética, música, geometria e astronomia). isso, fez as devidas adaptações à visão cristã e escreveu
Conservando e discutindo os mesmos uma obra monumental, a Suma teológica, onde, uma vez
problemas que a patrística, a filosofia escolástica mais, as questões de fé são abordadas pela "luz da
acrescentou outros. razão" e a filosofia é o instrumento que auxilia o
97
12
trabalho da teologia. É com um Aristóteles exemplo, constituem a existência, ao passo que a
cristianizado que surge então a filosofia aristotélico- humanidade constitui a essência.
tomista. Os primeiros existem de fato, mas a segunda
Daí para frente a influência de Aristóteles se prescinde da existência, pois representa a definição, que
fará sentir de maneira forte, sobretudo pela ação dos em si mesma não denota a existência nem a não-
padres dominicanos e mais tarde dos jesuítas, que desde existência, a necessidade ou a contingência. Portanto,
o Renascimento, e por vários séculos, mostraram-se uma coisa é a essência e outra a existência. E a primeira,
empenhados na formação dos jovens. em si mesma, não denota a segunda.
Se por um momento a recuperação do Ademais, no que se refere à existência, é preciso
aristotelismo constitui um recurso fecundo para Santo distinguir entre o ser necessário e o ser possível. O que existe
Tomás, já no período final da escolástica torna-se um de fato, mas que, em si mesmo, poderia também não
entrave para o desenvolvimento da ciência. existir é chamado por Avicena ser possível, trata-se do ser
que não tem em si mesmo a razão de sua própria
existência, encontrando-a em uma causa que o fez ser.
5.1 O ARISTOTELISMO Diferente dele é o ser necessário, isto é, o ser que
O aristotelismo chegou ao ocidente por meio não pode deixar de ser, porque possui em si mesmo a
por meio dos árabes, particularmente Avicena e razão do seu existir.
Averróis. Essa distinção é fundamental, porque separa o
mundo de Deus.
5.1.1 AVICENA Um é apenas possível, pois sua existência atual
A primeira forma sistemática é contingente, não postulada por sua essência, ao passo
pela qual o aristotelismo se que o outro é necessário; o primeiro é dependente, o
apresentou aos pensadores segundo é independente.
medievais foi mediada pelo
filosofo persa Avicena (980 – A geração
1037) que era também médico,
além de filósofo. Mas qual é a relação entre o mundo e Deus?
A obra de Avicena Trata-se de relação de necessidade ou de liberdade, de
constitui a primeira grande emanação ou de criação?
síntese especulativa que tem Avicena responde a essas questões,
raízes na cultura clássica e que constituiu um ponto de fundamentais para os pensadores medievais, fundindo
referência essencial para a cultura ocidental e a orientou Aristóteles e o neoplatonismo.
de modo decisivo. Com efeito, em sua opinião, o mundo é ao mesmo
Sua filosofia é profundamente permeada de tempo contingente e necessário. É contingente enquanto a
Neoplatonismo e de elementos extraídos da religião existência atual não lhe cabe em virtude de sua essência,
islâmica que completaram suas perspectivas sendo então apenas possível; no entanto, é necessário
aristotélicas (sobretudo no que se refere à teologia e à enquanto Deus, de quem recebe a existência, não pode
cosmologia), o que permitiu entusiástica acolhida por deixar de agir segundo sua natureza.
muitos pensadores cristãos. Concebido aristotelicamente como pensamento do
O Neoplatonismo era um velho conhecido dos pensamento, Deus produz necessariamente a primeira
latinos e já assimilado pelo pensamento cristão desde a Inteligência e esta a segunda, dando início a um
época patrística; a religião islâmica apresentava não processo descendente necessário e não livre, de índole
poucas verdades em comum com o cristianismo. E, claramente neoplatônica. A partir da primeira, cada
desse modo, muitas teses aristotélicas, filtradas através Inteligência cria a imediatamente inferior, até a décima,
de elementos neoplatônicos e islâmicos, não ao mesmo tempo que cria os céus respectivos, dos quais
encontraram dificuldades para se impor no ambiente são forças motrizes.
medieval. Diferentemente das outras, a décima
Na sua monumental obra “Suma Teológica”, Inteligência não gera nova realidade, mas atua
Tomás de Aquino cita Avicena mais de 250 vezes, tanto diretamente sobre o mundo terreno, posto sob o nono
para aceitar como para reelaborar o pensamento deste. céu, o da lua, tanto no plano ontológico como no plano
gnosiológico.
O ser possível e o ser necessário No primeiro plano, estruturando o mundo
terreno em matéria e forma, onde a matéria corruptível,
Do pensamento filosófico de Avicena devemos ao contrário da matéria incorruptível dos céus, é
destacar a distinção entre existência e essência, o primeiro princípio de mutação e multiplicidade e, portanto, de
concreto e a segunda abstrata. Os homens, por individualidade.
98
13
Como se vê claramente. Estamos diante da distinção real entre essência e existência, ou melhor,
concepção hilemórfica de Aristóteles, mas repensada entre essência e ser).
conforme as categorias neoplatônicas. Com efeito, as Porém, mais do que as teses em particular, o que
formas se irradiam da décima Inteligência, que é determinou a sorte do seu pensamento foi a tentativa
"doadora de formas", no sentido de que é ela que irradia de harmonizar a filosofia aristotélica com a religião
as formas na matéria-prima do mundo sublunar. E islâmica e, portanto, para os cristãos, com algumas teses
entre essas formas estão também as almas fundamentais do cristianismo, coisa que,
incorruptíveis e imortais infundidas nos corpos. aprioristicamente, não parecia possível.
No plano gnosiológico a décima Inteligência Com efeito, era essa a medida de avaliação de
opera a passagem da potência ao ato do intelecto qualquer proposta filosófica e também o objetivo de
possível ou passivo, ou seja, do intelecto humano e muitos repensamentos e retificações subsequentes.
individual. E isso por meio da irradiação tanto dos
princípios primeiros (com o que temos o intelecto 5.1.2 AVERRÓIS
habitual) como dos conceitos universais que No fim das contas, o
apreendemos por meio da abstração (com o que temos aristotelismo de Avicena não
o intelecto em ato), e mediante a elevação do nosso provocou grande perplexidade
intelecto individual ao supremo intelecto agente nos filósofos cristãos, por
(empresa difícil e reservada a poucos, apenas dos quais causa de sua constante
se pode falar de intelecto santo). tentativa de harmonizar as
Em todas essas formas de contato com o teses de Aristóteles com as
intelecto agente único, permanecem intactas a verdades da religião islâmica.
individualidade e a personalidade singular do homem. Mas o mesmo não ocorreu com o aristotelismo
O homem, animal munido de razão, tem o
de Averróis (1126-1198), que escreveu um Tratado
poder de conhecer, através da alma racional, as formas
decisivo sobre a concordância entre filosofia e religião, obra que
inteligíveis. Essas formas inteligíveis constroem a alma
permaneceu desconhecida na Idade Média.
racional de três formas: primeiro através de uma
Ele diz querer delimitar os âmbitos respectivos
emanação, de um prolongamento da substância e
do saber e da fé corânica, mas a confiança que tem na
natureza divina, através da qual o homem pode
razão é total e ilimitada. E a razão o leva a afirmar, com
conhecer os primeiros princípios; segundo através do
Aristóteles, a eternidade do mundo, negando a
raciocínio e da demonstração é possível conhecer as
imortalidade da alma singular. Obviamente, construída
coisas inteligíveis do mundo utilizando para isso a
sobre essas bases, a filosofia de Averróis logo se
lógica; e terceiro através dos sentidos.
transformou em fonte de preocupação para a
Sobre as causas do mal no mundo, Avicena
autoridade eclesiástica e de acesos debates para os
afirmou que ele é disseminado por acidente e que ele
mestres parisienses.
surge por causa da imperfeição da natureza. Além disso
o filósofo acreditava que o bem deve deixar espaço
O primado da filosofia e a eternidade do mundo
também ao seu contrário.
O propósito da filosofia é de esclarecer e
Persuadido de que a verdadeira filosofia é a de
demonstrar através da razão as verdades reveladas por
Aristóteles, Averróis procurou captar o seu pensamento
Deus. Aos filósofos cabe fazer considerações e
autêntico por meio de comentário escrupuloso,
elucidações sobre as partes obscuras e ocultas das
apresentando assim a exposição de uma filosofia que
doutrinas divinas reveladas.
fosse não apenas independente da teologia e da religião,
Nos estudos de Avicena podemos encontrar
mas também sede privilegiada da verdade. Escrevia
também elementos da filosofia da ciência. Ele
Averróis: "A doutrina de Aristóteles coincide com a
descreve um método de investigação científica e se
suprema verdade”.
pergunta como é possível alcançar hipóteses,
Esta é a razão pela qual Averróis considera justo
afirmações que não necessitam de prova para que sejam
pensar que Aristóteles "foi criado e nos foi dado pela
consideradas verdadeiras ou deduções iniciais sem que
divina providência, para que pudéssemos conhecer
elas sejam inferidas das premissas. Para ele a solução é
tudo o que é cognoscível".
a combinação do antigo método indutivo aristotélico Defendendo-se da acusação de ser incrédulo,
com um método que utiliza a experimentação e a destaca com vivacidade que as divergências de opinião
observação atenta do que se quer conhecer. dos filósofos e teólogos devem ser creditadas mais a
diferenças de interpretação do que a uma efetiva
Influência de Avicena diversidade de princípios essenciais, que fossem
negados por uns e defendidos por outros.
Essas são algumas teses do filosofo persa, que
terão grande influência sobre Tomás de Aquino (a
99
14
E, nessas divergências, é preciso estar ao lado intelecto ativo ou inteligência divina, que, sendo em ato,
dos filósofos, pois estes, servindo-se da razão, nada pode desenvolver tal ação.
mais fazem do que se ater ao direito tutelado pela Escreve Averróis: "Assim como a luz faz com
própria religião. Se é verdade que filosofia e religião que a cor em potência passe a ser cor em ato, de modo
ensinam a verdade, então não pode haver desacordo que possa mover nossa vista, do mesmo modo o
substancial entre elas. Em caso de contrastes, é preciso intelecto agente faz com que os conceitos inteligíveis
interpretar o texto religioso no sentido exigido pela em potência passem a ser conceitos em ato, de modo
razão, porque a verdade é uma só, a da filosofia. Não que o intelecto material os receba".
existe, portanto, dupla verdade. Existe apenas a verdade O intelecto agente, porém, não atua diretamente
da razão; as verdades religiosas expostas no Corão são sobre o intelecto possível, mas sim sobre a fantasia ou
símbolos imperfeitos, que devem ser interpretados e imaginação, que, sendo sensível, contém os universais
propostos à mentalidade dos simples e ignorantes, da somente em forma potencial. E essa imaginação
verdade única que a filosofia sistematiza. sensível, sobre a qual atua o intelecto divino, que, sendo
Além dessa tese fundamental, em claro individual, dá a sensação de que o conhecimento seja
contraste com o concordismo de Avicena, Averróis individual.
destaca, com Aristóteles, que o motor supremo e os Na realidade, ela é apenas um continente
motores dos céus, sendo inteligências que refletem potencial dos universais, que, porém, transformados em
sobre si mesmas, pensando-se, movem necessariamente ato pela luz do intelecto divino, só podem ser recebidos
não como causas eficientes, mas sim como causas pelo intelecto possível que se torna atual e que, em si
finais, isto é, como aquele bem ou perfeição ao qual mesmo, é espiritual e, portanto, separado, único, não
cada céu aspira com seu movimento. misturado à matéria e, desse modo, supra-individual.
Assim, a relação entre o motor supremo e os Assim, além do intelecto divino, que é único,
motores intermediários não é relação de eficiência, também o intelecto possível é único para todos os
como queria Avicena, mas sim de finalidade. O homens, que a ele se ligam provisoriamente por meio
movimento que assegura a unidade para todo o da fantasia ou da imaginação, onde os universais estão
universo é o movimento do primeiro motor, sendo, contidos em forma potencial. Desse modo, o ato de
portanto, eterno e de natureza final, não eficiente. entender é do homem individual, uma vez que está
A tese da eternidade do mundo e do caráter ligado à fantasia ou imaginação sensível, mas ao mesmo
necessário do movimento do primeiro motor inscreve- tempo é supra-individual, visto que o universal em ato
se na própria concepção aristotélica de Deus como não pode ser contido pelo individuo em particular, por
“pensamento de pensamento” e, portanto, como sua natureza desproporcional ao caráter supra-
atividade necessária e eterna. individual do universal.
No fundo, com essa tese, Averróis pretende
Unicidade do intelecto salvaguardar o saber, que não perece com o indivíduo
porque é patrimônio de toda a humanidade. E o arquivo
Além do primado da filosofia e da eternidade do onde esses resultados se conservam, em benefício de
mundo, a terceira tese de Averróis discutida pelos toda a humanidade, é o chamado "intelecto possível",
medievais foi a relativa a unicidade do intelecto superior à capacidade do indivíduo e, portanto,
possível, o único do qual é predicável a imortalidade, independente.
tanto que Averróis nega a imortalidade individual. É uma espécie de mundo feito de Ideias, de
Com efeito, o intelecto possível, pelo qual criações humanas que transcendem o indivíduo e a ele
conhecemos e formulamos noções e princípios sobrevivem, tendo em vista outras conquistas, com as
universais, não pode ser individual, isto é, não pode ser quais cresce a concretização do intelecto possível, até
forma do corpo, porque nesse caso não poderia estar sua completa concretização, com a qual se concluirá a
disponível às formas inteligíveis de caráter universal. história da humanidade.
Por isso, falando do intelecto, Aristóteles diz que ele é Alcançada essa meta, realizar-se-á então a
separado, simples, impassível e inalterável. Se fosse perfeita união do intelecto possível, atualizado pelo
individual, o intelecto seria individualizado pela matéria saber, com o intelecto divino, que está sempre em ato.
- a qual é o princípio da individualização - e, então, seria
A atualização penosamente amadurecida do intelecto
incapaz de alcançar o universal e, portanto, o saber. O possível se fundira então com a atualidade permanente
intelecto, portanto, é único para toda a humanidade e do intelecto divino. É esse o epílogo ou união mística
não misturado com a matéria. de que falam as religiões.
Mas, então, como é que o homem individual
conhece? E em que sentido o conhecimento pode ser Consequências da unicidade do intelecto
considerado individual?
O intelecto possível, enquanto tal, conhece Enquanto as teses relativas ao papel da filosofia
passando da potência ao ato. Para tanto, necessita do no âmbito do saber e eternidade do mundo seriam
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15
diversamente repensadas, a tese que mais agitou os confirmou a proibição de 1215, mas só até que os
medievais foi a da unicidade do intelecto possível, porque se escritos de Aristóteles não fossem corrigidos.
encontrava em claro contraste com a fé na imortalidade Nomeada por Gregório IX e composta por
pessoal, um dos dados de fundo da religião cristã, e não homens que deram provas de abertura para as novas
apenas desta. correntes filosóficas, a comissão não concluiu o
Se o intelecto possível não é parte da alma trabalho de revisão dos escritos aristotélicos por causa
humana, mas está apenas temporariamente ligado a ela, da complexidade dos problemas e, talvez, também por
então a imortalidade não cabe ao homem em particular, causa da imperícia dos membros. Mas aquilo que não
mas sim a essa realidade supra-individual. foi feito por autoridade realizar-se-ia espontânea e
Ora, essa doutrina se prestava a duas progressivamente por meio da reflexão crítica e dos
interpretações: uma de caráter ascético; outra de caráter acesos debates dos pensadores cristãos.
materialista e hedonista. Os caminhos seguidos foram substancialmente
É verdade que a atividade vegetativo-sensitiva é dois: um de maior adesão às indicações de Aristóteles,
típica da alma, forma do corpo, mas esta no homem repensadas e corrigidas no contexto de teses
tende a elevar-se e unir-se à inteligência. Todavia, se propriamente cristãs; outro, de maior adesão às
essa interpretação ascético-mística era possível e talvez indicações agostinianas, integradas por elementos de
até fundada, a interpretação que se difundiu, em origem aristotélica.
consonância com o despertar da vida econômica e com O primeiro foi seguido por santo Tomás de
a redescoberta da positividade terrena, foi a Aquino, o segundo por São Boaventura, ambos
interpretação de cunho hedonista. empenhados na obra de harmonização da razão com a
Se tudo o que é individual se dissolve com a fé.
morte e se o homem não é, em última instância,
responsável por sua atividade espiritual, que é supra- 5.2 A QUESTÃO DOS UNIVERSAIS
individual, então a pregação sobre a morte e suas
consequências, relativas sobretudo à inutilidade do Aristóteles não será conhecido na Idade Média
mundo, perde o seu vigor, revelando-se pura ficção. a não ser a partir do século XIII, quando suas obras são
Não é difícil perceber aí os germes primordiais traduzidas para o latim. No entanto, no século VI
e inequívocos da concepção materialista ou apenas Boécio traduzira a lógica aristotélica, tecendo um
naturalista da vida e do homem, que a redescoberta de comentário a respeito da questão da existência real ou
alguns clássicos do pensamento antigo alimentavam. não dos universais.
Na matéria, tudo se transforma e se move Chamam-se universais os termos que designam
eternamente, nascendo em outro lugar e em outro todos os seres de determinada espécie. Assim, o termo
tempo, em ciclo perene, em relação ao qual o indivíduo boi designa todos os bois que possam existir, qualquer
é apenas presença transitória. que seja sua raça e características. Do mesmo modo, o
termo “homem alto e moreno”, que servem para
Primeiras reações ao aristotelismo qualificar alguém são nomes comuns usados para
nomear não uma entidade singular, mas um modo
Foram particularmente essas consequências que universal. “Homem”, “alto”, “moreno” são nomes
animaram o debate entre os Escolásticos, decididos a chamados “universais”.
combater suas premissas, seja por meio de uma leitura Tradicionalmente, os universais (universalia)
mais atenta de Aristóteles, seja redescobrindo o sentido foram chamados de "noções genéricas", "ideias" e
mais genuíno de algumas verdades da religião cristã. "entidades abstratas". Outros exemplos de universais
É esse o contexto no qual deve ser lida a são 'o leão', 'o triângulo','4' (o número quatro, escrito
interdição posta por Roberto de Courçon nos primeiros mediante a cifra 'quatro').
estatutos universitários de 1215: O universal é o conceito, a ideia, a essência
“Nos fundamentos da Leitura devem estar os comum a todas as coisas (por exemplo, o conceito de
livros de Aristóteles sobre a dialética, tanto da antiga homem). Em outras palavras, perguntava-se se os
como da nova lógica, nos cursos institucionais, mas não gêneros e espécies tinham existência separada dos
nos extraordinários (...). Entretanto, não devem ser objetos sensíveis: as espécies (como o cão) e os gêneros
lidos a Metafisica ou os livros naturales de Aristóteles ou (como os animais) teriam existência real"? Ou seja,
sínteses deles (comentários de Averróis)”. seriam realidades, ideias ou apenas palavras?”.
Na mesma linha está a decisão de Gregório IX, Os universais contrapõem-se aos “particulares”
que, em 1231 (por ocasião da greve dos estudantes, que e estes últimos tem sido equiparados com entidades
durou dezoito meses e a qual não era estranho o concretas ou singulares.
problema do aristotelismo, defendido pela faculdade de Um problema central relativo aos chamados
artes e combatido pela faculdade de teologia), “universais” é o de seu status ontológico. Trata-se de
determinar que classe de entidades são os universais, ou
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16
seja, qual é a sua forma peculiar de existência. Ainda que Já os nominalistas, como Roscelino e
se trate primordialmente, como dissemos, de uma Guilherme de Ockham acreditavam que as ideias gerais
questão ontológica, vem tendo importantes implicações ou universais não passam de simples nomes, sem
e ramificações em outras disciplinas como a lógica, a realidade fora do espírito ou da mente. A única
teoria do conhecimento e até a teologia. realidade são os indivíduos e os objetos individualmente
A questão foi posta com frequência na história considerados.
da filosofia, especialmente desde Platão e Aristóteles, Para eles, além das substâncias singulares, só
mas como foi discutida muito intensamente na Idade existem os nomes puros, o que descarta a realidade das
Média, virou praxe colocá-la no início da chamada coisas abstratas e universais. O universal não existe por
querela dos universais. si, resume-se a um vocábulo com significado geral, mas
A “querela dos universais”, já desde Platão, mas sem conteúdo concreto, que só se apresenta no
sobretudo da Idade Média, ofereceu uma multiplicidade individual e no particular.
de temas e questões, tais como:
1) A questão do conceito (natureza e funções do 5.3 PEDRO ABELARDO
conceito, natureza do indivíduo e suas relações com o
geral); Pedro Abelardo (1079-
2) A questão da verdade (critério ou critérios da 1142) foi um filósofo escolástico
verdade e da correspondência do enunciado com a francês, considerado um dos
coisa); maiores pensadores do século XII.
3) A questão da linguagem (natureza dos signos Destinado por família a seguir
e suas relações com as entidades significadas). carreira militar, escolheu o
Todas essas questões foram levantadas, e em caminho da filosofia e das letras.
grande parte resolvidas, em função de vários problemas Aprendeu o Trivium, conjunto de
teológicos. disciplinas ligadas à linguagem na
Em princípio, o problema dos universais parece Idade Média.
abarcar todas as questões básicas filosóficas,
ontológicas, gnosiológicas e lógicas. Além disso, no fim A teologia passou a ser logo o centro das
da Idade Média e no Renascimento, o problema dos preocupações de Abelardo. Sua obra principal,
universais incluiu a questão da natureza e do indivíduo ”Dialética”, inspirada em Boécio, foi muito usada e
como ser pensante. bastante difundida nas escolas medievais, junto aos
A questão dos universais pode ser assim primeiros estudos contidos no Trivium. A obra
formulada: qual a relação entre as palavras e as ensinava aos estudantes como debater questões
coisas? Por exemplo, Rosa é o nome de uma flor. teológicas e metafísicas. Seu método de ensino foi
Quando a flor morre, a palavra ou o conceito universal considerado revolucionário na época, pois estimulava
“rosa” continua existindo. Nesse caso, a palavra ou os debates e as contradições entre as questões
conceito fala de uma coisa inexistente; tal palavra ou estabelecidas.
conceito geral existe independentemente da coisa (no A frase “a dúvida nos leva à pesquisa e através
caso, o ser concreto que morreu)? Que relação existe dessa conhecemos a verdade” é um dos princípios de
entre as coisas concretas (as espécies, por exemplo) e os Abelardo que direciona tanto seus pensamentos
seus conceitos? Essa questão é retomada nos séculos XI filosóficos como teológicos. O filósofo parte dessa ideia
e XII, alimentando longa polêmica, cujas soluções inicial para formar e fundamentar o seu raciocínio
principais são o realismo, o conceitualismo e o nominalismo. crítico. A dúvida é onde começa o caminho para a
Os realistas, como Santo Anselmo e pesquisa, é uma frequente interrogação que nos leva a
Guilherme de Champeaux, de tendência platônica, um exame mais aprofundado das questões que nos
sustentavam que as ideias gerais, ou os universais, interessam. Através da dúvida o filósofo Abelardo
deviam possuir existência independente, uma existência emprega um caráter científico às suas investigações.
ante res (antes das coisas reais), na mente divina ou em A dialética é para Abelardo muito mais do que
outro lugar. Esta solução, de matriz platônica, afirmava um discurso feito de forma habilidosa, ela é o
que o universal existe realmente no mundo das ideias. instrumento que ajuda a distinguir com clareza o
Existiriam, em um mundo ideal, desprovidas verdadeiro do falso. Seguindo regras lógicas ela vai
totalmente de matéria, as puras ideias. Lá existiriam o conseguir determinar se o discurso científico é
boi ideal, a rosa ideal, o homem ideal, etc. Esse mundo verdadeiro ou é falso.
das ideias, segundo Platão, seria um mundo puramente Abelardo pretende utilizar o vigor da dialética
espiritual, perfeito e divino. É a solução denominada nos estudos e nas argumentações teológicas para
realista, porque considera o universal realmente descobrir quais são os argumentos legítimos e quais são
existente. os argumentos não autênticos e através dela fazer
prevalecer as verdadeiras doutrinas cristãs.
102
17
Não é a razão que vai assimilar a fé, mas a fé que Para ele os universais teriam uma existência
vai apropriar-se da razão, pois o discurso filosófico não simbólica na mente, e outra, concreta, nas coisas. Em
vai tornar sem efeito o conjunto de sentenças da outras palavras, Abelardo sustenta que existem apenas
teologia, mas vai auxiliar no seu entendimento e torná- indivíduos, nenhum dos quais é, em si, espécie nem
lo mais fácil de compreender. gênero, e que os gêneros e as espécies são concepções
A filosofia vai ser a mediadora entre as verdades ou conceitos. Segundo ele, as coisas se parecem, e essas
reveladas e o pensamento humano. Segundo a filosofia semelhanças, que por si só não são coisas, produzem os
de Abelardo, não é possível crer nas coisas que não se universais.
compreende.
O método lógico de análise utilizado por QUESTÕES
Abelardo consistia em estudar a questão filosófica
fazendo um exame das partes que a constituem, 1. A Escolástica é o período da filosofia cristã da Idade
percebendo assim os diversos pontos de vista Média, que vai do século IX ao século XIV. Sobre a
incoerentes e contrários. Escolástica é correto afirmar, EXCETO
É necessário a realização de uma investigação A) No século XIII, servindo-se das traduções das obras
completa que vai determinar as diferenças entre as de Aristóteles, que foram feitas diretamente do grego,
argumentações de um tema. A razão vai prevalecer Tómas de Aquino realizou a síntese magistral entre a
sobre a opinião de quem tem grande entendimento teologia crista e a filosofia aristotélica.
sobre determinado assunto. Abelardo não vai contra a B) A fundação das universidades, já no século XI,
utilidade do pensamento de uma autoridade enquanto permitiu a expansão da cultura letrada, secularmente
não houver meios ou conhecimentos suficientes para se guardada nos mosteiros e a fermentação de idéias que
colocar em prática a razão. A partir do momento que a culminaram nos grandes sistemas filosóficos e
razão encontrar condições de por si mesmo encontrar teológicos do século XIII.
a verdade, a autoridade passa a ser inútil. C) No século XII a Igreja condenou o pensamento
Abelardo busca fazer uma conciliação, um platônico, principalmente na sua versão árabe, porque
entendimento, um acordo ou ao menos um diálogo ente os teólogos perceberam um ateísmo intrínseco na
os primeiros filósofos, em especial Platão, e as teorias forma de argumentação dialética da personagem
teológicas do cristianismo. Pedro Abelardo acreditava Sócrates.
que os primeiros filósofos, mesmo estando fora do D) No século XIV surgiram pensadores, tais como
cristianismo, buscavam também a verdade através da Guilherme de Ockam, que criticaram a filosofia tomista
investigação lógica. Os primeiros filósofos e os pelo seu caráter substancialista; isto abriu perspectivas
filósofos cristãos estão unidos pela razão. fecundas para o advento da ciência moderna.
A essência de Deus é impossível de ser definida,
pois ela não pode ser expressa. E não pode ser expressa 2. Uma das tendências fundamentais de pensamento da
porque para isso Deus teria que ser uma substância, e Idade Média é a Escolástica. A Escolástica caracteriza-
Deus está fora de todas as coisas que conhecemos e que se por vários elementos, tais, como:
possamos vir a conhecer. A) A filosofia aristotélico – tomista, o pensamento de
Para tentar explicar a trindade da pessoa divina Descartes, o ensino trivium e quadrivium e o pensamento
Abelardo usa como metáfora a gramática que diferencia de Santo Agostinho.
quem fala, para quem se fala e o que se fala. Na unidade B) O pensamento de Patrística, a valorização da
divina as três pessoas podem ser uma só, pois é possível indagação empírica, as universidades e a filosofia
falar de si a si mesmo. A primeira pessoa é também o platônica.
fundamento das outras duas, pois se não existir quem C) O ensino do trivium e quadrivium, filosofia platônica,
fala não existirá também o que se fala e a quem se fala. o pensamento de Descartes e as universidades.
Sobre as questões éticas Abelardo afirma que o D) A influencia da filosofia grega, o ensino do trivium e
pecado não é em si a ação física, mas o elemento quadrivium, as universidades e a filosofia aristotélico-
psicológico dessa ação, ou seja, o pecado é a intenção tomista.
de pecar e não a ação.
A posição de Pedro Abelardo com relação aos 3. Os árabes, entre os Séculos VII e XI, ampliaram suas
universais ficou conhecida por conceitualismo, conquistas e forjaram importante civilização. Sob a ação
diferenciando-se do realismo, pois nega que os catalisadora do Islã, foi mantida a unidade política,
universais sejam entidades metafísicas, e do enquanto que o comércio destacou-se como elo do
nominalismo, pois para ele, os universais existem como relacionamento tolerante com muitos povos. Além
entidades mentais, que fazem a mediação entre o disso, argumenta-se que os valores culturais da
mundo do pensamento e o mundo do ser, portanto, não Antiguidade Clássica chegaram ao conhecimento do
podem ser apenas palavras. Mundo Moderno Ocidental porque os árabes
103
18
A) traduziram e difundiram entre os europeus nem são meros nomes; eles são o significado dos nomes
importantes obras sobre o saber grego. e podem subsistir mesmo na falta de particulares a que
B) propagaram a obra Mil e uma Noites, mostrando que se apliquem.
ela se baseia em lendas chinesas. 16) O nominalismo asseverou que os universais nada
C) introduziram na Europa novas técnicas de cultivo e têm de real; são meros nomes, pois o que realmente
a habilidade na representação de figuras humanas. existe são os particulares.
D) profetizavam o destino do homem através das
estrelas. 6. (UEM 2013) “Com efeito, não seremos capazes de
E) desenvolveram uma ciência não submetida aos rebater as investidas dos hereges ou de quaisquer infiéis,
ensinamentos religiosos. se não soubermos refutar suas argumentações e
invalidar seus sofismas com argumentos verdadeiros,
4. (UEM 2009) A questão dos universais é introduzida para que o erro ceda à verdade e os sofismas recuem
na Filosofia Medieval pelos comentários de Boécio à perante os dialéticos: sempre prontos, segundo a
sua tradução da lógica de Aristóteles no século VI. exortação de São Pedro, a satisfazer a quem nos peça,
Todavia a polêmica acerca da existência real dos razões da esperança ou da fé que nos anima. Se no curso
universais assume forma e importância maior a partir dessas disputações conseguirmos vencer aqueles
do século XI. Sobre a questão dos universais, assinale o sofistas, apareceremos como verdadeiros dialéticos; e
que for correto. como bons discípulos, tanto mais nos lembraremos de
01) Para os realistas, os particulares são as coisas mais Cristo, que é a própria verdade, quanto mais fortes nos
reais; para os nominalistas, o mais real é o abstrato. mostrarmos na verdade das argumentações”
02) As coisas abrangidas por um universal, embora (ABELARDO, P. Epístola 13. In: CHALITA, G. Vivendo a
diversas e múltiplas, são semelhantes em alguns filosofia: ensino médio. 4.ª ed. São Paulo: Ática, 2011, p. 146).
aspectos. A partir do trecho citado, assinale o que for correto.
04) Santo Anselmo foi um realista em sua concepção 01) O filósofo mostra a necessidade de argumentos
dos universais, ou seja, acreditou que os universais têm racionais (dialéticos) para a defesa da doutrina cristã.
realidade objetiva. 02) Nos debates, não basta apenas invocar a palavra de
08) Para os nominalistas, como Roscelino, os universais Cristo, é preciso elaborar argumentos racionais contra
são simples palavras que expressam os conteúdos os infiéis.
mentais. 04) A dialética é um instrumento argumentativo contra
16) Por universal entende-se conceito, ideia, gênero, os sofismas, inserindo o debate no campo filosófico e
espécie ou propriedade predicada de vários indivíduos. não no campo doutrinal da fé.
08) A fraqueza da argumentação dos infiéis está na sua
5. (UEM 2008) A questão dos universais foi um dos inconsistência lógica e racional.
grandes problemas debatidos na Filosofia Medieval. A 16) Os hereges e os infiéis serão convencidos somente
dificuldade era determinar o modo de ser das idéias com argumentos oriundos da Bíblia.
gerais, gêneros ou espécies, tais como homem, animal
etc.; ou seja, saber se os universais correspondem a uma 7. (UEM 2014) “Dizemos: cada pessoa é, por exemplo,
realidade fora de nós ou se são puras abstrações do um ser humano, porém, há coisas que não lhe
espírito e sem realidade. Realismo e nominalismo foram pertencem como ser humano. Contudo, não se isenta
as duas soluções típicas do problema, surgindo o delas na existência como, por exemplo, a definição de
conceitualismo como solução intermediária. Em suas medidas, sua cor, sua aparência e aquilo que é
relação à questão dos universais, assinale o que for
correto. notório nele e outras coisas deste tipo. Todas estas
01) O realismo, de inspiração platônica, afirmava que os coisas, mesmo sendo humanas, não são condições para
universais existiam na realidade, independentemente que ele seja humano, caso contrário, todas as pessoas
das coisas individuais. seriam iguais neste âmbito. Apesar disso, inteligimos
02) Os realistas foram os primeiros filósofos a que há algo, ou seja: o ser humano. Que pobre é o
acreditarem na realidade virtual; foram, assim, discurso daquele que afirma o seguinte: o ser humano é
precursores da inteligência artificial.
esta totalidade percebida (pelos sentidos)!”
04) Uma forma moderada de realismo foi defendida por
(AVICENA. A filosofia e sua divisão, in MARÇAL, J., Antologia
Santo Tomás de Aquino, o qual, sob influência de
de textos filosóficos. Curitiba: SEED-PR, 2009, p. 90-91).
Aristóteles, supôs que o universal estaria na coisa, como
Com base nesta afirmação de Avicena, assinale o que
sua forma ou substância; depois da coisa, como
conceito no intelecto; e antes da coisa, na mente divina, for correto:
como modelo das coisas criadas. 01) A definição do ser humano depende de suas
08) No conceitualismo de Pedro Abelardo, os atribuições sensíveis.
universais são conceitos que não existem na realidade,
104
19
02) A classe social de um indivíduo compõe um dos GABARITO
elementos da definição do ser humano.
04) A identidade racial distingue os seres humanos de QUESTÕES PATRÍSTICA
outros seres vivos. 1. 1/4/16
08) O conceito de ser humano é inteligível. 2. 1/4/8
16) Qualificações como peso, altura e aparência física
distinguem um ser humano de outro ser humano. 3. 1/2/4/8/16
4. a
8. (UEM 2012) Um texto de um filósofo anônimo da
5. e
Idade Média apresenta de modo claro um problema
central para a filosofia e a ciência do seu tempo. Ele 6. d
afirma: “Boécio divide em três as partes da ciência
7. c
especulativa: natural, matemática e teológica. Da
mesma forma, o Filósofo [isto é, Aristóteles] divide-a 8. c
em natural, matemática e metafísica. Assim, isto que
9. b
Boécio chama teologia, o Filósofo chama metafísica.
Elas são, portanto, idênticas. Mas a metafísica não é 10. c
acerca de Cristo. Logo, a teologia também não o é”
(Quaestio de divina scientia. In: FIGUEIREDO, V. Filósofos na sala de
11. d
aula. Vol. 3. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2008, p. 68).
A partir do trecho citado, assinale a(s) alternativa(s)
correta(s). QUESTÕES ESCOLÁSTICA
01) A teologia apresenta-se na Idade Média como a 1. c
ciência principal.
02) A teologia é objeto da filosofia de Aristóteles, apesar 2. d
de ela não ter esse nome para ele. 3. a
04) A teologia é uma ciência que não diz respeito à
investigação da natureza de Cristo. 4. 2/4/8/16
08) A teologia é, para esses filósofos, tão científica 5. 1/4/8/16
quanto a matemática.
16) A teologia e a metafísica são conhecimentos 6. 1/2/4/8
adquiridos por meio da ciência especulativa. 7. 8/16
8. 2/4/8/16

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20
FILOSOFIA MEDIEVAL – PARTE 2 Dessa maneira, teologia (fé) e filosofia (razão
natural) são conciliáveis, desde que a razão ampare o
5.4 SÃO TOMÁS DE AQUINO caminho até a verdade revelada, isto é, um bom uso da
Natural de Nápoles na razão faz com que possamos acessar a verdade de Deus.
Itália, Tomás de Aquino (1225 – Portanto, não deve haver conflito entre fé e razão. O
1274) foi ordenado monge saber teológico não suplanta o saber filosófico nem a fé
dominicano e estudou na substitui a razão, até porque, e este é o último motivo,
universidade de sua cidade natal a fonte da verdade é única.
e na de Bolonha. Mais tarde É preciso partir das verdades "racionais",
tornou-se professor da maior porque é a razão que nos une. É sobre essa base que se
universidade europeia daquela podem obter os primeiros resultados universais, porque
época, a de Paris. racionais, com base nos quais se pode depois construir
Se Santo Agostinho um discurso de aprofundamento de caráter teológico.
cristianizou Platão, Tomaz de Aquino cristianizou Discutindo com os judeus, pode-se assumir
Aristóteles ao usar sua teoria filosófica para explicar a como pressuposto o Antigo Testamento; discutindo
fé e até mesmo a existência de Deus. A influência de com os heréticos, pode-se assumir toda a Bíblia. Mas
seu pensamento penetrou toda a Europa a ponto de ele que pressuposto pode tornar possível a discussão com
ser considerado o conselheiro dos conselheiros dos reis. os pagãos ou gentios senão aquilo que nos assemelha,
Ou seja, o mestre dos mestres. Sua obra principal foi a isto é, a razão?
Suma Teológica . A esse motivo, de índole apologética, devem-se
Se em Santo Agostinho o lema era “crer para acrescentar duas considerações de caráter mais geral,
entender”, aqui é “entender para crer”. Apesar de dar isto é, no sentido de que a razão constitui nossa
uma valorizada na razão, ele também a entendia como característica. Deixar de utilizar essa força, mesmo que
a serviço da fé. em nome de uma luz superior, seria deixar de lado uma
exigência primordial e natural. Ademais, existe um
A teologia não substitui a filosofia - Razão e fé corpus filosófico que é fruto de tal exercício racional,
como a filosofia grega, cujos resultados foram
O objeto primário das reflexões de Tomás é apreciados e utilizados por toda a tradição cristã.
Deus, não o homem ou o mundo, porque somente no Por fim, Tomás tinha a convicção de que,
contexto da revelação é que se torna possível raciocinar apesar de sua radical dependência de Deus no ser e no
sobre o homem e o mundo. agir, o homem e o mundo gozam de relativa autonomia,
Muito se tem discutido sobre se existe ou não sobre a qual deve-se refletir com os instrumentos da
uma razão autônoma da fé em Tomás, ou seja, uma razão pura, fazendo frutificar todo o potencial
filosofia distinta da teologia. cognoscitivo para responder a vocação original de
A verdade é que em Tomas há uma razão e uma “conhecer e dominar o mundo”.
filosofia como preparação para a fé. A filosofia tem sua
configuração e sua autonomia, mas não exaure tudo o Teoria do conhecimento
que se pode dizer ou conhecer. Assim, é preciso integrá-
la a tudo o que está contido na sagrada escritura em De acordo com a sua teoria do conhecimento,
relação a Deus, ao homem e ao mundo. o homem é um ser duplo, composto por um corpo
A diferença entre a filosofia e a teologia não está material e por uma alma inteligível. O homem conhece
no fato de que uma trata de certas coisas e a outra de porque é alma, mas não tem acesso direto a Deus
outras coisas, porque ambas falam de Deus, do homem porque também é corpo.
e do mundo. Nosso conhecimento sempre parte dos
A diferença está no fato de que a primeira sentidos, mas atinge o inteligível por meio da abstração.
oferece um conhecimento imperfeito daquelas mesmas Desse modo, a teoria tomista do conhecimento é a do
coisas que a teologia está em condições de esclarecer realismo, ou seja, considera que os conceitos que
em seus aspectos e conotações específicos relativos à apreendemos pelo conhecimento possuem uma
salvação eterna. realidade autônoma e objetiva. O que a faculdade do
A fé, portanto, melhora a razão assim como a conhecimento recebe do objeto é uma impressão deste.
teologia melhora a filosofia. A graça não suplanta, mas O que primeiro conhecemos são essas impressões,
aperfeiçoa a natureza. E isso significa duas coisas: porque elas remetem de forma intencional ao objeto
a) a teologia retifica a filosofia, não a substitui, observado.
assim como a fé orienta a razão, não a elimina; Tomás fixou-se num realismo moderado,
b) a filosofia, como preparação para a fé, tem tomando como ponto de partida o ser captado pela
sua autonomia, porque é formulada com instrumentos inteligência no âmbito do conhecimento sensível, de
e métodos não assimiláveis aos da teologia. onde o abstrai, para em seguida buscar novos resultados
106
1
da especulação sem nunca ultrapassar o âmbito limitado Todo ente compreende em si o uno, o
do ser sensível. verdadeiro e o bom (os assim chamados
transcendentais do ser), motivo pelo qual se pode dizer
A ontologia que o ser é uno, verdadeiro e bom.
Dizer que o ser é uno significa afirmar que ele é
A metafisica de Tomás distingue o ente intrinsecamente não contraditório; mas também neste
(existente) da essência e privilegia o primeiro em relação caso a unidade se predica de Deus e do homem apenas
a segunda. O ente pode ser lógico (conceitual) e real por analogia. Deus com efeito, é verdadeiramente
(extramental). simples; o homem, ao contrário, é uma unidade por
O ente lógico tem a função de unir mais composição (essência + actus essendi).
conceitos, mas isso não significa que para cada ente O verdadeiro é um transcendental do ente no
lógico corresponda um ente real (por exemplo, ao sentido de que todo ente é inteligível. Mas isso pode ser
conceito de cegueira não corresponde nenhum ente dito em dois sentidos: de um lado, para afirmar que
real). É esta posição do "realismo moderado" que existe uma verdade ontológica (todo ente é
recorre ao poder de abstração do intelecto para explicar verdadeiro porque se adapta ao intelecto divino que o
os universais. pensa), e por outro lado para afirmar que existe uma
Tudo o que existe é ente e, portanto, também verdade lógica, que é a adequação da nossa mente
Deus e o mundo. Todavia, Deus e o mundo são entes humana ao objeto. A verdade de um ente depende do
de modo diverso; o ser se predica deles por analogia; grau de ser que possui; neste sentido, Deus, que é sumo
Deus é o ser, o mundo tem o ser. ente, e também suma verdade.
A essência é o “o que é” de uma coisa, mas é Por fim, tudo o que é, é também bom porque é
apenas potência de ser, apenas em Deus potência e fruto da bondade difusiva de Deus. Nessa concepção,
Deus se apresenta como Sumo bem.
Dado que Deus é causa do criado, o próprio
criado apresenta algumas semelhanças com Deus. Por
outro lado, a transcendência de Deus implica também
uma insuperável dessemelhança entre o Criador e o
criado, a ponto de nosso conhecimento de Deus (pelo
fato de que Deus não tem nenhuma essência especifica)
tornar-se impossível, e exprimível apenas por via
negativa. Essa contemporânea semelhança e
dessemelhança do mundo com Deus constitui a relação
de analogia.

As provas da existência de Deus

Segundo Santo Tomás a razão pode provar a


existência de Deus através de cinco vias, todas de índole
realista: considera-se algum aspecto da realidade dada
pelos sentidos como o efeito do qual se procura a causa.
existência coincidem; no mundo e no homem não há 1. Movimento - A primeira fundamenta-se na
correspondência entre potência de ser e existência real. constatação de que no universo existe movimento.
Por este motivo, apenas Deus é necessário (possui Baseado em Aristóteles, Santo Tomás considera que
como próprio o ato de ser), o mundo, ao contrário, é todo movimento tem uma causa, que deve ser exterior
contingente, porque possui o ser apenas por ao próprio ser que está em movimento, pois não se
participação. pode admitir que uma mesma coisa possa ser ela mesma
Em Tomás o ato de ser tem proeminência sobre a coisa movida e o princípio motor que a faz
a essência, a tal ponto que sua filosofia pode ser movimentar-se.
considerada uma metafisica do ser. O problema Por outro lado, o próprio motor deve ser
dominante é, portanto, estabelecer o que é o ser (e não movido por um outro, este por um terceiro, e assim por
o que é a essência), ou por que existe o ser e não o nada. diante. Nessas condições, é necessário admitir ou que a
Mas a solução pertence ao âmbito do mistério, e ao série de motores é infinita e não existe um primeiro
homem cabe maravilhar-se a cada momento do fato de termo (não se conseguindo, assim, explicar o
que tudo o que é existe, enquanto, seria mais lógico que movimento), ou que a série é finita e seu primeiro termo
não existisse. Diverso, porém, é o discurso sobre os é Deus.)
modos de ser que são para nosso filosofo as dez 2. Causa eficiente - A segunda via diz respeito
categorias. à ideia de causa em geral. Todas as coisas ou são causas
107
2
ou são efeitos, não se podendo conceber que alguma possível. Na vida terrena, o intelecto só conhece o bem
coisa seja causa de si mesma. Nesse caso, ela seria causa e o mal de coisas e ações que não são Deus. Portanto, a
e efeito no mesmo tempo, sendo, assim, anterior e vontade é livre para querê-las ou não.
posterior, o que seria absurdo. Por outro lado, toda
causa, por sua vez, deve ter sido causada por outra e
esta por uma terceira, e assim sucessivamente. Impõe-
se, portanto, admitir uma primeira causa não causada,
Deus, ou aceitar uma série infinita e não explicar a
causalidade.
3. Contingente e necessário – A terceira via
refere-se aos conceitos de necessidade e contingência. Todos
os seres estão em permanente transformação, alguns
sendo gerados, outros se corrompendo e deixando de
existir. Mas poder ou não existir não é possuir uma
existência necessária e sim contingente, já que aquilo E é exatamente na liberdade do homem (que
que é necessário não precisa de causa para existir. não é de forma alguma reduzida pela presciência de
Assim, o possível ou contingente não teria em si razão Deus, que prevê o que é necessário e o que
suficiente de existência e, se nas coisas houvesse apenas propriamente será livre, isto é, devido unicamente a
o possível, não haveria nada. liberdade humana), que Tomás vê a raiz do mal,
Para que o possível exista é necessário, concebido, com Agostinho, como ausência de bem.
portanto, que algo o faça existir. Ou seja: se alguma "Por sua própria natureza, o homem tem o livre-
coisa existe é porque participa do necessário. Este, por arbítrio", ele não se dirige para um fim, como a flecha
sua vez, exige uma cadeia de causas, que culmina no lançada pelo arqueiro, mas sim se dirige livremente para um
necessário absoluto, ou seja, Deus. fim. E como há nele um habitus natural de captar os
4. Graus de perfeição – A quarta via tomista princípios do conhecimento, também há sempre nele
para provar a existência de Deus é de índole platônica e uma disposição ou habitus natural – a assim chamada
baseia-se nos graus hierárquicos de perfeição observados nas sindérese - que o leva a compreender os princípios que
coisas. Há graus na bondade, na verdade, na nobreza e inspiram e guiam as boas ações.
nas outras perfeições desse gênero. O mais e o menos, Mas compreender ainda não significa agir. E o
implicados na noção de grau, pressupõem um termo de homem, justamente porque é livre, peca quando se
comparação que seja absoluto. Deverá existir, portanto, afasta deliberadamente e infringe as leis universais que
uma verdade e um bem em si: Deus. a razão lhe dá a conhecer e a lei de Deus lhe revela.
5. Causa final - A quinta via fundamenta-se na
ordem das coisas. De acordo com o finalismo aristotélico A doutrina do Direito
adotado por Tomás de Aquino, todas as operações dos
corpos materiais tenderiam a um fim, mesmo quando Tomás distingue três tipos de leis: a lex aeterna, a
desprovidos da consciência disso. A regularidade com lex naturalis e a lex humana. E acima delas está a lex divina,
que alcançam seu fim mostraria que eles não estão ou seja, a lei revelada por Deus. A lex aeterna é o plano
movidos pelo acaso; a regularidade seria intencional e racional de Deus, a ordem do universo inteiro, pela qual
desejada. Uma vez que aqueles corpos estão privados a sabedoria divina dirige todas as coisas para seu fim. É
de conhecimento, pode-se concluir que há uma o plano da Providência conhecido unicamente de Deus
inteligência primeira, ordenadora da finalidade das e de poucos eleitos. Entretanto, há uma parte dessa lei
coisas. Essa inteligência soberana seria Deus. eterna da qual, como natureza racional, o homem é
participe. E tal participação é definida por Tomás com
O livre arbítrio o nome de lei natural.
Em suma, enquanto seres racionais, os homens
Para Tomás, o homem é natureza racional, isto conhecem a lei natural, cujo núcleo essencial está no
é, um ser capaz de conhecer. E é justamente essa preceito de que “se deve fazer o bem e evitar o mal”.
concepção de homem que encontramos na base da sua Para o homem, como para todo ente, a sua própria
ética e da sua política. conservação é um bem. Para o homem, como para todo
Antes de mais nada, o homem conhece o fim ao animal, é bem seguir os ensinamentos universais da
qual cada coisa tende por natureza, e conhece uma natureza, união do macho e da fêmea, proteção e
ordem das coisas no cume da qual está Deus como Bem crescimento dos filhotes etc. Para o homem, enquanto
supremo. ser racional, é bem conhecer a verdade, viver em
Naturalmente, se o intelecto pudesse oferecer a sociedade etc. Entretanto, mais do que especificação do
visão beatífica de Deus, a vontade humana não poderia
deixar de querê-la. Mas, aqui embaixo, isso não é
108
3
que é o bom e do que é o mal ele vê a lei natural Na opinião de Tomás, as leis jurídicas injustas
principalmente como forma da racionalidade. são "mais violência do que leis". Entretanto, considera
Estreitamente ligada a lex naturalis, Tomás ele, tais leis podem até ser obrigatórias, mas somente
considera a lex humana. onde seja necessário "evitar escândalo ou desordem".
Trata-se da lei jurídica, isto é, o direito positivo, Em todo caso, porém, é preciso sempre
a lei feita pelo homem. E os homens, que são sociáveis desobedecer à lei injusta se ela for contra a lei divina
por natureza, fazem as leis jurídicas para dissuadir os positiva, impondo a idolatria, por exemplo. E também
indivíduos do mal. é justificada a rebelião contra o tirano. Para Tomás, é
E como toda lei é algo que pertence à razão, lícito rebelar-se contra o tirano, com a condição de que
(uma vez que pertence à razão estabelecer os meios para a rebelião não ocasione para os súditos males piores e
os fins e ver a ordem dos fins), a lex humana é a ordem maiores do que a própria tirania.
promulgada pela coletividade ou por quem tem a Na opinião de Tomás, a monarquia é o melhor
responsabilidade pela comunidade, tendo em vista o tipo de governo, porque assegura melhor a ordem e a
bem comum. unidade do Estado. E o pior tipo de governo é
Se os preceitos da lei humana ou positiva são precisamente a tirania, já que uma força que atua para o
derivados da lei natural, eles são conhecidos pela razão mal é mais eficaz e, portanto, mais danosa, quando está
e estão presentes no conhecimento. Desse modo, a unida (como na tirania).
sociedade poderia até não fixá-los na lei humana ou O Estado pode encaminhar os homens para o
jurídica. Entretanto, nós os encontramos estabelecidos bem comum e pode favorecer algumas virtudes, mas
no direito. não permite ao homem alcançar o seu fim último, que
E isso se dá porque existem "pessoas propensas é sobrenatural. Em suma, a lei natural e as leis positivas
aos vícios e neles obstinadas, e dificilmente podem ser servem aos fins terrenos do homem. Mas o homem tem
guiadas pela persuasão. Assim, é necessário que sejam um fim sobrenatural, que é precisamente a bem-
obrigadas pela força e pelo temor a evitar o mal, para aventurança eterna. E a lex naturalis e a lex humana não
que, abstendo-se de fazer o mal pelo menos por esse são suficientes para conduzir o homem a esse fim. Para
motivo, deixem os outros em paz e, finalmente, por esse tanto, é necessária uma lei sobrenatural, trata-se da lex
hábito de evitar o mal, sejam levadas a fazer divina, isto é, a lei revelada, a lei positiva de Deus que
voluntariamente o que antes só faziam por medo, encontramos no Evangelho, que é guia para alcançar a
tornando-se assim virtuosas". bem-aventurança e que, além disso, preenche as lacunas
A coerção exercida pela lei humana, portanto, e imperfeições das leis humanas.
tem a função de tornar possível a convivência pacífica
entre os homens, embora para Santo Tomás ela tenha A fé como guia da razão
também função pedagógica. A lei humana, portanto,
pressupõe homens imperfeitos. E como ela não Deus é o ser supremo e perfeito, o ser
reprime todos os vícios, mas somente os "que verdadeiro. Todo o resto é fruto do seu ato criativo,
prejudicam os outros" e que, como "os homicídios, os livre e consciente. Essas são as duas teses aceitas por fé,
furtos etc.", "ameaçam a conservação da sociedade que cumprem a função de guias do discurso racional,
humana", da mesma forma "não se precisa ordenar ou melhor, essa é a medida de avaliação com que Tomás
todos os atos virtuosos, mas somente aqueles que são examina qualquer outro discurso filosófico e se
necessários ao bem comum". aproxima de Aristóteles para repropor suas teses mais
Se a derivação da lei natural é essencial para a lei qualificadas.
humana, então é evidente que, quando uma lei humana O peso dessas teses na elaboração da metafisica
contradiz a lei natural, nesse caso ela não existe como e das provas da existência de Deus foi tão relevante que
lei. Essa é a razio pela qual a lei deve ser justa. A chegou a levar não poucos estudiosos a falarem de
exemplo de Agostinho, também para Tomás "não filosofia cristã e não simplesmente de "filosofia". É
parece que possa haver lei se ela não for justa". fácil nesse caso compreender como todos os problemas
Se uma lei positiva estivesse em desacordo com propostos pela filosofia grega se modificam no quadro
a lei natural, então ela “não seria mais urna lei, mas urna da afirmação de que Deus é o ser supremo e criador.
corrupção da lei”. Enquanto, no contexto tomista, Deus é fonte
Portanto, se a lei humana não concorda com a do ser, de todo o ser, no contexto grego Deus é aquele
lei natural, ela não é lei, mas corrupção da lei. Essa ideia que dá forma ao mundo, moldando uma matéria
de Tomás teve enorme influência, sendo preexistente (Platão), ou então que dá origem ao cosmo,
frequentemente invocada para impugnar leis jurídicas atraindo-o com sua própria perfeição (Aristóteles).
consideradas em contradição com aquilo que aqueles O Deus dos filósofos gregos não dá o ser em
que impugnam tal lei consideram direito natural. Para sentido radical e total, mas apenas certo modo de ser,
Tomás, a lei humana é moralmente valida quando porque também a matéria existe desde a eternidade e é
deriva da lei natural.
109
4
dele independente. Para Tomás, ao contrário, além da Para a filosofia antiga, como o ser e o bem, o mal é o
forma dos seres, Deus é o criador do ser dos seres. não-ser, a matéria que se rebela contra a forma ou
Portanto, as provas cosmológicas, que parecem contra a ação plasmadora do Demiurgo (Platão).
tomadas em peso de Aristóteles, de certo modo mudam Tomás, para quem tudo provém de Deus, propõe o
de fisionomia. As provas não são físicas, mas físico- problema do mal (físico e moral) em contexto diferente.
metafisicas, por causa da relação primária e fundante, Sua raiz se encontra na contingência do ser
constituída pelo ato criador. finito, que explica as mutações e a morte, bem como a
Se o discurso no nível de ser mostra a liberdade da criatura racional, que pode não reconhecer
profundidade da relação dos seres com o ser supremo, sua dependência de Deus. O mal moral não é causado
o discurso sobre o ato criador mostra a nova pelo corpo. Não é o corpo que faz o espírito pecar, mas
perspectiva com a qual Tomás interpreta o mundo. o espírito que faz pecar o corpo. O mal moral não
Como Deus é fonte de todo o ser nada escapa a sua significa diminuir o papel da racionalidade, como para
ação, nem mesmo a última determinação individual. os filósofos gregos; não é identificável com o erro. O
Mas só se pode dizer que cada coisa tem um mal é desobediência a Deus, é rejeição da dependência
significado e uma vocação se cada realidade, enquanto fundamental em relação ao Criador. A raiz do mal está
existente, é por ele conhecida e querida. na liberdade.
Os antigos problemas reencontram-se no O pensamento de São Tomás de Aquino, por
quadro dessas duas teses fundamentais, mas ser o que de melhor a Igreja produziu na idade média,
aprofundados e renovados. Se Deus é o ser supremo e influenciou suas ações durante séculos. Foi o que os
criador, então as criaturas também são seres. Elas, jesuítas, responsáveis pela educação dos jovens,
porém, não são o ser, mas têm o ser através do ato ensinaram nos mosteiros, escolas e universidades. E foi
causal que, além das formas dos entes, também sobre o seu aporte teórico que caíram as críticas de
determina o ser dos entes. cientistas renascentistas como Galileu, e filósofos como
Além disso, se Deus é o ser supremo e o ser por Descartes e Thomas Hobbes.
essência, como conceber criaturas fora dele? A essa
pergunta Tomás responde com a doutrina da analogia,
extraída de Aristóteles, mas com nova valência, porque As verdades da razão natural não
explica a similitude e a dessemelhança entre o ser contradizem as verdades da fé cristã
supremo e o ser parcial.
A essa categoria agrega-se outra noção, a de Se é verdade que a verdade da fé cristã
participação, que esclarece ulteriormente como é ultrapassa as capacidades da razão humana, nem por
possível haver outros seres fora de Deus. Esses seres isso os princípios inatos naturalmente à razão podem
nada mais são do que "participação" do ser divino. estar em contradição com esta verdade sobrenatural.
Deus é o ser por essência, as criaturas por É um fato que esses princípios naturalmente
participação. inatos à razão humana são absolutamente verdadeiros;
Tal conceito implica amor, liberdade e são tão verdadeiros, que chega a ser impossível pensar
consciência, por meio dos quais Deus transmite seu ser que possam ser falsos. Tampouco é permitido
fora de si. O Deus de Aristóteles atrai para si as coisas considerar falso aquilo que cremos pela fé, e que Deus
como causa final, coisas que, porém, não foram criadas confirmou de maneira tão evidente, que só o falso
por ele; o Deus de Tomás atrai para si as criaturas, que constitui o contrário do verdadeiro, como se conclui
criou por amor, encerrando o ciclo de amor aberto com claramente da definição dos conceitos, é impossível que
o ato criador. a verdade da fé seja contrária aos princípios que a razão
Mas poderá Deus criar para a sua gloria sendo humana conhece em virtude das suas forças naturais.
esta inalterável, porque não pode crescer nem diminuir? (...) Deus não pode infundir no homem
Deus cria outros seres para que desfrutem de sua gloria, opiniões ou uma fé que vão contra os dados do
como ele próprio a desfruta. Não é para si mesmo, conhecimento adquirido pela razão natural.
portanto, mas sim para nós que Deus difunde sua É isto que faz o apóstolo São Paulo escreve, na
gloria; não é para ganhá-la, porque já a possui; nem para Epístola aos Romanos: "A palavra está bem perto de ti,
aumentá-la, porque já é perfeita, mas apenas para em teu coração e em teus lábios, ouve: a palavra da fé,
comunicá-la. que nós pregamos" (Romanos, - capitulo 10. versículo
O Deus de Tomás é o Deus do amor, sendo, 8). Todavia, já que a palavra de Deus ultrapassa o
portanto, criador e provedor, não ficando encerrado no entendimento, alguns acreditam que ela esteja em
círculo de seus pensamentos, como o Deus de contradição com ele. Isto não pode ocorrer.
Aristóteles. Também a autoridade de Santo Agostinho o
Nesse contexto, o problema do mal assume confirma. No segundo livro da obra Sobre o Gênese
outras conotações. Se Deus não existe, então o bem não comentado ao pé da letra, o Santo afirma o seguinte:
se explica. Mas, se Deus existe, de onde vem o mal? "Aquilo que a verdade descobrir não pode contrariar
110
5
aos livros sagrados, quer do Antigo quer do Novo 5.5 GUILHERME DE OCKHAN
Testamento". A figura que mais do que
Do exposto se infere o seguinte: quaisquer que qualquer outra representa as
sejam os argumentos que se aleguem contra a fé cristã, múltiplas instâncias com que se
não procedem retamente dos primeiros princípios encerra a Idade Média e se abre
inatos à natureza e conhecidos por si mesmos. o século XIV é o franciscano
Por conseguinte, não possuem valor Guilherme de Ockham, que
demonstrativo, não passando de razões de nasceu na vila de Ockham,
probabilidade sofismáticas. E não é difícil refutá-los. na Inglaterra, em 1285.
(Santo Tomás de Aquino, Súmula contra os gentios, Os
Conhecido como “o
pensadores, São Paulo. Abril Cultural, 1973, p. 70.) príncipe dos nominalistas”, no passado ele era
lembrado o mais das vezes como teórico de vis
Deus é imóvel sutilezas, privadas de qualquer contato com a realidade.
Logo, porém, sua originalidade emergiu
Daqui se infere ser necessário que o Deus que novamente nas várias vertentes do saber lógico,
põe em movimento todas as coisas é imóvel. Com cientifico, filosófico e teológico.
efeito, por ser a primeira causa motora, se Ele mesmo Além de suas contribuições lógicas, também se
fosse movido, sê-lo-ia ou por si mesmo ou por outro. destacam suas teorias físicas e, sobretudo, a concepção
Ora, Deus não pode ser posto em movimento por outra do conhecimento físico de natureza especificamente
causa motora, pois neste caso haveria, outra causa empírica, bem como a separação entre a filosofia e a
anterior a Ele, com o que já não seria Ele a primeira teologia; no campo político-religioso, a autonomia do
causa motora. Se fosse movido por si mesmo, aspecto temporal em relação ao espiritual, com suas
teoricamente isto poderia ocorrer de duas maneiras: ou consequências políticas e institucionais.
sendo Deus, sob o mesmo aspecto, causa e efeito ao O espirito “laico”, mas não “laicista”, se inicia
mesmo tempo, ou sendo Ele, sob um aspecto, causa de com ele, porque, com sua doutrina e sua vida, ele
si mesmo, e, sob outro, efeito. encarna a incipiente afirmação dos ideais de dignidade
Ora, a primeira hipótese não pode ocorrer, pois de cada homem, do poder criador do indivíduo e da
tudo o que é movido está em potência, ao passo que o cultura em expansão, livre de censuras, ideias que a
que move está em ato (na qualidade de causa motora). nova época do Renascimento desenvolverá.
Se Deus fosse sob um e mesmo aspecto causa e efeito
ao mesmo tempo, seria necessariamente potência e ato Independência da fé em relação à razão
sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo, o que é
impossível. Mais do que ninguém, Ockham tinha
Tampouco pode-se verificar a segunda hipótese consciência da fragilidade teórica da harmonia entre
acima apontada. Pois, se Deus fosse sob um aspecto razão e fé, bem como do caráter subsidiário da filosofia
causa motora, e sob outro efeito movido, já não seria a em relação à teologia.
primeira causa em virtude de si mesmo. Ora, o que é As tentativas de Tomás no sentido de mediar a
por si mesmo, é anterior ao que não o é. Logo, é relação entre razão e fé com elementos aristotélicos ou
necessário que a primeira causa motora seja totalmente agostinianos, através da elaboração de complexas
imóvel. construções metafisicas e gnosiológicas, pareciam-lhe
A mesma argumentação pode ser feita a partir inúteis e danosas. O plano do saber racional, baseado
das causas motoras e dos defeitos existentes no na clareza e evidência lógicos, e o plano da doutrina
universo criado. Com efeito, parece que todo o teológica, orientado pela moral e baseado na luminosa
movimento procede de uma causa imóvel, a qual não é certeza da fé, são planos assimétricos.
movida segundo o mesmo tipo de movimento. Assim, Não se trata apenas de distinção, mas de
observamos que os processos de alteração, de geração separação. As verdades de fé não são evidentes por si
e de corrupção verificados no reino criado inferior se mesmas, como os princípios da demonstração; não são
reduzem ao corpo celeste (o Sol) como à sua primeira demonstráveis, como as conclusões da própria
causa motora, a qual por sua vez não é movida por demonstração; não são prováveis, porque parecem
nenhuma outra situada dentro da mesma esfera, uma falsas para os que se servem da razão natural.
vez que não pode ser gerada, nem corrompida, nem A filosofia não é serva da teologia, que não é
alterada. Conclui-se, portanto, necessariamente que mais considerada ciência, mas sim um complexo de
aquele que constitui o princípio primário de todo proposições mantidas em vinculação não pela coerência
movimento é totalmente imóvel. racional, e sim pela força de coesão da fé.
(Santo Tomás de Aquino, Compêndio de teologia, Col. Os Nesse contexto e em tal direção, Ockham
pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 78.) transformou outra verdade cristã, a suprema
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6
onipotência de Deus, em instrumento de dissolução das Conhecimento intuitivo e abstrativo
metafisicas do cosmo que se haviam cristalizado nas
filosofias ocidentais de inspiração aristotélica e O primado do indivíduo leva ao primado da
neoplatonizante. experiência, na qual se baseia o conhecimento. A esse
Se a onipotência de Deus é ilimitada e o mundo respeito, é necessário distinguir entre conhecimento
é obra contingente de sua liberdade criadora, então, diz não-complexo, relativo aos termos singulares e aos
Ockham, não há nenhuma vinculação entre Deus objetos que eles designam, e conhecimento
onipotente e a multiplicidade dos indivíduos finitos, complexo, relativo às proposições resultantes,
singularmente, além do laço que brota de puro ato de compostas de termos. A evidência de uma proposição
vontade criadora da parte de Deus e, portanto, não deriva da evidência dos termos que a compõem. Não
tematizável por nós, mas conhecido apenas por sua havendo esta, não pode haver aquela. Daí a importância
sabedoria infinita. do conhecimento não-complexo, que pode ser
Então, o que são os sistemas de exemplares intuitivo e abstrativo.
ideais, de formas platônicas ou de essências universais, O conhecimento intuitivo se refere à existência
propostos por Agostinho como intermediários entre o de um ser concreto e por isso move-se na esfera da
Logos divino e a grande multiplicidade das criaturas, contingência, porque atesta a existência ou não de uma
senão resíduos de razão soberba e pagã? realidade. A importância do conhecimento intuitivo
O mesmo se diga das doutrinas da analogia, das consiste antes de mais nada no fato de que é o
causas e, antes, da metafisica do ser de Tomás de conhecimento fundamental, sem o qual os outros tipos
Aquino, que instituem relações reais ou de alguma de conhecimento não seriam possíveis. Com o
continuidade entre a onipotência de Deus e a conhecimento intuitivo chegamos a saber se uma coisa
contingência das criaturas. Essas metafisicas pertencem existe ou não existe, e assim o intelecto julga de modo
a um reino que está a meio caminho entre a fé e a razão, imediato sobre a realidade ou irrealidade de qualquer
incapaz de alimentar uma e sustentar a outra. coisa.
O conhecimento intuitivo perfeito se tem
O primado do indivíduo quando o objeto, por exemplo, da arte ou da ciência, é
uma realidade presente; ele é, ao contrário, imperfeito,
A clara distinção entre Deus onipotente e a quando se refere a qualquer realidade do passado.
multiplicidade dos indivíduos, sem nenhum laço além O conhecimento intuitivo pode ser tanto
do que pode ser identificado com o puro ato da vontade sensível (conhecer esta mesa) como intelectual,
divina criadora, racionalmente indecifrável, é tão clara a enquanto o intelecto conhece também seus próprios
ponto de induzir Ockham a conceber o mundo como atos e os movimentos da alma, como o amor, a dor ou
conjunto de elementos individuais, sem nenhum laço o prazer. Portanto, o empirismo de Ockham é
verdadeiro entre si e não ordenáveis em termos de indubitavelmente radical, mas absolutamente não
natureza ou de essência. A exaltação do indivíduo é tal fundamentado nos sentidos.
que Ockham nega até mesmo a distinção interna entre O conhecimento abstrativo deriva do
matéria e forma no indivíduo, distinção que, se fosse conhecimento intuitivo e pode ser entendido de dois
real, comprometeria a unidade e a existência do modos: de um lado, quando se refere a algo abstraído
indivíduo. de muitos singulares; por outro lado, enquanto faz
Eis, então, as duas consequências fundamentais abstração da existência e não-existência das coisas
do primado absoluto do indivíduo. Antes de mais nada, contingentes.
em contraste com as concepções aristotélicas e Consequentemente, o objeto de ambos os
tomistas, segundo as quais o verdadeiro saber tem conhecimentos é idêntico, mas captado sob aspectos
como objeto o universal, Ockham considera que o diversos: o intuitivo capta a existência ou a inexistência
objeto próprio da ciência é constituído pelo objeto de uma realidade, ao passo que o abstrativo prescinde
individual. A segunda é que todo o sistema de causas desses dados. Os dois conhecimentos são
necessárias e ordenadas, que constituíam a estrutura do intrinsecamente distintos porque cada qual tem o seu
cosmo platônico e aristotélico, cede seu lugar a um próprio ser: o primeiro diz respeito a juízos de
universo fragmentado em inúmeros indivíduos existência, o segundo não; o primeiro está ligado à
isolados, absolutamente contingentes porque existência ou não de uma coisa (por exemplo, este livro
dependentes da livre escolha divina. sobre a mesa), o segundo prescinde disso; o primeiro é
Nesse contexto, pode-se compreender a causado pelo objeto presente, o segundo o pressupõe e
irrelevância dos conceitos de ato e potência, bem como é posterior sua apreensão; o primeiro trata de verdades
de matéria e forma, nos quais baseava-se há mais de um contingentes, o segundo de verdades necessárias e
século a problemática metafisica e gnosiológica universais.
ocidental. Mas em que sentido o conhecimento abstrato
persegue verdades necessárias e universais?
112
7
O nominalismo A “navalha de Ockham”

Em muitas oportunidades e sem vacilações, Nesse contexto de extrema fidelidade ao


Ockham afirmou que o universal não é real. A realidade individual não é difícil captar as implicações do preceito
do universal, portanto, é contraditória, devendo ser metodológico, simples na enunciação, mas fecundo em
total e radicalmente excluída. A realidade é consequências, assim formulado: "Não se deve
essencialmente individual. multiplicar os entes se não for necessário".
Os universais são nomes, não uma realidade, Conhecido como a "navalha de Ockham", esse
nem algo com fundamento na realidade. A realidade, lema tornou-se arma crítica contra o platonismo das
portanto, é essencialmente individual. essências e contra os aspectos do aristotelismo em que
Como ficam então o conhecimento abstrativo e se percebe mais a presença de elementos platônicos.
o caráter universal de suas proposições? Se ele não é real Em rápida sequência, vejamos como, na filosofia de
nem tem fundamento na realidade, é licito falar ainda Ockham, caem por terra os pilares da metafisica e da
de universal? gnosiologia tradicional.
Os universais não são coisas existentes fora da Antes de mais nada, é fundamental a rejeição da
alma, nas coisas. Eles são simplesmente formas verbais metafisica do Ser analógico de Tomás, em nome do
por meio das quais a mente humana estabelece uma único laço entre finito e infinito, constituído pelo puro
série de relações de exclusiva dimensão lógica. ato da vontade criadora de Deus, ato que não é passível
O que é então o conhecimento abstrativo? É de nenhuma tematização racional.
sinônimo do conhecimento extraído de muitos objetos Juntamente com o conceito metafísico de ser
individuais. Se cada realidade singular provoca um analógico, cai também o conceito de substância. Nós só
conhecimento também singular, a repetição de muitos conhecemos das coisas as qualidades ou os acidentes
atos de conhecimento relativos a coisas semelhantes que a experiência revela. O conceito de substância
entre si gera no intelecto conceitos que não significam representa apenas uma realidade desconhecida,
uma coisa singular, mas uma multiplicidade de coisas arbitrariamente enunciada como conhecida. Nenhum
semelhantes entre si. motivo milita em favor de tal entidade, cuja admissão
Como sinais abreviatórios de coisas viola o princípio da economia da razão.
semelhantes, tais conceitos são chamados universais, O mesmo se diga da noção metafísica de causa
não representando, portanto, nada mais que a reação do eficiente. Aquilo que é cognoscível empiricamente é a
intelecto à presença de realidades semelhantes. Assim, diversidade entre causa e efeito, ainda que no constante
se o nome "Sócrates" se refere a determinada pessoa, o suceder-se deste àquela. É possível enunciar as leis que
nome "homem" é mais genérico e abstrato, porque se regulam o decurso dos fenômenos, mas não um
refere a todos os indivíduos que podem ser indicados pretenso vínculo metafísico e, portanto, necessário
pela forma geral e abreviatória típica daquele conceito, entre causa e efeito. E o que se diz da causa eficiente
que por isso é chamado de universal. vale também para a causa final.
Mas, se não existe uma natureza comum nem se Quem afirma que ela atua enquanto querida e
pode considerar real o universal, como fica então a desejada fala metaforicamente, porque o desejo e o
ciência que, segundo os aristotélicos e os agostinianos, amor não implicam ação efetiva. Ademais, não é
não tem por objeto o singular, mas sim o universal? possível demonstrar que um evento qualquer tenha
Naturalmente, as premissas de Ockham causa final. Não tem sentido dizer que o fogo queima
excluem um sistema de leis universais e, mais ainda, em função de um fim, uma vez que não é necessário
uma estrutura hierárquica e sistemática do universo. postular um fim para que se tenha tal efeito.
Mas será que a queda dessa construção metafisica No que se refere à gnosiologia, com suas
prejudica todo saber? implicações metafísicas, o discurso é mais simples.
Segundo o príncipe dos nominalistas, tal tipo de Diante do tema de se é ou não necessário distinguir o
saber metafísico cristaliza danosamente o saber. Para intelecto agente do intelecto possível, tão debatido
ele, é suficiente um tipo de conhecimento provável, entre aristotélicos e averroístas e aristotélicos-tomistas,
que, baseando-se em repetidas experiências, permite Ockham afirma que essa é uma questão ociosa.
prever que o que aconteceu no passado tem alto grau Ele não apenas nega essa distinção como
de possibilidade de acontecer também no futuro. supérflua, mas afirma com decisão a unidade do ato
Abandonando, portanto, a confiança cognoscitivo e a individualidade do intelecto que o
aristotélica e tomista nas demonstrações metafisico- realiza.
físicas, ele teoriza certo grau de probabilidade derivada A suposta necessidade de categorias e de
da pesquisa e, ao mesmo tempo, a estimula em um princípios universais, que levara a distinção entre
universo de coisas individuais e múltiplas, não intelecto agente e intelecto possível, é considerada
correlatas por nexos imutáveis e necessários. artificiosa e completamente inútil para a concretização
efetiva do conhecimento. Se o conjunto das operações
113
8
cognoscitivas é único, também único deve ser o portanto, a exigência de profunda transformação da
intelecto que o realiza. estrutura e do espirito da Igreja.
Tal sequência de críticas à construção metafisica Trata-se de projeto que, pelo que se pode ver a
e gnosiológica com a qual Ockham se defronta nos partir destes últimos elementos, atinge todos os
sugere duas observações. fundamentos da cultura medieval, lançando os
Antes de mais nada, a "navalha de Ockham" pressupostos da cultura humanista-renascentista.
abre caminho para um tipo de consideração Envolvido no conflito entre o papado e o
"econômica" da razão, que tende a excluir do mundo e império, Ockham pretende redimensionar o poder do
da ciência os entes e conceitos supérfluos, a começar pontífice e retirar o caráter sagrado do império,
pelos entes e conceitos metafísicos, que imobilizam a interessado mais no primeiro do que no segundo. Se o
realidade e a ciência, configurando-se como norma papa tivesse recebido de Cristo tal plenitude de poderes
metodológica que mais tarde seria definida como e se comportasse em consequência, submeteria a si
rejeição das "hipóteses ad hoc". Por outro lado, tal crítica todos os cristãos. Teríamos então uma escravidão pior
parte do pressuposto de que não é necessário admitir do que a antiga, porque diria respeito a todos os
nada fora dos indivíduos, bem corno, por fim, de que o homens. Trata-se então de uma tese não apenas
conhecimento fundamental é o conhecimento contrária ao Evangelho, mas também às exigências
empírico. fundamentais da convivência humana.
Na realidade, seu poder é limitado. O papa é
Deus ministrador, não dominador; deve servir, não sujeitar.
Seu poder foi instituído em benefício dos súditos e não
No que se refere ao conhecimento de Deus, para que lhes fosse retirada aquela liberdade que está na
Ockham nega que se possa conhecer Deus base do ensinamento de Cristo. E tal poder não cabe ao
intuitivamente e afirma que nenhuma das provas a papa, nem ao Concilio, porque ambos são falíveis. Não
posteriori precedentemente elaboradas sobre causas é o papa, nem o Concilio, e sim a Igreja, como
seja convincente. Neste caso, mais que falar de causas comunidade livre de fiéis, que, no curso de sua tradição
eficientes (que fazem as coisas ser ou não ser), histórica, sanciona as verdades que constituem sua vida
deveríamos falar de causas conservantes (que e seu fundamento.
conservam ou não conservam), graças as quais e fácil A que seria reduzida a presença do Espirito
inferir, da existência em ato do mundo, a existência de Santo na comunidade dos fiéis se a função de sancionar
Deus. leis ou impor verdades coubesse ao papa e ao Concilio?
O conhecimento que a razão pode obter de A teocracia e a aristocracia não têm lugar na
Deus é de fato escasso, enquanto de outro porte é o que Igreja. É preciso abrir espaço para os fiéis, para todos
a fé consegue obter por meio da revelação. Desse os fiéis, membros efetivos da Igreja, cuja comunidade é
modo, por causa da manifesta incapacidade do a única à qual compete a infalibilidade.
pensamento de afirmar algo de significativo sobre
Deus, não há mais razão de continuar na busca de uma 8. A DECADÊNCIA DA ESCOLÁSTICA
colaboração entre fé e razão; o equilíbrio entre fé e
razão fora um dos principais problemas de todo o Do século XIV em diante, a escolástica sofre
pensamento medieval. um processo de autoritarismo de nefastas influências no
A síntese do pensamento de Ockham não será, pensamento filosófico e científico. Posturas
portanto, nem entender para crer (Tomás), nem crer dogmáticas, contrárias à reflexão, obstruem as
para entender (Agostinho), mas crer e entender. pesquisas e a livre investigação. O princípio da
autoridade, ou seja, a aceitação cega das afirmações
Poder papal e real contidas nos textos bíblicos e nos livros dos grandes
pensadores, sobretudo Aristóteles, impede qualquer
Ockham foi um dos mais inteligentes inovação. É a obscura fase do magister dixii, que significa
intérpretes da decadência, na consciência coletiva, dos "o mestre disse"...
ideais e dos poderes universais encarnados pelas duas O rigor do controle da Igreja se faz sentir nos
figuras teocráticas: o imperador e o pontífice romano. julgamentos feitos pelo Santo Ofício (Inquisição),
A defesa intransigente do “individuo” como órgão que examinava o caráter herético ou não das
única realidade concreta, a tendência de basear o valor doutrinas.
do conhecimento na experiência direta e imediata, bem Conforme o caso, as obras eram colocadas no
como a separação programática entre a experiência Index, lista das obras proibidas. Se a leitura fosse
religiosa e o saber racional e, portanto, entre fé e razão, permitida, a obra recebia a chancela Nihil obstat (nada
não podiam deixar de conduzi-lo à defesa da autonomia obsta), podendo ser divulgada. Quando consideravam
do poder civil em relação ao poder espiritual e, o caso muito grave, o próprio autor era julgado.
114
9
Foi trágico o desfecho do processo contra 02) Os realistas foram os primeiros filósofos a
Giordano Bruno (séc. XVI), acusado de panteísmo e acreditarem na realidade virtual; foram, assim,
queimado vivo por ter defendido com exaltação poética precursores da inteligência artificial.
a doutrina da infinitude do universo e por concebê-lo 04) Uma forma moderada de realismo foi defendida por
não como um sistema rígido de seres, articulados em Santo Tomás de Aquino, o qual, sob influência de
uma ordem dada desde a eternidade, mas como um Aristóteles, supôs que o universal estaria na coisa, como
conjunto que se transforma continuamente. sua forma ou substância; depois da coisa, como
Foi talvez a lembrança ainda recente deste conceito no intelecto; e antes da coisa, na mente divina,
acontecimento que tenha levado Galileu a abjurar, como modelo das coisas criadas.
temendo o mesmo destino de Bruno. 08) No conceitualismo de Pedro Abelardo, os
universais são conceitos que não existem na realidade,
nem são meros nomes; eles são o significado dos nomes
e podem subsistir mesmo na falta de particulares a que
QUESTÕES se apliquem.
16) O nominalismo asseverou que os universais nada
1. (UEM 2011) Sobre a relação entre filosofia, Igreja e têm de real; são meros nomes, pois o que realmente
Estado na Idade Média, assinale o que for correto. existe são os particulares.
01) Na Idade Média, os mosteiros representam uma
importante fonte do saber. Nesses locais, a cultura 3. Em O ente e a essência, Tomás de Aquino argumenta
greco-latina manteve-se preservada, graças à atividade sobre a existência de Deus, refutando teses de outras
dos copistas e à conservação dos manuscritos dos doutrinas da filosofia escolástica. Com este propósito
autores clássicos. ele escreveu:
02) Na Alta Idade Média, a Igreja começou a libertar-se “Tampouco é inevitável que, se afirmarmos que Deus é
da dominação política do Império Carolíngio e iniciou- exclusivamente ser ou existência, caiamos no erro
se um período de supremacia do poder espiritual sobre daqueles que disseram que Deus é aquele ser universal,
o poder político. em virtude do qual todas as coisas existem
04) Boécio (séc. VI) propõe a reabertura aos temas formalmente. Com efeito, este ser que é Deus é de tal
clássicos através de uma corrente espiritual e gnóstica condição, que nada se lhe pode adicionar. (...) Por este
denominada “nova sofística”, apresentada em sua obra motivo afirma-se no comentário à nona proposição do
máxima, a Suma Teológica. livro Sobre as Causas, que a individuação da causa
08) Por ser um período de obscuridade, a filosofia primeira, a qual é puro ser, ocorre por causa da sua
medieval não se dedicou aos grandes temas da filosofia, bondade. Assim como o ser comum em seu intelecto
como a questão do conhecimento, o papel da linguagem não inclui nenhuma adição, da mesma forma não inclui
e a teleologia da práxis humana, que aparecem depois, no seu intelecto qualquer precisão de adição, pois, se
com a modernidade. isto acontecesse, nada poderia ser compreendido como
16) O relacionamento entre a Igreja e o Estado ser, se nele algo pudesse ser acrescentado."
começou no fim do Império Romano, quando o AQUINO, Tomás. O ente e a essência. Trad. de Luiz João
cristianismo foi transformado em religião oficial do Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 15. Coleção .Os
Estado. Enquanto o paganismo perdia sua posição de Pensadores.
religião oficial, o cristianismo era protegido pelo Tomás de Aquino está seguro de que nada se pode
Império, o que permitiu sua difusão. acrescentar a Deus, porque
A) sua essência composta de essência e existência é
2. (UEM 2008) A questão dos universais foi um dos auto-suficiente para gerar indefinidamente matéria e
grandes problemas debatidos na Filosofia Medieval. A forma, criando todas as coisas.
dificuldade era determinar o modo de ser das idéias B) sua essência simples é gerada incessantemente,
gerais, gêneros ou espécies, tais como homem, animal embora não seja composta de matéria e forma,
etc.; ou seja, saber se os universais correspondem a uma multiplica-se em si mesmo na pluralidade dos seres.
realidade fora de nós ou se são puras abstrações do C) é essência divina, absolutamente simples e idêntica a
espírito e sem realidade. Realismo e nominalismo foram si mesma, constituindo-se, necessariamente, uma
as duas soluções típicas do problema, surgindo o essência única.
conceitualismo como solução intermediária. Em D) é ser contingente, no qual essência e existência não
relação à questão dos universais, assinale o que for dependem do tempo, por isso, gera a si mesmo
correto. eternamente, dando existência às criaturas.
01) O realismo, de inspiração platônica, afirmava que os
universais existiam na realidade, independentemente 4. Leia o trecho a seguir e assinale se as proposições
das coisas individuais. apresentadas são (V) verdadeiras ou (F) falsas,
conforme o texto. “Se é verdade que a verdade da fé
115
10
cristã ultrapassa as capacidades da razão humana, nem Assinale a afirmativa correta:
por isso os princípios inatos naturalmente à razão A) Todas as cinco vias seguem argumentos baseados
podem estar em contradição com esta verdade em elementos anímicos, como em Santo Agostinho.
sobrenatural. É um fato que esses princípios B) Todas as cinco vias fundamentam-se nos dados
naturalmente inatos à razão humana são absolutamente revelados da Sagrada Escritura.
verdadeiros e mesmo impossível pensar que sejam C) Todas as cinco vias empregam argumentos baseados
falsos. Tampouco é permitido considerar falso aquilo na tradição patrística.
que cremos pela fé, e que Deus confirmou de forma tão D)Todas as cinco vias partem de uma realidade sensível,
evidente. Já que só o falso constitui o contrário do como elemento empírico, e do princípio de causalidade,
verdadeiro, é impossível que a verdade da fé seja como elemento racional.
contrária aos princípios que a razão humana conhece
naturalmente. Deus não pode infundir no homem 6. (UEM 2012) Tomás de Aquino (1225-1274), no seu
opiniões ou uma fé que vão contra os dados do livro A Realeza, afirma: “Comecemos apresentando o
conhecimento adquirido pela razão natural. (...) Do que se deve entender pela palavra rei. Com efeito, em
exposto se infere o seguinte: quaisquer que sejam os todas as coisas que se ordenam a um fim que pode ser
argumentos que se aleguem contra a fé cristã, não alcançado de diversos modos, faz-se necessário algum
procedem retamente dos primeiros princípios inatos à dirigente para que se possa alcançar o fim do modo
natureza e conhecidos por si mesmos. Por conseguinte, mais direto. Por exemplo, um navio, que se move em
não possuem valor demonstrativo, não passando de diversas direções pelo impulso de ventos opostos, não
razões de probabilidades ou sofismáticas. E não é difícil chegará ao seu fim de destino se não for dirigido ao
refutá-los”. porto pela habilidade do comandante”.
(AQUINO, Santo Tomás. Suma contra gentios. Col. Os Pensadores. (AQUINO, T. de. A realeza: dedicado ao rei de Chipre. In:
São Paulo, Abril, 1970). Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED-PR, 2009, p. 667.)
1 ( ) O texto exemplifica a preocupação, quase geral Conforme esse trecho, é correto afirmar que
dentre os chamados “filósofos medievais”, em conciliar 01) o rei, como um dirigente, não tem um poder
as verdades de fé contidas na Bíblia com as verdades opressor ou dominador sobre os súditos.
descobertas por nossa Razão, isto é, conciliar a Fé com 02) o rei é aquele que realiza as coisas sem
a Razão Natural. intermediários.
2 ( ) O texto mostra como Tomás de Aquino 04) o rei não é necessário em todas as decisões, mas
considerava a Filosofia inútil e perigosa para o somente naquelas que envolvem interesses coletivos.
cristianismo, uma vez que, por si só, ela não prova as 08) as ações do rei não precisam levar em conta os
verdades da fé além de levantar dúvidas sobre as desejos dos súditos, mas considerar aquilo que é melhor
verdades bíblicas. para o reino.
3 ( ) Um dos objetivos do texto é mostrar que os 16) o rei ou o comandante tem a função de dirigir,
argumentos contrários à fé cristã podem ser todos orientar, o que não implica uma imposição de sua
refutados, isto é, podemos mostrar racionalmente que vontade aos súditos.
são todos falsos porque não há contradição entre
verdade de fé e verdade de razão. 7. (UEM 2013) “Os artigos de fé não são princípios de
4 ( ) Nesse texto, nos deparamos com um dos demonstrações nem conclusões, não sendo nem
pressupostos fundamentais do pensador católico mesmo prováveis, já que parecem falsos para todos,
medieval: a crença na verdade revelada, isto é, a crença para a maioria ou para os sábios, entendendo por sábios
nas proposições da Bíblia, como inquestionáveis aqueles que se entregam à razão natural, já que só de tal
porque reveladas por Deus. modo se entende o sábio na ciência e na filosofia.”
5 ( ) Pelo texto depreende-se a atitude filosófica de (OCKHAM, G. [1280-1349]. In: COTRIM, G. Fundamentos de
Tomás de Aquino, para quem é impossível Filosofia, São Paulo: Saraiva, 2006, p. 120).
compreender as verdades da fé cristã por meio de nossa A partir do trecho citado, é correto afirmar que
razão natural; somente a fé é que pode nos ajudar. 01) os argumentos calcados na fé não podem ser
Marque a opção correta: submetidos a demonstrações lógicas.
A) F, V, F, V, V 02) o filósofo apresenta a típica separação entre aquilo
B) V, V, V, V, F que é do domínio da fé e do domínio da razão para o
C) V, V, V, F, V pensamento medieval.
D) V, F, V, V, F 04) os artigos de fé são falsos por natureza, visto que
não estão submetidos nem à ciência nem à filosofia.
5. “Respondo dizendo que a existência de Deus pode 08) as demonstrações e as conclusões, para os filósofos,
ser demonstrada por cinco vias”. não podem ser deduzidas a partir de princípios falsos.
Tomas de Aquino. Suma Teológica, São Paulo: Abril
Cultural, 1979. Col. Os Pensadores.
116
11
16) a distinção entre a teologia e a ciência ou a filosofia 02) O argumento ontológico toma por pressuposto a
está, entre outras coisas, nos diferentes procedimentos ideia de que a infinitude do mundo constitui uma prova
ou nos métodos de comprovação utilizados por elas. da existência de Deus, pois o infinito cria o finito e vice-
versa.
8. (UEM 2008) Guilherme de Ockham (1280-1349) 04) Seria absurdo e contraditório conceber a
traz novas idéias à teoria política, “ainda que continue possibilidade de um Deus onipotente e perfeito que não
teológica, isto é, referida à vontade suprema de Deus. tenha por atributo a existência, pois a não existência
Diante da tradição teocrática medieval, são novas as seria uma imperfeição em choque com a perfeição
idéias de comunidade política natural, lei humana concebida. Logo, Deus existe.
política e direito natural dos indivíduos como sujeitos 08) A teoria das três metamorfoses de Friedrich
dotados de consciência e de vontade.” Nietzsche, em Assim falou Zaratustra, segundo a qual o
(CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 13.ª ed., São Paulo: Ática, homem nasce um camelo (a), torna-se um leão (b) e
2008, p. 366). morre uma criança (c), prova a existência de Deus pelo
Assinale o que for correto. fato de aceitar as três formas da vida: infância,
01) Guilherme de Ockham não separa o poder juventude e maturidade.
espiritual da Igreja do poder temporal da comunidade 16) Um ser contingente é aquele cuja existência
política; por essa razão, ele afirma que, em nenhuma depende da existência de outro ser que o criou. Se todos
hipótese, o bom cristão pode contestar a autoridade da os seres fossem contingentes, nada existiria. Portanto,
palavra do Papa. para que exista o mundo, existe um ser necessário e
02) O tiranicídio não é admitido por Guilherme de criador de tudo: Deus.
Ockham, todavia os governados podem resistir ao
tirano e procurar instrumentos legais que contestam sua
autoridade para forçá-lo a abdicar.
04) Guilherme de Ockham pertence à corrente
nominalista, segundo a qual os conceitos universais são
apenas conteúdos da nossa mente, expressos em
nomes, isto é, são apenas palavras sem nenhuma
realidade específica correspondente.
08) Contrariamente ao que pensava Santo Agostinho, o
homem, para Guilherme de Ockham, não foi dotado de
livre-arbítrio, razão pela qual não pode ser
responsabilizado pelos seus atos.
16) Guilherme de Ockham reconhece dois grandes
tipos de direitos naturais: o direito natural objetivo, isto
é, a ordem natural hierárquica estabelecida pela lei
divina, e o direito natural subjetivo, possuído pelo
indivíduo como ser racional e livre.

9. (UEM 2016) Baseado na metafísica de Aristóteles,


durante a Escolástica Tomás de Aquino (1225-1274)
reformulou os argumentos que provam a existência de
Deus. a) Movimento, b) causa eficiente, c) contingência, d)
graus de perfeição, e) causa final constituem, para Tomás de
Aquino, as “cinco vias” da prova da existência de Deus.
Anselmo de Aosta (1033-1109) é conhecido pelo
argumento ontológico, que também aparece em Descartes
(1596-1650), no início da era moderna.
Analise, a seguir, os argumentos racionais apontados
para provar a existência de Deus e assinale o que for
correto.
01) Tudo o que se move deve seu movimento a algo
que provocou este movimento, pois nada se moveria
por si mesmo. Ora, para evitar a regressão ao infinito, é
necessário que exista um motor que mova todas as
coisas e que, por sua vez, não é movido por nenhuma:
Deus.

117
12
GABARITO

QUESTÕES ESCOLÁSTICA
1. 1/2/16
2. 1/4/8/16
3. c
4. d
5. d
6. 1/4/8/16
7. 1/2/8/16
8. 2/4/16
9. 1/4/16

118
13
FILOSOFIA MODERNA O homem passaria a olhar o mundo desde
então, não mais a partir de Deus, mas a partir de si
1. RENASCIMENTO – ROMPIMENTO COM O mesmo. O centro das coisas agora era o homem
ANTIGO E O NASCIMENTO DO (MUNDO) (antropocentrismo). Por isso que os pensadores desse
MODERNO tempo ficaram conhecidos como humanistas.
Eles estavam no século XIII, onde poderiam
A ruptura com o sistema feudal não aconteceu encontrar fundamentos para essas suas ideias? Isso
da noite para o dia. Foi um processo lento e gradual de mesmo, eles tiveram que recuar mais de 1.000 anos para
transformações no mundo e no pensamento que encontrar nos gregos antigos algo parecido com o que
aconteciam ainda na (baixa) Idade Média. Se ainda hoje estava acontecendo com eles. E não foi muito difícil
existem resquícios desse tempo, imagine durante essa fazer isso, já que eles estavam, onde mesmo?
passagem. Exatamente, no centro do que fora o maior império do
A ponte entre esses dois mundos foi o mundo, o mesmo que conquistou os gregos e mesclou
Renascimento, que começou ainda no século XIV e se a cultura deles com a sua, preservando vários de seus
estendeu até o século XVI. Foi ele o combustível escritos.
intelectual que justificou o abandono de uma forma Os homens do renascimento foram buscar nos
(ultra)passada de ver a si mesmo e ao mundo, e deu gregos e romanos antigos inspiração para louvarem o
novas cores, formas e respostas ao que já estava ser humano. Isso mesmo, “inspiração”. Eles não
acontecendo e ao que ainda estava por vir. Por isso, é estavam querendo simplesmente copiá-los, prova disso
ele que passaremos a estudar agora. é que diferentemente dos antigos que contemplavam a
Enquanto os grandes reinos estavam sendo natureza, os renascentistas queriam conhecê-la para
criados, porque a situação estava um caos e precisava- dominá-la.
se de um poder forte para controlá-la, na Península Não bastava um pensamento contemplativo,
Itálica, onde se encontravam as principais rotas eles queriam um saber ativo que lhes permitissem criar
comerciais, cidades muito ricas ficavam cada vez mais coisas. O homem renascentista que rompeu com as
ricas devido ao intenso comércio com o oriente. imposições da sociedade feudal, agora queria romper
As mais ricas cidades foram Gênova, Veneza e também com as imposições que a natureza lhe
Florença, comandadas por ricas famílias de impunha. Descobrir seus mistérios para usá-los a seu
comerciantes e banqueiros, e onde um grande número favor era algo muito rentável e promissor.
de pessoas de todos os lugares passavam por lá e, além Pergunte aos navegadores que tinham que
de comerciarem, trocavam ideias e experiências de vida, desbravar os mares, aos mineradores que tinham que
ampliando os horizontes de seus habitantes. encontrar metais preciosos para cunhar moedas.
Nessas cidades, uma nova ordem social era Pergunte aos estudantes de medicina que queriam
criada. Lá os homens faziam seus destinos por conta conhecer melhor o corpo humano para trata-lo melhor,
própria, eram senhores de si, construtores de seu novo e aos engenheiros que queriam descobrir novas formas
mundo. Este, era muito diferente daquele existente no de construir armas para guerrear com mais facilidade.
campo, onde imperavam as regras sociais feudais Essa vontade de obter um conhecimento que os
sustentadas pela visão teocêntrica (Deus no centro de ajudassem em questões práticas (o embrião do
tudo) imposta pela Igreja. conhecimento científico), se refletiu em todos os ramos
Esses homens não aceitavam a imobilidade da cultura, desde a política até as artes. Mas havia algo
social, em que um servo morreria servo, quando que os impedia em progredir, e que infelizmente
homens pobres podiam ficar ricos e melhorar de via. também estava lá junto deles na Península Itálica.
Eles não aceitavam ter uma vida de penitências quando Era a Igreja com seus ensinamentos
se poderia aproveitar os prazeres que a vida tem a escolásticos, principalmente Santo Tomas de Aquino e
oferecer. Eles não aceitavam que a busca pelo lucro Aristóteles, que ensinavam um conhecimento baseado
fosse um pecado mortal, enquanto que esse lucro lhes na pura contemplação e que vinha sendo transmitido às
proporcionava mudar para uma vida melhor, na medida gerações pela tradição, que era indiscutível.
de seu próprio esforço pessoal. Para a Igreja, esses desgraçados que já haviam
Percebam que nessas ricas cidades a visão de rompido com a organização social que ela havia dito
mundo feudal (teocêntrica) fundamentada pela Igreja que era a única correta, pois reflexo da vontade de
não tinha muito espaço. Não é que todo mundo ficou Deus, agora querem descobrir os segredos do corpo
ateu nas cidades, mas é que a interpretação de mundo humano, da natureza, e do universo. Mas ela já havia
passa a se dar a partir do homem, já que ele, realmente dito tudo que tinha para ser dito.
era um pecador, mas também fora feito à imagem e Essa vontade de conhecer era uma blasfêmia
semelhança de Deus, do criador. E por ter algo de tamanha que só poderia ser purificada pelo fogo da
divino, a criatura mais perfeita criada por Deus, ele Inquisição do Santo Ofício. “Ousem questionar o que
poderia também criar maravilhas.
119
1
dissemos e sofrerão as consequências”, era o aviso que Rafael Sanzio (1483 – 1520) – o “pintor da
a Igreja havia dado. madonas”. Veja só uma de suas obras mais famosas. A
Mas as famílias ricas ousaram, e, conhecidos Escola de Atenas representa os maiores pensadores da
como mecenas, financiaram vários artistas e cientistas, grécia antiga, tendo Platão e Aristótels ao centro.
que com sua arte e invenções iam firmando os valores
burgueses na nova sociedade.
Nas artes eram usados conhecimentos
científicos e matemáticos, e nelas se destacaram grandes
nomes na Península Itálica, tais como:
Leonardo da Vince (1452 – 1519) – grande
gênio da época interessou-se por tudo, engenharia,
astronomia, pintura, escultura, filosofia, física, música,
etc. Seus traços sempre valorizaram as formas humanas
e suas invenções militares ajudaram os homens daquela
época a se matarem com mais eficiência. Ele também

No campo da anatomia, juntamente com


Leonardo da Vince, o médico Andreas
Vesalius causou grande revolução ao apresentar uma
nova maneira de conceber e analisar o corpo humano.
Ele foi ousado ao criticar e indicar erros cometidos por
Galeno de Pérgamo, um proeminente médico e filósofo
romano de origem grega que era tido como o mais
dissecava corpos nas horas vagas, e seus desenhos
conceituado anatomista até então. Deferentemente de
ajudaram a entender melhor o funcionamento do corpo
seus contemporâneos, que acreditavam piamente nos
humano.
estudos de Galeno, Vesalius ia a fundo e dissecava
Michelangelo Buonaroti (1475 – 1564) – foi
corpos humanos por ele mesmo, havia até mesmo
considerado o gigante do renascimento. As suas duas
dissecações públicas.
maiores obras, o teto da Capela Sistina e o Davi, foram
Com as mãos constantemente ensanguentadas,
relacionadas a temas cristãos. Mas olhe só a imagem que
pregava incansavelmente o conceito de que para
há por trás de Deus no momento da criação. Você
conhecer o corpo humano era necessário dissecá-lo.
consegue reconhecer? E o Davi, qual a diferença com
as esculturas dos deuses e heróis gregos?

Nas ciências como a biologia, física,


matemática, astronomia, tivemos grandes nomes que
enfrentaram os dogmas (verdades indiscutíveis) da
Igreja. Nicolau Copérnico (1473 – 1543) desafiou a
teoria geocênctrica (terra no centro do universo)
defendida por Aristóteles e pela Igreja, e propôs o
modelo heliocentrico (sol no centro).

120
2
QUESTÕES adquirem um caráter laico. É possível constatar isso,
inclusive, na nova concepção que o corpo adquire
1. Durante o Renascimento, houve uma revolução durante o Renascimento.
tecnológica fundamental, em máquinas e Sobre o Renascimento e a Idade Moderna, assinale o
equipamentos, cujo impacto para o progresso das que for correto.
01) Os estudos de anatomia, praticados pelo médico
ciências equipara-se ao advento da internet no final do
belga Vesalius (1514 – 1564) e por Leonardo da Vinci
século XX. Essa revolução se deveu (1452 – 1519), não só alteram várias concepções
A) à imprensa dos tipos móveis que agilizou a troca de inadequadas da anatomia tradicional, baseadas nas
ideias e a divulgação de inventos. obras de Galeno (séc. II), como também alteram a
B) às Reformas religiosas, a partir das quais as pessoas representação religiosa do corpo humano e lhe dão uma
deixaram de ser crentes e místicas. conotação física, naturalista e biológica.
C) à expansão marítima, cujos lucros contribuíram para 02) Por considerar o corpo humano apenas matéria, a
Igreja da Idade Média não se importava com a
o desenvolvimento científico e comercial autônomo das
exumação de cadáveres para a prática de experiências
colônias. científicas.
D) ao Moderno Estado Europeu, que priorizou as áreas 04) A Idade Moderna desenvolve uma concepção
exatas e tecnológicas nas universidades. mecanicista do corpo que pode, inclusive, ser
E) ao intercâmbio de informações entre as civilizações encontrada na obra de René Descartes.
europeia, chinesa e islâmica. 08) A secularização da concepção do corpo apresenta-
se durante o Renascimento na expressão artística,
2. Observe as duas imagens a seguir. A primeira é a foto como, por exemplo, na arte pictórica de Rembrandt,
de uma estátua grega do século V a.C., a segunda é da que reproduz a experiência de Vesalius no seu quadro
estátua de Davi, feita por Michelangelo, no século XVI. A lição de anatomia.
16) A exumação dos cadáveres, sua dissecação e as
experiências neles exercidas eram, no início da Idade
Moderna, rigorosamente submetidas aos princípios da
bioética e fiscalizadas por um conselho composto por
membros da Igreja e magistrados.

A semelhança de estilos entre as mesmas não é


coincidência, porque o movimento artístico e cultural
de que Michelangelo fez parte inspirava-se nos valores
da cultura e da arte criada pelos gregos na época
clássica. Que nome foi dado a esse movimento de
renovação cultural e artística de que Michelangelo fez
parte?
a) Iluminismo
b) Romantismo
c) Modernismo
d) Renascentismo
e) Naturalismo

3. (UEM 2009) O Renascimento é considerado um


marco da Idade Moderna. Uma das características desse
período é o processo de secularização do universo, da
sociedade, da cultura: muitos princípios e práticas que
tinham uma fundamentação teológica e religiosa
121
3
2. MICHEL DE MONTAIGNE O homem é mísero? Pois bem, captemos o
sentido dessa miséria. É limitado? Captemos o sentido
O Ceticismo dessa limitação. É medíocre? Captemos o sentido dessa
conseguiu criar verdadeira e mediocridade. Mas, se compreendermos isso,
própria maneira cultural na compreenderemos também que a grandeza do homem
França com Michel de está precisamente em sua mediocridade.
Montaigne (1533-1592). Então é claro que o “conhece-te a ti mesmo”
Com ele o Ceticismo não pode desembocar em uma resposta sobre a essência
convive com uma fé sincera. do homem, mas somente sobre as características do
Isso surpreendeu muitos homem singular, que alcançamos vivendo e
historiadores. Na realidade, observando os outros viverem, bem como procurando
porém, sendo o ceticismo nos reconhecer a nós mesmos refletidos na experiência
desconfiança na razão, ele dos outros.
não põe a fé em causa, pois Os homens são notavelmente diversos entre si
esta situa-se num plano diferente, sendo, portanto, e, não sendo possível estabelecer os mesmos preceitos
estruturalmente inatacável pelo espirito cético. para todos, é preciso que cada um construa uma
A “naturalidade” do conhecimento de Deus sabedoria a sua própria medida. Cada qual só pode ser
depende inteira e exclusivamente da fé. O cético, sábio de sua própria sabedoria; o sábio deve saber dizer
portanto, só pode ser fideísta. sim a vida, em qualquer circunstância, e aprender a
Mas o fideísmo de Montaigne não é o do aceitá-la e amá-la assim como é, sempre.
místico. E o interesse de sua obra volta-se Como cada ser humano apresenta múltiplos
predominantemente para o homem e não para Deus. A aspectos e cada um tem suas características próprias,
antiga exortação contida na sentença inscrita no templo não é possível estabelecer regras para todos os homens.
de Delfos, "conhece-te a ti mesmo", da qual Sócrates e Não podemos indicar algo que seja comum a todos,
grande parte do pensamento antigo se apropriaram, cada indivíduo tem que elaborar seu próprio
torna-se para Montaigne o programa do autêntico conhecimento, sua sabedoria particular, que vai ser a
filosofar. Mas não só isso, os filósofos antigos visavam sua medida para conhecer a si mesmo. Conhecendo a si
ao conhecimento do homem com o objetivo de mesmo o homem também regressa a si, o que é um dos
alcançar a felicidade e esse objetivo também está no princípios do renascimento.
centro da sua filosofia. Montaigne se preocupa também com a
A dimensão mais autêntica da filosofia é a da condição existencial do ser humano. A existência é um
“sabedoria”, que ensina como devemos viver para problema, uma pergunta que nunca poderá ser
sermos felizes. respondida. A nossa existência é uma experiência
Mas como a razão cética, abraçada por constante e constantemente também deve explicar a si
Montaigne, pode alcançar esses objetivos, aquela própria. Cada pessoa traz em si a condição existencial
mesma razão cética que propõe acima de todas as coisas de toda humanidade. Ele busca descrever o homem
a pergunta de advertência "o que sei eu?". descrevendo a si mesmo. Ele e o homem são um
Sexto Empírico (filósofo grego que viveu entre milagre em si mesmo.
os séculos II e III d.C) escreveu que os céticos Em seus escritos ele diz utilizar a própria vida
conseguiram resolver o problema da felicidade como filosofia. A sua filosofia é um relato
precisamente mediante a renúncia ao conhecimento da autobiográfico, pois para ele cada indivíduo tem em si a
verdade. A este propósito, ele citava o conhecido capacidade máxima da situação humana. O homem
apólogo do pintor Apeles que, não conseguindo pintar deve buscar ser somente o que ele é, ou seja, um
satisfatoriamente a espuma sobre a boca de um cavalo, homem, e nada mais que isso. Não podemos fazer nada
tomado de raiva, lançou contra a pintura a esponja melhor do que sermos humanos. De nada adianta
embebida em tintas. criarmos fantasias de que seremos algo mais elevado do
Então, a esponja deixou na tela uma mancha que humanos que somos. Aspirarmos ser algo além de
que parecia espuma. E da mesma maneira que, com a homens é inútil e pode nos causar danos morais.
renúncia, Apeles alcançou o seu objetivo, os céticos, Ele afirma ainda que a morte faz parte da nossa
com a renúncia a encontrar o verdadeiro (ou seja, condição de humanos. Nós somos uma mescla de vida
suspendendo o juízo), acabaram encontrando a e morte e ambas confundem-se em nós. Aprender a
tranquilidade. viver é aprender a morrer. Quando assumimos nossa
A solução adotada por Montaigne inspira-se condição mortal tendemos a estimar mais a vida que
nessa, mas é muito mais articulada, rica em nuanças e temos. A morte nos faz desejar viver mais e melhor.
sofisticada, com a inclusão, também, de sugestões
epicuristas e estóicas.
122
4
QUESTÕES magos-filósofos renascentistas, procurando manter-se
dentro dos limites da ortodoxia cristã, mas que ele
1. (UEM 2013) “É costume de nossos tribunais tratou de levar às últimas consequências. E mais, o seu
condenar alguns para exemplo dos outros. Condená-los pensamento pode ser entendido como uma espécie de
unicamente porque erraram seria inepto, como diz gnose renascentista, uma mensagem de salvação
Platão. O que está feito não se desfaz; mas é para que moldada no tipo de religiosidade "egípcia", como
não tornem a errar ou a fim de que os outros atentem precisamente pretendia ser a mensagem dos escritos
para o castigo. Não se corrige quem se enforca; herméticos. Ele adequa o neoplatonismo para servir de
corrigem-se os demais com ele. Eu faço a mesma coisa. base e de moldura conceitual para essa sua visão
É certo que os meus erros são naturais e incorrigíveis, religiosa.
mas assim como os homens de bem oferecem ao povo A filosofia de Bruno é fundamentalmente
o exemplo do que este deve fazer, eu os convido a não hermética, ele era um mago hermético do tipo mais
me imitarem” radical, com uma espécie de missão mágico-religiosa.
(MONTAIGNE, M. Da arte de conversar. In: Ensaios. São Paulo: Consequentemente, é claro que Bruno não
Abril Cultural, 2005, p. 245). podia estar de acordo com os católicos nem com os
A partir do trecho acima, assinale o que for correto. protestantes (em última instância, não pode ser
01) A punição de um crime não desfaz o erro cometido. considerado sequer cristão, pois acabou pondo em
02) Os tribunais não fazem justiça, pois aplicam ao dúvida a divindade de Cristo e os dogmas fundamentais
sentenciado uma punição em vista dos outros. do cristianismo) e que os apoios que buscava, ora de
04) O efeito educador da punição não está no temor uma parte ora de outra, eram apenas apoios táticos para
que gera no restante da comunidade, mas no rigor da realizar a própria reforma.
sentença. E precisamente por isso é que ele provocou
08) A imitação das boas ações não se funda no exemplo, violentas reações em todos os ambientes nos quais
conforme o ditado: “faça o que eu mando, mas não faça ensinou. Bruno não podia seguir nenhuma seita, porque
o que eu faço”. seu objetivo era o de fundar ele próprio uma nova
16) A educação dos costumes não se faz visando ao religião.
passado, mas às ações futuras. E, no entanto, estava cheio de Deus e o infinito
foi o seu princípio e o seu fim. Mas trata-se de um
3. GIORDANO BRUNO "divino” e de um "infinito" de caráter neopagão, que o
Nascido em Nola aparato conceitual do neoplatonismo prestava-se a
em 1548, Giordano expressar de modo quase perfeito.
Bruno entrou muito
jovem no convento de O cosmo e seu significado
São Domingos em
Nápoles, onde foi Depois do período na França, a etapa mais
ordenado sacerdote em significativa da carreira de Bruno foi sua estada na
1572. Acusado em 1576 Inglaterra, onde elaborou e publicou os "Diálogos
de heresia e de Italianos”, que constituem suas obras-primas.
homicídio, deixou o sacerdócio e iniciou uma fase de Antes de falar do seu conteúdo, é bom
peregrinações pela Europa, até que em 1591 voltou para identificar como Bruno se apresentou aos ingleses,
a Itália, aceitando o convite do nobre veneziano João particularmente aos doutos da Universidade de Oxford.
Mocenigo, que desejava dele aprender uma arte antiga Ele expôs uma visão copernicana do
de memorização, porém, denunciou-o ao Santo Oficio. universo, centrada na concepção heliocêntrica e na
Começou então o processo por heresia que se concluiu infinitude do cosmo, vinculando-o à magia astral e ao
com a condenação à morte na fogueira, executada em culto solar. Criou-se um escândalo, que obrigou Bruno
Roma dia 7 de fevereiro de 1600. Até o fim, Bruno não a despedir-se rapidamente dos "pedantes gramáticos"
renegou seu credo filosófico-religioso. de Oxford, que nada haviam entendido de sua
mensagem.
A discordância com o cristianismo A imagem que ele queria transmitir de si
mesmo, portanto, era a do mago renascentista, de
Para entender a mensagem de um filósofo é alguém que propunha a nova religião "egípcia" da
preciso captar a essência do seu pensamento, a fonte revelação hermética, o culto do deus que está presente
dos seus conceitos e o espirito que lhe dá vida. No caso nas coisas.
de Giordano Bruno, onde estão esse fulcro, essa fonte No seu pensamento o “egipcianismo” é
e essa alma? apresentado até mesmo como temática, ao passo que
A marca que distingue o seu pensamento é de Hermes Trismegisto, é apresentado como fonte de
caráter mágico-hermético. Bruno se coloca na trilha dos sabedoria. E essa visão do "deus nas coisas" esta
123
5
expressamente ligada à magia, entendida como Com base nisso, Bruno sustenta não apenas a
sabedoria proveniente do “sol inteligível”, que é infinitude do mundo em geral, mas também
revelada ao mundo ora em menor ora em maior (retomando a ideia de Epicuro) a infinitude no sentido
medida. da existência de mundos infinitos semelhantes ao
O “egipcianismo” de Bruno é uma forma de nosso, com outros planetas e outras estrelas, "e isso se
religião paganizante, com base na qual ele pretendia chama universo infinito, no qual há inumeráveis
fundar a reforma moral universal. mundos".
Mas quais são seus fundamentos filosóficos? Infinita também é a vida, porque infinitos
Acima de tudo Bruno admite uma "causa" ou um indivíduos vivem em nós, assim como em todas as
"princípio supremo", ao qual ele chama também de coisas compostas. O morrer não é morrer, porque
"mente sobre as coisas", da qual deriva todo o restante, "nada se aniquila". Assim, o morrer é apenas uma
mas que permanece incognoscível para nós. mudança acidental, ao passo que aquilo que muda
Todo o universo é efeito desse primeiro permanece eterno.
princípio; mas não se pode remontar do conhecimento Mas, então, por que existe essa mutação? Por
dos efeitos ao conhecimento da causa, como não se que a matéria particular procura sempre outra forma?
pode remontar da visão de uma estátua à visão do Será que procura outro ser? De modo bastante
escultor que a fez. Esse princípio outra coisa não é do engenhoso, Bruno responde que a mutação não
que o Uno de Plotino adaptado por um renascentista. procura "outro ser" (pois tudo já existe desde sempre),
e sim "outro modo de ser". E nisso reside precisamente
a diferença entre o universo e as coisas singulares do
universo: "aquele abrange todo o ser e todos os modos
de ser; estas, cada qual tem todo o ser, mas não todos
os modos de ser". Assim, Bruno pode dizer que o
universo é "esferiforme" e, ao mesmo tempo,
"infinito".
O conceito de Deus como "esfera que tem o
centro em toda parte e a circunferência em nenhum
lugar", que apareceu pela primeira vez em tratado
hermético, serve admiravelmente a Bruno; é
precisamente com essa base que ele opera a conciliação
Assim como em Plotino o Intelecto deriva do já referida.
Supremo Princípio, analogamente, Bruno também fala Deus é todo infinito e totalmente infinito,
de um Intelecto universal, mas o entende, de modo porque é todo em tudo e totalmente também em toda
mais marcadamente imanentista, como mente nas parte do todo. Como efeito derivado de Deus, o
coisas e precisamente como faculdade da Alma universo é todo infinito, mas não totalmente infinito,
universal, da qual brotam todas as formas que são porque é todo em tudo, mas não totalmente em todas
imanentes à matéria, constituindo com ela um todo as suas partes (ou, de todo modo, não pode ser infinito
indissolúvel. no modo como Deus é, sendo causa de tudo em todas
As formas são a estrutura dinâmica da matéria, as partes).
"que vão e vêm, cessam e se renovam", precisamente Estamos agora em condições de entender as
porque tudo é animado, tudo está vivo. A alma do razões da entusiástica aceitação da revolução
mundo está em cada coisa. E na alma está presente o copernicana por Giordano Bruno.
intelecto universal, fonte perene de formas que Com efeito, o heliocentrismo:
continuamente se renovam. a) harmonizava-se perfeitamente com seu
Por isso, é compreensível que, nesse contexto, hermetismo, que atribuía ao sol (símbolo do intelecto)
Deus e natureza, forma e matéria, ato e potência um significado inteiramente particular, e
acabem por coincidir, a ponto de Bruno escrever: "Daí, b) permitia-lhe romper a visão estreita dos
não é difícil ou grave, em última instância, aceitar que, segundo a aristotélicos, que sustentava a finitude do universo, e
substância, tudo é uno, como talvez tenha entendido Parmênides, assim fazia desvanecer todas as "fantásticas muralhas"
tratado ignobilmente por Aristóteles. ” dos céus, tornando-os sem limites rumo ao infinito.

A infinitude do todo e a revolução copernicana Conclusão

O infinito se torna, a marca emblemática da sua Bruno é certamente um dos filósofos mais
filosofia. Com efeito, para Bruno, se a Causa ou o difíceis de entender. E, no âmbito da filosofia
Principio primeiro é infinito, também o efeito deve ser renascentista, certamente é o mais complexo. Daí as
infinito. exegeses tão diversas que sobre ele foram propostas.
124
6
No estado atual dos estudos, porém, muitas A mesma noticia lhe é confirmada por seu ex-
conclusões a que se chegara no passado devem ser discípulo Jacques Badouere. Justamente com base
revistas. nestas notícias Galileu construiu a luneta. E a coisa
Não parece possível fazer dele um precursor da realmente interessante é que ele a tenha levado para
revolução do pensamento moderno, no sentido em que dentro da ciência, como instrumento científico a ser
operara a revolução científica, porque seus interesses utilizado como potencialização de nossos sentidos.
eram de natureza completamente diferente, ou seja, Esse foi o grande passo para o conhecimento
mágico-religiosos e metafísicos. experimental. Veja que um indivíduo, por meios dos
A defesa que ele fez da revolução copernicana sentidos, pôde sozinho desafiar os conhecimentos
fundamenta-se em bases totalmente diferentes daquelas contemplativos sustentados por todo o clero da Igreja.
em que se baseara Copérnico, tanto que alguns Além de desbancar Aristóteles com relação à
chegaram até a levantar dúvidas de que Bruno queda dos corpos, por meio de seus cálculos
realmente tenha entendido o sentido cientifico daquela matemáticos e suas experiencias na torre de Pisa, ele
doutrina. também provou que as esferas celestes não eram
Em seu conjunto, a obra de Bruno marca um perfeitas como o filosofo grego sustentava.
dos pontos culminantes da Renascença e, ao mesmo Esse foi o grande passo para o conhecimento
tempo, um dos resultados conclusivos mais experimental. Veja que um indivíduo, por meios dos
significativos desse período irrepetível do pensamento sentidos, pôde sozinho desafiar os conhecimentos
ocidental. contemplativos sustentados por todo o clero da Igreja.
Ele viu com seu telescópio as crateras lunares, e
4. GALILEU GALILEI E O INÍCIO DA o extraordinário era que não se tratava apenas de uma
CIÊNCIA EXPERIMENTAL disputa de opiniões, a palavra de Galileu contra a de
Aristóteles. Qualquer pessoa podeira ver isso pelo
Na Itália, Galileu telescópio e atestar que Galileu estava com a razão.
Galilei (1564 – 1642) Mediante a luneta, se podem ver, além das
conseguiu se impor como estrelas fixas, "outras inumeráveis estrelas jamais
um grande matemático e divisadas antes de agora"; o universo, em suma, torna-
inventor. Ele era se maior; constata-se que a lua não é um corpo
estudante de medicina e perfeitamente esférico, como até então se acreditava,
abandonou o curso, para mas é escabrosa e desigual como a terra (este é um
desgosto da família, no resultado que destrói uma coluna da cosmologia
intuito de se aprofundar aristotélico-ptolomaica, isto é, a ideia da clara distinção
nos estudos de matemática, que era sua grande paixão. entre a terra e os outros corpos celestes); vê-se que a
Galileu, contrariando os ensinamentos formais Galáxia não é “nada mais que um monte de inumeráveis
da Igreja predominantes nas escolas e universidades de estrelas, disseminadas em amontoados"; observa-se que
seu tempo, acreditava que era possível explicar o as nebulosas são "rebanhos de pequenas estrelas";
universo através da matemática, e dedicou sua vida a veem-se os satélites de Júpiter (e esta descoberta
provar que estava certo. oferecia a Galileu a inesperada visão no céu de um
Não fosse por Galileu, talvez você não teria que modelo menor do que o modelo copernicano).
responder 45 questões de matemática, um quarto da
prova. Mas também se não fosse por ele, talvez você Confirmando Copérnico
não estivesse lendo esse mateiral agora, pois
provavelmente não haveria a tecnologia necessária por Dia 12 de março de 1610 Galileu publica em
fazer ele chegar até você. Veneza o Sidereus Nuncius, obra que inicia com estas
palavras:
A fé na luneta "Grandes na verdade são as coisas que neste breve
tratado proponho a visão e contemplação dos estudiosos da
Na primavera de 1609 natureza. Grandes, digo, tanto pela excelência da matéria em si
Galileu vem a saber que um mesma, como pela novidade delas jamais ouvida em todos os
certo flamengo havia fabricado tempos passados, como também pelo instrumento em virtude do
uma lente mediante a qual os qual as próprias coisas se tornaram manifestas a nosso sentido".
objetos visíveis, por mais Nessa obra ele corrobora o sistema copernicano
distantes que estivessem dos e desmente o sistema defendido pela Igreja, que era o
olhos do observador, eram geocentrismo. Atraves de seus estudos de astronomia
vistos distintamente como se ele chegou às mesmas conclusões de Copérnico sobre a
estivessem próximos. posição da terra no sistema solar, sustentano um
125
7
sistema heliocentrico (sol no centro), contrariando a
posição geocentrica (terra no centro) da Igreja.
Daqui as raízes do desencontro entre Galileu e
a Igreja. Copérnico afirmara que "todas as esferas giram
em torno do sol como seu ponto central e, portanto, o
centro do universo está dentro do sol". E ele pensava
que sua própria teoria fosse uma representação
verdadeira do pressuposto universo. Deste parecer era
também Galileu. Para ele, a teoria copernicana descreve
o sistema do mundo.
Tal tese realista devia necessariamente aparecer
perigosa a todos - católicos e protestantes - pois
pensavam que a Bíblia em sua versão literal não podia
errar. No Eclesiastes (1,4-5) lemos que "a terra
permanece sempre em seu lugar" e que "o sol surge e se
põe voltando ao lugar de onde surgiu"; e por Josué No dia 19 de fevereiro de 1616 o Santo Oficio
(10,13) somos informados de que Josué ordena ao sol passou a seus teólogos as duas proposições não aceitas
que pare. Com base nestas passagens da Escritura pela Igreja e que resumiam o núcleo da questão:
Lutero e Calvino se opuseram ferrenhamente à teoria a) “Que o sol esteja no centro do mundo, e por
copernicana. conseguinte imóvel de movimento local”.
Nesse ano, também, obtém da parte do grão- b) “Que a terra não está no centro do mundo
duque Cosme II o rendoso posto de "matemático nem imóvel, mas se move segundo si mesma inteira,
extraordinário do estúdio de Pisa". Era como se fosse o também com movimento diurno”.
título de “o” filósofo-cientista da sua época, o pensador Cinco dias depois, dia 24 de fevereiro, todos os
mais notável e respeitado da Europa e, por conseguinte, teólogos do Santo Oficio condenaram as duas
do mundo. proposições. A sentença do Santo Oficio é transmitida
à Congregação do Índex, que no dia 3 de março de 1616
Ciência e fé emana a condenação do Copernicanismo.
No dia 26 de fevereiro, o papa tinha alertado
Entre 1613 e 1615 Galileu escreve as famosas Galileu a abandonar a ideia copernicana e lhe ordenava,
quatro cartas copernicanas sobre as relações entre sob pena de prisão, “não ensiná-la e não defendê-la de
ciência e fé. Uma a seu discípulo, o beneditino nenhum modo, nem com as palavras nem com os
Benedetto Castelli, duas a dom Piero Dini; e uma a escritos”. Galileu concordou e prometeu obedecer.
senhora Cristina de Lorena, grã-duquesa de Toscana. Em 1623 sobe ao trono pontifício, com o nome
Galileu teoriza a incomensurabilidade entre de Urbano VIII, o cardeal Maffeo Barberini, amigo e
saber cientifico e fé religiosa, os conhecimentos admirador de Galileu. Encorajado por este evento,
científicos são autônomos em relação à fé, pois Galileu retoma sua batalha cultural; e em 1632 publica
pretendem descrever o mundo; os dogmas da fé, as a obra Dialogo de Galileu Galilei Linceu, onde se discorre
proposições religiosas, de sua parte, não são e não sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico
querem ser um tratado de astronomia, mas uma e copernicano, fazendo uma defesa cerrada do sistema
mensagem de salvação. copernicano. O Diálogo sobre os dois máximos sistemas do
Galileu fixa o princípio da distinção entre mundo aparece em 1632.
ciência e fé, segundo o qual “a intenção do Espirito Urbano VIII foi convencido pelos adversários
Santo seria ensinar-nos como se vai ao céu e não como de Galileu de que o Dialogo constituía um descrédito
vai o céu”. da autoridade e talvez também do prestigio do papa, o
Para Galileu, portanto, ciência e fé são qual estaria sendo ridicularizado.
compatíveis porque incomensuráveis, não se trata de Foi assim que iniciou o segundo processo
um “ou-ou”, e sim de um “e-e”; o discurso cientifico é contra Galileu em 1633, que o condenou a negar o que
um discurso factualmente controlável, destinado a havia dito. A prisão perpetua lhe é logo comutada em
fazer-nos ver como funciona o mundo; o discurso confinamento, em sua casa.
religioso é um discurso de “salvação” que não se ocupa Na prisão domiciliar escreve os Discursos e
de descrever o mundo, e sim do "sentido" do universo, demonstrações matemáticas sobre duas novas ciências, que
da vida dos indivíduos e de toda a humanidade. aparecerão em 1638.
Denunciado ao Santo Oficio, Galileu é Essas ciências são a estática e a dinâmica. Tais
processado em Roma em 1616, ele é proibido de discursos são propostos em forma de diálogo onde
ensinar ou defender com palavra ou com os escritos a discute-se sobre a resistência dos materiais, sobre
teoria copernicana. sistemas de alavanca, e está presente a celebre
126
8
experiência sobre planos inclinados. Nesta obra A experiência cientifica de Galileu e o experimento, que
apresenta-se a contribuição mais original de Galileu à se faz para ver se uma suposição corresponde ou não à
história das ideias cientificas. realidade.
Assistido por seus discípulos Vicente Viviani e Óbivio que a Igreja não ficou parada de braços
Evangelista Torricelli, Galileu morre no dia 8 de janeiro cruzados. A inquisição caiu em cima de Galileu e ele
de 1642. teve de dizer que suas teorias eram apenas suposições
(hipóteses).
A nova ciência Apesar de tudo, a Igreja não conseguiu conter a
Revolução Científica que Galileu havia começado, e
Explicitando mais detalhadamente a imagem muitos foram os estudiosos que deram prosseguimento
galileana da ciência é preciso salientar que, para Galileu, a seus estudos, sendo Isaac Newton quem aperfeiçou o
a ciência não e mais um saber a serviço da fé, não sistema.
depende da fé, tem um escopo diferente do da fé,
aceita-se e encontra fundamentos diferentes dos da fé. E as mudanças continuaram
Autônoma em relação à fé, a ciência está desvinculada
também do autoritarismo da tradição aristotélica que E o movimento renascentista não ficou só na
bloqueia a pesquisa cientifica. Peninsula Itálica, ele se espalhou por toda a Europa. Na
E contra os aristotélicos dogmáticos e livrescos, França tivemos também Rabelais (1490 – 1553), na
Galileu recorre justamente a Aristóteles, o qual Inglaterra, Willian Sheakespeare (1564 – 1616), na
“antepõe [...] as experiências sensatas a todos os Espanha, Miguel de Cervantes (1547 – 1616), nos
discursos”; de modo que “não duvido nada de que se Paises Baixos, Erasmo de Rotterdam (1466 – 1536).
Aristóteles vive-se em nosso tempo, mudaria de É importante destacar que talvez a principal
opinião”. Com isso Galileu faz "o funeral [...] da invenção dessa época, sem a qual nada disso poderia ter
pseudofilosofia", mas não o funeral da tradição acontecido, tenha sido a imprensa (1454) do alemão
enquanto tal. Gutemberg. Ela possibilitou a reprodução rápida e
Com as devidas cautelas se pode dizer que barata dos livros já produzidos e dos que estavam sendo
Galileu é platônico em filosofia (o livro da natureza está escritos.
escrito em linguagem matemática) e aristotélico no
método (Aristóteles "teria [...] anteposto, como
convém, a sensata experiência ao discurso natural").
A ciência de Galileu é a ciência de um realista,
ou seja, a ciência de um cientista convicto de que as
teorias cientificas alcancem e descrevam a realidade; a
ciência e descrição verdadeira da realidade, e nos diz
“como vai o céu”; e é objetiva porque descreve as
qualidades objetivas e mensuráveis (qualidades
primarias) e não as qualidades subjetivas (qualidades
secundarias) dos corpos.
E esta ciência, descritiva de realidades objetivas
e mensuráveis, é possível porque é o próprio livro da
natureza que "está escrito em linguagem matemática".
A ciência, portanto, é objetiva porque não se embrenha
nas qualidades subjetivas e secundarias nem se propõe Ela foi também um importante instrumento
à busca das “essências”. contra a centralização do saber com o clero, já que antes
Do que foi dito segue-se que a pesquisa dela os livros eram copiados pelos monges de capa a
qualitativa é suplantada pela quantitativa, e são capa. Imagine quanto tempo levaria para copiar a
eliminadas as causas finais em favor total das mecânicas. quantidade de livros que circulou pela Europa nesse
O universo de Galileu é um universo tempo.
determinista e mecanicista; não é mais o universo Essas foram grandes realizações dos homens,
antropocêntrico de Aristóteles e da tradição, não é mais que ainda continuaram no campo da política com a
hierarquizado, ordenado e finalizado em função do criação dos Estados Nacionais. Diferentemente dos reis
homem. feudais, esses novos Reis teriam tanto poder que alguns
E perdem todo valor os discursos vazios e os deles desafiaram até o representante de deus na terra, o
ensinamentos de certa tradição filosófica privada de Papa.
contato com a experiência. Enquanto sobre o mundo
nos dão informações as teorias construídas sobre
“sensatas experiências” e “necessárias demonstrações”.
127
9
QUESTÕES a) I e III.
b) II e III.
1. (UFU) Certos pensadores foram capazes de c) III e IV.
sintetizar grande parte do pensamento de um período d) I, II e IV.
em uma única frase. A época de Galileu Galilei foi e) II, III e IV.
marcada por inúmeras diatribes com a Igreja Católica e
pelo surgimento de uma nova maneira de pensar. A 3. (UEM 2009) O Santo Ofício, também conhecido
frase “o livro da natureza está escrito em linguagem como Inquisição, foi instaurado em 1223. Sua função
matemática” sintetiza era reprimir qualquer manifestação do pensamento,
A) o desprezo de Galileu por Deus e por qualquer qualquer doutrina que contrariasse os valores e dogmas
preconizados pela Igreja.
explicação de caráter metafísico embasada em entidades Sobre a Inquisição, assinale o que for correto.
supranaturais. 01) A instauração da Inquisição acontece no período
B) a defesa do heliocentrismo, tese introduzida por histórico entre o séc. XII e XIV, período em que são
Nicolau Copérnico. fundadas algumas das mais importantes universidades
C) a superação da filosofia platônica com seu apreço europeias.
excessivo pela construção lógica. 02) Roger Bacon, considerado um dos maiores
filósofos e cientistas do séc XIII, defensor do método
D) a inversão entre religião e ciência com relação à
experimental e pesquisador no campo da ótica, foi
prioridade sobre a enunciação da verdade. condenado à morte pela Inquisição.
04) Galileu Galilei contestou o aristotelismo, defendeu
2. A filosofia está escrita neste imenso livro que a substituição do modelo ptolomaico do universo e
continuamente está aberto diante de nossos olhos defendeu o modelo heliocêntrico de Copérnico,
(estou falando do universo), mas que não se pode revolucionando a física e a astronomia. Suas teorias
entender se primeiro não se aprende a entender sua científicas foram consideradas heréticas pela Inquisição
e, para evitar a pena de morte, foi obrigado a negá-las.
língua e conhecer os caracteres em que está escrito. Ele
08) A Inquisição não tinha uma finalidade política, não
está escrito em linguagem matemática e seus caracteres pretendia defender a supremacia do poder espiritual da
são círculos, triângulos e outras figuras geométricas, Igreja sobre o poder temporal da sociedade laica.
meios sem os quais é impossível entender 16) A Igreja Católica, desde a criação da Inquisição,
humanamente suas palavras: sem tais meios, vagamos demorou nove séculos para reconhecer os erros
inutilmente por um escuro labirinto. cometidos contra a ciência e retratar-se das sentenças
(GALILEI, G. Il saggiatore. Apud REALE, G. & ANTISERI, D. injustas proferidas contra os cientistas que ousaram
História da filosofia. São Paulo: Paulinas, 1990, v. 2, p. 281.) revolucionar a ciência.
Tendo em mente o texto acima e os conhecimentos
4. (UEM 2008) Uma das características do
sobre o pensamento de Galileu acerca do método
Renascimento e da Modernidade que lhe é associada é
científico, considere as seguintes afirmativas. um processo de secularização da ciência que se expressa
I. Galileu defende o desenvolvimento de uma ciência por uma dissociação entre a teologia e a filosofia da
voltada para os aspectos objetivos e mensuráveis da natureza. A secularização da ciência realiza-se na
natureza, em oposição à física qualitativa de Aristóteles. separação entre razão e fé, as verdades científicas
II. Para Galileu, é possível obter conhecimento tornam-se independentes das verdades reveladas.
científico sobre objetos matemáticos, tais como círculos Assinale o que for correto.
01) O processo de secularização na Modernidade
e triângulos, mas não sobre objetos do mundo sensível. modifica o caráter da ciência; essa deixa de ser
III. Galileu pensa que uma ciência quantitativa da essencialmente contemplativa para transformar-se em
natureza é possível graças ao fato de que a própria uma ciência instrumental, cujo objetivo é conhecer a
natureza está configurada de modo a exibir ordem e natureza para intervir nela, controlá-la e apropriar-se da
simetrias matemáticas. mesma para fins úteis.
IV. Galileu considera que a observação não faz parte do 02) O mecanicismo constitui-se em um aspecto
importante da ciência moderna. A natureza e o próprio
método científico proposto por ele, uma vez que todo
ser humano são comparados a uma máquina, isto é, a
o conhecimento científico pode ser obtido por meio de um conjunto de mecanismos cujas leis precisam ser
demonstrações matemáticas. descobertas.
Assinale a alternativa que contém todas as afirmativas
corretas, mencionadas anteriormente.
128
10
04) Copérnico encontra em Aristóteles os fundamentos 5. MAQUIAVEL E O DILEMA DO PRÍNCIPE
teóricos para combater a concepção heliocêntrica do
universo defendida por Ptolomeu e pela Igreja. “Como é meu intento
08) Vesalius contribui para o conhecimento da escrever coisa útil para os
anatomia humana, ao desafiar a proibição religiosa de que se interessarem, pareceu-
dissecação de cadáveres. Suas observações corrigem me mais conveniente
muitos erros contidos na medicina de Galeno. procurar a verdade pelo
16) Com Galileu Galilei, o experimento torna-se parte efeito das coisas, do que pelo
do método científico; torna-se um marco do novo que delas se possa imaginar.
espírito da ciência. É com seus experimentos que ele E muita gente imaginou
refuta as teses aristotélicas de que o peso de um corpo repúblicas e principados que
depende de seu tamanho. nunca se viram nem jamais
foram reconhecidos como
5. (UEM 2012) Afirma o filósofo Galileu Galilei (1564- verdadeiros. ” (Maquiavel)
1642): “A Filosofia encontra-se escrita neste grande As transformações sofridas pelo poder político
livro que continuamente se abre perante nossos olhos não passaram despercebidas pelos renascentistas, e a
(isto é, o Universo), que não se pode compreender antes principal, e mais significativa personalidade nesse
de entender a língua e conhecer os caracteres com os campo foi o florentino Nicolau Maquiavel (1469 –
quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, 1527).
os caracteres são triângulos, circunferências e outras Ele assumiu um cargo importante no governo
figuras geométricas, sem cujos meios é impossível de Florença depois que a família Médici foi afastada do
entender humanamente as palavras: sem eles nós controle da cidade. Trabalhava como diplomata
vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto”. fazendo várias viagens aos grandes reinos que haviam
(GALILEI, Galileu. O ensaiador. São Paulo: Abril Cultural, 1973, se unificado, e não se conformava com o estado de
p. 119 - Coleção Os pensadores). guerra que se encontrava a Península Itálica.
Segundo esse fragmento, é correto afirmar: Maquiavel é considerado o pai da ciência
01) Conhecer algo natural implica poder traduzir as política moderna porque não escreveu um tratado
informações em conceitos matemáticos. teórico de como deveria ser o governo ideal. Desde os
02) A matemática restringe-se ao estudo do Universo. gregos até sua época, todos fizeram isso.
04) A matemática é uma língua não escrita. Sua preocupação não era como deveria ser a
08) A filosofia é o primeiro momento da investigação, política, mas sim em como ela é realmente praticada.
que precede a matemática. Com isso em mente, tendo como fundamento
16) O estudo da filosofia identifica-se com o estudo da empírico as lições que a história havia dado e como se
natureza. comportavam os grandes políticos de sua época, ele
escreveu um manual de como construir um estado
forte e como se manter no poder para governá-lo.

Formação do Estado nacional

Durante a Idade Média, como vimos, o poder


do rei era sempre confrontado com os poderes da Igreja
. ou da nobreza.
As monarquias nacionais surgem com o
fortalecimento do rei, e, portanto, com a centralização
do poder, fenômeno este que se desenvolve desde o
final do século XIV (Portugal) e durante o século XV
(França, Espanha, Inglaterra).
Dessa forma surge o Estado moderno, que
apresenta características específicas, tais como o
monopólio de fazer e aplicar as leis, recolher impostos,
cunhar moeda, ter um exército. A novidade é que tudo
isso se torna prerrogativa do governo central, o único
que passa a ter o aparato administrativo para prestação
dos serviços públicos bem como o monopólio legítimo
da força.
É em função desse contexto que se torna
possível compreender o pensamento de Maquiavel.
129
11
A Itália dividida encontrava-se por uma década governada pelo
republicano Soderini.
Na época de Maquiavel as cidades mais Nessa época Maquiavel ocupa a Segunda
expressivas da Península Itálica eram: a sua Florença, Chancelaria do governo, função que o obriga a
Milão, Nápoles e Veneza. Apesar de seu forte comércio desempenhar inúmeras missões diplomáticas na
elas eram frágeis politicamente e totalmente vulneráveis França, Alemanha e pelos diversos Estados italianos.
a ataques externos. Na época dele era a coisa mais Tem oportunidade de entrar em contato direto
comum uma cidade invadir e dominar outra, por isso a com reis, papas e nobres, e também com o condottiere
sua preocupação. César Bórgia, que estava empenhado na ampliação dos
Além disso, Maquiavel acreditava que a região Estados Pontifícios.
italiana só teria a ganhar se fosse unificada. Mas como Observando a
fazer isso? Essa é a pergunta central de O Príncipe (1515), maneira de Bórgia agir,
a sua grande obra prima que iria mudar totalmente o Maquiavel o considera o
modo dos homens ocidentais enxergarem a política. modelo de príncipe que a Itália
precisava para ser unificada.
Quando Soderini é
deposto e os Médicis voltam à
cena política, Maquiavel cai em
desgraça e recolhe-se para
escrever as obras que o
consagraram. Entre peças de
teatro (como a famosa
Mandrágora), poesia, ensaios diversos, destacam-se O
príncipe e Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio.

Controvérsias sobre O príncipe

Escrito em 1515 e
dedicado a Lourenço de Médici,
O príncipe tem provocado
inúmeras interpretações e
controvérsias.
Uma primeira leitura nos
dá uma visão da defesa do
absolutismo e do mais completo
Enquanto as demais nações europeias imoralismo: "É necessário a um
conseguem a centralização do poder, a região onde príncipe, para se manter, que
futuramente será a Alemanha e a Itália se acham aprenda a poder ser mau e que se
fragmentadas em inúmeros Estados sujeitos a disputas valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade".
internas e a hostilidades entre cidades vizinhas. Essa primeira leitura apressada da obra levou à
No caso da Itália, a ausência de unificação a criação do mito do maquiavelismo, que tem atravessado
expõe à ganância de outros países como Espanha e os séculos. Esse mito não só representa a figura do
França, que reivindicam territórios e assolam a político maquiavélico, mas se estende até à avaliação das
península com ocupações intermináveis. atividades corriqueiras de qualquer pessoa.
É nessa Itália dividida que vive Nicolau Na linguagem comum, chamamos
Maquiavel (1469-1527) na república de Florença. pejorativamente de maquiavélica a pessoa sem
Observa com apreensão a falta de estabilidade política escrúpulos, traiçoeira, astuciosa que, para atingir seus
da Itália, dividida em principados e repúblicas onde fins, usa da mentira e da má-fé, sendo capaz de enganar
cada um possui sua própria milícia, geralmente formada tão sutilmente que pode nos fazer pensar que agimos
por mercenários. Nem mesmo os Estados Pontifícios livremente quando na verdade somos por ela
deixavam de formar os seus exércitos. manipulados.
Maquiavel não foi apenas um intelectual que Como expressão dessa amoralidade, costuma-se
refletiu a respeito de política, pois viveu intensamente a vulgarmente atribuir a Maquiavel a famosa máxima:
luta de poder no período em que Florença, "Os fins justificam os meios". Ora, essa interpretação
tradicionalmente sob a influência da família Médici, se mostra excessivamente simplista e deformadora do
pensamento maquiaveliano e, para superá-la, é preciso
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analisar com mais atenção o impacto das inovações do esperto o suficiente para conseguir o que deseja. Desse
seu pensamento político. modo, para conseguir o poder ele tem que possuir a
Contrapondo-se à análise pejorativa do virtú , ou seja, qualidades especiais que o diferencie dos
maquiavelismo, Rousseau, no século XVIII, defende o outros homens. É ela que vai possibilitá-lo a reconhecer
florentino afirmando que O príncipe era na verdade uma as circunstâncias certas (fortuna ) para agir como se
sátira, e a intenção verdadeira de Maquiavel seria o deve no momento certo. A fortuna é o que muitos
desmascaramento das práticas despóticas, ensinando, chamam de sorte, mas só a aproveita quem estiver
portanto, o povo a se defender dos tiranos. Tal hipótese preparado.
se sustentaria a partir da leitura dos Comentários sobre a Esse é o elemento característico do pensamento
primeira década de Tito Lívio, onde são desenvolvidas as renascentista nos seus ensinamentos. Maquiavel sabe
ideias do Maquiavel republicano. que existem forças independentes da vontade do
Modernamente, no entanto, rejeita-se a visão homem agindo sobre ele. Mas o homem como um ser
romântica de Rousseau, e a aparente contradição entre racional, dotado de inteligência, não é uma simples
as duas obras é interpretada como fruto de dois marionete jogada de um lado a outro ao sabor do acaso.
momentos diferentes da ação política. Em um primeiro Ele pode usar sua racionalidade para decidir os rumos
estágio, representado pela ação do príncipe, o poder de sua vida.
deve ser conquistado e mantido, e para tanto justifica- Chegado ao poder, é preciso saber como se
se o poder absoluto. Posteriormente, alcançada a manter nele. Para isso, é melhor ser temido do que
estabilidade, é possível e desejável a instalação do amado. Maquiavel tinha uma visão pessimista sobre o
governo republicano. homem, acreditava que ele é um bicho escroto, que
Além disso, as ideias democráticas aparecem quando tá tudo bem, todo mundo é seu amigo, mas “na
veladamente também no capítulo IX de O príncipe, hora do vamos ver” todo mundo lhe vira as costas.
quando Maquiavel se refere à necessidade de o Não existe essa de bem comum. Os indivíduos
governante ter o apoio do povo, sempre melhor do que vivem em constante conflito em sociedade, e não dá
o apoio dos grandes, que podem ser traiçoeiros. O que para agradar todo mundo. Para manter a lealdade de
está sendo timidamente esboçado é a ideia de consenso, todos é melhor que eles o temam, pois assim é mais fácil
que terá importância fundamental nos séculos de obedecerem e se manterem fiéis. É até bom de vez
seguintes. em quando esfolar um infeliz para que todos vejam que
o príncipe não está para brincadeira.
O príncipe virtuoso Maquiavel escreveu essa obra, quando os
Médici retornaram ao poder e ele foi posto para fora da
Para descrever a ação do príncipe, Maquiavel cena política. Ele a dedicou a Lorenzo de Médici, o
usa as expressões italianas virtú e fortuna. Virtú significa único homem que poderia, aos olhos dele, unificar a
virtude, no sentido grego de força, valor, qualidade de Itália e lhe trazer de volta o brilho e esplendor da Roma
lutador e guerreiro viril. Homens de virtú são homens republicana anterior à ditadura de Júlio César. É
especiais, capazes de realizar grandes obras e provocar necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda
mudanças na história. a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso
Não se trata do príncipe virtuoso no sentido segundo a necessidade.
medieval, enquanto bom e justo segundo os preceitos
da moral cristã, mas sim daquele que tem a capacidade Ética e política
de perceber o jogo de forças que caracteriza a política
para agir com energia a fim de conquistar e manter o A novidade do pensamento maquiaveliano,
poder. justamente a que causou maior escândalo e críticas, está
O príncipe de virtú não deve se valer das normas na reavaliação das relações entre ética e política. Por um
preestabelecidas da moral cristã, pois isso geralmente lado, Maquiavel apresenta uma moral laica, secular, de
pode significar a sua ruina. base naturalista, diferente da moral cristã; por outro,
Implícita nessa afirmação se acha a noção de estabelece a autonomia da política, negando a
fortuna, aqui entendida como ocasião, acaso. O príncipe anterioridade das questões morais na avaliação da ação
não deve deixar escapar a fortuna, isto é, a ocasião. política.
De nada adiantaria um príncipe virtuoso, se não Para a moral cristã, predominante na Idade
souber ser precavido ou ousado, aguardando a ocasião Média, há valores espirituais superiores aos políticos,
propícia, aproveitando o acaso ou a sorte das além de que o bem comum da cidade deve se
circunstâncias, como observador atento do curso da subordinar ao bem supremo da salvação da alma.
história. No entanto, a fortuna não deve existir sem a A moral cristã se apoia em uma concepção do
virtú, sob pena de se transformar em mero oportunismo. bem e do mal; do justo e do injusto, que ao mesmo
O príncipe deve usar de todas as artimanhas tempo preexiste e transcende a autoridade do Estado,
possíveis, mentir, ludibriar, enganar. É o homem astuto, cuja organização político-jurídica não deve contradizer
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ou violar as formas éticas fundamentais, implícitas no Por isso Maquiavel não pode ser considerado
direito natural. um cínico apologista da violência. O que ele enfatiza é
O indivíduo está subordinado ao Estado, mas a que os critérios da ética política precisam ser revistos
ação deste último se acha limitada pela lei natural ou conforme as circunstâncias e sempre tendo em vista os
moral que constitui uma instância superior à qual todo fins coletivos.
membro da comunidade pode recorrer sempre que o No entanto, é bom lembrar que o pensamento
poder temporal atentar contra seus direitos essenciais de Maquiavel tem um sentido próprio, na medida em
inalienáveis. que ele expressa a tendência fundamental da sua época,
A nova ética analisa as ações não mais em ou seja, a defesa do Estado absoluto e a valorização da
função de uma hierarquia de valores dada a priori, mas política secular, não atrelada à religião. Talvez por isso
sim em vista das consequências, dos resultados da ação o extremo politicismo, ou seja, a hipertrofia do valor
política. político, de cujas consequências últimas talvez nem ele
Não se trata de um amoralismo, mas de uma próprio pudesse suspeitar.
nova moral centrada nos critérios da avaliação do que é Embora Maquiavel não tivesse usado o
útil à comunidade. O critério para definir o que é moral conceito de razão de Estado, é considerado o pensador
é o bem da comunidade, e nesse sentido às vezes é que começa a esboçar a doutrina que vigorará no século
legítimo o recurso ao mal (o emprego da força seguinte, quando o governante absoluto, em
coercitiva do Estado, a guerra, a prática da espionagem, circunstâncias críticas e extremamente graves, a ela
o emprego da violência). Estamos diante de uma moral recorre permitindo-se violar normas jurídicas, morais,
imanente, mundana, que vive do relacionamento entre políticas e econômicas.
os homens. E se há a possibilidade de os homens serem Sintetizando, podemos dizer que ele entendia
corruptos, constitui dever do príncipe manter-se no que o príncipe deveria ser guiado pelos resultados a
poder a qualquer custo. serem alcançados, podendo tudo fazer. Não deveria
Maquiavel distingue entre o bom governante, ficar preocupado com questões morais, o importante
que é forçado pela necessidade a usar da violência era conseguir o poder e mantê-lo. Para Maquiavel,
visando o bem coletivo, e o tirano, que age por capricho portanto, a política não é atrelada à moral, pois os
ou interesse próprio. “fins justificam os meios”.
O pensamento de Maquiavel nos leva à reflexão A experiência pessoal de Maquiavel se baseava
sobre a situação dramática e ambivalente do homem de nas pequenas tiranias italianas do século XVI, que não
ação: se o indivíduo aplicar de forma inflexível o código podem ser comparadas às monarquias absolutas do
moral que rege sua vida pessoal à vida política, sem século XVII nem as nossas ditaduras modernas, o que
dúvida colherá fracassos sucessivos, tornando-se um nos faz ver hoje o maquiavelismo através de uma lente
político incompetente. de aumento.
Tal afirmação pode levar as pessoas a considerar
que Maquiavel estaria defendendo o político imoral, os A autonomia da política
corruptos e os tiranos. Não se trata disso. A leitura
maquiaveliana sugere a superação dos escrúpulos Maquiavel subverte a abordagem tradicional da
imobilistas da moral individual, mas não rejeita a moral teoria política feita pelos gregos e medievais e é
própria da ação política: considerado o fundador da ciência política, ao
"Se o indivíduo, na sua existência privada, tem o direito enveredar por novos caminhos "ainda não trilhados".
de sacrificar o seu bem pessoal imediato e até sua própria vida a Pode-se dizer que a política de Maquiavel é
um valor moral superior, ditado pela sua consciência, pois em tal realista, pois procura a verdade efetiva, ou seja, "como
hipótese estará empenhando apenas seu destino particular, o o homem age de fato". As observações das ações dos
mesmo não acontece com o homem de Estado, sobre o qual pesam homens do seu tempo e dos estudos dos antigos,
a pressão e a responsabilidade dos interesses coletivos; este, de fato, sobretudo da Roma Antiga, levam-nos à constatação de
não terá o direito de tomar uma decisão que envolva o bem-estar que os homens sempre agiram pelas vias da corrupção
ou a segurança da comunidade, levando em conta tão somente as e da violência.
exigências da moral privada; casos haverá em que terá o dever de Partindo do pressuposto da natureza humana
violá-la para defender as instituições que representa ou garantir a capaz do mal e do erro, analisa a ação política sem se
própria sobrevivência da nação". preocupar em ocultar “o que se faz e não se costuma dizer”.
Isso significa que a avaliação moral não deve ser A esse realismo alia-se a tendência utilitarista,
feita antes da ação política, segundo normas gerais e pela qual Maquiavel pretende desenvolver uma teoria
abstratas, mas a partir de uma situação específica que é voltada para a ação eficaz e imediata. A ciência política
avaliada em função do resultado dela, já que toda ação só tem sentido se propiciar o melhor exercício da arte
política visa a sobrevivência do grupo e não apenas de política. Trata-se do começo da ciência política: da
indivíduos isolados. teoria e da técnica da política, entendida como disciplina
autônoma.
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Maquiavel torna a política autônoma porque a No entanto, alcançada a estabilidade, um regime
desvincula da ética e da religião, procurando examiná-la republicano deveria ser instalado para que o interesse
na sua especificidade própria. coletivo pudesse guiar o destino de todos, e os rumos
Em relação ao pensamento medieval, do Estado.
Maquiavel procede à secularização da política, É claro que não encontramos isso em O Príncipe,
rejeitando o legado ético-cristão. Além da que, como já dissemos, é um manual de como conseguir
desvinculação, da religião, a ética política se distingue da o poder e se manter nele. Esse perfil republicano de
moral privada, uma vez que a ação política deve ser Maquiavel é percebido em outra obra sua, qual seja,
julgada a partir das circunstâncias vividas, tendo em Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio.
vista os resultados alcançados na busca do bem comum. Vejamos um trecho dessa obra em que isso fica
Com isso, Maquiavel se distancia da política bem evidente:
normativa dos gregos e medievais, pois não mais busca “Percebe-se facilmente de onde nasce o amor à liberdade
as normas que definem o bom regime, nem explicita dos povos; a experiência nos mostra que as cidades crescem em
quais devem ser as virtudes do bom governante. Em poder e em riqueza enquanto são livres. É maravilhoso, por
alguns casos, como o de Platão, a preocupação em exemplo, como cresceu a grandeza de Atenas durante os cem anos
definir como deve ser o bom governo leva à construção que sucederam à ditadura de Pisístrato. Contudo, mais admirável
de utopias, o que mereceu a crítica de Maquiavel. ainda é a grandeza alcançada pela república romana depois que
Talvez alguém inadvertidamente se pergunte se foi liberta dos seus reis. Compreende-se a razão disto: não é o
o próprio Maquiavel não estaria à procura do príncipe interesse particular que faz a grandeza dos
ideal, indicando as normas para conquistar e não perder Estados, mas o interesse coletivo. E é evidente que o
o poder. interesse comum só é respeitado nas repúblicas: tudo que pode
No entanto, há, de fato, diferenças trazer vantagem geral é nelas conseguido sem obstáculos. Se uma
fundamentais entre o "dever ser" da política clássica e certa medida prejudica um ou outro indivíduo, são tantos o que
aquele a que se refere Maquiavel. Na nova perspectiva, ela favorece, que se chega sempre a fazê-la prevalecer, a despeito
para fazer política é preciso compreender o sistema de das resistências, devido ao pequeno número de pessoas
forças existentes e calcular a alteração do equilíbrio prejudicadas”
provocada pela interferência de sua própria ação nesse Essas palavras não parecem ser de um homem
sistema. que defenda um governo absolutista, que deseja ver um
rei governar por toda a eternidade. Parecem mais o
Maquiavel republicano alerta de alguém que sabe a importância da liberdade
para a grandeza e prosperidade de um povo.
Quando estava no ostracismo político,
Maquiavel se ocupa com a elaboração dos Comentários Textos complementares
sobre a primeira década de Tito Lívio, interrompendo esse
trabalho por alguns meses para escrever O príncipe. O príncipe
À medida que escreve os Comentários, lê
trechos nas reuniões realizadas por jovens republicanos, 1 - Segundo Claude Lefort, como "em definitivo, em
a quem dedica a obra. Aí desenvolve ideias nenhum lugar está traçada a via real da política", cabe
democráticas, admitindo que o conflito é inerente à ao homem de ação descobrir, na paciente exploração
atividade política e que esta se faz a partir da conciliação dos possíveis, os sinais da criação histórica e assim
de interesses divergentes. inscrever sua ação no tempo.
Defende a proposta do governo misto: “Se o Os príncipes prudentes repeliram sempre tais
príncipe, os aristocratas e o povo governam em forças (as mercenárias e as auxiliares), para valer-se das
conjunto o Estado, podem com facilidade controlar-se suas próprias, preferindo antes perder com estas a
mutuamente”. vencer com auxílio das outras, considerando falsa a
Considera importante que as monarquias ou vitória conquistada com forças alheias.
repúblicas sejam governadas pelas leis e acusa aqueles (...) Se se considerar o começo da decadência do
que, no uso da violência, abusaram da crueldade, ou a Império Romano, achar-se-á que foi motivada somente
usaram para interesses menores. por ter começado a ter a soldo mercenários godos.
Maquiavel era um republicano, e não escreveu
uma obra para um governante que quisesse se perpetuar 2 - Um príncipe deve, pois, não deixar nunca de se
no poder de forma absoluta e despótica. Ele tinha um preocupar com a arte da guerra e praticá-la na paz ainda
sonho, mas não era um ingênuo. Sabia que teria de mais mesmo que na guerra, e isto pode ser conseguido
haver derramamento de sangue para que um grande por duas formas: pela ação ou apenas pelo pensamento.
Estado fosse criado, e que isso teria de ocorrer sob a Quanto à ação, além de manter os soldados
liderança de um único homem. disciplinados e constantemente em exercício, deve estar
sempre em grandes caçadas, onde deverá habituar o
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corpo aos incômodos naturais da vida em campanha e Se os homens todos fossem bons, este preceito seria
aprender a natureza dos lugares, saber como surgem os mau. Mas, dado que são pérfidos e que não a
montes, como afundam os vales, como jazem as observariam a teu respeito, também não és obrigado a
planícies, e saber da natureza dos rios e dos pântanos, cumpri-la para com eles.
empregando nesse trabalho os melhores cuidados. (...).
Agora, quanto ao exercício do pensamento, o príncipe 7 - (...) Quem se toma senhor de uma cidade
deve ler histórias de países e considerar as ações dos tradicionalmente livre e não a destrói, será destruído
grandes homens, observar como se conduziram nas por ela. Tais cidades têm sempre por bandeira, nas
guerras, examinar as razões de suas vitórias e derrotas, rebeliões, a liberdade e suas antigas leis, que não
para poder fugir destas e imitar aquelas. esquecem nunca, nem com o correr do tempo, nem por
influência dos benefícios recebidos. (...). Assim, para
3 - Destarte todos os profetas armados venceram e os conservar uma república conquistada, o caminho mais
desarmados fracassaram. Porque, além do que já se seguro é destruí-la ou habitá-la pessoalmente.
disse, a natureza dos povos é vária, sendo fácil persuadi-
los de uma coisa, mas sendo difícil firmá-los na 8 - Como e meu intento escrever coisa útil para os que
persuasão. Convém, pois, providenciar para que, se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar
quando não acreditarem mais, se possa fazê-Los crer à a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas
força. Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não teriam se possa imaginar. E muita gente imaginou repúblicas e
conseguido fazer observar por muito tempo suas principados que nunca se viram nem jamais foram
constituições se estivessem desarmados. reconhecidos como verdadeiros. Vai tanta diferença
É o que, nos tempos que correm, aconteceu a entre o como se vive e o modo por que se deveria viver,
frei Girolamo Savonarola, o qual fracassou na sua que quem se preocupar com o que se deveria fazer em
tentativa de reforma quando o povo começou a não lhe vez do que se faz aprende antes a ruína própria, do que
dar crédito. E ele não tinha meios para manter firmes o modo de se preservar; e um homem que quiser fazer
aqueles que haviam acreditado, nem para fazer com que profissão de bondade é natural que se arruine entre
os incrédulos acreditassem. tantos que são maus.
Assim é necessário a um príncipe, para se
4 - Cada príncipe deve desejar ser tido como piedoso e manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou
não como cruel: apesar disso, deve cuidar de empregar deixe de valer-se disso segundo a necessidade.
convenientemente essa piedade. César Bórgia era (Maquiavel, O príncipe, trad. Lívio Xavier. Os
considerado cruel, e, contudo, sua crueldade havia pensadores, São Paulo, Abril cultural, 1973 p.62-63,
reerguido a Romanha e conseguido uni-la e conduzi-la 65-66, 31, 75, 76, 79. 28, 69.)
à paz e à fé. O que, bem considerado, mostrará que ele
foi muito mais piedoso do que o povo florentino, o
qual, para evitar a pecha de cruel, deixou que Pistóia Comentários sobre a primeira
fosse destruída. Não deve, portanto, importar ao década de Tito Lívio
príncipe a qualificação de cruel para manter os seus
súditos unidos e com fé, porque, com raras exceções, é 9 - Percebe-se facilmente de onde nasce o amor à
ele mais piedoso do que aqueles que por muita liberdade dos povos; a experiência nos mostra que as
demência deixam acontecer desordens, das quais cidades crescem em poder e em riqueza enquanto são
podem nascer assassínios ou rapinagem. É que estas livres. É maravilhoso, por exemplo, como cresceu a
consequências prejudicam todo um povo, e as grandeza de Atenas durante os cem anos que se
execuções que provêm do príncipe ofendem apenas um sucederam à ditadura de Pisístrato.
indivíduo. E, entre todos os príncipes, os novos são os Contudo, mais admirável ainda é a grandeza
que menos podem fugir à fama de cruéis, pois os alcançada pela república romana depois que foi
Estados novos são cheios de perigos. libertada dos seus reis.
Compreende-se a razão disto: não é o interesse
5 - Nasce daí esta questão debatida: se será melhor ser particular que faz a grandeza dos Estados, mas o
amado que temido ou vice-versa. Responder-se-á que interesse coletivo. E é evidente que o interesse comum
se desejaria ser uma e outra coisa; mas como é difícil só é respeitado nas repúblicas: tudo o que pode trazer
reunir ao mesmo tempo as qualidades que dão aqueles vantagem geral é nelas conseguido sem obstáculos. Se
resultados, é muito mais seguro ser temido que amado, uma certa medida prejudica um ou outro individuo, são
quando se tenha que falhar numa das duas. tantos os que ela favorece, que se chega sempre a fazê-
la prevalecer, a despeito das resistências, devido ao
6 - Um príncipe prudente não pode nem deve guardar pequeno número de pessoas prejudicadas.
a palavra dada quando isso s e lhe torne prejudicial e
quando as causas que o determinaram cessem de existir.
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10 - Não observar uma lei é dar mau exemplo, c) Dependente da religião, devendo ser conduzido por
sobretudo quando quem a desrespeita é o seu autor; é parâmetros ditados pela igreja.
muito perigoso para os governantes repetir a cada dia d) Independente da moral e da religião, devendo ser
novas ofensas à ordem pública. conduzido por critérios restritos ao âmbito político.
11 - se as monarquias têm durado muitos séculos, o
mesmo acontece com as repúblicas; mas umas e outras e) Independente das pretensões dos governantes de
precisam ser governadas pelas leis: o príncipe que se realizar os interesses do Estado.
pode conceder todos os caprichos é geralmente um
insensato; e um povo que pode fazer tudo o que quer 03. (UFU) Antônio Gramsci, filósofo político do
comete com frequência erros imprudentes. Se se trata século passado, proferiu o seguinte comentário a
de um príncipe e de um povo submetido às leis, o povo respeito de Maquiavel:
demonstrará virtudes superiores às do príncipe. Se,
“Maquiavel não é um mero cientista; ele é um homem
neste paralelo, os considerarmos igualmente livres de
qualquer restrição, ver-se-á que os erros cometidos pelo de participação, de paixões poderosas, um político
povo são menos frequentes, menos graves e mais fáceis prático, que pretende criar novas relações de força e que
de corrigir. por isso mesmo não pode deixar de se ocupar com o
(Maquiavel, Comentários sobre a primeira década de `deve ser', que não deve ser entendido em sentido
Tito Lívio, 2. ed. rev. Trad. Sérgio Bath, Brasília, Ed. moralista. Assim, a questão não deve ser colocada
Universidade de Brasília, 1982, p. 98. 145. 182.) nestes termos, é mais complexa: trata-se de considerar
se o `dever ser' é um ato arbitrário ou necessário, é
QUESTÕES vontade concreta, ou veleidade, desejo, sonho. O
político em ação é um criador, um suscitador; mas não
01. É comum considerarmos a obra de Maquiavel como cria do nada, nem se move no vazio túrbido dos seus
uma ruptura em relação à tradição do pensamento desejos e sonhos. Baseia-se na realidade factual.”
político greco-romano e cristão. É correto afirmar (GRAMSCI, A. Maquiavel. A política e o Estado moderno. 5. ed.
como características dessa ruptura: Trad. de Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização
A) o recurso à experimentação científica e o abandono Brasileira, 1984. p. 42/43.)
da ética. Considerando o texto de Gramsci, marque a alternativa
B) a secularização da política e o distanciamento de correta.
ideais normativos ético-religiosos.
A) A realidade factual não deve ser vista como o
C) o distanciamento de ideais normativos
éticoreligiosos e o recurso à experimentação científica. conjunto das forças históricas. Elas podem ser
D) o abandono da ética e a secularização da política. desprezadas porque o príncipe é dotado de sabedoria
E) o recurso à experimentação científica e a suficiente para prescindir delas e agir motivado apenas
secularização da política. pelos seus desejos.
B) O poder da paixão do político prático é visto por
02. “O maquiavelismo é uma interpretação de O Maquiavel como o único caminho para o poder, isto
Príncipe de Maquiavel, em particular a interpretação significa que o príncipe deve agir guiado pelas suas
segundo a qual a ação política, ou seja, a ação voltada veleidades e desejos que alimentam o seu sonho de
para a conquista e conservação do Estado, é uma ação poder.
que não possui um fim próprio de utilidade e não deve C) Maquiavel não trata o “deve ser” na perspectiva
ser julgada por meio de critérios diferentes dos de ontológica da filosofia clássica. O juízo moral se
conveniência e oportunidade.” submete às condições concretas que se apresentam para
(BOBBIO, Norberto. Direito Estado e Estado no pensamento de a conquista e a conservação do poder do Estado pelo
Emanuel Kant. Trad. De Alfredo Fait. 3. Ed. Brasília: Editora da
UNB, 1984, p. 14.)
príncipe moderno.
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o tema, D) O príncipe é um homem de criação, que dá forma
para Maquiavel o poder político é: ao “dever ser” e rompe a distância que separa o sonho
a) Dependente da ética, devendo ser orientado por da realidade, porque tudo aquilo que ele quer, ele faz
princípios morais validos universal e necessariamente. independente da realidade factual em que se insere a
b) Independente da conveniência e oportunidade, pois ação política.
estas dizem respeito à esfera privada da vida em
sociedade. 04. Certamente, a brusca mudança de direção que
encontramos nas reflexões de Maquiavel, em
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comparação com os humanistas anteriores, explica-se (MAQUIAVEL. O Príncipe. Trad. de Lívio Teixeira. Coleção Os
em larga medida pela nova realidade política que se Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 41.)
criara em Florença e na Itália, mas também pressupõe Para Maquiavel, esta máxima deve ser observada para a
uma grande crise de valores morais que começava a manutenção do poder e a estabilidade do Estado.
grassar. Ela não apenas constatava a divisão entre “ser” Assinale a alternativa que apresenta, corretamente, a
e “dever ser”, mas também elevava essa divisão a posição de Maquiavel para atingir este preceito.
princípio e a colocava como base da nova visão dos A) O príncipe moderno deverá contar com o apoio dos
fatos políticos. magistrados para conduzir as suas ações até a obtenção
(REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia. São Paulo: do governo absoluto sobre os súditos.
Paulinas, 1990. V. II, p. 127.) B) Não há uma regra certa para alcançar a confiança do
Dentre as contribuições de Maquiavel à Filosofia povo, porque as regras mudam conforme as
Política, é correto afirmar: circunstâncias, portanto, o príncipe deve ser homem de
a) Inaugurou a reflexão sobre a constituição do Estado virtù.
ideal. C) O povo, assim como os grandes de uma cidade ou
b) Estabeleceu critérios para a consolidação de um de um reino, quer receber favores. Assim, a satisfação
governo tirânico e despótico. de suas vontades garante a vida do príncipe no poder.
c) Consolidou a tábua de virtudes necessárias a um bom D) O príncipe deve usar a sua fortuna e formar bons
homem. exércitos que lhe devotem fidelidade e sejam capazes de
d) Fundou os procedimentos de verificação da correção manter a ordem social.
das normas.
e) Rompeu o vínculo de dependência entre o poder civil 07. (UFU) “Eu sei que cada qual reconhecerá que seria
e a autoridade religiosa. muito de louvar que um príncipe possuísse, entre todas
as qualidades referidas, as que são tidas como boas; mas
05. (UFU) Deixando de lado as discussões sobre
a condição humana é tal, que não consente a posse
governos e governantes ideais, Maquiavel se
completa de todas elas, nem ao menos a sua prática
preocuparia em saber como os homens governam de
consistente; é necessário que o príncipe seja tão
fato, quais os limites do uso da violência para conquistar
prudente que saiba evitar os defeitos que lhe
e conservar o poder, como instaurar um governo
arrebatariam o governo e praticar qualidades próprias
estável, etc.
para lhe assegurar a posse deste, se lhe é possível; mas,
(CHALITA, Gabriel. Vivendo a Filosofia. São Paulo: Ática,
2006. p. 200.)
não podendo, com menor preocupação, pode-se deixar
Marque a alternativa que descreve corretamente o que as coisas sigam seu curso natural.”
(MAQUIAVEL, N. O príncipe. Trad. de Lívio Xavier. São Paulo:
objetivo de Maquiavel.
Nova Cultural, 1987, p. 64.)
A) De acordo com Chalita, Maquiavel examina a
Assinale a alternativa correta.
política de forma a dar continuidade às análises da
A) O príncipe é um homem de virtú, que deve voltar o
tradição filosófica.
seu ânimo para a direção que a fortuna o impelir, pois a
B) Conforme Chalita, o pensador florentino tem por
conquista e a conservação do Estado podem implicar
objetivo demonstrar como um Príncipe deve conquistar
ações más.
e manter o poder, tratando-o como uma realidade
B) O príncipe é um estadista sem princípios, cujas ações
concreta.
são destituídas de qualquer valor de conduta, dando
C) Como observamos no texto, a obra de Maquiavel é
vazão às suas paixões sem levar em conta o bem-estar
inovadora por definir o que é o governo e quem são os
do povo.
governantes ideais.
C) O príncipe pode fazer aquilo que bem entender, pois
D) De acordo com o texto, pode-se observar que
a maior virtude do governante é a capacidade de
Maquiavel não admite o uso da violência para
provocar o ódio dos súditos, que são violentamente
conquistar e conservar o poder.
reprimidos pela força das armas.
D) O príncipe não precisa praticar a piedade, a
06. (UFU) Maquiavel escreveu: “é necessário a um
fidelidade, a humanidade, pode até desprezar a devoção
príncipe que o povo lhe vote amizade; do contrário,
religiosa, não precisando nem mesmo aparentá-las em
fracassará nas adversidades”.
suas ações.
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08. (UFU) No entendimento de Maquiavel, o 10. (UFU 2009) Maquiavel esteve empenhado na
fundamental não é possuir todas as qualidades que são renovação da política em um período ainda dominado
atribuídas ao bom governante, o mais importante para pela teologia cristã com os seus valores que atribuíam
ao poder divino a responsabilidade sobre os propósitos
o novo príncipe é aparentar possuí-las todas. "E há de
humanos. Em sua obra mestra, O príncipe, escreveu:
se entender o seguinte: que um príncipe, e
especialmente um príncipe novo, não pode observar “Deus não quer fazer tudo, para não nos tolher o livre
todas as coisas a que são obrigados os homens arbítrio e parte da glória que nos cabe”.
MAQUIAVEL, N. O príncipe. Tradução Lívio Xavier. São Paulo: Nova Cultural,
considerados bons, sendo freqüentemente forçado, 1987. Coleção Os Pensadores. p. 108.
para manter o governo, a agir contra a caridade, a fé, a
humanidade, a religião." Assinale a alternativa que fundamenta essa afirmação de
(MAQUIAVEL, N. O príncipe. Trad. de Lívio Xavier. São Paulo: Maquiavel.
Nova Cultural, 1987. p. 74.) A) Deus faz o mais importante, conduz o príncipe até
Assinale a alternativa abaixo que justifica a afirmação de o trono, garantindo-lhe a conquista e a posse. Depois,
Maquiavel. cabe ao soberano fazer um bom governo submetendo-
A) O príncipe é um homem de virtú, isto é, ele sabe se se aos dogmas da fé.
B) A conquista e a posse do poder político não é uma
submeter aos caprichos do destino e cede ao fluxo dos
dádiva de Deus. É preciso que o príncipe saiba agir,
acontecimentos com a esperança de alcançar os seus valendo-se das oportunidades que lhe são favoráveis, e
intentos políticos. com firmeza alcance a sua finalidade.
B) O príncipe é maquiavélico, o que importa é o poder C) Os milagres de Deus sempre socorreram os homens
e a fortuna do governante. Para isso, tudo é justificado piedosos. Para ser digno do auxílio divino e alcançar a
mediante a força e a fraude, porque o que dá poder e glória terrena é preciso ser obediente à fé cristã e
fortuna é a exploração e a miséria do povo. submeter-se à autoridade do papa.
D) Nem Deus, nem o soberano são capazes de
C) O príncipe deve ter o ânimo voltado para a direção conquistar o Estado. Tudo que ocorre na História é
apontada pelos sinais da sorte. Procedendo assim, ele obra do capricho, do acaso cego, que não distingue nem
saberá aproveitar as ocasiões que se apresentam para a o cristão nem o gentio.
tomada e a conservação do poder.
D) A imoralidade do príncipe é a sua virtude. Somente 11. (UFU 2010) A finalidade da política não é, como
um homem destituído de todos os valores torna-se diziam os pensadores gregos, romanos e cristãos, a
justiça e o bem comum, mas, como sempre souberam
capaz de governar de maneira insensível o corpo
os políticos, a tomada e manutenção do poder. O
político tendo por finalidade o próprio poder. verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar e conservar
o poder [...].
09. (UFU 2013) Em seus estudos sobre o Estado, (CHAUÍ, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000, p. 396.)
Maquiavel busca decifrar o que diz ser uma verità A respeito das qualidades necessárias ao príncipe
effettuale, a ―verdade efetiva‖ das coisas que permeiam maquiaveliano, é correto afirmar:
os movimentos da multifacetada história A) O príncipe precisa ter fé, ser solidário e caridoso,
humana/política através dos tempos. Segundo ele, há almejando a realização da virtude cristã.
certos traços humanos comuns e imutáveis no decorrer B) O príncipe deve ser flexível às circunstâncias,
daquela história. Afirma, por exemplo, que os homens mudando com elas para dominar a sorte ou fortuna.
são ―ingratos, volúveis, simuladores, covardes ante os C) O príncipe precisa unificar, em todas as suas ações,
perigos, ávidos de lucro‖. as virtudes clássicas, como a moderação, a temperança
(O Príncipe, cap. XVII) e a justiça.
Para Maquiavel: D) O príncipe deve ser bondoso e gentil, angariando
A) A “verdade efetiva” das coisas encontra-se em plano exclusivamente o amor e, jamais, o temor do seu povo.
especulativo e, portanto, no “dever-ser”.
B) Fazer política só é possível por meio de um 12. (UNICENTRO 2013) Assinale a alternativa
moralismo piedoso, que redime o homem em âmbito INCORRETA.
estatal. A) Maquiavel não admite um fundamento anterior e
C) A Virtù possibilita o domínio sobre a Fortuna. Esta é exterior à política (Deus, Natureza ou razão). Toda
atraída pela coragem do homem que possui Virtù. Cidade, diz ele em O Príncipe, está originalmente dividida
D) Fortuna é poder cego, inabalável, fechado a qualquer em dois desejos opostos: o desejo dos grandes de
influência, que distribui bens de forma indiscriminada. oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser
oprimido nem comandado.
137
19
B) A finalidade da política não é, como diziam os 16) Para Maquiavel, a sociedade é dividida entre os
pensadores gregos, romanos e cristãos, a justiça e o bem grandes, isto é, os que possuem o poder político e
comum, mas, como sempre souberam os políticos, a econômico, e o povo oprimido. A sociedade é cindida
tomada e a manutenção do poder. por lutas sociais, não pode, portanto, ser vista como
C) Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três uma comunidade homogênea voltada para o bem
regimes políticos (monarquia, aristocracia, democracia) comum.
e suas formas corruptas ou ilegítimas (tirania, oligarquia,
demagogia/ anarquia), como não aceita que o regime 15. (UEM 2012) “Resta agora ver quais devem ser os
legítimo seja o hereditário e o ilegítimo, o usurpado por modos e os atos de governo de um príncipe para com
conquista. os súditos ou para com os amigos. E porque sei que
D) Para Maquiavel, o poder do príncipe deve ser muitos escreveram sobre isso, temo, escrevendo eu
superior ao dos grandes e estar a serviço do povo. também, ser considerado presunçoso, sobretudo
E) Maquiavel admite a figura do bom governo porque, ao debater esta matéria, afasto-me do modo de
encarnada no príncipe virtuoso, portador das virtudes raciocinar dos outros. Mas, sendo a minha intenção
morais e cristãs. O príncipe precisa ter virtu, isto é, escrever coisa útil a quem a escute, pareceu-me mais
convincente ir direto à verdade efetiva da coisa do que
precisa ser amado e respeitado pelos governados.
à imaginação dessa. E muitos imaginaram repúblicas e
principados que nunca foram vistos, nem conhecidos
13. (UNICENTRO 2014) Com base nos de verdade.”
conhecimentos sobre Maquiavel, assinale a alternativa MAQUIAVEL, N. O Príncipe. SP: Hedra, 2009, p. 159.
que apresenta, corretamente, os principais fundamentos A partir do texto citado assinale o que for correto.
do Estado. 01) Maquiavel defende uma teoria imaginária de
a) Boas leis e boas armas, desde que sejam próprias. governo, e não uma proposta real e factível.
b) Armas mercenárias e bons soldos aos combatentes. 02) Maquiavel afirma que as repúblicas e os principados
c) Exércitos auxiliares e súditos desarmados nos nunca foram conhecidos de verdade.
Estados novos. 04) Maquiavel se considera presunçoso por conhecer
d) Culto dos refinamentos e governante com as demais o tema.
qualidades consideradas boas. 08) Maquiavel propõe um discurso político que trate de
e) Príncipe clemente e apoio exclusivo na fortuna. coisas reais e possíveis no mundo da política.
16) Maquiavel propõe um discurso político que se volte
14. (UEM 2008) Maquiavel inaugura o pensamento para o comportamento do governante, para sua atuação
político moderno. Seculariza a política, rejeitando o e para o modo como ele deve se comportar no governo.
legado ético-cristão. Maquiavel tem uma visão do
homem e da política como elas são e não como 16. (UEM 2012) O filósofo italiano Nicolau Maquiavel
deveriam ser. A política deve ater-se ao real, deve (1469-1527) afirma: “Porque em toda cidade se
preocupar-se com a eficiência da ação e não teorizar, encontram estes dois humores diversos: e nasce, disto,
como fazia Platão, sobre a forma ideal de governo. que o povo deseja não ser nem comandado nem
Assinale o que for correto. oprimido pelos grandes e os grandes desejam comandar
01) Para Maquiavel, o príncipe virtuoso é aquele que e oprimir o povo; e desses dois apetites diversos nasce
governa com justiça, estabelecendo, entre seus súditos, na cidade de um desses três efeitos: ou o principado, ou
a igualdade social e uma participação político- a liberdade, ou a licença”
democrática. MAQUIAVEL, O Príncipe. São Paulo: Hedra, 2009, p.109.
02) Maquiavel redefine as relações entre ética e política, A partir do trecho citado, assinale a(s) alternativa(s)
não julga mais as ações políticas em função de uma correta(s).
hierarquia de valores dada de antemão, mas em função 01) O povo, ao não querer ser comandado, deseja
da necessidade dos resultados que as ações políticas comandar.
devem alcançar. 02) É da natureza dos grandes, no caso os ricos, o
04) Maquiavel faz a apologia da tirania, pois considera desejo de dominar o povo, no caso os pobres.
ser a forma mais eficiente de o príncipe manter-se no 04) Povo e grandes formam dois grupos políticos
poder e garantir a segurança da ordem social e política distintos e antagônicos em toda cidade.
para seus súditos. 08) Os grandes se unem politicamente para se
08) Na concepção política de Maquiavel, não há uma defenderem do desejo de dominação do povo.
exclusão entre ética e política, todavia a primeira deve 16) O fenômeno descrito era restrito às cidades italianas
ser entendida a partir da segunda. Para ele, as exigências do período histórico do filósofo.
da ação política implicam uma ética cujo caráter é
diferente da ética praticada pelos indivíduos na vida
privada.
138
20
GABARITO

QUESTÕES RENASCIMENTO
1. a
2. d
3. 1/8

QUESTÕES MONTAIGNE
1. 1/8/16

QUESTÕES GALILEU
1. d
2. a
3. 1/2/4/16
4. 1/2/8/16
5. 1/16

QUESTÕES MAQUIAVEL
1. b
2. d
3. c
4. e
5. b
6. b
7. a
8. c
9. c
10. b
11. b
12. e
13. a
14. 2/8/16
15. 8/16
16. 2/4

139
21
FORMAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO ESTADO Distante tanto dos
excessos do realismo de
O Estado foi o artifício criado pela nobreza e Maquiavel como do utopismo
burguesia para a manutenção de seus interesses e de Morus, surgiu também Jean
privilégios, respectivamente. No momento de seu Bodin (1530-96), defendendo
nascimento ele tinha que vir ao mundo como uma o direito absoluto do
Monarquia Absolutista, pois era preciso a governante, que para ele tinha
concentração de poder nas mãos de alguém que que ser um rei. A monarquia
personalizasse essa transformação que ocorria para seria a melhor forma de
fazer nascer uma nova ordem social. governo, pois estaria em
Os burgueses, pagavam impostos, mas conformidade com a natureza
ganhavam com: das coisas e dos homens. Só existe um Deus, um Sol, e
 Leis unificadas; um chefe de família, por isso apenas um deve governar.
 Sistemas de medidas e pesos unificados; Suas ideias foram expostas em sua obra Os seis
 Moeda única que facilitava o comércio; Livros da República, publicada em 1576, e é nela que
 Segurança pública e jurídica; encontramos a formulação moderna do conceito de
Os nobres também ganhavam porque os reis soberania como sendo o poder supremo de governar,
eram nobres, e todo o corpo burocrático necessário ou seja, é o poder que está acima de todos os outros
para o funcionamento do estado era composto de poderes, não se sujeitando a nada. “Por soberania se entende
nobres. Além disso, eles tinham leis diferenciadas que o poder absoluto e perpétuo que é próprio do Estado” (Livro I,
os beneficiavam de diversas formas, como por capitulo III).
exemplo, a isenção do pagamento de tributos. Ou seja, Um poder tão grande como esse só poderia vir
seu status estava garantido. de Deus, cujo poder seria o único acima do poder
Algumas medidas foram tomadas pelos Reis soberano do rei. O rei possui um direito divino de
para que centralizassem o poder. Dentre elas podemos governar. É por essa razão que Bodin não entende o
citar: poder soberano como absoluto no sentido de ilimitado,
 Somente o Rei poderia ter um exército; tirânico, porque ele não deve confrontar os direitos
 A resolução dos conflitos e aplicação da justiça naturais divinos, dentre eles o direito à liberdade e
seria tarefa real. Acabaram-se os tribunais propriedade dos súditos.
feudais e a Igreja passa a julgar casos que Para existir o Estado, é preciso uma forte
envolvam somente questões de fé; soberania, que mantenha unidos os vários membros
 O rei poderia criar leis que valeriam para todo o sociais, ligando-os como em um só corpo. Mas essa
reino, sempre objetivando o bem comum; forte soberania não se obtém com os métodos
As características que marcaram o sistema recomendados por Maquiavel, que pecam por
absolutista foram: imoralismo e por ateísmo, e sim instaurando a justiça
 Centralização de poderes nas mãos do Rei; recorrendo à razão.
 Construção de um idioma nacional que pudesse Eis a célebre definição de Estado dada por
dar unidade e identidade ao povo; Bodin: "Por Estado se entende o governo justo, que se
 Unificação de moedas e de sistemas de pesos e exerce com poder soberano sobre diversas famílias e
medidas; em tudo aquilo que elas têm em comum entre si; "[...] o
 Demarcação do território do reino; Estado já não seria tal sem aquele poder soberano que
 Ordenamento jurídico único que valesse para mantém unidos todos os membros e partes dele,
todo o território. fazendo de todas as famílias e de todos os círculos um
Os ibéricos saíram na frente na formação dos só corpo. [...] Em suma, a soberania é o verdadeiro
grandes reinos, enquanto Inglaterra e França ainda se fundamento, o ponto cardeal sobre o qual se apoia toda
matavam na guerra dos cem anos. a estrutura do Estado e do qual dependem todas as
Somente depois, quando Portugal e Espanha já magistraturas, leis e normas.
haviam até começado o processo de exploração de suas Ela é o único laço e o único vinculo que faz de
colônias americanas, é que aqueles dois países famílias, corporações, colegiados e indivíduos um único
começavam a se fortalecer e emergir como monarquias corpo perfeito, que é precisamente o Estado".
absolutistas. Como já dissemos, o absolutismo de Bodin tem
Na França, os conflitos religiosos entre a limites objetivos precisos nas normas Éticas (a justiça),
nobreza católica e a burguesia calvinista (huguenote) nas leis da natureza e nas leis divinas - e esses limites
formaram, juntamente com a Guerra dos Cem Anos, o constituem também sua força. A soberania que não
cenário que propiciou a formação e consolidação do respeitasse essas leis não seria soberania, e sim tirania.
absolutismo francês. Também se destaca o escrito de Bodin
intitulado Colóquio entre sete pessoas, que tem por tema a
140
1
tolerância religiosa e é imaginado desenvolver-se em  Fortalecimento da marinha para entrar na
Veneza entre sete seguidores de religiões diferentes: disputa por colônias;
1) um católico, Luiz XIV governou com o consentimento da
2) um seguidor de Lutero, aristocracia e o apoio da Igreja. Os primeiros, apesar de
3) um seguidor de Calvino, terem reduzida influência política, mantinham seu
4) um judeu, status de “amiguinhos” do rei, e detinham uma série de
5) um maometano, privilégios, como não pagar impostos. Já a Igreja,
6) um pagão e adorou ver o rei abolir o Édito de Nantes e tornar o
7) um defensor da religião natural. catolicismo a única religião a ser praticada em território
A tese da obra é a de que (como sustentara o francês.
humanismo florentino) existe um fundamento natural Além desse apoio, um grande marketing
que é comum a todas as religiões. Com essa base político contribuiu para associar a imagem do rei à do
comum, seria possível um acordo religioso geral, sem próprio Estado, fazendo com que ele mesmo afirmasse:
sacrificar as diferenças (ou seja, aquele plus) próprias “O Estado sou eu”. A sensação que ele passa de ser o
das religiões positivas. todo-poderoso, um homem perfeito que simboliza o
Havendo, portanto, esse fundamento natural próprio estado francês em sua grandeza.
implícito nas diferentes religiões, aquilo que as une
revela-se mais forte do que aquilo que as separa.
A consolidação do absolutismo na França se dá
com o cardeal Richelieu, que foi primeiro ministro de
Luís XIII. Esse cardeal enfraqueceu o poder dos
nobres, e atribuiu grande autoridade aos funcionários
do rei. Para ele, as necessidades do Estado estavam
acima de tudo e de todos, podendo o mesmo fazer tudo
para alcançar seus objetivos.
E realmente fez. Para desbancar a Espanha
como potência mundial, a França, num ato
contraditório, apoiou os protestantes, a quem sempre
perseguiu, no conflito que ficou conhecido como
Guerra dos Trinta Anos (1618-48). Na metade do
século XVII a França se tornou o Estado mais
poderoso da Europa.
Foi essa potência que Luiz XIV governou de
1643 a 1715. Ele aprendeu direitinho com o Richelieu,
e se tornou o todo poderoso Rei-Sol. O ápice do
absolutismo monárquico se dá no seu reinado.
No plano teórico, depois de Bodin, e ao tempo Sua imagem foi cuidadosamente construída
de Luiz XIV, apareceu outro pensador francês para para representar a magnificência, a perfeição e o caráter
justificar o direito do rei de governar absolutamente. O divino do reino francês.
bispo católico Jacques Bossuet (1627–1704) escreveu Ele ia morar em qualquer lugar? Claro que não.
a obra Política tirada da Sagrada Escritura, onde também Teria que ser um palácio digno se um rei Sol. Luiz XIV,
defendeu o direito divino de governar do rei. Este então, manda construir um palácio que represente sua
deve obediência somente a Deus, que legitima o seu realeza. E claro, tinha que ser o maior da Europa. Nesse
poder, e todos devem obediência ao rei. sentido, o Palácio de Versalhes foi construído para
Para fortalecer seu poder, Luiz XIV diminuiu
influência política da aristocracia, enquanto fortalecia
economicamente o Estado com as ações de seu
ministro das finanças Jean-Baptiste Colbert, cujas
medidas mercantilistas ficaram conhecidas como
colbertismo.
Tais medidas foram basicamente:
 O aperfeiçoamento do sistema de cobrança de
impostos;
 Incentivo às manufaturas;
 Estímulo ao comércio internacional de seus
artigos de luxo e produtos bélicos.
141
2
mandar uma mensagem ao mundo: “Aqui é a casa/sede chama-se Ademo (formado por um alfa privativo e demos,
do homem/estado mais poderoso do mundo”. que significa "povo"), que significa o chefe que não tem
Mas Versalhes, e todo luxo em que viviam o rei povo.
e sua corte, além de guerras constantes em que o estado Todo esse jogo linguístico utilizado pelo autor é
estava envolvido, tiveram um custo, que certamente para demonstrar a tensão entre o ideal e o real, como os
não era pago com o trabalho suado do rei. A bomba homens deveriam se comportar em contraposição ao
estava se armando, e ela ia explodir na forma de uma que estava realmente acontecendo na Inglaterra. O
das maiores revoluções do mundo ocidental. enorme sucesso do termo mostra o quanto o espírito
Na Inglaterra, Henrique VIII ganhou amplo humano dele necessitava.
apoio da burguesia e de setores da nobreza ao romper A fonte em que Morus bebeu foi, naturalmente,
com a Igreja Católica e fundar, como seu chefe, a Platão, com amplas infiltrações de doutrinas estóicas,
religião anglicana (essencialmente calvinista, mas tomistas e erasmianas.
católico na forma), governando esse país de 1509 a Na contraluz está a Inglaterra, com sua história,
1547. suas tradições e seus dramas sociais de então (a
É nessa época e nesse contexto social de lutas reestruturação do sistema agrícola, que privava de terra
religiosas e início de implementação do capitalismo na e trabalho grande quantidade de camponeses; as lutas
Inglaterra que Tomás Morus (1478-1535), amigo e religiosas e a intolerância; a insaciável sede de riquezas)
conselheiro do Rei, publicou a UTOPIA, obra que lhe Essa obra é dividida em duas partes onde na
deu fama imortal. primeira o autor faz uma severa crítica à Inglaterra que
Tomas Morus nasceu em se formara como uma nação de intolerância religiosa,
Londres em 1478. Foi amigo e que expulsa os seus cidadãos de seus lares no campo
discípulo de Erasmo e humanista para dar lugar a grandes propriedades que beneficiam
de estilo elegante. Participou apenas poucas pessoas, tornando-a assim uma nação
ativamente da vida política, avarenta que coloca a busca pelo lucro acima da justiça
exercendo altos cargos. Firme em e bem-estar de seus súditos.
sua fé católica, recusou-se a Na segunda parte o filósofo formula um modo
reconhecer Henrique VIII como de vida ideal em que todos são iguais, não existe
chefe da Igreja, sendo por isso propriedade privada, todos contribuem para o bem
condenado a morte em 1535. Somente em 1935 foi comum com o seu trabalho, mas não de forma
proclamado santo por Pio IX. exploradora, apenas com uma jornada diária de seis
A Utopia além de ser um marco na literatura e horas, o suficiente para que todos pudessem trabalhar e
filosofia ocidental, influenciou com suas ideias os também ter tempo para o lazer e estudos.
socialistas do século XIX devido a radicalidade de sua Além disso, nessa Utopia haveria algo, na visão
crítica à sociedade que valorizava mais o dinheiro do do autor, fundamental para toda e qualquer nação
que o humano. civilizada que é a tolerância religiosa. Coisa que há
A obra que levou fama imortal a Morus foi muito havia se perdido na Inglaterra.
Utopia, título elevado a denominação de um gênero E como crítica ao espírito burguês em que a
literário antiguíssimo, muito usado antes e depois de avareza e a falta de compaixão ao próximo tomaram o
Morus, representando uma dimensão do espírito lugar nos corações dos ingleses, Tomás Morus descreve
humano que, através da representação mais ou menos a sociedade que vive na Utopia como uma sociedade
imaginária daquilo que não existe, apresenta aquilo que que abolira o dinheiro.
deveria ser ou como o homem gostaria que a realidade
fosse. Princípios morais
O temo “utopia” (do grego ou = não e topos =
lugar) indica um lugar que não existe em nenhum lugar. Os princípios basilares que regem o relato (que
Platão já se aproximara muito dessa indicação, é imaginado como narrado por Rafael Itlodeo, que,
escrevendo que a cidade perfeita por ele descrita na tendo participado de uma das viagens de Américo
República não existe em nenhuma parte sobre a terra. Vespúcio, teria visto a ilha de Utopia) são muito
Mas foi necessária a criação semântica de Morus para simples. Morus estava profundamente convencido
preencher essa lacuna linguística. (influenciado nisso pelo otimismo humanista) de que
Deve-se notar como Morus reafirma essa bastaria seguir a sã razão e as mais elementares leis da
dimensão do “não existir em nenhum lugar”. A capital natureza, que estão em perfeita harmonia com a razão,
de Utopia chama-se Amauroto (do grego amaurós = para acabar com os males que afligem a sociedade.
evanecente), que quer dizer “cidade que se esvanece Utopia não apresentava um programa social a
como miragem"; o rio de Utopia chama-se Anidro (do ser realizado, e sim princípios destinados a terem
grego anydros = privado de água), ou seja, um rio que função normativa que, com hábeis jogos de alusões,
não é rio de água, mas rio sem água; já o príncipe
142
3
apresentavam os males da época e indicavam os Foi nessa época que começou a ocupação da
critérios com os quais deveriam ser curados. américa inglesa, que não dava muito lucro porque não
Além disso, em Utopia todos os cidadãos são havia muito o que explorar, pois as terras que
iguais entre si. Desaparecem as diferenças de renda, produziam especiarias e tinham metais preciosos já
desaparecendo então as diferenças de status social. E estavam há muito tempo ocupadas pelos espanhóis.
mais, os habitantes de Utopia se substituem de modo Diante disso, esses navios serviam também para
equilibrado nos trabalhos da agricultura e do artesanato, saquear outros, de preferência os espanhóis, que
de modo que não renasçam, em virtude da divisão do vinham abarrotados de metais preciosos.
trabalho, também as divisões sociais. Não tardou muito para os espanhóis
O trabalho não é massacrante e não dura toda a responderem, e a Invencível Armada (a maior frota de
jornada (como durava naquela época), e sim seis horas navios do planeta) do rei Felipe II atacou os ingleses,
diárias, para deixar espago ao lazer e a outras atividades. mas estes saíram vitoriosos. A partir de então, os mares
Em Utopia também existem sacerdotes dedicados ao passaram a ter outros donos.
culto e um lugar especial é garantido aos "literatos", ou Mas as transformações econômicas ocorridas
seja, àqueles que, nascendo com dotes e inclinações na terra da rainha não ocorreram só nos mares, o modo
especiais, pretendem dedicar-se ao estudo. de produzir na terra também se modificou. As
Os habitantes de Utopia são pacifistas, seguem propriedades rurais que antes eram usadas em proveito
prazeres sadios, admitem cultos diferentes, honram a coletivo, passaram a ser exploradas por um único dono,
Deus de diferentes modos e sabem se compreender e principalmente na criação de ovelhas que forneciam a
se aceitar reciprocamente nessas diversidades. lã que impulsionava a nascente manufatura de tecidos
Por fim, os habitantes de Utopia eliminam, com nas cidades. Esse processo contribuiu para a criação de
a abolição do dinheiro e de seu uso, todas as uma classe aristocrática aburguesada, e mais forte
calamidades que a avidez do mesmo produz entre os economicamente, os gentry.
homens. E em uma das páginas conclusivas Morus põe Nesse processo houve a intensificação do que
em primeiro plano este belíssimo pensamento em ficou conhecido como cercamentos, onde os
forma de paradoxo: camponeses foram praticamente expulsos do campo
“seria tão mais fácil procurar-se o de que viver, caso não para viver uma vida miserável na cidade. Isso forçou um
o impedisse justamente a busca do dinheiro, que nas intenções de descontrolado êxodo rural para as cidades que não
quem o inventou teria devido servir-nos precisamente para o fim estavam preparadas para receber todo esse contingente
de agilizar a vida, quando na realidade ocorre exatamente o populacional que se tornou mão de obra barata e
contrário.” fortaleceu o mercado consumidor interno. Esse
Na Inglaterra do mundo real, apesar das processo contribuiu para a consolidação do capitalismo
modificações implementadas pelo rei Henrique VIII, na Inglaterra.
tanto no campo social como no econômico, foi sua filha A “rainha virgem” morreu sem deixar
Elizabeth I que tornou a Inglaterra uma potência ao herdeiros, sendo sucedida pelo seu primo escocês, e
governá-la de 1558 a 1603. católico, Jaime. Este uniu Inglaterra e Escócia e
Atrasados na corrida para exploração das governou de 1603 a 1625, iniciando a dinastia dos
américas, Elizabeth quis recuperar o tempo perdido a Stuart como Jaime I.
todo custo. Ela incentivou a construção de navios para O cara mal chegou e já queria ter seus poderes
a formação de uma poderosa frota que pudesse invadir reais aumentados. E quem dava a fundamentação para
e explorar territórios, fossem eles já dominados por a legitimidade do poder ser ilimitado? Exatamente, o
outros países, ou não. catolicismo. Então ele começou a enfatizar o caráter
católico do anglicanismo. Mas não colou muito não. O
parlamento, composto pela aristocracia rural
aburguesada (gentry) e pelos burgueses fiéis aos
ensinamentos calvinistas (puritanos), se manifestou
contrário a essa jogada do rei, aumentando as tensões
entre os poderes.
Já no reinado do sucessor de Jaime, Carlos I, o
parlamento apresentou em 1628 uma Petição de
Direitos limitando os poderes reais. O rei ficou doido,
mandou fechar o parlamento e prender todo mundo. A
situação só piorou, e em 1640 desencadeou-se uma
guerra civil (1642-48) entre os “cavaleiros”
(bajuladores do rei) e os “cabeças redondas” partidários
do parlamento. Tem-se início a Revolução Puritana.
143
4
A fim de tirar um rei absolutista do poder, melhor, e deve obedecer-se-lhe sem murmurar, pois o
Oliver Cromwell lidera as tropas do parlamento, corta murmúrio é uma disposição para a sedição.
a cabeça do rei e assume como ditador com o apoio do (Jacques Bossuet (1627-1704), Política tirada da Sagrada Escritura)
exército, instaurando uma republica ditatorial Com base no texto, assinale a alternativa correta.
conhecida como protetorado, e governa de 1649 a 1658. a) O autor critica o absolutismo do rei e afirma que seu
Forma em 1651 a Comunidade Britânica com a união poder e autoridade tem limites em relação aos homens.
da Inglaterra, Irlanda e Escócia. b) Para Bossuet, o poder real é um poder divino e não
admite nenhum tipo de oposição dos homens. Rebelar-
QUESTÕES se contra o Rei é rebelar-se contra Deus.
c) Os princípios de Bossuet defendem que os homens
1. [...] O rei fora um aliado forte das cidades na luta tem mais poderes divinos do que o próprio Rei.
contra os senhores. Tudo o que reduzisse a força dos e) O autor reconhece o direito humano de revolta
contra o Rei que não se mostre digno de sua função.
barões fortalecia o poder real. Em recompensa pela sua
ajuda, os cidadãos estavam prontos a auxiliá-lo com 3. “...o príncipe, que trabalha para o seu Estado,
empréstimos em dinheiro. Isso era importante, porque trabalha para os seus filhos, e o amor que tem pelo seu
com o dinheiro o rei podia dispensar a ajuda militar de reino, confundindo com o que tem pela sua família,
seus vassalos. Podia contratar e pagar um exército torna-se-lhe natural... O rei vê de mais longe e de mais
pronto, sempre a seu serviço, sem depender da lealdade alto; deve acreditar-se que ele vê melhor...”
de um senhor. Seria também um exército melhor, (BOSSUET, Jacques de. Política tirada da sagrada escritura. Livro
porque tinha uma única ocupação: lutar. Os soldados II, 10ª proposição e Livro VI, artigo 1º)
feudais não tinham preparo, nem organização regular O trecho anterior se refere ao absolutismo monárquico,
que lhes permitisse atuar em conjunto, com harmonia. que se constituiu no próprio modelo dos regimes
Por isso, um exército pago para combater, bem treinado políticos dos Estados europeus do antigo regime.
e disciplinado, e sempre pronto quando dele se Apresentou variáveis locais conforme se expandia na
necessitava, constituía um grande avanço. Europa, entre os séculos XVI e XVIII. Entretanto,
(HUBERMAN, L. História da riqueza do homem. Rio de Janeiro: podemos identificar no absolutismo monárquico
Zahar, 1977. p. 80-81.) características comuns que o distinguiam, dentre as
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o quais destacamos corretamente a (s)
período da formação dos Estados Nacionais, é correto A) unificações de diversas atribuições de Estado e de
afirmar que governo na figura dos monarcas, tais como a
A) a organização de exércitos sob o comando do rei não prerrogativa de legislar e a administração da justiça real.
contribuiu para o processo de formação dos Estados B) substituição de um tipo de administração baseada na
Nacionais. distribuição de privilégios e concessões régias por uma
B) a decadência da burguesia possibilitou o organização burocrática profissional que atuava em
fortalecimento do poder real e a constituição dos atividades desvinculadas do Estado.
Estados Nacionais europeus. C) implementação de práticas econômicas liberais
C) a teoria política do período sacralizou a figura do como forma de consolidar a aliança política e
monarca, já que afirmava serem os reis escolhidos por econômica dos reis absolutos com as burguesias
Deus para exercer o governo. nacionais.
D) com os Estados Nacionais constituídos, a Igreja D) submissão política dos governos reais absolutistas à
continuou a ocupar um espaço importante dentro dos hierarquia eclesiástica, conforme definido pela doutrina
reinados, baseada na autoridade suprema do Papa. do Direito Divino dos Reis.
E) a política econômica das monarquias europeias E) definição da autoridade dos monarcas absolutos e
estava apoiada no capitalismo monopolista financeiro, seus limites de poder, através da atuação dos
que possibilitou lucros vultosos bem como um parlamentos nacionais constitucionalistas, controlados
processo neocolonialista de conquista. por segmentos burgueses.
2. (...) O trono real não é o trono de um homem, mas o
trono do próprio Deus. Os reis são deuses e participam
de alguma maneira da independência divina. O rei vê de
mais longe e de mais alto; deve-se acreditar que ele vê
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THOMAS HOBBES E A MECÂNICA DO para se aproximar de poetas e historiadores e não para
ESTADO revisitar e meditar os filósofos antigos.
Thomas Hobbes Tinha decidida aversão por Aristóteles e mais
(1588-1679), inglês de ainda pela filosofia escolástica (que então era
família pobre, conviveu interpretada de modo inteiramente inadequado).
com a nobreza, de quem Entretanto, ficou entusiasmado pelos Elementos
recebeu apoio e condições de Euclides, com sua rigorosíssima construção
para estudar, e defendeu dedutiva, que ele considerou modelo de método para o
ferrenhamente o poder filosofar.
absoluto, ameaçado pelas Também exerceram notável influência sobre
novas tendências liberais. Hobbes o racionalismo cartesiano, com suas instâncias
Teve contato com derivadas da revolução cientifica, e Bacon, com sua
Descartes, Francis Bacon concepção utilitarista do saber.
e Galileu. Mas talvez a influência mais poderosa tenha
Preocupou-se, entre outras coisas, com o sido exercida por Galileu com sua física, tanto que, em
problema do conhecimento, tema básico das reflexões várias partes da obra de Hobbes, fica evidente a intenção
do século XVII, representando a tendência empirista. de ser o Galileu da filosofia, em especial o Galileu da ciência
Também escreveu sobre política: as obras De Cive (Do política. Entendida como estudo do movimento a física
Cidadão) e Leviatã. não remonta a antes de Galileu, diz expressamente
O que acontece no século XVII, época em que Hobbes, ao passo que a filosofia civil não remonta a
Hobbes viveu? O absolutismo, atingindo o apogeu, antes de sua própria obra Do cidadão (1642).
encontra -se em vias de ser ultrapassado, e enfrenta No De corpore, Hobbes
inúmeros movimentos de oposição baseados em ideias expressa muito eficazmente a
liberais. nova tempera espiritual e (como
Hobbes nasceu na era de ouro elisabetana, mas já haviam feito muitas páginas
sua vida adulta foi marcada por esses conflitos entre reis de Descartes e de Bacon)
e o parlamento. Ele era crítico da democracia e por sanciona o fim de uma época do
conseguinte, da monarquia parlamentar inglesa. filosofar e o início de urna nova,
Quando estourou a guerra entre rei e que fecha as portas ao
parlamento ele se manteve a favor do rei, e teve que se pensamento antigo e medieval,
exilar na França em 1640. Um país onde todo aquele sem possibilidades de apelo por
que quisesse defender o absolutismo era bem-vindo. muito tempo.
Hobbes encarou a questão da legitimidade do Em particular, Hobbes destaca o seguinte:
poder absoluto e da fundamentação da criação do a) o grande mérito de Galileu;
estado em sua grande obra Leviatã, que publicou na b) a necessidade de fundar urna nova ciência do
França em 1651, dois anos depois da vitória de Estado com base no modelo galileano;
Cromwell, e quando seu governo ditatorial começava a c) a vacuidade e inconsistência da filosofia
se consolidar. grega;
Por que deve existir o Estado e de onde vem o d) a perniciosidade da mistura operada pela
seu poder absoluto? Essa é a pergunta central da obra filosofia veteromedieval cristã entre a Bíblia e a filosofia
magna de Hobbes. Na França, havia a teoria do direito platônica e especialmente a aristotélica, que Hobbes
divino dos reis de governar, mas nosso filósofo era um considera uma traição da fé cristã;
homem racional demais para abraçar tal teoria. e) a necessidade de expulsar o monstro
Hobbes inova no pensamento político da época metafísico e de distinguir a filosofia da religião e das
ao defender que a organização social deve ser entendida Escrituras.
e explicada não como uma teia de jogo de interesses Falávamos, acima, das influencias de Bacon.
entre classes sociais diferentes, mas do mesmo modo Com efeito, também Hobbes afirma que “o fim da
como a ciência explica o movimento dos corpos através ciência é a potência”. E precisa que a filosofia é da
de suas relações de causa e efeito, tendo como princípio máxima “utilidade”, uma vez que, aplicando as normas
básico o entendimento do movimento como um cientificas à moral e à política, ela poderá evitar as
fenômeno natural. Filosofia, para ele, era física dos guerras civis e as calamidades e, portanto, poderá
corpos. garantir a paz.
Trata-se, portanto, de ideias que representam
A nova filosofia uma clara antítese das que foram tornadas clássicas
sobretudo por Aristóteles, que, na Metafísica, escrevia
Hobbes tinha um notável conhecimento de que a filosofia “não tende a realizar alguma coisa”, e que
línguas clássicas. Entretanto, essas línguas serviram-lhe nós não a procuramos “por nenhuma vantagem que
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seja estranha a ela”, mas por puro amor ao saber, isto é, Eis as afirmações significativas do nosso
por objetivos “contemplativos”. filósofo: “O nome é um som humano usado por
arbítrio do homem para ser sinal com o qua1 se possa
A tripartição da filosofia suscitar na mente um pensamento semelhante a um
pensamento passado e que, disposto no discurso e
Com essas premissas, fica clara a nova definição proferido a outros, seja para eles sinal daquele
de filosofia: ela tem por objeto os “corpos” as suas pensamento que tenha ou não ocorrido antes na própria
causas e suas propriedades. Não se ocupa de Deus e da pessoa que fala.” O fato de que os nomes nasçam do
teologia, que cabem à fé, nem daquilo que implica arbítrio está provado pelo continuo surgimento de
inspiração ou revelação divina, nem se ocupa da novas palavras e pela abolição das velhas.
história, nem de tudo aquilo que não seja bem fundado Hobbes fala de nomes “positivos”, como, por
ou conjuntural. exemplo, “homem” e “planta”, e de nomes
Ora, como os corpos são a) naturais “negativos”, como, por exemplo, “não-homem” e
inanimados, b) naturais animados (como o homem) ou “não-planta”. Os nomes positivos e os correspondentes
então c) artificiais (como o Estado), a filosofia, negativos não podem ser atribuídos à mesma coisa
consequentemente, deve ser tripartida. pensada em um mesmo tempo e a propósito do mesmo
Ela deve tratar: dado. Essa é uma transformação significativa do
a) do corpo em geral, princípio da não-contradição em termos nominalistas.
b) do homem e Os nomes comuns não indicam conceitos
c) do cidadão e do Estado. universais, porque só existem indivíduos e conceitos
Foi com base nessa tripartição que Hobbes (que, para Hobbes, nada mais são que imagens) de
concebeu e elaborou sua célebre trilogia De corpore, De indivíduos, mas trata-se apenas de nomes de nomes, não
homine e De cive. tendo, portanto, referência a realidade e não
A divisão da filosofia também pode se articular significando a natureza das coisas, mas somente aquilo
do seguinte modo: que nós pensamos dela.
1) ciência dos corpos naturais;
2) ciência do corpo artificial, com o primeiro As definições, as proposições e o raciocínio como
ramo subdividido como mostra o esquema a seguir. cálculo
Tudo aquilo que é essência espiritual ou que não é
corpóreo está excluído da filosofia. Hobbes, inclusive, A definição não expressa (como queriam
afirma drasticamente que aquele que deseja outra forma Aristóteles e toda a 1ógica clássica e medieval) a
de filosofia que não esteja ligada à dimensão do “essência” da coisa, mas simplesmente “o significado
corpóreo deverá procurá-la em outros livros, não nos dos vocábulos”. Dar uma definição nada mais é do que
seus. “fornecer o significado do termo usado”. Portanto, as
definições são arbitrarias, assim como o são os
Os “nomes”, sua gênese e seu significado vocábulos.
Da conexão de nomes nasce a proposição,
Hobbes precede a abordagem dos corpos de normalmente constituída por um nome concreto que
uma “logica” (em surpreendente analogia com o tem função de sujeito e por um nome abstrato que tem
esquema das filosofias helenísticas, que faziam a lógica função de predicado, ambos ligados pela copulativa.
preceder a física e a ética, corno, por exemplo, a Assim como os nomes, também as proposições
filosofia epicurista). Essa lógica retoma a tradição primeiras e os axiomas (que são as proposições
nominalista da filosofia inglesa tardio-escolástica, fundamentais) são fruto do arbítrio daqueles que foram
assumindo, porém, também alguns elementos de os primeiros a estabelecer os nomes ou a acolhê-los:
origem cartesiana. “[...] por exemplo, é verdade que o homem é animal, já que
A lógica elabora as regras do modo correto de se decidiu impor esses dois nomes à mesma coisa”; as
pensar. Mas, em um contexto nominalista como o de proposições primeiras [...] nada mais são que definições,
Hobbes, o interesse volta-se mais para o “nome” do ou partes de definição e somente elas são princípios de
que para o pensamento como tal. demonstração, isto é, verdades estabelecidas pelo
Com efeito, Hobbes diz que os pensamentos arbítrio daqueles que falam e daqueles que escutam
são fluidos e, sendo assim, devem ser fixados com [...].”
“sinais” sensíveis, capazes de reconduzir à mente Raciocinar é conectar (ou desconectar) nomes,
pensamentos passados, bem como “registrá-los” e definições e proposições em conformidade com as
“sistematizá-los” e, posteriormente, transmiti-los aos regras, fixadas por convenção.
outros. Diz Hobbes que raciocinar é “calcular” e
Foi assim que nasceram os “nomes”, que foram “computar”, aliás, mais propriamente, é um somar e
forjados pelo arbítrio humano. subtrair. “Por raciocínio entendo o cálculo. Calcular é
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colher a soma de mais coisas, uma ligada a outra, ou conhecer Corpo e movimento
o restante, subtraída uma coisa à outra".
Por exemplo: Dissemos que, para Hobbes, a filosofia é
ciência/física dos “corpos” e, podemos acrescentar,
homem = animal + racional mais precisamente, ciência das causas dos corpos.
animal = homem - racional Os modelos dessa ciência (como também já
vimos) são a geometria de Euclides e a física de Galileu.
Hobbes não exclui que o raciocinar seja Mas a diferença entre geometria e física é notável.
também um multiplicar e dividir; entretanto, a As premissas da geometria são postulados
multiplicação é redutível à soma, ao passo que a divisão fixados por nós (postulados que nós estabelecemos) e a
é redutível à subtração. geração das figuras é produzida por nós mediante as
Essa concepção do raciocínio, entendido como linhas que traçamos, de modo que elas “dependem do
“compor”, “decompor” e “recompor” é baseado em nosso arbítrio”. Hobbes precisa: “Exatamente pelo fato
semantemas ou sinais linguísticos, bem como o de que somos nós mesmos a criar as figuras é que há uma
respectivo pano de fundo convencionalístico, geometria e que ela é demonstrável”.
surpreendem pela modernidade e pela ousadia Conhecemos perfeitamente aquilo que nós
extraordinária, já que contém pressentimentos da mesmos estabelecemos, fazemos e construímos. Mas já
cibernética contemporânea (pressentimentos, note-se não podemos com tanta certeza conhecer as coisas
bem, mais do que antecipações). naturais, porque não somos nós que as construímos.
Essa concepção do raciocinar como calcular, E conclui Hobbes: “Entretanto, a partir das
como decompor e recompor, inspira-se além do mais próprias propriedades que vemos, deduzindo as
também em Descartes, mas com notáveis diferenças. consequências até onde nos é dado fazê-lo, podemos
Com efeito, Descartes partia de verdades primeiras, demonstrar que suas causas podem ter sido estas ou
que, em virtude de sua evidencia intuitiva, tinham aquelas.” E, como as coisas naturais nascem do
precisa garantia de objetividade, ao passo que Hobbes movimento, fica assim identificada a sua causa principal.
se desloca para o plano do convencionalismo, Naturalmente, não se trata do movimento
esvaziando dessa forma o discurso sobre a objetividade. concebido aristotelicamente, mas sim do movimento
quantitativamente determinado, ou seja, medido
O empirismo hobbesiano matemática e geometricamente (o movimento
galileano).
Entretanto, para concluir este tema, devemos Assim, Hobbes tenta explicar toda a realidade
destacar que o nominalismo de Hobbes não se funda com base em apenas dois elementos:
em bases céticas, mas muito mais empíricas, sensistas e
fenomênicas. 1) do corpo entendido como aquilo que não
Com efeito, por um lado, ele admite que os depende de nosso pensamento e que “coincide e se co-
nossos pensamentos (que são designados e expressos estende com uma parte do espaço”;
por nomes) são “representações ou aparências” dos 2) do movimento entendido do modo que
objetos que estão fora de nós, sendo em nós produzidos indicamos.
através da experiência dos sentidos. É esse o seu materialismo, ou melhor, seu
Hobbes diz textualmente: “A origem de todos corporeísmo mecanicista, que tantas polêmicas suscitou
[os pensamentos] é aquilo que nós chamamos sentido em sua época.
(pois não há nenhuma concepção da mente humana
que não tenha sido inicialmente, no todo ou em parte, A qualidades das coisas são movimentos variados
gerada pelos 6rgiios do sentido). O resto é derivado
daquela origem”. Aliás, é verdade que, por vezes, Hobbes parece
Ele chega a dizer que a causa do sentido é “O apresentar seu “corporeísmo” quase que como uma
corpo externo ou objeto”. “hipótese” e não como um dogma. Mas também é
Além disso, quando Hobbes diz que a definição verdade que, na maior parte dos seus textos, ele
não expressa a essência da coisa, as “aquilo que nós desenvolve essa sua concepção como tese sem reservas,
concebemos da essência da coisa”, não enuncia uma tanto que tende a entender até Deus em termos
negação cética, e sim opera uma redução fenomênica corporeístas. O que não deixou de suscitar fortes
(só conhecemos da essência aquilo que dela nos objeções e acusações, das quais se defendeu.
aparece). Assim, corpo e movimento local explicam todas
Em suma, ele caminha sobre uma linha que é as coisas.
típica do pensamento inglês e que se imporia de modo As qualidades são “fantasmas do sensível”, ou
sempre mais acentuado. seja, efeitos dos corpos e do movimento. Todas as
chamadas qualidades sensíveis nada mais são que
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movimentos variados. E as alterações qualitativas e os As duas obras-primas de Hobbes, o Do cidadão
próprios processos de geração e corrupção são e o Leviatã, são dedicadas precisamente à resposta a
reduzidos a movimento (local). esses problemas.

Os processos cognitivos e os sentimentos são Egoísmo e convencionalismo


“movimentos”
Os pressupostos que constituem a base da
Consequentemente, também os processos construção da sociedade e do Estado de Hobbes são
cognoscitivos não podem ter outro tipo de explicação fundamentalmente dois.
senão o mecanicista. Na verdade, em certos momentos, 1) Em primeiro lugar, nosso filosofo admite
Hobbes parece reconhecer aos fenômenos do que, embora todos os bens sejam relativos, ha, porém,
conhecimento certo estatuto privilegiado. entre eles um bem primeiro e originário, que é a vida e sua
Depois, contudo, ele deixa de lado essa ordem conservação (e, portanto, um mal primeiro, que é a morte).
de considerações e passa a explicar a própria sensação 2) Em segundo lugar, ele nega que existam uma
com base no movimento, mais precisamente com base justiça e uma injustiça naturais, já que, como vimos, não
no movimento gerado pelo sujeito sensível que, por seu existem “valores” absolutos. Hobbes sustenta que
turno, reage com outro movimento, do qual, justiça e injustiça são fruto de “convenções”
precisamente, surge a imagem ou representação. estabelecidas por nós mesmos e que, portanto, são
Também são “movimentos” os sentimentos de cognoscíveis de modo perfeito e a priori, juntamente
prazer e de dor, o apetite e o desejo, o amor e o ódio, e com tudo aquilo que delas deriva.
até o próprio querer. 1) “Egoísmo” e 2) “convencionalismo” são os
Consequentemente, Hobbes nega a liberdade, pontos cardeais da nova ciência politica, que, segundo
pois os movimentos e os nexos mecânicos que derivam Hobbes, pode se desdobrar como sistema dedutivo
sio rigorosamente necessários. Escreve ele no De corpore: perfeito, assim como o da geometria euclidiana.
“A liberdade de querer ou não querer não é maior no
homem do que nos outros seres animados. Com efeito, A política não tem um fundamento natural
o desejo foi precedido pela causa própria do desejo e,
por isso, o próprio ato do desejo [...] não podia deixar Para compreender adequadamente a nova
de seguir-se, ou seja, segue-se necessariamente”. concepção política de Hobbes é oportuno recordar que
ela constitui a mais radical subversão da clássica posição
Liberdade e valores absolutos aristotélica. Com efeito, o estagirita sustentava que o
homem é “animal político”, ou seja, é constituído de tal
É evidente que, estabelecendo-se dado modo que, por sua própria natureza, é feito para viver
movimento como causa “antecedente”, daí deve com os outros em sociedade politicamente estruturada.
necessariamente brotar um movimento “consequente”. Ademais, ele identificava essa condição de “animal
A liberdade romperia esse nexo e, por conseguinte, político” do homem com o estado próprio também de
infringiria a lógica do corporeísmo e do mecanicismo. outros animais, como as abelhas e as formigas, que
Nos horizontes do materialismo, não ha espaço para a desejando e evitando as mesmas coisas e voltando suas
liberdade. ações para fins comuns, se agregam espontaneamente.
Nesse horizonte, porém, não pode haver Hobbes contesta vivamente a proposição
também espaço para o “bem” (e o “mal”) objetivo e, aristotélica e a comparação. Para ele, cada homem é
portanto, para os “valores morais”. Com efeito, para profundamente diferente dos outros homens e,
Hobbes, “bem” é aquilo a que tendemos e “mal” aquilo portanto, deles separado (é um átomo de egoísmo).
de que fugimos. Mas, como alguns homens desejam Portanto, cada homem não é de modo nenhum ligado
algumas coisas e outros não e como alguns fogem de aos outros homens por um consenso espontâneo como
algumas coisas e outros não, daí decorre que bens e o dos animais, que se baseia em um “apetite natural”,
males são relativos. pelas seguintes razões:
Não se pode dizer sequer de Deus que seja o a) em primeiro lugar, existem entre os homens
bem em absoluto, porque “Deus é bom para todos motivos de contendas que não existem entre os animais;
aqueles que invocam seu nome, mas não para aqueles b) o bem de cada animal que vive em sociedade
que blasfemam seu nome”. Portanto, o bem é relativo não difere do bem comum, ao passo que no homem o
à pessoa, ao local, ao tempo e às circunstâncias, como bem privado difere do bem público;
o sofista Protágoras já havia sustentado na antiguidade. c) os animais não percebem defeitos em sua
Mas, se o bem é relativo, não havendo, sociedade, ao passo que o homem os percebe, querendo
portanto, valores absolutos, como é possível construir introduzir continuas novidades, que constituem causas
uma moral e uma vida social? Como é possível a de discórdias e guerras;
convivência dos homens em uma sociedade?
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d) os animais não têm a palavra, que nos Ora, enquanto perdurar esse estado de coisas,
homens é frequentemente uma “trombeta de guerra e não haverá segurança nem paz alguma. A situação dos
de sedição”; homens deixados a si próprios é de anarquia, geradora
e) os animais não se censuram uns aos outros, de insegurança, angústia e medo. Os interesses egoístas
ao passo que os homens sim; predominam e o homem se torna um lobo para o outro
f) nos animais o consenso é natural, enquanto homem (homo homini lupus).
nos homens não o é. É nesse contexto que Hobbes usa a frase de
O Estado, portanto, não é natural, e sim Plauto homo homini lupus, “o homem é um lobo para o
artificial. homem”, que, no entanto, não tem o significado de
sinistro e radical pessimismo moral que muitos nela
O nascimento do Estado viram, porque pretende ser pura constatação estrutural,
indicando uma situação à qual se deve dar remédio.
Por que e como nasce o Estado? Nessa situação, o homem está arriscado a
A partir da tendência de secularização do perder o bem primeiro, que é a vida, ficando a cada
pensamento político, os filósofos do século XVII estão instante exposto ao perigo de morte violenta. Ademais,
preocupados em justificar racionalmente e legitimar o também não pode dedicar-se a alguma atividade
poder do Estado sem recorrer à intervenção divina ou industrial ou comercial, cujos frutos permaneceriam
a qualquer explicação religiosa. Daí a preocupação com sempre incertos, nem pode cultivar as artes e tudo
a origem do Estado. aquilo que é agradável - em suma, cada homem
Para descobrir a origem e o fundamento do permanece só, com o terror de perder a vida de modo
Estado e de seu poder soberano absoluto, Hobbes não violento.
faz uma investigação histórica sobre as primeiras Mas o homem escapa dessa situação recorrendo
sociedades. Seria ingenuidade concluir que a "origem" a dois elementos básicos: a) a alguns instintos; b) à
do Estado se refere à preocupação com o seu razão.
"começo". O termo deve ser entendido no sentido a) Os instintos são o desejo de evitar a guerra
lógico, e não cronológico, como "princípio" do Estado, contínua, para salvar a vida, e a necessidade de
ou seja, sua razão de ser. O ponto crucial não é a conseguir aquilo que é necessário para a sobrevivência.
história, mas a validade da ordem social e política, a base b) A razão, aqui, é entendida não tanto como
legal do Estado. valor em si, mas muito mais como instrumento capaz
As teorias contratualistas representam a busca de realizar aqueles desejos de fundo.
da legitimidade do poder que os novos pensadores
políticos esperam encontrar na representatividade do As “leis de natureza”
poder e no consenso. Essa temática já existe em
Hobbes, embora a partir de outros pressupostos e com Desse modo, nascem as “leis de natureza”, que
resultados e propostas diferentes daquelas dos liberais. nada mais são do que a racionalização do egoísmo, as
Tal como na ciência, ele começa com uma normas que permitem concretizar o instinto de
hipótese, a de que os homens viviam inicialmente autoconservação.
isolados, livres e iguais, em um estado anterior à Escreve Hobbes: “Uma lei de natureza (lex
sociedade, no qual tudo era possível, não existiam leis e naturalis) é um preceito ou regra geral, descoberta pela
muito menos justiça, onde havia a pura e simples razão, que veta ao homem fazer aquilo que é lesivo à
barbárie, um momento a que ele chamou de Estado de sua vida ou que lhe tolhe os meios para preservá-la, e
Natureza. omitir aquilo com que ele pensa que sua vida possa ser
A condição em que os homens se encontram mais bem preservada”.
naturalmente é uma condição de guerra de todos Habitualmente, recordam-se as primeiras três,
contra todos. Cada qual tende a se apropriar de tudo que são as principais. Mas, no Leviatã, Hobbes
aquilo de que necessita para a sua própria sobrevivência relaciona dezenove. O modo como ele as propõe e
e conservação. E como cada qual tem direito sobre deduz dá ideia perfeita de como se serviu do método
tudo, não havendo limite imposto pela natureza, nasce geométrico aplicado à ética e de como pretendia, sob
então a inevitável predominância de uns sobre os essa nova roupagem, reintroduzir os valores morais que
outros. havia excluído, sem os quais não se pode construir
No estado de natureza, o homem tem direito nenhuma sociedade.
a tudo: “O direito de natureza, a que os autores geralmente 1) A regra primeira e fundamental ordena que o
chamam jus naturale , é a liberdade que cada homem possui de homem se esforce por buscar a paz.
usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação 2) A segunda regra impõe que se renuncie ao
de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e, consequentemente, direito sobre tudo, ou seja, aquele direito que se tem no
de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe estado natural, que é precisamente o direito que
indiquem como meios adequados a esse fim’. desencadeia todas as contendas.
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A regra, portanto, prescreve “que um homem, servem para atingir o objetivo a que se propõem. Por
quando os outros também estiverem, esteja disposto, se conseguinte, segundo Hobbes, é preciso que todos os
o julgar necessário para a sua própria paz e defesa, a homens deleguem a um único homem (ou a uma
abdicar desse direito a todas as coisas, e que se contente assembléia) o poder de representá-los.
em ter tanta liberdade contra os outros homens quanta Mas note-se bem um pormenor: esse “pacto
ele concederia aos outros homens contra si”. social” não é firmado pelos súditos com o soberano,
Essa, comenta o nosso filósofo, “é a lei do mas sim pelos súditos entre si. (Totalmente diferente seria
Evangelho: tudo aquilo que exiges que os outros te o pacto social de que falará Rousseau).
façam, faze-o a eles. Essa é a lei de todos os homens”. O soberano permanece fora do pacto, restando
3) A terceira lei impõe, uma vez que se tenha como o único depositário das renuncias dos direitos dos
renunciado ao direito a tudo, “que se cumpram os súditos e, portanto, único a manter todos os direitos
acordos feitos”. E daí nascem a justiça e a injustiça originários. Se também o soberano entrasse no acordo,
(justiça é manter os acordos feitos, injustiça é não se eliminariam as guerras civis, porque nasceriam
transgredi-los). contrastes diversos na gestão do poder. O poder do
A essas três leis básicas seguem-se outras soberano (ou da assembléia) é indivisível e
dezesseis, que resumimos brevemente a seguir: absoluto.
4) A quarta lei prescreve que se restituam os Para Hobbes, o poder do soberano deve ser
benefícios recebidos, de modo que os outros não se absoluto, isto é, ilimitado. Essa é a natureza do poder
arrependam de tê-los feito. Daí nascem a gratidão e a legítimo resultante do consenso.
ingratidão. A transmissão do poder dos indivíduos ao
5) A quinta prescreve que cada homem deve soberano deve ser total, caso contrário, um pouco que
tender a se adaptar aos outros. Daí nascem a seja conservado da liberdade natural do homem,
sociabilidade e seu contrário. instaura-se de novo a guerra. E se não há limites para a
6) A sexta lei prescreve que, quando se tiver as ação do governante, não é sequer possível ao súdito
devidas garantias, deve-se perdoar aqueles que, julgar se o soberano é justo ou injusto, tirano ou não,
arrependendo-se, o desejem. pois é contraditório dizer que o governante abusa do
7) A sétima prescreve que, nus vinganças (ou poder: não há abuso quando o poder é ilimitado!
punições), não se deve olhar para o mal passado Essa é a mais radical teorização do Estado
recebido, mas sim para o bem futuro. A não- absolutista, deduzida não do “direito divino” (como
observância desta lei dá lugar à crueldade. ocorrera no passado), e sim do “pacto social” que
8) A oitava lei prescreve que não se deve descrevemos.
declarar ódio ou desprezo pelos outros com palavras, Como o soberano não participa do pacto, uma
gestos ou atos. A infração a essa lei chama-se “injuria”. vez recebidos em suas mãos todos os direitos dos
9) A nona lei prescreve que cada homem deve cidadãos, ele os detém irrevogavelmente. Ele está acima da
reconhecer o outro como igual a si por natureza. A justiça (porque a terceira regra, como as outras, vale
infração a essa lei é o orgulho. para os cidadãos, mas não para o soberano). Ele
10) A décima lei prescreve que ninguém deve também pode interferir em matéria de opiniões, julgar,
pretender que seja reservado para si qualquer direito aprovar ou proibir determinadas ideias. Todos os
que não lhe agradaria que fosse reservado a outro poderes devem se concentrar em suas mãos.
homem. Daí nascem a modéstia e a arrogância. A própria Igreja deve-se sujeitar a ele. O Estado,
11) A décima primeira lei prescreve a quem é portanto, também pode interferir em matéria de
confiada a função de julgar entre um homem e outro religião. E, como Hobbes crê na revelação divina e,
que se comporte com equidade entre os dois. Daí portanto, na Bíblia, o Estado que ele concebe, em sua
nascem a equidade e a parcialidade. opinião, também deverá ser árbitro em matéria de
As oito leis restantes prescrevem o uso comum interpretação das Escrituras e de dogmática religiosa,
das coisas indivisíveis, a regra de confiar à sorte (natural impedindo dessa forma todo motivo de discórdia.
ou estabelecida por convenção) a fruição dos bens O absolutismo desse Estado é verdadeiramente
indivisíveis, o salvo-conduto para os mediadores da paz, total.
a arbitragem, as condições de idoneidade para julgar Aqui nós devemos observar que o poder do
com equidade a validade dos testemunhos. Estado, ou seja, sua soberania, advém não mais do
direito divino do rei, mas do pacto feito entre os
O pacto social e a teorização do absolutismo cidadãos de renunciar parte do seu poder de governar-
se.
Entretanto, em si mesmas, essas leis não bastam Também devemos desfazer o mal-entendido
para constituir a sociedade, já que também é preciso um comum pelo qual Hobbes é identificado como defensor
poder que obrigue os homens a respeitá-las: “sem a do absolutismo real. Na verdade, o Estado pode ser
espada que lhes imponha o respeito”, os acordos não monárquico (quando constituído por apenas um
150
11
governante), ou pode ser formado por alguns ou
muitos, por exemplo, por uma assembléia, O
importante é que, uma vez instituído, o Estado não
pode ser contestado: é absoluto.
Além disso, Hobbes parte da constatação de
que as disputas entre rei e parlamento inglês teriam
levado à guerra civil, o que o faz concluir que o poder
do soberano deve ser indivisível.
Cabe ao soberano julgar sobre o bem e o mal,
sobre o justo e o injusto; ninguém pode discordar, pois
tudo o que o soberano faz é resultado do investimento
da autoridade consentida pelo súdito.
Em resumo, o homem abdica da liberdade
dando plenos poderes ao Estado absoluto a fim de
proteger a sua própria vida. Além disso, o Estado deve
garantir que o que é meu me pertença exclusivamente,
garantindo o sistema da propriedade individual. Aliás,
para Hobbes, a propriedade privada não existia no
estado de natureza, onde todos têm direito a tudo e na
verdade ninguém tem direito a nada.
O poder do Estado se exerce pela força, pois só (Gravura) Frontispício da edição de 1651 de Leviatã.
a iminência do castigo pode atemorizar os homens. “Os
pactos sem a espada (sword) não são mais que palavras O leviatã
(words).”
Investido de poder, o soberano não pode ser Na Bíblia, o livro de Jó (caps. 40-41) descreve o
destituído, punido ou morto. Tem o poder de “Leviatã” (que, literalmente, significa "crocodilo")
prescrever as leis, escolher os conselheiros, julgar, fazer como monstro invencível.
a guerra e a paz, recompensar e punir. Hobbes Hobbes adota o nome “Leviatã” para designar
preconiza ainda a censura, já que o soberano é juiz das o Estado e também como título simbólico da obra que
opiniões e doutrinas contrárias à paz. sintetiza todo o seu pensamento. Mas, ao mesmo
E quando, afinal, o próprio Hobbes pergunta se tempo, ele também o designa como “deus mortal”,
não é muito miserável a condição de súdito diante de porque a ele (abaixo do Deus imortal) devemos a paz e
tantas restrições, conclui que nada se compara à a defesa de nossa vida.
condição dissoluta de homens sem senhor ou às Mas a dupla denominação é extremamente
misérias que acompanham a guerra civil. significativa: o Estado absolutista por ele concebido é
Hobbes usa a figura bíblica do Leviatã, animal verdadeiramente metade monstro e metade deus mortal.
monstruoso e cruel, mas que de certa forma defende os Hobbes foi acusado de ter escrito o Leviatã para
peixes menores de serem engolidos pelos mais fortes. granjear as simpatias de Cromwell, legitimando
No desenho, seu corpo é constituído de inúmeras teoricamente sua ditadura, para poder assim voltar a sua
cabeças e ele empunha os símbolos dos dois poderes, o pátria. Mas essa acusação é largamente infundada,
civil e o religioso. porque as raízes da construção política do nosso
Perceba que o homem só consegue viver em filosofo estão nas mesmas premissas do corporeísmo
sociedade, para Hobbes, quando cria o Estado. ontológico, que nega a dimensão espiritual e, portanto,
Portanto, diferentemente dos gregos que viviam numa a liberdade e os valores morais objetivos e absolutos,
instituição que era o reflexo do seu instinto natural de bem como no seu “convencionalismo” lógico.
sociabilidade (pólis), o Estado é um ente criado Hobbes também foi acusado de ateísmo. Mas
artificialmente para que os homens consigam viver em certamente não era ateu. Metade do seu Leviatã se ocupa
sociedade. de temas nos quais a religião e o cristianismo estão em
A sociabilidade humana é algo criado e não natural. primeiro plano. No entanto, é verdade que sua posição
A função principal do estado, portanto, é corporeísta, contra suas próprias intenções e
garantir a vida e a segurança de seus cidadãos. Quando afirmações, se levada as extremas consequências,
ele não consegue garantir tais direitos a um indivíduo, a acabava por levar à negação de Deus ou, pelo menos,
subordinação acaba, mas somente entre o estado e tornar sua existência problemática.
aquele cidadão em específico. O ponto culminante das várias dificuldades do
pensamento de Hobbes consiste em ter tomado a

151
12
ciência (geometria e física) como modelo a ser imitado entre si como proprietários de suas próprias
em filosofia. capacidades e do que adquiriram mediante a prática
Acontece que os métodos das ciências dessas capacidades. A sociedade consiste de relações de
matemáticas e naturais não podem ser transferidos para troca entre proprietários. A sociedade política torna -se
a filosofia sem provocar drásticas reduções, que geram um artifício calculado para a proteção dessa
uma série de aporias indesejáveis, como, em parte, já propriedade e para a manutenção de um ordeiro
havia ocorrido com Descartes, e como acontecerá com relacionamento de trocas
Kant de modo paradigmático. Como vemos, mesmo que Hobbes defenda o
Contudo, é precisamente essa a marca que Estado absoluto, já são perceptíveis em seu discurso
caracteriza grande parte da filosofia moderna, por alguns dos elementos que marcarão o pensamento
influência da revolução cientifica galileana. burguês e liberal daí em diante: o individualismo, a
garantia da propriedade e a preservação da paz e
Uma interpretação segurança indispensáveis para os negócios.

Embora Hobbes defenda o Estado absoluto, e


sob esse aspecto esteja distante dos interesses da
burguesia que aspira ao poder e luta contra o Leviatã
absolutismo dos reis, é possível descobrir no
pensamento hobbesiano alguns elementos que Portanto tudo aquilo que é válido para um
denotam os interesses burgueses. tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de
Por exemplo, a doutrina do direito natural do todo homem, o mesmo é válido também para o tempo
homem é uma arma apropriada para ser utilizada contra durante o qual os homens vivem sem outra segurança
os direitos tradicionais da classe dominante, ou seja, a senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria
nobreza. Da mesma forma, a defesa da força e sua própria intenção.
representatividade baseada no consenso significa a Numa tal situação não há lugar para a indústria,
aspiração de que o poder não seja privilégio de classe. pois seu fruto é incerto; consequentemente não há
Além disso, o Estado surge de um contrato, o que cultivo da terra, nem navegação, nem uso das
revela o caráter mercantil, comercial, das relações mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não
sociais burguesas. há construções confortáveis, nem instrumentos para
O contrato surge a partir de uma visão mover e remover as coisas que precisam de grande
individualista do homem, pois, de acordo com essa força; não há conhecimento da face da Terra, nem
concepção, o indivíduo preexiste ao Estado (se não cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há
cronológica, pelo menos logicamente), e o pacto visa sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante
garantir os interesses dos indivíduos, sua conservação e temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem
sua propriedade. é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.
Se no estado de natureza “não há propriedade, Outra consequência da mesma condição é que
nem domínio, nem distinção entre o meu e o teu”, no não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre
Estado de soberania perfeita a liberdade dos súditos o meu e o teu; só pertence a cada homem aquilo que ele
está naquelas coisas que o soberano permitiu, "como a é capaz de conseguir, e apenas enquanto for capaz de
liberdade de comprar e vender, ou de outro modo conservá-lo. É, pois, esta a miserável condição em que
realizar contratos mútuos; de cada um escolher sua o homem realmente se encontra, por obra da simples
residência, sua alimentação, sua profissão, e instruir natureza.
seus filhos conforme achar melhor, e coisas Embora com uma possibilidade de escapar a
semelhantes". Portanto, o Estado se reduz à garantia do ela, que em parte reside nas paixões, e em parte em sua
conjunto dos interesses particulares. razão.
Nessa linha de raciocínio, o contrato surge As paixões que fazem os homens tender para a
como decorrência da atribuição de uma qualidade paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que
possessiva ao homem que, por natureza, tem medo da são necessárias para uma vida confortável, e a esperança
morte, anseia pelo viver confortável e pela segurança e de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere
é movido pelo instinto de posse e desejo de adequadas normas de paz, em torno das quais os
acumulação. homens podem chegar a acordo. Essas normas são
A qualidade possessiva do individualismo do aquelas a que por outro lado se chamam leis da natureza
século XVII se encontra na sua concepção do indivíduo (...)
como sendo essencialmente o proprietário de sua O acordo vigente entre essas criaturas (abelhas
própria pessoa e de suas próprias capacidades, nada e formigas) é natural, ao passo que o dos homens surge
devendo à sociedade por elas. (...) A sociedade torna-se apenas através de um pacto, isto é, artificialmente.
uma porção de indivíduos livres e iguais, relacionados
152
13
Portanto não é de admirar que seja necessária alguma Se aquele que tentar depor seu soberano for
coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e morto, ou por ele castigado devido a essa tentativa, será
duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum que o autor de seu próprio castigo, dado que por instituição
os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no o é autor de tudo quanto seu soberano fizer.
sentido do benefício comum. Dado que todo súdito é por instituição autor de
A única maneira de instituir um tal poder todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-
comum, capaz de defendê-los das invasões dos se que nada do que este faça pode ser considerado
estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo- injúria para com qualquer de seus súditos, e que
lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. Pois quem faz
seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alguma coisa em virtude da autoridade de um outro não
alimentar -se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força pode nunca causar injúria àquele em virtude de cuja
e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, autoridade está agindo. Por esta instituição de um
que possa reduzir suas diversas vontades, por Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o
pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale soberano fizer, por consequência aquele que se queixar
a dizer: designar um homem ou uma assembléia de de uma injúria feita por seu soberano estar-se-á
homens como representante de suas pessoas, queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto
considerando-se e reconhecendo-se cada um como não deve acusar ninguém a não ser a si próprio, e não
autor de todos os atos que aquele que representa sua pode acusar -se a si próprio de injúria, pois causar
pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser injúria a si próprio é impossível. E certo que os
respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo detentores do poder soberano podem cometer
assim suas vontades à vontade do representante, e suas iniquidades, mas não podem cometer injustiça nem
decisões à sua decisão. injúria em sentido próprio.
Isto é mais do que consentimento, ou Mas tal como os homens, tendo em vista
concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, conseguir a paz, e através disso sua própria
numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de conservação, criaram um homem artificial, ao qual
cada homem com todos os homens, de um modo que chamamos Estado, assim também criaram cadeias
é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e artificiais, chamadas leis civis, as quais eles mesmos,
transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a mediante pactos mútuos, prenderam numa das pontas
este homem, ou a uma assembléia de homens, com a à boca daquele homem ou assembléia a quem
condição de transferires a ele teu direito, autorizando de confiaram o poder soberano, e na outra ponta a seus
maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à próprios ouvidos. Embora esses laços por sua própria
multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, natureza sejam fracos, é, no entanto, possível mantê-
em latim civitas. É a geração daquele grande Leviatã, ou los, devido ao perigo, se não pela dificuldade de rompê-
antes (para falar em termos mais reverentes) daquele los.
Deus Mortal ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, É unicamente em relação a esses laços que vou
nossa paz e defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe agora falar da liberdade dos súditos. Dado que em
é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o nenhum Estado do mundo foram estabelecidas regras
uso de tamanho poder e força que o terror assim suficientes para regular todas as ações e palavras dos
inspirado o torna capaz de conformar as vontades de homens (o que é uma coisa impossível), segue -se
todos eles, no sentido da paz em seu próprio pais, e da necessariamente que em todas as espécies de ações não
ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que previstas pelas leis os homens têm a liberdade de fazer
consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim o que a razão de cada um sugerir, como o mais favorável
definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande a seu interesse. Porque tomando a liberdade em seu
multidão, mediante pactos recíprocos uns com os sentido próprio, como liberdade corpórea, isto é, como
outros, foi instituída por cada um como autora, de liberdade das cadeias e prisões, torna-se inteiramente
modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, absurdo que os homens clamem, como o fazem, por
da maneira que considerar conveniente, para assegurar uma liberdade de que tão manifestamente desfrutam.
a paz e a defesa comum. Por outro lado, entendendo a liberdade no sentido de
Aquele que é portador dessa pessoa s e chama isenção das leis, não é menos absurdo que os homens
soberano, e dele se diz que possui poder soberano. exijam, como fazem, aquela liberdade mediante a qual
Todos os restantes são súditos. todos os outros homens podem tornar-se senhores de
Aqueles que já instituíram um Estado, dado que suas vidas. Apesar do absurdo em que consiste, é isto
são obrigados pelo pacto a reconhecer como seus os que eles pedem, pois ignoram que as leis não têm poder
atos e decisões de alguém, não podem legitimamente algum para protegê-los, se não houver uma espada nas
celebrar entre si um novo pacto no sentido de obedecer mãos de um homem, ou homens, encarregados de pôr
a outrem, seja no que for, sem sua licença. as leis em execução. Portanto a liberdade dos súditos
está apenas naquelas coisas que, ao regular suas ações,
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14
o soberano permitiu: como a liberdade de comprar e QUESTÕES
vender, ou de outro modo realizar contratos mútuos; de
cada um escolher sua residência, sua alimentação, sua 1. O fim último, causa final e desígnio dos homens (que
profissão, e instruir seus filhos conforme achar melhor, amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os
e coisas semelhantes. outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos
Não devemos, todavia, concluir que com essa sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com
liberdade fica abolido ou limitado o poder soberano de
vida e de morte. Porque já foi mostrado que nada que sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita.
o soberano representante faça a um súdito pode, sob Quer dizer, o desejo de sair daquela miséria condição
qualquer pretexto, ser propriamente chamado injustiça de guerra que é a consequência necessária (conforme se
ou injúria. mostrou) das paixões naturais dos homens, quando não
(Hobbes, Leviatã, Col. Os pensadores, p. 80, 81, 109, I I l, 1 13 e há um poder visível capaz de os manter em respeito,
134 -135.)
forçando-os por medo do castigo, ao cumprimento de
HUGO GROTIUS seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza (...)
(HOBBES, T. Das causas, geração e definição de um Estado. In:
Entre os séculos XVI e
Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 2ª. ed.,1979, p. 103.)
XVII formou-se e se consolidou
a teoria do direito natural, Considerando o fragmento anterior, podemos dizer que
sobretudo, por obra do Thomas Hobbes, pensador inglês do séc. XVII,
holandês Hugo Grotius (1583- defende a noção de que
1645) no escrito O direito da A) apenas um Estado democrático, surgido de um ato
guerra e da paz de 1625. de liberdade dos cidadãos, teria legitimidade para criar
Ainda se podem sentir as leis e zelar pela segurança e demais necessidades sociais.
raízes humanistas de Grotius,
B) certos indivíduos, extraordinariamente, quando
mas ele já está encaminhado na
estrada que levará ao moderno apaixonados, amam dominar os outros e é preciso
racionalismo, ainda que só a tenha percorrido em parte. forçá-los, através do castigo, a manter o respeito; essa
Os fundamentos da convivência dos homens seria a função do Estado.
são a razão e a natureza, que coincidem entre si. O C) o Estado resulta do desejo dos indivíduos de garantir
“direito natural”, que regula a convivência humana, a propriedade privada, para deixar de ter uma condição
possui esse fundamento racional-natural.
mísera e participar ativamente do pacto social.
Todavia, notemos a consistência ontológica que
Grotius dá ao direito natural, este se revela tão estável e D) o homem é naturalmente bom, mas a vida social o
alicerçado que o próprio Deus não poderia mudá-lo. corrompe, fazendo com que passe a querer dominar a
Isso significa que o direito natural reflete a liberdade dos outros; o nascimento do Estado é
racionalidade, que é o próprio critério com que Deus diretamente responsável por essa corrupção.
criou o mundo e que, como tal, Deus não poderia E) os homens são naturalmente inaptos para a vida
alterar, a não ser se contradizendo, o que é impensável. social, a menos que constituam uma autoridade à qual
Diferente do direito natural é o "direito civil",
entreguem sua liberdade em troca de segurança.
que depende das decisões dos homens, e que é
promulgado pelo poder civil. Este tem como objetivo a
utilidade e é sustentado pelo consentimento dos 2. (UEL 2009) A maior parte daqueles que escreveram
cidadãos. alguma coisa a propósito das repúblicas o supõe, ou nos
A vida, a dignidade da pessoa e a propriedade pede ou requer que acreditemos que o homem é uma
pertencem ao âmbito dos direitos naturais. criatura que nasce apta para a sociedade. Os gregos
O direito internacional baseia-se na identidade chamam-no zoon politikon: e sobre este alicerce eles
de natureza entre os homens. Portanto, os tratados
erigem a doutrina da sociedade civil [...] aqueles que
internacionais têm valor mesmo quando estipulados
por homens de confissões diferentes, já que o fato de perscrutarem com maior precisão as causas pelas quais
pertencer a fés diversas não modifica a natureza os homens se reúnem, e se deleitam uns na companhia
humana. dos outros, facilmente hão de notar que isto não
O objetivo da punição para as infrações aos acontece porque naturalmente não poderia suceder de
direitos deve ser corretivo: não se pune quem errou outro modo, mas por acidente.
porque errou, mas para que não erre mais (no futuro).
[...]
E a punição deve ser, ao mesmo tempo, proporcional
tanto à natureza do erro como à conveniência e à Toda associação [...] ou é para o ganho ou para a
utilidade que se pretende tirar da própria punição. glória — isto é, não tanto para o amor de nossos
154
15
próximos quanto pelo amor de nós mesmos. [...] se I. A situação dos homens, sem um poder comum que
fosse removido todo o medo, a natureza humana os mantenha em respeito, é de anarquia, geradora de
tenderia com muito mais avidez à dominação do que insegurança, angústia e medo, pois os interesses
construir uma sociedade. Devemos, portanto, concluir egoísticos são predominantes, e o homem é lobo para
que a origem de todas as grandes e duradouras o homem.
sociedades não provém da boa vontade recíproca que II. As consequências desse estado de guerra
os homens tivessem uns para com os outros, mas do generalizada são as de que, no estado de natureza, não
medo recíproco que uns tinham dos outros. há lugar para a indústria, para a agricultura nem
(HOBBES, T. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p navegação, e há prejuízo para a ciência e para o conforto
28-29; 31-32.) dos homens.
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o III. O medo da morte violenta e o desejo de paz com
pensamento político hobbesiano, é correto afirmar. segurança levam os indivíduos a estabelecerem entre si
a) Hobbes reafirma o postulado aristotélico de que os um pacto de submissão para a instituição do estado
homens tendem naturalmente à vida em sociedade, mas civil, abdicando de seus direitos naturais em favor do
que, obcecados pelas paixões, decaíram num estado soberano, cujo poder é limitado e revogável por causa
generalizado de guerra de todos contra todos. do direito à resistência que tem vigência no estado civil
b) O estado de guerra generalizada entre os homens assim instituído.
emerge, segundo Hobbes, da desigualdade promovida IV. Apesar das leis da natureza, por não haver um poder
pela lei civil e pelo desejo de poder de uns sobre os comum que mantenha a todos em respeito, garantindo
outros. a paz e a segurança, o estado de natureza é um estado
c) A ideia de que o estado de guerra generalizada ocorre de permanente temor e perigo da morte violenta, e “a
com o desaparecimento do estado de natureza, onde vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida
todos os homens vivem em harmonia, constitui o e curta”.
fundamento da teoria política de Hobbes. V. O poder soberano instituído mediante o pacto de
d) Segundo Hobbes, para restaurar a paz que existia no submissão é um poder limitado, restrito e revogável,
estado de natureza, os homens sujeitam-se, pelo pacto, pois no estado civil permanecem em vigor os direitos
a um único soberano para subtrair-se ao medo da morte naturais à vida, à liberdade e à propriedade, bem como
e, por sua vez, garantir a autopreservação. o direito à resistência ao poder soberano.
e) Segundo Hobbes, à propensão natural dos homens a Das afirmativas feitas acima
se ferirem uns aos outros se soma o direito de todos a a) somente a afirmação I está correta.
tudo, resultando, pela igualdade natural, em uma guerra b) as afirmações I e III estão corretas.
perpétua de todos contra todos. c) as afirmações II e IV estão incorretas.
d) as afirmação III e V estão incorretas.
3. “Com isto se torna manifesto que, durante o tempo e) as afirmações II, III e IV estão corretas.
em que os homens vivem sem um poder comum capaz
de os manter a todos em respeito, eles se encontram 4. (UFU 2009) Leia o texto abaixo e assinale a
naquela condição que se chama guerra; e uma guerra alternativa correta.
que é de todos os homens contra todos os homens. [...] “É evidente que, durante o tempo em que os homens
E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem vivem sem um poder comum que os mantenha
força para dar segurança a ninguém. Portanto, apesar subjugados, eles se encontram naquela condição que é
chamada de guerra; e essa guerra é uma guerra de cada
das leis da natureza (que cada um respeita quando tem
homem contra cada outro homem.”
vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com Hobbes in BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Ed. Campus,
1991. p. 35.
segurança), se não for instituído um poder
A) Para Hobbes, a guerra é uma situação anterior ao
suficientemente grande para nossa segurança, cada um estado de natureza.
confiará, e poderá legitimamente confiar apenas em sua B) Em Hobbes, a guerra de todos contra todos é
própria força e capacidade, como proteção contra compatível com um poder comum.
todos”. C) Um poder comum, segundo Hobbes, mantém os
Hobbes. homens no estado de natureza.
Considerando o texto citado e o pensamento político D) Hobbes associa, em suas reflexões, a situação de
de Hobbes, seguem as afirmativas abaixo: guerra e o estado de natureza.
155
16
iguais entre si, por sua preservação que faz com que
5. (UEL 2010) Leia os textos de Hobbes a seguir e cada um tenha direito a tudo.
responda à questão. Assinale a alternativa correta.
[...] Os homens não podem esperar uma conservação a) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
duradoura se continuarem no estado de natureza, ou b) Somente as afirmativas II e III são corretas.
seja, de guerra, e isso devido à igualdade de poder que c) Somente as afirmativas II e IV são corretas.
entre eles há, e a outras faculdades com que estão d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
dotados. A lei da natureza primeira, e fundamental, é e) Somente as afirmativas I, III e IV são corretas.
que devemos procurar a paz, quando possa ser
encontrada [...]. Uma das leis naturais inferidas desta 6. O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679)
primeira e fundamental é a seguinte: que os homens não afirma que os seres humanos, na condição de natureza,
devem conservar o direito que têm, todos, a todas as não possuiriam o mínimo senso moral e viveriam a
coisas. disposição permanente para a guerra, sendo a vida,
nessas circunstâncias, miserável e bruta. Renunciando,
(HOBBES, T. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp.
40 - 41; 45 - 46).
então, à sua liberdade, os homens fundam a sociedade
mediante um pacto que transfere poder ao Estado, cuja
[...] aquele que submete sua vontade à vontade outrem
autoridade, de acordo com esse filósofo, deve ser
transfere a este último o direito sobre sua força e suas absoluta.
faculdades - de tal modo que, quando todos os outros Identifique a alternativa correta sobre o conceito de
tiverem feito o mesmo, aquele a quem se submeteram justiça na teoria de Hobbes.
terá tanto poder que, pelo terror que este suscita, poderá a) A justiça realiza-se na vigência do pacto social que
conformar as vontades particulares à unidade e à possibilita a segurança e a prosperidade da vida em
concórdia. [...] A união assim feita diz-se uma cidade, sociedade. Esse contrato social, por sua vez, apenas é
viável sob o poder absoluto do Estado, órgão capaz de
ou uma sociedade civil. reprimir as inclinações destrutivas dos indivíduos, dado
(HOBBES, T. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, p. 1992,
que estes, abandonados à sua natureza, não são
p. 109).
portadores da noção de justiça.
Para os jusnaturalistas o problema da legitimidade do b) A justiça é um dado da natureza humana,
poder político comporta uma questão de fato e uma dissolvendo-se, porém, com o estabelecimento do
questão de direito, isto é, o problema da instituição da contrato social entre os seres humanos. Afinal,
sociedade civil e o problema do fundamento da renunciando à sua liberdade em favor de sua segurança,
autoridade política. os indivíduos transferem a responsabilidade de todas as
Com base nos textos e nos conhecimentos sobre o decisões ao Estado e, consequentemente, ficam
desprovidos de seus valores morais naturais e de sua
pensamento jusnaturalista de Hobbes, considere as
capacidade inata de se conduzir de maneira justa em
afirmativas a seguir: sociedade.
I. A instituição da sociedade civil fundamenta-se na c) A justiça realiza-se com a criação do poder político
sociabilidade natural do ser humano, pela qual os estatal, posto que este é concebido como uma
indivíduos hipoteticamente livres e iguais decidem associação de proprietários equipada para proteger os
submeter-se à autoridade comum de um só homem ou direitos individuais inalienáveis dos seres humanos,
de uma assembleia. segundo os quais cada homem é proprietário de si
mesmo e, portanto, executor da justiça na luta contra os
II. Além do pacto de associação para união de todos em crimes que afetam a humanidade.
um só corpo, é preciso que ao mesmo tempo se d) A justiça confunde-se com a agressividade natural
estabeleça o pacto de submissão de todos a um poder dos seres humanos, realizando-se nas infindáveis
comum para a preservação da segurança e da paz civil. disputas que caracterizam a condição de natureza.
III. A soberania do povo encontra sua origem e seus Sendo assim, a efetivação da plena humanidade sob o
princípios fundamentais no ato do contrato social contrato social cumpre-se precisamente na renúncia aos
ideais de justiça entre os homens.
constituído pelas vontades particulares dos indivíduos a
e) A justiça é uma noção que não diz respeito ao poder
fim de edificar uma vontade geral indivisível e político do Estado, pois este se ocupa exclusivamente
inalienável. de questões práticas que concernem à viabilização da
IV. O estado de guerra decorre em última instância da vida em sociedade. Assim, conceitos como justo e
necessidade fundamental dos homens, naturalmente injusto pertencem ao âmbito das relações privadas e

156
17
devem ser objeto de reflexão dirigida pelas instituições C) O direito dos homens a todas as coisas não tem
religiosas. como consequência necessária a guerra de todos contra
todos.
7. Referindo-se à liberdade dos súditos, Thomas D) A origem do poder nada tem a ver com as noções
Hobbes diz que a Liberdade é de estado de guerra e estado de natureza.
a) vivenciar a Política no espaço público, respeitando as
10. (UFU 2012) [...] a condição dos homens fora da
diversas espécies de governo por Instituição e da
sociedade civil (condição esta que podemos
sucessão do poder soberano. adequadamente chamar de estado de natureza) nada
b) fazer tudo o que nos apraz, sem considerar o mais é do que uma simples guerra de todos contra todos
domínio paterno e despótico. na qual todos os homens têm igual direito a todas as
c) em sentido próprio, a ausência de oposição, coisas; [...].
HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Campinas: Martins Fontes, 1992.
entendendo por oposição os impedimentos externos do
De acordo com o trecho acima e com o pensamento de
movimento. Hobbes, assinale a alternativa correta.
d) vivenciar as potencialidades da existência humana, A) Segundo Hobbes, o estado de natureza se confunde
estendendo-a para o campo da Política. com o estado de guerra, pois ambos são uma condição
original da existência humana.
8. A origem do poder foi sempre explicada de maneira B) Para Hobbes, o direito dos homens a todas as coisas
superficial e religiosa, no entanto, nos tempos está desvinculado da guerra de todos contra todos.
modernos, passou a ser explicada de uma forma C) Segundo Hobbes, é necessário que a condição
racional e laica. humana seja analisada sempre como se os homens
Entre as justificativas do Estado, a teoria do contrato vivessem em sociedade.
social, vista por Thomas Hobbes, sugere: D) Segundo Hobbes, não há vínculo entre o estado de
a) um consenso entre os indivíduos, transfere natureza e a sociedade civil.
autoridade máxima ao rei para que ele se torne forte o
suficiente para proteger a todos. 11. “Dado que todo súdito é por instituição autor de
b) um acordo entre nobres, sem a participação dos todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-
indivíduos, para fortalecer o poder real. se que nada do que este faça pode ser considerado
c) uma aliança entre as classes sociais, sem limites, para injúria para com qualquer de seus súditos, e que
a democratização das instituições.
nenhum deles pode acusá-lo de injustiça”.
d) a formação de um regime político decorrente da
HOBBES, T. Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de um estado
vontade da maioria dos indivíduos através do voto.
eclesiástico e civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria
e) a eliminação de intermediários entre os indivíduos e Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 109.
a formação do poder legislativo na chamada democracia Com base no texto e nos conhecimentos sobre o
direta. contratualismo de Hobbes, é correto afirmar:
a) O soberano tem deveres contratuais com os seus
9. (UFU 2011) Com base em seus conhecimentos e no
súditos.
texto abaixo, assinale a alternativa correta, segundo
Hobbes. b) O poder político tem como objetivo principal
[...] a condição dos homens fora da sociedade civil garantir a liberdade dos indivíduos.
(condição esta que podemos adequadamente chamar de c) Antes da instituição do poder soberano, os homens
estado de natureza) nada mais é do que uma simples viviam em paz.
guerra de todos contra todos na qual todos os homens d) O poder soberano não deve obediência às lei da
têm igual direito a todas as coisas; [...] e que todos os natureza.
homens, tão cedo chegam a compreender essa odiosa
e) Acusar o soberano de injustiça seria como acusar a si
condição, desejam [...] libertar-se de tal miséria.
HOBBES, Thomas, Do Cidadão, Ed. Martins Fontes, 1992. mesmo de injustiça.
A) O estado de natureza não se confunde com o estado
de guerra, pois este é apenas circunstancial ao passo que 12. É correto afirmar, em relação ao absolutismo:
o estado de natureza é uma condição da existência a) As liberdades individuais e a preservação dos direitos
humana. alcançados pelos servos foram características do
B) A condição de miséria a que se refere o texto é o período absolutista.
estado de natureza ou, tal como se pode compreender, b) A primeira revolução de caráter burguês e contra o
o estado de guerra. absolutismo ocorreu na França.

157
18
c) As disputas religiosas e entre igrejas não se concordaram em transferir seu direito de governarem a
relacionavam de forma alguma com as práticas si mesmos à pessoa ou à assembleia de pessoas que os
absolutistas. represente e que possa assegurar a paz e o bem comum.
d) Na França os filósofos absolutistas defendiam 08) Na obra Leviatã, para caracterizar o Estado, Thomas
práticas que ajudavam os Reis a aumentarem ainda mais Hobbes utiliza a figura do Novo Testamento, o Leviatã,
seus poderes. cuja função é salvar os homens do poder despótico dos
reis.
13. (UEM 2013) “Designar um homem ou uma 16) Segundo Thomas Hobbes, o Estado não dispõe de
assembleia de homens como portador de suas pessoas, poder absoluto algum. É ilegítimo o uso da força pelo
admitindo-se e reconhecendo-se cada um como autor soberano para constranger os súditos, pois o controle
de todos os atos que aquele que assim é portador de sua do poder instituído, como o próprio poder, deve
pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser assentar-se no acordo e no convencimento.
respeito à paz e à segurança comuns; todos submetendo
desse modo as suas vontades à vontade dele, e as suas 15. (UFSJ 2013) Thomas Hobbes afirma que “Lei
decisões à sua decisão. Isto é mais do que Civil”, para todo súdito, é
consentimento ou concórdia, é uma verdadeira unidade a) “construída por aquelas regras que o Estado lhe
de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por impõe, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal
um pacto de cada homem com todos os homens, de um
modo que é como se cada homem dissesse a cada suficiente de sua vontade, para usar como critério de
homem: Autorizo e transfiro o meu direito de me governar a distinção entre o bem e o mal”.
mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com b) “a lei que o deixa livre para caminhar para qualquer
a condição de transferires para ele o teu direito, autorizando de direção, pois há um conjunto de leis naturais que
uma maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, a estabelece os limites para uma vida em sociedade”.
multidão assim unida numa só pessoa chama-se c) “reguladora e protetora dos direitos humanos, e faz
República, em latim Civitas”
(HOBBES, T. Leviatã In: Antologia de textos filosóficos, Curitiba:
intervenção na ordem social para legitimar as relações
SEED-PR, 2009, p. 364-365). externas da vida do homem em sociedade”.
A partir do trecho citado, assinale o que for correto. d) “calcada na arbitrariedade individual, em que as
01) A República proposta pressupõe a renúncia à pessoas buscam entrar num Estado Civil, em
liberdade política dos homens. consonância com o direito natural, no qual ele – o
02) O consentimento que funda a República não é mera súdito – tem direito sobre a sua vida, a sua liberdade e
passividade, mas exige aceitação e participação na os seus bens”.
comunidade política.
04) A República é como um indivíduo que governa o 16. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo,
conjunto ou a assembleia dos contratantes. que quando empreende uma viagem se arma e procura
08) Essa noção de República funda-se na transferência
do direito de autogoverno em nome da assembleia, que ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha suas
terá por missão preservar a união de todos. portas; que mesmo quando está em casa tranca seus
16) O pacto social que funda a República não se faz cofres; e isso mesmo sabendo que existem leis e
entre indivíduos, mas de cada indivíduo com o restante funcionários públicos armados, prontos a vingar
do corpo político. qualquer injúria que lhe possa ser feita.
(HOBBES. Leviatã. Trad. J. P. Monteiro e M. B. N. da Silva. São
14. (UEM 2008) Thomas Hobbes explica a origem da Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 80.)
sociedade e do Estado mediante a ideia de um pacto ou O texto de Hobbes diverge de uma ideia central da
acordo entre os indivíduos para regulamentar o filosofia política de Aristóteles. Assinale a alternativa
convívio social e garantir a paz e a segurança de todos.
que identifica essa ideia aristotélica.
Sobre a teoria política de Thomas Hobbes, assinale o
que for correto. a) É inerente à condição humana viver segundo as
01) Segundo Thomas Hobbes, no estado de natureza, o condições adversas do estado de natureza.
comportamento dos homens é pacífico, o que é b) A sociabilidade se configura como natural aos seres
condição para instauração do pacto de respeito mútuo humanos.
às liberdades individuais. c) Os homens, no estado civil, perdem a bondade
02) Segundo Thomas Hobbes, no estado de natureza, o originária do homem natural.
homem dispõe de toda liberdade e poder para realizar
tudo quanto sua força ou astúcia lhe permitir. d) A insociável sociabilidade é característica imanente
04) Segundo Thomas Hobbes, o Estado é a unidade às ações humanas.
formada por uma multidão de indivíduos que
158
19
e) O Estado é incapaz de prover a segurança dos GABARITO
súditos.
QUESTÕES
17. (UEM 2016) “Este poder soberano pode ser 1. c
adquirido de duas maneiras. Uma delas é a força natural,
como quando um homem obriga os seus filhos a 2. b
submeterem-se e a submeterem os seus próprios filhos 3. a
à sua autoridade, na medida em que é capaz de os
destruir em caso de recusa. Ou como quando um
homem sujeita através da guerra os seus inimigos à sua QUESTÕES HOBBES
vontade, concedendo-lhes a vida com essa condição. A
outra é quando os homens concordam entre si em se 1. e
submeterem a um homem, ou a uma assembleia de 2. e
homens, voluntariamente, confiando que serão
protegidos por ele contra os outros. Esta última pode 3. d
ser chamada uma república política, ou por instituição. À 4. d
primeira pode chamar-se uma república por aquisição”.
HOBBES, T. “Leviatã” in MARÇAL, J. Antologia de textos 5. c
filosóficos. Curitiba: SEED, 2009, p. 366).
A partir do texto citado, assinale o que for correto. 6. a
01) O poder soberano aqui é tão somente o do monarca 7. c
absoluto que detém os poderes de vida e de morte dos
seus súditos. 8. a
02) República política é a instituição fundada pelo 9. b
acordo dos homens em assembleia, gerando a confiança
de que eles serão protegidos por esta instituição. 10. a
04) O poder soberano se contrapõe ao poder paterno, 11. e
visto que este ocupa a autoridade perante os
descendentes de uma família, tanto filhos quanto netos. 12. d
08) O poder também teria uma natureza política 13. 02/04/08/16
quando fundado sobre o consentimento dos membros
de uma comunidade, que fazem um pacto e delegam 14. 02/04
esse poder a um homem que irá protegê-los dos seus 15. a
inimigos.
16) República por aquisição é a instituição conquistada 16. b
por meio de guerra, sujeitando os inimigos ao poder 17. 2/8/16
soberano.

159
20
RACIONALISMO E EMPIRISMO 1.1 O espírito mecanicista

A sociedade de sua época estava maravilhada


Apesar da atitude de voltar aos antigos na com as engenhocas mecânicas que divertiam a
tentativa de recomeçar a empreitada humana como se o aristocracia nos grandes jardins europeus, como a água
pensamento teológico da Idade Média fosse só um corrente em tubulações subterrâneas que
obstáculo a ser contornado, ele, obviamente, deixou sua movimentavam robôs autômatos fazendo-os produzir
marca na história do pensamento europeu, e por sons musicais e quase fazê-los falar.
conseguinte, na nossa, já que somos, querendo ou não,
herdeiros diretos dessa matriz intelectual.
Na antiguidade, com exceção de algumas
correntes de pensamento, a investigação filosófica
estava centrada em descobrir a essência das coisas, com
o objetivo de entender a ordem do universo e do
mundo e o lugar do homem dentro de toda essa trama.
Nessa empreitada, não se duvidava da
capacidade do homem de compreender isso tudo. Mas
depois da Igreja passar quase 1.000 anos dizendo que o
homem era um ser desgraçado, que não tinha como
alcançar o conhecimento das coisas, a não ser pela graça
divina, isso ficou marcado no pensamento de todos Mas não era só isso, bombas hidráulicas,
aqueles que viveram essa época. roldanas, guindastes facilitavam a vida de muita gente.
Desse modo, diante de uma concepção de razão E a invenção mais impressionante para a época, o
enfraquecida em sua capacidade de conhecer o mundo, relógio mecânico, a perfeita aplicação das teorias da
a pesquisa filosófica recua um pouco para, antes de física e da mecânica na construção de máquinas.
perguntar pela essência das coisas, questionar primeiro É nesse clima de euforia científica que
se somos capazes de conhecê-las. Descartes cresce, sempre incomodado com o fato de
As questões passam a ser: “podemos que na escola não lhe ensinam nada disso.
conhecer?”, se sim, “o que podemos conhecer?”, e se Apesar de católico, Descartes não era ortodoxo
sim, “como podemos conhecer?”, e “quais os limites ao ponto de obedecer cegamente aos dogmas de sua
dessa capacidade de conhecer?” . religião, e percebia claramente a incompatibilidade
A filosofia será reduzia à entre os ensinamentos sobre o mundo natural
epistemologia/teoria do conhecimento, e criam-se dois promovidos pela igreja através de seus propagadores
grandes paradigmas, o RACIONALISMO, para jesuítas nos colégios e nas universidades, e os avanços
aqueles que defendem que o conhecimento é oriundo da ciência. Não aceitava a relutância da Igreja em
apenas da razão, e o EMPIRISMO, para aqueles que admitir que seus ensinamentos sobre o mundo natural
sustentam que o conhecimento é fruto dos sentidos por estavam errados, que, segundo ele, não passavam de
meio da experiência. falsas opiniões e de apego cego à tradição.
Ele não via aplicação prática daquilo que lhe
1. DESCARTES E O GRANDE fora ensinado no colégio e no meio acadêmico.
RACIONALISMO Descartes era contemporâneo de Galileu e não ignorava
os avanços dele na explicação do universo,
René principalmente porque Galileu partia de um ponto de
Descartes (1596 – vista racional onde qualquer pessoa, livre de
1650) é “o” filósofo da preconceitos, e que tivesse disposta a usar a razão,
modernidade. Ele poderia chegar as mesmas conclusões que ele.
sintetiza o espírito do E qual a linguagem usada por Galileu para
seu tempo e explicar a natureza? Isso mesmo, a matemática. O uso
problematiza o que do puro raciocínio, que poderia ser feito por qualquer
será discutido a partir pessoa. Descartes era obcecado pelo uso prático que se
dele. podia fazer da matemática.
Ele nasceu na
França e estudou no 1.2 A missão de Descartes
melhor colégio daquele
país, que obviamente Insatisfeito com os conhecimentos
era jesuíta e onde se ensinava a doutrina escolástica ultrapassados que recebeu e que ainda eram ensinados
aristotélico-tomista, é claro. nas instituições de ensinos oficiais, conhecimentos
160
1
totalmente desconexos, sem um princípio unificador, descartes dá um passo atrás e começa pelo “como”
sem sistematicidade, ele decide viajar para conhecer o conhecemos, para saber se podemos ter acesso a um
que o mundo tinha a ensinar. saber verdadeiro, não passível de erro.
Em uma das noites de sua viajem, sonhou que Nessa obra Descartes propõe quatro regas
deveria erigir um novo conhecimento, sistemático, básicas para se chegar a um conhecimento verdadeiro,
lógico, e totalmente fundamentado na razão, portanto, são elas:
universal. Foi então que decidiu se fixar em um lugar l) Regra da evidência - não aceitar por
para mergulhar nos estudos. Queria ficar em Paris, mas verdadeiro senão aquilo que se apresenta clara e
a vida agitada, e o medo das perseguições da Igreja fez distintamente ao espírito;
com que ele se mudasse para um lugar onde houvesse 2) Regra da análise - dividir as dificuldades em
tolerância de pensamento, e parte, então, para a tantas partes quantas seja possível para melhor
Holanda. solucioná-las;
Descartes tinha o projeto de abarcar a totalidade 3) Regra da síntese - ordenar os pensamentos
do conhecimento e organizá-lo de forma sistemática, a dos mais simples para os mais complexos; e,
começar por princípios seguros sobre os quais todas as 4) Regra da enumeração - fazer enumerações
áreas pudessem partir, de modo que se pudesse chegar gerais e completas para se ter certeza de nada omitir.
a conhecimentos complexos progredindo dos simples, Para Descartes, mente, alma, espírito e razão
tal como uma equação matemática. Ele imaginou o são palavras de mesmo significado. Portanto, na
conhecimento humano como uma árvore organizada da primeira regra ele está colocando a razão como critério
seguinte forma: par se ter evidência, clareza e distinção de alguma coisa,
pois os sentidos são enganadores.
Esses são os mesmos passos usados pelos
matemáticos que chegam às suas conclusões por
processo de decomposição e síntese.

A dúvida metódica

Desse modo, para decompor seu pensamento


no intuito de chegar ao primeiro princípio
verdadeiro, claro e distinto, Descartes se utiliza da
dúvida metódica, que é o processo de duvidar de tudo,
das coisas mais simples que me chegaram pelos sentidos
até as evidências matemáticas.
E para duvidar da matemática Descartes usa o
artifício do gênio maligno, que segundo ele é um deus
enganador que nos faz acreditar que estamos certo
quando dizemos que dois mais dois são quatro, quando
na verdade estamos errados e o resultado talvez seja
outro.

Cogito, ergo sum

Dessa forma, ao duvidar de tudo, não posso ter


Sistematizar logicamente o saber humano dessa certeza de nada. Mas desse processo, pode-se tirar uma
maneira, era prover um meio, um caminho, um método certeza, que nem mesmo a dúvida metódica pode me
seguro, para se construir um conhecimento verdadeiro fazer duvidar. É a certeza de que se eu duvido. E se eu
e universal. Então, em 1637 publica a obra que inaugura duvido, eu penso, e se penso, eu existo.
a filosofia moderna, o Discurso do método. E para Descartes encontrou o primeiro princípio
alcançar o maior público possível, ele publica o livro em fundador de sua filosofia: “penso, logo existo”. O
francês numa época que era costume publicar obras na problema agora é partir desse princípio para saber se as
língua pura que era o latim. coisas existem e como podemos conhecê-las.
E esse não é um problema simples. Ele toma
1.3 O caminho (método) certo consciência que duvida, que pensa, que existe, mas esse
existir é como pensamento puro, como uma coisa
O que há de radical nessa obra é que pensante (res cogitam), uma substância pensante, e não
diferentemente de todos os sistemas teóricos anteriores como o indivíduo Descartes, com um corpo, com essa
que já partiam para conhecer o mundo físico, aqui
161
2
cabeleira que parece uma peruca e com esse bigodinho 1.5 O mundo é uma máquina
ridículo.
Como ele vai provar logicamente, como ele vai A ideia de extensão e sua importância
deduzir a existência do mundo, incluindo seu próprio
corpo, a partir dessa única certeza que tem de que Descartes chega à existência do mundo
existe, mas somente como substância pensante? Ele corpóreo aprofundando as ideias adventícias, isto é, as
sabe que não pode ser a causa das coisas, então como ideias que vão de uma realidade externa para a
elas existem? consciência, que não as constrói, é apenas depositária
delas.
1.4 A existência de Deus e do mundo Antes de mais nada, a exitência do mundo
corpóreo é possível por causa do fato de que ele é
A única ideia que ele tem que não depende dele objeto das demonstrações geométricas, que se baseiam
é a de que existe um ser perfeito, que é Deus. Ele chega na ideia de extensão. Além disso, existe em nós uma
a essa conclusão porque ele sozinho, como ser faculdade distinta do intelecto e não redutivel a ele, isto
imperfeito, não poderia ter a ideia de perfeição, pois o é, a capacidade de imaginar e sentir. Com efeito, o
perfeito não pode vir do imperfeito, mas o contrário. E intelecto é "uma coisa pensante ou uma substância, cuja
ainda, sendo ele imperfeito, não poderia conceber essa essência ou natureza toda é apenas a de pensar",
ideia, portanto, ele já foi criado com ela, ou seja, ela é essencialmente ativa.
uma ideia inata. Já a faculdade de imaginar é essencialmente
A existência de Deus é a segunda certeza representativa de entidades materiais ou corpóreas,
no fundamento do conhecimento verdadeiro razão pela qual "estou inclinado a considerar que é
empreendido por Descartes. Daí que se existe esse ser intimamente ligada ou dependente do corpo". Desse
perfeito, ele não pode ser enganador, então, o mundo modo, o intelecto pode considerar o mundo corporeo
realmente existe. As ideias que tenho do mundo sempre valendo-se da imaginação e das faculdades sensorias,
estiveram em minha mente, pois foram colocadas por que se revelam passivas ou receptivas de estímulos e
Deus. Mas se esse mundo exterior chega ao sensações.
pensamento por meio de ideias, e eu como ser Ora, se esse poder de ligação com o mundo
imperfeito que sou, posso me enganar quanto a elas, material, operado pela faculdade de imaginação e pelas
cabe ao próprio pensamento descobrir quais dessas faculdades sensorias, fosse enganoso, dever-se-ia
ideias são claras e distintas, ou seja, verdadeiras. concluir então que Deus, que me criou assim, não é
Outra evidência é a de que como essas ideias se veraz.
referem ao mundo exterior a mim, esse mundo, assim, Mas isso é falso, como ja dissemos. Desse
como o próprio corpo existem como uma extensão, modo, se as faculdades imaginativas e sensíveis atestam
uma res extensa. a existência do mundo corpóreo, não há razão para
Certo, o mundo existe, mas dele só podemos colocá-lo em discussiio.
conhecer o que a matemática pode nos dizer, ou seja, Isso, porém, não deve me induzir a "admitir
sua extensão, as propriedades quantitativas (o que pode temerariamente todas as coisas que os sentidos parecem
ser medido), nada de propriedades qualitativas como me ensinar". Como também não deve me induzir a
cheiro, sabor, quente frio, etc. Apenas as propriedades "revogar pela dúvida todas elas em geral".
quantitativas são as ideias claras e distintas (verdadeiras) Mas como operar tal seleção? Isso pode ser feito
que podemos ter do mundo. aplicando o método das ideias claras e distintas, isto é,
No pensamento cartesiano, o homem é só admitindo como reais aquelas propriedades que
substância pensante e extensa. A primeira como algo consigo conceber de modo distinto.
abstrato que não se submete às leis físicas, a segunda Pois bem, dentre todas as coisas que me chegam
como algo material que está totalmente subordinada às do mundo externo através das faculdades sensíveis, só
leis dos corpos. Assim a ciência estudará a parte extensa consigo conceber como clara e distinta a extensão, que,
do homem, enquanto que a filosofia se encarregará de consequentemente, podemos considerar como
decifrar os mistérios do pensamento/racionalidade, constitutiva ou essencial. “Com efeito, toda outra coisa
principalmente de sua capacidade de conhecer. que se pode atribuir ao corpo pressupõe a extensão,
Essa é a maior contribuição de Descartes ao sendo apenas algum modo da própria coisa extensa,
debate filosófico, essa mudança de rumo que ele como também todas as coisas que encontramos na
imprime na filosofia. A partir dele a grande tarefa dos mente são somente modos diversos de pensar”.
filósofos será estabelecer “como” conhecemos, e quais
os limites desse conhecimento. Apenas a extensão é propriedade essencial

Assim, aplicando as regras da clareza e da


distinçãoo, Descartes chega à conclusão de que só se
162
3
pode atribuir como essencial ao mundo material a mundo é como um ovo pleno. O vicuo dos atomistas é
propriedade da extensão, porque só ela é concebível de inconcebível com a continuidade da matéria extensa.
modo claro e completamente distinto das outras. O Como explicar então a multiplicidade dos
mundo espiritual é res cogitans, o mundo material é res fenômenos e seu caráter dinâmico? Através do
extensa. movimento ou daquela "quantidade de movimento"
Descartes considera "secundárias" todas as que Deus injetou no mundo quando o criou e que
outras propriedades, como a cor, o sabor, o peso ou o permanece constante, porque não cresce nem diminui.
som, porque não é possível ter delas uma ideia clara e
distinta. Atribuí-las ao mundo material como Os princípios fundamentais que regem o universo
componentes constitutivas significaria abandonar as
regras do método. Quais as leis fundamentais?
A tendência a considerá-las objetivas é muito Antes de mais nada, o princípio de conservação,
mais fruto de experiências infantis, não avaliadas segundo o qual a quantidade de movimento permanece
criticamente, porque não nos demos conta de que se constante, contra qualquer possivel degradação de
trata mais de uma série de respostas do sistema nervoso energia ou entropia. O segundo é o principio de inércia.
aos estimulos do mundo fisico. Tendo excluido todas as qualidades da matéria,
Esse é um ponto de imenso alcance só pode haver alguma mudança de direção mediante a
revolucionário, já enfocado por Galileu e que Descartes impulsão de outros corpos.
retoma porque sabe que dele depende a possibilidade O corpo não se detém nem diminui seu próprio
de encaminhar um discurso cientifico rigoroso e novo. movimento, a menos que o ceda a outro. Em si, uma
A ajuda dos sentidos pode significar fonte de estímulos, vez iniciado, o movimento tende a prosseguir na mesma
mas não é a sede da ciência. Esta pertence ao mundo direção.
das ideias claras e distintas. Portanto, o princípio de conservação e,
Chegando a esse ponto, reduzida a matéria à consequentemente, o principio de inércia são princípios
extensão, Descartes encontra-se diante de urna basilares que regem o universo.
realidade global dividida em duas vertentes claramente A eles deve-se acrescentar outro principio,
distintas e irredutíveis uma à outra: a res cogitans no que segundo o qual toda coisa tende a mover-se em linha
se refere ao mundo espiritual e a res extensa no que reta. O movimento originário é o movimento retilíneo,
concerne ao mundo material. Não exisiem realidades do qual os outros derivam. Essa extrema simplificação
intermediárias. da natureza está em função de uma razão que, através
A força dessa colocação é devastadora, de modelos teóricos, quer conhecer e dominar o
sobretudo em relação às concepções renascentistas de mundo.
matriz animista, segundo as quais tudo era permeado de Trata-se de uma tentativa relevante de unificar
espirito e vida, e com as quais eram explicadas as a realidade, à primeira vista multipla e variável, através
conexões entre os fenômenos e sua natureza mais de uma espécie de modelo mecânico facilmente
recôndita. Não há graus intermediários entre a res dominável pelo homem.
cogitans e a res extensa. A exemplo do mundo físico em Mais do que na variabilidade dos fenômenos,
geral, tanto o corpo humano como o reino animal Descartes estava interessado em sua unificação,
devem encontrar explicação suficiente no mundo da mediante modelos mecânicos de inspiração geométrica.
mecânica, fora e contra qualquer doutrina magico-
ocultista. Tudo e todos são máquinas

A matéria e o movimento como princípios Trata-se de um processo de unificação ao qual


constitutivos do mundo não se subtraem sequer aquelas realidades
tradicionalmente reservadas a outras ciências, como a
A doutrina que atribui um carater puramente vida e os organismos animais.
subjetivo ao reino das qualidades é o primeiro resultado Tanto o corpo como os organismos animais são
dessa nova filosofia. E sua importância reside na máquinas e, portanto, funcionam com base em
capacidade de eliminar todos os obstáculos que haviam princípios mecânicos que regulam seus movimentos e
impedido a afirmação da nova ciência. suas relações. Em contraste com a teoria aristotélica das
Mas quais são então os elementos essenciais almas, exclui-se todo princípio vital (vegetativo e
para se explicar o mundo fisico? O universo cartesiano sensório) do mundo vegetal e animal. Também nesse
é constituido por poucos elementos e principios: caso o que importa é a mudança do quadro sistemático,
matéria (entendida no sentido geométrico de extensão) porque daí em diante também o corpo e qualquer outro
e movimento. organismo serão objeto de análise científica no quadro
A matéria como pura extensão, privada de dos princípios do mecanicismo.
qualquer profundidade, leva à rejeição do vácuo. O
163
4
Os animais e o corpo humano nada mais são do necessário que ela seja conjugada e unida mais
que máquinas, "autômatos", como os define Descartes, estreitamente com ele, para, ademais, experimentar
ou "miquinas semoventes" mais ou menos sentimentos e apetites semelhantes aos nossos,
complicadas, semelhantes à "relógios, compostos compondo assim um verdadeiro homem.”
simplesmente de rodas e molas, que podem contar as Mas, por qual razão e de que modo a alma move
horas e medir o tempo”. o corpo e age sobre ele?
Foi para enfrentar essas dificuldades que
Descartes escreveu o Tratado do homem, no qual tenta
urna explicação dos processos físicos e orgânicos, em
uma espécie de ousada antecipação da fisiologia
moderna.
Ele imagina que Deus tenha formado uma
estátua de terra semelhante a nosso corpo, com os
mesmos orgãos e as mesmas funções. É uma espécie de
modelo ou de hipótese, com que tenta a explicação de
E as numerosíssimas operações dos animais? nossa realidade biológica, com especial atenção para a
Aquilo que chamamos de “vida” é redutivel a uma circulação do sangue, para a respiração e para o
espécie de entidade material, isto é, a elementos movimento dos espíritos animais.
sutilíssimos e puríssimos, que, levados do coração ao Sem abandonar a hipótese, ele explica o calor
cérebro por meio do sangue, se difundem por todo o do sangue por urna espécie de fogo sem luz que,
corpo e presidem às principais funções do organismo. penetrando nas cavidades do coração, contribui para
Daí a exaltação da teoria da circulação do conservá-lo inflado e elástico. Do coração, o sangue
sangue proposta por Harvey, seu contemporâneo, que passa para os pulmões, onde a respiração, introduzindo
publicou seu famoso ensaio sobre o Movimento do coração o ar, o refresca. Os vapores do sangue da cavidade
em 1627. Descartes, portanto, nega aos organismos direita do coração alcançam os pulmões através da veia
qualquer principio vital autônomo, tanto vegetativo arterial, e caem lentamente na cavidade esquerda,
como sensório, convencido de que, se eles possuíssem provocando o movimento do coração, do qual
alma, a teriam revelado pela palavra, que "é o único sinal dependem todos os outros movimentos do organismo.
e a única prova segura do pensamento oculto e Afluindo ao cérebro, o sangue não apenas nutre a
encerrado no corpo". substância cerebral, mas também produz "certo vento,
muito sutil, ou antes uma chama muito viva e muito
O contato das substâncias no homem pura, ao que se dá o nome de 'espiritos animais". As
artérias que veiculam o sangue no cerebro ramificam-se
Ao contrario de todos os outros seres, no em inumeros tecidos, que se reunem depois em torno
homem encontram-se juntas duas substsncias de pequena glindula, chamada pineal, situada no centro
claramente distintas entre si: a res cogitans e a res extensa. do cérebro, que constitui a sede da alma.
Ele é urna espécie de ponto de encontro entre Com tal objetivo, escreve Descartes, "é preciso
dois mundos ou, em termos tradicionais, entre alma e saber que, por mais que a alma esteja conjugada com
corpo. A heterogeneidade da res cogitans em relação à res todo o corpo, entretanto há no corpo algumas partes
extensa significa antes de mais nada que a alma não deve em que ela exerce suas funções de modo mais especifico
ser concebida em relação com a vida, como se houvesse que em todas as outras. [...] A parte do corpo em que a
varios tipos de vida, da vegetativa à sensitiva e daí à alma exerce imediatamente suas funções não é em
racional. absoluto o coração e nem mesmo todo o cérebro, mas
A alma é pensamento e não vida. E sua somente a parte interna dele, que é certa glândula muito
separação do corpo não provoca a morte, que é pequena, situada em meio a sua substância e suspensa
determinada por causas fisiológicas. A alma é uma sobre o conduto pelo qual os espíritos das cavidades
realidade inextensa, ao passo que o corpo é extenso. anteriores se comunicam com os espíritos das cavidades
Trata-se de duas realidades que nada têm em comum. posteriores, de modo que os seus mais leves
E, no entanto, a experiência nos atesta uma movimentos podem mudar muito o curso dos espíritos,
interferência constante entre essas duas vertentes, como ao passo que, inversamente, as mínimas mudanças no
o comprova o fato de que nossos atos voluntários curso dos espíritos podem levar a grandes mudanças
movem o corpo e as sensações, provenientes do mundo nos movimentos dessa glândula".
externo, se refletem sobre a alma, modificando-a. O tema do dualismo cartesiano e do possível
Escreve Descartes: “Não basta que ela [a alma] contato entre a res cogitans e a res extensa foi aprofundado
seja inserida no corpo como um piloto em seu navio, ainda mais no tratado As paixões da alma, mas com
senão, talvez, para mover seus membros, mas é preocupaqdes e contornos claramente éticos.
164
5
Nele Descartes oferece um quadro bastante deixando de seguir com menos constância as opiniões
complexo e subtil de análise das ações, movidas pela mais duvidosas, quando alguma vez a elas me
vontade, e das alterações, que são percepções, determinasse, como se elas fossem as mais seguras”.
sentimentos ou emoções provocadas pelo corpo e Trata-se de norma muito pragmática, que
captadas pela alma. conclama a romper as protelações e superar a incerteza
O objetivo moral desse estudo é o de e a indecisão, porque a vida não pode esperar, sendo
demonstrar que a alma pode vencer as emoções ou, premente, mas sem esquecer que permanece a
pelo menos, frear as solicitações sensíveis que a obrigação de examinar a veracidade e a bondade dessas
distraem da atividade intelectual, projetando-a para as opiniões, já que a veracidade e a bondade permanecem
amarras das paixões. Para tanto, dois sentimentos são como os ideais que regulam a vida humana.
importantes, a tristeza e a alegria: a primeira está em Descartes é inimigo da falta de decisão. Para
condições de mostrar as coisas das quais devemos superar isso, ele propõe o remédio "de habituar-se a
escapar; a segunda, as coisas que devemos cultivar. formular juízos certos e determinados sobre as coisas
O guia do homem, porém, não são as emoções que se apresentam, convencendo-se de que se cumpriu
ou os sentimentos em geral, mas sim a razão, a única o próprio dever quando se fez aquilo que se julgava o
que pode avaliar e, portanto, induzir a acolher ou melhor, ainda que seja julgado muito mal". A vontade
rejeitar certas emoções. se retifica refinando o intelecto.
A sabedoria consiste precisamente na adoção
do pensamento claro e distinto como norma, tanto do Terceira
pensar como do viver.
Nesse contexto, ele propõe a “terceira
1.6 As regras da moral provisória máxima”, que é a de "esforçar-me sempre para vencer
muito mais a mim mesmo do que ao destino e para
Primeira mudar muito mais meus desejos do que a ordem do
mundo. E, em geral, acostumar-me a crer que não há
Foi exatamente para favorecer o domínio da nada que esteja inteiramente em nosso poder, exceto
razão sobre a tirania das paixões que, desde o Discurso nossos pensamentos".
sobre o método, Descartes enunciou e propôs como O tema de Descartes, portanto, é a reforma de
“moral provisória” algumas normas que depois, tanto si mesmo, reforma que é possível fazer, refinando a
no intercâmbio epistolar como no Tratado sobre as razao mediante o habituar-se às regras da clareza e da
paixoes, revelaram-se para ele válidas e definitivas. distinção.
Trata-se de normas simples, que é oportuno
recordar sempre: “A primeira [regra] era a de obedecer Quarta
às leis e aos costumes do meu país, observando
constantemente a religião em que Deus me deu a graça Nós retificamos a vontade reformando a vida
de ser instruído desde a infância, e norteando-me em do pensamento. E é com esse objetivo que ele destaca
todas as outras coisas segundo as opiniões mais na quarta máxima que sua função mais importante foi a
moderadas e mais distantes de todo excesso, que de "dedicar toda a minha vida a cultivar minha razão e
fossem comumente acolhidas e praticadas pelas mais progredir o mais possivel no conhecimento do
sensatas dentre as pessoas com quem me coubesse verdadeiro, seguindo o método que me havia prescrito".
viver.” O fato de ser esse o sentido das primeiras três
Distinguindo entre a contemplação e a busca da maximas, bastante conformistas, é indicado com
verdade, por um lado, e as exigências cotidianas da vida, exatidão pelo próprio Descartes, que acrescenta: "As
por outro, Descartes, para a verdade, exige a evidência três maximas anteriores fundamentavam-se
e a distinção, que, se alcançadas, nos dão o juízo; já para precisamente no meu propósito de continuar a me
as segundas considera suficiente o bom senso, expresso instruir."
pelos costumes do povo junto ao qual se vive. No
primeiro caso, é necessária a evidência da verdade; no A razão e o verdadeiro como fundamento da moral
segundo, é suficiente a probabilidade.
O respeito às leis do país é ditado pela O conjunto torna evidente a orientação da ética
necessidade de tranquilidade, sem a qual não é possível cartesiana, isto é, a lenta e trabalhosa submissiio da vontade à
a busca da verdade. raziio, como força-guia de todo o homem. Identificando
a virtude com a razão nessa perspectiva, Descartes se
Segunda propõe a "seguir tudo aquilo que a razão me aconselhar,
sem que as paixões e os apetites me afastem disso".
“A segunda máxima era a de perseverar o mais Com tal objetivo, o estudo das paixões e do seu
firme e resolutamente possível em minhas ações, não entrelaçamento na alma visa a tornar mais fácil a
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6
consecução do primado da razão sobre a vontade e filosofia do século XVI. Embora tenha se servido do
sobre as paixões. recurso dos céticos a dúvida, Descartes utilizou este
A liberdade da vontade só se realiza pela recurso para atingir a ideia clara e distinta, algo evidente
submissão lógica da ordem que o intelecto é chamado
e, portanto, irrefutável. Com base neste argumento,
a descobrir, dentro e fora de si.
Em Descartes predomina o amor do I- a evidência não diz respeito à clareza e à distinção das
verdadeiro, cuja lógica, uma vez alcançada, se impõe coisas;
com a força da razão. Apenas sob o peso da verdade é II- a análise é o procedimento que deve ser realizado
que o homem pode se considerar livre, no sentido de para dividir as dificuldades até a sua menor parte;
que obedece a si mesmo e não a forças exteriores. III- a enumeração é a primeira regra do método para a
Se o “eu” define-se como res cogitans, seguir a investigação da verdade;
verdade significa seguir no fundo a si mesmo, na
IV- a síntese proporciona a ordem para os raciocínios,
máxima unidade interior e no pleno respeito à realidade
objetiva. O primado da razão deve impor-se tanto no desde o mais simples até o mais complexo.
campo do pensamento como no da ação. Estão corretas as afirmações:
A virtude, à qual, em última análise, a “moral A) I, II e III
provisória” conduz, identifica-se com a vontade do B) I, III e IV
bem e está com a vontade de pensar o verdadeiro que, C) II e IV
enquanto tal, também é bem. D) II e III

QUESTÕES 4. “Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu


queria assim pensar que tudo era falso, cumpria
1. Descartes é considerado o “pai da filosofia moderna” necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma
por vários motivos, entre os quais é CORRETO citar: coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo
a) Ter considerado a questão do conhecimento como o existo, era tão firme e tão certa que todas as mais
primeiro problema filosófico a ser resolvido, fazendo a extravagantes suposições dos céticos não seriam
filosofia iniciar-se não por questões ontológicas mas
capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem
epistemológicas.
b) Por ter reclamado a matemática como fundamento escrúpulo, como o primeiro princípio da Filosofia que
de todas as ciências. procurava.”
c) Por ser a principal referência teórica das grandes DESCARTES. R. Discurso do método. Coleção Os Pensadores.
navegações. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 46.
d) Por ter separado a química da alquimia. Considerando a citação acima, é correto afirmar que
e) Por ter lançado os fundamentos do contratualismo. A) na tentativa de pôr tudo em dúvida, Descartes não
consegue duvidar da existência do cogito (eu penso).
2. Sobre a filosofia de Descartes, pode-se afirmar, com B) pautando-se pelo exemplo dos céticos, Descartes
certeza, que as suas mais importantes consequências não pretende encontrar nenhum conhecimento, pois
foram quer apenas pensar que tudo é falso.
I- a afirmação do caráter absoluto e universal da razão C) o pensamento de Descartes se restringe à
que, através de suas próprias forças, pode descobrir constatação de que toda informação sensível e corpórea
todas as verdades possíveis. é falsa.
II- a adoção do Método Matemático, que permite D) na busca do primeiro princípio da Filosofia,
estabelecer cadeias de razões. Descartes põe o próprio cogito (eu penso) em dúvida.
III- a superação do dualismo psico-físico, isto é, a
dicotomia entre corpo e consciência. 5. (UFU 2009) “Mas há um enganador, não sei quem,
Assinale a alternativa correta. sumamente poderoso, sumamente astucioso que, por
A) II e III indústria, sempre me engana. Não há dúvida, portanto,
B) III de que eu, eu sou, também, se me engana: que me
engane o quanto possa, nunca poderá fazer, porém, que
C) I e III
eu nada seja, enquanto eu pensar que sou algo”.
D) I e II
DESCARTES. Meditações sobre Filosofia Primeira. Campinas: Editora da UNICAMP,
2004. p. 45.
3. Descartes (1596-1650) é importante para a Filosofia Para atingir o processo extremo da dúvida, Descartes
Moderna porque foi quem superou o ceticismo da lança a hipótese de um gênio maligno, sumamente
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7
poderoso e que tudo faz para me enganar. Essa III - As teorias de Descartes seguiram o modelo
radicalização do processo dubitativo ficou conhecida aristotélico de investigação dos fenômenos naturais.
como dúvida hiperbólica. Assinale a alternativa correta.
Assinale a alternativa que apresenta corretamente a A) I e III são verdadeiras.
relação estabelecida por Descartes entre a dúvida B) II e III são verdadeiras.
hiperbólica (exagerada) e o cogito (eu penso). C) I e II são verdadeiras.
A) Descartes sustenta que o ato de pensar tem tamanha D) I e III são falsas.
evidência, que eu jamais posso ser enganado acerca do
fato de que existo enquanto penso. 8. (UNICENTRO 2011) Marque V nas afirmativas
B) A dúvida hiperbólica é insuperável, uma vez que verdadeiras e F, nas falsas.
todos os conteúdos da mente podem ser imagens falsas Para entender a filosofia de René Descartes,
produzidas pelo gênio maligno. considerado o fundador da filosofia moderna, é
C) Com o exemplo dos juízos matemáticos, que são necessário situar alguns pontos básicos, a partir dos
sempre indubitáveis, Descartes consegue eliminar a quais se desenvolve a reflexão.
hipótese do gênio maligno. O pensamento de Descartes toma como base a
D) Somente a partir da descoberta da ideia de Deus é ( ) coisa exterior à alma, que não é um símbolo, e é
que Descartes consegue eliminar a dúvida hiperbólica e entendida, primeiro, pelo conhecimento.
afirmar a existência do pensante. ( ) busca de fundamentos sólidos para a ciência, a
transição da consciência subjetiva para o conhecimento.
6. (UFU 2010) Em O Discurso sobre o método, Descartes ( ) defesa de uma ciência fundamentada em um
afirma: procedimento que avalia e descarta toda dúvida.
Não se deve acatar nunca como verdadeiro aquilo que ( ) relação existencial do homem com o mundo,
não se reconhece ser tal pela evidência, ou seja, evitar consigo mesmo e com Deus.
acuradamente a precipitação e a prevenção, assim como A alternativa que indica a sequência correta, de cima
nunca se deve abranger entre nossos juízos aquilo que para baixo, é a
não se apresente tão clara e distintamente à nossa A) V V F F
inteligência a ponto de excluir qualquer possibilidade de B) F V V F
dúvida. C) F F V F
REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: Do D) V F F V
humanismo a Descartes. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo:
Paulus, 2004. p. 289.
E) V V V V
Após a leitura do texto acima, assinale a alternativa
correta. 9. Há já algum tempo me apercebi de que, desde meus
A) A evidência, apesar de apreciada por Descartes, primeiros anos, recebera muitas opiniões falsas como
permanece uma noção indefinível. verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em
B) A evidência é a primeira regra do método cartesiano, princípios tão mal assegurados, não podia ser senão mui
mas não é o princípio metódico fundamental.
duvidoso e incerto; de modo que me era necessário
C) Ideias claras e distintas são o mesmo que ideias
evidentes. tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me
D) A evidência não é um princípio do método de todas as opiniões a que até então dera crédito, e
cartesiano. começar tudo novamente desde os fundamentos se
quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas
7. (UFU 2011) René Descartes (1596 – 1650) é ciências. Descartes
considerado por muitos “o pai da filosofia moderna”,
A partir desse texto que abre as Meditações Metafísicas
pois em obras como O discurso sobre o método e Meditações
metafísicas colocou em xeque conhecimentos de Descartes, é correto afirmar que
considerados indubitáveis. Em especial, suas reflexões A) a filosofia cartesiana toma como ponto de partida a
o levam a questionar o valor epistemológico dos dúvida metódica e só admite como verdadeiro o
conhecimentos do senso comum, dos argumentos de conhecimento que a ela for capaz de resistir.
autoridade e do testemunho dos sentidos. B) o cartesianismo é uma modalidade moderna da
I - Descartes foi um dos filósofos da Era Moderna que filosofia cética, já que nega a evidência de todo o
valorizou o papel do método no avanço do
conhecimento que o precedeu.
conhecimento.
II - Descartes colocou em dúvida o valor das C) a filosofia de Descartes não é capaz de demonstrar a
informações que se obtêm por meio da experiência verdade das teses que propõe, já que desde o início se
sensível. pauta pela dúvida.

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8
D) o cartesianismo tem aspirações modestas e recusa a 16) O princípio primeiro da filosofia de Descartes está
possibilidade de fundar um conhecimento certo e no pensamento individual que fundamenta a existência
indubitável. humana.
E) a filosofia de Descartes pretende passar todo
12. (UEM 2016) “Há já algum tempo eu me apercebi
conhecimento pelo crivo da dúvida apenas para de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas
assegurar a veracidade da tradição metafísica que a falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que
precedeu. depois eu fundamentei em princípios tão mal
assegurados não podia ser senão muito duvidoso e
10. (UEM 2013) “Há já algum tempo dei-me conta de incerto; de modo que me era necessário tentar
que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me de
opiniões por verdadeiras e de que aquilo que depois eu todas as opiniões a que até então dera crédito, e
fundei sobre princípios tão mal assegurados devia ser começar tudo novamente desde os fundamentos, se
apenas muito duvidoso e incerto; de modo que era quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas
preciso tentar seriamente, uma vez em minha vida, ciências. [...] Agora, pois, que meu espírito está livre de
desfazer-me de todas as opiniões que recebera até então todos os cuidados, e que consegui um repouso
em minha crença e começar tudo novamente desde os assegurado numa pacífica solidão, aplicar-me-ei
fundamentos, se eu quisesse estabelecer alguma coisa seriamente e com liberdade em destruir em geral todas
de firme e de constante nas ciências.” as minhas antigas opiniões”.
(DESCARTES, R. Meditações sobre a filosofia primeira. In: DESCARTES, R. Meditações metafísicas in MARCONDES, D.
MARÇAL, J. Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED, 2009, p. Textos básicos de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 74.
153). Com base no texto citado, assinale o que for correto.
A partir do texto citado, assinale o que for correto. 01) Para Descartes, muitas opiniões que recebeu são
01) A verdadeira ciência ou conhecimento verdadeiro falsas visto que não foram elaboradas pelo método que
deve refutar toda e qualquer crença ou religião. está propondo, mas a partir de pressupostos duvidosos
02) O início do processo filosófico de descoberta da e incertos.
verdade começa com a instauração da dúvida. 02) Para Descartes, o primeiro momento do processo
04) O espírito de investigação filosófica busca alicerces de obtenção da verdade é o questionamento das
firmes, que não foram dados pelo modo como se opiniões que se tem.
adquiria o conhecimento até então. 04) Para Descartes, é necessário libertar o espírito das
08) A dúvida sobre o conhecimento que se tem decorre ideias falsas, para que elas não atrapalhem a obtenção
das opiniões e dos saberes mal apreendidos na escola. da verdade.
16) Os alicerces firmes do conhecimento devem estar 08) Descartes está fazendo uma crítica à sua formação
além das opiniões das autoridades acadêmicas. escolar, que era muito ruim na França do século XVII,
pois estudou em colégios de religiosos.
11. (UEM 2015) “Porém, logo em seguida, percebi que, 16) Para Descartes, nunca haverá tranquilidade no
ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era espírito, pois sempre se estará questionando o
falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse conhecimento que se tem.
alguma coisa. E, ao notar que esta verdade: eu penso,
logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais
extravagantes suposições dos céticos não seriam
capazes de lhe causar abalo, julguei que podia
considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio
da filosofia que eu procurava.”
(DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Nova
Cultural, 2004, p. 62).
A partir do texto citado, assinale o que for correto.
01) A intenção primeira da filosofia de Descartes era a
refutação dos céticos.
02) Descartes buscava um fundamento seguro
racionalmente para elaborar sua filosofia.
04) “Eu penso, logo existo” era uma afirmação
extravagante dos céticos.
08) Descartes sempre pensou que tudo era falso,
inclusive a ideia “eu penso, logo existo”.

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2. BARUCH SPINOSA 2.1 Deus como eixo fundamental
A ordem geométrica
O primeiro trabalho
escrito por Spinoza (1632- A obra-prima spinoziana, a Ethica, como diz o
1677) foi o Breve tratado sobre próprio subtítulo "ordine geometrico demonstrata",
Deus, sobre o homem e sua tem um esquema de exposição calcado no dos
felicidade, elaborado talvez Elementos de Euclides, ou seja, segue um
em torno de 1660. procedimento que se desenvolve segundo definições,
Sua obra-prima é a axiomas, proposições, demonstrações e explicações.
Éthica, iniciada em torno de Trata-se do método indutivo-geométrico, em parte já
1661 (que constituiu o utilizado por Descartes e bastante apreciado por
trabalho de toda a vida do Hobbes, mas que Spinoza leva às últimas
filosofo) e publicada consequências.
postumamente em 1677, Por que nosso filosofo escolheu esse método,
juntamente com o Tratado sobre a emenda do intelecto, um precisamente ao tratar da realidade suprema de Deus e
Tratado politico e as Cartas. do homem, que são objetos para os quais os
A única obra publicada com o próprio nome procedimentos matematizantes pareceriam
por Spinoza foi uma exposição em forma geométrica demasiadamente restritos e inadequados?
dos Princípios de filosofia de Descartes, à qual foram É a pergunta que se colocam todos os
agregados Pensamentos metafísicos. intérpretes, dado que esse método, em sua translúcida
Já o Tratado teológico-político, que suscitou grande clareza formal, muitas vezes não revela, mas até oculta
celeuma e acesas polêmicas, foi publicado as motivações do pensamento spinoziano, a ponto de
anonimamente (em 1670) e com falsa indicação do local alguns terem acreditado resolver o problema pela raiz,
de impressão. tentando dissolver a ordem geométrica de sua rigidez
A cultura de Spinoza era notável e as fontes de formal e estendê-la em um discurso continuado. Uma
sua inspiração muito variadas: a filosofia tardio-antiga, solução absurda, porque a escolha de Spinoza não teve
a Escolástica (especialmente a judaica medieval de uma motivação única, mas razões múltiplas.
Maimônides e de Avicebron), a Escolástica dos séculos Procuremos identificar as principais. Esta claro,
XVI-XVII, o pensamento renascentista (Giordano entretanto, contra o que Spinoza pretendeu reagir ao
Bruno e Leio Hebreu) e, entre os modernos, sobretudo adotar o método geométrico. Ele queria rejeitar:
Descartes e Hobbes. a) o procedimento silogístico abstrato e
Mas essas fontes foram fundidas em urna extenuante, próprio de muitos escolásticos;
poderosa e nova síntese, que assinala uma das etapas b) os procedimentos inspirados nas regras
mais significativas do pensamento ocidental moderno. retóricas próprias do Renascimento;
Os antigos gregos consideravam a coerência entre a c) o método rabínico da exposição
doutrina e a vida de um filósofo como a mais excessivamente prolixa.
significativa prova de credibilidade de urna mensagem O estilo de Descartes e, em geral, o gosto pelo
espiritual. procedimento científico próprio do século 17
E os filosofos gregos deram os mais admiraveis influenciaram grandemente Spinoza em sentido
exemplos dessa coerência. Ora, Spinoza alcançou positivo.
plenamente o paradigma dos antigos: sua metafisica está Todavia, o método e o procedimento adotados
em perfeita consonância com sua vida (em muitos por Spinoza na Ethica não constituem um simples
aspectos, como teremos oportunidade de ver mais revestimento extrínseco (ou seja, formal), não sendo
adiante, ele pode ser considerado como estóico também explicáveis como simples concessão à um
moderno). modismo intelectual. Corn efeito, os nexos que
Como veremos, ele pregou como meta suprema do explicam a realidade, como a entende Spinoza (como
itinerario filosofico a visão das coisas sub specie aeternitatis, que logo veremos), são expressão de uma necessidade
é urna visão capaz de libertar o homem das paixões e racional absoluta. Posto Deus (ou a Substância), tudo
dar-lhe um estado superior de paz e tranquilidade. E, daí "procede" com o mesmo rigor com que, posta a
como nos dizem unanimemente os contemporâneos de natureza do triângulo tal como se expressa em sua
Spinoza, a paz, a tranquilidade e a serenidade foram a definição, todos os teoremas relativos ao triângulo daí
marca de toda a sua existência. "procedem" rigorosamente, não podendo deixar de
O sentido de sua filosofia está na compreensão proceder. Assim, se, suposto Deus, tudo é "dedutível"
pura e distanciada do entender, despojado de toda corn esse mesmo rigor absoluto, então, segundo
perturbação e de toda paixão. Spinoza, o método euclidiano mostra-se o mais
adequado.
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10
Além disso, esse método oferece a vantagem de Descartes, todas as coisas criadas so podem existir
possibilitar o distanciamento emocional do objeto à medida que são sustentadas pela potência de Deus.
tratado e, portanto, uma objetividade desapaixonada, Descartes, porém, procurou sair dessa aporia,
isenta de perturbações alógicas e arracionais. E isso introduzindo um segundo conceito de substância,
favorecia grandemente a realização daquele ideal que segundo a qual também as realidades criadas (tanto as
nosso filósofo se propusera: ver e fazer ver todas as pensantes como as corporeas) podem ser consideradas
coisas acima do riso, do pranto e das paixões, à luz do substâncias "enquanto são realidades que, para existir,
puro intelecto. necessitam somente do concurso de Deus ".
É evidente a ambiguidade da solução cartesiana,
O Deus de Espinosa - A centralidade do problema porque não se pode dizer coerentemente
da substância a) que substiincia é aquilo que, para existir, não
necessita de mais nada a não ser de si mesmo e
As definições com as quais a Ethica inicia, b) que também são substâncias as criaturas que,
contem quase que inteiramente os fundamentos de sua para existir, necessitam apenas do concurso de Deus.
filosofia, centrados na nova concepção da "substância", Com efeito, as duas definições formalmente se chocam.
que determina o sentido de todo o sistema.
A questão relacionada com a substância é, Unicidade da substancia
fundamentalmente, uma questão relacionada com o ser
(que é a questão metafísica por excelência). Portanto, retomando essa linha, Spinoza extrai
Aristóteles já escrevia que a eterna pergunta “o as consequências extremas: só existe uma única
que é o ser?” equivale à questão “o que é a substância?”, substância, que é precisamente Deus.
e que, portanto, a resposta para a questão da substância É evidente que o originário (o absoluto, como
é a resposta ao máximo dos problemas metafísicos. diriam os românticos), o fundamento primeiro e
A concepção de Spinosa sobre a substância é a supremo, precisamente por ser tal, é aquilo que não
mais radical que já se propôs em campo filosofico. Com remete a nada mais além de si, sendo, portanto,
efeito, dizia Aristoteles, tudo aquilo que existe é autofundamento, causa de si, "causa sui". E tal realidade
substância ou afecções da substância. Também Spinoza não pode ser concebida senão como necessariamente
repete: “Nada é dado na natureza além da substância e existente.
de suas mudanças”. Todavia, para a metafísica antiga, as E se a substância é "aquilo que é em si e é
substâncias eram múltiplas e hierarquicamente concebida por si mesma", ou seja, aquilo que não
ordenadas. Mesmo apresentando teorias sobre a necessita de nada mais além de si mesma para existir e
substância completamente diferentes das clássicas e ser concebida, então a substância coincide com a causa
escolásticas, o próprio Descartes pronunciou-se a favor sui (a substiincia é aquilo que não necessita de nada mais
da existência de uma multiplicidade de substâncias. além de si mesma, precisamente porque é causa ou
Spinoza prossegue nessa linha, mas dela tira as razão de si mesma).
consequencias extremas. A substância é "aquilo que Aquilo que para Descartes eram substâncias em
existe em si e existe concebido por si mesmo" e, uma sentido secundário e derivado, ou seja, res cogitans e res
vez que “todas as coisas ou existem em si ou existem extensa em geral, tornam-se para Spinoza dois dos infinitos
em outro”, então além de Deus não pode haver nem se "atributos" da substância, ao passo que os simples
conceber nenhuma substincia. pensamentos, as simples coisas extensas e todas as
Tudo aquilo que existe, com efeito, existe em manifestações empíricas tornam-se afecções da
Deus, e nada pode existir nem ser concebido sem Deus. substância, "modos", ou seja, coisas que estão na
substância e que só podem ser concebidas por meio da
As ambiguidades do conceito cartesiano de substância.
substância Devemos destacar ainda em que sentido ela
coincide com Deus: "Entendo por Deus um ser
Descartes entrara flagrantemente em absolutamente infinito, isto é, uma substância
contradição. Com efeito, de um lado, insistiu em constituida de uma infinidade de atributos, cada qual
considerar a res cogitans e a res extensa como substâncias deles expressando uma essência eterna e infinita".
(e, portanto, tanto as almas como os corpos), mas a Essa substância-Deus é livre, no sentido de que
definição geral de substância por ele apresentada não existe e age por necessidade de sua natureza; e é eterna,
podia concordar com essa admissão. porque sua essência envolve necessariamente sua
Com efeito, nos Principios de filosofia, havia existência.
definido a substância como aquilo que, para existir, não Tudo isso está contido nas oito definições
necessita de mais nada senão de si mesma. Entretanto, supremas da Ethica de Spinoza (a que acenamos antes).
assim entendida, só a realidade suprema pode ser E a visão da realidade em que se baseia é a de que Deus
substância, ou seja, Deus, porque, como diz o próprio é precisamente a única substância existente, e de que
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"tudo o que existe, existe em Deus, pois sem Deus nada esquemas geométricos - como observam certos
pode existir nem ser concebido" e de que "tudo aquilo intérpretes -, mais do que revelar, ocultam, ou seja,
que acontece, acontece unicamente pelas leis da exatamente aquele Deus bíblico que tinha nele
natureza infinita de Deus e decorre da necessidade de profundas raízes ancestrais.
sua essência". Mas isso nos levaria a um terreno de pura
É evidente que, com essa impostação, as investigação teorética. Contudo, esse é um ponto
demonstrações da existência de Deus não podem ser fundamental a considerar para se compreender
outra coisa senão variações da prova ontológica. Com Spinoza: a "necessidade" é apresentada como a solução
efeito, não é possível pensar Deus (ou a substância) de todos os problemas.
como causa sui, sem pensá-lo como necessariamente Efetivamente, depois dos estóicos, Spinoza foi
existente. Alias, nessa perspectiva, Deus é aquilo de cuja o pensador que mais acentuadamente apontou a
existência estamos mais certos do que da existência de compreensão da necessidade como o segredo que dá
qualquer outra coisa. sentido à vida. E Nietzsche, com sua doutrina do amor
fati, levara esse pensamento às extremas consequtncias.
Deus e a “necessidade”
Os atributos
O Deus de que fala Spinoza é o Deus bíblico
sobre o qual ele havia concentrado seu interesse desde Já acenamos acima para os “atributos” e os
a juventude, mas profundamente contraído nos “modos” da substância. Agora, devemos explicar do
esquemas da metafísica racionalista e de certas que se trata.
perspectivas cartesianas. Não é um Deus dotado de A substância (Deus), que é infinita, manifesta e
"personalidade", ou seja, de vontade e de intelecto. exprime sua própria essência em infinitas formas e
Conceber Deus como pessoa, diz Spinoza, significaria maneiras, que constituem os “atributos”.
reduzi-lo a esquemas antropomórficos. À medida que, todos e cada um, expressam a
Analogamente, o Deus spinoziano não "cria" infinitude da substincia divina, os "atributos" devem ser
por livre escolha algo que é diferente de si e que, concebidos “em si mesmos”, ou seja, cada um
precisamente como tal, poderia também não criar. Não separadamente, sem a ajuda do outro, mas não como
é "causa transitiva", mas sim "causa imanente", sendo, entidades estanques (são diferentes, mas não
portanto, inseparavel das coisas que dele procedem. separados), pois só a substância é entidade em si e para
Deus não somente não é Providência, no si.
sentido tradicional, mas é a necessidade absoluta, Portanto, é evidente que todos e cada um desses
totalmente impessoal. Dada a sua natureza (que atributos são eternos e imutáveis, tanto em sua essência
coincide com a liberdade no sentido spinoziano que como em sua existência, enquanto expressões da
explicamos, ou seja, no sentido de que sé é dependente realidade eterna da substância.
de si mesmo), Deus é necessidade absoluta de ser. E é Nós, homens, conhecemos apenas dois desses
necessidade absoluta no sentido de que, colocando-se atributos infinitos: o "pensamento" e a "extensão".
esse Deus-substância como causa sui, dele procedem Spinoza não apresentou uma explicação
necessaria e intemporalmente, ou seja, eternamente adequada dessa limitação. Mas a razão é evidente, e é de
(analogamente ao que acontece na processão carater histórico-cultural: são essas as duas substâncias
neoplatônica), os infinitos atributos e os infinitos criadas (res cogitans e res extensa) reconhecidas por
modos que constituem o mundo. As coisas derivam Descartes e que, pelas razões que explicamos, Spinoza
necessariamente da essência de Deus (como já reduz a atributos.
dissemos), assim como os teoremas procedem
necessariamente da essência das figuras geométricas. A O atributo é "aquilo que o intelecto
diferença entre Deus e as figuras geométricas está no percebe na substdncia como constitutivo
fato de que estas últimas não são causa sui e, portanto, a de sua essência" e que deve ser concebido
derivação geométrico-matemática permanece uma por si. A substância divina tem infinitos
"analogia" que ilustra algo que, em si mesmo, é mais atributos, e todo atributo é por si infinito,
complexo. mas a mente humana conhece apenas
Foi nessa necessidade de Deus que Spinoza encontrou dois: o pensamento e a extensao.
aquilo que procurava: a raiz de toda certeza, a razão de
tudo, a fonte de uma tranquilidade suprema e de uma Além disso, Spinoza proclamou teoricamente a
paz total. igual dignidade dos atributos. Mas, enquanto capaz de
Naturalmente, tratar-se-ia de ver se o Deus que pensar a si mesmo e o diferente de si, o atributo
lhe deu verdadeiramente aquela imensa paz é "pensamento" deveria ser distinto de todos os outros
precisamente aquele que se expressa nos esquemas atributos, precisamente pelo fato de que tal caráter
geométricos da Éthica, ou então se é um Deus que os
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constitui privilégio. Mas ele não se propôs esse Spinoza sustenta que aquilo que segue a
problema, que teria levantado numerosas dificuldades natureza de um atributo de Deus, que é infinito, só pode
internas e o teria obrigado a introduzir uma hierarquia ser um modo também infinito e que, portanto, aquilo
e, portanto, uma ordem vertical, ao passo que ele visava que é finito só pode ser determinado por "um atributo,
a uma ordem horizontal, ou seja, total igualdade dos enquanto é modificado por uma modificação que é
atributos, pelo motivo que logo veremos. finita e tem existência determinada". O infinito só gera
Ao invés de privilegiar o pensamento, Spinoza o infinito e o finito é gerado pelo finito.
estava preocupado em elevar a extensão e "divinizá-la". Mas uma coisa fica inexplicada: o modo como
Com efeito, se a extensão é atributo de Deus e expressa nasceu um finito, no âmbito da infinitude da substância
(como cada um dos outros atributos) a natureza divina, divina, que se explicita em atributos infinitos,
Deus é e pode ser considerado uma realidade extensa. modificados por modificações infinitas.
O que não significa em absoluto que Deus seja Com efeito, para Spinoza, toda determinação é
"corpo" (como dizia Hobbes, por exemplo), mas negação, e a substincia absoluta, que é ser absoluto, ou
apenas que é "espacialidade": com efeito, o corpo não é seja, o absolutamente positivo e afirmativo, é tal que
um atributo, mas um modo finito do atributo da não se deixa "determinar", ou seja, "negar", de modo
espacialidade. nenhum.
Isso implica a elevação do mundo e sua Essa é a maxima aporia do sistema spinoziano,
colocação em posição teórica nova, pois, longe de ser da qual deriva toda uma série de dificuldades, mas que
algo contraposto a Deus, é algo que se prende (corno é necessário enfocar bem, precisamente para
veremos melhor mais adiante) de modo estrutural a um compreender de maneira adequada o resto do sistema.
atributo divino.
Deus e o mundo
Os modos
Com base no que explicamos, o que Spinoza
Além da substância e dos atributos, há também os entende por Deus é a "substância" com seus atributos
"modos", como já assinalamos. Deles Spinoza (infinitos); já o mundo é dado pelos "modos", por todos
apresenta a seguinte definição: "Entendo por modo os modos, infinitos e finitos. Mas estes não existem sem
impressões da substância, ou seja, aquilo que existe em aqueles; portanto, tudo é necessariamente determinado
outra coisa, por meio da qual também é concebido". pela natureza de Deus e não existe nada contingente
Sem a substância e seus atributos, o "modo" não (como já vimos).
existiria e nós não poderiamos concebê-lo: com efeito, O mundo é a "consequência" necessária de
ele só existe e só é conhecido em função daquilo de que Deus. Spinoza também chama Deus de natura naturans,
é modo. o mundo de natura naturata. Natura naturans é a causa,
Mais propriamente, dever-se-ia dizer que os ao passo que natura naturata é o efeito daquela causa,
"modos" procedem dos "atributos", e que são que, porém, não está fora da causa, mas é tal que
determinações dos atributos. Mas Spinoza não passa mantém a causa dentro de si. Pode-se dizer que a causa
imediatamente dos "atributos" infinitos aos "modos" é imanente ao objeto e também, vice-versa, que o
finitos, mas admite "modos" também infinitos, que objeto é imanente à sua causa, com base no princípio
estão entre os atributos (por sua natureza infinitos) e os de que "tudo está em Deus".
modos finitos. Agora, estamos em condições de entender por
O "intelecto infinito" e a "vontade infinita", por que Spinoza não atribui a Deus o intelecto, a vontade e
exemplo, são "modos infinitos" do atributo infinito do o amor. Com efeito, Deus é a substância, ao passo que
pensamento, ao passo que o "movimento" e a intelecto, vontade e amor são "modos " do pensamento
"quietude" são "modos infinitos" do atributo infinito da absoluto (que é um "atributo"). Tanto entendidos como
extensão. Outro modo infinito é também o mundo "modos infinitos" quanto como "modos finitos", eles
como totalidade ou, como diz Spinoza, "a face de todo pertencem A natura naturata, isto é, ao mundo.
o universo, que permanece sempre a mesma, apesar de Portanto, não se pode dizer que Deus projete o
variar em infinitos modos". mundo com o intelecto, que o queira com um ato de
Chegando a esse ponto, poderíamos esperar de livre escolha ou que o crie por amor, porque essas coisas
Spinoza uma explicação sobre a origem dos "modos são "posteriores" a Deus, dele procedendo: não são o
finitos", ou seja, a explicação de como ocorre a originário, mas o consequente. Atribuir essas coisas a
passagem do infinito ao finito. Deus significa trocar o plano da natureza naturante pelo
Isso, porém, não ocorre; Spinoza introduz de da natureza naturada.
repente a série dos finitos, dos modos e das Deus (e, portanto, a Natura naturans) é causa
modificações particulares, dizendo simplesmente que imanente e não transcendente, e como nada mais existe
eles derivam uns dos outros. além de Deus, pois tudo está nele, então está fora de
dúvida que a concepção spinoziana pode ser chamada
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“panteísta” (= tudo é Deus ou manifestação necessária Deus é realidade pensante; analogamente, os corpos
de Deus nos modos explicados). derivam de Deus, enquanto Deus é realidade extensa.
O que significa que Deus gera os pensamentos só como
2.2 A doutrina do paralelismo – relação mente e pensamento e gera os modos relativos à extensão só
corpo como realidade extensa. Em suma, um atributo de Deus
(e tudo aquilo que se encontra na dimensão desse
Como vimos, nós conhecemos apenas dois dos atributo) não atua sobre outro atributo de Deus (sobre
atributos infinitos de Deus: a) a extensio; b) o aquilo que se encontra na dimensão deste outro
pensamento. atributo).
Assim, nosso mundo é um mundo constituído Spinoza tem agora a possibilidade de resolver o
pelos "modos" desses dois atributos: grande problema do dualismo cartesiano de modo
a) pela série dos "modos" relativos a extensão; brilhantíssimo. Visto que cada atributo, como sabemos,
b) pela série dos "modos" relativos ao expressa a essência divina de igual modo, então a série
pensamento. dos modos de cada atributo deverá necessaria e
a) Os corpos são "modos" determinados do perfeitamente corresponder à série dos modos de cada um
"atributo" divino da extensão (e, portanto, expressão dos outros atributos. Em particular, a ordem e a série
determinada da essência de Deus como realidade das ideias deverão corresponder necessaria e perfeitamente
extensa). à ordem dos modos e das coisas corpóreas, porque
b) Os pensamentos singulares, por seu turno, são tanto em um como em outro caso se expressa
"modos" determinados do "atributo" do pensamento inteiramente a essência de Deus vista sob diversos
divino (expressão determinada da essência de Deus aspectos.
como realidade pensante). Existe, portanto, perfeito paralelismo, que consiste
Recordemos que, para Spinoza, "pensar" e em perfeita coincidência, enquanto trata da mesma
"pensamento" têm significado muito amplo, não indicam realidade vista sob dois diferentes aspectos: "ordem e
uma simples atividade intelectual, e incluem o desejar e o conexão das ideias é o mesmo que ordem e conexão das
amar, bem como todos os varios movimentos da alma e coisas".
do espirito. Em função desse paralelismo, Spinoza
O intelecto e a mente constituem o "modo" interpreta o homem como união de alma e corpo. O
mais importante, ou seja, o "modo" que condiciona os homem não é uma substância e muito menos um
outros "modos" de pensar. atributo, mas é constituído "por certas modificações dos
Assim, também a ideia (que, para Spinoza, é atributos de Deus", ou seja, "por modos do pensar",
conceito ou atividade da mente) tem lugar privilegiado com a proeminência do modo que é a ideia, e "por
no contexto da atividade geral do pensamento. modos da extensão", ou seja, pelo corpo, que constitui
Mas, devido à estrutura da ontologia spinoziana, o objeto da mente. A alma ou mente humana é a ideia ou
longe de ser uma prerrogativa apenas de mente humana, conhecimento do corpo. A relação entre mente e corpo
a idéia tem (como o "atributo" de que é "modo") as é constituida por um paralelismo perfeito.
raízes na essência de Deus, que, aliás, deve ter não só a
ideia de si mesmo mas também a ideia de todas as coisas 2.3 O conhecimento
que dele procedem necessariamente: "Em Deus, dá-se
necessariamente a ideia tanto de sua essência quanto de Toda ideia é objetiva no sentido de que tem uma
todas as coisas que procedem necessariamente de sua correspondência na ordem das coisas (dos corpos). Não
essência. " existem, portanto, ideias falsas e ideias verdadeiras em
A antiga concepção do "mundo das ideias" absoluto, mas apenas ideias e conhecimentos mais ou
(que, criada por Platão, foi retomada e reapresentada de menos adequados. Ora, Spinoza individua três graus de
vários modos na Antiguidade, na Idade Média e no conhecimento:
Renascimento) adquire aqui significado inteiramente 1) a opinião e a imaginação, ligadas às
novo e insólito, destinado a permanecer único. Com percepções sensoriais e às imagens, sempre confusas e
efeito, as "ideias" e os "ideados", ou seja, as "ideias e as vagas, mas utilíssimas no plano prático;
"coisas correspondentes", não têm entre si relações de 2) o conhecimento racional, próprio da ciência,
paradigma-cópia ou de causa-efeito. Deus não cria as que encontra sua expressão típica na matemática, na
coisas segundo o paradigma de suas próprias ideias, porque geometria e na física;
não cria de modo algum o mundo no significado tradicional, dado 3) o conhecimento intuitivo, que consiste na
que este "procede" necessariarnente dele. Por outro visão das coisas em seu proceder de Deus e, mais
lado, nossas ideias não são produzidas em nós pelos exatamente, procede da ideia adequada dos atributos de
corpos. Deus para a ideia adequada da essencia das coisas.
A ordem das ideias corre paralela à ordem dos Os três gêneros de conhecimento são
corpos: todas as ideias derivam de Deus, enquanto conhecimentos das mesmas coisas, e o que os diferencia
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é apenas o nivel de clareza e distinção (mínimo no à inadequação da ideia. E, considerando-se o fato de que,
primeiro grau, notavel no segundo, máximo no para Spinoza, mente e corpo são a mesma coisa vista
terceiro). sob duas faces diversas, as duas definições de paixão
A consideração das coisas como "contingentes" acima examinadas concordam entre si. Por isso, é
é uma espécie de ilusão da imaginação, enquanto é explicável a definição conclusiva: "[...] o afeto, chamado
próprio da razão considerar as coisas como aflição do espirito, é uma ideia confusa através da qual
"necessárias" sob certa especie de eternidade; o terceiro a mente afirma uma força de existir do seu corpo, ou de
grau de conhecimento, por fim, capta a necessidade das parte dele, maior ou menor do que aquela que afirmava
coisas em Deus sob a mais perfeita especie de Tudo existe antes e, dada a qual, a própria mente é determinada a
eternidade. pensar mais isto do que aquilo".
Nesse contexto, não há lugar para uma vontade Como força da natureza (se permanecermos em
livre: a mente não é causa livre das próprias ações, mas seu plano), as paixões são irrefreáveis e uma gera a outra
é determinada a querer isto ou aquilo por uma causa que com lógica matemática.
por sua vez é determinada por outra, e assim ao infinito. Dessa análise, que poderia parecer impiedosa,
Experiência e razão mostram que os homens crêem que Spinoza extrai uma conclusão eticamente positiva. Se
são livres apenas porque são conscientes das próprias imaginarmos que são livres as ações dos outros homens
ações, e ignorantes das causas pelas quais são que consideramos nocivas, então somos levados a odiá-
determinadas. los; mas, se sabemos que elas não são livres, então não
os odiaremos ou os odiaremos muito menos (pois
2.4 A ética consideraremos as ações deles no mesmo nivel da pedra
Análise geométrica das paixões que cai ou de qualquer outro acontecimento natural
necessário).
As paixões, os vicios e as loucuras humanas são Além disso, Spinoza chega inclusive a ponto de
interpretadas por Spinoza segundo um procedimento dizer que "o ódio se acresce pelo ódio recíproco", mas,
geométrico, ou seja, do mesmo modo pelo qual dos ao contrário, pode "ser destruído pelo amor". É
pontos, das linhas e dos planos se formam os sólidos, e perfeitamente compreensivel que o ódio gere o ódio e
destes derivam necessariamente os teoremas relativos. o amor o extinga. Mas, se é verdadeira a inexorável
No seu modo de viver, o homem não é uma concatenação das causas, de que fala Spinoza, como
exceção na ordem da natureza, mas apenas a confirma. pode um homem responder ao ódio com o amor? Ele
As paixões não se devem à "fraquezas" e "fragilidades" só poderia admití-lo (e isso foi bem destacado pelos
do homem, a "inconstência" ou "impotência" de seu estudiosos) se admitisse um componente de liberdade
espirito. Ao contrário, devem-se à potencia da natureza que, embora seja firmemente negado, na verdade,
e, como tais, não devem ser detestadas e censuradas, contra as intenções do autor, está presente em várias
mas sim explicadas e compreendidas, como todas as partes da Ethica.
outras realidades da natureza. Com efeito, por toda
parte a natureza é una e idêntica em sua ação e, A tentativa de pôr-se “além do bem e do mal”
portanto, também único deve ser o modo de estudá-la
em todas as suas manifestações. O jogo das paixões e dos comportamentos
Spinoza entende as paixões como resultantes da humanos aparece sob luz totalmente diversa, segundo
tendência a perseverar no próprio ser por duração Spinoza, se percebermos que não existem na natureza
indefinida, tendência que é acompanhada pela "perfeição" e "imperfeição", "bem" ou "mal" (ou seja,
consciência, ou seja, pela respectiva ideia. Quando a valor e desvalor), assim como não existem fins, dado que
tendência se refere apenas à mente, chama-se vontade; tudo acontece sob o signo da necessidade mais rigorosa.
quando se refere também ao corpo, chama-se apetite. "Perfeito" e "imperfeito" são visões, ou seja, modos
Aquilo que favorece positivamente a tendência (finitos) do pensamento humano que nascem da
a perseverar no próprio ser e a incrementa chama-se comparação que o homem institui entre os objetos que
alegria; o contrário chama-se dor. E dessas duas paixões ele produz e as realidades que são próprias da natureza.
basilares brotam todas as outras. Em particular, Com efeito, "perfeição" e "realidade" são a mesma coisa.
chamamos de "amor" a sensação de alegria Assim, não devemos dizer de nenhuma
acompanhada da ideia de uma causa externa suposta realidade natural que ela seja "imperfeita". Nada daquilo
como razão para essa alegria, e chamamos de "ódio" a que existe carece de algo: é aquilo que deve ser, segundo
sensação de dor acompanhada da ideia de uma causa a série de causas necessirias.
externa considerada como causa dela. O “bem” e o “mal” também não indicam nada
É de modo análogo que Spinoza deduz todas as que existe ontologicamente nas coisas consideradas em
paixões do espirito humano. Todavia, nosso filosofo si, objetivamente, mas também são "modos de pensar"
também fala de "paixão" como de uma ideia confusa e e noções que o homem forma, comparando as coisas
inadequada. A passividade da mente devese precisamente entre si e referindo-as a ele mesmo.
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Em suma: toda consideração de caráter mesmo, não enquanto infinito, mas enquanto pode ser explicado
finalístico e axiológico é banida da ontologia de mediante a essência da mente humana, considerada sob a espécie
Spinoza, que, alias, considera que alcança a "libertação" da eternidade. Ou seja, o amor intelectual da mente por Deus é
e a consecução do objetivo a que se propunha uma parte do amor infinito com o qual Deus ama a si mesmo. "
precisamente por meio de tal eliminação. Mais uma vez, encontramos Sócrates e a Estoá
Com base na concepção das "paixões" acima no pensamento de Spinoza, quando ele nos diz que a
expostas e na visão do homem essencialmente radicada bem-aventurança que experimentamos nesse supremo
na conservação e no incremento do seu próprio ser, só conhecimento intelectivo é não só a virtude, mas
resta a Spinoza concluir que aquilo que se pode chamar também é o único e supremo prêmio da virtude. Em outros
corretamente de bem é somente o útil, e mal é o seu termos: para Spinoza, a virtude tem seu prêmio em si mesma.
contrário: “Entendo por bom aquilo que sabemos com O amor intelectual por Deus é a visão de todas as coisas
certeza que é útil para nós. Já por mau entendemos aquilo sob o signo da necessidade (divina) e a aceitação alegre
que sabemos com certeza que nos impede de possuir o bem (ou de tudo aquilo que acontece, precisamente porque tudo
seja, o útil)”. Consequentemente, a “virtude” torna-se o que acontece depende da necessidade divina.
tãosomente a consecução do útil, e “vício” é o contririo.
Portanto, quando os homens seguem a razão, não 2.5 A religião
só alcançam seu próprio útil, mas também o útil de
todos: o homem que se comporta segundo a razão é o As ideias filosóficas de Spinosa não deixavam
que há de mais útil para os outros homens. Spinoza espaço para a religião a não ser em plano claramente
chega até a dizer que o homem que vive segundo a diferente do plano da filosofia (ou seja, da verdade), que
razão "é um Deus para o homem". se desdobra exclusivamente aos níveis do segundo e do
terceiro gêneros do conhecimento (ou seja, ao nível de
O conhecimento como libertação das paixões razão e de intelecto).
Ao contrário, segundo Spinosa, a religião
Sócrates já havia dito que vício é ignorância e permanece no nível do primeiro gênero de
virtude é conhecimento. Essa tese, nos modos mais conhecimento, em que predomina a imaginação. Os
variados, havia sido reafirmada ao longo de toda a profetas, autores dos textos biblicos, não se destacam
filosofia greco-pagã. Spinoza a repropõe em termos pelo vigor do intelecto, mas pelo poder da fantasia e da
racionalistas. imaginação, ao passo que o conteúdo de seus escritos
Eis um dos textos mais eloquentes dentre os não é feito de conceitos racionais, mas de imagens
muitos que podemos ler na Éthica, no qual revelam-se vividas.
particularmente evidentes os ecos socráticos e estóicos: Além disso, a religião visa a obter a obediência,
"Não sabemos com certeza que alguma coisa é boa ou má senão ao passo que a filosofia (e somente ela) visa à verdade.
enquanto leva realmente ao conhecimento ou pode impedir o nosso Tanto isso é verdade que os regimes tirânicos valem-se
conhecimento. " abundantemente da religião para atingir seus objetivos.
Mas a retomada dessas antigas teses clássicas Do modo como é professada na maioria dos
assume novo sentido no contexto spinoziano. Com casos, a religião é alimentada pelo temor e pela
efeito, para nosso filósofo a paixão é uma ideia confusa. superstição. E a maioria dos homens resumem seu
Portanto, a paixão deixa de ser paixão "tão logo credo religioso nas práticas de culto, tanto é verdade
formemos dela uma ideia clara e distinta". que, se formos atentar para a vida que a maioria leva,
Diz Spinoza: clarifica tuas ideias e deixarás de não saberemos identificar de que credo religioso são
ser escravo das paixões. O verdadeiro poder que liberta seguidores.
e eleva o homem é a mente, e, portanto, o Na realidade, diz Spinoza, os seguidores das
conhecimento. Esta é a verdadeira salvação. varias religiões vivem aproximadamente do mesmo
modo.
Deus como a causa de tudo O objetivo da religião, portanto, é o de levar o
povo a obedecer à Deus, honrá-lo e serví-lo.
A terceira forma de conhecimento, a da intuição
intelectiva, que consiste em entender todas as coisas 2.6 Estado como garantia de liberdade
como procedentes de Deus (ou seja, como modos de
seus atributos). Essa forma de conhecimento é saber as Spinoza foi um incansavel defensor do Estado
coisas em Deus e, portanto, um saber a si mesmo em de direito. O Estado de direito que Spinoza reconstruiu
Deus. E quando nós compreendemos que Deus é causa teoricamente parte de pressupostos muito próximos
de tudo, tudo nos dá alegria e tudo produz amor a Deus. aos de Hobbes. Com efeito, ele fala de “direito” e de
Eis a célebre proposição em que Spinoza define “leis” naturais, no sentido de que, por sua natureza, todo
o amor intelectual a Deus: "O amor intelectual da mente por Indivíduo é determinado a existir e operar de certo
Deus é o proprio amor de Deus, com o qual Deus ama a si modo, e que esse comportamento é necessário.
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Analogamente, devido à sua constituição, os 2. Leia com atenção o texto a seguir.
homens, sujeitos a paixões e iras, são “inimigos por A virtude é a própria potência do homem, que se define
natureza”. exclusivamente pela essência dele [...], isto é [...], que se
Mas, em virtude do seu desejo de viver e de ficar define exclusivamente pelo esforço que o homem faz
o mais possivel ao abrigo de contínuos conflitos, os
homens estipulam um pacto social. Ainda mais que, para perseverar em seu ser. Logo, quanto mais alguém
sem a ajuda mutua, eles não poderiam viver se empenha em conservar seu ser e tem poder para tal,
confortavelmente nem cultivar seu espírito. mais é dotado de virtude. O contrário acontece [...], na
O pacto social, portanto, origina-se da utilidade medida em que alguém desdenha conservar seu ser, e
que dele deriva, e nela se fundamenta. Entretanto, o por isso é impotente.
Estado para o qual são transferidos os direitos na (ESPINOSA, B. Ética. In: MARCONDES, D. (org.). Textos
constituicão do pacto social não pode ser o Estado básicos de ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Jorge
absolutista de que fala Hobbes. Alguns direitos do Zahar, 2007, p. 75)
homem são inalienaveis, porque, renunciando a eles, o É INCORRETO dizer que, para Espinosa,
homem renuncia a ser homem. A) o ser humano que é virtuoso age conforme a
O fim do Estado não é a tirania, e sim a natureza.
liberdade. O fato de o filósofo da "absoluta B) o conceito de virtude liga-se ao de autoconservação.
necessidade" metafísica se apresentar como o teórico da C) os homens, para alcançar a virtude, devem superar a
liberdade política e religiosa constitui uma aporia que muitos sua tendência natural por meio do hábito.
já observaram. D) os homens são virtuosos por essência.
Mas a defesa da liberdade religiosa e do Estado E) um ser humano age contra a própria utilidade
liberal tem raízes existenciais em Spinoza: banido da somente sob a influência de causas externas que o
comunidade dos judeus e privado de vínculos de todo corrompem.
tipo, nada mais restava a ele se não o Estado que lhe
deixou a liberdade de viver e de pensar. 3. (UEM 2013) Diz Spinoza: “Proposição XXX:
E foi precisamente tal Estado que ele quis Nenhuma coisa pode ser má pelo que tem de comum
teorizar. Pode-se dizer até que, paradoxalmente, só com nossa natureza, mas é má para nós na medida em
mesmo naquele Estado que garantia plena liberdade ele que nos é contrária. Demonstração: Chamamos mau o
pôde pensar o sistema da absoluta necessidade. que é causa de Tristeza, isto é, o que diminui ou reduz
nossa potência de agir. Se portanto uma coisa, pelo que
tem de comum conosco, fosse má para nós, essa coisa
QUESTÕES poderia diminuir ou reduzir o que tem de comum
conosco, o que é absurdo. Coisa alguma portanto pode
1. Em Espinosa o jogo das paixões, dos ser má para nós pelo que tem de comum conosco, mas,
comportamentos humano, bem como a questão do ao contrário, na medida em que é má, isto é, na medida
Bem e do Mal, se nos aparece sob luz inteiramente em que pode diminuir ou reduzir nossa potência de agir,
diversa do que comumente poderíamos deduzir. ela nos é contrária.”
(Giovanni Reale) (Spinoza, in MARCONDES, Danilo. Textos básicos de Filosofia.
Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 93).
Quando o autor diz que Espinosa trata o problema do A partir do texto é correto afirmar:
Bem e do Mal de maneira inteiramente diversa, 01) Segundo o filósofo, é absurdo que uma coisa má
podemos entender que: tenha algo de comum conosco.
a) Adotando o cristianismo afasta-se do judaísmo, seu 02) As coisas são consideradas más em função de sua
berço teológico e moral. própria natureza.
b) A justa concepções religiosas e laicas de moralidade, 04) As coisas más não reduzem a nossa potência de agir.
08) A tristeza é causada pelos efeitos das coisas más.
criando algo novo e inusitado.
16) O filósofo demonstra a contrariedade entre
c) Trata-se de uma questão de imoralidade radical. natureza humana e maldade.
d) O Bem o e o Mal não existem, o que existe são as
inclinações humanas baseadas em suas paixões, que são
naturais.
e) O Bem existe e o Mal não passa de um artifício psico-
religioso para intimidar o ser humano, fazendo com o
mesmo renuncie aos aspectos dionisíacos da existência.

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3. BLAISE PASCAL Pascal, isso não é válido para as matérias que são objeto
de experiência e de raciocínio: "aqui a autoridade é
Blaise Pascal nasceu inútil; so a razão tem condições de conhecê-las. Elas
na França em 1623 e foi um têm os seus direitos separados; lá, a autoridade tinha a
gênio muito precoce, supremacia; aqui, por seu turno, domina a razão".
inclinado à matematica e à E onde dominam a experiência e a razão deve
ciência. Com apenas 16 anos haver progresso: a inteligêcia "tem toda a liberdade para
escreveu um Tratado das se expandir: sua inexaurível fecundidade produz
cônicas, muito apreciado, mas continuamente, e suas invenções podem ser ao mesmo
que se perdeu; com 18 anos tempo infinitas e ininterruptas".
inventou a “máquina aritmética”, a primeira máquina Afirma Pascal que, assim, a geometria, a
calculadora, e com 23 inventou a experiência do vazio, aritmética, a música, a física, a medicina, a arquitetura e
demonstrando que todos os fenômenos até então todas as ciências que dependem da experiência e do
atribuídos ao vazio são, ao contrario, causados pelo raciocinio devem se desenvolver: "Os antigos as
peso do ar. encontraram apenas esboçadas por aqueles que os
Em 1646, em um periodo de convalescência do precederam, e nós as deixaremos para os que vierem
pai, Pascal entrou em contato com dois médicos que o depois de nós em um estado mais avançado do que as
fizeram conhecer as obras do abade de Saint-Cyran, tivermos recebido."
pelas quais ele se converteu e “foi conduzido a Deus” As verdades teológicas e as verdades que
junto com toda a sua familia: é a “primeira conversão” obtemos com o raciocinio e a experiência são, portanto,
de Pascal, e seu primeiro contato com Port-Royal. diferentes: eternas as primeiras, progressivas as
Em 1651 morreu o pai, seu único verdadeiro segundas; dom de Deus as primeiras, fruto da atividade
mestre. Depois de breve “período mundano”, atingido humana as segundas; encontráveis nos textos sagrados
entre outras coisas por uma cefaleia quase insuportável, as primeiras, resultados da engenhosidade humana, de
Pascal foi atingido na noite de 23 de novembro de 1654 provas racionais e de experimentos as segundas.
por uma profunda iluminação religiosa, e escreveu um É preciso deixar intactas as verdades reveladas
famoso Memorial, esta foi a “segunda conversão”, e fazer progredir continuamente as verdades humanas.
seguida pela decisão de deixar toda atividade mundana.
Morreu em 19 de agosto de 1662.
3.1 Demarcação entre ciência e fé O método ideal
As verdades
O saber científico, portanto, é autônomo e
No fragmento do prefácio ao projetado Tratado diverso das verdades de fé: estas, além do mais, são
sobre o vácuo, Pascal traça com impressionante lucidez a imutáveis, ao passo que as verdades científicas estão e
demarcação entre ciências empíricas e teologia, devem estar em expansão.
especificando os respectivos métodos de base e Escreve Pascal nos Pensamentos: “A fé é diferente
delineando as respectivas características do discurso da demonstração; esta é humana, a outra é dom de
científico e do teológico. Deus. [...], mas essa fé está no coração e não nos faz
Antes de mais nada, Pascal ataca o princípio de dizer sei, e sim creio.”
autoridade na pesquisa racioanl. Dar valor unicamente E o ideal do saber, é exposto por Pascal no
à autoridade dos livros antigos é, sem dúvida, um escrito Sobre o espírito geometrico e sobre a arte do persuadir. O
defeito. Ele, porém, não pretende pôr de lado tal defeito que é preciso fazer para tornar convincentes nossas
apenas para introduzir outro em seu lugar, isto é, o de demonstrações?
achar que o raciocinio é sempre e em toda parte o único Pois bem, Pascal responde a essa interrogação
valor. Com efeito, há âmbitos nos quais é obrigatorio o afirmando que nossas demonstrações só poderão ser
recurso ao texto, como, por exemplo, na atestação de convincentes sob a condição de respeitarmos o método
fatos historicos e geográficos, e sobretudo para aquilo da geometria. Para dizer a verdade, mesmo esse
que se refere a religião. método, como logo veremos, também encontra limites.
A realidade é que os princípios da fé "estão Por essa razão, um método ainda mais eminente e
acima da natureza e da razão. E a mente humana, como perfeito - mas que, no entanto, é impossivel praticar –
é muito fraca para nos fazer chegar até lá apenas com deveria consistir em duas coisas principais: “Uma seria
seus esforços, só pode alcançar essas sublimes verdades não usar nenhum termo cujo sentido não se tenha
quando levada a elas por uma força onipotente e explicado claramente antes. A outra seria nunca
sobrenatural ". enunciar qualquer proposição que não seja
Na teologia, portanto, o princípio de autoridade demonstrada com verdades já conhecidas. Em suma,
(a referência ao texto em que estão contidas as verdades isso significa definir todos os termos e provar todas as
de fé reveladas) é legítimo e necessário. Mas, precisa proposições.”
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Ora, como comenta Pascal, esse método seria alcançar as primeiras verdades conhecidas, a geometria
belo, mas é impossível: “Com efeito, é evidente que os se detêm e pede que elas sejam aceitas, pela razão de
primeiros termos que se quisesse definir pressuporiam que ela não tem nada de mais claro para prová-las: desse
termos anteriores que servissem para sua explicação e, modo, “tudo aquilo que a geometria propõe é
da mesma forma, as primeiras proposições que se perfeitamente demonstrado, por luz natural ou por
quisesse demonstrar pressuporiam outras precedentes. prova”. E a luz natural dá certezas.
Desse modo, fica claro que nunca se chegaria aos Existem, portanto, "verdades que estão ao
primeiros termos e proposições. Assim, levando as nosso alcance", verdades naturais sabidas por todos,
pesquisas sempre mais adiante, chega-se como, por exemplo, a de que "o todo é maior do que
necessariamente a palavras primitivas que não podem uma sua parte", a partir das quais, uma vez
mais ser definidas, e a principios tão claros que não se reconhecidas, podemos ter infalivelmente conclusões
encontram outros que sejam mais claros para servir de persuasivas.
prova deles.” E, pelo que foi dito, o método ideal que reallza a
Com isso, fica claro que “Os homens são “arte do persuadir” consiste em três partes essenciais:
naturalmente e imutavelmente impotentes para tratar 1) definir, por meio de definições claras, os
de qualquer ciência com ordem absolutamente termos dos quais devemos nos servir;
completa”. 2) propor princípios ou axiomas evidentes
Entretanto, essa impotência para definir todos os como fundamento da prova;
termos e para demonstrar todas as proposições não deve 3) na demonstração, sempre substituir
nos fazer desesperar, pois, embora não seja possível um mentalmente os termos definidos pelas definições.
método perfeito e completo, é possível outro, "inferior" Na opinão de Pascal, essas três partes essenciais
ao idealizado; é "menos convincente, mas não porque são explicitadas por um conjunto de regras que,
seja menos certo". respectivamente, dizem respeito às definições, aos axiomas
Trata-se do método da geometria: “Ele não e às demonstrações.E as regras essenciais entre todas são
define tudo e não prova tudo, e nisso é inferior ao outro as seguintes:
método; entretanto, supõe somente coisas claras e "Regras necessárias para as definições. Não admitir
constantes pela luz natural, sendo por isso nenhum termo um pouco obscuro ou equívoco sem
perfeitamente verdadeiro, já que é sustentado pela definição. Nas definições, usar somente termos
natureza, na falta de demonstração”. perfeitamente conhecidos ou já explicados.
Portanto, trata-se de fazer com que nossas Regras necessárias para os axiomas. Nos axiomas,
demonstrações - se elas quiserem ser convincentes - enunciar somente coisas evidentes.
tenham como premissas verdades evidentes para todos, Regras necessárias para as demonstrações. Provar
como fala Descartes na sua filosofia. todas as proposições, usando somente os axiomas
Assim, a ordem ou método geométrico, "o mais evidentíssimos em si mesmos ou proposições já
perfeito para todos os homens, não consiste em definir demonstradas ou admitidas. Nunca abusar da
ou demonstrar tudo, e nem consiste em não definir ambiguidade dos termos, deixando de substituir
nada ou não demonstrar nada, mas sim em manter-se mentalmente as definições que os restrinjam ou
na justa medida de não definir as coisas claras e expliquem o sentido".
compreendidas por todos os homens e definir todas as
outras, e de não provar as coisas já conhecidas dos O “espírito intuitivo”
homens e provar todas as outras. Contra tal ordem
pecam igualmente aqueles que pretendem tudo definir Portanto, é esse o ideal do saber para Pascal. Mas
e tudo provar, e aqueles que deixam de fazê-lo nas não devemos de modo algum passar por alto o fato de
coisas que não são evidentes por si mesmas". que ele é precisamente um ideal. A argumentação é
E esse, precisamente, é o procedimento convincente se, de premissas evidentes em si mesmas,
indicado pelo método geométrico, que não define deduzimos corretamente as consequências.
coisas como o espaqo, o tempo, o movimento, o Naturalmente, Pascal é de opinião que uma
número, a igualdade, a maioria, a diminuição e muitas mente vigilante e atenta, não ofuscada por desejos e
coisas semelhantes, "porque esses termos designam tão paixões, está em condições de intuir.
naturalmente as coisas que significam, para aqueles que Como podemos ler nos Pensamentos, o espírito
comprendem a língua, que a clarificação que se poderia geométrico é relativo a princípios que, por assim dizer,
tentar acabaria por produzir mais obscuridade do que "são palpáveis", e "seria preciso ter mesmo urna mente
esclarecimento". completamente falseada para raciocinar mal sobre
A natureza supriu a limitação de ter que definir e princípios tão rudimentares que é quase impossivel que
demonstrar tudo, dando-nos de certas coisas "um nos escapem". Mas, "na mentalidade intuitiva, os
entendimento mais claro do que aquele que a arte nos princípios pertencem ao uso comum e estão sob os
apresenta com as suas explicações". Sendo assim, ao olhos de todos. Não é necessário nada mais além de
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prestar atenção a eles, sem muito esforço; basta 3.2 Grandeza e miséria da condição humana
somente uma boa vista, mas que seja verdadeiramente
boa, pois os princípios são tão tênues e tão numerosos Segundo Pascal, como para Montaigne, o objeto
que é quase impossível que alguém deixe de escapar. por excelência da filosofia é o homem, e a reflexao
Ora, a omissão de um princípio leva ao erro; por isso, é sobre o homem leva imediatamente a consideraqao de
preciso ter a vista bem clara, para ver todos os que a grandeza e a dignidade do homem consistem no
princípios, mas também ter urna mente equilibrada, pensamento.
para não raciocinar falsamente sobre os princípios A grandeza do homem está, portanto, também
conhecidos". no reconhecer-se mísero, e Pascal dirige a atenção sobre
A realidade do homem é um "prodigio" a miséria ontológica da condição humana. O homem é
complexo, enigmático, contraditório, profundo, e rico um nada em relação ao infinito, e um todo em relação
de infinitos aspectos: trata-se de uma realidade que ao nada, e algo intermediário entre o nada e o todo.
escapa aos esforços mais tenazes e aos reiterados A grandeza e a miséria do homem estão
ataques da racionalização. firmemente reunidas, e este é o realismo trágico de
Só podemos produzir argumentações Pascal. O homem, apenas com suas forças, conseguirá
convincentes a partir de premissas certas. Mas as apenas compreender que é um monstro
premissas certas dos geômetras são "grosseiras", ou incompreensível, mas não criar valores firmes e
seja, aquelas que, no fim das contas, não conseguem encontrar um sentido estável e verdadeiro da existência.
captar os lados mais ricos e interessantes da realidade e O homem, portanto, é uma criatura que caiu de
da vida. É preciso, portanto, o espírito intuitivo. seu posto sem poder reencontrá-lo, procurando-o por
Mas, para Pascal, também o espírito intuitivo todo lugar com inquietude e sem êxito: não podendo
tem forte valência normativa, pois também é um ideal curar a morte e a miséria, o homem decidiu nao pensar
regulador. nisso para tornar-se feliz, e escolheu o divertimento.
Com efeito, o homem frequentemente tende a O divertissement é fuga diante da visão lúcida
se enganar, a refutar a verdade, a conviver com o erro, da miséria humana, e aturdimento que faz divagar e
a entregar-se à mentira. "É uma doença natural do homem chegar inadvertidamente à morte. O divertimento é
acreditar que possui a verdade diretamente; disso decorre que está fuga de nós mesmos, de nossa miséria, mas é a nossa
sempre disposto a negar tudo o que lhe é incompreensivel". E máxima miséria, porque nos proíbe olhar para dentro
ainda: "[...]todos os homens são quase sempre levados a crer, não de nós mesmos e pensar. Apenas o pensamento leva à
pelo caminho da demonstração, mas pelo caminho do que lhes verdade essencial, motivo pelo qual o homem é
agrada". E, no seu livro Pensamentos, Pascal acrescenta: constitutivamente indigente e miserável, e é sobre a
"O homem é um ser cheio de erro: erro natural e não eliminável base desse reconhecimento que Pascal constroi sua
sem a graça. Nada lhe mostra a verdade. Tudo o engana". apologia do cristianismo.
A razão não é um dado de fato; é muito mais
um imperativo. Mas, mesmo quando ela alcança seus 3.3 A importância da razão
objetivos e nos põe diante de verdades válidas para
todos, das quais é possivel extrair consequências Fé e razão
também verdadeiras, nós percebemos que essas
verdades já não contam tanto assim. A razão é limitada; a vontade humana é
Há outros domínios e outras realidades, que o corrupta; o homem se descobre essencialmente
espírito matemático não pode alcançar, mas que são indigente e miserável; tenta fugir desse estado
alcançáveis através do espírito intuitivo, isto é, através mergulhando na confusão do divertimento; mas a
daquela "visão verdadeiramente boa", não obscurecida diversão revela-se uma miséria ainda maior, pois
por paixões e desejos. "A ciência das coisas exteriores não me obstaculiza o caminho da redenção para o homem. E a
consolará da ignorância da moral no tempo da aflição, mas a salvação não é fruto da ciência nem da filosofia:
ciência dos costumes sempre me consolará da ignorâcia das coisas “Submissão e reto uso da razão: nisso consiste o
exteriores". verdadeiro cristianismo”.
Além disso, as verdades ético-religiosas são A razão é impotente diante das verdades éticas
inteiramente estranhas à investigação científica, mas é e religiosas: "O supremo passo da razão esta em
precisamente delas que depende nosso destino e a elas, reconhecer que há uma infinidade de coisas que a
somente a elas, é que está ligado o sentido de nossa ultrapassam".
existência. A fé, além disso, não só não depende da razão,
Diz Pascal que as verdades divinas não são parte mas, em última análise, não depende sequer do homem,
da arte de persuadir, “porque estão infinitamente acima da porque é dom de Deus. Escreve Pascal: "Não penseis
natureza: só Deus pode infundi-las na alma, e do modo como que dizemos que ela é um dom do raciocínio. As outras
mais lhe agradar”. religiões não falam assim de sua fé, dão apenas o
raciocínio para que se chegue a ela; ele nunca a alcança.
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A fé é diferente da demonstração: esta é humana, aquela dificil: para que lado nos inclinaremos? Diremos que
é dom de Deus." Deus existe ou que não existe?
Falando a propósito das normas éticas, em seus Diz Pascal:
Ensaios Montaigne escreveu que "a regra das regras e a "Aqui a razão nada pode determinar: no meio do
lei geral das leis é que cada um observe a do lugar onde caminho há um caos infinito. Na extremidade dessa distância
se encontra". Pois bem, na opinião de Pascal essa regra infinita joga-se um jogo no qual sairá cara ou coroa. Em qual das
geral é uma flagrante demonstração do fato de que, com duas ireis apostar? Segundo a razão, não podeis apostar nem em
sua razão, os homens não conseguiram saber o que é a uma nem na outra, como também não podeis excluir nem uma
justiça. nem a outra. Portanto, não acuseis de erro quem escolheu, porque
Se a razão humana não conhece e não sabe não sabeis absolutamente nada".
avaliar a justiça, por si só ela tampouco pode chegar a É isso o que Pascal diz ao cético interlocutor
Deus. Por isso, “rir-se da filosofia significa filosofar imaginário. Todavia, este pode rebater:
verdadeiramente”. "Não, mas eu os censuro não por terem realizado tal
“O coração - e não a razão - é que sente Deus. escolha, mas por terem escolhido; porque, embora quem escolhe
E isto é a fé: Deus sensível ao coração e não à razão.” cara e quem escolhe coroa incorram no mesmo erro, ambos estão
“O coração tem razões que a própria razão, em erro. A única posição justa é não apostar de modo nenhum".
desconhece.” E Pascal retruca:
É uma experiência longa, contínua e uniforme "Sim, mas é preciso apostar: não é uma coisa que
que “nos convence sempre da nossa impotência para dependa de vossos desejos; vós vos comprometestes. O que
alcançar o bem com nossas forças”. Estamos sempre escolhereis, portanto? Como é preciso escolher, vejamos aquilo que
insatisfeitos, pois a experiência nos engana. E de menos vos interessa. Tendes duas coisas a perder: a verdade e o
infelicidade em infelicidade chegamos a uma morte sem bem; duas coisas a apostar no jogo: vossa razão e vossa vontade,
sentido. “Desejamos a verdade, mas só encontramos vosso conhecimento e vossa bem-aventurança; e vossa natureza
incerteza. Procuramos a felicidade, mas só encontramos deve fugir de duas coisas: do erro e da infelicidade. Vossa razão
miséria e morte. Somos incapazes de deixar de desejar não é atingida mais por uma escolha do que pela outra, ja que é
a felicidade e a verdade, mas também somos incapazes necessariamente preciso escolher. Eis uma questão liquidada.
de ter a certeza e a felicidade. Esse desejo nos é deixado, Mas, e vossa bem-aventurança? Vamos pesar o ganho e a perda,
seja como punição, seja para nos fazer sentir de que no caso de apostardes em favor da existência de Deus. Vejamos
ponto caímos”. estes dois casos: vencendo, ganhareis tudo; perdendo, não perdereis
Nossa razão é corrupta e nossa vontade é má. nada. Assim, apostai sem hesitar que ele existe".
Nenhuma coisa humana pode nos satisfazer. Somente É preciso escolher. E é racional escolher Deus,
Deus é nossa verdadeira meta. Efetivamente, “se o já que, escolhendo-se Deus, pode-se vencer tudo e nada
homem não é feito para Deus, então por que ele não é perder. Quais seriam os danos, supondo-se que a
feliz senão em Deus?” Além disso, “para ser verdadeira, escolha de Deus fosse urna escolha errada?
uma religião deve ter conhecido nossa natureza. Deve Afirma Pascal:
ter conhecido a grandeza e a pequenez, bem como a "Sereis fiel, honesto, humilde, reconhecido, benéfico,
causa de uma e de outra. E quem a conheceu senão a amigo sincero, verdadeiro. Para dizer a verdade, não vivereis mais
religião cristã?” Substancialmente, a fé cristã nos ensina nos prazeres pestiferos, na vaidade, nas delícias. Mas não tereis
apenas estes dois principios: “a corrupção da natureza outros prazeres? Eu vos digo que ganhareis nesta vida. E que, a
humana e a obra redentora de Jesus Cristo”. cada novo passo que fizerdes nesse caminho, percebereis tanta
O conhecimento da existência de Deus, certeza de ganho e tão pouco ou nenhum risco que, no fim das
portanto, é um dom de Deus. O verdadeiro Deus se dá contas, vereis que apostastes por uma coisa certa, infinita, pela
a conhecer por meio de Jesus Cristo. E as verdades de qual não haveis dado nada".
fé não podem ser descobertas e fundamentadas pela A fé é dom de Deus. Mas a razão pode mostrar
razão. Entretanto, a razão não fica de todo inativa em pelo menos que essa fé que supera a raziio não é
relação à fé. O exercício da razão é relevante para a fé, contrária à natureza humana. É uma fé que vem ao
antes de mais nada quando a razão, barrando a encontro da miséria humana, explicando-a e
perturbação do divertimento, lança luz sobre a miséria resolvendo-a.
humana. Em segundo lugar, também é a razão que pode Consequentemente, se a fé é dom de Deus,
avaliar em que medida a fé cristã pode explicar a miséria então, mais do que procurar aumentar o número das
do homem, dissolver as contradições que envolvem o provas da existência de Deus, há necessidade de
ser humano e dar sentido à existência humana. diminuir nossas paixões.
Em suma, é preciso tornar-se disponíveis para
Sobre a existência de Deus receber a graça, embora se possa pensar que o próprio
esforço moral de quem "busca gemendo" já é fruto de
Uma coisa é certa: Deus existe ou não existe. graça: “Nada compreendemos das obras de Deus se
Mas essa certeza propõe o problema mais urgente e
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não tomarmos por princípio o fato de que ele quis cegar a) o de "fim" ou de "causa final", juntamente
uns e iluminar outros”. com a visão teleológica geral (finalística) da realidade
A graça é necessária, porque a queda e a nossa sobre ele fundada;
natureza corrupta nos tornaram indignos de Deus. É b) o conceito de "substância", entendida no
Deus que se revela, mas o Deus que se revela é, ao sentido de "forma substancial", juntamente com a
mesmo tempo, um Deus escondido: "Ele ficou oculto respectiva visão ontológica da realidade.
sob o véu da natureza que o cobre, até a Encarnação. Pois bem, foram precisamente esses os
E, quando veio para ele o tempo de se mostrar, ocultou- conceitos que Leibniz retomou, reivindicando não
se ainda mais, cobrindo-se com a humanidade. Ele era apenas sua validade, mas também, em certo sentido, a
bem mais reconhecível quando estava invisível do que “perenidade”. E, além disso, mostrou a possibilidade de
quando se tornou visível. E, por fim, [...] decidiu sua conciliação com as mais significativas descobertas
permanecer no mais estranho e incompreensível dos “modernos” filósofos e cientistas.
segredo: as espécies eucarísticas". Leibniz descobriu que, na realidade, trata-se de
Jesus Cristo é a prova de Deus. E Deus “se perspectivas que se colocam em planos diferentes, que
oculta àqueles que o experimentam e se revela àqueles em si mesmas não apenas não se embatem, quando são
que o buscam, porque os homens são ao mesmo tempo entendidas em seu significado apropriado, mas também
indignos de Deus e capazes de Deus: indignos por sua podem ser oportunamente integradas entre si com
corrupção, capazes por sua natureza primitiva”. grande vantagem.
Toda a filosofia de Leibniz brota dessa
grandiosa tentativa de “mediação” e “síntese” entre
antigo e novo, tornada particularmente eficaz pelo
4. LEIBNIZ duplo conhecimento que ele possuia: de um lado, os
Gottfried Wilhelm filósofos medievais (Leibniz estudou não apenas os
Leibniz nasceu em Leipzig em escolásticos, mas tamétm Aristóteles e Platão); do
1646. Cursou filosofia em outro, o cartesianismo e os métodos da nova ciência.
Leipzig e matemática em Jena, Nessa tentativa de reconsiderar os antigos à
em 1666. luz dos modernos e fundir suas diferentes
Os últimos anos de sua instâncias reside a grandeza histórica e teórica de
vida foram amargados pela Leibniz.
polêmica suscitada em 1713 Examinemos mais minuciosamente a
pela Royal Society de Londres problematica do “finalismo” e a da “substância”, que o
sobre a prioridade da nosso filosofo pretende repropor e que, como veremos,
descoberta do cálculo infinitesimal (em que havia constituem o eixo central de todo o seu pensamento.
intensamente trabalhado), atribuida a Newton. Morreu
em 1716. O novo significado do finalismo
Suas obras mais importantes são: Discurso de
metafísica (1686), Novo sistema da natureza (1695), A explicação dos fenômenos que a nova ciência
Novos ensaios sobre o intelecto humano (1703), e o cartesianismo propunham era de caráter
Ensaios de teodiceia (1710), Princípios racionais da “mecanicista”, como vimos. Extensão e movimento
natureza e da graça (1714), Monadologia (1714). eram considerados causas suficientes para fornecer
explicasão adequada das coisas. A essa posição, que
4.1 A mediação entre filosofia antiga e moderna exclui claramente a consideração do fim, Leibniz opõe
O antigo e o novo nada menos que a concepção que Platão expõe no
Fédon, precisamente nas célebres páginas em que ele
A revolução científica, Bacon (que veremos relata sua “segunda navegação”, ou seja, sua descoberta
mais adiante) e, sobretudo, Descartes, haviam metafisica fundamental.
produzido na história do pensamento ocidental uma Leibniz considera que essas páginas platnicas se
reviravolta radical e decisiva, como já vimos adaptam admiravelmente a seu proporósito, parecendo
amplamente. Parecia até que não só as soluções, mas terem sido formuladas propositalmente “contra nossos
também as problemáticas da filosofia escolástica e da filósofos, muito materialistas”.
filosofia antiga tivessem se tornado obsoletas, a ponto Nestas paginas, por boca de Sócrates, Platão
de não poderem mais ser repropostas. Os parâmetros, critica Anaxágoras por ter prometido explicar todas as
os modulos e os métodos das ciências matemáticas e coisas em função da inteligência e da causa final, que é
fásicas pareciam doravante os únicos possiveis, também a causa do bem; todavia, depois critica o fato de ele ter
no âmbito da filosofia. faltado a sua promessa, recorrendo às habituais causas
De forma especial, dois conceitos pareciam físicas, mecânicas e materiais.
irremediavelmente comprometidos:
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O fato, por exemplo, de Sócrates ter as pernas Portanto, obstinando-se em basear-se nas
feitas de ossos, músculos, tendões etc., explica ter ido “formas substanciais” ao explicar os fenômenos
ele para a prisão e lá somente do ponto de vista do científicos, os aristotélicos e os escolásticos caem em
movimento mecânico. A verdadeira causa (a suprema e evidentes absurdos, mas, ao mesmo tempo, os novos
última) é de tipo bem diferente: é a escolha moral do filósofos caem em excessos de tipo oposto ao negarem
bem e do melhor (Sócrates julgou bom obedecer as leis as formas substanciais, que continuam válidas em
e melhor sofrer a condenação e, consequentemente, outros âmbitos de explicação.
utilizou as causas "mecânicas" de suas pernas, seus
músculos e seus tendões). 4.2 Mecanicismo e o conceito de mônada
No Discurso de metafisica, Leibniz deixou no O grande erro de Descartes
manuscrito um espaço, com a evidente intenção de
traduzir e repor em circulação essas páginas de Platão, Do que foi dito até agora, torna-se claro que a
tendo-o feito efetivamente em outro lugar. E por várias complexa operação de "mediação" de Leibniz não se
vezes chamou a atenção sobre elas, tanto lhe eram limita a distinguir o plano do mecanicismo científico do
prementes. plano do finalismo filosófico e a sobrepor este àquele,
Todas as coisas se explicam não em função de mas vai bem mais além, tocando na própria base em que
suas componentes materiais, e sim em função da se fundamentava o mecanicismo.
inteligência soberana ordenadora segundo um fim Segundo Leibniz, extensão e movimento, figura
preciso. Tudo o que já dissemos é suficiente para e núimero são apenas determinações extrinsecas da
mostrar que, obviamente, não se trata de um simples realidade, que não vão além do plano da aparência, ou
“retorno” a Platão, mas de avanço ainda maior. seja, do fenômeno.
A explicação mecanicista dos fenômenos em A extenção (a res extensa cartesiana) não pode
Platão é de fato rejeitada, enquanto em Leibniz é ser a essência dos corpos, porque por si mesma não
amplamente valorizada, enquanto resulta coincidir com basta para explicar todas as propriedades corporeas. Por
o ponto de vista da ciência. Mas ele, ao mesmo tempo, exemplo, diz Leibniz, ela não explica a inércia, ou seja,
faz ver como apenas a consideração finalista esteja em a relativa resistência que o corpo opõe ao movimento,
grau de dar uma visão global das coisas (e, portanto, a ponto de ser necessária uma "força" para desencadear
verdadeiramente filosófica) e como a conciliação dos tal movimento. O que significa que existe algo que está
dois métodos é de grande vantagem para o próprio além da extensão e do movimento, que não é de
conhecimento científico e particular das coisas. natureza puramente geométrico-mecânica e, portanto,
física, e que, portanto, é de natureza metafísica, que é
O novo significado das formas substanciais precisamente a "força". É dessa força que derivam tanto
o movimento como a extenção.
Análogo é o raciocinio que Leibniz faz a A propósito disso, Leibniz acredita ter vencido
proposito da questão das "formas substanciais" e das Descartes pela descoberta de um "erro memoravel"
"substâncias". Erram os filósofos modernos ao cometido por este em termos de física. Com efeito,
lançarem descrédito sobre elas, porque elas são capazes Descartes sustentava que aquilo que permanece
de fornecer uma explicação geral (filosófica) da constante nos fenômenos mecânicos é a quantidade de
realidade, que as causas mecânicas não fornecem. Por movimento (mv = massa x velocidade). Leibniz, ao
outro lado, os filósofos antigos, particularmente os contrario, demonstra que isso é cientificamente
escolásticos e certos aristotélicos, também erraram, insustentiivel, pois o que permanece constante é a
como continuam errando aqueles que neles se inspiram, energia cinética, isto é, a “força viva”, como ele a chama,
ao pretender explicar com essas formas substanciais os expressa pelo produto da massa pela aceleração (massa
fenômenos particulares da física. x velocidade ao quadrado).
A distinção entre 1) o plano da explicação A correção de um erro de física de Descartes,
filosófica geral e 2) o plano da explicação científica portanto, leva Leibniz a uma conclusão filosófica muito
particular permite a Leibniz a mediação entre o ponto importante, ou seja, a de que os elementos constitutivos
de vista antigo e o moderno. Portanto, enquanto as da realidade (os fundamentos dela) são algo que está
causas mecânicas explicam os fenômenos particulares, acima do espaço, do tempo e do movimento, e que,
as formas substanciais fornecem uma explicação global portanto, se coloca no âmbito daquelas substâncias tão
segundo uma ótica diferente. depreciadas pelos "modernos". Desse modo, Leibniz
E cada uma destas explicações tem em seu reintroduz as substâncias entendidas como princípios
âmbito uma validade precisa. Resumindo, a chave para de força, como uma espécie de pontos metafísicos,
conciliar a filosofia antiga a nova consiste na rigorosa forças originárias.
distinção entre o âmbito propriamente filosófico e o Leibniz não chegou a essa solução de repente,
âmbito propriamente científico. mas através de intensa meditação sobre Descartes, que,
em um primeiro momento, levou-o a abandonar
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Aristóteles, depois a uma fugaz superação de Descartes tempo como entidade absoluta é um "idolo" em sentido
pela aceitação do atomismo relançado por Gassendi e, baconiano que, como tal, deve ser descartado.
por fim, a uma recuperação do conceito aristotélico de Em suma, espaço e tempo não são realidades
substância, oportunamente repensado e em si mesmas, mas fenômenos consequentes à
redimensionado. existência de outras realidades.
Sucessivamente, Leibniz também adota Eis a definição mais concisa que Leibniz nos
novamente ele próprio o nome de "enteléquia", que deixou: "O espaço é a ordem que torna os corpos
indica a substância enquanto tem em si mesma sua situáveis e mediante a qual, existindo juntos, eles têm
própria determinação e perfeição essencial, ou seja, sua uma posição relativa entre si, do mesmo modo que o
própria finalidade interior. Mas o termo mais típico para tempo é uma ordem análoga em relação à sua posição
indicar as substâncias-forças primigênias seria o de sucessiva. Todavia, se não existissem criaturas, o espaço
"mônadas” (do grego monás, que significa "unidade"), e o tempo so existiriam nas ideias de Deus."
de gênese neoplatônica (e que Giordano Bruno havia Essa é uma etapa muito importante na
recolocado em circulação, embora com acepção discussão sobre a natureza fenomênica do espaqo e do
diferente). tempo. Aliás, é inclusive uma etapa indispensável para
compreender a “revolução” posterior que Kant
As consequências da descoberta de Leibniz realizará a esse respeito.

Antes, porém, de tratar da doutrina das As leis físicas como “leis da conveniência”
“mônadas”, devemos destacar algumas consequências
muito importantes que derivam de tudo o que Leibniz Se assim for, as leis elaboradas pela mecânica
estabeleceu. perdem seu caráter de verdades matemáticas, ou seja,
dotadas de veracidade lógica incontestável, para assumir
O espaço o caráter de "leis da conveniência", leis fundadas na
regra da escolha do melhor, segundo a qual (como
O "espaço" não pode coincidir com a natureza veremos mais adiante) Deus criou o mundo e as coisas
dos corpos, como queria Descartes. Para Leibniz, o do mundo.
"espaço" torna-se um fenômeno, ou seja, um modo em
que a realidade aparece para nós, embora não se trate Do mecanicismo ao finalismo
de mera ilusão, e sim de fenômeno fundante.
O espaqo é simplesmente a ordem das coisas Cai por terra a visão cartesiana do mundo e dos
que coexistem ao mesmo tempo, ou seja, algo que nasce corpos vivos como "máquinas" entendidas
da relação das coisas entre si. Portanto, não é uma mecanicisticamente. O mundo é, sim, como que
entidade ou propriedade ontologica das coisas, mas "grande máquina" em seu conjunto, como também são
resultado da relação que nós captamos entre as coisas. máquinas todos os organismos em particular, desde
Assim, é fenômeno fundante, porque se baseia suas partes menores. Mas a máquina do universo, assim
em efetivas relações das coisas entre si, mas não é um como as maquinas-partes, são a realização do querer
fenômeno porque em si mesmo não é ente real. Em divino, a concretização de uma "finalidade" desejada
conclusão, o espaço é um modo de aparecer subjetivo por Deus com a "escolha do melhor" (de que falaremos
das coisas, embora com fundamento objetivo (as adiante).
relações entre as coisas). O mecanicismo é apenas o modo por meio do
qual se realiza o "finalismo" superior. E assim, mais
O tempo uma vez, o mecanicismo se esfacela para dar lugar a um
finalismo superior.
Leibniz chega a conclusões análogas também
sobre o "tempo". O tempo não é realidade existente, 4.3 Os pontos fundamentais da metafísica
quase um como que transcorrer ontológico, um fluir monadológica
real, regular e homogêneo, mas sim um fenômeno
fundante. Tudo o que existe ou é uma simples mônada ou
Como o espaço é uma resultante fenomênica é um complexo de mônadas. As atividades
que brota da relação da coexistência das coisas, da fundamentais de toda mônada são duas: a percepção ou
mesma forma o "tempo" é a resultante fenomênica que representação, e a apetição ou tendência para
deriva da sucessão das coisas. O fundamento objetivo percepções sucessivas.
do tempo está no fato de que as coisas pre-existem, co- Leibniz distingue além disso entre a simples
existem e pós-existem, ou seja, se sucedem. E dai nós percepção e a apercepção, que é percepção
extraimos a ideia de tempo. Também a consideração do acompanhada por consciência e é propria apenas de
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certas mônadas particulares, isto é, dos espíritos 4.5 A harmonia preestabelecida
inteligências.
Cada mônada representa todas as outras, ou As mônadas não têm janelas por meio das quais
seja, o universo inteiro, e é de fato um microcosmo; a algo possa entrar ou sair, ou seja, nenhuma mônada age
conexão total do universo, porém, é representada em sobre outra ou sofre a ação de outra. As várias mônadas
cada mônada apenas indistintamente. são, com efeito, estruturadas em geral de modo a extrair
É este o significado da formula leibniziana tudo de seu interior, razão pela qual aquilo que cada
segundo a qual o presente esta grávido do futuro: em uma extrai do próprio interior coincide com aquilo que
cada instante está presente a totalidade do tempo e dos outra extrai do próprio interior, com uma
eventos temporais. correspondência e harmonia perfeitas, queridas por seu
Cada mônada representa todo o universo com criador.
diferente (maior ou menor) distinção das percepções e O sistema da harmonia preestabelecida garante,
sob perspectiva diferente, e é justamente tal perspectiva portanto, a perfeita correspondência entre as
que torna cada mônada diversa de todas as outras. representações das várias mônadas e a realidade
Disso Leibniz tira seu principio de identidade dos externa. Deus é a verdadeira ligação de comunicação
indiscerníveis, segundo o qual não existem duas entre as substâncias, e é em virtude dele que os
substâncias indiscerníveis (absolutamente fenômenos de uma mônada concordam com os da
indiferenciadas), porque de outro modo elas seriam outra e que nossas percepções são objetivas e
uma única e idêntica substância. verdadeiras.
A diferente angulação segundo a qual as
mônadas representam o universo, e o diferente nivel de 4.6 Os dois grandes problemas metafísicos: por
consciência de suas representações, delineiam uma que existe o ser e por que existe assim e não de
hierarquia das mônadas, que das mônadas sem outra forma
percepção chega até a mônada das mônadas, a Deus,
em que todas as representações têm o nivel de clareza e Como consequência de tudo o que se disse até
consciência absolutas. aqui, Deus tem um papel absolutamente central no
Deus é, portanto, a mônada primitiva, a sistema leibniziano. É compreensivel, portanto, que ele
substância originária das mônadas e simples, enquanto tenha tentado fornecer diversas provas de sua
todas as outras mônadas são produzidas ou,"criadas" existência.
por Deus mediante fulgurações; uma vez criadas, A mais conhecida é a que se lê no escrito
depois as mônadas não podem perecer a não ser por Princípios racionais da natureza e da graça, ao qual nos
aniquilação por parte do próprio Deus que as criou. referiremos.
“Por que existe algo ao invés do nada?” Essa é
4.4 As mônadas e a constituição do universo a pergunta metafísica mais radical que o Ocidente já se
pôs. Para os antigos, era suficiente propor a questão de
A mônada é o principio de força e de atividade, modo mais atenuado: “O que é o ser?”. Contudo,
mas é atividade pura apenas em Deus. Em todas as depois que a metafisica assumiu o criacionismo bíblico,
outras mônadas a atividade é imperfeita, e isso constitui a questão se radicalizou, transformando-se
justamente sua “materialidade”. A "materia-prima” da precisamente nesta outra: “Por que existe o ser?”
mônada consiste nas percepções confusas que tem, e Em Leibniz, essa questão assume formulação
este é o aspecto passivo próprio da mônada. A particularmente cortante, até devido à vinculação que
corporeidade e a extenssão são a "matéria segunda", e ele faz com o "princípio da razão suficiente", por ele
aquilo que chamamos "corpos" são "agregações de tematizado pela primeira vez de modo completo e
mônadas. perfeito.
Toda substância corpórea é em geral um O princípio (ao qual voltaremos adiante)
agregado unificado por uma mônada superior, que estabelece que nada existe ou acontece sem que exista
constitui a enteléquia dominante; nos animais, esta (e que, portanto, se possa estabelecer) uma razão
enteléquia dominante é a alma, entendida como suficiente para determinar o fato de que uma coisa
principio de vida; no homem a mônada dominante é a ocorra, acontecendo assim e não de outra forma.
alma entendida como espírito. Assim, é evidente que, à luz desse princípio, a
As mônadas inferiores representam mais o pergunta sobre o ser só pode se tornar a mais clara:
mundo do que Deus, enquanto as substâncias a) “Por que existe algo e não o nada?”.
pensantes representam mais Deus do que o mundo e b) “Por que aquilo que existe é assim e não de
são destinadas a constituir a república geral dos espíritos outra forma?”.
sob o supremo Monarca, que é justamente Deus.

184
25
4.7 A solução 3) No que se refere ao mal físico, escreve
Leibniz: “Pode-se dizer que Deus muitas vezes o quer
a) A resposta de Leibniz ao primeiro quesito é como pena devida à culpa e outras vezes como meio
que a razão que explica o ser não pode ser encontrada adequado a um fim, isto é, para impedir males maiores
na série das coisas contingentes, porque, por definição, ou para alcançar maiores bens. A pena serve para a
toda coisa contingente sempre tem necessidade de uma correção e o exemplo. Frequentemente, o mal serve
razão ulterior, por mais que se vê adiante na série das para se apreciar melhor o bem e, algumas vezes,
causas. contribui para maior perfeição daquele que o sofre,
b) A resposta ao segundo quesito é formulada como o grão que é semeado se sujeita a uma espécie de
por Leibniz como a perfeição de Deus. As coisas são decomposição para germinar. Esta é uma bela
como são e não são de outra forma porque seu modo comparação da qual o proprio Jesus Cristo se serviu.”
de ser é o melhor modo possivel de ser. Muitos mundos Essa grandiosa concepção, que vê realizado nos
(muitos modos de ser) seriam em si mesmos possíveis seres (em cada um e em todos) o melhor daquilo que
(ou seja, não contraditórios); mas somente um, este era possível, constitui o “otimismo leibniziano”, que foi
nosso, foi criado. E, entre os muitos mundos possíveis, objeto de vivas discussões e polêmicas durante todo o
a razão suficiente que induziu Deus a escolher este é século 18.
que ele, perfeito, escolheu, entre todos os possíveis, o
mundo mais perfeito. 4.9 Deus como ser necessário

4.8 Dificuldades e respostas Deus é o ser necessario, como já vimos. Aliás,


para prová-lo, Leibniz, entre outras coisas, adota o
Muito se discutiu sobre esse ponto do sistema argumento ontológico, já retomado modernamente por
leibniziano. Em primeiro lugar, perguntou-se, Deus é Descartes, segundo o qual o perfeito deve
livre para escolher este mundo ou, ao contrário, é necessariamente existir, caso contrário não seria
premido por necessidade, não podendo não escolher o perfeito.
melhor? Além disso, Deus é necessário porque, nele
A resposta de Leibniz é que não se trata de essência e existência coincidem. Diz Leibniz que só
necessidade metafísica, segundo a qual seria impensável Deus possui essa prerrogativa, isto é, que só de Deus se
qualquer outra escolha, porque contraditória e, pode dizer que lhe basta ser possível para que também
portanto, impossível. Trata-se, porém, de necessidade exista atualmente (enquanto é perfeição ilimitada).
moral, voltada para realizar o maior bem e a máxima Escreve Leibniz: "Assim, somente Deus (ou o
perfeição possível, ainda que sendo pensáveis e, Ser necessário) tem esse privilégio de não poder não
portanto, possíveis (ou seja, logicamente não- existir, desde que seja possível. E, como nada pode
contraditórias) outras alternativas (descartadas apenas impedir a possibilidade daquilo que não implica
por serem inferiores). nenhum limite, nenhuma negação e, portanto,
Em segundo lugar, se este é o melhor dos nenhuma contradição, só isso já basta para conhecer a
mundos possíveis, de onde derivam os males? priori a existência de Deus".
Nos Ensaios de Teodicéia, Leibniz distingue (e são Deus, portanto, é o único ser necessário que
evidentes as influências agostinianas nessa distinção) existe, ou seja, o único ser em que essência e existência
três tipos de mal: coincidem.
1) o mal metafísico;
2) o mal moral; 4.10 As essências e os possíveis
3) o mal físico.
O mal metafísico coincide com a finitude e, Entretanto, Deus é fonte tanto das essências
portanto, com a imperfeição ligada à finitude. Essa, como das existências. A essência expressa "aquilo que"
porém, é a condição da existência de qualquer outra uma coisa é (o que é), ao passo que a existência expressa
coisa que não seja o próprio Deus. a subsistância real, o existir de fato.
2) O mal moral é o pecado que o homem São "essências" todas as coisas que são
comete, deixando de lado os fins aos quais está pensáveis sem contradição, ou seja, todos os
destinado. Portanto, a causa deste mal é o homem e não "possíveis" (possível, precisamente, é aquilo que não
Deus. Todavia, na economia geral da criação, a escolha envolve contradição). E o intelecto divino é concebido
de um mundo em que está previsto um Adão é, por Leibniz como "a sede das verdades eternas e das
consequentemente, o homem em geral, que peque, deve ideias das quais tais verdades dependem".
ser considerada a melhor escolha aquela que comporta Portanto, é o intelecto divino que torna
a maior positividade, em comparação com as outras possíveis tais possíveis, precisamente ao pensá-los,
possíveis. dando-lhes o que há de real na "possibilidade".
185
26
Os possíveis são infinitos. Eles são organizáveis Muitas vezes, porém, é impossivel ao homem
em sistemas e mundos diversos e inumeráveis que, no encontrar a razão suficiente de cada fato particular,
entanto, se tornados singularmente, são justamente porque teria de reconstruir toda a série infinita de
possíveis, mas que não são co-possiveis junto a outros, particulares que concorreram para determinar aquele
no sentido de que a realização de um implica a não- acontecimento singular.
realização do outro (enquanto se excluem um ao outro). Como vimos, para criar o mundo, Deus se
A existência é a realização e a concretização das baseou no principio de razão suficiente e não no
essências, ou seja, dos possíveis. princípio da não-contradição, pois, em Deus, a razão
Assim, se Deus pensa infinitos mundos suficiente coincide com a escolha do melhor, com a
possíveis, só pode, porém, levar a existência apenas um obrigação moral. Portanto, como muitos estudiosos
deles. Todos os mundos possives tendem à existência, reconheceram, a distinção entre verdades de razão e
mas somente a escolha de Deus decide qual deles deve verdades de fato tem bases metafísicas precisas, e é,
de fato ser promovido à existência. portanto, estrutural e definitiva, malgrado certas
oscilações que podem ser encontradas em Leibniz e,
4.11 As verdades de razão e de fato sobretudo, malgrado as muitas críticas dos intérpretes.
A própria presciência e o próprio conhecimento
Nessa visio geral, podemos compreender perfeito que Deus tem das verdades contingentes não
adequadamente a distinção feita por Leibniz entre mudam a natureza contingente delas e não as
“verdade de razão” e “verdade de fato”, bem como a transformam em verdades de razão. As verdades de
diferente natureza dos princípios que estão na base dos razão baseiam-se na necessidade lógico-metafísica, ao
dois tipos de verdade. passo que as verdades de fato, em todos os casos,
As “verdades de razão” são aquelas cujo oposto permanecem ligadas ao livre decreto divino.
é impossível. Elas expressam o conjunto das verdades
que estão na mente de Deus, as quais se baseiam 4.13 Teoria do conhecimento
sobretudo nos principios de identidade, de niio-
contradição e do terceiro excluido. Juntamente com os Ensaios de Teodiceia, a obra
São verdades de razão todas as verdades da mais vasta de Leibniz é constituida pelos Novos ensaios
matemitica e da geometria e, segundo Leibniz, também sobre o intelecto humano, em que o nosso filósofo critica
as regras da bondade e da justiça (porque não minuciosamente o Ensaio de Locke, que havia negado
dependem da simples vontade divina, sendo também toda forma de inatismo, reduzindo a alma a tábula rasa
elas verdades cujo contrario é contraditório, como as (a uma espécie de folha em branco sobre a qual só a
verdades matemáticas). experiência escreve os vários conteúdos).
Também o homem, quando conhece esses tipos Entretanto, Leibniz não se alinha simplesmente
de verdades necessiráas, baseia-se nos princípios ao lado dos inatistas, como os cartesianos, por exemplo,
apontados acima. mas tenta seguir um caminho intermediário e realizar
As “verdades de fato” se referem, ao invés, aos uma mediação.
acontecimentos contingentes, e são tais que seu oposto Disso decorre uma solução muito original
não é impossivel. (embora não delineada sistematicamente), coerente
Por exemplo, o dado de eu estar sentado é uma com as premissas da metafísica monadológica.
verdade de fato, mas ela não é uma verdade necessária, O antigo axioma escolástico, derivado de
porque o contraditório não é impossível (não é uma Aristóteles é muito caro aos empiristas, dizia: não há
coisa impossível que eu não esteja sentado). nada no intelcto ou na alma que não tenha derivado dos
Portanto, as verdades de fato também poderiam sentidos.
não existir; entretanto, a partir do momento que Leibniz propõe a seguinte correção: não há nada
existem, tem sua precisa razão de ser. no intelecto que não tenha derivado dos sentidos, com
exceção do próprio intelecto.
4.12 O princípio de razão suficiente como O que significa que a alma é "inata a si mesma",
fundamento das verdades de fato que o intelecto e sua atividade existem a priori,
precedendo a experiência. Trata-se de uma antecipação
Essas verdades, portanto, não se baseiam no daquilo que viria a ser a concepção kantiana do
princípio da não-contradição (porque seu oposto é transcendental, embora colocada sobre novas bases.
possível), e sim no principio de "razão suficiente", Mas a essa admissão (já, em si mesma, capaz de
segundo o qual toda coisa que acontece de fato tem uma redimensionar o empirismo lockiano) seguem-se
razão que é suficiente para determinar por que outras, ainda mais importantes. Diz Leibniz que a alma
aconteceu, e por que aconteceu assim e não de outra contém "o ser, o uno, o idêntico, a causa, a percepção,
forma. o raciocínio e uma quantidade de outras noções que os
sentidos não podem fornecer ".
186
27
Então Descartes teria razão? Leibniz, em sua concepção da mônada como desenvolvimento
tentativa de mediação entre as instâncias opostas, pensa rigorosamente concatenado de todos os seus
que se trate não de inatismo concreto, mas muito mais acontecimentos, em grande parte acabam por se
de inatismo virtual: as ideias estão presentes em nós esvaziar.
como inclinações e disposições, precisamente como
virtualidades naturais. A liberdade e a previsão de Deus
Além disso, Leibniz reconhece como originário
(inato) o principio de identidade (e os principios lógicos A questão se torna ainda mais complexa pelo
fundamentais a ele ligados) que está na base de todas as fato de que a monadologia impõe que se concebam os
verdades de razão: "Se quisermos raciocinar, não atos humanos, além de predicados incluídos
poderemos deixar de supor esse principio. Todas as necessariamente no sujeito, também como
outras verdades são demonstráveis [...]." acontecimentos previstos e prefixados por Deus
Depois, porém, com base em sua concepção da eternamente.
mônada como representação da totalidade das coisas, é Desse modo, portanto, a liberdade pareceria
obrigado a admitir também um inatismo para as inteiramente ilusoria. Se desde a eternidade estão
verdades de fato e, em geral, para todas as ideias. Ele previsto que eu pecarei, que sentido tem então minha
reconhece expressamente que existe algum fundamento ação moral? Leibniz não conseguiu responder
na "reminiscência" platônica, e até que é preciso admitir metafisicamente ao problema, limitando-se a dar uma
bem mais do que Platão admitiu. A alma conhece resposta que, ao invés de solução teórica para o
virtualmente tudo: este é o novo sentido da antiga problema, contém uma regra prática, plena de
doutrina de Platão. sabedoria, mas doutrinariamente evasiva:
“Mas sera que é certo desde a eternidade que eu
4.14 O homem e seu destino pecarei? Podeis vos dar por vós só uma resposta: talvez
não. E, sem pensar naquilo que não podeis conhecer e
A liberdade que não pode vos dar qualquer luz, deveis então agir
segundo vosso dever, que conheceis.
Leibniz procura adotar um caminho Mas, dirá algum outro, a que se deve o fato de
intermediário entre a posição de Spinoza, defensor da que este homem cometerá certamente aquele pecado?
necessidade, e a concepção clássica do livre-arbítrio A resposta é fácil: caso contrário, não seria aquele
como faculdade de escolha. Suas conclusões, porém, homem. Desde o princípio dos tempos, Deus vê que
revelam-se bastante ambiguas e a mediação não se haverá certo Judas, cuja noção ou ideia, que Deus
reveste de êxito. possui, contém aquela ação livre futura. Resta, portanto,
Nos Ensaios de Teodicéia ele afirma a questão da esta única questão: por que tal Judas, traidor, que na
liberdade, que as condições da liberdade são três: ideia divina é apenas possível, existe concretamente? A
a) a inteligincia; essa pergunta não é possivel dar uma resposta aqui na
b) a espontaneidade; terra, senão dizendo genericamente que, como Deus
c) a contingincia. achou bom que ele existisse apesar do pecado por ele
A primeira condição é óbvia, dado que um ato previsto, é necessário que esse mal seja compensado
que, não seja inteligente está, por definição, fora da com juros no universo: Deus extrairá dele um bem
esfera da liberdade. maior e, no fim das contas, ver-se-á que essa série de
A segunda condição implica a exclusão de coisas, na qual está abarcada a existência daquele
qualquer coação ou constrição exterior ao agente (e que, pecador, é a mais perfeita entre todos os outros modos
portanto, o ato dependa das motivações interiores do possiveis de existir. Mas como nem sempre é possível
agente). A terceira condição implica a exclusão da explicar a admirável economia daquela escolha,
necessidade metafísica, ou seja, a exclusão de que seja enquanto formos peregrinos nesta terra, basta-nos
contraditório o oposto da ação que se realiza (ou seja, sabê-lo sem compreendê-lo.”
implica a possibilidade de realização da ação oposta).
A liberdade que Leibniz concede à alma é a de
depender só de si mesma e não de outro, o que é bem
diferente do poder de escolher. A liberdade leibniziana,
portanto, simplesmente coincide com a espontaneidade
da mônada.
Na verdade, Leibniz tem acenos sugestivos,
como quando diz que os motivos que nos impelem à
ação não são como pesos sobre a balança, no sentido
de que é muito mais o esprito que determina os
motivos. Mas esses pensamentos, inseridos na ótica da
187
28
GABARITO

QUESTÕES DESCARTES

1. a
2. d
3. c
4. a
5. a
6. c
7. c
8. b
9. a
10. 2/4/16
11. 2/16
12. 1/2/4

QUESTÕES SPINOSA

1. d
2. c
3. 1/8/16

188
29
EMPIRISMO b) as interpretações da natureza, que derivam
ao contrário de uma pesquisa que se desenvolve a partir
das próprias coisas conforme os modos adequados.
1. FRANCIS BACON – CONHECIMENTO Ora, são as interpretações da natureza, e não as
(EMPÍRICO) É PODER antecipações, que constituem o verdadeiro saber,
obtido com o verdadeiro método, o qual é um Novum
O filósofo da era industrial organum, um instrumento novo e eficaz para alcançar a
Francis Bacon verdade. Trata-se, portanto, de seguir propriamente
(1561-1626) foi um duas fases:
parlamentar inglês que 1) a primeira consiste em limpar a mente de
se destacou como um falsas noções (idola) que invadiram o intelecto humano;
grande cientista. Ele 2) a segunda consiste na exposição e justificação
acreditava que ciência das regras do novo método.
deveria servir para o
progresso e bem-estar A teoria dos ídolos
das pessoas. Por isso,
para ele, conhecimento é poder. A primeira função da teoria dos ídolos é a de
Como era típico de sua época, era crítico de tornar os homens conscientes das falsas noções que
Aristóteles e contrário ao silogismo dedutivo, fruto da obscurecem sua mente e barram o caminho para a
mera argumentação abstrata. Para ele o conhecimento verdade.
deveria se fundar nas bases solidas do experimento, do Os gêneros de ídolos que assediam a mente são
método indutivo de investigação. quatro:
No Novum Organum, que é sua obra mais 1) os ídolos da tribo, fundados sobre a própria
conhecida, escreve Francis Bacon: natureza humana e dependentes do fato de que o
"É preciso considerar ainda a força, a virtude e os efeitos intelecto humano mistura sempre a própria natureza
das coisas descobertas, que não se apresentam tão claramente em com a das coisas, deformando-a e transfigurando-a. Isto
outras coisas como nestas três invenções, que eram desconhecidas é, não existem conexões entre a natureza do homem e
para os antigos e cuja origem, embora recente, é obscura e inglória: das coisas;
a arte da impressão, a pólvora e a bússola. Com efeito, essas três 2) os ídolos da caverna, que derivam do
coisas mudaram a situação do mundo todo, a primeira nas letras, indivíduo singular, e precisamente da natureza
a segunda na arte militar, a terceira na navegação; provocaram especifica da alma e do corpo do indivíduo singular, ou
mudanças tão extraordinárias que nenhum império, nem seita, então de sua educação e de seus hábitos, ou ainda de
nem estrela parece ter exercido maior influência e eficácia sobre a outros casos fortuitos. Ou seja, o indivíduo não deve
humanidade do que essas três invenções." analisar a natureza a partir de suas crenças particulares;
Se Galileu, entre outras coisas, teorizou a 3) os ídolos do foro ou do mercado,
natureza do método científico; se Descartes, entre dependentes dos contatos recíprocos do gênero
outras coisas, proporá uma metafísica que influenciou humano, que se insinuam no intelecto por via das
extremamente a ciência; Bacon, por seu turno, foi o combinações impróprias das palavras e dos nomes.
filósofo da era industrial, pois expressou de modo Com isso ele quer dizer que não se descobre o que a
muito eficaz e penetrante a influência das descobertas natureza é apenas conversando com os outros;
científicas sobre o delineamento da vida do homem, 4) os ídolos do teatro, que penetram na alma
com as consequências que delas derivam. humana por obra das diversas doutrinas filosóficas e
das péssimas regras de demonstração. Aqui ele nos
O método para alcançar o verdadeiro saber alerta para não acreditarmos em falsas ideias de
doutrinas filosóficas ou científicas.
Conforme Bacon, ciência e poder coincidem,
no sentido de que se pode agir sobre fen6menos apenas O objetivo da ciência
quando se conhecem suas causas. Para remediar os
defeitos do saber de seu tempo, tecido de axiomas Segundo Bacon, a obra e o fim da ciência
abstratos e de lógica silogística, Bacon propõe a humana consistem na descoberta da forma de uma
importante distinção entre: natureza dada. Sendo essa forma a causa formal, a única
a) as antecipações da natureza, que são que ele admite (diferentemente de Aristóteles que
noções tomadas de poucos dados habituais e sobre as admitia outras três causas: a material, a eficiente e a
quais a opinião comum facilmente dá seu próprio final), pelo que conhecer as formas das várias coisas ou
consentimento; “naturezas” significa penetrar nos segredos profundos
da natureza e tornar o homem poderoso sobre ela.
189
1
A ideia de forma aqui pressupõe os conceitos d) A filosofia de Francis Bacon preconiza uma forma
de: de saber superior, por meio da qual os homens sejam
a) Processo latente, que é o processo continuativo, capazes de transcender das coisas mundanas para a
a lei, que regula a geração e a produção do fenômeno. esfera divina. Atualmente, a proliferação de
b) Esquematismo latente, que é a estrutura, a movimentos espiritualistas no mundo ocidental atesta a
essência de um fenômeno natural. Em tal sentido, validade da filosofia baconiana, uma vez que sua
“compreender a forma” significa propriamente proposta está se efetivando.
compreender a estrutura de um fenômeno e a lei que e) A proposta de Francis Bacon não deve ser entendida
regula seu processo. isoladamente, mas, isto sim, em correspondência com
Somente tomando esses cuidados o homem as transformações culturais, econômicas, políticas e
estará apto a explorar os mistérios da natureza usando sociais que ocorriam em seu tempo. Por isso, não tem
o método correto, qual seja, o da experimentação, que valor para a atualidade, uma vez que esta é marcada por
consiste em fazer uma hipótese, testá-la, buscando a numerosos conflitos que atestam o pouco apreço que
maior quantidade de dados possível, e somente depois temos pelo conhecimento.
confirmar sua veracidade, podendo torná-la lei geral.
2. São de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a
mente humana. Para melhor apresentá-los, assinalamos
QUESTÕES os nomes: Ídolos da Tribo, Ídolos da Caverna, Ídolos
1. O saber, para Bacon, é apenas um meio mais do Foro e Ídolos do Teatro.”
BACON. Novum Organum..., São Paulo: Nova Cultural, 1999.
vigoroso e seguro para conquistar o poder sobre a
natureza e não tem valor apenas em si mesmo. [...] Por É correto afirmar que para Bacon:
outro lado, sua filosofia não pretende entregar o saber a) Os Ídolos da Tribo e da Caverna são os
ao homem como instrumento para o domínio dos conhecimentos primitivos que herdamos dos nossos
semelhantes; ao contrário, desejou que a ciência servisse antepassados mais notáveis.
à humanidade em geral, na sua permanente luta contra b) Os Ídolos do Teatro são todos os grandes atores que
a natureza, deixando de ser concebida simplesmente
nos influenciam na vida cotidiana.
como contemplação de uma ordem de coisas eternas e
perfeitas, supostamente criadas por um ser superior. c) Os Ídolos do Foro são as ideias formadas em nós por
ANDRADE, José Aluysio Reis de. Vida e obra. In: Bacon. São Paulo: Nova meio dos nossos sentidos.
Cultural, 2000. p. 12-13. (Os pensadores.)
O texto acima refere-se à tese desenvolvida pelo d) Através dos Ídolos, mesmo considerando que temos
filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), segundo a a mente bloqueada, podemos chegar à verdade.
qual saber é poder. e) Os Ídolos são falsas noções e retratam os principais
Assinale a alternativa que confronta corretamente esta motivos pelos quais erramos quando buscamos
concepção baconiana com questões sociais ou conhecer.
ambientais da época atual.
a) Francis Bacon defende o conhecimento como um
3. A imagem do homem que triunfa sobre a natureza
meio para melhorar a vida humana com a geração de
tecnologias que emancipem o homem do domínio da bruta é significativa para se pensar a filosofia de Francis
natureza. Esse modelo de relação entre homem e Bacon (1561-1626). Com base no pensamento de
natureza, porém, desenvolvido pela civilização Bacon, considere as afirmativas a seguir.
ocidental nos últimos séculos, resultou em graves I. O homem deve agir como intérprete da natureza para
desequilíbrios ecológicos. melhor conhecê-la e dominá-la em seu benefício.
b) A filosofia de Francis Bacon é responsável pelos II. O acesso ao conhecimento sobre a natureza depende
rumos econômicos, culturais e sociais da civilização
da experiência guiada por método indutivo.
ocidental. Por isso, devemos a esse filósofo inglês as
comodidades da vida contemporânea, como o III. O verdadeiro pesquisador da natureza é um homem
computador, o automóvel e tantos outros produtos que parte de proposições gerais para, na sequência e à
gerados pela tecnologia, e sem os quais nossa existência luz destas, clarificar as premissas menores.
seria impensável. IV. Os homens de experimentos processam as
c) Com sua tese de que saber é poder, Francis Bacon informações à luz de preceitos dados a priori pela razão.
defende uma sociedade marcada pela hierarquia do Assinale a alternativa correta.
conhecimento, isto é, uma divisão social em que os
intelectuais utilizem seu conhecimento para dominar os a) Somente as afirmativas I e II são corretas.
ignorantes. Essa, aliás, é a causa de muitos conflitos b) Somente as afirmativas II e IV são corretas.
sociais, políticos e culturais no mundo contemporâneo. c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
190
2
d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas. a) Bacon estabelece que a melhor maneira de explicar
e) Somente as afirmativas I, III e IV são corretas. os fenômenos naturais é recorrer aos princípios inatos
da razão.
4. [...] é necessário, ainda, introduzir-se um método b) Através do conhecimento científico, o homem
completamente novo, uma ordem diferente e um novo aprende a aceitar o domínio dos princípios metafísicos
processo, para continuar e promover a experiência. Pois de causalidade sobre a natureza.
a experiência vaga, deixada a si mesma [...] é um mero c) O conhecimento da natureza depende do poder do
tateio, e presta-se mais a confundir os homens que a homem. Assim um rei conhece mais sobre a natureza
informá-los. Mas quando a experiência proceder de do que um pobre estudante.
acordo com leis seguras e de forma gradual e constante, d) Através da contemplação - observação – da natureza
poder-se-á esperar algo de melhor da ciência. o homem aprende a conhecê-la e, então, reúne
[...] condições para dominar a natureza.
A infeliz situação em que se encontra a ciência humana e) Devemos ser práticos e obedecer à natureza, pois o
transparece até nas manifestações do vulgo. Afirma-se conhecimento das relações de causa e efeito é
corretamente que o verdadeiro saber é o saber pelas impossível e sempre frustrante.
causas. E, não indevidamente, estabelecem- se quatro
coisas: a matéria, a forma, a causa eficiente, a causa final. 6. O pensamento moderno caracteriza-se pelo
Destas, a causa final longe está de fazer avançar as crescente abandono da ciência aristotélica. Um dos
ciências, pois na verdade as corrompe; mas pode ser de pensadores modernos desconfortáveis com a lógica
interesse para as ações humanas. dedutiva de Aristóteles – considerando que esta não
(BACON, F. Novo Organum ou verdadeiras indicações acerca da permitia explicar o progresso do conhecimento
interpretação da natureza. São Paulo: Abril Cultural. 1973.)
científico – foi Francis Bacon. No livro Novum
Com base no texto e no pensamento de Francis
Organum, Bacon formulou o método indutivo como
Bacon acerca da verdadeira indução experimental como
alternativa ao método lógico-dedutivo aristotélico.
interpretação da natureza, é correto afirmar.
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o
a) Na busca do conhecimento, não se podem encontrar
pensamento de Bacon, é correto afirmar que o método
verdades indubitáveis, sem submeter as hipóteses ao
indutivo consiste
crivo da experimentação e da observação.
a) na derivação de consequências lógicas com base no
b) A formulação do novo método científico exige
corpo de conhecimento de um dado período
submeter a experiência e a razão ao princípio de
histórico.
autoridade para a conquista do conhecimento.
b) no estabelecimento de leis universais e necessárias
c) O desacordo entre a experiência e a razão,
com base nas formas válidas do silogismo tal como
prevalecendo esta sobre aquela, constitui o fundamento
preservado pelos medievais.
para o novo método científico.
c) na postulação de leis universais com base em casos
d) Bacon admite o finalismo no processo natural, por
observados na experiência, os quais apresentam
considerar necessário ao método perguntar para que as
regularidade.
coisas são e como são.
d) na inferência de leis naturais baseadas no testemunho
e) O estabelecimento de um método experimental,
de autoridades científicas aceitas universalmente.
baseado na observação e na medida, aprimora o método
e) na observação de casos particulares revelados pela
escolástico.
experiência, os quais impedem a necessidade e a
universalidade no estabelecimento das leis naturais.
5. “Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que,
sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a 7. Em sua obra Nova Atlântida, Francis Bacon
natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E descreve uma instituição imaginária chamada Casa de
o que à contemplação apresenta-se como causa é regra Salomão, cuja finalidade “[...] é o conhecimento das
na prática.” causas e dos segredos dos movimentos das coisas e a
BACON. Novum Organum..., São Paulo: Nova Cultural, 1999.
ampliação dos limites do império humano para a
Tendo em vista o texto acima, assinale a alternativa
realização de todas as coisas que forem possíveis.”
correta:
BACON, Francis. Nova Atlântida. São Paulo: Nova Cultural.

191
3
Sobre a concepção de ciência em Francis Bacon, é 2. ISAAC NEWTON E O GRANDE RELÓGIO
correto afirmar: CELESTE
a) A ciência justifica-se por si própria e está
desvinculada da necessidade de proporcionar
conhecimento sobre a natureza.
b) O objetivo da ciência é fornecer a quem a controla
um instrumento de domínio social sobre os outros
homens.
c) Para a ciência, o enfrentamento das questões
econômicas e sociais tem maior relevância do que o
conhecimento da natureza, porque proporciona uma
vida boa para os indivíduos.
d) A origem da ciência está dada em pressupostos a
priori, sendo desnecessário o recurso ao saber prático e O grande cientista que completou a revolução
empírico. científica do século XVII foi Isaac Newton (1642 –
e) A ciência visa o conhecimento da natureza com a 1727). Ele também era fascinado pelos inventos
mecânicos de sua época, quando criança construiu
intenção de controle e domínio sobre ela para que o pipas, moinhos, e até um relógio d’agua.
homem possa ter uma vida melhor. Na universidade ele conheceu a filosofia
mecânica de Descartes e seus trabalhos de geometria, a
8. “[...] Aristóteles estabelecia antes as conclusões, não explicação matemática de Galileu para o universo, e as
consultava devidamente a experiência para leis de Kepler sobre os movimentos planetários.
estabelecimento de suas resoluções e axiomas. E tendo, Quando estudou a luz usou o método de
observação e experimentação de Francis Bacon, e
ao seu arbítrio, assim decidido, submetia a experiência
descobriu que as cores são uma propriedade da luz e
como a uma escrava para conformá-la às suas não dos objetos.
opiniões”. Newton se vale das duas grandes concepções de
(BACON, Francis. Novum Organum. Trad. de José Aluysio Reis ciência de seu tempo, a matematização e a experiência.
de Andrade. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 33.) Mas ele não é apenas um seguidor dessas diferentes
Com base no texto, assinale a alternativa que apresenta concepções, ele as unifica e as supera, na síntese que faz
corretamente a interpretação que Bacon fazia da do empirismo de Francis Bacon e do racionalismo de
filosofia aristotélica. Descartes.
a) A filosofia aristotélica estabeleceu a experiência Apesar de se utilizar da filosofia mecânica,
como o fundamento da ciência. Newton não gostava do materialismo que estava por
trás dela, do fato desta filosofia ter tirado Deus da
b) Aristóteles consultava a experiência para estabelecer explicação do funcionamento do mundo.
os resultados e axiomas da ciência. Na base de todo o pensamento de Newton
c) Aristóteles afirmava que o conhecimento teórico estava a crença em um Deus racional que havia criado
deveria submeter-se, como um escravo, ao um universo racional que poderia ser descoberto pela
conhecimento da experiência. análise e pela matemática.
d) Aristóteles desenvolveu uma concepção de filosofia Em 1687, chegara o tempo dele descrever
racionalmente a grande obra divina que era o universo,
que tem como consequência a desvalorização da
na sua grande obra Os princípios matemáticos da filosofia
experiência. natural, popularmente conhecido como Principia.
e) Aristóteles valorizava a experiência, por considerá-la Kepler já havia dito que as órbitas planetárias
um caminho seguro para superar a opinião e atingir o eram elípticas, mas não explicou o motivo. No Principia,
conhecimento verdadeiro. Newton explica tudo com a sua teoria da gravitação
universal.
Perceba a grandiosidade de sua obra, ela não
explica apenas os fenômenos terrestres, mas todo o
universo. Ele diz até como calcular a quantidade de
massa de cada planeta. Explica o motivo da terra ser
achatada nos polos e porque há uma saliência na região
do equador. Ele descreve as leis de funcionamento do
universo. É algo extraordinário.
192
4
O Principia foi a primeira obra científica a 3. JOHN LOCKE: EMPIRISMO E
apresentar um trabalho quantitativo, exato, de um LIBERALISMO POLÍTICO
sistema matemático, baseado em experimentação e
observação crítica. Ele concluiu o processo de O inglês John
explicação matemática do universo, desde o cair de uma Locke (1632 – 1704) vem
maçã, ao movimento dos planetas. de uma família de
comerciantes puritanos,
estudou na universidade
de Oxford, onde se
formou médico, e sempre
esteve envolvido na
política. Lá ele teve
contato com as ideias de
Francis Bacon e
Descartes.
Era contra a monarquia absolutista e por isso
teve que se exilar na Holanda em 1683 no final do
reinado de Carlos II, contra o qual ajudou a elaborar
uma conspiração.
Com a revolução gloriosa, e a ascensão ao trono
do holandês Guilherme de Orange, ele volta à Londres
e pode se dedicar inteiramente à filosofia.
Mesmo já vindo se desenvolvendo antes dele,
muitos o consideram o pai do empirismo, mas não há
dúvidas de sua paternidade quanto ao liberalismo
político.
A obra que trata sobre a capacidade de
conhecermos é Ensaios acerca do entendimento humano,
onde defende o empirismo afirmando que ao contrário
do que dizia Descartes, não temos ideias inatas, nosso
conhecimento é adquirido por meio dos sentidos
através da experiência.
Seu objetivo nessa obra é investigar, não o que
conhecemos, mas o que, como, e os limites do processo
de conhecer. Sua preocupação é em saber como a
mente funciona.
Segundo ele, a mente do ser humano ao nascer
Apesar da grandiosidade do sistema é como uma folha de papel em branco/tábula rasa,
newtoniano, ele próprio admitia que não sabia o que era onde vão sendo impressos conhecimentos/ideias ao
a gravidade, apenas como ela atua. Por isso foi acusado longo da vida, que nos chegam por meio dos sentidos.
de usar em sua teoria conceitos medievais como a Esse conhecimento nos chega através de uma
magia. Mas essas críticas em nada abalaram a experiência sensível imediata/sensação e é
grandiosidade de sua obra. processado internamente por meio da reflexão.
Para ele, espaço e tempo são absolutos, tendo Adquirimos ideias simples pelos sentidos e elaboramos
conhecimento do que acontecia num determinado as complexas através da reflexão.
momento era possível calcular o que iria acontecer em Mas por entender que a matemática é um
outro. Os eventos/movimentos eram determináveis, conhecimento válido em termos lógicos, Locke não
como em uma máquina, um grande relógio para ser pode ser considerado um empirista radical.
mais preciso. Descobrindo-se a causa de um efeito, Agora vejamos o seu empirismo mais
poder-se-ia prever os efeitos seguintes, como uma detalhadamente.
grande engrenagem de causas e efeitos.
Inaugurava-se então uma grande era de 3.1 Empirismo
inovações, onde os homens fariam uso das leis da
natureza para controlar seus destinos. A revolução Objetivo da filosofia moderna
industrial muito dificilmente teria acontecido sem as
ideias de Newton. Bacon escrevera que “introduzir um uso melhor
e mais perfeito do intelecto” constitui uma necessidade
193
5
imprescindível, e procurara satisfazer parcialmente essa uma mentalidade completamente nova, que Locke
necessidade do modo como já vimos. contribui para impor definitivamente.
Locke assume esse programa, desenvolvendo-o Todavia, a concordância com Descartes se
e levando-o à sua perfeita maturação. Para ele, porém, rompe no momento em que se trata de estabelecer "de
não se trata de examinar o emprego do intelecto que modo essas ideias vêm ao espirito". Descartes
humano relativamente a alguns setores ou âmbitos do alinhara-se em favor das ideias inatas. Locke, ao
conhecimento, e sim o próprio intelecto, suas contrário, nega qualquer forma de inatismo e procura
capacidades, suas funções e seus limites. Não se trata, demonstrar, de modo sistemático e com
portanto, de examinar os objetos, mas sim de examinar pormenorizada riqueza analítica, que as ideias derivam
o próprio sujeito. sempre e somente da experiência.
Desse modo, o centro do interesse da filosofia A tese de Locke é a seguinte:
moderna vai-se especificando sempre melhor, ao 1) não existem ideias nem princípios inatos;
mesmo tempo em que vai se delineando cada vez mais 2) nenhum intelecto humano, por mais forte e
claramente o caminho que levará, como meta final, ao vigoroso que seja, é capaz de forjar ou inventar (ou seja,
criticismo kantiano. criar) ideias, bem como não é capaz de destruir aquelas
O objetivo é o de conseguir estabelecer a que existem;
gênese, a natureza e o valor do conhecimento humano, 3) consequentemente, a experiência constitui a
particularmente o de definir os limites dentro dos quais fonte e, ao mesmo tempo, o limite, ou seja, o horizonte,
o intelecto humano pode e deve se mover e quais são ao qual o intelecto permanece vinculado.
as fronteiras que ele não deve ultrapassar, ou seja, quais
são os âmbitos que lhe estão estruturalmente fechados. O intelecto não possui ideias inatas

A ideia como conteúdo do pensamento A crítica do “inatismo”, portanto, é considerada


por Locke como ponto fundamental. Por isso, dedica-
Tradição empirista inglesa e "ideia " cartesiana lhe todo o primeiro livro do Ensaio.
são os componentes de cuja síntese nasce o novo A posição dos inatistas que Locke critica não é
empirismo lockiano. somente a dos cartesianos, mas também de todos
Mas, antes de penetrar no âmago do problema, aqueles que, sob alguma forma, sustentam a presença
é oportuno fazer algumas observações sobre esse na mente de conteúdos anteriores a experiência, nela
termo, que tem história gloriosa. impressos desde o primeiro momento de sua existência.
Nós hoje usamos comumente o termo "ideia" Locke recorda que o ponto básico ao qual se
na acepção que Descartes e Locke consagraram, caindo referem os defensores do inatismo das ideias e dos
facilmente no erro de crer que essa seja a única e obvia princípios (teóricos ou práticos) é o "consenso
acepção desse termo. Entretanto, ela constitui o ponto universal" de que ambos desfrutam junto a todos os
de chegada de um debate metafisico e gnosiológico homens.
iniciado por Platão (e, em certos aspectos, ainda antes), Os argumentos de fundo em que Locke se apoia
continuado por Aristóteles e, depois, pelos para refutar essa prova são os seguintes:
neoplatônicos, os Padres da Igreja, os escolásticos e a) O “consenso universal” dos homens sobre
alguns pensadores renascentistas. certas ideias e certos princípios (considerado, mas não
O termo "ideia" é a transliteração de um termo concedido que exista) poder-se-ia explicar também sem
grego que significa "forma" (sinônimo de eidos), a hipótese do inatismo, simplesmente mostrando que
particularmente (de Platão em diante) forma ontológica, existe outro modo de chegar a ele.
significando, portanto, uma "essência substancial" e um b) Mas, na realidade, o pretenso consenso
"ser", e não um "pensamento". Na fase final do universal não existe, como fica evidente no fato de que
platonismo antigo, as ideias tornam-se "pensamentos as crianças e os deficientes não tem de modo nenhum
do Intelecto supremo" e, portanto, paradigmas consciência do princípio de identidade e de não-
supremos, nos quais coincidem ser e pensamento, ou contradição, nem dos princípios éticos fundamentais.
seja, paradigmas metafísicos. c) Para escapar a essa objeção seria absurdo
Os debates sobre o problema dos universais e sustentar que as crianças e os deficientes tem esses
as diversas soluções propostas abalaram fortemente a princípios de forma inata, mas não são conscientes
antiga concepção platônica, abrindo caminho para disso. Com efeito, é absurdo dizer que há verdades
proposições radicalmente novas. impressas na alma, mas que elas não são percebidas,
A escolha cartesiana do termo "ideia" para posto que sempre coincidem a presença de um
indicar um simples conteúdo da mente e do conteúdo na alma e a consciência dessa presença.
pensamento humano marca o total esquecimento da d) A afirmação de que existem princípios morais
antiga problemática metafisica da ideia e o advento de inatos é desmentida pelo fato de que alguns povos se
comportam exatamente ao contrário daquilo que tais
194
6
princípios postulariam, ou seja, praticando ações que “Não vejo, portanto, nenhuma razão para crer
para nós são criminosas sem experimentar remorso que a alma pense antes que os sentidos lhe tenham
algum, o que significa que eles consideram seu fornecido ideias nas quais pensar. E, à medida que as
comportamento como não sendo de modo nenhum ideias aumentam de número e são no espírito, a alma,
criminoso e sim como perfeitamente lícito. com o exercício, melhora
e) Nem da própria ideia de Deus pode-se dizer sua faculdade de pensar
que todos a possuem, porque há povos que "não tem em todas as suas várias
sequer um nome para designar Deus, não possuindo partes. Em seguida,
religião nem culto". compondo essas ideias e
refletindo sobre suas
O intelecto não pode criar nem inventar ideias próprias operações,
aumenta seu patrimônio,
Poder-se-ia levantar a hipótese de que, mesmo bem como sua facilidade
não as contendo em forma inata, o intelecto poderia de recordar, raciocinar e
"criar" as ideias ou, se assim se preferir, poderia utilizar outros modos de pensar”.
"inventa-las". Mas a hipótese é categoricamente Eis outro texto que se tornou muito famoso, no
excluída por Locke. Nosso intelecto pode combinar de qual Locke retoma a antiga tese da alma como tábula
vários modos as ideias que recebe, mas não pode de rasa, na qual só a experiência inscreve os conteúdos:
modo nenhum dar-se a si próprio as ideias simples, “Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um
como também não pode, desde que as tenha, destruí- papel branco desprovido de todos os caracteres, sem quaisquer
las, aniquilá-las ou apagá-las, como já foi dito. ideias; como ela será suprida? De onde lhe provem este vasto
Escreve Locke: estoque, que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou
''[...] nem mesmo o gênio mais elevado ou o nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos
intelecto mais vasto, por mais vivo e variado que seja o os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa
seu pensamento, tem o poder de inventar ou forjar uma palavra, da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela
só ideia simples nova no espírito, que não seja fundado e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento.”
apreendida dos modos já mencionados, como também (Ensaio sobre o entendimento humano. Livro II, cap. I).
não pode a força do intelecto destruir as ideias que já
existem. As ideias e a interpretação do conhecimento
O domínio do homem sobre esse pequeno
mundo de seu intelecto é mais ou menos o mesmo que A experiência é de dois tipos:
ele tem sobre o grande mundo das coisas visíveis, onde 1) externa, da qual derivam as ideias simples de
seu poder, mesmo exercido com arte e habilidade, nada sensação (extensão, figura, movimento etc.);
mais consegue além de compor e dividir os materiais 2) interna, da qual derivam as ideias simples de
que estão à disposição, mas nada pode fazer para reflexão (prazer, dor etc.).
fabricar a mínima partícula de matéria nova ou para Ora, Locke chama de qualidade o poder que as
destruir um átomo sequer daquela que já existe. coisas possuem de produzir as ideias em nós, e opera a
Quem quer que tente forjar em seu intelecto distinção entre:
uma ideia simples não recebida de objetos externos a) qualidades primarias e reais dos corpos
através dos sentidos ou da reflexão sobre as operações (extensão, número, movimento etc.), das quais as ideias
do seu espírito, encontrará em si essa mesma correspondentes que se produzem em nós são cópias
incapacidade. exatas;
Gostaria que alguém tentasse imaginar um b) qualidades secundarias, que constituem os
gosto que nunca tenha afetado seu paladar, ou fazer poderes de combinação das primarias (cores, sabores
uma ideia de algum perfume cujo odor nunca tenha etc.) e são em parte subjetivas, isto e, não se assemelham
sentido; quando puder fazê-lo, eu estarei pronto a exatamente às qualidades primarias dos corpos.
concluir que um cego pode ter ideias das cores e um A mente tem o poder de operar tanto
surdo noções distintas dos sons". combinando as ideias entre si e formando assim ideias
complexas, como separando algumas ideias de outras
O intelecto humano é como uma tábula rasa para formar ideias gerais. As ideias complexas são de
três tipos:
O intelecto, portanto, recebe o material do a) ideias de modos, que são alterações das
conhecimento unicamente da experiência. A alma só substâncias;
pensa depois de ter recebido esse material. b) ideias de substâncias, que nascem do
Diz Locke: hábito de supor um substrato em que subsistem
algumas ideias simples que caminham sempre juntas;
195
7
c) ideias de relações, que nascem do Estado de Natureza
confronto que o intelecto institui entre ideias.
Locke admite também uma ideia geral de Na mesma linha de Hobbes, e contrário a
substância, obtida por abstração, e não nega a existência Aristóteles, a teoria individualista de Locke afirma que
de substâncias, mas a capacidade da mente humana de o homem é anterior à sociedade e ao Estado.
ter ideias claras e distintas. Mas diferentemente de Hobbes, ele afirma que
Ligado ao problema da substância está a seguir realmente, historicamente, existiu um estágio pré-social
o da essência. Para Locke a essência real seria a própria e político onde o homem vivia em liberdade e igualdade,
estrutura das coisas, mas nós conhecemos apenas a que não era um estado de guerra, mas de relativa paz,
essência nominal, que consiste no conjunto de chamado de estado de natureza.
qualidades que uma coisa deve ter para ser chamada Nesse estado o homem já era um ser racional
com determinado nome. detentor de propriedade, esta entendida em sentido
Em tal sentido a abstração, que para as amplo como sua vida, liberdade e seus direitos
metafísicas clássicas era o processo fundamental para naturais. Locke, assim como Hobbes, também foi um
captar a essência, em Locke torna-se uma parcialização dos grandes defensores do jusnaturalismo (jus = direito,
de outras ideias mais complexas. O geral e o universal naturalismo = natural).
não pertencem à existência real das coisas, mas são
invenções do intelecto e se referem apenas aos sinais, A propriedade
sejam eles palavras (nomes = Locke é um nominalista)
ou ideias. Em um sentido mais restrito, a propriedade
O conhecimento consiste na percepção da para Locke é também a posse de bens, sejam eles
conexão e do acordo, ou do desacordo e do contraste, móveis ou imóveis. Os burgueses quase deliraram de
entre nossas ideias. Esse tipo de acordo ou de alegria quando leram o que ele escreveu sobre a
desacordo pode ser percebido em três modos propriedade, que era muito mais favorável a eles do que
diferentes, correspondentes a três diversos graus de a concepção de Hobbes, além de ser algo inovador para
certeza: a época.
1) por intuição, isto e, por evidencia imediata, Para Hobbes, a propriedade não existia em
e este modo de conhecimento é o mais claro e certo: estado de natureza tornando-se somente possível com
com ele captamos nossa existência; a criação do estado, por isso o soberano, a causa de sua
2) por demonstração, isto é, por meio da existência, podia dela dispo como bem lhe conviesse.
intervenção de conhecimento outras ideias concatenadas Para Locke, não. A propriedade já era possível
logicamente (por meio do raciocinar: com ele captamos desde o estado natureza como um direito do homem. E
Deus); por ser um direito existente antes mesmo da criação da
3) por sensação, este tipo de conhecer, o sociedade, não pode ser violado pelo Estado. Que
menos claro e o menos certo, e o que se refere a bacana, não é?
existência das coisas externas. Em estado de natureza o homem era livre e
dono de sua pessoa e de seu trabalho. E era este o
3.2 Liberalismo político critério de aquisição de propriedade. A terra foi dada
por Deus aos homens, mas pode se apropriar dela quem
Assim como não há ideias inatas, não existe lhe imprimir o seu trabalho. Quem trabalha num
também o direito inato, divino de governar. Locke era pedaço de terra se torna seu proprietário, não podendo
contra um governo absoluto, que tudo pudesse fazer, ninguém mais ter direito sobre esse pedaço.
desrespeitando os direitos dos indivíduos e invadindo a Desse modo, se só posso ser dono do que
esfera da sua intimidade. conseguir trabalhar, então, minha propriedade será
Assim como Hobbes, ele vai tratar sobre a limitada, porque não poderei trabalhar em grandes
origem e a legitimidade do Estado, mas via diferir deste extensões de terra, certo? Errado.
em muitos aspectos. Cm a invenção do dinheiro, o que era útil, mas
Suas ideias políticas estão contidas no Segundo perecível, como a carne, o leite, arroz, trigo, etc, pôde
tratado sobre o governo, obra que foi escrita para justificar ser trocado por moedas de ouro e prata, ou melhor,
e legitimar a revolução gloriosa, investigando até onde pôde ser comprado. O dinheiro possibilitou o
deve ir o poder de governar e para que ele serve. comércio, e uma nova forma de adquirir propriedade,
Essa obra é um marco histórico no pensamento além do trabalho.
político ocidental, pois serviu de base para as principais De limitada, a propriedade pôde se tornar
revoluções liberais da Idade Moderna. O Segundo tratado ilimitada, basta ter dinheiro para comprá-la. Aqui,
sobre o governo é o primeiro e mais completo trabalho Locke legitima a acumulação de riquezas e, por
sobre o Estado liberal. conseguinte, a desigualdade.
196
8
Contrato social Direito de resistência

O estado de natureza pensado por Locke, não Quando o governo deixa de preservar o bem
era um estado de guerra como em Hobbes, havia até comum, e começa a exercer o poder em interesse
uma relativa paz. Então, por que fazer um pacto para próprio, ele se torna tirânico, e a sociedade tem o direito
criar o Estado? legítimo de se rebelar contra ele, podendo usar até
Para estabelecer leis gerais aceitas por todos, mesmo a força.
resolver os conflitos que possam aparecer, com
imparcialidade e força para fazer valer as decisões. Não Conclusão
se pode deixar que os particulares resolvam sozinhos os
seus conflitos, pois não haverá justiça no resultado. John Locke foi um grande filósofo, tanto por
Disso decorre que seus objetivos principais seus trabalhos em teoria do conhecimento, quanto em
são: política. A teorização da defesa dos direitos naturais,
1) Preservar os direitos naturais, entendidos como a vida, a liberdade, e a propriedade dos indivíduos
como a propriedade em sentido amplo, ou seja, vida, como fim a ser perseguido pelo Estado, faz dele o pai
liberdade, e a propriedade em sentido estrito (posse de do liberalismo político.
bens), e; Suas ideias políticas justificaram a Revolução
2) Proteger a comunidade política dela mesma Gloriosa, a revolução norte-americana, e a Revolução
(evitar guerra civil) e de inimigos externos. Francesa.
Em Hobbes, o contrato social é um pacto de Não tem como entender a política de nosso
submissão. Em Locke, é um pacto de consentimento. Os tempo sem estudá-lo, pois suas ideias estão na base de
homens de livre e espontânea vontade criam o Estado nosso sistema político.
para preservar os direitos que já possuíam em estado de
natureza (direitos naturais). QUESTÕES

Sociedade política ou civil 1. A maneira pela qual adquirimos qualquer


conhecimento constitui suficiente prova de que não é
A passagem do estado de natureza para o inato.
Estado se dá pelo consentimento unânime de todos os (John Locke, Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo:
indivíduos, mas o mesmo não ocorre com a escolha da Nova Cultural, 1988, p.13.)
forma de governo, que deve ser uma escolha majoritária O empirismo, corrente filosófica da qual Locke fazia
(pela maioria). parte,
No caso da Inglaterra, pós revolução gloriosa, a) afirma que o conhecimento não é inato, pois sua
impera um sistema misto de governo, onde o rei aquisição deriva da experiência.
representa a monarquia, a Câmara dos Lordes, a b) é uma forma de ceticismo, pois nega que os
oligarquia, e a Câmara dos Comuns, a democracia. Mas, conhecimentos possam ser obtidos.
mesmo para um homem comum participar desta c) aproxima-se do modelo científico cartesiano, ao
última, era necessário ter terras e dinheiro, pois só assim negar a existência de ideias inatas.
teria condições de participar da vida política. A d) defende que as ideias estão presentes na razão desde
democracia pensada por Locke é, nessa medida, o nascimento.
exclusiva e elitista.
Na teoria política de Locke, o Estado não é 2. (UEM) O filósofo inglês John Locke (1632-1704)
invasivo na regulação da vida do indivíduo em construiu uma teoria político-social da propriedade que
sociedade, devendo haver liberdade de expressão, de é, até hoje, uma das referências principais sobre o tema.
pensamento, e de culto, e principalmente, não deve Afirma ele:
interferir na atividade econômica. “A natureza fixou bem a medida da propriedade pela
Ele existe apenas para preservar o bem comum,
qual seja, a propriedade dos indivíduos, que extensão do trabalho do homem e conveniências da
consentiram viver em sociedade justamente para esse vida. Nenhum trabalho do homem podia tudo dominar
fim. Fora isso, o estado deve deixar o indivíduo em paz. ou de tudo apropriar-se. [...] Assim o trabalho, no
Para Locke, o Estado só se legitima quando começo (das sociedades humanas), proporcionou o
existe o controle do governo pela sociedade, quando o direito à propriedade sempre que qualquer pessoa
governo é comprometido com a proteção do direito de achou conveniente empregá-lo sobre o que era
propriedade (bem comum), e quando há o controle do
comum.”
executivo pelo legislativo.
(LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo civil. São Paulo:
Abril Cultural, 1983, p. 48; 45; 52)
197
9
Em consonância com essa concepção de propriedade à liberdade e aos bens necessários para a conservação
do filósofo, é correto afirmar que de ambas. Esses bens são adquiridos pelo trabalho.
01) o direito à propriedade é, prioritariamente, fruto do d) Na teoria do contrato social de Locke, o pacto é
trabalho. firmado apenas entre os súditos, não fazendo parte dele
02) o direito à propriedade é fundado naquele que o soberano.
primeiro se apossou do bem (terra, animais etc.). e) Segundo o contratualismo de Locke, os homens, ao
04) o fato de os recursos naturais serem comuns a todos fazerem o pacto, transferem a um terceiro (homem ou
os homens gera um impedimento à propriedade assembléia) a força coercitiva da comunidade, trocando
individual. voluntariamente sua liberdade pela segurança garantida
08) o trabalho individualiza o que era propriedade pelo Estado.
comum, pois agrega algo particular ao bem.
16) o trabalho antecede a propriedade do bem e não o 5.
contrário.

3. Um dos aspectos mais importantes da filosofia


política de John Locke é sua defesa do direito à
propriedade, que ele considerava ser algo inerente à
natureza humana, uma vez que o corpo é nossa primeira
propriedade. De acordo com esta perspectiva, o Estado
deve
a) permitir aos seus cidadãos ter propriedade ou
propriedades.
b) garantir que todos os seus cidadãos, sem exceção,
tenham alguma propriedade.
c) garantir aos cidadãos a posse vitalícia de bens.
d) fazer com que a propriedade seja comum a todos os
cidadãos.
Frontispício da primeira edição do livro Leviatã (1651),
4. “Em Locke, o contrato social é um pacto de Thomas Hobbes, ilustrado por Abraham Bosse. Na
deconsentimento em que os homens concordam imagem vemos o monstro Leviatã, dotado de poder
livremente em formar a sociedade civil para preservar e militar e religioso.
consolidar ainda mais os direitos que possuíam
originalmente no estado de natureza. No estado civil os
direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida, à
liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o
amparo da lei, do árbitro e da força comum de um
corpo político unitário.”
Fonte: MELLO, L. I. A. “John Locke e o individualismo liberal.”
In: WEFFORT, F. C. (Org.). Os Clássicos da Política. 3ª ed. São
Paulo: Ática, 1991, p. 86.
Com base no texto e nos seus conhecimentos sobre a
filosofia política de Locke, assinale a afirmativa correta:
a) O contrato social se justifica, para Locke, tendo em
vista as adversidades do estado de natureza, entendido Primeiro volume da edição de 1740 da obra que reunia
como fundamentado no estado de guerra. vários trabalhos de Locke.
HISTÓRIA EM REDE. P. 303. Conhecimentos do Brasil e do Mundo. Roberto Catelli
b) Para Locke, o pacto social exige que os indivíduos Junior.Ed. Scipione
cedam seu poder à direção suprema da vontade geral. As gravuras acima dizem respeito a duas obras
c) Para justificar o direito à propriedade privada, Locke contratualistas escritas nos séculos XVII e XVIII nas
parte da definição do direito natural como direito à vida, quais os autores defendem seus pontos de vista.
198
10
Comparando a noção de Estado de Hobbes e Locke IV. Os indivíduos consentem livremente, segundo
concluímos que Locke, em constituir a sociedade política com a
finalidade de preservar e proteger, com o amparo da lei,
a) enquanto Hobbes defende a participação popular na
do arbítrio e da força comum de um corpo político
formação de governo, Locke considera que o príncipe
deve assumir o controle das instituições unitário, os seus inalienáveis direitos naturais à vida, à
individualmente. liberdade e à propriedade.
b) Hobbes considera que, para superar o caos, o Estado V. Da dissolução do poder legislativo, que é o poder no
deveria se munir de toda força para manter os qual “se unem os membros de uma comunidade para
indivíduos em ordem. Para Locke, o que legitimava o formar um corpo vivo e coerente”, decorre, como
poder era o consentimento da maioria, portanto consequência, a dissolução do estado de natureza.
expressa a defesa do liberalismo. Das afirmativas feitas acima
c) Para Hobbes o homem é o lobo do homem, por isso, a) somente a afirmação I está correta.
sugere o contrato social consensual, no qual todos os b) as afirmações I e III estão corretas.
indivíduos participam do poder. Já para Locke, os c) as afirmações III e IV estão corretas.
indivíduos devem transferir poderes ao Rei. Este deve d) as afirmação II e III estão corretas.
ser forte o suficiente para proteger a todos. e) as afirmações III e V estão incorretas.
d) Ambos são defensores da democracia, pois o
contrato social, em qualquer circunstância, sugere 7. “Se o homem no estado de natureza é tão livre,
participação popular no poder governamental. conforme dissemos, se é senhor absoluto da sua própria
e) Para Hobbes, a defesa da soberania popular seria pessoa e posses, igual ao maior e a ninguém sujeito,
indispensável para a superação do caos político porque abrirá ele mão dessa liberdade, porque
europeu, diferindo da tese de Locke, que advogava um abandonará o seu império e sujeitar-se-á ao domínio e
governo forte e interventor. controle de qualquer outro poder? Ao que é óbvio
responder que, embora no estado de natureza tenha tal
6. “Através dos princípios de um direito natural direito, a fruição do mesmo é muito incerta e está
preexistente ao Estado, de um Estado baseado no constantemente exposta à invasão de terceiros porque,
consenso, de subordinação do poder executivo ao sendo todos reis tanto quanto ele, todo homem igual a
poder legislativo, de um poder limitado, de direito de ele, e na maior parte pouco observadores da equidade e
resistência, Locke expôs as diretrizes fundamentais do da justiça, a fruição da propriedade que possui nesse
Estado liberal.” estado é muito insegura, muito arriscada. Estas
Bobbio. circunstâncias obrigam-no a abandonar uma condição
Considerando o texto citado e o pensamento político que, embora livre, está cheia de temores e perigos
de Locke, seguem as afirmativas abaixo: constantes; e não é sem razão que procura de boa
I. A passagem do estado de natureza para a sociedade vontade juntar-se em sociedade com outros que estão
política ou civil, segundo Locke, é realizada mediante já unidos, ou pretendem unir-se, para a mútua
um contrato social, através do qual os indivíduos conservação da vida, da propriedade e dos bens a que
singulares, livres e iguais dão seu consentimento para chamo de 'propriedade'”.
ingressar no estado civil. Locke
II. O livre consentimento dos indivíduos para formar a Sobre o pensamento político de Locke e o texto acima,
sociedade, a proteção dos direitos naturais pelo seguem as seguintes afirmativas:
governo, a subordinação dos poderes, a limitação do I. No estado de natureza, os homens usufruem
poder e o direito à resistência são princípios plenamente, e com absoluta segurança, os direitos
fundamentais do liberalismo político de Locke. naturais.
III. A violação deliberada e sistemática dos direitos II. O objetivo principal da união dos homens em
naturais e o uso contínuo da força sem amparo legal, comunidade, colocando-se sob governo, é a
segundo Locke, não são suficientes para conferir preservação da “propriedade”.
legitimidade ao direito de resistência, pois o exercício de III. No estado de natureza, falta uma lei estabelecida,
tal direito causaria a dissolução do estado civil e, em firmada, conhecida, recebida e aceita mediante
consequência, o retorno ao estado de natureza. consentimento, como padrão do justo e injusto e
199
11
medida comum para resolver quaisquer controvérsias E ainda, essas percepções são apenas ideias
entre os homens. simples, de experiências com objetos particulares,
IV. Os homens entram em sociedade, abandonando a nunca podemos ter ideias complexas ou abstratas,
porque elas não são originadas de experiências que
igualdade, a liberdade e o poder executivo que tinham
temos com determinados objetos.
no estado de natureza, apenas com a intenção de Esse negócio de ideias gerais e abstratas, isso é
melhor preservar a propriedade. invenção de filósofo e cientista. Ora, se isso não existe,
V. No estado de natureza, há um juiz conhecido e não há como existir as leis formuladas por Newton para
imparcial para resolver quaisquer controvérsias entre os explicar a natureza, e tchau ciência.
homens, de acordo com a lei estabelecida. Em síntese, Berkeley defende a imaterialidade
Das afirmativas feitas acima do mundo sustentando um idealismo imaterialista,
segundo o qual, tudo o que existe são os sujeitos com
a) somente a afirmação I está correta.
suas percepções oriundas da experiência.
b) as afirmações I e III estão corretas. Mas então, poderiam argumentar que as coisas
c) as afirmações II e V estão corretas. que não estão sendo percebidas não existem, ao que ele
d) as afirmações IV e V estão corretas. refutaria dizendo que existe um ser supremo que
e) as afirmações II, III e IV estão corretas. garante a existência das coisas a serem percebidas. E
adivinhem quem ele diz que é esse ser supremo?
Exatamente, Deus.
Perceba que, para ele, o mundo não existe de
4. GEORGE BERKELEY uma relação direta do indivíduo para com esse mundo,
A marca deixada por mas do mundo com indivíduo através de Deus que
George Berkeley (1685 – garante a percepção e o conhecimento do mundo ao
1753) na história da filosofia indivíduo.
foi a sua afirmação da
imaterialidade do mundo, QUESTÕES
pois para ele, nós não
podemos saber se existem as 1. (UEM 2014) “Na introdução ao Princípios, Berkeley
coisas materiais. lamenta: como garantir a credibilidade da filosofia se,
Esse filósofo ao invés de responder a esta demanda por fundamentos
irlandês, e sacerdote e satisfazer nossos anseios de paz de espírito, ela nos
anglicano, acreditava que a inunda com uma multiplicidade de teorias que geram
Europa estava perdida no materialismo científico e no disputas e dúvidas sem fim? Depois de fazer levantar
ceticismo ocasionado pela dúvida estimulada pelo uma espessa poeira de palavras, a própria filosofia
pensamento filosófico, o que retirava as pessoas do reclama por não conseguir mais ver com clareza aquilo
caminho da fé, afastando-as de Deus. que aparece claro e sem problemas ao homem
Com base nisso, pediu recursos ao parlamento comum...”
(SKROCK, E. George Berkeley e a terra incógnita da filosofia.
inglês para fundar uma Universidade na américa do In: MARÇAL, J. (org.). Antologia de textos filosóficos. Curitiba:
norte para educar os jovens de lá, que, segundo ele, SEED, 2009, p. 103).
ainda tinham salvação. Passou três anos em Rhode
Island, colônia inglesa nos EUA, mas voltou para A partir do exposto, é correto afirmar que a filosofia
Londres depois que percebeu que os recursos nunca 01) identifica-se com o senso comum.
seriam enviados. 02) propõe questões insolúveis.
Para combater esse estado de degradação, 04) debate teorias diferentes entre si.
Berkeley ataca, em sua obra Tratado sobre os princípios do 08) proporciona a paz de espírito.
conhecimento humano, a base fundamental da ciência 16) estabelece verdades absolutas.
moderna formulada por Newton, que é a matéria.
Ele sustenta um tipo diferente de empirismo, ao
afirmar que só podemos conhecer através dos sentidos
que nos dão a percepção das coisas, mas nada além
disso. Melhor dizendo, nós conhecemos, apenas, as
percepções das coisas, mas nunca as coisas mesmas,
pois elas não existem.
A matéria não existe, o que existe são as
percepções (ideias) que temos da existência das coisas.
Por isso que, para ele, “ser é perceber e ser percebido”.
200
12
5. DAVID HUME E O PODER DO HÁBITO experimental adequado para a fundação da "ciência" da
natureza, ao passo que os "recentes filósofos ingleses",
Com David Hume, o ou seja, os moralistas (entre eles, Locke), em um espago
empirismo alcançou suas de tempo mais ou menos igual ao transcorrido entre
próprias colunas de Tales e Sócrates, começaram a “levar a ciência do
Hércules, ou seja, aqueles homem para um terreno novo”.
limites para além dos quais é Trata-se, então, de percorrer profundamente
impossível avançar. esse caminho, para fundar definitivamente a ciência do
Despojando-se dos homem em bases experimentais.
pressupostos ontológico- Em suma, Hume considera poder se tornar o
corporeístas presentes em Galileu, ou melhor, o Newton da “natureza humana”.
Hobbes, do componente racionalista-cartesiano Aliás, o nosso filosofo mostra-se até convicto de que a
presente em Locke, dos interesses apologéticos e “ciência da natureza humana” é ainda mais importante
religiosos presentes em Berkeley e de quase todos os do que a física e as outras ciências, pelo fato de que
resíduos de pensamento provenientes da tradição todas essas ciências “dependem de algum modo da
metafisica, o empirismo humiano acaba por esvaziar a natureza do homem”.
própria filosofia dos seus conteúdos específicos e Se pudéssemos explicar a fundo o alcance e a
admitir a vitória da razão cética, da qual só pode se força do intelecto humano, bem como a natureza das
salvar a irresistível força da natureza. A natureza se ideias de que nos servimos e das operações que
sobrepõe à razão, diz expressamente Hume. realizamos em nossos raciocínios, poderíamos efetuar
David Hume nasceu em Edimburgo, em 1711, progressos de incalculável alcance em todos os outros
de uma família pertencente à pequena nobreza de âmbitos do saber. É esse o ambicioso projeto de Hume.
proprietários de terras. Desde jovem se apaixonou pelo A “natureza humana”, encerrada nos estreitos
estudo dos clássicos e da filosofia, a ponto de se opor âmbitos do método experimental, perde grande parte
firmemente ao desejo dos parentes, que o queriam de sua especificidade racional e espiritual em benefício
advogado como o pai, e negar-se a qualquer outra do instinto, da emoção e do sentimento, a ponto de
atividade que não fossem seus estudos prediletos. reduzir-se quase que apenas à “natureza animal”. E,
O Tratado sobre a natureza humana, é a obra-prima desse modo, a conquista da “natureza humana” ao
de Hume. Entre as obras que se seguiram, podemos invés de levar a conquistas, levará fatalmente a perdas,
recordar: os Ensaios sobre o intelecto humano, de 1748, que como podem demonstrar os resultados cético-
expõem de modo simplificado o primeiro livro do irracionalistas.
Tratado; as Investigações sobre os princípios da moral, Mas vejamos como Hume, com o novo método
de 1751, que expõem de maneira nova o terceiro livro experimental, procede à reconstrução da “natureza
do Tratado e que o autor considerou sua melhor obra; humana”.
e os Discursos políticos, de 1752.
Diferença entre impressões e ideias
5.1 EPISTEMOLOGIA
Todos os conteúdos da mente humana outra
Necessidade de fundamentar a ciência sobre a coisa não são senão percepções, dividindo-se em duas
experiência grandes classes, que Hume chama de impressões e
ideias.
O título Tratado sobre a natureza humana e a Ele só coloca duas diferenças entre as primeiras
especificação do subtítulo: “Uma tentativa de introduzir e as segundas:
o método experimental de raciocínio nos assuntos a) a primeira classe diz respeito à força ou
morais”, já apresentam por si mesmos os traços gerais vivacidade com que as percepções se apresentam à
do “novo cenário de pensamento” que Hume tenta nossa mente;
implementar. b) a segunda diz respeito à ordem e a sucessão
Hume constata que, sobre a segura base da temporal com que elas se apresentam.
observação e do método do raciocínio experimental
preconizado por Bacon, Newton construiu uma sólida a) No que se refere ao primeiro ponto, a
visão da natureza física; o que é necessário fazer agora diferença entre impressões e ideias consiste no grau
é precisamente aplicar aquele método também à diverso de força e vivacidade com que as percepções
natureza humana, ou seja, também ao sujeito e não atingem nossa mente e penetram no pensamento ou na
apenas ao objeto. consciência.
Tales fundou a "filosofia" da natureza e só As percepções que se apresentam com maior
depois Sócrates fundou a "filosofia" do homem. Nos força e violência podem ser chamadas de impressões e
tempos modernos, Bacon introduziu o método
201
13
são todas as sensações, paixões e emoções, quando O princípio da associação das ideias
fazem a sua primeira aparição em nossa alma.
As ideias, ao contrário, são as imagens Existe entre as ideias uma "força" (que, de certa
enfraquecidas das impressões. forma, recorda a força de gravitação newtoniana, que
Uma consequência dessa distinção é a drástica une entre si os corpos físicos, ainda que de caráter
contradição da diferença entre sentir e pensar, que é diferente), expressa pelo princípio da associação.
reduzida simplesmente ao grau de intensidade: sentir As propriedades que dão origem a essa
consiste em ter percepções mais vivas (sensações), ao associação e fazem com que a mente seja transportada
passo que pensar consiste em ter percepções mais fracas de uma ideia para outra são três: semelhança,
(ideias). contiguidade no tempo e no espaço, causa e efeito.
Toda percepção, portanto, é dupla: é sentida (de Nós passamos facilmente de uma ideia a outra
modo vivo) como impressão e é pensada (de modo mais que se lhe assemelhe (por exemplo: uma fotografia me
fraco) como ideia. faz vir à mente a personagem que representa), ou então
b) No que se refere ao segundo ponto, Hume de uma ideia a outra que habitualmente se apresenta a
destaca que ele constitui uma questão da máxima nós como ligada a primeira no espaço e no tempo (por
importância, porque está ligada ao problema da exemplo, a ideia de sala de aula me recorda a das salas
“prioridade” de um dos dois tipos de percepção: a ideia de aula vizinhas, ou então a do corredor adjacente ou a
depende da impressão, ou a impressão depende da do prédio em que se localiza; a ideia de levantar âncora
ideia? suscita a ideia da partida do navio, e assim se poderiam
A resposta de Hume é inequívoca: a impressão multiplicar os exemplos); a ideia de causa me suscita a
é originária, a ideia é dependente. de efeito e vice-versa (como, por exemplo, quando
Daí, portanto, deriva o "primeiro princípio" da penso no fogo, sou inevitavelmente levado a pensar no
ciência da natureza "humana", que, formulado calor ou então na fumaça que dele se desprende, e vice-
sinteticamente, assim se expressa: versa).
“Todas as ideias simples provem, mediata ou Para Hume, esses são, portanto, os princípios
imediatamente, de suas correspondentes impressões.” de união ou coesão entre as nossas ideias simples, que,
Esse princípio, diz Hume, acaba com a questão na imaginação, ocupam o lugar da conexão indissolúvel,
das ideias inatas, que tanto barulho havia ocasionado com a qual estão unidas na memória.
anteriormente. Nós só temos ideias depois de ter Por conseguinte, para provar a validade de cada
impressões, e somente estas, são originárias. ideia sobre a qual se discute é necessário apresentar sua
relativa impressão.
Ideias simples e complexas No caso das ideias simples isso não suscita
problemas, pois, como já vimos, não pode estar
Mas há ainda uma importante distinção a presente em nós nenhuma ideia simples sem que
recordar. Existem impressões simples (por exemplo, tenhamos experimentado sua impressão
vermelho, quente etc.) e impressões complexas (por correspondente. No caso das ideias complexas, isso já
exemplo, a impressão de uma maçã). constitui um problema, devido à sua gênese múltipla e
As impressões complexas nos são dadas variada. E é exatamente sobre elas que se concentrara o
imediatamente como tais. Já as ideias complexas podem interesse de nosso filósofo.
ser copias das impressões complexas, mas também Hume torna sua a distinção lockiana geral das
podem ser fruto de combinações múltiplas, que ideias em ideias de substância, de modos e de relações,
ocorrem de vários modos em nosso intelecto. mas vai muito além de Locke em sua análise crítica,
Com efeito, além da faculdade da memória, que como veremos mais adiante.
reproduz as ideias, nós também temos a faculdade da
imaginação, capaz de transpor e compor as ideias entre Negação das ideias universais e o nominalismo
si de vários modos. Ela é uma consequência evidente da humeano
divisão das ideias em simples e complexas.
Onde quer que a imaginação perceba uma Para se compreender plenamente a posição de
diferença entre as ideias, pode realizar uma separação Hume, porém, devemos ainda recordar sua doutrina
entre elas, e depois operar uma série de outras das ideias abstratas ou universais. Ele aceita a tese de
combinações. Berkeley (que elogia como “grande filosofo”) segundo
Mas as ideias simples tendem a se agregar entre a qual “todas as ideias gerais nada mais são do que ideias
si em nossa mente não somente segundo o livre jogo da particulares conjugadas a certa palavra, que lhes dá um
fantasia, mas também segundo um jogo bem mais significado mais extenso e, ocorrendo, faz com que
complexo, baseado em alguns princípios que se recordem outras individuais semelhantes a elas”. Essa,
mostram conformes em todos os tempos e em todos os destaca Hume, é "uma das maiores e mais importantes
lugares. descobertas que foram feitas nestes últimos anos na
202
14
república das letras". Entre os vários argumentos que a )São simples relações e ideias todas aquelas
Hume apresenta como apoio da tese de Berkeley, proposições que se limitam a operar com base em
devemos recordar dois particularmente significativos: conteúdos ideais, sem se referir aquilo que existe ou
a) O intelecto humano, dizem os defensores da pode existir. Trata-se das proposições que, como
existência de ideias universais, é capaz de distinguir veremos, Kant chamará de juízos analíticos.
mentalmente também aquilo que não está separado na A aritmética, a Álgebra e a geometria são
realidade, através de operações mentais autônomas. constituídas de meras "relações de ideias”.
Hume contesta isso vigorosamente, pois para ele, só é Estabelecidos os significados dos números, por
distinguível aquilo que é separável. exemplo, nós obtemos por mera análise racional (e,
b) Além disso, como cada ideia é cópia de uma portanto, com base em meras relações de ideias) que
impressão e a impressão só pode ser particular e, três vezes cinco é a metade de trinta, e todas as outras
portanto, só determinada, seja qualitativa, seja proposições desse gênero. Trata-se de urna proposição
quantitativamente, também as ideias (que só podem ser que conseguimos substancialmente baseando-nos sobre
copias das impressões) devem ser determinadas do o princípio de não-contradição.
mesmo modo. b) Os “dados de fato”, ao contrário, não são
O grande princípio humiano de que a ideia só obtidos desse modo, já que “é sempre possível o
difere no grau de intensidade e vivacidade da impressão contrário de um dado de fato qualquer, já que ele não
comporta necessariamente que cada ideia nada mais seja pode nunca implicar uma contradição, sendo concebido
do que uma "imagem" e, como tal, individual e pela mente com a mesma facilidade e a mesma distinção
particular. como se fosse extremamente conforme a realidade". O
Como é possível, então, uma ideia “particular” problema que surge, portanto, é o de procurar a
ser usada como ideia “geral”, e como é que a simples natureza da evidência própria dos raciocínios relativos
conjunção com uma “palavra” pode tornar isso aos "dados de fato", quando eles não estão
possível? imediatamente presentes aos sentidos (como, quando
Para Hume, nós notamos certa semelhança prevejo que o sol surgirá amanhã).
entre as ideias de coisas que nos aparecem pouco a Segundo Hume, todos os raciocínios que dizem
pouco (por exemplo, entre homens de várias raças e de respeito à realidade dos fatos parecem fundados na
vários tipos), uma semelhança tal que nos permite dar a relação de causa e efeito. É só graças a essa relação que
elas o mesmo nome, prescindindo das diferenças de podemos ultrapassar a evidência de nossa memória e
grau, de qualidade e de quantidade que elas podem dos sentidos. O exame crítico de Hume se concentra,
apresentar. Desse modo, nós adquirimos um “hábito” por conseguinte, justamente sobre a relação de causa e
pelo qual, ao ouvir aquele nome ou aquela palavra dada, efeito.
desperta em nossa memória uma daquelas ideias
particulares que designamos com aquele nome ou com A ligação de causa e efeito
aquela palavra (por exemplo, ao ouvir a palavra
"homem", vem-me a mente a ideia de um homem Causa e efeito são duas ideias bem distintas
determinado), mas, como a mesma palavra usa-se para entre si, no sentido de que nenhuma análise da ideia de
designar ideias análogas (por exemplo, para designar os causa, por mais acurada que seja, pode nos fazer
muitos homens vistos por mim, diferentes entre si por descobrir a priori o efeito que dela deriva.
muitos aspectos particulares), então acontece que “a Se atinjo uma bola de bilhar com outra bola,
palavra, não sendo capaz de fazer reviver a ideia de digo que a primeira causou o movimento da segunda;
todos esses indivíduos, limita-se a tocar a alma, se assim entretanto, o movimento da segunda bola de bilhar é
posso me expressar, e faz reviver o hábito que um fato completamente diferente do movimento da
contraímos ao examiná-los”. primeira e não está incluído nela a priori.
O que há de novo nessa concepção nominalista Suponhamos, com efeito, que tivéssemos vindo
do universal, em relação à visão tradicional, ao mundo de improviso: nesse caso, vendo uma bola de
particularmente em relação à visão de Berkeley? Como bilhar, não poderíamos de modo nenhum saber a priori
destacaram os estudiosos, o que há é o recurso ao que ela, impelida contra outra, produzira como efeito o
princípio do hábito, já invocado por Hume a propósito movimento dessa outra.
do princípio de associação das ideias. O mesmo deve-se dizer de todos os outros
casos desse gênero. Hume exemplifica dizendo que o
Relação entre ideias e dados de fato próprio Adão, ao ver a água pela primeira vez, não tinha
condições de inferir a priori que ela tem o poder de
Outra doutrina essencial de Hume consiste na afogar por sufocamento.
distinção dos objetos presentes na mente humana Sendo assim, então, deve-se dizer que o
(impressões e ideias) em dois gêneros, que o filósofo fundamento de todas as nossas conclusões sobre a
chama de a) “relações entre ideias” e b) “dados de fato”. causa e o efeito é a experiência.
203
15
Todavia, essa resposta propõe imediatamente Como veremos, é exatamente esse “instinto
outra questão, bem mais difícil: qual é o fundamento das natural” que se revelaria última trincheira do empirismo
próprias conclusões que extraio da experiência? Experienciei, humiano.
por exemplo, que o pão que comi sempre me
alimentou; mas com base em que fundamento eu Os objetos corpóreos
extraio a conclusão de que ele devera me nutrir também no
futuro? Hume submete a uma crítica análoga o conceito
Do fato que experienciei que certa coisa sempre clássico de substância:
se acompanhou de outra ao modo de "efeito", eu posso 1) tanto em referência aos objetos corpóreos,
inferir que também outras coisas como aquela deverão 2) como no que se refere ao sujeito espiritual.
se acompanhar de efeitos análogos. Segundo Hume, aquilo que nós captamos, na
Por que extraio essas conclusões e, ainda mais, realidade, não é mais que uma série de feixes de impressões
as considero necessárias? e ideias.
Para responder a questão, vejamos melhor seus Em virtude da constância com que esses feixes
termos. Dois elementos essenciais estão presentes no de percepções se apresentam a nós, acabamos por
nexo causa-efeito: imaginar a existência de um princípio que constitui o
a) a contiguidade e a sucessão; fundamento da coesão entre aquelas percepções.
b) a conexão necessária. Todavia, consideramos tal feixe de percepções que
a) A contiguidade e a sucessão são chamamos por exemplo de maçã como sustentado por
experimentadas, ao passo que b) a conexão necessária um princípio de coesão que garante que tais impressões
não é experimentada (no sentido de que não é uma permaneçam compactas e constantemente juntas. Mas
impressão), e sim inferida. Todavia, como a inferimos? esse princípio não é uma impressão, e sim apenas um
modo nosso de imaginar as coisas, que acreditamos
O poder do hábito e da crença existir fora de nós. Com efeito, aquilo que não é
redutível a uma impressão, como sabemos, é destituído
Nós a inferimos, diz Hume, pelo fato de termos de validade objetiva.
experimentado uma conexão constante e, por
conseguinte, pelo fato de termos contraído um hábito ao Os sujeitos
constatar a regularidade da contiguidade e da sucessão,
a ponto de tornar-se natural para nós, dada a "causa", Hume também faz uma critica análoga a
esperarmos o "efeito". existência de uma substância espiritual, particularmente
O princípio com base no qual, a partir da contra a existência do eu, entendido como realidade
simples sucessão “ isso depois disso”, nós inferimos o dotada de existência contínua e autoconsciente, idêntica
nexo necessário “logo causado por isso” é constituído, a si mesma e simples. Com efeito, toda ideia só pode
portanto, pelo costume ou hábito. derivar de uma impressão correspondente; mas do eu
Em conclusão, diz Hume, é o costume que nos não há nenhuma impressão precisa, assim, tal ideia não
permite sair daquilo que está imediatamente presente na existe.
experiência. Mas toda proposição nossa relativa ao As cruas conclusões de Hume, portanto, são as
futuro não tem outro fundamento. mesmas a que ele chega no caso dos objetos. Como os
Mas há ainda um ponto importantíssimo que objetos nada mais são que coleções de impressões,
devemos entender. Embora seja básico, o "costume" de analogamente, nós não somos nada mais do que
que falamos, em si mesmo, não seria suficiente para coleções ou feixes de impressões e de ideias. Somos
explicar inteiramente o fenômeno que estamos urna espécie de teatro, onde passam e repassam
discutindo. continuamente as impressões e as ideias: mas, note-se
Uma vez formado, esse costume gera em nós bem, trata-se de teatro que não deve ser concebido
uma “crença”. Ora, é precisamente essa crença que nos como um prédio estável, mas simplesmente como o
dá a impressão de que estamos diante de uma “conexão passar e o repassar das próprias impressões.
necessária” e que nos infunde a convicção de que, dado O que devemos concluir então? Se o objeto é
aquilo que nós chamamos “causa”, deve seguir-se um feixe de impressões, e se também o eu é um feixe de
aquilo que nós chamamos “efeito” (e vice-versa). impressões, como poderão se distinguir entre si? Como
Portanto, segundo Hume, a chave para a se poderá falar de “objetos” e de “sujeitos”?
solução do problema está na “crença”, que é um
sentimento. Assim, de ontológico-racional, o fundamento Os objetos e os sujeitos existem apenas por nossa
da causalidade torna-se emotivo-arracional, ou seja, pura crença
transfere-se da esfera do objetivo para a esfera do
subjetivo. A tese de Hume é evidente:
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16
1) a existência das coisas fora de nós não é se adaptam às limitadas capacidades do intelecto
objeto de conhecimento, mas de "crença"; e, assim, humano.
analogamente, Em última análise, no que se refere às ciências
2) a identidade do eu não é objeto de abstratas, essas capacidades se restringem ao
conhecimento, mas é, ela também, objeto de “crença”. conhecimento das relações entre ideias e, portanto, no
1) A filosofia nos ensina que qualquer caso das razões que examinamos, se restringem
impressão é uma percepção e que, portanto, é subjetiva. somente à matemática.
Com efeito, a partir da impressão não se pode inferir a Todas as outras investigações se referem a
existência de um objeto como causa da própria dados de fato, suscetíveis de constatação, mas não de
impressão, porque o princípio de causa não tem uma demonstração. Em suma, o que domina todos esses
validade teórica, como já vimos. Nossa “crença” na âmbitos é a experiência e não o raciocínio. Assim, as
existência independente e contínua dos objetos é fruto ciências empíricas baseiam-se na experiência, a moral
da “imaginação”. no sentimento, a estética no gosto e a religião na fé e na
Em especial, como se encontra certa revelação.
uniformidade e coerência em nossas impressões, a Sendo assim, Hume indaga que quando,
imaginação tende a considerar tal uniformidade e persuadidos desses princípios, percorrermos os livros
coerência como total e completa, supondo de uma biblioteca, do que devemos nos desfazer?
precisamente a existência de corpos que seriam sua Se pegarmos algum volume, digamos de
“causa”. teologia ou de metafisica escolástica, por exemplo,
Vejamos um exemplo: eu saio de minha sala e, devemos nos perguntar: “Será que contém raciocínios
desse modo, deixo de ter todas as impressões que abstratos em torno da quantidade ou do número?” A
constituem esta minha sala; depois de certo tempo, ao resposta é não. “Contém raciocínios baseados na
retornar, tenho as mesmas impressões de antes ou, de experiência e relativos aos dados de fato ou à existência
todo modo, tenho percepções parcialmente iguais às de das coisas?” Também não.
antes e em parte diferentes, mas coerentes com elas (por Então, devemos jogar todas essas obras às
exemplo, encontro a luz reduzida porque já se fez chamas, já que não pode conter nada mais que
tarde). Pois bem, a imaginação preenche o vácuo de tergiversação e engano.
minha ausência, supondo que essas percepções Essas conclusões céticas podem ser reduzidas a
correspondentes e coerentes em relação as anteriores um fundamento único que é a negação da valência
correspondam a uma existência efetiva e separada dos ontológica do princípio de causa e efeito.
objetos que constituem minha sala. E mais: ao trabalho Apesar de sua refutação ao princípio de
realizado pela imaginação se acrescenta ainda o da causalidade, seria muito fácil mostrar que, na realidade,
memória, que dá vivacidade as impressões no mesmo momento em que o exclui, Hume o esta
fragmentadas e intermitentes (por causa de minha saída reintroduzindo repetidamente, sem se dar conta disso,
e da posterior volta a sala). Tal “vivacidade” gera a para poder proceder ao seu discurso.
“crença” na existência dos objetos externos Ora, pensemos bem. As impressões são
correspondentes. “causadas” pelos objetos, as ideias são “causadas” pelas
O que nos salva da dúvida cética é, portanto, impressões, a associação das ideias tem uma "causa", o
essa crença instintiva, que é de gênese alógica e habito é por sua vez “causado” e, assim, os exemplos,
arracional, e quase biológica. poderiam se multiplicar.
2) Também o eu também é reconstruído de Se tivéssemos verdadeiramente de eliminar o
modo análogo pela imaginação e pela memória em sua princípio de causa, não só a metafisica ruiria por terra,
unidade e substancialidade. mas também toda a filosofia teórica e moral de Hume.
Por conseguinte, também a existência do eu, Mas não é para isso que queremos chamar a
entendido como substância à qual são referidas todas as atenção (já que isso nos levaria para o campo da crítica
percepções, é apenas objeto de “crença”. ao sistema humiano), mas muito mais para a postura
Todavia, devemos destacar que, para Hume, o geral que caracteriza o pensamento do filosofo: à razão
eu torna-se objeto de consciência imediata através das cética problemática, Hume contrapõe o instinto e o
paixões e, portanto, mais uma vez em âmbito ateórico elemento alógico, passional e sentimental, portador de
e por via arracional. uma segurança incontida e, portanto, dogmática. A
própria razão filosófica, que é uma necessidade
O ceticismo moderado originaria de indagar, aparece em Hume, em certos
momentos, quase como uma espécie de instinto,
Hume considerava-se cético moderado. Com também ele incontido.
efeito, em sua opinião, o ceticismo moderado pode Em suma, para Hume, a última palavra parece
beneficiar o gênero humano, visto que consiste na ser deixada precisamente para o instinto, ou seja, para o
limitação de nossas investigações aos temas que melhor arracional, quando não até para o irracional.
205
17
As duas afirmações seguintes, verdadeiramente Como já observamos, é evidente que Hume
emblemáticas, mostram claramente quanto o recupera aqui a consciência e a ideia do eu sobre bases
empirismo humiano afastou-se do empirismo lockiano. emocionais.
Locke dizia: “A razão deve ser nosso último juiz e nosso Em última análise, a própria vontade pode ser
guia em toda coisa”. Hume, ao contrário, afirma: “A redutível às paixões ou, de qualquer modo, constitui
razão é e só pode ser escrava das paixões, não podendo algo muito próximo a elas, dado que, segundo Hume,
reivindicar em caso nenhum uma função diversa da de se reduz a uma impressão que deriva de prazer e de dor,
a elas obedecer”. exatamente como as paixões. Mas nosso filosofo parece
Como se vê, quando levado às consequências um tanto incerto sobre esse ponto, pois termina por
extremas, o empirismo choca-se contra limites agora admitir que a vontade é e não é uma paixão.
intransponíveis (pelo menos com sua lógica intrínseca).
Negação da liberdade e da razão prática

Tal ambiguidade e incerteza se reflete


imediatamente sobre a concepção da liberdade, que
Hume termina por negar.
Para ele, “livre-arbítrio” seria sinônimo de não-
necessidade, ou seja, de casualidade, constituindo assim
um absurdo.
Segundo Hume, aquilo que habitualmente
denomina-se de “liberdade’ não seria mais que a simples
Caberá a Kant a grande empresa de abrir novos “espontaneidade”, ou seja, a não-coação externa. Ao
caminhos, capazes de evitar tanto esses extremismos realizar nossos atos, não somos determinados por motivos
irracionalistas e céticos como os extremismos de caráter externos, e sim interiores; todavia, de qualquer forma,
oposto em que haviam incorrido os sistemas sempre somos determinados.
racionalistas. Contudo, o ponto mais característico da
filosofia moral de Hume é a tese segundo a qual “a
5.2 A ÉTICA razão jamais pode se contrapor a paixão na condução
da vontade”.
As paixões e a vontade Isso significa proclamar a vitória do jogo das
paixões e, assim, negar que a razão possa ser prática, ou
As paixões são algo original e próprio da seja, que a razão possa guiar e determinar a vontade.
“natureza humana”, independentes da razão e não
domináveis por ela. Elas são “impressões” que derivam A razão não fundamenta a moral
de outras percepções.
Hume distingue as paixões em: A moral foi o assunto que mais interessou
1) diretas; Hume desde o início de sua formação espiritual, a
2) indiretas. ponto de alguns intérpretes sustentarem que, se todo o
1) As primeiras são as que dependem sistema humiano não for visto a luz desse interesse
imediatamente do prazer e da dor como, por exemplo, o fundamental, ele não revela seu significado preciso.
desejo, a aversão, a tristeza, a alegria, a esperança, o Qual é o fundamento da moral?
medo, o desespero, a tranquilidade. Como já vimos, Hume negava que a razão
2) As segundas são, por exemplo, o orgulho, a como tal pudesse mover a vontade, ou seja, que a razão
humildade, a ambição, o amor, o ódio, a inveja, a pudesse ser fundamento da vida moral.
piedade, a malignidade, a generosidade e as outras que A moral, por conseguinte, deve derivar de algo
delas derivam. diferente da razão. Com efeito, diz Hume, a moral
Hume alonga-se muito ao escrever sobre essas suscita paixões e promove ou impede ações, coisas que,
paixões. Mas os elementos importantes de seu discurso pelos motivos expostos, a razão não está em grau de
podem ser resumidos assim: ele afirma que as paixões fazer.
dizem respeito ao eu, ou seja, aquela pessoa particular de Portanto, conclui Hume, “é impossível que a
cujas ações e sentimentos cada um de nós está distinção entre bem e mal moral possa ser estabelecida
intimamente convencido; e, falando sobre o orgulho, pela razão, posto que essa distinção tem sobre nossas
ele chega até a afirmar que a natureza ligou a essa ações uma influência da qual a razão é inteiramente
emoção certa ideia, a do eu, que nunca deixa de se incapaz”. Quando muito, a razão pode dispor-se a
produzir. serviço das paixões e colaborar com elas, despertando-
as e orientando-as.
206
18
O sentimento como verdadeiro fundamento da nós, estende-se “também aos outros”, ou seja, o útil
moral público, que é “o útil é felicidade de todos”.
Assim, escreve Hume: “Desse modo, se a
A resposta humiana ao quesito acima exposto é utilidade é uma fonte do sentimento moral e se não
óbvia: o fundamento da moral é o sentimento. consideramos sempre essa utilidade em relação ao eu
Qual é, então, esse sentimento que serve de singular, segue-se então que tudo o que contribui para
fundamento para a moral? a felicidade da sociedade granjeia diretamente nossa
É um sentimento particular de prazer e dor. aprovação e nossa boa vontade. Eis um princípio que,
A virtude provoca um prazer de tipo particular, em boa medida, explica a origem da moralidade.
assim como o vício provoca uma dor de tipo particular,
de modo que, se conseguirmos explicar tal prazer e tal
dor, explicaremos também o vício e a virtude.
Já dissemos que o prazer (ou dor) moral é QUESTÕES
particular, isto é, especial. Com efeito, ele deve ser
acuradamente distinto de todos os outros tipos de prazer. De 1. (UFU 2014) Segundo David Hume, é correto afirmar
fato, por prazer entendemos sensações muito diferentes que o princípio de causalidade é
entre si. A) o resultado da nossa forma habitual de perceber os
Como exemplifica Hume, uma coisa é o prazer fenômenos, uns em conjunção com os outros.
que experimentamos ao beber uma boa taça de vinho, B) o nexo, fixado por Deus na criação, entre os objetos
um prazer que é de caráter puramente hedonístico; da experiência.
outra coisa é o prazer que experimentamos ao ouvir C) o conhecimento a priori da natureza e dos seus
uma boa composição musical, que é um prazer estético. fenômenos.
Nós captamos imediatamente a diferença entre D) o ato de conectar os objetos da experiência a partir
esses dois tipos de prazer, não havendo nenhum perigo dos valores e interesses utilitários de uma classe social.
de que consideremos o vinho harmonioso ou a
composição musical saborosa. Analogamente, diante da 2. (UFU 2011) David Hume (1711-1776) é um dos
virtude de uma pessoa, experimentamos um prazer representantes do empirismo. Sua teoria sobre as ideias
peculiar que nos impele a louvá-la (assim como, diante parte do princípio de que não há nada em nossa mente
do vício, experimentamos um desprazer que nos impele que não tenha passado antes pelos sentidos, portanto,
a censurá-lo). as ideias vão se formando ao longo da vida. Dessa
Trata-se, segundo Hume, de um tipo de prazer forma, Hume afasta-se do princípio da corrente
(ou dor) desinteressado. E essa é justamente a conotação racionalista ou inatista segundo a qual afirma que há
especifica do sentimento moral: o estar ideias inatas em nossa mente.
“desinteressado”. De acordo com o pensamento de Hume, é correto
afirmar que
Importância do sentimento de simpatia A) as percepções dos sentidos geram impressões e
ideias.
De notável relevância moral para Hume é, além B) as ideias que podem ser consideradas verdadeiras são
disso, o sentimento de simpatia. Valorizando esse as inatas.
sentimento, nosso filósofo coloca-se em clara antítese C) as ideias fictícias são as que têm mais alto grau de ser.
com a visão pessimista de Hobbes. D) as percepções dos sentidos nos enganam, por isso as
Eis uma significativa afirmação de Hume: "Não ideias daí decorrentes são falsas.
há qualidade da natureza humana mais notável, seja em
si e por si, seja por suas consequências, do que nossa 3. (UFU 2012) O texto abaixo comenta a correlação
propensão a experimentar simpatia pelos outros, e a receber entre ideias e impressões em David Hume. Em
por transmissão as inclinações e os sentimentos alheios, contrapartida, vemos que qualquer impressão, da mente
por mais diferentes e até mesmo contrários sejam eles ou do corpo, é constantemente seguida por uma ideia
em relação aos nossos". que a ela se assemelha, e da qual difere apenas nos graus
de força e vividez. A conjunção constante de nossas
O utilitarismo na moral percepções semelhantes é uma prova convincente de
que umas são as causas das outras; [...].
Para explicar a ética Hume recorreu também à HUME, D. Tratado da natureza humana. São Paulo: Editora
da Unesp/Imprensa Oficial do Estado, 2001. p. 29.
dimensão utilitarista.
Assinale a alternativa que, de acordo com Hume, indica
Com efeito, diz ele, o “útil” move nossa
corretamente o modo como a mente adquire as
concordância.
percepções denominadas ideias.
Mas o “útil” de que se fala no campo da ética
não é “nosso útil particular”, e sim o útil que, além de
207
19
A) Todas as nossas ideias são formas a priori da mente HUME, D. Investigação acerca do
e, mediante essas ideias, organizamos as respectivas entendimento humano. Trad. de João Paulo Gomes Monteiro.
impressões na experiência. São Paulo: Nova Cultural, p. 69-70. (Os Pensadores)
B) Todas as nossas ideias advêm das nossas Para Hume, podemos afirmar que o conhecimento
experiências e são cópias das nossas impressões, as deve ser entendido como
quais sempre antecedem nossas ideias. A) possível unicamente quando as impressões são
C) Todas as nossas ideias são cópias de percepções reduzidas às ideias simples das quais se originam.
inteligíveis, que adquirimos através de uma experiência
B) descrição da realidade pautada pela ideia de
metafísica, que transcende toda a realidade empírica.
D) Todas as nossas ideias já existem de forma inata, e substância e pela impressão de causalidade.
são apenas preenchidas pelas impressões, no momento C) uma associação de ideias, que são, em última
em que temos algum contato com a experiência. instância, formadas por impressões.
D) resultado da associação de ideias, que se originam
4. (UEL 2008) Como o costume nos determina a exclusivamente do intelecto.
transferir o passado para o futuro em todas as nossas
inferências, esperamos— se o passado tem sido 6. David Hume, filósofo do século XVIII, partindo da
inteiramente regular e uniforme—o mesmo evento com teoria do conhecimento, sustentava que
a máxima segurança e não toleramos qualquer I - o sujeito do conhecimento opera associando
suposição contrária. Mas, se temos encontrado que sensações, percepções e impressões recebidas pelos
diferentes efeitos acompanham causas que em órgãos dos sentidos e retidas na memória.
aparência são exatamente similares, todos estes efeitos II - as ideias nada mais são do que hábitos mentais de
variados devem apresentar-se ao espírito ao transferir o associações e impressões semelhantes ou de impressões
passado para o futuro, e devemos considerá-los quando sucessivas.
determinamos a probabilidade do evento. III - as ideias de essência ou substância nada mais são
(HUME, D. Investigações acerca do entendimento humano. que um nome geral dado para indicar um conjunto de
Tradução de Anoar Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 73.)
imagens e de ideias que nossa consciência tem o hábito
Com base no texto e nos conhecimentos sobre Hume,
de associar por causa das semelhanças entre elas.
é correto afirmar:
Assinale
a) Hume procura demonstrar o cálculo matemático de
A) se I, II e III estiverem corretas.
probabilidades.
B) se apenas I e II estiverem corretas.
b) Hume procura mostrar o mecanismo psicológico
C) se apenas II e III estiverem corretas.
pelo qual a crença se fixa na imaginação.
D) se apenas I e III estiverem corretas.
c) Para Hume, há uma conexão necessária entre causa e
E) se nenhuma estiver correta
efeito.
d) Para Hume, as inferências causais são a priori.
7. Hume escreveu: “Quando pensamos numa
e) Hume procura mostrar que crença e ficção produzem
montanha de ouro, apenas unimos duas idéias
o mesmo efeito na imaginação humana.
compatíveis, ouro e montanha, que outrora
conhecêramos. Podemos conceber um cavalo virtuoso,
5. Podemos, por conseguinte, dividir todas as
pois o sentimento que temos de nós mesmos nos
percepções do espírito em duas classes ou espécies, que
permite conceber a virtude e podemos uni-la à figura e
se distinguem por seus diferentes graus de força e
forma de um cavalo, que é um animal bem conhecido”.
vivacidade. As menos fortes e menos vivas são
HUME. “Investigações acerca do entendimento humano” —
geralmente denominadas pensamentos ou idéias. A Seção II. In: Da origem das idéias. Coleção “Os Pensadores”. São
outra espécie (...) pelo termo impressão, [pelo qual] Paulo: Abril Cultural, 1989. (Grifos do autor).
entendo, pois, todas as percepções mais vivas, quando Observando os exemplos empregados pelo filósofo
ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, escocês, analise as assertivas abaixo.
desejamos ou queremos. E as impressões diferenciam- I - Todas as idéias utilizadas pela razão originam-se,
se das idéias, que são as percepções menos vivas, das diretamente, do pensamento puro, sem nenhuma
quais temos consciência, quando refletimos sobre relação com as sensações.
quaisquer das sensações ou dos movimentos acima
mencionados.
208
20
II - A vinculação de uma coisa — o ouro, com outra — 10. (UFU 2017) Hume descreveu a confiança que o
a montanha, não depende da vontade de querer associá- entendimento humano deposita na probabilidade dos
las. resultados dos eventos observados na natureza. Ele
comparou essa convicção ao lançamento de dados,
III - Tudo aquilo que está no pensamento deriva das
cujas faces são previamente conhecidas, porém, nas
sensações externas e internas: o cavalo e a virtude do palavras do filósofo:
exemplo acima. [...] verificando que maior número de faces aparece mais
IV - Toda composição das coisas, conhecidas em em um evento do que no outro, o espírito [o
separado, depende do espírito e da vontade que as entendimento humano] converge com mais frequência
empregam. para ele e o encontra muitas vezes ao considerar as
Assinale a alternativa que contém as assertivas várias possibilidades das quais depende o resultado
definitivo.
verdadeiras. HUME, D. Investigação acerca do entendimento humano. Tradução de
A) Apenas II e III. Anoar Aiex. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 93. Coleção “Os
B) Apenas I, III e IV. Pensadores”.
Esse tipo de raciocínio, descrito por Hume, conduz o
C) Apenas I e II.
entendimento humano a uma situação distinta da
D) Apenas III e IV. certeza racional, uma espécie de “falha”, representada
pelo(a)
8. David Hume escreveu que “podemos, por A) verdade da fantasia, que é superior à certeza racional.
conseguinte, dividir todas as percepções do espírito em B) crença, que ocupa o lugar da certeza racional.
duas classes ou espécies, que se distinguem por seus C) sentido visual, que é mais verídico que a certeza
diferentes graus de força e vivacidade”. sensível.
HUME, D. Investigação acerca do entendimento humano. São D) ideia inata, que atua como o a priori da razão humana.
Paulo: Nova Cultural, 1989, p. 69.
Assinale a ÚNICA alternativa, que apresenta estas duas
classes de percepções:
A) os pensamentos e as impressões.
B) as idéias inatas e os dogmas religiosos.
C) as certezas evidentes e os hábitos sociais.
D) as superstições e as intuições intelectuais.

9. David Hume, filósofo empirista do séc. XVIII opera


com o postulado radical de que todos os materiais da
mente humana são advindos da experiência. Das quatro
alternativas abaixo, três formulam fundamentos básicos
da filosofia de David Hume e são decorrentes deste
postulado. Uma contém um evidente equívoco.
Assinale, portanto, a alternativa INCORRETA, que
está em contradição com o postulado acima enunciado.
A) O tato, o olfato, o paladar e a audição não produzem
idéias, pois não podem produzir cópias de nada que
esteja contido numa experiência.
B) Os órgãos dos sentidos, desde que aptos para suas
funções, sempre produzem idéias referentes a certos
aspectos da experiência.
C) Todas as percepções da mente humana são
impressões ou idéias, e estas percepções são,
forçosamente, produtos da experiência.
D) Toda idéia é cópia de uma impressão, e toda
impressão precede uma idéia.

209
21
GABARITO

QUESTÕES BACON
1. a
2. e
3. a
4. a
5. d
6. c
7. e
8. d

QUESTÕES LOCKE
1. a
2. 1/8/16
3. a
4. c
5. b
6. e
7. e

QUESTÕES BERKELEY
1. 2/4

QUESTÕES HUME
1. a
2. a
3. b
4. b
5. c
6. c
7. d
8. a
9. a
10. b

210
22
ILUMINISMO Os intelectuais franceses visitavam Londres e
ficavam maravilhados com a ampla liberdade que o
indivíduo desfrutava naquele lugar. As pessoas tinham
O iluminismo é um movimento intelectual de a possibilidade de mudar de vida pelo esforço próprio,
valorização da razão que tem início na Inglaterra ainda e os cargos público eram preenchidos por qualquer um
no século XVII, inspirado pela revolução científica, mas que tivesse competência. E acima de tudo, todos
que toma maior destaque na França no século XVIII pagavam impostos e o rei poderia criar novos tributos
(devido à estrutura social daquele país e o impacto que somente com autorização do parlamento. Era algo de
a revolução daquele país teve no ocidente), e na região se admirar.
que posteriormente iria se tornar a Alemanha.
Assim como a revolução científica deu à luz, por 1. VOLTAIRE E A TOLERÄNCIA
meio da razão, as leis que regem o universo físico, os
iluministas queriam trazer à luz, a sociedade, afastando- François-Marie
a das trevas dos preconceitos oriundos da tradição e da Arouet (conhecido sob o
religião que perduraram durante toda Idade Média. pseudônimo de Voltaire)
E que trevas eram essas? 1) O absolutismo nasceu em Paris, último dos
monárquico, 2) o mercantilismo e 3) a estrutura social cinco filhos de um rico
hierarquizada e sem mobilidade; todos sustentados pela notório, em 1694.
autoridade irracional da tradição e da religião. Em suma, De família rica
o Antigo Regime. burguesa, Voltaire é o maior
Essa estrutura irracional e opressora aprisiona o propagador do Iluminismo
homem e não deixa ele se desenvolver, causando a na França. Hábil escritor,
infelicidade humana, e por isso deve ser combatida e denunciava constantemente a intolerância religiosa, o
exterminada. clero, e a prepotência dos poderosos, sendo muito
Mas já que o sistema era tão ruim quanto vezes perseguido, preso e exilado. Mas sempre
pintavam os iluministas, porque as pessoas não se combativo.
voltaram contra ele por conta própria? Por que elas Em 1704 tornou-se aluno de um prestigiado
estavam nas trevas e não conseguem enxergar a luz, colégio mantido pelos jesuítas. Aí, deu provas de vivaz
devendo serem educadas para perceberem sua situação. precocidade.
Por que a natureza é do jeito que é? Por que o Tendo recebido uma herança, deixou o colégio
rei governa? Por que a sociedade é dividida e rígida? e passou a frequentar o círculo dos jovens "livres-
“Por que Deus quer”. Com os avanços da razão nas pensadores" e iniciou seus estudos de direito.
ciências, esse tipo de fundamento não se sustentava Envolto em desavenças por causa de seus
mais. A razão deve agora guiar o homem em direção ao escritos, Voltaire ficou preso mais de uma vez na
progresso, por meio da educação. Bastilha.
E essa tarefa de iluminar a sociedade foi Saindo da prisão, partiu em exilio para a
abraçada com toda força e vigor pelos iluministas. Eles Inglaterra, onde permaneceu por três anos. Na
conseguiram propagar as ideias que derrubariam Inglaterra, foi introduzido nos círculos da alta cultura
regimes inteiros e instalariam uma nova ordem mundial inglesa. Estudou as instituições políticas inglesas e
baseada na razão, na liberdade e na felicidade dos aprofundou o pensamento de Locke e de Newton.
povos. O grande resultado de sua estadia inglesa são as
Eles tinham um novo projeto de sociedade, que Cartas filosóficas sobre os ingleses, publicadas pela primeira
seria organizada racionalmente, assim como o universo vez em inglês em 1733, e depois em França, em 1734
mecanicista de Newton. Dessa maneira, o método (mas impressas na Holanda e distribuídas
empírico-matemático usado para descobrir as leis clandestinamente na França). Nessas Cartas, Voltaire
físicas, seria usado também para organizar essa nova contrapõe as liberdades inglesas ao absolutismo político
sociedade. francês, expõe os princípios da filosofia empirista de
Em meados do século XVIII a França ainda era Bacon, Locke e Newton e contrapõe a ciência de
um país caracteristicamente feudal. Havia um rei com Newton a de Descartes. Voltaire não nega os méritos
poderes absolutos, uma sociedade altamente matemáticos de Descartes, mas sustenta que ele "fez
estratificada e praticamente sem mobilidade social, e uma filosofia como se faz um bom romance: tudo
ainda, com a Igreja católica legitimando todo esse parecia verossímil e nada era verdadeiro".
sistema e ditando o que as pessoas podiam ou não fazer. Voltaire retornou à França em 1729. Em 1734,
O pessoal já estava puto por lá, de saco cheio como já dissemos, são publicadas as Cartas filosóficas sobre
dos padres, bispos e cardeais corruptos que viviam no os ingleses. O Parlamento as condenou e o livro foi
luxo às custas do trabalho alheio. queimado no pátio da Cúria Parlamentar. Novamente
Voltaire fugiu de Paris.
211
1
Reconciliado com a Corte, Voltaire foi E Deus, na opinião de Voltaire, existe porque
nomeado historiógrafo da França pelo rei, e em 15 de existe a ordem do mundo. Em suma, a existência de
abril de 1746 foi eleito membro da Academia. Deus é atestada pelas “simples e sublimes leis em
Em 1749 Voltaire partiu para Berlim, onde virtude das quais os mundos celestes correm no abismo
Frederico 1º da Prússia lhe havia oferecido um alto dos espaços”.
posto em seu governo. Recebido com grandes honras, No Tratado de metafísica, Voltaire escreve que
Voltaire terminou, depois de três anos, o período “depois de sermos tão arrastados de dúvida em dúvida,
prussiano com urna prisão. de conclusão em conclusão, [...] podemos considerar
Em 1756, publicou o Poema sobre o desastre de esta proposição: Deus existe, como a coisa mais
Lisboa. Nesse meio tempo, colaborou com a verossímil que os homens podem pensar [...] e a
Enciclopédia. Em 1762, foi condenado injustamente o proposição contrária como uma das mais absurdas”.
comerciante protestante Jean Calas, acusado, Deus existe. Mas também existe o mal. Como
juntamente com sua família, de ter assassinado um filho conciliar a presença maciça do mal com a existência de
que pretenderia se converter ao catolicismo. Deus? A resposta de Voltaire é que Deus criou a ordem
Voltaire escreveu então o Tratado sobre a do universo físico, mas que a história é uma questão dos
tolerância, no qual, como veremos melhor em breve, homens. E esse é o núcleo doutrinário do deísmo. O
denuncia impiedosamente e com nobre paixão humana deísta é alguém que sabe que Deus existe.
os erros judiciários, o fanatismo, o dogmatismo e a Voltaire, portanto, é deísta. E justamente em
intolerância religiosa. nome do deísmo ele rejeita o ateísmo. Para o deísta, a
O Dicionário filosófico é de 1764; a Filosofia da existência de Deus não é artigo de fé, e sim resultado da
história, publicada na Holanda, é de 1765; e o Comentário razão. A existência de Deus, portanto, é um dado de
sobre o livro dos delitos e das penas de Beccaria (cujo ensaio razão. A fé, ao contrário, é apenas superstição. Por isso,
havia aparecido dois anos antes, em 1764). com suas crenças, seus ritos e liturgias, as religiões
Ele é um dos grandes defensores da liberdade positivas são quase completamente acúmulos de
de crença. É famosa a sua célebre frase: “Posso não superstições.
concordar com nenhuma palavra que você diz, mas Não é de admirar que uma seita considere
defenderei até a morte o seu direito de dizê-la”. supersticiosa outra seita e todas as outras religiões.
Concordava com Locke sobre a necessidade de Depois de fazer longas relações de superstições,
limitações ao poder real, assim como o fato dos homens Voltaire conclui: "Menos superstições, menos
serem dotados de direitos naturais que não podiam fanatismo; menos fanatismo, menos desventuras".
ser violados pelo governo.
Não era um democrático, pois acreditava que o A crítica ao otimismo dos filósofos
povão não tinha capacidade para participar da política.
Era defensor de uma monarquia esclarecida que Conforme já acenamos acima, segundo Voltaire
governasse de acordo com a razão. Trocava cartas com negar o mal é absurdo. O mal existe: os horrores da
Frederico II da Prússia e a imperatriz Catarina da maldade humana e as penas das catástrofes naturais não
Rússia, aconselhando-os a tomar decisões racionais que são invenções dos poetas. São fatos nus e crus que se
levassem ao progresso de seus países, como em investir chocam com força decisiva contra o otimismo dos
em educação. filósofos, contra a ideia do "melhor dos mundos
Embora já estivesse em idade avançada, a possíveis".
atividade de Voltaire não cessou. Após um período de Já no Poema sobre o desastre de Lisboa,
produção intelectual intenso, Voltaire volta a Paris, para Voltaire perguntava-se o porquê do sofrimento
a apresentação de sua última peça (uma comédia), Irene. inocente, a razão da "desordem eterna" e do "caos de
Durante a viagem foi aclamado por imensas multidões, desventuras" que nos cabe ver neste "melhor dos
aos gritos de “Viva Voltaire!” Algumas semanas mais mundos possíveis".
tarde, em 30 de maio de 1778, Voltaire morreu. E dizia que se é verdade que "tudo um dia ficará
bem" constitui a nossa esperança, entretanto é ilusão
Defesa do deísmo sustentar que "tudo está bem hoje em dia".
Entretanto, é com Cândido ou o otimismo,
Há dicionários segundo os quais o verdadeira obra-prima da literatura e da filosofia
voltairianismo define-se como "atitude de incredulidade iluminista, que Voltaire procura despedaçar aquela
irônica em relação às religiões. filosofia otimista que trata de justificar tudo, proibindo
Todavia, para Voltaire, Deus existe ou não assim compreender alguma coisa. O Cândido é um
existe? Pois bem, na opinião de Voltaire não há relato tragicômico. A tragédia está no mal, nas guerras,
qualquer dúvida de que Deus existe. Para ele, como para nas opressões, na intolerância, na superstição cega, nas
Newton, Deus é o grande engenheiro ou mecânico que doenças, nas arbitrariedades, na estupidez, nas
idealizou, criou e regulou o sistema do mundo. roubalheiras e nas catástrofes naturais (como o
212
2
terremoto de Lisboa) com que Cândido e seu mestre nossos problemas, para que este mundo possa melhorar
Pangloss (contrafigura de Leibniz) se defrontam. gradualmente ou, pelo menos, não se torne pior.
E a comédia está nas justificações insensatas
que Pangloss e também Cândido, seu aluno, procuram Os fundamentos da tolerância
dar às desventuras humanas.
Que tipo de mestre é Pangloss? E exatamente para que este mundo se tornasse
"Pangloss ensinava a metafisico-teológico-cosmológico- mais civilizado e a vida mais suportável, Voltaire travou
idiotologia. Demonstrava admiravelmente que não há efeitos sem durante toda a sua vida a batalha pela tolerância.
causas e que, neste melhor dos mundos possíveis, o castelo do Para ele, a tolerância encontra seu fundamento
senhor barão era o mais belo dos castelos e que sua senhora era a teórico no fato de que, conforme demonstraram
melhor baronesa possível. homens como Locke, apenas com as nossas próprias
Dizia: Está provado que as coisas não podem ser de forças nós não podemos saber nada dos segredos do
outro modo: com efeito, como tudo é feito para um fim, tudo existe Criador. Não sabemos quem é Deus, nem o que é a
necessariamente para o melhor fim. alma e muitas outras coisas.
Observai que os narizes são feitos para que neles Mas há quem se arrogue o direito divino da
repousem os óculos e, com efeito, nós temos óculos; notai que as onisciência - e daí a intolerância.
pernas são evidentemente conformadas para vestirem calças e, com No verbete "tolerância", do Dicionário filosófico,
efeito, nós temos calças. Da mesma forma, as pedras foram criadas podemos ler: “O que é a tolerância? É o apanágio da
para serem lapidadas e delas serem feitos castelos e, com efeito, humanidade. Nós todos estamos prenhes de fraqueza e
meu senhor tem um belíssimo castelo; o mais poderoso barão da de erros: perdoemo-nos reciprocamente nossas
província deve ser o melhor alojado. E, como os porcos foram bobagens, essa é a primeira lei da natureza”.
criados para serem comidos, nós comemos porco o ano inteiro. Nosso conhecimento é limitado e nós todos
Consequentemente, aqueles que afirmaram que tudo vai estamos sujeitos ao erro, nisso reside a razão da
bem disseram uma asneira: é preciso dizer que tudo vai da melhor tolerância reciproca: “Em todas as outras ciências nós estamos
maneira possível". sujeitos ao erro. Qual teólogo, tomista ou escotista, ousaria então
E, de modo verdadeiramente eficaz, Voltaire, de sustentar seriamente que está absolutamente seguro de sua
forma elíptica, elabora um conto que, com ironia levada posição?” No entanto, as religiões estão armadas umas
aos extremos limites, mostra como o contrário é em contra as outras e, no interior das religiões, as seitas
larga medida verdadeiro. O mundo “como vai” é muito geralmente são terríveis no combate reciproco.
frequentemente a antítese de como “deveria ir” A intolerância se entrelaça com a tirania. E “o
segundo o otimismo. E o que acontece aos tirano é aquele soberano que não conhece outras leis além de seus
protagonistas e o modo em que o interpretam resultam caprichos, que se apropria dos haveres de seus súditos, e depois os
na prova irrefutável, bem orquestrada com vários jogos recruta para que tomem os bens dos vizinhos”.
narrativos, parodias pungentes e sátiras sarcásticas. Mas, voltando à intolerância mais
Mas Voltaire não critica apenas a interpretação especificamente religiosa, o que Voltaire sustenta é que
abstrata deste nosso mundo como "o melhor dos a Igreja cristã quase sempre esteve estraçalhada pelas
mundos possíveis", mas, ao contrário, critica em seitas.
contraponto todas as maldades que caracterizam o Pois bem, afirma Voltaire: “uma tão horrível
mundo como efetivamente vai. discórdia, que dura há tantos séculos, é uma claríssima
Mas o que se pode fazer então, para sair dos lição de que devemos perdoar uns aos outros nossos
males do mundo? erros: a discórdia é a grande peste do gênero humano e
Voltaire o diz como conclusão do relato com a tolerância é o seu único remédio”.
duas afirmações significativas: "trabalhemos sem
discutir, pois é o único modo de tornar suportável a
vida"; e sobretudo: “é preciso cultivar nossa horta”.
Esse “cultivar nossa horta” não é fuga dos QUESTÕES
compromissos da vida, mas o modo mais digno para
vivê-la e para mudar a realidade naquilo que nos é 1. (UEM 2011) Segundo o pensador francês Voltaire
possível. (1694-1778): “É verdade que os magistrados não são
Nem tudo é mal e nem tudo é bem. O mundo, senhores do povo: são as leis que são as senhoras; mas
porém, está cheio de problemas. Cabe a cada um de nós o resto é absolutamente falso no nosso e em todos os
não fugir dos nossos problemas, e sim enfrentá-los, Estados. Temos o direito, quando somos convocados,
fazendo aquilo que for possível para resolvê-los. de rejeitar ou de aprovar os magistrados e as leis que
Nosso mundo não é o pior dos mundos nos propõem; não temos o direito de destituir os
possíveis, mas também não é o melhor. "É preciso oficiais do Estado quando nos aprouver: esse direito
cultivar nossa horta", isto é, precisamos enfrentar os seria o código da anarquia. O próprio rei da França,
213
3
quando deu o cargo a um magistrado, não pode 2. MONTESQUIEU E OS TRÊS PODERES
destituí-lo a não ser por um processo.”
(VOLTAIRE, Ideias republicanas por um membro do corpo. In: Charles Louis de
MARÇAL, J. (org.). Antologia de Textos Filosóficos. Curitiba: SEED- Secondat (barão de
PR, 2009, p. 715)
Montesquieu) nasceu em
A partir do trecho citado, assinale a(s) alternativa(s)
Bordeaux no ano de 1689.
correta(s).
Montesquieu (1689 – 1755)
01) Os magistrados são os senhores do povo e não
era um nobre que desde
podem ser destituídos.
muito cedo recebeu
02) A lei deve estar acima de todos: reis, magistrados e
formação iluminista,
povo.
tornando-se um crítico
04) A liberdade do povo, expressa no poder de
severo das monarquias
aprovação ou rejeição das leis, inexiste contra os
absolutistas e do clero.
magistrados.
Tendo realizado seus estudos jurídicos
08) A destituição dos magistrados de seus cargos
inicialmente em Bordeaux e depois em Paris, foi
públicos deve ser algo previsto em lei e não ao arbítrio
conselheiro (1714) e, posteriormente, em 1716,
da vontade.
presidente de seção do Parlamento de Bordeaux (antes
16) A liberdade da vontade de um indivíduo não pode
da Revolução, os parlamentos franceses eram órgãos
estar acima das leis, sob o risco de cair-se na anarquia.
judiciários).
Realizou viagens à Itália, Suíça, Alemanha,
2. (UEM 2013) “Enquanto a filosofia se preocupa com
Holanda e Inglaterra.
a certeza e com o universal, a história só fornecia relatos
Neste último país, ficou mais de um ano (1729-
particulares e incertos. Voltaire [...] pensa que o filósofo
1731) e, estudando a vida politica inglesa, concebeu
deve auxiliar o historiador, ou melhor, que o historiador
aquela opinião elevada sobre as instituições políticas
dever ser filósofo. No que se refere à certeza e à prática
dos ingleses, que encontraremos em sua obra maior, 0
do historiador, Voltaire sustenta que ele deve ter
espirito das leis.
cuidado com suas fontes, duvidar sempre de relatos
Ele é fã de John Locke e em Londres estuda o
inverossímeis e, como se faz em processos judiciários,
funcionamento da monarquia constitucional
deve sempre saber se a testemunha é fidedigna.
parlamentarista, que é o modelo de governo que ele
Justamente por não ser possível uma certeza histórica,
defende, sendo a favor de um liberalismo aristocrático
o historiador deve se preocupar em multiplicar as
e não da democracia.
evidências que permitem a ele relatar este ou aquele fato
Voltando à França em 1731, viveu trabalhando
e defender esta ou aquela interpretação. [...] Além disso,
em suas obras até sua morte, ocorrida em 1755.
Voltaire tentará encontrar um sentido para a história.
Montesquieu escreveu sobre diversos assuntos, tanto
[...] A variedade dos povos mostra que é impossível
de natureza literária como científica, embora seu maior
reduzir toda a história à história de um povo em
interesse, o da ciência política, já se manifestasse em
particular”
(BRANDÃO, R. Voltaire: filosofia, literatura e história. In:
algumas de suas Cartas persas, publicadas anonimamente
Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED-PR, 2009, p. 698-670). em 1721.
Com base no trecho citado, assinale o que for correto. Somente em 1748, depois de vinte anos de
01) Voltaire é favorável ao etnocentrismo. trabalho, publicou O espírito das leis, onde ele analisa o
02) Voltaire defende elementos da prática filosófica ao comportamento político dos diferentes tipos de
exercício do historiador. sociedades apresentadas pela história, e suas relações
04) O gênio ou o espírito de uma época não pode ser com o poder. A partir daí ele traça um panorama geral
determinado, pois a história não é objetiva. da natureza, do espírito, das leis.
08) A interpretação da história deve estar acompanhada Ele não está interessado na discussão da
de perícia e da reconstituição meticulosa dos fatos. legitimidade dos governos, como Hobbes e Locke, o
16) O ofício especulativo do historiador é universal e que ele quer entender é o funcionamento dos governos
abstrato, independentemente de quais sejam as fontes e como eles se mantêm.
que pesquisa. E para começar a discussão, contrapondo ao
conceito medieval de Lei como fruto da vontade divina,
ele apresenta uma nova concepção de Lei influenciado
pela física newtoniana, com o intuito claro de tratar de
política como uma área totalmente independente da
religião.
Para ele, Lei é a relação necessária que deriva da
natureza das coisas. Com essa concepção ele quer
mostrar que apesar da variedade de costumes das
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4
diferentes sociedades que funcionam por regimes que, ao mesmo tempo em que dão ordem a tais
políticos distintos, podemos encontrar uma observações empíricas, delas recebem forte suporte
uniformidade/universalidade (como na física) no empírico.
funcionamento (movimento) dos governos Eis os esquemas de ordenação de Montesquieu:
(massa/matéria/corpos). “Existem três espécies de governo: o republicano,
Dessa análise do funcionamento das diversas o monárquico e o despótico [...]. O governo republicano é
formas de governo (monarquia, república, despotismo), aquele em que o povo, em sua totalidade ou uma parte
ele chega à conclusão de que a liberdade (o direito de dele, possui o poder soberano; o monárquico é aquele
fazer tudo aquilo que a lei permite), só pode existir em que só um governa, mas com base em leis fixas e
verdadeiramente quando há a separação (bem definida), imutáveis; ao passo que o despótico é aquele em que
harmonia, e independência entre os poderes executivo, também um só governa, mas sem leis e sem regras,
legislativo e judiciário. decidindo de tudo com base em sua vontade e ao seu
bel-prazer”.
O espírito das leis Essas três formas de governo são tipificadas
pelos respectivos princípios éticos, que são a virtude para a
Montesquieu teve uma confiança bastante forma republicana, a honra para a monárquica e o medo
grande nas ciências naturais, e seu intento foi o de para a despótica.
examinar os acontecimentos hist6ricos e sociais com o A forma ou natureza do governo “é aquilo que
método das ciências naturais. o faz ser tal, isto é, o princípio que o faz agir. Um é
A análise empírica dos fatos sociais, que já se movido por sua estrutura peculiar, outro é movido pelas
manifestara nas Cartas persas, também é típica de 0 paixões humanas”. E claro, diz Montesquieu, que as leis
espirito das leis, que em muitos aspectos é sua obra prima. devem ser relativas tanto ao princípio de governo como
Escreve Montesquieu: "Muitas coisas governam a sua natureza.
os homens: os climas, as religiões, as leis, as máximas Assim, para sermos mais claros, “não é preciso
de governo, os exemplos das coisas passadas, os muita probidade para que um governo monárquico ou despótico
costumes, os usos, e disso tudo resulta um espirito possa se manter e defender. A força das leis em um e o braço
geral". ameaçador do príncipe no outro regulam e governam tudo. Mas,
Por espirito das leis, portanto, devem-se entender em um estado popular, é preciso uma mola a mais, que é a virtude.
as relações que caracterizam um conjunto de leis Essa afirmação está em conformidade com a natureza
positivas e históricas que regulam as relações humanas das coisas e, ademais, é confirmada por toda a história universal.
nas várias sociedades. Com efeito, é evidente que, em uma monarquia, onde quem faz
“A lei, em geral, é a razão humana, enquanto governa cumprir as leis se considera acima delas há menos necessidade de
todos os povos da terra. As leis políticas e civis de cada nação virtude do que em um governo popular, onde quem faz cumprir as
nada mais devem ser do que os casos particulares aos quais se leis está consciente de também submeter-se a elas, e sabe que deve
aplica tal razão humana. Elas devem se adaptar tão bem ao povo suportar seu peso [...].
para o qual foram feitas, que somente em casos raríssimos as leis Quando tal virtude é deixada de lado, a ambição penetra
de uma nação poderiam convir a uma outra [...]. Elas devem ser nos corações a ela mais inclinados e a avareza penetra em todos.
[...] relativas à geografia física do país; ao clima glacial, tórrido As aspirações voltam-se para outras finalidades: aquilo que antes
ou temperado; à qualidade, situação e grandeza do país; ao gênero se amava agora é desprezado; antes, era-se livre sob a lei, mas
de vida dos povos, camponeses, caçadores ou pastores; devem estar agora se quer ser livre contra as leis”.
em relação com o grau de liberdade que a constituição pode tolerar; Temos, portanto, três formas de governo
à religião dos habitantes, às suas inclinações, às suas riquezas, ao inspiradas em três princípios. Essas três formas de
seu número, ao seu comércio, aos seus costumes, aos seus usos. Por governo podem se corromper, e "a corrupção de todo
fim, elas estão em relação entre si e com a sua origem, com as governo começa quase sempre pela corrupção de seu
finalidades do legislador e com a ordem das coisas nas quais se princípio".
fundamentam. Portanto, é necessário estudá-las sob todos esses Assim, por exemplo, “o princípio da
diversos aspectos. E foi essa a empresa que tentei realizar em democracia se corrompe não somente quando se perde
minha obra. Examinarei todas essas relações – e o seu conjunto o princípio da igualdade, mas também quando se
constitui aquilo que chamo de espirito das leis." difunde um espírito de maldade extrema e cada um
As leis, portanto, são diferentes de povo para pretende ser igual àqueles que escolheu para comandá-
povo, em função do clima, das ocupações lo”.
fundamentais, da religião e assim por diante. Pois bem, Montesquieu esclarece esse importante
Montesquieu não trata de toda a enorme massa de fatos pensamento com as seguintes palavras: “O verdadeiro
empíricos relativos às "leis" dos diversos povos com um espirito de igualdade está tão distante do espirito de extrema
esquema apriorista, abstrato e absoluto. igualdade quanto o céu está distante da terra. O primeiro não
Entretanto, da ordem ilimitada série de consiste em absoluto em fazer com que todos comandem ou que
observações empíricas por meio de princípios precisos, ninguém seja comandado e sim no obedecer e comandar a iguais.
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Ele não pretende de modo algum que não se tenha senhores, mas preciso que o governo esteja em condições de libertar cada cidadão
sim que só tenha iguais como senhores [...] O lugar natural da do temor em relação aos outros".
virtude é ao lado da liberdade, mas ela não pode sobreviver ao Entretanto, se o objetivo é precisamente a
lado da liberdade extrema mais do que poderia sobreviver na liberdade, então “quando uma mesma pessoa ou o mesmo corpo
escravidão”. de magistrados concentra os poderes legislativo e executivo, não há
E, em segundo lugar, no que se refere ao mais liberdade, porque subsiste a suspeita de que o próprio
princípio monárquico, ele "se corrompe quando as monarca ou o próprio senado possam fazer leis tirânicas para
máximas dignidades se tornam símbolos da máxima depois, tiranicamente, fazê-las cumprir”.
escravidão, quando os grandes ficam privados do E nem teríamos mais liberdade "se o poder de
respeito popular e tornam-se instrumentos vis de um julgar não estivesse separado dos poderes legislativo e
poder arbitrário. Ele se corrompe ainda mais quando a executivo. Com efeito, se estivesse unido ao poder
honra é contraposta às honras e quando se pode ser ao legislativo, haveria uma potestade arbitraria sobre a vida
mesmo tempo coberto de cargos e de infâmia". E, por e a liberdade dos cidadãos, posto que o juiz seja
fim, “o princípio do governo despótico se corrompe legislador. E se estivesse unido ao poder executivo, o
incessantemente, porque é corrupto por sua própria juiz poderia ter a força de um opressor".
natureza”. Por fim, “tudo estaria [...] perdido se o mesmo homem
ou o mesmo corpo dos governantes, dos nobres ou do povo exercesse
A divisão dos poderes juntamente os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as
resoluções públicas e o de julgar os delitos ou as causas entre os
A obra maior de Montesquieu não é composta privados”.
apenas de análise descritiva e de teoria política
explicativa. Ela também é dominada por uma grande
paixão pela liberdade. E Montesquieu elabora o valor QUESTÕES
da liberdade política na história, estabelecendo na teoria
aquelas que são as condições efetivas que permitem que 01. Os textos abaixo referem-se a pensadores cujas
se desfrute a liberdade. obras e ideias exerceram forte influência em
Montesquieu explicita esse interesse central importantes eventos ocorridos nos séculos XVII e
sobretudo no capítulo que dedica à monarquia inglesa, XVIII. Leia-os e aponte a alternativa que os relaciona
no qual é delineado o Estado de direito que se havia
configurado depois da revolução de 1688. Mais corretamente a seus autores:
particularmente, Montesquieu analisa e teoriza aquela I. “O filósofo desenvolveu em seus Dois Tratados
divisão de poderes que constitui um fulcro inextirpável Sobre Governo a ideia de um Estado de base
da teoria do Estado de direito e da prática da vida contratual. Esse contrato imaginário entre o Estado e
democrática. os seus cidadãos teria por objeto garantir os direitos
Afirma Montesquieu: naturais do homem, ou seja, liberdade, felicidade e
“A liberdade política não consiste de modo algum em
prosperidade. A maioria tem o direito de fazer valer seu
fazer aquilo que se quer. Em um Estado, isto é, em uma
sociedade na qual existem leis, a liberdade não pode consistir ponto de vista e, quando o Estado não cumpre seus
senão em poder fazer aquilo que se deve querer e em não ser objetivos e não assegura aos cidadãos a possibilidade de
obrigado a fazer aquilo que não se deve querer [...]. A liberdade defender seus direitos naturais, os cidadãos podem e
é o direito de fazer tudo aquilo que as leis permitem”. devem pegar em armas contra seu soberano para
Nesse sentido, não é que as leis limitem a assegurar um contrato justo e a defesa da propriedade
liberdade, elas a asseguram para cada cidadão, e este é o privada”.
fundamento constitutivo do Estado de direito
II. “O filósofo propôs um sistema equilibrado de
moderno. Em todo Estado, diz Montesquieu, existem
três tipos de poder: o poder legislativo, o executivo e o governo em que haveria a divisão de poderes
judiciário. (legislativo, executivo e judiciário). Em sua obra O
Pois bem, “por força do primeiro, o príncipe ou Espírito das Leis alegava que tudo estaria perdido se o
magistrado faz leis, que tem duração limitada ou ilimitada, e mesmo homem ou a mesma corporação exercesse esses
corrige ou revoga as leis já existentes. Por força do segundo, faz a três poderes: o de fazer leis, o de executar e o de julgar
paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, garante a
os crimes ou as desavenças dos particulares. Afirmava
segurança, previne as invasões. Por força do terceiro, pune os
delitos ou julga as causas entre pessoas privadas”. que só se impede o abuso do poder quando pela
Estabelecidas essas definições, Montesquieu disposição das coisas só o poder detém o poder”.
assevera que "a liberdade política em um cidadão é aquela a) I – John Locke; II – Voltaire;
tranquilidade de espirito que deriva da persuasão que cada qual b) I – John Locke; II – Montesquieu;
tem de sua própria segurança; para que se goze de tal liberdade é
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6
c) I – Rousseau; II – John Locke; biologicamente sadio e moralmente reto e, portanto,
d) I – Rousseau; II – Diderot; justo, não mau e não opressor. O homem não era, mas
e) I – Montesquieu; II – Rousseau. tornou-se mau e injusto. Seu desequilíbrio, porém, não
é originário, como considerava Pascal na esteira da
Bíblia, e sim um desequilíbrio derivado e de ordem
social.
3. ROUSSEAU E A VONTADE GERAL
Rousseau amava e odiava os homens. Mesmo
odiando-os, sentia que os amava. Ele os odiava por
Jean-Jacques
aquilo que se haviam tornado, mas os amava por aquilo
Rousseau (1712-1778)
que são em profundidade.
nasceu em Genebra e era
A sanidade moral, o sentido da justiça e o amor
filho de franceses
são parte da natureza do homem, ao passo que a
calvinistas que fugiram da
máscara, a mentira e a densa rede de relações alienantes
França por causa das
são efeitos daquela superestrutura que foi se formando
perseguições.
ao longo de um caminho de afastamento das
Foi talvez o único
necessidades e das inclinações originárias.
filósofo iluminista que não
Ele também escreve uma história hipotética da
nasceu em berço de ouro.
origem da humanidade porque considerava impossível
Desde muito cedo teve que
conhecê-la verdadeiramente, já que se tinha tão pouco
trabalhar para se sustentar, e em 1742 vai para a França
conhecimento e vestígios dessa época.
em busca de se destacar profissionalmente como
Mais do que uma realidade historicamente
professor de música.
datável, o estado da natureza é uma hipótese de trabalho
Rousseau era um Homem inteligente e escrevia
que Rousseau formula principalmente escavando
sobre muitos assuntos. Ele escreveu sobre música,
dentro de si mesmo e que utiliza para captar tudo o que,
poesia, mas foi com Discurso sobre a origem e a desigualdade
de tal riqueza humana, foi obscurecido e reprimido pela
entre os homens (1755), O contrato social (1762), e Emílio
efetiva caminhada histórica.
(1762), que Rousseau deixou seu nome marcado na
Quando falamos de um estado de natureza em
história como um grande filósofo, influenciando com
Rousseau, muito mais do que de um período histórico
suas ideias os rumos da França e do mundo ocidental
ou de uma particular experiência histórica, trata-se de
por conseguinte.
uma categoria teórica que facilita a compreensão do
Essas três obras são um todo que formam o seu
homem presente e das suas falsificações.
pensamento político. Suas obras eram tão radicas que
Em outros termos: na economia do
ele recebia críticas severas até mesmo de outros
pensamento de Rousseau, o estado natural tem valor
filósofos iluministas, principalmente de Voltaire que
normativo, constituindo um ponto de referência na
dizia que se fossemos dar ouvidos a Rousseau teríamos
determinação dos aspectos corrompidos que se
que voltar a andar de quatro.
insinuaram em nossa natureza humana.
Rousseau é também um grande contratualista,
Para Rousseau, em estado de natureza o homem
ele escreve sobre a origem do Estado seguindo o
era solitário, livre e feliz. Agia seguindo apenas seus
mesmo caminho de Hobbes e Locke, mas diverge
bons instintos naturais e em harmonia com o seu meio
totalmente de ambos. Vejamos, então, como ele
natural. Era um bom selvagem.
concebe a passagem do homem em estado de natureza
para a sociedade política.

Estado de natureza

Frances por formação espiritual, mas genebrino


por tradição moral e política, Rousseau sempre se
considerou estrangeiro na pátria que escolheu. Esse
sentimento de estar deslocado, vivido com intensidade,
talvez possa ser considerado como o fundamento
psicológico das análises sócio-político-culturais que
fizeram dele um crítico radical da vida civil de sua O tema do retorno à natureza permeia e
época. sustenta todos os escritos dele. É evidente a influência
Nostálgico de um modelo de relações sociais que exerceu sobre tal orientação de pensamento o mito
voltado para a recuperação dos sentimentos mais do "bom selvagem", difundido na literatura francesa a
profundos do espirito humano, ele levantou a hipótese partir do século XVI, quando, após as grandes
do homem natural, originalmente íntegro,
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descobertas geográficas, começa a idealização dos A cultura piorou o homem
povos primitivos e a apologia da vida "selvagem".
No século XVIII, quando a vida social, com Rousseau é contra a cultura, assim como ela se
seus "costumes corrompidos", foi submetida à crítica configurou historicamente, porque ela deturpou a
da razão, o gosto pelos costumes exóticos e o fascínio natureza.
por tudo o que parecia estranho à civilização européia Originariamente sadio, o homem vê-se agora
se acentuaram e se difundiram. Rousseau estudou isso desfigurado; outrora semelhante a um deus, tornou-se
apaixonadamente e suas analises mostraram-se agora pior do que animal feroz. O homem seguiu uma
extremamente interessantes. curva de decadência. Transferir as desigualdades, os
Afirma ele no Discurso sobre as ciências: "Os desníveis e as injustiças do presente para o homem
selvagens não são precisamente maus, porque não originário ou referi-las à estrutura do homem significa
sabem o que seja ser bons; não é o aumento das luzes ler o passado com os olhos do presente.
nem o freio da lei que lhes impede de fazer o mal, mas O espirito competitivo e conflitivo não é
a calma das paixões e a ignorância do vício". originário, mas derivado, porque é fruto da história. Em
Trata-se, portanto, de um estado aquém do bem substância, e duramente, Rousseau pronuncia um juízo
e do mal. Deixada ao seu livre desenvolvimento, a severo e radical sobre tudo o que o homem fez e disse,
natureza leva ao triunfo dos sentimentos, não da razão; como, por exemplo, sobre a redução do homem à
do instinto, não da reflexão; da autoconservação, não realidade racional e sobre a exaltação dos seus produtos
da opressão. O homem não é somente razão, aliás, culturais, porque não fizeram a humanidade progredir,
originariamente o homem não é razão, mas sentimentos e sim regredir.
e paixões. Nem toda ignorância deve ser combatida. Há
Entretanto, embora Rousseau olhe uma ignorância que deve ser cultivada: “Há uma
nostalgicamente para aquele passado, sua atenção está ignorância feroz e brutal, que nasce de um espírito
toda voltada para o homem presente, corrupto e perverso e de uma mente falsa; existe, em suma, uma
desumano. Não se pode falar de primitivismo ou de ignorância criminal que degrada a razão, multiplicando
culto à barbárie, até porque Rousseau conhece os os vícios. Mas há, salienta Rousseau, uma ignorância
limites desse estado de vida. A propósito, eis um trecho que podemos dizer razoável, pois delimita a curiosidade
significativo do Discurso sobre a desigualdade: ao âmbito das faculdades recebidas; uma ignorância
“Vagando pela floresta, sem trabalho, sem modesta, indiferente a tudo o que não é digno do
palavra, sem domicilio, sem guerra e sem laços, sem homem; uma ignorância 'doce e preciosa', típica de um
qualquer necessidade dos seus semelhantes, como ânimo puro e contente consigo mesmo”.
também sem nenhum desejo de incomodá-los, talvez
também sem nunca reconhecer algum deles Não houve progresso, mas regresso
individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas
paixões e bastando-se a si mesmo, nada mais tinha que A posição de Rousseau, com efeito, foi uma
os sentimentos e os conhecimentos próprios daquele posição "escandalosa", porque ele considerava como
estado, só experimentava as necessidades verdadeiras, responsáveis pelos males sociais justamente aquelas
olhava apenas o que lhe interessava ver, e sua letras, artes e ciências nas quais os enciclopedistas viam
inteligência não ia além de sua vaidade. Se, por acaso, as causas do progresso. Nascidas dos vícios da
fazia alguma descoberta, nem podia transmiti-la, visto arrogância e da soberba, as ciências, as artes e as letras
que sequer reconhecia seus filhos. A arte perecia com não fizeram progredir a felicidade humana, mas
seu inventor. consolidaram os vícios que as provocaram, como
Não havia educação nem progresso. As podemos ler no Discurso sobre as ciências.
gerações se multiplicavam em vão e, partindo cada uma O progresso é, portanto, uma linha que procede
do mesmo ponto, os séculos transcorriam e a rudeza da inexorável para o melhor, para a perfeição? Na
era primitiva mantinha-se inalterada; a espécie já estava realidade, aquilo que para os enciclopedistas era
velha, mas o homem ainda era criança.” progresso, para Rousseau era regresso e ulterior
Concluindo, o mito do “bom selvagem” é corrupção.
sobretudo uma espécie de categoria filosófica, uma Mas como começou essa história de desvios e
norma de juízo com base na qual condena-se a estrutura injustiças? Começou com o nascimento da desigualdade
histórico-social que mortificou a riqueza passional do entre os homens. E a desigualdade nasceu com o
homem, bem como a espontaneidade de seus nascimento da propriedade, e com as hostilidades
sentimentos mais profundos. Confrontando o homem consequentes.
como ele era com o homem como ele é, ou "o homem Toda a desgraça aconteceu quando alguém
feito pelo homem com o homem obra da natureza", cercou um pedaço de terra e disse que era seu, e pior,
Rousseau pretendia estimular os homens a uma ninguém disse nada e ainda consentiram, dando início à
mudança salutar. propriedade privada.
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8
Com a propriedade privada surgiu o egoísmo, a homem que era possível perceber agindo nos povos
ganância, a diferença entre ricos e pobres e todos os primitivos e que ele sentia viva dentro de si.
sentimentos ruins que levam ao estado de guerra O caminho da salvação é outro: é o caminho do
descrito por Hobbes. retorno à natureza e, portanto, o caminho da
Para estabelecer a segurança, os ricos proporam “renaturalização do homem” através de uma correção
um pacto para a criação da sociedade onde todos se da vida social em condições de bloquear o mal e
beneficiariam. Era só balela, com o tempo eles favorecer o bem.
colocaram as garras de fora e começaram a explorar os
pobres. Não basta reformar as ciências e melhorar a
técnica
A visão pessimista da história
A sociedade não pode ser curada com simples
A visão de Rousseau, portanto, é uma visão reformas inteiras ou com o simples progresso das
radicalmente pessimista da história e do seu curso, bem ciências e das técnicas. Torna-se necessária uma
como de seus produtos culturais. Voltaire desqualificou transformação no espírito do povo, uma reviravolta
o Discurso sobre a desigualdade como "um livro contra o completa, uma mudança total das instituições. Em
gênero humano". outras palavras, é necessária uma grande e dolorosa
De fato, imputando ao saber e ao "progresso" revolução, uma ruptura radical. A racionalidade
os problemas que os filósofos atribuíam à religião e às iluminista, toda exteriorizada, é preciso opor uma
várias formas de superstição herdadas do passado, racionalidade interiorizada, em condições de recuperar
Rousseau se colocava contra todos os enciclopedistas, a voz da consciência.
particularmente contra Voltaire, cujo programa de Com efeito, “se o selvagem vive em si mesmo,
propaganda das novidades teatrais, ele achava nocivo o homem da sociedade, sempre voltado para fora de si,
por defender formas culturais que estimulavam os só sabe viver da opinião dos outros e, por assim dizer,
vícios e se demonstravam incapazes de distinguir o que é apenas do juízo dos outros que ele tira o sentimento
é fruto de uma falsa cultura e o que é típico da natureza de sua própria existência”. A sociedade se exteriorizou
humana. completamente, e o homem perdeu sua vinculação com
Rousseau subverte a ética de interpretação da o mundo interior.
história. Em si, o homem não é lobo para o homem. O Assim, é necessário operar uma nova união
homem tornou-se tal no curso da história. O estado entre o interior e o exterior, para frear aquele
natural não é o estado do instinto violento e da movimento dissolvente ou dissipar aquelas vis
afirmação da vitalidade sem controle. aparências que os homens seguem, combatendo-se e
É radical a antítese entre natureza e cultura, oprimindo-se uns aos outros. Com tal objetivo, é
entre estado primitivo e estado civil em sua preciso que nos apoiemos no potencial de bondade que
configuração sociopolítico-econômica. existe no homem, mas em estado virtual e não
manifesto, para assim reconstruir o mundo social em
É preciso melhorar a sociedade “renaturalizando” uma harmonização total e constante das duas vertentes,
o homem sem fraturas ou conflitos. Em suma, é preciso recuperar
o sentido da virtude, entendida como constante
Podemos dizer que Rousseau é contra os transparência e inter-relação entre interior e exterior.
iluministas, não contra o Iluminismo, do qual é
intérprete e promotor inteligente; ele é contra os A nova razão que melhora o homem
jusnaturalistas, não contra o jusnaturalismo.
Rousseau é um iluminista, porque considera a Reentrando em si mesmo, porém, o homem
razão como o instrumento privilegiado para a superação não se defronta com uma realidade não contaminada,
dos males em que séculos de desvio haviam lançado o mas encontra um espírito cicatrizado do mal que se
homem, e para a vitória sobre eles. acumulou ao longo da história. Daí a urgência de uma
Rousseau é um jusnaturalista porque repõe na conversão que parta do interior do homem e, portanto,
natureza humana a garantia e os recursos para a de um repensamento de todos os seus produtos
salvação do homem. Mas é contra os iluministas e culturais, cuja função será a de ajudar a criar instituições
jusnaturalistas da época, que consideravam já sociais que não distorçam o desenvolvimento do
encaminhado o itinerário da libertação. A seus olhos, a homem, mas o coloquem em condições de realizar sua
sociedade ainda estava no prolongamento de uma mais profunda liberdade.
história de decadência e superstição, considerando as Rousseau não é contra a razão ou contra a
artes, as ciências e as letras como baseadas em falsos cultura. Ele é contra um modelo de razão e contra
pressupostos, ou seja, na negação daquela riqueza do certos produtos culturais, porque lhes escapou aquela
profundidade ou interioridade do homem, à qual está
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9
ligada a possibilidade de mudança radical do quadro de um novo tecido social. O princípio que legitima o poder
conjunto, social e cultural. e garante a transformação social é constituído pela
Ele se bate pelo triunfo da razão, mas não vontade geral amante do bem comum.
cultivada por si mesma, sem densidade e autenticidade, Mas o que é tal vontade geral, como ela se
e sim como filtro crítico e polo de agregação dos articula, de que é fruto e como consegue modificar os
sentimentos, dos instintos e das paixões, tendo em vista homens, pondo fim à conflitividade e à corrida vã e
uma efetiva reconstrução do homem integral, não em danosa é acumulação de bens?
uma direção individualista, e sim em urna direção Eis a resposta de Rousseau:
comunitária. "Só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado
O mal nasceu com a sociedade e é com a segundo o fim pelo qual foi instituído, isto é, o bem comum. Com
sociedade, desde que devidamente renovada, que ele efeito, se foi o contraste dos interesses privados que tornou
pode ser expulso e debelado. necessária a instituição da sociedade, por outro lado foi o acordo
entre eles que a tornou possível. O vínculo social decorre daquilo
O contrato social que há de comum nesses interesses diferentes; se não houvesse
algum ponto no qual concordam todos os interesses, a sociedade
Para sair da relação de ganância generalizada não poderia existir. Ora, é unicamente sobre a base desse interesse
que perverteu o homem, Rousseau propõe um novo comum que a sociedade deve ser governada".
pacto, baseado na vontade geral, onde todos terão vez
e voz. Vontade geral é o princípio que legitima o poder e
garante a transformação social inaugurada pelo
Contrato social. O único caminho para remediar a “novo contrato”. Enquanto a vontade particular
decadência da humanidade e a relativa falta de tem sempre como objeto o interesse privado, a
liberdade é, para Rousseau, a estipulação de um vontade geral é, ao contrário, amante do bem
novo contrato social, em vista de um renovado comum, e se propõe o interesse comum: ela não é,
“estado civil”, contrato que se exprime nos portanto, a soma das vontades de todos os
seguintes termos essenciais: componentes, mas uma realidade que brota da
“Cada um de nós põe em comum sua renúncia de cada um aos próprios interesses em
pessoa e todo seu poder, sob a direção suprema da favor da coletividade.
vontade geral”.
Trata-se da alienação total de cada Todavia, do que é que deriva a vontade geral?
associado, com todos os seus direitos, a toda a Não é fruto de um pacto de sujeição a uma
comunidade, por meio da qual "se produz terceira pessoa, o que implicaria a renúncia à própria
imediatamente um corpo moral e coletivo unitário", responsabilidade direta e a delegação dos direitos
cujos associados "tomam coletivamente o nome de próprios. A vontade geral é fruto de um pacto de união
povo, e singularmente se chamam cidadãos, que se dá entre iguais, que continuam sendo tais,
enquanto participantes da autoridade soberana, e porque, como escreve Rousseau no Contrato social, trata-
súditos, enquanto submissos às leis do Estado". se da "alienação total de cada indivíduo, com todos os
seus direitos, a toda a comunidade [dando lugar] a um
“O homem nasceu livre, mas, entretanto, está
corpo moral e coletivo [. . .] que extrai desse mesmo ato
acorrentado em todo lugar”, brada Rousseau no sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade".
Contrato social. Romper as correntes do homem e A vontade geral, portanto, não é a soma das
restitui-lo à liberdade é o objetivo do novo contrato que vontades de todos os componentes, mas uma realidade
ele se apresta a delinear. que brota da renúncia de cada um a seus próprios
Tal contrato não projeta o retorno à natureza interesses em favor da coletividade.
originária, mas exige a construção de um modelo social, É um pacto que os homens não estreitam com
não baseado nos instintos e nos impulsos passionais, Deus ou com um chefe, mas entre si mesmos, em plena
como o modelo primitivo, nem porém na pura razão, liberdade e com perfeita igualdade.
isolada e contraposta aos sentimentos ou à voz do Nesse pacto, cada um deixa de ser um indivíduo
mundo pré-racional, mas na voz da consciência global e passa a ser cidadão. O que isso significa? Que cada um
do homem, aberto para a comunidade. passará a ser entendido a partir do todo, da coletividade,
Mas qual é o princípio que torna possível essa pois fará parte de um corpo político.
palingenesia histórica? Tal princípio não é a vontade É desse corpo político que surgirá a Lei, como
abstrata, considerada depositária de todos os direitos, fruto de uma vontade geral, que não é a simples soma
ou a razão pura, estranha ao tumulto das paixões, ou à de todas as vontades particulares, mas uma vontade
concepção individualista do homem, na qual se originada e guiada da busca pelo bem comum, que por
baseavam os iluministas da época. Trata-se de sua vez é a expressão do interesse de todos e não de um,
condições abstratas, sobre as quais seria vão implantar ou de poucos.
220
10
O que Rousseau está propondo é algo criadas em vistas ao bem comum. É ele que deve guiar
revolucionário demais até para outros iluministas, que os atos de quem vai administrar o Estado.
restringiam a cidadania a uns poucos detentores de A participação direta do povo é na criação das
posses. leis, ou seja, no legislativo, mas a administração, o
Estamos diante de uma socialização radical executivo, poderá caber a um (monarquia), a poucos
do homem, de sua total coletivização, para impedir que (aristocracia), ou a muitos (democracia) a depender das
emerjam e se afirmem os interesses privados. Com a características do país em questão, como o tamanho de
vontade geral pelo bem comum, o homem só pode seu território, de sua população, etc.
pensar em si pensando nos outros, ou seja, somente Independente da forma de governo que o
através dos outros, e deve considerar os outros não Estado venha a adotar, o importante é que ele governe
como instrumentos, mas como fins em si. para o soberano, que é a vontade geral do povo.
Ninguém deve obedecer ao outro, e sim
todos à lei, sagrada para todos, porque fruto e
expressão da vontade geral. QUESTÕES
Todos os esforços que o novo pacto social
impõe, portanto, estão voltados para a eliminação dos 01. Leia os textos a seguir.
germes dos contrastes entre interesses privados e Sendo ele apenas a fusão dos poderes que cada
interesses comunitários, absorvendo os primeiros nos membro da sociedade delega à pessoa ou à assembleia
segundos e, graças à completa redução do indivíduo à que tem a função do legislador, permanece
membro da sociedade, impedindo que os interesses forçosamente circunscrito dentro dos mesmos limites
privados aflorem e rompam a harmonia do conjunto. que o poder que essas pessoas detinham no estado de
Rousseau, portanto, destaca com extremo vigor natureza antes de se associarem e a ele renunciarem em
a interiorização da vida social e de seus deveres. Não há prol da comunidade social. Ninguém pode transferir
nada de privado. Tudo é público ou, pelo menos, deve para outra pessoa mais poder do que ele mesmo possui;
tornar-se tal. e ninguém tem um poder arbitrário absoluto sobre si
O homem é essencialmente social, um animal mesmo ou sobre qualquer outro para destruir sua
político. As ciências, as artes e as letras devem dar própria vida ou privar um terceiro de sua vida ou
contribuição insubstituível nessa direção, sob a propriedade.
liderança carismática de uma espécie de filosofo-rei de LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. 4. ed. Bragança Paulista: Ed.
Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2006, p. 163.
origem platônica. Cada um de nós põe em comum sua pessoa e
Trata-se de um guia carismático e clarividente, todo o seu poder sob a suprema direção da vontade
que sabe mobilizar e conjugar os esforços de todos, geral; e recebemos, coletivamente, cada membro como
para que cada qual queira o bem comum e fuja do mal, parte indivisível do todo. Imediatamente, em vez da
identificado com os interesses privados. pessoa particular de cada contratante, esse ato de
Para tanto, o homem só deve obedecer à associação produz um corpo moral e coletivo
consciência pública que é o Estado, fora do qual há composto de tantos membros quantos são os votos da
apenas consciências privadas ou individuais, que devem assembleia, o qual recebe, por esse mesmo ato, sua
ser condenadas porque são nocivas. unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade.
Encarnada no Estado e pelo Estado, a vontade ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.
geral é tudo. É o primado da política sobre a moral, ou 22.

melhor, é a fundamentação da moral na política. A John Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau


defesa do bem comum chega a tal ponto que leva ao (1712-1778) são filósofos que desenvolvem
esvaziamento do indivíduo, de sua individualidade, bem significativas reflexões sobre as articulações entre ética
como à sua absorção pelo corpo social, sem deixar e política. Sobre as teses desses autores, conclui-se que:
restos. A) a teoria política de Locke, priorizando a ética
Para ele, a liberdade só pode existir dentro de centrada no indivíduo, e a teoria política de Rousseau,
um sistema em que todos participem na criação da lei, priorizando a ética centrada na vontade geral, oferecem
que é a expressão da vontade geral da qual fazem parte elementos importantes para o debate contemporâneo
todos os cidadãos. Ele dizia que nenhum homem pode em torno dos direitos individuais e dos direitos sociais.
ser melhor representado do que por ele próprio. B) a teoria política de Locke, valorizando a igualdade
Outro fator que caracteriza essa liberdade é a jurídica, e a teoria política de Rousseau, valorizando a
obediência à lei, que acontece justamente porque a lei é civilização moderna, possuem em comum o fato de
fruto da vontade geral da qual todos participam. Um considerar a sociedade política como uma realização
povo só é livre quando tem o poder de atribuir-se leis. prevista na própria ética natural da humanidade.
A soberania em Rousseau, desse modo, advém C) a teoria política de Locke, valorizando o
do povo, pois somente assim, ela é legítima. E aqui autogoverno pelos indivíduos, e a teoria política de
devemos esclarecer que o soberano é esse corpo de leis Rousseau, valorizando o autogoverno pelo corpo
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11
social, são plenamente complementares, delas A visão de Rousseau em relação à natureza humana,
resultando a democracia representativa e as políticas conforme expressa o texto, diz que
sociais contemporâneas. A) o homem civil é formado a partir do desvio de sua
D) a teoria política de Locke, ressaltando o valor da própria natureza.
propriedade, e a teoria política de Rousseau, centrada B) as instituições sociais formam o homem de acordo
no eu comum da humanidade, são convergentes ao com a sua essência natural.
reconhecer no Estado a fixação de uma ética absoluta, C) o homem civil é um todo no corpo social, pois as
que deve ser pacificamente assimilada pelos cidadãos. instituições sociais dependem dele.
E) a teoria política de John Locke, concebendo os D) o homem é forçado a sair da natureza para se tornar
indivíduos como legisladores naturais, e a teoria política absoluto.
de Rousseau, concedendo legitimidade à coletividade, E) as instituições sociais expressam a natureza humana,
são, respectivamente, partidárias do relativismo ético e pois o homem é um ser político.
da ética fundada em noções cristãs.
04. “A soberania não pode ser representada pela
02. “O homem nasce livre, e por toda a parte encontra- mesma razão por que não pode ser alienada, consiste
se a ferros. O que se crê senhor dos demais não deixa essencialmente na vontade geral e a vontade
de ser mais escravo do que eles. (...) A ordem social, absolutamente não se representa. (...). Os deputados do
porém, é um direito sagrado que serve de base a todos povo não são nem podem ser seus representantes; não
os outros. (...) Haverá sempre uma grande diferença passam de comissários seus, nada podendo concluir
entre subjugar uma multidão e reger uma sociedade. definitivamente. É nula toda lei que o povo diretamente
Sejam homens isolados, quantos possam ser não ratificar; em absoluto, não é lei.”
submetidos sucessivamente a um só, e não verei nisso (ROSSEAU, J.J. Do Contrato social, São Paulo, Abril Cultural,
senão um senhor e escravos, de modo algum 1973, livro III, cap. XV, p. 108-109)
considerando-os um povo e seu chefe. Trata-se, caso se Rousseau, ao negar que a soberania possa ser
queira, de uma agregação, mas não de uma associação; representada preconiza como regime político:
nela não existe bem público, nem corpo político.” a) um sistema misto de democracia semidireta, no qual
(Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. [1762]. São Paulo: atuariam mecanismos corretivos das distorções da
Ed. Abril, 1973, p. 28,36.) representação política tradicional.
No trecho apresentado, o autor b) a constituição de uma República, na qual os
a) argumenta que um corpo político existe quando os deputados teriam uma participação política limitada.
homens encontram-se associados em estado de c) a democracia direta ou participativa, mantida por
igualdade política. meio de assembleias frequentes de todos os cidadãos.
b) reconhece os direitos sagrados como base para os d) a democracia indireta, pois as leis seriam elaboradas
direitos políticos e sociais. pelos deputados distritais e aprovadas pelo povo.
c) defende a necessidade de os homens se unirem em e) um regime comunista no qual o poder seria extinto,
agregações, em busca de seus direitos políticos. assim como as diferenças entre cidadão e súdito.
d) denuncia a prática da escravidão nas Américas, que
obrigava multidões de homens a se submeterem a um
único senhor.

03. O homem natural é tudo para si mesmo; é a unidade


numérica, o inteiro absoluto, que só se relaciona
consigo mesmo ou com seu semelhante. O homem civil
é apenas uma unidade fracionária que se liga ao
denominador, e cujo valor está em sua relação com o
todo, que é o corpo social. As boas instituições sociais
são as que melhor sabem desnaturar o homem, retirar-
lhe sua existência absoluta para dar-lhe uma relativa, e
transferir o eu para a unidade comum, de sorte que cada
particular não se julgue mais como tal, e sim como uma
parte da unidade, e só seja percebido no todo.
ROUSSEAU, J. J. Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
222
12
4. ENCICLOPÉDIA em sua Enciclopédia, o que possibilitou o advento da
monarquia constitucional.
O matemático D’Alembert e o escritor Diderot B) maneiras de fazer política muito diversas. Para os
não eram filósofos, mas foram os responsáveis pela racionalistas, a política absolutista deveria ser
Enciclopédia, a grande obra que marcaria o movimento
iluminista. reestruturada ou revolucionada, pois os novos saberes
Ele é a reunião deveriam vir das experiências e das novas ciências e não
de escritos de mais de de Deus e seus emissários.
cem autores e foi a C) formas incompatíveis de fazer política, pois o povo
maior forma de francês era governado por um velho monarca
propagação do autoritário que se mantinha no poder devido à
pensamento iluminista,
ignorância do povo. Já livros como a Enciclopédia
tanto é que eles ficaram
conhecidos como seriam a base da nova sociedade revolucionária e
enciclopedistas. anarquista proposta por Diderot.
Ela é fruto da D) formas de governo inconciliáveis, pois o
crença que eles Absolutismo era autoritário e ultrapassado. Já os
compartilhavam de que enciclopedistas, como Diderot e D’ Alembert,
a razão traria progresso desejavam a derrubada do Rei pelos revolucionários
tanto espiritual quanto
comunistas, formadores de ideias socialistas vinculadas
material para os
homens. Além disso, ao Marxismo contemporâneo.
serviria como o grande E) maneiras de governar muito distintas, pois os
livro a ser usado nesse processo educacional de tirar as enciclopedistas eram homens de letras, que iniciavam
pessoas das trevas a que estavam submetidas. carreira política nas fileiras dos liberais exaltados, e o
A Enciclopédia foi a obra que reuniu a descrição monarca absolutista era do partido conservador
das maiores invenções tecnológicas, e era um manual de
francês.
como funcionavam as máquinas mais sofisticadas da
época no campo do artesanato, manufatura e indústria.
2. (UEM 2010) Coordenada por Denis Diderot, a
QUESTÕES Enciclopédia, cuja primeira edição é de 1751, representa
a caracterização das ideias iluministas, que exerceram
uma influência sobre a Revolução Francesa de 1789.
1. O texto abaixo recupera uma obra iluminista dirigida
Sobre o enciclopedismo, assinale o que for correto.
por Denis Diderot e Jean Le Rond d’ Alembert em 1772 01) O Iluminismo como doutrina filosófica fundamenta
na França intitulada de Enciclopédia ou Dicionário os seus pressupostos na Teologia e Filosofia de Santo
racional das ciências, das artes e dos ofícios. No texto Agostinho, para quem a busca pelo conhecimento de
afirma-se que: na Enciclopédia não havia área do Deus é iluminada pela graça divina e pela fé.
engenho humano que não tivesse sido coberta. Ali se 02) A revolução científica que ocorre com Copérnico,
observava a confiança de que os homens eram, ou Kepler e Galileu, durante o Renascimento, influenciou
a Filosofia do Iluminismo.
poderiam ser em breve, senhores de seu próprio 04) No século XVIII, conhecido como o Século das
destino, que poderiam moldar o mundo e a sociedade Luzes, Immanuel Kant tenta superar a dicotomia
de acordo com as suas conveniências e vantagens. Era racionalismo/empirismo, que alimentava a polêmica
o poder da razão. Por isso mesmo a Enciclopédia não entre muitos filósofos do Iluminismo.
foi universalmente aceita. Poderes absolutistas civis e 08) Entre os objetivos da Enciclopédia, encontramos o
religiosos foram seus combatentes. desejo de renovar o pensamento de forma crítica e
(DENT, N. J. H.. Dicionário de Rousseau. Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p. 125. ilustrá-lo para o grande público.
Texto adaptado). 16) Na França, Luís XVI incentivou D’Alembert,
A Enciclopédia proposta por iluministas como Diderot Diderot e Condillac a publicar a Enciclopédia, pois
e D’Alembert foi criticada no contexto francês, porque acreditava que a razão iluminista poderia ajudar na
nesse momento o absolutismo e razão significavam manutenção da ordem do Antigo Regime.
A) modos de viver compatíveis, nos quais as novas e
modernas ideias iluministas eram absorvidas pelo reis
absolutistas, que percebiam nelas as vantagens de se
moldar o mundo à sua forma e maneira, tal qual Diderot
223
13
5. ADAM SMITH E O LIVRE MERCADO Por exemplo, para alguém permanecer
confortável numa pousada por uma noite, mobilizam-
O escocês Adam Smith se muitas pessoas para cozinhar, arrumar o quarto e
(1723 – 1790) era filho de assim por diante. Pessoas cujos serviços não dependem
família de classe média e apenas de boa vontade. Por essa razão, “o homem é
estudou na Universidade de um animal que realiza barganhas”, e a barganha é
Oxford, na Inglaterra. É o pai realizada ao se propor um trato que atenda ao interesse
do liberalismo econômico, ou próprio de ambas as partes.
seja, do capitalismo em sua
forma mais pura. A divisão do trabalho
Criticava o mercantilismo e defendia uma
economia livre da interferência do Estado. A este Em sua explanação sobre o surgimento das
caberia apenas criar e manter instituições públicas, economias de mercado, Smith argumentou que nossa
como a justiça, construir obras públicas e cuidar da capacidade de fazer barganhas colocou fim à antiga
defesa nacional. exigência universal de que toda pessoa, ou pelo menos
Sua teoria está contida em sua obra Investigação toda a família, fosse economicamente autossuficiente.
sobre a na natureza e as causas da riqueza das nações, que foi A barganha tornou possível que nós nos
publicada em 1776 em plena Revolução Industrial. Ela concentrássemos em produzir cada vez menos bens, até
é um marco na história da economia e serviu de finalmente produzir um único bem, ou oferecer um
fundamento teórico para a expansão do capitalismo único serviço, trocando-o pelo que quer que
industrial. precisássemos.
O processo foi modificado radicalmente pela
Barganha e interesse próprio invenção do dinheiro que aboliu a necessidade de
permuta. A partir de então, na visão de Smith, somente
Os conceitos de barganha e interesse próprio os incapazes de trabalhar tinham de depender da
que ele explorou e a possibilidade de diferentes tipos de caridade. Todo o resto poderia ir ao mercado trocar seu
acordos e interesses (como o “interesse comum”) tem trabalho (ou o dinheiro ganho por meio do trabalho)
apelo recorrente para os filósofos. Seus textos são por produtos do trabalho de outras pessoas.
também importantes porque dão uma forma mais geral A eliminação da necessidade de autossuficiência
e abstrata à ideia da sociedade “comercial”. produtiva levou ao surgimento de pessoas com um
Como seu contemporâneo suíço Rousseau, conjunto particular de habilidades (como o padeiro ou
Smith admita que os motivos dos seres humanos são o carpinteiro), e depois ao que Smith chamou de
em parte benevolentes e em parte por interesse próprio, “divisão do trabalho” entre as pessoas. Esse é o termo
mas que este último é o traço mais forte, configurando- de Smith para a especialização, por meio da qual um
se então uma baliza melhor para o comportamento indivíduo não busca apenas um tipo único de trabalho,
humano. mas realiza uma tarefa particular em um trabalho que é
Ele acreditava que isso se confirma pela compartilhado por várias pessoas.
observação social, e, de modo geral, sua abordagem não Smith ilustrou a importância da especialização
deixa de ser empírica. Num de seus mais famosos no início da A riqueza das nações, mostrando como a
debates sobre a psicologia da barganha, ele sustentou produção de um simples alfinete de metal é
que o movimento inicial mais comum na barganha é um radicalmente transformada com a adoção do sistema
lado instigar o outro: “a melhor maneira de conseguir o fabril. Um homem trabalhando sozinho encontraria
que você quer é me dar o que eu quero”. Em outras dificuldade para produzir vinte alfinetes perfeitos em
palavras, “dirigimo-nos não à humanidade (do outro), um dia. Já um grupo de dez homens, encarregados de
mas ao seu amor-próprio”. diferentes tarefas (esticar o arame, endireitá-lo, cortá-lo
Smith afirmava que a troca de objetos úteis é e afiá-lo para uni-lo a uma cabeça), era capaz, na época
uma característica distintamente humana. Ele notou de Smith, de produzir mais de 48 mil alfinetes por dia.
que cães nunca são observados trocando ossos, e que,
se um animal deseja obter algo, a única maneira pela
qual pode conseguir isso é “conquistando o favor
daqueles cujos préstimos ele necessita”.
Os humanos também podem desse tipo de
“adulação ou atenção servil”, mas não podem recorrer
a isso quando precisam de ajuda porque a vida exige
“cooperação e assistência de um grande número de
pessoas”.
224
14
Smith estava impressionado com os grandes No primeiro caso, em que a procura é maior que
saltos na produtividade do trabalho durante a a oferta, o preço aumenta, e exatamente por causa da
Revolução Industrial devido a trabalhadores dotados de alta do preço, a procura diminui e o preço cai.
equipamento muito melhor e, muitas vezes, a máquinas No segundo caso, em que a oferta é muito
substituindo homens. O trabalhador não especializado grande, o preço diminui, e exatamente por causa da
não podia sobreviver em tal sistema, e até os filósofos diminuição do preço a produção diminui por que não
começaram a se especializar nos vários ramos de suas compensa produzir para vender muito barato. Então, a
áreas, como lógica, ética, epistemologia e metafísica. oferta diminui e os preços aumentam.
Nos dois casos, a mão invisível do mercado
O mercado livre regulou/equilibrou a oferta e a procura. E isso se fez
sem nenhuma necessidade de interferência do Estado
Como a divisão de trabalho aumenta a (governo) na economia.
produtividade e torna possível que todos se candidatem Em tal sociedade, um governo pode limitar-se a
a algum tipo de tarefa, Smith argumentou que ela pode desempenhar apenas funções essenciais (como garantir
levar à riqueza universal numa sociedade bem ordenada. a defesa, a justiça criminal e a educação), e
De fato, ele dizia que em condições de perfeita consequentemente as taxas e os impostos podem ser
liberdade, o mercado pode levar a um estado de perfeita reduzidos.
igualdade, em que todo mundo é livre para buscar seus Assim como a barganha floresce dentro de
próprios interesses, desde de que esteja de acordo com limites nacionais, pode florescer também além deles,
as leis da justiça. levando ao comércio internacional (fenômeno que se
Por igualdade Smith não se referia à equidade espalhava por todo o mundo na época de Smith).
de oportunidades, mas à igualdade de condição. Em Ele reconheceu que havia problemas com a
outras palavras, seu objetivo era a criação de uma noção de um mercado livre, em particular com o
sociedade não dividida pela competição, mas unida pela problema da remuneração por serviços cada vez mais
barganha baseada no mútuo interesse próprio. comuns. Também admitiu que, embora a divisão de
A questão dele, portanto, não é que as pessoas trabalho trouxesse enormes benefícios econômicos, o
devem ter liberdade só porque a merecem. Seu trabalho repetitivo não apenas é entediante para um
argumento é que a sociedade como um todo se trabalhador como pode destruir um ser humano. Por
beneficia quando os indivíduos perseguem seus essa razão, propôs que os governos deveriam restringir
próprios interesses. a extensão do uso da linha de produção.
A “mão invisível do mercado”, com suas leis Inicialmente sua doutrina de comércio livre e
“naturais” de oferta e procura, regularia a quantidade desregulamentado foi vista como revolucionária, não
de bens disponíveis e os avaliaria de maneira muito mais apenas pelo ataque aos privilégios comerciais e agrícolas
eficiente do que qualquer governo. e aos monopólios existentes, mas também por causa do
Essas leis são “naturais” porque, para ele, assim argumento de que a riqueza de uma nação não depende
como o universo possui suas leis universais e imutáveis, de reservas em ouro, mas de seu trabalho (uma visão
o mercado também tem suas leis naturais, e são elas que que contrariava todo o pensamento econômico da
regulam a economia. Europa da época).
A economia é a ciência que estuda a criação e A reputação “revolucionária” de Smith foi
distribuição das riquezas limitadas tiradas da natureza. favorecida durante o longo debate sobre a natureza da
Quando existe muito produto ofertado no mercado, ele sociedade que ocorreu após a Revolução Francesa.
se torna abundante e seu preço tende a cair. Quando
existe muita procura por um produto, o seu preço tende 6. OS FISIOCRATAS
a aumentar. Resumindo:
Oferta > procura = baixa no preço; Na economia destacaram-se pensadores como
Procura > oferta = alta de preço. Quesnay e Turgot. Eles defendiam que a verdadeira
Isso se aplica a tudo, são as leis universais e riqueza de um país advinha da natureza, ou seja, da
imutáveis do mercado. agricultura.
Mas quando se chega ao extremo da procura O artesanato gerava pouca renda, e o comércio
por um produto ser tão grande que eleve o preço às só fazia circular a riqueza. Somente a agricultura gerava
alturas? Ou, quando a oferta é tão grande que o preço os produtos, e por isso, somente ela produzia riqueza.
do produto fique muito pequeno? Eles eram fervorosos críticos do mercantilismo,
Então, diz Adam Smith, entra em ação a mão pois acreditavam que assim como existem as leis
invisível do mercado para equilibrar a situação, e o naturais que regem o universo, também há leis naturais
mercado se autorregular. na economia.
O Estado deveria parar de intervir na economia,
porque isso não é de acordo com a natureza, e devia
225
15
deixar ela correr solta. A competitividade selecionaria assunto. O que ele estava fazendo era analisar o que os
os melhores e enriqueceria quem merecia enriquecer. filósofos haviam escrito sobre a razão.

QUESTÕES A questão do Conhecimento

1. “Os fenômenos econômicos (...) processam-se livre Na época de Kant a física newtoniana estava a
e independentemente de qualquer coação exterior, todo vapor, os avanços obtidos pelas ciências eram
segundo uma ordem imposta pela natureza e regida por indiscutíveis, máquinas eram construídas de acordo
leis naturais. Cumpre, pois, conhecer essas leis naturais com suas leis e a humanidade começava a acordar para
e deixá-las atuar.” as possibilidades de um progresso material e domínio
(Paul Hugon - História das Doutrinas Econômicas). da natureza sem precedentes na história.
O trecho acima sintetiza o pensamento econômico dos Em contrapartida, no campo da metafísica a
A) fisiocratas. discussão não tinha fim, não havia consenso, muito
B) mercantilistas. menos progresso no debate, ninguém apresentava uma
C) marxistas. teoria que fosse universalmente aceita. Perguntas como
D) keynesianos. o que era Deus e a alma, sempre tinham muitas
E) marginalistas. respostas, mas nenhum consenso.
Então, o que Kant pretende responder na
7. IMMANUEL KANT Crítica da Razão Pura é porque a física e a matemática
Kant (1724-1804) progrediram como ciência, enquanto a metafísica não.
nasceu na Prússia, na cidade E para isso ele teria que passar pelo grande problema
de Koningsberg, onde levou epistemológico sobre a possibilidade de conhecimento
uma vida extremamente das coisas: o que podemos conhecer, como
regrada e simples. De conhecemos, e quais os limites do conhecimento.
origem protestante e Nós já vimos que haviam duas correntes
humilde, nunca se casou, filosóficas opostas, que davam respostas antagônicas
nem saiu de sua cidade natal. sobre como conhecemos. O racionalismo dizia que
Dizem que quando alguém tudo que conhecemos já estava em nossa mente como
queria acertar o relógio, ideias, e o empirismo defendia que o conhecimento só
esperavam ele passar para era possível pela experiência dos sentidos com os
saber a hora. objetos exteriores a nós.
Apesar de seu estilo de vida simples, Kant foi Kant fez a grande síntese entre essas duas
um dos maiores filosóficos da história. Conheceu fama teorias e ainda foi além. Este feito o tornou o grande
ainda em vida e suas obras sintetizaram o espírito de sua filósofo da transição entre o mundo antigo e o
época, sendo ele o maior porta voz do modo de vida moderno.
individualista liberal. Ele dizia que ambos estavam certos, porque
A sua doutrina filosófica moldou o modo de ver utilizamos a experiência e a razão para obtermos
e pensar o mundo no alvorecer da contemporaneidade, conhecimento, e ambos estavam errados, porque não
influenciando diversas áreas do saber. Não há como utilizamos apenas uma ou outra.
entender qualquer filósofo que veio depois dele, sem Kant identifica dois tipos de conhecimentos
estudá-lo à fundo, pois ele é leitura obrigatória para que podemos adquirir no ato de conhecer:
todo aspirante à intelectual. 1 – Conhecimento empírico/sensível (a
Conheceu a física de Newton na universidade, posteriori) – o que se refere dos objetos percebidos pelos
reconheceu a contribuição de Hume sobre os limites da sentidos, sendo, portanto, posterior à experiência. Ex:
nossa capacidade de conhecimento, e estudou A bola é azul. Só foi possível saber/conhecer que a bola
profundamente os filósofos iluministas franceses. Foi é azul depois de do contato com ela através dos
um pacifista e defensor do regime republicano, sentidos.
apoiando a independência norte-americana. 2 - Conhecimento puro (a priori) – que
Ele escreveu as três grandes críticas das mais independe dos sentidos, e, portanto, anterior à
importantes áreas, quais sejam, a teoria do experiência. Ex: As pontas de uma reta nunca se tocam.
conhecimento, a moral, e a estética, além de ter Não preciso dos sentidos para saber/conhecer que isso
formulados os princípios do direito, e ter escrito À paz é verdade.
perpétua (1795), texto que serviu de inspiração para Daí, Kant aprofunda para a teoria dos juízos.
criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Para ele, Juízo é toda afirmação ou negação de um
É de se deixar claro que o termo crítica está predicado em relação a um sujeito: “todo corpo é
sendo usado no sentido de análise, e não no sentido extenso”, “todo corpo é pesado”, “este cisne é branco”,
negativo de escrever coisas ruis sobre determinado
226
16
“nenhum quadrado tem mais que quatro lados” etc. são Por exemplo, se um corpo é azul, o juízo de que
exemplos de juízos. este a bola é azul é um juízo a posteriori, porque apenas
Um juízo é analítico quando o que se diz do depois da experiência, isto é, apenas depois de ter visto
sujeito no predicado é algo que já está contido no o corpo em questão e verificado sua cor particular, é
próprio conceito do sujeito, isto é, é uma mera que posso dizer que se trata de um corpo azul.
reafirmação de algo que já estava implícito no sujeito. Não havia nada que de antemão me garantisse
Dizer, por exemplo, “todo corpo é extenso” é enunciar que seria um corpo azul, e não, por exemplo, verde, de
um juízo analítico, porque o conceito de extensão já é modo que o que me informou de que se tratava de um
uma das determinações implícitas no próprio conceito corpo azul foi a experiência sensível que tive dele.
de corpo. É como dizer que todos os triângulos têm três Agora, se um corpo é extenso ou pesado, isto
lados, ou que todos os solteiros são não casados, ou que não é algo que a experiência apenas poderia ter me
toda ave tem penas. informado, mas é algo que, mesmo antes da
Um juízo é sintético quando o que se diz experiência, eu poderia saber sobre o corpo, já que sei
predicado não está contido no próprio conceito do que são verdadeiros os juízos de que “todos os corpos
sujeito. Dizer que “Todo corpo é pesado” é um juízo são extensos” e de que “todos os corpos são pesados”.
sintético, porque o conceito de peso não é elemento Isto quer dizer que os juízos “este corpo é
necessário do conceito de corpo, isto é, enquanto é extenso” e “este corpo é pesado” são juízos de cuja
impossível conceber algo como sendo um corpo e não verdade eu poderia saber de antemão, mesmo antes de
tendo, contudo, extensão, é perfeitamente possível ter visto ou sentido o peso do corpo em questão, isto é,
conceber algo como sendo um corpo e não tendo, mesmo antes da experiência.
contudo, peso. Ora, é perfeitamente compreensível por que
Daí podemos tirar algumas conclusões. juízos analíticos são juízos a priori. Se o predicado já
Juízos analíticos são universal e necessariamente está contido no próprio sujeito, então, onde quer que se
verdadeiros, mas não acrescentam nenhum encontre um exemplar daquele sujeito, posso saber de
conhecimento novo, porque aquilo que se diz do sujeito antemão que tal exemplar exibirá aquela determinação
no predicado já estava contido no conceito do próprio enunciada pelo predicado. Não preciso da experiência
sujeito. Servem para esclarecer sobre determinações para saber que o sujeito tem aquele predicado porque o
contidas no sujeito, mas não acrescentam dados novos predicado já está vinculado ao sujeito por definição.
para quem já saiba o que o sujeito significa. Mas no caso dos juízos sintéticos, é diferente.
Já os juízos sintéticos, quando Juízos sintéticos atribuem ao sujeito algo que não está
verdadeiros, produzem conhecimento novo, porque conceitualmente contido nele. Sendo assim, o que os
aquilo que o predicado afirma do sujeito não estava predicados de juízos sintéticos atribuem aos sujeitos,
contido no próprio sujeito, ele poderia ter ou não ter. eles poderiam ter ou não ter.
E, quando o juízo é verdadeiro, passamos a saber que o Aparentemente, apenas a experiência poderia
sujeito de fato a tem. informar se os sujeitos de fato têm aquelas
Os corpos poderiam não ser pesados, mas, determinações ou não. Por este motivo, seria de esperar
quando consultamos nossa experiência, percebemos que todos os juízos sintéticos fossem juízos a posteriori.
que eles de fato são pesados. No entanto, novamente a ciência nos mostra o
Assim, como a ciência consiste na produção de contrário.
conhecimentos novos sobre as coisas, conclui-se que Quando ela diz que todos os corpos são
seus enunciados são basicamente juízos sintéticos. pesados, que todos os corpos caem a uma aceleração
Temos ainda que os Juízos podem ser específica, que nenhum corpo entra em movimento a
verdadeiros a priori ou a posteriori. não ser por ação de uma força etc., está enunciando
Um juízo é verdadeiro a posteriori se apenas juízos sintéticos, porque aquilo que o predicado destes
após a experiência é que posso dizer dele que ele é juízos diz do sujeito não estava já contido no conceito
verdadeiro. mesmo do sujeito, mas constituem informação nova,
Um juízo é verdadeiro a priori se, mesmo antes conhecimento novo.
da experiência, posso de antemão afirmar que ele é E esses juízos nos informam de determinações
verdadeiro. que podemos esperar de todos os corpos, isto é, não
227
17
apenas dos corpos que já experimentamos e a ideia de tentar um modelo novo, um segundo o qual
observamos, mas também de todos que escaparam e tais determinações universais e necessárias dos objetos
ainda escapam de nossa observação, e mesmo daqueles não estivessem nos próprios objetos, mas fossem, ao
que apenas no futuro virão a existir. contrário, impostas a eles pelo sujeito que os
Ao se formularem em forma universal (isto é, conhece.
tomando o sujeito, no caso “corpo”, em sua Se o sujeito, toda vez que conhece certo objeto,
universalidade, ou seja, se referindo a “todos os impõe a ele certas determinações, então, tal sujeito
corpos”) e necessária (isto é, dizendo algo que precisa poderia saber de antemão que tais determinações
necessariamente ser verdadeiro, que é simplesmente estariam sempre no objeto, não porque pertencem a
impossível que seja falso em qualquer caso que se este último, e sim porque são sempre postas nele pelo
apresente), estes juízos sintéticos nos informam de sujeito.
coisas que podemos saber sobre todos os corpos antes Kant chamou tais determinações, sempre
mesmo de termos experiência deles. presentes nos objetos do conhecimento porque postas
Tratam-se, assim, de juízos sintéticos a priori, pelo sujeito no processo de conhecimento,
que constituem exatamente o mistério que aqui Kant de transcendentais.
quer decifrar: Como é possível sabermos algo sobre O termo transcendental deve ser entendido em
todos os sujeitos de certo tipo (por exemplo, todos os Kant no sentido de algo que está no objeto, mas
corpos) antes da experiência mesmo quando este algo pertence ao sujeito; é algo que aparece sempre na
que sabemos sobre o sujeito não está contido em seu experiência, mas não advém da experiência, e sim do
conceito? Por exemplo, se não está contido no conceito aparato cognitivo do sujeito que tem a experiência; é
mesmo de corpo que ele tenha peso, então, se segue que uma condição de possibilidade de toda
os corpos poderiam ser pesados ou não e, desta forma, experiência, porque é uma determinação através da
como podemos saber de antemão que, em nossa qual o sujeito estrutura a própria possibilidade de ter
experiência, todos os corpos que viermos a uma experiência. As determinações
experimentar serão, contudo, pesados? Como são transcendentais explicariam os juízos sintéticos a
possíveis juízos sintéticos a priori? É aí que vem o pulo priori da ciência:
do gato de Kant. Há determinações que, embora não contidas no
conceito dos objetos, podem ser atribuídas a eles de
A Revolução Copernicana e a descoberta dos modo universal e necessária, em juízos a priori, porque
transcendentais são tais que o sujeito (aquele que conhece) impõe a
todos os objetos, de forma que essas determinações
Para responder a isso, Kant elaborou uma teoria sempre estarão presentes no objeto toda vez que este
segundo a qual nosso conhecimento do mundo resulta for conhecido por um sujeito que as impõe a ele.
da interação entre a sensibilidade e o entendimento. A
grande novidade da teoria de Kant, no entanto, estava Estética Transcendental
em que nenhuma destas faculdades é inteiramente
passiva no processo de conhecimento; todas não Agora precisamos ver como esta busca das
apenas recebem conteúdo do mundo, mas também determinações transcendentais funciona em cada uma
o estruturam e transformam. A esta novidade se dessas faculdades (sensibilidade e entendimento) de
costuma chamar a Revolução Copernicana de Kant. nosso aparato cognitivo.
Ele relata que, assim como Copérnico, que, A sensibilidade recebe estímulos do mundo
quando percebeu que os dados astronômicos sobre os (intuições) e os organiza em forma espaciotemporal. Há
movimentos dos astros celestes não batiam com o dois tipos de intuições: As intuições empíricas, que
modelo em que todos eles se moviam em volta da consistem nas sensações mesmas, e as intuições puras,
Terra, teve a ideia de experimentar um modelo novo, isto é, espaço e tempo, as quais, embora se mostrem
em que fosse o Sol que estivesse no centro, com a Terra juntamente com os objetos, não estão nos objetos, e
girando em volta dele, da mesma maneira ele, Kant, ao sim na mente do sujeito que os percebe.
perceber que certas determinações, se estivessem nos O espaço e o tempo são determinações que
objetos, não poderiam ser universais e necessárias, teve estão presentes no objeto, mas provêm do sujeito, e não
228
18
do mundo. É a sensibilidade do sujeito que dispõe e categorias de qualidade:
estrutura as intuições num pano de fundo realidade,
espaciotemporal. A estas intuições já organizadas em negação,
forma espaciotemporal Kant chama de fenômenos. limitação;
Isso explica por que podemos ter certeza de categorias da relação:
antemão de que, para qualquer fenômeno que se inerência e subsistência,
apresente para nós, ele estará sempre e necessariamente causalidade e dependência,
estruturado espaciotemporalmente. e comunidade ou ação recíproca;
O fato de que é a mente que impõe aos objetos categorias da modalidade:
uma moldura espaciotemporal explica por que todos os possibilidade e impossibilidade,
fenômenos que percebemos estarão sempre e existência ou não existência,
necessariamente dispostos no espaço e no tempo. necessidade e contingência.
Assim, o caráter transcendental (porque, embora
presentes no objeto, são postos pelo sujeito) do espaço Uma das categorias mais importantes é a
e do tempo é o que explica que eles sejam de causalidade. Para Kant, a experiência pode nos
determinações universais e necessárias. fornecer intuições que, organizadas na forma de
O termo fenômeno vem de uma palavra grega fenômenos, nos indicam a presença de um fenômeno
que designa aparição ou aparência. Em Kant, tem a (por exemplo, fumaça) depois de outro fenômeno (por
ver com como as coisas aparecem para o sujeito, em exemplo, fogo), mas não a conexão entre eles. Quem
contraposição a como elas são em si mesmas. Daí a produz essa conexão é o entendimento, aplicando a
oposição entre fenômeno (a coisa já estruturada e estes fenômenos a categoria da causalidade, reduzindo
transformada pelo aparato cognitivo do sujeito) dois fenômenos isolados (fumaça e fogo) a um
e noumeno ou coisa-em-si (a coisa tal como ela é no único esquema causal: fogo-causa/fumaça-efeito.
mundo, fora da mente, antes da intervenção de nosso A causalidade não existe nas coisas, e sim na
conhecimento). mente. O sujeito não constata no mundo uma
causalidade preexistente. É o entendimento que dá
Lógica Transcendental ao mundo uma organização causal.
Isso explica como podemos ter certeza de
Já o entendimento recebe a matéria fornecida antemão de que, para qualquer fenômeno que
pela sensibilidade (fenômenos) e os submete encontremos no mundo, ele será sempre um efeito de
a conceitos. uma causa anterior e uma causa de um efeito posterior.
Há dois tipos de conceitos: conceitos empíricos Se a causalidade estivesse no mundo, ela seria
(cadeira, casa, gravidade, alegria), que designam contingente: mesmo que todos os fenômenos que
fenômenos ou conjuntos de fenômenos, e conceitos tivéssemos estudado até o momento tivessem sempre
puros ou categorias, que submetem os fenômenos a tido uma causa, não poderíamos garantir que o
certas formas ou esquemas capazes de torná-los fenômeno que estudássemos em seguida também teria
inteligíveis. uma, como Hume explicou em sua teoria.
As categorias são conceitos puros do Mas, como a causalidade está na mente, como é
entendimento que estão presentes em nós, mesmo o entendimento que conecta todos os fenômenos de
antes de qualquer experiência. São elas que fazem a modo causal, podemos ter certeza que, quaisquer que
síntese dos dados percebidos para que possamos sejam os fenômenos que cheguem ao entendimento, ele
produzir conhecimento. Nós pensamos os objetos por sempre os conectará causalmente, ou seja, eles sempre
meio delas. serão ligados uns aos outros por nexos de causa e efeito.
Kant diz que existem ao todo doze categorias, Podemos, assim, garantir de antemão que todo
dispostas em quatro grupos: fenômeno será efeito de uma causa e causa de um
categorias de quantidade: efeito. Isso é o que dá à causalidade a característica de
unidade, ser universal (está presente em todos os fenômenos)
totalidade, e necessária (é simplesmente impossível que não
pluralidade; esteja presente).
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19
Quando soltamos uma maçã, ela sempre cai no A metafísica ao se propor ser um estudo da
chão por causa da gravidade. Quando colocamos a mão essência das coisas (lembrem dos gregos) só pode cair
no fogo ela queima porque o fogo é quente e causa a em contradições. Por esse motivo é que não se
queimadura. Mas essa relação de causalidade de um consegue ter avanço na metafísica, como se tem na
evento x gerar um efeito y não está nas coisas, nem é física e na matemática.
uma crença proveniente do hábito (como afirmara Imagine alguém dizer que conheceu/entendeu
Hume), ela é o produto de nosso entendimento do o que seja Deus, que teve um conhecimento objetivo
funcionamento do mundo. do que ele seja; Kant perguntaria, mas como se todo
Assim, a sensibilidade recebe intuições e impõe nosso conhecimento começa pela experiência? Qual foi
a elas forma espaciotemporal, convertendo-as em o contato que você teve com Ele?
Mas Newton disse que descobriu as leis que
fenômenos.
regem o funcionamento do universo, demonstrou e
O entendimento organiza e conecta os provou que estava certo, e todos tiveram que concordar
fenômenos a partir de conceitos puros ou categorias. com ele, por que através de suas experiências e cálculos
Desta forma, o mundo assume feição inteligível para matemáticos, ele usou a razão, o entendimento, para
nós, permitindo nosso conhecimento. dizer quais seriam essas leis. Lembrem-se, ele não disse
Disso resulta que não é o mundo em si mesmo o que era a gravidade, apenas a descreveu como ela se
que tem uma forma racional e cognoscível manifesta para nós.
perfeitamente adequada para nossa mente, mas nosso A questão da Ética
aparato cognitivo que converte os estímulos dispersos
e caóticos do mundo numa estrutura racional e Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na
cognoscível. É apenas em nossa mente que o mundo se Crítica da razão prática Kant analisa os fundamentos do
torna uma ordem. agir moral. O que fazer? Por que agir de tal maneira?
Desse modo, segundo Kant, quando São as perguntas que ele tentar responder nessas obras.
procuramos entender um objeto, não conseguimos Kant rejeita todas as doutrinas morais anteriores
entendê-lo como ele é em si mesmo (“a coisa em si”, o porque, segundo ele, elas estão fundamentadas em
númeno, em grego). O que nós entendemos é só o que concepções metafísicas, portanto, impossíveis de serem
podemos entender com nossa capacidade de conhecidas pelo homem.
conhecimento. Ou seja, entender um objeto é entendê- Agir de maneira a conseguir um lugar no céu,
lo somente como ele aparece para nós, entendemos ou de acordo com o bem comum, ou para buscar a
apenas seus fenômenos (do grego phainómenon, felicidade, ou para evitar a dor, ou para alcançar um
“aparição”), suas manifestações. interesse; nada disso faz sentido para ele, porque todas
É por isso que a ciência (física newtoniana) essas concepções metafísicas não podem ser
conseguiu avançar, porque ela trata de estudar os racionalmente sustentadas.
fenômenos, e não o objeto/a coisa em si mesma. Mas Quando ele fala que não podem ser
dizer que os objetos devem ser entendidos a partir do racionalmente sustentadas, ele quer dizer que não
sujeito não é cair em subjetivismo? Onde está a podem servir de fundamento para um agir moral que
objetividade da ciência? seja universal. Kant está à procura de uma
Para Kant, a objetividade reside no sujeito, nas fundamentação que sirva para todo ser racional,
condições a priori da experiência. Não adianta tentar independentemente de tempo e espaço, ou seja, não
entender as coisas pelas leis do mundo porque as leis importa onde e quando ele esteja.
estão no sujeito. E como todo ser racional possui essa Todo ser racional vai agir de acordo com essa
mesma estrutura de capacidade de conhecimento, fundamentação. E qual é a única coisa que é inerente ao
conseguindo conhecer da mesma maneira, ela não é homem independente do lugar ou da época que ele
singular a um indivíduo A ou B, mas é universal à todo esteja vivendo? A razão.
o gênero humano. O homem tem que seguir apenas as leis
Ser racional é possuir essa estrutura a priori que universais que a razão ordena para o agir moral, nada de
possibilita a nossa capacidade de conhecer. A razão é a ficar buscando outros motivos.
grande legisladora que dita as leis pelas quais Para Kant, os homens podem agir baseados em
conhecemos as coisas, ou melhor, seus fenômenos. dois tipos de ordens, que ele chama de imperativos
Mas sendo ela impotente para conhecer a coisa hipotéticos e categóricos. No entanto, só um deles é
em si mesma, não pode falar, nem legislar nada sobre racional.
metafísica. Os conceitos de alma, Deus, liberdade, por Quando o homem age visando algum interesse,
exemplo, só podem no máximo ser pensados, mas ou seguindo alguma inclinação, ele age de acordo com
nunca conhecidos efetivamente. os imperativos hipotéticos.
230
20
Já quando ele age sem pretender obter nada, O respeito à dignidade da pessoa humana é o
totalmente desinteressado, sua ação está obedecendo grande princípio, basilar e central, das repúblicas
um imperativo categórico. Somente esse tipo de ação é, constitucionalistas ocidentais. Todo Estado deve estar
para Kant, uma ação racional, porque é realizada estruturado para atender a esse princípio se quiser ser
somente por dever, e pelo dever. considerado civilizado.
Mas o homem não é um robô. Ele pode não agir Isso quer dizer que o Direito deve ser um
de acordo com o dever. Desse modo, ele deve ter a instrumento de promoção da dignidade da pessoa
vontade, independente das circunstâncias (paixões, humana, já que é a lei a reguladora das relações sociais.
desejos, vícios), de seguir a lei moral. Essa vontade Só assim poderá haver justiça na sociedade civil.
desprovida de qualquer inclinação é a boa vontade.
Para Kant, o homem só é racionalmente moral O Iluminismo/Esclarecimento
quando age por dever, sem nenhum tipo de interesse ou
inclinação. Só esse tipo de ação pode ser universalizável, Kant talvez seja o único filósofo a se perguntar
que é uma exigência da razão. o que foi esse movimento que estava acontecendo em
Só o homem, que age de acordo com a boa sua época conhecido como Iluminismo.
vontade que o leva a seguir o dever, é livre, pois ele age E o descreve como sendo a saída do homem da
sem ser escravos de suas paixões, obedecendo somente sua menor idade para começar uma época em que ele
a lei moral objetiva que é válida para todos, ou seja, iria começar a pensar por si mesmo. Não iria mais estar
universal. preso a dogmatismos religiosos ou metafísicos, mas
Assim, a resposta que Kant dá para a pergunta seguiria os preceitos da razão. “Ouse saber” era o lema
“o que fazer”, é: “age de tal maneira que o motivo que te levou que ele atribuía a esse movimento.
a agir possa se tornar lei universal”.
Essa é a regra de ouro da moral kantiana, que QUESTÕES
serve para guiar o agir moral em qualquer lugar, tempo
e circunstância. É uma regra universal. 1. Na sua obra “Crítica da Razão Pura”, Kant formulou
Assim, ele responde também à pergunta: “por uma síntese entre sujeito e objeto, mostrando que, ao
que agir dessa maneira?”. O homem deve agir dessa conhecermos a realidade do mundo, participamos da
forma porque essa é a maneira racional de agir. Seguir a sua construção mental. Segundo Kant, esta valorização
lei ditada pela razão é, em última instância, ser livre.
Kant estabelece dessa forma a deontologia do sujeito (possuidor de categorias apriorísticas) no ato
moral, que é agir somente por dever. E essa doutrina de conhecimento representou, na Filosofia, algo
moral é formalista porque não admite nenhum tipo de comparável à
motivação que não seja o dever. A) previsão da órbita do Cometa Halley no sistema
solar.
A dignidade da pessoa humana B) revolução de Copérnico na Física.
C) invenção do telescópio por Galileu Galilei.
D) Revolução francesa que derrubou o Ancien Régime.
E) invenção da máquina a vapor.

2. Até agora se supôs que todo nosso conhecimento


tinha que se regular pelos objetos; porém, todas as
tentativas de mediante conceitos estabelecer algo a
priori sobre os mesmos, através do que nosso
conhecimento seria ampliado, fracassaram sob esta
pressuposição. Por isso, tente-se ver uma vez se não
Segundo Kant, o homem ao agir seguindo a
regra de ouro estará, ao mesmo tampo, sendo racional, progredimos melhor nas tarefas da Metafísica
e portanto, autônomo, e ainda, respeitando a dignidade admitindo que os objetos têm que se regular pelo nosso
do outro, pois ao tratar o outro como gostaria de ser conhecimento, o que assim já concorda melhor com a
tratado, está respeitando a pessoa como um fim em si requerida possibilidade de um conhecimento a priori
mesma e não como um meio para se chegar a algo. dos mesmos que deve estabelecer algo sobre os objetos
A máxima moral de tratar o outro como fim e antes de nos serem dados. O mesmo aconteceu com os
não como meio, foi o grande legado que Kant deixou
pensamentos de Copérnico que, depois das coisas não
para o mundo contemporâneo.
quererem andar muito bem com a explicação dos
movimentos celestes admitindo-se que todo exército de
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21
astros girava em torno do espectador, tentou ver se não 5. A respeito da distinção entre o conhecimento puro e
seria mais bem-sucedido se deixasse o espectador o conhecimento empírico, tal como são apresentados
mover-se e, em contrapartida, os astros em repouso. na Crítica da Razão Pura de I. Kant analise as assertivas
KANT, I. Crítica da razão pura. Prefácio à segunda edição. Trad. abaixo:
de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova I) O conhecimento empírico resulta da experiência
Cultural, 1987, p. 14. (Os Pensadores)
sensível e é expresso pelas impressões, portanto, trata-
Considerando a leitura do trecho acima, podemos dizer
se de um conhecimento a priori.
que a revolução copernicana de Kant é
II) O conhecimento a priori é um conhecimento puro e
A) uma revolução filosófica e científica segundo a qual
independente de todas as impressões dos sentidos,
o espectador não pode permanecer fixo em sua posição,
portanto, livres dos elementos empíricos.
aprendendo apenas os fenômenos, mas deve considerar
III) O conhecimento puro, a priori, é um juízo pensado
que ele mesmo encontra-se em movimento para poder
com universalidade rigorosa, de modo que tal juízo não
perceber as coisas em si mesmas.
aceita nenhuma exceção.
B) uma revolução astronômica que pretendeu mudar o
IV) O conhecimento empírico, a posteriori, é um juízo
curso da Filosofia Moderna, propondo uma reavaliação
analítico, pois ele só é possível por intermédio de um
da física newtoniana.
conhecimento analítico dos conceitos.
C) uma revolução filosófica que estabeleceu que o
Assinale a alternativa que contém as assertivas
conhecimento da coisa em si só pode ser atingido caso
verdadeiras:
haja um cuidadoso estudo dos fenômenos.
A) II e III
D) uma revolução filosófica que afirmou a distinção
B) I, II e IV
entre fenômeno e coisa em si, qualificando esta última
C) I, III e IV
como incognoscível.
D) III e IV
3. Em relação ao conceito de fenômeno, conforme foi
6. A respeito dos juízos analíticos e dos juízos sintéticos
apresentado por I. Kant, assinale a alternativa
em Kant, é correto afirmar que:
INCORRETA.
A) Juízos analíticos ou de experiência são aqueles em
A) Este conceito refere-se ao que não pode ser dado
que a relação entre o sujeito e seu predicado é pensada
numa experiência, e, nesse sentido, designa também o
sem identidade; juízos sintéticos ou afirmativos são
que pode ser conhecido como coisa em si.
aqueles em que há identidade entre o sujeito e seu
B) Este conceito designa todos os objetos que podem
predicado.
ser intuídos no espaço e no tempo.
B) Juízos analíticos ou afirmativos, são aqueles que
C) Este conceito refere-se a todos os objetos acerca dos
resultam da identidade do sujeito com seu predicado; os
quais pode ser produzido conhecimento objetivo e
juízos sintéticos ou de experiência são aqueles que são
verdadeiro pelas ciências empíricas.
pensados sem a identidade entre o sujeito e seu
D) Este é um conceito fundante da crítica kantiana, pois
predicado.
permite separar os objetos da experiência dos que não
C) Juízo analítico é fundado sobre a experiência, porque
podem estar contidos em qualquer experiência possível.
o fundamento é sempre o testemunho da experiência;
os juízos sintéticos, que são princípios de identidade,
4. Na obra Crítica da Razão Pura, Imannuel Kant,
não acrescentam ao sujeito nenhum predicado novo.
examinando o problema do conhecimento humano,
D) Juízos analíticos, resultantes da identidade do sujeito
distinguiu duas formas básicas do ato de conhecer.
com o seu predicado, podem ser denominados de juízos
Assinale a alternativa CORRETA.
de ampliação; os juízos sintéticos, nos quais não há
A) O conhecimento religioso e o conhecimento ateu.
identidade, podem ser denominados de juízos de
B) O conhecimento mítico e o conhecimento cético.
elucidação.
C) O conhecimento sofístico e o conhecimento
ideológico. 7. (UFU 2015) Para Immanuel Kant,
D) O conhecimento empírico e o conhecimento puro. A) transcendental é o conhecimento enquanto tal, na
E) O conhecimento fanático e o conhecimento medida em que é possível a posteriori, ou seja, como
tolerante. objeto de apreensão sensível/material.

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22
B) transcendental é uma forma de conhecimento não maneira? Admitindo que se decida a fazê-lo, a sua
dos próprios objetos, mas dos modos pelos quais máxima de ação seria: Quando julgo estar em apuros de
podem ser conhecidos, ou seja, as condições da dinheiro, vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo,
experiência possível
embora saiba que tal nunca sucederá.”
C) transcendente é o conhecimento que trata dos
KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos
princípios que não ultrapassam os limites da Costumes. Tradução de Paulo Quintela. São Paulo: Abril
experiência, como os teológicos e os cosmológicos. Cultural, 1980, p. 130.
D) a distinção transcendental e empírico envolve
De acordo com o texto e os conhecimentos sobre a
elementos da metafísica clássica, de origem platônica.
moral kantiana, considere as afirmativas a seguir.
8. Na Primeira Secção da Fundamentação da Metafísica I - Para Kant, o princípio da ação da falsa promessa não
dos Costumes, Kant analisa dois conceitos pode valer como lei universal.
fundamentais de sua teoria moral: o conceito de II - Kant considera a falsa promessa moralmente
vontade boa e o de imperativo categórico. Esses dois permissível porque ela será praticada apenas para sair de
conceitos traduzem as duas condições básicas do dever: uma situação momentânea de apuros.
o seu aspecto objetivo, a lei moral, e o seu aspecto III - A falsa promessa é moralmente reprovável porque
subjetivo, o acatamento da lei pela subjetividade livre, a universalização de sua máxima torna impossível a
como condição necessária e suficiente da ação. própria promessa.
(DUTRA, D. V. Kant e Habermas: a reformulação discursiva da IV - A falsa promessa é moralmente reprovável porque
moral kantiana. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 29.) vai de encontro às inclinações sociais do ser humano.
Com base no texto e nos conhecimentos sobre a teoria A alternativa que contém todas as afirmativas corretas,
moral kantiana, é correto afirmar: é:
a) A vontade boa, enquanto condição do dever, consiste a) I e II
em respeitar a lei moral, tendo como motivo da ação a b) I e III
simples conformidade à lei. c) II e IV
b) O imperativo categórico incorre na contingência de d) I, II e III
um querer arbitrário cuja intencionalidade determina e) I, II e IV
subjetivamente o valor moral da ação.
c) Para que possa ser qualificada do ponto de vista 10. (UFU 2012) E por que realizamos atos contrários
moral, uma ação deve ter como condição necessária e ao dever e, portanto, contrários à razão? Kant dirá que
suficiente uma vontade condicionada por interesses e é porque nossa vontade é também afetada pelas
inclinações sensíveis. inclinações, que são os desejos, as paixões, os medos,
d) A razão é capaz de guiar a vontade como meio para e não apenas pela razão. Por isso afirma que devemos
educar a vontade para alcançar a boa vontade, que seria
a satisfação de todas as necessidades e assim realizar seu aquela guiada unicamente pela razão.
verdadeiro destino prático: a felicidade. COTRIM, G.; FERNANDES, M. Fundamentos de Filosofia. São Paulo:
Saraiva, 2010. p. 301.
e) A razão, quando se torna livre das condições Sobre a reflexão ética de Kant, assinale a alternativa
subjetivas que a coagem, é, em si, necessariamente INCORRETA.
conforme a vontade e somente por ela suficientemente A) A ação por dever é aquela que exclui todas as
determinada. determinações advindas da sensibilidade, como os
desejos, as paixões e os medos.
9. Na segunda seção da Fundamentação da Metafísica B) A ação por dever está fundada na autonomia, ou seja,
na capacidade que todo homem tem de escolher as
dos Costumes, Kant nos oferece quatro exemplos de
regras que sua própria razão construiu.
deveres. Em relação ao segundo exemplo, que diz C) A ação por dever é uma expressão da boa vontade,
respeito à falsa promessa, Kant afirma que uma “pessoa na medida em que exige que a mesma regra, escolhida
vê-se forçada pela necessidade a pedir dinheiro para um certo caso, possa ser utilizada por todos os
emprestado. Sabe muito bem que não poderá pagar, agentes racionais.
mas vê também que não lhe emprestarão nada se não D) A ação por dever é aquela que reflete um meio termo
prometer firmemente pagar em prazo determinado. ou um equilíbrio entre as determinações das inclinações
e as determinações da razão.
Sente a tentação de fazer a promessa; mas tem ainda
consciência bastante para perguntar a si mesma: Não é 11. (UFU 2014) Os princípios práticos se dividem em
proibido e contrário ao dever livrar-se de apuros desta dois grandes grupos, que Kant chama, respectivamente,
233
23
de ‘máximas’ e ‘imperativos’. [...] Os imperativos são os c) É determinada pela lei da natureza, que tem como
princípios práticos objetivos, isto é, válidos para todos. Os fundamento o princípio de auto-conservação.
imperativos são “mandamentos” ou “deveres”, ou seja, d) Está subordinada à vontade de Deus, que
regras que expressam uma necessidade objetiva da ação, o preestabelece o caminho seguro para a ação humana.
que significa que, “se a razão determinasse completamente
a vontade, a ação ocorreria segundo tal regra” ao passo e) A máxima que rege a ação pode ser universalizada,
que a intervenção de fatores emocionais e empíricos ou seja, quando a ação pode ser praticada por todos,
podem desviar esta vontade. sem prejuízo da humanidade.
REALE,G., DARIO, A. História da Filosofia, vol. II. São Paulo: Paulus, 1990, p. 903
(adaptado)
Para Kant, é correto afirmar que os imperativos 14. “Quando a vontade é autônoma, ela pode ser vista
A) são subjetivos e, dessa forma, não podem ser como outorgando a si mesma a lei, pois, querendo o
princípios universais. imperativo categórico, ela é puramente racional e não
B) devem determinar a razão, pois são princípios dependente de qualquer desejo ou inclinação exterior à
válidos para todos.
razão. [...] Na medida em que sou autônomo, legislo
C) determinam a vontade, sem que as emoções
interfiram. para mim mesmo exatamente a mesma lei que todo
D) sendo “máximas”, não expressam a necessidade outro ser racional autônomo legisla para si.”
objetiva da ação. WALKER, Ralph. Kant: Kant e a lei moral. Trad. de Oswaldo
Giacóia Júnior. São Paulo: Unesp, 1999. p. 41.
Com base no texto e nos conhecimentos sobre
12. (UFU 2013) Autonomia da vontade é aquela sua
propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei autonomia em Kant, considere as seguintes afirmativas:
(independentemente da natureza dos objetos do I.- A vontade autônoma, ao seguir sua própria lei, não
querer). O princípio da autonomia é portanto: não segue a razão pura prática.
escolher senão de modo a que as máximas da escolha II-. Segundo o princípio da autonomia, as máximas
estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, escolhidas devem ser apenas aquelas que se podem
como lei universal. querer como lei universal.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo
Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 85. III-. Seguir os seus próprios desejos e paixões é agir de
De acordo com a doutrina ética de Kant: acordo com o imperativo hipotético.
A) O Imperativo Categórico não se relaciona com a
IV-. A autonomia compreende toda escolha racional,
matéria da ação e com o que deve resultar dela, mas
com a forma e o princípio de que ela mesma deriva. inclusive a escolha dos meios para atingir o objeto do
B) O Imperativo Categórico é um cânone que nos leva desejo.
a agir por inclinação, vale dizer, tendo por objetivo a Estão corretas apenas as afirmativas:
satisfação de paixões subjetivas. a) I e II.
C) Inclinação é a independência da faculdade de b) I e IV.
apetição das sensações, que representa aspectos c) III e IV.
objetivos baseados em um julgamento universal.
D) A boa vontade deve ser utilizada para satisfazer os d) II e III.
desejos pessoais do homem. Trata-se de fundamento e) II, III e IV.
determinante do agir, para a satisfação das inclinações.
15. “Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser
13. “O imperativo categórico é, portanto só um único, racional tem a capacidade de agir segundo a
que é este: Age apenas segundo uma máxima tal que representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das
universal.” leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa
(KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. senão razão prática. Se a razão determina infalivelmente
Trad. de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1995. p. 59.) a vontade, as ações de um tal ser, que são conhecidas
Segundo essa formulação do imperativo categórico por como objetivamente necessárias, são também
Kant, uma ação é considerada ética quando: subjetivamente necessárias, isto é, a vontade é a
a) Privilegia os interesses particulares em detrimento de faculdade de escolher só aquilo que a razão
leis que valham universal e necessariamente. independentemente da inclinação, reconhece como
b) Ajusta os interesses egoístas de uns ao egoísmo dos praticamente necessário, quer dizer bom”.
outros, satisfazendo as exigências individuais de prazer (KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes.
e felicidade. Trad. de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1995. p. 47.)
234
24
Com base no texto e nos conhecimentos sobre a GABARITO
liberdade em Kant, considere as afirmativas a seguir.
I. A liberdade, no sentido pleno de autonomia, QUESTÕES VOLTAIRE
restringe-se à independência que a vontade 1. 2/8/16
humana mantém em relação às leis da natureza.
2. 2/8
II. A liberdade configura-se plenamente quando a
vontade humana vincula-se aos preceitos da vontade
divina. QUESTÕES MONTESQUIEU
III. É livre aquele que, pela sua vontade, age tanto
1. b
objetivamente quanto subjetivamente, por princípios
que são válidos para todos os seres racionais.
IV. A liberdade é a capacidade de o sujeito dar a si a sua QUESTÕES ROUSSEAU
própria lei, independentemente da causalidade natural. 1. a
Estão corretas apenas as afirmativas:
a) I e II 2. a
b) II e III 3. a
c) III e IV 4. c
d) I, II e IV
e) I, III e IV
QUESTÕES ENCICLOPÉDIA
1. b
2. 2/4/8

QUESTÕES FISIOCRATAS
1. a

QUESTÕES KANT
1. b
2. d
3. a
4. d
5. a
6. b
7. b
8. a
9. b
10. d
11. b
12. a
13. e
14. d
15. c

235
25
FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA A igualdade política ficou comprometida, pois
os direitos de votar e ser votado ficaram, de fato,
restritos à elite econômica.
CONTEXTO HISTÓRICO Com o Iluminismo temos uma transformação
O pensamento filosófico contemporâneo se que promoveu uma progressiva substituição das
desenvolve sob o pano de fundo intelectual do crenças pela indagação racional como explicação para
otimismo da razão e a crença no progresso da os fenômenos naturais.
humanidade, reforçados pelos dois maiores Como vimos, os iluministas acreditavam que o
acontecimentos que moldaram o mundo ocidental. uso sistemático da razão levaria o ser humano à
A Revolução Industrial, não se restringiu à compreensão de todas as áreas do conhecimento e, por
introdução de máquinas e aperfeiçoamento dos modos esse motivo, pregavam o uso da razão pura.
de produção. Também representou o triunfo da A razão seria a salvadora da humanidade,
indústria, comandada pelo empresário capitalista que, tirando o homem das trevas que estava mergulhado
pouco a pouco, concentrou a propriedade das para uma nova era de progresso tecnológico que
máquinas, das ferramentas e das terras, transformando garantiria melhores condições de vida tanto material
populações inteiras em trabalhadores despossuídos e quanto espiritual.
recrudescendo o aumento da desigualdade social.
1. JEREMY BENTHAM E O ULTILITARISMO

Houve, a partir do século


XVIII (continuando pelo século
seguinte), uma busca para
controlar, medir e prever os
eventos, e principalmente, as
ações das pessoas, e essa procura
passava pela utilização de
métodos empregados pelas
ciências, ou seja, que eram
considerados científicos e corretos na época.
Mas, existiria uma “fórmula” para se saber o
A Revolução Francesa também merece que é certo ou errado? Haveria um modo de quantificar
destaque porque trouxe reformas sociais. A França as ações humanas? Seria possível uma “ciência” da
forneceu as ideias, o vocabulário do nacionalismo e os moral? Com o intuito de tentar responder tais
temas da política liberal para a maior parte do mundo. questionamentos, Jeremy Bentham (1748-1832),
As exigências da burguesia foram delineadas na filósofo inglês, escreveu uma vasta obra.
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de Bentham é tido como fundador da corrente
1789. O desejo primordial foi a formação de uma Utilitarista – que diz que toda ação deve ser medida
sociedade democrática e igualitária. por sua utilidade – e é mais conhecido por estudiosos
no campo do Direito e da Sociologia, devido aos seus
escritos sobre um sistema penitenciário.
O autor considerava a legislação de sua época
incompleta e apresentou uma proposta diferente para a
legislação inglesa.
Isso ocorreu num período em que grandes
acontecimentos tomaram o mundo, não só no campo
filosófico, mas também no econômico. Eventos como
a publicação da Declaração de Independência
Americana, a publicação do livro A Riqueza das Nações
de Adam Smith (1723-1790) em 1776, e a Revolução
Francesa (1789).
Além das propostas de mudanças nos campos
Entretanto, ao final da Revolução Francesa, morais e legislativos, Bentham buscou trazer soluções e
os anseios de igualdade social viram-se frustrados, pois novas perspectivas para assuntos como educação e o
a burguesia conservava a hegemonia política e, por esse sistema de presídios existentes.
motivo, impunha os interesses de sua classe social. Seus escritos sobre o projeto chamado
Panóptico, que era um modelo de prisão que poderia
servir também como escolas e hospitais, foi muito
236
1
estudado, difundido e absorvido pela arquitetura das A utilização de métodos, de princípios e os
instituições modernas. conceitos advindos da física davam certa legitimidade
De acordo com Bentham, esse modelo deveria aos estudos feitos em outras áreas atualmente
ser construído em uma área grande e ter o formato conhecidas como ciências humanas ou sociais.
circular, com várias células dispostas ao redor de uma Os fenômenos sociais eram considerados
grande torre de controle, onde os presos seriam passíveis de serem expressos por meio de leis. Durante
observados e vigiados por guardas que não poderiam o período compreendido entre o final do século XVII
ser vistos. e o início do século XIX, houve uma maior valoração
dos métodos experimentais nos estudos relacionados às
ações humanas. Jeremy Bentham buscou à sua maneira,
construir uma ciência da moral.
É importante salientar a relevância dada pelo
autor aos sentimentos de prazer e dor. Tais sentimentos
estão diretamente ligados às suas explicações de como
conhecemos as coisas no mundo real, pois Bentham
valoriza sobremaneira os sentidos.
Para o autor, só podemos considerar algo como
real se pudermos percebê-lo através dos nossos cinco
sentidos; caso não possamos perceber ou sentir essa
A ideia era construir uma sociedade de coisa, ela deve ser considerada como uma entidade
indivíduos adestrados/controlados pela vigilância fictícia, ou seja, como não existente no mundo real, mas
constante das instituições e dos próprios indivíduos. sim, no mundo do discurso.
Todos devem “andar na linha” por causa do temor de Então, para Bentham, prazer e dor deveriam ser
ter o seu comportamento reprovado/censurado pelo tratados como entidades reais, pois os conhecemos
olhar do outro. através dos nossos sentidos, e então somente o prazer
No campo e a dor deveriam ditar o que devemos ou não fazer.
legislativo, Bentham No intuito de fornecer um guia de como os as
publicou em 1789, pessoas/legisladores deveriam agir e baseando-se no
justamente o ano da Princípio da Utilidade (onde toda ação deve ser tomada
Revolução Francesa, visando a maior felicidade (prazer) para o maior
sua obra Uma número de pessoas), bem como em suas ideias de como
Introdução aos Princípios o ser humano conhece algo no mundo real, Bentham
da Moral e da Legislação. Nessa obra, Bentham dá ênfase construiu então, sua proposta de mensurar as ações
às suas ideias a respeito de política e governo, buscando humanas, o que foi chamado de “Cálculo da
apresentar um guia de como as ações morais e éticas Felicidade”.
deveriam ser tratadas e seguidas. Ele afirma que o prazer e a dor deveriam ser
Ele acreditava que as ações humanas poderiam “instrumentos” com os quais as pessoas/legisladores
ser abordadas da mesma maneira que os fenômenos deveriam agir/trabalhar, e saber a força de cada um, ou
que eram objetos da química ou da física. seja, saber o seu peso e valor seria de inegável
Para alcançar tal objetivo estabeleceu critérios importância.
para medir as forças que governavam as ações humanas, Ele defendia que, ao atribuir valores para os
que segundo ele era o prazer e a dor e assim, prazeres e dores, as pessoas/legisladores seriam capazes
desenvolveu um modo de mensurá-los incorporando- de agir de maneira mais justa e aplicar punições mais
os numa “ciência da moral”. justas, incorrendo no menor erro possível.
Com esse cálculo, seria possível que as opções
O surgimento do utilitarismo das pessoas (principalmente dos governantes) entre
uma ação e outra estivessem baseadas, não em simpatia
Durante esse período, as questões políticas e ou antipatia por determinado fim, mas sim em sua
morais deveriam seguir as leis e métodos da ciência. utilidade (causar a maior felicidade (prazer) para maior
Vimos que nessa época, a “Ordem Natural” descoberta número de pessoas).
por Isaac Newton (1643-1727) serviria como base não Sua proposta se mostra mais como um guia que
só para o mundo físico, mas também para o mundo nos orienta em uma dada situação, onde, se ao final
político e social. houver um número positivo – a ação é boa e deve ser
Muitos pensadores, durante esse período, executada, se houver um número negativo, não
fizeram propostas para tratar os assuntos relacionados devemos ir adiante.
com a política, a moral e a ética de maneira mais Apesar das possíveis dificuldades no método de
quantitativa. medir os prazeres e dores, a relevância da tentativa de
237
2
Bentham está em sua busca por uma ferramenta que O eu é princípio da
proporcionasse as pessoas uma linha mestre para consciência, ou seja, para
pensar nas ações e como estas afetariam, tanto a vida Kant apenas o sujeito pode
do indivíduo, quanto a vida de toda uma comunidade. ser o centro do
desenvolvimento do
2. O ROMANTISMO CONTRA A RAZÃO conhecimento. Em última
instancia o conhecimento só
A palavra “romântico” aparece pela primeira poderá ser organizado pelo
vez na Inglaterra pela metade do século XVII para sujeito.
designar o fabuloso, o fantástico, o irreal. Não existe
Posteriormente, o termo “romantismo” passou a conhecimento sem o sujeito que conhece. O objeto não
indicar o renascer do instinto e da emoção, sufocados consegue se manifestar, a não ser que a manifestação
pelo racionalismo prevalente do século XVIII. seja desenvolvida pelo sujeito.
O romantismo designa o movimento espiritual Esse ato de predominância do sujeito em
que, envolvendo não só a poesia e a filosofia, mas relação ao objeto é caracterizado como filosofia
também as artes figurativas e a música, desenvolveu-se idealista. A ideia fundamental do idealismo que o objeto
na Europa entre o fim do século XVIII e a primeira é uma simples acomodação do objeto.
metade do século XIX. O objeto não tem consciência, sua manifestação
A partir da Inglaterra, o movimento se expandiu é a apenas a revelação da sensibilidade da percepção
em toda a Europa, na França, na Itália, na Espanha, mas humana.
a manifestação paradigmática do romantismo foi em O que fez Fichte, apenas usou o eu kantiano e
todo caso a que surgiu na passagem entre o século transformou o mesmo, numa relação substancial com a
XVIII e o XIX na Alemanha. consciência, num princípio criador da realidade. O
Para os românticos, a natureza, subtraída espírito, com efeito, cria o que é real.
inteiramente da concepção mecanicista-iluminista, Nesse aspecto o mundo passa ser criação do
entende-se como vida que cria eternamente, como espírito e não da matéria. A partir desse princípio
grande organismo do todo afim ao organismo humano. elaborado, ele entende que a realidade é concebida pelo
A natureza é jogo móvel de forças que gera todos os espírito, e, não por ela mesma. O que significa na
fenômenos, compreendendo o homem e, portanto, esta prática, não existe realidade sem espírito.
força é a própria força do divino. Com efeito, o mundo evolui pelo espírito e não
O romantismo foi caracterizado pela pela materialidade da realidade, com essa lógica ele
importância que em alguns sistemas filosóficos foi dada funda a filosofia idealista, que significa para ele, a
à intuição e à fantasia, em contraste com os sistemas realidade objetiva é um mero produto do espírito
baseados unicamente sobre a fira razão, entendida humano.
como único órgão da verdade. Nesse sentido, todo Fichte sempre referiu as coisas do mundo
idealismo é uma filosofia romântica. prático, mas que é exterior ao próprio homem, como
tudo aquilo que é determinado pelo não eu, mas criado
3. IDEALISMO ALEMÃO pelo eu. Toda forma de criação só é possível pelo eu.
Outro pensador
A gênese do idealismo alemão tem Johann importante Friedrich
Gottlieb Fichte (1762-1814) e Friedrich Schelling Schelling (1775-1854), ele
(1775-1854) como seus principais fundadores e procurou formular como se
representantes. Mas é com Georg Wilhelm Friedrich dá no mundo prático a
Hegel (1770-1831) que alcança a sua maior expressão, relação entre a existência do
sendo este, o grande filósofo de sua época e o de maior mundo real, ao que se
influência no pensamento posterior. referem suas formas
O idealismo alemão foi um movimento materiais, a partir exatamente
filosófico muito específico e fundamental pelo menos do eu, pois o mesmo dizia
em parte para o desenvolvimento crítico do claramente sem o sujeito a matéria não existe.
desenvolvimento da epistemologia, sobretudo, em Ele discorda de Fichte em um ponto muito
referência ao movimento formulado por Kant. importante, ao que se refere à lógica abstrata, do mundo
A corrente idealista foi fundada pelo filosofo como puro não-eu, essa acepção não existe para
Johann Gottlieb Fichte (1726-1814), a partir da Schelling, ou seja, a ideia de Fichte que a realidade
filosofia de Kant. exterior é produto da imaginação do eu.
Como já vimos, Kant afirma que para existir Ele afirma a existência de um princípio único, a
conhecimento, é necessário a existência do sujeito, possibilidade da existência de Deus. Para ele todas as
apenas ele pode conhecer todas as formas de objeto. coisas que pertencem ao mundo da natureza, e, que
238
3
manifestam por meio dela, existe indiferente do sujeito, 3) a peculiaridade desta dialética, bem diferente
não se pode negar a materialidade da natureza. de todas as formas precedentes de dialética, é o
É na razão humana que se encontra a elemento "especulativo".
consciência capaz de entender essa realidade que é Um ponto de vista fundamental do pensamento
exterior a mesma, ou seja, o espírito. Mas para Schelling hegeliano é o de entender a verdade não como
existe uma consciência que rege todas as coisas, essa substância fixa e imutável, mas como sujeito, como
ideia corresponde com o conceito da existência de espírito, isto é, como atividade, processo,
Deus. automovimento.
Uma inteligência ou espírito, que manifesta e Para Hegel o espirito se autogera, gerando ao
concretiza o mundo real das coisas, ou seja, a realidade mesmo tempo a própria determinação e superando-a
dos objetos. Com efeito, o espírito operacionaliza no completamente. O espírito é infinito porque se atua e
mundo sensível na empiricidade do mundo e na sua se realiza sempre como infinito que põe e ao mesmo
manifestação. tempo supera o finito.
Esse é o ponto de vista é herdado por Hegel, o O espirito infinito hegeliano é como um círculo
maior idealista de todos os tempos. Ele chegou à em que princípio e fim coincidem de modo dinâmico,
seguinte conclusão, o movimento é produto das ideias, como um movimento em espiral em que o particular é
suas contradições se desenvolvem pelo mecanismo sempre posto e sempre dinamicamente resolvido no
abstrato da realidade, sendo que o mesmo é sempre universal.
solucionado pela lógica dos contrários. A história O espirito infinito hegeliano é algo que se
realiza-se pelo espírito, nos seus devidos saltos plasma a si mesmo de novo, mas em figuras sempre
antagônicos. diversas.
A importância dessa análise é que o O absoluto é uma igualdade que continuamente
conhecimento se desenvolve pela subjetividade do se diferencia para se reconstituir. Cada momento do real
espírito, a realidade não é entendida pelas contradições é momento necessário do absoluto, o qual se faz e se
da própria realidade como formaliza a teoria do realiza justamente em cada um e em todos estes
conhecimento derivada do materialismo histórico. momentos. O real é, portanto, um processo que se
autocria enquanto percorre seus momentos sucessivos,
4. HEGEL E O SABER ABSOLUTO
e em que o positivo é justamente o próprio movimento
como progressivo auto-enriquecimento.
O alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel O movimento próprio do espirito é o refletir-se
(1770 – 183) foi um dos filósofos de maior envergadura em si mesmo, uma reflexão circular em que Hegel
da modernidade. distingue três momentos:
As suas principais obras foram: 1) o ser-em-si;
1 - Fenomenologia do 2) o ser-outro ou ser-fora-de-si;
espirito, (1806) 3) o retorno a si ou ser-em-si-e-por-si.
2 - A Ciência da Lógica O movimento autoprodutivo do absoluto tem,
(1816); portanto, um ritmo triádico, que se repete
3 - Enciclopédia das estruturalmente em todos os níveis do real e que no
ciências filosóficas em compêndio próprio absoluto dá lugar a três momentos originários
(1818); e paradigmáticos:
4 - Princípios da filosofia do 1) a ideia em si, que é logos como racionalidade
direito (1821). pura (objeto da lógica);
A Fenomenologia do 2) a natureza, que é a ideia fora de si, isto é,
espirito, marcando no plano pessoal, além de no alienada (objeto da filosofia da natureza);
filosófico, a ruptura definitiva com Schelling, inaugura 3) o espírito em geral, que é a ideia que, a partir
a fase madura do pensamento hegeliano. da alienação, retorna a si e se torna em si e por si (objeto
da filosofia do espirito).
4.1 Os fundamentos do sistema Tudo é, portanto, desenvolvimento da ideia,
que suporta e supera sua negação, e a famosa frase de
Os núcleos conceituais a que todo o sistema Hegel “tudo aquilo que é real é racional e tudo aquilo que é
hegeliano pode ser referido, seguindo em concreto seu racional é real” indica justamente que a realidade é o
desenvolvimento até sua plena realização, são três: próprio desenvolver-se da ideia, e vice-versa.
1) a realidade enquanto tal é espírito infinito; Segundo Hegel, o único método em grau de
2) a estrutura é a própria vida do espírito e, garantir o conhecimento científico do absoluto, e de
portanto, também o procedimento com o qual se elevar assim a filosofia à ciência, é o método dialético,
desenvolve o saber filosófico, é a dialética; em virtude do qual a verdade pode finalmente receber
a forma rigorosa do sistema da cientificidade; ele se
239
4
remete aqui à dialética clássica, conferindo porém pura razão e que se coloca em perspectiva absoluta (ou
movimento e dinamicidade às essências e aos conceitos seja, que adquire o ponto-de-vista-do absoluto).
universais que, já descobertos pelos antigos, haviam, E, “para construir o absoluto na consciência”, é
contudo, permanecido com eles em uma espécie de preciso negar e superar as finitudes da consciência,
repouso rígido, quase solidificados. O coração da elevando desse modo o eu empírico a Eu
dialética torna-se assim o movimento, e precisamente o transcendental, a razão e espirito.
movimento circular ou em espiral, com ritmo triádico. Mas nada disso pode ocorrer abruptamente. Na
Os três momentos do movimento dialético são: verdade, Hegel condenou drasticamente o "problema
1) A tese, que constitui o momento abstrato ou do método" como fora posto desde Descartes até o
intelectivo; o intelecto e a faculdade que abstrai próprio Kant, chegando até a expedir impiedosamente
conceitos determinados e se detém nessa determinação o atestado de óbito desse problema, declarando-o como
própria do finito, considerando erroneamente que as pertencente “a uma cultura ultrapassada”; não pode
separações e definições assim obtidas sejam definitivas. haver “introdução” ao filosofar (como pretendia o
2) A antítese, que constitui o momento velho problema do método) que já não seja filosofar,
dialético (em sentido estrito) ou negativamente racional; nem introdução à ciência que já não seja ciência.
o primeiro passo além dos limites do intelecto é Hegel argumenta que pretender elaborar uma
realizado negativamente pela razão, removendo a introdução à filosofia que preceda a filosofia seria como
rigidez dos produtos intelectivos e levando luz a série pretender querer aprender a nadar antes de entrar na
de contradições e de oposições que caracterizam o água. Entretanto, Hegel está convencido de que a
finito. passagem da consciência comum para a consciência
3) A síntese, que constitui o momento filosófica deve ocorrer de modo mediato e não de
especulativo ou positivamente racional; aqui a razão modo romanticamente imediato e, portanto, Hegel
capta a unidade das determinações contrapostas, ou também admite que exista uma espécie de “introdução
seja, capta dentro de si o positivo emergente da síntese à filosofia”.
dos opostos e se mostra ela própria como totalidade Ela, naturalmente, seria uma “introdução” ao
concreta. filosofar, que é já ela própria um filosofar.
O momento “especulativo” é, portanto, a
reafirmação do positivo que se realiza mediante a 4.2.1.2 A passagem da consciência finita ao
negação do negativo próprio das antíteses dialéticas e, absoluto
portanto, é uma elevação do positivo das teses a um
nível mais alto. Podemos até dizer que na Fenomenologia,
Para Hegel, com efeito, a negação especulativa entendida como caminho que leva ao absoluto, o
não é uma aniquilação total, nem uma reserva definitiva, homem está envolvido tanto quanto o próprio
mas é propriamente uma conservação daquilo que é absoluto. Com efeito, no horizonte hegeliano, não
negado, e sua elevação a um nível superior é um seu existe o finito “separado” do infinito, o particular
“enverdadeiramento” e uma sua “positivização”. "afastado" do universal e, portanto, o homem não está
O especulativo é, portanto, o vértice ao qual afastado e separado do absoluto, mas é parte estrutural
chega a razão, a dimensão do absoluto. Por e determinante dele, porque o infinito hegeliano é o
conseguinte, as proposições filosóficas devem ser infinito-quase-faz-por meio-do-finito, e o absoluto é “o
proposições especulativas, que exprimem o movimento ser que reentrou eternamente em si pelo ser outro”.
dialético com o qual sujeito e predicado trocam entre si Trata-se, portanto, de urna "introdução" ou de
as partes de modo a constituir uma identidade dinâmica. uma propedêutica que constitui um momento, não só
Enquanto a proposição da velha lógica da vida humana, mas também da vida do absoluto: a
permanece fechada nos limites rígidos do intelecto, a “fenomenologia do espirito” é o caminho que leva a
proposição especulativa é estruturalmente dinâmica consciência finita ao absoluto infinito, que coincide
como a realidade que ela exprime e como o pensamento com o caminho que o absoluto percorreu e percorre
que a formula. para alcançar a si mesmo (o reentrar em si pelo ser-
outro).
4.2 A fenomenologia do espírito Portanto, a Fenomenologia marca a passagem
4.2.1 Significado e finalidade necessária e científica, como dissemos, e sua
4.2.1.1 O problema da passagem da consciência metodologia não pode deixar de ser a mais rigorosa
comum para a razão metodologia cientifica, ou seja, a dialética.

Tudo o que destacamos, obviamente, implica


que o homem, no momento em que filosofa, eleva-se
bem acima da consciência comum, ou seja, mais
precisamente, que sua consciência se eleva à altura da
240
5
4.2.1.3 A “fenomenologia” como história da autoconsciência que, de Kant em diante, se tornara o
consciência do indivíduo e história do espírito centro da filosofia, e que Hegel procura fundamentar
cientificamente, dela extraindo ao mesmo tempo as
Com base nessa premissa, torna-se fácil últimas consequências.
compreender o termo "fenomenologia" na acepção Resumidamente, o itinerário fenomenológico
hegeliana. O termo deriva do grego phaincimenon, que percorre as seguintes etapas:
significa manifestar-se ou aparecer e, portanto, quer dizer 1) Consciência (em sentido estrito);
ciência do aparecer e do manifestar-se. Esse aparecer (e, 2) Autoconsciência;
no sistema hegeliano, não poderia ser diferente) é o 3) Razão;
aparecer do próprio espirito em diferentes etapas, que, 4) Espírito;
a partir da consciência empírica, pouco a pouco se eleva 5) Religião;
a níveis sempre mais altos. 6) Saber absoluto.
A fenomenologia, portanto, é a ciência do espirito, A tese de Hegel é que toda consciência é
que aparece na forma do ser determinado e do ser autoconsciência; por sua vez, a autoconsciência se
múltiplo e que, em uma série sucessiva de “figuras”, ou descobre como razão; por fim, a razão realiza-se
seja, de momentos dialeticamente relacionados entre si, plenamente como espírito, que, através da religião,
alcança o saber absoluto. alcança seu ponto culminante no saber absoluto.
Na “fenomenologia do espirito”, como se Cada uma dessas etapas é constituída por
evidencia do que foi dito, existem dois planos que se diferentes momentos ou “figuras”. Hegel apresenta
interseccionam e se justapõem: cada um desses momentos ou cada uma dessas figuras
1) há o plano constituído pelo caminho de modo a mostrar que a sua determinação é
percorrido pelo espirito para chegar a si mesmo ao inadequada e que, portanto, obriga a passar a seu
longo de todos os acontecimentos da história do oposto; este supera o negativo do anterior, mas, por sua
mundo que, para Hegel, é o caminho ao longo do qual vez, embora em nível mais elevado, também se mostra
o espirito se realizou e se conheceu; determinado e, portanto, inadequado, obrigando a
2) mas há também o plano próprio do simples passar além e assim por diante, segundo o ritmo da
indivíduo empírico, que deve percorrer novamente dialética, que bem conhecemos.
aquele mesmo caminho e apropriar-se dele. Hegel diz que a mola dessa dialética
A história da consciência do indivíduo, fenomenológica está na desigualdade ou no desnível
portanto, outra coisa não pode ser senão o percorrer de entre a consciência ou o “eu” e seu objeto (que é o
novo a história do espírito. A introdução “negativo”), e na superação progressiva dessa
fenomenológica à filosofia é o percorrer novamente desigualdade.
esse caminho. O momento culminante desse processo
Vejamos agora qual é o esquema desse itinerário coincide com o momento no qual o espírito torna-se
do espírito-que-aparece e da consciência que o percorre objeto para si mesmo.
de novo, e quais são algumas das “figuras essenciais do Vejamos brevemente essas etapas da
espirito já depostas”. Fenomenologia.

4.2.2 A trama e as figuras da fenomenologia 4.2.2.2 A primeira etapa: a consciência (certeza


4.2.2.1 As etapas do itinerário fenomenológico sensível, percepção e intelecto)

O espírito que se determina e aparece é a A etapa inicial é constituída pela "consciência",


consciência no sentido lato do termo, que significa entendida acepção mais estrita, aquela que olha e
consciência de alguma coisa diversa (tanto interna como conhece o mundo como algo diferente e independente
externa, e de qualquer gênero que seja). Consciência de si. Ela se desdobra em três momentos sucessivos: a)
indica sempre relação determinada entre um "eu" e um da certeza sensível, b) da percepção, c) do intelecto.
"objeto", relação sujeito-objeto. A oposição sujeito- Cada um destes leva dialeticamente ao outro.
objeto, portanto, é característica distintiva da a) No momento da sensação, o particular
consciência. aparece como verdade, mas aparece muito mais como
Ora, o itinerário da Fenomenologia consiste na contraditório, a tal ponto que, para compreender o
mediação progressiva dessa oposição, até sua total particular, é necessário passar para o geral.
superação. b) No momento da percepção, o objeto parece
Podemos, portanto, dizer também que o ser a verdade; mas logo também ele é contraditório,
objetivo que Hegel persegue na Fenomenologia é a porque se revela uno e muitos, ou seja, um objeto com
anulação da cisão entre consciência e objeto, com a muitas propriedades ao mesmo tempo.
demonstração de que o objeto nada mais é do que o "si" c) No momento do intelecto, o objeto aparece
da consciência, isto é, autoconsciência: a como um "fenômeno", produzido por forças e leis.
241
6
Aqui, o sensível se resolve na força e na lei, que são senhor é muito menos do que ser pessoa
precisamente obras do intelecto; dessa forma, a autoconsciente); ao contrário, o escravo tem no senhor
consciência consegue compreender que o objeto depende um polo dialético tal que lhe permite reconhecer nele a
de alguma outra coisa, ou seja, do intelecto, e, portanto consciência, porque a consciência do senhor é a que
(de certo modo), de si mesma (o objeto se resolve no comanda, enquanto o servo faz o que o senhor ordena.
sujeito). Desse modo, a consciência torna-se Dessa forma, Hegel identifica perfeitamente o
autoconsciência (saber de si). poder dialético que deriva do trabalho.
Diz ele: “Precisamente no trabalho, onde
4.2.2.3 A segunda etapa: a autoconsciência parecia ser ela um significado estranho”, a consciência
(dialética do senhor-escravo, estoicismo-ceticismo servil encontra-se a si mesma e encaminha-se para
e consciência infeliz) encontrar seu significado próprio.
Mas a autoconsciência só alcança a plena
A segunda etapa do itinerário fenomenológico consciência através das etapas sucessivas: b) do
é constituída pela "autoconsciência", que, através dos estoicismo, c) do ceticismo, d) da consciência infeliz.
diversos momentos, aprende a saber o que ela é b) O “estoicismo” representa a liberdade da
propriamente. consciência que, reconhecendo-se como pensamento,
Inicialmente, a autoconsciência se manifesta instala-se acima da senhoria e da escravidão, que, como
como caracterizada pelo apetite e pelo desejo, ou seja, sabemos, constituem para os estoicos meros
como tendência a se apropriar das coisas e fazer tudo “indiferentes”. Mas, querendo libertar o homem de
depender de si, a "tolher a alteridade que se apresenta todos os impulsos e de todas as paixões, o estoicismo o
como vida independente". Primeiro a autoconsciência isola da vida e, consequentemente, segundo Hegel, sua
exclui abstratamente de si toda alteridade, considerando liberdade permanece abstrata, retrai-se para dentro de si
o "outro" como não-essencial e negativo. Mas logo e não supera a alteridade.
deve sair dessa posição porque se defronta com outras c) O estoicismo translada-se dialeticamente para
autoconsciências e, consequentemente, nasce de modo o "ceticismo", que transforma o afastamento do
necessário "a luta pela vida ou pela morte", por meio da mundo em atitude de negação do mundo. Mas, negando
qual e somente por meio da qual a autoconsciência se tudo o que a consciência tinha como certo, o ceticismo,
realiza. por assim dizer, esvazia a autoconsciência, levando-a a
Com efeito, segundo Hegel, toda autocontradição e cisão de si consigo mesma. Com
autoconsciência tem necessidade estrutural da outra e a efeito, a autoconsciência cética nega as próprias coisas
luta não deve ter como resultado a morte de uma das que é obrigada a fazer e vice-versa: nega a validade da
duas, mas a submissão de uma a outra. percepção e percebe; nega a validade do pensamento e
a) Nasce assim a distinção entre “senhor” e pensa; nega os valores do agir moral e, no entanto, age
“servo”, com a consequente “dialética”, que Hegel segundo tais valores.
descreve em páginas que se tornaram famosas, para as d) A característica da cisão, implícita na
quais principalmente os marxistas chamaram a atenção, autocontradição do ceticismo, torna-se explícita na
e que estão efetivamente entre as mais profundas e belas “consciência infeliz”, que é a consciência de si como
da Fenomenologia. “duplicada” ou “desdobrada” e “no aspecto imutável e
O “senhor” arriscou seu ser físico na luta e, na no aspecto mutável; o primeiro é considerado como
vitória, tornou-se consequentemente senhor. O “servo” coincidente com um Deus transcendente, e o segundo
teve medo da morte e, na derrota, para salvar a vida com o homem”.
física, aceitou a condição de escravidão e tornou-se A consciência infeliz, segundo Hegel, é o traço
como que uma “coisa” dependente do senhor. que caracteriza principalmente o cristianismo medieval.
O senhor usa o servo e o faz trabalhar para si, Essa consciência tem apenas consciência fragmentada
limitando-se a “desfrutar” das coisas que o servo faz de si, porque procura seu objeto naquilo que é apenas
para ele. Mas, nesse tipo de relação, desenvolve-se um um além inatingível: ela está instalada neste mundo, mas
movimento dialético que acaba por levar a inversão dos está toda voltada para o outro (inatingível) mundo.
papéis. Com efeito, o senhor acaba por se tornar Para a consciência infeliz, toda aproximação à
“dependente das coisas”, ao invés de independente, divindade transcendente significa uma própria
como era, porque desaprende de fazer tudo o que o mortificação e um sentir a própria nulidade.
servo faz, ao passo que o servo acaba por se tornar A superação do negativo próprio dessa cisão
independente das coisas, fazendo-as. (isto é, segundo Hegel, o reconhecimento de que a
Além disso, o senhor não pode se realizar transcendência na qual a consciência infeliz via a única
plenamente como autoconsciência, porque o escravo, e verdadeira realidade não está fora, mas sim dentro
reduzido a coisa, não pode representar o polo dialético dela) leva a uma síntese superior, que se realiza no plano
com o qual o senhor possa se confrontar da “razão”.
adequadamente (já se notou com razão que ser somente
242
7
4.2.2.4 A terceira etapa: a razão mais é senão aquilo em que ela já está imersa: é o ethos
da sociedade e do povo em que vive.
A "razão" nasce no momento em que a
consciência adquire "a certeza de ser toda realidade". 4.2.2.5 A quarta etapa: o espírito
Essa a posição própria do idealismo.
As etapas fenomenológicas da razão (ou do A razão que se realiza em um povo livre e em
espírito que se manifesta como razão) são as etapas suas instituições é a consciência que se reúne
dialéticas progressivas da aquisição dessa certeza de ser intimamente a sua própria "substância ética", e isso é
toda coisa, ou seja, da aquisição da unidade de pensar e de ser. doravante o espirito.
Essas etapas repetem, em nível mais elevado, O espirito é o indivíduo que constitui um
como espiral que se eleva, em movimento que retorna mundo tal como ele se realiza na vida de um povo livre.
sempre sobre si, segundo círculos cada vez mais O espírito, portanto, é a unidade da autoconsciência "na
amplos, os três momentos examinados anteriormente. perfeita liberdade e independência" e, ao mesmo
O nível mais elevado consiste justamente no tempo, em sua oposição “mediata”.
fato de que agora, como razão, a consciência sabe ser O espírito é “eu que é nós, nós que é eu".
unidade de pensamento e de ser e, nesse nível, as novas Quem não tiver continuamente presente essa
etapas consistem precisamente em verificar essa dimensão intersubjetiva e social do espirito não poderá
certeza. E assim temos as três etapas: A) da "razão que compreender sequer uma palavra do que diz Hegel.
observa a natureza"; B) da "razão que age" e C) da Consequentemente, é claro que, durante todo o
"razão que adquire a consciência de ser espirito". curso do resto do itinerário fenomenológico, as
A) A "razão-que-observa-a-natureza" é "figuras" tornam-se "figuras de um mundo", etapas da
constituída pela ciência da natureza, que se move desde história, que nos mostram o espírito "alienado no
o princípio no plano da consciência de que o mundo é tempo", mas que, através dessa alienação, se realiza, se
penetrável pela razão, ou seja, é racional. reencontra e, por fim, se autoconhece.
Portanto, para poder-encontrar-a-si-mesma-no- As etapas fenomenológicas do "espírito" são:
seu-outro, a razão deve superar o momento "de A) o espirito em si como eticidade (como se
observação" e passar para o momento "ativo" ou exprime de modo paradigmático no mundo greco-
"prático", ou seja, para a esfera moral. romano);
B) A "razão-que-age" repete em nível mais B) o espirito que se alheia de si (que se cinde nas
elevado (isto é, no nível da certeza de ser toda coisa) o contradições, como acontece, por exemplo, no
momento da autoconsciência. O itinerário da razão Iluminismo e na Revolução Francesa que termina no
ativa consiste em começar a realizar-se, inicialmente, terror);
como individuo para, por fim, elevar-se ao universal, C) o espirito que readquire certeza de si.
superando os limites da individualidade e alcançando a
união espiritual superior dos indivíduos. 4.2.2.6 A quinta etapa: a religião
As etapas desse processo são indicadas por
Hegel nas “figuras”: A Fenomenologia apresenta ainda uma etapa, ou
a) do homem que busca a felicidade no prazer e seja, a "religião", através da qual chega-se ao saber
no gozo: absoluto. Já que deveremos falar sobre a concepção da
b) do homem que segue a lei do coração religião mais adiante, na filosofia do espirito, limitamo-
individual (como no sistema de Rousseau); nos aqui a alguns poucos acenos.
c) da virtude e do homem virtuoso. Mas de Na religião e em suas diferentes manifestações
modo ainda abstrato (como ocorre, por exemplo, nos o espírito toma consciência de si mesmo, “mas somente
personagens que gostariam de reformar o mundo, mas do ponto de vista da consciência, que tem consciência
que por sua qualidade abstrata entram em falência, da essência absoluta” e não ainda como autoconsciência
como Dom Quixote e Robespierre). absoluta do próprio absoluto, que será o ponto de vista
C) Síntese dos dois momentos anteriores, a do saber absoluto.
razão é dada pela autoconsciência que supera sua Pode-se também dizer que a religião é a
posição em relação aos outros e ao curso do mundo, autoconsciência do absoluto, mas ainda não perfeita, ou
encontrando neles seu próprio conteúdo. Esta fase seja, na forma da representação e não do conceito.
também se realiza em três momentos sucessivos: A forma mais elevada de religião para Hegel é o
a) o representado pelo homem inteiramente cristianismo, e nos dogmas fundamentais do
voltado para as obras que realiza; cristianismo ele vê os conceitos cardeais de sua filosofia:
b) o da razão legisladora; a encarnação, o reino do espírito e a trindade expressam
c) o da razão que examina ou critica leis. o conceito de espírito que se aliena para se auto possuir
Como momento conclusivo, nessa fase, a e que, no seu ser-outro, mantém a igualdade de si
autoconsciência descobre que a substância ética nada consigo, operando a síntese suprema dos opostos.
243
8
4.2.2.7 A etapa conclusiva: o saber absoluto absoluto de modo pouco a pouco sempre mais rico e
articulado.
A superação da forma de conhecimento 2) Na lógica da essência temos o
“representativo” próprio da religião leva, por fim, ao desenvolvimento em profundidade dos vários termos
puro conceito e ao saber absoluto, ou seja, ao sistema em seu “refletir-se” recíproco dirigido às raízes do ser.
da ciência, que Hegel exporia na “Lógica”, na “Filosofia Aqui se dão as discussões sobre princípios de
da natureza” e na “Filosofia do espírito”, como identidade e de não-contradição, que por Hegel são
veremos. considerados como pontos de vista do intelecto
abstrato e unilateral A verdadeira identidade, com
4.3 A lógica efeito, inclui as diferenças, e a contradição é a raiz de
todo movimento e vitalidade.
A Lógica começa e se desenvolve inteiramente 3) Na lógica do conceito o pensamento se atua
no plano definitivamente ganho da Fenomenologia, isto na dimensão da circularidade. Cada termo prossegue no
é, no plano do saber absoluto, em que desapareceu toda outro até identificar-se dialeticamente com ele, e tudo é
diferença entre "certeza" (subjetividade) e "verdade" um autodesdobramento do sujeito, o qual é toda a
(objetividade). Ela não é, portanto, um puro “organon”, realidade.
no sentido em que o era a Lógica formal, mas é o O conceito, em sentido próprio, é o Eu penso
estudo da estrutura do Todo, no sentido que a que se autocria e, autocriando-se, cria todas as
própria Lógica é o auto-estruturar-se do Todo. determinações lógicas.
A tese de fundo da Lógica hegeliana, que Mudam, por conseguinte, os significados de
retoma em sentido especulativo a posição de “juízo” e de “silogismo”, estreitamente ligados ao
Parmênides, é que “pensar” e “ser” coincidem. O “conceito”.
pensamento, em seu processo, realiza a si mesmo e o O juízo coincide com a proposição especulativa
próprio conteúdo, e esta realização dialética é ao que exprime a identidade dinâmica de sujeito e
mesmo tempo, de modo sempre mais elevado, um predicado, e indica o tornar-se-universal do singular; o
“pensar o ser” e o “ser do pensamento”. A lógica silogismo representa depois a unidade dialética dos
coincide, portanto, com a ontologia (ou seja, com a três momentos da universalidade, particularidade e
metafísica). singularidade, tríade que constitui a estrutura
Em seu complexo, portanto, a Lógica é o reino fundamental de toda coisa e de toda a realidade.
do pensamento puro, da verdade como ela é em si e por A ideia lógica resulta, finalmente, como o
si sem véu, é a exposição de Deus como Ele é em sua conceito que se auto-realiza plenamente e também a
eterna essência antes da criação do mundo e de todo totalidade dos momentos desta realização.
espírito finito. O Deus exposto pela Lógica é, portanto,
o elemento puro do pensamento (o logos) que, para se 4.4 A filosofia da natureza
tornar espírito, deve primeiro alienar-se na natureza e
depois superar essa alienação. A passagem da ideia para a natureza é o ponto
O logos da Lógica deve também ser concebido teórico mais problemático da filosofia de Hegel, sujeito
como desenvolvimento e processo dialético, e as a diversas interpretações que surgem das próprias
diversas categorias por meio das quais pouco a pouco afirmações ambíguas do filósofo a esse respeito. Isso
se desenvolve podem ser consideradas como definições depende principalmente do fato de que Hegel tem
sucessivas, sempre mais determinadas e mais ricas, do dificuldade de dominar as diversas sugestões que
absoluto. A “ideia lógica” e a totalidade de suas confluem sobre esse ponto:
determinações conceituais em seu desdobramento a) a processão dialética do neoplatonismo, que
dialético. Ora, as três etapas fundamentais da Lógica concebia o desenvolvimento da realidade em sentido
são: triádico como manência, saída e retorno. Para ele, a
1) Na lógica do ser a dialética procede em natureza corresponde à “saída”;
sentido horizontal, mediante passagens que levam de b) o dogma da teologia cristã da criação;
um termo a outro que absorve em si o precedente; seu c) os dogmas da encarnação, paixão, morte e
início (que é o início absoluto da Lógica) é constituído ressureição de Cristo;
pela tríade da primeira categoria (a qualidade): d) a concepção tipicamente romântica do
a) ser; tornar-se-estranho do espírito a si mesmo com o
b) não-ser; objetivo de tomar consciência de si e se realizar
c) tornar-se. completamente.
Em certo sentido, nesse início já está presente
todo o sistema especulativo hegeliano, justamente
porque todas as tríades sucessivas apenas exprimem o
244
9
4.5 A filosofia do espírito 1) a antropologia, que é o estudo da alma,
4.5.1 O espírito e seus três momentos considerada em sua fase inicial como o sono do espírito
ou como o aristotélico “intelecto potencial”;
O espirito é a “ideia que volta a si de sua 2) a fenomenologia, que retoma algumas
alteridade”. No espírito, sobretudo, torna-se manifesta temáticas da grande obra homônima e que, por meio da
aquela “circularidade” dialética sobre a qual Hegel autoconsciência, leva da consciência à razão (a qual,
chama seguidamente a atenção. Como momento como consciência de ser todas as coisas, é espírito,
dialeticamente conclusivo, ou seja, como resultado do ainda que não desdobrado inteiramente);
processo (do autoprocesso), o espírito é a mais elevada 3) a psicologia, que estuda o espírito teórico
manifestação do absoluto. (que conhece os objetos como alteridades), o espírito
O “espírito” hegeliano é, portanto, o correlativo prático (como atividade que modifica os objetos) e o
filosófico daquilo que na religião é “Deus”. É o auto- espírito livre, como síntese dos primeiros dois
realizar-se e o autoconhecer-se de Deus. momentos.
Voltando à tríade ideia-natureza-espírito,
diremos que a ideia é o mero conceito de saber e, 4.5.3 O espírito objetivo
portanto, a “possibilidade lógica” do espírito; o espírito
é a atualização ou a realização dessa possibilidade. O espirito objetivo é o momento mais
O espírito é a atualização e autoconhecimento significativo e mais específico do hegelianismo, ou, pelo
vivos da ideia. Nesse sentido, o espírito não é último menos um dos mais característicos e interessantes.
senão pelo nosso modo de nos exprimirmos, mas O espirito objetivo é o que se realiza nas
efetivamente é o primeiro, e, nessa ótica, ideia lógica e instituições da família, nos costumes e preceitos da
natureza devem ser vistas como momentos ideais do sociedade e nas leis do Estado, é o ethos que alimenta a
espírito não separados e não cindidos, mas como polos vida ético-politica, é a história-que-se-faz.
dialéticos dos quais o espirito é a síntese viva. O espírito objetivo é o momento da realização
Também a filosofia do espírito (como toda da liberdade na ordem intersubjetiva, que pouco a
parte e momento do sistema hegeliano) é estruturada de pouco se amplia em graus e em momentos dialéticos
maneira triádica, sendo, portanto, dividida em três sucessivos, que Hegel indica:
momentos: a) no "direito";
1) um primeiro, em que o espírito está no b) na "moralidade" e
caminho de sua própria auto-realização e c) na "eticidade".
autoconhecimento (espírito subjetivo); A compreensão destes momentos nos fará
2) um segundo, em que o espírito se compreender melhor o sentido do espirito objetivo
autoconcretiza plenamente como liberdade (espírito hegeliano.
objetivo);
3) um terceiro, em que o espírito se 4.5.3.1 Os três momentos do espírito objetivo
autoconhece plenamente e se sabe como princípio e
como verdade de tudo, e é como Deus em sua plenitude a) Diz Hegel que, para não permanecer
de vida e de conhecimento (espírito absoluto). puramente abstrata, a vontade livre "deve dar-se uma
existência", ou seja, concretizar-se.
4.5.2 O espírito subjetivo E a matéria mais imediata em que isso ocorre é
constituída pelas coisas e objetos externos. Desse
A ideia que retorna a si, portanto, é a emersão modo, nascem o “direito” e aquilo que a ele está ligado.
do espírito, que inicialmente ainda se manifesta ligado a b) Mas essa forma de existência imediata é
finitude. Hegel explica, do modo que agora já inadequada para a liberdade, precisamente por ser
conhecemos bem, como a ideia infinita, que se faz imediata e exterior. Essa imediaticidade e exterioridade,
espírito, ainda se encontra ligada ao finito no seu portanto, devem ser negadas e superadas, ou seja,
emergir da natureza. Não é o espírito que se manifesta mediatizadas e interiorizadas, e disso nasce a
no finito, mas, ao contrário, é a finitude que aparece moralidade, o segundo momento do espírito objetivo.
dentro do espírito. Nessa esfera, as coisas exteriores são inseridas
E por que isso acontece? Trata-se, diz Hegel, de como indiferentes e o que conta é meu juízo moral,
uma “aparência que o espírito põe diante de si como minha vontade, a forma de universalidade em que se
barreira, para poder, através da superação dessa inspirou a regra do agir. Essa é a esfera da vontade
barreira, possuir e saber por si a liberdade como sua subjetiva, da qual é exemplo paradigmático a ética
essência”. kantiana, que Hegel censura por ser unilateral, porque
As etapas do espirito subjetivo são: encerra o homem em seu "interior". Essa
unilateralidade, portanto, deve ser retirada e superada
mediante a realização externa e concreta da vontade.
245
10
c) Entramos assim no momento da eticidade, A história é o “juízo” do mundo e a filosofia da
que é a síntese dos dois momentos anteriores, ou seja, história é o conhecimento e a revelação conceitual dessa
o momento em que o querer do sujeito se realiza racionalidade e desse juízo. A filosofia da história é a
querendo fins concretos, operando desse modo a visão da história do ponto de vista da razão,
mediação entre o subjetivo e o objetivo. Mas, por sua contrariamente a visão tradicional, que era a visão
vez, a eticidade se realiza dialeticamente nos três própria do intelecto.
momentos: a) da "família"; b) da "sociedade" e c) do A história do mundo se desenvolve segundo um
"Estado". “plano racional” (que a religião reconhece com o nome
Os fins que a vontade livre quer na fase da de Providência), e a filosofia da história é a
eticidade, portanto, são os fins concretos postos pela consequência cientifica desse plano. Por conseguinte, a
realidade viva da família, indicados pela sociedade com filosofia da história torna-se "teodiceia", ou seja,
suas múltiplas exigências, queridos pelo Estado com conhecimento da justiça divina e justificação daquilo
suas leis. que aparece como mal diante do poder absoluto da
Entre as muitas páginas interessantes de Hegel razão.
relativas aos três momentos da eticidade, recordamos Segundo Hegel, aquilo que se apresenta como
particularmente as passagens sobre a família (que ele mal nada mais é que o momento negativo, que é a mola
mostra ser algo bem mais elevado do que um da dialética, de que falamos acima. Como crepúsculo
“contrato”, enquanto “síntese” ética, na qual o dado das coisas particulares, a morte nada mais é do que o
contratual é aquilo que a ele está ligado, como o sexo e contínuo fazer-se do universal. A própria guerra é o
o amor, encontram sua verificação em um ethos momento da “antítese” que move a história, a qual, sem
superior), e as passagens sobre a sociedade (nas quais guerras, registraria somente páginas em branco.
Hegel identifica o organismo social como intermediário Como se vê, o filósofo não se detém diante de
entre família e Estado de modo tão claro que a sua nada. De resto, uma vez afirmado que “a história é o
intuição, como alguns já notaram, pode ser considerada desdobrar-se da natureza de Deus em determinado
como o ponto cardeal da ciência social moderna). elemento particular", tudo segue como consequência. E
Quanto ao Estado, porém, devemos ampliar o é certamente na Filosofia do direito que se lê a célebre
discurso, já que é através do Estado e da dialética afirmação "tudo o que é real, é racional; tudo o que é racional,
instituída entre os Estados que se realiza a história, que, é real".
para Hegel, é verdadeira e própria teofania, ou seja, a Assim como na natureza, para quem afirma a
manifestação-realização do espirito objetivo. identidade entre Deus e natureza, toda coisa é
necessária e tem sentido absoluto, da mesma forma,
4.5.3.2 A natureza do Estado para Hegel, para quem pensa Deus e história, tudo é
necessário e todo acontecimento tem sentido absoluto.
Como síntese de direito e moralidade e como
possibilidade de ser da família e da sociedade, o Estado 4.5.3.4 A realização do espírito objetivo na história
é a própria ideia que se manifesta no mundo. Hegel diz
até que ele é “o ingresso de Deus no mundo”, um Mas vejamos corno, concretamente, o espirito
"Deus real". E isso é verdade até para o Estado mais objetivo se desdobra na história. Ele se particulariza
defeituoso, porque, por maior que seja, o defeito nunca como “espirito do povo”, como ele pouco a pouco se
chega a ponto de eliminar o positivo de fundo e, manifesta nos vários povos. Mas o espírito do povo é
portanto, nunca é capaz de invalidar o que foi dito. uma manifestação do “Espírito do mundo”.
Nessa concepção, o Estado não existe para o Também são momentos particulares do espírito
cidadão, mas o cidadão é que existe para o Estado. Em do mundo os “indivíduos cósmico-históricos”, os
suma, o cidadão só existe enquanto membro do Estado. grandes heróis, capazes de captar aquilo cuja hora é
Esta era uma concepção grega, que é retomada por chegada e levá-lo a termo. O que eles fazem não lhes
Hegel e levada às consequências extremas no contexto vêm do interior, mas do espírito que, por meio deles,
do seu idealismo. tece seus desígnios.
Com efeito, depois que o espírito serviu-se
4.5.3.3 A natureza da história e a filosofia da desses homens para seus objetivos, ele os abandona e
história então se tornam nada, como Napoleão, que, depois da
derrota, sobreviveu somente para definhar na pequena
Se o Estado é a razão que faz o seu ingresso no ilha de Elba e para morrer na distante ilha Santa Helena.
mundo, a história, que nasce da dialética dos Estados, E como se explicam as paixões mesquinhas que
nada mais é que o desdobramento dessa mesma razão: movem os homens e seus fins particulares? E como se
“a história é o desdobramento do espirito no tempo, do justificam as acidentalidades de vários gêneros? Hegel
mesmo modo que a natureza é o desdobramento da responde que o particular se “esgota” e se exaure já na
ideia no espaço”. sua luta contra o outro particular, dado que o particular
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é sempre conflitivo. E assim ele se arruína, ruína da qual 2) O âmbito seguinte, que ultrapassa o reino da
emerge imperturbavelmente o universal. arte, é o da religião. A religião tem como forma de sua
A razão universal faz as paixões irracionais e o consciência a representação, enquanto o absoluto é
particular agirem em seu benefício. Essa é a “astúcia da transferido da objetividade da arte para a interioridade
razio”. do sujeito.
A história do mundo passa através de etapas 3) A terceira forma do espírito absoluto é,
dialéticas que assinalam um incremento progressivo de enfim, a filosofia. Com efeito, a religião na qual Deus é
racionalidade e de liberdade do mundo oriental ao inicialmente objeto externo para a consciência se revela
mundo greco-romano, e deste ao mundo cristão- depois no elemento interior, impelindo e preenchendo
germânico. a comunidade.
Nesta última fase, o espírito parece ter-se Hegel, portanto, conclui: “Desse modo,
realizado plenamente, conservando em suas unificam-se na filosofia os dois lados da arte e da
profundezas o passado como memoria, e concretizando religião: a objetividade da arte, que aqui certamente
no presente o conceito de si mesmo. Mas, se é assim, a perdeu a sensibilidade externa, mas encontrou
história está destinada a se deter na fase cristã- compreensão na forma suprema do objetivo, na forma
germânica? A dialética histórica se detém em do pensamento, e a subjetividade da religião, que é
determinado momento? purificada como subjetividade do pensamento".
É isso o que parece se dever concluir de tudo o É justamente este o esquema que Hegel seguiu
que Hegel diz, contrariamente ao que os princípios da ao traçar a síntese das três manifestações grandiosas do
própria dialética teriam necessariamente exigido. Trata- espírito, arte-religião-filosofia.
se de grande aporia, que repercutiria inclusive na
concepção de história de Marx. 4.5.4.3 As articulações dialéticas da arte, da
religião e da filosofia
4.5.4 O espírito absoluto
4.5.4.1 O “retorno a si mesma” da ideia Por fim, devemos recordar que:
1) A arte também é entendida e reconstruída
Depois de se realizar-se na história como segundo etapas dialéticas:
liberdade, a ideia conclui seu "retorno a si” no a) arte oriental;
autoconhecer-se absoluto. O espírito absoluto, b) arte clássica;
portanto, é a ideia que se autoconhece de maneira c) arte romântica.
absoluta. E esse autoconhecimento é o 2) Também na religião distinguem-se três
autoconhecimento de Deus, no qual, porém, o homem momentos:
desempenha papel essencial. Ao mesmo tempo, Hegel a) religião oriental;
abaixou Deus ao homem e elevou o homem a Deus. b) religião grega;
c) religião cristã.
4.5.4.2 As formas de auto saber-se do espírito: arte, 3) A própria filosofia (que vem a coincidir com
religião e filosofia a história da filosofia) também é vista desdobrando-se
nos três momentos:
Esse auto-saber-se do espírito não é uma a) da antiguidade grega;
intuição mística, e sim um processo dialético; por isso, b) da cristandade medieval;
é processo triádico, que se realiza: 1) na arte; 2) na c) da modernidade germânica.
religião; 3) na filosofia. Essas são, portanto, três formas Em todos esses desdobramentos histórico-
por meio das quais conhecemos Deus e Deus se dialéticos, sobretudo duas coisas chamam a atenção: em
conhece. primeiro lugar, a evolução pareceria cessar com a
Elas se realizam, respectivamente: terceira fase, na qual tudo pareceria chegar a seu termo;
1) através da intuição sensível (estética); em segundo lugar, a história da filosofia, de Tales a
2) através da representação da fé; Hegel, apresenta-se como grandioso teorema, que se
3) através do conceito puro. desdobra no tempo e no qual cada sistema constitui
Eis como Hegel caracteriza, de modo claro e uma “passagem” necessária. E esse teorema parece
preciso, estes três momentos dialéticos da filosofia do encontrar sua própria conclusão precisamente na
espírito. filosofia de Hegel.
1) "A forma da intuição pertence à arte, de Na filosofia de Hegel – em certo sentido - é o
modo que a arte é que apresenta a consciência à verdade próprio Deus que se autoconhece, e, conhecendo-se,
sob forma sensível, que tem nessa sua aparência um atua todas as coisas. Em suma, sob muitos aspectos a
sentido e um significado mais elevados, mais filosofia pareceria ter alcançado seu ápice no sistema de
profundos". Hegel.
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12
QUESTÕES da filosofia propriamente dita, porque nela, segundo
Hegel, pela primeira vez, os filósofos afirmam que
01. (UFU 2015) De acordo com a filosofia de Hegel, é I. a filosofia é independente e não se submete a
INCORRETO afirmar que nenhuma autoridade que não seja a própria razão como
A) a dialética envolve um diálogo entre dois pensadores faculdade plena de conhecimento. Isto é, os modernos
ou entre um pensador e o seu objeto de estudo. são os primeiros a demonstrar que o conhecimento
B) a dialética envolve três etapas: na primeira delas, um verdadeiro só pode nascer do trabalho interior realizado
ou mais conceitos ou categorias são considerados fixos, pela razão, graças a seu próprio esforço. Só a razão
definidos e distintos. conhece e somente ela pode julgar a si mesma.
C) a terceira etapa da dialética envolve uma nova II. a filosofia moderna realiza a primeira descoberta da
categoria, superior, que abarca as anteriores e dissolve subjetividade propriamente dita porque nela o primeiro
as contradições nelas envolvidas. ato do conhecimento, do qual dependerão todos os
D) a dialética não é apenas uma característica de outros, é a reflexão e consciência de si reflexiva.
conceitos, mas se aplica também a coisas e processos III. a filosofia moderna é a primeira a reconhecer que,
reais. sendo todos os seres humanos seres conscientes e
racionais, todos têm igualmente o direito ao
02. (UFU 2013) A dialética de Hegel pensamento e a verdade. Segundo Hegel, essa
A) envolve duas etapas, formadas por opostos afirmação do direito ao pensamento, unida à ideia da
encontrados na natureza (dia-noite, claro-escuro, frio- recusa de toda censura sobre o pensamento e palavra,
calor). seria a realização filosófica do princípio da
B) é incapaz de explicar o movimento e a mudança individualidade como subjetividade livre que se
verificados tanto no mundo quanto no pensamento. relaciona livremente com a verdade.
C) é interna nas coisas objetivas, que só podem crescer IV. a filosofia moderna está tão intimamente vinculada
e perecer em virtude de contradições presentes nelas. aos fundamentos da práxis humana que a ação não pode
D) é um método (procedimento) a ser aplicado ao ser ignorada na determinação de seus critérios
objeto de estudo do pesquisador. filosóficos. Para Hegel, os modernos foram os
primeiros a entender que esta prática, no entanto, não
03. (UEM 2012) O filósofo alemão Hegel (1770-1831) deve ser considerada apenas no sentido restrito da
afirma que “É tarefa da filosofia conceber o que é, pois, conduta pessoal, mas na acepção mais abrangente de
aquilo que é a razão. No que concerne ao indivíduo, experiência humana em seus vários aspectos, desde
cada um é, de todo modo, um filho de seu tempo; do histórico até o nível psicológico.
mesmo modo que a filosofia é seu tempo apreendido a) Apenas I, III e IV.
em pensamentos” b) Apenas I, II e III.
(HEGEL, G. W. F. Excertos e parágrafos traduzidos. In: c) Apenas I.
Antologia de Textos Filosóficos. MARÇAL, J. (org.). Curitiba: d) Apenas II, III e IV.
SEED-PR, 2009, p. 314).
e) Apenas IV.
A partir do trecho citado, assinale a(s) alternativa(s)
correta(s).
01) A razão de algo é o conceito desse algo concebido 05. (UEM 2013) “A filosofia de Hegel constitui, assim,
filosoficamente pelo seu tempo. exemplo de um grandioso e radical investimento
02) Aquilo que é, a essência de algo, é para o filósofo especulativo, qualificado como Ideia de liberdade. Ao
um conceito racional. mesmo tempo em que tem a pretensão de analisar a
04) O indivíduo, que é filho de seu tempo, do ponto de liberdade segundo um modo conceitual (lógico-
vista filosófico, pensa os seus problemas a partir de seu ontológico), quer, também, compreendê-la como uma
momento histórico. forma histórica de sua manifestação. Ou, dito de outro
08) Os conceitos filosóficos, por serem determinados modo, sem abandonar o seu caráter autorreferencial
historicamente, estão restritos ao seu tempo e à sua (subjetivo), o filósofo pretende efetivá-la na sua
época, não sendo, pois, universais. necessária forma institucional (objetiva). (...) Se a
16) A reflexão filosófica está intimamente ligada ao seu liberdade subjetiva não alcançar essa dimensão e se
momento histórico, visto que leva esse mundo ao plano circunscrever no âmbito dos interesses e desejos
do conceito. particulares dos indivíduos nas suas relações privadas, o
próprio princípio da liberdade se vê ameaçado.”
(MARÇAL, J. [org.] Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED-
04. (UNICENTRO 2010) Analise as assertivas e PR, 2009. p. 309).
assinale a alternativa que aponta a(s) correta(s). Em seu Com base na citação anterior, assinale o que for
livro História da Filosofia, Hegel (1770-1831) declara que correto.
a filosofia moderna pode ser considerada o nascimento 01) O livre arbítrio constitui uma ameaça para a
realização da liberdade.
248
13
02) A liberdade deve ser pensada em dois planos própria filosofia e não como um mero relato de suas
distintos: o primeiro, autorreferencial ou subjetivo, e o doutrinas.
segundo, institucional ou objetivo. d) inaugura a tese da continuidade entre as antigas
04) A efetividade do Estado e das instituições sociais
filosofias orientais e a filosofia grega, apresentando um
constitui um obstáculo para os desejos particulares dos
indivíduos. levantamento das noções orientais que os gregos
08) O exercício da liberdade é característico de um limitaram-se a transportar para o vocabulário
processo historicamente definido. ocidental.
16) A liberdade é uma síntese da religião com o e) refuta a perspectiva histórica hegemônica de Kant e
autoconhecimento. do romantismo alemão, marcada por uma imagem
idealizada da Grécia antiga, contrapondo-lhe a idéia de
06. (UEM 2015) “O princípio motor do conceito,
um dilaceramento antagônico subjacente à aparente
enquanto ele não só dissolve as particularizações do
universal, mas, também, enquanto os produz, eu chamo harmonia.
de dialética – dialética, portanto, não no sentido de que
ela dissolve, confunde e conduz daqui para lá e de lá 08. (UEM 2016) “Com Hegel, portanto, completa-se o
para cá um ob-jeto, uma proposição, dados ao movimento iniciado por Maquiavel, voltado para
sentimento, à consciência imediata em geral, e só tem a apreender o Estado tal como ele é, uma realidade
ver com a derivação do seu contrário –, uma histórica, inteiramente mundana, produzida pela ação
modalidade negativa de dialética, tal como ela dos homens. Nesse percurso foram definitivamente
frequentemente aparece também em Platão. [...] A arquivadas as teorias da origem natural ou divina do
dialética superior do conceito não consiste em produzir poder político; afirmada a absoluta soberania e
e apreender a determinação meramente como barreira excelência do Estado; a especificidade da política diante
e como contrário, mas, sim, em produzir e apreender a da religião, da moral e de qualquer outra ideologia;
partir dela o conteúdo e o resultado positivos, enquanto reconhecida a modernidade e centralidade da questão
por essa via, unicamente, a dialética é desenvolvimento da liberdade e, sobretudo – pois é esta a principal
e progredir imanente”. contribuição de Hegel –, resolvido o Estado num
(HEGEL, F., Fenomenologia do Espírito in MARÇAL, J. processo histórico, inteiramente imanente”.
Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED, 2009, p. 315). BRANDÃO, G. M. “Hegel: o Estado como realização histórica
A partir do texto citado, é correto afirmar: da liberdade” in ARANHA, M. & MARTINS, M. Filosofando. São
01) A dialética platônica é negativa por não redundar Paulo: Moderna, 2009, p. 316.
em desenvolvimento e progredir imanente do conceito. A partir do texto citado, assinale o que for correto.
02) A dialética hegeliana não é confusão e nem 01) O Estado passa a ser entendido ao final da
dissolução de uma proposição. modernidade, ou seja, com Hegel, como uma
04) As determinações de um objeto não são obstáculos instituição construída pelos homens, de origem
ao conhecimento, mas um dado a partir do qual se eminentemente humana.
apreendem os conteúdos positivos desse objeto. 02) O Estado não nasce naturalmente, ele é inserido na
08) Por ser oposição de teses, a dialética hegeliana não vida humana como uma realidade a-histórica.
redunda em desenvolvimento do conceito. 04) Para Hegel o Estado é uma entidade originada a
16) Dialética é o princípio motor dos conceitos partir de um mandato divino.
desenvolvimento e progredir imanente. 08) Para os pensadores políticos modernos – de
Maquiavel até Hegel – a questão sobre a natureza do
07. O modo como Hegel pensa a história da filosofia é Estado implica a negação da liberdade humana.
16) A noção de Estado é fruto de uma elaboração
considerado um marco porque
teórica que se completa com Hegel, conferindo
a) submete as compilações realizadas por Diógenes centralidade ao processo histórico na fundamentação
Laércio, Simplício e Aristóteles ao confronto crítico deste conceito.
com outros documentos historiográficos descobertos
no século XIX, corrigindo-as e ampliando-as.
b) salienta a importância de se desconsiderar o cogito
cartesiano como o marco do início da modernidade,
pois aquele nada mais seria que um mero
desdobramento de idéias já existentes na escolástica.
c) propõe pela primeira vez uma perspectiva que não é
meramente histórica, mas filosófica, compreendendo a
história da filosofia como uma questão central para a
249
14
5. ARTUR SCHOPENHAUER 5.1.2 Os componentes da representação: sujeito e
objeto

O mundo é representação. E a representação


tem duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis,
que são o objeto e o sujeito.
O sujeito da representação é “o que tudo
conhece, sem ser conhecido por ninguém [...]. O
sujeito, portanto, é o sustentáculo do mundo, a
condição universal, sempre subentendida, de todo
fenômeno e de todo objeto: com efeito, tudo o que
existe só existe em função do sujeito”.
O objeto da representação, aquilo que é
conhecido, é condicionado pelas formas a priori do
espaço e do tempo, por meio das quais se tem a
Entre os adversários de Hegel, Schopenhauer pluralidade, pois toda coisa existe no espaço e no tempo.
foi provavelmente - se excetuarmos Kierkegaard - o O sujeito, ao contrário, está fora do espaço e do
mais apaixonadamente envolvido, a ponto de chegar a tempo, é inteiro e individual em cada ser capaz de
qualificar o próprio Hegel como um "acadêmico representação, razão pela qual “até um só desses seres,
mercenário", e seu pensamento como uma "palhaçada juntamente com o objeto, basta para constituir o
filosófica”. mundo como representação, tão completo como
É a filosofia submissa dos charlatães, para os milhões de seres existentes; ao contrário, o
quais o estipêndio e o ganho são as coisas mais desvanecimento desse único sujeito levaria ao
importantes, Schopenhauer opôs a própria "verdade desvanecimento do mundo como representação”.
não remunerada", verdade que apresentou em sua obra O sujeito e o objeto, portanto, são inseparáveis,
maior, O mundo como vontade e representação, publicada em também para o pensamento; cada uma das duas
1819 com 33 anos. metades “não tem sentido nem existência senão por
meio da outra e em função da outra, ou seja, cada uma
5.1 O mundo como representação existe com a outra e com ela se dissipa”.
5.1.1 Uma verdade antiga
5.1.3 Superação do materialismo e do realismo e
Escreve Schopenhauer no início de sua obra revisão do idealismo
maior:
“O mundo é uma representação minha, eis uma verdade Segue-se daí que o materialismo está errado por
válida para todo ser vivo e pensante, ainda que só o homem possa negar o sujeito, reduzindo-o a matéria, e o idealismo - o
alcançá-la por consciência abstrata e reflexa. Quando o homem de Fichte, por exemplo - está errado também porque
adquire essa consciência, o espirito filosófico entrou nele. Então, nega o objeto, reduzindo-o ao sujeito. No entanto, o
sabe com clara certeza que não conhece o sol nem a terra, mas idealismo, depurado dos absurdos elaborados pelos
somente que tem um olho que vê o sol e uma mão que sente o “filósofos da Universidade” é irrefutável: o mundo é
contato de terra; sabe que o mundo circunstante só existe como representação minha e “é preciso ser abandonado por
representação, isto é, sempre e somente em relação com outro ser, todos os deuses para imaginar que o mundo intuitivo,
com o ser que o percebe, com ele mesmo”. posto fora de nós, tal como preenche o espaço em suas
Para Schopenhauer, nenhuma verdade é mais três dimensões, movendo-se no inexorável curso do
certa, mais absoluta e mais flagrante do que essa. Que o tempo, regido a cada passo pela indeclinável lei da
mundo seja uma representação nossa, segundo a qual causalidade, existe fora de nós com absoluta realidade
nenhum de nós pode sair de si mesmo para ver as coisas objetiva, sem qualquer concurso de nossa parte; e que,
como elas são, de que tudo aquilo de que temos depois, por meio das sensações, entra em nosso
conhecimento certo se encontra dentro da nossa cérebro, onde começaria a existir uma segunda vez,
consciência, é a “verdade” da filosofia moderna, de assim como existe fora de nós”.
Descartes a Berkeley. Em suma, Schopenhauer é contrário tanto ao
E é uma verdade antiga, como se pode constatar materialismo (que nega o sujeito, reduzindo-o à
pela filosofia vedanta, segundo a qual a matéria não tem matéria), como ao realismo (segundo o qual a realidade
existência independente da percepção mental, e a externa se refletiria naquilo que está em nossa mente).
existência e a perceptibilidade são termos conversíveis O mundo como nos aparece em sua imediaticidade, e
entre si. que é considerado como a realidade em si, na verdade é
um conjunto de representações condicionadas pelas
250
15
formas a priori da consciência, que, para Schopenhauer, 5.2 O mundo como vontade
são o tempo, o espaço e a causalidade. 5.2.1 O mundo como fenômeno é ilusão

5.1.4 Espaço, tempo e causalidade O mundo, portanto, é urna representação


minha ordenada pelas categorias do espaço, do tempo
Como já mostrava Kant, espaço e tempo são e da causalidade. O intelecto ordena e sistematiza,
formas a priori da representação: toda a nossa sensação através da categoria da causalidade, os dados das
e percepção de objetos é espacializada e temporalizada. intuições espaciotemporais, captando assim os nexos
E é sobre essas sensações e percepções especializadas e entre os objetos e as leis do seu comportamento.
temporalizadas que, depois, o intelecto entra em ação, Mas, ainda que sendo esse o modo como as
ordenando-as em cosmo cognoscitivo mediante a coisas se passam, o intelecto não nos leva além do
categoria da causalidade. mundo sensível. Como representação, portanto, o
Schopenhauer reduz as doze categorias mundo é fenômeno e, por isso, não é possível uma
kantianas unicamente à categoria da causalidade. É por distinção real e clara entre o sonho e a vigília: o sonho
meio da categoria da causalidade que os objetos tem somente menos continuidade e coerência do que a
determinados espacial e temporalmente, que acontecem vigília.
aqui ou alhures, neste ou naquele momento, são postos Há estreito parentesco entre a vida e o sonho e,
um como determinante (ou causa) e outro como diz Schopenhauer, “nós não nos envergonhamos de
determinado (ou efeito), de modo que "toda a existência proclamá-lo, tantos foram os grandes espíritos que o
de todos os objetos, enquanto objetos, representações reconheceram e proclamaram”.
e nada mais, em tudo e por tudo encabeça aquela sua Os Vedas (textos sagrados mais antigos em
necessária e intercambiável relação". sânscrito) e os Puranas (uma antologia de textos
O mundo, portanto, é uma representação sagrados indianos de caráter religioso e ético) chamam
minha, e a ação causal do objeto sobre os outros objetos a consciência do mundo de "o véu de Maya"; Platão
é toda a realidade do objeto. afirma que os homens vivem no sonho; Píndaro diz que
É compreensível, portanto, a importância que "o homem é o sonho de uma sombra"; Sófocles
Schopenhauer atribui ao princípio da causalidade, cujas compara os homens a simulacros e sombras leves;
diversas formas determinam as categorias dos objetos Shakespeare sentencia que "nós somos da mesma
cognoscíveis: matéria de que são feitos os sonhos e nossa vida breve
1) o princípio de razão suficiente do devir é circundada por sono"; e, para Calderón, “a vida é
representa a causalidade entre os objetos naturais; sonho”.
2) o princípio de razão suficiente do conhecer Seguindo as pegadas desses pensadores e pela
regula as relações entre os juízos, pelos quais a precisa razão de que “o mundo é uma representação
veracidade das premissas determina a das conclusões; minha”, Schopenhauer escreve que “a vida e os sonhos
3) o princípio de razão suficiente do ser regula são páginas do mesmo livro”.
as relações entre as partes do tempo e do espaço e O mundo como representação não é a coisa em
determina a concatenação dos entes aritméticos e si, é fenômeno, “é um objeto para o sujeito”. Mas
geométricos; Schopenhauer não fala, como Kant, do fenômeno
4) o princípio de razão suficiente do agir regula como de representação que não diz respeito e não pode
as relações entre as ações e seus motivos. captar o númeno, isto é, a coisa em si. Para
Para Schopenhauer, são essas as quatro formas Schopenhauer, o fenômeno, aquilo de que fala a
do princípio de causalidade, quatro formas de representação é ilusão e aparência, é aquilo que, na
necessidade que estruturam rigidamente todo o mundo filosofia hindu, chama-se o “véu de Maya”, que cobre a
da representação: necessidade física, necessidade lógica, face das coisas.
necessidade matemática, necessidade moral. Para Kant, em suma, o fenômeno é a única
Esta última necessidade, pela qual o homem, realidade cognoscível, mas, para Schopenhauer, o
como o animal, age necessariamente com base em fenômeno é a ilusão que envolve a realidade das coisas
motivos, exclui a liberdade da vontade: como em sua essência primigênia e autêntica.
fenômeno, o homem submete-se à lei dos outros
fenômenos, ainda que, como veremos, não se reduza ao 5.2.2 O corpo como vontade tornada visível
fenômeno, tendo a possibilidade, ligada a sua essência
numênica, de reconhecer-se livre. Pois bem, na opinião de Schopenhauer pode-se
alcançar essa essência da realidade, o númeno que, para
Kant, permanece incognoscível.
Ele compara o caminho que leva à essência da
realidade a uma espécie de passagem subterrânea que,
251
16
traiçoeiramente, leva precisamente ao interior daquela nenhum representação; ao contrário, dela difere
fortaleza considerada inexpugnável por fora. totalmente”.
Com efeito, o homem é representação e Os fenômenos, ligados ao princípio de
fenômeno, mas não é apenas isso, uma vez que também identificação que é o espaço-tempo, são múltiplos, ao
é sujeito que conhece. Além do mais, o homem também passo que a vontade é única.
é “corpo”. E é cega, livre, sem objetivo e irracional. É a
Entretanto, o corpo é dado ao sujeito que insaciabilidade e a eterna insatisfação que darão lugar a
conhece de dois modos inteiramente diversos: de um uma cadeia ascensional de seres nas forças da natureza,
lado, como representação, e como objeto entre objetos, no reino vegetal, no reino animal e no reino humano,
submetido as suas leis; por outro lado, "é dado como seres que, premidos por impulso cego e irresistível,
algo de imediatamente conhecido de cada um e que é lutam um contra o outro para se imporem e dominarem
designado pelo nome de vontade. Todo ato real de sua o real.
vontade, infalivelmente, é sempre e também Essa dilaceração, essa luta sem trégua e sem fim,
movimento de seu corpo; o sujeito não pode querer aguça-se na ação consciente do homem, subjugando e
efetivamente um ato sem constatar ao mesmo tempo explorando a natureza, por um lado, e no cruel conflito
que este aparece como movimento de seu corpo. O ato entre os diversos egoísmos indomáveis, por outro.
volitivo e a ação do corpo são uma só e mesma coisa, Em poucas palavras, “a vontade é a substância
que nos é dada de dois modos essencialmente diversos: íntima, o núcleo de toda coisa particular e do todo; é
por um lado, imediatamente; por outro lado, como aquela que aparece na força natural cega e aquela que se
intuição pelo intelecto". manifesta na conduta racional do homem. A enorme
O corpo é, portanto, vontade tornada visível. diferença que separa os dois casos não diz respeito
Sem dúvida podemos olhar nosso corpo e falar dele senão ao grau da manifestação; a essência do que se
como de qualquer outro objeto - e, nesse caso, ele é manifesta permanece absolutamente intacta".
fenômeno. Mas é por meio de nosso corpo que
sentimos que vivemos, experimentamos prazer e dor e 5.3 Dor, libertação e redenção
percebemos o anseio de viver e o impulso de 5.3.1 A vida como dor e tédio
conservação. E é por meio do próprio corpo que cada
um de nós sente que "a essência intima do próprio A essência do mundo é vontade insaciável. A
fenômeno não é mais que sua vontade, que constitui o vontade é conflito e dilaceração e, portanto, dor. E “a
objeto imediato de sua própria consciência". medida que o conhecimento torna-se mais distinto, e
E essa vontade não se enquadra no modo de que a consciência se eleva, cresce também o tormento,
conhecimento em que sujeito e objeto se contrapõem que alcança no homem o grau mais alto, tanto mais
um ao outro, "mas se nos apresenta por via imediata, na elevado quanto mais inteligente é o homem; o homem
qual não se pode mais distinguir claramente entre de gênio é o que sofre mais".
sujeito e objeto". A essência da natureza inconsciente é aspiração
constante, sem objetivo e sem repouso. E, ao mesmo
5.2.3 A vontade como essência de nosso ser tempo, a essência do animal e do homem é querer e
aspirar: sede inextinguível. E “o homem, sendo a
A essência do nosso ser é, portanto, vontade; a objetivação mais perfeita da vontade de viver, é também
imersão no profundo de nós mesmos faz com que o mais necessitado dos seres; nada mais é que vontade
descubramos que somos vontade. Mas, ao mesmo e necessidade, de modo que se poderia defini-lo até
tempo, essa imersão rompe o "véu de Maya" e faz com como concretude de necessidades”.
que nos vejamos como partes daquela vontade única, A vida é necessidade e dor. Se a necessidade é
daquele "cego e irresistível ímpeto" que permeia, se satisfeita, então mergulhamos na saciedade e no tédio.
agita e se esquadrinha por todo o universo. Segue-se daí que a vida humana oscila, como pêndulo,
Em outras palavras, a consciência e o entre a dor e o tédio. Dos sete dias da semana, seis são
sentimento de nosso corpo como vontade levam-nos a dor e necessidade, e o sétimo é tédio.
reconhecer que toda a universalidade dos fenômenos, Schopenhauer sustenta que, no fundo, o
embora tão diversos em suas manifestações, tem uma homem é um animal selvagem e feroz. Conhecemos o
só e idêntica essência: aquela que conhecemos mais homem somente naquele estado de mansidão e
diretamente, mais intimamente e melhor do que domesticidade chamado civilização, mas basta um
qualquer outra, aquela que, em fulgida manifestação, pouco de anarquia para que nele se manifeste a
toma o nome de vontade. verdadeira natureza humana: "O homem é o único
É essa, portanto, a reflexão que torna possível animal que faz os outros sofrerem pelo único objetivo
ultrapassar o fenômeno e chegar a coisa em si. O de fazer sofrer".
fenômeno é representação e nada mais; “coisa em si é Substancialmente, o que é positivo, ou seja, real,
somente a vontade, que, a esse título, não é de modo é a dor; ao passo que o que é negativo, ou seja, ilusório,
252
17
é a felicidade. E a dor e a tragédia não são somente a justos e inocentes”; e é desse modo que ela nos permite
essência da vida dos indivíduos, mas também a essência contemplar a natureza do mundo.
da história de toda a humanidade. Entre as artes, a música não é aquela que
A vida é dor e a história é acaso cego. O expressa as ideias, isto é, os graus de objetivação da
progresso é uma ilusão. A história não é, como pretende vontade, mas expressa a própria vontade. Por isso, ela
Hegel, racionalidade e progresso; todo finalismo e é a arte mais universal e profunda: a música é capaz de
qualquer otimismo sio injustificáveis. narrar “a história mais secreta da vontade”.
A arte, portanto, é libertadora. Entretanto, esses
5.3.2 A libertação por meio da arte momentos felizes da contemplação estética, nos quais
nos sentimos libertos da tirania furiosa da vontade, são
O mundo como fenômeno é representação. instantes breves e raros. Consequentemente, a
Mas, em sua essência, é vontade cega e irrefreável, libertação da dor da vida e a redenção total do homem
perenemente insatisfeita, dilacerando-se entre forças devem ocorrer por outro caminho. E este é o caminho
contrastantes. Todavia, quando o homem, da ascese.
aprofundando-se em seu próprio íntimo, consegue
compreender isso, ou seja, que a realidade é vontade e 5.3.3 Ascese e redenção
que ele próprio é vontade, então está pronto para sua
redenção, e esta só pode se dar "com o deixar de A ascese significa que a libertação do homem
querer". em relação ao alternar-se fatal da dor e do tédio só pode
Em suma, na opinião de Schopenhauer, só se realizar suprimindo em nós mesmos a raiz do mal,
podemos nos libertar da dor e do tédio e nos subtrair à isto é, a vontade de viver. E o primeiro passo para tal
cadeia infinita das necessidades mediante a arte e a supressão se verifica pela realização da justiça, ou seja,
ascese. mediante o reconhecimento dos outros como iguais a
Com efeito, na experiência estética, o indivíduo nós mesmos.
separa-se das cadeias da vontade, afasta-se de seus Entretanto, a justiça golpeia o egoísmo, mas
desejos, anula suas necessidades, deixando de olhar os leva-me a considerar os outros como distintos de mim,
objetos em função de eles lhe poderem ser úteis ou como diferentes de mim.
nocivos. Na experiência estética, o homem se aniquila E, por isso, não acaba com o princípio do
como vontade e se transforma em puro olho do individualismo que fundamenta meu egoísmo e me
mundo, mergulha no objeto e esquece-se de si mesmo contrapõe aos outros. É preciso, portanto, ultrapassar a
e de sua dor. justiça e ter a coragem de eliminar toda distinção entre
E esse puro olho do mundo já não vê objetos nossa individualidade e a dos outros, abrindo os olhos
que têm relações com outras coisas, não vê objetos úteis para o fato de que todos nós estamos envolvidos na
ou nocivos, mas percebe ideias, essências, modelos das mesma desventura.
coisas, fora do espaço, do tempo e da causalidade. A Esse passo ulterior é a bondade, o amor
arte expressa e objetiva a essência das coisas. E, desinteressado para com seres que carregam a mesma
precisamente por isso, ajuda-nos a nos afastarmos da cruz e vivem nosso mesmo destino trágico. Bondade,
vontade. O gênio capta as ideias eternas e a portanto, que é compaixão, sentir a dor do outro por
contemplação estética mergulha nelas, anulando aquela meio da compreensão de nossa própria dor: "Todo
vontade que, tendo optado pela vida e pelo tempo, é amor é compaixão".
somente pecado e dor. E é precisamente a compaixão que
Em suma, na experiência estética não estamos Schopenhauer insere como fundamento da ética. Em
mais conscientes de nós mesmos, mas somente dos todo caso, porém, também a piedade, isto é, o
objetos intuídos. A experiência estética é a anulação compadecer, ainda é padecer.
temporária da vontade e, portanto, da dor. Na intuição E o caminho para erradicar de modo decisivo a
estética, o intelecto rompe sua servidão à vontade, vontade de viver e, portanto, a dor, é o caminho da
deixando de ser o instrumento que procura os meios ascese, aquela ascese que faz Schopenhauer sentir-se
para satisfazê-la; torna-se puro olho que contempla. próximo dos sábios hindus e dos santos ascetas do
A arte - que, da arquitetura (que expressa a ideia cristianismo.
das forças naturais) a escultura, da pintura a poesia, A ascese é o horror que experimentamos pela
chega à tragédia, a mais elevada forma de arte – objetiva essência de um mundo cheio de dor. E “o primeiro
a vontade. passo na ascese, ou na negação da vontade, é a castidade
E quem a contempla está, de certo modo, fora livre e perfeita”. A castidade perfeita liberta da
dela. Assim, “a tragédia expressa e objetiva a dor sem realização fundamental da vontade no seu impulso de
nome, o afã da humanidade, o triunfo da perfídia, o geração. A pobreza voluntária e intencional, o
escarnecedor senhorio do acaso e o fatal precipício dos conformismo e o sacrifício, também tendem para o
mesmo objetivo, isto é, a anulação da vontade.
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Enquanto fenômeno, o homem é um elo da 5. O amor para Schopenhauer é:
cadeia causal do mundo fenomênico. Mas, a) é central em sua filosofia, pois explica a vontade
reconhecendo a vontade como coisa em si, esse objetivada nos seres humanos.
conhecimento age sobre ele como aquietante do seu b) é central em sua filosofia, pois explica como
desejo. E é assim que o homem se torna livre, se redime representamos o mundo.
e entra naquilo que os cristãos chamam de estado de c) é secundário em sua filosofia, pois o pensamento e
graça. A ascese arranca o homem da vontade de vida, razão são manifestações mais profundas de nosso ser.
do vínculo com os objetos, e é assim que lhe permite d) é secundário em sua filosofia, pois ocupa conotação
aquietar-se. Quando a vontade se torna não-vontade, o sexual e depravada.
homem está redimido. e) é central em sua filosofia, pois é manifestação da
representação do mundo pelos sentidos.
QUESTÕES

1. O conceito representação na filosofia de 6. FRIEDRICH NIETZSCHE


Schopenhauer significa: Friedrich Nietzsche
a) a forma que o homem se espelha no mundo, vejo nasceu em 15 de outubro de
aquilo que quero ver, ouço aquilo que quero ouvir. 1844. Estudou filologia
b) a forma que o homem se relaciona com o mundo, clássica e leu O mundo como
utilizando-se de valores e moral. vontade e representação, de
c) a forma que o homem é capaz de representar o Schopenhauer, leitura
mundo por intermédio de seus sentidos e intelecto. destinada a deixar marca
d) essência do mundo, solução para o enigma do decisiva no pensamento de
universo. Nietzsche.
e) essência do mundo, a coisa em si que Kant tanto Com vinte e cinco
problematizava. anos apenas, Nietzsche foi chamado, em 1869, a ocupar
a cátedra de filologia clássica na Universidade de
2. O conceito vontade para Schopenhauer significa: Basiléia. É desse período seu encontro com Richard
a) querer inconsciente de todos pela preservação do Wagner.
outro. Em 1872, saiu O nascimento da tragédia. Entre
b) querer consciente de todos pela sobrevivência. 1873 e 1876 Nietzsche escreveu as quatro Considerações
c) essência do mundo, amor, ódio e salvação. inatuais. Nesse meio tempo, por motivos pessoais e por
d) essência do mundo, a coisa em si kantiana, percebida razões teóricas rompeu sua amizade com Wagner. O
imediatamente pela contemplação estética do mundo e testemunho desse rompimento pode ser encontrado em
dos objetos. Humano, muito humano (1878), onde o autor também
e) essência do mundo, a coisa em si kantiana, percebida toma distância da filosofia de Schopenhauer.
imediatamente por intermédio de meu próprio corpo. No ano seguinte, em 1879, por razões de saúde,
mas também por motivos mais profundos (a filologia
3. De acordo com a filosofia de Schopenhauer, a não era seu “destino”), Nietzsche demitiu-se do ensino
vontade se manifesta no ser humano a partir: e iniciou sua irrequieta peregrinação de pensão a pensão
a) de seu querer consciente do mundo. pela Suíça, a Itália e o sul da França.
b) de seu desejo de reprodução e seu instinto de Em 1881 publicou a Aurora, onde já tomam
sobrevivência. corpo as teses fundamentais de seu pensamento. A Gaia
c) de sua consciência imanente de si mesmo e do ciência é de 1882, nessa obra o filósofo prometeu novo
mundo. destino para a humanidade.
d) da sua autopreservação, desvinculada da espécie. Ainda em 1882, Nietzsche conhece Lou
e) da sua autopreservação e a morte de todos os Salomé, jovem russa de vinte e quatro anos.
membros de sua espécie, pois a vontade se manifesta Acreditando nela, queria desposá-la. Mas Lou Salomé o
enquanto luta de todos contra todos. rejeitou e se uniu a Paul Rée, seu amigo e discípulo.
Em 1883, ele concebe Assim falou Zaratustra, sua
4. Pensamentos que influenciaram Schopenhauer obra prima. Em 1886, publicou Além do bem e do mal. A
foram: Genealogia da moral é de 1887. No ano seguinte,
a) Upanixades, Platão e Kant. Nietzsche escreve: O caso Wagner, O crepúsculo dos ídolos,
b) Platão, Aristóteles e Cristianismo. O Anticristo, Ecce homo. Do mesmo período é também o
c) Cristianismo, Ateísmo e Epicurismo. escrito Nietzsche contra Wagner.
d) Descartes, David Hume e Hegel. Em Turim ele trabalha em sua última obra, a
e) Maquiavel, Marx e Freud. Vontade de poder, que, no entanto, não conseguiu
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19
concluir. Com efeito, em 3 de janeiro de 1889 cai vítima apolíneo, que é visão de sonho e tentativa de expressar
da loucura, lançando-se ao pescoço de um cavalo que o o sentido das coisas na medida e na moderação,
dono estava espancando diante de sua casa em Turim. explicitando-se em figuras equilibradas e límpidas.
Morreu em Weimar, imerso nas trevas da O desenvolvimento da arte está ligado à
loucura, em 25 de agosto de 1900, sem poder se dar dicotomia do apolíneo e do dionisíaco, do mesmo
conta do sucesso que estavam tendo os livros que modo como a geração provém da dualidade dos
mandara publicar à própria custa. sentidos, em continuo conflito entre si e em
reconciliação meramente periódica.
1. O “dionisíaco” e o “apolíneo”, e o problema Nas duas divindades artísticas gregas, Apolo e
Sócrates Dioniso, baseiam-se a ideia de Nietzsche de que no
mundo grego existia enorme contraste, enorme pela
origem e pelo fim, entre a arte figurativa, a de Apolo, e
Em Leipzig, conforme salientamos, Nietzsche
a arte não figurativa da música, que é especificamente a
leu O mundo como vontade e representação, de Shopenhauer,
de Dioniso. Os dois instintos, tão diferentes entre si,
e ficou fascinado, a ponto de mais tarde o julgar como
caminham um ao lado do outro, no mais das vezes em
“um espelho, no qual vi o mundo, a vida e meu próprio
aberta discórdia [...], até que, em virtude de um milagre
espírito”.
metafísico da 'vontade' helênica, apresentam-se por fim
A vida, pensa Nietzsche nas pegadas de
acoplados um ao outro. E “nesse acoplamento final
Schopenhauer, é cruel e cega irracionalidade, dor e
gera-se a obra de arte, tão dionisíaca quanto apolínea,
destruição. Só a arte pode oferecer ao indivíduo a força
que é a tragédia ática”.
e a capacidade de enfrentar a dor da vida, dizendo sim
Entretanto, quando, com Eurípedes, tenta-se
à vida.
eliminar da tragédia o elemento dionisíaco em favor dos
E em O nascimento da tragédia, que é de 1872,
elementos morais e intelectualistas, então a
Nietzsche procura mostrar como a civilização grega
luminosidade clara em relação a vida se transforma em
pré-socrática explodiu em vigoroso sentido trágico, que
superficialidade silogística. Surge então Sócrates, com
é aceitação extasiada da vida, coragem diante do destino
sua louca presunção de compreender e dominar a vida
e exaltação dos valores vitais. A arte trágica é corajoso
com a razão e, com isso, temos a verdadeira decadência.
e sublime sim à vida.
Sócrates e Platão são “sintomas de decadência,
Com isso Nietzsche subverte a imagem
os instrumentos da dissolução grega, os pseudogregos,
romântica da civilização grega. Entretanto, a Grécia de
os antigregos”.
que fala Nietzsche não é a Grécia da escultura clássica
Sócrates - escreve Nietzsche – “foi um
e da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, e sim a
equívoco: toda a moral do aperfeiçoamento, inclusive a
Grécia dos pré-socráticos (séc. VI a.C.), a Grécia da
cristã, foi um equívoco [...]. A mais crua luz diurna, a
tragédia antiga, na qual o coro era a parte essencial,
racionalidade a qualquer custo, a vida clara, prudente,
senão talvez tudo.
consciente e sem instintos, em contraste com os
De fato, Nietzsche identifica o segredo desse
instintos, isso era apenas doença diferente - e de modo
mundo grego no espírito de Dionísio. Dionísio é a
nenhum retorno a ‘virtude’, à ‘saúde’, à felicidade".
imagem da força instintiva e da saúde, é embriaguez
"Sócrates apenas esteve longamente doente". Disse não
criativa e paixão sensual, é o símbolo de uma
à vida; abriu uma época de decadência que esmaga
humanidade em plena harmonia com a natureza.
também a nós. Ele combateu e destruiu o fascínio
dionisíaco que liga homem a homem e homem a
natureza, e desvela o mistério do uno primigênio.

2. Os “fatos” são estúpidos e a “saturação da


história” é um perigo

O Nascimento da tragédia foi escrito sob a


influência das ideias de Schopenhauer, mas também sob
a das ideias de Wagner. Com efeito, Nietzsche
vislumbrava em Wagner o protótipo do "artista trágico"
destinado a renovar a cultura contemporânea. E
dedicou a Wagner o Nascimento da tragédia, assim
escrevendo no fim da dedicatória: "Considero a arte
como a tarefa suprema e como a atividade metafísica
Ao lado do dionisíaco, diz Nietzsche, o própria de nossa vida, segundo o pensamento do
desenvolvimento da arte grega também está ligado ao homem ao qual pretendo dedicar esta obra como a meu
insigne precursor no campo de batalha".
255
20
Logo que saiu, embora defendida pelo próprio testemunhado por obras como Humano, muito humano, a
Wagner, a obra de Nietzsche foi violentamente atacada, Aurora e Gaia ciência. São dois os tipos de pessimismo:
em nome da seriedade da ciência filológica, pelo grande a) o primeiro é o romântico, ou seja, "o
filólogo Ulrich von Wilamowitz-Mollendorff, o qual pessimismo dos renunciantes, dos falidos e dos
escreveu que "com o Nietzsche apóstolo e metafisico vencidos";
não pretendo ter nada a ver", e o acusou de “ignorância b) o outro é o de quem aceita a vida, embora
e escasso amor pela verdade”. reconhecendo sua dolorosa tragicidade.
Mas, entre 1873 e 1876, contra a exaltação da Pois bem, em nome deste último pessimismo
ciência e da história, Nietzsche escreve as Considerações Nietzsche rejeita o primeiro, o de Schopenhauer, que
inatuais. Aqui Nietzsche combate o que ele chama de por toda parte cheira a resignação e renúncia, e que é
saturação de história. Não que negue a importância da mais fuga da vida do que "vontade de tragicidade".
história, ele combate mais a idolatria do fato, por um Schopenhauer "nada mais é do que o herdeiro da
lado, e as ilusões historicistas, por outro, com as interpretação cristã".
implicações políticas que elas comportam. Por outro lado, o afastamento em relação a
Antes de qualquer coisa, na opinião de Wagner foi um acontecimento ainda mais significativo
Nietzsche, os fatos são sempre estúpidos, eles e doloroso para Nietzsche. Ele vira na arte de Wagner
necessitam de intérprete. Por isso, só as teorias são o instrumento da regeneração, mas logo teve de admitir
inteligentes. Em segundo lugar, quem crê “no poder da que estava iludido. Em O caso Wagner, podemos ler:
história” torna-se “hesitante e inseguro, não podendo Wagner "lisonjeia todo instinto niilista (-budista) e o
crer em si mesmo”. E, em terceiro lugar, não crendo em camufla com a música, brandindo toda cristandade,
si mesmo, ele será dominado pelo existente, “seja ele toda forma de expressão religiosa da décadence". Wagner
um governo, uma opinião pública, ou ainda uma é uma doença; "ele adoece tudo o que toca - ele adoeceu a
maioria numérica”. música". Wagner é "um gênio histriônico”, ele "est une
Na realidade, “se todo sucesso contém em si nevrose".
uma necessidade racional, se todo acontecimento é a O afastamento de Nietzsche em relação a seus
vitória do 'lógico' ou da 'ideia', que nos ajoelhemos logo, dois grandes mestres significou o afastamento e
então, e percorramos ajoelhados a escada dos distanciamento crítico em relação ao romantismo, com
sucessos”. seu falso pessimismo, resignação e a ascese quase cristã
São três as atitudes que Nietzsche distingue de Schopenhauer, com a retórica daquele "romantismo
diante da história. desesperado que murchou", que era Wagner. Significou
a) Existe a história monumental, que é a história de distanciamento e crítica daquelas pseudojustificações e
quem procura no passado modelos e mestres em camuflagens metafísicas do homem e de sua história
condições de satisfazer suas aspirações. que são:
b) Existe a história antiquaria, que é a história de 1) o idealismo (que cria um "antimundo");
quem compreende o passado de sua própria cidade (as 2) o positivismo (cuja pretensão de enjaular
muralhas, as festas, os decretos municipais etc.) como solidamente a vasta realidade em suas pobres malhas
fundamento da vida presente; a história antiquaria teóricas é ridícula e absurda);
procura e conserva os valores constitutivos estáveis nos 3) os redentorismos socialistas das massas ou
quais se radica a vida presente. através das massas;
c) E, por fim, existe a história crítica, que é a 4) e também o evolucionismo (aliás, "mais
história de quem olha para o passado com as intenções afirmado do que provado").
do juiz que condena e abate todos os elementos que Desse modo. Nietzsche parece basear suas
constituem obstáculos para a realização de seus reflexões em raízes iluministas. E, com efeito, é o que
próprios valores. Esta última foi a atitude de Nietzsche acontece. A desconfiança em relação às metafísicas, a
diante da história. abertura a respeito das possíveis interpretações
E essa é a razão pela qual ele combate o excesso "infinitas" do mundo e da história e, portanto, a
ou “saturação de história”, “Os instintos do povo são eliminação da atitude dogmática, o reconhecimento do
perturbados por esse excesso e o indivíduo, não menos limite e da finitude humana, e a crítica à religião são
que a totalidade, é impedido de amadurecer”. elementos que fazem Nietzsche dizer em Humano, muito
humano: “Podemos levar novamente adiante a bandeira
3. O afastamento em relação a Schopenhauer e do Iluminismo”.
Wagner
4. O anúncio da “morte de Deus”.
Nesse meio tempo, porém, Nietzsche vinha
amadurecendo seu afastamento de Schopenhauer e A crítica ao idealismo, ao evolucionismo, ao
mais ainda de Wagner. Esse distanciamento é positivismo e ao romantismo não cessa. Essas teorias
são coisas “humanas, muito humanas”, que se
256
21
apresentam como verdades eternas e absolutas que é Todavia, pergunta-se Nietzsche, o que fez o
preciso desmascarar. cristianismo senão defender tudo o que é nocivo ao
Mas as coisas não ficam nisso, uma vez que homem? O cristianismo considerou pecado tudo o que
Nietzsche, precisamente em nome do instinto é valor e prazer na terra. Ele "tomou partido de tudo o que é
dionisíaco, em nome daquele homem grego sadio do fraco, abjeto e arruinado; fez um ideal da contradição contra os
século VI a.C., que “ama a vida” e que é totalmente instintos de conservação da vida forte".
terreno, por um lado anuncia a “morte de Deus” e por O cristianismo é a religião da compaixão. “Mas a
outro realiza profundo ataque contra o cristianismo, pessoa perde força quando tem compaixão [...]; a
cuja vitória sobre o mundo antigo e sobre a concepção compaixão bloqueia maciçamente a lei do
grega do homem envenenou a humanidade. E, por desenvolvimento, que é a lei da seleção”. Nietzsche
outro lado ainda, vai às raízes da moral tradicional, vislumbra no Deus cristão “a divindade dos doentes
examina sua genealogia, e descobre que ela é a moral [...]; um Deus degenerado a ponto de contradizer a vida,
dos escravos, dos fracos e dos vencidos ressentidos ao invés de ser a transfiguração e o eterno sim dela [...].
contra tudo o que é nobre, belo e aristocrático. Em Deus, está divinizado o nada, está consagrada a
Na Gaia ciência, o homem louco anuncia aos vontade do nada!”.
homens que Deus está morto: "O que houve com Apesar de tudo isso, Nietzsche é cativado pela
Deus? Eu vos direi. Nós o matamos - eu e vós. Nós somos figura de Cristo (“Cristo é o homem mais nobre”; “o
os assassinos dele!" Pouco a pouco, por diversas razões, símbolo da cruz é o símbolo mais sublime que jamais
a civilização ocidental foi se afastando de Deus, foi existiu”) e faz distinção entre Jesus e o cristianismo.
assim que o matou. Mas, "matando" Deus, eliminam-se Cristo morreu para mostrar como se deve viver.
todos os valores que serviram de fundamento para Cristo foi um “espírito livre”, mas com Cristo morreu
nossa vida e, consequentemente, perde-se qualquer o Evangelho: também o Evangelho ficou “suspenso na
ponto de referência. cruz”, ou melhor, transformou-se em Igreja, em
Por conseguinte, com Deus desapareceu cristianismo, isto é, em ódio e ressentimento contra
também o homem velho, mas o homem novo ainda não tudo o que é nobre e aristocrático.
apareceu. Diz o louco em Gaia ciência: "Venho cedo No Novo Testamento Nietzsche encontra apenas
demais, ainda não é meu tempo. Esse acontecimento um personagem digno de ser elogiado, Pôncio Pilatos,
monstruoso ainda está em curso e não chegou aos em virtude de seu sarcasmo em relação a "verdade".
ouvidos dos homens". Mais tarde, na história de nossa civilização, a
A morte de Deus é fato que não tem paralelos. Renascença tentou a transvalorização dos valores cristãos,
É acontecimento que divide a história da humanidade. procurou levar à vitória os valores aristocráticos, os
Não é o nascimento de Cristo, e sim a morte de nobres instintos terrenos. Feito papa, César Borgia teria
Deus, que divide a história da humanidade. sido grande esperança para a humanidade. Mas o que
E esse acontecimento, a morte de Deus, aconteceu? Ocorreu que “um monge alemão, Lutero,
anuncia antes de qualquer coisa Zaratustra, que, depois, veio a Roma. Trazendo dentro do peito todos os
sobre as cinzas de Deus, erguerá a ideia do super- instintos de vingança de padre frustrado, esse monge,
homem, do homem novo, impregnado do ideal em Roma, indignou-se contra a Renascença [...]. Lutero
dionisíaco que "ama a vida" e que, voltando as costas viu a corrupção do papado, quando se podia tocar com
para as quimeras do “céu”, voltará à “sanidade da terra”. a mão justamente o contrário, na cadeira papal não
estava mais a antiga corrupção, o pecado original, o
5. O Anticristo, ou o cristianismo como “vício” cristianismo! Que boa é a vida! Que bom o triunfo da
vida! Que bom o grande sim a tudo o que é elevado,
A morte de Deus é um evento cósmico, pelo belo e temerário! [...] E Lutero restaurou novamente a
qual os homens são responsáveis, e que os liberta das lgreja [...] Ah, esses alemães, quanto nos custaram!”.
cadeias do sobrenatural que eles próprios haviam São dessa natureza, portanto, as razões que
criado. Falando sobre os padres, Zaratustra afirma: levam Nietzsche a condenar o cristianismo: “A Igreja
“Tenho pena desses padres [...], para mim eles são cristã não deixou nada intacto em sua perversão; ela fez
prisioneiros e marcados. Aquele que eles chamam de de cada valor um desvalor, de cada verdade uma
redentor os carregou de grilhões de falsos valores e de mentira, de toda honestidade uma abjeção da alma”. O
palavras loucas! Ah, se alguém pudesse redimi-los de além é a negação de toda realidade e a cruz é uma
seu redentor!”. conjuração “contra a saúde, a beleza, a constituição
Esse, precisamente, é o objetivo que Nietzsche bem-sucedida, a valentia de espírito, a bondade da alma,
quer alcançar com o Anticristo, que é uma "maldição do contra a própria vida”.
cristianismo". Para ele, um animal, uma espécie ou um Assim, o que devemos esperar senão que este
indivíduo é pervertido "quando perde seus instintos, seja o último dia do cristianismo? E a partir de hoje? A
quando escolhe e quando prefere o que lhe é nocivo". partir de hoje, “transvalorização de todos os valores",
responde Nietzsche.
257
22
6. A genealogia da moral todo acontecimento um 'sentido' que ele não tem, até
que, por fim, começa a faltar coragem a quem procura".
Juntamente com o cristianismo, aliás, Aquele "sentido" podia ser a realização ou o
condenando o cristianismo, Nietzsche também fortalecimento de um valor moral (amor, harmonia de
submete a moral à cerrada crítica. Essa é a "grande relações, felicidade etc.). Mas o que devemos constatar
guerra" que Nietzsche trava em nome da é que a desilusão quanto a esse pretenso fim é "uma
"transformação dos valores que dominaram até hoje". causa do niilismo”. Em segundo lugar, “postulou-se
E essa revolta contra "o sentimento habitual uma totalidade, uma sistematização e até uma
dos valores" ele a explicita especialmente em dois livros: organização em todo o acontecer e em sua base".
Além do bem e do mal e Genealogia da moral. Entretanto, o que se viu é que esse universal,
Escreve Nietzsche: “Até hoje, não se teve que o homem construíra para poder crer no seu próprio
sequer a mínima dúvida ou a menor hesitação em valor, não existe! No fundo, o que aconteceu?
estabelecer o ‘bom’ como superior, em valor, ao ‘mau’ “Alcançou-se o sentimento da falta de valor quando se
[...]. Como? E se a verdade fosse o contrário? Como? E compreendeu que não é lícito interpretar o caráter geral
se no bem estivesse inserido também um sistema de da existência nem com o conceito de 'fim', nem com o
retrocesso ou então um perigo, uma sedução, um conceito de 'unidade', nem com o conceito de
veneno?” 'verdade'."
Essa é a questão proposta pela Genealogia da Caem assim "as mentiras de vários milênios" e
moral. E é aí que Nietzsche começa a indagar os o homem permanece sem os enganos das ilusões, mas
mecanismos psicológicos que iluminam a gênese dos permanece só. Não há valores absolutos; aliás, os
valores: a compreensão da gênese psicológica dos valores são desvalores; não existe nenhuma estrutura
valores, em si mesma, será suficiente para pôr em racional e universal que possa sustentar o esforço do
dúvida sua pretensa absolutez e indubitabilidade. homem; não há nenhuma providência, nenhuma ordem
Antes de tudo, a moral é máquina construída cósmica.
para dominar os outros e, em segundo lugar, devemos Não há uma ordem, não há um sentido. Mas há
logo distinguir entre a moral aristocrática dos fortes uma necessidade: o mundo tem em si a necessidade da
e a moral dos escravos. Estes são os fracos, os vontade. Desde a eternidade, o mundo é dominado pela
malsucedidos. E, como diz o provérbio, os que não vontade de aceitar a si próprio e de repetir-se.
podem dar maus exemplos dão bons conselhos. É É essa é a doutrina do eterno retorno que
assim que os constitutivamente fracos agem para Nietzsche retoma da Grécia e do Oriente. O mundo
subjugar os fortes. não procede de modo retilíneo em direção a um fim
E Nietzsche prossegue: "Enquanto toda moral (como acredita o cristianismo), nem seu devir é
aristocrática nasce da afirmação triunfal de si, a moral progresso (como pretende o historicismo hegeliano e
dos escravos opõe desde o começo um não aquilo que pós-hegeliano), mas “todas as coisas retornam
não pertence a ela mesma, aquilo que é diferente dela e eternamente e nós com elas; nós já existimos eternas
constitui o seu não-eu - este é seu ato criador. Essa vezes e todas as coisas conosco”.
subversão [...], pertence propriamente ao Toda dor e todo prazer, todo pensamento e
ressentimento". todo suspiro, toda coisa indizivelmente pequena e
E o ressentimento contra a força, saúde e o grande retornarão: "Voltarão até essa teia de aranha e
amor à vida que torna dever e virtude e eleva à categoria este raio de lua entre as árvores, até este idêntico
de bons comportamentos o desinteresse, o sacrifício de momento e eu mesmo". O mundo que aceita a si
si mesmo, a submissão. E essa moral dos escravos é próprio e que se repete, é esta a doutrina cosmológica
legitimada por metafísicas que a sustentam com bases de Nietzsche. E a ela Nietzsche vincula sua outra
presumidamente "objetivas", sem que se perceba que doutrina, a do amor fati: amar o necessário, aceitar este
tais metafísicas nada mais são do que "mundos mundo e amá-lo.
superiores" inventados para poder "caluniar e sujar este
mundo", que elas querem reduzir a mera aparência. 8. O super-homem é o sentido da terra

7. Niilismo, eterno retorno e “amor fati” O amor fati é aceitação do eterno retorno, é
aceitação da vida. Mas não se deve ver nele a aceitação
O niilismo, diz Nietzsche, é “a consequência do homem. A mensagem fundamental de Zaratustra,
necessária do cristianismo, da moral e do conceito de com efeito, está em pregar o super-homem.
verdade da filosofia”. Quando as ilusões perdem a E o homem, o homem novo, que deve criar um
máscara, então o que resta é nada: o abismo do nada. novo sentido da terra, abandonar as velhas cadeias e
“Como estado psicológico, o niilismo torna-se cortar os antigos troncos. O homem deve inventar o
necessário, em primeiro lugar, quando procuramos em homem novo, isto é, o super-homem, o homem que vai
além do homem e que é o homem que ama a terra e
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23
cujos valores são a saúde, a vontade forte, o amor, a A partir da citação acima, assinale o que for correto.
embriaguez dionisíaca e um novo orgulho. 01) “Além do bem e do mal” representa a suspeita de
Diz Zaratustra: "Um novo orgulho ensinou-me que o valor da verdade não se opõe ao valor da mentira.
o meu Eu, e eu o ensino aos homens: não deveis mais 02) Os positivistas são, para Nietzsche, uma nova classe
esconder a cabeça na areia das coisas celestes, mas
mantê-la livremente: uma cabeça terrena, que cria ela de filósofos, que surgirá depois da teologia empirista.
própria o sentido da 04) O exercício da dúvida, entre muitos filósofos que
terra". diziam duvidar de tudo, era apenas o primeiro passo
O super-homem para fundamentar a certeza.
substitui os velhos 08) A filosofia é perigosa, razão pela qual F. Nietzsche
deveres pela vontade e Giordano Bruno foram queimados na fogueira.
própria. "O homem é uma
16) A aparência, mesmo oposta logicamente ao
corda estendida, estendida
entre o bruto e o super- conceito de verdade, é necessária para a manutenção da
homem, uma corda vida.
estendida sobre um
abismo". Ele deve 02. Como Nietzsche indica na Genealogia da Moral,
procurar novos valores: ainda que os sentimentos de “dever” e de “obrigação
"O mundo gira em torno pessoal” tenham se originado nas mais antigas relações
dos inventores de novos
entre os indivíduos, as relações entre comprador e
valores".
Assim como para Protágoras, também para vendedor, eles foram concentrados e monopolizados
Nietzsche o homem deve ser a medida de todas as no dever e na obrigação a Deus. Desde então, quanto
coisas, deve criar novos valores e pô-los em prática. O mais se exponencia a ideia de Deus, tanto maior será,
homem embrutecido tem a espinha curvada diante das proporcionalmente, o sentimento de dever e de
ilusões cruéis do sobrenatural. obrigação em relação a ele. (...)
O super-homem “ama a vida” e “cria o sentido
Sendo assim, pode-se prever que o triunfo completo e
da terra”, e é fiel a isso.
Aí está sua vontade de poder. definitivo do ateísmo libertaria a humanidade de todo
sentimento de obrigação em relação à sua origem.
QUESTÕES Desde então, é por um único e mesmo movimento que
se obtém o eclipse do "tu deves" e a emancipação do
01. (UEM 2015) “Nem aos mais cuidadosos dentre eles “eu quero” (...).
[os metafísicos] ocorreu duvidar aqui, no limiar, onde Carlos A. R. de Moura
mais era necessário: mesmo quando haviam jurado para A partir do texto supracitado, é correto afirmar que o
si próprios de omnibus dubitandum [de tudo duvidar]. [...] ateísmo de Nietzsche
Com todo o valor que possa merecer o que é a) é apenas um corolário de sua análise da moral, não
verdadeiro, veraz, desinteressado: é possível que se deva desempenhando nenhum papel central em sua filosofia.
atribuir à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e b) visa apenas a desconstruir a idéia de dever, sem
à cobiça um valor mais alto e mais fundamental para a realmente preocupar-se com a crítica à idéia de Deus.
vida. É até mesmo possível que aquilo que constitui o c) antecipa o marxismo, uma vez que, nele, a gênese do
valor dessas coisas boas e honradas consista exatamente dever moral é situada nas relações entre comprador e
em serem insidiosamente aparentadas, atadas, unidas, e vendedor.
talvez até essencialmente iguais a essas coisas ruins e d) não implica uma mudança completa da moral, pois
aparentemente opostas. Talvez! – Mas quem se mostra fica intacto o estatuto positivo para o dever.
disposto a ocupar-se de tais perigosos ‛talvez’? Para isso e) desempenha um papel estruturante em sua filosofia,
será preciso esperar o advento de uma nova espécie de uma vez que ele é um requisito para a emancipação da
filósofos, que tenham gosto e pendor diversos, vontade.
contrários aos daqueles que até agora existiram –
filósofos do perigoso ‛talvez’ a todo custo. – E, falando 03. A originalidade de Friedrich Nietzsche (1844-1900)
com toda a seriedade: eu vejo esses filósofos surgirem.” reside, sobretudo, em sua crítica aos valores morais.
Para ele, o apego do homem aos valores morais pode
(NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. In MARCONDES,
D. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein.
ser justificado pela forte influência que a antiga tradição
2ª. ed. rev. Rio de Janeiro: Zahar, 2007, p. 145-146). judaico-cristã exerce sobre o pensamento humano.
259
24
Sendo assim, a estratégia que ele emprega para II. Em Sócrates, Nietzsche encontra o ideal de
denunciar os pressupostos da tradição clássica e exigir humanismo que irá definir sua filosofia como “estética
seu abandono compreende: de si”. O par conceitual, dionisíaco (Dionísio é o Deus
I. Empregar um método de análise filológico que revela da embriaguez da música e do caos) e apolíneo (Apolo
a origem dos significados dos termos morais e se afastar é o Deus da luz, da forma, da harmonia e da ordem),
das interpretações metafísico-religiosas acerca dessas mostra a herança socrática. Da luta e do equilíbrio final
noções. desses dois elementos opostos, surge o pensamento
II. Denunciar a cultura do niilismo que assola a nietzschiano como saber da vida e da morte, como
sociedade moderna e que se transforma em forma expressão do enigma da existência.
negadora da existência humana. III. Kant e sua moral são alvos do “filosofar com o
III. Combater todos os valores contrários à vida e que martelo” nietzschiano: o “imperativo categórico”, isto
negam a natureza humana. é, a lei universal que deve guiar as ações humanas, é para
IV. Abandonar as antigas concepções culturais de Nietzsche uma ficção que provém do domínio da razão
natureza metafísica e, consequentemente, a ideia de sobre os instintos humanos, sendo a lei de um homem
verdade presente nessas concepções. descarnado e cristianizado.
Assinale a alternativa correta IV. A vontade de potência é um conceito-chave na obra de
a) Todas as afirmações são corretas. Nietzsche. Indica-nos as relações de força que se
b) Apenas I e III são corretas. desenrolam em todo acontecer, assinalando seu método
c) Apenas II e IV são corretas. histórico. Assim, Nietzsche pensa o tempo de acordo
d) Apenas III e IV são corretas. com uma concepção própria, um tempo não-linear, que
e) Apenas I e IV são corretas. se desenvolve em ciclos que se repetem – é o
pensamento do eterno retorno, outro conceito-chave de
04. (UFU 2014) Assinale a alternativa que indica a sua obra.
“moral do senhor”, de acordo com Nietzsche. A) Apenas IV.
a) Os princípios metafísicos e morais dos diálogos de B) Apenas II e III.
Platão. C) Apenas II, III e IV.
b) A força, a criatividade, a saúde e o amor à vida. D) Apenas I, II e IV.
c) Os princípios éticos e morais, que se encontram na E) Apenas I, III e IV.
Bíblia.
d) O ódio e o ressentimento dos fracos contra os mais 06. (UEM 2008) Friedrich Nietzsche critica o
fortes. pensamento socrático-platônico e a tradição da religião
judaico-cristã por terem desenvolvido uma razão e uma
05. (UNICENTRO 2010) O fragmento de texto, logo moral que subjugaram as forças instintivas e vitais do
abaixo, é de Friedrich Nietzsche (1844-1900). Analise- ser humano, a ponto de domesticar a vontade de
o, tendo como referência seus conhecimentos sobre o potência do homem e de transformá-lo em um ser fraco
tema, e julgue as assertivas que o seguem, apontando e doentio. Assinale o que for correto.
a(s) correta(s). 01) Ao criticar a moral tradicional racionalista,
“Todo filosofar moderno está política e policialmente considerada hipócrita e decadente, Nietzsche propõe
limitado à aparência erudita, por governos, igrejas, uma moral não-repressiva, que permite o livre curso
academias, costumes, modas, covardias dos homens: ele dos instintos, de modo que o homem forte possa, ao
permanece no suspiro: ‘mas se...’ ou no reconhecimento: mesmo tempo, acompanhar e superar o movimento
‘era uma vez...’ A filosofia não tem direitos; por isso, o contraditório e antagônico da vida.
homem moderno, se pelo menos fosse corajoso e 02) Para Nietzsche, o super-homem deveria ter a
consciencioso, teria de repudiá-la e bani-la. Mas a ela missão de criar uma raça capaz de dominar a
poderia restar uma réplica e dizer: ‘Povo miserável! É humanidade, sendo, por isso, necessário aniquilar os
culpa minha se em vosso meio vagueio como uma mais fracos.
cigana pelos campos e tenho de me esconder e 04) Nietzsche concorda com o marxismo, quando esse
disfarçar, como se eu fosse a pecadora e vós, meus afirma que a história da humanidade é a história das
juízes? Vede minha irmã, a arte! Ela está como eu: lutas de classes, e considera que o socialismo é a única
caímos entre bárbaros e não sabemos mais nos salvar.” forma de organização social aceitável.
(NIETZSCHE, F. A Filosofia na época trágica dos gregos. – aforismo 08) Nietzsche identifica dois grandes tipos de moral,
3. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 32 (Col. Os Pensadores). isto é, a moral aristocrática de senhores e a moral
I. Nietzsche critica a filosofia de sua época, afirmando plebeia de escravos. A moral de escravos é caracterizada
que ela afastou-se da vida, refugiando-se num universo pelo ressentimento, pela inveja e pelo sentimento de
de abstração e deduções lógicas, criando falsos vingança; é uma moral que nega os valores vitais e nutre
dualismos, como o de corpo e alma, mundo e Deus, a impotência.
mundo aparente e mundo verdadeiro.
260
25
16) Os valores que constituem a moral aristocrática de GABARITO
senhores são, para Nietzsche, eternos e invioláveis.
Devem orientar a humanidade com uma força QUESTÃO BENTHAM
dogmática, de modo que o homem não se perca.
1. d
07. (UEM 2010) A Filosofia de Friedrich Nietzsche 2. e
(1844-1900) é marcada por uma nova relação entre o
racional e o irracional, na medida em que o irracional
adquire validade por corresponder à necessidade de um QUESTÕES HEGEL
movimento de afirmação da vida. Com base nessa
afirmação, assinale o que for correto. 1. a
01) Para Nietzsche, o Iluminismo não libertou os 2. c
homens de seus prejuízos, mas reforçou ainda mais seus
mitos, como a crença na razão e no conhecimento 3. 01/02/04/16
científico. 4. b
02) O recurso metodológico proposto por Nietzsche é
a genealogia, isto é, movimento teórico que recorre à 5. 2/8
gênese de um discurso, conceito ou prática, apontando 6. 1/2/4/16
suas arbitrariedades e interesses.
04) Para Nietzsche, o conhecimento é fruto de um lento 7. c
processo de acumulação e comprovação empírica, cuja 8. 1/16
finalidade é salvar os fenômenos.
08) Contra a moral dos aristocratas e nobres, Nietzsche
defende os fracos, isto é, a moral dos escravos. QUESTÕES SCHOPENHAUER
16) A “vontade de potência” é a afirmação do nacional-
socialismo alemão, expresso na doutrina do super- 1. 1/4/16
homem e no antissemitismo nietzscheano. 2. e
3. b
4. a
5. a

QUESTÕES NIETZSCHE
1. c
2. e
3. a
4. b
5. e
6. 1/8
7. 01/02

261
26
SURGIMENTO DA SOCIOLOGIA tropicais, como açúcar, milho, tabaco e café) entre as
metrópoles e as colônias, bem como entre os países
A Sociologia, no contexto do conhecimento europeus. Nascia então a possibilidade de um mercado
científico, surgiu como um corpo de ideias a respeito do muito mais amplo e com características mundiais.
processo de constituição, consolidação e A exploração de metais preciosos, principalmente
desenvolvimento da sociedade moderna. Ela é fruto da na América, e o tráfico de escravos para suprir a mão de
Revolução Industrial e é denominada “ciência da crise”, obra nas colônias deram grande impulso ao comércio,
porque procurou dar respostas às questões sociais que não mais ficou restrito aos mercadores das cidades-
impostas por essa revolução que, num primeiro repúblicas (Veneza, Florença ou Flandres), passando
momento, alterou a sociedade europeia e, depois, o também para as mãos de grandes comerciantes e de
mundo todo. soberanos dos importantes Estados nacionais em
formação na Europa.
Toda essa expansão territorial e comercial
acelerou o desenvolvimento da economia monetária, com
a acumulação de capitais pela burguesia comercial, que,
mais tarde, teve uma importância decisiva na gestação do
processo de industrialização da Europa.
As mudanças que se operavam nas formas de
produzir a riqueza só poderiam funcionar se ocorressem
modificações na organização política. Assim, pouco a
pouco, desenvolveu-se uma estrutura estatal que tinha
por base a centralização da justiça, com um novo sistema
jurídico baseado no Direito romano.
Houve também a centralização das forças armadas,
com a formação de um exército permanente, e a
A Sociologia como “ciência da sociedade” não centralização administrativa, com um aparato burocrático
surgiu de repente, ou da reflexão de algum autor ordenado hierarquicamente e com um sistema de
iluminado; ela é fruto de todo um conhecimento sobre a cobrança de impostos que permitiu a arrecadação
natureza e a sociedade que se desenvolveu a partir do constante para manter todo esse aparato jurídico-
século XV, quando ocorreram transformações burocrático-militar sob um único comando. Nasceu,
significativas que tiveram como resultado a desagregação dessa forma, o Estado moderno, que favoreceu a
da sociedade feudal e a constituição da sociedade expansão das atividades vinculadas ao desenvolvimento
capitalista. Essas transformações — a expansão marítima, da produção têxtil, à mineração e à siderurgia, bem como
o comércio ultramarino, a formação dos Estados ao comércio interno e externo.
nacionais, a Reforma Protestante e o desenvolvimento No século XVI, desenvolveu-se outro
científico e tecnológico — estão vinculadas umas às movimento, o da Reforma Protestante. Esse
outras e não podem ser entendidas de forma isolada. movimento, que entrou em conflito com a autoridade
Elas são o pano de fundo que permite entender papal e a estrutura da Igreja, valorizava o indivíduo e
melhor um movimento intelectual de grande envergadura permitia a livre leitura das Escrituras Sagradas; provocava,
que alterou profundamente as formas de explicar a dessa forma, o confronto com o monopólio do clero na
natureza e a sociedade desde então. interpretação baseada na fé e nos dogmas. Muitos
A expansão marítima europeia teve um papel passaram, então, em vários lugares do mundo ocidental,
importante nesse processo, pois, com a circunavegação não só a interpretar as Escrituras Sagradas, como também
da África e o descobrimento da rota para as índias e para a professar sua fé em Deus diretamente, sem a
a América, a concepção de mundo dos povos europeus intermediação dos ministros da Igreja.
foi consideravelmente ampliada. A definição de um Se nascia uma nova maneira de se relacionar com
mundo territorialmente muito mais amplo, com as coisas sagradas, concebia-se também outra forma de
diferentes povos e culturas, exigiu a reformulação do analisar o universo. A razão passava a ser soberana e era
modo de ver e de pensar dos europeus. entendida como elemento essencial para se conhecer o
Ao mesmo tempo em que se conheciam novos mundo; isto é, os homens deviam ser livres para julgar,
povos e novas culturas, instalavam-se colônias na África, avaliar, pensar e emitir opiniões, sem se submeter a
na Ásia e na América, ocorrendo com isso a expansão do nenhuma autoridade transcendente ou divina, que tinha
comércio de mercadorias (sedas, especiarias e produtos na Igreja a sua maior defensora e guardiã.
262
1
Do século XV ao XVII, o conhecimento racional do Foram criadas, nesse contexto, as máquinas de
universo e da vida em sociedade tornou-se uma regra descaroçar e de tecer algodão, e se iniciou a aplicação
seguida por alguns pensadores; foi uma mudança lenta, industrial da máquina a vapor e de outros tantos inventos
sempre enfrentando embates contra o dogmatismo e a destinados a aumentar a produtividade do trabalho.
autoridade da Igreja, a exemplo do Concilio de Trento e Desenvolveu-se então o fenômeno que veio a ser
dos processos da Inquisição, que procuraram impedir chamado de maquinofatura. O trabalho que os homens
toda e qualquer manifestação que pudesse pôr em dúvida realizavam com as mãos ou com ferramentas passou, a
a autoridade eclesiástica, seja no campo da fé, seja no das partir de então, a ser feito por meio de máquinas,
explicações que se propunham para a sociedade e a elevando muito o volume da produção de mercadorias.
natureza. A presença da máquina a vapor, que podia mover
Essa nova forma de conhecer a natureza e a outras tantas máquinas, incentivou o surgimento da
sociedade, em que a experimentação e a observação eram indústria construtora de máquinas, que, por sua vez,
fundamentais, era representada pelo pensamento e pelas incentivou toda a indústria voltada para a produção de
obras de diversos autores; entre eles, Nicolau Maquiavel ferro e, posteriormente, de aço. É interessante lembrar
(1469-1527), Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu que já no final do século XVIII produziam-se ferro e aço
Galilei (1564-1642), Thomas Hobbes (1588-1679), com a utilização do carvão mineral.
Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes (1596- Nesse contexto de profundas alterações no
1650). Além desses pensadores, dois outros fizeram a processo produtivo, cada vez mais o trabalho mecânico
intermediação entre esses conhecimentos e os que se convivia com o trabalho artesanal. A maquinofatura se
desenvolveram no século seguinte: John Locke (1632- completava com o trabalho assalariado, incluindo a
1704) e Isaac Newton (1642-1727). Ao passo que o utilização, numa escala crescente, da mão de obra
primeiro propunha novos princípios para a compreensão feminina e da infantil.
da razão humana, o segundo estabelecia um novo Ao mesmo tempo, longe da Europa,
fundamento para o estudo da natureza. intensificava-se a exploração do ouro no Brasil, da prata
no México e do algodão na América do Norte e na índia.
A hegemonia burguesa Todas essas atividades eram desenvolvidas com a
utilização do trabalho escravo ou servil. Esses elementos,
Na maioria dos países europeus no final do século conjugados, asseguravam as bases do processo de
XVIII, a burguesia comercial, formada basicamente por acumulação necessário para a expansão da indústria na
comerciantes e banqueiros, tornou-se uma classe com Europa.
muito poder, na maior parte das vezes, por causa das Todas essas mudanças, somadas à herança
ligações econômicas que mantinha com os monarcas. cultural e intelectual do século XVII, definiram o século
Essa classe, além de sustentar o comércio entre os países XVIII como um período explosivo. Se no século anterior
europeus, estendia seus tentáculos a todos os pontos do a Revolução Inglesa determinou novas formas de
globo, comprando e vendendo mercadorias, tornando o organização política, foi no XVIII que a Revolução
mundo cada dia mais europeizado. Americana e a Revolução Francesa alteraram o quadro
O capital mercantil se estendia também a outro
ramo de atividade: gradativamente se organizava a
produção manufatureira. A compra de matérias-primas e
a organização da produção por meio do trabalho
domiciliar ou do trabalho em oficinas levavam ao
desenvolvimento de um novo processo produtivo em
contraposição ao processo artesanal e das corporações de
ofício.
Ao se desenvolver a manufatura, os
organizadores da produção passaram a se interessar cada
vez mais pelo aperfeiçoamento das técnicas de produção,
visando produzir mais com menos gente, aumentando
significativamente os lucros. Para tanto, procuraram
investir nos “inventos”, isto é, financiar a criação de
máquinas que pudessem ter aplicação no processo
produtivo.

263
2
político e social do Ocidente, servindo de exemplo e 08) Os conflitos entre capital e trabalho, potencializados
parâmetro para as revoluções posteriores. pela concentração dos operários nas fábricas, foram tema
As transformações na esfera da produção, a de pesquisa dos precursores da sociologia e continuam
emergência de novas formas de organização política e a inspirando debates científicos relevantes na atualidade.
exigência da representação popular deram características 16) A necessidade de controle da força de trabalho fez
muito específicas a esse século. Pensadores como com que as fábricas e indústrias do século XIX inserissem
Montesquieu (1689-1755), David Hume (1711-1776), sociólogos em seus quadros profissionais, para atuarem
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Adam Smith (1723- no desenvolvimento de modelos de gestão mais eficientes
1790) e Immanuel Kant (1724-1804), entre outros, e produtivos.
refletiram sobre a realidade, na tentativa de explicá-la.
No século XIX, outras transformações 2. (UFU 2009) Sobre o surgimento da Sociologia e suas
ocorreram, como a emergência de novas fontes proposições acerca da explicação do mundo social, pode-
energéticas (eletricidade e petróleo) e de novos ramos se afirmar:
industriais (indústria pesada, ferrovias), além da alteração A) a Sociologia é uma manifestação do pensamento
profunda nos processos produtivos, com a introdução de moderno e uma forma de conhecimento do mundo
novas máquinas e equipamentos. No início desse século, social, cujas explicações são fundadas nas descobertas das
depois de 300 anos de exploração colonialista por parte ciências naturais e físicas, por pressupor uma unidade
das nações europeias, iniciou-se, principalmente na entre sociedade e natureza e rejeitar o uso de leis gerais
América Latina, um processo intenso de luta pela no conhecimento.
independência. Foi um reflexo do que ocorreu na França B) os pensadores fundadores da Sociologia concentraram
e nos Estados Unidos. seus esforços em interesses políticos e, portanto, práticos,
É no século XIX, já com a consolidação do face aos objetivos de contribuir para as transformações
sistema capitalista na Europa, que se encontra a herança sociais e para a consolidação de uma nova ordem social
intelectual mais próxima da Sociologia como ciência diversa das sociedades feudal e capitalista.
particular. O pensamento de Adam Smith, Saint-Simon C) a desagregação da sociedade feudal e a consolidação
(1760-1825), Georg Wilheim Friedrich Hegel (1770- da sociedade capitalista, com o consequente processo de
1830), David Ricardo (1772-1823) e Charles Darwin industrialização e urbanização em países da Europa,
(1809-1882), entre outros, foi a fonte para Aléxis de contribuíram para o surgimento da Sociologia como
Tocqueville (1805-1859), Auguste Comte (1798-1857), forma de conhecimento das sociedades em extinção.
Karl Marx (1818-1883) e Herbert Spencer (1820-1903) D) a Sociologia surgiu no século XIX, vinculada à
desenvolverem suas reflexões sobre a sociedade de seu sociedade moderna, no contexto das transformações
tempo. econômicas e sociais e no bojo das mudanças nas formas
de pensamento, influenciadas pelas revoluções burguesas
QUESTÕES do século, bem como pelos ideais iluministas.

1. (UEM 2011) Sobre a relação entre a revolução 3. (UEM 2010) “(...) Por um lado, a Sociologia nasceu na
industrial e o surgimento da sociologia como ciência, sociedade industrial; apareceu e adquiriu importância
assinale o que for correto. como conseqüência da industrialização. Mas, por outro
01) A consolidação do modelo econômico baseado na lado, a ‘sociedade industrial’ é a filha mimada da
indústria conduziu a uma grande concentração da Sociologia, seu próprio conceito pode ser considerado
população no ambiente urbano, o qual acabou se um produto da moderna ciência social.”
constituindo em laboratório para o trabalho de DAHRENDORF, Ralph. Sociologia e sociedade industrial. In:
intelectuais interessados no estudo dos problemas que FORACCHI, Marialice Mencarini; MARTINS, José de Souza.
Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos,
essa nova realidade social gerava. 1977, p.118-119.
02) A migração de grandes contingentes populacionais do Considerando o fragmento de texto acima, a constituição
campo para as cidades gerou uma série de problemas da perspectiva sociológica e a análise da sociedade
modernos, que passaram a demandar investigações capitalista, assinale o que for correto.
visando à sua resolução ou minimização. 01) A Sociologia tem por objetivo solucionar os
04) Os primeiros intelectuais interessados no estudo dos problemas sociais resultantes da constituição da
fenômenos provocados pela revolução industrial sociedade industrial, capitalista e moderna.
compartilhavam uma perspectiva positiva sobre os 02) A Sociologia gerou mecanismos de compreensão da
efeitos do desenvolvimento econômico baseado no sociedade industrial que possibilitaram investigar as
modelo capitalista. mudanças de posição social dos indivíduos.
264
3
04) O advento da sociedade industrial explicita o caráter 01) A Revolução Científica, iniciada no século XVI, ao
mutável e histórico das relações sociais, que é enfatizado propor a substituição da razão teológica pelo
pela moderna ciência social da época. conhecimento derivado de evidências empiricamente
08) A consolidação da sociedade industrial independe do observáveis, contribuiu para que a organização social
desenvolvimento científico e da afirmação da ciência deixasse de ser entendida como um dado natural ou
como ferramenta de interpretação do mundo. desígnio divino e passasse a ser objeto de
16) No século XVIII, identificamos um processo de questionamentos.
transformação social que foi propício ao surgimento da 02) A Sociologia surge no contexto das Revoluções
Sociologia como disciplina científica. Por seu turno, a Democráticas do século XVIII como um instrumento de
Sociologia, ao interpretar essa época, terminou por criá- recomposição da ordem monárquica abalada pela crítica
la. à legitimidade teológica das lideranças políticas.
04) A Revolução Industrial acarretou uma série de
4. (UNICENTRO 2011) Uma série de mudanças problemas sociais, sendo a maioria decorrente da
políticas e econômicas ocorreu na Europa, a partir do fim significativa concentração da população nas cidades ao
da Idade Média. O quadro “A liberdade guiando o povo” redor das nascentes indústrias. A necessidade de
(1830), de Eugène Delacroix, alude a um dos mais compreensão dessa nova experiência urbana impulsionou
importantes acontecimentos decorrentes desse período decisivamente o surgimento da Sociologia.
na história europeia, a Revolução Francesa. 08) A Reforma Protestante, com a crítica ao dogma
católico e a defesa da razão técnica, favoreceu a
proposição de uma ciência objetiva da sociedade.
16) As Revoluções Democráticas do século XVIII, ao
questionarem as monarquias baseadas em princípios
teocráticos, atribuíram aos homens a tarefa de construir
sua própria ordem social, segundo seus anseios e
necessidades. Com isso, favoreceram o surgimento de
uma ciência da sociedade que teria a função de apontar
caminhos para a resolução dos problemas sociais.

6. (UNICENTRO 2015) Com base nos conhecimentos


sobre o surgimento da sociologia, assinale a alternativa
correta.
a) Adere à tradição do conhecimento teológico e
Sobre a ligação entre as mudanças referidas no texto e o metafísico para compreender a sociedade industrial.
surgimento da Sociologia, é correto afirmar: b) Explica as origens da vida com vistas ao retorno do
A) O desenvolvimento da indústria se opunha à formação estado de natureza como fator do desenvolvimento.
do processo de instalação da sociedade moderna. c) Organiza seu conhecimento a partir das explicações
B) A credibilidade da vida social, nas cidades, passa a ser subjetivistas e individualistas.
buscada na coerência dos textos sagrados e na adoração d) Responde aos efeitos, às crises e às contradições
religiosa. provocadas pela emergência da sociedade capitalista.
C) A vida religiosa foi adquirindo cada vez mais e) Resiste aos princípios das correntes de pensamento
importância, o que fez com que a história do cotidiano positivistas e iluministas sobre o progresso.
fosse concebida por um olhar sagrado.
D) A arte renascentista, ao apresentar a forte ligação entre
Deus e os homens, expressou as transformações sociais
de forma contundente.
E) O desenvolvimento tecnológico e a nova postura do
homem ocidental decorrentes das transformações desse
período histórico propiciaram o interesse pelo
entendimento da vida social.

5. (UEM 2011) Sobre os fatores relacionados ao


surgimento da Sociologia, assinale a(s) alternativa(s)
correta(s).
265
4
1. POSITIVISMO símbolo na Torre Eiffel de Paris e na abertura do canal
de Suez.
O positivismo representa um movimento Substancial estabilidade política, o processo de
composto de pensamento que dominou grande parte da industrialização e o desenvolvimento da ciência e da
cultura européia, em suas manifestações filosóficas, tecnologia constituem os pilares do meio sociocultural
políticas, pedagógicas, historiográficas e literárias, de que o positivismo interpreta, exalta e favorece.
cerca de 1840 até quase 1914.
Passado o furacão de 1848, excetuando-se o
conflito da Crimeia em 1854 e a guerra franco-prussiana
de 1870, a era do positivismo foi época de paz substancial
na Europa e, ao mesmo tempo, época da expansão
colonial européia na África e na Ásia.
Dentro desse quadro político, a Europa
consumou sua transformação industrial, e os efeitos dessa
revolução sobre a vida social foram maciços:
1 - o emprego das descobertas científicas
transformou todo o modo de produção;
2 - as grandes cidades se multiplicaram;
3 - cresceu de forma impressionante a rede de É bem verdade que os grandes males da
intercâmbios; sociedade industrial não tardarão a se fazer sentir
4 - rompeu-se o antigo equilíbrio entre a cidade e (desequilíbrios sociais, lutas pela conquista de mercados,
o campo; condição de miséria do proletariado, exploração do
5 - aumentaram a produção e a riqueza; a trabalho do menor etc.).
medicina debelou as doenças infecciosas, antigo e Esses males serão diagnosticados pelo marxismo
angustiante flagelo da humanidade. em direção diferente da interpretação do positivismo que,
Em poucas palavras, a Revolução Industrial embora não ignorando de modo nenhum tais males,
mudou radicalmente o modo de vida. E os entusiasmos pensava que eles logo desapareceriam, como fenômenos
se cristalizaram em torno da ideia de progresso humano e transitórios elimináveis pelo crescimento do saber, da
social irrefreável, já que, de agora em diante, possuíam-se educação popular e da riqueza.
os instrumentos para a solução de todos os problemas.
Para o pensamento da época, esses instrumentos Pontos centrais do positivismo
eram sobretudo a ciência e suas aplicações na indústria,
bem como no livre intercâmbio e na educação. Os representantes mais significativos do
Além disso, no que se refere à ciência, deve-se positivismo são Auguste Comte (1798-1857), na França;
dizer que, no período que vai de 1830 a 1890, John Stuart Mill (1806-1873) e Herbert Spencer (1820-
frequentemente se entrelaçando com o desenvolvimento 1903), na Inglaterra.
da indústria (num entrelaçamento que não foi unilateral), O positivismo, portanto, situa-se em tradições
a ciência registrou muitos passos adiante em seus setores culturais diferentes: na França, inseriu-se no
mais importantes: na matemática, entre outros, temos as racionalismo, que vai de Descartes ao Iluminismo; na
contribuições de Cauchy, Weierstrass, Dedekind e Inglaterra, ele se desenvolveu inserindo-se na tradição
Cantor; na geometria, as de Riemann, Bolyai, empirista e utilitarista, entrelaçando-se, em seguida, com
Lobacewskij e Klein; a física apresenta os resultados das a teoria darwiniana da evolução.
pesquisas de Faraday sobre a eletricidade, e de Maxwell e Apesar de tais diversificações, o positivismo
Hertz sobre o eletromagnetismo; ainda na física, temos apresenta traços comuns que nos permitem sua
os trabalhos fundamentais de Mayer, Helmholtz, Joule, identificação como movimento de pensamento.
Clausius e Thomson sobre a termodinâmica; o saber 1) Diversamente do idealismo, o positivismo
químico é desenvolvido por Berzelius, Mendelejev e von reivindica o primado da ciência: nós conhecemos
Liebig, entre outros; Koch, Pasteur e seus discípulos somente aquilo que as ciências nos dão a conhecer, pois
desenvolvem a microbiologia, obtendo feitos o único método de conhecimento é o das ciências
estrondosos; Bernard constrói a fisiologia e a medicina naturais.
experimental.
Além disso, é a época da teoria evolucionista de 2) O método das ciências naturais (identificação
Darwin. E os projetos tecnológicos encontram seu das leis causais e seu domínio sobre os fatos não vale
266
5
somente para o estudo da natureza, mas também para o 10) A confiança na ciência e na racionalidade
estudo da sociedade. humana, em suma, os traços iluministas do positivismo
3) Por isso, entendida como ciência dos “fatos induziram alguns marxistas a considerarem insuficiente e
naturais’ que são as relações humanas e sociais, a até reducionista a usual interpretação marxista, que só vê
sociologia é fruto qualificado do programa filosófico no positivismo a ideologia da burguesia da segunda
positivista. metade do século XIX.
4) O positivismo não apenas afirma a unidade do
método cientifico e o primado desse método como
instrumento cognoscitivo, mas também exalta a ciência
como o único meio em condições de resolver, ao longo QUESTÕES
do tempo, todos os problemas humanos e sociais que até
então haviam atormentado a humanidade. 1. (UEM 2011) Sobre o positivismo, corrente teórica
5) Consequentemente, a era do positivismo é uma pioneira na sistematização do pensamento sociológico,
época perpassada por otimismo geral, que brota da assinale o que for correto.
certeza de progresso irrefreável (por vezes concebido 01) Apesar de reconhecer as diferenças entre fenômenos
como fruto da engenhosidade e do trabalho humano e, do mundo físico e do mundo social, o positivismo busca
por vezes, ao contrário, visto como necessário e no método das ciências da natureza a orientação básica
automático) rumo a condições de bem-estar generalizado para legitimar a sociologia.
em uma sociedade pacifica e penetrada pela solidariedade 02) O positivismo enfatiza a coesão e a harmonia entre
humana. os indivíduos como solução de conflitos, para alcançar o
6) O fato de que a ciência seja proposta pelos progresso social.
positivistas como o único fundamento sólido da vida dos 04) O positivismo endereça uma contundente crítica à
indivíduos e da vida associada, deveria ser considerada sociedade europeia do século XIX, sobretudo em razão
como a garantia absoluta do destino progressista da das desigualdades sociais oriundas da consolidação do
humanidade, e de o positivismo se pronunciar pela capitalismo.
“divindade” do fato, induziu alguns estudiosos a 08) O positivismo utiliza recorrentemente a metáfora
interpretarem o positivismo como parte integrante da organicista para se referir à sociedade como um todo
mentalidade romântica. Somente que, no caso do constituído de partes integradas e coesas, funcionando
positivismo, seria exatamente a ciência a ser infinitizada. harmonicamente, segundo uma lógica física ou mecânica.
Assim, por exemplo, o positivismo de Comte, contém 16) O positivismo defende uma concepção evolucionista
uma construção oniabrangente de filosofia da história, da história social, segundo a qual o estágio mais avançado
que se consuma em visão messiânica. seria dominado pela razão técnico-científica.
7) Essa interpretação, porém, não impediu que
intérpretes vissem no positivismo temas fundamentais 2. Sobre o positivismo, como uma das formas de
tomados da tradição iluminista, como a tendência de pensamento social, podemos afirmar que
considerar os fatos empíricos como a única base do I. é a primeira corrente teórica do pensamento
verdadeiro conhecimento, a fé na racionalidade científica sociológico preocupada em definir o objeto, estabelecer
como solução dos problemas da humanidade, ou ainda a conceitos e definir uma metodologia.
concepção leiga da cultura, entendida como construção II. derivou‐se da crença no poder absoluto e exclusivo da
puramente humana, sem dependências em relação a razão humana em conhecer a realidade e traduzi‐la sob a
pressupostos e teorias teológicas. forma de leis naturais.
8) Sempre em linha geral, o positivismo (neste III. foi um pensamento predominante na Alemanha, no
caso, John Stuart Mill é exceção) caracteriza-se pela século XIX, nascido principalmente de correntes
confiança acrítica e, amiúde, leviana e superficial, na filosóficas da Ilustração.
estabilidade e no crescimento sem obstáculos da ciência. IV. nele, a sociedade foi concebida como um organismo
Essa confiança acrítica na ciência chegou a se tornar constituído de partes integradas e coisas que funcionam
fenômeno de costume. harmoniosamente, segundo um modelo físico ou
9) A “positividade” da ciência leva a mentalidade mecânico.
positivista a combater as concepções idealistas e a) II, III e IV estão corretas.
espiritualistas da realidade, concepções que os positivistas b) I, II e III estão corretas.
rotulavam como metafisicas, embora mais tarde tenham c) I, II e IV estão corretas.
caído em metafisicas igualmente dogmáticas. d) I e III estão corretas.
e) Todas as afirmativas estão corretas.
267
6
3. (UNICENTRO 2012) Sobre o positivismo, é correto leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão
afirmar que é uma doutrina e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a
A) do século II a.C. seus termos reais, se resume de agora em diante na ligação
B) que acolhe os postulados socráticos. estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e
C) que privilegia o estudo metafísico da natureza. alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência
D) que não decorreu do desenvolvimento das ciências tende cada vez mais a diminuir.”
modernas. (COMTE, Augusto. Curso de Filosofia Positiva. Coleção Os
E) nascida no ambiente cientificista nos finais do século Pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 2223).
XVIII e início do século XIX. A partir do trecho citado, assinale o que for correto.
01) Para o positivismo, é uma impossibilidade conhecer
4. (UEM 2012) “Ao criticar o mito e exaltar a ciência, noções absolutas, a origem e o destino do universo, bem
contraditoriamente o positivismo fez nascer o mito do como as causas mais íntimas dos fenômenos.
cientificismo, ou seja, a crença cega na ciência como única 02) O positivismo postula uma atitude de investigação
forma de saber possível. Desse modo, o positivismo baseada nas experiências individuais para formular
mostra-se reducionista, já que, bem sabemos, a ciência noções absolutas.
não é a única interpretação válida do real. De fato, 04) Para o positivismo, o conhecimento humano perfaz
existem outros modos de compreensão, como o senso um movimento de progressos e de avanços ao longo da
comum, a filosofia, a arte, a religião, e nenhuma delas história.
exclui o fato de o mito estar na raiz da inteligibilidade. A 08) Segundo o positivismo, o progresso da ciência
função fabuladora persiste não só nos contos populares, diminui o conhecimento possível dos fenômenos.
no folclore, mas também na vida diária, quando 16) Para o positivismo, a utilização adequada do
proferimos certas palavras ricas de ressonâncias míticas – raciocínio e da observação dos fenômenos permite
casa, lar, amor, pai, mãe, paz, liberdade, morte – cuja conhecer as semelhanças e as relações causais entre eles
definição objetiva não esgota os significados que (os fenômenos).
ultrapassam os limites da própria subjetividade.”
(ARANHA, M. L.; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à
filosofia. 4ª. ed. rev. São Paulo: Moderna, 2009, p. 32) 2. SAINT-SIMON
A partir do trecho citado, assinale o que for correto. Claude Henri de
01) Ao contrário da ciência, o senso comum, a religião e Saint-Simon (1760-1825) é
a filosofia refletem uma imagem incompleta e precária do um pensador que conseguiu
real. focalizar sobre si a atenção
02) O mito do cientificismo é a aplicação do rigor formal de muitos estudiosos
do método científico à dança, à música e a diversas outras contemporâneos e também
formas de expressão popular. dos pósteros pelo fato de,
04) O positivismo utiliza o inconsciente e o mito como antes de qualquer outro, ter
forma de expressão do mundo. sido o primeiro a perceber a
08) Explicações de caráter mítico, apesar de pertencerem transformação da sociedade
ao período antigo, sobrevivem na modernidade. em sociedade industrial, identificando alguns daqueles
16) A função fabuladora recupera aspectos do mito que grandes problemas sobre os quais debruçar-se-iam não
se distinguem da razão e do método científico. somente os positivistas, mas principalmente Marx e seus
seguidores.
5. (UEM 2014) “Para explicar convenientemente a O primeiro escrito de Saint-Simon, de 1802, são
verdadeira natureza e o caráter próprio da filosofia as Cartas de um habitante de Genebra a seus contemporâneos; em
positiva, é indispensável ter, de início, uma visão geral 1814, em colaboração com Augustin Thierry, publicou a
sobre a marcha progressiva do espírito humano, Reorganização da sociedade européia; sua obra mais
considerado em seu conjunto, pois uma concepção importante, A indústria, é de 1817; 0 novo cristianismo é de
qualquer só pode ser bem conhecida por sua história. [...] 1825. Auguste Comte foi seu secretário e colaborador de
Enfim, no estado positivo, o espírito humano, 1818 a 1824, ano em que houve o rompimento entre os
reconhecendo a impossibilidade de obter noções dois.
absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do A ideia de fundo de Saint-Simon (ideia destinada
universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, a maiores e diversos desdobramentos) é a de que a
para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao história é regida por lei de progresso. Mas tal progresso não
uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas
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7
é linear, enquanto a história humana é alternância de três mil mais capazes cientistas, artistas e artesãos, ela
períodos orgânicos e períodos críticos. cairia logo em estado de inferioridade diante das nações
As épocas orgânicas baseiam-se em um conjunto de que agora é rival, e continuaria permanecendo
de princípios bem sólidos, crescendo e operando em seu subalterna em relação a elas enquanto não reparasse a
interior. Mas ocorre que, em dado momento, o perda e não reerguesse a cabeça.
desenvolvimento da sociedade (nas ideias, nos valores, na Assim, o princípio ordenador da nova sociedade
técnica etc.) invalida os princípios sobre os quais ela antes é o pensamento positivo: esse princípio eliminara os três
se baseava. Temos então o que Saint-Simon chama de principais inconvenientes do sistema político vigente, isto
“épocas críticas”. Assim como o monoteísmo punha em é, o arbítrio, a incapacidade e a intriga.
crise a época orgânica do politeísmo, a Reforma e depois O progresso em direção à nova época orgânica,
a Revolução Francesa, e especialmente o dominada pela filosofia positiva, é progresso inevitável.
desenvolvimento da ciência, puseram em crise a época Em seu último escrito, o Novo cristianismo, Saint-Simon
orgânica da Idade Média. delineia o advento da futura sociedade como retorno ao
cristianismo primitivo. Será sociedade na qual a ciência
A era da filosofia positiva constituirá o meio para alcançar aquela fraternidade
universal que Deus deu aos homens como regra de sua
Não se trata, no entanto, de andar para trás. O conduta.
que é necessário é ir adiante, em direção a uma nova
época orgânica, ordenada pelo princípio da ciência positiva. A difusão do pensamento de Saint-Simon
Segundo Saint-Simon, o progresso cientifico teria
assim destruído aquelas doutrinas teológicas e aquelas Na França, a doutrina de Saint-Simon teve
ideias metafisicas que serviam de fundamento para a razoável difusão. Ela deu dignidade filosófica ao
época orgânica da Idade Média. problema social; contribuiu para tornar mais viva a
Agora, o mundo dos homens só poderia ser consciência da importância social da ciência e da técnica;
reorganizado e ordenado com base na ciência positiva. exaltou a atividade industrial e bancária; a ideia dos canais
Nessa nova época orgânica, o poder espiritual será dos de Suez e do Panamá é dos seguidores de seus ideais.
homens de ciência, “que podem predizer o maior número Saint-Simon e seus discípulos desenvolveram
de coisas”, ao passo que o poder temporal pertencerá aos firme campanha contra o parasitismo e a injustiça; e, para
industriais, vale dizer, “aos empreendedores de trabalhos favorecer a justiça, insistiram na ideia de eliminar a
pacíficos, que ocuparão o maior número de indivíduos”. propriedade privada, revogar o direito de herança (de
Tudo isso para dizer que a afirmação do modo a abolir “o acaso do nascimento”), planejar a
industrialismo torna impossível o poder teocrático feudal economia, tanto agrária como industrial.
da Idade Média, onde a hierarquia eclesiástica detinha o Para Saint-Simon, o critério supremo que deveria
poder espiritual, e o poder temporal estava nas mãos dos informar a ação do Estado devia ser o seguinte: de cada
guerreiros. qual segundo sua capacidade, a cada qual segundo suas
Na era nova, os eclesiásticos são substituídos obras. A primeira norma deveria ser a da produção, a
pelos cientistas, e os guerreiros pelos industriais. Com segunda a regra da distribuição.
efeito, a ciência e a tecnologia estão hoje em condições de
resolver os problemas humanos e sociais. 3. AUGUSTO COMTE
Escreve Saint-Simon que os homens só podem
ser felizes “satisfazendo suas necessidades físicas e suas Augusto Comte
necessidades morais”. (1798-1857) foi o
E esse é exatamente o fim ao qual tendem “as fundador do positivismo
ciências, as belas-artes e os ofícios”. Fora disso só existem francês. Nasceu em
“Os parasitas e os dominadores”. Montpellier de família
Para ilustrar a necessidade de que o poder político modesta, católica e
passasse para as mãos dos técnicos, cientistas e monárquica, foi discípulo
produtores, Saint-Simon apresentou uma conhecida e secretário (e, depois,
parábola: se a França perdesse os três mil indivíduos que decidido antagonista) de
exercem os cargos políticos, religiosos e administrativos Saint-Simon, aluno da famosa Ecole Polytechnique. Teve
mais importantes, o Estado não sofreria nenhum suficiente familiaridade com a matemática. Foi leitor dos
prejuízo, e tais pessoas seriam facilmente substituídas; empiristas ingleses, de Diderot, d'Alembert, Turgot e
mas, observa Saint-Simon, se a França perdesse os seus Condorcet.
269
8
Foi o pai oficial da sociologia e, em certos observação, suas leis efetivas, isto é, suas relações
aspectos, o expoente mais representativo da orientação invariáveis de sucessão e de semelhança”.
do pensamento positivista em seu conjunto. Esse estágio é aquele em que o espírito renuncia
Em seu itinerário intelectual e moral Comte a procurar os fins últimos e a responder aos últimos “por
escreve: “Ainda aos 14 anos eu já sentia a necessidade quês”. A noção de causa (transposição abusiva de nossa
fundamental de uma reestruturação universal, política e experiência interior do querer para a natureza) é por ele
filosófica ao mesmo tempo, sob o impulso de salutar crise substituída pela noção de lei. Temos que nos contentar
revolucionária, cuja fase principal precedera meu em descrever como os fatos se passam, em descobrir as
nascimento. A influência luminosa de uma iniciação leis (exprimíveis em linguagem matemática) segundo as
matemática recebida na família, desenvolvida felizmente quais os fenômenos se encadeiam uns nos outros.
na Ecole Polytechnique, fez-me instintivamente Tal concepção do saber desemboca diretamente
pressentir a única via intelectual que podia realmente na técnica: o conhecimento das leis positivas da natureza
conduzir a essa grande renovação”. E acrescenta que em nos permite, com efeito, quando um fenômeno é dado,
1822 ele via claro seu projeto filosófico “sob a inspiração prever o fenômeno que se seguirá e, eventualmente
constante de minha grande lei relativa ao conjunto da agindo sobre o primeiro, transformar o segundo. O lema
evolução humana, individual e coletiva”: a lei dos três era “conhecer para prever, prever para prover”.
estágios. É essa, portanto, a lei dos três estágios, o
Trata-se da lei segundo a qual a humanidade, conceito-chave da filosofia de Comte. Lei que encontraria
conforme a psique de cada homem, passa por três confirmação tanto no desenvolvimento da vida dos
estágios: indivíduos (todo homem é teólogo na sua infância, é
a) o teológico; metafísico em sua juventude e é físico em sua
b) o metafísico; maturidade), como na história humana.
c) o positivo. Até sem conhecer Vico nem Hegel, Comte
Escreveu Comte no Curso de filosofia positivista constrói com sua lei dos três estágios uma grandiosa
(1830-1842): “Estudando o desenvolvimento da filosofia da história, que se apresenta como o esquema de
inteligência humana [...] desde sua primeira manifestação toda a evolução da humanidade.
até hoje, creio ter descoberto uma grande lei fundamental A doutrina da ciência
[...]. Esta lei consiste no seguinte: cada uma de nossas
concepções principais e cada ramo de nossos Agora, portanto, estamos no estágio positivo. Os
conhecimentos passam necessariamente por três estágios métodos teológicos e metafísicos não são mais
teóricos diferentes: o estágio teológico ou fictício, o empregados por ninguém, exceto no campo dos
estágio metafísico ou abstrato e o estágio científico ou fenômenos sociais, observa amargamente Comte no
positivo [...]. Daí três tipos de filosofia ou de sistemas Curso de filosofia positiva, “embora sua insuficiência a esse
conceituais gerais sobre o conjunto dos fenômenos, que respeito já seja plenamente sentida por todos os espíritos
se excluem reciprocamente. O primeiro é um ponto de um pouco evoluídos”.
partida necessário da inteligência humana; o terceiro é seu Eis, portanto, salienta Comte, “a grande e única
estado fixo e definitivo; o segundo destina-se unicamente lacuna que se trata de preencher para construir a filosofia
a servir como etapa de transição”. positiva”. A filosofia positiva, portanto, deve submeter a
a) No estágio teológico, os fenômenos são sociedade a rigorosa pesquisa cientifica, já que somente
vistos como “produtos da ação direta e continua de uma sociologia cientifica pode “ser considerada como a
agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos”; única base solida para a reorganização social, que deve
b) no estágio metafísico, são explicados em encerrar o estado de crise em que se encontram há longo
função de essências, ideias ou forças abstratas (os corpos tempo as nações mais civilizadas”.
se uniriam graças à “simpatia”; as plantas cresceriam em Não se podem resolver crises sociais e políticas
virtude da presença da “alma vegetativa”; o ópio, senão devido ao conhecimento dos fatos sociais e
adormece porque possui a “virtude soporífera”); políticos. E é por essa razão que Comte vê como tarefa
c) mas é somente no “estágio positivo que o extremamente urgente a do desenvolvimento da física
espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de social, vale dizer, da sociologia científica.
obter conhecimentos absolutos, renuncia a perguntar Desse modo, a nova ciência espelhava-se na
qual é sua origem, qual o destino do universo e quais as metodologia de investigação das ciências da natureza, até
causas intimas dos fenômenos para procurar somente mesmo porque, segundo Comte, as leis do
descobrir, com o uso bem combinado do raciocínio e da desenvolvimento da humanidade são como as leis
naturais e o cientista social deve investigar o homem em
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sociedade da mesma forma que o cientista natural sua imagem de ciência, quase a ponto de absolutizá-la:
investiga a natureza, com distanciamento e neutralidade. condena pesquisas especializadas, inclusive
Segundo Comte, as ciências, no decurso da experimentais, o uso excessivo do cálculo e qualquer
história, não se tornaram “positivas” na mesma data, mas pesquisa cientifica cuja utilidade não seja evidente. Por
numa certa ordem de sucessão que corresponde à célebre isso, em sua opinião, deve-se confiar a ciência não aos
classificação: matemáticas, astronomia, física, química, cientistas, mas aos “verdadeiros filósofos”, ou seja, a
biologia, sociologia. Das matemáticas à sociologia a todos os que estio “dignamente dedicados ao sacerdócio
ordem é a do mais simples ao mais complexo, do mais da humanidade”.
abstrato ao mais concreto e de uma proximidade O desenvolvimento posterior das ciências
crescente em relação ao homem. Assim, no topo da desmentiu essas ideias de Comte. Além disso, um
pirâmide das ciências estaria a sociologia, a qual foi conhecimento que hoje parece infértil pode se tornar
denominada por Auguste Comte como a “física social”. necessário amanhã. Entretanto, no sistema de Comte, um
Todo ser humano deveria ter conhecimento dessa saber estável e bloqueado está em função de uma ordem
disciplina tão importante para o desenvolvimento da social estável.
sociedade.
Mas, antes de mais nada, em que consiste a ciência A sociologia como física social
para Comte? Na opinião dele, o objetivo da ciência está
na pesquisa das leis, já que só o conhecimento das leis dos Para passar de uma sociedade em crise para a
fenômenos, cujo resultado constante é o de fazer com “ordem social”, há necessidade de saber.
que possamos prevê-los, evidentemente, pode nos levar, O conhecimento é feito de leis provadas com
na vida ativa, a modificá-los em nosso benefício. base nos fatos. Desse modo, é preciso encontrar as leis
A lei é necessária para prever, e a previsão é da sociedade se quisermos resolver suas crises e prever o
necessária para a ação do homem sobre a natureza. desenvolvimento futuro da convivência social. Portanto,
Afirma Comte: “Em suma, ciência, logo previsão; para a sociologia, através do raciocínio e da observação, é
previsão, logo ação: essa é a fórmula simples que expressa possível estabelecer as leis dos fenômenos sociais, como
de modo exato a relação geral entre a ciência e a arte, a física pode estabelecer as leis que guiam os fenômenos
tomando esses dois termos em sua acepção total”. físicos.
Na trilha de Bacon e Descartes, Comte pensa que Comte entendia a Física Social como “a ciência
a ciência é que deve fornecer ao homem o domínio sobre que tem por objeto próprio o estudo dos fenômenos
a natureza. E, no entanto, ele não é em absoluto de sociais, considerados com o mesmo espírito que os
opinião que a ciência, essencialmente e por sua natureza, fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos,
esteja voltada para os problemas práticos. isto é, como submetidos a leis naturais invariáveis, cuja
Comte é claro sobre a natureza teórica dos descoberta é o objetivo especial de suas pesquisas”.
conhecimentos científicos, que ele se apressa a distinguir
claramente dos conhecimentos técnico-práticos. Mas
Comte também não é empirista de tipo antigo, que cuida
somente dos dados de fato e exclui as teorias.
No Curso de filosofia positiva, podemos ler:
“Nós reconhecemos que a verdadeira ciência [...] consiste
essencialmente de leis e não mais de fatos, embora estes
sejam indispensáveis para o seu estabelecimento e sua
sanção”.
A pura erudição consiste em fatos sem lei; a
verdadeira ciência consiste em leis controladas com base Comte divide a sociologia, ou física social, em:
nos fatos. E esse controle com base nos fatos exclui da a) estática social;
ciência toda busca de essências e causas últimas b) dinâmica social.
metafisicas. a) A estética social estuda as condições de
Essas ideias de Comte sobre a doutrina da ciência existência comuns a todas as sociedades em todos os
influenciaram o pensamento posterior em virtude de sua tempos. Tais condições são a sociabilidade fundamental
clareza e validade. do homem, o núcleo familiar e a divisão do trabalho, que
De qualquer modo, porém, já em alguns trechos se concilia com “a cooperação dos esforços”.
do Curso de filosofia positiva e depois, sobretudo, no A lei fundamental da estática social é a conexão
Sistema de política positiva (1851-1854), Comte enrijece entre os diversos aspectos da vida social, de modo que,
271
10
por exemplo, uma constituição política não é No entanto, a realidade que nos circunda é
independente de fatores como o econômico e o cultural. complexa. Nesse caso, para estudar os fenômenos sociais
b) Por seu turno, a dinâmica social consiste no é necessário classificá-los, como assinalou René
estudo das leis de desenvolvimento da sociedade. Sua lei Descartes em sua obra Discurso do Método: “para
fundamental é a dos três estágios. Também o progresso compreender e resolver um problema é necessário, antes
social segue essa lei. Ao estágio teológico corresponde a de mais nada, dividi-lo em tantas parcelas quantas
supremacia do poder militar (é o caso do feudalismo); ao pudessem ser e fossem exigidas”.
estágio metafísico, corresponde a revolução (que começa
com a Reforma protestante e termina com a Revolução A classificação das ciências
Francesa); ao estágio positivo, corresponde a sociedade
industrial. A sociologia, cuja construção é tarefa urgente da
Mas através de que caminhos podemos conhecer filosofia política, coloca-se no vértice do ordenamento
as leis da sociedade? Na opinião de Comte, os caminhos das ciências. A partir de sua plataforma matemática, as
para alcançar o conhecimento sociológico são a ciências positivas são hierarquizadas segundo um grau
observação, o experimento e o método comparativo. decrescente de generalidade e crescente de complicação:
A observação dos fatos sociais é observação astronomia, física, química, biologia e sociologia.
direta e enquadrada na teoria, isto é, na teoria dos três Nesse esquema não estão abrangidas a teologia, a
estágios. Em sociologia o experimento não é tão simples metafisica e a moral, pois as duas primeiras não são
como em física ou em química, já que não se pode mudar ciências positivas, ao passo que a terceira é abrangida pela
as sociedades à vontade; entretanto, da mesma forma que sociologia.
em biologia, também na sociologia os casos patológicos, A psicologia, também excluída da relação, é
alterando o nexo normal dos acontecimentos, substituem reduzida por Comte em parte à biologia e em parte à
de certo modo o experimento. O método comparativo sociologia. Também a matemática não figura na relação,
estuda as analogias e as diferenças entre as diversas mas o primeiro volume do Curso de filosofia positiva é todo
sociedades, nos seus respectivos estágios de dedicado à matemática, que, de Descartes e Newton para
desenvolvimento. cá, é a verdadeira base fundamental de toda a filosofia
Segundo Comte, é o método histórico que natural, isto é, de todas as ciências, no sentido de que ela
constitui “a única base fundamental sobre a qual pode é a imensa e admirável extensão da lógica natural a certa
realmente se basear o sistema da lógica política". ordem de deduções.
Comte pretende que a ordem das ciências por ele
Objeto de estudo da Sociologia proposta seja simultaneamente ordem lógica, histórica e
pedagógica.
O objeto de Estudo da sociologia são os A ordem lógica é dada pelo critério da
problemas sociais. Ela surgiu da busca por soluções simplicidade do objeto: primeiro vêm as ciências, que, em
racionais, científicas, de acordo com a pretensão de sua opinião, tem objeto mais simples; depois, caminha-se
Augusto Comte, para os problemas sociais provocados pouco a pouco até a sociologia, que teria o objeto mais
pela Revolução Industrial e pela decomposição da ordem complexo.
social aristocrática na França do início do século XIX. A ordem histórica pode ser identificada na
O problema da falta de moradia urbana, por passagem de cada uma das ciências ao estado positivo: a
exemplo, pode ser considerado um problema social por astronomia saiu da metafisica com Copérnico, Kepler e
ter consequências sociais. Galileu; a física alcançou o estado positivo graças às obras
de Huygens, Pascal, Papin e Newton; a química saiu de
seu limbo metafisico com Lavoisier; a biologia, com
Bichat e Blainville.
Resta a sociologia, que, como ciência positiva,
ainda se encontra no estado programático. E Comte,
precisamente, esforçou-se por realizar esse programa. A
ordem pedagógica é dada pelo fato de que se deveria
ensinar as ciências na mesma ordem de sua gênese
histórica.
Na hierarquia de Comte, as ciências mais
complexas pressupõem as menos complexas: a sociologia
pressupõe a biologia, que pressupõe a física. Entretanto,
272
11
isso não significa que as ciências superiores sejam Ele queria que a Sociologia estudasse de forma
redutíveis às inferiores. Cada qual tem sua autonomia, aprofundada os movimentos das sociedades no passado
suas leis autônomas. E a sociologia, portanto, não pode para se entender o presente e, inclusive, para imaginar o
se reduzir à biologia nem a psicologia. A sociedade tem futuro da sociedade.
realidade natural e originária. Os homens vivem em Comte via a consolidação do sistema capitalista
sociedade porque isso integra sua natureza social. Os como sendo algo necessário ao desenvolvimento das
homens são sociáveis desde o início, não havendo sociedades. Esse novo sistema, bem como o abandono
necessidade de nenhum “contrato social” para associa- da teologia para explicação do mundo seriam parte do
los, como queria Rousseau. progresso das civilizações.
Ainda um ponto muito importante. A filosofia Já os problemas sociais ou desordens que surgiam
não é nomeada na classificação das ciências de Comte. eram considerados obstáculos que deveriam ser
Qual é, então, o lugar da filosofia no pensamento de resolvidos para que o curso do progresso pudesse
Comte? continuar. Portanto, a Sociologia se colocaria, na visão
Para Comte, a filosofia não é o conjunto de todas deste autor, como uma ciência para solucionar a crise das
as ciências. Ele vê a função da filosofia em “determinar sociedades daquela época, sem, no entanto, mudar sua
exatamente o espírito de cada uma delas, em descobrir estrutura básica.
suas relações e conexões e em resumir, se possível, todos Comte tem uma visão organicista e funcionalista
os seus princípios próprios em número mínimo de da sociedade, ou seja, ela é um grande organismo que para
princípios comuns, em conformidade com o método funcionar bem cada parte tem que cumprir bem o seu
positivo”. papel. Indivíduos, classes e instituições cumprem funções
A filosofia, portanto, se reduz a metodologia das essenciais para que o todo funcione com ordem e gere o
ciências; ela, escreve Comte, “é o único e verdadeiro meio progresso.
racional para evidenciar as leis lógicas do espirito De seu ponto de vista, o progresso deveria ser o
humano”. alvo a se atingir, mas sempre com ordem, para que não
ocorresse o caos novamente. Daí o seu lema “o amor por
Sociedade e capitalismo princípio, a ordem por base, o progresso por fim”. Mas
Comte não chegou a viabilizar a sua aplicação. Seu
Como positivista ele acreditava que a ciência trabalho apenas iniciou uma discussão que deveria ser
deveria ser utilizada para organizar a ordem social. Na continuada, a fim de que a Sociologia viesse a alcançar um
visão dele, naquela época, a sociedade estava em estágio de maturidade e aplicabilidade.
desordem, orientada pelo caos. No Brasil o positivismo teve uma influência tão
A obra de Comte está permeada pelos grande entre os militares que proclamaram a república
acontecimentos que marcaram a França pós- que eles estamparam um de seus lemas na nossa bandeira.
revolucionária. Para ele, essa desordem e anarquia
imperavam por causa da confusão de princípios
(teológicos e metafísicos) que não davam conta mais de
explicar a nova sociedade industrial em expansão.
Devemos considerar que Comte vislumbrava o
mundo moderno que surgia, isto é, um mundo cada vez
mais influenciado pela ciência e pela consolidação da
indústria, e a crise gerada por uma certa anarquia moral e
política quando da transição do sistema feudal (baseado
nas atividades agrárias, na hierarquia, no patriarcalismo)
para o sistema capitalista (baseado na indústria, no
comércio, na urbanização, na exploração do trabalhador). A religião da humanidade
Era essa positividade (instaurar a disciplina e a ordem)
que ele queria para a Sociologia. Na última grande obra de Comte, o Sistema de
Assim sendo, quando Comte pensava a política positiva (1851-1854), a intenção comtiana de
Sociologia, era como se fosse uma “criança” sendo regenerar a sociedade com base no conhecimento das leis
gestada, na qual colocava toda sua crença de que poderia sociais assume as formas de uma religião, na qual o amor
estudar e entender os problemas sociais que surgiam e a Deus é substituído pelo amor a humanidade. A
reestabelecer a ordem social e o progresso da civilização humanidade é o ser que transcende os indivíduos. Ela é
moderna.
273
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composta por todos os indivíduos vivos, pelos mortos e A humanidade é o “grande ser”; o espaço, o
pelos ainda não nascidos. Em seu interior, os indivíduos “grande ambiente”; e a terra, o “grande fetiche” - essa é a
se substituem como as células de um organismo. Os trindade da religião positiva.
indivíduos são o produto da humanidade, que deve ser
venerada como o eram outrora os deuses pagãos.
Fascinado pelo catolicismo, em virtude do seu QUESTÕES
universalismo e de sua capacidade de envolver em si toda
a vida humana, Comte sustenta que a religião da 1. Auguste Comte foi quem deu origem ao termo
humanidade deve ser a cópia exata do sistema Sociologia, pensada como uma física social, capaz de pôr
eclesiástico. fim à anarquia científica que vigorava, em sua opinião,
Os dogmas da nova fé já estão prontos: são a ainda no século XIX. A respeito das concepções
filosofia positiva e as leis cientificas. fundamentais do autor para o surgimento dessa nova
ciência, todas as alternativas abaixo são corretas, exceto:
a) O objetivo era conhecer as leis sociais para se antecipar,
racionalmente, aos fenômenos e, com isso, agir com
eficácia, na direção de se permitir uma organização
racional da sociedade.
b) As preocupações de natureza científica, presentes na
obra de Comte, não apresentavam relação prática com a
desorganização social, moral e de ideias do seu tempo.
c) Era necessário aperfeiçoar os métodos de investigação
das leis que regem os fenômenos sociais, no sentido de se
descobrir a ordem inscrita na história humana.
Igreja positivista do Brasil d) Entre ordem e progresso há uma necessidade
Os ritos, os sacramentos, o calendário e o simultânea, uma vez que a estabilidade (princípio estático)
sacerdócio são necessários para a difusão de novos e a atividade (princípio dinâmico) sociais são inseparáveis.
dogmas. Haverá um batismo secular, uma crisma secular
e uma unção dos enfermos secular. O anjo da guarda 2. A sociologia nasce no séc. XIX após as revoluções
positivo será a mulher (não devemos nos esquecer da burguesas sob o signo do positivismo elaborado por
idealização que Comte fez da mulher amada, Clotilde de Augusto Comte. As características do pensamento
Vaux). Os meses tomarão nomes significativos da religião comtiano são:
positiva (por exemplo, Prometeu), e os dias da semana a) a sociedade é regida por leis sociais tal como a natureza
serão consagrados cada um a uma das sete ciências. Serão é regida por leis naturais; as ciências humanas devem
construídos templos leigos (institutos científicos). Um utilizar os mesmos métodos das ciências naturais e a
papa positivo exercerá sua autoridade sobre as ciência deve ser neutra.
autoridades positivas que se ocuparão do b) a sociedade humana atravessa três estágios sucessivos
desenvolvimento das industrias e da utilização prática das de evolução: o metafísico, o empírico e o teológico, no
descobertas. Na sociedade positiva, os jovens serão qual predomina a religião positivista.
submetidos aos anciãos e o divórcio será proibido. A c) a sociologia como ciência da sociedade, ao contrário
mulher torna-se a protetora e a fonte da vida sentimental das ciências naturais, não pode ser neutra porque tanto o
da humanidade. sujeito quanto o objeto são sociais e estão envolvidos
reciprocamente.
d) o processo de evolução social ocorre por meio da
unidade entre ordem e progresso, o que necessariamente
levaria a uma sociedade comunista.

3. A filosofia da História – o primeiro tema da


filosofia de Augusto Comte – foi sistematizada pelo
próprio Comte na célebre “Lei dos Três Estados” e tinha
o objetivo de mostrar por que o pensamento positivista
deve imperar entre os homens. Sobre a “Lei dos Três
Estados” formulada por Comte, é correto afirmar que
a) Augusto Comte demonstra com essa lei que todas as
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13
ciências e o espírito humano desenvolvem‐se na seguinte A) Karl Marx.
ordem em três fases distintas ao longo da história: a B) Max Weber.
positiva, a teológica e a metafísica. C) Auguste Comte.
b) na “Lei dos Três Estados” a argumentação D) Émile Durkheim.
desempenha um papel de primeiro plano no E) Herbert Spencer.
estado teológico. O estado teológico, na sua visão,
corresponde a uma etapa posterior ao estado positivo. 6. (UEM 2014) Encontra-se no positivismo de Auguste
c) o estado teológico, segundo está formulada na “Lei Comte a “lei dos três estados”. Segundo este princípio
dos Três Estados”, não tem o poder de tornar a básico de classificação, o primeiro estado é o teológico
sociedade mais coesa e nenhum papel na fundamentação (quando os fenômenos da natureza são explicados a partir
da vida moral. de forças divinas e sobrenaturais); o segundo estado é o
d) o estado positivista apresenta-se na “Lei dos Três metafísico (quando os fenômenos da natureza são
Estados” como o momento em que a observação explicados a partir de teorias arbitrárias e especulativas) e
prevalece sobre a imaginação e a argumentação, e na o terceiro estado é o positivo (quando os fenômenos da
busca de leis imutáveis nos fenômenos observáveis. natureza são explicados a partir da observação empírica).
e) para Comte, o estado metafísico não tem contato com Sobre a lei dos três estados de Auguste Comte, assinale o
o estado teológico, pois somente o estado metafísico que for correto:
procura soluções absolutas 01) O estado metafísico representa a expectativa de
superação do estado teológico, pois o sobrenatural é
4. Augusto Comte (1798-1857) foi um pensador substituído pela razão teórica.
positivista que propôs uma nova ciência social, a 02) O estado positivo dispõe de leis causais, segundo as
Sociologia, que inicialmente foi chamada de Física Social. quais os fenômenos físicos são explicados a partir da
Sobre os princípios dessa ciência para esse autor, analise observação empírica.
as afirmativas e assinale as alternativas, marcando V 04) A lei dos três estados influenciou as “metamorfoses
para verdadeiro ou F para falso. de Zaratustra”. Nessa metaforização de Nietzsche, o
( ) No estágio positivo, a vida social será explicada pela camelo representa a infância da humanidade.
filosofia, triunfando sobre todas as outras formas de 08) Segundo a disposição dos três estados, a ciência
pensamento. moderna corresponde ao estado positivo.
( ) A imposição da disciplina era, para os positivistas, uma 16) Segundo a disposição dos três estados, a mitologia
função primordial da escola, pois ali os membros grega corresponde ao estado teológico.
de uma sociedade aprenderiam, desde pequenos, a
importância da obediência e da hierarquia. 7. (UEM 2013) “O espírito humano, por sua natureza,
( ) A maturidade do espírito seria encontrada na ciência; emprega sucessivamente [...] três métodos de filosofar:
por isso, na escola de inspiração positivista, os estudos [...] primeiro o método teológico, em seguida o método
literários e artísticos prevalecem sobre os científicos. metafísico, finalmente, o método positivo. [...] No estado
( ) Defendeu a necessidade de substituir a educação teológico, o espírito humano [...] apresenta os fenômenos
europeia, ainda essencialmente teológica, metafísica e como produzidos pela ação direta e contínua de agentes
literária, por uma educação positiva, conforme o espírito sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja
da civilização moderna. intervenção arbitrária explica todas as anomalias
A sequência correta é aparentes do Universo. No estado metafísico, [...] os
a) F,V,V.F. agentes sobrenaturais são substituídos por forças
b) F,V,F,V. abstratas, verdadeiras entidades (abstrações
c) V,F,F,F. personificadas) inerentes aos diversos seres de mundo, e
d) V,V,V,F. concebidas como capazes de engendrar por elas próprias
todos os fenômenos observados [...]. Enfim, no estado
5. (UNICENTRO 2011) Seu esquema sociológico era positivo, o espírito humano [...] renuncia a procurar a
tipicamente positivista, ele acreditava que toda a vida origem e o destino do Universo, a conhecer as causas
humana tinha atravessado as mesmas fases históricas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente
distintas e que, se a pessoa pudesse compreender esse em descobrir, graças ao uso bem combinado do
progresso, poderia prescrever os remédios para os raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, suas
problemas de ordem social. Era um grande defensor da relações invariáveis de sucessão e de similitude”
moderna sociedade capitalista. COMTE, A. Curso de filosofia positiva. In: CHALITA, G. Vivendo
a filosofia: ensino médio. 4.ª ed. São Paulo: Ática, 2011, p. 354-355.
Essa descrição está relacionada com o perfil de
275
14
Com base nas afirmações acima e nos conhecimentos O silogismo não aumenta o nosso conhecimento
sobre ciência e senso comum, assinale o que for correto.
01) O método positivo considera a comprovação pelo A lógica, diz Mill, é a ciência da prova, isto é, do
método científico o único caminho válido para se atingir modo correto de inferir proposições de outras
o conhecimento. proposições. Por isso, ele trata em primeiro lugar dos
02) A formulação do estado teológico baseia-se na nomes e das proposições, em que reside toda verdade e
explicação da realidade a partir de forças sobrenaturais, todo erro.
como deuses, anjos e demônios. Mas as argumentações são cadeias de
04) O estado metafísico personifica, por meio da proposições, que deveriam levar a conclusões verdadeiras
imaginação criadora, os mitos gregos. se as premissas forem verdadeiras. E o silogismo foi
08) Para o estado positivo, postulados metafísicos, tais considerado como tipo de argumentação válida.
como os que tratam de entidades como Deus, não podem Qual é, porém, o valor do silogismo?
ser objeto do conhecimento. Examinemos o seguinte silogismo: “Todos os homens
16) A sucessão dos estados é cíclica e permanente, razão são mortais; o duque de Wellington é homem; logo, o
pela qual o método filosófico retorna, depois do estado duque de Wellington é mortal”. Concluímos então que “o
positivo, ao seu princípio, renovando-se continuamente. duque de Wellington é mortal”, a partir da proposição de
que “todos os homens são mortais”. Todavia, como
sabemos que todos os homens são mortais? Sabemo-lo
4. O POSITIVISMO UTILITARISTA INGLÊS porque vimos a morte de Paulo, Francisco, Maria e tantos
4.1 JOHN STUART MILL outros, e porque outros nos contaram terem visto morrer
outras pessoas. Portanto, é da experiência que extraímos
John Stuart Mill (1806-1873) foi educado de a verdade da proposição “todos os homens são mortais”.
modo metódico e severo pelo pai (é impressionante todo E a experiência nos faz observar apenas casos
o trabalho que James fazia o filho realizar). individuais.
Crescido na Por isso, a tese fundamental de Mill é a de que
atmosfera cultural inglesa “toda inferência é de particular para particular”, ao passo
do liberalismo, amigo do que a única justificação do “isso será” é o “isso foi”. E a
economista francês Jean- proposição “geral” é o expediente para conservar na
Baptiste Say (que visitou na memória muitos fatos particulares. Para Mill, todos os
França), influenciado pelos nossos conhecimentos e todas as verdades são de
escritos de Saint-Simon e natureza empírica, até as proposições das ciências
seus seguidores, mais tarde dedutivas, como a geometria.
leitor e correspondente de Na opinião de Mill, o silogismo é estéril, pois não
Comte (cujas ideias aumenta nosso conhecimento: o fato de o duque de
autoritárias e despóticas Wellington ser mortal é uma verdade que já está incluída
refutaria), desde jovem, na premissa segundo a qual todos os homens são mortais.
quando leu Bentham pela Mas aqui as coisas se complicam, pois, se é
primeira vez, em 1821, acreditava possuir o que pode ser verdade que todo o nosso conhecimento é obtido por
chamado de “objetivo de vida”: “ser um reformador do observação e experiência, e se é verdade que a experiência
mundo”. e a observação sobre as quais devemos nos basear nos
E pelo resto de sua vida, Stuart Mill trabalhou oferecem sempre um número limitado de casos, como
com muita intensidade, dentro da tradição empirista, teremos então legitimidade para formular proposições
associacionista e utilitarista, construindo com muita gerais como “todos os homens são mortais”, ou as leis
intensidade um conjunto de teorias lógicas e ético- universais da ciência? Como, a partir do fato de que
políticas que marcaram a segunda metade do século XIX Pedro, José e Tomas morreram, dizemos que todos os
inglês e que até hoje constituem pontos de referência e homens são mortais?
etapas obrigatórias, tanto para o estudo da lógica da Esse, na realidade, é o difícil problema da
ciência como para a reflexão no campo ético e político. indução. Diz Mill: “A indução é o processo com o qual
De fato, se o ensaio Sobre a liberdade (1859) - concluímos que aquilo que é verdadeiro de certos
escrito em colaboração com sua mulher - é um clássico indivíduos de uma classe é verdadeiro para toda a classe,
da defesa dos direitos da pessoa, seu Sistema de lógica ou que aquilo que é verdadeiro em certos momentos será
raciocinativa e indutiva (1843) continua um clássico da verdadeiro em circunstâncias semelhantes em todo
logica indutiva. momento”.
276
15
Segundo Mill, a indução é generalização a partir qual “é uma lei que todo acontecimento dependa de
da experiência. Ela consiste em inferir, a partir de alguns alguma lei”, e “para cada acontecimento existe alguma
casos isolados em que se observa que o fenômeno se combinação de objetos ou acontecimentos [...] cuja
verifica, que ele se verifica também em todos os casos de ocorrência é sempre seguida daquele fenômeno”.
certa classe, ou seja, em todos os que se assemelham aos Estes são, portanto, de modo geral, alguns dos
anteriores naquelas que consideramos como traços de fundo da lógica indutiva de Mill.
circunstâncias essenciais.
As ciências morais
O princípio de indução
O livro VI do Sistema de lógica diz respeito à lógica
Para distinguir as circunstâncias essenciais das das ciências morais. Nele Mill reafirma a liberdade do querer
não essenciais, ou seja, tendo em vista escolher, entre as humano.
circunstâncias que precedem ou se seguem a um Se conhecêssemos uma pessoa profundamente e,
fenômeno, aquelas às quais realmente está ligado por lei portanto, conhecêssemos todos os moventes que nela
invariável, Mill propõe aqueles que ele chama de “Os agem, diz Mill, poderíamos predizer seus
quatro métodos da indução”: o método da concordância, comportamentos com a mesma certeza com que
o método da diferença, o método das variações prevemos qualquer comportamento físico.
concomitantes e o método dos resíduos. Todavia, tal necessidade filosófica não é fatalidade. A
Nesse caso, porém, a questão mais candente é a fatalidade é constrição misteriosa e impossível de mudar.
do fundamento das inferências indutivas ou indução: em A necessidade filosófica, ao contrário, não impede que,
suma, qual é a garantia para todas as nossas inferências a urna vez conhecida, possamos agir sobre a causa da
partir da experiência? própria ação, como agimos sobre as causas dos processos
Na opinião de Mill, essa garantia encontra-se no naturais.
princípio segundo o qual “o curso da natureza é Portanto, não há divergência entre liberdade do
uniforme”: esse é o princípio fundamental ou axioma indivíduo e ciências da natureza humana. E, entre as
geral da indução. E esse princípio foi formulado de ciências da natureza humana, Mill propõe em primeiro
diversos modos: o universo é governado por leis, o futuro lugar a psicologia, que “tem por objeto a uniformidade de
se assemelhara ao passado. sucessão [...], segundo a qual um estado mental sucede a
Mas a realidade é que “nós não inferimos do outro”.
passado para o futuro enquanto passado e futuro, e sim É a uma ciência particular “ainda por criar”, isto
do conhecido para o desconhecido, de fatos observados é, a etologia (de ethos = caráter), que Mill atribui a função
para fatos não observados, do que percebemos ou do que de estudar a formação do caráter, com base nas leis gerais
ficamos diretamente conscientes para o que não entrou da mente e da influência das circunstâncias sobre o
em nossa experiência. Nessa afirmação está toda a área caráter. E se a etologia é complexa, mais complexa ainda
do futuro, mas também a parte, de longe maior, do é a ciência social que estuda “o homem em sociedade, as
presente e do passado”. ações das massas coletivas de homens e dos vários
O princípio de indução (uniformidade da fenômenos que constituem a vida social”.
natureza ou princípio de causalidade), portanto, é o De 1861 é o Utilitarismo. A ideia central do
axioma geral das inferências indutivas, que é a premissa trabalho de Mill é a de Bentham: “Segundo o princípio da
maior última de toda indução. Mas qual é o valor desse máxima felicidade, o fim último em razão do qual todas
princípio? Será ele evidente a priori? as outras coisas são desejáveis é uma existência o tanto
Não, responde Mill: “A verdade é que essa grande quanto possível isenta de dores e o mais rica possível de
generalização também está baseada em generalizações prazeres”.
precedentes. As mais obscuras leis da natureza foram Até aí Mill está de acordo com Bentham. Mas,
descobertas por seu meio, mas as mais óbvias diferentemente de Bentham, afirma que se deve levar em
provavelmente foram entendidas e aceitas como verdades conta não somente a quantidade de prazer, mas também
gerais antes que delas sequer se ouvisse falar”. Em outras a qualidade: "É preferível ser um Sócrates doente do que
palavras, as mais óbvias generalizações descobertas no um porco satisfeito”. Para saber “qual de duas dores é a
início (o fogo queima, a agua molha etc.) sugerem o mais aguda ou qual de dois prazeres o mais intenso, é
princípio da uniformidade da natureza. Uma vez preciso confiar no juízo geral de todos os que têm prática
formulado, esse princípio foi proposto como de umas e de outros”. E, para Mill, também não se
fundamento das generalizações indutivas; estas, depois de delineia o contraste entre a maior felicidade do indivíduo
descobertas, atestam o princípio da uniformidade, pelo
277
16
e a felicidade do conjunto: é a própria vida social que nos sociedade e de seus membros contra todo prejuízo ou
educa, e radica em nós sentimentos desinteressados. dano.
Também são notáveis os ensaios publicados A liberdade civil implica:
postumamente Sobre a religião (1874). A ordem do mundo a) liberdade de pensamento, de religião e de
comprova uma inteligência ordenadora. Mas isso não nos expressão;
autoriza a dizer que Deus tenha criado a matéria, que ele b) liberdade de gostos e liberdade de projetar
seja onipotente ou onisciente. nossa vida segundo nosso caráter;
Como mais tarde em William James, em suma, c) liberdade de associação. A ideia de Mill,
Deus não é o Todo Absoluto; o homem é colaborador de portanto, é a da maior liberdade possível de cada um para
Deus ao pôr ordem no mundo e ao produzir harmonia e o bem-estar de todos.
justiça. No espírito do livro Sobre a liberdade, de 1859,
Para Mill, a fé é esperança que ultrapassa os Mill escreveu o ensaio Sobre a servidão das mulheres. Trata-
limites da experiência. Mas, pergunta-se ele, “por que não se de páginas de elevada sensibilidade moral e de grande
nos deixarmos guiar pela imaginação a uma esperança, agudeza na análise social. Ha séculos que a mulher é
ainda que jamais se possa produzir uma razão provável considerada inferior “por natureza”. Mas, recorda Mill, a
de sua realização”? “natureza feminina” é fato artificial, fato histórico. As
mulheres são relegadas à marginalidade em benefício
A defesa da liberdade do indivíduo exclusivo dos homens, tanto na família como, segundo o
que ocorria então na Inglaterra, nas fabricas, afirmando-
À liberdade individual é dedicado o ensaio Sobre a se, além disso, que elas não tem dotes que possam fazê-
liberdade (1859), fruto da colaboração do filósofo com sua las se destacar na ciência ou na arte.
mulher. Talvez ainda hoje esse livro seja a defesa mais Mill sustenta que o problema deve ser resolvido
lúcida e rica de argumentação da autonomia do indivíduo. com meios políticos: criar as condições sociais de
Mill estava profundamente convencido do valor desse paridade entre homem e mulher.
livro, pois escrevia em sua Autobiografia que ele As ideias de Mill sobre a emancipação feminina
sobreviveria mais do que qualquer outro livro seu (com a encontraram grande ressonância na Inglaterra na virada
possível exceção da Lógica). do século, no seio do movimento feminista pelo sufrágio
O núcleo teórico do trabalho está em reafirmar “a universal.
importância, para o homem e a sociedade, de ampla Na Inglaterra o direito de voto para as mulheres
variedade de características e de completa liberdade da foi aprovado em 1919.
natureza humana a expandir-se em direções inumeráveis
e contrastantes”. 4.2 HERBERT SPENCER
Na opinião de Mill, não basta que a liberdade seja
protetora do despotismo do governo, mas também Religião e ciências são correlatas
precisa ser protegida contra “a tirania da opinião e do Charles Darwin
sentimento predominantes, contra a tendência da publicou A origem das espécies em
sociedade a impor, com outros meios além das 1859. Antes, porém, em 1852,
penalidades civis, suas próprias ideias e seus costumes Herbert Spencer (1820-1903)
como regras de conduta para os que dela se dissociam". publicara a Hipótese do
O que Mill defende é o direito do indivíduo a desenvolvimento, que apresenta
viver como lhe aprouver: “Cada qual é o guardião único uma concepção evolucionista.
de sua própria saúde, seja corporal, seja mental e seja Em 1855 apareciam os
ainda espiritual”. E isso pelo motivo fundamental de que Princípios de psicologia, em que a
o desenvolvimento social é consequência do teoria evolucionista era
desenvolvimento das mais variadas iniciativas individuais. desenvolvida amplamente. E
Naturalmente, a liberdade de cada um encontra em 1860 Spencer anunciou um
seu limite na liberdade do outro. Cabe ao indivíduo “não projeto de Sistema de filosofia,
lesar os interesses alheios ou aquele determinado grupo que deveria abranger todo o cognoscível. Fixou Os
de interesses que, por expressa disposição da lei ou por primeiros princípios desse sistema em um volume que
tácito consenso, devam ser considerados como direitos”. apareceu em 1862, no qual a teoria evolutiva se apresenta
Cabe-lhe também assumir sua parte nas como grandiosa metafísica do universo, dando lugar a
responsabilidades e sacrifícios necessários à defesa da uma concepção otimista do devir, visto como progresso
irreprimível.
278
17
Já no primeiro capítulo, Os primeiros princípios seus elementos não-religiosos, como os elementos
tratam da complexa e delicada questão das relações entre animistas e mágicos.
religião e ciência. Spencer sustenta que a realidade última
é incognoscível e que o universo é um mistério. O papel da filosofia no pensamento de Spencer
Isso é atestado pela religião e pela ciência. Toda
teoria religiosa “é uma teoria a priori do universo”, e todas Mas qual o lugar e qual a função da filosofia no
as religiões, prescindindo de seus dogmas específicos, pensamento spenceriano? Em Os primeiros princípios, a
reconhecem que “o mundo, com tudo aquilo que contém filosofia é definida como “o conhecimento do mais alto
e que o circunda, é mistério que pede explicação, e que a grau de generalidade”.
potência de que o universo é manifestação é Para Spencer, as verdades cientificas
completamente impenetrável”. Por outro lado, na desenvolvem, ampliam e aperfeiçoam os conhecimentos
pesquisa cientifica, “por maior que seja o progresso feito do senso comum. Entretanto, elas existem separadas, até
na vinculação dos fatos e na formação de generalizações quando, em um processo continuo de unificação, são
sempre mais amplas, a verdade fundamental continua agrupadas e logicamente organizadas a partir de algum
mais inacessível do que nunca. princípio fundamental de mecânica, de física molecular, e
Mais do que qualquer outro, o cientista vê com assim por diante.
certeza que nada pode ser conhecido em sua última Pois bem, segundo ele, “as verdades da filosofia
essência. Os fatos são explicados; as explicações, por seu têm com as mais altas verdades da ciência a mesma
turno, também são explicadas; mas haverá sempre uma relação que cada uma delas tem como as mais humildes
explicação a explicar; por isso, a realidade última é e verdades científicas. Como toda ampla generalização da
permanecerá sempre incognoscível. ciência abrange e consolida as mais estritas generalizações
Assim, as religiões atestam o mistério que sempre de suas próprias partes, da mesma forma as
exige ser interpretado e as ciências remetem a um generalizações da filosofia abrangem e consolidam as
absoluto que elas, como conhecimentos relativos, jamais amplas generalizações da ciência”.
captarão. Mas o absoluto existe, caso contrário não A filosofia, portanto, é a ciência dos primeiros
poderíamos falar de conhecimentos relativos. E, por princípios, onde se leva ao limite extremo o processo de
outro lado, nós podemos estar seguros de que as religiões, unificação do conhecimento: “o conhecimento de ínfimo
ainda que nenhuma seja verdadeira, são todas, porém, grau é não unificado; a ciência é um conhecimento
pálidas imagens de uma verdade. parcialmente unificado; a filosofia é conhecimento
Por tudo isso, religião e ciência são conciliáveis: completamente unificado”.
ambas reconhecem o absoluto e o incondicionado. Mas, Para alcançar esse objetivo, a filosofia não pode
se a função das religiões é manter vivo o sentido do deixar de partir dos que são os princípios mais vastos e
místico, a função da ciência é a de estender sempre para gerais a que a ciência chegou. Para Spencer, tais princípios
além o conhecimento do relativo, sem nunca captar o são:
absoluto. a) a indestrutibilidade da matéria;
E se a religião erra ao se apresentar como b) a continuidade do movimento;
conhecimento positivo do incognoscível, a ciência erra ao c) a persistência da força.
pretender incluir o incognoscível no interior do Princípios desse tipo não são próprios de uma só
conhecimento positivo. Entretanto, diz Spencer, tais ciência, pois interessam a todas as ciências. E, por outro
contrastes estão destinados a se atenuar sempre mais com lado, são unificados em um princípio mais geral, que, na
o tempo. E “quando a ciência estiver convencida de que opinião de Spencer, é o “da distribuição continua da
suas explicações são próximas e relativas e a religião matéria e do movimento”. Na realidade, escreve ele, “o
estiver convencida de que o mistério que ela contempla é repouso absoluto e a permanência absoluta não existem;
absoluto, reinará entre ambas uma paz permanente”. todo objeto, bem como a reunião de todos os objetos,
Para Spencer religião e ciência sio correlatas. Elas sofre a cada instante alguma mudança de estado".
são “como que o polo positivo e o polo negativo do A lei dessa incessante e geral mudança é a lei da
pensamento: um não pode crescer em intensidade sem evolução.
aumentar a intensidade do outro”. E, observa
agudamente Spencer, se a religião teve “o mérito elevado A evolução do universo
de ter entrevisto desde o início a verdade última e nunca
ter deixado de nela insistir”, também é verdade que foi a Foi em 1857, em um artigo sobre o progresso,
ciência que ajudou ou forçou a religião a se purificar de que Spencer introduziu pela primeira vez no vocabulário
filosófico-cientifico o termo “evolução”. Dois anos
279
18
depois, Darwin tornou o termo célebre com seu livro Spencer apresenta urna visão metafísica do
sobre a evolução das espécies por obra da seleção natural. evolucionismo. Mas ele também tentou especificar sua
Mas, enquanto Darwin se limita a evolução dos teoria em vários e precisos terrenos. No que se refere à
seres vivos, Spencer fala de evolução do universo. biologia, Spencer sustenta que a vida consiste na adaptação
dos organismos ao ambiente, que, mudando
continuamente, os desafia. Os organismos respondem a
esse desafio diferenciando seus órgãos.
É assim que Spencer reconhece o princípio de
Lamarck, segundo o qual a função, isto é, o exercício
prolongado de uma reação específica do ser vivo, precede
e, lentamente, produz a determinação dos órgãos.
Depois, uma vez que o ambiente agiu sobre o ser vivo,
produzindo estruturas e órgãos diferenciados, então a
Conforme Spencer, as características essenciais seleção natural - sobre a qual Spencer pensa como
da evolução são três: Darwin - favorece “a sobrevivência do mais adaptado”.
1) A primeira característica da evolução é que ela Sobre a questão da derivação da vida orgânica a
é passagem de uma forma menos coerente a uma mais partir da vida inorgânica, Spencer inclina-se a considerar
coerente (por exemplo, o sistema solar, que saiu de uma que a vida orgânica tenha origem em uma massa que,
nebulosa). embora indiferenciada, possui, no entanto, a capacidade
2) A segunda característica fundamental é a de de se organizar.
que ela é passagem do homogêneo ao heterogêneo. Este
fato, sugerido a Spencer pelos fenômenos biológicos (as O evolucionismo em psicologia
plantas e os animais se desenvolvem diferenciando
orgãos e tecidos diversos), vale também para o Diversamente de Comte, Spencer pensa que a
desenvolvimento de qualquer âmbito da realidade. psicologia seja possível como ciência autônoma. Sua função
3) A terceira característica da evolução é que ela é é examinar as manifestações psíquicas dos graus mais
passagem do indefinido ao definido, como no caso da baixos (por exemplo, os movimentos reflexos) para
passagem de uma tribo selvagem a um povo civilizado, chegar s formas mais evoluídas, como se manifestam na
onde tarefas e funções estão claramente especificadas. criação das obras de arte ou no trabalho de pesquisa dos
Determinadas as características da evolução, grandes cientistas.
Spencer lhe dá a seguinte definição: “A evolução é uma Além disso, Spencer reconhece na consciência
integração de matéria acompanhada por dispersão de humana elementos a priori, no sentido de que são
movimento, em que a matéria passa de uma independentes da experiência singular e temporal do
homogeneidade indefinida e incoerente para uma indivíduo.
heterogeneidade definida e coerente, ao passo que o Nesse sentido, portanto, Leibniz e Kant teriam
movimento contido sofre uma transformação paralela”. razão. Todavia, recorda Spencer (e essa questão é de
grande interesse), aquilo que é a priori para o indivíduo é
O evolucionismo em biologia a posteriori para a espécie, no sentido de que determinados
comportamentos intelectuais uniformes e constantes são
A evolução do universo é um processo produto da experiência acumulada da espécie em seu
necessário. O ponto de partida da evolução é a desenvolvimento, que é transmitida por hereditariedade
homogeneidade, que é um estado instável. na estrutura orgânica do sistema nervoso.
E em todos os casos encontramos progresso em Ao contrário de Kant, neste caso a priori não
direção ao equilíbrio. No que se refere ao homem, “a equivale a válido: não está excluído que experiências e
evolução só pode terminar [...] com o estabelecimento da esquemas fixos e herdados possam estar errados e que
maior perfeição e da mais completa felicidade”. possam mudar.
Naturalmente, as condições de equilíbrio podem
não durar, podem desaparecer e se destruir, mas também O evolucionismo em sociologia e em ética
a condição de caos e dissolução não pode ser definitiva,
já que dela se inicia novo processo de evolução. Ainda diferentemente de Comte, Spencer
Portanto, o universo progride, e progride para concebe uma sociologia orientada para a defesa do
melhor. Aí reside o otimismo do positivismo indivíduo. Tanto em O homem contra o Estado (1884)
evolucionista de Spencer. como em Estática social (1850, reeleborado em 1892), e
280
19
nos Princípios de sociologia (1876-1896), Spencer GABARITO
sustenta que a sociedade existe para os indivíduos e não
vice-versa, e que o desenvolvimento da sociedade é QUESTÕES SURGIMENTO
determinado pela realização dos indivíduos.
A ética de Spencer é uma ética naturalista- 1. 01/02/08
biológica, que nem sempre concorda com a ética 2. d
utilitarista de Bentham e dos dois Mill.
Princípios éticos, normas e obrigações morais são 3. 02/04/16
instrumentos de sempre melhor adaptação do homem às 4. e
condições de vida.
E a evolução, acumulando e transmitindo por 5. 01/04/16
hereditariedade experiências e esquemas de 6. d
comportamento, fornece ao indivíduo a priori morais que,
precisamente, são a priori para o indivíduo, mas a posteriori
para a espécie. QUESTÕES POSITIVISMO
E como alguns comportamentos essenciais para
a sobrevivência da espécie (proteger a própria mulher, 1. 01/02/08/16
educar os filhos etc.) já não tem o peso da obrigação, 2. c
também ocorrerá com o progresso da evolução para os
outros deveres morais. Segundo Spencer, “As ações mais 3. e
elevadas, requeridas para o desenvolvimento harmônico 4. 8/16
da vida, serão fatos tão comuns como hoje o são as ações
inferiores às quais nos impele o simples desejo”. 5. 1/4/16

QUESTÕES
QUESTÕES COMTE
01. (UEM 2011) O evolucionismo social do século XIX 1. b
teve um papel fundamental na constituição da sociologia
como ramo científico. Sobre essa corrente de 2. a
pensamento, que reunia autores como Augusto Comte e 3. d
Herbert Spencer, assinale o que for correto.
01) O evolucionismo define que as estruturas, naturais ou 4. b
sociais, passam por processo de diferenciação e 5. c
integração que levam ao seu aprimoramento.
02) O evolucionismo propõe que a evolução das 6. 1/2/8/16
sociedades ocorre em estágios sucessivos de 7. 1/2/8
racionalização.
04) O evolucionismo considera o Estado Militar como a
forma mais evoluída de organização social, fundamentada QUESTÕES SPENCER
na cooperação interna e obrigatória.
08) O evolucionismo rejeita o modelo político e 1. 01/02/16
econômico liberal, baseado na livre iniciativa e no laissez-
faire, considerando-o uma orientação contrária à evolução
social.
16) O evolucionismo defende a unidade biológica e
cognitiva da espécie humana, independente de variações
particulares.

281
20
1. FEUERBACH natureza, corporeidade, sensibilidade, necessidade.
Ludwig Feuerbach Portanto, é preciso negar o idealismo, que é somente o
(1804-1872) é, depois de Marx, extravio do homem concreto. E, com maior razão, é
o maior representante da preciso negar o teísmo, já que não é Deus que cria o
esquerda hegeliana. Suas Lições homem, e sim o homem que cria Deus.
sobre a essência da religião –
apresentadas em Heidelberg em 6.2 A teologia é antropologia
1848 - foram publicadas em
1851. Em 1841 Feuerbach havia Feuerbach admite com Hegel a unidade entre o
publicado sua obra mais finito e o infinito. Mas, em sua opinião, essa unidade não
importante: A essência do se realiza em Deus ou na ideia absoluta, e sim no homem,
cristianismo. É aí que ele propõe em um homem que a filosofia não pode reduzir a puro
aquela que ele próprio define pensamento, mas sim deve considerar em sua inteireza,
como redução da teologia e da religião a antropologia. em sua naturalidade e em sua sociabilidade. E a religião
sempre desempenhou um papel fundamental na história
Não é Deus que cria o homem do homem concreto.
A filosofia não tem a função de negar ou
Em 1837, Feuerbach era ainda fervoroso ridicularizar esse grande fato humano que é a religião.
hegeliano. Mas, em 1839, as coisas já haviam mudado, Deve compreendê-lo. E o compreende, afirma
porque no escrito Pela crítica da filosofia hegeliana há, sim, Feuerbach, quando se dá conta de que a consciência que
elogios a Hegel, mas também críticas: “Hegel começa o homem tem de Deus é a consciência que o homem tem
com o ser, isto é, com o conceito de ser ou com o ser de si. Em outros termos, o homem põe suas qualidades,
abstrato; por que eu não devo poder começar com o suas aspirações e seus desejos fora de si, afasta-se, aliena-
próprio ser, isto é, com o ser real?” se e constrói sua divindade.
Para Feuerbach, Hegel “pôs de lado os A religião, portanto, está no relacionar-se do
fundamentos e as causas naturais, as bases da filosofia homem com sua própria essência (nisso consiste sua
genético-crítica”. Mas uma filosofia que deixa de lado a verdade), mas sua essência não como sua e sim como
natureza é vã especulação. outra essência, separada e dividida dele, até oposta (nisso
consiste sua falsidade). A religião, pois, é a projeção da
essência do homem. Deus é o espelho do homem, afirma
Feuerbach.
Na oração, o homem adora seu próprio coração;
o milagre é o desejo sobrenatural realizado; “Os dogmas
fundamentais do cristianismo são desejos realizados do
coração”.
Para Feuerbach, a religião é fato humano,
totalmente humano. E isso ainda que o homem religioso não
tenha consciência do caráter humano do seu conteúdo,
não admita que o seu conteúdo seja humano. Mas,
Em 1841 sai a obra mais importante de comenta Feuerbach, assim como o homem pensa quais
Feuerbach, A essência do cristianismo, na qual o autor efetua sejam os seus princípios, tal é o seu Deus: quanto o
o que ele próprio define como a redução da teologia e da homem vale, tanto e não mais vale o seu Deus. Tu
religião a antropologia. O interesse pela religião estava conheces o homem pelo seu Deus e, reciprocamente,
claro para Feuerbach desde o início, e permaneceu Deus pelo homem; um e outro se identificam. Deus é o
constante em todas as fases de seu pensamento, que ele íntimo revelado, a essência do homem expressa; a religião
assim esquematiza: “Meu primeiro pensamento foi Deus, é a revelação solene dos tesouros ocultos do homem, a
meu segundo foi a razão, meu terceiro e último foi o profissão pública de seus segredos de amor.
homem”. É esse o sentido da tese de Feuerbach, segundo o
Hegel suprimira o Deus transcendente da qual o núcleo secreto da teologia é a antropologia. Diz ele
tradição, substituindo-o pelo espírito, isto é, digamos, a que o homem desloca seu ser para fora de si antes de
realidade humana em sua abstração. Mas aquilo que encontrá-lo em si. E esse encontro, essa aberta confissão
interessa a Feuerbach não é uma ideia de humanidade, ou admissão de que a consciência de Deus nada mais é
mas muito mais o homem real, que é, antes de mais nada, do que a consciência da espécie, Feuerbach o vê como
282
1
reviravolta da história. Finalmente, na história o homem A propriedade é um “furto”
é Deus.
Assim, todas as qualificações do ser divino são Em 1840, Proudhon (1809-1865) publicou o
qualificações do ser humano. O ser divino é unicamente famoso escrito O que é' a propriedade?; em 1843, aparece A
o ser do homem libertado dos limites do indivíduo, isto criação da ordem na humanidade; em l846, O sistema das
é, dos limites da corporeidade e da realidade, mas contradições econômicas ou filosofia da miséria; de 1858 são os
objetivado, ou seja, contemplado e adorado como outro três volumes de A justiça na revolução e na Igreja. Promotor
ser, distinto dele. de movimentos sindicais, mutualistas e pacifistas,
Proudhon era simultaneamente adversário da
6.3 O “humanismo” de Feuerbach propriedade privada tanto quanto do comunismo.
Proudhon vê que a economia burguesa tem como
Todavia - e essa pergunta não pode ser evitada -, fundamento a propriedade privada.
por que o homem se alheia, por que constr6i a divindade
sem nela se reconhecer? Feuerbach responde: porque o
homem encontra uma natureza insensível a seus
sofrimentos, porque tem segredos que o sufocam; e, na
religião, alivia seu próprio coração oprimido.
Eis, portanto, desvelado o mistério da religião:
Feuerbach substitui o Deus do céu por outra divindade,
o homem “de carne e de sangue”. E, assim, pretende
substituir a moral que recomenda o amor a Deus pela
moral que recomenda o amor ao homem em nome do
homem. Essa é a intenção do humanismo de Feuerbach:
a de transformar os homens de amigos de Deus em
amigos dos homens, “de homens que crêem em homens
que pensam, de homens que oram em homens que
trabalham, de candidatos ao além em estudiosos do
aquém, de cristãos - que, por seu próprio Mas o que é a propriedade? Responde Proudhon:
reconhecimento, são metade animais e metade anjos – em “A propriedade é furto”. Já se disse que tal resposta foi
homens em sua inteireza". como que um tiro de pistola disparado de surpresa para
Inicialmente, a esquerda hegeliana usou Hegel chamar a atenção até do burguês tranquilo para a questão
contra a teologia e a filosofia tradicional. E, social.
posteriormente, dirigiu suas críticas contra as A propriedade é furto, segundo Proudhon
“abstrações” hegelianas, em nome do homem concreto, porque o capitalista não remunera o operário com todo o
do indivíduo em particular ou da política revolucionaria. valor do seu trabalho. A “força coletiva”, resultante da
Substancialmente, a esquerda hegeliana combateu força de muitos trabalhadores organizados, fornece
a fé cristã em nome de uma metafísica imanentista, e as produtividade muito mais alta do que aquela que se
abstrações da filosofia hegeliana em nome da obteria da soma de simples trabalhos individuais. E esse
“concretude”. o sentido da frase “a propriedade é furto”: o capitalista se
apropria do valor do trabalho coletivo.
2. SOCIALISMO UTÓPICO E a partir daí se cria a contradição fundamental
entre capital e trabalho, contradição que leva o capitalista
não só a se apropriar do trabalho do operário, mas
PIERRE-JOSEPH PROUDHON
também de sua própria existência. Para dizer a verdade,
Proudhon não é contrário à propriedade enquanto tal,
Lênin escreveu que "o marxismo t o sucessor mas somente à propriedade que assegura “renda sem
legitimo de tudo o que a humanidade criou de melhor trabalho”.
durante o século XIX: a filosofia alemã, a economia A propriedade se justifica unicamente como
política inglesa e o socialismo francês”. condição de liberdade. Mas, quando está organizada de
Esse “socialismo francês” t aquele que, com ou modo a tornar livres uns poucos (os capitalistas) em troca
sem razão, foi depois chamado de socialismo utópico, e que da escravidão de muitos (os trabalhadores), então ela é
relaciona entre seus pensadores mais significativos Saint- furto. Somente o trabalho é produtivo. E o operário pode
Simon, Fourier e Proudhon. certamente se apropriar do fruto do seu trabalho. Mas
283
2
isso é a posse e não a propriedade privada capitalista, que exasperação. No comunismo, o Estado torna-se
dá renda sem trabalho e escraviza muitos em favor de proprietário não só dos bens materiais, mas também dos
poucos. cidadãos. O comunismo pretende nacionalizar não só as
indústrias, mas também a vida dos homens. Ele é o
Justiça como lei do progresso social anúncio do Estado de caserna e do despotismo
policialesco.
A ordem socioeconômica burguesa, portanto, Ao contrário, para Proudhon, trata-se de
está errada e deve ser mudada. Mas em que rumo? reorganizar a economia, fazendo com que os
Proudhon descarta logo a hipótese comunista, que sujeita trabalhadores se tornem proprietários dos meios de
a pessoa à sociedade. Para Proudhon, o comunismo é produção e, portanto, tenham a possibilidade de autogerir
religião intolerante, orientada para a ditadura. o processo produtivo.
Diferentemente dos comunistas, ele prefere Desse modo, o tecido econômico da sociedade
“fazer a propriedade queimar em fogo lento, ao invés de passa a se constituir como pluralidade de centros
dar-lhe novas forças ao fazer uma noite de são produtores, que se equilibram mutuamente.
Bartolomeu dos proprietários”.
Mas, se a hipótese comunista não funciona, a 3. KARL MARX
proposta individualista também não é adequada. Não é Karl Marx nasceu
adequada porque é ilusório o desenvolvimento sem limites em Trier, em 15 de maio
da liberdade dos indivíduos. de 1818, filho de Heinrich,
Sendo assim, Proudhon propõe nova ordem social advogado, e de Henriette
baseada na justiça. E, em A justiça na revolução e na Igreja, Pressburg, dona de casa.
define a justiça como “o respeito, experimentado O pai e a mãe de Marx
espontaneamente e reciprocamente garantido, pela eram de origem judaica.
dignidade humana, em qualquer circunstância em que Em 15 de abril de
esteja envolvida, qualquer que seja o risco a que se 1841 laureou-se em
exponha sua defesa”. filosofia, em Berlim, com a
Segundo Proudhon, a justiça é a lei do progresso. tese intitulada Diferença
Ela não pode ser só ideia, mas deve ser força ativa do entre a filosofia da natureza de
indivíduo e da vida associada. Deve valer “como a Demócrito e a de Epicuro.
primeira e última palavra do destino humano e coletivo, Após o caminho
a sanção inicial e final de nossa bem-aventurança”. universitário, Marx passou
Proudhon rejeita a concepção da justiça que a vê ao jornalismo, tornando-se redator da “Gazeta Renana”,
imposta ao homem a partir de fora, por Deus. Esta é a órgão dos burgueses radicais da Renânia.
justiça da revelação, à qual Proudhon contrapõe a justiça da Em pouco tempo, Marx tornou-se redator-chefe
revolução, ou seja, aquela justiça imanente à consciência e à do jornal. Entretanto, em 21 de janeiro de 1843, o jornal
história humana. foi oficialmente interditado. Nesse período, Marx
Para Proudhon, a justiça é imanente e estudou Feuerbach, e ficou entusiasmado. No verão de
progressiva. 1843, escreveu a Crítica do direito público de Hegel, cuja
introdução foi publicada em Paris, em 1844, nos “Anais
Crítica ao coletivismo e ao comunismo franco-alemães”, fundados por Ruge, que convidou Marx
para ser co-diretor.
E precisamente através da ideia de justiça Em Paris, Marx entrou em contato com
Proudhon desfere crítica decisiva contra qualquer solução Proudhon e Blanc, encontrou Heine e Bakunin e,
coletivista do problema econômico. Se todos os meios de sobretudo, conheceu Friedrich Engels, que seria seu
produção são colocados nas mãos do Estado, então a amigo e colaborador por toda a vida.
liberdade dos indivíduos é limitada até o ponto da De 1844 são seus Manuscritos econômico- filosóficos
sufocação, aumentando a desigualdade social ao invés de (publicados em 1932).
diminui-la. Nesse meio tempo, colaborou com o “Avante”,
A ideia de Proudhon é de que o comunismo jornal dos artesãos comunistas, difundido na Alemanha.
nunca poderá respeitar a dignidade da pessoa e os valores E precisamente por essa colaboração pagaria o preço de
da família. O comunismo não elimina os males da ser expulso da Franga (11 de janeiro de 1845). Nesse
propriedade privada, mas muito mais os leva à tempo, amadurecia seu afastamento da esquerda
hegeliana. Em 1845 escreveu A sagrada família, trabalho
284
3
em colaboração com Engels e dirigido contra os Entretanto, o afastamento de Marx em relação a
hegelianos de esquerda. Hegel torna-se claro desde seus primeiros escritos, a
Ainda contra eles, Marx e Engels escreveram em começar pela Crítica da filosofia do direito de Hegel (1844), que
Bruxelas (onde Marx se havia refugiado depois de sua critica a filosofia do direito de Hegel com base na situação
expulsão da França) A ideologia alemã. As teses sobre histórica e política da Alemanha e na convicção de que
Feuerbach remontam a 1845 (mas Engels só as tornou “as instituições jurídicas e políticas e as diversas formas
públicas em 1888), ao passo que A miséria da filosofia, de Estado não podem se explicar por si mesmas e em
resposta a Filosofia da miséria de Proudhon é de 1847, escrito virtude de um chamado desenvolvimento do espírito
no qual Marx ataca o “socialismo utópico” em nome do humano, mas são resultado das condições materiais de
“socialismo cientifico”. Marx permaneceu na Bélgica até vida”.
1848. E foi em janeiro de 1848 que ele ditou, juntamente Substancialmente, para Marx, a filosofia de Hegel
com Engels, o famoso Manifesto do partido comunista, a interpreta o mundo de cabeça para baixo: é ideologia. Hegel
pedido da “Liga dos comunistas”. raciocina como se as instituições existentes, como, por
Desencadeado o movimento de 1848, Marx exemplo, a herança, derivassem de puras necessidades
voltou por breve período a Colônia, onde fundou a racionais, legitimando assim a ordem existente.
“Nova Gazeta Renana”, que, porém, foi obrigada quase A realidade é que, segundo Marx, Hegel
que imediatamente a suspender suas publicações. transforma em verdades filosóficas dados que são puros
De Colônia voltou para Paris, mas, tendo-lhe sido fatos históricos e empíricos.
proibida a permanência na capital francesa, Marx partiu E, assim, “por toda parte Hegel cai do seu
para a Inglaterra, lá chegando em 24 de agosto de 1849. espiritualismo político para o mais crasso materialismo”.
Na Inglaterra, Marx se estabeleceu em Londres, Marx, portanto, desfere contra Hegel duas
onde, entre dificuldades de toda sorte, conseguiu, com a acusações principais:
ajuda financeira do seu amigo Engels, levar a bom termo a) antes de mais nada, a de subordinar a sociedade
todas aquelas pesquisas de economia, história, sociologia civil ao Estado;
e política que constituem a base de 0 Capital, cujo b) a de inverter o sujeito e o predicado: os
primeiro volume saiu em 1867, ao passo que os outros indivíduos humanos, isto é, os sujeitos reais, tornam-se
dois foram publicados postumamente por Engels, em Hegel predicados da “substância mística” universal.
respectivamente em 1885 e em 1894. Em 1859, saíra sua Mas, reafirma Marx, “como não é a religião que cria o
outra obra fundamental, a Crítica da economia política. homem, mas o homem que cria a religião, da mesma
Empenhado na atividade de organização do forma não é a constituição que cria o povo, mas o povo
movimento operação, Marx conseguiu fundar em 1864, que cria a constituição”.
em Londres, a “associação internacional dos Assim, Hegel crê estar descrevendo a essência do
trabalhadores” (a primeira Internacional), que, depois de Estado, ao passo que, de fato, está descrevendo e
vários contrastes e peripécias, dissolveu-se em 1872 legitimando a realidade existente que é o Estado
(ainda que, oficialmente, sua dissolução só tenha sido prussiano. Escreve Marx: “Hegel não deve ser censurado
decretada em 1876). A última década da vida de Marx por descrever o ser do Estado moderno tal como é, mas
também foi período de intenso trabalho. Em 1875 sim por considerar aquilo que é como a essência do
publicou a Crítica ao programa de Gotha, tomando como Estado”.
alvo as doutrinas de Lassalle. Mas, mais do que qualquer O problema, portanto, é que em Hegel, depois de
outra coisa, trabalhou em O Capital. Ele morreu em 14 de ter concebido a essência ou substância da pera ou da
março de 1883, sendo sepultado três dias depois no maçã, até as peras reais tornam-se encarnações do fruto
cemitério londrino de Highgate. absoluto, ou seja, piras e maçãs aparentes.

3.1 Crítica à Hegel 3.2 Crítica à esquerda hegueliana

O pensamento de Marx formou-se em contato e É preciso admitir que a esquerda hegeliana, pelo
contra a filosofia de Hegel, as ideias da esquerda menos até 1843, foi um dos grupos intelectuais mais vivos
hegeliana, as obras dos economistas clássicos e as obras e combativos da Europa. Não era um grupo homogêneo.
dos socialistas que ele próprio chamaria de “utópicos”. Mas, enquanto a direita hegeliana, em nome do
Marx reconhece prontamente a profundidade em pensamento de Hegel, procurava justificar o cristianismo
Hegel “neste seu começar por toda parte com a oposição e o Estado existente, a esquerda, sempre em nome da
das determinações”. dialética hegeliana, transformava o idealismo em
materialismo, fazia da religião cristã fato puramente
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4
humano e combatia a política existente com base em Say) com os Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844
posições “democrático-radicais”. (antes de fazê-lo em O Capital).
Entretanto, para Marx, isso era inteiramente Marx deve muito ao trabalho desses economistas,
insuficiente. Por isso, Marx e Engels, com A sagrada sobretudo às análises de Ricardo.
família, atacam sobretudo Bruno Bauer e, depois, com A Escreve Lênin: “Adam Smith e David Ricardo
ideologia alemã, estendem a polemica a Stirner e Feuerbach. lançaram as bases da teoria segundo a qual o valor deriva
A convicção que está na base da esquerda do trabalho. Marx continuou a obra deles, deu rigorosa
hegeliana é a de que as “verdadeiras cadeias” dos homens base cientifica e desenvolveu de modo coerente essa
estão em suas ideias, razão por que os jovens hegelianos teoria. Ele demonstrou que o valor de toda mercadoria é
pedem coerentemente aos homens, “como postulado determinado pela quantidade de trabalho socialmente
moral, que substituam sua consciência atual pela necessário ou do tempo de trabalho socialmente
consciência humana, critica ou egoísta, desembaraçando- necessário para sua produção”. E prossegue: “Mas onde
se assim de seus impedimentos. Essa exigência de os economistas burgueses viam relações entre objetos
modificar a consciência leva a outra exigência, a de (troca de uma mercadoria por outra), Marx descobriu
interpretar diversamente o que existe, ou seja, reconhece- relações entre homens”.
lo através de uma interpretação diferente”. Pois bem, Em outros termos, a economia política vê nas leis
“apesar de suas frases, que, segundo eles, 'abalam o que ela evidencia leis eternas, leis imutáveis da natureza.
mundo', os jovens ideólogos hegelianos são os maiores E não percebe que, desse modo, absolutiza e justifica um
conservadores”. Eles combatem contra as “frases” e não sistema de relações existentes em determinado estágio da
contra o mundo real do qual tais “frases” são o reflexo. história humana. Ou seja, transforma um fato em lei - em
Com efeito, “não é a consciência que determina a vida, lei eterna. É ideologia.
mas a vida que determina a consciência”. Marx conclui, a partir do estudo dos economistas
Por tudo isso, também a esquerda hegeliana vê o clássicos, que à máxima produção de riqueza corresponde
mundo de cabeça para baixo; o pensamento dos jovens o empobrecimento máximo do operário. Pois bem, a
hegelianos, portanto, é um pensamento ideológico, como economia política nos diz que as coisas são assim, mas
o de Hegel. Escreve Marx: “Não veio à mente de nenhum não nos diz por que são assim - e, portanto, nem se
desses filósofos procurar o nexo existente entre a filosofia propõe a questão da sua mudança.
alemã e a realidade alemã, o nexo entre sua crítica e seu Escreve Marx: “A economia política parte do fato
próprio ambiente material”. da propriedade privada. Não à explica. Expressa o
Consequentemente, os jovens hegelianos nada processo material da propriedade privada, o processo que
tinham de radical. Como já escrevera Marx: “Ser radical se dá na realidade, em formulas gerais e abstratas, que
significa colher as coisas pela raiz. Mas, para o homem, a depois faz valer como leis. Ela não compreende essas leis,
raiz é o próprio homem”. E a “libertação” do homem não isto é, não mostra como elas derivam da essência da
avança reduzindo “a filosofia, a teologia, a substância e propriedade privada”.
toda a imundície à 'autoconsciência'”, ou libertando o Para a economia política “vale como razão última
homem do domínio dessas frases. o interesse do capitalista: isto é, ela supõe aquilo que deve
“A libertação é ato histórico e não ato ideal, explicar.”
concretizando-se por condições históricas, pelo estado da Marx, ao contrário, procura explicar o surgimento
indústria, do comércio, da agricultura”. Os jovens da propriedade privada e tenta mostrar que ela é fato e
hegelianos mantêm a teoria separada da práxis; Marx as não lei, muito menos lei eterna. A realidade, diz Marx, é
une. que o capital é “a propriedade privada dos produtos do
trabalho alheio”. A propriedade privada não é dado
3.3 Crítica aos economistas clássicos absoluto que se deva pressupor em toda argumentação.
Ela é muito mais “o produto, o resultado e a
consequência necessária do trabalho expropriado. A
propriedade privada é fato que deriva da alienação do
trabalho" humano.
Como na religião, afirma Marx, “quanto mais o
homem põe em Deus, menos conserva em si mesmo. O
operário põe sua vida no objeto: e ela deixa de pertencer
Na opinião de Marx, a anatomia da sociedade civil a ele, passando a pertencer ao objeto”. E esse objeto, o
é fornecida pela economia política. E acerta suas contas seu produto, “existe fora dele, independente, estranho a
com os economistas clássicos (Smith, Ricardo, Pecqueur, ele, como que uma potência econômica diante dele; e a
286
5
vida, por ele dada ao objeto, agora o confronta, estranha Antes de mais nada, na opinião de Marx,
e inimiga”. Proudhon não percebe que a concorrência capitalista tem
consequências inevitáveis e, em sua tentativa de eliminar
3.4 Crítica ao socialismo utópico seus “lados maus”, substitui a analise econômica pela
atitude moralista: mas não se pode trocar a realidade por
No Manifesto do partido comunista, Marx e Engels desejos e lamentações.
distinguem seu socialismo cientifico dos outros tipos de E o fato é ainda mais grave se considerarmos que
socialismo, isto é, do socialismo revolucionário, do as contradições das diversas épocas históricas não são
socialismo burguês e, particularmente, do socialismo e simples defeitos, elimináveis por obras de bom senso ou
comunismo crítico-utópico, cujos expoentes são Babeuf, pelo senso de justiça. São condições necessárias Dara o
Saint-Simon, Fourier e Owen. desenvolvimento social e para a passagem de uma forma
Para Marx e Engels, estes últimos têm méritos de sociedade para outra forma de sociedade mais madura.
indubitáveis: viram “o antagonismo das classes e também Em conclusão, Marx faz valer contra Proudhon a
a eficácia dos elementos dissolventes no seio da própria ideia de que o processo histórico tem dinâmica própria,
sociedade dominante”. Além disso, eles forneceram determinada pelo progresso tecnológico: “O moinho
material muito precioso para a iluminação dos operários. braçal vos dará a sociedade com o senhor feudal, e o
Todavia, e aí está seu mais grave defeito, não moinho a vapor a sociedade com o capitalista industrial”.
viram nenhuma atividade histórica autônoma por parte E a dinâmica do desenvolvimento histórico se
do proletariado. realiza por meio da luta de classes.
Consequentemente, não descobriram nem Por isso, o moralismo não adianta. Não se
mesmo as condições materiais para a emancipação do resolvem as contradições sociais eliminando uma das
proletariado. Desse modo, resvalam para o utopismo: partes em luta, mas somente estimulando a luta até o fim.
criticam a sociedade capitalista, condenam-na e A questão, portanto, não está, como queria
maldizem-na, mas não sabem encontrar caminho de Proudhon, em dividir a propriedade entre os
saída. De fato, acabam por se identificar com a trabalhadores, mas em suprimi-la completamente através
conservação. da revolução vitoriosa da classe operaria.
A esses tipos de socialismo, Marx e Engels
contrapõem seu próprio socialismo “cientifico” que, teria 3.6 Crítica à religião
descoberto a lei de desenvolvimento do capitalismo e,
portanto, poderia realmente resolver os seus males. Feuerbach sustentara que a teologia e
A propósito, Engels escrevera: “Devemos a Karl antropologia. Sobre esse ponto, sobre esse humanismo
Marx a concepção materialista da história e a revelação do materialista, Marx está de acordo com Feuerbach.
mistério da produção capitalista, através da mais-valia. Entretanto, na opinião de Marx, Feuerbach
Ambas fizeram do socialismo uma ciência”. deteve-se diante do problema principal e não o resolveu.
E o problema é o de entender por que o homem cria a
3.5 Crítica à Proudhon religião.
A resposta a esse problema, segundo Marx, é a
Proudhon figura no Manifesto do partido comunista seguinte: os homens alienam seu ser projetando-o em um
como exemplo típico de socialista conservador ou Deus imaginário somente quando a existência real na
burguês. E a Miséria da filosofia é a sarcástica inversão do sociedade de classes impede o desenvolvimento e a
título da obra de Proudhon Sistema das contradições realização de sua humanidade. Disso deriva que, para
econômicas, ou a filosofia da miséria. superar a alienação religiosa, não basta denunciá-la, mas é
Entretanto, na “Gazeta Renana”, Marx julgara preciso mudar as condições de vida que permitem a
positivamente o escrito de Proudhon O que é a propriedade? “quimera celeste” surgir e prosperar. Feuerbach,
Como é que, no decorrer de poucos anos, Marx portanto, não viu que “até o 'sentimento religioso' é
muda de opinião sobre Proudhon? O que aconteceu? produto social e que o indivíduo abstrato que ele analisa
Aconteceu que, nesse período de tempo, Marx pertence a determinada forma social”.
estabelecera os traços de fundo de sua concepção É o homem que cria a religião. Mas, diz Marx, “o
materialista-dialética da história. E, a partir dessa homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade.
perspectiva, devia considerar Proudhon como moralista Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, que é
utópico, incapaz de compreender o movimento da consciência invertida do mundo, porque também são um
história e mais incapaz ainda de influir sobre ele. mundo invertido. A religião é a teoria invertida deste
mundo. Assim, torna-se evidente que a luta contra a
287
6
religião é a luta contra aquele mundo do qual a religião é sua cabeça antes de construi-la de cera. No fim do
o aroma espiritual. processo de trabalho, emerge um resultado que no início
Existe o mundo fantástico dos deuses porque já estava presente na ideia do trabalhador e que, portanto,
existe o mundo irracional e injusto dos homens. “A já estava idealmente presente.
miséria religiosa é a expressão da miséria real em um Não que ele efetue somente a mudança de forma
sentido e, em outro, é o protesto contra a miséria real. A do elemento natural, pois aqui realiza o próprio objetivo,
religião é o suspiro da criatura oprimida, o sentimento de que ele conhece, e determina como lei o modo do seu
um mundo sem coração, o espirito de situações em que o operar, escreve Marx em 0 Capital.
espirito está ausente. Ela é o ópio do povo”. Para ele, tudo isso significa que o homem pode
viver humanamente, isto é, fazer-se enquanto homem,
precisamente humanizando a natureza segundo suas
necessidades e suas ideias, juntamente com os outros
homens. O trabalho social é antropógeno. E distingue o
homem dos outros animais: com efeito, o homem pode
transformar a natureza, objetivar-se nela e humanizá-la,
pode fazer dela seu corpo inorgânico.

Marx não ironiza o fenômeno religioso, a religião


não é para ele a invenção de padres enganadores, mas
muito mais obra da humanidade sofredora e oprimida,
obrigada a buscar consolação no universo imaginário da
fé. Mas as ilusões não se desvanecem se não eliminarmos
as situações que as criam e exigem.
Escreve Marx nas Teses sobre Feuerbach: “Os
filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de modos
diversos; agora, trata-se de transformá-lo”.
Substancialmente, a primeira função de uma
filosofia a serviço da história, segundo Marx, é a de
desmascarar a auto-alienação religiosa, “mostrando suas Entretanto, se olharmos para a história e a
formas que nada tem de sagradas”. Essa é a razão por que sociedade, veremos que o trabalho não é mais feito,
“a crítica do céu se transforma [...] em crítica da terra, a juntamente com os outros homens, pela necessidade de
crítica da religião em crítica do direito, a crítica da teologia apropriação da natureza externa, veremos que não é mais
em crítica da política”. realizado pela necessidade de objetivar a própria
humanidade, as próprias ideias e projetos, na matéria-
3.7 A alienação do trabalho prima.
O que vemos é que o homem trabalha pela sua
Mediante Feuerbach, Marx passa da crítica do céu pura subsistência. Baseada na divisão do trabalho, a
à crítica da terra. Aqui, porém, “em terra firme e propriedade privada torna o trabalho constritivo. Ao
redonda”, ele não encontra um homem que se faz ou se operário aliena-se a matéria-prima; alienam-se os seus
realiza transformando ou humanizando a natureza no instrumentos de trabalho; o produto do trabalho lhe é
sentido das necessidades, dos conceitos ou dos projetos arrancado; com a divisão do trabalho, é mutilado em sua
e planos do próprio homem, juntamente com outros criatividade e humanidade. O operário é mercadoria nas
homens. O que encontra são homens alienados, ou seja, mãos do capital. Isso é a alienação do trabalho, da qual,
expropriados de seu valor de homens por obra da segundo Marx, derivam todas as outras formas de
expropriação ou alienação de seu trabalho. alienação, como a alienação política (na qual o Estado se
Na realidade, “a aranha realiza operações que se ergue acima e contra os homens concretos) ou a religiosa.
assemelham às do tecelão, e a abelha envergonha muitos Para ele, a superação dessa situação, na qual o
arquitetos com a construção de suas casinhas de cera. Mas homem é transformado em ser bruto, realiza-se através
o que desde o princípio distingue o pior arquiteto da da luta de classes, que eliminará a propriedade privada e
melhor abelha é o fato de que ele construiu a casinha em o trabalho alienado.
288
7
Mas em que consiste, mais exatamente, a Isso leva a especificar a relação existente entre
alienação do trabalho? “Consiste antes de mais nada no estrutura econômica e superestrutura ideológica. Na
fato de que o trabalho é externo ao operário, isto é, não ideologia alemã lemos: “A produção das ideias, das
pertence ao ser dele e, portanto, ele não se afirma em seu representações da consciência, em primeiro lugar, está
trabalho, mas se nega, não se sente satisfeito, mas infeliz, diretamente entrelaçada a atividade material e as relações
não desenvolve energia física e espiritual livre, mas materiais dos homens, linguagem da vida real. As
definha seu corpo e destrói seu espírito. Por isso, somente representações e os pensamentos, bem como o
fora do trabalho é que o operário sente-se senhor de si; intercâmbio espiritual dos homens, ainda aparecem aqui
no trabalho, ele se sente fora de si. Sente-se em sua como emanação direta do seu comportamento material.
própria casa se não está trabalhando; e, se está E, do mesmo modo, isso vale para a produção espiritual,
trabalhando, não se sente em sua própria casa. Seu como ela se manifesta na linguagem da política, das leis,
trabalho, portanto, não é voluntário, mas constrito: é da moral, da religião etc. de um povo”.
trabalho forçado. Não constitui, assim, a satisfação de Os homens são os produtores de suas
uma necessidade, mas somente meio para satisfazer representações, ideias etc., mas, precisa Marx, são “Os
necessidades estranhas”. homens reais, operantes, assim como são condicionados
Por tudo isso, o homem sente-se livre apenas em por determinado desenvolvimento de suas forças
suas funções animais (comer, beber, procriar, ou ainda produtivas”.
morar em casa ou se vestir), sentindo-se como nada além Em poucas palavras: “O modo de produção da
de animal em suas funções humanas, isto é, no trabalho. vida material condiciona, em geral, o processo
A alienação do trabalho faz com que “o operário social, político e espiritual da vida”.
se torne tanto mais pobre quanto maior é a riqueza que A descoberta dessa teoria, isto é, do
produz, quanto mais sua produção cresce em potência e condicionamento da superestrutura pela estrutura
extensão. econômica, serviu a Marx como “fio condutor” de seus
O operário torna-se mercadoria tanto mais vil estudos, que lhe mostraram que, “com a mudança da base
quanto maior é a quantidade de mercadorias que produz". econômica, transforma-se mais ou menos rapidamente
Mas as coisas não param por aí, já que “a alienação do toda a gigantesca superestrutura”.
operário em seu produto significa não apenas que seu Portanto, como escreve Marx, os homens podem
trabalho se torna objeto, algo que existe exteriormente, distinguir-se dos animais pela religião, pela consciência ou
mas também que ele existe fora dele, independente dele, pelo que se quiser, “mas eles começaram a se distinguir
estranho a ele, tornando-se diante dele como que um dos animais quando começaram a produzir seus meios de
poder em si mesmo, o que significa que a vida que ele deu subsistência”. E aquilo que “os indivíduos são depende
ao objeto agora se lhe contrapõe como hostil e estranha”. das condições materiais de sua produção”.
Para concluir, a alienação do operário no seu A essência do homem, portanto, está em sua
objeto se expressa no fato de que “quanto mais o operário atividade produtiva. A primeira ação histórica do homem
produz, menos tem para consumir; quanto maior valor deve ser vista na criação dos meios adequados para
produz, tanto menor valor e menor dignidade possui; satisfazer suas necessidades vitais. E a satisfação de uma
quanto mais belo é o seu produto, tanto mais disforme necessidade gera outras. Por isso, quando as necessidades
torna-se o operário; quanto mais refinado é o seu objeto, aumentam, a família não basta mais: criam-se outras
tanto mais bárbaro ele se torna; quanto mais forte é o relações sociais; então, tanto o aumento da produtividade
trabalho, mais fraco ele fica; quanto mais espiritual é seu como as necessidades acrescidas e o aumento da
trabalho, mais ele se torna material e escravo da população criam a divisão do trabalho. E a divisão do
natureza”. trabalho em trabalho manual e intelectual, por um lado,
faz nascer a ilusão de que a consciência ou o espirito seja
3.8 Materialismo histórico algo separado da matéria e da história, e, por outro lado,
gera uma classe que vive do trabalho alheio.
A teoria da alienação do trabalho introduz à outra Tudo isso para dizer que a história verdadeira e
teoria fundamental de Marx, que é o materialismo fundamental é a dos indivíduos reais, de sua ação para
histórico. Como Marx escreveu no Prefacio a Para a transformar a natureza e de suas condições materiais de
crítica da economia política, o materialismo histórico vida, “tanto das que eles já encontraram existindo como
consiste na tese segundo a qual “não é a consciência dos das produzidas por sua própria ação”.
homens que determina o ser deles, mas, ao contrário, é o A consciência e as ideias derivam dessa história e
ser social deles que determina a consciência deles”. se entrelaçam com ela: “a moral, a religião, a metafisica e
qualquer outra forma ideológica” não são autônomas e
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8
propriamente não têm história, pois, quando muda a base Assim, a dialética permite a Marx compreender o
econômica, mudam com ela. Como escrevem Marx e movimento real da história e, portanto, também o estado
Engels: “As ideias dominantes de urna época foram existente de coisas. Mas, simultaneamente, também
sempre as ideias da classe dominante”. E essas ideias, permite a compreensão do “crepúsculo necessário” desse
precisamente, são ideologia, visão da realidade histórica estado de coisas, “porque concebe toda forma ocorrida
de cabeça para baixo, justificação - através das leis, da no fluir do movimento e, portanto, também no seu lado
moral, da filosofia etc. - da ordem social existente. transitório, porque nada pode intimidá-la: ela é crítica e
revolucionaria por essência”.
3.9 Materialismo dialético O confronto entre o estado de coisas existente e
sua negação é inevitável - e esse confronto se resolverá
Escrevem Marx e Engels em A ideologia alemã: com a superação do estado existente de coisas.
“Nós conhecemos apenas uma única ciência: a ciência da Marx inverte a dialética hegeliana, “pondo-a de
história.” pé”; ele a transporta das ideias para a história, da mente
O materialismo de Marx é materialismo histórico. para os fatos, da “consciência infeliz” para a “realidade
E, como fio condutor para o estudo da história, ele social em contradição”.
apresenta a teoria pela qual as ideias jurídicas, morais, Substancialmente, em sua opinião, todo
filosóficas, religiosas etc, dependem, são condicionadas momento histórico gera contradições em seu seio, e estas
ou são o reflexo e a justificação da estrutura econômica, constituem a mola do desenvolvimento histórico.
de modo que, se a estrutura econômica muda, haverá Reivindicando para O Capital o mérito de ser “a
transformação correspondente na superestrutura primeira tentativa de aplicação do método dialético à
ideológica. economia política”, Marx sustenta que a dialética é a lei
Existe, portanto, uma relação de determinação do desenvolvimento da realidade histórica, e que essa lei
ou, de qualquer modo, de condicionamento por parte da expressa a inevitabilidade da passagem da sociedade
estrutura econômica sobre a superestrutura constituída capitalista para a sociedade comunista, com o
pelas produções mentais dos homens, isto é, sobre sua consequente fim da exploração e da alienação.
consciência ou, melhor ainda, sobre sua consciência
social. 3.10 A luta de classe
Mas o materialismo de Marx é também e
sobretudo materialismo dialético, que tem suas raízes no 3.10.1 Burguesia e proletariado
sistema hegeliano. Na realidade, Marx reconhece como
mérito de Hegel o de “começar por toda parte com a No Manifesto do partido comunista, Marx e Engels
oposição das determinações e enfatizá-la”. Mas, como a escrevem: “A história de toda sociedade que existiu até o
alienação não é para Marx figura especulativa, e sim a momento é a história da luta de classes. Livres e escravos,
condição histórica em que o homem se encontra em patrícios e plebeus, barões e servos da gleba, membros
relação à propriedade privada dos meios de produção, da das corporações e aprendizes, em suma, opressores e
mesma forma também a dialética - entendida oprimidos, estiveram continuamente em mútuo contraste
hegelianamente como síntese dos contrários - é assumida e travaram luta ininterrupta, ora latente, ora aberta, luta
por Marx, só que ele a inverte. que sempre acabou com transformação revolucionaria de
Escreve ele no prefacio à segunda edição de O toda a sociedade ou com a ruína comum das classes em
Capital: “Para Hegel, o processo do pensamento, que ele luta”.
transforma até em sujeito independente, com o nome de Opressores e oprimidos: eis, portanto, o que
ideia, é o demiurgo do real, que, por seu turno, constitui Marx vê no desenrolar da história humana em sua
somente o fenômeno exterior da ideia ou processo do totalidade. E nossa época, a época da burguesia moderna,
pensamento. Para mim, ao contrário, o elemento ideal não eliminou em absoluto o antagonismo das classes;
nada mais é do que o elemento material transferido e pelo contrário, simplificou-o, visto que “toda a sociedade
traduzido no cérebro dos homens. A mistificação à qual vai se dividindo cada vez mais em dois grandes campos
subjaz a dialética nas mãos de Hegel não lhe tira, de modo inimigos, em duas grandes classes diretamente
algum, o mérito de ter sido o primeiro a expor ampla e contrapostas uma à outra: burguesia e proletariado”.
conscientemente as formas gerais da própria dialética. Em nota a edição inglesa do Manifesto, de 1888,
Somente que, nele ela se encontra de cabeça para baixo. Engels explica que, por burguesia, entende-se a classe
É preciso invertê-la para descobrir o núcleo racional dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de
dentro da casca mística”. produção e empregadores de assalariados. Por
proletariado se entende, ao invés, a classe dos
290
9
assalariados modernos que, não tendo meios de produção em si mesma o proletariado: “na mesma proporção que
próprios, são obrigados a vender sua força de trabalho se desenvolve a burguesia, isto é, o capital, desenvolve-se
para viver. também o proletariado, a classe dos operários modernos,
que só vivem enquanto encontram trabalho, e que só
3.10.2 Da sociedade feudal à burguesa encontram trabalho à medida que o seu trabalho aumenta
o capital”.
Pois bem, a classe burguesa surge no interior da Desse modo, “as armas que serviram à burguesia
sociedade feudal, representa a sua negação e a supera. Os para enterrar o feudalismo voltam-se contra a própria
primeiros elementos da burguesia desenvolveram-se a burguesia”. Assim como, para o senhor feudal, foi inútil
partir dos servos da gleba na Idade Média. defender os direitos feudais diante daquela sua criatura
Depois, a descoberta da América, a que era a burguesia, agora também é inútil para a
circunavegação da África e o intercâmbio com as colônias burguesia trabalhar em prol da conservação de seus
deram à empreendedora classe burguesa e a indústria direitos sobre o proletariado. A realidade é que “a
impulso sem precedentes e, “com isso, imprimiram burguesia não apenas fabricou as armas que a levarão a
rápido desenvolvimento ao elemento revolucionário morte, mas também gerou os homens que empunharão
dentro da sociedade feudal em desagregação”. aquelas armas: os operários modernos, os proletários”.
O exercício da indústria, feudal ou corporativa, Em lugar de operários isolados e em
até então em uso, não foi mais suficiente. Em seu lugar, concorrência, o progresso da grande indústria cria uniões
apareceu a manufatura: “O segmento industrial médio de operários organizados e conscientes de sua própria
suplantou os mestres artesãos; a divisão do trabalho entre força e missão. E “quando a teoria ganha as massas, ela
as diversas corporações desapareceu diante da divisão do se torna violência revolucionária”.
trabalho dentro da própria fábrica”. A burguesia, portanto, produz seus coveiros. A
Nesse meio tempo, cresciam os mercados. A sua decadência e a vitória do proletariado são
manufatura também deixou de ser suficiente. Foi “então conjuntamente inevitáveis.
que o vapor e as maquinas revolucionaram a produção E a demonstração da inevitabilidade da vitória do
industrial. A indústria manufatureira foi substituída pela proletariado e da decadência da burguesia é apresentada
grande indústria moderna; em lugar do segmento por Marx em O Capital, cujo fim último é o de “revelar a
industrial médio, entraram os milionários da indústria, os lei econômica do movimento da sociedade moderna”.
chefes de inteiros exércitos industriais, os burgueses
modernos”. Assim, a burguesia moderna “empurrou para 3.11 O capital
fora do palco todas as classes herdadas da Idade Média”.
Essa é a razão por que a burguesia “teve na 3.11.1 O valor das mercadorias é determinado pelo
história papel sumamente revolucionário”. trabalho
Com efeito, quando as relações feudais da
propriedade não corresponderam mais às forças A análise de O Capital inicia-se com a análise da
produtivas que se haviam desenvolvido, elas se mercadoria. Pois bem, a mercadoria tem duplo valor:
transformaram em cadeias, que deviam ser e foram valor de uso e valor de troca. O valor de uso de uma
quebradas”. Em seu lugar, apareceu a livre concorrência, mercadoria (como, por exemplo, vinte quilos de café,
com sua correspondente constituição social e política, urna roupa, um par de óculos, uma arroba de trigo)
“sob o domínio econômico e político da classe dos baseia-se na qualidade da mercadoria, que, precisamente
burgueses”. em função de sua qualidade, satisfaz mais a uma
necessidade que a outra. Entretanto, vemos que, no
3.10.3 Da sociedade burguesa à hegemonia do mercado, as mercadorias mais diferentes são trocadas
proletariado entre si. Vinte quilos de café, por exemplo, são trocados
por vinte metros de tecido. Mas o que têm em comum
Entretanto, precisamente pela lei da dialética, duas mercadorias tão diferentes para que possam ser
como a burguesia é a contradição interna do feudalismo, trocadas? Elas apresentam em comum precisamente o
assim também o proletariado é a contradição interna da que se chama valor de troca.
burguesia. O valor de troca é algo de idêntico existente em
Com efeito, “a propriedade privada, como mercadorias diferentes, que as tornam passiveis de troca
riqueza, é obrigada a manter-se viva e, com isso, a manter em dadas proporções mais do que em outras. Mas em que
vivo seu termo antitético, o proletariado”. Em suma, a consiste então o valor de troca de uma mercadoria?
burguesia se desenvolve e cresce como tal alimentando
291
10
Como diz Marx, esse valor é dado pela próprio de uso tem a propriedade peculiar de ser fonte de
“quantidade de trabalho socialmente necessária” para valor.
produzi-la. Em essência, “como valores, todas as Em outros termos, aquela mercadoria que é a
mercadorias são apenas medidas determinadas de tempo força de trabalho não somente tem seu valor, mas
de trabalho nelas empregado”. também tem a propriedade de produzir valor.
Para maior facilidade das trocas, a troca direta foi Com efeito, tendo comprado a força de trabalho,
substituída pela moeda. Mas, faça-se a troca diretamente o possuidor dos meios de produção tem o direito de
ou através da moeda, uma mercadoria não pode ser consumi-la, isto é, de obrigá-la a trabalhar, por exemplo,
trocada por outra se o trabalho necessário para produzir por doze horas; mas em seis horas (tempo de trabalho
a primeira não é igual ao trabalho necessário para “necessário”), o operário cria produtos que são
produzir a segunda. suficientes para cobrir as despesas com sua própria
Tudo isso mostra que falar da mercadoria em si manutenção, ao passo que, nas seis horas restantes
sem atentar para o fato de que ela é fruto do trabalho (tempo de trabalho “suplementar”), cria um produto que
humano acaba transformando-a em fetiche. A realidade o capitalista não paga. E esse produto suplementar não
é que o intercâmbio de mercadorias não é tanto urna pago pelo capitalista ao operário é aquilo que Marx chama
relação entre coisas, mas muito mais uma relação entre de mais-valia.
produtores, entre homens. E é isso o que a economia
clássica parece esquecer. 3.11.3 O processo de acumulação capitalista
O valor de troca de uma mercadoria, portanto, é
dado pelo trabalho social necessário para produzi-la. Mas Desse modo (depois de ter distinguido o capital
o trabalho (a força de trabalho) também é mercadoria que constante - investido para a aquisição dos meios de
o proprietário da força de trabalho (o proletário) vende produção, como a maquinaria e as matérias-primas – do
no mercado, em troca do salário, ao proprietário do capital variável, investido na aquisição da força de
capital, isto é, o capitalista. E o capitalista paga trabalho), a formula geral com que Marx representa o
justamente, por meio do salário, a mercadoria (força de processo de produção capitalista é a seguinte:
trabalho) que adquire: ele a paga segundo o valor que tal
mercadoria tem, valor que é dado (como qualquer outra D-M-D'
mercadoria) pela quantidade de trabalho necessário para
produzi-la, ou seja, pelo valor das coisas necessárias para onde D é o dinheiro despendido para a aquisição
manter em vida o trabalhador e sua família. das mercadorias M (meios de produção e força de
trabalho) e D' é o dinheiro ganho, que, graças à mais-valia
3.11.2 Mais-valia que não foi paga pelo capitalista, será maior do que D.
No processo de produção capitalista, portanto, o
dinheiro produz dinheiro em maior quantidade do que o
dinheiro despendido.
A mais-valia não é consumida pelo capitalista
para suas necessidades ou para seus caprichos: é
reinvestida, para que ele não sucumba na concorrência.
Desse modo, a acumulação do capital, se, por um lado,
concentra a riqueza nas mãos de número sempre menor
de capitalistas, por outro lado - através da eliminação de
operários por meio de novas maquinas, gera sempre mais
miséria no “exército de trabalho de reserva”.
Marx caracteriza essa tendência histórica de
acumulação capitalista com as seguintes expressões, que
se tornaram célebres: “Cada capitalista destrói muitos
outros. Com a diminuição constante do número de
magnatas do capital que usurpam e monopolizam todas
as vantagens desse processo de transformação, cresce a
massa da miséria, da pressão, da subjugação, da
degeneração e da exploração, mas também cresce a
Entretanto, a força de trabalho é mercadoria revolta da classe operária, que aumenta cada vez mais e é
inteiramente especial, já que é mercadoria cujo valor disciplinada, unida e organizada pelo próprio mecanismo
292
11
do processo de produção capitalista. O monopólio do entre trabalho manual e trabalho intelectual, e quando o
capital torna-se vínculo do modo de produção. A trabalho se houver tornado necessidade e não meio de
centralização dos meios de produção e a socialização do vida, então, escreve Marx na Crítica ao programa de Gotha
trabalho alcançam um ponto em que se tornam (1875), a nova sociedade “poderá escrever em sua
incompatíveis com seu envoltório capitalista. E ele se bandeira: de cada qual segundo sua capacidade, a cada
rompe. Soa então a última hora da propriedade privada qual segundo suas necessidades”.
capitalista. Os expropriadores são expropriados”. Para Marx, esse seria o comunismo autêntico,
que, nos Manuscritos de 1844, distinguia do comunismo
3.12 O advento do comunismo grosseiro, que não consiste na abolição da propriedade
privada e sim na atribuição da propriedade privada ao
3.12.1 A passagem necessária de uma sociedade Estado, o que reduziria todos os homens a proletários e
classista para uma sem classe negaria “a personalidade do homem” em toda parte.
Na realidade, Marx pensava que, abolida a
O feudalismo produziu a burguesia. E a propriedade privada, o poder político se reduziria
burguesia, para existir e desenvolver-se, deve produzir em gradualmente, até se extinguir, porque o poder político
seu seio quem a levará a morte, isto é, o proletariado. nada mais seria que a violência organizada de uma classe
Com efeito, o proletariado é a antítese da burguesia. Ao para a opressão da outra.
longo da via-crúcis da dialética, o proletariado leva em
seus ombros a cruz da humanidade inteira. A aurora da 3.12.2 A ditadura do proletariado
revolução é um dia inevitável. E esse dia, que marcara o
triunfo do proletariado, será o dia da ressurreição de toda Isso, no entanto, não se realizara de imediato.
a humanidade. O que logo teremos será a ditadura do
proletariado, que usará seu domínio “para concentrar
todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado,
isto é, do proletariado organizado como classe
dominante”.

Com a mesma fatalidade que preside os


fenômenos da natureza, diz Marx, a produção capitalista
gera sua própria negação. Isso, obviamente, poderá ocorrer através de
E é assim que se passa da sociedade capitalista intervenções despóticas que, nas diversas situações,
para o comunismo. Mas essa não é passagem que se faz levarão a procedimentos como os seguintes:
através de “pregações moralizadoras”, que para nada “1) expropriação da propriedade fundiária e
servem: “A classe operaria não tem nenhum ideal a emprego da renda fundiária para as despesas do Estado;
realizar”. Trata-se de passagem necessária para uma 2) impostos fortemente progressivos;
sociedade sem propriedade privada e, portanto, sem 3) abolição do direito de sucessão;
classes, sem divisão do trabalho, sem alienação e, 4) confisco da propriedade de todos os emigrados
sobretudo, sem Estado. Para Marx, o comunismo é “o e rebeldes;
retorno completo e consciente do homem a si mesmo, 5) concentração do crédito nas mãos do Estado,
como homem social, isto é, como homem humano”. mediante um banco nacional com capital do Estado e
Para dizer a verdade, Marx não adianta muito monopólio exclusivo;
como será a nova sociedade, que, depois da derrubada da 6) concentração de todos os meios de transporte
sociedade capitalista, só poderá se realizar por etapas. No nas mãos do Estado;
início, ainda haverá certa desigualdade entre os homens.
Mas depois, mais tarde, quando desaparecer a divisão
293
12
7) multiplicação das fábricas nacionais e dos Assinale a alternativa que apresenta a definição
instrumentos de produção, desbravamento e melhoria CORRETA do que é a “produção da vida material”.
das terras segundo um plano coletivo; A) É o desenvolvimento das forças produtivas materiais,
8) obrigação de trabalho igual para todos; isto é, a estrutura econômica da sociedade.
constituição de exércitos industriais, especialmente para a B) É a geração da sociedade civil a partir dos valores
agricultura; espirituais que determinam a ordem jurídica da sociedade.
9) unificação do exercício da agricultura e da C) É a superestrutura jurídica e política que, sob a forma
indústria, medidas adequadas para eliminar gradualmente de Estado nacional, alimenta o tecido social.
o antagonismo entre cidade e campo; D) São os agentes da ordem absoluta e imutável da razão
10) instrução pública e gratuita de todas as universal que criam a sociedade civil.
crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas fabricas
em sua forma atual. 3. (UFU) “Por sua formação filosófica, Marx concebia a
Combinação da instrução com a produção realidade social como uma concretude histórica, isto é,
material e assim por diante”. como um conjunto de relações de produção que
A realização dessas medidas deveria ser a fase caracteriza cada sociedade num tempo e espaço
intermediaria da transição da sociedade burguesa para a determinados (...). Por outro lado, cada sociedade
sociedade comunista. representava para Marx uma totalidade, isto é, um
Posteriormente, ter-se-ia o “salto para a conjunto único e integrado das diversas formas de
liberdade”; então, “a velha sociedade burguesa, com suas organização humana nas suas mais diversas instâncias –
classes e antagonismos entre as classes, sucede uma família, poder, religião”.
associação em que o livre desenvolvimento de cada um é COSTA, Cristina. Sociologia – introdução à ciência da sociedade, 3ª
condição para o livre desenvolvimento de todos”. ed., São Paulo: Moderna, 2005. p. 123-124.
Com base nesse trecho e na teoria social de Karl Marx,
QUESTÕES marque a alternativa correta.
A) A consciência é um fenômeno autônomo diante do
1. (UFU 2009) Leia atentamente o texto abaixo e assinale processo produtivo e das relações sociais de produção, o
a alternativa que indica com qual teoria filosófica ele se que nos leva a concluir que há uma evolução das ideias
relaciona. sociais.
“É possível afirmar que a sociedade se constitui a partir B) A dominação de classes no capitalismo é um processo
de condições materiais de produção e da divisão social do econômico que prescinde das esferas política, ideológica
trabalho, que as mudanças históricas são determinadas e jurídica.
pelas modificações naquelas condições materiais e C) As transformações sociais decorrem, natural e
naquela divisão do trabalho e que a consciência humana fundamentalmente, da evolução das forças produtivas,
é determinada a pensar as idéias que pensa por causa das principalmente, da ciência e da tecnologia.
condições materiais instituídas pela sociedade.” D) A totalidade social, para Marx, não é indeterminada,
CHAUÍ, M. Filosofia. São Paulo: Ática, 2007. pois a instância da produção e reprodução das condições
Este texto descreve materiais de existência é essencial, sendo que outras
A) a concepção de Marx, que escreveu obras como instâncias são reflexos da economia.
Contribuição à Economia Política e O Capital.
B) a concepção de Nicolau Maquiavel, que escreveu, 4. (UFU) Em O Dezoito Brumário, de Luís Bonaparte, Karl
dentre outras obras, O Príncipe. Marx sustenta que ... os homens fazem sua própria
C) a concepção de Thomas Hobbes, autor do Leviatã. história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob
D) a concepção de Jean Jacques Rousseau, autor de O circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que
Contrato Social. se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo
passado.
2. (UFU 2015) O modo de produção da vida material MARX, K. O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. In Manuscritos
condiciona o processo em geral de vida social, político e econômico filosóficos e outros textos escolhidos. (Seleção de textos: José Arthur
Giannotti). São Paulo, Abril Cultural, 1978. p. 329. Coleção Os Pensadores.
espiritual. Não é a consciência dos homens que determina
o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que Sobre essa concepção de “fazer histórico”, marque a
determina a sua consciência. alternativa correta.
MARX, K. Para a Crítica da Economia Política. Tradução de José Arthur A) A sociedade é o resultado da práxis humana, que
Giannotti e Edgar Malagodi. São Paulo: Nova Cultural, 1987. Coleção “Os expressa, a partir de cada causalidade, os projetos ou as
Pensadores”. P. 30. visões de mundo que prevaleceram nas lutas de classe.
294
13
B) O passado é irresistível e sua reprodução é a regra nas 16) As classes sociais são definidas segundo a posição que
relações sociais, no sentido de reiteração da ordem posta. ocupam nas instituições que compõem a dimensão
C) As transformações históricas decorrem da intervenção superestrutural das sociedades.
da vontade, independentemente, das circunstâncias
existentes. 7. (UFU 2011) Ao tratar do método utilizado por Karl
D) A história é imutável, quando muito cíclica, pois os Marx para compor O Capital, Jacob Gorender afirma que
movimentos possíveis não podem romper a existência de “[...] Marx não partiu do conceito de valor, mas da
classes sociais. mercadoria, isto é, da célula germinativa do modo de
produção capitalista”.
5. (UFU 2011) Segundo Marx, o fator fundamental do Diante do exposto e dos seus conhecimentos acerca da
desenvolvimento social assenta-se nas contradições da obra desse teórico, assinale a alternativa INCORRETA.
vida material, na luta entre as forças produtivas da A) O fetiche da mercadoria reflete aos homens as
sociedade e as relações sociais de produção que lhe características sociais do seu trabalho como se fossem
correspondem. propriedades do próprio produto. Por este motivo, o
Analisando a frase acima, assinale a alternativa correta fetiche da mercadoria provém de seu valor de uso.
sobre as relações sociais de produção e forças produtivas B) O valor de uso é o suporte físico do valor das
em Marx. mercadorias.
A) Dizem respeito às relações sociais que os homens C) O caráter duplo do valor de uso e do valor de troca
estabelecem entre si para utilizar os meios de produção, resulta do caráter também do próprio trabalho que o
transformando a si mesmos e a natureza. produz: trabalho concreto e trabalho abstrato.
B) Correspondem às relações entre os homens no âmbito D) Na sociedade capitalista, a riqueza pode ser
estritamente econômico posto que a esfera econômica compreendida como uma imensa coleção de mercadorias.
determina a estrutura social.
C) Dizem respeito às ações individuais dos homens no 8. (UFU 2012) Em uma passagem de As aventuras do Barão
livre mercado, o qual é marcado pelas leis de oferta e de Munchausem, personagem do folclore alemão, ele e seu
procura. cavalo encontram-se atolados em um pantanal e, para sair
D) Correspondem a uma relação social definida pela dessa situação, o Barão puxa a si mesmo pelo cabelo,
lógica do mercado, na qual os homens orientam levantando-se, com sua montaria, do terreno movediço.
individualmente suas ações em um determinado sentido. Em mais de uma ocasião, os sociólogos usaram essa
metáfora para aludir ao modo pelo qual os positivistas
6. (UEM 2012) A sociologia marxista propõe uma procuravam um método objetivo, neutro, livre das
interpretação da sociedade que toma as condições ideologias.
materiais de existência dos homens como fator Em oposição a essa suposta objetividade, Marx criticou
determinante dos fenômenos sociais. Sobre essa veementemente os positivistas, uma vez que, para o
concepção, assinale o que for correto. autor,
01) Forças produtivas e relações sociais de produção são A) o método possui uma objetividade parcial, pois na
os dois componentes básicos da infraestrutura que escolha do objeto entra em ação a ideologia do autor, que
determinam em última instância as demais dimensões da não interfere, entretanto, na análise dos acontecimentos.
vida social. B) a análise social, a partir da perspectiva do operariado,
02) Instituições como a Escola, o Estado e a Igreja fazem deve contribuir para a harmonia das relações sociais de
parte da superestrutura social, dotada de autonomia produção.
frente às determinações econômicas de cada momento C) a análise das condições de vida do proletariado
histórico. europeu do século XIX deve incidir sobre a crítica social,
04) Mudanças na estrutura social são desencadeadas com vistas à reforma da sociedade burguesa.
quando se desenvolvem incongruências entre a D) o método deve contribuir não só para a interpretação,
infraestrutura produtiva e a superestrutura, com mas igualmente para a transformação social.
predomínio da primeira sobre a última.
08) As instituições que compõem a superestrutura 9. (UFU 2013) E se, em toda ideologia, os homens e
desempenham importantes funções de controle social e suas relações aparecem invertidos como numa câmara
ideológico que contribuem para a manutenção das escura, tal fenômeno decorre de seu processo histórico
relações produtivas vigentes. de vida, do mesmo modo porque a inversão dos objetos
na retina decorre de seu processo de vida diretamente
físico.
295
14
MARX, Karl, A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1987. p. 37. 01) A passagem da manufatura para indústria gerou um
Com essa famosa metáfora, Marx realiza a definição de processo de modificação do espaço natural que foi
ideologia como inversão da realidade, da qual decorre bastante equilibrado, sem prejuízos ao meio ambiente.
para ele 02) O trecho acima se refere ao contexto de formação da
A) a alienação da classe trabalhadora. sociedade capitalista e à composição dos antagonismos de
B) a consciência de classe dos trabalhadores. classe, os quais opõem proprietários dos meios de
C) a existência de condições para a práxis revolucionária. produção e proprietários da força de trabalho.
D) a definição de classes sociais. 04) As relações estabelecidas pelas classes sociais na
sociedade burguesa moderna são pautadas pela
10. (UFU 2014) Uma das condições históricas para o cooperação, a qual conduz ao desenvolvimento
desenvolvimento do capital foi o trabalho livre e a troca econômico gerador de melhor condição de vida para
de trabalho livre por dinheiro, outra foi a separação do todos.
trabalho livre das condições objetivas de sua efetivação – 08) As relações de troca se revolucionaram em virtude de
dos meios e material do trabalho. o crescimento da burguesia moderna ter ocorrido na
K. Marx, Formações econômicas pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e mesma proporção do crescimento da produção
Terra, 1985, p. 65.
industrial.
Nesse trecho, Marx se refere à especificidade do trabalho
16) O desenvolvimento da indústria está assentado no
na sociedade capitalista, quando comparado com as
emprego do trabalho humano, o único detentor de
formações econômicas que a precederam.
conhecimento para alterar a matéria-prima, a partir do
Com base nas informações fornecidas, é correto afirmar
uso de instrumentos que ele mesmo produz.
que,
A) no feudalismo, diferentemente do que ocorre no
12. (UEM 2014) Publicado por Karl Marx e Friedrich
capitalismo, o camponês, embora preso a um sistema de
Engels, em 1848, o “Manifesto do Partido Comunista”
obrigações, era proprietário das ferramentas de trabalho.
ainda hoje pode ser considerado como um influente
B) nas corporações de oficio, de forma semelhante ao que
tratado de ideias políticas que dirige severas críticas ao
ocorre no capitalismo, havia a divisão social do trabalho.
modo de produção capitalista. Considerando essa obra e
C) no capitalismo, diferentemente do que ocorreu no
os estudos sociológicos sobre o marxismo, assinale o que
feudalismo, desaparece o camponês livre que cede a sua
for correto.
liberdade para dar lugar ao surgimento do assalariado.
01) A obra de Marx e de Engels foi escrita em um período
D) para desenvolver o capitalismo, os artesãos
de ascensão do capitalismo e de crescimento das
independentes da Idade Média compraram a sua
desigualdades sociais entre burgueses e proletários.
liberdade e se transformaram em trabalhadores livres.
02) Em Marx e Engels, a história das sociedades é descrita
por meio da história das lutas de classe que têm levado ao
11. (UEM 2011) Escrito há quase duzentos anos, por
enfrentamento entre dominantes e dominados.
Karl Marx e Friedrich Engels, o Manifesto Comunista
04) Para Marx e Engels, a divisão social do trabalho na
denunciava as desigualdades sociais vividas pelos homens
sociedade capitalista foi capaz de emancipar os homens,
na sociedade capitalista. Leia trecho dessa obra,
mas não as mulheres.
reproduzido a seguir, e assinale o que for correto sobre o
08) De acordo com Marx e Engels, os conflitos sociais,
desenvolvimento econômico.
políticos e econômicos devem ser evitados para que a
“A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas
revolução proletária seja pacífica e não violenta.
da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos das
16) Segundo Marx e Engels, o conhecimento da realidade
classes. Estabeleceu novas classes, novas condições de
social deve estar orientado para a transformação da
opressão, novas formas de luta no lugar das antigas [...] A
sociedade.
manufatura já não era suficiente. Em consequência disso,
o vapor e as máquinas revolucionaram a produção
13. (UEM 2014) Considerando as contribuições de Karl
industrial. O lugar da manufatura foi tomado pela
Marx e da teoria marxista para a compreensão da
indústria gigantesca moderna, o lugar da classe média
economia política capitalista, assinale o que for correto:
industrial, pelos milionários da indústria, líderes de todo
01) Marx afirma que a moderna economia política
o exército industrial, os burgueses modernos”
(MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido
capitalista foi instituída na Europa do século XIX por
Comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, 10ª meio da aceitação generalizada de sua ideologia.
Edição, p.09 e 11 – Coleção Leitura). 02) A teoria marxista contribui para o entendimento de
que os modernos processos de exploração e alienação das

296
15
forças de trabalho são o resultado de um sistema social 15. (UEL 2011) Observe a charge.
de produção que pode ser transformado.
04) Segundo Marx, as empresas passaram a respeitar e a
valorizar seus empregados a partir do momento em que
se conscientizaram do papel central que eles ocupam no
processo produtivo.
08) A teoria marxista explica que o sistema capitalista de
produção se tornou a forma mais justa e democrática de
combater as desigualdades nas sociedades modernas.
16) A obra de Marx contribuiu para o reconhecimento
das leis de mercado enquanto fatos sociais independentes
da ação humana, e que devem ser obedecidas para se
manter a coesão social.

14. (UEL 2009) [...] Ramón vivia do seu trabalho e tinha


que pagar um apartamento e a comida, e inclusive as
folhas de papel para poder escrever nos fins de semana.
Já sabia que introduzir no computador um argumento e
os nomes dos personagens para que realizasse um
primeiro esboço não era a mesma coisa que escrever uma
novela desde o princípio, mas as coisas agora estavam
desse jeito. O mundo editorial tinha mudado, os livros já
não eram concebidos como obras de artesanato criadas
na mente de um só homem sem nenhuma ajuda exterior.
(SAORÍN, J. L. A curiosa história do editor partido ao meio na era
dos robôs escritores. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005. p. 109).
O texto remete a formulações presentes na análise de
Marx sobre o desenvolvimento do capitalismo. Quanto à
posição de Marx em relação ao tema abordado no texto,
é correto afirmar.
I. Com o advento da sociedade comunista, o trabalho
desaparece e instaura-se um ordenamento social em que (Disponível em:
a preocupação do indivíduo será basicamente com o <http://complexowill.blogspot.com/2010/08/precisamos-
exercício do lazer. aprender-novos-conceitos.html>. Acesso em: 24 out. 2010.)
II. O avanço das forças produtivas torna-se desnecessário Com base na charge e nos conhecimentos sobre a teoria
em uma sociedade socialista, uma vez que as máquinas, de Marx, é correto afirmar:
responsáveis pelo sofrimento humano, serão substituídas a) A produção mercantil e a apropriação privada são
por um retorno à produção artesanal. justas, tendo em vista que os patrões detêm mais capital
III. A tendência do movimento do capital é no sentido de do que os trabalhadores assalariados.
uma contínua desqualificação da força de trabalho. b) Um dos elementos constitutivos da acumulação
Deste modo, intensifica-se a unilateralidade do ser que capitalista é a mais-valia, que consiste em pagar ao
trabalha e sua degradação física e psíquica. trabalhador menos do que ele produziu em uma jornada
IV. A revolução contínua das forças produtivas é uma de trabalho.
necessidade inerente ao processo de acumulação c) A mercadoria, para poder existir, depende da existência
capitalista e está na base da expansão deste modo de do capitalismo e da substituição dos valores de troca
produção e da constituição do mercado mundial. pelos valores de uso.
Assinale a alternativa correta. d) As relações sociais de exploração surgiram com o
a) Somente as afirmativas I e II são corretas. nascimento do capitalismo, cuja faceta negativa está em
b) Somente as afirmativas I e III são corretas. pagar salários baixos aos trabalhadores.
c) Somente as afirmativas III e IV são corretas. e) Sob o capitalismo, os trabalhadores se transformaram
d) Somente as afirmativas I, II e IV são corretas. em escravos, fato acentuado por ter se tornado
e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas. impossível, com a individualização do trabalho e dos
salários, a consciência de classe entre eles.
297
16
16. (UEL 2008) Sobre a exploração do trabalho no divindade e invertem a relação quando acreditam que
capitalismo, segundo a teoria de Karl Marx (1818-1883), foram criados pelos deuses. Assinale o que for correto.
é correto afirmar: 01) Para Feuerbach, o verdadeiro fundamento do homem
a) A lei da hora-extra explica como os proprietários dos é apenas ele mesmo; assim, o único fundamento absoluto
meios de produção se apropriam das horas não pagas ao de todo pensamento humano é o homem como razão,
trabalhador, obtendo maior excedente no processo de como vontade, como coração.
produção das mercadorias. 02) A teoria da alienação religiosa de Feuerbach ofereceu
b) A lei da mais valia consiste nas horas extras trabalhadas uma contribuição importante à filosofia política,
após o horário contratado, que não são pagas ao particularmente à de Marx.
trabalhador pelos proprietários dos meios de produção. 04) Feuerbach critica a religião, todavia aceita a teologia,
c) A lei da mais-valia explica como o proprietário dos pois acredita que ela pode nos conduzir a um
meios de produção extrai e se apropria do excedente conhecimento racional da essência de Deus.
produzido pelo trabalhador, pagando-lhe apenas por uma 08) A crítica de Feuerbach à alienação religiosa levou
parte das horas trabalhadas. Marx a aderir à filosofia existencialista de Feuerbach.
d) A lei da mais valia é a garantia de que o trabalhador 16) Quando Marx declara que a religião é o ópio do povo,
receberá o valor real do que produziu durante a jornada ele concorda com Feuerbach que a religião é uma
de trabalho. alienação; para Marx, a religião amortece a combatividade
e) As horas extras trabalhadas após o expediente dos oprimidos e dos explorados, porque lhes promete
constituem-se na essência do processo de produção de uma vida feliz no futuro e no outro mundo.
excedentes e da apropriação das mercadorias pelo
proprietário dos meios de produção. 19. (UNICENTRO 2012) A Filosofia Marxista é
também conhecida como filosofia
17. (UEM 2010) Hegel criticou o inatismo, o empirismo A) estética.
e o kantismo. Endereçou a todos a mesma crítica, a de B) da práxis.
não terem compreendido o que há de mais fundamental C) da convivência.
e essencial à razão: o fato de ela ser histórica. Com base D) da sensibilidade.
nessa afirmação, assinale o que for correto. E) da intersubjetividade.
01) Ao afirmar que a razão é histórica, Hegel considera a
razão como sendo relativa, isto é, não possui um caráter 20. (UNICENTRO 2012) “Na produção social de sua
universal e não pode alcançar a verdade. existência, os homens estabelecem relações
02) Não há para Hegel nenhuma relação entre a razão e a determinadas, necessárias, independentes da sua vontade,
realidade. Submetida às circunstâncias dos eventos relações de produção que correspondem a um
históricos, a razão está condenada ao ceticismo, isto é, determinado grau de desenvolvimento das forças
“ao duvidar sempre”. produtivas materiais.” (MARX, 2009, p. 23).
04) A identificação entre razão e história conduz Hegel a A partir da análise desse fragmento de texto, é correto
desenvolver uma concepção materialista da história e da afirmar:
realidade, negando entre ambas a possibilidade de uma A) A existência para Marx se reduz à transcendência.
relação dialética. B) O pensamento marxista pode ser denominado de
08) No sistema hegeliano, a racionalidade não é mais um materialista mecanicista.
modelo a ser aplicado, mas é o próprio tecido do real e C) As relações de produção para Marx determinam a
do pensamento. O mundo é a manifestação da ideia, o produção social da existência.
real é racional, e o racional é o real. D) As forças produtivas materiais não têm importância
16) Karl Marx, ao afirmar, na Ideologia alemã, que não é a para o pensamento marxista.
história que anda com as pernas das ideias, mas as ideias E) O conceito de relações de produção, em Marx, está
é que andam com as pernas da história, critica, ao mesmo restrito às classes dominantes.
tempo, o idealismo e a concepção da história de Hegel e
dos neo-hegelianos. 21. (UNICENTRO 2014) O trabalhador é tanto mais
pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais cresce
18. (UEM 2009) Na obra A Essência do Cristianismo, sua produção em potência e em volume. O trabalhador
Feuerbach faz uma crítica à religião cristã. Para ele, o converte-se em uma mercadoria tanto mais barata quanto
homem aliena sua essência na religião, pois os seres mais mercadorias produz. A desvalorização do mundo
humanos se esquecem de que foram os criadores da humano cresce na razão direta da valorização do mundo
das coisas. O trabalho não apenas produz mercadorias,
298
17
produz também a si mesmo e ao operário como I. A ideologia atua como consciência falsa da realidade,
mercadoria, e justamente na proporção em que produz porém consciência necessária aos homens em sua
mercadorias em geral. convivência e em sua atividade social.
MARX, K; ENGELS, F. Crítica da educação e do ensino. Lisboa: II. Ideologia são as ideias da classe que domina uma
Moraes, 1978. p.94. sociedade, as quais influenciam toda a sua população,
A partir da reflexão de Karl Marx acerca do trabalho na independentemente do grau de consciência.
sociedade capitalista, considere as afirmativas a seguir. III. O pensamento de Marx e Engels evidencia que as
I. Com a consolidação do capitalismo, Karl Marx definiu nossas escolhas estão ligadas à ideologia, ou seja, aos
duas classes sociais que estão em permanente conflito e nossos próprios ideais, independentemente dos interesses
em contradição na sociedade: a burguesia, detentora dos daqueles que dominam a sociedade.
meios de produção e do capital, e o proletariado, que IV. É um sistema de pensamento neutro, pois não
necessita vender a sua força de trabalho em troca de influencia na legitimação ou manutenção da ordem social
salário por não ter os meios de produção e capital. existente, ou para a sua transformação.
II. O trabalho se transforma em força de trabalho quando Assinale a alternativa correta.
se torna uma mercadoria que pode ser comprada e a) Somente as afirmativas I e II são corretas.
vendida. E, para que ele se transforme em mercadoria, é b) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
necessário que o trabalhador seja desvinculado de seus c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
meios de produção, ficando apenas com a sua força de d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
trabalho para vender. e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.
III. Karl Marx identifica os operários como mercadoria
pelo fato de estes venderem a sua força de trabalho. 23. (UNICENTRO 2015) Um dos aspectos essenciais
Contudo, o autor apresenta perspectivas positivas em do pensamento de Karl Marx é a elaboração simultânea
relação à sociedade capitalista, já que existem avanços em do método de análise e de interpretação do capitalismo.
relação à sociedade feudal. Com base nos conhecimentos sobre esse autor, quando
IV. Ainda que exista divisão de classes e acentuadas analisa a sociedade capitalista, considere as afirmativas a
desigualdades sociais, na perspectiva de Karl Marx, a seguir.
sociedade capitalista obteve grandes avanços, I. Aceita como verdadeiras as teorias e as teses otimistas
considerando que os trabalhadores passam a ser dos economistas políticos clássicos acerca da divisão
assalariados, ao contrário do feudalismo, cujas relações social do trabalho e seu impacto na eliminação da
baseavam-se nas relações servis. alienação.
Assinale a alternativa correta. II. Considera que as estruturas de apropriação econômica
a) Somente as afirmativas I e II são corretas. e de dominação política são dimensões fundamentais e
b) Somente as afirmativas I e IV são corretas. combinadas que explicam as relações sociais.
c) Somente as afirmativas III e IV são corretas. III. Interpreta como o processo de mercantilização das
d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas. relações sociais, as pessoas e as coisas produzem as
e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas. contradições que fundamentam a transformação da
sociedade.
22. (UNICENTRO 2014) O Holocausto foi o IV. Revela como o materialismo histórico e o
genocídio dos judeus durante a II Guerra Mundial. “O materialismo dialético constituem um processo teórico-
pensamento ideológico que estava por trás daquele prático de reflexão sobre a produção da mercadoria e da
terrível ato que exterminou cerca de 6 milhões de judeus, mais-valia.
que não eram reconhecidos como seres humanos, era a Assinale a alternativa correta.
ideia de superioridade da ‘raça ariana’ alemã. A a) Somente as afirmativas I e II são corretas.
perseguição e o extermínio dos nazistas alemães contra os b) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
judeus ficaram conhecidos na história como c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
antissemitismo”. d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
Adaptado de: SILVA, S. A. S. Diversidade Cultural Brasileira.
Sociologia/vários autores. Curitiba: SEED-PR, 2006. p.142.
e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.
Na obra A Ideologia Alemã, manuscrito redigido por
Karl Marx e Friedrich Engels, os autores apresentam
alguns componentes básicos acerca do conceito de
Ideologia.
Com base nos conhecimentos sobre essa obra, considere
as afirmativas a seguir.
299
18
GABARITO
QUESTÕES MARX
1. a
2. a
3. d
4. a
5. a
6. 01/04/08
7. a
8. d
9. a
10. a
11. 02/08/16
12. 01/02/16
13. 01/02
14. c
15. b
16. c
17. 8/16
18. 1/2/16
19. b
20. c
21. a
22. a
23. e

300
19
SOCIOLOGIA BRASILEIRA problemas no âmbito da formação social, sobretudo no
ambiente universitário que se estruturava.
Desde sua consolidação, nos anos 1930, até os A influência das discussões sociológicas, por
dias de hoje, a Sociologia feita no Brasil sofreu vezes trazida na bagagem de brasileiros que iam estudar
influência de teses e teorias desenvolvidas em outros em países europeus ou nos Estados Unidos, refletia a
países. contradição entre o que a sociedade brasileira era de
A sociedade brasileira foi analisada a partir das fato e aquilo que poderia ou deveria ser.
relações sociais, políticas, econômicas e ideológicas Muitas dessas interpretações viam o Brasil com
estabelecidas com outras sociedades, em especial com os olhos de outras sociedades. O resultado foram
as sociedades capitalistas do mundo ocidental. interpretações que problematizaram as particularidades
Em cinco séculos de história, a sociedade do Brasil na medida em que as contrapunham a outras
brasileira ganhou feições muito particulares, o que dinâmicas sociais.
exigiu de seus intérpretes a análise das singularidades Após a proclamação da República, a questão
que lhe conferem uma cultura própria, distinta das central passou a ser a definição dos aspectos centrais da
demais sociedades capitalistas. formação da sociedade brasileira. Assim, a importância
Primeiramente apresentaremos uma visão do passado colonial esteve presente na maioria dos
panorâmica das interpretações do Brasil do final do livros que discutiram a formação social do país.
século XIX e começo do século XX. No segundo, Em 1920, o historiador e sociólogo Oliveira
vamos analisar o conjunto de intérpretes mais Vianna publicou Populações meridionais do Brasil, livro que
significativos do Brasil dos anos 1930 e sua importância destaca as diferenças entre o povo brasileiro e os
no processo de consolidação da sociologia brasileira. demais. Motivado por sua tese de que o Brasil teria sido
No terceiro item passamos ao tema da questão racial, formado por brancos, apesar da presença de índios,
entendido a partir do legado da escravidão. Por fim, no mestiços e negros, Oliveira Vianna prevê uma nação
item quatro será dedicado ao debate em torno das embranquecida, em razão da forte imigração europeia e
questões do subdesenvolvimento e da dependência da suposta maior fecundidade dos brancos em relação
econômica. às outras “raças”.
Em 1933 Gilberto
1. Interpretações do Brasil Freyre (1900 – 1987)
publicou Casa-grande &
No final do século XIX e início do XX, tomou senzala, livro que o sociólogo
forma um conjunto de análises sobre as particularidades e crítico Antônio Candido
do Brasil que buscava investigar como a nação se (1918-) considera ser uma
formou, quais seriam as bases dessa formação social, ponte entre o naturalismo
em que medida o passado colonial e escravista teria que marcou antigas
influenciado essa formação, quais seriam as interpretações (como as de
características centrais da identidade social brasileira. Silvio Romero e Euclides da
Mais tarde, entre as décadas de 1950 e 1960, Cunha) e a contribuição
essas questões se ampliaram e diversificaram, com sociológica que se
temas sobre qual seria o papel econômico e político do desenvolveu a partir dos anos 1940.
Brasil diante da divisão internacional do trabalho e Natural de Recife, ele foi um dos pioneiros das
como se dava a relação de dependência com os países Ciências Sociais no Brasil. O sociólogo foi estudioso,
de economia mais avançada. professor universitário no Brasil e em universidades da
Nos dias de hoje, uma questão central é como o América Latina, Estados Unidos e da Europa. Publicou
Brasil reproduz seu passado de desigualdades sociais, mais de 30 livros e alguns foram traduzidos para mais
seja por consequência da escravidão, seja em razão do de 15 idiomas.
papel subalterno diante de países economicamente mais Dedicou-se a estudar e a compreender o Brasil
ricos como Estados Unidos, Alemanha, França, em seus aspectos sociológico, antropológico e
Inglaterra e, mais recentemente, a China. histórico, e para tanto, tratou do processo civilizador do
Durante os períodos colonial e imperial, o Brasil, tendo feito uma abordagem culturalista, na qual
Brasil foi marcado pela produção agrícola escravista e estabeleceu uma distinção entre raça e cultura,
formas de organização social predominantemente rejeitando as ideias racistas.
rurais e nucleadas na esfera familiar. Defendeu que a miscigenação e os mestiços no
Após a proclamação da República (1889), o Brasil são uma herança cultural (mistura de povos)
país passou a experimentar o trabalho assalariado e a positiva porque, segundo ele, a miscigenação é o
vida urbana, o que gerou novas contradições e elemento de formação da identidade nacional brasileira
e, também, uma proteção contra os conflitos étnicos e
raciais.
301
1
Freyre desenvolve o argumento de que a música, o hábito de tomar banho, dormir na rede e
miscigenação seria o traço cultural central da sociedade tantas outras características que estão enraizadas na
brasileira. Mas ao contrário de interpretações anteriores, cultura do Brasil.
não vê a mestiçagem de forma negativa e enfatiza a Gilberto Freyre dedicou-se a entender o Brasil
necessidade de substituir o conceito de “raça”, e, para isso, não desprezou as raças, mas a partir da
largamente difundido no Brasil, pelo conceito de miscigenação procurou encontrar a identidade nacional.
cultura. Segundo ele, a família patriarcal foi a base sobre O autor valorizou os diferentes grupos étnicos e
a qual a mestiçagem se desenvolveu no Brasil. ressaltou a contribuição que eles deram para a formação
Localizada sobretudo no meio rural, particularmente no da sociedade brasileira.
latifúndio monocultor do Nordeste brasileiro, a família Apesar de ter sido um dos fundadores da
patriarcal constituiu, assim, a forma social ideal para que sociologia brasileira, de ter tido relevância internacional,
a “raça” branca, colonizadora, se relacionasse com as Freyre foi bastante criticado principalmente aqui no
demais “raças”. Brasil. Vários setores da sociedade e intelectuais
A abordagem culturalista de Freyre sugere que conservadores não aceitaram a ideia da mestiçagem e da
a proximidade entre as culturas explicaria o caráter herança cultural negra. Nesta fase, em 1930, o país
sincrético de nossa formação social, algo oposta às passava pela ideia da defesa da eugenia e do
culturas puras (como a Grega, por exemplo). A “branqueamento” da raça.
proximidade seria resultado da influência cristã herdada Para aqueles que defendiam a superioridade da
dos portugueses, contrário ao elemento despótico raça branca, se verem confrontados com um
oriental herdado dos mouros. Neste sentido, podemos pensamento que não só defendia, mas também atribuía
afirmar que a ideia de trópico em Freyre seria importância à mestiçagem foi algo conflitivo. Neste
responsável pela ponte entre cultura e geografia, bem contexto, Gilberto Freyre enfrentou muitas críticas,
como pela sustentação das contradições em equilíbrio. mas através de três obras importantes, Casa-grande &
É importante a noção de “neolamarkianismo” para senzala (1933), Sobrados e Mucambos (1936) e Ordem e
entendermos sua metodologia. Progresso (1959) ele compôs a trilogia teórica cujo foco
O povo brasileiro é considerado não como passa pelo período colonial, império e transição do
simples soma de três “raças”, mas como resultado de império para a república.
um encontro mais complexo, que remete à formação da A partir dessa trilogia ele construiu um
cultura brasileira. panorama da sociedade brasileira, demonstrando o
Em Casa-grande & senzala, sua principal obra, estudo de todas as transformações econômicas pelas
Freyre tratou muito bem da questão da miscigenação e quais o Brasil passou, desde o ciclo da cana-de-açucar
deixou claro que se trata da “mistura de cores” que até o início da industrialização no século XX.
possibilitou a construção de uma “democracia racial”. Diferentemente de
Ele defende sua tese central sobre a democracia racial, Freyre, o historiador e
sempre observando o predomínio dos aspectos economista Caio Prado Júnior
culturais em relação aos “raciais”. Nesses termos, a (1907-1990), nos livros Evolução
mestiçagem é entendida como uma vantagem e a política do Brasil (1933) e Formação
desmitificação do negro como ser “selvagem” é um do Brasil contemporâneo (1942)
tema central. interpreta o passado colonial
baseando-se na produção,
distribuição e consumo de
mercadorias.
Em Formação do Brasil
contemporâneo, a história brasileira é contada do ponto de
vista da produção, distribuição e consumo da riqueza.
O Brasil é analisado como parte do processo da
expansão mercantil europeia.
Para Caio Prado, a formação do Brasil se deu de
fora para dentro, tendo o país se estruturado como
Ele criou um novo conceito para a sociedade
fornecedor de produtos tropicais, a exemplo da cana-
brasileira, pensou o “ser brasileiro” e definiu a formação
de-açúcar. Segundo esse autor, a história do Brasil deve
da sociedade brasileira a partir de três raças: índio,
ser entendida num âmbito mais amplo, que tem relação
africano e português.
direta com as formas de expansão do comércio europeu
O índio e o negro, retratados em Casa-grande &
na América do Sul.
senzala, não foram colocados ao lado da sociedade
As massas de escravos, semiescravos, pobres,
brasileira, mas foram inseridos nela através da influência
explorados e empobrecidos são examinadas e ganham
cultural do nosso povo desde a comida, a dança, a
importância na obra de Caio Prado. O autor aponta
302
2
também para a especificidade que se manifesta desde a momento. A seguir, vamos examinar os pontos centrais
colônia, diferenciando a sociedade brasileira da das obras de Sérgio Buarque e Caio Prado Júnior, já que
portuguesa. Segundo ele, desde a época colonial os a perspectiva de Gilberto Freyre foi comentada quando
brasileiros teriam adquirido forma própria, diferente da abordamos antropologia brasileira.
forma indígena e da portuguesa. E consequentemente, Como vimos, Sérgio Buarque adota o
nós, brasileiros, teríamos começado a desenvolver uma referencial weberiano para analisar o Brasil do período
mentalidade coletiva singular. colonial. Sua inserção no debate se dá pela denúncia dos
Outro autor fundamentos agrários e patriarcais presentes na
importante desse período foi sociedade brasileira. Mostra-se também contrário às
Sérgio Buarque de teorias racistas e, aproximando-se de Gilberto Freyre,
Holanda (1902-1982), que entende que a mestiçagem teve papel central na
publicou em 1936, três anos construção da identidade nacional. Não obstante, essa
depois de Casa-grande & aproximação não pode ser percebida com relação à
senzala e com escrita herança rural.
completamente diversa da de Enquanto Gilberto Freyre faz uma
Freyre, o livro Raízes do Brasil. interpretação positiva do passado rural, como algo
De estilo mais próprio de nossa cultura e que não deveria ser
conciso, a obra aborda o sentido político da descrença transformado, Sérgio Buarque enfatiza a necessidade da
no liberalismo tradicional e busca possíveis soluções. transformação social, da constituição de um conjunto
Tem como condicionantes teóricos a história social de regras e normas destinadas a superar um passado de
francesa, a sociologia da cultura alemã, sobretudo a favorecimentos pessoais originários das oligarquias
influência de Max Weber, e a teoria sociológica e rurais.
etnológica. Alicerçando seu raciocínio nos tipos ideais
O livro de Sérgio Buarque inseriu-se no debate weberianos, Sérgio Buarque constitui um etos nacional,
sobre o estudo das origens e formação da sociedade isto é, um conjunto de características que se sintetizam
brasileira. O autor dialoga com o historiador Manoel em uma cultura específica, na medida em que explicita
Bomfim (1868-1932) e com o pensador e político os traços marcantes da sociedade brasileira da época.
Alberto Torres (1865-1917), entre outros autores, e Esse etos nacional tem um sentido histórico e se
especialmente com Oliveira Vianna, ao criticar a visão fundamenta em uma relação dialética própria da
autoritária desse autor sobre a formação social do sociedade brasileira.
Brasil. De um lado, Sérgio Buarque assinala a
Com Raízes do Brasil, Sérgio Buarque objetiva modernização da sociedade brasileira, de outro, o
conhecer o passado com vistas para o futuro, conservadorismo que tenta bloquear essa
preocupando-se com a transformação social. Assim, o modernização.
movimento geral da obra consiste em apresentar as Para esse autor, o tipo ideal que explicita esse
características da nação brasileira, os marcos principais processo contraditório é o homem cordial. Ele seria a
de mudança e os caminhos para a transformação futura. chave analítica para compreender como certos setores
As questões centrais de sua análise giram em da sociedade brasileira resistem ao processo de
torno da oposição entre o mundo rural e o mundo modernização. Segundo ele, a modernização representa
urbano e entre a esfera privada e a esfera pública. Na a construção de uma nova sociabilidade, que coloca em
concepção de Sérgio Buarque de Holanda, é preciso risco o universo das relações de favorecimento. Nesse
superar essas raízes, para que nossa sociedade seja sentido, o Estado moderno e não centralizador é visto
modificada. Com esse objetivo em vista, o autor traça como hostil e as relações pessoais são ativadas na
um panorama histórico do Brasil que se inicia no tentativa de frear esse processo.
período colonial, passa pelo Império e pela República, A cordialidade marca, para Sérgio Buarque, um
até os anos 1930. conjunto de relações que configuram um grupo social
particular. Ela sintetiza uma forma de conduta social,
2. A geração de 1930 nem sempre consciente, que procura frear a
modernização da sociedade brasileira e conservar as
Na década de 1930, Gilberto Freyre, Caio relações sociais de favorecimento pessoal. A
Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda deram evolução da sociedade brasileira, para esse autor, deve
forma científica à sociologia brasileira. Amparados, superar essas características e se pautar na busca de uma
respectivamente, nas obras de Franz Boas, Karl Marx e sociedade civilizada, uma sociedade urbana e
Max Weber, formalizaram a Sociologia como ciência no cosmopolita que deixe para trás o mundo rural.
Brasil. A Sociologia de Sérgio Buarque examina, com
A importância desses autores foi decisiva base na análise da sociedade brasileira, a ligação estreita
quanto aos rumos da Sociologia a partir desse entre o que é público e o que é privado e seus limites.
303
3
A ausência de delimitações entre essas duas esferas da diretamente relacionada à expansão marítima e
vida social pode ser observada ainda hoje. O comercial europeia.
favorecimento teve, assim, uma dinâmica que O empreendimento comercial baseado na
transcendeu os anos 1930 e se pulverizou juntamente produção de gêneros tropicais para o mercado externo
com a modernização da sociedade brasileira, sobretudo fundamenta o raciocínio de Caio Prado Júnior, uma vez
no que se refere à burocracia estatal. que a colonização europeia assume a forma de
exploração e não de povoamento no Brasil. A formação
da sociedade brasileira, no período colonial, se
estruturou economicamente na produção de açúcar,
tabaco, e mais tarde na extração de ouro e diamantes,
em seguida na produção de algodão e de café,
atendendo o mercado europeu. Para o autor, a grande
propriedade (o latifúndio), a monocultura e o trabalho
escravo se apresentam, portanto, como as três
características centrais da formação social do Brasil nos
séculos XVI, XVII e XVIII.
A produção agrária, que tinha como centro
geopolítico o engenho e a fazenda, integrou-se aos
objetivos comerciais europeus. A figura que
predominou nesse período não foi a do pequeno
produtor rural, mas sim a do empresário explorador, o
Vemos casos de desvio de verbas e má empresário de um grande negócio.
administração de dinheiro público, nepotismo e Esse quadro histórico, essa herança, é destacada
corrupção, ao longo de todo o século XX e começo do por Caio Prado quando se propõe analisar a passagem
século XXI. Nesse sentido, a obra de Sérgio Buarque de da colônia para a nação. Para ele, é necessário
Holanda se situa como leitura fundamental para entender a nação a partir da colônia, observando
entender o processo histórico-social brasileiro. essa transformação como um processo histórico de
longa duração.
A análise que Caio Prado faz do século XIX
mostra-se importante sobretudo por dois motivos.
Primeiro porque faz um “balanço final” de três séculos
de colonização, depois porque se configura como
“chave insubstituível” para compreender a sociedade
brasileira que se constitui posteriormente.
Essa análise nos informa quão importante é
analisar o passado colonial e o período imperial para
entender o Brasil contemporâneo e a presença de
resquícios coloniais que contribuem decisivamente para
que esse autor considere a formação do país ainda
incompleta.

Caio Prado Júnior, por sua vez, tem como


objetivo caracterizar em que medida a formação do
Brasil está atrelada ao contexto de expansão do
mercado europeu.
A análise que desenvolve no livro Formação do
Brasil contemporâneo parte da metodologia marxista,
sobretudo no que diz respeito à compreensão do que
estaria oculto no processo de colonização da sociedade
brasileira. Sua análise busca identificar os elementos
estruturais que compuseram o Brasil colonial.
Para esse autor, a colonização do Brasil e suas Essa incompletude se deve, na visão de Caio
consequências históricas devem ser pensadas a partir da Prado, à permanência do Brasil em uma relação de
ideia que o Brasil se integrou a uma dinâmica maior,
304
4
subordinação e dependência em relação a outras madureza (supletivo), ingressou na Faculdade de
sociedades. Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
Para ele, o passado colonial ainda está de São Paulo em 1947, formando-se em Ciências
presente na sociedade brasileira quando ele observa Sociais. Doutorou-se em 1951 e foi assistente
que o trabalho livre não se organizou em todo o país, catedrático, livre docente e professor titular na cadeira
conservando traços do trabalho escravo. O mesmo de Sociologia.
raciocínio valeria para a produção extensiva destinada a Depois do golpe militar de 1964, protestou
atender os mercados no exterior e a ausência de um contra o tratamento dado a seus colegas presos e
mercado interno desenvolvido, que reproduz, assim, a também foi preso. Cassado em 1969 pelo AI-5, deixou
subordinação do Brasil em relação a economias de o Brasil e lecionou nas universidades de Toronto
outros países. (Canadá), Columbia e Yale (Estados Unidos).
Cabe-nos contextualizar o pensamento de Caio De volta ao Brasil em 1972, passou a lecionar
Prado, que se alinhava aos estudos historiográficos de na PUC-SP. Ligado ao Partido dos Trabalhadores (PT)
seu tempo. Nas últimas décadas, estudos históricos têm desde sua fundação, elegeu-se deputado federal em
destacado a dinâmica econômica colonial, a diversidade 1986 e 1990. Morreu em 1995, deixando uma obra
de atividades econômicas voltadas para o mercado fundamental.
interno e a importância dos pequenos produtores para Para Fernandes, a escravidão no Brasil toma
o desenvolvimento social e econômico do território formas distintas e se conecta direta e indiretamente com
durante o período colonial. os ciclos econômicos que teriam demarcado a história
do Brasil durante o período colonial (atualmente, esta
3. A escravidão e a questão racial ideia é refutada pelos historiadores, que defendem a
existência de atividades econômicas voltadas para o
A herança escravista e a questão racial, temas abastecimento interno e não uma economia
abordados por vários sociólogos durante o século XX, exportadora e “de ciclos”).
permanecem extremamente relevantes no século XXI. Em semelhança com a abordagem de Caio
Autores como o historiador Fernando Novais (1933-), Prado Júnior, Florestan Fernandes entende que o Brasil
os sociólogos Octavio Ianni e Fernando Henrique colônia se estruturou como uma economia exportadora
Cardoso (1931-) e mais recentemente os historiadores de produtos tropicais e que essa organização foi
Sidney Chalhoub (1957-), Silvia Hunold Lara (1955-), imposta pela metrópole portuguesa. A economia
Célia Maria Marinho de Azevedo (1951-), os sociólogos colonial foi marcada pela especialização em
Antonio Sérgio Guimarães (1952-) e Sérgio Costa determinados ramos produtivos, especialização que se
(1962-), o antropólogo Kabengele Munanga (1942-), manteve após a emancipação da colônia com a vinda da
entre tantos outros, procuram entender o peso, a família imperial portuguesa para o Brasil, em 1808.
influência e a importância desses temas para a sociedade Florestan Fernandes observa que as estruturas
brasileira. de dominação social do período colonial são
A referência clássica desses autores, ainda que preservadas no processo de modernização capitalista no
com críticas e avanços, está na obra de Florestan Brasil na medida em que, já no século XX, a
Fernandes, autor e professor responsável pela formação dependência em relação à metrópole é transferida, de
de um conjunto de pesquisadores que desenvolveram o forma mais ampla, para o mercado capitalista europeu.
seu trabalho na sociologia brasileira, particularmente A escravidão projeta-se, assim, como um
Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Além das fenômeno social que tem ressonância na organização
discussões acerca da escravidão e da questão racial, a social da sociedade brasileira até nossos dias.
obra desse autor aborda temas como a metodologia A desigualdade social, por exemplo, tem relação
sociológica, o subdesenvolvimento, as classes sociais e direta com a escravidão e mais particularmente com o
a questão indígena, tornando-se, assim, uma das modo como os negros foram incorporados a uma
referências centrais para a sociologia contemporânea. sociedade de classes, depois da abolição, em 1888. Ou
Florestan Fernandes seja, mesmo considerando o fim da escravidão como
nasceu em São Paulo, em 1920. um marco histórico importante, é fundamental
Filho de uma imigrante questionar em que medida as desigualdades sociais
portuguesa que o criou baseadas em diferenças de cor se reproduzem e se
trabalhando como empregada manifestam após a abolição. Um dos temas centrais
doméstica, começou a trabalhar para entender esse processo tem relação com o mito da
com 6 anos de idade, primeiro democracia racial.
como engraxate, depois em Em seu livro, A integração do negro na sociedade de
vários outros ofícios. Precisou classes (1978), Florestan Fernandes observa que a
abandonar o curso primário para democracia racial, na verdade, serviu para difundir a
ganhar dinheiro. Depois de se formar no curso de ideia de que não existem distinções sociais entre negros
305
5
e brancos e afirmar uma suposta convivência pacífica e partida para a melhoria da condição do negro na
harmônica entre brancos e não brancos. Essas ideias sociedade de classes, desde que o pressuposto
levariam a supor que as oportunidades econômicas, democrático seja realmente alcançado. Salienta, assim,
sociais e políticas estariam abertas a todos os brasileiros que a luta em torno dessa questão deve ser levada a cabo
de forma igualitária. por negros e mulatos. Nos últimos anos, entretanto,
essa questão vem sendo trabalhada por outro ângulo.
O mito da democracia racial não seria
simplesmente um mecanismo de acobertamento das
desigualdades e discriminações, mas também
reproduziria a ideologia da identidade nacional que
impede a construção da igualdade entre os brasileiros.
A questão da democracia racial foi discutida
também por Gilberto Freyre em seu Casa-grande &
senzala, que considera como característica específica da
cultura brasileira o encontro racial entre negros
africanos, brancos europeus e indígenas brasileiros.
Segundo esse autor, essa ideologia propaga até Freyre via esse encontro com bons olhos, na medida em
hoje no Brasil o racismo, preconceitos e discriminações. que o convívio entre as “raças” teria se tornado
Exemplos disso são afirmações do senso comum que democrático e salutar para a sociedade como um todo.
garantem que o negro não tem problema de integração
social, que a “índole brasileira” não permite distinções 4. Subdesenvolvimento e dependência econômica
raciais, que as oportunidades sociais, de toda natureza,
estão abertas a todos os brasileiros de forma igualitária, No Brasil dos anos 1930, o Estado moderno
que o negro está satisfeito com sua condição social e substituiu o Estado oligárquico e a indústria nacional
seu estilo de vida. começou a ser desenvolvida. Esse período da história
brasileira é central, pois foi em consequência desse
momento que a questão do subdesenvolvimento e da
dependência econômica do país começou a ser
discutida nos anos 1950 e 1960.
Esse debate, além de ser atual, tem relação
direta com o posicionamento do Brasil diante de outras
economias do mundo. O lugar do Brasil pode ser
pensando com base na divisão internacional do
trabalho, isto é, em como foi e ainda é construída a
economia nacional, que produtos e ramos da indústria
foram desenvolvidos na produção nacional, se são
produtos estratégicos ou matérias-primas e como essa
produção insere o país na economia mundial.
Como já vimos, a tradição econômica do Brasil,
mesmo depois da Independência em 1822, foi a de um
país produtor de mercadorias com baixo valor
agregado, que abastecia as demandas de outros países,
sobretudo da Europa e dos Estados Unidos.
A partir de meados do século XX, a economia
brasileira se desenvolveu como uma economia
periférica e complementar a outras que se estruturavam
Para Florestan Fernandes, de um lado o mito da de maneira mais sólida e tinham como base de sua
democracia racial acabou por consolidar, por exemplo, produção bens manufaturados pela indústria,
a crença de que a situação do negro se deve a sua sobretudo a automotiva.
própria incapacidade de superar dificuldades sociais, A questão do subdesenvolvimento aparece,
tais como o desemprego e a pobreza. Por outro lado, o assim, como um problema a ser enfrentado pela
mito desresponsabiliza o branco e o isenta (sobretudo Sociologia e também pela sociedade brasileira. Um dos
os brancos da classe dominante) dos efeitos da abolição principais teóricos do subdesenvolvimento é o
e da degradação da situação da comunidade negra no economista Celso Furtado (1920-2004), autor de
Brasil. Formação econômica do Brasil, publicado em 1959. Assim
Fernandes sugere, entretanto, que o mito da como Caio Prado Júnior, Furtado se preocupa com a
democracia racial pode ser usado como ponto de economia do passado colonial e chama atenção para a
306
6
ligação, presente desde a colônia, entre a economia marcada pelo interesse dos países centrais em
brasileira e a economia mundial. desenvolver no Brasil a indústria e o mercado interno.
Segundo Furtado, o Segundo Cardoso, essa fase da divisão internacional do
subdesenvolvimento é trabalho reproduz a dependência industrial e financeira,
uma forma de somada naquele momento à dependência tecnológica.
organização social no Forma-se, com isso, toda uma discussão sobre
interior do sistema a dependência que acaba por constituir uma nova
capitalista e não uma teoria, a teoria da dependência, que tem como
etapa que antecederia a principais expoentes, além do já citado Fernando
etapa seguinte. Segundo Henrique Cardoso, o economista e sociólogo Ruy
esse autor, os países Mauro Marini (1932-1997) e o economista Theotonio
subdesenvolvidos tiveram dos Santos (1936-).
um processo de Essa nova forma de dependência difere da velha
desenvolvimento indireto, dependência que prevaleceu no Brasil do século XIX
em função do desenvolvimento dos países até aproximadamente os anos 1930. A nova
industrializados. dependência, configurada entre 1950 e 1970, tem como
Assim, o Brasil se tornou dependente de países eixo central a transferência de capital estrangeiro para o
desenvolvidos, condição quase impossível de ser processo de industrialização. Essa transferência se deu
superada, a não ser por meio de uma forte intervenção com base no financiamento de novos segmentos
do Estado no setor industrial. industriais e na instalação de filiais de multinacionais no
A análise de Furtado destaca a grande país.
concentração da renda no nível mundial durante o A política de substituição de importações, que
século XX até a década de 1950, que ampliou a teve como elemento central a industrialização e a
separação entre países ricos e pobres, desenvolvidos e urbanização da sociedade brasileira, não tinha nenhum
subdesenvolvidos. tipo de restrição quanto à entrada de capital estrangeiro.
A definição de subdesenvolvimento, portanto, Ao contrário: a chegada desse capital, financiador da
se insere em um quadro de relações de dominação e industrialização automotiva, era vista pelo Estado
dependência entre países, relações estas que tendem a brasileiro como a única alternativa para garantir a
se perpetuar. industrialização. Como desdobramento desses
Para sair da condição de país subdesenvolvido investimentos externos, ocorreu uma dinamização do
seria necessário que em meados do século XX o Brasil mercado interno. Entretanto, esse processo fortaleceu
tivesse estabelecido novas prioridades com o objetivo a concentração de renda e, exceto quanto aos
de atingir uma nova concepção de desenvolvimento. O trabalhadores integrados no processo, aprofundou a
subdesenvolvimento deveria ser neutralizado a partir de desigualdade econômica.
uma ação política que em lugar de reproduzir os
padrões de consumo de minorias abastadas passasse a
privilegiar a satisfação de necessidades fundamentais da
população como um todo, tais como a educação
pública. Entretanto, essa ação política sugerida por
Celso Furtado não foi implementada pelo Estado
brasileiro. Assim, ainda hoje o país se encontra em
situação de dependência em relação a países de
economia mais forte e as desigualdades sociais
permanecem.
Como vimos, durante a década de 1950 se inicia
o processo de implantação de multinacionais no Brasil.
São indústrias de bens de consumo e de veículos que
buscam firmar o país como produtor de bens típicos
das sociedades de consumo.
Segundo Fernando Henrique Cardoso, esse
processo não foi específico da sociedade brasileira:
pode ser observado em vários países latino-americanos
e estabeleceu uma reformulação entre as economias
mais ricas e mais pobres.
Durante as décadas de 1960 e 1970, o processo
se aprofundou, colocando os países pobres em uma
nova fase de dependência. Entre nós, essa fase foi
307
7
e com o neoliberalismo do fim dos anos 1970, com
TEMAS CONTEMPORÂNEOS DA Margareth Thatcher; e do início dos anos 1980, com
SOCIOLOGIA Ronald Reagan. Esses processos históricos se
estenderam por todo o mundo nos anos seguintes,
Agora veremos as principais teorias que gerando muitas questões sociológicas, constituindo
marcaram as três últimas décadas do século XX e o uma gama de problemas de pesquisa, de novos objetos
início do XXI. Estudaremos temas bem próximos de de análise e de questões sociais.
nós, que buscam responder a antigos problemas ou que
a Sociologia clássica não aprofundou e também a novas
questões características do atual contexto histórico.
Dentre essas últimas, podemos citar o
desenvolvimento da produção de mercadorias, o
neoliberalismo, o processo de financeirização da
economia e o surgimento de ações políticas coletivas
distintas daquelas do início do século XX até meados
dos anos 1960 e 1970.

1. Tempos de mudança

Nos últimos anos, as sociedades capitalistas


passaram por fortes mudanças sociais. A produção As teorias e teses que buscam explicar esse
industrial foi reestruturada pela microeletrônica e pela período estão imersas na contradição social que
robótica, alterando a relação do trabalhador com o indicamos acima. São tentativas de elaborar análises
tempo de produção, isto é, com a intensidade do sociais num momento em que tudo parece se
trabalho. As formas de governo também se transformar, mas, no qual, contraditoriamente, a
reestruturaram. estrutura social capitalista não se altera de fato e, na
Observou-se o fim gradativo do Estado de realidade, acaba por se fortalecer. Muitos estudos
Bem-Estar Social e a constituição de políticas elaborados nesse período procuraram descrever o que
neoliberais. Somaram-se às ações coletivas dos há de novo, o que permanece do velho e quais seriam
trabalhadores da indústria novos tipos de ação política, os pilares que condicionam socialmente o capitalismo
não diretamente ligadas ao universo do trabalho. Ou do final do século XX e início do século XXI.
seja, aos sindicatos e partidos da classe trabalhadora, A seguir, vamos analisar algumas das principais
juntaram-se novas formas de organização política teorias dessa virada de século para compreender as
baseadas, por exemplo, em questões étnicas, raciais, questões que influenciaram e constituíram a Sociologia
religiosas e de gênero. nesse período.
O fim do século XX e o início do século XXI
foram marcados por um conjunto de transformações 2. A revolução informacional
econômicas, políticas e ideológicas que pareciam
apontar para a construção de uma nova sociedade, O desenvolvimento científico e tecnológico
regida por princípios distintos daqueles que haviam sido inspirou vários autores desde a Revolução Industrial.
hegemônicos até as décadas de 1960 e 1970. Entretanto, Novos sujeitos sociais, modos de produção, novas
essas mesmas transformações acabaram por reproduzir práticas políticas, novos tipos de sociedade, de
a velha forma da estrutura social capitalista: o novo organização da produção, de formas de ação política
ainda estava impregnado do velho. coletiva foram estudados com base no avanço, no
A velha sociedade capitalista se reinventou, mas progresso ou no desenvolvimento científico e
continuou reproduzindo suas características mais tecnológico.
centrais de divisão em classes sociais, de exploração e Essas análises foram particularmente
dominação do trabalho, de produção do lucro e de sua influenciadas por uma leitura de Marx sobre a relação
apropriação privada. A sociedade capitalista se entre forças produtivas e relações de produção. Para
reconfigurou internamente para manter seus objetivos esse autor, as forças produtivas, isto é, aquilo que se
de sociedade baseada na produção e no consumo de apresenta como elemento da transformação social, são
mercadorias. Aparentemente tudo teria se limitadas pelas relações de produção capitalistas. Dessa
transformado, mas, de fato, pouco mudou. forma, as relações sociais capitalistas impedem que as
Como vimos, essas transformações podem ser forças produtivas (por exemplo, a ciência e a tecnologia)
sintetizadas com a reestruturação produtiva dos anos avancem, já que esse avanço não condiz com os
1960 e 1970 nos Estados Unidos e na Europa Ocidental interesses sociais do capitalismo. Assim, para Marx, a
308
8
transformação da sociedade se identifica com as forças do indivíduo de certas amarras do trabalho taylorista e
produtivas enquanto a conservação social se identifica fordista.
com as relações de produção. Haveria ainda exploração do trabalho, mas essa
Existem no capitalismo forças produtivas exploração seria de um grupo e não da forma
capazes de produzir o necessário para toda a população fragmentária que o trabalho no taylor-fordismo
do planeta. No entanto, esse desenvolvimento não imprimia. Nestes novos termos, o trabalho seria mais
interessa às relações de produção, que preferem manter qualificado, exigindo mais responsabilidade do
o desenvolvimento limitado aos interesses do capital, trabalhador e, sobretudo, seria um trabalho mais
restringindo o acesso e a socialização dos produtos. intelectualizado se comparado ao da fábrica fordista.
Com a reestruturação produtiva dos anos 1960 Expressões como “satisfação no trabalho” e
e 1970, esse tema volta ao centro da discussão “participação ativa do trabalhador” são consideradas
sociológica. As novas tecnologias da informação, como um índice que estabelece uma relação distinta do
distintas das tecnologias anteriores, pareciam dar outro trabalhador com seu trabalho. Resumindo, o
sentido às sociedades contemporâneas, na medida em trabalhador teria se libertado de algumas limitações
que abriam novas formas de participação social e impostas pelas atividades tradicionalmente fabris.
política aos indivíduos. Falou-se de uma Revolução
Informacional, que teria transformado a base produtiva
do capitalismo.
Diferente da Revolução Industrial, que se
caracterizou como uma revolução da indústria e teve
seu foco no trabalho realizado nas máquinas, a
Revolução Informacional teria como base de produção
não mais a matéria física, mas a informação. Enquanto
a Revolução Industrial se caracteriza pela
transformação de um produto com base no trabalho
manual, na Revolução Informacional o trabalho
intelectual predomina e não se limita à indústria, mas
está presente em todos os setores da economia.
Em seu livro A Revolução Informacional (São Apesar da criação de novas qualificações
Paulo: Cortez, 1999), o sociólogo francês Jean Lojkine profissionais, inclusive algumas que retomam a
(1939-) entende que esse tipo de produção não é fruto capacidade intelectual do trabalhador, o que deve ser
apenas de uma transformação tecnológica. Para esse ressaltado é o grau em que esses trabalhos podem ou
autor, não se trata da simples utilização da informática não fazer parte de escolhas e estruturas gerenciais
em atividades de formação, comunicação e gestão, mas alheias à intervenção do trabalhador. Nesse sentido, a
sim de uma mudança na utilização humana da pergunta central seria: a Revolução Informacional é de
informação. fato um processo de libertação do trabalhador em
A questão central para entender o trabalho relação a atividades penosas e enfadonhas ou não passa
informacional na produção ou nos serviços tem relação de um processo de intensificação do trabalho, que agora
com as formas de liberação do trabalhador. Para também controla as formas de produção intelectual?
Lojkine, muitas foram as tentativas de controlar esse Deve-se levar em conta que toda transformação
tipo de atividade de forma taylorista, isto é, retirando os tecnológica não tem fundamentação neutra, mas
saberes dos trabalhadores e os transferindo para a obedece aos interesses da sociedade. Nesse sentido, a
gerência. Mas essas tentativas não tiveram êxito, já que produção informacional parece estar longe de libertar
as atividades criadas pela Revolução Informacional se os trabalhadores dos atuais padrões de exploração e
apoiam na produção e troca de informações por meio dominação social.
das tecnologias da informação.
Ocorreu uma diferença significativa na 3. Valorização e financeirização do capital
utilização das tecnologias da informação, pois,
diferentemente das tecnologias tradicionais, as NTICs Nas últimas décadas, as sociedades capitalistas
(novas tecnologias da informação e comunicação) não se estruturaram com base em um processo de
se caracterizam como um processo de substituição de financeirização do capital. A valorização do capital
trabalhadores por máquinas. Segundo Lojkine, essas baseada na extração de mais-valia e na exploração da
tecnologias são diferentes na medida em que força de trabalho foi avolumada por um processo que
demandam uma interatividade do trabalhador com a já se observava desde o final do século XIX e que nas
máquina, tendo a invenção humana um papel central últimas décadas tornou-se economicamente
nesse processo. Projeta-se, assim, uma relação entre a hegemônico: o acúmulo de riquezas desenvolvido por
utilização das tecnologias da informação e a libertação mecanismos e canais financeiros e não apenas por meio
309
9
das atividades produtivas (na indústria, no comércio e o lucro ou perda e não o aumento ou redução da
na agricultura). lucratividade da empresa.
Formaram-se no século XIX os bancos e a Determinadas ações aumentam de valor sem
figura do capitalista que comercializa dinheiro, isto é, o que haja um aumento proporcional da produção real. O
capitalista financeiro. Tomar dinheiro emprestado de economista francês François Chesnais (1934-)
um banco é uma forma estrutural de valorizar o capital. convencionou chamar o período de avanço da finança
O capitalista industrial faz isso a fim de investir na de mundialização do capital. Um processo que se define
produção com o objetivo de lucrar por meio da pela liberalização de capitais pelo mundo, ou seja, pela
exploração do trabalho. Com esse lucro, o capitalista possibilidade de captação de recursos financeiros em
industrial paga os juros para o capitalista financeiro. diferentes mercados.
Mas tanto o lucro quanto o juro são frutos da mais-valia Em seu livro A mundialização do capital, Chesnais
produzida. analisa o capitalismo de hoje para demonstrar o caráter
Na prática, o capitalista financeiro potencializa destrutivo das forças econômicas atuantes a partir da
o lucro do capitalista industrial quando dá a ele um década de 1980. Essa liberdade de investimento
crédito. O problema é que além de potencializar a capitalista permitiu uma movimentação de capitais pelo
acumulação capitalista, esse crédito que o banco mundo, o que fez desenvolver amplamente a
concede dá origem ao capital fictício. valorização do capital fictício, sobretudo nos países
Como Marx define o capital fictício? mais ricos. Entretanto, essa valorização é interrompida
De um lado, o empréstimo é aplicado no quando ocorre queda de salários e de investimentos, e
processo de produção para gerar mais-valia, isto é, o nos anos 1990 e na primeira década do século XXI as
dinheiro emprestado é considerado produtor de juros. crises se multiplicaram.
No entanto, nem todo empréstimo é aplicado à Para a economista brasileira Maria de Lourdes
produção. Essa forma de dinheiro emprestado que não Mollo (1951-), estamos vivendo um período em que o
entra no processo de geração de mais-valia é processo de financeirização das economias parece ter
considerada por Marx como uma forma fictícia de chegado ao seu limite. De qualquer forma, é importante
capital. considerar a intrínseca relação entre capital industrial e
O desenvolvimento da financeirização nas capital financeiro. Desde sua origem, o
últimas décadas faz com que a finança prevaleça em desenvolvimento capitalista teve sua base estruturada
relação à produção de mercadorias. Isto é, os valores nessa relação, que se aprofundou com a liberalização
negociados no mercado de ações são superiores àqueles dos fluxos de capital nas últimas décadas.
gerados pelas atividades produtivas. Para observar esse A contenção ou o desenvolvimento de um
fenômeno, basta considerar o produto interno bruto desses polos (capital industrial e capital financeiro),
(PIB) de determinados países e compará-los aos valores intrinsecamente complementares da economia
negociados em suas bolsas de valores. capitalista, depende da participação decisiva do Estado.
Do final da década de 1970 até meados da Exemplos disso são os empréstimos públicos dos
primeira década do século XXI, os valores negociados Estados Unidos para salvar determinados bancos da
nas bolsas foram muito superiores ao valor dos PIBs de falência.
todos os países de economia capitalista desenvolvida.
Há, portanto, uma diferença entre a produção real e o
que se negocia na forma de títulos e ações; isto é, entre
a valorização real e o capital fictício.

4. modernidade e pós-modernidade
Assim, a valorização das ações de uma empresa
não está relacionada diretamente a seu lucro ou perda
Como categoria de uma época, modernidade
em um período específico, mas sim à avaliação na Bolsa
designa o período chamado iluminista, que se inicia no
de Valores. O que importa é a avaliação da bolsa sobre
século XVIII e está relacionado a um projeto intelectual
310
10
que tem como base o desenvolvimento científico Nascido em Londres,
objetivo e autônomo. Em termos mais gerais, o Inglaterra, em 1938, Giddens é
objetivo iluminista foi estabelecer formas de atualmente professor emérito da
conhecimento científico que permitissem estruturar a London School of Economics
emancipação da humanidade. and Political Science. Conhecido
O esforço científico representava, assim, uma por seu trabalho de renovação
forma de ultrapassar as limitações impostas pela da Social-democracia, tem como
natureza. Além de superar a escassez e as necessidades temas centrais de pesquisa as
físicas, o projeto iluminista pretendia ir além das formas questões relacionadas à
de explicação religiosas, míticas e supersticiosas, globalização e à modernidade.
estabelecendo a ciência e a razão como princípios Com objetivo de reformular a teoria social,
norteadores do conhecimento humano. Giddens desenvolveu a Teoria da estruturação. Em linhas
Em nossos dias, é fácil reconhecer esse gerais, essa teoria pretende, com base na releitura de
conjunto de ideias. A vida em sociedade está permeada diversas correntes e tradições teóricas, transcender o
pelos princípios da modernidade. Podemos observá-los quadro clássico de divisão disciplinar, mostrando a
na economia, no direito, nas formas de organização necessidade de incorporar a História e a Geografia à
burocrática e nas atividades profissionais. O que análise sociológica. Nesse sentido, Giddens explicita as
determina essas esferas da vida social como diferenças entre a ciência social e a ciência natural,
representativas da modernidade é a crença de que o evidenciando como a primeira se funda e se especifica
desenvolvimento do progresso e da capacidade na ação humana.
científica podem resolver todos os problemas da Além disso, Giddens entende que a
humanidade. especificidade das Ciências Sociais não se concentra na
Assim, a modernidade pode ser entendida ação individual (como para Weber) nem nas totalidades
como expressão de uma época histórica marcada por sociais (como para Durkheim), mas sim nas práticas
um discurso que privilegia as formas de conhecimento sociais ordenadas no espaço e no tempo.
científico universais e totalizantes, ou seja, produtoras Para Giddens, vivemos em uma época em que
de interpretações teóricas abrangentes e as consequências da modernidade se radicalizaram e
homogeneizantes que procuram dar conta da história não numa época pós-moderna. Ele aponta para um
da humanidade como um todo. mundo fora de controle: as pretensões iluministas de
O pós-modernismo, por outro lado, privilegia domínio da natureza e da sociedade pela via do
a diferença, a diversidade, a fragmentação, a conhecimento e do progresso científico não se
indeterminação, e nesse sentido se insurge contra os concretizaram.
discursos universalizantes e totalizantes da A modernidade se funda em uma duplicidade
modernidade. Procura reconhecer as diferentes sombria. Ao mesmo tempo em que cria uma estrutura
subjetividades, dando maior visibilidade a questões de possibilidades e de oportunidades, fruto do
como gênero, raça, etnia, ambiente, sexo, questões desenvolvimento científico, promove também
territoriais, entre outras. consequências degradantes como a exploração do
Para muitos autores, a questão é se de fato trabalho, o autoritarismo na utilização do poder político
superamos a época moderna, ou seja, podemos dizer e as guerras. Com relação à pós-modernidade, Giddens
que as indagações das sociedades contemporâneas são indica uma de suas características centrais: a ausência de
expressão de uma época pós-moderna? Ou apenas certezas no processo de conhecimento.
teriam surgido novas condições sociais que negam os Na perspectiva de
princípios da modernidade? Ou ainda, será que estamos David Harvey, o pós-moderno
presenciando uma radicalização da modernidade e aparece como um reflexo das
equivocadamente identificando-a com uma época pós- formas de produção e
moderna? acumulação flexível típicas da era
Entre os autores interessados nesse tema, estão toyotista e de uma nova
os britânicos Anthony Giddens, sociólogo, e David compreensão da relação espaço-
Harvey (1935-), geógrafo, e o polonês Zygmunt tempo no capitalismo. No
Bauman. entanto, ao observar mais de
Anthony Giddens é considerado um dos perto as transformações sociais, Harvey nota uma
autores que mais se destacam na sociologia reprodução das relações sociais fundadoras do
contemporânea, tanto do ponto de vista de sua análise capitalismo, isto é, não observa uma mudança estrutural
fundada na teoria da estruturação social quanto em sua que projetaria uma nova sociedade, seja ela pós-
reinterpretação crítica dos autores clássicos da capitalista, seja pós-industrial.
Sociologia. Segundo Harvey, as teses que defendem que
vivemos numa época pós-moderna incorrem em alguns
311
11
equívocos. O primeiro deles é a crítica a toda e qualquer A modernidade
argumentação universal e totalizante (crítica dos pós-
modernos ao conceito de cultura), que levam à No final do século XIX, as sociedades
impossibilidade de legitimar e validar cientificamente começaram a se fundir ao redor dos centros urbanos, e
seu próprio discurso. a Europa Ocidental entrou numa fase conhecida como
Nesse sentido, as teorias pós-modernas que modernidade, caracterizada pela industrialização e pelo
reivindicam a celebração da fragmentação, do efêmero,
capitalismo.
da simulação, aceitando as identidades dos grupos
De acordo com Bauman, as sociedades se
locais, acabam por não construir uma análise ampla das
sociedades em que esses grupos estão presentes. afastaram da primeira fase da modernidade (que ele
Um segundo ponto levantado por Harvey se chamou de “modernidade sólida”) e agora se
refere à questão do reconhecimento da alteridade e da encontram num período da história chamado de
autenticidade de grupos locais como expressões do pós- “modernidade líquida”.
moderno. Ao mesmo tempo em que se reconhece a Esse novo período é, para ele, marcado pela
identidade de um grupo local, a alteridade e inevitável incerteza e pela mudança, que afetam a
autenticidade desse grupo permanecem circunscritas sociedade em nível global, sistêmico, além do nível das
apenas a seu espaço social, negando, com isso, a experiências individuais.
influência desses grupos em realidades mais amplas. O uso por Bauman do termo “líquido” é uma
Assim, Harvey entende que o resultado do poderosa metáfora da vida contemporânea: ela é móvel,
discurso pós-moderno se caracteriza por um silêncio fluida, maleável, amorfa, sem um centro de gravidade e
diante de questões relativas à economia política e às
difícil de conter e predizer.
estruturas de poder global. Ele entende que há, na
prática, uma radicalização da modernidade e não uma Em essência, a modernidade líquida é uma
época pós-moderna propriamente dita. forma de vida que existe no contínuo e incessante
Essa radicalização pode ser observada na remodelar do mundo moderno de maneiras
aceleração dos processos de produção e reprodução imprevisíveis, incertas e bombardeadas por crescentes
sociais nas sociedades capitalistas, sobretudo se níveis de risco.
analisamos a intensificação do trabalho para a geração A modernidade liquida, para Bauman, é o atual
de lucros. Harvey argumenta que o lado fragmentário, estágio da ampla evolução da sociedade ocidental – bem
efêmero e caótico de nossas sociedades estruturou-se como de todo o mundo. Assim como Karl Marx,
ao lado do progresso técnico e científico, o que Bauman acredita que a sociedade humana progride de
caracterizaria muito mais uma crise da modernidade que um modo que implica que cada “novo” estágio se
a constituição de sociedades pós-modernas. desenvolve a partir do estágio anterior. Assim, é
necessário definir a modernidade sólida antes de
4.1 Zygmunt Bauman
podermos entender a modernidade líquida.
Nascido em 1925, Zygmunt Bauman é um
sociólogo polonês de uma família judia que foi forçada Modernidade sólida
a se mudar para a União Soviética em 1939, após a
invasão nazista. Em 1971, estabeleceu-se na Inglaterra, Bauman vê a modernidade sólida como
onde foi professor emérito de sociologia na ordenada, racional, previsível e relativamente estável.
Universidade de Leeds até 1990. Morreu em 2017. Sua característica dominante é a organização das
atividades e das instituições humanas em paralelo às
linhas burocráticas, nas quais se pode usar o raciocínio
prático para resolver problemas e criar soluções
técnicas.
A burocracia continua porque é a forma mais
eficiente de organizar e ordenar as ações e interações de
grandes volumes de pessoas. Se por um lado a
burocracia tem aspectos claramente negativos(por
exemplo, a vida humana pode se desumanizar,
esvaziada de espontaneidade e criatividade), por outro
ela é altamente efetiva em cumprir as tarefas orientadas
por metas.

312
12
Outra característica-chave da modernidade descreve como uma “reinvenção compulsiva, obsessiva
sólida, de acordo com Bauman, é um elevado nível de e viciante do mundo”.
equilíbrio nas estruturas sociais, significando que as Ele identifica cinco desenvolvimentos distintos,
pessoas vivem segundo uma série de normas, tradições porém interligados, que produziram a transição da
e instituições estáveis. Com isso, ele não está sugerindo modernidade sólida para a líquida.
que as mudanças sociais, políticas e econômicas não Primeiro, os estados-nações não são mais as
ocorrem na modernidade sólida, mas que as mudanças “estruturas de carga” da sociedade; os governos
se dão de maneira relativamente ordenada e previsível. nacionais, hoje, têm um poder consideravelmente
A economia é um bom exemplo: na menor para determinar eventos tanto local quanto
modernidade sólida a maioria das pessoas (dos internacionalmente.
membros da classe trabalhadora aos profissionais da Em segundo lugar, houve a ascensão do
classe média) desfruta de segurança relativa no capitalismo global e a proliferações de corporações
emprego. Como consequência elas tendem a ficar na transnacionais, resultando num estado de autoridade
mesma área geográfica, a crescer na mesma vizinhança descentralizada.
e a frequentar as mesmas escolas de seus pais e outros Em terceiro lugar, as tecnologias eletrônicas e a
parentes. internet agora garantem fluxos de comunicação quase
Bauman considera a modernidade sólida como instantâneos, supranacionais.
unidirecional e progressiva – uma percepção da visão Em quarto, as sociedades se tornaram cada vez
iluminista de que a razão leva à emancipação da mais preocupadas com os riscos – mergulhadas nas
humanidade. Conforme o conhecimento científico inseguranças e danos potenciais.
avança, o mesmo se dá com o entendimento e o E em quinto, tem havido um enorme
controle da sociedade dos mundos natural e social. crescimento das migrações humanas pelo mundo.
No modernismo sólido, de acordo com
Bauman, essa fé suprema no raciocínio científico estava Modernidade líquida
corporificada nas instituições sociais e políticas que
cuidavam, primordialmente, de problemas e questões Conforme o próprio Bauman observa,
nacionais. Os valores do iluminismo estavam tentativas de definir a modernidade líquida são quase
institucionalmente entrincheirados na figura do Estado um paradoxo porque o termo se refere a uma condição
– o ponto primordial de referência a partir do qual global caracterizada pela implacável mudança e por
emergiam os ideais de desenvolvimento social, político fluxos e incertezas. Porém, tendo identificado os traços
e econômico. da modernidade sólida, ele alega que é possível definir
Quanto ao indivíduo, alega Bauman, a os aspectos mais importante da modernidade líquida.
modernidade sólida produziu um repertório estável de No nível ideológico, a modernidade líquida
identidades pessoais e possíveis alternativas de ser. Os mina o ideal iluminista, que diz que o conhecimento
indivíduos da modernidade sólida têm um senso científico poderia melhorar os problemas naturais e
unificado, racional e estável porque ela é moldada por sócias. Na modernidade líquida, a ciência, os
um número de categorias estáveis como ocupação, especialistas, os acadêmicos e as autoridades políticas –
religião, nacionalidade, gênero, etnia, busca do prazer, antes as figuras supremas de autoridade na
estilo de vida, entre outros. modernidade sólida – ocupam um status
A vida social sob as condições da modernidade demasiadamente ambíguo como guardiões da verdade.
sólida – assim como os indivíduos que a criaram – era Os cientistas são vistos cada vez mais tanto
autogarantida, racional, burocraticamente organizada e como a causa dos problemas ambientais e
relativamente previsível e estável. sociopolíticos como a solução. Isso leva
inevitavelmente, ao ceticismo e à apatia generalizada
A transição por parte do grande público.
A modernidade líquida minou as certezas dos
A transição da modernidade sólida para a indivíduos quanto ao emprego, à educação e ao bem-
líquida, de acordo com Bauman, ocorreu como fruto de estar. Hoje muitos trabalhadores precisam ser
uma confluência de mudanças econômicas, políticas e retreinados ou até trocar de ocupação, às vezes
sociais, profundas e conectadas. O resultado é uma repetidamente – a noção de “emprego para a vida
ordem global impulsionada por aquilo que Bauman toda”, típica da era da modernidade sólida, tornou-se
irrealista e inalcançável.
313
13
A prática da “reengenharia”, ou o downsizing das Consumo e identidade
firmas – um termo que Bauman tomou emprestado do
sociólogo americano Richard Sennett -, tornou-se cada A importância central do consumo na
vez mais comum, já que capacita as empresas a construção da identidade própria do indivíduo vai além
continuar financeiramente competitivas no mercado da aquisição de bens de consumo. Sem as fontes
global ao fazer uma redução significativa no custo da perenes de identidade proporcionadas pela
mão de obra. modernidade sólida, os indivíduos no mundo moderno
Como parte desse processo, o trabalho estável buscam orientação, estabilidade e direção pessoal em
e permanente – que caracterizava a modernidade sólida fontes alternativas cada vez mais díspares, como
– tem sido substituído por contratos empregatícios consultores de estilo de vida, psicanalistas, terapeutas
temporários, usados sobre uma força de trabalho cada sexuais, especialistas holísticos, gurus de saúde, etc..
vez mais móvel. Intimamente relacionados a essa A identidade própria se tornou problemática
instabilidade ocupacional estão o inconstante papel e a para os indivíduos de uma forma sem precedentes na
natureza da educação. história, e a consequência é um ciclo sem fim de
Espera-se agora que os indivíduos continuem autoquestionamento e introspecção que serve apenas
sua educação (quase sempre à própria custa) por toda para confundir ainda mais as pessoas. No fim das
sua carreira, de modo a se manterem atualizados com contas, o resultado é que nossa experiência de nós
os desenvolvimentos de suas profissões, ou como mesmo e da vida cotidiana é, cada vez mais,
forma de garantir que continuem “no mercado” caso representado tendo como pano de fundo uma
sejam demitidos. ansiedade constante, uma fadiga e um desconforto
Paralelo a essas mudanças nos padrões de sobre quem somos, nosso lugar no mundo e a rapidez
emprego está o recuo do Estado de bem-estar. Outrora das mudanças que acontecem no nosso redor.
considerada, historicamente, há uma “rede de A modernidade líquida, portanto, se refere
segurança” confiável contra tragédias pessoais como principalmente à uma sociedade global que é infestada
doenças e desemprego, a provisão do Estado de bem- por incerteza e instabilidade. Mas tais forças
estar social está cada vez menor, especialmente em áreas desestabilizadoras não estão igualmente distribuídas
como habitação, educação superior gratuita e pela sociedade global. Bauman identifica e explica a
assistência médica. importância das variáveis da mobilidade, do tempo e do
espaço para o nosso entendimento. Para ele, a
Identidades fluidas capacidade de nos mantermos móveis é um atributo
extremamente valioso na modernidade líquida, porque
Se a modernidade sólida estava baseada na ele facilita a busca bem-sucedida de riqueza e satisfação
produção industrial de bens de consumo em fábricas e pessoal.
instalações industriais, a modernidade líquida está
baseada no consumo rápido e implacável de bens de Turistas e vagabundos
consumo e serviços.
Essa transição da produção para o consumo, diz Bauman distingue entre os vencedores e os
Bauman, é resultado da dissolução das estruturas perdedores na modernidade líquida. As pessoas que
sociais, como o emprego e a nacionalidade, nas quais se mais se beneficiam da fluidez da modernidade líquida
ancorava a identidade da modernidade sólida. Mas, na são os indivíduos privilegiados socialmente, capazes de
modernidade líquida, o senso do eu não é tão fixo: é flutuar sem empecilhos pelo mundo a fora. Essas
fragmentado, instável, quase sempre incoerente pessoas, as quais Bauman se referre como “turistas”,
internamente, sendo, com frequência, não mais que a existem mais no tempo que no espaço. Com isso ele
soma das escolhas de consumo a partir da qual é tanto quer dizer que, através do seu fácil acesso às tecnologias
constituído quanto representado. da internet ou aos voos transnacionais, os turistas são
Na modernidade líquida, o limite entre o eu capazes (virtualmente ou de fato) de rodar o mundo
autêntico e a representação do eu através das escolhas todo e agir nos locais onde as condições econômicas
de consumo se rompe: somos – de acordo com Bauman são as mais favoráveis e os padrões de vida, os mais
– o que compramos, não mais que isso. Os conceitos altos.
de fundo e raso se fundiram, e é impossível separá-los. No outro extremo, os “vagabundos”, como ele
os chama, são pessoas imóveis ou sujeitas à mobilidade
forçada, e excluídas da cultura de consumo. Eles estão
314
14
ligados a locais onde o desemprego é alto e o padrão de QUESTÕES
vida muito baixo, e frequentemente são forçados a
deixar o seu país de origem como refugiados políticos, 1. (UNICENTRO 2011) No Brasil, o pensamento
ou econômicos, em busca de emprego, ou em resposta sociológico se desenvolve a partir da década 30, do
à ameaça de guerra ou perseguição. Qualquer lugar século passado, com a fundação da Universidade de São
onde estejam por muito tempo se torna inóspito. Paulo e o crescimento da produção científica.
Sobre o desenvolvimento dessa ciência no Brasil, no
Para Bauman, a migração em massa e os fluxos
século XX, é correto afirmar:
transacionais de pessoas ao redor do mundo estão entre
A) Os sociólogos desse período buscavam descrever o
as marcas da modernidade líquida e são fatores que país por meio de estudos naturalistas.
contribuem para a natureza imprevisível e em constante B) Os grandes nomes desse período foram Euclides da
mudança da vida cotidiana. As categoriais sociais de Cunha, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.
turistas e vagabundos de Bauman ocupam os dois C) As duas preocupações dos sociólogos eram a
extremos desse fenômeno. aculturação indígena e a modernização do sistema
político brasileiro.
Aplicando a teoria de Bauman D) A orientação das análises sociológicas estava voltada
para as discussões mundiais ditadas por países, como
Zygmund Bauman é considerado um dos França e Inglaterra.
sociólogos mais influentes e eminentes da era moderna. E) O interesse dos intelectuais desse período estava
Ele prefere não se encaixar em nenhuma tradição voltado para o conhecimento do Brasil real, do povo,
em oposição às análises etnocêntricas anteriores.
intelectual específica. Seus escritos são relevantes para
um vasto leque de disciplinas, da ética, mídia e estudos 2. (UNICENTRO 2011) Autor brasileiro que entendia
culturais, à teoria política e à filosofia. a construção do Brasil como a fusão de raças, regiões,
Dentro da sociologia sua obra sobre a culturas e grupos sociais decorrentes da formação
modernidade líquida é considerada pela grande maioria colonial, em que os negros e mestiços teriam papel
dos pensadores uma contribuição única ao campo. fundamental na formação da identidade cultural do
O sociólogo irlandês Donncha Marron aplicou povo.
o conceito de Bauman de modernidade líquida para Essa referência identifica
consumo nos EUA. Seguindo a sugestão de Bauman de A) Gilberto Freyre.
que os bens de consumo e as marcas são uma B) Caio Prado Júnior.
característica única de como os indivíduos constroem a C) Florestan Fernandes.
sua identidade pessoal, Marron nota que o cartão de D) Fernando de Azevedo.
E) Sérgio Buarque de Holanda.
crédito é uma ferramenta importante nesse processo,
porque se encaixa perfeitamente na capacitação das
3. (UNICENTRO 2011) No Brasil, as primeiras
pessoas em se adaptar à forma de vida flúida que análises sociológicas, nas primeiras décadas do século
Bauman apresenta. XX, buscavam equacionar duas problemáticas centrais:
O cartão de crédito pode, por exemplo, ser a formação do Estado nacional brasileiro e a questão da
usado para pagar compras que satisfaçam o desejo de identidade nacional.
consumo. Ele faz com que pagar as coisas fique mais Sobre essas análises sociológicas no Brasil e seus
simples, rápido e mais fácil de gerenciar. representantes, é correto afirmar:
O cartão de crédito também cumpre o papel, é A) Plínio Salgado, na sua obra Nosso Brasil, retoma a tese
claro, de servir à função, diz Marron, de pagamento de de uma unidade nacional baseada em diferenças
contas e despesas diárias, conforme as pessoas trocam regionais, culturais e éticas.
de emprego ou têm mudanças de carreira significativas. B) Euclides da Cunha, em Os Sertões, afirmou que o
E o próprio cartão pode, com frequência, ter a bandeira brasileiro tem como fundamento social a cordialidade.
C) Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil
ligada à coisas que seu dono tem interesse, como times
Contemporâneo, construiu um perfil psicológico do
de futebol, instituições de caridade ou lojas. brasileiro baseado na força dos sertanejos.
Esses cartões de fidelidade representam uma D) Sergio Buarque de Holanda, em sua obra Raízes do
forma pequena, mas significativa, de uma pessoa ser Brasil, de 1936, analisou a formação do Estado
capaz de escolher e mostrar o que pensa de si mesma brasileiro.
ao mundo exterior. E) Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, enfatizou
a miscigenação, novidade cultural da colonização
portuguesa.
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15
4. (UNICENTRO 2011) A formação do Brasil e a Assinale a alternativa em que a árvore genealógica
identidade do brasileiro foram bastante discutidas no relatada por um indivíduo evidencia esse sentimento de
início do século XX pelos sociólogos brasileiros ambiguidade em relação à formação social brasileira.
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio a) Meu avô paterno, filho de italianos, casou-se com
Prado Júnior. uma filha de índios do interior de Minas Gerais; meu
A respeito das análises de Freyre, em seu livro “Casa avô materno, filho de português casado com uma negra,
Grande e Senzala”, é correto afirmar:
casou-se com uma filha de portugueses. Apesar de
A) Criou uma tipologia para estudar a formação do
saber que sou fruto de uma mistura, dependendo do
Brasil e do brasileiro, dando ênfase explicativa ao tipo
aventureiro do português em detrimento do tipo lugar em que estou, destaco uma dessas descendências:
semeador. na maioria das vezes, digo que descendo de portugueses
B) Fez um estudo da colonização portuguesa, e/ou de italianos; raramente digo que descendo de
descrevendo a formação da família patriarcal brasileira, negros e índios, quando o faço é porque terei alguma
dando especial importância à miscigenação como traço vantagem.
cultural. b) Meu avô paterno, filho de negros, casou-se com uma
C) Observou que a cordialidade do povo brasileiro lhe filha de índios do Paraná; meu avô materno, filho de
dificultava o reconhecimento da moderna português casado com uma espanhola, casou-se com
impessoalidade nas relações sociais. uma filha de italianos. Sempre destaco que sou
D) Utilizou o materialismo dialético como chave brasileiro acima de tudo, pois descendo de negros,
explicativa dos fatos sociais que condicionavam o índios e europeus. Essa afirmação ajuda-me a obter
destino do país.
vantagens em diferentes lugares, pois a identidade
E) Tratou da decadência do patriarcado rural e do
crescimento das elites urbanas no Brasil. brasileira tem sido assumida com clareza pelo estado e
pelo povo ao longo da história.
5. A formação cultural do Brasil tem como eixo central c) Meus avós maternos são filhos de italianos e os avós
a miscigenação. Autores, como por exemplo Gilberto paternos são filhos de imigrantes alemães. Eu casei com
Freire, destacaram que a mistura de raças/etnias uma negra, mas meus filhos serão, predominantemente,
européias, africanas e indígenas configuraram nossos brancos. Tenho orgulho dessa descendência que é
hábitos, valores, hierarquias, estilos de vida, predominante nas diferentes regiões do Brasil.
manifestações artísticas, enfim, a maioria das dimensões Costumo destacar que o Brasil é diferente, é branco e
da nossa vida social, política, econômica e cultural. negro e eu descendo de famílias italianas e alemãs, assim
Entretanto, outros pensadores consideravam-na um como meu filho. Esse traço cultural revela a grandeza
aspecto negativo em nossa formação e tentaram do país e a firmeza de nossa identidade cultural.
ressaltar as origens européias de algumas regiões, como d) Meu avô paterno, filho de índios do Paraná, casou-
o intelectual paranaense Wilson Martins afirmou: Assim se com uma filha de índios do Rio Grande Sul; meu avô
é o Paraná. Território que, do ponto de vista materno, filho de negros, casou-se com uma filha de
sociológico, acrescentou ao Brasil uma nova dimensão, negros. Gosto de afirmar que sou brasileiro, pois índios,
a de uma civilização original construída com pedaços de portugueses e negros formam nossa identidade
todas as outras. Sem escravidão, sem negro, sem nacional.
português e sem índio, dir-se-ia que a sua definição não e) Meu avô paterno, filho de poloneses, casou-se com
é brasileira. Inimigo dos gestos espetaculares e das uma filha de índios do Paraná; meu avô materno, filho
expansões temperamentais, despojado de adornos, sua de ucranianos, casou-se com uma filha de poloneses.
história é a de uma construção modesta e sólida e tão Como sou paranaense, costumo destacar que o Paraná
profundamente brasileira que pôde, sem alardes, impor tem miscigenação semelhante as das outras regiões do
o predomínio de uma idéia nacional a tantas culturas Brasil: aqui temos índios, europeus e negros.
antagônicas. E que pôde, sobretudo, numa experiência
magnífica, harmonizá-las entre si, num exemplo de 6. O discurso sobre a formação da identidade nacional
fraternidade humana a que não ascendeu a própria brasileira tem como uma de suas vertentes o estudo das
Europa, de onde elas provieram. Assim é o Paraná. consequências do encontro de três matrizes étnicas: o
(MARTINS, W. Um Brasil diferente: ensaio sobre fenômenos de negro, o europeu (branco) e o indígena. Em meio a este
aculturação no Paraná. 2. ed. São Paulo: T. A Queiroz, 1989. p. debate, e contrariando as teorias raciais, elaborou-se
446.) uma tese conhecida como “democracia racial”,
O preconceito em relação às origens africanas e caracterizada por
indígenas criou uma ambiguidade no processo de auto
afirmação dos indivíduos em relação às suas origens.
316
16
A) defender o direito de participação de representantes foram buscar na África, apresentam entre si tamanha
de todas as raças no processo político. diversidade que exige discriminação.
B) pressupor a miscigenação harmoniosa entre os PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia.
diferentes grupos étnicos que formaram a nação Entrevista Fernando Novais. Postácio Bernardo Ricupero. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 88.
brasileira.
A respeito do processo de formação do povo brasileiro,
C) denunciar os conflitos raciais e a desvalorização dos
podemos identificar que
afrodescendentes no Brasil.
A) o Brasil é exemplo de harmonia entre suas etnias
D) culpar os grupos dominantes pela marginalização
constituintes, o que torna possível constatar o equilíbrio
dos afrodescendentes e da população indígena
entre os desiguais.
brasileira.
B) a nação vivencia a máxima da democracia racial, que
foi apregoada em seu passado por historiadores que
7. “A capoeira - reprimida pela polícia do final do século
pensavam em nossa identidade.
passado e incluída como crime no Código Penal de
C) o povo brasileiro é fruto de uma complexa
1890 - é oficializada como modalidade esportiva
miscigenação que deve ser continuamente estudada e
nacional em 1937. Também, o samba passou da
compreendida em suas particularidades.
repressão à exaltação, de dança de preto à canção
D) a cultura étnica em nosso país é resultado de sua
brasileira para exportação. Definido na época como
pluralidade, tendo na condição do branco europeu o
uma dança que fundia elementos diversos, nos anos 30,
referencial de seu processo formador.
o samba sai da marginalidade e ganha as ruas, enquanto
E) a nação indígena brasileira deve ser vista à parte no
as escolas de samba e desfiles passam a ser oficialmente
processo de formação do povo brasileiro, pois
subvencionados a partir de 1935.”
SCHWARCZ, Lilia M. “Nem preto nem branco, muito pelo representou a primazia de nossa constituição.
contrário: cor e raça na intimidade.” ln: NOVAES, Fernando A.
(org.) “História da Vida Privada no Brasil. Contrastes da 9. A diversidade racial no Brasil é uma realidade e a
Intimidade Contemporânea”. Vol. 4. São Paulo: Companhia das convivência pacifica é um comportamento a ser
Letras, 1998, p. 196. perseguido. Considere o texto.
Sobre as formas de integração das manifestações O Fórum de Gestores Municipais de Políticas
culturais negras no Brasil, é correto afirmar que de Promoção da Igualdade Racial aumentou sua
A) os elementos da cultura negra no Brasil são, a partir representatividade na Bahia, com a adesão oficial de 28
da década de 1930, incorporados à cultura nacional, municípios.
perdendo grande parte de suas características originais. O Fórum, que é um espaço permanente de diálogo
B) assim como o samba e a capoeira, o futebol é um entre Estado e municípios a fim de definir estratégias
elemento da cultura negra desenvolvido a partir da conjuntas para implementação da Política de Promoção
herança africana trazida pelos escravos. da Igualdade Racial, foi criado pela Secretaria de
Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) em 2007, teve
C) as manifestações da cultura africana foram
um aumento de 87,5 % em relação ao ano passado e
incorporadas pela cultura brasileira em sua forma agora conta com 60 gestores que fortalecerão o projeto
integral e com suas peculiaridades sendo respeitadas. de interiorização das políticas afirmativas no Estado.
D) os elementos afro-brasileiros foram aceitos como "Se continuarmos nesse ritmo de adesão, vamos
parte da cultura brasileira logo após a abolição da conseguir ultrapassar a expectativa que é atingir a
escravatura, a partir de um programa estatal de metade dos municípios baianos até o ano de 2015",
integração cultural. salientou o secretário de Promoção da Igualdade Racial,
E) a segregação racial manteve-se como a base da Elias Sampaio.
formação da cultura brasileira, especialmente a partir da Revista Raça Brasil, edição 166
década de 1930, quando é estabelecido um projeto de A partir do texto, pode-se inferir que a tolerância racial
se efetiva gradativamente no Brasil por compreensão
cultura nacional.
social ou por força institucional.
Considerando a conjuntura atual, assinale a alternativa
8. Das três raças que entraram na constituição do Brasil, que marca um acontecimento que ratifica a participação
duas, pelo menos, os indígenas e africanos, trazem à institucional no caminho da aceitação das diferenças
baila problemas étnicos muito complexos. Se para os raciais e sociais no Brasil.
brancos há uma certa homogeneidade, que no terreno a) A promulgação da lei Afonso Arinos que pune
puramente histórico pode ser dada como completa, o qualquer atitude pejorativa em relação às etnias.
mesmo não ocorre com os demais. Os povos que os b) A legalidade da união civil estável de homossexuais.
colonizadores aqui encontraram, e mais ainda os que c) A constitucionalidade das cotas de vagas destinadas
a negros nas universidades brasileiras.
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17
d) A ratificação da lei Maria da Penha que trata de [sistema de cotas] até que a gente faça ajustes na
crimes de violência contra as mulheres. sociedade”, argumentou Inocêncio.
e) A criação do primeiro partido político constituído
por negros ou afrodescendentes. TEXTO II
“Racismo sempre é ruim, tanto o movido por
10. A escravidão de africanos na América consumiu ódios quanto o por intenções nobres. Espero que os
cerca de 15 milhões ou mais de homens e mulheres militantes da causa negra não se iludam: esse projeto
arrancados de suas terras. O tráfico de escravos através não é uma grande vitória, mas uma cortina de fumaça.
do Atlântico foi um dos grandes empreendimentos Em primeiro lugar, porque o racismo brasileiro não é
comerciais e culturais que marcaram a formação do causado por políticas governamentais que precisam ser
mundo moderno e a criação de um sistema econômico revertidas, como era o caso americano, mas sim por
mundial. A participação do Brasil nessa trágica aventura atitudes de foro íntimo de uma parte dos nossos
foi enorme. Para o Brasil, estima-se que vieram perto de concidadãos. A concessão de cotas não mudará esse
40% dos escravos africanos. Aqui, não obstante ouso preconceito e corre-se o risco de exacerbá-lo. E,
intensivo da mão de obra cativa indígena, foram os segundo e mais importante, porque o efeito dessa lei
africanos e seus descendentes que constituíram a força não passa de migalha. Reportagem da Folha de São Paulo
de trabalho principal durante os mais de trezentos anos calculou que o número de vagas reservadas nas
de escravidão. E a escravidão penetrou cada um dos universidades federais aumentaria em 70 000 com as
aspectos da vida brasileira. Além de movimentarem cotas. A maneira de tirar milhões de negros da privação
engenhos, fazendas, minas, cidades, plantações, é melhorando a qualidade do ensino básico.”.
fábricas, cozinhas e salões, os escravos da África e seus
descendentes imprimiram marcas próprias sobre vários Partindo do ponto de vista apresentado nos textos e
outros aspectos da cultura material e espiritual deste sobre a temática discutida, é válido afirmar que
país, sua agricultura, culinária, religião, língua, música, a) os textos discordam com o sistema de cotas criado
artes, arquitetura... a lista é longa e já estamos cansados pelo governo, mas concordam que é necessário
de ouvi-la. melhorar o acesso das pessoas negras à universidade.
João José Reis e Flávio dos Santos Gomes, Liberdade por um fio. História dos b) os textos concordam com o acesso de negros através
quilombos nos Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. P. 9.
de cotas, visto que estes seriam incapazes de chegar ao
Com base no texto, podemos afirmar, sobre a
participação do negro no Brasil, que ensino acadêmico por outro método que não esse.
a) a cultura material e espiritual do Brasil c) os textos divergem. Enquanto o primeiro defende o
contemporâneo tem influência menor de africanos. sistema; o segundo garante que esse sistema reforça a
b) a economia cafeeira do Vale do Paraíba e do Oeste exclusão moral e o preconceito, sem garantir a
Paulista foi a que mais fez uso do trabalho escravo. efetividade da melhoria aos negros.
c) o deslocamento de africanos para a América dos d) os textos concordam nas cotas, mas discordam da
Ibéricos se insere na política europeia de povoar suas implementação. O primeiro acredita que a
colônias. implementação deve ser imediata; o segundo defende
d) não obstante à escravização de africanos, a mão de uma implantação gradual.
obra cativa indígena foi mais lucrativa para a metrópole. e) ambos são terminantemente contra o sistema de
e) nem a Igreja nem a Coroa se opuseram à escravização cotas e defendem que o melhor caminho para diminuir
do negro. Negro escravizado não tinha direitos, as desigualdades seria investindo nas escolas e
juridicamente era considerado uma coisa. permitindo acesso indiscriminado ao ensino superior.

11. Leia aos textos abaixo. 12.

TEXTO I TEXTO:
“Não vai agradar a todos [decisão do STF]. Não “Aliás, branco no Brasil é difícil, porque no Brasil
se trata de uma questão afetiva. É primordialmente que somos todos mestiços
a população negra seja respeitada”, explicou o Se você discorda, então olhe para trás
professor, Nelson Inocêncio, coordenador do Núcleo Olhe a nossa história
de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade de Brasília Os nossos ancestrais
(UnB). Para o docente, as cotas não reduzem as O Brasil colonial não era igual a Portugal
diferenças sociais e econômicas entre negros e brancos, A raiz do meu país era multirracial
mas possibilita que tal parcela da população chegue a Tinha índio, branco, amarelo, preto
um banco de universidade - coisa que, há alguns anos, Nascemos da mistura, então por que o preconceito?”
era sequer imaginado por muitos negros. “É preciso Racismo é burrice – Gabriel O Pensador

318
18
CHARGE: e pele mais escura. Este fenômeno nos permite
concluir:
a) O fato de que não existem pessoas brancas entre os
mais pobres no Brasil.
b) A totalidade das mulheres negras se insere entre os
mais pobres da população brasileira.
c) As políticas de inclusão devem voltar-se apenas para
a população branca.
d) A exclusão pode se manifestar na dimensão
econômica, mas também está ligada às questões de
gênero e de etnia.
e) A exclusão social é um fenômeno vinculado
exclusivamente à questão econômica.

14. Negro, filho de escrava e fidalgo português, o baiano


Luiz Gama fez da lei e das letras suas armas na luta pela
liberdade. Foi vendido ilegalmente como escravo pelo
seu pai para cobrir dívidas de jogo. Sabendo ler e
escrever, aos 18 anos de idade conseguiu provas de que
havia nascido livre. Autodidata, advogado sem diploma,
fez do direito o seu ofício e transformou-se, em pouco
Imagem do Google tempo, em proeminente advogado da causa
abolicionista.
AZEVEDO, E. O Orfeu de carapinha. In: Revista de História.
A questão racial está em ascensão mundialmente. A Ano 1, no 3. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, jan. 2004
mídia (jornais, revista, internet, televisão, rádio) usa, (adaptado).
cada vez mais, dessa temática a fim de conscientizar a A conquista da liberdade pelos afro-brasileiros na
população que racismo é crime. Utilizando-se do seu segunda metade do séc. XIX foi resultado de
conhecimento do texto e da charge, podemos afirmar importantes lutas sociais condicionadas historicamente.
que, no Brasil, A biografia de Luiz Gama exemplifica a
a) não existe racismo. O texto e a charge comprovam A) impossibilidade de ascensão social do negro forro
essa realidade, ou seja, o povo brasileiro reconhece ser em uma sociedade escravocrata, mesmo sendo
uma nação de várias raças. Logo, existe uma harmonia, alfabetizado.
não deixando espaço para nenhum tipo de preconceito. B) extrema dificuldade de projeção dos intelectuais
b) de acordo com Gabriel, a sociedade brasileira é uma negros nesse contexto e a utilização do Direito como
nação que é resultado de uma miscigenação. Logo, a canal de luta pela liberdade.
população reconhece suas diferenças. A charge C) rigidez de uma sociedade, assentada na escravidão,
discorda desse pensamento, mostrando a opressão feita que inviabilizava os mecanismos de ascensão social.
pelos brancos nos negros. D) possibilidade de ascensão social, viabilizada pelo
c) de acordo com texto e a charge, fica evidente que apoio das elites dominantes, a um mestiço filho de pai
vivemos em uma sociedade marcada pelo preconceito, português.
na qual resulta um longo processo de segregação, tendo, E) troca de favores entre um representante negro e a
como principal alvo dessa exclusão, o negro. elite agrária escravista que outorgara o direito
d) a questão racial está presente em nossa sociedade. advocatício ao mesmo.
Gabriel afirma que nossa sociedade, sabendo da nossa Resolução
origem, não pratica o preconceito. A charge afirma o 15. “A proteção e a promoção dos direitos humanos
discurso do texto I mostrando um negro reconhecendo continuaram a se situar entre as principais carências a
ser enfrentadas pela sociedade civil. [...] A enumeração
que não existe racismo.
das principais áreas de intervenção das organizações da
e) de acordo com a charge, o Brasil é marcado sociedade civil soa como demandas de séculos
positivamente pela ausência do racismo, sendo passados: a ausência do estado de direito e a
reconhecida essa ausência pelos negros. Já o texto I, inacessibilidade do sistema judiciário para as não elites;
confirma uma sociedade racista. o racismo estrutural e a discriminação racial e a
impunidade dos agentes do Estado envolvidos em
13. Observamos, com relativa facilidade, o fato de que graves violações aos direitos humanos. Como vimos, a
ainda existem, no Brasil, disparidades salariais entre nova democracia continuou a ser afetada por um
homens e mulheres e entre indivíduos de pele mais clara ‘autoritarismo socialmente implantado’, uma
319
19
combinação de elementos presentes na cultura política acumulação de conhecimentos que eles comportam,
do Brasil, valores e ideologia, em parte engendrados pois são esses elementos que determinam seu uso
pela ditadura militar, expressos na vida cotidiana. social.
Muitos desses elementos estão configurados em d) As formas de circulação e de acesso aos produtos
instituições cujas raízes datam da década de 30.” diretamente ligados aos progressos da informática não
PINHEIRO, P. S. Transição Política e Não-Estado de Direito na estão subordinadas aos processos e engenharias que
República. In: WILHEIM, J. e PINHEIRO, P. S. (org.). Brasil – hierarquizam os detentores e não detentores do capital.
um século de transformações. São Paulo: Companhia das Letras, e) Os sistemas de elaboração de técnicas e mecanismos
2003, p. 296-297.
no meio virtual são indiferentes em suas formas de
Em relação à violência, analise o texto anterior e aplicação seguindo lógicas distintas, mas que
selecione a alternativa que corresponde à ideia convergem para a apropriação pública dos processos e
desenvolvida pelo autor: resultados.
a) A democracia brasileira é fortemente responsável
pelo surgimento de uma cultura da violência no Brasil. 17. Jean-Baptist Debret registrou, em suas obras, o
b) Muito mais do que os traços culturais, é o cotidiano da sociedade brasileira no período imperial.
desenvolvimento econômico que acarreta o desrespeito Nesse contexto, o negro estava inserido:
aos direitos humanos no Brasil.
c) Com a democratização, as não-elites brasileiras
finalmente tiveram pleno acesso ao sistema judiciário e
aos direitos próprios do Estado de Direito.
d) Historicamente, o desrespeito aos direitos humanos
afeta de modo igual a brancos e negros, ricos e pobres.
e) A violência no Brasil expressa-se na vida cotidiana e,
para ser superada, depende de ações da sociedade civil.

16. O sistema Linux é um artesanato público. O kernel


(núcleo de software) do código Linux está disponível a
todos, pode ser utilizado e adaptado por qualquer um:
as pessoas se oferecem voluntariamente e doam seu Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil Debret, Jean-Baptist. Serradores, 1822.
tempo para aperfeiçoá-lo. O Linux contrasta com o
código utilizado na Microsoft, cujos segredos até
recentemente eram entesourados como propriedade
intelectual de uma só empresa. [...] Ao ser criado na
década de 1990, o Linux tentava resgatar um pouco do
espírito de aventura dos primeiros dias da informática
na década de 1970. Ao longo dessas duas décadas, a
indústria de software metamorfoseou-se em pouco
tempo num conjunto de poucas empresas dominantes,
adquirindo o controle de concorrentes menores ou
expulsando-os do mercado. Nessa dinâmica, os
monopólios pareciam fabricar em série produtos cada
vez mais medíocres.
SENNET, R. O Artífice. Rio de Janeiro: Record, 2009, p.35.
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o tema, DEA/G. DAGLI ORTI /Getty Images Debret, Jean-Baptist. Loja de sapateiro
(1835), a partir de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, século XIX.
é correto afirmar:
a) As configurações dos processos de invenção no
a) em uma ordem econômica liberal onde o trabalho
mercado da informática não dependem da lógica de
assalariado predominava sobre o trabalho escravo.
acumulação capitalista, pois se miram nos princípios de
b) em uma sociedade escravocrata que valorizava o
liberdade e de simetria nas formas de apropriação.
negro pela função social que desempenhava,
b) Os processos de criação e produção de
prevalecendo os ofícios urbanos em detrimento do
conhecimentos e produtos na era da revolução
rural.
microeletrônica não são neutros, pois podem ocorrer
c) no mundo urbano e desempenhava funções restritas
segundo a lógica da acumulação privada ou da lógica da
no mercado, desde proprietário de casas de comércio,
apropriação pública.
como também, escravo submisso ao seu senhor.
c) Os modos de apropriação dos softwares e seus códigos
passam pela garantia de inovação, revolução e
320
20
d) em uma ordem escravista, com a presença de 19. O espaço urbano é simultaneamente fragmentado e
escravos forros, libertos, foragidos e escravos de ganho articulado: cada uma de suas partes mantém relações
ainda sob o predomínio dos senhores. espaciais com as demais, ainda que de intensidade muito
e) em uma sociedade classista onde o negro integrava- variável.
se no mundo do trabalho por meio do trabalho CORRÊA, R. L. O Espaço Urbano. 4.ed. São Paulo: Ática, 2004.
assalariado. p.7. Série Princípios.
De acordo com Corrêa, os agentes que fazem e refazem
18. Leia as duas notícias de jornal que foram transcritas a cidade são os seguintes: os proprietários dos meios de
a seguir, e analise com atenção as interpretações que são produção, sobretudo os grandes industriais, os
feitas sobre o contexto cultural e político em que foram proprietários fundiários, os promotores imobiliários, o
publicadas. Em seguida encontre e assinale a alternativa Estado e os grupos sociais excluídos. Com base nos
correta. conhecimentos sobre as dinâmicas desses agentes,
Notícia 1
considere as afirmativas a seguir.
Protesta-se com todo rigor das leis contra quem tiver
dado abrigo e ajuda à escrava do abaixo assinado, fugida I. O Estado Capitalista atua de forma complexa e
de seu poder na freguesia do Queimado desde 7 de variável tanto no tempo como no espaço, refletindo a
fevereiro do corrente ano. Gratifica-se, conforme o dinâmica da sociedade da qual é parte constituinte.
trabalho da captura, a quem a prender, e levar ao dito II. O que define a renda pré-capitalista da terra é a renda
‘seo’ senhor ali, ou metê-la nas cadeias da capital. Essa em trabalho promovida pela ocupação dos espaços da
escrava chama-se Rosa, é parda, magra, baixa, anda periferia urbana pelos grupos sociais excluídos.
sempre de vestido, porque foi criada no mimo, tem III. Os promotores imobiliários atuam para prevenir a
cabelo de pico, um pouco estirado hoje à força de segregação residencial que ocorre nas cidades,
pentes, cose de grosso, e é boa rendeira. Levou uma promovendo a função social da terra.
filha de cor, que terá pouco mais de ano de idade. IV. Os grandes proprietários industriais e as empresas
Padre Duarte (Notícia de jornal carioca, século XIX, comerciais atuam sobre o espaço, transformando-o em
1850). mercadoria.
Assinale a alternativa correta.
Notícia 2
a) Somente as afirmativas I e II são corretas.
Uma mulher foi presa em flagrante por volta das
b) Somente as afirmativas I e IV são corretas.
21hs deste domingo, quando discutia com seu irmão na
calçada. c) Somente as afirmativas III e IV são corretas.
A mulher estava discutindo com o irmão, quando os d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
vizinhos tentaram acalmar os dois. Ela teria se irritado e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.
com os vizinhos e chamado um deles de “macaco”.
O homem ligou para a polícia e pessoas que 20. (UFU 2012) Dentre as várias interpretações sobre
escutaram as ofensas confirmaram as acusações. a brasilidade, destaca-se aquela que atribui a nós,
O delegado [...] decretou a prisão da mulher por brasileiros, os recursos do jeitinho, da cordialidade e da
racismo. Ela foi encaminhada para a cadeia [...]. malandragem. De acordo com as leituras weberianas
De um jornal do interior de São Paulo, 2010, século XXI. aplicadas à realidade brasileira (por autores tais como:
Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre, Roberto
I. A notícia 1 mostra que no século XIX as leis e as Damatta), a malandragem significaria
autoridades garantiam a propriedade de escravos e A) a manifestação prática do processo de miscigenação
puniam os escravos fugitivos e quem os ajudasse. que combinou elementos genéticos pouco inclinados ao
II. A atitude adotada pela mulher da notícia 2, de trabalho.
inferiorizar outra pessoa identificando-a com um B) a consagração do fracasso nacional representado
animal, tem relação com a cultura formada no passado pela incapacidade de desenvolver formas capitalistas de
escravista. relações sociais.
III. As duas notícias mostram a existência de leis contra C) a inovação de um estilo especial de se resolver os
o racismo tanto na época da escravidão quanto na próprios problemas, que tem sua origem nas tradições
atualidade. ibéricas.
a) Apenas I é verdadeira. D) a materialização da oposição popular ao trabalho e
b) Apenas II é verdadeira. ao imperialismo europeu, como característica de
c) Apenas I e II são verdadeiras. resistência de classe.
d) Apenas II e III são verdadeiras.
e) I, II e III são verdadeiras. 21. O discurso sobre a formação da identidade nacional
brasileira tem como uma de suas vertentes o estudo das
consequências do encontro de três matrizes étnicas: o
321
21
negro, o europeu (branco) e o indígena. Em meio a este 01) No trecho acima, Cuti aborda duas formas de
debate, e contrariando as teorias raciais, elaborou-se violência: uma física, que se refere à escravidão; e outra
uma tese conhecida como “democracia racial”, simbólica, que atua sobre as características corporais do
caracterizada por indivíduo.
A) defender o direito de participação de representantes 02) Um dos elementos presentes no poema de Cuti é a
de todas as raças no processo político. crítica à ideologia do branqueamento, que reconstrói o
B) pressupor a miscigenação harmoniosa entre os racismo por meio do apagamento dos traços marcantes
diferentes grupos étnicos que formaram a nação da cultura negra.
brasileira. 04) Cuti denuncia o consumismo presente na sociedade
C) denunciar os conflitos raciais e a desvalorização dos brasileira ao reconhecer que negros e brancos estão
afrodescendentes no Brasil. igualmente submetidos às leis do mercado e que, por
D) culpar os grupos dominantes pela marginalização meio dele, devem disputar reconhecimento.
dos afrodescendentes e da população indígena 08) A proposta de Cuti, em seu poema, é debater o
brasileira. preconceito contra as pessoas de cor como um
problema isolado que ocorreu no Brasil durante o
22. (UEM 2008) É correto afirmar que acompanham período colonial com a escravidão.
ou são conseqüências da atual fase de 16) Ao pedir que seja jogado fora o ferro, Cuti assume
internacionalização da economia os seguintes uma posição intelectual e política diante do racismo e
fenômenos: conclama para que a identidade afro-brasileira seja
01) a reestruturação produtiva, que se refere ao assumida.
conjunto das transformações que ocorreu nas
tecnologias e nas relações de produção, causando, entre 24. (UEM 2012) No dia 23 de julho de 2007, no Rio de
outros, o desaparecimento de algumas profissões e o Janeiro, cinco jovens de classe média atacaram a socos
desemprego estrutural. e pontapés uma empregada doméstica que esperava o
02) o acirramento da competição tecnológica, que tem ônibus para ir trabalhar. Em abril de 1997, em Brasília,
reordenado o padrão de acumulação capitalista e gerado cinco jovens de famílias ricas atearam fogo ao índio
grandes corporações globais, por meio de fusões de pataxó Galdino Jesus dos Santos. Considerando esses
empresas que operam em um determinado setor dois casos de extrema violência, assinale o que for
econômico. correto sobre o tema das classes sociais no Brasil.
04) a alta rotatividade da mão-de-obra e formas mais 01) As agressões praticadas por esses jovens de classe
flexíveis e precárias de contrato entre empregadores e média mostram que, em algumas situações, há uma
empregados. relação entre discriminação de classe e de raça.
08) o fortalecimento das organizações sindicais, que 02) As classes médias constituem um setor muito
têm assumido papel decisivo no conteúdo das numeroso que fica entre a burguesia e o proletariado,
mudanças em curso no mundo do trabalho. oscilando na defesa dos interesses de um grupo ou de
16) o afrouxamento das leis contra imigração, já que os outro.
países mais ricos necessitam da mão-de-obra originária 04) Os atos acima descritos indicam que a luta de classes
dos países que estão em uma posição econômica pode se apresentar como um fenômeno que envolve,
subordinada. de forma ampla, diversos setores da sociedade,
independentemente das relações que possam
23. (UEM 2012) estabelecer no mundo do trabalho.
08) Os dois casos são exemplos de que as contradições
“Primeiro ferro marca que as classes sociais mantêm entre si forjam e
A violência nas costas estruturam a própria sociedade.
Depois o ferro alisa 16) As agressões listadas podem ser sociologicamente
A vergonha nos cabelos explicadas como distúrbios psicológicos bastante
Na verdade o que precisa comuns à parcela da juventude brasileira que integra as
É jogar o ferro fora classes médias.
É quebrar todos os elos
Dessa corrente 25. Na obra “Raízes do Brasil”, publicada pela primeira
De desesperos.” vez em 1936, Sérgio Buarque de Holanda, ao analisar o
processo histórico de formação da nossa sociedade,
(CUTI, L. S. Ferro. In: CAMARGO, O. (Org). A razão da chama.
São Paulo: GRD, 1968, p. 90) afirma:
Considerando o modo como a sociologia analisa a Desde o período colonial, para os detentores dos cargos
questão racial no Brasil, assinale o que for correto. públicos, a gestão política apresentava-se como assunto
de seus interesses particulares. Isso caracteriza
322
22
justamente o que separa o funcionário patrimonial e o C) há um desacordo entre os valores éticos e o exercício
puro burocrata. Para o funcionário patrimonial, as político democrático.
funções, os empregos e os benefícios que deles recebe D) há uma harmonia entre o homem cordial e o
relacionam-se a direitos pessoais dos funcionários e não exercício ético na política. E há uma diferença entre o
a interesses objetivos, como ocorre no verdadeiro saber teórico e o exercício da moral.
Estado burocrático. Assim, no Brasil, pode-se dizer que
só, excepcionalmente, tivemos um sistema 27. (UEM 2010) “O quadro familiar torna-se, assim,
administrativo e um corpo de funcionários puramente tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os
dedicados a interesses objetivos e fundados nesses indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A
interesses. entidade privada precede sempre, neles, a entidade
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: pública. A nostalgia dessa organização compacta, única
Companhia das Letras, 1995. [Adaptado]. e intransferível, onde prevalecem necessariamente as
Considerando as reflexões do autor e levando em conta preferências fundadas em laços afetivos, não podia
práticas políticas constatadas no Brasil Republicano, é deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública,
possível inferir que todas as nossas atividades. Representando, como já se
A) os limites entre os domínios do público e do privado, notou acima, o único setor onde o princípio de
no âmbito da administração pública, se confundem, não autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a
idéia mais normal de poder, da respeitabilidade, da
obstante as leis que visam a combater o
obediência e da coesão entre os homens. O resultado
patrimonialismo. era predominarem, em toda a vida social, sentimentos
B) o patrimonialismo está presente nas regiões mais próprios à comunidade doméstica, naturalmente
carentes do País, em razão apenas do baixo nível de particularista e antipolítica, uma invasão do público
formação dos quadros da administração pública. pelo privado, do Estado pela família.”
C) as estruturas do poder administrativo no Brasil HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José
permanecem as mesmas do período colonial, daí a Olympio, 1992, p. 50.
manutenção do patrimonialismo disseminado na Considerando o texto acima e o tema instituições
sociais, assinale o que for correto.
sociedade.
01) O texto trata das relações que os indivíduos
D) o predomínio do interesse particular sobre o
estabelecem com uma instituição social específica, o
interesse público, no Brasil, foi efetivamente rompido Estado.
com o êxito da Revolução de 1930. 02) No processo de formação da sociedade brasileira,
E) a supremacia do latifúndio exportador com vista a os interesses privados interferem na conduta pública
integração da sociedade colonial e republicana nos dos indivíduos.
mesmos espaços em que outrora eram separados. 04) No Brasil, a comunidade doméstica promoveu um
equilíbrio entre os interesses coletivos e privados,
26. “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar revelando sua ação em defesa do que é público.
e, ainda menos, uma integração de certos 08) O autor define que a família colonial é uma
agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que organização compacta, única e intransferível, que
a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o exerceu profunda influência na formação social e
círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes cultural brasileira.
16) O Estado brasileiro manteve-se livre dos
uma descontinuidade e até uma oposição. A indistinção
particularismos, das visões antipolíticas e dos interesses
fundamental entre as duas forças é prejuízo romântico privados.
que teve seus adeptos mais entusiastas durante o século
XIX. De acordo com esses doutrinadores, o Estado e
suas instituições descenderiam em linha reta, e por
simples evolução, da família.”
HOLLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São
Paulo: Companhia das Letras 1995. p. 139.
Sob a perspectiva de análise da construção política da
sociedade colonial e a herança desta na atualidade
política brasileira, podemos inferir que
A) há um distanciamento entre o homem público e os
interesses privados.
B) há plena sinergia entre o homem público e os ideais
românticos.
323
23
GABARITO
QUESTÕES
1. e
2. a
3. e
4. b
5. a
6. b
7. a
8. c
9. c
10. e
11. c
12. c
13. d
14. b
15. e
16. b
17. d
18. c
19. b
20. c
21. b
22. 1/2/4
23. 1/2/16
24. 1/2/4/8
25. a
26. c
27. 1/2/8

324
24
1. ÉMILE DURKHEIM E uma das primeiras coisas que ele fez foi propor
regras de observação e de procedimentos de investigação
A sociologia do século XIX é a que fizessem com que a Sociologia fosse capaz de estudar
“sociologia dos filósofos sistemáticos”. Ela é filha das os acontecimentos sociais de maneira semelhante ao que
esperanças ou dos temores suscitados pelo faz a Biologia quando olha para uma célula, por exemplo.
desenvolvimento da sociedade industrial, cujas Falando em Biologia nota-se que o seu objeto de
características essenciais Saint-Simon intuíra: organização estudo é a vida em toda a sua diversidade de
racional, despersonalização funcional, interdependência manifestações. As pesquisas dos fenômenos da natureza
das funções, planificação e divisão do trabalho, feitas pela Biologia são resultantes de várias observações
programação centralizada da produção. e experimentações, manipuláveis ou não.
Diante desse fato, Comte teoriza um sistema Já para a Sociologia, manipular os acontecimentos
autoritário, Spencer um sistema sociológico em evolução, sociais, ou repeti-los, é muito difícil. Por exemplo, como
mas sob o signo de um individualismo radical; Proudhon poderíamos reproduzir uma festa ou um movimento de
vê na justiça a mola do progresso, e Marx, por seu turno, greve “em laboratório” e sempre de igual modo? Seria
"prevê" uma justiça que se realizara por força de leis impossível. Mas Durkheim acreditava que os
inexoráveis que, mudando a estrutura material, destruirão acontecimentos sociais – como os crimes, os suicídios, a
as atuais relações sociais injustas. família, a escola, as leis – poderiam ser observados como
Com Durkheim (1855- coisas (objetos), pois assim, seria mais fácil de estudá-los.
1917), a sociologia “sistemática” Então o que ele fez?
entra em crise. Na opinião de Propôs algumas das regras que identificam que
Durkheim, a sociologia não é e tipo de fenômeno poderia ser estudado pela Sociologia.
não deve ser filosofia da história, A esses fenômenos que poderiam ser estudados por uma
que pretenda descobrir as leis ciência da sociedade ele denominou de fatos sociais.
gerais que guiam a marcha do
“progresso” de toda a Fato social
humanidade.
Ela também não é e não Assim, a teoria dos fatos sociais é o ponto de
deve ser metafísica, que se julgue partida dos estudos de Durkheim. Eles são irredutíveis à
em condições de determinar a vida biológica e tem como base a sociedade.
natureza da sociedade. E a Como tal, o “fato social” não se reduz ao fato
sociologia não é nem psicologia psíquico do simples indivíduo, e isso torna-se evidente
nem filosofia. pela “coerção” que ele - o fato social - exerce sobre o
Para Durkheim, a sociologia é uma ciência: uma indivíduo a partir do exterior, seja mediante sanções, seja
ciência autônoma e diferente das outras ciências. mediante a resistência que ele opõe às tentativas
Entretanto, para que a sociologia possa se qualificar como individuais de modificação de uma instituição, crença ou
ciência autônoma, deve-se especificar tanto o “objeto” uso.
como as “regras do método”. E é isso que faz Durkheim Assim, existem os “fatos sociais”, objeto
em As regras do método sociológico (1895). especifico de pesquisa daquela ciência autônoma que é a
A objetividade e a identidade na análise da vida sociologia, que, além disso, poderá se ocupar de duas
social foram questões fundamentais na sua proposição do grandes categorias de fatos: os fatos “normais” e os fatos
método sociológico. “patológicos”.
É a partir desse pensador que a Sociologia ganha Ainda em As regras do método sociológico, podemos
um formato mais “técnico”, sabendo o que e como ela ler: “Nós chamamos normais os fatos que apresentam as
iria buscar na sociedade. Com métodos próprios, a formas mais gerais, e daremos aos outros o nome de
Sociologia deixou de ser apenas uma ideia e ganhou morbosos ou patológicos”. Naturalmente, “as formas
“status” de ciência. mais gerais” só se dão em relação a determinada
Durkheim presenciou algumas das mais sociedade e em fase especifica de seu desenvolvimento.
importantes criações da sociedade moderna, como a Desse modo, uma função preliminar da
invenção da eletricidade, do cinema, dos carros de sociologia é a da classificação dos tipos de sociedade, o
passeio, entre outros. No seu tempo, havia um certo que é feito distinguindo as sociedades, com base em seu
otimismo causado por essas invenções, mas Durkheim grau de complexidade, desde as hordas at6 as modernas
também percebia entraves nessa sociedade moderna: sociedades complexas. Existem, portanto, os fatos
eram os problemas de ordem social. sociais; estes podem ser distinguidos, sem que se os
325
1
avalie, em fatos normais e fatos patológicos; a sociologia Nesses grupos, se alguém começasse a agir por
é a ciência que, considerando os fatos sociais “como conta própria, seria fácil perceber quem estaria
coisas”, procura a causa determinante de um fato social “tumultuando” o modo de vida local. Outro exemplo que
entre os fatos sociais anteriores e não entre os fatos da pode caracterizar a solidariedade mecânica são os
consciência individual.
Desse modo, entendendo-os como “maneiras de
agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotados de um
poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem”, podemos
traçar três características que distinguem os fatos sociais:
A coerção social que é a força que os fatos
sociais exercem sobre os indivíduos e que os levam a
conformar-se às regras da sociedade em que vivem,
independentemente de sua escolha ou vontade.
A exterioridade dos fatos sociais que existem e
atuam sobre os indivíduos independentemente de sua
vontade ou de sua adesão. As regras sociais, os costumes
e as leis já existem antes dos indivíduos e
independentemente deles. mutirões para colheita em regiões agrárias ou para
A generalidade quer dizer que todo fato social é reconstruir casas devastadas por vendavais e, ainda, são
geral, pois se aplica a todos os indivíduos ou à maioria exemplos também as campanhas para coletar alimentos.
deles. Na generalidade encontra-se a natureza coletiva Diferentemente das sociedades organizadas em
dos fatos sociais, seu estado comum ao grupo. solidariedade mecânica, nas sociedades de solidariedade
orgânica – típicas do mundo moderno - existem muitos
Entendendo a Sociedade (coesão social) papéis sociais. Pense na quantidade de tarefas que pode
haver nas áreas urbanas, nas cidades: são muitas as
Durkheim queria compreender como ocorreu a funções e atividades.
transição das sociedades tradicionais para as modernas e
analisou-as a partir de sua coesão, ou seja, o que mantinha
unida as sociedades tradicionais que se perdeu,
possibilitando a formação das sociedades modernas, e
como essa coesão se manteve nessas sociedades?
A humanidade, para esse pensador, está em
constante evolução, o que seria caracterizado pelo
aumento dos papéis sociais ou funções. Por exemplo,
para Durkheim, existem sociedades que organizam-se
sob a forma de um tipo de solidariedade denominada
mecânica e outras sociedades organizam-se sob a forma
de solidariedade orgânica.
As sociedades organizadas sob a forma de Durkheim acreditava que mesmo com uma
solidariedade mecânica seriam aquelas nas quais grande divisão e variedade de atividades, todas elas
existiriam poucos papéis sociais. Segundo Durkheim, deveriam cooperar entre si. Por isso, deu o nome de
nessas sociedades, os membros viveriam de maneira orgânica (como se fosse um organismo).
semelhante e, geralmente, ligados por crenças e Mas, nessas sociedades, diante da existência de
sentimentos comuns, o que ele chama de consciência inúmeros papéis sociais, diminui o grau de controle da
coletiva. sociedade sobre cada pessoa. A individualidade, sob
Neste tipo de sociedade existiria pouco espaço menor controle, passa a ser uma porta para que a pessoa
para individualidades, pois qualquer tentativa de atitude pretenda aumentar, ainda mais, o seu raio de ação ou de
“individualista” seria percebida e corrigida pelos demais posições dentro da sociedade.
membros. Uma das maiores expressões da anomia no
A organização de algumas aldeias indígenas mundo moderno, segundo Durkheim, seria esta: o
poderia servir de exemplo de como se dá a solidariedade egoísmo das pessoas. E a causa desta atitude seria a
mecânica: grupos de pessoas vivendo e trabalhando fragilidade das normas e controles sobre a
semelhantemente, ligados por suas crenças e valores.
326
2
individualidade, normas e controles que nas sociedades
de solidariedade mecânica funcionam com maior eficácia.
Qual seria, então, a solução para o mundo
moderno, segundo Durkheim?
Já que ele compara a sociedade com um corpo,
deve haver algo nela que não está cumprindo sua função
e gerando a patologia (a anomia, a doença). O corpo
precisa de diagnóstico e remédio.
Segundo ele, a Sociologia teria esse papel, ou seja,
o de encontrar as “partes” da sociedade que estão
produzindo fatos sociais patológicos e apontar para a
solução do problema.
Suicídio altruísta: ocorre quando um indivíduo
O suicídio valoriza a sociedade mais do que a ele mesmo, ou seja, os
laços que o unem à sociedade são muito fortes.
Durkheim utilizou sua teoria para explicar, por Deixe-me lembrar você do ocorrido em 11 de
exemplo, o suicídio. O que aparentemente seria um ato Setembro de 2001. Homens, em atos aparentemente
individual, para ele, estava ligado com aquilo que ocorria “loucos”, pilotavam aviões que se chocaram contra o
na sociedade. Ele compreende a sociedade como um World Trade Center em Nova York, lembra? Para
corpo organizado. Assim como a Biologia que Durkheim, os agentes dessa aparente “loucura” poderiam
compreende o corpo humano e todas suas partes em ser classificados como suicidas altruístas, pois se
pleno funcionamento. identificavam de tal forma como o grupo Al Qaeda, ao
Durkheim entende a sociedade com suas partes qual pertenciam, que se dispuseram a morrer por ele.
em operação e cumprindo suas funções. E, caso a família, Da mesma maneira aconteceu com os kamikases
a igreja, o Estado, a escola, o trabalho, os partidos japoneses durante a 2º Guerra Mundial (1939-1945) e
políticos, etc., que são elementos da sociedade com que, de certa forma, continua acontecendo com os
funções específicas, venham a falhar no cumprimento “homens-bomba” de hoje.
delas, surge no corpo da sociedade aquilo que Durkheim
chamou de anomia (a = sem, nomia = normas / sem
normas), ou seja, uma patologia. Assim, como no corpo
humano, se algo não funcionar bem, em “ordem”,
significa que está doente.
Para Durkheim, a sociedade age sobre o
indivíduo. Cada grupo social tem uma inclinação para o
suicídio, e desta derivam as inclinações individuais.
Trata-se das correntes de “egoísmo”, de
“altruísmo” e de “anomia” que afligem a sociedade.
Suicídio Egoísta: é causado pela decepção, pela Se você assistir ao filme “O Patriota”, com Mel
melancolia e pela sensação de desamparo moral, Gibson, poderá ver um exemplo de alguém que se dispôs
provocadas pela desintegração social. Atualmente, isso a morrer por uma causa que acreditava em relação ao seu
pode ser compreendido no mundo capitalista, cada vez país, no caso, os Estados Unidos da América.
mais individualista, em que as pessoas valorizam mais o
“ter” do que o “ser”.
Se alguém se desvinculasse das instituições sociais
(família, igreja, escola, partido político, etc.) por conta
própria, para viver de maneira livre, sem regras, qual seria
o limite para essa pessoa, uma vez que ninguém a
controlaria?
Pois é, segundo Durkheim, a falta de redes de
convívio ou limites para a ação poderia levar a pessoa a
desejar ilimitadas coisas. Mas caso tal pessoa não consiga
realizar os seus desejos, a frustração poderia levá-la a um
suicídio.
327
3
Suicídio anômico: é aquele que se deve a um b) Os padrões do que se considera saudável e belo são
estado de desregramento social no qual as normas estão exemplos de fato social e, portanto, são suscetíveis de
ausentes ou perderam respeito. exercer coerção sobre o indivíduo.
Este tipo pode acontecer quando as partes do c) Normas são prejudiciais ao desenvolvimento social por
corpo social deixam de funcionar e as normas ou laços criarem parâmetros e regras que institucionalizam o agir
que poderiam “abraçar” (solidarizar) os indivíduos dos indivíduos.
perdem sua eficácia, deixando-os viver de forma d) A consciência coletiva é mais forte entre os jovens,
desregrada ou em crise. voltados que estão a princípios menos individualistas e
Como exemplo, podemos citar como fatos que egoístas.
provocam a anomia: corrupção praticada por políticos e e) A base para a formação de princípios morais e de
funcionários públicos, a frieza da sociedade moderna, solidez das instituições são os desejos individuais, visto
bem como sua falta de diálogo coletivo, o divórcio, uma estes traduzirem o que é melhor para a sociedade.
família abandona o filho, ou o idoso, ou o doente, etc.
2. (UNICENTRO 2010) “Durkheim presenciou
Educação algumas das mais importantes criações da sociedade
moderna, como a invenção da eletricidade, do cinema,
Toda sociedade tem que educar os indivíduos dos carros de passeio, entre outros. No seu tempo, havia
com disciplina para que aprendam as regras necessárias à um certo otimismo causado por essas invenções, mas
organização da vida social e sua hierarquia. As regras Durkheim também percebia entraves nessa sociedade
devem ser aprendidas, internalizadas e transformadas em moderna: eram os problemas de ordem social.”
hábitos de conduta. (Sociologia / vários autores. – Curitiba: SEED-PR, 2006, p. 33).
Na visão dele, o currículo teológico, metafísico e Considerando a teoria sociológica elaborada por esse
literário ainda predominante nas escolas europeias de seu autor e seu estudo sobre a divisão do trabalho social,
tempo deveria ser substituído por uma educação assinale qual alternativa está correta.
positivista para se alinhar ao espírito científico de seu a) Para Durkheim a divisão do trabalho é antes de tudo
tempo. um conceito que explica as desigualdades na moderna
Dessa forma, cabe à educação, seja ela formal ou sociedade capitalista.
não, a importante tarefa da conformação dos indivíduos b) A divisão do trabalho social para Durkheim expressa a
à sociedade em que vivem, devendo eles sempre contradição existente entre as diferentes funções da
observarem a obediência e a hierarquia. sociedade como um todo.
c) Para Durkheim a divisão do trabalho social resulta das
QUESTÕES relações de cooperação entre as diferentes atividades
sociais que integram a sociedade.
1. (UEL 2011) De acordo com Susie Orbach, “Muitas d) Para Durkheim a divisão do trabalho permite perceber
coisas feitas em nome da saúde geram dificuldades como cada função social só se realiza na sua relação de
pessoais e psicológicas. Olhar fotos de corpos que conflito com uma outra função social.
passaram por tratamento de imagem e achar que e) Para Durkheim só podemos entender a divisão do
correspondem à realidade cria problema de auto-imagem, trabalho social se buscamos entender como são
o que leva muitas mulheres às mesas de cirurgia. Na regulamentadas as classes produtivas.
geração das minhas filhas, há garotas que gostam e outras
que não gostam de seus corpos. Elas têm medo de 3. (UNICENTRO 2013) Sobre o conceito de
comida e do que a comida pode fazer aos seus corpos. Solidariedade mecânica de Émile Durkheim, assinale a
Essa é a nova norma, mas isso não é normal. Elas têm alternativa correta.
pânico de ter apetite e de atender aos seus desejos”. A) É característica das sociedades ditas “primitivas” ou
(Adaptado: As mulheres estão famintas, mas têm medo da comida, “arcaicas”, ou seja, em agrupamentos humanos de tipo
Folha de S. Paulo, São Paulo, 15 ago. 2010, Saúde. Disponível em: tribal formado por clãs.
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/saude/sd1508201001.htm>.
B) Nestas sociedades, os indivíduos que a integram não
Acesso em: 15 out. 2010).
Com base no texto e nos conhecimentos sobre o compartilham das mesmas noções e valores sociais tanto
pensamento de Émile Durkheim, é correto afirmar: no que se refere às crenças religiosas como em relação aos
a) O conflito geracional produz anomia social, dada a interesses materiais necessários à subsistência do grupo.
incapacidade de os mais velhos compreenderem as C) A divisão econômica do trabalho social é mais
aspirações dos mais novos. desenvolvida e complexa e se expressa nas diferentes
profissões e variedade das atividades industriais.
328
4
D) A coesão social não está assentada em crenças e DURKHEIM, E. O Dualismo da Natureza Humana e as Suas Condições
valores sociais, religiosos, na tradição ou nos costumes Sociais, p. 289.
compartilhados, mas nos códigos e regras de conduta que A respeito das noções de sociedade e moralidade tais
estabelecem direitos e deveres e se expressam em normas como concebidas por Émile Durkheim, assinale a
jurídicas: isto é, o Direito. alternativa correta.
E) A crescente divisão social do trabalho faz aumentar A) Assim como os instintos e sensações humanas, a
também o grau de interdependência entre os indivíduos. atividade moral resulta dos significados subjetivos que os
indivíduos atribuem às relações sociais.
4. (UFU 2009) “Alegando ver ‘um conjunto de regras B) As regras morais não proporcionam coesão social nas
diabólicas’ e lembrando que ‘a desgraça humana começou sociedades complexas.
por causa da mulher’, um juiz de Sete Lagoas (MG) C) A sociedade consiste na soma das ações dos indivíduos
considerou inconstitucional a Lei Maria da Penha e tomadas coletivamente.
rejeitou pedidos de medidas contra homens que D) O caráter externo e coercitivo da moralidade decorre
agrediram e ameaçaram suas companheiras.” precisamente do fato de que ela é essencialmente coletiva
(Folha de S. Paulo, 21 de outubro de 2007). e impessoal.
O trecho supracitado refere-se à temática da violência
contra a mulher. Tendo como referência a sociologia de 7. (UFU 2010) O sociólogo francês Emile Durkheim,
Émile Durkheim e sua concepção de sociedade, podemos considerado o fundador da Sociologia, cunhou o termo
afirmar que a violência contra a mulher é: consciência coletiva.
A) um fenômeno de ordem sagrada, uma regra divina, Sobre esse conceito, é correto afirmar que:
como forma de punição à mulher face à sua culpa pela A) a família, o trabalho, os sindicatos, a educação, a
expulsão dos humanos do Jardim do Éden. religião, o controle social e até a punição do crime são
B) um fenômeno natural, originado nas diferenças alguns mecanismos que criam e mantêm viva a integração
biológicas entre homens e mulheres, as quais instituem a e a partilha da consciência coletiva.
superioridade masculina e a fragilidade feminina. B) essa consciência implica uma solidariedade de tipo
C) um fenômeno moral, embasado em padrões orgânica, caracterizada pela pouca divisão social do
socialmente estabelecidos, os quais regulam as relações trabalho.
sociais entre homens e mulheres. C) os processos de socialização e internalização individual
D) consequência de um desequilíbrio emocional na não são responsáveis pela aquisição, por parte dos
personalidade masculina, o que requer tratamento indivíduos, de valores, crenças e normas sociais que
individual com profissionais especializados. mantêm os grupos e as sociedades integrados.
D) implica uma solidariedade comum que molda as
5. (UFU 2009) Para Durkheim, o método científico consciências individuais, sem exercer qualquer tipo de
sociológico exige que o pesquisador mantenha certa coerção social sobre elas.
distância e neutralidade em relação aos fatos sociais.
Considerando a afirmativa de Durkheim, assinale a 8. (UFU 2011) De acordo com Durkheim, para se
alternativa correta sobre fato social. garantir a objetividade do método científico sociológico,
A) Corresponde a um conjunto de normas e valores torna-se necessário que o pesquisador mantenha certa
criados exteriormente, isto é, fora das consciências distância e neutralidade em relação aos fatos sociais, os
individuais. quais devem ser tratados como “coisas”.
B) Corresponde a um conjunto de normas e valores que Considerando a frase acima, assinale a alternativa correta
são criados diretamente pelos indivíduos para orientar a sobre fato social.
vida em sociedade. A) Corresponde a um conjunto de normas e valores que
C) É desprovido de caráter coercitivo, uma vez que existe são criados diretamente pelos indivíduos para orientar a
fora das consciências individuais. vida em sociedade.
D) É um fenômeno social difundido apenas nas B) Corresponde a um conjunto de normas e valores
sociedades cuja forma de solidariedade é orgânica. criados exteriormente, isto é, fora das consciências
individuais.
6. (UFU 2010) Tivemos muitas vezes ocasião de afirmar C) É desprovido de caráter coercitivo, uma vez que existe
que as regras da moral são normas elaboradas pela fora das consciências individuais.
sociedade; o caráter obrigatório que as caracteriza não é D) É um fenômeno social difundido apenas nas
mais do que a própria autoridade da sociedade sociedades cuja forma de solidariedade é orgânica.
comunicando-se a tudo que dela sai.
329
5
9. (UFU 2011) Segundo Durkheim, o crime é um fato B) para Durkheim, o que mantém a sociedade coesa é a
social presente em toda sociedade. Para o autor, nem solidariedade social e moral, e esta é mantida quando os
todo crime é anômico, mas apenas aquele que indivíduos são integrados em grupos sociais e regulados
corresponde a uma crise de coesão social. por uma gama de valores e costumes compartilhados.
A partir do exposto acima, assinale a alternativa correta C) para Weber, as estruturas existiam externa e
sobre o significado de anomia social em Durkheim. independentemente dos indivíduos e é desse modo que a
A) Ocorre quando há, nas sociedades modernas, com sociedade deveria ser pensada.
seus intensos processos de mudança, uma situação em D) para Marx, as ideias ou os valores que os seres
que o conjunto de regras, valores e procedimentos são humanos guardam são as principais fontes da mudança
reconhecidos por todos os indivíduos, levando ao social. Sendo assim, a sociedade e seu progresso não são
desenvolvimento da sociedade. estimulados pelas influências econômicas.
B) Conceito que descreve os sentimentos de falta de
objetivos e de desespero provocados pelo processo de 12. (UFU 2013) Durkheim caracteriza o suicídio ─ até
mudanças do mundo moderno, os quais resultam na então considerado objeto de estudo da epidemiologia, da
perda da influência das normas sociais sobre o psicologia e da psiquiatria ─ como fato social e, por isso,
comportamento individual. dotado das características da coercitividade, da
C) Conceito que descreve a ocorrência, nas sociedades exterioridade, da generalidade. É tomado, pois, como
modernas, com seus intensos processos de mudança, de objeto de estudo sociológico, em virtude do fato de
um estado de complementaridade e interdependência A) variar na razão inversa ao grau de integração dos
entre os indivíduos, o que leva a uma menor divisão do grupos sociais de que faz parte o indivíduo, ou seja,
trabalho social e ao fortalecimento das instituições quanto maior o grau de integração ao grupo social, mais
sociais. elevada é a taxa de mortalidade-suicídio da sociedade.
D) Ocorre quando os sentimentos de falta de objetivos e B) ser possível observar uma certa predisposição social
de desespero provocados pelo processo de mudanças do para fornecer determinado número de suicidas, ou seja,
mundo moderno resultam no fortalecimento da coesão uma tendência constante, marcada pela permanência, a
social e da influência das normas sociais sobre o despeito de variações circunstanciais.
comportamento individual. C) configurar-se como uma morte que resulta direta ou
indiretamente, consciente ou inconscientemente de um
10. (UFU 2011) De acordo com Durkheim, é correto ato executado pela própria vítima.
afirmar que a consciência coletiva D) depender, exclusivamente, do temperamento do
A) forma o tipo psíquico da sociedade, com suas suicida, de seu caráter, de seu histórico familiar, de sua
propriedades, suas condições de existência e seus modos biografia, uma vez que não deixa de ser um ato do próprio
de desenvolvimento. indivíduo.
B) tem por substrato um único órgão e depende das
condições particulares em que se encontram os 13. (UFU 2013) Os crescentes casos de violência que,
indivíduos. recorrentemente, têm ocorrido em nível nacional e
C) desenlaça as gerações sucessivas, pois muda a cada internacional, diuturna e diariamente noticiados pela
geração e assemelha-se à consciência individual. imprensa, convidam a pensar em uma situação de
D) é o conjunto de crenças e sentimentos específicos a patologia social. No entanto, para Durkheim, o crime,
alguns membros de uma mesma sociedade, formando um ainda que fato lastimável, é normal, desde que não atinja
sistema indeterminado e sem vida própria. taxas exageradas. É normal, porque existe em todas as
sociedades; para o sociólogo, o crime seria, inclusive,
11. (UFU 2011) As ciências naturais influenciaram necessário, útil. Sem pretender fazer apologia do crime,
consideravelmente a emergência das ciências sociais que compara-o à dor, que não é desejável, mas pertence à
surgiram como uma tentativa de transformar em objeto fisiologia natural e pode sinalizar a presença de moléstias
de investigação rigorosa campos tradicionalmente ligados a serem tratadas.
a disciplinas humanísticas, frequentemente consideradas O crime seria, pois, para Durkheim, socialmente
impenetráveis ao rigor das ciências naturais. funcional, porque
Sobre a concepção de sociedade, do ponto de vista da A) exerce um papel regulador, contribuindo para a
Sociologia clássica, é correto afirmar que evolução do ordenamento jurídico e possível advento de
A) para Durkheim, a sociedade é a mera soma das ações uma nova moral.
e dos interesses de seus membros individuais. B) é fator de edificação e fortalecimento da solidariedade
orgânica, que se estabelece nas sociedades complexas.
330
6
C) legitima a ampliação do aparelho repressivo e classista B) Segundo Durkheim, a primeira regra, e a mais
do Estado burocrático nas sociedades baseadas no fundamental, é considerar os fatos sociais como coisas
sistema capitalista. para serem analisadas.
D) contribui para o crescimento de seitas e de religiões, C) O estado normal da sociedade para Durkheim é o
nas quais as pessoas em situação de risco buscam estado de anomia, quando todos os indivíduos exercem
proteção. bem os fatos sociais.
D) A solidariedade orgânica, para Durkheim, possui
14. (UFU 2014) Durkheim parte da proposicao: ‘cada pequena divisão do trabalho social, como pode ser
sociedade tem sua moral’; o que todo mundo pode demonstrada pela análise dos fatos sociais da sociedade.
admitir. De fato, a moral da sociedade romana difere
concretamente da moral do Estado soviético ou do 17. (UEL 2008) De acordo com Florestan Fernandes:
Estado liberal norte-americano. A concepção fundamental de ciência, de Emile Durkheim
É verdade que cada sociedade tem instituições, crenças (1858-1917), é realista, no sentido de defender o princípio
ou práticas morais que lhe são próprias, e que segundo o qual nenhuma ciência é possível sem definição
caracterizam o tipo a que essas sociedades pertencem. de um objeto próprio e independente.
ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins (FERNANDES, F. Fundamentos empíricos da explicação sociológica. Rio
Fontes, 1993, p. 360-361. de Janeiro: Cia Editora Nacional, 1967. p. 73).
São exemplos de instituições essenciais para a sociedade Assinale a alternativa que descreve o objeto próprio da
na concepção de Durkheim: Sociologia, segundo Emile Durkheim (1858-1917).
A) Família, escola e Estado. a) O conflito de classe, base da divisão social e
B) Casamento, escola e classes sociais. transformação do modo de produção.
C) Família, solidariedade mecânica e justiça. b) O fato social, exterior e coercitivo em relação à
D) Política, solidariedade orgânica e classes sociais. vontade dos indivíduos.
c) A ação social que define as inter-relações
15. (UFU 2014) A interpretação da modernidade, de compartilhadas de sentido entre os indivíduos.
acordo com Émile Durkheim, é construída tendo em d) A sociedade, produto da vontade e da ação de
vista dois polos de sociedade que ele procura explicar a indivíduos que agem independentes uns dos outros.
partir da solidariedade mecânica e da solidariedade e) A cultura, resultado das relações de produção e da
orgânica. Tendo em vista a solidariedade orgânica, o autor divisão social do trabalho.
aponta suas características, considerando formas distintas
de organização social, laços de solidariedade e tipo de
direito, marcadas, respectivamente, pela
A) divisão do trabalho social, por sociedades segmentadas
e pelo direito repressivo.
B) divisão do trabalho social, por sociedades
diferenciadas e pelo direito restitutivo.
C) consciência coletiva, pelas sociedades segmentadas e
pelo direito repressivo.
D) consciência coletiva, pelas sociedades diferenciadas e
pelo direito restitutivo.

16. (UFU 2015) A concepção da Sociologia de Durkheim


se baseia em uma teoria do fato social. Seu objetivo é
demonstrar que pode e deve existir uma Sociologia
objetiva e científica, conforme o modelo das outras
ciências, tendo por objeto o fato social.
ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins
Fontes, 1995. p. 336.
Em vista do exposto, assinale a alternativa correta.
A) Durkheim demonstrou que o fato social está
desconectado dos padrões de comportamento culturais
do indivíduo em sociedade, e portanto deve ser usado
para explicar apenas alguns tipos de sociedade.
331
7
2. MAX WEBER a) A “objetividade” cognoscitiva da ciência social
Max Weber (1864-1920) e da política social (1904);
nasceu em Erfurt. Por meio do b) Estudos críticos acerca da lógica das ciências
pai, que foi deputado do Partido sociais (1906);
Nacional Liberal, Weber teve c) O trabalho intelectual como profissão (1919).
oportunidade de entrar bem
cedo em contato com ilustres Historiador, sociólogo, economista e político,
historiadores, filósofos e juristas Weber trata dos problemas metodológicos com a
da época. consciência das dificuldades que emergem do trabalho
Estudou história, efetivo do historiador e do sociólogo, mas principalmente
economia e direito nas com a competência do historiador, do sociólogo e do
universidades de Heidelberg e economista.
Berlim. Ao contrário de Durkheim e Comte, Weber
Em 1894 tornou-se acreditou na possibilidade da interpretação da sociedade
professor de economia política partindo não dos fatos sociais já consolidados e suas
na Universidade de Friburgo. Em 1896 passou a ensinar características externas (leis, instituições, normas, regras,
em Heildelberg. De 1897 a 1903 sua atividade cientifica e etc).
didática ficou bloqueada por causa de grave doença Propôs começar pelo indivíduo que nela vive, ou
nervosa. Em 1904 realizou uma viagem aos Estados melhor, pela verificação das “intenções”, “motivações”,
Unidos. “valores” e “expectativas” que orientam as ações do
Durante a Primeira Guerra Mundial, defendeu as indivíduo na sociedade.
“razões ideais” da “guerra alemã” e prestou serviço como
diretor de um hospital militar. Acompanhou com Ação Social
preocupação angustiada a ruina moral e cultural da
Alemanha, jogada pelo imperador e por seus ministros no Sua proposta é a de que os indivíduos podem
beco sem saída da pura política de poder. Depois da conviver, relacionar-se e até mesmo constituir juntos
guerra participou da redação da Constituição da algumas instituições (como a família, a igreja, a justiça),
República de Weimar. Morreu em Munique, para onde exatamente porque quando agem eles o fazem
fora chamado, a fim de ensinar economia política, em 14 partilhando, comungando uma pauta bem parecida de
de junho de 1920. valores, motivações e expectativas quanto aos objetivos e
A obra de Max Weber, complexa e profunda, resultados de suas ações. E mais, seriam as ações
constitui um monumento da compreensão dos recíprocas (repetidas e “combinadas”) dos indivíduos que
fenômenos históricos e sociais e, ao mesmo tempo, da permitiriam a constituição daquelas formas duráveis
reflexão sobre o método das ciências histórico-sociais. Os (Estado, Igreja, casamento, etc.) de organização social.
trabalhos de Weber podem ser classificados em quatro Weber desenvolve a teoria da Sociologia
grupos: Compreensiva, ou seja, uma teoria que vai entender a
1) Estudos históricos: sociedade a partir da compreensão dos ‘motivos’ visados
a) Sobre as sociedades mercantis da Idade Média subjetivamente pelas ações dos indivíduos.
(1889); Uma crítica de Weber aos positivistas, entre os
b) História agrária romana em seu significado quais se encontrariam Comte e Durkheim, deve-se ao
para o direito público e privado (1891); fato de que eles pretendiam fazer da Sociologia uma
c) As condições dos camponeses na Alemanha ciência positiva, isto é, baseada nos mesmos métodos de
oriental do Elba (1892): investigação das ciências naturais.
2) Estudos de sociologia da religião: Para Weber, a pesquisa histórica é essencial
a) A ética protestante e o espirito do capitalismo para a compreensão das sociedades. É a pesquisa baseada
(1904-1905); em fontes documentais e no esforço de interpretá-las que
b) Escritos de sociologia da religião (3 vols., 1920- permite a compreensão das diferenças sociais. O
1921). conhecimento histórico é um poderoso instrumento para
3) Tratado de sociologia geral: Economia e a sociologia. Por isso os seguidores de Weber são
sociedade (1922). chamados de weberianos ou historicistas.
4) Escritos de metodologia das ciências histórico- Segundo Weber, as ciências naturais (biologia,
sociais: física, por exemplo) conseguiriam explicar aquilo que
estudam (a natureza) em termos de descobrir e revelar
332
8
relações causais diretas e exclusivas, que permitiriam a A teoria do tipo ideal
formulação de leis de funcionamento de seus eventos,
como as leis químicas e físicas que explicam o fenômeno Na opinião de Weber, com frequência a
da chuva. Mas a ciência social não poderia fazer linguagem do historiador ou do sociólogo,
exatamente o mesmo. diferentemente da linguagem das ciências naturais,
Para esse pensador, não haveria como garantir funciona mais por sugestão do que por exatidão. E
que uma ação ou fenômeno social ocorrerá sempre de precisamente com o objetivo de dar rigor suficiente a
determinada forma, como resposta direta a esta ou aquela toda uma gama de conceitos utilizados nas investigações
causa exclusiva. No caso das Ciências Humanas, isso histórico-sociais, Weber propôs a teoria do “tipo ideal”.
ocorre porque o ser humano possui “subjetividade”, que Escreve ele: “O tipo ideal obtém-se pela
aparece na sua ação na forma de valores, motivações, acentuação unilateral de um ou de alguns pontos de vista
intenções, interesses e expectativas. pela conexão de certa quantidade de fenômenos difusos
Embora esses elementos que compõem a e discretos, existentes aqui em maior e em menor medida,
subjetividade humana sejam produtos culturais, quer por vezes até ausentes, correspondentes àqueles pontos
dizer, produtos comuns acolhidos e assumidos de vista unilateralmente evidenciados, em um quadro
coletivamente pelos membros da sociedade, ou do grupo, conceitual em si unitário. Em sua pureza conceitual, esse
ainda assim se vê que os indivíduos vivenciam esses quadro nunca poderá ser encontrado empiricamente na
valores, motivações e expectativas de modos particulares. realidade; ele é uma utopia, e ao trabalho histórico se
Às vezes com aceitação e reprodução dos valores apresenta a tarefa de verificar, em cada caso individual, a
e normas propostas pela cultura comum do grupo; outras maior ou menor distância da realidade daquele quadro
vezes, com questionamentos e reelaboração dessas ideal, estabelecendo, por exemplo, em que medida o
indicações e até rejeição das mesmas. caráter econômico das relações de determinada cidade
Decorre dessa característica (de certa autonomia, pode ser qualificado conceitualmente como próprio da
criatividade e inventividade do ser humano diante das economia urbana”.
obrigações e constrangimentos da sociedade) a Pode-se ver, portanto, que o “tipo ideal” é
dificuldade de se definir leis de funcionamento da ação instrumento metodológico ou, se assim se preferir,
social que sejam definitivas e precisas. expediente heurístico ou de pesquisa. Com ele,
Por isso, o que a Sociologia poderia fazer, seria construímos um quadro ideal (por exemplo, de
desenvolver procedimentos de investigação que cristianismo, de economia urbana, de capitalismo, de
permitissem verificar que conjunto de “motivações”, Igreja, de seita etc.), para depois com ele medir ou
valores e expectativas compartilhadas, estaria orientando comparar a realidade efetiva, controlando a aproximação
a ação dos indivíduos envolvidos no fenômeno que se ou o desvio em relação ao modelo.
quer compreender, como uma eleição, por exemplo. Brevemente, pode-se dizer que:
Seria possível sim, prever, com algum acerto, 1) a tipicidade ideal não se identifica com a
como as pessoas votarão numa eleição, pesquisando sua realidade autêntica, não a reflete nem a expressa;
“subjetividade”, ou seja, levantando qual é, naquela 2) ao contrário, em sua “idealidade”, a tipicidade
ocasião dada, o conjunto de valores, motivações, ideal afasta-se da realidade efetiva para afirmar melhor
intenções e expectativas compartilhadas pelo grupo de seus vários aspectos;
eleitores em foco, e que servirão para orientar sua escolha 3) a tipicidade ideal não deve ser confundida com
eleitoral. a avaliação ou com o valor, “este filho da dor de nossa
Esses pressupostos estão por detrás das disciplina”;
conhecidas “pesquisas de intenção de voto”, bastante 4) o tipo ideal, repetindo, pretende ser
frequentes em vésperas de eleições. instrumento metodológico ou instrumento heurístico: os
Na investigação da ação social um instrumento conceitos ideais-típicos são uniformidades limites.
muito eficaz e útil para o cientista social é o tipo ideal, Seguindo essa ideia, Weber definiu quatro tipos
que, segundo Weber, seria uma construção teórica a partir ideais de ação social, pois ele considerava que as pessoas
dos casos particulares analisados. Ou seja, reúne-se as podem atuar, em geral, mesclando quatro tipos básicos
características mais comuns do fenômeno ou ação social de ação social. São eles:
para formar um modelo/conceito que se aproxime ao 1) A ação racional com relação a fins: age para
máximo de todos os casos que venham a ser estudados obter um fim objetivo previamente definido. E para
no futuro. tanto, seleciona e faz uso dos meios necessários e mais
adequados do ponto de vista da avaliação. O que se
destaca, aqui, é o esforço em adequar, racionalmente, os
333
9
fins e os meios de atingir o objetivo. Na ação de um com outros casos parecidos, já conhecidos e resumido
político, por exemplo, podemos ver um foco: o de obter numa tipologia.
o cargo com o poder que deseja a fim de...Bom. Aí Por exemplo, se há alguém apaixonado que você
depende do político. conheça, qual seria o tipo ideal de ação desta pessoa? A
2) A ação racional com relação a valores, afetiva! Assim sendo, seria “fácil” prever quais seriam as
ocorreria porque, muitas vezes, os fins últimos de ação possíveis atitudes desta pessoa: mandar flores e presentes,
respondem a convicções, ao apego fiel a certos valores querer que a hora passe logo para estar com ela(e), sonhar
(honra, justiça, honestidade...). acordado e coisas do tipo. E assim poderíamos entender,
Neste tipo, o sentido da ação está inscrito na em parte, como se forma a instituição família. Uma coisa
própria conduta, nos valores que a motivaram e não na liga a outra.
busca de algum resultado previa e racionalmente Outro exemplo. Pode ser que alguém perto de
proposto. você nem pense em querer se apaixonar para não
Por esse tipo de ação podemos pensar as atrapalhar os estudos. Sua meta é a universidade e uma
religiões. Ninguém vai a uma igreja ou pertence a ótima profissão. Então, o que temos aqui? Uma ação
determinada religião, de livre vontade, se não acredita nos racional! Para esta pessoa nem adiantaria mandar flores,
valores que lá são pregados. Certo? certo? O que não significa que não possamos tentar, não
3) Na ação afetiva a pessoa age pelo afeto que é mesmo?
possui por alguém ou algo. Uma serenata pode ser vista
como uma ação afetiva para quem ama, não é mesmo? A questão da referência aos valores
4) A ação social tradicional é um tipo de ação
que nos leva a pensar na existência de um costume. O ato Para Weber temos uma “só” ciência porque é
de tomar chimarrão ou pedir a benção dos pais na hora “único” o critério de cientificidade das diversas ciências:
de dormir são ações que podem ser pensadas pela ação tanto nas ciências naturais como nas ciências histórico-
tradicional. sociais, temos conhecimento cientifico quando
conseguimos produzir explicações causais.
Entendendo a Sociedade Entretanto, não é difícil ver que toda explicação
causal é somente uma visão fragmentária e parcial da
Agora podemos assimilar melhor que a ideia de realidade investigada (por exemplo, as causas econômicas
Weber para se entender a sociedade é a seguinte: se da Primeira Guerra Mundial). E como, além disso, a
quisermos compreender a instituição igreja, por exemplo, realidade é infinita, tanto extensiva como intensivamente,
vamos ter que olhar os indivíduos que a compõem e suas é obvio que a regressão causal deveria ir até o infinito:
ações. para o conhecimento exaustivo do objeto, os efeitos
Provavelmente haverá um grupo significativo de seriam estabelecidos “desde a eternidade”.
pessoas que agem do mesmo modo, quer dizer, Todavia, nós nos contentamos com certos
partilhando valores, desejos e expectativas quanto à aspectos do devir, estudamos fenômenos precisos e não
religião, o que resultaria no que Weber chama de relação todos os fenômenos, em suma realizamos uma seleção,
social. tanto dos fenômenos a estudar como dos pontos de vista
A existência da relação social dos indivíduos, ou a partir dos quais os estudamos e, consequentemente, das
seja, uma combinação de ações que se orientam para causas de tais fenômenos. Não pode haver dúvidas sobre
objetivos parecidos, é que faz compreender o “porquê” tudo isso.
da existência do todo, como neste próprio exemplo da Mas como se realiza, ou melhor, como funciona
igreja. É assim que, as normas, as leis e as instituições são essa seleção? Tendo como referência os valores. E aqui é
formas de relações sociais duráveis e consolidadas. preciso que nos entendamos com muita clareza. Antes de
Os tipos de ação, para Weber, sempre serão mais nada, a referência aos valores não tem nada a ver
construções do pensamento, isto é, suposições teóricas com o juízo de valor ou com a apreciação de natureza
baseadas no conhecimento acumulado, que o sociólogo ética.
fará para se aproximar ao máximo daquilo que seria a ação Weber é explicito: o juízo que glorifica ou
real do indivíduo nas circunstâncias ou no grupo em que condena, que aprova ou desaprova, não tem lugar na
vive. ciência, precisamente pela razão de que ele é subjetivo.
Com esse instrumento, o sociólogo pode avaliar, Por outro lado, a referência aos valores, em Weber, não
na análise de um fenômeno, o que se repete, com que tem nada a dividir com um sistema objetivo e universal
intensidade, e o que é novo ou singular, comparando-o qualquer de valores, um sistema em condições de
expressar uma hierarquia de valores unívoca, definitiva e
334
10
válida. Dilthey já constatara a moderna “anarquia de Deve-se notar, porém, que, quando o historiador
valores”; e Weber aceita esse relativismo. explica um fato, geralmente o faz referindo-se a uma
A referência aos valores, portanto, não equivale a constelação de causas.
pronunciar juízos de valor (“isto é bom”, “aquilo é justo”, Mas, a seus olhos, nem todas as causas tem igual
“isto é sagrado”), nem implica o reconhecimento de peso. Eis, portanto, a questão: como pode o historiador
valores absolutos e incondicionais. Então, o que pretende determinar o peso de uma causa na ocorrência de
Weber quando questiona a “referência aos valores”? um acontecimento?
Para sermos breves, devemos dizer que a Para bem compreender a questão, Weber se
referência aos valores é um princípio de escolha; ele serve remete a algumas opiniões do historiador Eduard Meyer,
para estabelecer quais os problemas e os aspectos dos para quem o desencadeamento da segunda guerra púnica
fenômenos, isto é, o campo de pesquisa no qual foi consequência de uma decisão voluntária de Aníbal,
posteriormente a investigação se realizará de modo assim como a explosão da Guerra dos Sete Anos ou da
cientificamente objetivo, tendo em vista a explicação guerra de 1866 foram, respectivamente, consequências de
causal dos fenômenos. uma decisão de Frederico, o Grande, e de Bismarck.
A realidade é ilimitada, aliás, infinita, e o Meyer também afirmara que a batalha de
sociólogo e o historiador só acham interessantes certos Maratona foi de grande importância histórica para a
fenômenos e aspectos desses fenômenos. E estes são sobrevivência da cultura grega e, por outro lado, que os
interessantes não por uma qualidade intrínseca deles, mas fuzilamentos que, na noite de março de 1848, deram
apenas em referência aos valores do pesquisador. início a revolução em Berlim não foram determinantes,
Segue-se daí que ao historiador cabe pelo fato de que, dada a situação na capital prussiana,
exclusivamente a explicação de elementos e aspectos do qualquer incidente teria podido fazer explodir a luta.
acontecimento enquadrável em determinado ponto de Opiniões desse tipo atribuem a certas causas
vista (ou teoria). E os pontos de vista não são dados de importância maior que a outras. E essa desigualdade de
uma vez por todas: a variação dos valores condiciona a significado entre os vários antecedentes do fenômeno
variação dos pontos de vista, suscita novos problemas, pode ser detectada, diz Weber, já que, com base nos
propõe considerações inéditas, descobre novos aspectos. conhecimentos e nas fontes a disposição, o historiador
É o feixe do maior número de pontos de vista definidos constrói ou imagina um desenvolvimento possível,
e comprovados que nos permite ter a ideia mais exata excluindo uma causa para determinar seu peso e sua
possível de um problema. importância no devir efetivo da história. Assim, em
Tudo isso, mais uma vez, mostra o absurdo da relação aos exemplos anteriores, o historiador se propõe,
pretensão de que as ciências da cultura poderiam e pelo menos implicitamente, a pergunta: o que teria
deveriam elaborar um sistema fechado de conceitos acontecido se os persas houvessem vencido, se Bismarck
definitivos. não houvesse tomado aquela decisão e se não houvesse
ocorrido o fuzilamento em Berlim?
O peso das diferentes causas na realização dos O historiador isola mentalmente uma causa (por
eventos exemplo, a vitória de Maratona ou o fuzilamento nas ruas
de Berlim), excluindo-a da constelação de antecedentes,
A pesquisa histórica é individualizante, isto é, diz para depois se perguntar se, sem ela, o curso dos
respeito as individualidades históricas (a política agrária acontecimentos teria sido igual ou diferente.
romana, o direito comercial na Idade Média, o Desse modo, constroem-se possibilidades
nascimento do capitalismo, as condições dos camponeses objetivas, isto é, opiniões (baseadas no saber a disposição)
na Alemanha oriental do Elba etc.). O historiador quer sobre como as coisas podiam ocorrer, para se
descrever e dar conta dessas individualidades. Mas dar compreender melhor como elas ocorreram.
conta delas significa explicá-las. E, para explica-las, Prosseguindo no exemplo, se os persas houvessem
necessita-se de conceitos e de regularidades gerais vencido, então é verossímil (ainda que não necessário,
pertencentes às ciências monológicas. Entre elas, vistas pois Weber não é determinista) que eles houvessem
como instrumentos de explicação histórica, Weber imposto na Grécia, como fizeram em toda parte onde
considerou especialmente a sociologia. Em outros venceram, uma cultura teocrático-religiosa baseada nos
termos, para explicar os fatos históricos precisa-se de leis, mistérios e nos oráculos. Esta é uma possibilidade
que o historiador vai buscar principalmente na sociologia, objetiva e não gratuita, para que compreendamos que a
que descobre “conexões e regularidades” nos vitória de Maratona é causa muito importante para o
comportamentos humanos. desenvolvimento posterior da Grécia e da Europa. Já os
fuzilamentos diante do castelo de Berlim, em 1848,
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pertencem à ordem das causas acidentais, pelo fato de que Em todo caso, a ciência nunca nos dirá o que
a revolução teria explodido de qualquer forma. devemos fazer, e como devemos viver. Se propusermos
essas interrogações à ciência, nunca teremos resposta,
A polêmica sobre a “não-avaliabilidade” porque teremos batido a porta errada. Cada um de nós
deve buscar a resposta em si mesmo, seguindo sua
Weber distingue claramente entre conhecer e inspiração ou sua fraqueza. O médico pode até nos curar,
avaliar, entre juízos de fato e juízos de valor, entre “o que mas, enquanto médico, não está em condições de
é” e “o que deve ser”. estabelecer se vale ou não vale a pena viver.
Para ele a ciência social é não-valorativa, no
sentido de que procura a verdade, ou seja, procura apurar Sistema capitalista e mundo moderno
como ocorreram os fatos e por que ocorreram assim e
não diferentemente. Uma contribuição relevante de Weber, neste
A ciência explica, não avalia. Dentro do trabalho caso, que se encontra em seu livro A ética protestante e
de Weber, tal tomada de posição tem dois significados: o espírito do capitalismo, é demonstrar que a
a) um, epistemológico, consiste na defesa da montagem do modo de produção capitalista, no ocidente
liberdade da ciência em relação a avaliações ético- europeu, principalmente, contou com a existência, em
político-religiosas (uma teoria cientifica não é católica alguns países, de uma ‘pauta’ de valores de fundo religioso
nem protestante, não é liberal nem marxista); que ajudou a criar entre certos indivíduos, predisposições
b) o outro significado, ético-pedagógico, consiste morais e motivações para se envolverem na produção e
na defesa da ciência em relação às deformações no comércio de tipo capitalista.
demagógicas dos chamados “socialistas de cátedra”, que Weber chamou a atenção para a relação entre uma
subordinavam o valor da verdade a valores ético- ética que valorizava o trabalho árduo e o espírito de
políticos, isto é, subordinam a cátedra a ideais políticos. poupança, a ética calvinista, ou puritana – um ramo da
Com base nisso, é oportuno fixar em alguns religião protestante -, e o espírito racional da burguesia
breves pontos as considerações de Weber sobre a questão dos séculos XVI e XVII.
da avaliabilidade: Weber está persuadido de que o capitalismo
1) O professor deve ter claro quando faz ciência moderno deve sua força propulsora à ética calvinista. A
e, ao contrário, quando faz política. concepção calvinista em questão é a que se pode
2) Se o professor, durante uma aula, não pudesse encontrar no texto da Confissão de Westminster de 1647,
se abster de produzir avaliações, então deveria ter a resumida por Weber nos cinco pontos seguintes:
coragem e a probidade de indicar aos alunos aquilo que é 1) existe um Deus absoluto e transcendente, que
puro raciocínio lógico ou explicação empírica, e aquilo criou o mundo e o governa, mas que o espírito finito dos
que se refere a apreços pessoais e convicções subjetivas. homens não pode captar;
3) O professor não deve aproveitar de sua 2) esse Deus, onipotente e misterioso,
posição de professor para fazer propaganda de seus predestinou cada um de nós a salvação ou à danação, sem
valores; os deveres do professor são dois: que, com nossas obras, possamos modificar um decreto
a) de ser cientista e de ensinar os outros a se divino já estabelecido;
tornarem também; 3) Deus criou o mundo para sua glória;
b) de ter a coragem de pôr em discussão seus 4) esteja destinado à salvação ou à danação o
valores pessoais e de pô-los em discussão no ponto em homem tem o dever de trabalhar para a glória de Deus e
que se pode efetivamente discuti-los, e não onde se pode criar o reino de Deus sobre esta terra;
facilmente contrabandeá-los. 5) as coisas terrenas, a natureza humana, a carne,
4) A ciência é distinta dos valores, mas não está pertencem ao mundo do pecado e da morte: a salvação
separada deles: uma vez fixado o objetivo, a ciência pode para o homem é tão-somente um dom totalmente
nos dar os meios mais apropriados para alcançá-lo, pode gratuito da graça divina.
prever quais serão as consequências prováveis do Esses diferentes elementos podem-se encontrar
empreendimento, pode nos dizer qual é ou será o “custo” dispersos em outras concepções religiosas, mas a
da realização do fim a que nos propomos, pode nos combinação de tais elementos, precisa Weber, é original
mostrar que, dada uma situação de fato, certos fins são e única, com consequências verdadeiramente de grande
irrealizáveis ou momentaneamente irrealizáveis, e pode importância. Antes de mais nada, encontra aqui sua
nos dizer também que o fim desejado choca-se com conclusão: aquele grande processo histórico-religioso de
outros valores. eliminação do elemento mágico do mundo, processo que
se iniciou com as profecias judaicas e prosseguiu com o
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pensamento grego. Não há comunicação entre o espírito e o Confucionismo são exemplos do que falamos. E daí
finito e o espírito infinito de Deus. Em segundo lugar, a a ideia e a prática de não se viver apenas para o trabalho,
ética calvinista está ligada a uma concepção anti-ritualista mas sim de poder aproveitar tudo o que se ganha pelo
que leva a consciência ao reconhecimento de uma ordem trabalho com as coisas desta vida.
natural, que a ciência pode e deve explorar.
Além disso, há o problema da predestinação. Os O desencantamento do mundo
calvinistas viram no sucesso mundano na própria
profissão o sinal da certeza da salvação. Em substância, Em relação ao mundo moderno (científico),
as seitas calvinistas acabaram por encontrar no sucesso Weber demonstrava um certo pessimismo e não
temporal, sobretudo no sucesso econômico, a prova da encontrava saída para os problemas culturais que nele
eleição divina. Em outros termos, o indivíduo é impelido surgiam, assim como para a “prisão” na qual o homem se
a trabalhar para superar a angustia em que é mantido pela encontrava por causa do sistema capitalista.
incerteza de sua salvação. Antes da sociedade moderna, a religião era o que
motivava a vida das pessoas e dava sentido para suas
ações, inclusive ao trabalho. Mas com o pensamento
científico tomando espaço como referencial de mundo,
certos apegos culturais – crenças, formas de agir – vindos
da religiosidade foram confrontados. O problema que
Weber via era que a ciência não poderia ocupar por
completo o lugar que a religião tinha ao dar sentido ao
mundo.
Se, em contextos históricos anteriores, o trabalho
poderia ser motivado pela religião, como foi explicado
anteriormente, e agora não é mais, devido à
racionalização do mundo, por que, então, o homem se
prende tanto ao trabalho? Porque o sistema capitalista –
Há mais, porém: a ética protestante ordena ao da produção industrial em série e da exploração da mão-
crente desconfiar dos bens deste mundo e praticar de-obra – deixou o homem ocidental sem uma “válvula
conduta ascética. A essa altura, está claro que trabalhar de escape”. Preso, agora ele vive do e para o trabalho.
racionalmente em função do lucro e não gastar o lucro,
mas reinvesti-lo continuamente, constitui
comportamento inteiramente necessário ao
desenvolvimento do capitalismo.
Para Weber, ser capitalista é sinônimo de ser
disciplinado no que se faz. Seria da grande dedicação ao
trabalho que resultaria o sucesso e o enriquecimento.
Herança da ética protestante, válida também para os
trabalhadores.
Mas por que os católicos e as outras religiões
orientais não tiveram parte nesta construção capitalista
analisada por Weber? Porque a ética católica privilegiava
o discurso da pobreza, reprovando a pura busca do lucro
Tanto em seu grande tratado Economia e sociedade
e da usura e não viam o sucesso no trabalho como
como nos Escritos de sociologia da religião, Weber estudou a
indícios de salvação e nem como forma de glorificar a
importância social das formas religiosas de vida. O ponto
Deus, como faziam os calvinistas. Assim sendo, sem
de partida da história religiosa da humanidade é um
motivos divinos para dedicarem-se tanto ao trabalho, não
mundo repleto de sagrado e, em nossa época, o ponto de
fizeram parte da lista weberiana dos primeiros capitalistas.
chegada é aquilo que Weber chama de desencanto do mundo:
Quanto às religiões do mundo oriental, a
“A ciência nos faz ver na realidade externa unicamente
explicação seria de que essas tinham uma imagem de
forças cegas, que podemos dispor a nosso serviço, mas
Deus como sendo parte do mundo secular, ao contrário
não pode fazer sobreviver nada dos mitos e da divindade
da ética protestante ocidental que o concebia como
com que o pensamento dos primitivos povoava o
estando fora do mundo e puro. Assim sendo, os orientais
universo. Nesse mundo desprovido de encantos, as
valorizavam o mundo, pois Deus estaria nele. O Budismo
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sociedades humanas evoluem para uma organização mais em participar, através de tal procedimento, na
racional e sempre mais burocrática”. comunidade dos ‘homens civis’. Mas elas não estão em
No escrito A ciência como profissão, depois de condições de demonstrar ‘cientificamente’ que as coisas
afirmar que ser superados no plano cientifico é não são assim, e o fato de elas o pressuporem não demonstra
somente nosso destino, de todos nós, mas também nosso de modo nenhum que isso seja evidente. E, com efeito,
escopo, Max Weber se propõe o problema do significado da não o é em absoluto”.
ciência. Essencialmente, a ciência pressupõe a escolha da
Trata-se do problema do significado de uma razão cientifica. E essa escolha não pode ser justificada
atividade que não alcança e jamais poderá alcançar seu cientificamente. A afirmação de que “a verdade cientifica
fim. Em todo caso, para Weber o progresso cientifico é é um bem” não é uma afirmação cientifica.
uma fração, sem dúvida a mais importante, daquele Nem pode sê-lo, já que a ciência, embora
processo de intelectualização ao qual estamos sujeitos há pressupondo valores, não pode fundamentar os valores,
séculos. e não pode igualmente rejeitá-los.
O significado profundo dessa intelectualização e
racionalização progressivas, segundo Weber, está “na A fé como sacrifício do intelecto
consciência ou na fé de que basta querer para poder; em
princípio, qualquer coisa pode ser dominada pela razão. Então, a qual dos valores em luta devemos servir?
O que significa o desencantamento do mundo. Não é Bem, é preciso dizer, sentencia Weber, que a resposta a
preciso mais recorrer à magia para dominar ou para obter essa pergunta “cabe a um profeta ou a um redentor”.
as graças dos espíritos, como faz o selvagem para quem Mas, neste nosso mundo desencantado, não existe o
tais potências existem. Isso é suprido pela razão e pelos invocado profeta ou redentor. E “Os falsos profetas das
meios técnicos. E sobretudo esse o significado da cátedras”, com seus sucedâneos, não bastam para
intelectualização como tal”. cancelar o fato fundamental que o destino nos impõe de
Todavia, admitido esse desencantamento do viver em época sem Deus e sem profetas. Para quem não
mundo, Weber então se pergunta qual será o significado está em condições de enfrentar virilmente esse destino da
da “ciência como vocação”, e escreve que a resposta mais nossa época, Weber aconselha que volte em silêncio, sem
simples a essa interpretação é oferecida por Tolstoi: a a costumeira conversão publicitária, mas sim pura e
ciência “é absurda, porque não responde a única pergunta simplesmente, aos braços das antigas igrejas, ampla e
importante para nós: o que devemos fazer, como misericordiosamente abertas.
devemos viver?” Elas não dificultam seu caminho. Em todo caso,
Além de pressupor a validade das normas da é preciso realizar - é inevitável - o “sacrifício do
lógica e do método, a ciência também deve pressupor que intelecto”, de um modo ou de outro. Se ele for realmente
“o resultado do trabalho cientifico é importante no capaz disso, não o censuraremos.
sentido de ser ‘digno de ser conhecido’”. Em toda teologia “positiva”, o crente chega a um
Mas é evidente que, por seu turno, “esse ponto em que é válida a máxima famosa: “Acredito
pressuposto não pode ser demonstrado com os meios da porque é absurdo”.
ciência” e “menos ainda se pode demonstrar se o mundo Para Weber, aí está o “sacrifício do intelecto”:
por elas (as ciências) descrito é digno de existir: se tenha isso leva o discípulo ao profeta e o crente à igreja. E,
um ‘significado’, ou se haja sentido existir nele”. Com isso sendo assim, Weber sustenta que “está claro que a tensão
as ciências naturais “não se preocupam”. entre a esfera dos valores da 'ciência' e a esfera da salvação
Apenas para exemplificar, a “ciência médica não religiosa é incurável”.
se propõe a questão se, e quando, a vida vale a pena ser
vivida. Todas as ciências naturais dão resposta a esta Monopólio da força legítima
pergunta: o que devemos fazer se quisermos dominar
tecnicamente a vida? Mas se queremos e devemos domina- Para Weber, o Estado é a instituição social que
la tecnicamente, e se isso, em última instância, tem dispõe do monopólio do emprego da força legítima sobre
verdadeiramente um significado, elas o deixam um determinado território.
inteiramente suspenso ou então o pressupõem para seus A expressão “força legítima” pressupõe que o
fins”. Estado tem o direito de recorrer à força sempre que isso
Da mesma forma, as ciências históricas “nos seja necessário, e que esse direito é reconhecido pela
ensinam a entender os fenômenos da civilização - sociedade sobre a qual esse Estado exerce seu poder. É
políticos, artísticos, literários ou sociais - nas condições diferente, por exemplo, da violência utilizada por
de seu surgimento. Elas pressupõem que haja interesse malfeitores, considerada ilegítima.
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Nas democracias modernas, a lei confere ao Weber, portanto, aceita de bom grado uma
Estado o direito de recorrer a várias formas de pressão, explicação em termos econômicos da história. O que ele
inclusive a violência, para que suas decisões sejam rejeita é a metafisicização e a dogmatização de tal
obedecidas. perspectiva.
A proposito disso, escreve: “A concepção
materialista da história do velho sentido genialmente
primitivo, que se apresenta, por exemplo, no Manifesto
comunista, hoje só sobrevive na cabeça de pessoas privadas
de competência especifica e de diletantes. Entre essa
gente, ainda se pode encontrar de forma extensa o fato
de que sua necessidade causal de explicação de um
fenômeno histórico não encontra satisfação enquanto
não se mostram (ou não aparecem) em jogo, de algum
modo ou em algum lugar, causas econômicas. Todavia,
precisamente nesses casos eles se contentam com
hipóteses de malhas mais amplas e formulações mais
gerais, enquanto sua necessidade dogmática é satisfeita ao
considerar que as forças instintivas econômicas são as
O poder do Estado forças próprias, as únicas verdadeiras e, em última instância,
as forças sempre decisivas”.
Segundo ainda Max Weber, o termo poder, em Para concluir, podemos dizer que Weber:
sentido amplo, designa “a probabilidade de impor a a) aceita a perspectiva marxista nos limites em que
própria vontade dentro de uma relação social, mesmo ela, vez por outra, é adotada como conjunto de hipóteses
contra toda resistência”. Poder significa, assim, a explicativas a serem comprovadas caso por caso;
probabilidade de alguém se fazer obedecer por outra b) rejeita a perspectiva marxista quando se
pessoa. transforma em dogma metafísico e, simultaneamente,
Nas democracias representativas, o poder do apresenta-se como concepção científica do mundo;
Estado tem por base uma Constituição livremente c) não é intenção de Weber, como escreve em A
elaborada e aprovada por uma assembleia de pessoas ética protestante e o espírito do capitalismo, a de “substituir”
eleitas com essa finalidade, a Assembleia Constituinte. uma interpretação causal da civilização e da história,
abstratamente materialista, por outra espiritualidade,
Weber e Marx igualmente abstrata: “Ambas são possíveis, mas ambas
igualmente são de pouca serventia para a verdade
Do materialismo histórico Weber rejeita o histórica, caso se pretendam não uma preparação, mas
pressuposto marxista de uma direção determinada de uma conclusão da investigação”.
condicionamento que vai da estrutura para a
superestrutura e que tenha o caráter de interpretação geral
da história. QUESTÕES
E, contrariamente à posição marxista do
inelutável condicionamento do momento econômico 1. (UFU 2009) Ao fazer uso da sociologia de Max Weber,
sobre qualquer outro estado pessoal ou social, material ou podemos afirmar que fenômenos sociais como, por
imaterial, Weber propõe, no escrito A "objetividade" exemplo, a moda, a formação do Estado ou o
cognoscitiva da ciência social e da política social, uma divisão dos desenvolvimento da economia capitalista, podem ser
fenômenos sociais com base em sua relação com a compreendidos por meio do conceito de ação social.
economia (para esse propósito fala-se de fenômenos Esta afirmação implica considerar que:
econômicos verdadeiros e próprios, de fenômenos A) estes fenômenos sociais são determinados pela
economicamente importantes, por exemplo, os estrutura econômica vigente em uma dada sociedade e
processos da vida religiosa, e de fenômenos condicionam as condutas e os interesses dos indivíduos.
condicionados economicamente, como, por exemplo, os B) as estruturas sociais são constituídas a partir das ações
fenômenos artísticos). dos indivíduos, os quais são livres para realizar escolhas e
Como bem se pode ver, Weber procura ampliar e orientam suas condutas com referência à ação de outros
desdogmatizar a posição marxista, mostrando sua indivíduos.
unilateralidade intencional e dogmática.
339
15
C) os fenômenos sociais são constituídos como sistemas criação do tipo ideal como recurso para compreender as
orgânicos, de modo que os indivíduos agem em ações sociais, suas motivações e sentidos.
cooperação com o todo, tendo em vista o bom Assim, é correto afirmar que:
funcionamento da sociedade. A) o Fato Social tem sua principal caracterização na
D) a conduta individual tem base exclusivamente racional neutralidade axiológica.
e é orientada para o interesse de transformação social, B) fato social e tipo ideal são conceitos fundamentais para
com vistas ao progresso da sociedade e à autonomia do a compreensão do método sociológico, respectivamente,
indivíduo. em Durkehim e Weber.
C) a sociologia como campo do conhecimento dentro das
2. (UFU 2010) Segundo Weber, o Estado ciências sociais não requer método para sua produção de
contemporâneo é uma comunidade humana que, dentro conhecimento.
dos limites de um território, reivindica o monopólio do D) Marx, em sintonia com Weber e Durkheim, considera
uso legítimo da força física. que o valor do pesquisador faz parte do desenvolvimento
Com base na afirmação acima, assinale a alternativa da pesquisa, eliminando a possibilidade de metodologia
INCORRETA. para a pesquisa sociológica.
A) O Estado consiste em uma relação de dominação
entre os homens, sob a condição de que os dominados se 5. (UFU 2011) A questão do método nas ciências
submetem à autoridade continuamente reivindicada pelos humanas (também denominadas ciências históricas,
dominadores. ciências sociais, ciências do espírito, ciências da cultura)
B) O Estado consiste em uma relação de dominação entre foi objeto de intenso debate entre intelectuais alemães de
os homens, sob a condição de que os dominados se diferentes áreas do saber no final de século XIX. O objeto
rebelam à autoridade continuamente reivindicada pelos do debate era a relação entre as ciências da natureza e as
dominadores. ciências humanas.
C) O Estado moderno exige uma dominação Sobre o pensamento de Max Weber (1864-1920) a
burocrático-racional, dada sua eficiência em relação às respeito dessa relação, é correto afirmar que
demais formas de dominação. A) todas as ciências (naturais ou humanas) são
D) O Estado moderno se desenvolve paralelamente ao autônomas, em virtude de seus próprios pressupostos, e
desenvolvimento da empresa capitalista. nenhuma serve de modelo para as outras.
B) Weber concordava com Augusto Comte, para quem
3. (UFU 2011) Na concepção de Weber, a política é uma as ciências sociais estariam subordinadas e dependeriam
atividade geral do ser humano. A atividade política se das ciências da natureza já existentes.
desenvolve no interior de um território delimitado e a C) Weber discordava de Augusto Comte, para quem as
autoridade política reivindica o direito de domínio, ou ciências sociais seriam autônomas em relação às ciências
seja, o direito de poder usar a força para se fazer naturais.
obedecer. Se há obediência às ordens, ocorre uma D) Weber não considerava relevante a questão do
situação de dominação. método nas ciências sociais.
Sobre os tipos de dominação, assinale a alternativa
correta. 6. (UFU 2011) Max Weber, em sua análise sobre a
A) A dominação legal racional é a mais impessoal, pois se sociedade moderna, ressalta que os indivíduos estavam
baseia na aplicação de regras gerais aos casos particulares. afastando-se das crenças tradicionais fundadas na
B) O patrimonialismo é o tipo mais característico de superstição, na religião, no costume e em hábitos
dominação legal racional. ancestrais. Para tanto, Weber utilizou o termo
C) A forma mais típica de dominação tradicional é a desencantamento do mundo.
burocracia. Sobre esse termo, assinale a alternativa INCORRETA.
D) A dominação carismática constitui um tipo bastante A) Refere-se ao fato de a sociedade moderna ser marcada
comum de poderio, na medida em que se baseia na crença pela racionalização de diversas áreas da vida, desde a
em qualidades pessoais corriqueiras. política até a religião e a atividade econômica.
B) Implica a ideia de racionalidade, visto que os
4. (UFU 2011) Émile Durkheim e Max Weber são dois indivíduos estavam cada vez mais se pautando em
dos principais sociólogos presentes na formação e no avaliações racionais e instrumentais que levavam em
estabelecimento da sociologia como conhecimento consideração a eficiência e as consequências futuras.
científico. O primeiro, pela construção do fato social
como objeto central da sociologia, e o segundo, pela
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C) É utilizado para descrever a maneira pela qual o C) as estruturas existem externamente ou
pensamento científico no mundo moderno havia varrido independentemente dos indivíduos.
as forças de sentimentalidade do passado. D) os fatores econômicos são os mais importantes para
D) Refere-se ao fato de as pessoas terem chegado a um as transformações sociais.
momento histórico de profunda descrença, no qual todas
as esperanças e fé no futuro chegaram ao fim. 9. (UFU 2013) Em artigo intitulado “Clientelismo ainda
domina política no interior do Brasil”, da BBC, de 27 de
7. (UFU 2012) Nas Ciências Sociais, particularmente na outubro de 2002, o jornalista Paulo Cabral desenha o
Ciência Política, definir o Estado sempre foi uma tarefa painel de parte da política nacional. Ele destaca que, em
prioritária. As tentativas nesta direção fizeram com que comício de uma certa deputada, um grande churrasco foi
vários intelectuais vissem o Estado de formas diferentes, oferecido para os eleitores de uma vila: "Sob um sol
com naturezas diferentes. Numa palestra intitulada escaldante, um caminhão de som tocava o jingle ─ forró
Política como vocação, Max Weber nos adverte, por exemplo, da candidata a todo o volume, a população sentia o cheiro
que o Estado pode ser entendido como uma relação de da carne sendo assada trancada dentro de uma casa.
homens dominando homens. No trecho da canção d´O Comida, só quando chegasse a candidata”.
Rappa, Tribunal de Rua, dominação é o que se percebe, BBC. Disponível em:
também, na relação entre cidadãos e policiais (braço <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2002/021027_seried
b.shtml>. Acesso: 11 mar. 2013.
armado do Estado).
A relação descrita entre os eleitores e a candidata
aproxima-se, na matriz teórica weberiana, de um tipo
A viatura foi chegando devagar
puro de relação de dominação, uma vez que
E de repente, de repente resolveu me parar
A) inscreve-se como relação de poder em que a candidata
Um dos caras saiu de lá de dentro
aproveita-se de uma probabilidade de impor sua vontade,
Já dizendo, aí compadre, você perdeu
ainda que sem legitimidade.
Se eu tiver que procurar você tá fodido
B) estabelece-se, retirando das relações os elementos não
Acho melhor você ir deixando esse flagrante comigo [...].
O Rappa. Lado A Lado B. Warner, 1999. racionais, isto é, em evidente processo de
A partir da perspectiva weberiana, relacionada ao trecho desencantamento do mundo.
da canção acima, evidencia-se que a dominação do C) sua natureza remonta uma tradição inimaginavelmente
Estado antiga e conduz ou orienta a ação habitual do eleitor para
A) é exercida pela autoridade legal reconhecida, daí o conformismo.
caracterizar-se fundamentalmente como dominação D) expõe características típicas das formas carismáticas
racional legal. de dominação, demonstrada pelo dom da graça
B) é estabelecida por meio da violência prioritariamente extraordinário e pessoal manifesto nas práticas
exercida contra grupos e classes excluídos social e clientelistas.
economicamente.
C) ocorre a partir da imposição da razão de Estado, ainda 10. (UNICENTRO 2012) Do ponto de vista do agente,
que contra as vontades dos cidadãos que, normalmente, o motivo é o fundamento da ação; para o sociólogo, cuja
àquela resistem. tarefa é compreender essa ação, a reconstrução do motivo
D) a exemplo da dominação de outras instituições, opera é fundamental, porque, da sua perspectiva, ele figura
de forma genérica, exterior e coercitiva. como a causa da ação. Numerosas distinções podem ser
estabelecidas e Weber realmente o faz. No entanto,
8. (UFU 2013) Ao contrário de outros pensadores apenas interessa assinalar que, quando se fala de sentido
sociológicos anteriores, Weber acreditava que a na sua acepção mais importante para a análise, não se está
Sociologia deveria se concentrar na ação social e não nas cogitando da gênese da ação, mas sim daquilo para o que
estruturas ela aponta, para o objetivo visado nela; para o seu fim, em
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2005. suma.
p. 33. COHN, 1979, p. 27.
De acordo com esta assertiva, Weber considera que A categoria weberiana que melhor explica o texto em
A) as ideias, os valores e as crenças têm o poder de evidência está explicitada em
ocasionar transformações. A) A ação social possui um sentido que orienta a conduta
B) o conflito de classes é o fator mais relevante para a dos atores sociais.
mudança social. B) A luta de classes tem sentido porque é o que move a
história dos homens.
341
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C) Os fatos sociais não são coisas, e sim acontecimentos a) Para Weber, os interesses coletivos estão acima dos
que precisam ser analisados. interesses particulares, portanto, é possível transformar a
D) O tipo ideal é uma construção teórica abstrata que realidade social por meio da acentuada divisão social do
permite a análise de casos particulares. trabalho, já que esta produz a solidariedade orgânica e
E) O sociólogo deve investigar o sentido das ações que ainda possui o Direito Penal que, com suas sanções
não são orientadas pelas ações de outros. repressivas, pode normalizar a sociedade nos momentos
de crise.
11. (UNICENTRO 2013) Para a teoria Weberiana, a b) De acordo com o autor, a divisão do trabalho
pesquisa histórica é capitalista expressa modos de segmentação da sociedade
A) essencial para a compreensão das sociedades. Essa que levam os indivíduos a ocuparem posições desiguais,
pesquisa, baseada na coleta de documentos e no esforço gerando antagonismos de classes. Assim, a classe
interpretativo das fontes, permite o entendimento das explorada, que no capitalismo é a classe operária, seria a
diferenças sociais, que seriam, para Weber, de gênese e única capaz de realizar a mudança da sociedade capitalista
formação, e não de estágios de evolução. para uma sociedade menos desigual.
B) um processo universal de evolução da humanidade, c) Weber considera que somente a renda e a posse geram
cujos estágios o cientista pode perceber pelo método desigualdades. Assim, a possibilidade do
comparativo, capaz de aproximar sociedades humanas de desenvolvimento de uma sociedade mais justa é utópica,
todos os tempos e lugares. pois as vantagens materiais derivam dos próprios méritos
C) uma forma de pensar a sociedade como um todo, em dos indivíduos, que já nascem desiguais em relação aos
que se torna insignificante as particularidades históricas, dons naturais, inteligência, gosto e coragem, entre outros.
e as individualidades são dissolvidas em meio às forças d) O autor, numa perspectiva simbólica, procura explicar
sociais impostas. a sociedade capitalista e a sua possibilidade de
D) desnecessária, posto que cabe à sociologia estudar o transformação. Considera que é necessário analisar a
presente de cada sociedade e não seu passado. sociedade microssociologicamente, pois, como só alguns
E) segundo Weber, o caráter particular e específico de grupos possuem capital simbólico e econômico de maior
cada formação social e histórica não precisa ser analisado significância na hierarquia social, reproduzem a cultura, a
como único, mas entendido de maneira universal. ideologia, organizando o sistema simbólico segundo a
lógica da diferença.
12. (UNICENTRO 2015) A teoria social e) Segundo Weber, as classes, os estamentos e os partidos
contemporânea tem como um de seus principais teóricos são fenômenos de distribuição de poder dentro de uma
o cientista social alemão Max Weber e seus estudos sobre comunidade, que se legitimam e se definem pelos valores
a moderna sociedade capitalista ocidental. sociais convencionalmente estabelecidos em dada
Com base nas análises sociológicas weberianas sobre as sociedade.
ações sociais, assinale a alternativa correta.
a) Busca compreender, pela interpretação, os sentidos 14. (UEL 2008) De acordo com Max Weber, a Sociologia
atribuídos pelos indivíduos às ações sociais. significa: “uma ciência que pretende compreender
b) Consegue explicar a totalidade das ações sociais por interpretativamente a ação social e assim explicá-la
meio de verdades científicas. casualmente em seu curso e em seus efeitos.”
c) Determina o caráter imperativo da esfera econômica Por ação social entende-se as ações que: “quanto ao seu
sobre as ações sociais dos diferentes grupos. sentido visado pelo agente, se refere ao comportamento
d) Enfatiza o estudo das contradições das ações sociais a dos outros, orientando-se por este em seu curso.”
partir das vontades das classes sociais. (WEBER, M. Economia e sociedade. traduzido por Regis Barbosa e
e) Procura definir a existência de uma lei histórica geral Karen Elsabe Barbosa. vol. I. Brasília: Editora UnB, 2000. p. 3)
de desenvolvimento das ações sociais. Com base no texto, considere as afirmativas a seguir:
I. “Mesmo entre gente humilde, porém, funcionava o
13. (UEL 2007) Max Weber, teórico cujos sistema de obrigações recíprocas. O nonagentário Nhô
conhecimentos continuam básicos para a Sociologia, Samuel lembrava com saudade o dia em que o pai, sitiante
procurou não apenas conhecer a sociedade moderna, mas perto de Tatuí, lhe disse que era tempo de irem buscar a
explicar sua estrutura de dominação política e econômica novilha dada pelo padrinho... Diz que era costume, se o
e suas disparidades. pai morria, o padrinho ajudar a comadre até ‘arranjar a
Com base no enunciado e nos conhecimentos sobre o vida’. Hoje, diz Nhô Roque, a gente paga o batismo e,
autor, assinale a alternativa correta: quando o afilhado cresce, nem vem dar louvado (pedir a
benção).”
342
18
(CANDIDO, A. Os Parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Livraria Duas (VARGAS, G. Carta Testamento. Disponivel em:
Cidades, 1982. p. 247.) http://www.cpdoc.fgv.br/dhbd/verbetes_htm/5458_53.asp.
II. “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o Acesso em: 17 nov. 2007.)
raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do Com base nos conhecimentos sobre os tipos ideais de
litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de dominação e levando em consideração o texto citado e as
vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o características históricas e políticas do período, assinale a
desempeno, a estrutura corretíssima das organizações única alternativa que apresenta a configuração correta do
atléticas.” tipo de dominação exercida por Getúlio Vargas.
(CUNHA, E. Os Sertões. São Paulo : Círculo do Livro, 1989. p. 95.) a) Dominação carismática e tradicional.
b) Dominação tradicional que se opõe à dominação
III. “Não há assim por que considerar que as formas carismática.
anacrônicas e remanescentes do escravismo, ainda c) Dominação tradicional e legal.
presentes nas relações de trabalho rural brasileiro, [...], d) Dominação legal e carismática.
dando com isso origem a relações semifeudais que e) Dominação legal que reforça a dominação tradicional.
implicariam uma situação de ‘latifúndios de tipo senhorial
a explorarem camponeses ainda envolvidos em restrições 16. (UNICENTRO 2013) Segundo, Max Weber,
da servidão da gleba’. Isso tudo não tem sentido na entende-se Ação Social como
estrutura social brasileira.” A) o conjunto das crenças e dos sentimentos comum à
(PRADO Jr., C. A Revolução Brasileira. São Paulo : Brasiliense, média dos membros de uma mesma sociedade que forma
1987. p. 106.) um sistema determinado com vida própria.
IV. “O coronel, antes de ser um líder político, é um líder B) a conduta humana dotada de sentido, isto é, de uma
econômico, não necessariamente, como se diz sempre, o justificativa subjetivamente elaborada.
fazendeiro que manda nos seus agregados, empregados C) um instrumento de análise científica, numa construção
ou dependentes. O vínculo não obedece a linhas tão do pensamento que permite conceituar fenômenos e
simples, que se traduziriam no mero prolongamento do formações sociais e identificar na realidade observada
poder privado na ordem na ordem pública [...] Ocorre suas manifestações.
que o coronel não manda porque tem riqueza, mas manda D) a proposta de transformar radicalmente a sociedade,
porque se lhe reconhece esse poder, num pacto não implantando uma ordem social mais justa e igualitária, da
escrito.” qual seriam eliminados o individualismo, a competição e
(FAORO, R. Os donos do poder. v. 2. Porto Alegre: Editora Globo,
1973. p. 622.) a propriedade privada.
Correspondem ao conceito de ação social citado E) o objeto da Sociologia. A ação Social é experimentada
anteriormente somente as afirmativas pelo indivíduo como uma realidade independente e pré-
a) I e IV. existente.
b) II e III.
17. (UEL 2009) Observe a figura a seguir.
c) II e IV.
d) I, II e III.
e) II, III e IV.

15. (UEL 2008) Max Weber, sociólogo alemão,


conceituou três tipos ideais de dominação: dominação
legal, dominação tradicional e dominação carismática.
São tipos ideais porque são construções conceituais que
o investigador utiliza para fazer aproximações entre a
teoria e o mundo empírico.

Leia a seguir o trecho da Carta Testamento de Getúlio


Vargas:
Sigo o destino que é imposto. Depois de decênios de
domínio e espoliação dos grupos econômicos e
HODGE, N.; ANSON, L. L’Art de A à Z. Dubai: PML Éditions, 1996. p. 218.
financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução
e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o
Sobre o processo de organização do trabalho
regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao
representado na figura, é correto afirmar que esse
governo nos braços do povo.
expressa, segundo a forma pela qual Max Weber o analisa,
343
19
a) o papel libertador da técnica na vida dos indivíduos,
pois potencializa as capacidades físico-intelectuais
humanas.
b) o tipo ideal de sociedade, pois esta, por ser justa, aloca
cada um nas funções para as quais tem aptidões inatas.
c) o declínio das formas racionais de dominação
burocrática que, tradicionalmente, estiveram presentes
nas sociedades orientais.
d) a formação de uma ordem econômica e técnica que
define violentamente a vida dos indivíduos nascidos sob
esse sistema.
e) que o trabalho fabril escapa à tipologia das ações
racionais, por ser repetitivo e marcado pela tradição,
aproximando-se, assim, do trabalho outrora existente nas
comunidades.

18. (UNICENTRO 2013) Segundo Max Weber, é


função da Sociologia
A) investigar a ação social e ressaltar os elementos mais
gerais de cada fase do processo histórico daquela
sociedade.
B) explicar a sociedade, encontrar soluções coletivas e
objetivas para a vida social comparando as sociedades.
C) compreender o coletivo, independente do que os
sujeitos pensam e deve ser entendida como uma “coisa”.
D) entender de que maneira se consolida a subordinação
do indivíduo em relação à sociedade e suas
determinações.
E) compreender a divisão clássica entre proletariado e
burguesia.

344
20
GABARITO 15. d
16. d
QUESTÕES DURKHEIM
17. b
1. b
18. a
2. c
3. a
4. c
5. a
6. d
7. a
8. b
9. b
10. a
11. b
12. b
13. a
14. a
15. b
16. b
17. b

QUESTÕES WEBER
1. b
2. b
3. a
4. b
5. a
6. d
7. a
8. a
9. c
10. a
11. a
12. a
13. c
14. a
345
21

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