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Flavia Lana Garcia de Oliveira
(organizadoras)
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Reconfigurações
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do Imaginário no
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Século XXI
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s ão itor
par aC
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o aut
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Tania Coelho dos Santos
Ana Lydia Santiago
Flavia Lana Garcia de Oliveira
(Organizadoras)
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od V
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
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RECONFIGURAÇÕES DO
itor
Editora CRV
Curitiba – Brasil
2019
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Editora CRV
Revisão e Tradução: Catarina Coelho dos Santos
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
CATALOGAÇÃO NA FONTE
R294
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Reconfigurações do imaginário no século XXI / Tania Coelho dos Santos,
Ana Lydia Santiago, Flavia Lana Garcia de Oliveira (organizadoras) – Curitiba : CRV, 2019.
250 p.
Tania Coelho. org. II. Santiago, Ana Lydia. org. III. Oliveira, Flavia Lana Garcia de. org. IV.
a re
Título V. Série.
2019
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Andrea Vieira Zanella (UFSC)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (UNESP)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Edna Lúcia Tinoco Ponciano (UERG)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Edson Olivari de Castro (UNESP)
or
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Érico Bruno Viana Campos (UNESP)
Carmen Tereza Velanga (UNIR) Fauston Negreiros (UFPI)
od V
Celso Conti (UFSCar) Francisco Nilton Gomes Oliveira (UFSM)
aut
Cesar Gerónimo Tello (Univer. Nacional Ilana Mountian (Manchester Metropolitan
Três de Febrero – Argentina) University, MMU, Grã-Bretanha)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-SP)
R
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) Marcelo Porto (UEG)
Élsio José Corá (UFFS) Marcia Alves Tassinari (USU)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Maria Alves de Toledo Bruns (FFCLRP)
o
Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Mariana Lopez Teixeira (UFSC)
aC Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Monilly Ramos Araujo Melo (UFCG)
Gloria Fariñas León (Universidade Olga Ceciliato Mattioli (ASSIS/UNESP)
de La Havana – Cuba) Regina Célia Faria Amaro Giora (MACKENZIE)
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
APRESENTAÇÃO�������������������������������������������������������������������������������������������� 9
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PARTE I
aut
O OUTRO E OS LAÇOS SOCIAIS
R
Tania Coelho dos Santos
o
LOST IN FAKE NEWS����������������������������������������������������������������������������������� 33
aC
Antonio Márcio Ribeiro Teixeira
surpreende ao falar����������������������������������������������������������������������������������������� 47
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Bruna Simões de Albuquerque
Ana Lydia Santiago
PARTE II
Ed
DA POESIA�������������������������������������������������������������������������������������������������� 115
Virgínia Célia Carvalho da Silva
Gilson de Paulo Moreira Iannini
Jésus Santiago
INSÍGNIAS IDENTITÁRIAS E AS
PSICOPATOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS � ������������������������������������ 141
Flavia Lana Garcia de Oliveira
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e os borderlines��������������������������������������������������������������������������������������������� 159
od V
Douglas Nunes Abreu
aut
PARTE III
FEMININO E FEMINISMOS
R
O IDEAL DE IGUALDADE NA PÓS-MODERNIDADE: liberdade
o
democrática ou direito ao gozo?������������������������������������������������������������������� 185
aC
Fernanda Oliveira Queiroz de Paula
or
(GT) durante o XVII Simpósio da ANPEPP realizado em Brasília em 2018,
intitulado CIÊNCIA, COTIDIANO E DEMOCRACIA. Nosso GT já conta
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com um longo histórico. Os integrantes de nosso grupo são muito compro-
aut
metidos com o ensino, com a pesquisa científica, com o desenvolvimento
de inovações na prática e com a divulgação da psicanálise em programas de
R
pós-graduação de universidades públicas e privadas. Grande parte daqueles
que o inauguraram fizeram seus mestrados, doutorados e/ou pós-doutorados
o
no Programa de Pós-graduação do Département de Psychanalyse de Paris
VIII, fundado pelo psicanalista Jacques Lacan, onde se ensina teoria da clínica
aC
psicanalítica. A maior parte era, na ocasião, membro da Escola Brasileira de
Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, onde participavam ati-
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inicial: Jésus Santiago (2006), Márcia Rosa (2007) e Ana Lydia (2008), Andrea
Martello (2013) e Angélica Tironi (2014). Também sob orientação de Tania
Coelho, Rita Manso (1999), Maria Cristina Antunes (2002), Analícea Calmon
ão
(2005), Rosa Guedes Lopes (2007) Maria José Gontijo (2006) e Jorge Forbes
(2010), Douglas Nunes de Abreu (2013) e Lucia carvalho da Cunha (2014)
s
1 Coelho dos Santos, T. (Org.) (2005). Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada. Rio de Janeiro: Contracapa.
2 Coelho dos Santos, T. (Org.) (2007). Inovações no ensino e na pesquisa em psicanálise aplicada. Rio de
Janeiro: Editora 7 Letras.
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or
real se trata na clínica psicanalítica?4. Durante o XV Simpósio da ANPEPP,
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nós nos perguntávamos quais seriam as invenções que os sujeitos fabricam
aut
nos dias de hoje para defender-se do real da morte, do sexo e do desamparo.
Tomamos como eixo a tese foucaultinana acerca do rebaixamento geral da
lei simbólica à norma social, na modernidade. A constatação de que houve
R
um deslocamento do supereu ao supersocial produziu a coletânea conclusiva
de artigos intitulada: “Os corpos falantes e normatividade do supersocial”5.
o
Durante nosso último encontro, retomamos a tese de que o sujeito sobre
aC
or
dos pela pulsão) organizam o narcisismo (eu ideal), sem a função simbólica
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do Nome-do-Pai (ideal do eu) como horizonte simbólico? A pluralização dos
aut
Nomes-do-Pai, a ascensão do objeto a ao comando da civilização, o declínio do
mecanismo psíquico do recalque da sexualidade e a hegemonia das formações
reativas na constituição do caráter, apontam que em lugar do supereu, a moral
R
de grupo (tribalismo) se impõe como novo modo de regular os corpos falantes.
E fomos completamente tomados pela pergunta se esse novo narcisismo - com
o
sua repercussão no âmbito da função do eu - pode ser ainda uma via autêntica
aC
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Tania Coelho dos Santos retomou a tese de que seja na clínica do sujeito,
seja na clínica da civilização, nos ocupamos dos sintomas, discursos e laços
sociais em nosso cotidiano profissional. O interesse ficou mais voltado durante
a reunião para a adesão apaixonada e crédula (pathos) que a maior parte dos
par
e cultural que ocorreu ao final dos anos 1960. Estes acontecimentos sociais
sucederam o incrível desenvolvimento econômico que grande parte do mundo
vai experimentar depois das perdas catastróficas infligidas pela segunda guerra
s
preparada ao longo dos anos 50, período em que muitas nações vão conhecer
um crescimento industrial e tecnológico estupendo. A condição pós-moderna
e as reconfigurações do imaginário que hoje nos interessam tanto, inaugura-se
juntamente com os acontecimentos de maio de 1968 em todo mundo.
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anti-racistas mas que se baseiam na oposição entre negros e brancos, num
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país onde predomina a miscigenação racial. Finalmente, ele nos apresenta
aut
suas considerações acerca de um campo muito particular e pouco conhecido
entre nós, o feminismo negro.
Fábio Malcher, destacou a mudança no discurso do capitalista, da moder-
R
nidade à contemporaneidade. O sujeito ocupa o lugar de agente, mas não
comanda nada, sendo comandado pelo mais-de-gozar que a mercadoria pro-
o
mete, mas não entrega, deixando o sujeito em uma insaciável falta-de-gozar
aC
Rosa Guedes Lopes traz um tema muito atual acerca da formação desta
díade eu ideal/ideal do eu. Ela se pergunta: como um aplicativo é capaz de
Ed
alterar a percepção que um sujeito tem dele mesmo e permitir que se veja
de um modo diferente daquele que imaginava? Quando o Outro familiar se
ausenta da função de ajudar uma criança ou um adolescente a administrar o
ão
gozo. As diferentes formas, nas quais o sujeito faz uso do seu corpo, marcam
o interesse clínico nesta pesquisa. Mais do que isso, permite acompanhar
como se dá a construção e a apropriação de um corpo para o sujeito, e, assim,
extrair as consequências da fala do paciente, que fazem parte desse processo.
Flavia Lana Garcia de Oliveira constata que uma das consequências desse
rebaixamento da lei simbólica sobre o campo da psicopatologia é o aumento
da incidência das neuroses narcísicas. Grande parte desses casos é marcada
or
por uma posição melancoliforme em que a falta não causa o desejo, mas sim
od V
a reivindicação voraz de algo de que se foi privado injustamente. Em tempos
aut
de ascensão da normatividade do supersocial, esse estudo partirá do fenô-
meno das comunidades virtuais de anoréxicos e bulímicos para depreender
os impactos da transformação do transtorno alimentar em insígnia identitária
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sobre a responsabilidade subjetiva.
Douglas Nunes Abreu pergunta-se sobre o porque da ampliação da inci-
o
dência do diagnósticos de borderline na contemporaneidade, levando em conta
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tanto se fala hoje. Qual seria sua especificidade, se a falsidade sempre esteve
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sem romper com a doutrina clássica que a percebe nos términos gramaticais
do predicado, consoante ao princípio lógico de correspondência. A verdade,
enquanto predicado, não tem nada a dizer; ela supõe somente a correspon-
ão
dência entre algo do qual se fala e o que se diz a propósito desse algo. A ver-
dade-sujeito que interessa a psicanálise se manifesta justamente nos efeitos
de inadequação que fazem vacilar todo esforço de comunicação.
s
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Ana Lydia Santiago, Bernardo Micherif e Bruna Albuquerque trouxeram
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uma pesquisa/intervenção com adolescentes no Núcleo Interdisciplinar de Pes-
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quisa em Psicanálise e Educação-NIPSE/FaE/UFMG, por meio da metodologia
da Conversação. A pesquisa de campo acontece em escolas públicas e particu-
lares, é realizada com jovens considerados alunos problemas pelos docentes
R
e responsáveis educacionais das instituições escolares. Dedicaram-se a pensar
como estimular a sublimação, como acesso ao pensamento crítico e científico,
o
bem como ás formas democráticas de organização social. É preciso: 1) Delimitar
aC
laço social? Quais são as que acentuam a rejeição e são incompatíveis com o
a re
eu) na nomeação. 4) Caracterizar este Outro escolar das escolas públicas atuais
que parece reduzido de seu valor simbólico à instância persecutória de um Outro
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PARTE I
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O OUTRO E OS LAÇOS SOCIAIS
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O QUE É E ONDE COMEÇA
A PÓS-MODERNIDADE?
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Tania Coelho dos Santos1
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Resumo: Parto de um ponto de vista histórico. Admito que uma revolução
social e cultural ocorreu ao final dos anos 1960. Estes acontecimentos sociais
sucederam o incrível desenvolvimento econômico que grande parte do mundo
R
vai experimentar depois das perdas catastróficas infligidas pela segunda guerra
mundial. A pós-modernidade é esta revolução nos costumes que começa a ser
o
preparada ao longo dos anos 50, período em que muitas nações vão conhecer
aC
um crescimento industrial e tecnológico estupendo. Do nosso ponto de vista, a
condição pós-moderna inaugura-se juntamente com os acontecimentos de maio
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de 1968 em todo mundo. Uma avaliação mais justa, entretanto, exige alargar o
escopo temporal e analisar suas pré-condições históricas.
visã
Palavras-chave: revolução, modernidade, pós modernidade.
I start from a historical point of view. I admit that a social and cultural revolu-
a re
tion took place in the late 1960s. These social events followed the incredible eco-
nomic development that much of the world will experience after the catastrophic
losses inflicted by World War II. Post-modernity is this revolution in manners that
is beginning to be prepared throughout the 1950s, a period when many nations
par
will experience stupendous industrial and technological growth. From our point
of view, the post-modern age opens with May 1968 events around the world. A
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fairer assessment, however, requires widening the temporal scope and analyzing
its historical preconditions.
Keywords: revolution, modern age, post-modernity.
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conditions préalables historiques.
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Mots-clés: révolution, modernité, postmodernité.
aut
A Era de Ouro (1945-1990)
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Parto de um ponto de vista histórico. Admito que uma revolução social
e cultural ocorreu ao final dos anos 1960. Estes acontecimentos sociais suce-
o
deram o incrível desenvolvimento econômico que grande parte do mundo vai
aC
mundo. Já expus2 essa opinião quando explorei esse tema seguidas vezes.
Uma avaliação mais justa, entretanto, exige alargar o escopo temporal e ana-
lisar suas precondições históricas. O apelo a uma abordagem histórica e não
ão
a maioria do nosso povo nunca viveu tão bem!” (p. 331) Cita também J.B.
Priestley4 que cunhou o termo Admass (advertising+mass media) para definir
or
Judt salienta que, por volta de 1957, pela primeira vez na história da
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Europa os próprios jovens começam a comprar. É preciso lembrar que a
aut
“juventude” não existia. Em famílias tradicionais, crianças permaneciam
crianças até deixarem a escola e entrarem no mercado de trabalho, quando
R
se tornavam adultos. Para a maioria das pessoas, a família sempre fora uma
unidade de produção e não de consumo. Foi a primeira vez que os ganhos
o
financeiros de um membro mais jovem da família deixaram de ser utilizados
para o pagamento das despesas coletivas. E eles podiam agora guardar a tota-
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lidade dos seus vencimentos para gastar como quisessem: “O sintoma mais
óbvio desse novo poder aquisitivo dos adolescentes transpareceu no vestuário.
[...] Ter roupa específica, de acordo com a faixa etária, era importante como
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afirmação de independência e mesmo de rebeldia. [...] Mas, do ponto de vista
econômico, roupas não foram a mudança mais importante introduzida pelos
hábitos de consumo dos adolescentes: os jovens gastavam bastante dinheiro
itor
em roupas, mas gastavam ainda mais – muito mais – em música” (p. 355).
a re
imensa fonte de dinheiro até então inexplorada. O aspecto mais curioso deste
período é que esses jovens consideravam esses bens e serviços como direitos
ão
seus dos quais tinham sido, eventualmente, privados no passado e não sonhos
e fantasias aos quais jamais puderam alcançar anteriormente. O que explica
essa percepção das coisas, para muitos observadores desta época, foi a adoção
s
or
naquelas partes do mundo” (p. 283). Exagerando um pouco, o conhecido
od V
historiador acrescenta que a Idade Média acabou de repente em meados da
aut
década de 1950 ou, talvez, sentiu-se que ela acabou na década de 1960.
Ainda de acordo com Hobsbawn (2016), a mudança social mais impres-
R
sionante foi a rápida redução da população agrícola, mesmo em países onde a
industrialização não prosperou. Ao mesmo tempo, cresceu exponencialmente
o
a produção de alimentos graças à mecanização da maior parte da terra do
mundo e de suas ilhas. Só parcialmente, isso se deveu ao progresso agrícola,
aC
até o ano de 1967, o salário na França, por exemplo, aumentou 3.6 por cento
a cada ano. Houve, como em outras partes do mundo desenvolvido, uma
rápida elevação na aquisição de bens de consumo. E um drástico aumento
ão
alcançar renda e status social melhor. Que razões teriam estes jovens para
ver
or
pelo fato de que depois de 20 anos de melhorias sem paralelos, a revolução era
od V
a última coisa em que pensavam as massas proletárias. Estudantes sentiam que
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tudo podia ser diferente e melhor, só não sabiam o que, nem como. É notável
que a revolta tenha eclodido, justamente, entre os estudantes universitários
R
que não tinham muitos motivos para sentir-se insatisfeitos. O historiador se
pergunta: “a Era de Ouro teria sido um exemplo de ‘incomum combinação
o
keynesiana’ de crescimento econômico numa economia capitalista baseada
no consumo de massa de uma força de trabalho plenamente empregada e
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cada vez mais bem paga e protegida?” (p. 276). Explica que essa construção
política se apoiou no consenso entre esquerda e direita na maioria dos países
“ocidentais”, entre patrões e organizações trabalhistas, de molde a manter as
visã
reivindicações salariais dos trabalhadores dentro de limites que não afetassem
os lucros e, sobretudo, as perspectivas de lucros futuros. Afinal, sem enormes
investimentos não voltaria a acontecer o crescimento da produtividade da
mão de obra que se viu na Era de Ouro. Foi um pacto aceitável para todos
itor
política. O aspecto que nos interessa mais neste artigo é o paralelo aparente-
mente paradoxal entre a mudança para a esquerda e a emergência de Estados
s
or
falta ou a privação da satisfação, aparentemente, que induz à rebeldia e sim,
talvez, o excesso inebriante de facilidades que a geração emergente experi-
od V
menta e que parece engendrar, paradoxalmente, a expectativa de experimentar
aut
mais satisfações ainda. Em artigos recentes tenho ensaiado compreender essa
lógica por meio do mecanismo psíquico do desmentido do desamparo. A
R
dimensão essencial da falta como causa do desejo e, até mesmo, a dimensão
do impossível da satisfação absoluta parecem enfrentar uma rejeição patoló-
o
gica. A promessa de um mundo onde o estado de felicidade e de satisfação
aC
seria sem limites, parece conduzir sobretudo os mais jovens a não aceitar
Nunca houve um ano como 1968 e é improvável que volte a haver. Numa
ocasião em que nações e culturas ainda eram separadas e muito diferentes
–, em 1968, Polônia, França, Estados Unidos e México eram muito mais
diferentes um do outro do que são hoje – ocorreu uma combustão espon-
tânea de espíritos rebeldes no mundo inteiro. [...] Único em 1968 foi o
fato de que as pessoas rebelaram-se em torno de questões disparatadas
e tiveram em comum apenas seu desejo de se rebelar, suas ideias sobre
or
como fazer isso, uma sensação de alienação da ordem estabelecida e um
profundo desagrado pelo autoritarismo sob qualquer forma. Onde havia
od V
comunismo, rebelaram-se contra o comunismo; onde havia capitalismo,
aut
voltaram-se contra isso. Os rebeldes rejeitaram a maioria das instituições,
dos líderes políticos e dos partidos políticos (p. 13-14).
R
Em sua análise acerca das causas de tamanha insatisfação política e social,
Kurlansky privilegia o movimento pelos direitos civis, contra as guerras uni-
o
versalmente odiadas como a do Vietnã, os sentimentos de uma geração que
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or
revolta como oposição à sociedade industrial, que teria ocorrido ao mesmo
od V
tempo no ocidente e na república soviética. Acredita que é preferível pensar
aut
que a situação dos estudantes se tornou anormal e marginal em todas as ordens
sociais. O prolongamento do aprendizado de uma profissão até 23 anos (ou
até mais ainda), de rapazes e moças que já tinham atingido a maturidade
R
fisiológica humana desde os quatorze ou quinze anos, comporta uma contra-
dição entre a consciência que esses jovens têm deles mesmos como jovens
o
adultos e uma situação de dependência à margem das responsabilidades da
aC
or
A análise crítica de Touraine se esforça em separar os sentidos que o aconte-
od V
cimento de maio misturou. Pois, ele não teria sido tão profundamente criativo pelo
aut
que exprimiu intensamente e sim pelo combate que perdeu. A agitação cultural
não teria sido o aspecto mais significativo e promissor pois foi muito mais uma
reação às novas formas de poder e dominação do que, efetivamente, uma ação
R
política. A sociedade francesa, afinal, não estava mais em guerra, modernizava-se
e enriquecia, a despeito da reaparição do desemprego. A liberação súbita e forças
o
e necessidades reprimidas pela civilização tecnicista e a sociedade capitalista des-
aC
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gerir grandes organizações que exploram a mão de obra por meio de aparelhos
a re
11). Por esta razão: “Aqueles para quem a luta de classes não pode dirigir-se
senão contra a propriedade capitalista surpreenderam-se com a natureza do
movimento, tanto quanto estes que acreditavam no fim das ideologias e dos
s
or
um evento revolucionário.
od V
A contestação de todas as formas de autoridade foi ativa e quase geral.
aut
A proclamação revolucionária vela, de fato, uma obra de modernização das
estruturas educativas nos Liceus e também das organizações profissionais.
Nos EUA, os movimentos pelos direitos civis dos negros e contra a guerra
R
do Vietnã encontrou a universidade americana muito mais disposta a nego-
ciar. Na Alemanha e na Itália, a luta contra a estrutura arcaica e autoritária
o
durou um tempo bem grande. Porque lá, esse problema foi enfrentado num
aC
Para Aron, tratou-se de uma revolução não encontrável. E para Touraine uma
fuga das questões universitárias para o comunismo utópico. Neste sentido, é
uma farsa, um psicodrama e não um acontecimento inédito, uma ruptura ou
um novo começo revolucionário.
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 27
or
a dicotomia clássica que opõe quem tem poder e quem não tem. O poder
od V
não se detém, o poder se exerce. O poder nas sociedades pós-disciplinares
aut
se torna invisível, irredutível a um centro visível, multiplicado e agenciado
por diferentes atores e em diferentes lugares sociais, polimorfo como uma
correlação de forças cujo resultado é sempre imprevisível. Nenhuma revolu-
R
ção seria encontrável desde então. Como Lacan profetizou na Faculdade de
Vincennes, durantes os acontecimentos de maio de 1968:
o
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exercício de poder não corresponda mais ao que se inaugura como uma nova
modalidade de laço social na pós-modernidade. Porque ainda raciocinamos
s
or
que ser paga por meio de indenizações a todos aqueles que não se sentem
contemplados suficientemente pelo avanço da civilização. Não pode mais
od V
haver nenhuma satisfação a menos, pois todas as formas de satisfação se
aut
tornaram direitos a serem exigidos pela via de uma judicialização crescente
das diferenças sociais. O acirramento das reivindicações igualitárias não tem
R
feito outra coisa senão aumentar a intolerância e até a violência entre oposi-
tores radicalizados.
o
Não é tarde demais para recordar, a título de conclusão, a advertência de
aC
Lacan (1959-1960/1988, p. 350) contra a adesão dos psicanalistas ao sonho
que todas as necessidades dos homens poderiam ser satisfeitas. É nesse ponto
que a dimensão impossível do real foi rejeitada, a castração desmentida e o
pathos revolucionário tornou-se um sintoma muito comum. Sintoma de quê?
Da convicção profunda de que deve haver em algum lugar um Outro mau,
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
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REFERÊNCIAS
Aron, R. (1968). La révolution introuvable, reflexions sur la revolution de
mai en toutte liberté. Paris: Editora Fayard.
or
lise entre ciência e religião. Psicologia em Revista, 14(1), 63-82. Belo
Horizonte: PUC-MG.
od V
aut
Coelho dos Santos, T. (maio/out. 2010). Ditadura da homogeneidade ou direito
ao gozo autista do sinthoma? Revista aSEPHallus de Orientação Laca-
niana, V(10).
R
o
Coelho dos Santos, T. (, maio/out. 2012). O lugar certo onde colocar o desejo
aC
do analista na era dos direitos. Revista aSEPHallus de Orientação Laca-
Coelho dos Santos, T. (2016a). O Outro que não existe: verdade verídica,
Ed
019v11n22p04-19.
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XXI. São Paulo: Manole.
od V
aut
Freud, S. (1974). O mal-estar na civilização. In Edição Standard Brasileira
(Vol. XXI, pp. 75-174). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publi-
cado em 1930).
R
Judt, T. (2007). Pós-Guerra, uma história da Europa desde 1945. Rio de
o
Janeiro: Objetiva.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Éditions du Seuil.
or
Resumo: Em que consiste essa famosa “era da pós-verdade” de que
od V
tanto se fala hoje? Qual seria sua especificidade, se a falsidade sempre esteve
aut
presente em todas as narrativas humanas, em torno tanto de interesses polí-
ticos quanto de juras amorosas? É difícil responder a essa questão se nos
R
obstinarmos a conceber a verdade na vertente aquiniana clássica de adequação
entre realidade e representação mental. Parece-nos, antes, provável que uma
o
mentira possa habitar neste clamor nostálgico pela verdade como corres-
pondência factual. Em nosso entender, não é possível dar lugar à verdade da
aC
psicanálise sem romper com a doutrina clássica que a percebe nos términos
gramaticais do predicado, consoante ao princípio lógico de correspondência.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
A verdade, enquanto predicado, não tem nada a dizer; ela supõe somente a
visã
correspondência entre algo do qual se fala e o que se diz a propósito desse
algo. A verdade-sujeito que interessa a psicanálise se manifesta justamente
nos efeitos de inadequação que fazem vacilar todo esforço de comunicação.
Palavras-chave: psicanálise lacaniana; fake news; verdade-sujeito.
itor
a re
récits humains, tant autour des intérêts politiques que des histoires d’amour?
Il est difficile de répondre à cette question si nous ne voulons pas concevoir la
Ed
vérité en tant que correspondance factuelle. Selon nous, il n’est pas possible de
céder à la vérité de la psychanalyse sans rompre avec la doctrine classique qui
s
de la correspondance. La vérité, en tant que prédicat, n’a rien à dire; cela sup-
pose seulement la correspondance entre ce dont on parle et ce qu’on en dit. La
1 Esse artigo é a transcrição de uma conferência proferida na Universidade de Rennes 2, a convite de François
Sauvagnat, no dia 22 de novembro de 2018, e na Universidade de Paris 8, a convite de Clotilde Leguil, no
dia 17 de dezembro de 2018.
2 Psicanalista. Pós-doutorado em Filosofia na USP. Doutor pelo Départment de Psychanalyse Paris VIII.
Professor Associado FAFICH/UFMG. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial
de Psicanálise. E-mail: amrteixeira@uol.com.br
34
What is this famous “post-truth age” that we talk about so much today?
or
What would be its specificity if falsehood has always been present in all human
od V
narratives around political interests as well as love affairs? It is difficult to
aut
answer this question if we are unwilling to conceive of truth in the classic
Aquinian strand of adequacy between reality and mental representation. It
R
seems to us rather likely that a lie may dwell in this nostalgic clamor for
truth as factual correspondence. In our view, it is not possible to give way to
the truth of psychoanalysis without breaking with the classical doctrine that
o
perceives it in the grammatical terms of the predicate, according to the logi-
aC
estampou para o mundo que hoje nos observa, mas não para celebrar uma nova
invenção cultural que a civilização brasileira teria a aportar. Não, o mundo não
ão
nos vê mais com a admiração que Jean-Luc Godard tinha por Glauber Rocha,
mas com um olhar estupefato que busca decifrar um enigma doloroso: como
foi possível a um país que, a despeito de toda miséria e violência, sempre bus-
s
Por mais nebulosa que nos pareça essa paisagem, se nos restringirmos ao
que se passa atualmente no Brasil, ainda assim podemos identificar um fator
comum à inquietante ascensão do neofascismo em volta do mundo. Seja com
Bolsonaro ou Trump, nas Américas, seja com Rodrigo Duterte, nas Filipinas,
seja ainda com Victor Orban, na Hungria, ou com Sebastian Kurz, na Áustria,
a escolha popular por líderes autoritários parece ligada à manipulação midiá-
tica da opinião pública através da dispersão das “fake news”, ao longo de
or
um fenômeno cuja repercussão, em escala planetária, teria conduzido vários
od V
intelectuais a nomear nossa época como era da pós-verdade.
aut
A bem da verdade, contudo, a aparição dessa expressão é menos recente
do que normalmente se crê. Ela surgiu pela primeira vez há vinte e sete anos,
em 1992, durante a Guerra do Golfo, em artigo publicado pelo jornalista Steve
R
Tsich na revista americana “The Nation”. Steve Tsich se lamentava, naquela
ocasião, de que o povo americano houvesse optado por viver num mundo
o
no qual a verdade comprovável factualmente perdera a relevância. Mas foi
aC
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necessário contar doze anos para que a grande mídia passasse a empregar o
termo “pós-verdade” para designar não somente a escolha de um povo, mas
uma era, a “era da pós-verdade”, expressão pomposa que daria título ao livro
de Ralph Keyes, autor desses best-sellers americanos típicos que se entulham
visã
na entrada das livrarias de nossos aeroportos. Foi, no entanto, somente após
dois acontecimentos políticos mais recentes – a eleição de Donald Trump e o
referendum que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia – que
itor
or
tação mental. Parece-nos, aliás, provável, como discutiremos mais adiante,
od V
que uma mentira possa habitar neste clamor nostálgico pela verdade como
aut
correspondência factual. Mas seja como for, do mesmo que não se pode definir
a proposição verdadeira como correspondência entre enunciado e fato, não
é exato reduzir a mentira à falta de correspondência, no sentido em que se
R
contradiz a verdade pela afirmação de um predicado. Quem afirma o falso
não mente necessariamente, lembra-nos Derrida: ele pode afirmá-lo por inad-
o
vertência ou ilusão, sem necessariamente mentir (Derrida, 2005, p. 15). Só
aC
que conta, para seus eleitores, é a ideia de ele ser o único político que diz a
verdade, pois quem se permite berrar impropérios para todos os lados não
estaria dissimulando o que pensa.
s
para modificá-la a seu favor, no sentido em que uma mentira repetida mil
vezes, como afirmava Hitler secundado por Goebbels, acaba tornando-se
verdade. Mas a trapaça suprema está em outro lugar. Ela consiste no fato de
que mesmo se permitindo divulgar informações falsas aos quatro ventos – por
saber que as palavras contam mais em razão de sua capacidade de mobilização
discursiva do que em virtude de sua correspondência factual -, o líder autori-
tário se atribui, diante de seus seguidores, o papel nostálgico do detentor da
or
verdade transparente, fazendo-os crer na correspondência da representação
od V
do pensamento com o fato representado. Quanto mais eles mentem, mais
aut
eles fazem do amor à verdade a palavra de ordem de sua pobre retórica. Eles
dependem da crença numa oposição metafisicamente assegurada entre vera-
cidade e mentira para que seu discurso mentiroso possa se estabelecer. É no
R
interior dessa tradição que eles mentem, donde se esclarece seu interesse a
manter a crença na verdade intacta para melhor acionar sua trapaça.
o
Isso explica tanto a fascinação kitsch de nossa idiocracia pelos temas
aC
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ligação da palavra com aquilo do que se fala. Sua mentira depende da crença
nesse laço, que é a base social sobre a qual se estabelece a ideia tradicional
da verdade como correspondência ontológica.
A falsidade não é a mentira, se compreendemos a falsidade como não
par
de uma autoridade que nos faça crer no laço entre o significante e a coisa
representada. A mentira somente é possível em razão da crença que funda toda
representação discursiva da realidade, no sentido em que toda realidade se
coloca, para os seres falantes, como uma dimensão essencialmente fiduciária.
38
Eis porque frequentemente juramos, por mais ateus que sejamos, pois
jurar sobre a verdade do que dizemos é uma maneira de convocar o Outro
a dar crédito ao laço discursivo que estabelecemos entre nossa palavra e a
realidade. Essa função de apelo à crença do Outro esclarece assim a impor-
tância jurídica do juramento, enquanto garantia de estabilização discursiva
de uma representação da realidade pela linguagem. O juramento se distingue
dos demais atos verbais, esclarece Benveniste, na medida em que não refere
or
a nada exterior à linguagem: “ele prepara ou encerra um ato de palavra que
od V
possui um conteúdo significante, mas não enuncia nada por si mesmo” (Ben-
aut
veniste, 1947, p. 82). Não se jura uma coisa, jura-se sobre o que se diz sobre
alguma coisa, pois a função do juramento, originariamente religiosa, é de
manter unido, na linguagem, aquilo que a linguagem levou à existência, ao
R
sustentar a crença que liga a linguagem à esse algo que por seu meio se busca
indicar. É nesse sentido que G. Agamben propõe conceber o juramento como
o
uma fórmula promissória, ou seja, como um ato verbal destinado a garantir a
aC
por meu juramento” -, jura-se geralmente por Deus, e seu meu juramento é
a re
assegurado por Deus, Deus não pode, por sua vez, jurar por Deus. Assim como
não há Metalinguagem última, não existe um Meta-Deus que possa assegurar
a garantia divina. Dali resulta a mentira que habita na constante ameaça de
perjúrio, que é um meio de se apoiar na fé do Outro para melhor trapaceá-lo
par
ou seja, da palavra sem ligação verídica com o que é suposta dizer. E é nesse
sentido que o discurso político se encontra particularmente condenado como
um discurso maldito, sobretudo no Brasil: de tanto abusar de nossa crença,
ão
ele terminou por perder o poder de representar o que quer que seja para nós.
Não é, nesse sentido, casual que o discurso do líder fascista venha se
erigir sobre a maldição do discurso político; na realidade, eles têm uma relação
s
or
em nosso Brasil atual.
od V
Diante dessa relação orgânica entre o totalitarismo e o exercício de mal-
aut
dição sobre o qual ele se sustenta, interessa-nos discutir de que maneira a
psicanálise permite promover uma ética do bem-dizer como antídoto a essa
maldição totalitária. Não nos cabe, é claro, restaurar a função do juramento
R
como garantia de veracidade contra a maldição do perjúrio. Para operar clini-
camente, não impomos ao paciente o juramento de dizer a verdade, somente a
o
verdade, nada mais do que a verdade, com a mão direita sobre a bíblia, como
aC
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É por essa razão que Lacan, ao proferir uma conferência sobre a verdade
da descoberta freudiana a convite da Clínica Neuropsiquiátrica de Viena,
em 1955, em vez de falar objetivamente sobre a verdade, conforme se espera
de uma comunicação científica, prefere deixar a verdade falar por si mesma.
par
Tal como fizer Erasmo de Rotterdam, que passa à palavra à loucura em seu
célebre Elogio, Lacan cede o púlpito à verdade e nos convida a escutá-la
Ed
Eu, a verdade, falo. Será preciso lembrar-vos que ainda não o sabeis? [...]
ão
Quem escuta esse discurso de Lacan, crê que ele está falando num sarau
de poesia surrealista, mas é a um auditório de neuropsiquiatria que ele se
dirige. Se ele assim o faz, é porque a verdade, concebida em posição de
sujeito, se apresenta como uma necessidade da experiência psicanalítica. Em
seu entender, não é possível dar lugar à verdade da psicanálise sem romper
com a doutrina clássica que a percebe nos términos gramaticais do predicado,
consoante ao princípio lógico de correspondência. A verdade, enquanto pre-
or
dicado, não tem nada a dizer; ela supõe somente a correspondência entre algo
od V
do qual se fala e o que se diz a propósito desse algo. A verdade-sujeito que
aut
interessa a psicanálise se manifesta justamente nos efeitos de inadequação
que fazem vacilar todo esforço de comunicação.
Quando Pedro nos fala de João, escreve Freud em algum lugar, ficamos
R
sabendo mais de Pedro do que de João. Há quem afirme que a concepção
clássica da verdade como correspondência factual só haveria de ser ques-
o
tionada por Freud a partir do momento em que desiste de pensar a causa do
aC
clássico de Espinosa, que todo estudante de filosofia sabe de cor: não rir-se,
não lamentar, não odiar, mas entender. Para Nietzsche, essa ideia de uma
suposta faculdade neutra do entendimento, isenta do ódio, do riso, da lamú-
ria, é a mentira humana por excelência, o ápice de sua dissimulação; ela é a
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 41
or
identifica, na referência psicanalítica ao Édipo, a testemunha desse saber
od V
patológico (Rancière, 2001, p. 26). Ali igualmente o saber, longe de se redu-
aut
zir ao gesto de apreensão neutra de uma idealidade objetiva, antes aparece
como uma patologia do vivente. É o que se vê no terrível diálogo entre Édipo
e Tirésias: ao passo que o primeiro, que quer saber o que está acontecendo,
R
opõe-se ferozmente ao que lhe é revelado, o segundo que sabe, tomado de
medo pelo que sabe, exorta o primeiro a não querer saber daquilo que ainda
o
não sabe e que não deveria saber. Aos olhos de Rancière, os personagens de
aC
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neutra. Tudo que ele observava em sua prática clínica o enviava ao problema de
uma patologia do saber, pois o simples gesto de oferecer a palavra seus pacientes
o obrigava a introduzir uma dimensão para a qual o saber neurológico, do qual
era representante, não abria espaço. Ao tomar seu paciente enquanto sujeito, e
par
situado nos limites do saber técnico que seu contexto prescreve, ele se torna
um intelectual que tem algo a dizer sobre o mal-estar na cultura.
Importante notar, e aqui retomamos uma discussão apresentada em
outros momentos, que se tanto Freud quanto Nietzsche transtornam por dizer
42
or
de Nietzsche e Freud à função da parrésia desenvolvida por Foucault, na
od V
medida em que a relação entre saber e verdade ali se capta não no quadro de
aut
uma teoria do conhecimento, mas enquanto resultado de um jogo de forças.
O dizer-a-verdade do qual a parrésia testemunha deriva, como tentaremos
demonstrar, de um dever de expressão cuja incidência se verifica a partir de
R
seus efeitos sobre uma relação instituída de poder, no interior de um contexto
discursivo determinado.
o
Para ilustrá-la, Foucault se refere a uma passagem de “As Vidas Parale-
aC
um lado não se trata de demonstrar uma verdade, já que a parrésia não é uma
demonstração, ela não é tampouco uma retórica, uma arte de persuadir: o que
Ed
or
do enunciado performativo é sua irrupção como discurso verdadeiro que ao
od V
romper com as relações codificadas, produz uma situação aberta. Trata-se de
aut
um dizer-a-verdade que ao revelar as relações de poder que estruturam uma
determinada situação, sem nelas estarem explicitadas, desestabiliza-a radical-
mente, possibilitando o surgimento de efeitos imprevisíveis, não codificados
R
institucionalmente. A parrésia também não se confunde com a prática do
ensino, já que em seu gesto de transformar o outro, ela implica uma violência,
o
uma brutalidade que a distingue radicalmente de toda transmissão pedagógica
aC
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(Foucault, 2008). O parresiasta não ensina: ele lança uma verdade cortante na
cara daquele a quem se dirige, sem seguir o curso próprio da pedagogia, que
vai do conhecido ao desconhecido. Por isso, a parrésia acarreta necessaria-
mente riscos para quem a pronuncia. Tanto a loucura de Nietzsche, quanto o
visã
ostracismo científico vivido por Freud, ou a excomunhão de Jacques Lacan
demonstram que a parrésia requer a coragem por ser essencialmente a abertura,
pela palavra, de um espaço de risco.
itor
no sentido em que essa última comporta, por mais delicada que deva ser,
uma brutalidade estrutural. Não é possível, diz Jacques-Alain Miller, psica-
nalisar reis e barões, posto que a interpretação deve necessariamente poder
ser insolente (Miller, 2010, p. 50). Sua eficácia depende da possibilidade
par
relação verdadeira entre o que o sujeito diz e o que ele diz, sem garantia de
validação externa ao que é dito.
Sim, mas se a parrésia dispensa tanto a autoridade quanto a validação do
referente externo sobre o qual se ancora a demonstração filosófica, donde ela
44
or
Polinices insepulto. Vemos claramente que no dizer-a-verdade a ela se impõe,
od V
o sepultamento de seu irmão que sua palavra convoca não existe como um
aut
elemento dado, mas antes enquanto necessidade resultante de sua própria
exigência discursiva. Dessa perspectiva deriva que se o dizer-a-verdade da
parrésia não busca uma verdade externa ao discurso, é na medida em que se
R
apoia sobre a suposição de que o próprio discurso confere a uma verdade sua
existência. No nível da parrésia interessa menos desvelar algo que já existe do
o
que criar a existência de algo por meio de um ato do dizer. Está em questão
aC
de psiquiatria do século XIX para constatar, por exemplo, que a verdade dos
sonhos e dos lapsos carecia de existência antes de Freud, no sentido em que
Ed
de ter lugar para a topologia. Uma determinação política pode tanto defi-
ver
or
num primeiro momento, a parrésia se manifesta como ruptura quando algo
od V
ganha existência a partir do gesto que nos obriga a adotar uma posição contrá-
aut
ria a uma representação discursiva da realidade. Mas há também um segundo
momento em que um novo saber deve se estabelecer, para permitir que a ver-
dade emergente não se reduza a uma cintilação efêmera. É a ocasião em que
R
o gesto do pensamento que se rompe no nível da parresia, busca se constituir
na constituição de uma doutrina permanente. Sua eficácia depende não mais
o
da paixão disruptiva da parrésia, mas do cálculo racional de produção de um
aC
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REFERÊNCIAS
Agamben, G. (2009). Le Sacrément du langage: archéologie du serment.
Paris: Vrin.
or
de l’histoire des religions, Tome 134, 1-3, 81-94.
od V
Derrida, J. (2005). Histoire du mensonge. Paris: Herne.
aut
Foucault, M. (2008). Le gouvernement de soi et des autres. Paris: Gallimard.
R
Foucault, M. (2009). Le courage de la vérité. Paris: Gallimard.
o
aC
Koyré, A. (2016) Réflexions sur le mensonge. Paris: Alliá.
or
Bruna Simões de Albuquerque1
Ana Lydia Santiago2
od V
aut
Resumo: A travessia da adolescência constitui um enigma para adoles-
centes e adultos. Entre as gerações, há um mal-estar relacionado ao modo de
R
fala que é rapidamente nomeado como falta de respeito pelos adultos. A falta
de respeito irrompe na interlocução com os adultos e aparece na escola como
o
uma queixa generalizada. Estudamos falta de respeito, abordando uma de suas
aC
formas (que aparece na psicose) que é o insulto, à luz das Conversações de
Orientação Psicanalítica. Ao esmiuçar o desrespeito, a sexualidade aparece.
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peito; psicanálise.
read the lack of respect in the light of insult and the Psychoanalytic-oriented
Conversations. By scrutinizing disrespect, sexuality appears. In our path we
understood disrespect not just as a language provocation or as an index of
s
ver
or
od V
La traversée de l’ adolescence est un puzzle pour adolescents et adultes.
aut
Entre les générations, il existe un malaise lié au mode de langage que les adultes
qualifient rapidement de manque de respect. Le manque de respect éclate dans
R
le dialogue avec les adultes et apparaît à l’école comme une plainte largement
répandue. Nous avons étudié le manque de respect en abordant l’une de ses
o
formes (qui apparaît dans la psychose) qui est l’ insulte à l’ aide des conver-
sations d’orientation psychanalytique. En scrutant le manque de respect, la
aC
muitas vezes por meio daquilo que agita o corpo tanto das crianças quanto
dos jovens. É na cena da escola, no encontro frequentemente desencontrado
com os adultos, substitutos possíveis dos pais no laço social, e com os colegas,
s
que os jovens vão expor aquilo que os preocupa e embaraça, mesmo que não
ver
or
sonham em ensinar apenas para aqueles considerados por eles “bons alunos”,
od V
enquanto outros são mais radicais em afirmar que esse tipo de aluno deixou
aut
de existir no contexto escolar atual. Há professores que se posicionam como
se já soubessem de antemão o destino dos alunos. Identificam, por exemplo, o
R
aluno que será um futuro bandido, aquele que não será nada na vida ou outro
para o qual a universidade jamais será um caminho possível. Em resumo,
o
entre as queixas dos professores, a falta de respeito é sempre citada como
um dos problemas dentro da sala de aula, que atrapalha a transmissão e que
aC
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jovens que querem fazer uso da palavra. Eles afirmam que não são escutados
e que sua palavra não tem valor para os adultos. Os alunos se queixam de
Ed
que os professores trazem problemas de casa para a sala de aula e não con-
seguem separar a dimensão pessoal da profissional. Queixam- se de que os
ão
marcado por diversas nuances e que não se deixa apreender à primeira vista.
3 Todas as falas entre aspas e as referências feitas ao modo como professores e alunos se sentem com relação
ao desrespeito foram retiradas das Conversações de Orientação Psicanalítica realizadas pelo NIPSE, de
cuja condução a autora dessa tese participou. Essas Conversações foram realizadas em escolas públicas
em Belo Horizonte e no interior de Minas Gerais entre os anos de 2014 e 2018.
50
or
viver no tempo presente que revelam uma incorporação de traços da época.
od V
Esses modos de vida podem suscitar angústia no adulto, que vê aí represen-
aut
tados modos contemporâneos do viver que se opõem àqueles de sua geração.
Por outro lado, há nomeações que incidem de acordo com dinâmicas
estabelecidas em cada escola, ou seja, os adultos nomeiam parte dos alunos
R
– pode ser uma turma, uma parte dela ou alguns indivíduos – que represen-
tam o que há de pior numa dada instituição e que, consequentemente, sofrem
o
segregação. Encontramos, por exemplo, as expressões “resto”, “lixo”, “fave-
aC
uma péssima ideia” ter enturmado a sala com base na concepção de que eram
a re
enigma, ou seja, algo que merece ser investigado, sem atribuir o ocorrido a
um comportamento inerente à juventude. Assim, a menção à falta de respeito
Ed
é de tal modo insistente nas falas intra-muros das escolas que ela acaba por
tornar-se um lugar-comum ou uma ideia pronta que exige consentimento sem
reflexão (Teixeira, 2002). A proposta é esmiuçá-la, decifrá-la, lançar um novo
ão
olhar sobre a falta de respeito, atentos a esse mais-além da ideia pronta que
não estimula a reflexão.
O enigma é um jogo de adivinha, tal como o enigma da Esfinge para
s
or
atenção” (2018). Algo ou alguém digno de respeito é aquele que merece ser
od V
olhado novamente, tomado sob um outro ângulo, ou seja, considerado ou
aut
levado em conta uma outra vez. A decisão de não lançar um novo olhar, de
não reconsiderar uma questão remete a um saber preestabelecido e fechado:
R
o que será encontrado é conhecido de antemão, não há necessidade de olhar
novamente, há uma certeza inarredável em jogo. Há uma certeza de quem
o
o outro é, e, nesse caso, lançar um outro olhar, olhar de novo significaria
expor-se para ser enganado. Encontramos, nas escolas e em outras institui-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
ções educativas, atitudes dos adultos que atestam uma escolha de não olhar
de novo para não ser enganado pelo jovem a respeito de quem já se tem uma
opinião formada. Assim, olhar de novo, no sentido de respeitar, implica um
visã
intervalo, uma abertura ou separação em relação a um olhar ou a uma consi-
deração anteriormente feita, implica uma incerteza ou pelo menos a vacilação
de uma certeza sobre alguém. Como aprofundar uma leitura sobre a falta de
itor
4 A autora trabalhou na gestão das medidas socioeducativas em Minas Gerais (entre 2005 e 2014) e realizou
ver
estágio numa instituição francesa para adolescentes infratores em 2009, ano em que defendeu sua disser-
tação, L’agent de sécurité socio-éducatif, em Estrasburgo, na França. A medida socioeducativa é prevista
no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei 8069 de 1990, para responsabilizar o adolescente pelo
cometimento de um ato infracional. O cumprimento dessa medida passa pelos efeitos de um encontro entre
adulto e adolescente, que foi compreendido à luz dos conceitos de identificação e autoridade (Albuquerque,
2017). A análise da posição do adulto diante do jovem contribuiu para uma compreensão da questão da
diferença e da tomada de responsabilidade nas instituições.
52
or
sobre uma pessoa (Forbes, 1999). O insulto é certeiro, um saber cego que não
od V
admite um novo olhar, uma flecha, um golpe que salta sobre o sujeito sem
aut
mal-entendido. Forbes (1999) menciona a existência de uma cumplicidade
entre o insultado e o insultante, uma vez que aquele que é insultado recebe
um nome que pode ser assumido. Além disso, mesmo um bom insulto fixa o
R
objeto num ponto e, consequentemente, mata-o.
No contexto escolar, verificamos que frequentemente um nome é desig-
o
nado para um aluno com base em um ato cometido por ele. Há uma fixação,
aC
Assim, um nome pode se colar a uma ação praticada pelo aluno (gritar,
a re
seu único destino possível, pode se deparar com a resposta do aluno: “sou
bandido mesmo, e aí? vou te roubar!” – uma ameaça que devolve, em eco, a
mensagem enviada pelo adulto. Assim, o professor que insultou primeiramente
ão
or
que o insulto é a base das relações humanas, uma relação fundamental que
od V
se estabelece pela linguagem e que representa o início da grande poesia. O
aut
insulto é grandioso, ele diz, cada um toma para si o estatuto dos insultos que
recebe. A linguagem é antes de tudo injuriosa, pois falar é uma maneira de
R
atacar pela palavra o mundo do Outro (Lacadée, 2012). Falar é como partir um
pedaço de real dentro da boca, é atacar o mundo mordiscando-o pela palavra
(Novarina, 1999), ou seja, há um ataque implícito no ato de falar, o que tal-
o
vez esclareça o insulto como base das relações humanas. Aquele que insulta
aC
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concluir ao final que é “pelo impossível de dizer que se mede o real” (1972,
a re
p. 497). Há um dizer que escapa ao dito, sem o qual o dito não vai, um dizer
que reenvia justamente àquilo no dito que não se pode dizer. É nesse texto
que o autor situa o insulto como a primeira e a última palavra do diálogo.
Poderíamos avançar que o insulto se esforça em transformar “todo” o dizer
par
rar o real como impossível de dizer, dispara uma flecha em direção à parte de
ver
real do outro, aquilo que o outro é como objeto a. O uso como insulto que pode
ser feito do significante é um uso que visa o ser do Outro no ponto indizível,
trata-se de uma tentativa de transpassar o outro para cernir e isolar o objeto a,
ou seja, o pequeno a assim visado faz surgir o ser do Outro em sua abjeção,
54
or
destino de merda, Lacadée (2012) explicita a forma como eles se veem, ou
od V
seja, como pedaços de real, como objetos a, sem articulação significante.
aut
Assim, Miller (1989-1990) considera o insulto como o esforço do signifi-
cante para dizer aquilo que o outro é como objeto a, uma tentativa de cerni-lo
por meio de uma flecha-real no ser do sujeito. Poderíamos pensar uma flecha
R
que vai em direção a algo que caracteriza um gozo, a uma modalidade de
gozo, reduzindo o sujeito a isso. Essa é a razão pela qual o insulto faz reagir,
o
reverberando de modo radical as consequências engendradas pela linguagem.
aC
or
O autor denomina classes imaginárias aquelas fundadas numa proprie-
od V
dade que assimila e liga; classes simbólicas, aquelas marcadas pelo significante
aut
assentido e que sofrem tentativas constantes de imaginarização e, por fim,
classes paradoxais, as relativas ao campo do real marcadas pela dispersão e
pela disjunção, pois o que disjunta seus membros é o que faz com que refi-
R
ram uns aos outros. Para exemplificar as classes paradoxais, o autor recorre
à classificação paradoxal das estruturas operada pela própria psicanálise:
o
aC
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or
Milner (2006) propõe uma separação entre dois campos, entre dois tipos
od V
de nomes. A fronteira entre esses dois campos não é claramente delimitada, e
aut
as linhas se interpõem. Se para Miller (1989-1990) não existe uma classe dos
insultos e, segundo Milner (2006), essa classe é incessantemente movente,
R
certo é que se trata de uma classe aberta, ou seja, os termos classificadores
qualitativamente neutros podem operar como insultos a depender de um uso
o
que ultrapasse sua utilização habitual. Não há evidentemente duas classes
sem interseção, há um trânsito possível dos nomes que não insultam para
aC
considera que vale a pena ser insultado, deve-se fazer de seu nome próprio
a re
Pensemos nos pais que, ao chamar a atenção de seus filhos, dizem o nome
completo, nome e sobrenome, pausadamente, ou simplesmente o nome sem
ão
6 Para o autor, nomear alguém como o “genro de Lacan” ou o “pai dos netos de Lacan” não apenas pode
ver
destituir o sujeito de seu próprio nome, como, por exemplo, de seu lugar de analista, tomando como sua
qualidade essencial definidora apenas o fato de ter- se casado e procriado com a filha de Jacques Lacan.
7 No caso do nome próprio, por exemplo, ao ser por ele designado, o sujeito poderia apenas ser reduzido a
si mesmo e permanecer aí fixado. Nesse ponto, Milner (2006) afirma que a temporalidade do julgamento é
entrelaçada, o sujeito se antecipa ao predicado, pois coloca primeiramente o Um de real, ou seja, sua posição
quanto a seu desejo, que o nome se esforça para nomear, ou seja, esse Um já estava e não estava nomeado
quando o enunciado se abria. O predicado visa a uma subjetividade, e esta só pode vir do próprio sujeito.
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 57
pelo próprio nome completo é alguém que vale a pena ter a sua atenção
chamada. É nesse ponto que o insulto e o elogio se conjugam (Miller, 1989-
1990). Chamar alguém pelo diminutivo de seu nome, por exemplo, pode ser
elogioso e carinhoso ou depreciativo, a depender do contexto, mas ambos
indicam certo interesse, algum tipo de consideração pela pessoa em questão.
Ainda em relação à interseção entre insulto e elogio, outra dimensão
que deve ser considerada é que aquilo que poderíamos considerar a princípio
or
como um elogio, a função de fixar o sujeito numa determinada posição pode,
od V
por fim, ter a mesma função de um insulto. Afinal, um “bom” insulto também
aut
fixa e paralisa. Realizamos uma pesquisa/intervenção com uma turma consi-
derada “os melhores” da escola, alunos que, fixados na posição de melhores,
tinham de responder a uma expectativa inatingível do Outro e, sobretudo,
R
deles mesmos. Os próprios jovens se impunham exigências de ferro quanto às
notas: nada aquém da nota máxima. Os alunos se angustiavam e entravam em
o
uma dinâmica de rebaixar o colega para que pudessem se sentir valorizados,
aC
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nem sabe (ainda) o que é, afirmando de modo fixo algo que ele seria de acordo
com uma ideia do professor, um ideal, ou conforme a colagem entre um ato
e um significante. Designar o que o outro é, destituindo-o do mínimo que ele
é, de seu nome, por exemplo, indica um insulto. Nesse sentido, ser chamado
par
pelo seu nome, ainda que esse nome seja equiparado a um nome qualquer,
garante ao sujeito algo de seu, ou algum interesse do outro por si. A cada vez,
Ed
a cada insulto proferido, devemos nos perguntar: onde está o sujeito? De que
o sujeito está sendo destituído naquele instante?
Seria, então, o insulto um tipo de resposta que o sujeito lança mão para
ão
lidar com o Outro, o Outro da adolescência que não é mais aquele da infân-
cia? O Outro da primeira infância que contribuiu para a construção do corpo
pulsional, que deu forma à fantasia, claudica agora na adolescência e impõe
s
uma nova relação com o Outro. O que foi dito sobre o insulto deixa claro que
ver
or
sobre suas questões. As Conversações partem assim de uma queixa feita pelo
od V
Outro sobre os jovens, daquilo que pode aprisionar os jovens, para operar uma
aut
separação, introduzir uma distância entre o sujeito e as nomeações que podem
ser consistentes demais vindas do Outro escolar. Esse processo possibilita a
abertura de um espaço para que possam aparecer as questões que embaraçam
R
a cada um: sexualidade, morte, o vazio, o amor, a violência etc. Trata-se de
um trabalho com a linguagem, que possibilita colher na forma de associação
o
livre coletivizada tanto o que o professor e o aluno falam na escola, quanto
aC
8 A metodologia em questão foi proposta por Santiago (2008) para a pesquisa-intervenção no campo da
educação de acordo com a experiência do dispositivo da Conversação sugerida por Miller (2003) para os
ão
encontros clínicos do Campo Freudiano. A Conversação é composta de um dispositivo simples e exigente que
confronta os participantes com as consequências de sua fala. A Conversação instaura um espaço de troca
que vai além da escuta passiva, trata-se de uma proposta que articula a pesquisa com a aprendizagem por
meio da fala. Partimos da proliferação dos significantes no grupo para operar a partir dos mal-entendidos da
s
linguagem (Miranda; Santiago; Vasconcelos, 2006). O trabalho se inicia por uma Conversação Diagnóstica
ver
diz, por exemplo, “você não sabe de onde eu vim”, iguala-se à imagem que
ele próprio tem do jovem como bandido ou futuro marginal. Do lado dos
jovens, quando são tomados em bloco pelos adultos, não cessam de repetir:
“a gente não quer ser considerado desse jeito, a gente também quer se desta-
car”, transmitindo a necessidade de ser considerado de modo “destacado” do
grupo, em sua particularidade.
or
Mas a dimensão mais importante que a Conversação permitiu esclarecer
é que, ao esmiuçar o desrespeito, a sexualidade irrompe. Ao tomar a palavra,
od V
algo surpreende e revela o embaraço com a sexualidade na adolescência. Em
aut
um grupo de Conversação (Albuquerque, 2019; Albuquerque, Carvalho &
Santiago, 2017), os alunos gritavam o tempo todo, eram considerados des-
R
respeitosos e utilizavam muitos palavrões ao falar.
O uso do palavrão foi um dos temas que promoveu a circulação da
o
palavra. Ao refletir sobre os palavrões – “filho da puta”; “vai tomar no cu”;
aC
“caralho”; “vai se foder”; “puta” – espanto! Tem sempre algo da sexualidade
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um lado, gritam palavrões para se defender dos meninos que, segundo elas,
ainda “imaturos” não sabem manter a distância e encostam sem permissão no
corpo das meninas. Por outro lado, gritam para não ter que se aproximar da
mesa de um professor dito “tarado” que, tal como um adolescente imaturo,
par
também se aproximava demais das alunas. Os alunos gritam para não terem
de se aproximar do professor que não sabe se manter a uma distância esperada
Ed
lidade, que é justamente o que faz enigma para o adolescente. Assim, gozam
desse modo de fala que está articulado ao impasse relativo à sexualidade
ver
or
linguageira para isso que irrompe do sexual na adolescência?
od V
Ao esmiuçar o desrespeito, a sexualidade aparece. Isso que surpreende,
aut
quando se fala. As Conversações possibilitaram extrair, de fato, um ponto de
esclarecimento em relação ao desrespeito: o modo como ele se relaciona na
adolescência com a dimensão sexual e expõe um gozo na fala relacionado ao
R
impasse concernente à sexualidade. Na falta de respeito, desvela-se o gozo
da língua conectado com a sexualidade, essa que faz enigma para o adoles-
o
cente. Na fala dos jovens, o uso do palavrão evidencia que esse modo de
aC
REFERÊNCIAS
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de Mestrado. Faculté de Psychologie et de Sciences de l’Éducation,
Université de Strasbourg, Strasbourg.
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sobre a relação adulto e adolescente no contexto socioeducativo. Psico-
od V
logia em Revista, 23(1), 237-255.
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Albuquerque, B. S. (2019). Do furo à entrada no túnel: reviravolta da lingua-
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gem e da sexualidade na adolescência (Tese de Doutorado). Faculdade
de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
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aC
Albuquerque, B. S., Braun, L., & Santiago, A. L. (2016). Adolescência e
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
para-alem-do-encanto-pelas-palavras-a-indisciplina-dos-professores/
de http://www.jorgeforbes.com.br/br/artigos/insulto-e-elogio.html
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Miller, J-A. (1989-1990). Le banquet des analystes: retour de grenade. La
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Miller, J-A. (2003). Problemas de pareja, cinco modelos. In La pareja
e el amor: conversaciones clínicas en Barcelona. Barcelona: Eólia.
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Milner, J-C. (2006). Os nomes indistintos. Rio de Janeiro: Companhia
aC
g=en&nrm=
a re
or
od V
aut
R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
visã
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par
Ed
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ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
OS JOVENS E OS MOVIMENTOS
DE RESISTÊNCIA
or
Bernardo Micherif Carneiro1
Ana Lydia Bezerra Santiago2
od V
aut
Resumo: Na passagem da sociedade moderna ao mundo global, ope-
rou-se uma mutação discursiva que determinou a mudança do modelo civi-
R
lizatório. Se a soberania funcionava como um cativeiro do mau no campo
político, a queda desta função acarretou uma distopia do mau na sociedade
o
global. A dispersão do mau produz um sentimento de hostilidade ambiental
aC
no âmbito social. Na esteira deste salto discursivo, a mutação da dimensão
política da juventude foi decisiva. Os jovens modificaram o seu papel na cena
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
hostilidade; recusa.
Les jeunes ont changé de rôle sur la scène publique et ont ainsi consolidé un
ver
or
The youth and the resistance movements
od V
aut
In the passage of modern society to the global world, a discursive muta-
tion took place that determined the change of the civilizatory model. If sov-
R
ereignty functioned as a captivity of evil in the political realm, the fall of
this function led to a dystopia of evil in global society. The dispersal of evil
o
produces a feeling of environmental hostility in the social realm. In the wake
aC
of this discursive leap, the changing political dimension of youth was deci-
or
chance, a de culminar, sempre, no discurso do mestre. Isto é o que a expe-
od V
riência provou. É ao que vocês aspiram como revolucionários, a um mestre.
aut
Vocês o terão” (p. 196). Para ele, os revolucionários não desejam liberdade,
apenas clamam por um mestre3.
Lacan extrai seu conceito de revolução dos acontecimentos celestes:
R
“retorno ao ponto de partida” (p. 52). A revolução produz um giro completo
no processo político. Derruba-se o soberano para ocupar sua função. Uma
o
constatação lógica: a resistência à submissão, que se manifesta na revolução,
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Quando se acredita fazer cair o Estado, gira-se no mesmo lugar. Por isso,
ver
a questão é menos em relação ao que cai, mas ao modo como se gira em torno
do problema. É nisto que parece residir a renovação. Lacan (2003) ratifica:
3 Essa noção lacaniana de revolução se opõe à ideia de Negri (2001), segundo o qual os movimentos populares
lutam para liberar-se do poder hegemônico.
68
O adulto sumiu!?
or
Após a Revolução Francesa, o Estado-nação havia se expandido pelo
od V
mundo, levando esperança em uma unidade política baseada na igualdade
aut
de classes. Depositou-se nos conceitos de nação e de povo o impulso para o
desenvolvimento capitalista. Após a vitória da Inglaterra sobre as tropas fran-
R
cesas de Bonaparte, a Revolução Industrial abriu as portas para a ascensão do
capitalismo como regime hegemônico, em contraposição à sociedade militar.
o
O gênio militar cedia espaço para o poder do consumo.
A princípio, duas forças antinômicas: guerra e mercado, imposição vio-
aC
4 Trata-se de uma fala do “senhor Queuille, que foi durante muito tempo presidente do Conselho sob a Quarta
República, do tempo de Corrèze, anterior a Chirac” (Miller, 2006b, p. 12).
5 Sobre a antinomia entre guerra e mercado ver Schmitt, C. (2008). O conceito do político/ Teoria do partisan
(pp. 80-82). Belo Horizonte: Ed. Del Rey.
6 Termo utilizado por John Savage (2009).
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 69
or
O resultado da Grande Guerra foi a dizimação de uma geração7. Apesar
da população se reunir nas ruas para comemorar e receber seus soldados,
od V
estes só manifestavam repúdio. O mundo não era mais o mesmo para eles.
aut
Enquanto isso, o sonho da juventude eterna se enraizava no Velho Mundo.
Contudo, um impasse se revelava. Os anos da guerra provocaram a ausência
R
de figuras de autoridade. Todos estavam no front: pais, policiais, professores,
irmãos mais velhos. Passado o conflito, eles ressurgiam no contexto social
o
como estranhos. Personagens despóticos vindos de uma terra desconhecida
aC
e de um tempo passado. Como os piratas da Terra do Nunca.
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7 Segundo Savage (2009), como ainda não havia uma ideia de juventude sedimentada, não se sabe qual o
número de jovens dentre os milhões de mortos.
8 É preciso marcar uma distinção entre nossa perspectiva de leitura do surgimento da juventude e a perspectiva
apresentada por Savage. O autor aborda o surgimento da juventude a partir do final do século XIX e durante
a primeira metade do século XX. Neste período, destaca-se a decadência do modelo político europeu e a
70
or
mutação que distingue duas noções de juventude que se substituem: uma
od V
voltada para a contraposição ao mundo adulto e outra colocada em uma expe-
aut
riência ilimitada. Uma definida pelo conflito geracional e outra pela liberdade
de consumo. Nesta transição, a concepção de juventude e a concepção de
mundo caminham lado a lado.
R
Os jovens romperam com os semblantes da tradição. A emergência do
real produziu a expectativa por um mundo novo. A produção em série do
o
mercado não permite que os antigos semblantes sociais se reestabeleçam. Os
aC
paralela ascensão americana. Com isso, ele inevitavelmente conclui que a juventude é um conceito forjado
pela cultura americana de consumo e vinculada à ideia de liberdade. Ao contrário, nossa abordagem da juven-
tude toma como ponto de partida o pensamento iluminista de Rousseau e os acontecimentos da Revolução
s
Francesa no século XVIII. Com isso, apontamos como referência inaugural uma juventude revolucionária,
ver
que coloca no primeiro plano o conflito de gerações. Ou seja, se Savage apresenta uma única versão de
juventude, nossa investigação coloca em questão uma transição entre duas versões distintas que marca
a passagem da era moderna ao momento atual. Além disso, na abordagem de Savage, não poderíamos
propor a definição de juventude a partir do conflito de gerações, já que a ideia de liberdade se sustenta
na ruína da autoridade dos adultos. Abordar a juventude somente sob a perspectiva de Savage não nos
permitiria deixar claro o impasse que a liberdade americana produziu para os movimentos de resistência
da juventude contemporânea.
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 71
or
ataca a unidade nacional em seu alicerce. O capital não funciona na oposição
od V
entre dentro e fora. O globo é seu domínio. Toda fronteira é uma barreira a
aut
ultrapassar em nome do espaço comum do mercado. O universo ilimitado
do Império não exclui. Celebra a diferença. Depois, assimila e uniformiza9.
Mas onde localizar o inimigo neste contexto? Produz-se uma distopia do
R
mau. É preciso se dedicar a uma tarefa interminável para localizar o mau em
uma nova topologia. A maldade não advém da elevação do soberano ao topo.
o
Ela é resultado de uma tentativa de governar em um espaço sem fronteiras. O
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
ilimitado não engendra ordem. Ele é avesso à boa forma. Desfaz a unidade do
povo. Ele propaga a maldade no ambiente social. Isso se alinha ao que Miller
(2011b) fórmula com o conceito de hostilidade, uma das patologias do ódio
na contemporaneidade.
visã
A hostilidade
itor
a trama social. Para recompor o Outro como Um, ergueu-se o Outro mau,
uma versão degradada da existência do Outro. Mas ele padece de uma des-
Ed
as diferenças existentes ou potenciais, festeja-as e administra-as dentro de uma economia geral de comando.
ver
O triplo imperativo do Império é: incorporar, diferenciar e administrar” (Negri, 2001, p. 220). Consideramos
que o mundo global ilimitado está aberto à inserção das diferenças. Porém, sua estratégia central de controle
implica em uma homogeneização das diferenças. Ou seja, todos são disposto em série, como um mesmo
elemento repetido infinitamente. Isso é o que se designa como individualismo de massa. Trataremos deste
assunto neste capítulo, no item 1.2.3. Sobre essa perspectiva, ver Miller, J-A. (2005-2006). A era do homem
sem qualidades. aSEPHhallus: Revista de Orientação Lacaniana, 1(1), 7. Ver também: Foucault, M. (2010).
Em defesa da sociedade (2ª ed.). São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes. (Trabalho original de 1975-1976).
72
or
extraia disso uma demanda.
od V
Mas há modos distintos do ódio se manifestar. Se a agressividade tem, no
aut
eixo imaginário, um inimigo declarado, a hostilidade padece de uma ausência
de localização do inimigo. Se o campo do Outro é o que regula o processo
civilizatório, o que é mantido no subterrâneo da cultura é a pulsão. A hos-
R
tilidade é quando a pulsão prevalece sobre o campo do Outro. Diante da
decomposição do simbólico, o sujeito lança mão do retorno ao imaginário.
o
Contudo, a hostilidade não opera a partir da estrutura do estádio do espelho,
aC
pode acontecer.
O termo “ambiental” deixa claro que a hostilidade se refere a uma
perturbação na noção espacial. O Outro é o lugar que permite ao sujeito
or
seja também familiar.
od V
A inexistência do Outro dissolve essa topologia. A maldade é desabri-
aut
gada. A hostilidade é a presença proliferada do mau na sociedade do não todo.
Se o Outro mau localiza um ameaça, a hostilidade é uma maldade difusa, dis-
seminada em uma espaço ilimitado: “o sujeito se desloca em um ambiente no
R
qual estas formações de maldade estão em suspensão [...] este tipo de ambiente
que não adquire nenhum rosto”11 (Miller, 2011b, p. 158). Com a degradação
o
do espaço íntimo, o mau se coloca a céu aberto. O ambiente de convívio perde
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
sua dimensão familiar. É obscurecido por uma estranheza que coloca todos sob
suspeita. A vida social é corroída pelo sentimento subterrâneo de hostilidade.
Nossa época carece de mecanismos para separar o corpo e o Outro, para
manter o Outro à distância. A derrubada das fronteiras simbólicas da sociedade
visã
patriarcal coloca os homens sob permanente intimidação. A urgência subje-
tiva acomete alguns adolescentes, que vivem esse sentimento de hostilidade
ambiental de modo mais intenso. A desconfiança que nutrem pelo mundo
itor
envenena a via da comunicação. Tudo que lhes é dito parece degradá-los. Para
a re
Quem é o inimigo?
par
11 Tradução nossa do original: “el sujeto se desplaza en un ambiente en el cual estas formaciones de maldad
están en suspensión [...] esta suerte de ambiente que no adquiere rostro alguno”.
74
or
constituir, no lugar deixado vazio, uma nova personificação do mau que rees-
od V
tabeleça a ordem pública. Quando a função de autoridade decai, a revolução
aut
explicita o mau como o fundamento secreto da soberania. Sua face derradeira.
E o Império? Poderíamos atribuir seu surgimento a uma tradição revo-
R
lucionária? Em paralelo à juventude revolucionária, erguia-se uma juventude
vinculada à ideia de liberdade. Mas a juventude seria realmente uma noção
o
correlata à liberdade? A característica que distingue a juventude ao longo da
modernidade é o ímpeto pelo novo e a contraposição ao velho. Ideia suben-
aC
uma força incontrolável, que não tem território fixo, relações estáveis ou
vinculação a qualquer história política ou ideologia.
Ed
12 Em sua obra, Negri destaca duas concepções que dirigem seu pensamento: o Império e a multidão. Con-
tudo, optamos por não utilizar a noção de multidão do autor, marcando uma distinção importante em nossa
perspectiva. Negri propõe que a multidão antecede o Império. Ele sugere que a resistência popular decidiria
sobre a existência e os rumos do Império. Por isso, ele diz que o Império “é um parasita que tira sua vitalidade
da capacidade que tem a multidão de criar sempre novas fontes de energia e de valor” (Negri, 2001, p. 383).
O autor propõe a multidão como uma manifestação autônoma, que poderia se desfazer do modelo global de
governo e se instituir como comunidade: “A multidão [...] é capaz de agir em comum [...] a multidão é carne
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 75
or
siste na época do Império. As pessoas compartilham o sentimento de serem
od V
exploradas, prejudicadas socialmente. Mobiliza-se a vontade em comum de
aut
lutar. Mas contra quem? Quem é o inimigo que os oprime? No Império, como
manter o aforisma lacaniano de pé? A revolução contemporânea produz um
mestre? Se os jovens estão expatriados, como fazer da revolução um retorno
R
ao ponto de partida? Retornar para onde se eles não têm a quem se dirigir?
Este impasse, ao invés de dispersar a energia dos jovens, torna mais
o
aguerrida a recusa que eles impõem. Quando não há alguém a quem destinar
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
com o Outro. Quando o Outro é Um, ele também o recusa, na medida em que
a encarnação do Outro mau reduz o adolescente a um dejeto.
Ed
O Outro como Um é uma ameaça, já que sua consistência não deixa lugar
para o adolescente tomar posição. Ele não encontra neste Outro um refúgio
ão
viva que governa a si mesma” (Negri, 2014, p. 140). Entendemos tal abordagem como uma idealização
dos movimentos populares, que desemboca em uma constatação inevitável da possibilidade de extinção
de toda forma de governo. Consideramos, ao contrário, que os movimentos de resistência são resultado da
s
subjetividade de sua época e, portanto, estão diretamente determinados por ela. Os revolucionários franceses
ver
estavam imbuídos da ideia de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” por viverem sob o jugo da distinção
de classes. Os revolucionários soviéticos estavam dedicados à luta proletária por sofrerem os efeitos da
desigualdade produzida pelo sistema capitalista. Os movimentos populares que sucederam a estes já não
se direcionavam às mesmas instâncias de poder e, por isso, se constituíram em torno de outras causas. Em
um mundo contemporâneo sem um poder central, a resistência converte-se em uma força móvel, instável
e sem ideologia fixa. A questão que se coloca é como estes movimentos atuais manifestam sua oposição
a este contexto global que os determina.
76
para elaborar seu mal-estar. Ao contrário, encontra ali uma presença que não
viabiliza uma saída da adolescência. O que se coloca em questão quando nos
dedicamos ao trabalho com adolescentes é como podemos oferecer-lhes uma
outra versão do Outro.
A recusa do sujeito implica uma reivindicação de que o Outro também
renuncie ao seu gozo. Há um gozo sempre deslocado, um gozo a mais que
or
não encontra seu devido lugar. É sobre ele que a recusa incide. Se esse gozo
está do lado do sujeito, o Outro interdita. Se coloca-se do lado do Outro, o
od V
sujeito contesta. Se interditar o gozo do sujeito é a via para o amor ao Outro
aut
advir, quando o sujeito se defende do gozo do Outro é do ódio que se trata.
Lacan (1971-1972/2012) esclarece esse impasse com um aforisma topo-
R
lógico decisivo para a noção de recusa: “Peço-te que me recuses o que te
ofereço porque não é isso” (p. 78). Pedido, recusa e oferta constituem um nó
o
cuja interseção circunscreve o não é isso, onde se apresenta um furo, o objeto
aC
a. É preciso decifrar essa montagem.
que possa fazer surgir ali o desejo do Outro. Por isso, Lacan (1971-1972/2012)
a re
do Outro que não existe, não há Outro para recusar o gozo. Ao contrário,
trata-se de uma civilização assolada pelo imperativo: “Goza!”. Esse gozo
ilimitado que marca a subjetividade contemporânea tem incidência sobre a
ão
função da recusa. Ela marca uma ruptura do laço simbólico do sujeito com o
Outro e evidencia uma nova relação entre estes dois termos em um contexto
s
corpo, como corpo do Outro. A pulsão se expõe como uma exigência acéfala
do corpo, “uma demanda que não se pode recusar” (Miller, 2011a, p. 196).
A sociedade do não todo produz um sujeito que se recusa a representar o
gozo do corpo no simbólico. Recusa-se a oferecer sua castração como prova
de amor ao Outro. Trata-se de um corpo que visa o acesso direto ao gozo como
Um, apartado do Outro. Com isso, o Outro resta como corpo, como o corpo
or
do Outro, lugar de manifestação de um gozo desregrado que se contrapõe ao
gozo solitário do Um.
od V
No lugar do amor ao Outro, surge o ódio ao gozo do corpo. Esse ódio
aut
não se restringe à perturbação que ele experimenta no próprio corpo, mas se
coloca também em relação ao gozo do Outro que se mostra inconciliável com
R
o seu modo de gozar. Nisto, o racismo é um paradigma. O insuportável do
gozo do Outro é a via que o conduzirá à eleição do Outro mau.
o
Podemos traduzir isso do seguinte modo. Primeiramente, o sujeito recu-
aC
sa-se ao amor ao Outro: “Eu não o amo”. Isso pode levá-lo à prevalência
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
sujeito pode reincidir em sua recusa de formas cada vez mais extremas. Pode
ir desde o desleixo com a própria aparência até práticas de risco que testam
Ed
o que tomba quando, por outro lado, algo se eleva. É o que se evacua, ou
ver
13 Sobre os mecanismos da megalomania e da perseguição ver Freud, S. (1996a). Notas psicanalíticas sobre
um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides). In Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. 12, pp. 71-73). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original
publicado em 1911).
78
Quanto mais o Outro mau detém o gozo, mais o sujeito resta como dejeto
desta operação. A recusa no real é sempre uma demanda de que o Outro recuse
o gozo que o sujeito lhe atribui.
A resistência ilimitada
or
lação global na década de 1960, o Estado-nação moderno foi desintegrado.
od V
Junto à noção de nação, foram destituídas as ideias de povo e de revolução.
aut
Os ciclos revolucionários se suspenderam. As últimas décadas do século XX
transcorreram sem ciclos internacionais de lutas14.
R
Durante o período, diversas manifestações de protesto aconteceram pelo
mundo, sinalizando o momento de reestruturação da política global15. Mas
nenhuma destas revoltas conduziu a um ciclo internacional de lutas que reper-
o
cutisse por todo o mundo. Eram lutas que diziam respeito a circunstâncias
aC
14 Sobre a suspensão dos ciclos internacionais de lutas ver Hardt, M., Negri, A. Multidão (4ª ed., pp. 277-278).
Rio de Janeiro: Record: 2014. Ver também Hardt, M., Negri, A. Império (2ª ed., pp. 72-77). Rio de Janeiro:
par
Record, 2001.
15 Em 1984, no movimento de “Diretas Já”, uma multidão de brasileiros tomou as ruas das cidades por todo
o país para reivindicar eleições diretas para presidente da república, depois de 20 anos de ditadura militar.
Ed
Em 1987, no campo de refugiados de Jabalya, a Intifada foi o levante dos palestinos contra a presença
israelense. A Intifada voltaria a se repetir em 2000. Em 1989, em Pequim, o Protesto da Praça Tianmen reuniu
jovens estudantes, intelectuais e trabalhadores em uma insurreição contra o governo. O acontecimento foi
ão
encerrado pelo massacre promovido pelas forças estatais do Exército Popular de Libertação. Em 1992, em
Los Angeles, uma onda de grave violência manifestou o repúdio da população à absolvição de policiais que
haviam agredido um negro. Também em 1992, os “caras-pintadas”, movimento de estudantes brasileiros,
lotaram as ruas em metrópoles do país para exigir o impeachment do presidente Fernando Collor. Em 1994,
s
no estado de Chiapas, os rebeldes do Exército Zapatista de Liberação Nacional tomaram algumas cidades do
ver
México em protesto contra a segregação racial de indígenas e a exclusão econômica dos pobres. Em 1995,
na França, a população se insurgiu contra a política do primeiro ministro Alain Juppé promovendo greves em
massa no transporte, saúde, educação, correios, telecomunicações, fornecimento de gás e energia elétrica
etc. Em 1996, na Coréia do Sul, a Confederação dos Sindicatos Coreanos (KCTU) mobilizou uma greve
geral dos trabalhadores que paralisou o país por quase um mês. Recuperado de https://www.wikipedia.org
16 A revolta de Chiapas, em 1994, por exemplo, eclodiu após a assinatura do Tratado Norte-Americano de
Livre Comércio (NAFTA).
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 79
or
para o advento de uma nova época.
od V
A juventude revolucionária também se extinguiu. Os jovens foram des-
aut
tituídos de sua capacidade de ação política. Esta época coincide com o sur-
gimento de uma novo status juvenil. Uma juventude descrita como apática,
indiferente e dispersa politicamente, sem senso de coletividade. A juventude
R
globalizada se exime de qualquer ideal nacionalista. Estão arrebatados pelo
livre acesso ao mundo do consumo. Os jovens abdicam de tomar a palavra
o
no debate democrático.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
um mundo global, sem fronteiras entre nações e sem uma unidade coesa17.
Não era uma revolução que tinha como desfecho a tomada do poder. As ações
Ed
17 Alguns locais onde as manifestações ocorreram: Amsterdam, Ankara, Bangalore, Berlim, Cidade do México,
Genebra, Lisboa, Londres, Manila, Milão, Nova Delhi, Paris, Roma, Baltimore, Boston, Nashville, Philadelphia,
Tucson, Austrália, Cuba, Islândia, Israel, País de Gales. Ver: Friedberg, J., & Rowley, R. (2000). Essa é a
cara da democracia. Documentário. Estados Unidos: Big Noise Films.
18 Sobre o novo ciclo internacional de lutas ver Hardt, M., & Negri, A. (2014). Multidão (4ª ed., pp. 278-282).
Rio de Janeiro: Record.
80
or
e organizacionais abalou os semblantes sociais, culturais e econômicos. O
resultante individualismo de massa implica que as pessoas vivam isoladas por
od V
suspeitarem que o inimigo está ao lado. A convivência social evidenciou-se
aut
como uma ameaça para a integridade individual.
O novo ciclo de lutas parece implicar uma tentativa de recompor o laço
R
social em um mundo ilimitado. A partir de 2001, em Porto Alegre, organi-
zou-se periodicamente o Fórum Social Mundial, onde movimentos sociais de
o
todo o planeta se reúnem para consolidarem a nova estratégia de resistência
aC
global. O esforço de produzir uma cidadania global exige que se localize o
19 Negri (2014) utiliza os termos resistência em rede ou rede disseminada. Optamos por modificar o termo
par
para rede de resistência viral para enfatizar o caráter de epidemia e a prevalência do ambiente virtual nos
movimentos de resistência contemporâneos. Contudo, preservamos a ideia do autor. Sobre a resistência em
rede ou rede disseminada ver Hardt, M., & Negri, A. (2014). Multidão (pp. 85-89). Rio de Janeiro: Record.
Ed
20 Em dezembro de 2001, os argentinos promoveram o Panelaço, manifestações que se espalharam por todo
o país reivindicando o Impeachment do presidente Fernando de la Rúa. O governante renunciou ao cargo
no final do mesmo mês. Em outubro e novembro de 2005, após a morte acidental de dois jovens negros
ão
quando estavam sendo perseguidos pela polícia em Saint Denis, na periferia de Paris, confrontos entre
grupos de jovens e a polícia se propagaram rapidamente na periferia da capital e em outras cidades da
França. Jovens filhos de imigrantes queimaram milhares de carros pelo país, indignados com a situação de
exclusão que vivem. Muitos foram presos até a situação cessar, 19 dias depois. Em agosto e setembro de
s
2007, monges budistas de Myanmar mobilizaram a população do país contra a situação econômica local. O
ver
governo agiu com forte repressão, ocasionando muitas mortes e impondo medidas restritivas. Em janeiro de
2009, o panelaço foi o modo como manifestantes da Islândia tentaram impedir a reunião inaugural do ano
do primeiro-ministro, no Parlamento. Em junho de 2009, no Irã, manifestante foram às ruas de Teerã em
protesto contra a reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, após opositores alegarem suposta fraude
eleitoral. Em março de 2010, na Tailândia, os “camisas vermelhas” se mobilizaram para exigir a renúncia do
primeiro-ministro Abhisit Vejjajiva e, depois de 2 meses de protesto, pararam Bangkok. A repressão estatal
encerrou a revolta. Recuperado de https://www.wikipedia.org
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 81
or
comunidade global e a produção de uma nova subjetividade.
Dezembro de 2010. Um jovem universitário tunisiano desempre-
od V
gado teve confiscado pela polícia o carrinho com frutas que ele vendia.
aut
Em seguida, ateou fogo ao próprio corpo. O autoextermínio do jovem foi
logo traduzido como um protesto contra as condições de vida em seu país.
R
Estava começando a Primavera Árabe. A insurgência popular viralizou pela
Tunísia e por mais 21 países do mundo Árabe, no Oriente Médio e no norte
o
da África22. Chefes de Estado foram depostos e revoluções e guerras civis
aC
foram deflagradasi23. Os acontecimentos evidenciaram para todo o mundo o
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
potencial político da rede de resistência viral. Ela funciona não como uma
organização instituída, mas como uma força tática aberta a possibilidades
ilimitadas, uma metodologia que se articula para uma ação pontual.
visã
Desde as manifestações em Seattle, a juventude sempre esteve presente
nos protestos. Mas, após a Primavera Árabe, as insurgências populares pelo
mundo passaram a ser, via de regra, mobilizadas e protagonizadas pelos
itor
a re
21 Estimativa extraída de Gomez, R. Milhões marcham em 600 cidades contra a guerra. In BBC Brasil (15
fev. 2003). Alguns locais onde as manifestações ocorreram: Atenas, Bangkok, Barcelona, Beirute, Berlim,
Bruxelas, Calcutá, Camberra, Cidade do Cabo, Damasco, Glasgow, Londres, Melbourne, Nova York, Paris,
Roma, São Francisco, Zagreb, Tóquio, Finlândia, Nova Zelândia, Rússia.
par
22 Em dezembro de 2010, a Revolução de Jasmim se expandiu nas ruas da Tunísia. Em janeiro de 2011, o
presidente Zine El Abidine Ben Ali se refugiou na Arábia Saudita. Onze dias depois, a insurgência viralizou
para a Revolução Egípcia. Em fevereiro, a multidão tomou a Praça Tahrir, no Cairo, e diversas outras cidades
Ed
do Egito, para comemorar a renúncia do presidente Hosni Mubarak. Dois dias depois, era a vez da Líbia.
Com a formação de uma resistência armada, a guerra civil se instaurou. Em agosto, os rebeldes tomaram
a capital Trípoli. O chefe de Estado, Muammar al-Gaddafi fugiu. Em outubro, ele foi capturado e executado
ão
pelos rebeldes. Em novembro, o presidente do Iêmen renunciou depois de dez meses da Revolução Iemenita.
Na Jordânia, a insurreição popular levou à queda sucessiva de quatro primeiros-ministros durante os anos de
2011 e 2012. Antes que os protestos se agravassem em seu país, o presidente do Sudão e o primeiro-ministro
do Iraque comprometeram-se a não tentar a reeleição. Em Omã, ministros foram demitidos. Na Argélia, foi
s
suspenso o estado de emergência que durava 19 anos. No Kwait e na Palestina, o primeiro-ministro renunciou.
ver
No Líbano, eleições foram canceladas. A insurgência também se estendeu para Emirados Árabes, Djibouti,
Somália, Bahrein (Revolta do Bahrein), Marrocos, Mauritânia, Arábia Saudita, Khuzistão e Israel. Na Síria,
o presidente Bashar al-Assad reagiu violentamente ao crescimento dos protestos pelo país, provocando
uma guerra civil. Vários grupos rebeldes passaram a se envolver no conflito, que se agrava com o tempo.
Recuperado de https://pt.wikipedia.org/ wiki/Primavera_Árabe
23 É interessante notar que, enquanto a ideia de revolução foi dissolvida no mundo ocidental, ela foi preservada
no mundo árabe.
82
or
que se reverte em revolta no momento oportuno. As redes de resistência viral
od V
se aperfeiçoaram. Desde então, elas têm sido marcadas por características
aut
bem específicas.
A mobilização geralmente acontece via mídias sociais, ambiente comu-
nitário da juventude contemporânea. Isso favorece mobilizações amplas,
R
instantâneas e transitórias. Ou seja, a rede alcança muitas pessoas em um
curto espaço de tempo e, depois de cumprida a tarefa, pode se dissolver. O
o
ponto de partida geralmente é um acontecimento que afeta uma localidade e,
aC
24 Em março de 2011, a “Geração à Rasca” gerou uma série de manifestações que se definiam como apar-
a re
tidárias, laicas e pacíficas e reivindicavam melhores condições de trabalho. Espalharam-se por 11 cidades
de Portugal, além de Barcelona, Berlim, Bruxelas, Copenhague, Haia, Londres, Ljubljana, Luxemburgo,
Madrid, Maputo, Nova York e Sttutgart. Em maio de 2011, a proximidade das eleições municipais na Espanha
precipitou Los Indignados, uma mobilização de uma série de protestos pelo país que explicitavam o descon-
tentamento com a política. No mesmo mês, o Movimento dos Cidadãos Indignados impulsionou uma série
par
de protestos no mesmo formato, em várias cidades da Grécia, contra medidas do governo. O levante ficou
conhecido como “Maio do Facebook”. Em setembro de 2011, iniciou-se o Occupy Wall Street, um movimento
de ocupação do centro financeiro de Nova York que permite a manifestação ao ar livre de reivindicações
Ed
políticas da população. O movimento voltou a se repetir não só em Nova York, mas em outras cidades dos
Estados Unidos, como Boston, Chicago, Los Angeles, Portland e São Francisco, e também na Europa e em
outros locais pelo mundo. Em setembro de 2012, a divulgação na internet do curta-metragem americano
ão
contra o islamismo “A Inocência dos Mulçumanos” provocou uma onda de protestos e ataques violentos às
embaixadas e consulados dos EUA em 35 países no Oriente Médio, África, Europa, Oceania e Ásia. Em
maio de 2013, na Turquia, a ação repressiva da polícia contra poucos ambientalistas que protestavam contra
a derrubada de árvores em um parque de Istambul provocou a aglomeração de uma multidão na Praça
s
Taksim, em outras cidades turcas e em cidades do mundo onde a comunidade turca é relevante. O levante
ver
passou a protestar contra o governo. Em junho de 2013, depois de meses de revoltas pelo Brasil contra
o aumento da tarifa do transporte público, as “Manifestações dos 20 centavos” se espalharam, durante a
realização da Copa das Confederações FIFA, mobilizando multidões para as ruas de 120 cidades de todo
país e 27 cidades no exterior, em protestos contra corrupção, políticas de governo e gastos para a Copa
do Mundo FIFA de 2014. Recuperado de https://www.wikipedia.org. Sobre o papel central assumido pela
juventude no século XXI ver Kriger, M. (2014) Politización juvenil en las naciones contemporáneas. El caso
argentino. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 12(2), 586-587.
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 83
que garanta a coesão de todos. Além disso, levantam problemas globais que
possam favorecer a adesão de pessoas ou grupos fora do cenário local.
Os movimentos também passaram, em grande parte, a ter um nome, como
Geração Rasca, Los Indignados, Occupy Wall Street, Anonymous etc. Como
se para os jovens o nome fosse um insígnia que viabiliza uma identificação
coletiva. Como se com isso tentassem nomear o real, aquilo que não tem
nome e agita o corpo. Contudo, nas modalidades coletivas contemporâneas,
or
a produção desta insígnia não garante uma constância ao agrupamento.
od V
Os avanços tecnológicos e a conexão virtual têm permitido que a mobi-
aut
lização se cumpra em escala planetária e em tempo real. Isso tem viabilizado
a mobilidade global, para além de barreiras geográficas, políticas, raciais, cul-
turais, econômicas etc. Quando uma iniciativa de revolta se desfaz, outras se
R
compõem com muita rapidez em outros lugares. Quando a sequência dos even-
tos se compacta no tempo e se dispersa no espaço, ela se torna imprevisível.
o
A aceleração dos acontecimentos dificulta a intervenção do Estado. A
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
nidade. É como se disséssemos que, para Peter Pan, declarar o Capitão Gancho
como inimigo interessaria somente na medida em que permite mobilizar uma
coletividade sob a insígnia dos “meninos perdidos”.
ão
or
política, o Estado é sempre um tirano. No mundo global... Bem, neste caso, o
inimigo não é ninguém e, ao mesmo tempo, pode ser qualquer um. Isso quer
od V
dizer que ele precisa ser inventado.
aut
O inimigo é um semblante. Ele não está encarnado em alguém. Não há
o Um da exceção. Por isso, os semblantes não perduram em sua função. O
R
inimigo pode ser uma organização, uma iniciativa ou mesmo uma abstração,
mas não tem um idealizador. Ele pode ter data e local marcados para aparecer,
o
mas não tem rosto.
aC
Com isso, a insurgência também se explicita como um semblante. Ela
REFERÊNCIAS
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aC
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Miller, J-A., & Milner, J-C. (2006) Você quer mesmo ser avaliado?: Entre-
vistas sobre uma máquina de impostura. Barueri: Manole.
or
Rosa Guedes Lopes3
od V
aut
Resumo: Como um aplicativo é capaz de alterar a percepção que um
sujeito tem dele mesmo e permitir que se veja de um modo diferente daquele
R
que imaginava? Quando o Outro familiar se ausenta da função de ajudar uma
criança ou um adolescente a administrar o cotidiano da sua vida e a construir
o
uma narrativa que o situe no interior de sua família e no mundo externo, a
quem cabe exercer esta função? Através de um caso clínico, pretendo mos-
aC
trar como dois aplicativos – Daylio e Lucidity – foram usados por um jovem
como suplência ao esvaziamento do lugar do Outro. O primeiro, mostrando
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
que seu cotidiano não era tão monótono quanto pensava. O segundo, ensi-
visã
nando que os sonhos guardam um sentido próprio que permite que possam ser
classificados de acordo com alguma temática. Mas o conhecimento fornecido
pelos aplicativos não inclui a particularidade do gozo de cada um. O trabalho
itor
analítico serviu-se das informações fornecidas por estes “outros” para cons-
a re
1 Este artigo é fruto da minha pesquisa de pós-doutoramento em Psicanálise e educação, financiada pelo
PNPD/CAPES e desenvolvida no Programa de Doutorado de Psicanálise, Saúde e Sociedade, da Universi-
dade Veiga de Almeida, sob coordenação da Profa. Dra. Maria da Glória Schwab Sadala. Vincula-se ainda
s
or
placera dans sa famille et dans le monde extérieur, qui est responsable de ce
od V
rôle? À l’aide du récit d’un cas clinique, j’ai l’intention de montrer comment
aut
deux applications – Daylio et Lucidity – ont été utilisées par un jeune homme
comme substitut au vidage de la place de l’Autre. La première, montrant que
sa vie quotidienne n’était pas aussi monotone qu’il le pensait. La seconde,
R
enseignant que les rêves ont leur propre signification, ce qui leur permet d’être
classés selon leur sujet. Mais les connaissances fournies par les applications
o
n’incluent pas la particularité de la jouissance. Le travail d’analyse a utilisé les
aC
daily life and to construct a narrative that will situate him within his family
and in the outside world, who will play this role? Through the report of a
Ed
clinical case, I intend to show how two applications – Daylio and Lucidity –
were used by a young man as a substitute for the destitution of the Other from
its place. The first, showing that his daily life was not as monotonous as he
ão
thought. The second, teaching him that dreams have their own meaning that
allows them to be classified according to some subject. But the knowledge
provided by the applications does not include the particularity of the enjoy-
s
or
já se tornaram tão indispensáveis quanto uma prótese ortopédica. No Brasil,
seu alcance e uso é cada vez maior. Segundo a Agência Brasil (2019), nosso
od V
país ocupa o 5º lugar no ranking de uso de celulares no mundo. O uso pelos
aut
brasileiros já ultrapassa as três horas diárias.
Pesquisadores da Universidade de Lancaster (Revista Galileu, 2019), no
R
Reino Unido, desenvolveram uma pesquisa sobre o valor atual deste tipo de
telefonia. O tema do estudo foi chamado de “Eu, meu celular e meu ego”, o
o
que já indica uma supremacia dos aspectos psicológicos e comportamentais
aC
sobre o valor técnico-instrumental dos smartphones. Cientistas da Univer-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Em sua primeira sessão, Antonio foi logo explicando por que precisaria
manusear o celular durante a sessão. Ele usa um aplicativo – o Daylio – no
90
qual escreve todos os dias as informações sobre o que lhe acontece: o que
fez, onde esteve, como qualificou o seu humor, se esteve feliz ou triste, se
mergulhou num vazio, se jogou com amigos, se foi ao cinema... Enfim, insere
ali todas as atividades que compõem o cotidiano de sua vida. Explicou que foi
somente um tempo depois de ter começado a usar esse app que se deu conta
de que sua vida “não era tão vazia quanto pensava”.
O Daylio é basicamente um diário psicológico privado, muito rápido e
or
fácil de preencher, pois não é necessário digitar uma única linha se o usuário
od V
não quiser, mas apenas incluir informações tocando em ícones. Na medida em
aut
que vai sendo usado, o aplicativo passa a fornecer, periodicamente, gráficos
estatísticos com a história do humor, das atividades que preenchem o dia a dia
do usuário e de tudo o mais que, frequentemente, deixa alguém “radiante”,
R
“bem”, “mais ou menos”, “mal”, “horrível”[...], ou o que mais se queira listar
para caracterizar a o humor e a vida de alguém. Este resultado permite à pessoa
o
que utiliza o programa conhecer as variações do seu próprio humor, saber
aC
em que proporção alguns sentimentos se fazem presentes em seu cotidiano,
aplicativo me mostrou que ele não está sozinho em relação a essa avaliação.
a re
or
é “show escrever sobre o dia, selecionar o humor e as atividades e ainda ter
od V
tudo em gráficos mostrando um resumão sobre si mesmo”.
aut
Alguns usuários explicam que o aplicativo “parece inútil no começo”.
Porém, depois eles acabam percebendo que o Daylio contribuiu para manter
um equilíbrio emocional, além de ter ajudado muito a controlar o humor e a
R
fornecer alívio para algumas tensões, mesmo “sem que tenha ninguém para
escutar”. Os indivíduos que se auto nomeiam como “solitários”, por sua vez,
o
acham muito “legal quando o app pergunta ‘o que você tem feito?’”. Os
aC
que têm “problema para desabafar com pessoas” desabafam com o aplica-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
tivo. Aliás, o verbo desabafar é muito utilizado nos comentários. Estes usuá-
rios comentam que confidenciam seus segredos ao app, que parece situar-se
para eles como uma espécie de outro que, embora anônimo e inexistente na
visã
realidade, é recorrentemente qualificado como um “ótimo ouvinte para as
horas estressantes”. Esta característica faz com que ele se torne, então, um
“confidente fiel” que, além de tudo, também funciona como um “RPG da
itor
sua tristeza”. Há ainda um outro grupo de indivíduos que adora “as opções
a re
Considerando que nenhum ser humano possa ser situado fora do campo
da fala e da linguagem, é unânime o reconhecimento de que não somos capazes
s
or
si, não há como construir narrativas que respondam às questões que, desde
od V
sempre, perturbam a vida humana. O Outro familiar tem a importante função
aut
de socializar, de humanizar. Isso significa transmitir às novas gerações as
coordenadas simbólicas referentes à identificação e ao desejo. Significa tam-
bém ensinar esses indivíduos a administrar o cotidiano da sua vida e, a partir
R
desse trabalho, orientar a construção de narrativas que os situem na diferença
sexual e geracional, tanto no interior da família quanto no mundo externo.
o
Desde o início da vida humana, a interpretação do Outro familiar é o que
aC
ao objeto da satisfação (Coelho dos Santos & Lopes, 2013; Lopes, 2018).
Em psicanálise, desejo e pulsão são conceitos que não podem ser pensa-
dos sem a intervenção de alguém capaz de amparar a urgência que a descarga
de um alto nível de excitação produz no corpo, causando desprazer. O prazer
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 93
produzido pela ação que vem do exterior deixa uma marca que funda o sujeito
como sujeito do desejo e o outro, como o que Lacan posteriormente denomi-
nou de Outro da demanda, objeto pulsional (a) a quem a criança passará a
dirigir seus apelos por satisfação. Essa marca é o resultado que representará
doravante o que foi essa experiência radical de desamparo e sua satisfação e,
segundo Freud, ela produz as “consequências mais decisivas para o desen-
volvimento das funções individuais” (1950[1895]/1976a, p. 422).
or
Diferentemente do processo primário, o processo de pensamento secun-
od V
dário é caracterizado pela capacidade de cálculo e de julgamento, sendo regido
aut
pelo princípio de realidade. Tanto o processo de pensamento primário quanto
o secundário podem ser definidos como diferentes tipos de esforço dispendi-
dos pela pulsão para executar um trabalho de simbolização sobre uma falta
R
cuja natureza é estrutural, dado que dependemos da regulação oferecida pela
articulação significante. É da natureza do próprio significante um efeito de
o
constrangimento sobre o campo da satisfação. Por causa da linguagem, o gozo
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
jogo do vazio como causa da perda de uma parte da realidade (Coelho dos
Santos, 2009). A assunção de uma posição diferenciada na partilha dos sexos
e na sucessão geracional é o resultado esperado da operação do recalque
produzido pela intervenção da função paterna.
A lei paterna é a matriz simbólica que orienta a criação de uma discur-
sividade capaz de organizar o campo da percepção para dar forma à imagem
or
de si e à do Outro, à realidade interna e ao mundo que nos rodeia. Não há
conhecimento de si ou do mundo externo, como também não há imagem
od V
do próprio corpo ou do corpo do outro que não dependam dessa estrutura
aut
determinada pelos complexos de Édipo e de castração. É através deles que o
sujeito pode se identificar a uma certa discursividade que permite nomear o
R
desejo que o antecede e, a partir daí, a razão da sua vinda ao mundo. O lugar
de objeto de um desejo, cuja origem é o desejo sexual do casal parental, é a
o
matriz da possibilidade do advento de um sujeito enquanto tal.
aC
or
contemporânea nenhum imperativo que incite à regulação desse gozo fazendo
od V
uso dos valores universais que, antes, aparelhavam o ideal do eu. É consenso
aut
que não existe mais Um pai que possa ser tomado como modelo capaz de dar
suporte às insígnias identificatórias que sujeitariam, igualmente, todos os seres
humanos às leis da civilização. Esse pai, de cuja autoridade não se duvidaria,
R
foi extinto. Quanto às leis da civilização, elas vêm sendo paulatinamente
desacreditadas e até mesmo desmentidas.
o
A sociedade e suas instituições sofreram grandes modificações em relação
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
(Lyotard, 1986).
O lugar do saber sofreu transformações nas sociedades pós-modernas.
Mudou de estatuto. Na atualidade, temos propensão a acreditar que o saber
só pode ser operacional se for traduzido em quantidades de informação. Por
par
que esse tipo de linguagem permite construir são exemplos do saber que tende
a ser valorizado. Entretanto, esse tipo de saber baseia-se na especulação. Não
se origina do tradicional raciocínio lógico que deu origem à ciência moderna.
ão
O mundo humano não pode ser totalmente representado por nenhum tipo
de linguagem. O “conhecimento” que se adquire pelos meios especulativos
despreza o inconsciente tal como Freud o conceituou, pois o inconsciente só
é passível de ser contabilizado se o analista operar sobre um “sujeito crítico e
96
or
conseguem se impor. “Na pós-modernidade não há mais Outro no sentido do
Outro simbólico” (Dufour, 2005, p. 59).
od V
A pós-modernidade está “repleta de semblantes de Outros” cujo valor
aut
operativo foi sendo anulado (Dufour, 2005, p. 59). No lugar das tradições
que eram passadas de pai para filho – as chamadas “grandes narrativas” –
R
abundam pequenas narrativas, caracterizadas por serem apenas especulações
feitas por indivíduos libertados das amarradas do recalque. O crescimento e
o
a proliferação desse tipo de enunciado tornaram frouxos os princípios uni-
aC
versais pelos quais as grandes narrativas e a ciência encontravam o seu lugar
semana, o que fez no dia anterior, não sabe nada sobre si. Ele se reduz a nada
– nada de memória. Por essa razão, não é possível pedir-lhe que desligue o
celular durante a sessão. Ao contrário, é preciso que ele o consulte para que
algum conhecimento sobre si possa alcançar alguma forma discursiva.
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 97
or
do casal, e nem do seu encontro com a própria sexualidade quando entrou na
od V
adolescência. Também não interroga as perturbações referentes à sua iden-
aut
tidade sexual. Não permite que ele se dê conta do seu constante estado de
desamparo e, então, possa concluir o quanto ainda precisa de cuidados. Ao
R
concentrar as informações em gráficos e fornecer, ao final, um “resumão
sobre si mesmo”, o aplicativo deixa tudo na conta do ego, fazendo parecer
o
que a existência dessa instância não padece de nenhuma dívida simbólica e,
portanto, levando a crer que o Outro não existe.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
usar o aplicativo permitem fazer valer a regra da associação livre sobre a qual
a interpretação pode encontrar o seu justo lugar. No caso de Antonio, permitiu
Ed
do Outro familiar, pois é somente no laço com o Outro que o sujeito emerge.
Após um curto período de análise, Antonio trouxe um outro aplicativo
que também costumava usar: o Lucidity – Lucid dream journal -, um programa
s
lúcido”. Esse app pretende levar o indivíduo a ter consciência dos seus sonhos
para, então, poder controla-los. Além disso, pode ser usado como um diário
de sonhos. Possui várias ferramentas para fazer testes de realidade e analisar
sonhos, condição que permite que eles sejam classificados por temas: sonhos
com familiares, engraçados, pesadelos, sobre sexualidade.
98
or
que lhe é correlato não estão presentes apenas nos fenômenos oníricos, mas
od V
também na sua vida cotidiana.
aut
As “memórias” inconscientes que retornaram quando o analista fez inci-
dir a interpretação sobre as narrativas construídas pelo sujeito com o uso dos
aplicativos forneceram as coordenadas da sua relação estrutural com o Outro
R
no ponto mesmo em que elas pareciam inexistir para ele. Como consequência,
possibilitaram mapear as coordenadas do gozo instalado pelo circuito familiar,
o
gozo esse responsável pela posição amorfa e deprimida com que ele se apre-
aC
REFERÊNCIAS
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mundo. Recuperado em 20 junho, 2019, de http://agenciabrasil.ebc.com.
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R
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internacional de Psicopatologia Fundamental e no XIV Congresso Bra-
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sileiro de Psicopatologia Fundamental: A clínica na universidade e além.
aC
Set/2018. South American Hotel, Copacabana, Rio de Janeiro.
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
PARTE II
visã R
od V
o
psicopatologia ou invenção
aut
NOVAS SUBJETIVIDADES: or
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
EU SOU UM OUTRO: O
descompasso entre o eu e o corpo que
a transexualidade coloca em cena
or
od V
Alinne Nogueira Silva Coppus1
aut
Resumo: São muitos os exemplos e as formas como o corpo se faz
R
presente na cena analítica, pois, quando o sujeito toma a palavra, sua rela-
ção com o seu corpo ocupa espaço, demarca lugar. Ao longo do tempo,
o
observamos a proximidade da teoria psicanalítica com isto que não é pro-
priamente um conceito: o corpo. Sigmund Freud (1895/1996a), por exem-
aC
plo, chegou ao inconsciente, a partir daquilo que o intrigou no sintoma
histérico: um corpo erotizado por uma história singular, que sofre dessa
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
There are many examples and ways in which the body is present in the
analytical scene, because when the subject speaks, his relationship with his
body takes space, establishes boundaries. Over time, we have seen the prox-
imity of psychoanalytic theory to something that is not exactly a concept: the
or
body. Sigmund Freud (1895/1996a) for example, understood the concept of
od V
unconscious based on what intrigued him in the hysterical symptom: a body
aut
eroticized by a singular history, suffering from the same recorded history itself,
and capable of making the subject speak. The body does not speak, but the
R
malaise present in the relationship between the subject and it does.
Key-words: body, transexuality, malaise.
o
Eis-nos reconduzidos, de fato, a que um corpo
aC
analítica, pois, quando o sujeito toma a palavra, sua relação com o seu corpo
a re
que sofre dessa mesma história gravada em si, e é capaz de fazer o sujeito falar.
O corpo não fala, mas o mal-estar presente na relação entre o sujeito e ele sim.
Ed
or
seu corpo, marcam nosso interesse clínico nesta pesquisa. Mais do que isso,
od V
gostaríamos de acompanhar como se dá a construção e a apropriação de um
aut
corpo para o sujeito, e, assim, extrair as consequências da fala do paciente, que
fazem parte desse processo. Ora, o corpo como uma via de expressão, localiza-
R
ção e até nomeação das questões inconscientes, é colocado em destaque quase
diariamente. Nesse sentido, ouvir o sujeito que não se reconhece no corpo que
o
tem nos permite trabalhar direcionamentos clínicos, que podem inclusive nos
ajudar a pensar outros impasses que se fazem presentes na clínica psicanalítica,
aC
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esse material com todos que fazem parte do projeto. Algumas falas destacadas
aqui foram retiradas desse material de pesquisa.
Elegemos, a partir do que se destacou em nossa escuta, uma questão
ão
que permite o aprofundamento dessa temática que é tão ampla e que vem
se fazendo presente nas publicações psicanalíticas recentes2. As discus-
s
2 Dentre as referidas publicações, destacamos: Quinet (2018), Ansermet (2018), Bonnaud (2016), Rosa
(2019), Fajnwaks & Leguil (2015), Mariotto (2018), Santiago et al. (2017), Alberti & Zenicola (2016), Jorge
& Travassos (2018).
106
or
até o momento tem sido bastante fértil. Por isso, priorizamos algumas vias
od V
para aprofundarmos a relação entre o eu, a imagem, o corpo e o objeto a3.
aut
Tal aprofundamento se dará através da retomada da definição do eu, em
Freud (1914/1996b), do estádio do espelho e do esquema óptico, em Lacan
R
(1949/1998a;1962-63/2005), e de algumas formulações sobre o corpo em
seus últimos seminários. Dentre essas, destaca-se a afirmação de que nós não
o
somos nosso corpo, nós temos um corpo (Lacan, 1972-73/1986). Essa não
equivalência, por si só, não permite uma identificação total entre o que eu
aC
fala e escuta também passe muitas vezes por essa busca. Nesse sentido, per-
guntamo-nos: quais as funções e os efeitos da fala, na construção de um corpo
(possível) para o sujeito? Um corpo a partir do qual ele possa responder, se
haver com seu desejo, e quem sabe, localizar algo do gozo.
Há um apontamento bastante raro no ambulatório, que transcrevemos a
par
seguir: “Não reconheço o que vejo no espelho, porque não sou Daniela, mas
também não sou Daniel”. Acredita-se que ele possa ter surgido durante o
Ed
trabalho analítico. O que pôde ganhar corpo, através da fala, foi a dúvida ou
o questionamento sobre o que se pode ser, para além das nomeações homem,
ão
localizar e nomear o real pulsional que retorna na fala do sujeito, seja nos
3 Até o ano de 2019, tivemos quarenta e cinco pacientes ouvidos no ambulatório. Os que deram continuidade
ao tratamento apresentam, em sua maioria, a hipótese diagnóstica de neurose. Nesse sentido, esse texto
se detém na problematização da relação do sujeito com seu corpo dentro da neurose, ou seja, levando-se
em consideração a extração do objeto a.
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 107
or
od V
A imagem que desvela
aut
Uma imagem bloqueia sempre a verdade
o
Começamos com Freud. Em sua definição, o eu é, “primeiro e acima de
aC
tudo, um eu corporal [grifo nosso]; não é simplesmente uma entidade de super-
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alguém, de um sujeito.
O mal-estar presente no não reconhecimento de si em um corpo mostra
– além de um possível descompasso entre o eu e o corpo –, sobretudo, que
um corpo não é apenas uma imagem. A imagem que vejo nesse corpo não sou
eu. Eu sou um outro. Nesse sentido, podemos questionar: esse descompasso
par
eu? Desarranjo presente na relação que o sujeito estabelece com seu corpo?
Continuando com Freud (1923/1996b), vale relembrar que, além de ser
habitado pelo inconsciente, uma projeção de superfície e sede da angústia,
ão
está sujeito também à influência das pulsões, tal como o isso, do qual, como
ver
or
culação lógica entre a angústia, a pulsão, o desejo e sua função de mais de
od V
gozar. Percebemos assim a necessidade da presença desse vazio na relação
aut
do sujeito com sua imagem, em diferentes momentos e contextos. Mais à
frente voltaremos a eles.
Por agora, vale retomar alguns pontos destacados por Lacan em relação
R
ao esquema óptico. Esse esquema retoma o estádio do espelho (Lacan, 1953-
54/2009, p. 147), destacado anos antes. Ora, antes do sujeito adquirir o
o
domínio motor de seu corpo, ele apreende a ideia de totalidade do mesmo,
aC
A x’
itor
espelho plano
y
a re
$ a a’ S,I
i’(a)
espelho i(a)
côncavo
par
Ed
y’
ão
or
relações de parentesco. É deste lugar que depende o fato de que se tenha
od V
direito à nominação, ou seja, de se chamar Maria ou João, de se reconhecer
aut
em um nome.
O esquema óptico localiza o sujeito barrado em um lugar, representado
na linha do olho, e o corpo em outro, no vaso. É no vaso que o eu, e não o
R
sujeito, pode se apreender. Nesse sentido, o sujeito possui uma exterioridade
ao seu corpo, não há uma equivalência entre eles. Isso faz com que tenhamos
o
uma sensação de estranheza quando o sujeito do inconsciente, dividido a partir
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
corpo e deposita, no mesmo, seus ideais. Será essa a imagem que posteriormente
dará origem ao eu ideal, o narcisismo perdido da infância. De tal modo, o que
orienta o sujeito na busca por uma imagem própria são as marcas que balizam
ão
a posição, na qual ele tem que forjar um lugar, para receber uma confirmação
do Outro. Esta é a função do ideal. Tal lugar remete à constelação de desejos
que antecedem o nascimento de uma criança (Lacan, 1960/1998b, p. 689).
s
ver
‘a imagem real cerca os objetos a’, entendemos que é através dos impasses
do sujeito em relação à imagem do corpo i (a) que chegaremos ao objeto
a. Assim, segundo Lacan, “é a esse objeto inapreensível no espelho que a
imagem especular dá sua vestimenta [grifo nosso]” (Lacan, 1960, p. 832).
Utilizamos então essa vestimenta, ou melhor, a forma como o sujeito faz uso
dessa roupa, para depurar a relação do sujeito com o desejo e com o gozo. O
que o homem/mulher tem diante de si é essa imagem, virtual e falaciosa, que
or
orienta e polariza o desejo, tendo a função de captar a libido (Lacan, 1962-
od V
63/2005, p. 53).
aut
Recuperando a fala dos pacientes participantes do projeto Falatrans,
podemos dizer que as dificuldades em relação à imagem são notórias. Um
paciente diz que prefere ir ao banheiro a noite para não encarar o espelho
R
presente no corredor. Outro afirma que, quando está angustiado, vê na ima-
gem de si resquícios da imagem anterior. Outro coloca que, por mais que se
o
pareça com uma mulher, a voz denuncia o homem que foi. Outro destaca
aC
início do tratamento hormonal, e diz: “Para, sempre que eu me sentir mal, ver
de onde parti e lembrar o porquê estou fazendo isso”. Mesmo assim, confessa:
Ed
“Olho para o espelho e vejo que está faltando alguma coisa, não está completo.
É agora, após a transição, que estou começando a me reconhecer no espelho,
mesmo que não totalmente”.
ão
or
no encontro com o outro, o que se apresenta nas falas dos pacientes é exa-
od V
tamente a insuficiência dos três registros – real, simbólico e imaginário –,
aut
para responder à questão da existência, e talvez, até do próprio corpo. Assim,
precisa-se de um outro nome, de uma nova imagem, mas o que escapa à
representação sem deixar de constituir o sujeito, seu corpo ou sua satisfação
R
enquanto vazio primordial se mantém sem rosto.
Os questionamentos sobre as posições masculinas e femininas vão sur-
o
gindo timidamente. “Eu sou uma mulher, eu me sinto uma mulher”, diz a
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
paciente que também relata a sua devastação, quando o parceiro pede para
que ela use o órgão sexual masculino na relação sexual. Ela se recusa,
dizendo: “Sou uma mulher e quero um homem hétero, que se case comigo e
me assuma”. O que vemos é a necessidade do sujeito de responder de algum
visã
lugar na partilha dos sexos a partir de um referencial fálico, ter ou não o falo,
ser ou não o falo para o Outro.
Nesse momento, o paciente instiga o analista ao dizer que não há como
itor
localizar alguém como homem ou mulher sem passar pelo corpo, retomando
a re
imagem, através de uma alteração no corpo, como quando registramos: “Eu não
sei se é meu corpo que me reflete ou eu que reflito meu corpo”. Curiosamente,
Ed
na imagem, muitos dizem que não conseguem se despir. O paciente relata que
a dificuldade em relação ao corpo faz com que transe de roupa.
O corpo só pode ser uma roupa pesada? Algo que não cai bem, sempre
s
um pouco fora de moda? Para todos, e não apenas para os transexuais. Ocorre
ver
que, a fala de alguém que não se reconhece no gênero de nascença deixa isso
evidente, devassado, escancarado.
Por fim, voltamos à pergunta destacada no início do texto: quais são
os efeitos da fala analítica para a relação do sujeito com seu corpo (trans)?
112
or
Com Lacan afirmamos que é necessário que o sujeito acredite que possui
od V
um corpo para se reconhecer em um. Esse engano é fundamental para que
aut
ele possa habitá-lo. Na verdade, ele sai fora a todo instante (Lacan, 1975-
76/2007). A forma como podemos abordar o corpo, na teoria e na clínica, “um
corpo tal como esse com que vocês se suportam, é muito precisamente esse
R
algo que, para vocês, tem o aspecto de ser o que resiste, o que consiste antes
de se dissolver” (Lacan, 1974-75, lição de 18/02/75). Falar a alguém que tes-
o
temunha os efeitos dessa construção de um corpo faz parte desse movimento,
aC
corpos (Lacan, 1972, p. 479), e sim de uma invenção, de uma saída possível
frente ao real enquanto insuportável. Isso traz consequências na forma como
o sujeito lida com seu corpo? Quais seriam elas?
par
Ed
s ão
ver
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 113
REFERÊNCIAS
Alberti, S., & Zenicola, B. (2016). Diante do muro. Stylus, 33, 165- 175.
or
Bonnaud, H. (2015). Le corps pris au mot. Paris: Navarin.
od V
aut
Butler, J. (2013). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
R
Fajnwaks F. & Leguil C. (2015). Subversion lacanienne des théories du genre.
o
Paris: Editions Michèle.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
or
Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original de 1969-70).
od V
Lacan, J. (1998a). O Estádio do espelho como formador da função do eu. In:
aut
Escritos (tradução de Vera Ribeiro, pp. 96-103). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. (Trabalho original de 1949).
R
Lacan, J. (1998b). Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: psicanálise
o
e estrutura da personalidade. In Escritos (pp. 653-691). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor. (Trabalho original de 1960).
aC
Santiago, A. L., Cunha, C., Vidigal, C., Santiago, J., Neves L., & Lima L.
(2017). Mais além do gênero: o corpo adolescente e seus sintomas. Belo
Horizonte: Scriptum.
DO SENTIDO DA FANTASIA À
FANTASIA COMO MATÉRIA DA POESIA1
or
Virgínia Célia Carvalho da Silva2
Gilson de Paulo Moreira Iannini3
od V
Jésus Santiago4
aut
Resumo: Nesse “império das imagens” em que vivemos, a fantasia
R
ascende ao zênite, com seu mercado de sentidos pret-à-porter (Miller, 2015).
Ela não se reduz, contudo, à sua vertente imaginária, pois também veicula
o
um pas-de-sens, tal como o da poesia – daí Freud e Lacan terem se detido
aC
numa aproximação entre ambas. E a poética inclui a técnica do Witz, o chiste.
Nosso percurso em torno da noção de fantasia, que concerne à própria lógica
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Dans l’«empire des images» dans lequel nous vivons, le fantasme monte
au zénith, avec son marché des sens prêt-à-porter (Miller, 2015). Cependant,
par
1 O presente trabalho foi realizado a partir da tese de doutorado “A lógica da fantasia e mais além”, atualmente
orientada por Gilson Iannini e que também contou com a orientação de Jésus Santiago.
s
2 Doutoranda e mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Especialista em Psicologia Clínica pela PUC-MG,
ver
or
From the meaning of fantasy to the fantasia as matter to poetry
od V
aut
In the «empire of images» in which we live, fantasy rises to the zenith,
with its market of senses pret-à-porter (Miller, 2015). However, fantasy can-
R
not be reduced to its imaginary aspect, since it also conveys a “no meaning”
dimension, just like poetry. That is the main reason why Freud and Lacan
were led to an approximation between them. In fact, poetics includes the
o
technique of Witz. Our journey around the notion of fantasy, which concerns
aC
grande paradoxo é que para que se faça sozinho, é preciso seguir um “tuto-
rial”5. Nessa esteira, há tutoriais desde “como moldar seu corpo”, “como
construir uma casa”, “como educar um filho” a “como fazer um tutorial”.
Maria, após assistir a uma excelente palestra, em estilo tutorial, sobre “como
alavancar seus negócios?”, entrou em uma crise de angústia que a impediu de
par
or
As reconfigurações do imaginário no século XXI evidenciam que o simbó-
od V
lico não tem mais o mesmo valor. Nesse mundo em que prevalece o império das
aut
imagens, poderia o imaginário oferecer alguma coordenada? É preciso saber se
virar com a imagem. Se seguimos a orientação de Lacan, “saber se virar com a
imagem é saber se virar com aquilo de que goza o corpo, via sintoma, e é isso
R
que permite o saber se virar com o parceiro sexual” (Santiago, 2015).
A relação com o corpo passa pela fantasia já que o falasser tem um corpo,
o
o que é diferente de sê-lo (Lacan, 1972-73/1985). Nessa perspectiva, Lacan
aC
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propõe que “não há relação sexual, salvo entre fantasias”. E é “um fato que a
vida continua graças ao fato da reprodução ligada à fantasia” (1977/2000, p. 2).
Que tipo de consequências essas reconfigurações do imaginário no século
XXI trazem sobre a fantasia? Haveria uma modificação no modo de fantasiar,
visã
levando em conta todo esse arsenal de imagens? Temos um mercado de fantasias
prêt-à-porter, filmadas e disponíveis a um clique (Miller, 2015). Por outro lado,
uma civilização angustiada. E Lacan (1962-63/2005) evidencia que a angústia
itor
dispõe de uma resposta que nos permita enfrentar a opacidade do desejo do Outro.
A “lógica da fantasia” indica outras vertentes suas, além da imaginária:
há também uma dimensão simbólica e outra real, o que já se pode verificar
desde Freud (Silva, 2014). É importante reconhecê-las, já que a fantasia fun-
par
tido, que abre para um sentido novo, como desenvolveremos adiante. Para
ver
or
de verdade e inaugura o gesto fundamental da filosofia: a busca do poeta de
od V
alcançar a verdade por meios não discursivos, não argumentativos, alheios
aut
ao método dialético, deve ser banida. A poesia é perniciosa na cidade justa
porque está duplamente afastada do Ser da ideia, por ser, no fundo, imitação da
aparência sensível, imagem de imagem. A poesia é opacidade redobrada e, neste
R
sentido, contrapõe-se ao sol da verdade, à transparência e luminosidade próprias
ao mundo das formas (eidos). Criticar a poesia é criticar a mimesis, é criticar
o
a possibilidade do conhecimento mimético. Pois o verdadeiro conhecimento,
aC
gem (as poesias concretas e a poesia chinesa são exemplares disso), veicula
sua dimensão simbólica, de representação e não deixa de ser um modo de
formalização do real.
ão
6 Pela edição das “Obras Incompletas de Sigmund Freud”, sabemos que Witz é “uma das palavras de mais difícil
tradução da língua alemã. Isso porque o termo comporta duas dimensões: uma relativa a seu uso mais cotidiano
de “gracejo”, “piada”, e outro, mais erudito, que se refere a um “pensamento fulgurante, que no mesmo instante
em que aparece, iluminando o que chamamos de real, desaparece” (Freud, 1905/2015, p. 281). A edição opta
por utilizar o chiste, tendo em vista que já é um termo consagrado no campo da psicanálise.
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 119
or
od V
A fantasia se apresenta em Freud em três vertentes, que embora sejam
aut
diferentes, estão articuladas numa única noção. Elas não são localizadas tem-
poralmente em sua obra e não se anulam. Por essa razão, não podem ser
R
tomadas separadamente. Há uma vertente imaginária, que se apresenta tal
como uma “selva das fantasias”; uma simbólica, que se refere ao roteiro que
a fantasia é; e uma real, que a evidencia como uma marca, traço indizível
o
e, ao mesmo tempo, determinante, chave das repetições da vida do sujeito,
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
que indica que há um pensamento lógico para se chegar a uma falsidade. Além
a re
realidade (1924/1996f).
Freud (1917/1996e) propõe um paralelo entre a fantasia e o estabele-
cimento de reservas naturais preservadas da intervenção dos processos civi-
ão
or
sia”, com seu caráter de reserva, “de um domínio que ficou separado do mundo
od V
externo real” (p. 208), é o terreno de onde a neurose tira material para se fixar.
aut
Diferentemente da psicose, que repudia a realidade, a neurose apenas a
ignora. Seu mecanismo é o de tentar evitar determinado fragmento da reali-
dade e se proteger dele. Freud (1924/1996f) considera que tal fragmento está
R
associado a alguma exigência de satisfação que precisou ser recalcada. É o
que acontece com a jovem Elisabeth Von R que, apaixonada pelo cunhado,
o
sucumbe aos sintomas histéricos a partir do momento em que, no leito de
aC
constitui em cada uma dessas formas de sexuação. Ele lembra que no desejo
ver
feminino, o sujeito precisa lidar tanto com o Outro barrado quanto com o falo.
Nesse sentido, “quando se abrem as vias do desejo para uma mulher, ela tem
que lidar com as vias do Ⱥ, ou seja, que o Outro não existe” (p. 15). Como
há a outra dimensão, que é fálica, Miller (2010) indica que há um risco da
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 121
análise cair nessa vertente e a mulher se colocar como toda fálica, ou seja,
uma mulher com postiço.
Já “o desejo masculino se sustenta em semblantes falicizados” (Mil-
ler, 2010, p. 15). Para Miller, o “homem lacaniano” é um “ser pesado, estor-
vado, embaraçado pelo ter”. E, esse gozo do proprietário, ao mesmo tempo
que promove um sentimento de superioridade, também implica o medo de
ser roubado: uma “covardia masculina”. O homem covarde serve-se muito
or
bem da dita “mulher com postiço”, aquela a quem “se atribui artificialmente
od V
o que lhe falta com a condição de que sempre, em segredo o receba de um
aut
homem”. Enquanto desfila ostentando sua propriedade, tenta esconder sua falta
e proteger o falo. A mulher “que não parece castrada, não ameaça o homem
por não exigir que ele seja desejante e assim recebe o respeito e o descanso
R
da castração”. Entretanto, “a mulher com postiço denuncia o homem como
castrado e não poucas vezes se completa com um homem assim, mantendo-o
o
na sombra”. A fantasia no campo masculino seria, então, uma espécie de
aC
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cada sujeito, bem como a variedade de elementos que coloca em cena. Lacan
ver
or
nário sobre “As Formações do Inconsciente”, ao dizer, na página 422, que a
od V
fantasia, que participa da ordem imaginária, só adquire função na economia
aut
subjetiva, através de sua função significante.
A indicação de que a fantasia participa do campo da representação, sim-
bólico, coloca em jogo sua vertente fundamental. A fantasia fundamental leva
R
a uma redução sobre o modo de funcionamento do sujeito. Freud, em 1919, a
partir do estudo das fantasias de seus pacientes, isolou em uma frase – “Bate-se
o
numa criança!” – o que seria essa fantasia, que se constitui como uma cicatriz
aC
Tela na janela
or
representação a que se está submetido, ao mesmo tempo em que demonstra
od V
a insuficiência dessa representação, já que a tela não pode tapar toda a janela.
aut
Na pintura de Magritte, pode-se visualizar tanto a dimensão da tela, quanto a
de janela, o que fica nítido no modo como essas dimensões se conjugam na
fresta que há entre a tela e a janela.
R
Essas duas dimensões, presentes na tela de Magritte, revelam como a
fantasia tem uma função decisiva na vida do sujeito neurótico, pois ele se
o
posiciona no mundo e guia suas ações através da maneira pela qual o enxerga.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
mais palatável. E, nesse sentido, fica explícita a dimensão que a fantasia tem
a re
o objeto a encontra seu lugar na fantasia, a fantasia toma para o sujeito o lugar
do real. Não quer dizer com isso que se trata do real” (Miller, 1996).
A fantasia na neurose, faz-se, portanto, como “uma tela sobre a qual o
ão
constitui “para cada um, sua janela para o real” (Lacan, 1967/2003).
ver
fecha ao sujeito o acesso ao real e, inversamente, uma janela que abre, para
o sujeito, um ponto de vista sobre o real em questão” (p. 156).
Pensada como tela (écran), estaria a dimensão de “evitamento do real”,
fazendo-lhe barreira. Como janela (fenêtre), seria uma abertura que denota em
si mesma a conexão entre o sujeito e o real, mesmo que através dos limites do
enquadramento fantasístico. Seria uma “função do real”, função subjetivada
e singularizada do real, ou seja, o real para cada um (Miller, 2011).
or
O desenvolvimento proposto por Santiago (2011) traz um questionamento
od V
sobre a predominância da dimensão de tela no masculino e da de janela no
aut
feminino. Isto levando em conta as elaborações de Miller (2010b), ao loca-
lizar os sujeitos masculinos como aqueles condenados à cautela por estarem
sempre com medo de perder algo e os femininos como “amigas do real”, em
R
razão de sua maior permeabilidade à castração.
De acordo com Miller (2012), dizer que “o real não tem sentido” equivale
o
a dizer que ele não corresponde a nenhum “querer dizer”. A doação de sentido
aC
Poética da fantasia
itor
Lacan (1977/2000)
Ed
(rouge)
ver
fantasme
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 125
O que a figura acima demonstra, a partir desse corte do toro, que suporta
o nó borromeano, é que a fantasia e o real não se separam: “porque aqui está
o terceiro elemento, quer dizer, é aqui que está a fantasia e que se encontra
o que designei de real”. Ou seja, ao mesmo tempo que se constitui como
uma elucubração sobre o real, a fantasia ganha estatuto de real. Ennia Favret
(2014), ao falar sobre o passe, indica que no final de uma análise, trata-se de
como cada um tenta se aproximar de um ponto, de um pedaço de real, apesar
or
de sua opacidade e, nesse sentido, o passe seria o esforço de encontrar um
od V
caminho na obscuridade.
aut
Na lição de 15/11/77, Lacan aproxima fantasia e ciência, dizendo que
há um núcleo fantasístico na ciência: “a ciência não é nada mais que uma
fantasia” (p. 2). Ela “é uma futilidade, que não tem peso na vida de ninguém,
R
ainda que tenha efeitos, como a televisão, por exemplo, mas esses efeitos não
se sustentam de nada que não seja a fantasia” (p. 2). Nessa perspectiva, “o
o
importante é que a própria ciência não é mais que uma fantasia e a ideia de
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
or
real, que se apaga”, tal como um choque pulsional.
od V
Embora o real não possa ser dito, pode ser circunscrito através da formali-
aut
zação, em suas duas vertentes: matemática e estilística. Trata-se de um esforço
de literalização do real que não faz economia dos impasses da formalização.
Esforço este que não apenas não é uma quimera, nem uma impostura, como
R
também disponibiliza um conjunto de ferramentas de valor inestimável ao pes-
quisador e ao clínico. Lacan passa do matema ao poema para transformar a
o
impotência em se dizer a verdade para a impossibilidade de dizê-la toda: “É a
aC
(p. 43). Ele acreditava que por meio da poesia, o escritor “se protege contra
as consequências de sua vivência”. A aproximação entre fantasia e poesia
encontra eco na equivalência feita por Shakespeare entre “criação poética e
ão
esconde dos outros, as guarda como o que lhe é mais íntimo, em geral, prefere
ver
responder por seus delitos que partilhar suas fantasias” (Freud, 2008/2015, p.
56). Como, então, na poesia, esse prazer pode se apresentar?
A Ars poetica, para Freud (1908/2015), consiste em superar a repulsão
neurótica. Para tanto, o poeta imprime suavizações, alterações e ocultamentos
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 127
or
propõe que ao estudarmos uma obra poética, podemos “considerar apenas a
od V
relação da obra com seu produtor, ou então a relação da obra com aquele que
aut
é modificado por ela, uma vez pronta”. Nesse sentido, é preciso distinguir a
ação do poeta e a reação do leitor, pois “as ideias que ambos fazem da obra
são incompatíveis” (p. 184). Nessa perspectiva, considera a poesia como uma
R
“obra do espírito”, pois o que a obra produz “é incomensurável com nossas
próprias faculdades de produção instantânea” (p. 185).
o
A “obra do espírito”, para Valéry (1937/1991), “só existe como ato. Fora
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
desse ato, o que permanece é apenas um objeto que não oferece qualquer
relação particular com o espírito” (p. 185). Assim:
O poema, portanto, nada mais é que sua execução, pois, fora dela “essas
sequências de palavras curiosamente reunidas são fabricações inexplicáveis”
(Valéry, 1937/1991, p. 186).
A obra poética é o que desperta em nós “uma sede e uma fonte”, é “o
par
Visto que o espírito está em causa, tudo está em causa; tudo é desordem
e qualquer reação contra a desordem é da mesma espécie que ela. É por-
que essa desordem é, alias, a condição de sua fecundidade: ela contém a
promessa, já que essa fecundidade depende mais do inesperado que do
128
or
evento semiótico (a repetição de um som) e um evento semântico”, levaria “a
od V
mente a requerer uma analogia de sentido lá onde nada pode encontrar além
aut
de uma homofonia” (p. 143).
Se o poema se constitui nessa tensão, descolado do sentido, como ele
termina? Agamben (2000) se pergunta sobre o fim do poema e suas elabo-
R
rações podem trazer semelhanças com as indicações de Miller (2018) que
mencionamos anteriormente à respeito do passe, de que eles são o testemunho
o
de uma elucubração da fantasia que foi reduzida a um núcleo e que depois se
aC
apaga, tal como um choque pulsional.
emergência poética” (p. 145). Nessa esteira, o filósofo conclui que “o poema
Ed
“não é transposição organizada, mas oferenda, proposição sem lei” (p. 31).
Ele demarca a diferença entre o poema e o matema. O poema está sujeito
à imagem e à experiência sensível imediata. Já o matema teria seu ponto
s
or
evita supor que se possa substituir a singularidade de um pensamento pelo
od V
pensamento desse pensamento” (Badiou, 2002, p. 42).
aut
Em seu Seminário sobre “As formações do inconsciente”, Lacan (1957-
58/1999) afirma que “jamais ninguém abordou o que é verdadeiramente a
poesia” (p. 58). Ele menciona essa ideia ao dizer de como Mallarmé apa-
R
nhava suas ideias do Littré, dicionário de língua francesa. Para Lacan (1957-
58/1999), Mallarmé se interessava “vivamente pelo significante” e, nesse
o
sentido, “deve haver uma maneira de definir a poesia em função das relações
aC
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com o significante” (p. 59). Não é sem importância o fato de que ele recorra
a Mallarmé e o “sem sentido” de suas poesias para trabalhar o Witz.
Witz, pas-de-sens
visã
com as palavras em seu estado bruto, jogo com a matéria fônica, livre da
coerção da rede socialmente compartilhada de significados.
Lacan (1957-58/1999) destaca duas características do chiste que a diferen-
s
que explora sua polissemia e outra face que é a de sua dinâmica inconsciente na
relação com o desejo. Ao mesmo tempo que o chiste necessita de uma “teia da
linguagem estruturada socialmente”, pois não há chiste sem a chancela do Outro,
ele só produz riso a partir do rompimento de um fio ou nó daquela teia.
130
or
Esse exemplo freudiano esclarece a ideia de que no chiste, não se trata de
od V
uma mostração que é mera ilustração, mas é parte da própria formalização do
aut
que está em jogo no mecanismo do chiste. Dessa maneira, a análise do Witz se
serve mais ou menos dos mesmos mecanismos de sua composição/formação.
“Mais ou menos” e não “inteiramente” porque a análise esbarra sempre na
R
irredutibilidade da expressão, o que exigirá uma modalidade específica de
apreensão, a estética.
o
Os exemplos de chiste preferidos por Freud, aqueles em que a análise
aC
de Freud logra mostrar sua eficácia mesmo para aquele que não sabe alemão.
a re
Para tanto, Freud faz uso de uma certa disposição das palavras na página,
de uma fragmentação de seus elementos constitutivos, e ainda se vale de
recursos de tipografia a fim de exibir da maneira mais concreta e mais visual
possível o resultado do processo de redução da técnica formal que resultou
par
na expressão do chiste.
O que impressiona aqui é que, sem querer, os procedimentos utilizados
Ed
por Freud remetem, por exemplo, aos termos que uma análise de um poema de
Mallarmé exige: disposição espacial, distribuição dos espaçamentos e “espaços
brancos”, fragmentação da ideia, tipografia. Note-se, de passagem, que Freud
ão
não nutria nenhum entusiasmo com o que seria chamado depois de poesia/
literatura moderna. No momento mesmo em que reconhece a semelhança entre
a técnica do chiste e a poética, Freud não esconde o que ele próprio entende
s
por poesia, sem dúvida herdeira de uma concepção clássica que remonta a
ver
7 familiar + milionário // « famili...är/millionär: familionär ». Diagrama à página 32. Outros exemplos semelhantes:
ANECDOTE + RADOTAGE : ANECDOTAGE ; ALCOHOL + HOLIDAYS : ALCOHOLIDAYS ; CARHAGINOIS
+ CHINOISERIE : CARTHAGINOISERIE. Freud, Witz, p. 35-36.
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 131
or
o sistema das necessidades humanas é remodelado na linguagem e o desejo
od V
“modificado”, “subvertido”, “tornado ambíguo”, quando de sua “passagem
aut
pelas vias do significante” (p. 93). “O desejo que deveria passar deixa em
algum lugar não apenas vestígios, mas um circuito insistente” (1957-58/1995,
p. 94). A noção de circuito traduz uma característica importante da teoria freu-
R
diana da memória, na qual simples ocorrências, eventos únicos são capazes
de deixar atrás de si marcas indeléveis da circulação de energia pulsional
o
(Freud, 1895/1996). A memória não depende de algo como a repetição de
aC
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lembrar que tudo isso está longe de ser desimportante ou acidental, mas que
constitui a natureza própria da linguagem e de nossa constituição em seu
interior. Não se trata de fenômenos linguísticos “parasitários”, “secundários”
s
8 Distinções próprias a discursos que se fundam numa oposição grosseira entre verdade e ficção.
132
Diz Lacan:
or
Diferentemente do que acontece nos sintomas, nos atos falhos e nos
od V
sonhos, estes restos, estes dejetos, marcados com o selo da singularidade
aut
imanente da mínima diferença, deixam atrás de si uma “sombra feliz”.
Esta “sombra feliz” é uma primeira peculiaridade do Witz como for-
R
mação do inconsciente. Tanto os sonhos como os atos-falhos são formações
do inconsciente que trabalham segundo o modelo da evitação do desprazer
o
(digamos, na “zona de rebaixamento” do princípio do prazer). Já o Witz, em
aC
contrapartida, visa a produção de prazer, daí suas características peculiares
e de esvaziada de conteúdo.
É isso que o Witz tem em comum com a infância: na medida em que
consegue surpreender o Outro é que ele colhe o prazer: “o mesmo prazer pri-
mitivo que o sujeito infantil, mítico, arcaico, primordial [...] havia extraído do
primeiro uso do significante” (1957-58/1999, p. 104). Isso porque, nas palavras
par
Reúne as palavras, sem respeitar a condição de que elas façam sentido, a fim de
obter delas um gratificante efeito de ritmo ou de rima” (1905b/1996, p. 148).
É por esta razão que Lacan recomenda, para a formação em psicanálise,
ão
or
(dé-sens), pouco-sentido (peu-de-sens) e, finalmente, “pas-de-sens” (no duplo
od V
sentido de negação e de passagem9). O fato de haver um “apagamento ou
aut
uma redução do sentido” (1957-58/1999, p. 101), não implica a ausência de
sentido. Como escreve Freud “há sentido por trás desta chistosa ausência de
sentido” (Freud, 1905/1996c, p. 74).
R
Mas o que seria essa passagem de sentido? Lacan se vale de um símile
marxista: o valor de troca apaga do objeto o que é da ordem da natureza, da
o
pura necessidade, o valor-de-uso. Do mesmo modo, do ponto de vista do
aC
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da metonímia. A “equalização dos objetos” pela palavra tem como efeito ime-
diato o apagamento ou redução do sentido. Mas esta redução, esta equalização
nunca é sem restos: ela deixa vestígios, traços, dejetos.
O que torna, pois, possível um equívoco explorado num chiste, por exem-
par
meno do chiste que mostra, entre outras coisas, quão pouco-sentido prévio é
necessário para a produção de efeitos de verdade em situações complexas de
interação social como aquela que envolve um chiste bem-sucedido.
s
realizar-se como valor, numa lei de proporção inversa: quanto mais o Witz
9 Note-se que o duplo-sentido aqui, em sua simultaneidade e indecidibilidade, não evocam um processo de
tipo dialético.
10 O significante é o que permite pensar a equivalência entre objetos diferentes. E o significante-puro, sem
nenhuma potência denotativa, é o falo.
134
“se desvelar como valor verdadeiro, mais se desvelará como estando apoiado
no [...] pouco-sentido” (Lacan, 1957-58/1999, p. 102). O Outro autentica o
Witz, marcando-o com o sinal da alteridade: o desejo não pode ser formulado
sem alguma ambiguidade, própria à linguagem. É aqui que se pode medir a
efetividade do primeiro limite para Lacan: as homofonias são relevantes na
lógica do inconsciente, porque este funciona segundo a lógica do significante
e não segundo a lógica do sentido.
or
Ao “nonsense”, Lacan prefere o “pas-de-sens”, o que se realiza na metá-
od V
fora. Ora, a metonímia apoia-se na medida comum, no valor de troca dos
aut
objetos na linguagem, no discurso estruturado socialmente. Ao passo que
a metáfora é o que, apoiando-se nos restos, nos vestígios desta operação de
equalização, introduz o “pas-de-sens”.
R
“Tomar um elemento no lugar onde ele se encontra e substituí-lo por outro
[...] quase por qualquer um”, tal é o fundamento da operação poética de uso
o
das palavras para além do sentido socialmente partilhado, para além dos usos
aC
consuma para o sujeito” (p. 104). Ao fim do processo temos uma positivação do
pouco-sentido, tornada possível pela negação relativa do sentido socialmente
partilhado. Não é por outra razão que Lacan (1953/1998), recomenda aos ana-
listas “uma profunda assimilação dos recursos da língua, e especialmente dos
par
11 Em “Lacan Chinês”, livro o qual indicamos, Cleyton Andrade (2016) se dedica à poética chinesa a partir dessa
notação. No prefácio dessa publicação, Antônio Teixeira lembra que o chinês é uma língua que porta uma
“indecidibilidade estrutural” (p.23). Lacan estudou chinês no início dos anos 40, chegando a ser diplomado
pela Escola de Línguas Orientais. Depois de um longo intervalo, retomou seus estudos com François Cheng,
chegando a afirmar que não teria sido lacaniano se não houvesse se dedicado esse estudo da língua chinesa.
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 135
or
visa um gozo, relacionado ao sentido, o que Lacan nomeou de sens jouit (sen-
od V
tido gozado ou sentido-de-gozo). Esse gozo, entretanto, por ser elaborado na
aut
multiplicidade de sentidos do poema, também funciona como um certo limite
ao “domínio das pulsões e o império das paixões”. Ele lembra da invenção do
amor cortês, que culmina com “A divina comédia de Dante” e que inaugura
R
uma certa tradição na maneira de cantar o amor. A poesia de Dante inventa
não apenas um novo sentido para ele experimentar o amor, como também
o
funciona como “um modo de suplência à relação sexual (que não existe, diz
aC
Lacan) para toda uma civilização”. Ou seja, essa invenção transmite algo que
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seu encadeamento, tal como ocorre com o poema, na visão de Valéry quando
se elimina a voz e ele se transforma numa sequência de sinais.
Destacamos a última frase do relato “Deixar-se escrever” de Maria Jose-
fina Fuentes (2015), Pepita, que chega à análise agarrada a sua posição de
fazer-se abandonar, sustentada pela significação fantasmática de que pepas12
par
servem para serem jogadas no lixo. É a seguinte: “como o mar não se esvazia,
e o amar não se liquida, resta um a-mar como destino, um modo de dizer de
Ed
no voz/vos, que podemos concluir esse texto, indicando que a solução ofertada
pela psicanálise diante das reconfigurações do imaginário no século XXI é a
s
12 Pepa é o nome do caroço da fruta e o apelido de Maria Josefina, em espanhol, língua em que na infância ouviu
sua avó dizer, ao comer uma fruta: “você sabe para que servem as pepas? [...] Para jogá-las no lixo” (p. 237).
136
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ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
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od V
o aut
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INSÍGNIAS IDENTITÁRIAS
E AS PSICOPATOLOGIAS
CONTEMPORÂNEAS
or
od V
Flavia Lana Garcia de Oliveira1
aut
Resumo: É notória a tendência à transformação de transtornos alimen-
R
tares em insígnias identitárias na sociedade atual. Como associar o hipe-
rindividualismo pós-moderno à eleição de um modo de gozo supostamente
o
homogêneo que é capaz de reunir um grupo em torno de uma causa monos-
aC
sintomática, como a anorexia, a bulimia ou a obesidade? Qual é a verdade
desta causa que não inclui o sujeito, mais uma relação fortemente refratária
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pós-modernidade.
a re
or
tomatic cause, such as anorexia, bulimia or obesity? What is the truth of this
od V
cause that does not include the subject, but a relationship strongly refractory
aut
to the traditional symbolic order? This article discusses the contemporary
discursivities that disavow the symbolic law and foment weak explanations
for the logic of castration, as well as other characteristics of the postmodern
R
psychic type that go together with its melancholic state.
Keywords: eating disorders; psychoanalytic psychopathology;
o
postmodernity.
aC
diversas redes virtuais, tais como Facebook, Instagram e WhatsApp. Não menos
a re
seu cerne a crença na potência paterna como uma explicação exitosa para
o arrefecimento da insaciabilidade pulsional infantil. Ao encarnar a função
de agente da castração, o pai submete o excesso pulsional à norma fálica na
trama simbólica das relações de parentesco e da partilha sexual. O repertório
de condensações e deslocamentos cifra as exigências primárias de satisfação,
indicando a presença de um conflito psíquico, com a operatividade de uma
força interditora que domina as inclinações ao incesto e ao parricídio. Por esta
or
razão, o sintoma tende a ser tomado como um corpo estranho, como algo que
od V
contraria a imagem idealizada que o sujeito tem de si mesmo.
aut
Miller (1998) define o sintoma como “um aparelho para situar o pequeno
objeto pequeno a, essa parte elaborável do gozo” (p. 16). Sua base fantas-
mática anuncia que se trata de uma mediação entre o sujeito e o gozo por
R
intermédio da significação do Outro. A emergência do sintoma neurótico se
enraíza em um apelo ao pai, na medida em que supõe no Outro o lugar simbó-
o
lico de possuidor do tesouro da multiplicidade das combinações significantes.
aC
Denuncia a verdade inconsciente do sujeito moderno, dividido, emancipado
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or
que é seu sintoma dá espaço à tutela anônima dos mestres pós-modernos – o
od V
mercado e a informação midiática – assistiríamos à emergência de defesas
aut
muito mais ferozes e precárias diante do que se apresenta como real sem
sentido, difícil de estancar e de se esquivar?
Além disso, Coelho dos Santos (2014) indaga:
R
Os nomes universais do real são ainda a morte, o sexo e o desamparo? Ou
o
são nomes mais particulares e deveríamos perguntar o que é que para cada
aC
ser falante, em sua anormalidade ou seu sintoma, configura um real trau-
sas questões clínicas [...] é preciso “lançar um olhar por sobre o muro narcísico”
(Freud, 1917/1996d, p. 494). No texto freudiano, a categoria clínica das neuroses
narcísicas surgiu para designar a melancolia, cuja especificidade é entendida como
ão
com a herança simbólica transmitida por seu grande Outro. Articularemos esta
ver
questão da relação ao grande Outro, buscando situar como esta pode ser uma
chave importante para elucidar como um sintoma, ao invés de suscitar mal-estar,
pode se tornar protagonista de uma militância no espaço público junto a pares.
Em pesquisa já publicada anteriormente, demonstramos que grande parte
dos casos de transtornos alimentares é marcada pelo que se pode denominar
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 145
or
confrontado com a castração, o eu, em sua debilidade na interpretação da falta
od V
como desejo, se exaure em um estado melancoliforme de apego extremo e
aut
voraz ao objeto. Surgindo daí uma aguda experiência de desamparo, aban-
dono e o ódio do Outro por tê-lo deixado. Permanece aguerrido à crença de
ter sofrido, como assinala Freud (1917/2010b, p. 180), uma “real ofensa”. Ao
R
não querer abrir mão da expectativa de um retorno ao estado anterior em que
acreditava na existência do Um como suplência à ausência da relação sexual,
o
o sujeito se distancia do Outro do desejo, do Outro do amor, tesouro dos signi-
aC
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que emana do Outro parental em direção à criança. Sem esses processos psí-
ver
or
Santos, 2017; Coelho dos Santos & Oliveira, 2018; Oliveira & Coelho dos
od V
Santos, 2018). Proponho uma releitura agregada com novos elementos de
aut
dois aspectos cruciais para os quais somos relançados neste conjunto de pro-
posições: as discursividades contemporâneas que desmentem a lei simbólica
e fomentam explicações deficitárias para a lógica da castração, assim como
R
outras características do tipo psíquico pós-moderno que se conjugam ao seu
estado melancoliforme.
o
aC
or
o campo da sobrevivência, empobrecendo o registro amoroso da demanda,
od V
o qual se encontra cada vez mais contaminado pelo imperativo da descarga
aut
imediata da pulsão pelo consumo dos objetos ventilados pelo mercado.
No entanto, como indica Lipovetsky, o capitalismo é menos um ogro
que devora seus próprios filhos, e muito mais um Jano de duas faces (Lipo-
R
vetsky & Serroy, 2015). O indivíduo autônomo é o tipo clássico de subje-
tividade burguesa inspirada pela ética protestante, cujos princípios básicos
o
são a responsabilidade e a iniciativa individual. A satisfação interior de ter
aC
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apontar para a pertinência de Deus como um gênio maligno, cujo lugar lógico
ver
or
quia e de micropoderes que incumbem os próprios sujeitos do dever ético do
od V
domínio de si. Se servem da referência a um Outro, agora estruturalmente
aut
simbolizado no mundo interno de cada um e atualizado nas contingências da
cena social, como princípio regulador por excelência.
R
Lacan (1964/1998) situa a afinidade de estrutura do lugar psíquico ocu-
pado pelo Outro como referência ao que foi assentado pela tradição judaico-
o
-cristã ao observar que Deus é inconsciente. No ano de 1966, em “A ciência
aC
e a verdade”, indica que à psicanálise cabe reintroduzir o Nome-do-Pai na
nal. Como indica Freud (1940/1996f, p. 220), citando Goethe: “Aquilo que
Ed
que penetram no laço social. Trata-se de um quiasma que reúne uma série
de efeitos discursivos que parecem fermentar uma modalidade de laço com
o Outro seguindo os critérios de uma nova moralidade que configura uma
s
or
de camadas da sociedade se mesclou com a reivindicação ao direito absoluto
od V
ao gozo. Para Lacan, os febris movimentos de Maio de 1968 implicavam uma
aut
transformação estrutural do tecido social e simbólico da Europa moderna. Por
isso, ele rejeitou ter seu ensino utilizado com fins políticos. Pelo contrário,
R
encorajou a psicanálise como barreira simbólica contra o ativismo extremado.
Em seu conservadorismo esclarecido, considerava que a verdadeira revolução
o
era a psicanálise freudiana e que a agitação esquerdista só poderia levar à
aC
restauração do despotismo (Badiou & Roudinesco, 2012).
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or
od V
[...] é preciso que os ideais tradicionais da moral, do patriotismo, da reli-
aut
gião, mas também das convenções do gosto, as formas antigas de repre-
sentações etc não lhe sirvam mais de obstáculo, cedendo papel principal
na reestruturação da vida individual e coletiva. O sonho do capitalismo
R
moderno é que o consumidor não tenha mais dentro da cabeça nenhum
valor superior ou simplesmente estável que possa servir de obstáculo a que
o
ele se sinta permanentemente tomado pela vontade irrefreável de comprar
aC
um novo “objeto de desejo” (p. 201).
obesidade? Qual é a verdade desta causa que não inclui o sujeito, mas uma
ver
or
quanto puder esse “lucro narcísico” vindo do outro. Do outro lado da moeda,
é parasitado pelo sentimento de vazio, de perda de identidade interna sem
od V
esse pacto de conexão simbólica. Uma das apresentações desse “Grande Eu”
aut
narcisista se articula à narrativa do “culto da autenticidade”: O indivíduo deve
jogar fora as “máscaras”, “papéis sociais alienados” e “regras repressoras”,
R
a fim de abrir a porta para seu “verdadeiro Eu”. Seria então o apelo ao trans-
torno alimentar como uma insígnia identitária uma tentativa de fabricação de
o
uma parceria sintomática que se alimenta de uma nova gratificação narcísica?
aC
Coelho dos Santos (2016) acrescenta um refinamento metapsicológico
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or
um questionamento incisivo acerca dos ganhos da razão, da ciência, da téc-
od V
nica, da burguesia mercantil e do culto ao futuro pragmático. Esse mal-estar
aut
desdobrou-se no culto da noite, do amor impossível, do passado, da natureza,
da vida simples, dos sentimentos, das intuições, do mistério da alma, do caos
e de tudo o que os românticos entendiam como oposto ao “terror” das luzes,
R
do dinheiro, da produção em série e da vida utilitária.
No plano político, durante o século XVIII, Rousseau se tornou o pio-
o
neiro das utopias anticapitalistas. Deste filósofo partiu o pressuposto de um
aC
or
impede o próprio acesso à ordem do saber marcada pela interpretação de uma
od V
falta de gozo como desejo.
aut
Nosso leque de crenças e princípios se estabiliza graças a processos
discursivos que nos antecedem e que exigem de cada sujeito um sofisticado
trabalho psíquico. Segundo Lacan (1962-1963/2005), a extração do objeto
R
a é a condição para que a realidade seja enquadrada segundo os marcadores
simbólicos da cadeia da linguagem. Trata-se da emergência de uma nova
o
interpretação, que metaforiza a falta de objeto e aponta para novas parcerias
aC
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possíveis nos níveis do amor e do trabalho. Para que esse passo seja dado, é
preciso que o semblante paterno se torne alvo privilegiado da atração libidi-
nal, isto é, que o grande Outro que agencia o discurso seja legitimado como
uma exceção veiculadora do patrimônio simbólico da civilização. A pós-
visã
-modernidade demonstra a frágil manutenção dessa crença organizadora na
construção perceptiva do laço social e conduzindo à sua desrealização. Freud
(1924/1996e) ensinou que uma drástica rejeição da castração custa a perda
itor
rótico a respeito do que ele é para o Outro que o ampara. Em uma época
em que prevalecem o desmentido generalizado, talvez estejamos avistando
montagens sintomáticas perversas que visem estancar uma angústia mais
violenta, a angústia psicótica. Não seriam as insígnias identitárias “novos
154
or
essa linha de investigação, poderíamos conjecturar, então, que não se trata
od V
exatamente de expressões psicopatológicas da inexistência do Outro na
aut
contemporaneidade, mas de uma avidez em mantê-lo exatamente como o
capitalismo de consumo procura forjá-lo: um Outro a quem nada falta, que
é, ao mesmo tempo, gozador e devedor de gozo.
R
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aC
Miller, J.-A. (2008). El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
or
Douglas Nunes Abreu1
od V
aut
Resumo: Abordamos neste trabalho o conceito de borderline à luz da
psicanálise. Procuramos acompanhar a constituição e evolução do termo,
articulando esse percurso com as três estruturas clínicas propostas por Freud
R
e renovadas por Lacan: neurose, psicose e perversão. Para além do desenvol-
vimento de terapias biológicas a partir da década de 1950, que facilitaram as
o
construções defensivas e promoveram estabilizações psicóticas, destacamos,
aC
com Maleval, dois grandes fatores que parecem lançar luz sobre o fenômeno:
a restrição considerável no campo da histeria e a incompreensão da estrutura
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
que comporta uma afinidade de estrutura com o terreno narcísico, das novas
configurações do imaginário, que a temática dos borderlines explicitará ao
longo de toda argumentação.
Palavras-chave: borderline; psicanálise; psicopatologia; estruturas clí-
par
1 Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFSJ – Universidade Federal de São João del Rei –
MG. Membro do NUPEP – Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise. Membro do ISEPOL – Instituto
Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana. E-mail: dnabreu@gmail.com
160
or
la société actuelle, une proposition qui présente une affinité structurelle avec le
od V
terrain narcissique, les nouvelles configurations de l’imaginaire, que le thème
aut
des borderline expliquera tout au long du processus de chaque argument.
Mots-clés: borderline, psychanalyse, psychopathologie, structures cli-
niques, narcissisme, imaginaire.
R
Through structural limits: new configurations of the imaginary
o
and borderline cases
aC
tural status and introducing them into the circuit of borderline cases. Finally,
we intend to dialogue with Coelho dos Santos’ thesis on the mechanism of
Ed
Introdução
ver
or
consequentemente, no campo da psicopatologia (Coelho dos Santos, 2015).
od V
Maleval (2000), num interessante artigo intitulado Why so many border-
aut
lines?, observa o aumento da prevalência dos diagnósticos de borderline nesta
mesma década, a partir dos anos de 1970, com apresentação de quatro carac-
terísticas fundamentais, de acordo com Grinker (1968)2: agressividade e ten-
R
dência à ira; problemas com relações afetivas, que são anaclíticas, dependentes
ou complementares, mas raramente recíprocas; problemas com a identidade;
o
sentimentos de depressão, não melancólicos, mas mais relacionados a uma
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
2 Tradução nossa.
162
or
Já no Manual de Transtornos Mentais da Associação Norte-Americana
od V
de Psiquiatria – DSM-5, encontramos a seguinte definição para o transtorno
aut
de personalidade borderline (301.83): padrão difuso de instabilidade nas rela-
ções interpessoais, na autoimagem, na percepção de si mesmo e acentuada
impulsividade. O diagnóstico é realizado pela presença de cinco ou mais
R
dos seguintes sintomas: esforço desesperado para evitar abandono real ou
imaginário; relacionamento interpessoal instável e intenso, com extremos de
o
valorização e desvalorização; perturbação na identidade, na autoimagem e/ou
aC
or
Segundo Maleval (2003), a publicação do DSM-III marcou um ponto de
virada histórica na psiquiatria, visando a rejeição de qualquer sistema explica-
od V
tivo, especialmente o discurso psicanalítico que naquele momento influenciava
aut
de maneira significativa o campo da psicopatologia. Curiosamente, evidencia-
-se, ao contrário, a absorção da proposta dos borderlines, que foi justamente
R
delineada no esteio da psicanálise pelos analistas pós-freudianos, e incorporada
com todo vigor no manual norte-americano de avaliação diagnóstica.
o
Para Laurent (2000), a explicação deste fenômeno assenta-se no laço
aC
íntimo entre os sistemas classificatórios e a cultura de um determinado tempo e
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lugar. Para ele, o diagnóstico de borderline tem uma importância específica nos
Estados Unidos, exatamente por ser uma civilização que cultua o nominalismo,
que se renova a cada nova expressão cunhada pela ciência, pelas religiões
visã
e pelos mais diversos discursos. O individualismo democrático americano
comporta o direito de não fazer parte de categoria alguma:
itor
or
cesso promovido pelos teóricos que se dedicaram ao tema dos borderlines.
od V
O autor destaca que as perversões também foram reduzidas de seu estatuto
aut
estrutural e introduzi-las no circuito dos casos limítrofes. Seguiremos a
linha proposta, tomando as estruturas clínicas como referenciais para com-
preender as fronteiras, as bordas, que o termo borderline implica. Por fim,
R
pretendemos dialogar com a tese de Coelho dos Santos (2016) sobre a o
mecanismo do desmentido como uma tópica da sociedade atual, proposta
o
que comporta uma afinidade de estrutura com o terreno narcísico que a
aC
or
geral no tocante aos transtornos de personalidade, mas tratados de forma
od V
psicanalítica.” (Coelho dos Santos & Bogochvol, 2017, p. 213). Nesta linha,
aut
o autor aproxima os transtornos de personalidade às apresentações atuais das
neuroses, alinhando os com a noção de neurose de caráter.
Continuando, Coelho dos Santos & Bogochvol (2017), elucidando o
R
terreno freudiano em que se assentaria essa distinção:
o
Nas neuroses clássicas, o sintoma é uma formação substituta, constituída
aC
por meio do ciframento do desejo infantil, a partir do recalque que incide
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
segundo, pela via das formações reativas produz uma inibição generalizada
ou um empobrecimento econômico, limitando a flexibilidade das respostas,
aumentando a rigidez no comportamento. Quanto à técnica, o autor sugere a
necessidade de reformulações, indagando se este tipo de paciente seriaou não
acessível ao método tradicional da interpretação, sugerindo tomar a própria
166
or
que tanto Anna O. como Emmy Von N. não se encaixariam no diagnóstico
od V
de histeria, afirmando que ambas seriam casos severos e concluindo pelo
aut
diagnóstico de esquizofrenia. Ao conceituar a histeria a partir dos sintomas
conversivos e dos desejos edipianos não resolvidos, argumenta que estas duas
pacientes apresentam conflitos sexuais persistentes ao nível fálico ou genital,
R
indicando uma fraqueza do Ego, desconsiderando que fixações orais poderiam
ser encontradas em algumas apresentações histéricas, sem maior importância
o
nos sintomas conversivos. Maleval (2000) resgata outra obra de Reichard
aC
gia psicanalítica. Outro autor que segue na mesma argumentação é Krohn, que
em 1978, apresenta uma modalidade de neurose que se esvai, ou seja, tipos
não puros de histeria, cuja atitude diante das interpretações do analista eram
ão
o ponto central que diferenciaria para estes autores a histeria freudiana dos
casos limítrofes é a noção de excesso, ou seja, encontramos nestes pacientes
uma fraqueza do Ego acentuada, regressões libidinais mais acentuadas e sinto-
matologias mais ricas. Esta configuração produziria problemas de identidade,
tendência a atuações e impulsividade, bem como fenômenos senso-percepti-
vos, como as pseudos-alucinações e ilusões passageiras.
Na década de 1970 dois autores podem ser considerados como referen-
or
ciais para o novo campo dos borderlines ou dos casos limítrofes. Nos EUA,
od V
Kernberg (1975) desenvolve um amplo estudo sobre o tema, o conceituando
aut
como uma organização psicopatológica que não é tipicamente neurótica e nem
tipicamente psicótica. Na França, Bergeret (1975) também desenvolve um
importante estudo, colocando ênfase nos sintomas depressivos, que seriam
R
os mais característicos, e sempre correlacionados a situações de dependência
e influência do ambiente externo. Apesar de discordarem em vários aspec-
o
tos, concordavam sobre a necessidade de adaptação do método analítico:
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
fui interpretado por Bergeret como um caso limítrofe por dois motivos: não
apresentar sintomas conversivos e pela presença da depressão constante. O
curioso, aponta Maleval, é que as apresentações da paciente eram bastante
compatíveis com as descritas por Freud para sistematizar a neurose histé-
par
ela possa reinar sobre ele. Analisando o caso, até a cena de sedução infantil
ver
estava presente no caso, fato príncipe?? para Freud desenvolver suas primeiras
construções sobre a histeria. Diante desta incongruência, Maleval destaca que
os métodos aplicados na paciente, oriundos da psicologia do Ego, dando mais
ênfase ao fortalecimento do Ego do que à análise das fantasias, bem como a
168
noção de aliança terapêutica que acabava por deslocar-se para uma posição
de domínio diante do paciente, estariam na base das reações negativas no
tratamento, incidindo no insucesso ou levando ao abandono deste. Conclui,
então, que a não adaptação aos métodos propostos pelos pós-freudianos da
psicologia do Ego seria a razão central para deslocar o diagnóstico de histeria
para a nova categoria borderline.
or
Nos limites da psicose
od V
aut
A descoberta dos neurolépticos, geralmente obtendo sucesso na redução
dos delírios, alucinações e distúrbios, modificou profundamente a sintomato-
R
logia psicótica, de modo que o número de pacientes tratados fora do hospital
aumentou consideravelmente. O acento colocado sobre a questão dos estados
limítrofes foi transposto: enquanto os primeiros autores se basearam nos limi-
o
tes das neuroses, diante das dificuldades encontradas no tratamento analítico,
aC
clínico de histeria, apesar de sua proximidade com ela: não havia conversões,
não apresentava as inibições e as restrições próprias da histeria, também não
se apresentava em estado de bela indiferença. Ao contrário, seu principal
problema era a insubmissão, uma personalidade rebelde.
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 169
or
pacientes muito graves, que haviam passado algum tempo em instituições
od V
de tratamento, que levaram a graves consequências no curso de suas vidas.
aut
O caminho de Freud destaca sua preocupação em realizar um diagnóstico
diferencial entre as psicoses e o ramo do qual se ocupou para construir o
método psicanalítico, as neuroses histéricas. Maleval (1981) propõe a reabi-
R
litação do termo loucura histérica diferenciando o delírio histérico e visando
exatamente elucidar a fronteira diagnóstica entre a neurose e a psicose que
o
as terminologias borderline tendem a evitar. Para Maleval, o delírio histérico
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Maleval apresenta o caso de María, uma jovem que iniciou seu tratamento
analítico após episódio de delírio e loucura pelo qual permaneceu internada
em hospital psiquiátrico. A paciente menciona, em uma de suas sessões, que
s
“Meu pai era uma teoria!”, e chama de depressão o que a levou à internação
ver
or
das interpretações acerca da categoria borderline, primeiramente creditada
od V
a uma imperícia diagnóstica, que no fundo trataria de histerias graves (lou-
aut
cura histérica); a seguir compreendida como caso atípico de psicose (psicose
ordinária). Se de um lado, na trilha inaugurada por Freud, a reabilitação do
conceito de loucura histérica visou a problemática de casos em que erronea-
R
mente histéricas graves eram diagnosticadas como psicóticas; de outro se
colocava a dificuldade em compreender os casos de psicose em que as feno-
o
menologias típicas da loucura não se apresentavam, tais como alucinações
aC
(2000) destaca que esta incompreensão configura outro fator para a expansão
a re
or
extraordinárias, por gente que conseguia realmente um êxito ressonante.
od V
[...] enquanto que aqui temos psicóticos mais modestos, que reservam
surpresas, mas que podem fundir-se em um tipo de média: a psicose com-
aut
pensada, a psicose suplementada, a psicose não-desencadeada, a psicose
medicada, a psicose em terapia, a psicose em análise, a psicose que evolui,
R
a psicose sinthomatizada – se me permitem. A psicose joyciana é discreta,
à diferença da obra de Joyce (Miller, 2009/2010, p. 200).
o
A temática foi amplamente discutida na série de conversações sobre casos
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
cose ordinária por ocasião das conversações teve como objetivo introduzir a
clínica do real nas discussões cristalizadas na lógica da presença ou ausência
s
sentadas por Lacan em seu último ensino. Em resumo, Maleval (2003) aponta
três características fundamentais que orientam o diagnóstico da psicose, de
acordo com cada momento da psicose em Lacan, sempre marcadas pelo nar-
cisismo: prevalência de identificações imaginárias, fruto da não incidência
metafórica engendrada pelo Nome-do-Pai; índices de não extração do objeto
172
or
Nos casos ditos borderline, se diz que não parecem ser nem uma psicose
od V
nem uma neurose. Não cremos nisso. A categoria da psicose ordinária se
aut
origina da prática, das dificuldades práticas. Se vocês não reconhecem uma
neurose e se não há sinais evidentes de psicose, procurem os pequenos
sinais. É uma clínica dos pequenos indícios de foraclusão. Por exemplo, na
R
breve lista de pequenos sinais que apresentei, vimos que uma identificação
social ao trabalho é normal. Mas uma intensificação da identificação com
o
o trabalho pode indicar outra direção. É uma clínica da tonalidade. É o uso
disso. Mas a psicose ordinária deve ser redutível a uma forma clássica de
aC
traponto a tese de Wilhelm Reich (1925) que concebia esses quadros como
a re
Elfakir (1997), segue a linha das reduções das estruturas clínicas promo-
vidas pelos teóricos que se dedicaram à temática borderline, destacando que o
Ed
or
de caráter nomeados estados-limítrofes. Estes arranjos se dividiriam a partir
od V
das formas psicopatológicas clássicas como: neuroses de caráter, psicose de
aut
caráter; e finalmente, perversão de caráter.
Quanto às neuroses de caráter, Elfakir (1997) afirma que Bergeret as
diferencia do campo das neuroses de transferência e as aproxima do campo dos
R
estados-limítrofes, visto que nas primeiras verifica-se o conflito entre o Isso
e a realidade externa, e nos casos limítrofes o que se evidencia é o caráter de
o
incompletude narcísica, que relança o sujeito na busca por uma instabilidade
aC
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o campo da realidade, e não uma negação a realidade como ocorreria nas psi-
a re
or
Eu e de desmentido da castração foram retomados pela psicologia do Ego
od V
desconsiderando o histórico do conceito de perversão em Freud.
aut
No que tange à perversão e ao conceito de borderline, Coelho dos Santos &
Camargo (2012) apontam que Lacan, no Seminário: A angústia (1962-63/2005),
embaraçado com o caso do Homem dos Lobos, utilizou o termo borderline,
R
na aula de 19 de outubro de 1962. Dunker (2017) verifica divergências entre
traduções nessa passagem em que Lacan faz um comentário sobre este caso
o
emblemático na história da psicanálise. Na tradução de Jacques-Alain Miller,
aC
rôle que les loups jouent pour ce cas border-line qu´est L´Homme aux loups,
ici des signifiants”. Como também a versão brasileira, traduzida pelo Centro de
Estudos Freudianos de Recife: “Cumpre um papel que os lobos desempenham,
neste caso borderline que é o caso do homem dos lobos”.
par
Coelho dos Santos & Camargo (2012) retomam o caso do Homem dos
lobos, atendido por Freud em 1914, período de importância capital no desen-
Ed
or
ainda no campo da neurose? Essa hipótese nos afastaria do diagnóstico de
od V
psicose e nos aproximaria do diagnóstico de perversão homossexual? Em
aut
se tratando de perversão caberia, neste caso, distingui-la da perversão pro-
priamente dita para somente abordá-la no campo das fantasias perversas do
neurótico?” (op. cit., p. 486).
R
Retomando as construções conceituais de Freud sobre o Édipo invertido e
a função do fetiche na perversão, as autoras sugerem que a abordagem do caso
o
do Homem dos Lobos pela via do desmentido pode elucidar não apenas o caso
aC
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resultado uma divisão do Ego, uma fenda que ao invés de permitir a função de
síntese do Eu, o induz a uma clivagem. Um destaque importante proposto por
Ed
Coelho dos Santos & Camargo (2012) acerca desta construção freudiana da
clivagem do Eu, diz respeito ao caso citado por Freud neste último texto que
nos referimos, o qual elas acreditam ser o caso do Homem dos Lobos (mesmo
ão
or
atuais, onde toda forma de organização civilizatória, entendida agora como
od V
repressão, deve ser recusada ou desmentida, que caminha para uma a suposta
aut
possibilidade radical de todos serem tratados como exceção. Poderia a tese
do desmentido banal orientar a compreensão dos sintomas descritos ao longo
desde trabalho, marcados pelo narcisismo e pelas inscrições tênues da signi-
R
ficação do falo e da lei paterna?
o
Considerações finais
aC
or
fato que eles constituam uma síndrome objetiva, ou um tipo clínico confiável.
od V
Porém, as estruturas freudianas, renovadas por Lacan, constituem um ponto
aut
de partida fundamental para verificação a cada caso. Nesta linha, parece-nos
prudente sugerir que o diagnóstico de borderline possa ser compreendido com
a mesma referência que Lacan (1962-63/2005) utiliza para pensar a fobia, uma
R
espécie de placa giratória, ou, um instante de ver (Lacan, 1945/1998), que
deve levar em conta a lógica estrutural e seus conceitos, bem como a leitura
o
da lógica de funcionamento da civilização atual.
aC
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visã
itor
a re
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Ed
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ver
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Ed
s ão itor
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PARTE III
visã R
od V
o
aut
FEMININO E FEMINISMOS
or
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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O IDEAL DE IGUALDADE NA
PÓS-MODERNIDADE: liberdade
democrática ou direito ao gozo?
or
od V
Fernanda Oliveira Queiroz de Paula1
aut
R
Resumo
o
O presente artigo tem como objetivo refletir sobre do que o ideal da
aC
igualdade na contemporaneidade está a serviço. Somos todos livres e iguais?
Pode o ideal da igualdade, funcionar, paradoxalmente, ou não, como uma
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segregação e intolerância.
Palavras-chave: ideal de igualdade; democracia; real impossível; dis-
Ed
curso do capitalismo.
ou droit a la jouissance?
s
1 Doutora e Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Docente da Suprema – Faculdade de Ciências Médicas
de Juiz de Fora – MG. Membro-Ajunto do ISEPOL – Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação
Lacaniana. E-mail: feoqp@yahoo.com.br
186
or
comme un droit à la liberté. Je constate ainsi, que cette reconfiguration de
od V
l’imaginaire de l’idéal d’égalité conduit aujourd’hui à ce que l’on veut éli-
aut
miner: la ségrégation et l’intolérance.
Mots-clés: idéal d’égalité; démocratie; réel impossible; discours
du capitalisme.
R
The ideal of equality in post modern times: democratic freedom
o
or right to enjoyment?
aC
Introdução
s
or
cunhado por Jacques Alain-Miller (2005/2004), de que não há clínica do
od V
sujeito sem clínica da civilização.
aut
Refletiremos essas questões à luz da psicanálise de orientação lacaniana,
através de uma revisão bibliográfica que aborda as configurações do ideal de
igualdade e da democracia da modernidade à pós-modernidade. Desenvolve-
R
remos nossa hipótese de que na pós-modernidade há uma vertente do ideal de
igualdade que passa a ser agenciado pelo discurso capitalista contemporâneo,
o
acarretando o rebaixamento da sua dimensão alteritária e a promoção de
aC
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#Somostodosiguais
ão
da civilização”. Contudo, quanto mais esse ideal caminha rumo a uma univer-
salização e a uma uniformização, mais segrega o que é da ordem do singular:
o laço de filiação entre o sujeito e o desejo do Outro, que do ponto de vista
da psicanálise não é anônimo, livre, eliminável e igual para todos. Ou seja, o
ideal da igualdade visa operar como uma “utopia comunitária”, almejando o
bem comum a todos. Mas, consequentemente, promove um empuxo à homo-
geneização entre os indivíduos e o apagamento da nossa condição estrutural
or
de desamparo que nos coloca em uma sujeição arbitrária e imprescindível
od V
de sermos fundados no campo da fala e da linguagem do Outro, isto é, pelo
aut
Outro. Segundo Miller (1993/2007), a língua falada por cada um de nós dá
testemunho de um laço com a família, na medida em que a língua que falamos
– nossa língua materna – é sempre a língua que alguém falava antes de nós.
R
Sendo assim, o autor afirma que, em psicanálise, o lugar do Outro da língua se
encarna nos assuntos de família no inconsciente. Isso implica segundo Coelho
o
dos Santos (2016a) uma revisão da afirmação de que na contemporaneidade
aC
pós-modernidade, mas verificamos que não opera mais como um ideal comu-
ver
or
gozar, de amar, de desejar e de viver a vida. Assim sendo, quando envolvido
od V
nessa roupagem, o ideal da igualdade fomenta a crença máxima do capitalismo
aut
de consumo, de que “tudo é possível” e de que é preciso gozar sem limites,
a qualquer preço, a qualquer custo.
Nesse contexto, testemunhamos uma confusão entre a liberdade demo-
R
crática e a reivindicação do direito ao gozar de tudo, mesmo que esse gozo
implique rebaixar o outro a um objeto mercadoria. A liberdade democrática,
o
por sua vez, almeja em seu horizonte a utópica inclusão de todos, bem como
aC
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or
acaba operando como um culto ao ego, à crença de que o ego é o senhor
da sua própria casa (Freud, 1917/1996), suprimindo o lugar do enigma, da
od V
poiesis, do inconsciente.
aut
Outra consequência engendrada pela reconfiguração imaginária do ideal
da igualdade na atualidade é a ascensão da relação dual e do reconhecimento
R
especular entre os indivíduos. Disso decorre outro paradoxo, ou não. Nessa
vertente, o ideal da igualdade ao tentar eliminar as singularidades, ao invés
o
de promover uma formação de compromisso entre o singular e o para-todos,
aC
acaba por engendrar na subjetividade contemporânea a crença do “direito
entre os sexos passam a serem interpretadas como uma relação entre opresso-
res e oprimidos, quando sabemos que nem toda relação constituída por uma
dissimetria simbólica é da ordem da dominação, da repressão e da opressão.
s
or
políticas, econômica e social (Coelho dos Santos, 2001). A fé religiosa, de
od V
acordo com Coelho dos Santos (2001), torna-se um assunto de consciência
aut
individual reconfigurando profundamente a relação dos indivíduos com o
saber e a verdade.
O âmago dessas transformações, segundo Lacan (1965-66/1998), que
R
promoveu a ruptura entre o mundo antigo e a modernidade, foi o advento da
ciência moderna que destrona o sentido religioso como a fonte de explicação
o
da vida e fomenta a razão e a formalização matemática como a única fonte
aC
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outros meios, apostando nos poderes da razão. Acreditar na razão não seria
equivalente a acreditar em Deus?” (Coelho dos Santos, 2013, p. 306).
De acordo com Lipovetsky (2004), com advento do pensamento cientí-
fico, a razão predomina e é atribuída a princípios independentes de doutrinas
192
or
com o autor, encontramos essa nova moralidade nas ideias dos pensadores que
od V
emergiram com o pensamento científico, tanto em Voltaire, quanto em todos
aut
os jusnaturalistas (Locke, Rousseau, Hobbes), como também na Crítica da
Razão Prática de Kant. A moral das luzes é colocada acima da religião, pro-
porcionando que os deveres em relação aos homens se tornassem primordiais,
R
em detrimento dos deveres para com Deus. Contudo, essa transformação só
foi possível, como afirma Forbes (2012), graças à generalização e laicização
o
da moral cristã.
aC
De acordo com Miller & Milner (2006), a democracia era o lugar geo-
métrico da lei, isto é, comportava um limite, portanto, um impossível. Os
direitos nessa modalidade de democracia, relativa à política clássica, eram
s
or
Como afirmam Miller & Laurent (2005/1996-97) na modernidade o sig-
od V
nificante Nome-do-Pai ainda prevalecia como significante do Outro. Apesar
aut
da morte do pai oracular (Deus), o laço social moderno ainda contava com
os semblantes da hierarquia geracional e da diferença sexual como suportes
identificatórios e civilizatórios. A lei do pai continua vigorando depois de
R
morto como símbolo, conforme Freud (1913[1912-13]/1996) demonstra em
seu mito Totem e tabu. O estatuto da identificação na época vitoriana contava
o
com a política do ideal do eu no governo dos laços de família, com base na
aC
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do referente fica vazio. Segundo Coelho dos Santos (2012), o real impossí-
a re
discurso” (ibidem, p. 81). Miller (2012) afirma que a definição do real como
impossível, diz respeito a um impossível de dizer, que é experimentado pelo
Ed
ciência: um sujeito divido, que nada sabe da verdade de sua origem, pois esta
ver
or
– impossível de dizer – o homem constrói ficções para suplementar o seu
od V
desamparo, como o complexo edípico, as fantasias, os sonhos e os sintomas
aut
(Coelho dos Santos, 2012).
Assim, a despeito das transformações proporcionadas pelo racionalismo
e cientificismo, a fé, a ilusão e as ficções persistem. A estrutura discursiva
R
do laço social é fundada em uma alteridade impossível de se eliminada. Isso
implica que, por constituição, o laço social é desigual, marcado por uma
o
segregação de estrutura. A democracia enquanto uma ficção possível para o
aC
or
ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos
inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha
od V
incluída no plano da ‘Criação’” (Freud, 1930[1929]/1996, p. 94-95).
aut
Para Freud (1924/1996) o pai seria o operador responsável no complexo
de Édipo pelo enlaçamento entre as pulsões e as exigências civilizatórias
R
através do recalque dos desejos incestuosos infantis. Esta operação encami-
nhava os sujeitos nas veredas da lei e do desejo, ao propiciar o abandono do
o
investimento libidinal nos objetos edipianos em prol dos objetos disponíveis
aC
na cultura. Em outras palavras, a travessia edípica engendra efeitos subli-
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amor, o interdito paterno diz não ao incesto e sim a outros objetos disponíveis
na cultura. É uma economia psíquica fundada na renúncia e na satisfação em
uma formação de compromisso. Desse modo, vigora na modernidade uma
ão
or
sexual e dos costumes (Coelho dos Santos, 2001).
od V
Os movimentos de maio de 1968 na França se configuraram como movi-
aut
mentos de contracultura, de contestação, que mudaram os costumes: a juventude
afrontou seus pais, as hierarquias e os cânones morais. As relações professor-
-aluno, pai-filho, homem-mulher, foram colocadas sob o crivo do antiautorita-
R
rismo. Embalados pelo slogan “é proibido proibir”, recusa-se qualquer forma de
autoridade, fomenta-se a permissividade, o hedonismo e a libertação da sexuali-
o
dade (Coelho dos Santos, 2001). O resultado dessa injunção – é proibido proibir
aC
segundo a autora, que o operário vai consagrar algumas horas da sua jornada para
trabalhar gratuitamente para o capitalista, de tal modo que sua remuneração será
sempre inferior à sua jornada real (Lustoza, 2008). Esse processo produz o que
Marx nomeou de mais-valia, que é esse valor a mais cedido compulsoriamente
pelo empregado ao capitalista, gerando-o lucro (Lustoza, 2008).
Lacan (1968-69/2008, p. 45) extrai do conceito de mais-valia o conceito
de mais-de-gozar como um efeito do significante e de condição da entrada
or
do sujeito no discurso. Segundo Lacan (1968-69/2008), a renúncia ao gozo
od V
é um efeito do próprio discurso, na medida em que este é estruturado no
aut
campo da linguagem e funciona como aparelho de gozo. De acordo com o
autor (Lacan, 1968-69/2008), a perda de gozo sofrida pelo sujeito engendra
uma recuperação desse gozo em outro nível, sob a forma do mais-de-gozar,
R
como uma entropia própria do funcionamento da linguagem.
Devido a essa homologia entre mais-valia e mais-de-gozar, Lacan (1969-
o
70/1992) afirma que Marx inventou o sintoma, tomando a mais-valia como
aC
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Lacan (1968-70/2008) dirá que o erro de Marx foi achar que poderia eliminar
esse fato, tomando-o como uma ideologia, e não como estrutura.
Na atualidade, o capitalismo deixa de ser acumulativo e torna-se um capi-
talismo de consumo. Lacan (1972) propõe que o capitalismo contemporâneo
par
or
ciamos a era do Outro que não existe, ao contrário. Pela perspectiva da autora,
od V
a lei simbólica e a castração, que divide o sujeito, parecem que são permanen-
aut
temente confrontados, recusados e desmentidos. A autora propõe uma leitura
do conceito de desmentido da castração para abordar o gosto contemporâneo
pelo excesso, que se difere do conceito de recusa (Verleugnung) específico da
R
estrutura clínica perversa. Trata-se de uma denegação banal, que podemos
averiguar na proposição “eu sei, mas mesmo assim”.
o
aC
O ideal de igualdade agenciado pelo discurso capitalista
define-se por seu caráter produtivo. Sendo assim, não se equivale à lei, a um
princípio de separação entre o proibido e o permitido, nem a um dispositivo de
repressão ou restrição. A autora recorda a concepção de norma para Cangui-
lhem (1978 apud Coelho dos Santos, 2014), que não exclui a imutabilidade,
típica da dimensão da lei, mas implica em normatividade. Isto é, implica em
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 199
or
Lacan qualifica esta nova ordem social como “ordem de ferro” (Lacan, 1973-
od V
1974 apud Coelho dos Santos, 2014), pois ela é mais feroz do que a interdição
aut
pelo Nome-do-Pai que dá lugar ao desejo. Coelho dos Santos (2014) adota essa
proposição lacaniana como uma chave de leitura da contemporaneidade e afirma
que no laço social atual ficamos sujeitados à normatividade do supersocial,
R
derivada da multiplicação dos contratos, das normas, dos direitos, que dá lugar
a uma “sociedade do contrato”. Quais as consequências de veicular um sistema
o
de equivalência entre e a lei e o direito na democracia?
aC
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or
de ser substituído e reduzido ao valor de troca.
Além disso, diferentemente da lei, no contrato, segundo Miller & Milner
od V
(2006) o silêncio não é operativo, pois o que não for expressamente dito, esti-
aut
pulado e especificado, seja de maneira negativa ou positiva, não vale. Disso
resulta que ninguém nunca sabe ao certo o que vale e o que não vale, entre o que
R
é dito e o que não é dito, pois no contrato, o que não é expressamente permitido,
não é permitido de jeito nenhum. Além disso, a diferença entre a lei e a norma
o
é que a lei não pode ser multiplicada de maneira ilimitada, enquanto a norma
aC
sim. De acordo com os autores, a lei supõe a dimensão do Outro, enquanto o
or
e do Outro, as marcas subjetivas de cada um e promove uma crença ingênua
od V
de que haveria um laço social sem mal-estar. Disso decorre que os direitos são
aut
confundidos com direito ao gozo. Desse modo, ponderamos que o ideal de
igualdade, quando desvinculado da alteridade da lei ou do real impossível da
castração, que institui que não é possível tudo, acaba por funcionar como um
R
imperativo que promove exatamente o que pretende erradicar: intolerância,
segregação e racismo, em detrimento da liberdade democrática.
o
Como afirma Dufour (2016), quando o Outro falta podemos erigir com
aC
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toda força um tipo de Outro que assegure absolutamente o sujeito contra todo
risco de ausência, ameaçando a subjetivação da castração. Assim, testemunha-
mos que o ideal de igualdade na pós-modernidade acaba por funcionar como
um dispositivo de vigilância paranoico. O que se manifesta como heterogêneo,
visã
como diferente, muitas vezes já é apontado como preconceituoso, violento ou
perigoso (Coelho dos Santos, 2015). A normatividade do supersocial promove
a organização dos grupos de pares em tribos, em torno de uma identificação
itor
Como afirma Coelho dos Santos (2016a) vivemos sob os efeitos libe-
ralizantes e democráticos da Declaração Universal dos Direitos do Homem
(1948). Entretanto, a igualdade e a liberdade entre os homens, nunca reinam
202
absolutas, pois, como elucida a autora (Coelho dos Santos, 2016a) a igualdade
absoluta é impossível porque cada indivíduo é um sujeito do inconsciente e
dá provas disso por meio de um sintoma, que é sempre singular.
A partir desse percurso, constatamos que a ideologia igualitária quando
agenciada pelo imperativo de que “tudo é possível”, nem sempre opera na dire-
ção da igualdade, diminuição da violência e intolerância. Frente a esta, o futuro
das ilusões em relação ao mal-entendido entre as gerações e os sexos seria uma
or
complementariedade ingênua, para a qual o real deixaria de ser insuportável.
od V
Quais as consequências de um ideal da igualdade que denega a dissimetria dos
aut
sintomas, dos gozos, das ficções inconscientes, da geração e dos sexos? Quais
os efeitos subjetivos dessa vertente imaginária do ideal da igualdade? Frente
à segregação estrutural, será a saída paritária e especular a melhor solução?
R
Consequentemente, o que recolhemos na clínica do sujeito e na clínica da
civilização é o empuxo ao posicionamento de exceção e à condição de vítima,
o
como uma bandeira comum, capaz de reunir o quebra-cabeça das diferenças
aC
religiosa do Outro como solução última para o desamparo (Coelho dos San-
tos e Oliveira, 2017). Ao contrário, Freud (1933[1932]/1996) não hesitou
em afirmar o lugar da psicanálise na weltanschauung científica, buscando
diferenciá-la de um sistema filosófico ou uma visão de mundo fechada. Sua
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 203
or
quando ele inverte a demanda convocando o sujeito a escolher como dizer de
od V
si e do seu mal-estar. Freud funda um dispositivo que coloca no cerne da sua
aut
política o direito inalienável da liberdade de expressão, tomando-a, em seu
fundamento, como portadora de um impossível de dizer. Assim, a regra de
ouro da psicanálise funda uma ética, que Lacan (1959-1960/2008) denominou,
R
em seu primeiro ensino, como ética do bem-dizer, que implica o sujeito na sua
fala e no seu inconsciente, responsabilizando-o por suas escolhas, renúncias
o
e modos de satisfação. Como afirma Lacan, o analista dirige o tratamento e
aC
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não o paciente (Lacan, 1958/1998, p. 586). Coelho dos Santos (2001) elucida
que, considerando-se que o sujeito que fala não é livre em suas relações ao
objeto do seu desejo, trata-se de não o deixar abrir mão dele.
Além disso, segundo Coelho dos Santos (2010), nesse contexto em que
visã
vivenciamos o esvaziamento do peso das relações dissimétricas, devemos
conferir consistência e peso sexual às relações amorosas, assim como à relação
entre analisando e analista. Dessa maneira, a autora propõe nos apoiarmos
itor
qual Outro cada um joga a sua partida da vida? Qual Outro a transferência
instala? Ademais, ponderamos que essas questões implica o analista na posi-
ção de parceiro-sintoma. Bem como apostamos, que na pós-modernidade,
ão
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o
aC
or
Cleyton Andrade1
od V
aut
Resumo: O presente capítulo é o somatório de ensaios introdutórios de
uma pesquisa ainda em curso junto ao GT da Anpeep Reconfigurações do
Imaginário no século XXI. Ele trata de um dos mais importantes movimentos
R
sociais da atualidade, o Feminismo Negro, procurando iniciar reflexões a seu
respeito a partir de escritoras e ativistas deste movimento social, em articula-
o
ção com o pensamento de Freud e de Lacan. Neste sentido procura construir
aC
uma racionalidade sobre os efeitos do Feminismo Negro tensionada pelas
contribuições da psicanálise, sobretudo a partir da teoria do inconsciente,
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à son sujet à travers des travaux des écrivains et des activistes de ce mouve-
ment social en articulation avec la pensée de Freud et de Lacan. En ce sens,
Ed
il cherche à construire une logique sur les effets du féminisme noir mise en
tension par les contributions de la psychanalyse, sourtout du point de vue de
la théorie de l’inconscient, des discours et du réel.
ão
or
Uma cena que aparece aos 10 minutos do documentário original da Net-
od V
flix, A 13ª Emenda, da diretora e roteirista negra Ava DuVernay, se repetirá
aut
várias vezes ao longo filme. Cenas reais que se passam numa rua qualquer de
uma cidade norte americana, provavelmente entre as décadas de 1950 e 1960.
R
Um senhor negro, é bom que se diga, alto, elegante, vestido com um terno,
gravata e chapéu é hostilizado e agredido por um grupo de aproximadamente
o
vinte ou trinta homens brancos. Ele é seguido pelas ruas aos empurrões, chutes,
aC
pontapés e ofensas, enquanto caminha. Ainda assim, aparenta calma, muito
Quando eu era rapaz, num sábado fui dar uma volta pelas ruas da cidade
onde você nasceu, todo lindamente enfeitado, com um gorro de pele novo
par
Conta o pai ao filho. Freud tinha entre dez e doze anos quando o pai,
Jacob Freud, começou a levá-lo a passeios e a conversar sobre o mundo.
ão
Diante do relato acima, Freud pergunta ao pai “‘E o que você fez?’ E veio a
calma resposta: ‘Desci para a rua e apanhei meu gorro’. A reação dócil de seu
pai” (Gay, 1989, p. 28) levou-o à conclusão de que ele não era um homem
s
or
os “povos entre os quais nós judeus vivemos” (Freud, 1941[1926]/1976, p.
od V
316). Entretanto, foi dentre eles, os judeus, que Freud teve seu primeiro audi-
aut
tório. Não sendo inicialmente ouvido entre os gentios, Freud encontrou numa
comunidade, ou melhor, numa sociedade de judeus, os primeiros ecos de seu
testemunho e teoria.
R
Por que num capítulo sobre feminismo negro eu começo com dois exem-
plos que nem sequer incluem mulheres e temáticas feministas? Estaria aberta
o
a possibilidade de falar besteiras e impropriedades? A começar pelo fato de
aC
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não ser eu uma mulher muito menos uma mulher negra. Definitivamente, este
não é um texto que poderia ser escrito em primeira pessoa nem do singular
nem do plural. Esta impossibilidade de dizer eu e nós já indicaria, numa leitura
rápida, uma impropriedade no que diz respeito ao lugar de fala.
visã
Meu nome não é Simone (que quando criança escutou de outra em tom
ofensivo: “negra preta”; e que jamais foi selecionada para uma das coisas
que mais gostava que eram os concursos de beleza na escola), nem Kamila
itor
(que precisou se reconhecer como pessoa, muito tempo depois de não ser
a re
considerada o tipo de mulher com quem queriam andar de mãos dadas, não
sendo vista como uma menina para namorar ou ser apresentada), ou Lúcia
(que desde cedo teve que se habituar a bater e apanhar, ou a ficar só sem ter o
direito de se apaixonar; ao mesmo tempo que precisou da dor física imposta
par
aos cabelos crespos para que ficassem mais “bonitos” – ou seja, branqueados),
nem tampouco Tamillys (que não compreendia o que é racismo e ouvira do
Ed
documentário de Stella Freitas, mas que bem poderiam ser de qualquer outro
ver
or
é ou não tocado por aquilo de que fala. E principalmente o inverso, como o
od V
discurso de cada um a respeito destes temas, é ou não causado e determinado
aut
pelo mais-de-gozar. Portanto, lugar de fala diz respeito àquele discurso cuja
causa interfere diretamente no modo com que são constituídos os discursos.
Qualquer um pode falar de Auschwitz, mas não será do mesmo lugar de fala
R
de um Primo Levi, por exemplo, especialmente se não for um sobrevivente.
o
Uma constituição, branca
aC
não é uma objetividade, bem como o corpo negro não é constituinte de uma
a re
or
violência sofrida pelo negro não era obtida pela realidade, que, ao contrário,
od V
podia torná-la velada. A verdade da violência era obtida pela dimensão sig-
aut
nificante, que chamava a atenção para uma tentativa de recusar o real dessa
mesma violência. Pela estratégia adotada, esses jovens negros se tornaram
conhecidos como Os panteras negras. E gritavam: “não daremos a outra
R
face!”. Não abaixaremos para pegar o chapéu que cai ao chão, pelo simples
fato de que o real que retorna aí faz com que o próximo a cair seja o corpo. O
o
semblante da pantera negra que recua antes de avançar se atacada novamente,
aC
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nem no que será, mas em um terá sido, do futuro anterior. Em outras palavras,
há uma ambiguidade onde um desconhecimento incide sobre o conhecimento.
Ou seja, ao conhecer-me, é inevitável um encontro com um desconhecimento.
Portanto, nenhuma consciência de si é imanente. Jamais está nem estará con-
par
em si. O eu é fenomênico neste sentido. Ele se apoia em algo que não é ele
mesmo. E justamente devido a essa transcendência do eu que ele está, estru-
turalmente, condenado a um desconhecimento (Lacan, 1960/1998).
ão
cante. Vale advertir que falar de sujeito não é o mesmo que falar de subjetiva-
ção e subjetividade. A estas atribuímos os efeitos próprios ao significante, ao
inconsciente estruturado como uma linguagem, ao discurso. Não há raça nos
genes. Nas sinapses. Nem na quantidade de melanina. Mas não é indiferente a
214
or
de Branca de Neve, ou representar a princesa no teatro da escola, não é, em
od V
absoluto, indiferente. Não é café com leite. Muito pelo contrário. O discurso
aut
pode ser o local da dominância do leite sobre o café.
É neste sentido que Negro é inicialmente um marcador da diferença,
e não um mero predicado do feminismo. O chinês não se interroga se sua
R
filosofia é ou não filosofia ou mera cosmologia, a não ser que seja confron-
tado com a chamada filosofia ocidental. Do mesmo modo que a África não
o
pensa a si mesma em termos raciais. Não haveria por que o negro pensar
aC
negro, mas sobretudo do que é ser negro diante do branco, aos olhos do
branco. Esses são os dois sentidos, segundo Fanon, do que é aquilo que o
Ed
negro olha e se depara diante do espelho. Ou seja, para ele existem entre
brancos e negros, duas metafísicas. Sendo que é o branco que chama para
si a condição de ser humano, cabendo a este a construção daquilo que será
ão
a alma negra. O problema é que o branco não se pensa como branco, posto
que universaliza essa condição. A expressão “todos são iguais” deve ser
lida, “todos os brancos são iguais”. E isso é irreflexivo. Para Fanon (2008),
s
adota diante da civilização branca. Atravessado pela psicanálise, ele diz que
falar é mais que empregar uma sintaxe, é também, e sobretudo, assumir uma
cultura e suportar o peso de uma civilização. O racismo seria um ou diversos
modos gerados socialmente de ver o mundo e viver nele.
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 215
Hannah Arendt (2007) afirma que não há natureza humana posto que há
apenas uma condição humana. Ao que Fanon (2008) acrescenta, esta condição é
branca. Um exemplo que talvez funcione como paradigma, é o lugar emblemá-
tico que ocupam os cabelos na luta do feminismo negro. Na tessitura das relações
sociais e, sobretudo, raciais brasileiras a textura do cabelo foi historicamente um
marcador de pertencimento étnico racial. Numa das fotos de Lélia Gonzalez,
na ocasião de seu embranquecimento, havia estudantes negras com perucas
or
lisas, penteados igualmente lisos ou alisados. Durante décadas os cabelos dos
od V
negros e negras foram chamados de “ruim”, “pixaim” etc. Ou seja, no processo
aut
de desqualificação social de pessoas negras sempre houve uma pressão para
adequar seus cabelos à condição dos cabelos dos brancos. Os cabelos além de
comporem a corporeidade, são um dos principais signos de uma depreciação
R
social do negro. Não por acaso, nas décadas de 1960 e 1970, os penteados afro
e Black Power se tornaram tão representativos das expressões de reação dos
o
movimentos Negros. São inúmeros os livros que tratam desta temática como
aC
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seja, fazer parte de uma sociedade passa não só pelo Outro social, mas também
a re
contra os modelos que servem de ideais, e contra aqueles que ameaçam, para-
ver
or
forem capazes de recorrer a uma instância simbólica reguladora, a ausência
od V
de recursos de reconhecimento da alienação à essa alteridade e a seus mode-
aut
los de conduta, desejo e julgamento, poderão ser o palco para expressões de
confrontos de rivalidade e violência.
A agressividade de estrutura pode ser expulsa para fora, e com isso
R
direcionada contra o outro. Tanto o cristão que lança o gorro de Jakob Freud
no estrume, quanto aquele grupo de homens brancos que agridem o homem
o
negro da cena inicial, expressam parcialmente este processo. Digo parcial-
aC
mente ao menos por dois motivos. O primeiro é que a agressividade não é o
Com isso chegamos a duas conclusões: a) o racismo está fora do logos, decorre
do pathos de um indivíduo ou grupo; b) o racismo e as formas de segregação
e violência que dele decorrem, são anomalias e resultados indesejáveis que a
norma jurídica é capaz de regular. Os ativistas dos movimentos antirracistas
chamariam essas conclusões de individualistas.
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 217
Sou um judeu. Então, um judeu não possui olhos? Um judeu não possui
mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afeições, paixões? Não é alimentado
or
pelos mesmos alimentos, ferido com as mesmas armas, sujeito às mesmas
doenças, curado pelo mesmo inverno que um cristão? Se nos picais, não
od V
sangramos? Se nos fazeis cócegas, não rimos? Se nos envenenais, não
aut
morremos? E se vós nos ultrajais, não nos vingamos? Se somos como vós
quanto ao resto, somos semelhantes a vós também nisso. Quando um cris-
R
tão é ultrajado por um judeu, onde coloca ele a humildade? Na vingança.
Quando um judeu é ultrajado por um cristão, de acordo com o exemplo
o
cristão, onde deve ele colocar a paciência? (Shakespeare, 1995, p. 467).
aC
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peça foi interpretado pelo ator negro Laurence Fishburne. Essa escolha gerou
a re
polêmicas, sobretudo por ter sido a primeira versão para o cinema interpre-
tada por um negro no papel principal. Trinta anos antes, em 1965, na versão
do diretor Stuart Burge, Othello foi interpretado pelo ator inglês Laurence
Olivier, com a pele pintada de preto. Ainda mais curioso é que no início do
par
social que não era a sua, justamente por esse motivo. Isso lhe custou inveja,
rivalidades e ódio, encarnado sobretudo em Iago, porém, não só. Elogiado
pelo seu desempenho pelo pai de Desdêmona, é exatamente dele que ouve as
seguintes palavras: “Abusaram dela, roubaram-na de mim e foi corrompida
com sortilégios e medicinas compradas em charlatães, pois, por natureza,
não sendo imbecil, cega e coxa de sentidos, não poderia ter-se enganado tão
loucamente, sem o auxílio da feitiçaria” (Shakespeare, 1995, p. 717). Era
or
inconcebível a filha de um rico senador se apaixonar por aquele homem.
od V
Diante das palavras da filha testemunhando o seu amor por Othelo, Brabâncio
aut
acrescenta, dirige-se ao mouro: “Vela por ela, mouro, se tiverdes olhos para
ver. Enganou o pai e pode perfeitamente enganar-te” (Shakespeare, 1995, p.
722). Eis que seu destino estava selado pelo discurso do Outro. Os destinos
R
de Shylock e Othelo respondem a subjetividades forjadas sob os efeitos de
discursos e práticas racistas e discriminatórias. Mesmo que com reações dife-
o
rentes de Shylock, Othelo se aproxima muito mais deste judeu do que de Dom
aC
períodos retratados nas duas peças citadas, enquanto sua própria Inglaterra
a re
o racismo não pode abdicar desta variável. Não era o caso do contexto das
peças shakespearianas. Nelas, o pivô girava em torno não só dos impasses
da construção da figura do homem moderno, mas também e, principalmente,
s
preciso pensar a relação entre raça e nação como elemento de corte no âmbito
das identidades nacionais, bem como na disputa religiosa dos Estados não
laicos. Do Othelo shakespeariano para o Brasil de Lélia Gonzalez não há um
grande salto. Negra ao nascer ela era Lélia de Almeida. Filha de pai negro
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 219
or
od V
O livro é impregnado de pressupostos sobre a inferioridade tanto da popu-
aut
lação negra quanto das mulheres. A maioria dos negros é dócil e servil;
as mulheres, mães e quase nada além. Pode parecer irônico, mas a obra
mais popular da literatura antiescravagista daquela época perpetuava as
R
ideias racistas que justificavam a escravidão e as noções sexistas que fun-
damentavam a exclusão das mulheres da arena política na qual se travava
o
a batalha contra a escravidão (Davis, 2016, p. 44).
aC
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A mãe de Lélia foi mais uma destas inúmeras mulheres que pareciam
gozar de um lugar em meio às casas dos brancos de classe média. Aparecida,
nome fictício de uma mulher de fato, é uma mulher negra que após mais de
visã
quarenta anos cuidando de uma jovem com síndrome de Down de uma família
branca da classe média mineira, gozava do direito de moradia em um quarto de
dois metros por um e meio, podendo também se alimentar da mesma comida,
itor
da casa sem nenhum apoio dos filhos que restavam desta família. A justifi-
cativa para a ausência de direitos com que a presentearam após mais de 40
anos, foi a de terem dado moradia e comida durante todo esse tempo. Assim,
não estavam mais em dívida com ela. Seria fácil atribuir a essa família uma
par
de racismo como essa são ocultadas, ou são eclipsadas pela leitura de uma
luta de classes, ou seja, uma opressão decorrente de uma diferença de classe
social. Ou então são lidas como casos particulares, embora apontem para um
ão
de futebol profissional no Rio de Janeiro, ela se casa com Luiz Carlos Gon-
zalez, de origem espanhola. Lélia afirmou em entrevistas que seu namoro era
tolerado pela família dele, o que mudou drasticamente com o casamento. A
jovem negra, mesmo que embranquecida, era tolerada enquanto não fazia parte
da família. O casamento explicitou o racismo institucional antes revestido.
220
or
Se negra não é a cor da pele, nem negro é apenas mais uma das inúmeras
od V
formas dos feminismos contemporâneos, o que é então?
aut
Black, em inglês, é um termo que deriva do movimento de consciencializa-
ção, para se distanciar radicalmente das terminologias coloniais correntes
R
até os anos de 1960, como the Negro ou N-word. Comumente, este termo
é escrito com um B maiúsculo, Black, para sublinhar o fato de que não se
o
trata de uma cor, mas de uma identidade política. A letra maiúscula também
aC
tem uma segunda função, a de revelar que este não é um termo atribuído
discurso. A tradução de Black para Negro, contudo, não é tão simples. Grada
a re
or
de sujeitos políticos. Tal como o logos do sujeito da psicanálise transita entre
od V
a linguagem e o real, sendo o primeiro um efeito da segunda ou do terceiro,
aut
também o sujeito político tem um logos que o constitui. Não existem sujei-
tos políticos que vão às ruas ou aos espaços sociais para clamarem por suas
pautas originárias. É a luta política no espaço público que, em ato, funda um
R
sujeito político bem como os significantes que perfazem a partir de então
seus discursos.
o
Negro não é a aposta imaginária de uma identidade, mas um elemento
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
de outro lado, fazer uma recusa radical aos modos de produção capitalista,
quando existe um jogo de semblantes em que ela é tratada como natural
Ed
pode ou não votar, quem se aposenta ou não, e sob quais condições, quem tem
ou não tem direitos, a quem se atribui reivindicações legítimas ou ilegítimas
etc. Essas são maneiras de nomear positividades e estabelecer formas de rela-
ções. Qual representatividade esperar de uma política e sistema de relações
sociais baseadas na identidade, quando a língua portuguesa dá ao significante
preto, quando atribuído a uma pessoa, significações pejorativas, usadas como
insulto direto – “preta fedida” (Jesus, 2014, p. 26) – ou “como forma indireta
or
de inferiorização e objetificação” (Kilomba, 2019, p. 18) como em “preto é
od V
assim ou assado”. São políticas identitárias que reafirmam inferioridades.
aut
Um discurso identitário que serve para a naturalização de uma dominação e
subjugação do outro, é uma forma naturalizada de exclusão.
Em outras palavras, tais discursos mostram os usos da identidade como
R
política segregativa onde a condição humana é reservada à branquitude,
enquanto ao outro é dada uma nomeação pela condição animal ou desuma-
o
nizada. O Universal da condição humana é a branquitude. A política imposta
aC
Lacan: “Deixar a esse Outro seu modo de gozo, eis o que só se poderia fazer
não impondo o nosso, não o considerando como subdesenvolvido” (1993,
p. 58). O racismo só pode ser compreendido a partir de uma junção entre
preconceito e poder. De um lado a distinção insuportável em relação a esse
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 223
Outro e seu modo de gozo que poderá resultar em ódio, preconceito, segre-
gação. De outro, a imposição de um modo de gozo sobre este Outro modo
de gozo. Para isso o Negro é transformado num Outro desigual, ameaçador,
subjugável, inferior. Como nos lembra Lacan, não é só uma posição frente
à insuportabilidade com esse modo de gozo, é também torná-lo desigual, é
tomá-lo como subdesenvolvido, inferior e, com isso, submetido a algumas
formas de poder. Com isso a desigualdade não é um mau funcionamento do
or
desenvolvimento, é sua base estrutural. E, nesse caso, implica em pensar um
od V
racismo estrutural, e não fenomênico. Um racismo que estrutura as formas
aut
de relações sociais.
Essa passagem de Lacan (1993) também nos permite compreender que
o racismo ao Negro e sobretudo às mulheres negras não se reduz às formas de
R
ódio e agressão física. A inferiorização do outro e as consequentes formas de
imposição do gozo daquele que domina o subdesenvolvido também assume
o
contornos sexuais. O sujeito negro enquanto identidade desumanizada e obje-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
para o hospital, com queimaduras de segundo grau. Ou a clínica não sabe operar
a re
Feminismos
par
or
produzido como efeito de discursos que levem em conta o impossível da
od V
política. O Real como elemento inarredável das relações sociais. Pois bem, é
aut
esse o ponto de entrada do Feminismo Negro. Ele não refuta nem desautoriza
as lutas feministas. Ele as radicaliza.
Ao introduzir esse elemento perturbador, exige-se novas questões, novas
R
perguntas, novos problemas. Ao racializar o gênero ao mesmo tempo em que
se generifica a raça, demonstra como esta, é um dado central da realidade
o
social e que, justamente por isso, não pode escapar àqueles que pretendem
aC
impossível como fundamento dos laços sociais. Sendo o racismo uma forma
a re
do Psicanalisar. O Impossível.
Nesse sentido, convido àqueles que ainda não o fizeram, a lerem Quarto
de despejo, quase uma versão brasileira do livro de Primo Levi (1988), É
s
por uma mulher negra brasileira, que escreve seu diário no final da década
de 1950 dando o testemunho de sua sobrevivência em meio aos lixos de
São Paulo. Numa versão bem própria do que seria o campo de concentração
(Agamben, 2015), Carolina Maria de Jesus diz:
RECONFIGURAÇÕES DO IMAGINÁRIO NO SÉCULO XXI 225
“É uma vergonha para uma nação. Uma pessoa matar-se porque passa
fome. E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia: – Mamãe eu quero
or
pão! Mamãe, eu estou com fome!”, conta Carolina Maria de Jesus (2014, p.
63), que afirma que, quando chove, não pode ir catar papel e por isso vira
od V
mendiga, “fui ao Frigorífico, ganhei uns ossos. Já serve. Faço uma sopa”
aut
(Jesus, 2014, p. 61). Em 8 de Junho de 1958, diz: “Hoje eu fiz almoço”
(Jesus, 2014, p. 55).
R
Quando eu fui catar papel encontrei um preto. [...] O seu olhar era um
o
olhar angustiado como se olhasse o mundo com despreso. Indigno para
aC
um ser humano. Estava comendo os doces que a fabrica havia jogado na
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lama. Ele limpava o barro e comia os doces. Não estava embriagado, mas
vacilava no andar. Cambaleava. Estava tonto de fome!
... Encontrei com ele outra vez, perto do depósito e disse-lhe:
visã
- O Senhor espera que eu vou vender este papel e dou-te cinco cruzeiros
para o senhor tomar uma media. É bom beber um cafezinho de manhã.
- Eu não quero. A senhora cata estes papeis com tanta dificuldade para
manter os teus filhos e deve receber uma migalha e ainda quer dividir
itor
vou fazer da minha vida. Daqui uns dias eu não vou precisar de mais
nada deste mundo. Eu não pude viver nas fazendas. Os fazendeiros me
explorava muito. Eu não posso trabalhar na cidade porque aqui tudo é a
dinheiro e eu não encontro emprego porque já sou idoso. Eu sei que eu
vou morrer por que a fome é a pior das enfermidades.
par
... O homem parou de falar bruscamente. Eu segui com meu saco de papel
nas costas (Jesus, 2014, p. 54-55).
Ed
de morte. E mesmo que não possa desenvolver isso aqui, creio que há um
pensamento do Feminismo Negro em Carolina Maria de Jesus, tanto como
s
or
epistemológicas, artísticas e literárias de mulheres negras. Tratar-se-ia de
od V
mobilizar perguntas a respeito tanto das produções teóricas de mulheres negras
aut
como Ângela Davis, Bell Hooks, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez, Sueli Car-
neiro, Djamila Ribeiro, bem como de trabalhos artísticos, como, novamente,
os de Grada Kilomba, e na literatura como, por exemplo, de Chimamanda
R
Ngozi Adichie ou Carolina Maria de Jesus. Estaríamos ou não diante de algo
que mereça um destaque, um traço de distinção, se colocarmos de um lado a
o
escrita de Clarice Lispector e de outro a de Carolina Maria de Jesus, a despeito
aC
das diferenças individuais? Não me refiro às qualidades estéticas distintivas
tor, não é para mim! [...] Publicar histórias sobre a vida, as experiências, os
sentimentos, as indagações não é para gente como eu, uma voz insiste em
repetir” (Santana, 2015, p. 5), afinal, continua Bianca Santana, “tenho 30
anos, mas sou negra há apenas dez. Antes era morena. Minha cor era pratica-
mente travessura do sol” (Santana, 2015, p. 13); Lélia Gonzalez se descobriu
par
fome tem cor... ela é amarela. “Quiz saber o que eu escrevia. Eu disse ser o
meu diário. – Nunca vi uma preta gostar tanto de livros como você” e ainda,
“[...] Sentei-me ao sol para escrever. A filha da Silvia, uma menina de seis
s
anos, passava e dizia: – Está escrevendo, negra fidida! A mãe ouvia e não
ver
or
até acho o cabelo negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque
o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só
od V
dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é
aut
que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.
[...] O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta
o branco?
R
[...] Passei a noite assim: eu despertava e escrevia (Jesus, 2014, p. 64-65).
o
Grada Kilomba (2019) e Bell Hooks (1990) convergem ao dizerem que
aC
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uma divisão que insiste numa temática de queixa. Contudo, proponho uma
ver
or
A aposta do Organon, de Aristóteles, é a recusa do mal-entendido da
od V
linguagem, e se pauta na crença por uma higienização que torne o real um
aut
mero acidente no curso dos sujeitos falantes. Um discurso científico livre de
imperfeições e equivocidades. A concepção do pensamento alemão acerca
do inconsciente prévio a Freud, guarda suas aproximações estéticas com o
R
romantismo alemão e com uma forma precisa de conceber a montagem de
uma narrativa. Entretanto, a hipótese freudiana do inconsciente não se forjou
o
com cartas de alforria, tanto de uma narrativa dotada de sentido, quanto de
aC
tidos ocultos. Ele não reduz seu ato a um ato hermenêutico. É preciso fazer
ressoar o significante de tal modo que torne aparente o que o discurso vela.
Ed
escrita para romper com os semblantes e, com isso, fazer emergir a opacidade
do gozo. Em outras palavras, a dimensão poética da interpretação implica se
valer de um discurso do semblante para romper com o semblante. Um dos
s
or
gramático (Andrade, 2016) que interpreta o discurso do mestre no campo
od V
social e político, tornando claro o mais-de-gozar da branquitude que agencia
aut
os discursos que promovem ou abolem formas de subjetivação.
Carolina é interpelada pelo seu filho João
R
– “Pois é. A senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do lixo”,
segue Carolina: “Foi a primeira vez que vi minha palavra falhar” [...] “A
o
senhora tinha fé e agora não tem mais?” Não, meu filho. A democracia
aC
está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O
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REFERÊNCIAS
Agamben, G. (2015). Meios sem fim: notas sobre a política. Belo Hori-
zonte: Autêntica.
or
(2ª ed.). Maceió: EDUFAL.
od V
Aristóteles (2010). Órganon: categorias, da interpretação, analíticos ante-
aut
riores, analíticos posteriores, tópicos, refutações sofísticas (2ª ed.).
Bauru: EDIPRO.
R
Bloom, H. (2001). Shakespeare: a invenção do humano. Rio de Janeiro: Objetiva.
o
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Butler, J. (2017). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade
Freud (1976). Discurso perante a Sociedade dos B’nai B’rith. In Edição Stan-
dard das Obras Completas de Freud (Vol. XX, pp. 315-317). Rio de
a re
Gay, P. (1989). Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia
das Letras.
par
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Santana, B. (2015). Quando me descobri negra. São Paulo: SESI-SP.
aut
Shakespeare, W. (1995). O mercador de Veneza (Vol. 2, pp. 437-498). In Obra
Completa em três volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
R
Shakespeare, W. (1995). Otelo, o mouro de Veneza (Vol.1, pp. 705-788). In
o
Obra Completa em três volumes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar.
aC
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visã
itor
a re
par
Ed
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ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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O MAL-ESTAR FEMININO NA
CONTEMPORANEIDADE: o
que querem as mulheres?
or
od V
Maria Cristina da Cunha Antunes1
aut
Resumo: Neste trabalho, pretendo abordar o mal-estar feminino na
R
contemporaneidade. Considero as teorias feministas como expressão desse
mal-estar. A partir dos anos 80, o feminismo radical, de orientação marxista,
o
desloca a teoria da luta de classes para o campo das relações entre homens e
aC
mulheres. A principal tese deste movimento é que há uma relação estrutural
de dominação do homem sobre a mulher e que esta, portanto, estaria numa
posição de vítima. A partir de uma vinheta clínica, procuro demonstrar que
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
into the field of relations between men and women. The main thesis of this
movement is that there is a structural relationship of male domination over
woman and that this woman would therefore be in a position of victim. From
ão
the observation of a clinical report, I try to demonstrate that the figure of the
victim is an unconscious phantasm that presents itself to some women as
s
a stalemate in the process of sexuation. There are also those who seek this
ver
submission, as can be read in the clinical report presented. I point out that
considering that all women are victims of the patriarchal, masculine structure
encourages each woman’s lack of responsibility for their own unconscious.
Keywords: malaise; feminine; contemporary times.
1 Psicanalista. Doutora em Teoria Psicanalítica pelo PPGTP-UFRJ. Membro do Instituto Sephora de Ensino
e Pesquisa de Orientação Lacaniana. E-mail: crisantunes@superig.com.br
234
or
existe une relation structurelle de domination de l’homme envers la femme,
od V
laquelle serait donc en position de victime. À partir d’une vignette clinique,
aut
j’essaie de démontrer que la figure de la victime est un fantasme inconscient
qui se présente à certaines femmes comme une impasse dans le processus de
R
sexuation. Il y a aussi celles qui demandent cette soumission, comme je l’ai
indiqué dans la vignette clinique présentée. Je souligne que, la considération de
o
toutes les femmes comme étant victimes de la structure patriarcale, encourage
aC
le manque de responsabilité de chaque femme pour son inconscient.
Introdução
visã
o discurso feminista como índice desse mal-estar. O meu critério para essa
escolha se baseia na tese de que esse discurso delineia um modo da subjeti-
Ed
or
com algumas teses do autor, ele me serve pela apresentação de argumentos
od V
que me interessam para discutir esse fenômeno.
aut
O autor discute vários casos, acontecimentos que promoveram reações
feministas de mulheres pertencentes ou não a movimentos feministas. Deles,
Bosco extrai o que ele nomeia como a posição da vítima presente nas teo-
R
rias feministas contemporâneas. Ele ressalta que os comentários em torno
dos casos vão na direção de um imperativo de se tomar partido, de se aliar
o
incondicionalmente contra os homens. Trata-se, segundo ele, do surgimento
aC
de um princípio a priori, de um juízo inquestionável que defende – abolindo
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da igualdade entre os sexos defendida pelo feminismo liberal nos anos 60. A
ver
or
o feminismo em: liberal, radical e socialista. Para os objetivos do meu traba-
od V
lho, agrupei o movimento feminista em dois conjuntos: o feminismo liberal,
aut
que luta pela igualdade entre homens e mulheres, e os movimentos radical e
socialista, que embora apresentem algumas diferenças, seguem uma orien-
tação marxista aplicada ao campo do sexual e propõem uma transformação
na estrutura social.
R
Segundo Jardim Pinto, o feminismo liberal, dos anos 60/70, propõe que
o
a causa da opressão da mulher na sociedade moderna é consequência da
aC
or
trabalhar fora de casa enquanto os homens permanecem livres do trabalho
od V
no seu interior, tal como nos países capitalistas. Então, diz ela, se a tomada
aut
do Estado e do poder produtivo inverteu as relações de trabalho, ela não
inverteu as relações entre os sexos da mesma maneira. Portanto, conclui
que nem o socialismo nem o capitalismo equalizam o status da mulher com
relação ao homem.
R
Segundo a autora, sob a rubrica do feminismo, a situação da mulher tem
o
sido explicada de algumas maneiras. Há teorias que abordam o mal-estar
aC
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or
entra em questão é a relação heterossexual interpretada como o campo de
od V
domínio do masculino.
aut
Para a autora, o conceito feminista de que o pessoal é político seria uma
tentativa de responder a essa questão. O pessoal é político significa que a
experiência das mulheres como mulheres ocorre dentro da esfera que tem sido
R
vivida como pessoal – âmbito privado, sentimental, interiorizado, íntimo –
de modo que conhecer a política da situação das mulheres é conhecer a vida
o
pessoal das mulheres. Para Mackinnon, o princípio que governa a política
aC
pelo que são ou por aquilo que se tornaram enquanto mulheres – isto é,
diferentes dos homens – sob as condições existentes, de dominação mas-
culina. É considerada por muitos como uma estratégia paternalista, que
defende privilégios para as mulheres em situações específicas, como na
gravidez, por exemplo.
Para Mackinnon, essa dupla resposta, num ou noutro sentido, é chamada
pela autora de teoria da diferença, numa obsessão com a diferença sexual.
or
A análise da autora é que esse impasse é político. Resumindo, ela conclui
od V
que são estratégias para submeter a mulher ao padrão masculino, que seria
aut
o referente em um e em outro caminho, e chamar isso de igualdade sexual.
Na norma da diferença, a regra da proteção especial, faz parecer que esses
atributos especiais, com suas consequências, são realmente das mulheres,
R
em vez de terem sido atribuídas a elas pela supremacia masculina. Para as
mulheres, afirmar a diferença – quando essa diferença significa dominação,
o
como ocorre com a diferença de gênero – significa afirmar as qualidades e
aC
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faz uma análise dos seus impasses. Inicialmente, ela expõe a tese de Heidi
Hartman (1981). Esta feminista critica a teoria radical, afirmando que esta não
Ed
de diferentes classes.
Na análise de Jardim Pinto, Hartman localiza a materialidade da domi-
nação no controle do homem sobre o trabalho da mulher, ou seja, o homem
controla o acesso da mulher às formas essenciais dos recursos produtivos. Para
240
or
são vícios da análise marxista. O primeiro, diria respeito ao velho problema
od V
de reduzir tudo à base material das relações econômicas, não admitindo bus-
aut
car a materialidade ao nível ideológico. O segundo equívoco diria respeito
à forma simplista como Hartman assimila a questão do controle do trabalho
nas sociedades capitalistas. Segundo Jardim Pinto, não parece verdadeiro
R
que o capitalismo precise desse controle a priori. Nos países de capitalismo
avançado, este tende a ser cada vez menor, o que, no entanto, não determinou
o
o fim das relações patriarcais. Nos países socialistas, onde não existe o inte-
aC
marxism (1981), faz uma crítica ao trabalho de Hartman e propõe uma nova
a re
mulheres não pode ser confundida com as demais lutas. Entretanto, enfatiza
Jardim Pinto, ela subsume a luta das mulheres à luta contra os interesses
do capital. Para Jardim Pinto, Young retorna à visão reducionista de que
s
or
car a opressão do outro. Para ela, é imperativo discutir o conceito de poder,
od V
apontando que o marxismo não discute com adequação as relações de poder
aut
que se dão a partir de relações que não envolvem a luta de classes. Na análise
da opressão da mulher, ela parte das seguintes premissas:
•
R
Há uma especificidade na opressão da mulher que não se confunde
com nenhuma outra forma de opressão.
o
• Esta opressão não é resultado da forma como os modos de produ-
aC
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or
de importância nas sociedades capitalistas não tem como consequência
od V
a fim da condição de dominada da mulher. Do mesmo modo, as relações
aut
de poder entre adultos e crianças perpassa todas as classes e se reproduz
independentemente dos modos de produção.
No que se refere à tese de que o poder produz verdade, Jardim Pinto
R
comenta que esta tese desmitifica o poder como uma instância de punição,
com sanções negativas. Ao contrário, o poder produz verdades e recompen-
o
sas. Ela toma a questão das relações patriarcais. Segundo ela, a construção
aC
Jardim Pinto, que uma nova forma de Estado não condense a seu favor os
micropoderes que se mantiverem intactos.
Jardim Pinto se desloca, juntamente com outras autoras feministas,
ão
or
no sentido de estabelecer uma hipótese sobre essa submissão das mulheres
od V
que permanece perene. Este é o ponto que me interessa investigar a partir
aut
da perspectiva psicanalítica: o mal-estar feminino na contemporaneidade,
experimentado pelas mulheres como submissão.
R
O mal-estar feminino: entre a revolta e a obediência
o
Quando você me deixou, meu bem,
aC
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or
tanto os homens como as mulheres acham-se apanhados no mito da tradição
sobre a mulher. A tônica do discurso feminista recai sobre a igualdade entre
od V
os sexos. Um novo ideal se apresenta nesse campo: a relação democrática,
aut
igualitária entre homens e mulheres (Coelho dos Santos, 2001, p. 58). Nesse
período, as mulheres desejam ser indivíduos.
R
A partir dos anos 80, há um giro de perspectiva no âmbito da luta
feminista com o surgimento do feminismo radical e socialista. Estes sur-
o
gem a partir do diálogo entre a teoria marxista e os problemas de gênero.
aC
As teses dessa abordagem feminista centram sua atenção na relação hete-
essas condições são estruturais, mesmo quando uma mulher consente na rela-
ção sexual, esse consentimento não é livre. Deste ponto de vista, o homem
é sempre o opressor.
A ideia de que o consentimento de uma mulher numa relação sexual
par
or
ção feminina. Ou seja, trata-se de um fantasma feminino que se apresenta em
od V
algumas mulheres.
aut
Passo a trabalhar os destinos da sexuação feminina em Freud. Pretendo
destacar, a partir das conclusões que extraí de um caso clínico, os impasses
R
subjetivos que propiciam a construção do fantasma da vítima.
Freud (1931) toma a inveja do pênis como o operador estrutural a partir
do qual se definem três destinos possíveis para a feminilidade: a inibição, o
o
complexo de masculinidade e a feminilidade normal. Abordarei, inicialmente,
aC
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siste na substituição metafórica do pênis pelo filho. Essa metáfora é uma ope-
ração subjetiva que permite à menina sair da interpretação fálica falo = pênis.
Desse modo, ela alcança uma posição nova, como diz Freud, e se volta para o
ão
pai com o fim de receber um bebê. Que posição nova é essa? Retomo a frase
de Freud que diz que, nesse processo, o pai fica em segundo plano. Interpreto
essa afirmativa como o surgimento da capacidade metafórica na menina. O
s
or
sintoma é a erotomania feminina. Ou seja, a passagem do pai ao homem não
od V
é colocar o homem no lugar do pai.
aut
A construção do caso de uma mulher em análise me permitiu articular
a inibição – destino possível da sexuação feminina – com o fantasma femi-
nino da vítima. Passo a expor o que aprendi com o caso e as contribuições
R
de Freud acerca do destino da inibição na mulher. Na inibição, o processo de
sexuação está incompleto na medida em que a mulher permanece na inter-
o
pretação fálica de que ela não tem o pênis e este é confundido com o falo. A
aC
a potência vital. É evidente que, por trás desse pai todo poderoso,
está a mãe fálica, primeiro objeto de amor da menina, da qual, nesse
impasse, ela não se separou.
• O surgimento da erotomania, ou seja, da exigência de ser amada
par
or
dessas mulheres é Deus e elas gozam da crença no amor absoluto do Pai e de
od V
serem amadas por ele.
aut
As místicas ensinam às mulheres o que se passa quando estas colocam
um homem no lugar de Deus. Segundo Pommier (1987), “é na relação com
Deus que um martírio que é também fonte de alegria, faz a sua demonstração.
R
Nesse lugar da mulher, de objeto, o Outro divino goza e ela (a mulher) goza
de ser amada” (, p. 64). Um homem pode se tornar a religião particular de
o
uma mulher.
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Considerações finais
visã
As teorias feministas de orientação marxista defendem a tese de que há
uma dominação estrutural masculina sobre a mulher nas sociedades antigas
em modernas. Ela advém do exercício do poder masculino nas famílias e nas
relações sexuais heterossexuais. Ambas as instituições funcionam sob a prima-
itor
propõe que as estruturas ideológicas (família, casamento etc.) são a causa que
produz o mesmo efeito para todas as mulheres: a vitimização. Essa maneira
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o risco a que me referi. O feminismo como solução identitária que se organiza
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em torno da posição da mulher como vítima pode contribuir para aprofundar
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o apagamento do sujeito do qual as próprias feministas se queixam. Penso
que, em vez da conquista de autonomia e de emponderamento, essa narrativa
pode facilitar a radicalização deste tipo de impasse feminino. Assentadas no
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lugar de vítimas, muitas mulheres se prestam ao máximo da objetificação e
permanecem aderidas ao fantasma inconsciente da submissão ao homem.
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REFERÊNCIAS
Bosco, F. (2017). A vítima tem sempre razão? Lutas identitárias e o novo
espaço público brasileiro. São Paulo: Todavia Ed.
Coelho dos Santos, T. (2001). Quem precisa de análise hoje? O discurso ana-
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lítico: novos sintomas e novos laços sociais. Rio de Janeiro: Bertrand Ed.
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Friedan, B. (1971). A mística feminina. Rio de Janeiro: Vozes Ed.
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Freud, S. (1974). Conferência XXXIII: Feminilidade. In J. Salomão (Trad.).
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Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sig-
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Zahar ed.
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Tavares, L., & Lois, C. (2016, jul.-dez). Anotações sobre a teoria feminista
do direito de Catharine Mackinnon. Revista de gênero, sexualidade e
ver
direito, 2, 151-170.
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SOBRE O LIVRO
Tiragem: 1000
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 X 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 11,5/12/16/18
Arial 7,5/8/9
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)