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PEDAGOGIAS
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naAMAZÔNIA
DECOLONIAIS
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

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Fundamentos, Pesquisas e Práticas


par

Adriane Raquel Santana de Lima


Ed

Alder de Sousa Dias


Ana D’Arc Martins de Azevedo
ão

Cristiane do Socorro dos Santos Nery


João Colares da Mota Neto
Raimunda Kelly Silva Gomes
s

Vitor Sousa Cunha Nery


ver

Waldir Ferreira de Abreu


Waldma Maíra Menezes de Oliveira
(ORGS.)
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Ed
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Adriane Raquel Santana de Lima
Alder de Sousa Dias
Ana D’Arc Martins de Azevedo
Cristiane do Socorro dos Santos Nery

or
João Colares da Mota Neto
Raimunda Kelly Silva Gomes

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Vitor Sousa Cunha Nery

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Waldir Ferreira de Abreu
Waldma Maíra Menezes de Oliveira

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(Organizadores)

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS
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NA AMAZÔNIA: fundamentos,
pesquisas e práticas
par
Ed
ãos
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Editora CRV
Curitiba – Brasil
2020
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Diagramadores e Designers CRV
Revisão Ortográfica: Heloiza de Oliveira Benjamin
Revisão: Analista de Escrita e Artes CRV

or
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

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CATALOGAÇÃO NA FONTE

aut
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

R
P371

Pedagogias decoloniais na Amazônia: Fundamentos, Pesquisas e Práticas / Adriane Raquel

o
S. de Lima, Alder de S. Dias, Ana D’Arc M. de Azevedo, Cristiane do S. dos S. Nery, João C. da
aC
Mota Neto, Raimunda Kelly S. Gomes, Vitor S.C. Nery, Waldir F. de Abreu, Waldma Maíra M. de
Oliveira (organizadores) – Curitiba : CRV, 2020.
370 p.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Bibliografia
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ISBN Digital 978-65-5868-674-3
ISBN Físico 978-65-5868-675-0
DOI 10.24824/978655868675.0
itor

1. Educação 2. Pedagogias decoloniais 3. Saberes decoloniais I. Lima, Adriane Raquel S.


de. org. II. Dias, Alder de S. org. III. Azevedo, Ana D’Arc M. de. org. IV. Nery, Cristiane do S. dos
a re

S. org. V. Mota Neto, João C. da. org. VI. Gomes, Raimunda Kelly S. org. VII. Nery, Vitor S.C.
org. VIII. Abreu, Waldir F. de. org. IX. Oliveira, Waldma Maíra M. de. org. X. Título XI. Série.

CDU 37(817.2) CDD 370.9811


par

Índice para catálogo sistemático


1. Educação 370.9811
Ed

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EM FORMATO DIGITAL.
ão

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s
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2020
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Altair Alberto Fávero (UPF)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Ana Chrystina Venancio Mignot (UERJ)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Andréia N. Militão (UEMS)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Anna Augusta Sampaio de Oliveira (UNESP)

or
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Barbara Coelho Neves (UFBA)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Cesar Gerónimo Tello (Universidad Nacional

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Carmen Tereza Velanga (UNIR) de Três de Febrero – Argentina)

aut
Celso Conti (UFSCar) Diosnel Centurion (Univ Americ. de Asunción – Py)
Cesar Gerónimo Tello (Univer .Nacional Eliane Rose Maio (UEM)
Três de Febrero – Argentina) Elizeu Clementino de Souza (UNEB)

R
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Fauston Negreiros (UFPI)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) Francisco Ari de Andrade (UFC)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Gláucia Maria dos Santos Jorge (UFOP)

o
Élsio José Corá (UFFS) Helder Buenos Aires de Carvalho (UFPI)
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Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Ilma Passos A. Veiga (UNICEUB)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Inês Bragança (UERJ)
Gloria Fariñas León (Universidade de La Havana – Cuba) José de Ribamar Sousa Pereira (UCB)
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Guillermo Arias Beatón (Universidade de La Havana – Cuba) Jussara Fraga Portugal (UNEB)
Helmuth Krüger (UCP) Kilwangy Kya Kapitango-a-Samba (Unemat)
visã
Jailson Alves dos Santos (UFRJ) Lourdes Helena da Silva (UFV)
João Adalberto Campato Junior (UNESP) Lucia Marisy Souza Ribeiro de Oliveira (UNIVASF)
Josania Portela (UFPI) Marcos Vinicius Francisco (UNOESTE)
Leonel Severo Rocha (UNISINOS) Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
itor

Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO) Maria Eurácia Barreto de Andrade (UFRB)


Lourdes Helena da Silva (UFV) Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
a re

Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US) Mohammed Elhajji (UFRJ)


Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar) Mônica Pereira dos Santos (UFRJ)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC) Najela Tavares Ujiie (UTFPR)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA) Nilson José Machado (USP)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG) Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
par

Renato Francisco dos Santos Paula (UFG) Silvia Regina Canan (URI)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES) Sonia Maria Ferreira Koehler (UNISAL)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO) Suzana dos Santos Gomes (UFMG)
Ed

Simone Rodrigues Pinto (UNB) Vânia Alves Martins Chaigar (FURG)


Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA) Vera Lucia Gaspar (UDESC)
Sydione Santos (UEPG)
ão

Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)


Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)
s

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
ver
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AGRADECIMENTOS
Agradecemos à Universidade do Estado do Amapá (UEAP) por sua polí-
tica de fomento à produção científica, pois de outra maneira não teríamos

or
como subsidiar custos tão altos do mercado editorial brasileiro para lançar

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“Pedagogias Decoloniais na Amazônia: fundamentos, pesquisas e práticas”.

aut
Desse modo, reconhecemos seu papel institucional para a produção do conhe-
cimento no Amapá, mas também na Amazônia, e para além dela, haja vista a
origem institucional dos inúmeros textos que compõem a presente coletânea.

R
Vale ressaltar também que na conjuntura atual, em que há inúmeros cortes
orçamentários em dimensões basilares à sociedade como a saúde e a educação,

o
a UEAP ajuda a dar uma orientação propositiva: fomentar também a produção
aC
do conhecimento científico. Que essa iniciativa institucional, delineada pelo
Edital n° 024/2019-UEAP, sirva de parâmetro para as demais instituições de
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ensino superior públicas do Brasil.


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As coordenadoras e coordenadores
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SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS........................................................................................ 7
As coordenadoras e coordenadores

or
APRESENTAÇÃO........................................................................................... 13

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As coordenadoras e coordenadores

aut
PREFÁCIO...................................................................................................... 15

R
Reinaldo Matias Fleuri

o
FUNDAMENTOS DAS PEDAGOGIAS DECOLONIAIS
E APROXIMAÇÕES TEÓRICAS
aC
O QUE É PEDAGOGIA DECOLONIAL?.......................................................23
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Luiz Fernandes de Oliveira


visã
PEDAGOGIAS E DIDÁTICAS DECOLONIAIS: subsídios genealógicos..... 35
Alder de Sousa Dias
Waldir Ferreira de Abreu
itor
a re

DESAFIOS DA PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM PERSPECTIVA


DECOLONIAL................................................................................................. 55
João Colares da Mota Neto
Adriane Raquel Santana de Lima
par

PEDAGOGIA-EM-PARTICIPAÇÃO: infância e decolonialidade.................... 85


Ângela do Céu Ubaiara Brito
Ed

Maria Carolina Henrique Marques


Waldir Ferreira de Abreu

PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E EDUCAÇÃO DO CAMPO: elementos


ão

para uma aproximação teórica......................................................................... 97


Alder de Sousa Dias
s

Pedro Correia de Souza


Raimunda Kelly Silva Gomes
ver

DECOLONIALIDADE E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO: por apontamentos


epistemológicos “outros”................................................................................ 113
Vitor Sousa Cunha Nery
POR QUE SULEAR? MARCAS DO NORTE SOBRE O SUL, DA ESCOLA
À GEOPOLÍTICA..........................................................................................135
Marcio D’Olne Campos
UNICAMP e Proposta SULear

or
PEDAGOGIAS E SABERES DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA

od V
“APRENDO DAS ÁGUAS E DAS MATAS, OS ENCANTADOS ESTÃO ATÉ

aut
NO AR”: uma pedagogia decolonial a partir da pajelança na Amazônia.......171
Thaís Tavares Nogueira

R
Maria Betânia Barbosa Albuquerque

o
MULHERES RIBEIRINHAS NA AMAZÔNIA PARAENSE: decolonialidade,
resistências e saberes outros........................................................................ 189
aC
Isabell Theresa Tavares Neri
Ivanilde Apoluceno de Oliveira

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PARTEIRAS TRADICIONAIS NO AMAPÁ: saber tradicional, políticas
visã
públicas e epistemicídio.................................................................................205
Maria das Neves Maciel da Luz
David Junior de Souza Silva
itor

INTERFACES ENTRE O PESAMENTO DECOLONIAL E AS NARRATIVAS


a re

DE DUAS OBRAS DE ENEIDA DE MORAES............................................ 221


Ana D’Arc Martins de Azevedo
Elziene Souza Nunes Nascimento

UMA DEUSA NA AMAZÔNIA: Zélia Amador de Deus, herdeira


par

de Ananse...................................................................................................... 237
Daniela de Oliveira Senna
Ed

Carla Joelma de Oliveira Lopes

PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DECOLONIAIS


ão

PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DE DECOLONIALIDADE NA EDUCAÇÃO


ESCOLAR QUILOMBOLA DA AMAZÔNIA................................................. 255
s

Ana D’Arc Martins de Azevedo


ver

Laís Rodrigues Campos


Simone de Freitas Conceição Souza

OS MODOS DE SABER E FAZER DAS CRIANÇAS QUILOMBOLAS


MARAJOARA-SALVATERRA-PARÁ........................................................... 269
Érica de Sousa Peres
Nazaré Cristina Carvalho
CONVERSAS DO PENSAMENTO DECOLONIAL COM O CURRÍCULO
CULTURAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA.......................................................... 281
Flávio Nunes dos Santos Junior
Marcos Garcia Neira

or
DECOLONIALIDADE E CURRÍCULO: uma análise preliminar da matriz
curricular intercultural para as escolas indígenas do Amazonas................... 295

od V
Lucas Antunes Furtado

aut
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS, INTERCULTURALIDADE CRÍTICA

R
E FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS EM AÇÕES
EXTENSIONISTAS....................................................................................... 313

o
Cristiane do Socorro dos Santos Nery
aC
(RE)EXISTÊNCIAS NO MARAJÓ DAS ÁGUAS E FLORESTAS: letramentos
e experiências inscritos na organização social e nos saberes de comunidades
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ribeirinhas....................................................................................................... 325
visã
Pâmela Beatriz Ferreira Pelegrini
Erika Rodrigues Cavalcante
Eunápio Dutra do Carmo

DECOLONIALIDADE PSICOPEDAGÓGICA: conhecimento teórico-


itor

praxiológico aplicado ao contexto social amapaense.................................... 343


a re

Miquelly Pastana Tito Sanches

ÍNDICE REMISSIVO.................................................................................... 355

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES.................................................... 361


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APRESENTAÇÃO
A presente coletânea “Pedagogias Decoloniais na Amazônia: pesqui-
sas e práticas”, surge a partir de uma palavra agregadora, qual seja: rede.

or
Comumente, esse termo designa entrelaçamento de muitos, muitos fios. Con-

od V
tudo, para explicar com mais precisão a origem desta coletânea, emprega-se

aut
à palavra rede uma metáfora em relação a pesquisadoras e pesquisadores
da região Norte, que têm se ocupado criticamente com a construção de uma
sociedade “outra” desde os marcos praxiológicos da decolonialidade e seus

R
desdobramentos para a educação, inclusive a educação escolar.
Nesses termos, as autoras e autores que compõem “Pedagogias Deco-

o
loniais na Amazônia: pesquisas e práticas” representam três unidades da
aC
federação, situadas no Norte: Amapá, Pará e o Amazonas. Esta rede entrelaça
muitos outros “fios”. Entre estes, contam-se cinco universidades: a Universi-
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dade do Estado do Amapá, a Universidade Federal do Amapá, a Universidade


do Estado do Pará, Universidade Federal do Pará e a Universidade Federal do
visã
Amazonas; três programas de pós-graduação em Educação (Unifap, UEPA
e UFPA), o Programa de Pós-Graduação (PPG) em Geografia da UFPA, o
PPG em Comunicação, Linguagens e Cultura (Unama) e PPG em Estudos
itor

Culturais e Políticas Públicas da Unifap; e seis grupos/núcleos de pesquisa:


a re

Grupo de Estudos, Pesquisas e Práticas em Educação na Amazônia Ama-


paense (GEPEA/UEAP); Grupo de Pesquisa Amazônia Sustentável (Unifap);
o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação, Infância e Filosofia (GEPEIF/
UFPA); o Grupo de Pesquisas Saberes e Práticas Educativas de Populações
par

Quilombolas (EDUQ/UEPA); o Núcleo de Educação Popular Paulo Freire


(NEP/UEPA); e o Grupo de Pesquisa História da Educação na Amazônia
Ed

(GHEDA/UEPA). A compor mais um fio dessa rede, tem-se também a Cátedra


Paulo Freire da Amazônia.
Tantos “fios” assim, apenas foram possíveis de serem entrelaçados porque
ão

contou com um “tear” fundamental: a instituição da “Rede de Pesquisas sobre


Pedagogias Decoloniais na Amazônia” (RPPDA), que entre seus objetivos,
busca produzir conhecimento no campo das Pedagogias Decoloniais, tomando
s

a Amazônia, seus sujeitos, movimentos e territórios, como a especificidade


ver

de suas pesquisas e estudos.


Nesse sentido, a RPPDA, como “tear” fundamental, entrelaça universi-
dades, programas de pós-graduação, grupos de pesquisa e demais iniciativas
coletivas tendo por elemento agregador a contribuição orgânica e horizontal
com a construção de propostas educativas que considerem a realidade socio-
cultural da Amazônia em perspectiva decolonial, por meio de suas pesquisas,
estudos e ações de extensão.
14

A coletânea “Pedagogias Decoloniais na Amazônia: pesquisas e práti-


cas”está organizada em três eixos temáticos: “Fundamentos das Pedagogias
Decoloniais e Aproximações Teóricas”; “Pedagogias e Saberes Decoloniais
na Amazônia”; e “Práticas Pedagógicas Decoloniais”.
O primeiro eixo, que contém sete capítulos, aponta fundamentos con-
ceituais, pedagógicos, genealógicos e epistemológicos sobre o pensamento
decolonial e sua interface com a educação e as pedagogias decoloniais. O

or
segundo eixo, articula cinco capítulos em torno de debates acerca da educa-

od V
ção, de saberes, tendo por contorno as perspectivas feministas, antirracistas,

aut
de gênero e sexualidade, sobretudo a partir das vozes e lutas dos movimentos
sociais, cruzando categorias como raça, etnia, classe e outras, necessárias
para a compreensão da complexidade da realidade amazônica. O terceiro

R
eixo temático também envolve sete capítulos a explicitar práticas pedagógi-
cas insurgentes provenientes da resistência de grupos/classes subalternizados

o
socialmente no contexto da Amazônia.
aC

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Esperamos que o livro contribua para a decolonização dos processos
educativos, inclusive os que se referem à educação escolar, considerando
as positividades e as riquezas socioculturais de quem vivem nas diversas
realidades amazônicas.
visã
Macapá, AP, 27 de novembro de 2019.
As coordenadoras e coordenadores
itor
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par
Ed
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ver
PREFÁCIO
Reinaldo Matias Fleuri1

or
Este livro é de leitura indispensável para quem quer estudar as pedagogias

od V
decoloniais na Amazônia! Por várias razões.

aut
O que me chama a atenção logo no início da leitura é a apresentação
rigorosa da história e dos fundamentos dos estudos críticos da modernidade

R
e colonialidade na América Latina e sua contextualização nas redes de estudo
que estão se desenvolvendo no Brasil.

o
Os três primeiros textos, o de Luiz Oliveira, o de Alder Dias e Waldir
Abreu, assim como o de João da Mota Neto e Adriane Lima, mobilizaram-me
aC
a reler e estudar os textos, a refletir, ampliar, problematizar e aprofundar minha
pesquisa sobre os desafios que a colonialidade nos coloca no cotidiano das
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práticas educacionais.
visã
Entendida como uma invenção das classes dominantes europeias a par-
tir do contato com a América, o conjunto dos movimentos socioculturais,
que historicamente constituíram a modernidade, apresenta suas teorias, seus
conhecimentos e seus paradigmas como verdades universais. Este pressuposto,
itor

paradoxalmente, desqualifica como “particulares”, “bárbaras”, “primitivas” as


a re

histórias construídas por outros povos e movimentos sociais, negligenciando


seus saberes, suas formas de se organizar, de ser e de viver.
A crueldade genocida e epistemicida praticada historicamente pelos pro-
cessos de conquistas coloniais – particularmente os praticados nos últimos
par

séculos pelas corporações e pelos estados imperialistas europeus sobre os


povos dos continentes africano, americano e australiano – são justificadas
Ed

mediante um raciocínio paradoxal.


A lógica formal define todos os seres com base no critério de “exten-
são conceitual” (universalidade-particularidade), considerando que o “todo”
ão

seja de um nível lógico superior às suas “partes”: as partes são contidas no


conjunto, mas o conjunto não pode ser considerado parte de si mesmo. Daí
s
ver

1 Graduado em Filosofia pela Faculdades Anchieta de São Paulo. Mestre em Filosofia e História da Educa-
ção pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutor em Educação pela Universidade Estadual
de Campinas. Pós-Doutor pela Università degli Studi di Perugia, pela Universidade de São Paulo e pela
Universidade Federal Fluminense. Atualmente é professor e pesquisador da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), professor visitante nacional sênior na Universidade do Estado do Pará (UEPA/CAPES) e
coordena a rede de pesquisas “Mover” – Viver em Plenitude: Educação Intercultural e Movimentos Sociais
(UFSC/CNPq). ORCID: 0000-0002-7372-1429. CV: : http://lattes.cnpq.br/0966229092773143. E-mail: rfleuri@
gmail.com. Homepage: www.mover.ufsc.br
16

a “superioridade” do todo sobre as partes. O paradoxo consiste em atribuir a


uma parte o status lógico do todo, ou seja, a afirmação particular, assumida
como universal, contradiz o axioma que a sustenta.
Assim, afirmar a “universalidade” da “civilização moderna”, construída
por um complexo movimento histórico-social originário do continente euro-
peu, induz a considerar “inferiores” todas as outras culturas que divergem do
padrão geral – tanto as culturas que foram subsumidas em seus próprios terri-

or
tórios, quanto as culturas estrangeiras desconhecidas. Assim, a modernidade,

od V
mediante um raciocínio paradoxal, torna plausível a sujeição, a assimilação ou

aut
o extermínio dos povos e das culturas que viveram e reexistem nos imensos e
variados continentes, que foram objetos de sua conquista e de sua crueldade.
A modernidade, pois, gerou a colonialidade, a visão de mundo que

R
entende todos os seres como objetos de manipulação e uso pelo indivíduo
humano (branco, europeu, masculino), por este se definir como único ser

o
“racional” do universo.
aC

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Em contrapartida, a colonialidade sustenta a modernidade, em suas
formas econômicas, políticas, culturais que classificam hierarquicamente
todos os seres humanos e grupos sociais segundo as lógicas de dominação,
exploração, extrativismo, sujeição, funcionais à sustentação e reprodução do
visã
sistema-mundo capitalista globalizante.
Neste contexto, as pedagogias coloniais vêm reproduzindo as relações de
sujeição colonial, mediante a inculcação de paradigmas e práticas de saber, poder,
itor

ser e viver estruturantes do patriarcalismo, racismo, especismo, antropocentrismo.


a re

Descolonizar as pedagogias implica em denunciar seus dispositivos para-


doxais, autoritários, disciplinares, sujeitadores, de modo a mobilizar processos
e práticas de resistência nos diferentes contextos socioculturais. Já decolonizar
significa potencializar as lutas que cultivam reexistencias de sujeitos, povos,
par

culturas, saberes, práticas, instituições ancestrais que proporcionam viver


em plenitude.
Ed

A opção decolonial em educação implica criticidade e militância inter-


cultural, antirracista, antissexista, antihomofóbica e contra todas as formas
moderno-coloniais de exploração e opressão. As pedagogias decoloniais,
ão

muito além operações didáticas tradicionais, são tecidas de modo complexo


por diferentes sujeitos socioculturais, mediante ações de luta, formulação de
ideias e estratégias, realização de propósitos coletivos radicados nos princípios
s

ancestrais do Bem Viver.


ver

Outra dimensão que muito me interpelou durante a leitura dos textos


reunidos na primeira parte do livro foi sua contribuição singular para rever
as conexões das pedagogias decoloniais com diferentes sujeitos e práticas
sociais, bem como com áreas do conhecimento científico e pedagógico.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 17

Ângela Brito, Maria Carolina Marques e Waldir Abreu enfatizam a


criança como protagonista de seu processo de construção de conhecimento e
cultura. E Alder Dias, Pedro Souza e Raimunda Gomes reconhecem a insur-
gência de sujeitos historicamente marginalizados como os ribeirinhos, os
agricultores familiares, os extrativistas, os quilombolas e povos indígenas.
Vitor Nery estuda as contribuições dos estudos subalternos e da deco-
lonialidade para a pesquisa em História da Educação. E Marcio Campos

or
problematiza de modo instigante e pedagógico os pressupostos geopolíticos

od V
coloniais inerentes ao ensino da Geografia nas escolas do sul global.

aut
Ao ler e estudar os textos reunidos na segunda parte da obra, senti-me
convidado a um mergulho no mundo das pedagogias e dos saberes decoloniais
da Amazônia.

R
Thaís Nogueira e Betânia Albuquerque analisam o terreiro de pajelança
como um espaço educativo decolonial, em que os saberes são construídos e

o
compartilhados nas relações cotidianas, com base no respeito, na alteridade
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

cosmológica estabelecida entre humanos e encantados. Isabel Neri e Ivanilde


Apoluceno refletem sobre as matrizes decoloniais que sustentam os saberes
populares construídos por mulheres ribeirinhas da Amazônia paraense. Ao
exercitarem domínio de técnicas agrícolas e de medicamentos naturais, ao
visã
criarem e compartilharem cotidianamente lendas e misticismos, essas mulhe-
res inventam e reinventam lógicas decoloniais de ser e de estar no mundo.
Fiquei também interpelado a rever obras literárias sob a perspectiva
itor

decolonial. Neste sentido, Ana D’Arc Azevedo reinterpreta as narrativas de


a re

duas obras de Eneida de Moraes. Já Daniela Senna e Carla Lopes estudam


Zélia Amador de Deus, uma das principais intelectuais negras da Amazônia.
A leitura dos textos apresentados na terceira parte me trouxe à tona do
cotidiano escolar da Amazônia, possibilitando-me respirar práticas pedagó-
par

gicas decoloniais que vêm sendo cultivadas neste imenso e potente território.
Ana de Azevedo, Laís Campos e Simone Souza estudaram a Educa-
Ed

ção Escolar Quilombola no Pará – proposta antirracista que as comunidades


negras rurais estão construindo desde longa data – e sugerem empoderar a
escola como condutora de sua própria história, responsável por seus diferen-
ão

tes processos e pela solução de seus problemas. Oxalá os poderes públicos


– particularmente os que se sustentam democraticamente pela vontade dos
movimentos populares, como está acontecendo agora em Belém do Pará –
s

assumam condutas administrativas que sustentem a autonomia da comunidade


ver

escolar, de modo que as disputas de narrativas na prática escolar constituam


dialogicamente processos de negociação que cultivem de modo vigoroso,
potente, resistências e reexistências decoloniais.
18

Érica Peres e Nazaré Carvalho focalizam os modos de saber e fazer das


crianças quilombolas no Marajó. Demonstram que essas crianças se consti-
tuem como sujeitos de cultura ao vivenciar aprendizados significativos, com-
partilhando experiências e vivências que na sua vida cotidiana se transformam
em maneiras especificas de saber e de fazer.
Nesse cenário, Flávio Santos Junior e Marcos Neira defendem uma Edu-
cação Física pluriversal, sensível ao enfrentamento de tensões inerentes à

or
colonialidade, em consonância com as demandas surgidas na comunidade

od V
escolar. Isso significa se afetar por práticas corporais de inúmeros territórios

aut
e grupos, possibilitando vivenciar e compreender os infinitos modos como
as próprias comunidades originárias as significam a partir de suas ancestrali-
dades. Quer dizer, maculelê, maracatu, hip-hop, capoeira, funk, huka-huka,

R
marajoara e demais práticas culturais populares passam a compor o currículo
escolar com igual importância e relevância que outras práticas corporais já

o
legitimadas, ensejando o diálogo intercultural crítico e decolonial.
aC

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Nesta luta por ocupar os espaços e territórios escolares, os movimentos
populares de raízes ancestrais, particularmente os indígenas e quilombolas,
estão buscando radicar suas propostas educacionais em seus próprios terri-
tórios geopolíticos e culturais originários. Foi o que apreendi na leitura do
visã
texto de Lucas Furtado, que analisa a matriz curricular intercultural para as
escolas indígenas do Amazonas. Reconhecendo o pioneirismo desta iniciativa
de mediação entre uma cultura pedagógica hegemônica não-indígena e as
itor

culturas indígenas, o autor enfatiza que a organização do currículo por área


a re

de conhecimento pode ser mais uma forma sutil e sofisticada de “embranque-


cimento” da educação escolar indígena, já que “transversaliza duas questões
de extrema importância para os povos indígenas: Movimentos Indígenas e
Território”. Reconhecer, portanto, o protagonismo dos Movimentos popula-
par

res originários e a gestão autônoma de seus territórios ancestrais é o passo


fundador de pedagogias insurgentes e decoloniais.
Ed

Deste modo, é crucial a formação de professores indígenas, organica-


mente enraizados em seus territórios e em suas comunidades tradicionais e
originárias. Cristiane Nery nos conta a proposta de formação de professores
ão

indígenas desenvolvida pelo projeto de Extensão da Universidade Federal do


Amapá, enfatizando que a postura de respeito e reconhecimento dos saberes
ancestrais povos indígenas viabilizou o diálogo e proposição de políticas e
s

práticas educativas adequadas às suas especificidades educacionais.


ver

Por outro lado, ao focalizar práticas escolares em comunidades ribei-


rinhas que sofrem exploração por parte de empresas madeireiras, Pâmela
Pelegrini, Erika Cavalcante e Eunápio do Carmo destacam que processos
de resistência decoloniais empreendidos pela escola da floresta e das águas
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 19

podem ser evidenciados pelos esforços de professores juntamente à alegria


e envolvimento dos alunos e da comunidade. Nestes espaços, os educado-
res buscam direcionar sua atenção a questões e demandas vivenciadas pelos
sujeitos em seus contextos, como suas lutas e resistências por “direito à terra,
por direito à saúde, por direito à educação”. E concluem as autoras e o autor:
“Aderindo, portanto, a elementos essenciais relativos ao contexto das comu-
nidades ribeirinhas marajoaras, as escolas integrantes destes territórios rurais

or
traçam um caminho de pedagogias decoloniais como resistência contra-he-

od V
gemônica inscrita em letramentos da vida”.

aut
Nesta direção, ao analisar o “Projeto Realize: Oficinas Pedagógicas” –
voltado para crianças em vulnerabilidade social e com dificuldades educativas
relacionadas aos cinco primeiros anos do ensino fundamental – Miquelly

R
Sanches projeta a “Decolonialidade Psicopedagógica”, como busca de novas
propostas pedagógicas que resgatem os laços de afetividade no contexto

o
social amapaense.
aC
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A leitura desta preciosa obra suscita o sentimento de gratidão infinita às


coautoras e aos coautores, pela contribuição singular no campo acadêmico
para as lutas decoloniais. Os estudos aqui compartilhados promovem ser-
pentinamente a decolonialização dos territórios acadêmicos e científicos, em
visã
sintonia com as estratégias de lutas por resistência e reexistência de movimen-
tos populares de raízes ancestrais – como os povos amazônidas, indígenas,
quilombolas, ribeirinhos.
itor

Nesta vibração, certamente você, leitora, leitor, poderá alimentar laços


a re

de companheirismo e mesmo de parentesco em diferentes frentes de lutas por


viver, conviver e gerar vida em plenitude.
par
Ed
s ão
ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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ver
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od V
FUNDAMENTOS DAS o
aut
APROXIMAÇÕES TEÓRICAS or
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E
ver
Ed
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O QUE É PEDAGOGIA DECOLONIAL?
Luiz Fernandes de Oliveira

or
od V
Introdução

aut
No século XIX, o pensador alemão Karl Marx, no seu texto sobre as teses

R
de Feuerbach, afirmou que “os filósofos se limitaram a interpretar o mundo
de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX, 1979, p. 14).

o
Essa ideia, nas décadas seguintes, significou uma virada epistemológica no
pensamento ocidental, influenciando a compreensão filosófica e política de
aC
dezenas de gerações de pensadores e intelectuais nos mais diversos campos
das ciências humanas, das diversas perspectivas teóricas e, especialmente,
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no campo da educação.
visã
No século XXI, podemos considerar que outra ideia, expressa por diver-
sos intelectuais Latinoamericanos, tem a possibilidade de se transformar numa
virada epistêmica, agora, não mais e somente dentro dos círculos intelectuais
itor

ocidentais, mas sobretudo, também entre os pensadores fora dos cânones


modernos ocidentais. Essa ideia pode ser sintetizada na seguinte expressão:
a re

“a colonialidade é constitutiva da modernidade” (MIGNOLO, 2005, p. 75).


O Antropólogo colombiano Arturo Escobar, em 2002, apresentou um
texto no terceiro Congresso Internacional de Latinoamericanistas, em Ams-
terdã, intitulado “Mundos e conhecimentos de outro modo”, no qual fazia
par

referência a uma rede de pesquisas denominada “Modernidade/Colonialidade”.


O texto apresentava e analisava as formulações teóricas de alguns intelectuais
Ed

que buscavam propor uma nova perspectiva epistêmica de interpretação da


realidade latino-americana, além de fazer desta um instrumento de diálogo
ão

com os movimentos sociais indígenas e afrolatinoamericanos. Para Escobar


(2003), estes intelectuais, em diálogo com os movimentos sociais, pretendiam
apresentar uma construção alternativa à modernidade eurocêntrica, tanto no
s

seu projeto de civilização quanto em suas propostas epistêmicas.


ver

Os principais nomes que expressam esta perspectiva teórica são predo-


minantemente constituídos por intelectuais da América Latina e apresenta
um caráter heterogêneo e transdisciplinar. As figuras centrais são: o filósofo
argentino Enrique Dussel, o sociólogo peruano Aníbal Quijano, o semiólogo e
teórico cultural argentino Walter Mignolo, o sociólogo porto-riquenho Ramón
Grosfoguel, a linguista norte-americana radicada no Equador Catherine Walsh,
o filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado Torres, o antropólogo colombiano
24

Arturo Escobar, entre outros. Cabe ressaltar que esse grupo mantém diálogos e
atividades acadêmicas conjuntas com o sociólogo norte-americano Immanuel
Wallerstein e o sociólogo português Boaventura de Souza Santos.
Para entender o conceito de Pedagogia decolonial, faz-se necessário a
explicitação de alguns conceitos chaves como: mito de fundação da moderni-
dade, colonialidade (do poder, do saber e do ser), racismo epistêmico, diferença
colonial, transmodernidade e opção decolonial (no campo da educação, a denomi-

or
nada pedagogia decolonial). Trata-se de conceitos novos, forjados nos últimos 30

od V
anos e que começam a dialogar com diversas áreas acadêmicas e, especialmente

aut
no Brasil, na área de educação.
Mas o que esses intelectuais produzem? Quais conceitos e formulações

R
estão presentes em seus livros e artigos? E por que está penetrando nos estu-
dos educacionais brasileiros, em particular, quando se destaca a questão das

o
diferenças no campo educacional?
O termo decolonial (ou opção decolonial) deriva de uma perspectiva teó-
aC

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rica que estes autores expressam, fazendo referência às possibilidades de um
pensamento crítico a partir dos subalternizados pela modernidade capitalista
e, na esteira dessa perspectiva, a tentativa de construção de um projeto teórico
visã
voltado para o repensamento crítico e transdisciplinar, caracterizando-se também
como força política para se contrapor às tendências acadêmicas dominantes
de perspectiva eurocêntrica de construção do conhecimento histórico e social.
A caracterização desses intelectuais com o termo decoloniais, é mais uma das
itor

expressões dadas por alguns pesquisadores que os estudam no Brasil. Na verdade,


a re

é um conjunto de autores denominado por Arturo Escobar (2003) como grupo


de pesquisadores da perspectiva teórica “Modernidade/Colonialidade” (MC).
Uma das principais proposições epistemológicas do grupo MC é o ques-
tionamento da geopolítica do conhecimento, entendida como a estratégia
par

modular da modernidade. Esta estratégia, de um lado, afirmou suas teorias,


seus conhecimentos e seus paradigmas como verdades universais e, de outro,
Ed

invisibilizou e silenciou os sujeitos que produzem “outros” conhecimentos


e histórias. Para vários desses autores, foi este o processo que constituiu a
modernidade, cujas raízes se encontram na colonialidade. Implícito nesta
ão

ideia, está o fato de que a colonialidade é constitutiva da modernidade, e esta


não pode ser entendida sem levar em conta os nexos com a herança colonial
s

e as diferenças étnicas que o poder moderno/colonial produziu.


ver

Assim, o postulado principal do grupo é que “a colonialidade é consti-


tutiva da modernidade, e não derivada” (MIGNOLO, 2005, p. 75). Ou seja,
modernidade e colonialidade são as duas faces da mesma moeda. Graças à
colonialidade, a Europa pode produzir as ciências humanas como um modelo
único, universal e objetivo na produção de conhecimentos, além de deserdar
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 25

todas as epistemologias da periferia do ocidente. As principais categorias de


análise do grupo se constituem nos conceitos e noções sobre o mito de funda-
ção da modernidade, a colonialidade, o racismo epistêmico, a diferença colo-
nial, a transmodernidade, a interculturalidade crítica e pedagogia decolonial.
Escobar (2003), alerta que o programa de investigação MC deve ser
entendido como uma maneira diferente de pensamento em relação às gran-
des narrativas produzidas pela modernidade europeia como a cristandade, o

or
liberalismo e o marxismo. Castro-Gómez (2005), por outro lado, esclarece

od V
que as questões que o grupo levanta se inserem num contexto discursivo

aut
mais amplo, conhecido na academia europeia e norteamericana como a teoria
pós-colonial. Entretanto, reitera que essas questões não são simples recepções
das teorias pós-coloniais, como se fossem sucursais latinoamericanas. São,

R
ao contrário, uma especificidade latinoamericana que estabelece um diálogo
com a teoria pós-colonial e se situa em outra perspectiva, porém fora do eixo

o
moderno/colonial.
aC
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Os principais conceitos

O primeiro conceito da perspectiva teórica Modernidade/Colonialidade


visã
se refere ao mito de fundação da modernidade.
A modernidade foi uma invenção das classes dominantes europeias a
partir do contato com a América. A modernidade não foi fruto de uma autoe-
itor

mancipação interna europeia que saiu de uma imaturidade por um esforço


a re

autóctone da razão que proporcionou à humanidade um pretenso novo desen-


volvimento humano. Foi necessário, segundo Dussel (2009), afirmar uma
razão universal a partir da Europa e estabelecer uma conquista epistêmica
na qual o etnocentrismo europeu representou o único que pôde pretender
par

uma identificação com a “universalidade-mundialidade”. A modernidade foi


inventada a partir de uma violência colonial. Em outros termos, conquistada a
Ed

América, as classes dominantes europeias inventaram que somente sua razão


era universal, negando a razão do outro não europeu.
O segundo conceito tem intrínsecas ligações com o primeiro, denomi-
ão

nado colonialidade. Esta implica na classificação e reclassificação da popu-


lação do planeta, em uma estrutura funcional para articular e administrar
essas classificações, na definição de espaços para esses objetivos e em uma
s

perspectiva epistemológica para conformar um significado de uma matriz de


ver

poder na qual canaliza uma nova produção de conhecimento. Colonialidade


representa, apesar do fim do colonialismo, “um padrão de poder que emergiu
como resultado do colonialismo moderno, porém, ao invés de estar limitado
a uma relação formal de poder entre os povos ou nações, refere-se à forma
como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se
26

articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça”


(MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131). A colonialidade sobrevive até hoje
“nos manuais de aprendizagem, nos critérios para os trabalhos acadêmicos,
na cultura, no senso comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações dos
sujeitos, e em tantos outros aspectos de nossa experiência moderna” (MAL-
DONADO-TORRES, 2007, p. 129).
O terceiro conceito é o de racismo epistêmico. Se a colonialidade ope-

or
rou a inferioridade de grupos humanos não europeus do ponto de vista da

od V
produção da divisão racial do trabalho, do salário, da produção cultural e

aut
dos conhecimentos, foi necessário operar também a negação de faculdades
cognitivas nos sujeitos racializados. Neste sentido, o racismo epistêmico não
admite nenhuma outra epistemologia como espaço de produção de pensamento

R
crítico nem científico. Isto é, a operação teórica que, por meio da tradição de
pensamento e pensadores ocidentais, privilegiou a afirmação de estes serem

o
os únicos legítimos para a produção de conhecimentos e como os únicos com
aC
capacidade de acesso à universalidade e à verdade.

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O quarto conceito se refere a diferença colonial. Introduzido por Mignolo
(2003), a diferença colonial significa pensar a partir das ruínas, das expe-
riências e das margens criadas pela colonialidade na estruturação do mundo
visã
moderno/colonial, como forma de fazê-los intervir em um novo horizonte
epistemológico. A perspectiva da diferença colonial requer um olhar sobre
enfoques epistemológicos e sobre as subjetividades subalternizadas. Supõe
itor

o interesse por outras produções de conhecimento distintas da modernidade


a re

ocidental. O que se produz fora da modernidade epistemológica eurocêntrica,


por sujeitos subalternizados, pode ser identificado como diferença colonial.
O quinto conceito é a transmodernidade. Formulado por Dussel (2005),
este conceito refere-se à proposta, na perspectiva de uma filosofia da libera-
ção, de realização de um processo de integração, que inclui a “Modernidade/
par

Alteridade” mundial (DUSSEL, 2005, p. 66). Por outro lado, carrega a ideia
Ed

de um projeto teórico denominado “diversalidade global” ou “razão humana


pluriversal” que não representa pensar a diferença dentro do universal, mas
a diversalidade do pensamento enquanto projeto universal, pois, segundo
ão

Mignolo (2003), “o pensamento é, ao mesmo tempo, universal e local: o


pensamento é universal no sentido muito simples de que é um componente
de certas espécies de organismos vivos e é local no sentido de que não existe
s

pensamento no vácuo” (p. 287).


ver

Por fim, temos a interculturalidade crítica e a pedagogia decolonial.


A interculturalidade crítica é vista como processo e como projeto polí-
tico. Caracteriza-se como ferramenta dos sujeitos subalternizados e dos
movimentos sociais.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 27

Para Catherine Walsh (2005), a interculturalidade crítica significa a “(re)


construção de um pensamento crítico-outro – um pensamento crítico de/desde
outro modo –, precisamente por três razões principais: primeiro porque está
vivido e pensado desde a experiência vivida da colonialidade [...]; segundo,
porque reflete um pensamento não baseado nos legados eurocêntricos ou da
modernidade e, em terceiro, porque tem sua origem no sul, dando assim uma
volta à geopolítica dominante do conhecimento que tem tido seu centro no

or
norte global” (p. 25).

od V
A interculturalidade crítica não é compreendida somente como um

aut
conceito ou termo novo para referir-se ao simples contato entre o ocidente
e outras civilizações, mas como algo inserido numa configuração concei-

R
tual que propõe um giro epistêmico, capaz de produzir novos conhecimen-
tos e uma outra compreensão simbólica do mundo, sem perder de vista a

o
colonialidade. Essa interculturalidade representa a construção de um novo
espaço epistemológico que promove a interação entre os conhecimentos
aC
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subalternizados e os ocidentais, questionando a hegemonia destes e a invi-


sibilização daqueles.
Este conceito se conecta com as questões educacionais através da deno-
visã
minada Pedagogia decolonial. Pedagogia decolonial é expressar o colo-
nialismo que construiu a desumanização dirigida aos subalternizados pela
modernidade europeia e pensar na possibilidade de crítica teórica à geopolítica
do conhecimento. Esta perspectiva é pensada a partir da ideia de uma prática
itor

política contraposta à geopolítica hegemônica monocultural e monoracional,


a re

pois trata-se de visibilizar, enfrentar e transformar as estruturas e instituições


que têm como horizonte de suas práticas e relações sociais a lógica epistê-
mica ocidental, a racialização do mundo e a manutenção da colonialidade.
Enfim, para iniciar um diálogo intercultural “autêntico”, tem que haver uma
par

visibilização das causas do não diálogo, e isto passa, necessariamente, pela


crítica à colonialidade e à explicitação da diferença colonial.
Ed

Decolonizar, significaria então, no campo da educação, uma práxis


baseada numa insurgência educativa propositiva – portanto não somente
denunciativa – por isso o termo “DE” e não “DES” – onde o termo insurgir
ão

representa a criação e a construção de novas condições sociais, políticas e


culturais e de pensamento. Em outros termos, a construção de uma noção e
s

visão pedagógica que se projeta muito além dos processos de ensino e de trans-
ver

missão de saber, uma pedagogia concebida como política cultural, envolvendo


não apenas os espaços educativos formais, mas também as organizações dos
movimentos sociais. DEcolonizar, na educação, é construir outras pedagogias
além da hegemônica. DEScolonizar é apenas denunciar as amarras coloniais
e não constituir outras formas de pensar e produzir conhecimento.
28

Portanto, para efeito didático-pedagógico, nos cabe aqui esboçar


um pequeno mapa conceitual, demarcando alguns não entendimentos
sobre a opção decolonial e explicitando as principais características da
pedagogia decolonial.

O que não é pedagogia decolonial?

or
Com a divulgação cada vez maior das teorizações decoloniais no Brasil,

od V
nos últimos 10 anos, vem à tona diversas abordagens no campo da educa-

aut
ção, que tentam dialogar com esta perspectiva teórica, especialmente aque-
las abordagens sobre diferenças raciais, culturais e étnicas que envolvem
processos pedagógicos.

R
Entretanto, há algumas incongruências entre abordagens meramente
técnicas na sua forma pedagógica e aquilo que denominamos de pedagogia

o
decolonial. Por exemplo: abordar a questão racial sem ter uma postura política
aC

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antirracista não pode ser caracterizado como postura decolonial.
Bell Hocks (2013) comenta sobre o fato de que os processos de ensino
engajados devem reconhecer que “ser professor é estar com as pessoas” (p. 222).
visã
Esse estar com as pessoas não se restringe a um mero ato técnico-pedagógico,
mas representa uma opção de compartilhar objetivos para um crescimento inte-
lectual e humano, para a criação de uma comunidade de aprendizagem. Este é
o sentido profundo da pedagogia decolonial.
itor

O combate ao racismo como proposta educacional nos espaços escolares


a re

insere a prática de professores na matriz curricular, não somente enquanto


profissionais do ensino, mas ao mesmo tempo, como educadores combaten-
tes por uma outra prática social que tenta eliminar o racismo da sociedade
brasileira. Esta prática educativa, assim pensada, estabelece uma série de
par

conflitos entre sujeitos e posiciona os docentes de um lado da moeda dos


conflitos e desigualdades raciais. Em outros termos, os docentes são mobili-
Ed

zados a intervirem nos processos educacionais e de aprendizagem a partir de


um posicionamento político, de combate a todas as formas de discriminação
e preconceito racial existentes nos espaços escolares e na sociedade.
ão

Posicionar-se, nesta perspectiva, significa rejeitar a neutralidade e o status


quo dominante sobre relações raciais e as desigualdades advindas das mesmas.
E este posicionamento proporciona uma condição decolonial, ou seja, não
s

produz, na prática educativa, somente técnicas para um convívio social, mas


ver

uma práxis transformadora da realidade. Ou como afirma Paulo Freire (1987):

Se os homens [e as mulheres] são seres do quefazer é exatamente porque


seu fazer é ação e reflexão. É práxis. É transformação do mundo. E na
razão mesma, em que o quefazer é práxis, todo fazer do quefazer tem de
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 29

ter uma teoria que necessariamente o ilumine. O quefazer é teoria e prática.


É reflexão e ação (FREIRE, 1987, p. 145).

Assim, não há opção decolonial em educação se as práticas educativas,


mesmo que abordem relações raciais, desigualdades de gênero etc, sejam
marcadas por meras operacionalizações didáticas para aprendizagens de con-
teúdos sobre diferenças e desigualdades.

or
Retornando a questão racial no Brasil em sua dimensão pedagógica e
didática, se não estiver presente a exigência de um engajamento político e

od V
aut
um compromisso teórico rigoroso, mas somente uma abordagem abstrata
que nos remete a teorizações ou conceitualizações acadêmicas como meras
reproduções de conteúdo, a opção decolonial não existe.

R
Neste sentido, abordar a temática racial ou as sociedades africanas entre
jovens e crianças, muitas vezes, significa mobilizar as impressões identitárias

o
e posicionamento social que cada um ocupa na sociedade brasileira. E este
aC
posicionamento, muitas vezes, é identificado a partir do fenótipo que cada
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estudante se atribui ou é atribuído por outro.


Quando um docente inicia esta reflexão entre seus estudantes, já existem
muitos estereótipos sobre as identidades de não brancos, e mais especifica-
visã
mente sobre negros e negras com algumas frases recorrentes:

‘África, a terra dos macacos’, ‘Africanos correm muito porque correm


itor

dos leões’, ‘Na África só tem aidético morto de fome’, ‘O continente afri-
a re

cano só tem uma raça: preto’, ‘Africanos: burros, prostitutas, raquíticos,


analfabetos, bandidos, escravos’, ‘Falar de África é falar de macumba’,
‘O negro foi escravo’, ‘A princesa Isabel libertou os escravos’, ‘Dia 13
de maio é dia dos escravos’ (OLIVEIRA, 2014, p. 90).
par

Muitas dessas ideias são aprendidas na escola e são reforçadas mais


ainda com outros termos e frases como “magia negra”, “moça escurinha,
Ed

mas educada”, “moço pretinho, mas nem parece”, “vida negra”, “tempos
negros”, “fome negra”, “lista negra”, “moreninho, mas honesto”, “preto de
alma branca”, “pretinha que nem um Saci”, “samba do crioulo doido”, “ove-
ão

lha negra da família”, “olha o beiço do negão”, “nariz de crioulo”, “cabelo


ruim”, e muito mais...2
Nessas frases e termos, temos a presença de várias noções e concepções
s

que se afloram como identidades étnicas, estereótipos raciais sobre povos e


ver

2 Esses termos e frases foram recolhidos durante 12 anos de experiências com estudantes de Ensino Médio nas
aulas de sociologia que ministrava no Rio de Janeiro e também de professores da educação básica (também
de sociologia) em diversos encontros específicos nas discussões sobre a Lei 10.639/03. Tais encontros foram
vivenciados também em diversos estados, como Alagoas, Bahia, Brasília, Ceará, Mato Grosso, Minas Gerais,
Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Ver, OLIVEIRA, 2012.
30

culturas, etnocentrismos, racismos etc. Nesse sentido, o trato pedagógico


coloca em questão a dimensão política e identitária, na medida em que o
professor precisa politizar o debate e mobilizar uma reflexão histórica sobre
as relações de poder na sociedade brasileira.
A constatação desta realidade de interação pedagógica, mobiliza-nos a
reflexão de que se faz necessário uma intervenção didática que, com auxílio de
recursos didáticos, possibilite uma profunda reflexão sobre o mito da democra-

or
cia racial e sobre a operação epistemológica que o ocidente europeu realizou

od V
na construção do conhecimento histórico e sociológico sobre raça e relações

aut
raciais. Tratar essas questões como mero conteúdo, sem um posicionamento
político por parte do docente, é reproduzir o modelo de racionalidade técnica
no campo da didática e da pedagogia tradicional que, por sua vez, reproduz

R
modelos hierárquicos de ensino e aprendizagem de matriz colonial.

o
O que é a pedagogia decolonial?
aC

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Uma perspectiva de educação decolonial requer pensar e intervir na rea-
lidade a partir dos sujeitos subalternizados pela colonialidade, como índios,
negros, mulheres, homossexuais e outr@s marcadores das diferenças contra-
visã
postas às lógicas educativas hegemônicas.
Neste sentido, podemos caracterizar a pedagogia decolonial (ou opção
decolonial) a partir das seguintes perspectivas:
itor
a re

• A opção decolonial se constrói em diálogo com as diversas realida-


des educacionais e de movimentos sociais e políticos, que se cons-
tituem como um pensar/ser/fazer/sentir de forma distinta à práxis
e a retórica da modernidade.
par

• Assim, faz-se necessário um diálogo e interseção com os movimen-


tos sociais e suas formulações e teorizações pedagógicas visando à
Ed

transformação da condição colonial opressora;


• Neste diálogo, a produção de conhecimento deve ser considerada como
processos plurais em construção, que não se forjam somente em espaços
ão

acadêmicos ou institucionalizados;
• Faz-se necessário também considerar que não existe a lógica da neu-
tralidade nos processos pedagógicos. Qualquer teorização ou teorias
s

têm lado. Ou seja, posicionam-se a partir da lógica da modernidade, da


ver

colonialidade ou de sua crítica.


• A partir dessa perspectiva, há que se ter uma postura militante, no
sentido de projetar uma intervenção permanente sobre a realidade
a ser transformada sempre em diálogo e troca intercultural com os
sujeitos subalternizados pela modernidade-colonialidade.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 31

Essa última caracterização se constitui como um dos grandes desafios


teóricos e pedagógicos, pois além de se constituir como polêmica na comu-
nidade acadêmica, ela é questionada do ponto de vista epistêmico.
Em uma outra publicação recente (OLIVEIRA, 2018), afirmamos que:

No campo das ciências humanas e mesmo das ciências naturais, o pensa-


mento requer o desejo de intervir no mundo. Não há simples constatações

or
de algo dado. No avanço das ciências e do conhecimento sempre tivemos
o empenho e o engajamento de indivíduos e coletivos. Nas pesquisas que

od V
produziram a máquina a vapor, o avião, os processos de combustão de

aut
petróleo, as investigações no âmbito da física, da genética, dentre outras,
sempre foi necessário um engajamento e investimento de tempo e recursos

R
para o desenvolvimento de procedimentos científicos e aprofundamento da
compreensão humana. O sujeito do conhecimento sempre foi implicado

o
com sua realidade, necessitou se empenhar para que seu conhecimento
fosse aceito por outros, primeiro numa comunidade científica e em seguida
aC
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por uma sociedade (2018, p. 82).

A crítica epistêmica ao que podemos denominar de condição militante


na construção do conhecimento provem da construção moderno colonial da
visã
ciência ocidental, fundamentado na perspectiva da neutralidade axiológica
que tem como padrão, uma postura cognitiva que afirma não poder exis-
tir uma isenção de valores numa investigação, pois nenhum procedimento
itor

científico pode conter uma resposta sobre a desejabilidade de uma coisa. A


a re

natureza da ciência é testar, experimentar sem um julgamento de valor de


quem está investigando.
Entretanto, a ideia de neutralidade axiológica tem sua raiz naquilo que
Quijano (1992) denomina de Colonialidade, ou seja, a operação política e
par

epistêmica que, a partir da dominação colonial das Américas, afirmou uma


dominação colonial, forjando uma complexa concepção cultural denominada
Ed

racionalidade, estabelecendo um paradigma universal de conhecimento, onde


existe uma humanidade racional (a Europa) e o resto do mundo.
Para Castro-Gómez, a colonialidade faz referência a um tipo hegemônico
ão

de produção do conhecimento que ele denominou de “la hybris del punto cero”
referindo-se a uma forma de conhecimento humano que possui pretensões
de objetividade e cientificidade partindo do pressuposto de que o observador
s

não forma parte do observado. Para este autor:


ver

[...] o ponto zero é o princípio epistemológico absoluto, mas também o


controle social e econômico do mundo. Segue a necessidade que teve o
Estado espanhol (e logo depois as demais potências hegemônicas do sistema
mundo) para eliminar qualquer sistema de crença que não favoreceu a visão
32

capitalista do homus economicus. Já não poderiam coexistir diferentes for-


mas de “ver o mundo”, mas se deveria taxonomizá-las de acordo com uma
hierarquia de tempo e espaço. As outras formas de conhecer foram decla-
radas como pertencentes ao “passado” da ciência moderna, como “doxa”
que enganava os sentidos, como “superstição” que impediam a passagem
para a “maioridade”, como “obstáculo epistemológico” para a obtenção da
certeza. A partir da perspectiva do ponto zero, os conhecimentos humanos

or
foram ordenados em una escala epistemológica que vai desde o tradicional
até o moderno, desde a barbárie até a civilização, desde a comunidade

od V
até o indivíduo, desde a tirania até a democracia, desde o individual até o

aut
universal, desde o oriente até o ocidente. Estamos, então, diante de uma
estratégia epistêmica de domínio [...] (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 63-64).

R
A crítica de Castro-Gómez chega à conclusão de que a epistemologia
europeia se fundamentou na projeção em um sujeito cognoscitivo transcen-

o
dental e em um sujeito empírico europeu, que é branco, masculino, heteros-
aC

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sexual e pertencente à classe média. Destaca ainda que é uma ilusão observar
e capturar uma totalidade se não se leva em consideração o próprio lócus de
observação. Neste sentido, a epistemologia moderna se construiu presumindo
visã
uma perspectiva universal de observação e um lócus privilegiado de enuncia-
ção, cego para a observação de seu próprio lócus.
Neste sentido, a opção decolonial em educação, além da perspectiva militante,
também produz conhecimento pedagógico, tendo como fundamento procedimental
itor

a intervenção junto e com a realidade dos sujeitos envolvidos no processo educacio-


a re

nal. Pedagogia decolonial é um ato político intercultural, antirracista, antissexista,


antihomofóbico e contra todas as formas de exploração e opressão constituídas pela
Modernidade/Colonialidade. Pedagogia Decolonial é produção de conhecimento
no ato de transformar a realidade colonial, por parte dos agentes educativos junto/
par

com os movimentos sociais. Pedagogia decolonial é aprender a desaprender as


marcas coloniais de nossa formação e reaprender novas perspectivas de mundo
Ed

a partir da diferença colonial, enfim, é aprender a desaprender para reaprender


novas posturas, novas ações de luta, novas ideias para um Bem Viver. É um
campo aberto, complexo e que não pode ser entendido como operações didáticas
ão

tradicionais, mas que estão em constante construção por parte de sujeitos coletivos.
s
ver
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 33

REFERÊNCIAS
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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PEDAGOGIAS E DIDÁTICAS
DECOLONIAIS: subsídios genealógicos

or
Alder de Sousa Dias
Waldir Ferreira de Abreu

od V
aut
Para um começo...

R
Como tentativa de transposição de ideias em linguagem escrita surge este

o
texto. Para manter sua pujança comunicativa – própria da vitalidade de uma
aC
conversa – pedimos que seja lido se mantendo a linha dialógica com quem
o ler, ou seja, você. Isso implica em situar que não são dois autores – “que
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tudo sabem” – que se dirigem à leitora ou ao leitor, que “nada sabem”. Ao


contrário, reconheçamo-nos como sujeitos em toda nossa potência humana.
visã
Por isso, fica o convite para que você se sinta à vontade para fazer avançar
as ideias-texto que seguem nas próximas linhas, da mesma maneira que nós,
autores, sentimo-nos satisfeitos em trazer para essa “conversa” o tema das
itor

pedagogias e das didáticas decoloniais.


a re

Feito esse importante convite, cabe mencionar que o texto gira em torno
de um objetivo mais amplo, a análise de elementos genealógicos das peda-
gogias e didáticas decoloniais no contexto brasileiro. Para tanto, nas demais
seções, realiza-se: um delineamento genealógico da decolonialidade e da sua
relação com a Pedagogia; advoga-se que a Didática Crítica Intercultural se
par

constitui em um marco importante da genealogia das didáticas decoloniais


Ed

no Brasil; e que se faz imperativo decolonizar a pedagogia e a didática, e a


via da transmodernidade aparenta ser um caminho seguro.
O texto tem sua historicidade. Entre alguns elementos, destaca-se que foi
ão

feito como parte do processo formativo de doutoramento em Educação, desen-


volvido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto
de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará, assim como faz
s

parte de uma iniciativa da Rede de Pesquisas sobre Pedagogias Decoloniais


ver

na Amazônia, que agrega pesquisadores de diferentes universidades do Norte


do país, de maneira pluriversal.
Estruturalmente, o texto tem suas bases em um trabalho anterior (DIAS;
ABREU, 2019), trazendo por isso algumas confluências como a dimensão
metodológica, não sem motivo o presente texto resultar de uma pesquisa biblio-
gráfica, que ao adotar elementos da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1991),
ancora-se principalmente nas seguintes categorias analíticas: decolonialidade
36

(MIGNOLO, 2008; MALDONADO-TORRES, 2008), pedagogia decolonial


(MOTA NETO, 2016), didática crítica intercultural (CANDAU, 2018) e didá-
tica decolonial (DIAS; ABREU, 2019).
Assim, após apresentar em linhas gerais o teor do presente texto, consi-
dera-se que o mais importante é reforçar o convite para que nos encontremos
como sujeitos que somos e que você se sinta à vontade para fazer avançar as
ideias-texto o tema das pedagogias e didáticas decoloniais, que seguem nas

or
próximas linhas.

od V
aut
Decolonialidade e pedagogias decoloniais:
elementos genealógicos

R
Nas próximas linhas, será abordada nossa compreensão de decolonia-

o
lidade e alguns conceitos3 que lhes é diretamente relacional. De nossa parte,
esse caminho lógico-argumentativo talvez seja uma boa opção didática para
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


alcançar, enfim, o objetivo central da seção, isto é, o delineamento de uma
genealogia da decolonialidade e sua relação com a Pedagogia, a apontar para
Catherine Walsh e Zulma Palermo, integrantes da Rede Modernidade/Colo-
visã
nialidade (M/C), que desenvolveram produções sobre pedagogias decoloniais.
O colonialismo – como maneira de dominação e de exploração de territó-
rios e de outros povos – surge a partir do século XV, quando países europeus,
principalmente Espanha, Portugal, França, Inglaterra e Holanda passam a
itor

expandir seus territórios4. De maneira dinâmica na história, deste, surgiu a


a re

colonialidade como conjunto de forças interiores que mantêm hierarquias


distintas sobre expressões existenciais entre povos dominados e dominadores,
que se sustentam em uma classificação étnica/racial. Desse modo, a despeito
do fim do colonialismo, a colonialidade perdura, inclusive, ajudando a manter
par

a lógica excludente do capitalismo.


Ed

3 A respeito dessas categorias, sugere-se a leitura para aprofundamento dos seguintes textos:
4 QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. de S.; MENESES, M. P (org.).
Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 84-130. Disponível, com outra editoração, em: http://
ão

www.mel.unir.br/uploads/56565656/noticias/quijano-anibal%20colonialidade%20do%20poder%20e%20
classificacao%20social.pdf. Acesso em: 18 jul. 2020.
DUSSEL, E. 1492: o encobrimento do outro – a origem do mito da modernidade. Petrópolis-RJ: Vozes,
1993. Disponível em: https://enriquedussel.com/txt/Textos_Libros/45.1492_O_encobremento_do_outro.
s

pdf. Acesso em: 18 jul. 2020.


ver

DUSSEL, E. Europa, Modernidad e Eurocentrismo. In: LANDER, E (org.). La colonialidad del saber:
eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000. p. 24-33.
Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100708040738/4_dussel.pdf. Acesso em: 18
jul. 2020.
DUSSEL, E. Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2012. Disponível, com outra editoração, em: https://enriquedussel.com/txt/Textos_Libros/50.Etica_da_liber-
tacao.pdf. Acesso em: 18 jul. 2020.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 37

O terceiro conceito relacional é a modernidade, que nasce com a con-


quista das Américas, em 1492. A Modernidade surge com dois conteúdos
semânticos. O primeiro se refere ao esforço da razão a abrir à humanidade
as portas de um novo desenvolvimento histórico do ser humano. O segundo
conteúdo semântico diz respeito à justificativa de uma práxis irracional de
violência à alteridade extraeuropeia, que se traduz no mito da modernidade.
Dias e Abreu (2019, p. 1222-1223) pontuam que o mito da modernidade,

or
tal como desenvolvido por Dussel, constitui-se em um processo com sete

od V
elementos fundamentais:

aut
(1) sustenta-se uma posição ideologicamente eurocêntrica de que a civi-

R
lização moderna é mais desenvolvida, superior; (2) sua superioridade a
“obriga” — como exigência moral — a desenvolver aos mais primitivos,
rudes, bárbaros, isto é, os povos conquistados; (3) a Europa se coloca

o
como paradigma de desenvolvimento (falácia desenvolvimentista); (4)
aC
a violência como “guerra justa” se impõe aos povos conquistados que
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

resistem ao processo civilizador; (5) a civilização moderna eurocêntrica


interpreta a violência como ato inevitável no sentido próximo de um
“sacrifício salvador”; (6) os povos conquistados são culpados pela vio-
visã
lência, a guerra justa — a subjetividade moderna eurocêntrica se coloca
inocente e como emancipadora da culpa de suas próprias vítimas; (7)
por fim, apresenta-se a violência como “os custos” da modernização dos
itor

povos “atrasados” (imaturos), das raças escravizadas, do sexo feminino


apresentado como frágil etc.
a re

Ter clareza prévia do que venha a ser colonialismo, colonialidade e


modernidade auxilia sobremaneira na compreensão da decolonialidade, que
para Mignolo (2008, p. 249 – tradução nossa) é explicada da seguinte maneira:
par

O argumento básico (quase um silogismo) é o seguinte: se a colonialidade


Ed

é constitutiva da modernidade e a retórica salvacionista da modernidade


pressupõe a lógica opressiva e condenatória da colonialidade [...], essa
lógica opressiva produz uma energia de descontento, de desconfiança, de
ão

desprendimento entre aqueles que reagem ante a violência imperial. Essa


energia se traduz em projetos de decolonialidade que, em última instância,
também são constitutivos da modernidade.
s
ver

Nesse sentido, a decolonialidade surge como energia de resistência no


sentido dialético-material ante à colonialidade e à modernidade com mito,
que se alicerça na materialidade das vítimas negadas ao serem tomadas por
uma postura crítica. Passo central para a luta-afirmação de suas vidas ante a
modernidade/colonialidade, desde o ano de 1492.
38

Corroborando essa perspectiva de decolonialidade, Maldonado-Torres


apresenta o conceito de atitude des-colonial: “A atitude des-colonial nasce
quando o grito de espanto ante o horror da colonialidade se traduz em uma
postura crítica ante o mundo da morte colonial e em uma busca pela afirma-
ção da vida daqueles que são mais afetados por tal mundo” (2008, p. 66-67
– tradução nossa).
Contudo, a decolonialidade passa a ganhar mais contundência teórica

or
e epistemológica apenas por volta dos anos 1990, com a constituição da

od V
rede modernidade/colonialidade, que é caracterizada por Oliveira e Candau

aut
(2010, p. 17) da seguinte maneira: “O grupo é formado predominantemente
por intelectuais da América Latina e apresenta caráter heterogêneo e trans-
disciplinar”. Este grupo mantém diálogos e atividades acadêmicas, tendo

R
como foco a construção de uma sociedade não eurocentrada, em relação ao
projeto de civilização.

o
Portanto, cabe destacar que a decolonialidade não é apenas energia de
aC
resistência (ou atitude des-colonial). É também razão des-colonial, isto é,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


uma postura ético-política e teórica que, ao se opor à mentira e à hipocrisia
moderna colonial, enfoca novas bases para o conhecimento e, sobretudo,
busca caminhos para um humanismo de reconhecimento das alteridades em
visã
nível planetário (MALDONADO-TORRES, 2008).
A Decolonialidade – energia de resistência/atitude des-colonial-razão
des-colonial – não é prerrogativa de intelectuais em geral e nem, especi-
itor

ficamente, de professores/pesquisadores universitários. Ela opera em mão


a re

dupla, isto é: pela luta e resistência contra a modernidade/colonialidade de


movimentos sociais, sindicatos e demais grupos sociais organizados e por
proposições de mundos-outros, o que implica na viabilidade de elaborações
teóricas de intelectuais engajados, comprometidos com questões locais, mas
sem perder a relação com o global.
par

São muitos os sujeitos que se engajam em projetos “outros” de sociedade


e de processos educativos, em distintas situações, que se colocam contra a
Ed

pedagogia da matriz modernidade/coloniadade e que propõem pedagogias


críticas alinhadas ao projeto decolonial, evidenciando suas especificidades,
sem perder de vista o diálogo com o todo. Nesse sentido, corrobora Palermo
ão

(2014, p. 139):

Estas situações dialógicas tornadas ato por distintos agentes, de distintas


s

pertinências no espaço educativo e disciplinar tornaram visíveis, ao mesmo


ver

tempo, os problemas específicos e as expectativas gerais em direção a


uma ordem transformadora de saber. Uma ordem nascida do diálogo,
que evite a reprodução do pensamento único desprendido das relações de
poder definitivamente vigentes na pedagogia do controle e da autoridade,
na ‘pedagogia da crueldade’.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 39

Dessa práxis decolonial engajada, surgem expressões de resistência-luta-


produção intelectual, como é o caso da pedagogia decolonial, cuja definição
adotada para efeito desse texto é a seguinte:

[...] a pedagogia decolonial refere-se às teorias-práticas de formação


humana que capacitam os grupos subalternos para a luta contra a lógica
opressiva da modernidade/colonialidade, tendo como horizonte a formação

or
de um ser humano e de uma sociedade livres, amorosos, justos e solidários
(MOTA NETO, 2016, p. 318).

od V
aut
Portanto, pedagogia que tem sua identidade ancorada na práxis da luta
contra a colonialidade/“modernidade”, que se dá por meio de processos de

R
formação humana, tendo em vista a construção de uma sociedade justa, solidá-
ria, livre e amorosa, que, de nosso ponto de vista, apontam para a proposição

o
de sociedades (inclusive de sistema econômico) e de processos educativos
aC
que considerem positivamente a alteridade e a pluriversalidade que marca o
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

gênero humano em todos os quadrantes do planeta.


Na América Latina há expressões de luta e resistência que se traduzem
como pedagogias decoloniais, como é o caso dos movimentos de resistência
visã
andinos (WALSH, 2009) e a educação popular (MOTA NETO, 2016). Por
esse motivo, faz-se muito mais pertinente o uso do termo no plural: pedago-
gias decoloniais, do que seu uso no singular, haja vista que os sujeitos e os
itor

contextos são pluriversos por natureza. Ideia reforçada por Arroyo (2012) ao
a re

defender que para outros sujeitos, é preciso outras pedagogias.


Inclusive, não que seja necessário, mas a própria matriz do conhecimento
moderno pode reforçar essa ideia, tal como afirma um filósofo da educação
alinhado a uma epistemologia euro-norte-americana, “[...] quando vamos para
o âmbito prático, não temos pedagogia e sim pedagogias” (GHIRALDELLI
par

JR., 2012, p. 10).


Dito isso, chega-se a um ponto importante dessa seção, mas não ainda a sua
Ed

parte central. Delineou-se uma compreensão de decolonialidade e de pedagogias


decoloniais. Nesse momento, cabe abordar alguns elementos genealógicos.
ão

Pós-colonialismo, decolonialidade e pedagogias


decoloniais no Brasil: uma sumária genealogia
s
ver

Está claro que a decolonialidade enquanto energia de resistência/atitude


“des-colonial” remonta à conquista das Américas, cronologicamente situada
desde o ano de 1492. Do ponto de vista de uma sistematização teórica, a razão
des-colonial tem sua gênese em um período muito mais recente. Remonta
aos anos 1950, com Aimé Césaire com “Discurso sobre o Colonialismo”,
40

a 1957 com Albert Memmi ao publicar “Retrato do Colonializado precedido


de retrato do colonizador” e a 1961 quando Frantz Fanon lança “Os conde-
nados da terra”.
Não é nosso objetivo nesse texto adentrar aos pormenores conceituais de
destes autores. O que se quer, de fato, é adotar uma firme decisão: situá-los
como autores pós-coloniais. De um lado, tem-se Memmi – da Tunísia, país
africano colonizado pela França, que lutou pela independência de seu país,

or
mesmo migrando para a metrópole e adotando cidadania francesa. De outro,

od V
tem-se Césaire e Fanon, representando o pós-colonialismo desde o lado do

aut
Caribe, como apontam Neves e Almeida (2012).
Esta decisão se justifica porque – mesmo em trabalhos que objetivam
abordar a constituição da Rede M/C – tem-se adotado a compreensão de que o

R
pós-colonialismo é “[...] um conjunto de contribuições teóricas oriundas prin-
cipalmente dos estudos literários e culturais, que a partir dos anos 1980 ganha-

o
ram evidência em algumas universidades dos Estados Unidos e da Inglaterra”
aC
(BALLESTRIN, 2013, p. 90). Nessa cronologia, Césaire, Memmi e Fanon

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


são apresentados não como autores pós-coloniais, mas como antecedentes/
precursores do pós-colonialismo, e isso não pode ser tratado como trivialidade
intelectual, que não seja digna de uma crítica decolonial.
visã
Em nossa compreensão, tal abordagem não rompe com a superioridade da
racionalidade moderna no sentido das inúmeras expressões de colonialidade.
Ao contrário, reforça o status do que Mignolo (2014a) tem denominado de teo
itor

e ego-política do conhecimento e do entendimento, como marco da hegemonia


a re

da modernidade ocidental, centrada em sua diversidade interna, fechada para


a alteridade em suas muitas instâncias de exterioridade, e, obviamente, sem
afirmar saberes constituídos em distintas histórias locais, inclusive as que
provêm da experiência da colonialidade, como é o caso das contribuições de
Césaire, Memmi e Fanon.
par

Assim, a sumária genealogia que se apresenta tem como marco do


Ed

pós-colonialismo os anos de 1950, até porque, no que se refere à decolo-


nialidade – energia de resitência/atitude des-colonial e razão des-colonial
– concorda-se com Mignolo (2014a, p. 26 – tradução nossa) ao afirmar que:
ão

“os textos de Aimé Cesairé e Frantz Fanon podem considerar-se fundadores


dos discursos de libertação e do pensamento decolonial”.
Na sequência, considerando-se criticamente a relação de poder/saber
s

da geopolítica do conhecimento, tem-se a partir de 1960 a 1980, a evidência


ver

genealógica do centro, representado pela Inglaterra e Estados Unidos, mais


precisamente no âmbito dos estudos culturais e literários, inclusive com um
marco cronológico importante: a fundação do Centro de Estudos Culturais con-
temporâneos, na Universidade de Birminghan (Inglaterra) (BAPTISTA, 2018).
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 41

Na esteira da referência anglo-saxã – de centro do poder/saber – surge na


década seguinte os Estudos Subalternos, conforme aponta Ballestrin (2013,
p. 92): “Na década de 1970, formava-se no sul asiático o Grupo de Estudos
Subalternos [...]” que na década de 1980 “[...] se tornaram conhecidos fora
da Índia, especialmente através dos autores Partha Chatterjee, Dipesh Cha-
krabarty e Gayatri Chakrabarty Spivak” (p. 92).
De acordo com Baptista (2018, p. 104): “Inspirados nos Estudos Subal-

or
ternos asiáticos, funda-se no início dos anos de 1990, o Grupo Latino-ame-

od V
ricano dos Estudos Subalternos, nos Estados Unidos”, tendo seu manifesto

aut
publicado no ano de 1993.
Contudo, inúmeras críticas de membros do Grupo causam sua instabi-
lidade. Ballestrin (2013) destaca a perspectiva de imperialismo dos estudos

R
culturais pós-coloniais e subalternos, pois sua base teórica (Foucault, Der-
rida, Gramsci e Guha) permanece eurocêntrica, o que, em tese, dificulta o

o
aprofundamento e a radicalização da crítica. Ademais, um espelhamento do
aC
contexto indiano para o contexto latino-americano ocultaria, no debate, sua
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própria trajetória histórica de dominação e de resistência.


Para Baptista (2018, p. 105), “Essas e outras críticas, como o rompimento
com a episteme do Norte, levaram à dissolução desse grupo sobre Estudos
visã
Subalternos em 1998 e, daí, nasce o Grupo Modernidad/Colonialidad – M/C”.
De nossa parte, ancorados em Grosfoguel (2013, p. 42 – tradução nossa),
opta-se pelo termo “rede” em vez de grupo, conforme o autor esclarece:
itor

Primeiro, gostaria de esclarecer que não existe um grupo de modernidade/


a re

colonialidade, isso é uma ficção. Por favor, escreva como estou dizendo.
É uma grande ficção, não existe tal coisa. O que existe é uma rede, e é
uma rede muito frágil. As pessoas acreditam que este é um grupo e que
pensamos igual. Não, aqui ninguém pensa igual. A rede é heterogênea e
par

em seu interior existem fortes críticas.


Ed

Entre os principais representantes da Rede (M/C), menciona-se Catherine


Walsh, Zulma Palermo, Aníbal Quijano (falecido em 31 de maio de 2018),
Enrique Dussel, Walter Mignolo, Nelson Maldonado-Torres, Arturo Escobar,
ão

Ramón Grosfoguel e Santiago Castro-Gómez5.


Para o objeto desse texto, Zulma Palermo e Catherine Walsh recebem
maior destaque, haja vista ambas terem produzido referenciais de pedagogias
s

decoloniais. Destaca-se que ambas adentram à Rede M/C, respectivamente,


ver

em 1999 e em 2001 (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).

5 Além de Ballestrin (2013) e Baptista (2018), destaca-se o capítulo 2 de Mota Neto (2016) por realizar uma
densa e detalhada síntese da decolonialidade, desde Frantz Fanon ao contexto da Rede M/C. Nessa mesma
direção, entre os autores da Rede M/C, aponta-se o trabalho de Castro-Gómez e Grosfoguel (2007), a
constar nas Referências desse texto.
42

No Brasil, o texto mais evidenciado de Walsh é “Interculturalidade Crí-


tica e Pedagogia Decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver”, que se constitui
em um capítulo de coletânea de textos organizado por Candau (2009). No
caso de Palermo, tem-se “Para una Pedagogía Decolonial”, livro prefaciado
por Walter Mignolo e publicado em 2014 pela Editora Del Signo, de Buenos
Aires, que faz parte da Série “El desprendimiento”, a reunir “[...] diversos
ensaios pela ideia do ativo abandono das formas de conhecer que nos sujei-

or
tam, e modelam ativamente nossas subjetividades nas fantasias das ficções

od V
modernas” (MIGNOLO, 2014b, p. 7 – tradução nossa).

aut
Contudo, cabe uma reflexão por paralelismo: por mais consolidado
que esteja, “[...] o pós-colonialismo [anglo-saxônico] não é prerrogativa de
autores diaspóricos ou colonizados das universidades periféricas” (BAL-

R
LESTRIN, 2013, p. 91). Da mesma maneira, ter como objeto de estudo a
decolonialidade latino-americana não é prerrogativa, ou seja, não é exclusi-

o
vidade dos integrantes da Rede M/C.
aC
Se assim fosse, seria um contrassenso de Mignolo (2008) e de Maldona-

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


do-Torres (2008) conceituá-la como energia de resistência/atitude des-colonial
(diretamente relacionada com o colonialismo, a conquista das Américas e
a modernidade enquanto mito) e como razão des-colonial, instituída muito
visã
recentemente, tendo por marco principal a constituição da Rede M/C, em 1998.
Seguindo essa lógica e trazendo o debate decolonial para a Pedagogia,
ainda que tardiamente, o Brasil tem se ocupado dessa discussão. Até onde
itor

conseguiu-se pesquisar, aponta-se que a primeira tese em Educação a ter como


a re

suporte teórico a decolonialidade foi “Histórias da África e dos africanos na


escola. As perspectivas para a formação dos professores de História quando
a diferença se torna obrigatoriedade curricular”, de autoria de Luiz Fernan-
des de Oliveira, defendida em 8 de abril de 20106, no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em Educação da Pontfícia Universidade Católica do Rio
par

de Janeiro (PUC-Rio).
Em nossa perspectiva, apesar de não ter como objeto de pesquisa as
Ed

pedagogias decoloniais, compreende-se que a tese traz avanços à decolonia-


lidade no contexto brasileiro. Isto porque, Oliveira (2010), ao ancorar-se na
abordagem de pedagogia decolonial de Catherine Walsh, que surgiu no âmbito
ão

dos movimentos sociais indígenas andinos, originaliza tal abordagem a partir


de sua reinterpretação à educação das relações étnico-raciais no Brasil, mais
s

precisamente, desde a implementação da Lei 10. 639/2003. Eis um salto de


ver

relevância às pedagogias decoloniais que precisam ser (re)inventadas consi-


derando-se os diversos condicionantes sócio-históricos de povos e grupos que
sofrem das mazelas da modernidade/colonialidade, incluindo-se aí o próprio
povo brasileiro.
6 De acordo com dados contidos na própria Tese.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 43

Outro marco central ao debate entre a decolonialidade e a Pedagogia é a


tese “Educação Popular e Pensamento Decolonial Latino-Americano em Paulo
Freire e Orlando Fals Borda”, de João Colares da Mota Neto, produzida no
âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação do Instituto de Ciências
da Educação da Universidade Federal do Pará e defendida no ano de 2015.
Metodologicamente, consiste em uma tese teórica que não apenas se
sustenta nos marcos referenciais da decolonialidade. O autor aponta limi-

or
tações das formulações teóricas da Rede M/C, por exemplo: em relação ao

od V
economicismo de Quijano e Wallerstein; a demasiada ênfase ao racismo e a

aut
pouca crítica ao capitalismo de Maldonado-Torres; e a discordância com Walsh
sobre a maneira de compreender o legado de Paulo Freire à decolonialidade
(MOTA NETO, 2015).

R
O autor alcança os objetivos propostos pela tese, os quais destacam-se,

o
nesse texto, apenas dois: a análise da constituição de uma concepção decolo-
nial nos pensamentos de Orlando Fals Borda e Paulo Freire – estes compreen-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

didos como antecedentes do debate decolonial – assim como a explicitação


de pressupostos de uma pedagogia decolonial como expressão da educação
popular, fazendo avançar ainda mais as pedagogias decoloniais para além do
visã
contexto andino.
Assim, colocam-se ambos os autores – Oliveira (2010) e Mota Neto
(2015) – como marcos genealógicos ao debate da decolonialidade em relação
com a Pedagogia. O primeiro, por fazer avançar as pedagogias decoloniais de
itor

Walsh nos marcos da educação das relações étnico a partir da implementação


a re

da Lei 10. 639/2003 e o segundo autor, principalmente por desenvolver uma


nova definição de pedagogias decoloniais desde a educação popular latino-a-
mericana, por delinear pressupostos teórico-metodológicos decoloniais e por
situar Freire e Fals Borda como antecedentes da decolonialidade.
par

Dando sequência ao texto, considerando seu objeto de estudo, isto é, uma


genealogia de didáticas decoloniais, analisaram-se algumas produções pró-
Ed

prias da Didática, compreendida como campo e disciplina ligada à Pedagogia


(HEGETO, 2014). Nesse passo, encontrou-se a Didática Crítica Intercultural,
que, de acordo com nosso ponto de vista, constitui-se no principal marco
ão

genealógico para o debate das didáticas decoloniais.


s

Didática crítica intercultural: uma senda


ver

genealógica às didáticas decoloniais no Brasil

Primeiramente, parte-se do pressuposto de que “não foi” e “não é”


pretensão da Didática Crítica Intercultural se tornar uma didática decolonial.
Mesmo assim, ela assume seu lugar de destaque na genealogia das didáticas
44

decoloniais no Brasil, sobretudo por sua contribuição para o reconhecimento


das alteridades negadas, das culturas do cotidiano da escola e pela aproxima-
ção teórica com Catherine Walsh, como uma das integrantes da Rede M/C.
Destacar esse pressuposto, ao nosso modo de ver, é condição central para
se seguir com a análise e se evitar uma crítica infundada fora do condicionante
histórico-social e teórico da Didática Crítica Intercultural.
Dando sequência ao diálogo, desde o ponto de vista de uma razão

or
des-colonial – tal como propõe Maldonado-Torres (2008) – defende-se que

od V
um condicionante a contribuir na genealogia de didáticas decoloniais no

aut
contexto brasileiro é a constituição da Didática Crítica Intercultural, que
remonta à década de 1980. A seguir, passa-se a realizar uma análise crono-

R
lógica desta perspectiva de didática.
Indica-se que o primeiro marco genealógico que atesta tal assertiva é a

o
organização da coletânea de textos intitulada de “A Didática em Questão”,
publicada no início dos anos 1980, pois, como afirmar Candau (1996, p. 9
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


– destaque nosso), “Esta publicação reúne os principais trabalhos apresenta-
dos no Seminário A Didática em questão, promovido pelo Departamento de
Educação da PUC/RJ, com o apoio do CNPq, e realizado no período de 16
visã
a 19 de novembro de 1982”.
No primeiro capítulo desta coletânea, de autoria de Candau (1996), são
explicitados os fundamentos de sua proposta de didática. Para tanto, no corpus
do texto, analisa o ensino da didática, desde a década de 1960. Destaca que
itor

deste período até a década de 1970. a didática foi abordada com ênfase no
a re

tecnicismo, com base no pressuposto da neutralidade. Dos anos 1970 a 1980,


a ênfase se deu na dimensão política que é inerente a toda e qualquer prática
pedagógica, mas com negação da dimensão técnica. Diante dessa conjuntura
polarizada, a autora propõe a articulação orgânica das dimensões humana,
par

técnica e político-social do processo ensino-aprendizagem no que denominou


de Didática Fundamental.
Ed

Essa perspectiva de didática apresenta a seguinte configuração:

A perspectiva fundamental da Didática assume a multidimensionalidade


ão

do processo ensino-aprendizagem e coloca a articulação das três dimen-


sões, técnica, humana e política, no centro configurador de sua temática.
Procura partir da análise da prática pedagógica concreta e de
s

seus determinantes.
ver

Contextualiza a prática pedagógica e procura repensar as dimensões téc-


nica e humana, sempre “situando-as”.
Analisa as diferentes metodologias explicitando seus pressupostos, o
contexto em que foram geradas, a visão de homem, de sociedade, de
conhecimento e de educação que veiculam.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 45

Elabora a reflexão didática a partir da análise e reflexão sobre experiências


concretas, procurando trabalhar continuamente a relação teoria-prática.
[...] parte do compromisso com a transformação social, com a busca de
práticas de pedagógicas que tornem o ensino de fato eficiente [...] para
a maioria da população. Ensaia, analisa, experimenta. [...] Promove o
trabalho em comum de professores e especialistas. Busca as formas de
aumentar a permanência das crianças na escola. Discute a questão do cur-

or
rículo em sua interação com uma população concreta e suas exigências,
etc. (CANDAU, 1996, p. 21).

od V
aut
Nos anos 1990, tendo-se por condicionante as políticas neoliberais deter-
minadas por organismos multilaterais, inclusive para a educação no Brasil,

R
Candau (2018, p. 9) acrescenta à Didática Fundamental alguns pontos críticos
“[...] como os relativos ao cotidiano escolar, ao saber docente, e às relações

o
entre escola e cultura”.
aC
Nesse sentido, a didática proposta por Candau passa a adotar princí-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

pios como o de reconhecimento e de valorização do sujeito como educando,


mantendo-se a atualidade da categoria multidimensionalidade; a análise da
prática pedagógica em sua concreticidade, considerando os determinantes
visã
estruturais e superestruturais; a contextualização; a análise filosófico-educa-
cional dos pressupostos da prática educativa; a valorização da relação entre
teoria e prática; o compromisso assumido em favor da transformação social;
itor

a ênfase no trabalho coletivo entre os profissionais da educação; o interesse


a re

para com a permanência com qualidade das crianças no ambiente escolar; e,


fundamentalmente, aborda o currículo em sua interação com a população,
compreendida em suas necessidades materiais.
Ainda na década de 1990, foi criado o Grupo de Estudos sobre Cotidiano,
Educação e Cultura(s), conforme assevera Candau (2018, p. 11):
par
Ed

É importante salientar que em 1996, surge o GECEC – Grupo de Estudos


sobre Cotidiano, Educação e Cultura(s), vinculado ao Departamento de
Educação da PUC-Rio, que coordenamos e através dele vimos desen-
volvendo sistematicamente pesquisas que aprofundam desde diferentes
ão

pontos de vista estas relações.


s

Nos anos 2000, Candau (2001), ao participar da Mesa: “20 anos de


ver

ENDIPE”, apresenta uma agenda de trabalho. Primeiramente, afirma que


a construção da didática a partir do início dos anos 1980, esteve alinhada
com a perspectiva crítica. Situa essa produção científica sobre didática como
fazendo parte da modernidade no sentido mesmo de horizontes utópicos
e metanarrativas.
46

Certamente este universo pode ser identificado como característico da


modernidade, enquanto enfatiza a capacidade dos indivíduos situarem-se
criticamente diante da realidade, exercerem sua responsabilidade social e
construírem o mundo e a história a partir de um horizonte utópico baseado
na liberdade, na igualdade e na racionalidade (CANDAU, 2001, p. 152
– destaque nosso).

or
No entanto, baseada em uma filosofia oriunda do centro da geopolítica
do conhecimento (MIGNOLO, 2014c), a autora passa a adotar a abordagem

od V
da crítica pós-moderna sobre pretexto de englobar uma pluralidade de abor-

aut
dagens e enfoques para que se repense a pedagogia e a didática, sem perder
de vista a criticidade e o foco na categoria cultura(s):

R
Portanto, se trata de trabalhar as possíveis articulações e de, sem negar o
horizonte emancipador da perspectiva crítica, incorporar novas questões que

o
emergem da perspectiva pós-moderna, como as relativas à subjetividade,
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


à diferença, à construção de identidades, à diversidade cultural, à relação
saber-poder, às questões étnicas, de gênero e sexualidade etc. A categoria
cultura é, sem dúvida, central nesta persectiva (CANDAU, 2001, p. 153).
visã
Apesar de manter a ligação com o referencial da pós-modernidade, pró-
pria da hegemonia epistemológica da modernidade/colonialidade a autora
atualiza seu referencial de didática crítica, incorporando cada vez mais as
itor

categorias cultura e cotidiano escolar como meios para a reinvenção da edu-


a re

cação escolar e da didática.


Destaca-se, mais uma vez, a capacidade de reinvenção intelectual de Can-
dau, pois, ainda nos anos 2000, a autora passa a ter contato com o referencial
da rede modernidade/colonialidade, por meio de atividades acadêmicas com
Catherine Walsh, integrante da rede:
par

Em outubro de 2007, realizamos um seminário presencial, no Rio de


Ed

Janeiro, com a professora Catherine Walsh, em que discutimos e apro-


fundamos a perspectiva desenvolvida pelo grupo “Modernidade/Colonia-
lidade”, especialmente em suas relações com a educação (OLIVEIRA;
ão

CANDAU, 2010, p. 21).

Portanto, o seminário de 2007 realizado pelo GECEC7 contando com a


s

presença de Walsh, apresenta-se como um marco genealógico a partir do qual


ver

aponta-se a Didática Intercultural Crítica como antecedente de uma possível


didática decolonial.
7 Participaram deste Seminário três professores, Waldir Abreu, Antonio Parense e Eunapipo Duarte, vinculados
respectivamente à UFPA, UEPA E CESUPA, que na ocasião cursavam o Doutorado em Educação na PUC/
RIO e eram vinculados ao GECEC.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 47

Isto porque depreende-se que a partir do contato com Walsh, Candau


agrega o referencial praxiológico da interculturalidade crítica aos seus estudos
e pesquisas. Para reforçar tal argumento, destaca-se que nesse mesmo decênio
Candau e parceiras de pesquisa passam a desenvolver/construir elementos
de uma didática na perspectiva multi/intercultural (CANDAU; KOFF, 2006;
CANDAU; LEITE, 2007).
Contudo, de acordo com nossa análise, o principal marco genealógico

or
para uma didática decolonial, é a publicação, no ano de 2012, da coletânea

od V
“Didática Crítica Intercultural: aproximações”. Organizada por Candau,

aut
conta com textos elaborados no âmbito do GECEC em que se apresentam a
perspectiva de uma didática crítica intercultural, conforme afirma a própria

R
autora: “Os trabalhos incluídos nesta publicação, elaborados no contexto do
GECEC, expressam nosso caminhar na perspectiva de construir uma didática

o
crítica e intercultural” (2018, p. 14).
A Didática Crítica Intercultural se alicerça em três teses fundamentais:
aC
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1. A educação escolar, configurada a partir da modernidade, está instada


a ser “reinventada” para enfrentar as questões atuais de um mundo com-
plexo, desigual, diverso e plural.
visã
2. A perspectiva crítica da Didática, que teve um amplo e significativo
desenvolvimento no nosso país, especialmente a partir dos anos 80, está
hoje desafiada por questões que exigem novos desenvolvimentos, buscas,
itor

preocupações e pesquisas.
a re

3. É a partir do enfoque intercultural que apostamos na construção deste


processo de ressignificação da Didática (CANDAU, 2018, p. 111).

A atualização da Didática Fundamental à Didática Crítica Intercultural


mantém sua estrutura crítica proveniente dos anos de 1980, agrega a intercultu-
par

ralidade crítica – defendida pela decolonial Catherine Walsh – como elemento


principal para (re)construir processos de ensino-aprendizagem considerando
Ed

demandas de um mundo complexo, desigual e interseccional, mas sem deixar


de lado o referencial teórico da pós-modernidade, de origem eurocentrada.
ão

Cabe sintetizar que a interculturalidade crítica assumida por Candau a


partir da influência de Walsh tem um fundamento: “partir do problema estru-
tural-colonial-racial e dirigir-se para a transformação das estruturas, institui-
s

ções e relações sociais e a construção de condições radicalmente distintas”


ver

(WALSH, 2009, p. 23).


Nesse sentido, a interculturalidade crítica envolve não apenas lutas por
transformações estruturais que envolvem questões de ordem política, social e
cultural, mas “[...] se preocupa também com a exclusão, negação e subalter-
nização ontológica e epistêmico-cognitiva dos grupos e sujeitos racializados”
48

(WALSH, 2009, p. 23), além de também se opor criticamente às práticas que


naturalizam relações assimétricas de dominação, na medida em que não des-
tacam as desigualdades e as diferenças. Por este motivo, Candau aposta na
interculturalidade crítica como um dos meios para ressignificação da didática.
Assim, compreende-se que a militância da autora a levou a incorporar a
interculturalidade crítica em sua proposta de didática, haja vista assumir que:
“O importante é reconhecer a existência de diversos saberes e conhecimentos

or
no cotidiano escolar e procurar estimular o diálogo entre eles, assumindo os

od V
conflitos que emergem desta interação” (CANDAU, 2018, p. 131).

aut
Ao chegar nesse ponto da análise, ainda que não seja o objetivo central do
texto, não nos é possível fugir ao debate sobre algumas (não) relações entre a

R
Didática Crítica Intercultural e a possibilidade teórica de uma didática decolonial.
Conforme visto anteriormente, nota-se que a interculturalidade crítica

o
tem sido assumida como uma ancoragem da proposição de didática de Candau
(2018). Ou seja, de maneira consciente e livre, a opção é pela interculturali-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dade crítica, o que é compreendido inclusive dado o histórico de militância
da autora. A opção tomada não foi pela decolonialidade.
De fato, compreende-se que interculturalidade crítica e decolonialidade
visã
são projetos de luta/resistência distintos, embora se retroalimentem, conforme
aponta Walsh (2009, p. 25):

[...] a interculturalidade crítica e a decolonialidade [...] são projetos, pro-


itor

cessos e lutas que se entrecruzam conceitualmente e pedagogicamente,


a re

alentando forças, iniciativas e perspectivas éticas que fazem questionar,


transformar, sacudir, rearticular e construir.

Outro dado que merece destaque é que – a despeito da incorporação


par

da interculturalidade crítica – a Didática Crítica Intercultural permanece na


esteira da modernidade/colonialidade, mais especificamente com foco na
Ed

pós-modernidade, tal como explicitado anteriormente.


De nosso ponto de vista, considerando-se a constituição de uma didática
decolonial não está em jogo apenas uma mudança de referência teórica de
ão

“A” para “B”. Apesar disso, faz-se importante delinear alguns apontamentos
críticos que a decolonialidade faz da pós-modernidade. Nas palavras de Dussel
(2014, p. 74):
s
ver

Diferentemente dos pós-modernos, nós não propomos uma crítica da razão


com tal; mas aceitamos sua crítica de uma razão violenta, coercitiva e
genocida. Não negamos o núcleo racional do racionalismo universalista do
Iluminismo, somente seu momento irracional como mito sacrificial. Não
negamos a razão, em outras palavras, mas a irracionalidade da violência
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 49

gerada pelo mito da modernidade. Contra o irracionalismo pós-moderno,


afirmamos a ‘razão do Outro’.

Compreende-se que ter como elemento central de uma teoria decolonial


a pós-modernidade é, no mínimo, um contrassenso, pois tal prática não aju-
daria a romper com o controle do “Norte” para com o “Sul”. Ajudaria, sim,
a criar, manter e/ou reforçar a colonialidade, inclusive a do saber. A decolo-

or
nialidade preconiza a libertação dessa histórica amarra. Assim, não se trata

od V
apenas da mudança de referencial teórico, mas do processo de construção de

aut
uma sociedade não mais universal, mas pluriversal. Em síntese, o que está
em jogo é a utopia da decolonialidade denominada de transmodernidade, que
para Dussel (2014, p. 74-75 – tradução nossa, destaque nosso), é definida da
seguinte maneira:
R
o
Trans-modernidade (como projeto de política, econômica, ecológica, eró-
aC
tica, pedagógica e libertação religiosa) é a correalização do que é impos-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sível cumprir para a modernidade por si mesma: isto é, uma solidariedade


incorporativa que é chamada analética, entre centro e periferia, homem/
mulher, diferentes raças, diferentes grupos étnicos, diferentes classes,
visã
civilização/natureza, cultura ocidental/cultura do Terceiro Mundo, etc.

Nesses termos, do ponto de vista decolonial, a relação entre o “Sul” e o


“Trans” é a seguinte: “O Sul não é e nem será pós-moderno. ‘Trans’ se refere
itor

ao que está para além da modernidade, a outra Época [sic] do mundo (que
a re

já não é eurocentrada, surge desde o Sul e inclui o Norte: é o planetário)”


(DUSSEL, 2012, p. 28).
De outro modo, compreende-se que apropriação por assimilação da pós-
-modernidade implica em parcialidade e limitações quanto ao intento radical
par

de transformação por não romper com a modernidade/colonialidade. Inclu-


sive, esse é o principal motivo de Dussel (2012, p. 28) afirmar que o termo:
Ed

“’Post’ [traduzido para ‘pós’] indica a última etapa crítica da modernidade


europeia (ainda uma hipótese eurocêntrica, somente do Norte: é o particular
com pretensão infundada de universalidade).
ão

Nesse sentido, considerando os condicionantes estruturais em que a


Pedagogia – área do conhecimento – tem sido hegemonicamente realizada
s

no “Sul”, ou seja, como pedagogias da crueldade (PALERMO, 2014), é pre-


ver

ciso que uma didática decolonial – como campo da Pedagogia – tenha por
opção o desprendimento como elemento que: “[...] conduz a teorias críticas
decoloniais e à pluriversalidade não eurocentrada de um paradigma-outro”
(MIGNOLO, 2014a, p. 81).
50

Assim, buscando esse desprendimento rumo à transmodernidade, por


meio de uma didática decolonial, reforça-se a seguinte ideia-chave: é preciso
assumir a transmodernidade como projeto de libertação decolonial.

O ponto de partida teórico e geopolítico da decolonialidade, então, não


é a pós-modernidade, mas a transmodernidade de Dussel (1993), que se
ancora fundamentalmente no reconhecimento material e ético-político

or
da alteridade dos sujeitos negados em seus modos concretos de se fazer
“no” e “com” o mundo ante o projeto da colonialidade/modernidade e

od V
seu mito sacrificial. Pela transmodernidade, não se nega o projeto de

aut
modernidade eurocentrada, considera-se sua positividade semântica como
razão emancipadora, mas transformando-a em razão libertadora (DIAS;

R
ABREU, 2019, p. 1230).

o
Nesses termos, afirma-se: é preciso “decolonizar”. Decolonizar as rela-
ções humanas em geral e tudo o que delas se desdobram, como as relações
aC

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de gênero, o trabalho, o lazer, as relações culturais, das quais provêm o fenô-
meno da educação... Nessa esteira, cabe decolonizar a didática em direção à
transmodernidade, como projeto utópico decolonial.
visã

Para um desfecho...

Em linhas gerais, apresentaram-se algumas “ideias-texto” que orbitaram


itor

em torno da análise de elementos genealógicos das pedagogias e didáticas


a re

decoloniais no contexto brasileiro. Para tanto, realizou-se um longo processo


genealógico, que iniciou com uma definição: a decolonialidade é ao mesmo
tempo, energia de resistência/atitude e razão descolonial. Como energia/atitude
sua origem remonta ao ano de 1492, quando se inicia o processo de conquista
par

das Américas. Como razão, sua origem remonta aos anos 1950, com os estu-
dos pós-coloniais iniciados por Albert Memmi, Aimé Césaire e Frantz Fanon.
Ed

Deste ponto em diante, houve alguns desdobramentos, tais como a consoli-


dação dos estudos pós-coloniais anglo-saxônicos, a constituição do grupo de
estudos subalternos do sul asiático, a criação do Grupo Latino-Americano dos
ão

Estudos Subalternos e, em 1998, a instituição da Rede M/C.


Deste processo genealógico, confere-se destaque para Zulma Palermo
s

e Catherien Walsh, integrantes da Rede M/C a produzir sobre pedagogias


ver

decoloniais. No Brasil, a relação entre a decolonialidade e a Pedagogia aden-


tra ao espaço das produções stricto sensu. Nesse caso, até onde chega nosso
olhar, situa-se Luiz Fernandes de Oliveira como o primeiro a defender uma
tese em Educação tendo por suporte teórico a pedagogia decolonial andina
de Walsh. Outro destaque é João Colares da Mota Neto, que em 2015, propõe
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 51

uma nova definição de pedagogia decolonial, desde os marcos da educação


popular latino-americana. Também situa elementos teórico-metodológicos
desta pedagogia e atesta que Orlando Fals Borda e Paulo Freire são antece-
dentes críticos da decolonialidade.
Ainda em diálogo entre a decolonialidade e a Pedagogia, mas adentrando
ao campo da Didática, aponta-se que no ano de 2012, houve a publicação de
uma coletânea de textos organizada por Vera Maria Ferrão Candau, intitulada

or
de “Didática Crítica Intercultural: proposições”. De nosso ponto de vista,

od V
esse dado é principal marco genealógico a propiciar elementos conceituais

aut
para se construir didáticas decoloniais, sobretudo pela inserção das culturas
do cotidiano escolar, pelo reconhecimento das alteridades negadas e pela
aproximação com a Rede M/C. principalmente por meio de Catherine Walsh.

R
Na sequência, explicitam-se alguns elementos que podem ajudar na cons-
tituição de didáticas decoloniais, tais como a opção radical pela decoloniali-

o
dade e seu projeto transmoderno de sociedade. Por isso, conclui-se afirmando
aC
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que é preciso decolonizar a didática. Tarefa ainda por fazer e que deve ser
realizada a muitas mãos, desde movimentos sociais ao sistema educacional.
Por fim, espera-se que seu teor tenha sido exposto de maneira fluente
e que nossos posicionamentos sejam compreendidos em tom dialógico. De
visã
maneira esperançosa, ao chegar até aqui, almeja-se que você tenha aceito o
convite feito no início do texto e se sinta à vontade para dialogar sobre essa
temática, mesmo em outras paragens, em outros contextos, em outros terri-
itor

tórios, inclusive, envolvendo: experiências de ensino-aprendizagem tanto de


a re

grupos/movimentos sociais, quanto de salas de aula da educação escolar; pro-


cessos de formação de educadores (incluindo-se os profissionais da educação
formalmente diplomados); de (re)invenção de currículos; e demais processos
de organização do trabalho pedagógico (entre eles, os que ocorrem na escola,
par

sobretudo a pública).
Ed
s ão
ver
52

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R
o
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DESAFIOS DA PESQUISA EM
EDUCAÇÃO EM PERSPECTIVA
DECOLONIAL

or
od V
João Colares da Mota Neto

aut
Adriane Raquel Santana de Lima

R
Introdução

o
aC
A produção conhecida como “decolonial”, em que pese sua genealogia
ligar-se às práticas epistêmicas de denúncia do colonialismo e da colonialidade
presentes nos movimentos de resistência das populações colonizadas desde
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

os princípios da Conquista, começa a se autorreferir desta forma no final dos


visã
anos 1990 e início dos anos 2000, em torno de intelectuais latino-americanos
vinculados ao “programa de investigação da modernidade/colonialidade lati-
no-americano” (ESCOBAR, 2003), que propunha uma ruptura radical com
itor

os modelos eurocêntricos de produção do conhecimento, ou um “giro decolo-


nial”, entendido, conforme Maldonado-Torres (2007), como uma mudança de
a re

perspectiva e de atitude que se encontra nas práticas e formas de conhecimento


de sujeitos colonizados e também como um projeto de transformação siste-
mática e global das pressuposições e implicações da modernidade, assumido
por uma variedade de sujeitos em diálogo.
par

Esta produção circula inicialmente nos países andinos, mobilizada por


intelectuais latino-americanos do campo da filosofia e das ciências sociais,
Ed

alguns dos quais diasporizados nos Estados Unidos, e pouca influência exerceu
esta produção sobre a academia brasileira neste primeiro momento.
É na virada da primeira para a segunda década dos anos 2000 que a
ão

perspectiva decolonial começa a marcar presença nos debates acadêmicos


brasileiros, e o campo da Educação tem sido um dos espaços em que o pen-
s

samento decolonial passa a ser apropriado e recriado com maior entusiasmo.


ver

Embora muitas das questões levantadas pelos intelectuais da também


chamada “rede modernidade/colonialidade” já estivessem presentes na pro-
dução crítica latino-americana anterior ao surgimento da rede, concordamos
com Maldonado-Torres (2019) que uma das potencialidades que trouxe a
decolonialidade como conceito foi oferecer dois lembretes-chave – “primeiro,
mantém-se a colonização e suas várias dimensões claras no horizonte de luta;
segundo, serve como uma constante lembrança de que a lógica e os legados
56

do colonialismo podem continuar existindo mesmo depois do fim da coloni-


zação formal e da conquista da independência econômica e política” (p. 28).
E é nesta perspectiva que pesquisas ou ensaios teóricos produzidos no campo
da Educação têm se apropriado destes “lembretes-chave”, aplicando-os aos
fenômenos educativos investigados.
Sem ter a pretensão, neste texto, de localizar a origem dos debates deco-
loniais no campo da Educação no Brasil, sustentamos, a partir de levanta-

or
mentos em bancos e bases de dados como Scielo, Google Scholar e Portal de

od V
Periódicos da CAPES, que pelo menos três grupos de pesquisa, localizados em

aut
diferentes estados do Brasil, têm cumprido um importante papel na dissemi-
nação da perspectiva decolonial no campo da Educação e em sua reinvenção
a partir da realidade educacional brasileira. Trata-se do Grupo de Pesquisa

R
“Mediações Pedagógicas e Cidadania” (UNISINOS), no Rio Grande do Sul;
o Grupo de Pesquisas sobre Cotidiano, Educação e Cultura(s) (PUC-Rio),

o
no Rio de Janeiro; e o Grupo de Pesquisa “José Veríssimo e o Pensamento
aC
Educacional Latino-Americano” (UFPA), no Pará.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


No Rio Grande do Sul, pelo menos desde 2009, encontramos pesquisas
que se localizam nesta interseção entre educação e decolonialidade. Exemplos
desta produção são o artigo de Streck; Adams; Moretti (2009) sobre educação
visã
e processos emancipatórios na América Latina; Adams e Streck (2010) sobre
educação popular e novas tecnologias; Moretti e Adams (2011) sobre pesquisa
participativa e educação popular; Streck e Adams (2012) sobre pesquisa e
itor

educação, movimentos sociais e a reconstrução epistemológica num contexto


a re

de colonialidade; Streck e Moretti (2013) sobre colonialidade e insurgência


na pedagogia latino-americana, entre outros. Em comum, percebemos que
os focos de interesse destes (as) autores (as) recaem sobre educação popular,
pesquisa participativa e o pensamento pedagógico latino-americano, em diá-
logo com as perspectivas decoloniais.
par

No Rio de Janeiro, os dois primeiros artigos publicados em periódi-


Ed

cos sobre educação/pedagogia decolonial são do ano de 2010 (OLIVEIRA;


CANDAU, 2010; CANDAU; RUSSO, 2010). No primeiro texto, os autores
abordam explicitamente o tema da pedagogia decolonial em suas relações
ão

com uma educação antirracista e intercultural no Brasil e, no segundo, as


autoras discutem interculturalidade e educação na América Latina, com apoio
teórico em conceitos do pensamento decolonial. Antes mesmo destes artigos
s

em periódicos, Oliveira e Lins (2007) publicaram um trabalho nos anais do


ver

I Encontro de História da Educação do Estado do Rio de Janeiro (2007)


sobre a presença-ausência da história da África nos currículos de história
das universidades do Rio de Janeiro. Em comum, estes artigos dão ênfase
ao debate da educação antirracista e da educação intercultural, e de algum
modo se vinculam à perspectiva decolonial pela influência do pensamento
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 57

de Catherine Walsh e seu conceito de “interculturalidade crítica”. Com esta


autora, o grupo tem mantido interlocuções, seja por meio da publicação em
conjunto, seja por algum tipo de intercâmbio, como a participação de Walsh
em eventos no Rio de Janeiro, por exemplo.
No âmbito destas colaborações, as relações entre interculturalidade crítica
e pedagogia decolonial foram discutidas por Catherine Walsh (2009) em um
capítulo de sua autoria publicado em livro organizado por Vera Candau, Edu-

or
cação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas,

od V
e este texto consideramos umas das primeiras fontes de reflexão sobre decolo-

aut
nialidade a influenciar a produção acadêmica brasileira do campo da Educação.
No Pará, destaca-se o pioneirismo do estudo de Sônia Araújo (2010)
sobre Educação do Campo em suas relações com os debates pós-coloniais.

R
Embora tenha ocorrido a vinculação do trabalho aos estudos “pós-coloniais”,
o ensaio estabelece importante interlocução com intelectuais decoloniais e,

o
a partir desta publicação, progressivamente, os estudos realizados no seio do
aC
Grupo de Pesquisa “José Veríssimo e o Pensamento Educacional Latino-A-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mericano” (UFPA), sob coordenação desta pesquisadora, passam a dar centra-


lidade ao pensamento decolonial, com diversos trabalhos sob sua orientação,
os quais abordam a construção de uma genealogia do pensamento pedagógico
visã
latino-americano nos séculos XIX e XX (MOTA NETO, 2013; MOTA NETO;
2015; VIANA, 2015; LIMA, 2016).
A partir dos anos 2010, portanto, e não somente nestas três universidades
itor

brasileiras, mas também em muitas outras de todas as regiões do país, arti-


a re

gos em periódicos, dissertações de mestrado, teses de doutorado e trabalhos


apresentados em anais de evento vêm aprofundando o debate decolonial na
Educação, em diversas de suas subáreas temáticas, algumas das quais se des-
tacam, como: educação popular, relações étnico-raciais, educação indígena,
educação intercultural, pensamento pedagógico latino-americano, entre outras.
par

Podemos afirmar, desse modo, que há um esforço de pesquisadores(as)


Ed

brasileiros(as) da área da Educação em romper com o eurocentrismo, o ociden-


talismo e o colonialismo intelectual tão presentes na história da pesquisa em
educação no Brasil, dialogando com fontes teóricas críticas da colonialidade,
ão

elaboradas na própria América Latina, mas também no Caribe, na África e


na Ásia, bem como um empenho em reconhecer as “fontes” ou “origens” de
um pensar pedagógico decolonial a partir de intelectuais negros, indígenas ou
s

terceiro-mundistas, assim como nos movimentos sociais de resistência, estes


ver

também entendidos como espaços de produção do conhecimento decolonial.


Na Amazônia, em particular, esforços teórico-metodológicos vêm sendo
empreendidos para compreender melhor o tema das pedagogias decoloniais,
e por essa razão se constituiu, em 2019, a Rede de Pesquisa sobre Pedago-
gias Decoloniais na Amazônia (RPPDA), com três linhas de investigação: a)
58

práticas pedagógicas decoloniais na Amazônia, que investiga práticas pedagó-


gicas insurgentes provenientes da resistência de grupos/classes subalternizados
socialmente; b) genealogia do pensamento pedagógico decolonial na Amazônia,
que se propõe a investigar, na história da educação amazônica, a construção
de pensamentos pedagógicos de resistência à colonialidade, produzidos não
só por intelectuais do âmbito da academia, mas também por “intelectuais do
povo”, militantes de movimentos sociais, educadores populares e lutadores

or
sociais; c) pedagogias decoloniais e interseccionalidades na Amazônia, que se

od V
propõe a realizar estudos sobre pedagogias decoloniais e interseccionalidades,

aut
articulando o debate da educação com as perspectivas feministas, antirracistas,
de gênero e sexualidade, sobretudo a partir das vozes e lutas dos movimentos
sociais, cruzando categorias como raça, etnia, classe e outras, necessárias para

R
a compreensão da complexidade da realidade amazônica.
Estão vinculados à RPPDA pesquisadores(as) de várias universidades

o
da Região Norte e diversos estudantes de mestrado e doutorado participantes,
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


sobretudo, dos Programas de Pós-Graduação em Educação da Universidade
do Estado do Pará e da Universidade Federal do Pará que estão construindo
dissertações e teses na área da Educação com enfoque decolonial.
Nos debates que temos promovido na Rede, uma questão sempre presente
visã
diz respeito ao tema deste texto – os desafios da pesquisa em educação em
perspectiva decolonial. Está evidente que um giro epistemológico precisa estar
presente nas dissertações e teses produzidas, mas esse giro pressupõe também
itor

uma capacidade inventiva e transgressora nas metodologias de pesquisa uti-


a re

lizadas nos processos de produção do conhecimento, na relação entre os/as


pesquisadores(as) e seus interlocutores em campo, nas estratégias de análise
dos dados produzidos e nos cuidados éticos que pressupõe uma investigação
em perspectiva decolonial.
par

Assim, o objetivo deste trabalho é contribuir com o debate sobre os


desafios da pesquisa em educação em perspectiva decolonial. Assumimos
Ed

esta tarefa de reflexão com o propósito de analisar o que temos lido e pensado
sobre o assunto, mas também de sistematizar o que temos realizado em nossas
próprias pesquisas ou o que temos acompanhado em termos de pesquisas sob
ão

nossa orientação e de outros colegas vinculados ou não à RPPDA. Portanto,


ainda que seja assinado por duas pessoas, este texto é marcado por uma poli-
fonia dialógica, na qual muitos sujeitos imprimem suas vozes: intelectuais
s

latino-americanos(as) da perspectiva decolonial, pesquisadores(as) brasilei-


ver

ros e amazônidas da Educação, feministas negras, populações originárias da


Amazônia e outros(as).
O texto dá ênfase a três desafios que identificamos na pesquisa sobre
educação em perspectiva decolonial: a) superar a colonialidade pedagógica
e o eurocentrismo presentes nas universidades e nos processos tradicionais
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 59

de produção do conhecimento; b) assumir uma perspectiva participativa


e um compromisso político-transformador em face das realidades sociais
e educacionais investigadas; c) pesquisar a educação em diálogo com as
experiências vividas por sujeitos subalternizados, suas memórias, ances-
tralidades e sabedorias.
Ao tempo em que apresentamos os principais desafios identificados,
também apontamos algumas estratégias de enfrentamento ou superação des-

or
tes desafios, sugeridas por intelectuais com os quais dialogamos ou por nós

od V
próprios, a partir das pesquisas que temos realizado, orientado ou acompa-

aut
nhado. Os desafios não estão apresentados por ordem de importância, mas
seguem uma lógica discursiva em que procuramos analisar diferentes aspectos
inter-relacionados da pesquisa decolonial em educação.

R
Superar a colonialidade pedagógica e o eurocentrismo

o
presentes nas universidades e nos processos
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tradicionais de produção do conhecimento

Questionamentos recorrentes nos debates que temos realizado são: como


visã
fazer pesquisa em educação com perspectiva decolonial se nossas univer-
sidades e seus programas de pós-graduação seguem reproduzindo a lógica
eurocêntrica e a colonialidade pedagógica que lhes constituem? Os critérios
itor

usualmente utilizados para validação do conhecimento nas bancas de qualifica-


ção e defesa de dissertações e teses não seriam demasiadamente colonialistas
a re

a ponto de rechaçar processos de produção do conhecimento em uma perspec-


tiva decolonial? Como podemos descolonizar a universidade e os programas
de pós-graduação se a presença de grupos historicamente excluídos destes
espaços (indígenas, quilombolas, mulheres negras, entre outros/as) continua
par

restrita e os processos de seleção para ingresso nos programas, em geral, não


adotam políticas de ações afirmativas?
Ed

Estas questões nos parecem extremamente relevantes e, de fato, consti-


tuem um desafio inadiável a ser enfrentado superar a colonialidade pedagógica
ão

e o eurocentrismo das universidades e dos programas de pós-graduação.


Mas o que vem a ser esta colonialidade pedagógica e como ela está
presente na universidade?
s

Como se sabe, uma das distinções mais importantes presentes no debate


ver

decolonial é em torno dos conceitos de colonialismo e colonialidade. Segundo


Restrepo e Rojas (2010), o colonialismo refere-se ao processo e ao aparato
de domínio político e militar que se emprega para garantir a exploração do
trabalho e das riquezas das colônias em benefício do colonizador. Já a colo-
nialidade, é um fenômeno histórico muito mais complexo que se estende ao
60

presente e se refere a um padrão de poder que opera através da naturalização


de hierarquias territoriais, raciais, culturais, epistêmicas, possibilitando a
reprodução de relações de dominação.
Por ser um fenômeno complexo, diferentes dimensões interligadas da
colonialidade têm sido analisadas pelos teóricos decoloniais, como a colo-
nialidade do poder, do ser, do saber, do gênero, cosmogônico-espiritual, da
alteridade e outras. Entendemos que as instituições educacionais cumprem

or
um papel fundamental na reprodução da colonialidade e, por isso, afirmamos

od V
que elas operam por meio da colonialidade pedagógica, subalternizando os

aut
conhecimentos e as experiências de vida de grupos socialmente excluídos
pelo sistema mundo moderno/colonial. Mais do que isto, estas instituições, a

R
exemplo das universidades ocidentalizadas, implantam um regime de controle
não somente do conhecimento produzido, que só passa a ser considerado

o
válido se estiver de acordo com os princípios epistemo-metodológicos da
ciência moderna eurocêntrica, mas controlam também quem acessa a estes
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


espaços, garantindo que as classes subalternizadas estejam deles excluídas,
por uma lógica extremamente elitista, a um só tempo racista, patriarcal, sexista
e a serviço do mercado.
visã
Neste sentido, um dos desafios para a pesquisa sobre educação em pers-
pectiva decolonial é lutar pela efetiva democratização da universidade e dos
programas de pós-graduação. Acadêmicos negros e indígenas, por exemplo,
itor

precisam estar presentes nestes espaços, com seus corpos, suas lutas, sabe-
a re

dorias e ancestralidades para produzirem, a partir de suas próprias pesquisas,


conhecimentos que rompam com o eurocentrismo vigente. Isso não significa,
evidentemente, que acadêmicos não indígenas não possam pesquisar sobre a
educação indígena, por exemplo. Mas é fundamental que pesquisadores indí-
genas assumam protagonismo nos processos de produção do conhecimento
par

sobre seus povos, culturas e processos educacionais.


O diálogo entre saberes que pode ser potencializado pela pre-
Ed

sença destes sujeitos outros, ensejará a construção de pedagogias outras


(ARROYO, 2012), interpelando as formas tradicionais de produção de
ão

conhecimento e possibilitando que elas sejam desfiguradas, transfiguradas


ou reconfiguradas. Isso exigirá que os currículos das universidades passem
a incorporar, por exemplo, intelectuais feministas negras em suas biblio-
s

grafias ou intelectuais indígenas, produzindo “fissuras” nas epistemologias,


ver

nas metodologias e nos currículos hegemônicos.


Grosfoguel (2016, p. 26), questionando a estrutura do conhecimento das
universidades ocidentalizadas, assentada fundamentalmente em um racismo/
sexismo epistêmico, provoca: “Como é possível que o cânone do pensamento
em todas as disciplinas da ciências sociais e humanidades nas universidades
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 61

ocidentalizadas (GROSFOGUEL, 2012) se baseie no conhecimento produzido


por uns poucos homens de cinco países da Europa Ocidental (Itália, França,
Inglaterra, Alemanha e os Estados Unidos)?”
Para ele, nas universidades ocidentalizadas, o conhecimento produzido
por epistemologias, cosmologias e visões de mundo “outras” é reputado como
“inferior” ao conhecimento “superior” produzido por uns poucos homens
ocidentalizados destes cinco países, conformando o cânone do pensamento

or
nas humanidades e nas ciências sociais (GROSFOGUEL, 2016).

od V
A pesquisa em educação, inserida no campo das ciências humanas e

aut
sociais, também tem sistematicamente excluído estas epistemologias, cosmo-
logias e visões de mundo “outras”, o que constitui um desafio a ser superado
por aquelas e aqueles que questionam a colonialidade das universidades.

R
De acordo com Patrícia Collins (2019), as mulheres negras há muito
afirmam conhecimentos que contestam a produção de homens brancos de elite.

o
No entanto, como o acesso a posições de autoridade foi negado a elas, com
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

frequência recorrem a processos alternativos de validação do conhecimento.

Consequentemente, as disciplinas acadêmicas usualmente têm rejeitado


esses conhecimentos. Soma-se a isso o fato de que as credenciais controladas
visã
por homens brancos acadêmicos sempre puderam ser negadas às mulheres
negras que utilizam padrões alternativos, sob o argumento de que os traba-
lhos delas não constituem pesquisas legítimas (COLLINS, 2019, p. 144).
itor
a re

No campo educacional, pesquisadoras negras como Nilma Lino Gomes


(2019), têm demonstrado como opera a colonialidade pedagógica nas univer-
sidades, escolas e instituições de ensino e pesquisa ocidentalizadas. Para ela,
a colonialidade é resultado da “imposição do poder e da dominação colonial
que consegue atingir as estruturas subjetivas de um povo, penetrando na sua
par

concepção de sujeito e se estendendo para a sociedade de tal maneira que,


mesmo após o término do domínio colonial, as amarras persistem” (p. 227).
Ed

Ao colocar ênfase na discussão do currículo, Gomes (2019) afirma que a


perspectiva negra decolonial brasileira é uma das responsáveis pelo processo
de descolonização dos currículos e do conhecimento no Brasil. A autora afirma
ão

a perspectiva negra da teoria educacional como parte da produção decolonial


latino-americana.
s

Neste sentido, entendemos que um dos desafios para a pesquisa educa-


ver

cional em perspectiva decolonial é analisar criticamente tanto a reprodução da


colonialidade pedagógica por meio dos currículos, metodologias, processos
de ensino-aprendizagem, avaliação, materiais didáticos quanto o esforço de
superação desta colonialidade, levado a cabo por acadêmicos negros, indíge-
nas, quilombolas, mulheres, comunidade LGBTQI+ e demais sujeitos e grupos
62

historicamente excluídos dos espaços formais de produção do conhecimento.


Estudar a trajetória e o pensamento de professoras negras, a atuação de asso-
ciações de discentes quilombolas e indígenas, o impacto das políticas de ação
afirmativa, a luta dos movimentos sociais por descolonizar a universidade são
possibilidades que se inscrevem no desafio assinalado.
Uma importante agenda de pesquisa pode ser estabelecida em torno

or
deste desafio, o que traz implicações também para a história da educação, que
precisa ser reescrita a partir das vozes, das lutas e das realidades dos grupos

od V
subalternizados socialmente. Se a história oficial é um artefato que opera

aut
reproduzindo narrativas elitistas, racistas, patriarcais e sexistas, uma história
da educação em perspectiva decolonial pode ser capaz de reler os aconteci-

R
mentos que marcaram historicamente a educação, desde uma visão “outra”,
muito mais crítica dos processos de exclusão e opressão, rompendo com a

o
“normalidade discursiva”, a “perspectiva do consenso” e a “voz imperial”
aC
que presidem a escrita tradicional da história da educação.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


São necessários esforços historiográficos para traçar as genealogias do
pensamento pedagógico latino-americano, brasileiro, amazônico. Exemplo de
excelente trabalho deste tipo são os livros “Fontes da Pedagogia Latino-Ame-
visã
ricana: uma antologia”, organizado por Streck (2010) e “Fontes da Pedagogia
Latino-Americana: heranças de(s)coloniais”, organizado por Streck; Morretti
e Adams (2019). Precisamos avançar mais nesta direção, cartografando pen-
itor

sadoras e pensadores da educação desconhecidos, experiências educacionais


a re

insurgentes, produções pedagógicas decoloniais.

Assumir uma perspectiva participativa e um


compromisso político-transformador em face das
par

realidades sociais e educacionais investigadas


Ed

Revelar os mecanismos de reprodução da colonialidade pedagógica é


fundamental, mas não suficiente nas pesquisas em educação em perspectiva
decolonial. Estas pesquisas, buscando romper com a estrutura positivista da
ão

ciência moderna, também se caracterizam por assumir o compromisso polí-


tico-transformador do pesquisador e da pesquisadora em face das realidades
s

sociais e educacionais investigadas.


ver

De acordo com Grosfoguel (2016), a divisão, sujeito x objeto e o mito


da neutralidade, que produz um conhecimento supostamente “imparcial”, não
condicionado pelo corpo ou pela localização no espaço de quem o elabora
continua a ser um critério utilizado para a validação do conhecimento das
disciplinas nas universidades ocidentalizadas.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 63

Na mesma direção, Patrícia Collins (2019) citando o positivismo como


um dos paradigmas clássicos do pensamento moderno ocidental, afirma que
há diversos requisitos que precisam ser atendidos para que o conhecimento
seja considerado válido, segundo esta perspectiva ocidentalizada. Em primeiro
lugar, os métodos de pesquisa requerem um distanciamento do pesquisador
em relação ao seu “objeto” de estudo. Um segundo requisito é a exclusão das
emoções do processo de pesquisa. Em terceiro lugar, considera-se que a ética

or
e os valores não devem ter lugar na pesquisa.

od V
Essa epistemologia eurocêntrica, que guia processos investigativos tra-

aut
dicionais em que a dicotomia, sujeito x objeto está presente, assim como o
descompromisso com as realidades investigadas, confronta-se com os princí-
pios da epistemologia feminista negra, por exemplo, e certamente com outras

R
epistemologias produzidas por grupos sociais subalternizados pela moderni-
dade/colonialidade. Referindo-se à epistemologia feminista negra, Collins

o
(2019, p. 147) assevera:
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

muitas mulheres negras tiveram acesso a outra epistemologia, que engloba


padrões para se chegar à verdade que são extensivamente aceitos por mulhe-
res afro-americanas. A epistemologia feminista negra é fundamentada por
visã
uma base experimental e material, a saber, experiências coletivas e visões
de mundo correspondentes que as mulheres negras estadunidenses consoli-
daram a partir de sua história peculiar. As condições históricas de trabalho
itor

das mulheres negras, tanto na sociedade civil negra quanto no exercício


do trabalho remunerado, ensejaram uma série de experiências que, uma
a re

vez compartilhadas e transmitidas, conformaram a sabedoria coletiva do


ponto de vista das mulheres negras. Além disso, uma gama de princípios
para avaliar as reivindicações de verdade encontra-se à disposição daquelas
que compartilharam tais experiências. Tais princípios sedimentaram uma
par

sabedoria das mulheres negras de caráter geral e consolidam, adicional-


mente, o que eu chamo aqui de epistemologia feminista negra (p. 147).
Ed

Neste sentido, como evidenciam as epistemologias feministas negras, o


processo de produção do conhecimento das mulheres negras é marcado pelo
ão

compartilhamento de sabedorias e experiências. Produzir conhecimento não


é uma atitude isolada, com pretensão de neutralidade, mas uma experiência
coletiva, de aprendizado cotidiano, compartilhado, com vistas a entender
s

criticamente a sociedade e a educação e se engajar na sua transformação.


ver

Para Collins (2019), as mulheres negras estadunidenses consideravam que,


“tendo em vista que o conhecimento deriva da experiência, a melhor forma de
compreender as ideias de outra pessoa seria desenvolvendo empatia e compar-
tilhando experiências que a levariam a formar tais ideias” (p. 151). Para ela,
esse processo particular de socialização estimula formas particulares de saber.
64

Esta autora também nos fala do uso do diálogo para avaliar o conhe-
cimento. “Um pressuposto primário que fundamenta o uso do diálogo na
avaliação do conhecimento é que as conexões, e não as separações, são um
componente essencial de processo de validação do conhecimento” (COL-
LINS, 2019, p. 153). Afirma ainda que tal crença nas conexões e no uso do
diálogo enquanto um critério de adequação metodológica tem origens afri-
canas, nas tradições orais herdadas da África e na cultura afro-americana.

or
Neste método, o pré-requisito fundamental reside na construção de uma rede

od V
interativa, na qual haja participação ativa de todos os indivíduos.

aut
Sustentamos, outrossim, que aquelas ideias confirmadas como verda-
deiras por afro-americanas, afro-americanos, lésbicas latinas, asiáti-

R
co-americanas, porto-riquenhos e outros grupos com seus pontos de
vista distintos – com a utilização por cada grupo de abordagens episte-

o
mológicas constituidoras de seus posicionamentos singulares – tornam
aC
as verdades mais ‘objetivas’. Cada grupo fala a partir de seu próprio

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ponto de vista e compartilha seu próprio conhecimento parcial e situado.
Porém, como cada grupo reconhece a parcialidade de sua verdade, o
conhecimento é inacabado. Cada grupo torna-se capaz de considerar os
visã
pontos de vista de outros grupos sem renunciar à singularidade de seu
próprio ponto de vista ou suprimir as perspectivas parciais de outros
grupos (COLLINS, 2019, p. 166).
itor

Trata-se, portanto, de um processo de produção do conhecimento que


a re

requer engajamento, compromisso, atitude transformadora. A ideia de “ati-


tude”, aliás, tem sido apontada como fundamental na produção do conhe-
cimento em perspectiva decolonial. Maldonado-Torres (2019) afirma que
enquanto método define a relação entre um sujeito e um objeto, a atitude
par

refere-se à orientação do sujeito em relação ao saber, ao poder e ao ser. Conclui


o autor: “Portanto, uma mudança na atitude é crucial para um engajamento
Ed

crítico contra a colonialidade do poder, saber e ser e para colocar a decolonia-


lidade como um projeto. A atitude decolonial é, então, crucial para o projeto
decolonial e vice-versa” (p. 45).
ão

Na história do pensamento social latino-americano, nasceram algumas


das mais importantes contribuições para uma pesquisa engajada criticamente
s

contra as colonialidades e com atitude transformadora. Não poderíamos deixar


ver

de mencionar a Investigação-Ação Participativa (IAP), sistematizada pelo


sociólogo colombiano Orlando Fals Borda.
Para Fals Borda, a IAP é, a um só tempo, um método de investigação,
uma técnica educativa e uma ação política. Não é somente investigar, nem
somente educar, nem somente atuar. É uma tríade permeada por uma filosofia
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 65

de vida, que a satura como um todo e com a qual se poderia reconstruir a


sociedade como uma força nova. A IAP é, desse modo, uma metodologia
dentro de um processo vivencial (FALS BORDA; ZAMOSC, 1985).
Enfatizando o aspecto vivencial, Fals Borda e Rahman (1989) definiram
a IAP como um processo aberto de vida e trabalho, uma vivência progressiva
rumo à transformação estrutural da sociedade e da cultura, um processo que
requer um compromisso, uma postura ética e persistência em todos os níveis.

or
Combinando a pesquisa científica com a ação política, a IAP visa a transformar

od V
radicalmente a realidade social e econômica e construir o poder popular em

aut
benefício dos excluídos. Neste complexo processo, estão incluídos a educação
popular, o diagnóstico das situações, a análise crítica e a prática como fontes

R
do conhecimento para sondar os problemas, as necessidades e as dimensões
da realidade (FALS BORDA, 1985).

o
Os propósitos finais da IAP, de acordo com Fals Borda (1985), são os
de: 1) capacitar as classes e grupos explorados para engendrar com eficácia
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

o peso transformador que lhes corresponde, traduzido em projetos, obras,


lutas e desenvolvimentos concretos; e 2) produzir e elaborar o pensamento
sociopolítico próprio de tais bases populares. Em suas próprias palavras, Fals
visã
Borda (1998, p. 182) assim definiu a IAP:

un método de estudio y acción que va al paso con una filosofía altruista


de la vida para obtener resultados útiles y confiables en el mejoramiento
itor

de situaciones colectivas, sobre todo para las clases populares. Reclama


a re

que el investigador o investigadora base sus observaciones en la convi-


vencia con las comunidades, de las que también obtiene conocimientos
válidos. Es inter o multidisciplinaria y aplicable en continuos que van de
lo micro a lo macro de universos estudiados (de grupos a comunidades y
sociedades grandes), pero siempre sin perder el compromiso existencial
par

con la filosofía vital del cambio que la caracteriza.


Ed

Do excerto acima, podemos definir a IAP como “um método de estudo e


ação” e “uma filosofia de vida”, que visa “melhorar a situação de vida das clas-
ão

ses populares”, e cuja produção do conhecimento baseia-se “na convivência


com as comunidades”, na “inter ou multidisciplinaridade” e no “compromisso
existencial” entre os distintos sujeitos da investigação.
s

A IAP é uma experiência político-pedagógica, no preciso sentido da edu-


ver

cação popular, na medida em que busca armar ideológica e intelectualmente


as classes mais exploradas da sociedade, para que estas assumam conscien-
temente o seu papel como atores da história. Para Fals Borda (1978), este é o
destino final do conhecimento, validado pela práxis e orientado pelo compro-
misso revolucionário. Seguindo o sentido da educação popular como processo
66

político-pedagógico de organização das camadas populares, Fals Borda (1985)


considera a IAP como um método científico de trabalho produtivo (e não
apenas de investigação), que implica organizar e impulsionar movimentos
sociais de base, de modo que resulta difícil e improdutivo distinguir entre
estudo e militância.
Para Fals Borda (2007), as bases gerais da IAP são as seguintes:

or
1. Busca de uma ciência/conhecimento interdisciplinar centrado nas

od V
realidades, contextos e problemas próprios, como os dos trópicos

aut
e subtrópicos.
2. Construção de uma ciência/conhecimento útil e ao serviço dos povos

R
de base, buscando libertá-los de situações de exploração, opressão
e submissão.

o
3. Construção de técnicas que facilitem a busca do conhecimento de
forma coletiva, a recuperação crítica da história e da cultura dos
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


povos originários e outros grupos, e a devolução sistemática e fácil
de entender para as pessoas comuns do conhecimento adquirido.
4. Busca mutuamente respeitosa da soma de saberes entre o conhe-
visã
cimento acadêmico formal e a sabedoria informal e/ou experiên-
cia popular.
5. Transformação da personalidade/cultura do investigador partici-
itor

pante para enfatizar a sua vivência pessoal e compromisso moral e


ideológico com as lutas pela mudança radical da sociedade.
a re

Para Mota Neto (2016), este conjunto de características e motivações


revelam três das principais marcas decoloniais presentes no pensamento de
Fals Borda e em sua proposta investigativa, na medida em que: a) rompem a
par

dualidade sujeito/objeto que caracteriza o conhecimento no paradigma cien-


tífico moderno; b) subvertem a dicotomia entre conhecimento científico e
Ed

sabedoria popular, que tem sido uma arma ideológica do pensamento euro-
cêntrico para determinar a inferioridade da cosmovisão das classes populares
ão

e outros grupos subalternizados; c) ultrapassam a neutralidade valorativa e o


descompromisso com a transformação social típicas das ciências positivistas.
Desse modo, consideramos que as perspectivas dialógicas e colaborati-
s

vas de produção do conhecimento propostas pelas epistemologias feministas


ver

negras e o compromisso participativo e transformador presente na IAP são


algumas das mais fecundas possibilidades de produção do conhecimento em
perspectiva decolonial.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 67

Pesquisar a educação em diálogo com as


experiências vividas por sujeitos subalternizados,
suas memórias, ancestralidades e sabedorias

Desafio fundamental para as pesquisadoras e os pesquisadores do campo


da Educação pressupõe entendê-la – a educação – para além dos conheci-

or
mentos oficiais normatizados pelas políticas curriculares nacionais. Estes
conhecimentos, como já vimos, reproduzem o eurocentrismo das universi-

od V
dades e escolas ocidentalizadas, e colocam-se em posição de não diálogo

aut
– mais ainda, de superioridade – com os conhecimentos populares, as sabe-
dorias insurgentes ou as memórias de sujeitos sociais subalternizados pela
modernidade/colonialidade.
R
É preciso, neste sentido, que os pesquisadores e as pesquisadoras da Edu-

o
cação se abram para pedagogias “outras” e conhecimentos “outros” produzidos
aC
por comunidades populares, movimentos sociais e populações originárias.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Este debate está bastante presente nas epistemologias feministas negras.


Collins (2019), por exemplo, nos fala da experiência vivida como critério
de significação. “Viver a vida enquanto mulher negra requer sabedoria, uma
visã
vez que o conhecimento sobre as dinâmicas das opressões que se intersec-
tam é essencial para a sobrevivência das negras americanas. Ao avaliar o
conhecimento, as afro-americanas conferem grande credibilidade a essa
itor

sabedoria” (p. 148).


a re

Considerando a experiência como critério de significação e um princípio


epistemológico fundamental dos sistemas de pensamento afro-americano,
Collins (2019) propõe o “método narrativo”, que “requer que a história seja
contada, e não dissecada sistematicamente; confiável no que tem de mais
fundamental, e não ‘admirada enquanto ciência’” (p. 150).
par

O método narrativo, nas pesquisas em educação, apresenta-se como


Ed

uma importante possibilidade de transgressão da ciência moderna, na medida


em que conhecimentos considerados socialmente como “inferiores” ou
“inválidos”, como a cultura popular ou as memórias coletivas, passam a
ão

assumir outro status epistemológico, como conhecimentos “válidos”, “sig-


nificativos” e “reais”.
Para Walsh (2013), a memória coletiva tem sido o espaço onde se rela-
s

ciona, na prática mesma, o pedagógico e o decolonial. Por isso, a autora nos


ver

diz que a pedagogia decolonial está relacionada às memórias que os povos


indígenas e afrodescendentes, por exemplo, vieram mantendo como parte de
sua existência e de sua luta. Para ela, a memória coletiva articula a continui-
dade de uma aposta decolonial, é como “este vivir de luz y libertad en medio
de las tinieblas” (2013, p. 26).
68

Para Marín (2013), na mesma direção, os projetos e as práticas no campo


da memória podem ser concebidos no interior do horizonte da decoloniali-
dade, por dois motivos: primeiro, pela visibilização de epistemes que foram
subalternizadas pela lógica do poder colonial e pela colonialidade; segundo,
porque mobilizam dinâmicas de transformação dos legados coloniais que
ainda hoje persistem.
Esta autora chama de recuperação crítica da história para esta tradição

or
intelectual, nascida no final da década de 1970 e implementada durante os

od V
anos 1980 na América Latina, e que para ela, é um dos antecedentes mais

aut
claros na configuração de cenários políticos e epistêmicos críticos no campo
da memória coletiva. A autora pontua que esta tradição surge ou se “ali-

R
menta” a partir dos aportes da Investigação-Ação Participativa e da Educa-
ção Popular, sob a influência decisiva de Orlando Fals Borda e Paulo Freire

o
(MARÍN, 2013).
Ainda de acordo com Marín (2013), a recuperação coletiva, segundo
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Fals Borda e Freire, mostrou-nos a possibilidade de produzir conhecimento
a partir da práxis política e ética, assim como a partir das diversas lógicas de
saber no interior dos setores populares. Em consequência, começaram-se a
visã
produzir “outras” narrativas históricas que assumiram forma dissidente em
relação aos oficiais, apontando para um conhecimento produzido no seio do
movimento popular (MARÍN, 2013).
itor

A este conhecimento podemos denominar de várias formas. No


a re

Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado


do Pará, em que há uma linha de pesquisa sobre “Saberes culturais e
educação na Amazônia”, podem-se conceituar os saberes culturais como
“uma forma singular de inteligibilidade do real, fincada na cultura, com
raízes na urdidura das relações com os outros, com a qual, determinados
par

grupos reinventam criativamente o cotidiano, negociam, criam táticas de


sobrevivência, transmitem seus saberes e perpetuam seus valores e tradições”
Ed

(ALBUQUERQUE; SOUSA, 2016, p. 240).


Esta definição, elaborada por pesquisadores vinculados ao PPGED-UEPA,
ão

articula-se aos esforços de outras pesquisadoras e outros pesquisadores do Pro-


grama, incluindo os autores deste texto, que desde 2003, vêm desenvolvendo,
em termos teórico-metodológicos, o que chamamos de “cartografia de saberes”.
s

Conforme Oliveira (2018, p. 109), as cartografias de saberes “analisam a pro-


ver

dução e a circulação de saberes culturais , artístico-estéticos, entre outros, em


diferentes contextos educacionais. Apesar de [poder] focar para determinado
saber, a relação entre saberes é efetivada, tendo como suporte o cotidiano das
práticas sociais. Busca-se mapear e compreender o significado dos saberes
para a população e a educação da cultura local”.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 69

Outra forma de conceituar estes saberes encontramos em Arias (2010),


que nos fala em sabedorias insurgentes. Para ele, valorizar estas sabedorias
não significa deixar de lado o diálogo com as epistemologias que se constroem
na academia, nem deixar de considerar que nestas sabedorias, há uma epis-
temologia própria, como pode ser entendido pelo saber acadêmico. Há uma
epistemologia, mas essas sabedorias vão além, posto que estão ancoradas na
própria vida dos sujeitos subalternizados e incorporam um horizonte “outro”

or
de sentido ético, político e afetivo. Por isso, essas sabedorias, mais do que

od V
compor nosso material de estudo, devem ser vistas como fontes de sentido,

aut
dialogando em igualdade de condições com propostas epistêmicas críticas
elaboradas por acadêmicos das universidades.

R
É neste sentido que, aprendendo com as sabedorias insurgentes,
presentes, por exemplo, nas tradições ancestrais das culturas afro-religiosas

o
brasileiras e amazônicas, trazemos a diferenciação entre “conhecimento”
e “sabedoria” estabelecida pelo encantado8 Légua Boji9, incorporado no
aC
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sacerdote de uma casa de Tambor de Mina10, no município de Benevides


– Pará, etnografada em pesquisa anterior de um dos autores deste texto
(MOTA NETO, 2008):
visã

Conhecimento você aprende de estudar, é algo mecânico, você insiste,


insiste, até que aprende, e pode depois esquecer. Sabedoria não, sabedoria
a gente aprende na vivência, é a vida que nos ensina, a gente não esquece
itor

(Caboclo Légua Boji).


a re

Com essa afirmação, Seu Légua distingue dois tipos de saberes: o saber
formal, de aprendizagem metódica e natureza livresca, desconectado da vida
e representado pelo saber escolar; e o saber cotidiano, fundado na experiência,
par

nas relações sociais cotidianas, “um saber que se aprende, mas não se ensina”,
posto que é proveniente da experiência adquirida com o tempo.
Ed

8 Encantado designa uma entidade espiritual genericamente chamada de caboclo ou caboco, podendo
também representar, no Tambor de Mina, os voduns e os orixás, divindades dessa religião. Para Eduardo
ão

Galvão (1976, p. 66), referindo-se à Amazônia, o conceito de encantado “é definido localmente como uma
força mágica atribuída aos sobrenaturais. Seres humanos, animais, objetos podem ficar encantados por
influência de um sobrenatural. O conceito não se aplica aos santos ou divindades cristãs”.
9 No terreiro pesquisado, Légua Boji se apresenta como tendo mais de 500 anos e de origem angolana. A
s

narrativa histórica desse caboclo mostra sua saída da África, em direção à Trindade e Tobago, na América
ver

Central e posterior vinda para o Brasil, terra em que aparece como boiadeiro das matas do Codó, no Mara-
nhão, onde foi adotado como filho pelo nobre Dom Pedro Angaço (MOTA NETO, 2008).
10 Denominação mais difundida das religiões afro-brasileiras no Maranhão e na Amazônia, sendo que a palavra
“Tambor” deriva da importância do instrumento homônimo nos rituais de culto e “Mina” deriva dos negros da
Costa da Mina, nome dado aos escravos procedentes da costa situada a leste do Castelo de São Jorge de
Mina, na atual República do Gana, trazidos da região das Repúblicas do Togo, Benin e Nigéria e que eram
conhecidos como negros mina-jejes e mina-nagôs (FERRETTI, 2000).
70

No Tambor de Mina, os saberes da tradição são socializados de uma gera-


ção a outra nas relações de comunicação direta, nas conversas e no convívio
diário, utilizando-se de narrativas orais que veiculam as memórias coletivas
da religião e do povo-de-santo. Nessa cultura educativa, a ideia de experiên-
cia é fundamental, uma vez que a sabedoria é adquirida na prática religiosa
cotidiana, ao sabor do tempo (MOTA NETO, 2008).
Para Tramonte (2004), sob o prisma da intercultura, as práticas das reli-

or
giões afro-brasileiras apresentam-se como um campo híbrido de constru-

od V
ção de identidades. Esse campo possibilita a criação e circulação de saberes

aut
interculturais que são preservados na religião em decorrência da importante
atuação dos sacerdotes e demais adeptos, os quais, por meio da oralidade,

R
das narrativas mitológicas, do aconselhamento e dos trabalhos de desenvol-
vimento, socializam saberes e tradições registrados na memória coletiva do

o
povo-de-santo.
A memória, nesse sentido, pode ser caracterizada como uma fonte indis-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


pensável dos saberes da tradição do Tambor de Mina, compreendendo-se a
tradição como um conjunto de modelos, normas, padrões veiculados pela
memória e costumes coletivos, com a função de ordenar a existência coti-
visã
diana. Para Zumthor (1997, p. 13), inspirando-se em Ortega y Gasset, tradi-
ção é “uma colaboração que pedimos ao nosso passado para resolver nossos
problemas atuais”.
itor

Desse modo, os saberes da tradição fornecem aos membros da comu-


a re

nidade do terreiro elementos para a constituição de sua identidade cultural


e religiosa, com seu modo próprio de ser, pensar e agir sobre o mundo. A
memória não apenas registra os episódios do passado, mas ensina, por meio
dos saberes da tradição, formas de agir e explicar o mundo atual. Os sacerdo-
tes e os encantados são os principais responsáveis por resguardar tais saberes
par

(MOTA NETO, 2008).


A pesquisa sobre a educação e as sabedorias construídas no Tambor de
Ed

Mina trazem à tona questões fundamentais para a pesquisa em educação,


como a perspectiva da interculturalidade, as memórias, as ancestralidades, a
ão

espiritualidade, a corporeidade, a ecologia, a ética e a estética.


Em nossa experiência de campo, utilizamos, além da “cartografia de
saberes” já mencionada, também a perspectiva etnográfica. Consideramos que
s

nas pesquisas em educação a etnografia é uma importante estratégia metodo-


ver

lógica para estudo das sabedorias, memórias, ancestralidades e experiências


de vida das camadas populares. Concordamos com Arias (2010) quando diz
que apesar da herança colonial que está na origem da Antropologia, hoje esta
ciência apresenta um grande potencial descolonizador que pode contribuir
para a luta contra a razão colonial dominante.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 71

Arias (2010) propõe uma etnografia decolonial e, em seu estudo, além


de oferecer uma ampla discussão teórica sobre o que chama de “antropologia
comprometida com a vida”, sintetizada na expressão corazonar, também ofe-
rece um interessante referencial metodológico para a realização de etnografias
decoloniais, que bem podem ser utilizadas por pesquisadoras e pesquisadores
da educação. Ao remeter o leitor à obra do próprio Arias, queremos apenas
destacar uma das características da etnografia decolonial, que é a colaboração,

or
a necessidade de se construir conhecimento com as pessoas e não sobre elas.
É necessário, portanto: “Estar dispuesto a colaborar con la gente, esa es una

od V
de las mejores maneras de ganarse su confianza, de ahí que hay que procurar

aut
incorporarse a participar de las actividades comunitarias, ayudar en el trabajo
colectivo, [...] sus fiestas, por ejemplo” (ARIAS, 2010, p. 367).

R
Etnografias decoloniais também podem ser chamadas de colaborati-
vas, como propõe Mariateresa Muraca (2015), que realizou um estudo sobre

o
práticas pedagógicas populares, feministas e decoloniais do Movimento de
aC
Mulheres Camponesas de Santa Catarina. Muraca, por sua vez, baseia-se na
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

formulação de Lassiter (2005) sobre etnografia colaborativa, que se caracteriza


como dialógica e que põe no centro do debate aquilo que, no geral, permanece
apenas cenário, consultando-se permanentemente os sujeitos da pesquisa ao
visã
longo do processo de produção do conhecimento.
Neste sentido, consideramos que métodos narrativos, processos de recu-
peração coletiva da história, estudos sobre memória e história oral, cartografias
itor

de saberes e etnografias decoloniais e colaborativas são ricas possibilidades


de investigação em educação.
a re

Outros (tantos) desafios


Por se tratar de temática nova, ainda pouco enfrentada pelas pesquisado-
par

ras e pelos pesquisadores do campo da Educação, os desafios da investigação


em perspectiva decolonial são muitos. Estes desafios têm se apresentado no
Ed

processo mesmo de investigação, levados a cabo por nós em nossos estudos


e por muitos outros e outras que têm se esforçado em investigar a educação
com opções teórico-metodológicas e atitudes que sejam coerentes com a
ão

epistemologia da decolonialidade. Este também é um saber que se constrói


coletivamente, de forma colaborativa e por vezes em redes.
Se queremos descolonizar a ciência e a pesquisa em educação, precisamos
s

também mudar nossas estratégias de produção e socialização do conhecimento,


ver

evitando o exclusivismo acadêmico e a busca frenética por obtenção de status


por meio das investigações e publicações que desenvolvemos. Ao contrário,
o exercício da pesquisa precisa ser cada vez mais dialógico, colaborativo,
solidário, feito com rigor e compromisso acadêmico, ética da solidariedade/
sororidade, do sentir e da afetividade transformadora.
72

Fazer pesquisa em Educação em perspectiva decolonial implica, de fato,


incorporar a sensibilidade e o compromisso ético nas investigações. Collins
(2019) nos fala da ética do cuidado como constitutiva das epistemologias femi-
nistas negras. “A temática de falar com o coração tangencia a ética do cuidado,
outra dimensão de uma alternativa epistemológica usada pelas afro-americanas
[...] a ética do cuidado sugere que a expressividade pessoal, as emoções e a
empatia são centrais no processo de validação do conhecimento” (p. 156).

or
Para a autora, emoção, subjetividade, histórias de vidas, ética e razão

od V
estão conectados e são componentes essenciais da busca do conhecimento.

aut
“Nessa epistemologia alternativa, os valores são situados no centro do pro-
cesso de validação do conhecimento, de maneira que as investigações sempre
apontam para um objetivo ético” (COLLINS, 2019, p. 160).

R
Orlando Fals Borda, na mesma direção, fala do educador popular e do
investigador participativo como um intelectual sentipensante, isso é, “aquella

o
persona que trata de combinar la mente con el corazón, para guiar la vida por
aC
el buen sendero y aguantar sus muchos tropiezos”. Trata-se, assim, de uma

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


aposta na possibilidade de um outro perfil de educador e de investigador, em
franca oposição à atitude fria e supostamente neutra do cientista positivista,
tradicional e eurocêntrico.
visã
Uma vez que a Investigação-Ação Participativa se desenvolve em pro-
cessos vivenciais, Fals Borda falava da construção da alteridade e do diálogo
na busca do conhecimento. “Cuando nos descubrimos en las otras personas,
itor

afirmamos nuestra propia personalidad, nuestra propia cultura y nos armoniza-


a re

mos con un cosmos vivificado” (FALS BORDA; RAHMAN, 1989, p. 20). Em


outra ocasião, Fals Borda (1998) definiu o altruísmo como uma “Estrela Polar”,
dotado de potencial subversivo neste decomposto mundo contemporâneo.
Essas reflexões são capazes de orientar processos investigativos ancora-
dos na ética. Possibilitam também que suscitemos debates sobre os procedi-
par

mentos éticos que temos usado em nossos trabalhos e sobre os atuais comitês
Ed

de ética que analisam nossos projetos e de nossos(as) orientandos(as). Estamos


sendo capazes de construir pesquisas ancorados numa ética de solidariedade,
compromissada com as comunidades e cuidadosa com as pessoas, os afetos,
ão

os saberes e a natureza? Ou estamos apenas seguindo protocolos burocra-


tizados, criados por pesquisadores afinados com o paradigma moderno de
ciência? Como fazer para provocar fissuras nestas estruturas ocidentalizadas
s

que moldam significativamente os comitês e procedimentos de ética?


ver

Outro desafio que nos parece fundamental é assumir a corporeidade nos


processos de produção do conhecimento. Paulo Freire (1987) nos falava do
ser humano como um corpo consciente, cuja consciência está intencionada ao
mundo. Dizia que os seres humanos, “porque são um ‘corpo consciente’, vivem
uma relação dialética entre os condicionamentos e sua liberdade” (1987, p. 90).
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 73

Assumir a corporeidade também é enfrentar o modelo eurocêntrico de


ciência, que se pretende desincorporada e sem localização geopolítica, con-
forme Bernadino-Costa; Maldonado-Torres e Grosfoguel (2019). “O projeto
decolonial assume a necessidade de afirmação do corpo-geopolítico para a
produção do conhecimento como estratégia para desarmar essa ‘bomba cul-
tural’ da qual nos fala Wa Thiong’o” (escritor queniano) (p. 13).
Maldonado-Torres (2019) nos fala do corpo aberto como um corpo ques-

or
tionador e criativo.

od V
aut
O corpo aberto é um corpo questionador, bem como criativo. Criações
artísticas são modos de crítica, autorreflexão e proposição de diferentes
maneiras de conceber e viver o tempo, o espaço, a subjetividade e a comu-

R
nidade, entre outras áreas. [...] A performance estética decolonial é, entre
outras coisas, um ritual que busca manter o corpo aberto, como uma fonte

o
contínua de questões. Ao mesmo tempo, esse corpo aberto é um corpo
aC
preparado para agir (MALDONADO-TORRES, 2019, p. 48).
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Ainda segundo o autor, quando o condenado comunica as questões crí-


ticas que estão fundamentadas na experiência vivida do corpo aberto, emerge
visã
um outro discurso e outra forma de pensar. Por essa razão, a escrita para muitos
intelectuais negros e de cor é um evento fundamental. A escrita é uma forma
de reconstruir a si mesmo e um modo de combater os efeitos da separação
ontológica e da catástrofe metafísica (MALDONADO-TORRES, 2019).
itor

Uma escrita sensível decolonial nos parece ser também um desafio


a re

a ser assumido nas pesquisas em educação. O rigor acadêmico herdado do


positivismo nos ensinou a escrever de forma “objetiva”, “desincorporada”,
“fria”. O patriarcado nos ensinou a escrever apenas no masculino, ocultando
e subalternizando o lugar das mulheres na história intelectual. O racismo
par

nos eivou de palavras que reproduzem assimetrias raciais. O capitalismo nos


impõe um vocabulário mercadológico, utilitário, tecnicista. É preciso coragem,
Ed

corpo aberto, disposição para aprender e ousadia para conseguirmos construir


outras escritas que sejam mais sensíveis e inclusivas.
Escrever é uma ação difícil, como também o são as outras formas de se
ão

expressar sobre o mundo (pintar, esculpir e poetizar), porque são formas de


criar, maneiras de significar o mundo e para quem teve historicamente este
direito subtraído, como as populações subalternizadas (negras, indígenas,
s

classe trabalhadora, mulheres), começar a escrever sobre sua história e o


ver

sentido da vida é um doloroso ato de liberdade.


O sentimento de procura e a falta de resposta que Anzaldúa revela ao
escrever, especialmente para as mulheres do Terceiro Mundo, estão muito
além do gênero, é um sentimento, também, histórico-cultural. Levando-nos
a refletir quando se interroga:
74

Quem nos deu permissão para praticar o ato de escrever? Por que escrever
parece tão artificial para mim? Eu faço qualquer coisa para adiar este ato
esvazio o lixo, atendo o telefone. Uma voz é recorrente em mim: Quem
sou eu, uma pobre chicana do fim do mundo, para pensar que poderia
escrever? Como foi que me atrevi a tornar-me escritora enquanto me
agachava nas plantações de tomate, curvando-me sob o sol escaldante,
entorpecida numa letargia animal pelo calor, mãos inchadas e calejadas,

or
inadequadas para segurar a pena? (2000, p. 231).

od V
Para a autora, escrever é um ato de recriar o mundo em que vivemos, é

aut
denunciar que este sistema que está aí não consegue atender às necessidades
das vidas humanas, escrever é também um ato de anunciar. A escrita é um ato

R
de alquimia, de criar alma, de buscar o eu do centro da existência humana,
de desconstruir o “outro” imposto. Nessa construção, o sujeito que nasce
não é menos medroso(a), porém é um ser mais corajoso(a) e decidido(a) em

o
escrever suas palavras:
aC

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Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não
me dá. No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para
poder segurá-lo. Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha
visã
fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para
reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. Para me tornar
mais íntima comigo mesma e consigo. Para me descobrir, preservar-me,
itor

construir-me, alcançar autonomia (ANZALDÚA, 2000, p. 232).


a re

Para finalizar, um desafio que nos parece fundamental é considerar a


interseccionalidade como perspectiva metodológica das pesquisas decolo-
niais. Precisamos superar nossa tendência cartesiana de separar e hierarquizar
as categorias e os processos de opressão. A realidade, nesta perspectiva, é
par

como um quadrado com outros pequenos quadrados dentro. Cada dimensão


da realidade, da sociedade e da educação cabe dentro de um determinado
Ed

quadrículo. Quando estas dimensões se comunicam, é numa perspectiva dico-


tômica e hierarquizadora.
Isso faz com que em nossas pesquisas reproduzamos essa lógica carte-
ão

siana e construamos categorias isoladas, dicotômicas que, ao invés de possibi-


litarem uma visão mais de complexidade da sociedade e da educação, reduzem
a realidade a processos lineares, esquemáticos e reducionistas.
s

No pensamento decolonial, existe uma visão heterárquica da sociedade e


ver

dos processos de opressão. Mesmo quando se enfatiza, por exemplo, o papel


do racismo na organização das relações de dominação da modernidade, não
se pretende que o racismo explique tudo ou que possa ser explicado sem a
análise de outros processos de opressão interseccionados. Vejamos a posição
de Grosfoguel (2019, p. 59-60) a esse respeito:
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 75

Na perspectiva decolonial, o racismo organiza as relações de dominação


da modernidade, mantendo a existência de cada hierarquia de dominação
sem reduzir umas às outras, porém ao mesmo tempo sem poder entender
uma sem as outras. O princípio de complexidade é o seguinte: não se pode
reduzir como epifenômeno uma hierarquia de dominação à outra que a
determine em ‘última instância’, porém tampouco se pode entender uma
hierarquia de dominação sem as outras. Esse princípio de complexidade é o

or
que Aníbal Pinto (1976) chamou de ‘heterogeneidade histórico-estrutural’,
Kyriakos Kontopoulos (1993) chamou de ‘heterarquia’ e as feministas

od V
negras chamam de ‘interseccionalidade’ (GROSFOGUEL, 2019, p. 59-60).

aut
Com efeito, para as feministas negras, como Collins (2019), as opressões

R
intersectadas de raça, classe, gênero, sexualidade e nação buscam esboçar um
paradigma alternativo que pode constituir uma parte importante da epistemo-

o
logia feminista negra.
O Manifesto do Coletivo Negro (1982) foi de fundamental importância
aC
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para construção de interpretações outras, pois a articulação de outras etnias


exploradas e violentadas no processo de conquista dos territórios no sul global
pelos europeus e, posteriormente, os Estados Unidos visibiliza as diferenças
visã
de gênero, de mulheres e culturais, que não podem ser limitadas dentro de
um padrão teórico de mulheres brancas e de dimensão universal, escamo-
teando as diferenças de todas as ordens sociais. Para as autoras Brah (2006),
Collins (2019) e Hulko (2009), para citar algumas, há uma necessidade de
itor

articulação de diferentes categorias teóricas para evidenciar que a opressão


a re

está combinada, em outras palavras, interseccionda/entrecruzada na teia da


complexidade que é a vida.
Para a autora Audre Lorde (2009), não há hierarquia de opressão, pois
a intolerância, a diferença e a violência opressora acontecem em todas as
par

formas, tamanhos, cores, sexualidade, gênero e outras. Para ela, estabelecer


hierarquias de importância nas opressões é estabelecer divisão no processo
Ed

de liberdade, o que compromete o horizonte libertador. Ao hierarquizar as


opressões é como se colocássemos um grupo oprimido contra outros, ou seja,
é mais um ataque cínico do sistema dominante que tem como seu princípio
ão

a competitividade.

Os ataques crescentes sobre lésbicas e homens gays são apenas uma intro-
s

dução aos crescentes ataques sobre pessoas Negras, para onde quer que
ver

seja, manifestos de opressão em si mesmos nesse país, Pessoas negras são


vítimas potenciais. E esse é o estandarte do cinismo da direita encorajar
membros de grupos oprimidos a agir uns contra os outros, e por tanto
tempo a gente é dividida por causa de nossas identidades particulares que
nós não podemos juntar todos juntos numa ação política efetiva. Dentro
76

da comunidade lésbica eu sou Negra, e dentro da comunidade Negra eu


sou lésbica. Qualquer ataque contra pessoas Negras é uma questão lésbica
e gay porque eu e centenas de outras mulheres Negras somos partes da
comunidade lésbica. Qualquer ataque contra lésbicas e gays é uma questão
Negra, porque centenas de lésbicas e homens gays são Negros. Não há
hierarquias de opressão (LORDE, 2009, p. 2).

or
Ao pensar na não hierarquização das opressões, isso nos leva a entender
que elas estão interseccionalizadas e imbricadas, mas que não significa

od V
Um aprisionamento. Para Davis (2016), a interseccionalidade não

aut
produz uma camisa de força normativa para monitorar, testar e fiscalizar o
cumprimento dos padrões normatizados, tentando manter uma linha exata e

R
correta; pelo contrário, promove o encorajamento acadêmico, especialmente
feminista, de se envolver criticamente com suas próprias hipóteses, atendendo

o
aos interesses de uma investigação feminista reflexiva, crítica e responsável.
aC

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Considerações finais

As reflexões compartilhadas neste texto pretendem ser uma contribuição


visã
ao debate sobre as epistemologias e metodologias de pesquisa decoloniais no
campo da Educação. Este campo, como os demais das Ciências Humanas e
Sociais, está marcado pela histórica reprodução do colonialismo intelectual,
itor

como dizia Orlando Fals Borda, ou da colonialidade do saber, na gramática


a re

decolonial mais contemporânea. No Brasil, como em outros países da América


Latina, pouco conhecemos sobre nossa própria trajetória de pensamento. As
colonialidades do saber e do ser, sempre articuladas, vêm atuando no sen-
tido da negação de existências humanas, logo, de seus saberes; assim como
promove o epistemicídio e, por meio dele, aniquila-se também a dimensão
par

ontológica do ser humano como construtor de conhecimento.


A atitude decolonial é uma recusa explícita às colonialidades em suas
Ed

diversas facetas. Mobiliza pensamentos e corpos para se insurgirem contra


as opressões. No nível intelectual, provoca o debate sobre a necessidade de
investirmos esforços na originalidade e criatividade de nosso pensamento,
ão

que precisa também ser crítico e transformador.


Achille Mbembe (2017) diz que vivemos um momento em que a história
s

e as coisas se voltam para nós, e em que a Europa deixou de ser centro de


ver

gravidade do mundo. Que essa é a experiência fundamental de nossa época.


Essa é uma afirmação provocadora. Mesmo que possamos discordar dela, a
afirmação nos provoca a assumir o lugar usurpado de produtor de conheci-
mento e de atribuir legitimidade ao que fazemos, ao que propomos e ao que
pensamos. Usurpação e legitimidade, como nos ensinou Albert Memmi (2007),
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 77

são procedimentos usados pelo colonizador para descredenciar e ocultar o


colonizado. Como é que a usurpação pode tentar passar por legitimidade? –
questionava Memmi. E ele dava a resposta: “Dois procedimentos parecem
possíveis: demonstrar os méritos eminentes do usurpador, tão eminentes que
pedem uma recompensa como essa; ou insistir nos deméritos do usurpado,
tão profundos que só podem suscitar uma desgraça como essa” (p. 90). Como
consequência, “A inquitação do usurpador, sua sede de justificação exigem

or
dele, ao mesmo tempo, que se auto-eleve às nuvens, e que afunde o usurpado

od V
para baixo da terra” (p. 90).

aut
Pois que saiamos debaixo da terra. Melhor, que com a terra, as matas e
as águas com as quais homens e mulheres da Amazônia, por exemplo, cons-
troem seu modo de vida e suas sabedorias insurgentes, possamos desaprender

R
a repetição e exercitar a criação.
Nesta caminhada, enfrentaremos muitos desafios. Não será tarefa fácil

o
a descolonização do pensamento, do cotidiano e do mundo em que vivemos.
aC
Mas se acreditamos que a ciência e a educação podem contribuir para a supe-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ração das colonialidades, então precisamos fazer ciência em coerência com


os princípios que nos movem.
Desaprender o modo ocidentalizado e colonial/moderno de fazer pesquisa
visã
implicará, em nossa perspectiva, a) a superação da colonialidade pedagógica
e do eurocentrismo presentes nas universidades e nos processos tradicionais
de produção do conhecimento; b) a assunção de uma perspectiva participativa
itor

e um compromisso político-transformador em face das realidades sociais e


a re

educacionais investigadas; c) um exercício de pesquisar a educação em diá-


logo com as experiências vividas por sujeitos subalternizados, suas memórias,
ancestralidades e sabedorias. Também implicará, entre tantos outros desafios,
incorporar a sensibilidade e o compromisso ético nas investigações, assumir
par

a corporeidade nos processos de produção do conhecimento, construir uma


escrita sensível e decolonial e considerar a interseccionalidade como pers-
Ed

pectiva metodológica das pesquisas decoloniais.


s ão
ver
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od V
o aut
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PEDAGOGIA-EM-PARTICIPAÇÃO:
infância e decolonialidade

or
Ângela do Céu Ubaiara Brito
Maria Carolina Henrique Marques

od V
Waldir Ferreira de Abreu

aut
R
Introdução

o
A educação decolonial abriga discussões que perpassam por questões
aC
sociais que visam decolonizar o paradigma moderno/colonial, inclusive por
meio de uma pedagogia como práxis de libertação e da humanização (MOTA
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NETO, 2016). Nesse caso, tem em seus princípios a contribuição para o rom-
pimento de uma visão colonial de infância, submissa ao adulto que transforma
visã
as crianças em sujeitos passivos, sem participação e “voz” na sociedade.
Ante esses pressupostos, a discussão aqui apresentada é um estudo
que proporciona o reconhecimento da criança como ser ativo, participativo
itor

socialmente, construtor de sua própria cultura e conhecimento, na qual é


a re

possibilitada por processos participativos que os definimos na fundamentação


teórica de Oliveira-Formosinho (2008a) como pedagogia-em-participação
para a infância.
A pedagogia-em-participação tem como uma das categorias de análise a
concepção de infância como sujeito ativo no processo histórico cultural para
par

a sociedade (SARMENTO, 2004). Segundo Oliveira-Formosinho (2011), as


Ed

crianças são atores sociais, reproduzem, transformam e criam cultura, e essas


ações podem ser compreendidas como “reprodução interpretativa”, termo desig-
nado por Corsaro (2011). A reprodução interpretativa possibilita que a criança
ão

faça parte da cultura adulta e contribua com a reprodução, “passando a uma


negociação com os adultos e a uma criativa produção de uma série de cultura de
pares com outras crianças” (CORSARO, 2011, p. 40). As crianças se apropriam
s

criativamente do que lhes é transmitido pela cultura do adulto, transformam-na e


ver

através das relações sociais (cultura de pares) criam sua própria cultura infantil,
dando novo um significado. Tal processo tem estreita relação com a formação
da criança como sujeito ativo para a construção de seu conhecimento.
O trabalho teórico pretende contribuir e levantar reflexões sobre a temá-
tica da decolonialidade e infância na pedagogia-em-participação. A primeira
seção discute sobre a Infância, Pedagogia e Decolonialidade e a segunda
descreve e reflete sobre a pedagogia-em-participação como proposta para a
86

decolonialidade e infância. Nessa discussão, é importante entender que as


crianças criam e recriam novas possibilidades, brincadeiras e significados
constantemente, aprendem e reinventam no seu próprio tempo, através das
experiências; das relações sociais com os adultos e com as outras crianças no
meio em que vivem e; do brincar e do brinquedo que auxiliam na construção
de saberes e nas reflexões sobre a sua vida. Assim, o olhar decolonial para a
infância perpassa por concebê-las como sujeitos sociais e produtores de cultura

or
e as reconhecê-las em suas potencialidades cognitivas no que concerne às suas

od V
percepções, linguagem, memórias e questões sociais no que diz respeito a sua

aut
participação e as formas de interagir e se comunicar.

Infância, pedagogia e decolonialidade


R
Segundo Fernandes (2018), o termo decolonial deriva de uma perspec-

o
tiva teórica que autores Latino-americanos expressam, fazendo referência
aC

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às possibilidades de um pensamento crítico a partir dos subalternizados pela
modernidade capitalista e, na esteira dessa perspectiva, a tentativa de cons-
trução de um projeto teórico voltado para o repensamento crítico e transdis-
ciplinar, caracterizando-se também como força política para se contrapor às
visã
tendências acadêmicas dominantes de perspectiva eurocêntrica de construção
do conhecimento histórico e social.
Maldonado-Torres (2008) destaca que a decolonialidade se configura não
itor

apenas como energia de resistência (atitude decolonial), mas também como


a re

razão “des-colonial”, isto é, uma postura ético-política e teórica que, ao se


opor à mentira e à hipocrisia moderna colonial, enfoca novas bases para o
conhecimento e, sobretudo, busca caminhos para um humanismo de reconhe-
cimento das alteridades em nível planetário, logo, o pensamento decolonial
par

– como energia de resistência e como razão “descolonial” – está para além


de ser representado apenas por intelectuais. De fato, o pensamento decolonial
Ed

opera por mão dupla: as expressões de luta e resistência contra a moderni-


dade/colonialidade e as elaborações teóricas de intelectuais, sobretudo, os
engajados com a porção sul do planeta.
ão

O conceito de decolonialidade, conecta-se com as questões educacio-


nais através da denominada Pedagogia decolonial. Pedagogia decolonial é
expressar, segundo Fernandes (2018), o colonialismo que construiu a desu-
s

manização dirigida aos subalternizados pela modernidade europeia e pensar


ver

na possibilidade de crítica teórica a geopolítica do conhecimento.


Por outro lado, são recentes os processos de construção de pedagogias
decoloniais como resultados praxiológicos do Pensamento Decolonial. Nesse
âmbito, têm-se as contribuições de Walsh (2009), Palermo (2014) e Mota
Neto (2016).
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 87

Nesse sentido, as pedagogias decoloniais como expressões de luta e


resistência, são elaborações teóricas que se desdobram da decolonialidade,
conforme aponta Walsh (2009 p. 27):

[...] pedagogias que dialogam com os antecedentes crítico-políticos, ao


mesmo tempo em que partem das lutas e práxis de orientação decolonial.
Pedagogias que [...] enfrentam o mito racista que inaugura a moderni-

or
dade [...] e o monólogo da razão ocidental; pedagogias que se esforcem
por transgredir, deslocar e incidir na negação ontológica, epistêmica e

od V
cosmogônico-espiritual que foi, e é, estratégia, fim e resultado do poder

aut
da colonialidade.

R
Portanto, a pedagogia decolonial é uma denominação genérica dada às
pedagogias críticas que, ao se alinharem praxiologicamente ao pensamento

o
decolonial, transgridem as inúmeras expressões da colonialidade e da moder-
nidade como mito sacrificial.
aC
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Nessa direção, Mota Neto (2016) também expressa uma definição de peda-
gogia decolonial que tem sua identidade ancorada na práxis da luta contra a colo-
nialidade/ “modernidade”, que se dá por meio de processos de formação humana,
visã
tendo em vista a construção de uma sociedade justa, solidária, livre e amorosa:

[...] a pedagogia decolonial refere-se às teorias-práticas de formação


humana que capacitam os grupos subalternos para a luta contra a lógica
itor

opressiva da modernidade/colonialidade, tendo como horizonte a formação


a re

de um ser humano e de uma sociedade livres, amorosos, justos e solidários


(MOTA NETO, 2016, p. 318).

Ao discutir sobre o conceito de decolonialidade, sustenta-se em Mota


par

Neto (2016), na definição mais ampla que consiste em um engajamento social,


uma luta para superar a marginalização e subalternização dos oprimidos pelas
Ed

classes dominantes. A decolonialidade busca superar as mais distintas formas


de opressão perpetradas pela modernidade/colonialidade contra as classes e
os grupos sociais subalternos, nas quais cita as regiões colonizadas e neoco-
ão

lonizadas pelas metrópoles euro-norte-americanas no que se refere aos existir


humano, às relações sociais e econômicas, do pensamento e da educação
(MOTA NETO, 2016).
s

Nessas categorias subalternas, encontra-se a infância que ao longo da


ver

história, foi anulada, pois segundo Ariès (1981), as crianças eram caracte-
rizadas como homens e mulheres de tamanho reduzido, isto é, eram vistas
como um adulto em miniatura, seu mundo não era separado do adulto, logo
não eram percebidas em um tempo diferente, suas particularidades não eram
respeitadas e suas vozes não era reconhecidas.
88

Nesse sentido, a decolonialidade é compreendida como um questionamento


radical que tem como propósito superar a marginalização e subalternização dos
sujeitos pertencentes a um grupo social minoritário (negros, indígenas, mulhe-
res, crianças, idosos e outros) que tiveram seus direitos negados pelas classes
dominantes. Quando se discute a infância, com grupo subalterno e marginali-
zado, torna-se possível refletir sobre tal superação, a fim de dar voz à criança
como minoria oprimida, dando visibilidades, permitindo a reconstrução das

or
suas identidades e reconhecendo suas culturas e modos (MOTA NETO, 2016).

od V
Assim, discussões decoloniais voltadas para infância, segundo Brito e

aut
Marques (2019), buscam a superação de uma visão colonizadora da criança
subalternizada, considerada imatura a qual está longe de ser entendida como
sujeito histórico social. As crianças como atores sociais, construtores de cul-

R
tura infantil rompem com a ideia de que elas apenas recebem a cultura do
adulto, não a constrói, não contribui e não transforma.

o
aC

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A pedagogia– em– participação:
decolonialidade para a infância
visã
A educação decolonial para a infância sustenta-se nos princípios da demo-
cracia e na participação da criança como construtor de seu conhecimento.
A educação está ancorada na possibilidade de desenvolver os processos de
aprendizagem centrados na participação da criança. A criança participa de sua
itor

própria aprendizagem, na construção dos contextos educativos, junto com o


a re

professor. Isso acontece quando a educação não está a serviço da reprodução,


porém se constitui como democrática no coração das crenças, dos valores e
nos princípios da participação (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008a).
A educação decolonial deve ser discutida na formação dos professores
par

para que “os centros de educação infantil sejam organizados para que a demo-
cracia seja simultaneamente um fim e um meio”. Isso significa a democracia
Ed

presente na decolonialidade “no âmbito das grandes finalidades educacionais


quanto no âmbito do quotidiano vivido por todos os actores, com a participa-
ção de crianças e de adultos” (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2008a, p. 37). A
ão

educação decolonial não é algo que se teoriza nos processos de aprendizagem


com a criança. Também não se estabelece em ações isoladas, na prática da
s

educação infantil. A educação decolonial institui-se no ambiente educacio-


ver

nal, quando é vivida em plenitude, à medida que as ações sejam partilhadas


seguindo o interesse da criança e possibilitando a reflexão, a discussão e a
negociação diante das situações vividas por seus membros. Dialogando com
o conceito decolonial, podemos citar Dewey (1959, p. 144) quando discute e
institui a educação democrática, pois o autor estabelece como um “processo
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 89

de vida no presente que permeia ações colaborativas” nas escolhas, nas deci-
sões e, principalmente, nas experiências vividas e partilhadas pela interação.
Assim, a pedagogia da infância participativa como processo decolonial
sustenta-se na democracia, que favorece a prática da equidade — as crenças
e os valores de igualdade —, no respeito da diversidade. A pedagogia da
infância, nos princípios democráticos, institui-se como pedagogias participa-
tivas que, na sua essência, produzem ruptura com as práticas das pedagogias

or
tradicionais transmissivas (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2011).

od V
Os objetivos das pedagogias participativas centram-se na criança, no

aut
processo colaborativo com os demais envolvidos. Oliveira-Formosinho e
Formosinho (2011, p. 100) definem que esses objetivos são “os do envolvi-
mento na experiência e a construção da aprendizagem na experiência contínua

R
e interativa”. Tais objetivos no desenvolvimento de uma educação decolonial
para a infância refletem uma imagem de criança de um “ser competente que

o
participa com liberdade, agência, inteligência e sensibilidade”. Esses mesmos
aC
objetivos possibilitam as motivações intrínsecas das crianças, uma vez que
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elas estão participando como membros decisivos de suas aprendizagens.


Assim, a pedagogia da infância decolonial efetiva-se pela participação
das crianças. Necessita-se de ações, na forma de fazer a pedagogia. Essas ações
visã
são as tarefas centrais estabelecidas por um modo participativo. A primeira
tarefa é a construção de contextos educativos complexos e enriquecidos para
a infância, os quais favoreçam a emergência das múltiplas possibilidades de
itor

aprendizagem, na participação do processo de construir conhecimento. A


a re

segunda tarefa situa-se no coração relacional, que se define como um espaço


de interação e de escuta, a serviço da diferenciação pedagógica. A terceira
tarefa consiste em compreender os processos de uma educação democrática,
na tomada de decisão, na escolha de uma gramática pedagógica que possibilite
o pertencimento a uma comunidade; consiste em aprender pela partilha das
par

ações pedagógicas, contribuindo para a construção do conhecimento (OLI-


VEIRA-FORMOSINHO; KISHIMOTO; PINAZZA, 2007).
Ed

Essas tarefas possibilitam um repensar reflexivo da práxis, no sentido


de estabelecer a educação decolonial no cotidiano das ações educativas. Para
Oliveira-Formosinho e Gambôa (2011, p. 15), a prática na pedagogia da par-
ão

ticipação institui as ações da criança:

[...] entendida como colaboração no âmbito do quotidiano educativo. O


s

papel do professor é o de organizar o ambiente e observar a criança para


ver

atender e lhe responder. O processo de aprendizagem é concebido em


desenvolvimento interativo entre a criança e o adulto. Os espaços e os
tempos educativos são pensados para permitir a interatividade educativa.
As atividades são concebidas como ocasião das crianças fazerem apren-
dizagens significativas.
90

Dessa forma, a criança vivencia os processos educativos apoiados


por uma gramática pedagógica pensada na ação conjunta com seus mem-
bros, na interação dos afazeres pedagógicos. Tais compreensões sustentam
um modo de pedagogia baseada na participação da criança, denominada
pedagogia-em-participação, instituída por Oliveira-Formosinho (OLIVEI-
RA-FORMOSINHO; KISHIMOTO; PINAZZA, 2007; OLIVEIRA-FORMO-
SINHO, 2008a, 2008b, 2011; OLIVEIRA-FORMOSINHO; GAMBÔA, 2011).

or
A pedagogia-em-participação tem, em sua essência, a integração das

od V
crenças e dos saberes, da teoria e da prática, da ação e dos valores. Centra-se

aut
nos atores que constroem o conhecimento, para que participem progressiva-
mente, por meio dos processos educativos e das culturas que os constituem
como seres sócio-histórico-culturais. O pilar dessa pedagogia tem sua essência

R
na democracia, que possibilita uma relação dialógica constante entre a inten-
cionalidade do ato educativo e sua prossecução, no contexto com os autores

o
(OLIVEIRA-FORMOSINHO; KISHIMOTO; PINAZZA, 2007; OLIVEI-
aC
RA-FORMOSINHO, 2011).

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Essa relação dialógica necessita de processos para que a participação
seja efetivada no cotidiano das ações das crianças. Os principais processos
da pedagogia-em-participação são a observação, a escuta e a negociação.
visã
Segundo Oliveira-Formosinho (2011), as práticas desejáveis de observar,
ouvir, escutar e negociar precisam se estabelecer situadas em um pensamento
refletivo e crítico, no sentido de saber as direções e as intenções dos processos
itor

para o contexto educativo.


a re

A observação como princípio da pedagogia-em-participação é enten-


dida como um processo contínuo na educação das crianças. Essa observação
necessita do conhecimento de cada criança, individualmente, que se reflete na
compreensão dos seus próprios processos de aprendizagem e de desenvolvi-
mento, à medida que se forma a criação dos significados para a experiência.
par

No contexto das aprendizagens das crianças, a atribuição de significado é


diferenciada, pois depende das experiências que a criança vive e de como
Ed

ela constrói as relações em seus contextos. Nesse sentido, o professor precisa


estar atento a cada criança, para propor a melhor mediação que possibilite a
sua cooperação, na construção de seus significados.
ão

Para Oliveira-Formosinho, Kishimoto e Pinazza (2007, p. 28), isso


requer uma:
s

[...] simbiose entre a teoria e a prática, expressa pela observação da crian-


ver

ça-em-ação, não a observação do indivíduo solitário, mas um indivíduo


que se situa em vários contextos — familiar, profissional, comunitário e
social. [...] a observação é contextual, pois não se observa a criança, e sim
suas aprendizagens no contexto educacional que se criou, o que requer
que, antes de observar a criança, observe-se o contexto que se criou.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 91

Dessa forma, a observação na pedagogia-em-participação possibilita


compreender a criança e seus processos de aprendizagem, favorecendo a cada
uma delas as possibilidades educativas, para que na cooperação vivenciem
experiências que sejam significativas e plenas.
A escuta, outro princípio da pedagogia-em-participação, constitui-se no
ato de ouvir a criança, sobre sua colaboração na coconstrução do conheci-
mento. Esse ouvir possibilita a participação dela no processo de aprendizagem.

or
A escuta atenciosa favorece a condução no fazer pedagógico, de um “processo

od V
de procura de conhecimento sobre as crianças, seus interesses, suas motiva-

aut
ções, suas relações, seus saberes, suas intenções, seus desejos, seus modos de
vida, realizado no contexto da comunidade educacional”. Tal escuta requer

R
uma ética de reciprocidade que assegure a cooperação entre os envolvidos
(OLIVEIRA-FORMOSINHO; KISHIMOTO; PINAZZA, 2007, p. 28).

o
Para enriquecer o contexto educativo possibilitando as experiências de
vida das crianças, requer-se que o adulto responsável por essa aprendizagem
aC
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escute as crianças para transformar essa escuta na base das atividades e dos
projetos que partem de seus interesses. Assinala-se que escutar a criança é uma
tarefa complexa, mas possibilita um leque de oportunidades em sua aprendi-
visã
zagem, pois é através da escuta que se pode avaliar esse contexto, balizando
se é significativo ou se a criança está precisando de novas intervenções, ou
seja, de mediações em sua aprendizagem.
itor

Outro processo dessa pedagogia-em-participação é a negociação, que


a re

possibilita a discussão das ações do contexto educativo. Oliveira-Formosinho,


Kishimoto e Pinazza (2007) classificam a negociação como um instrumento
de participação que afasta a perspectiva da pedagogia transmissiva. Pela nego-
ciação, a criança participa do centro do currículo, uma vez que debate, em
cooperação, os conteúdos que servem para sua aprendizagem, ou seja, define
par

as experiências que são significativas para a construção do conhecimento.


Tais processos definem o fim último da participação, que se estabelece
Ed

pela diferenciação pedagógica. A diferenciação pedagógica consiste em encon-


trar uma “base para desenvolver um fazer e um pensar pedagógico que fogem
ão

da fatalidade de educar todos como se fosse um só, que conseguem superar o


modo simultâneo”, respeitando a diversidade e os contextos de aprendizagem
de cada criança. A diferenciação pedagógica assume “a heterogeneidade e a
s

diversidade como riqueza” e consegue “a integração da autonomia individual


ver

de exercício de poder e influência com o exercício social, recíproco e relacio-


nal, da participação coletiva” (OLIVEIRA-FORMOSINHO; KISHIMOTO;
PINAZZA, 2007, p. 29).
Esses processos, no âmbito da diferenciação pedagógica, são sustentados
pelos eixos da pedagogia-em-participação, que definem a intencionalidade
92

para pensar-fazer pedagogia, no cotidiano das crianças. Os eixos dessa peda-


gogia consistem na compreensão da pedagogia do ser (eixo do ser–estar), na
pedagogia de laços (eixo do pertencimento e da participação), na aprendi-
zagem experiencial (eixo do experimentar e comunicar) e na pedagogia do
significado (aprendizagem experiencial) (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2011).
O primeiro eixo pedagógico reside na pedagogia do ser, que possibilita
compreender a aprendizagem da criança desde seu nascimento, no âmbito das

or
semelhanças e das diferenças. O segundo eixo baseia-se no pertencimento

od V
e na participação, a partir da constituição e do reconhecimento, no processo

aut
educativo, de laços familiares, ampliados à comunidade local e sua cultura,
centros da educação infantil. O terceiro eixo, sustentado pelo experimentar e

R
comunicar, consiste na pedagogia de aprendizagem experimental, que concebe
a intencionalidade no fazer-experimentar em continuidade e na interação que

o
possibilita a reflexão e a comunicação. O último eixo é o das narrativas das
jornadas de aprendizagem, o qual possibilita a intencionalidade e a compreen-
aC

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são, com base na criação. Essa criação envolve-se pela prática de narrar e de
criar simultaneamente (OLIVEIRA-FORMOSINHO, 2011).
Esses eixos desenvolvem a intencionalidade pedagógica que vislumbra
visã
uma mediação na pedagogia-em-participação, a qual, para Oliveira-Formo-
sinho e Formosinho (2011, p. 107):
itor

[...] cultiva as relações que sustentam o reconhecimento das similitudes


e das diversidades; desenvolve aprendizagem experiencial e construção
a re

de significado através da utilização dos sentidos inteligentes e das inte-


ligências sensíveis; cria conversação e significados que se expressam na
riqueza das linguagens plurais.
par

Dessa forma, a criança tem possibilidade de ser ativa em sua aprendiza-


gem, pois os processos da pedagogia-em-participação efetivam possibilidades
Ed

de práticas mediadas, respeitando os princípios de uma educação democrática,


que reside nos interesses da criança e possibilita a liberdade na aprendizagem.
Assim, Oliveira-Formosinho e Formosinho (2011, p. 108) afirmam que
ão

a pedagogia da infância, com base na participação da criança, proporciona


um “ambiente educativo de modo a criar oportunidades de aprendizagem
ricas em possibilidades experienciais”, o desenvolvimento das identidades
s

pessoais, relacionais e sociais, o desenvolvimento da pertença e da partici-


ver

pação, o desenvolvimento da exploração, da manipulação e da representa-


ção, que favorecem a comunicação em torno das experiências, na criação
de significados.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 93

Considerações finais

Na discussão de uma pedagogia que propõem visibilizar a criança na


superação colonial subalterna, entende-se que a criança é parte de um pro-
cesso ativo e participativo na construção social e cultural na educação. A
criança como protagonista de seu processo de construção de conhecimento
e cultura é o centro de uma pedagogia que define princípios em participação

or
para aprendizagem.

od V
A discussão decolonial para a infância supera a ideia de uma criança

aut
ausente e negada do meio social e histórico, oprimida e marcada por um
pensamento colonial, na qual é desrespeitada e discriminada por diversos
aspectos sociais. Nessa perspectiva, a proposta da pedagogia-em-participação

R
como processo de educação decolonial para a Infância vislumbra a educação
democrática, participativa e reconhece os direitos da criança e a compreende

o
como sujeito participante, protagonista e competente.
aC
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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
94

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par
Ed
s ão
ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E
EDUCAÇÃO DO CAMPO: elementos
para uma aproximação teórica

or
od V
Alder de Sousa Dias

aut
Pedro Correia de Souza
Raimunda Kelly Silva Gomes

R
o
Introdução
aC
O panorama a partir do qual se enquadra o capítulo – e que será desen-
volvido nas próximas seções – é o da dominação geopolítica, econômica,
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cultural e epistemológica, operada originalmente por países da Europa, desde


visã
o século XV, ocasionada em termos materiais pela conquista dos territórios da
América Latina. Atualmente, em perspectiva global, esta dominação persiste,
em muitos aspectos, devido a ação da colonialidade e da modernidade em seu
itor

mito sacrificial, que são eixos de poder do Capitalismo (QUIJANO, 2010).


Estes eixos de poder subjugam e exploram povos nativos por dife-
a re

rentes “frentes de opressão”, entre os quais se destacam as pedagogias de


dominação/subalternização, que, desde o Brasil-Colônia, têm reforçado o
projeto eurocêntrico de “modernidade”, por meio da dominação/subalter-
nização dos povos originários e de toda sorte de classes e grupos sociais
par

que não têm destaque no sistema capitalista e são negados em relação à sua
diversidade existencial, como por exemplo a população negra em geral,
Ed

especificamente a quilombola, os camponeses, os ribeirinhos, os povos da


floresta, entre tantos outros.
ão

Contudo, se por um lado a colonialidade/modernidade perdura, atitudes


de resistência e referenciais teóricos de postura contrária também persistem, e
são denominadas de decoloniais. Entre as expressões de resistência, criou-se
s

a partir da América Latina, o que se denomina de pensamento decolonial, que


ver

na Educação se desdobra (apresenta-se, manifesta-se e tem se materializado)


em pedagogias decoloniais.
Considerando-se por outro lado, que no Brasil há inúmeras experiências
de resistências antigas em relação ao recente referencial teórico da decolo-
nialidade, que atualmente dão materialidade a movimentos sociais diver-
sos e à educação do campo, apresenta-se a seguinte questão-problema: que
aproximações históricas se podem fazer entre as pedagogias decoloniais e a
98

educação do campo? Nesse sentido, o objetivo do capítulo consiste em iden-


tificar aproximações históricas entre o pensamento decolonial – na forma de
pedagogias decoloniais – e a educação do campo.
Metodologicamente, o presente texto resulta de uma pesquisa bibliográ-
fica sobre o pensamento decolonial e a educação do campo na qual se dialoga
com autores como Enrique Dussel (1994; 2000), Walter Mignolo (2008; 2017);
Aníbal Quijano (2010), João Mota Neto (2016), Miguel Arroyo (2014) e Jans-

or
sen Silva et al. (2014), além de outros. Como categorias de análise constam:

od V
colonialidade/modernidade e seu mito sacrificial, decolonialidade, pedagogia

aut
decolonial e a educação do campo.
Em linhas gerais, compreende-se que tanto o pensamento decolonial

R
quanto a educação do campo têm sua própria historicidade. Contudo, para
realizar as devidas aproximações históricas entre um e outro, faz-se necessário

o
desenvolver algumas categorias conceituais e aspectos históricos, políticos
e epistemológicos, próprios do pensamento decolonial, como: colonialismo,
aC

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colonialidade, mito da modernidade, decolonialidade e pedagogia decolonial.
Esse é mote lógico da seção “Pensamento Decolonial: caracterização histó-
rico-política e epistêmica”.
visã
Na sequência, realizam-se algumas aproximações teóricas por seme-
lhança entre o pensamento decolonial – com foco para as pedagogias deco-
loniais – e a educação do campo, buscando-se destacar elementos de suas
histórias de surgimento, resistência e luta. Eis a ideia-chave que conforma
itor

toda a seção “Educação do Campo e pedagogias decoloniais: aproximações”.


a re

Entre as principais considerações finais, destaca-se que a educação do


campo remonta à história da educação brasileira e sua histórica interdição à
pessoa humana condicionada à pobreza, às pessoas com inúmeras distinções
como a de gênero e a grupos sociais como o povo do campo, quilombola e
par

indígenas (entre tantas outras expressões da diversidade humana). Dado rele-


vante que, ao nosso ponto de vista, é o principal marco da decolonialidade
Ed

como marca de luta e resistência e como força teórico-prática em vista de


mundos “outros”.
ão

Pensamento decolonial: caracterização


histórico-política e epistêmica
s
ver

Primeiramente, cabe destacar que: “Os povos originários das Améri-


cas tinham seus processos de socialização, educação, formação de saberes,
modos de pensar e de pensar-se. Tinham suas leituras de seus mundos e de
si” (ARROYO, 2014, p. 155). Processos e leituras não consideradas com a
conquista das Américas, desde o ano de 1492, com o “descobrimento” das
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 99

Américas por Cristovão Colombo, e ao mesmo tempo, com o “encobrimento”


da alteridade do “outro” não europeu, o índio (DUSSEL, 1994), e, mais
atualmente, toda diversidade étnica e cultural que não proceda do “centro”
euro-norte-americano (DUSSEL, 2012).
Este marco cronológico, o 1492, traz corolários políticos e históricos,
respectivamente: (I) o estabelecimento do Colonialismo, (II) o surgimento da
colonialidade e (III) a conformação do período denominado pela Europa de

or
Idade Moderna, ou denominado aqui de projeto eurocêntrico de modernidade.

od V
No século XV, algumas nações da Europa, como Espanha, Portugal,

aut
França, Inglaterra e Holanda passam a expandir seus territórios e a engendrar
uma forma de dominação e exploração não apenas de territórios, mas de outros

R
povos. Fato histórico-político que ficou conhecido como Colonialismo, que
de acordo com Quijano (2010, p. 84), designa:

o
[...] uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autori-
aC
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dade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população


determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais
estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial.
visã
O Colonialismo, como estrutura de poder já extinta na história, ensejou o
surgimento da colonialidade como conjunto de forças interiores que mantêm
hierarquias distintas sobre expressões existenciais entre povos dominados
itor

e dominadores, que se sustentam em uma classificação ética/racial. Nesse


a re

sentido, a colonialidade surge na América e a partir dela se expande, mundia-


lizando-se, permanece atual e se constitui em um dos elementos de dominação
do capitalismo, conforme conceitua Quijano (2010, p. 84):
par

A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão


mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classifica-
Ed

ção racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido


padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões,
materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal.
ão

Origina-se e mundializa-se a partir da América.

No mesmo contexto histórico do século XV, da colonialidade se desdo-


s

bra outro fator determinante para o domínio europeu: a modernidade. Dussel


ver

(1994, 2000) afirma haver duas concepções de modernidade.


A primeira concepção de modernidade o autor a denomina de “euro-
cêntrica” porque indica que fenômenos intra-europeus, datados a partir do
século XV, constituem os acontecimentos históricos-chave para a implantação
da subjetividade moderna. Contudo, de maneira corrente entre especialistas,
100

não se dá centralidade aos feitos da Espanha e de Portugal: “Na interpretação


habitual da Modernidade se deixa de lado Portugal e Espanha, e com eles,
o século XVI hispano-americano, que na opinião unânime dos especialistas,
nada tem que ver com a “Modernidade”, senão, talvez, com o fim da Idade
Média” (DUSSEL, 2000, p. 28).
A segunda concepção de modernidade, base deste trabalho, é demarcada
por um fato histórico que de antemão a faz sair da circularidade dos aconte-

or
cimentos intra-europeus. Trata-se da “descoberta” das Américas, em 1492.

od V
A partir deste marco mundial, a Europa se coloca como “centro” e constitui

aut
as outras culturas como suas periferias. Este fato proporciona a organização
de um mundo colonial e o usufruto de suas “vítimas” (povos originários

R
conquistados, violentados, colonizados) em nível pragmático e econômico.
Por isso, para Dussel (1994), o ano de 1492 é a data de nascimento

o
da modernidade. Apesar de naquele contexto se ter condições de eferves-
cências culturais em várias cidades da Europa, foi por meio da violência
aC

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para com “o Outro” (o não europeu) que a Europa pode se definir como um
“ego” descobridor, conquistador, colonizador da alteridade constitutiva da
mesma modernidade.
visã
Nesse sentido, ao surgimento da modernidade como conceito, soma-se
a origem concreta de um mito sacrificial, de “encobrimento” do não europeu.
Nas palavras de Dussel (1994, p. 9): “De manera que 1492 será el momento
itor

del ‘nacimiento’ de la Modernidad como concepto, el momento concreto


a re

del ‘origen’ de un ‘mito’ de violencia sacrificial muy particular y, al mismo


tiempo, un proceso de ‘en-cubrimiento’ de lo no-europeo”.
Na perspectiva de Dussel (1994), a modernidade apresenta dois conteú-
dos semânticos. O primeiro é seu conteúdo fundamental e positivo, isto é: a
modernidade como emancipação racional, que é um esforço da razão como
par

processo crítico, que abre à humanidade as portas de um novo desenvolvi-


mento histórico do ser humano. O segundo conteúdo semântico se refere
Ed

à modernidade como justificativa de uma práxis irracional de violência, o


irracionalismo moderno. É seu conteúdo secundário e negativo.
ão

Este segundo conteúdo semântico sustenta o mito da modernidade, que


será descrito a seguir como um processo de sete momentos, a partir de uma
releitura de Dussel (1994):
s
ver

1. Sustenta-se uma posição ideologicamente eurocêntrica de que a


civilização moderna é mais desenvolvida, superior.
2. Sua superioridade a “obriga” – como exigência moral – a desen-
volver aos mais primitivos, rudes, bárbaros, isto é, os povos
conquistados.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 101

3. A Europa se coloca como paradigma de desenvolvimento (a falá-


cia desenvolvimentista).
4. A violência como “guerra justa” se impõe aos povos conquistados
que resistem ao processo civilizador.
5. A civilização moderna eurocêntrica interpreta a violência como ato
inevitável no sentido próximo de um “sacrifício salvador”.
6. Os povos conquistados são culpados pela violência, a guerra justa.

or
A subjetividade moderna eurocêntrica se coloca inocente e como

od V
emancipadora da culpa de suas próprias vítimas.

aut
7. Por fim, apresenta-se a violência como “os custos” da modernização
dos povos “atrasados” (imaturos), das raças escravizadas, do sexo
feminino apresentado como frágil etc.

R
A esta altura do texto, têm-se sucessivos desdobramentos conceituais:

o
do Colonialismo surge a colonialidade; esta, por vez, constitui a modernidade
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

e seu mito sacrificial. Cabe agora, explicitar um terceiro desdobramento: da


colonialidade/modernidade surge a decolonialidade. Nas palavras de Mignolo
(2008, p. 249 – grifo nosso):
visã
El argumento básico (casi un silogismo) es el siguiente: si la colonialidad
es constitutiva de la modernidad y la retórica salvacionista de la moder-
nidad presupone la lógica opresiva y condenatoria de la colonialidad [...],
itor

esa lógica opresiva produce una energía de descontento, de desconfianza,


a re

de desprendimiento entre quienes reaccionan ante la violencia imperial.


Esa energía se traduce en proyectos de de-colonialidad que, en última
instancia, también son constitutivos de la modernidad.

Portanto, a decolonialidade surge como energia no seio mesmo da colo-


par

nialidade e da modernidade e seu mito sacrifical. Em nossa compreensão,


esta definição de decolonialidade fundamenta-se na materialidade das vítimas
Ed

negadas, que tomadas por uma postura crítica, buscam afirmar suas vidas ante
o projeto de morte da modernidade/coloniadade, desde o 1492.
Nesse sentido, a decolonialidade se relaciona a uma atitude concreta de
ão

luta contra o senhorio dominador nas mais diversas dimensões da existência


humana de povos violentados. Nessa lógica, Maldonado-Torres apresenta a
s

atitude “des-colonial” como conceito que parece ser apropriado a desvelar o


ver

sentido material da decolonialidade como energia de resistência. Para o autor:


“La actitud des-colonial nace cuando el grito de espanto ante el horror de la
colonialidad se traduce en una postura crítica ante el mundo de la muerte
colonial y en una búsqueda por la afirmación de la vida de aquellos que son
más afectados por tal mundo (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 66-67).
102

O que se quer dizer é que antes mesmo de elaborações sistemáticas sobre


o pensamento decolonial, esta já existia como desdobramento da colonialidade/
decolonialidade no sentido de energia de resistência, como atitude decolonial.
Por outro lado, não se está a dizer que a colonialidade, a modernidade
e seu mito sacrificial e a decolonialidade já não existem – como é o caso do
Colonialismo. Defende-se que o então emergente Capitalismo perdura em
nossa atualidade, junto com ele perduram a colonialidade e a modernidade

or
como eixos de sustentação de seu poder. Nas palavras de Quijano (2010, p.

od V
85): “Em pouco tempo, com a América (latina) o capitalismo torna-se mundial,

aut
eurocentrado, e a colonialidade e a modernidade instalam-se associadas como
constitutivos do seu específico padrão de poder, até hoje”.

R
Se perduram a colonialidade e a modernidade, perdura também a deco-
lonialidade, que, a despeito de sua origem datar desde 1492 como energia de

o
resistência, suas bases histórico-políticas e epistêmicas são recentes, desde
meados do século XX, conforme destaca Mignolo (2017, p. 14-15):
aC

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As bases históricas da decolonialidade se encontram na Conferência de Ban-
dung de 1955, na qual se reuniram 29 países da Ásia e da África. O principal
visã
objetivo da conferência era encontrar as bases e a visão comum de um futuro
que não fosse nem capitalista nem comunista. O caminho que encontraram
foi a “descolonização”. Não se tratava de uma “terceira via” ao estilo de
Giddens, mas de desprender-se das principais macro-narrativas ocidentais.
itor
a re

Obviamente, desde muito antes deste marco histórico, o pensamento


decolonial produziu inúmeras ações/práticas, impulsionadas pela energia de
resistência decolonial. No entanto, graças a eventos históricos particulares, o
pensamento decolonial globaliza-se desde a metade do século XX, conforme
afirma Maldonado-Torres (2008, p. 70):
par
Ed

En conclusión, el giro [pensamento] des-colonial se trata pues de una


revolución en la forma em que variados sujetos colonizados percibían
su realidad y sus posibilidades tras la caída de Europa en la Segunda
Guerra Mundial. Ya las bases del giro des-colonial estaban planteadas
ão

de antemano en el trabajo de intelectuales racializados, em tradiciones


orales, en historias, canciones, etc., pero, gracias a eventos históricos
s

particulares, se globaliza a mitad del siglo XX. De ahí en adelante puede


decirse que se planteó un giro, ya no sólo al nivel de la actitud de sujetos
ver

o de comunidades específicas, sino al nivel del pensamiento mundial. El


tema de la descolonización adquirió vigencia para distintos grupos que
ahora se veían más seriamente entre sí, en vez de buscar en Europa las
claves únicas para elaborar su futuro.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 103

No caso dos países que participaram da Conferência de Bandung, houve


um desprendimento das opções dadas pela Europa para elaboração de seus
futuros político-econômicos: nem capitalismo, nem comunismo. Em termos
mais concretos, Mignolo (2017, p. 15) explicita: “No espírito de Bandung,
o intelectual aymará Simón Yampara esclarece que os aimará não são nem
capitalistas nem comunistas. Promovem o pensamento descolonial e o fazer
comunal”, desvinculando-se assim das “[...] cronologias construídas pelas

or
novas epistemes ou paradigmas (moderno, pós-moderno, altermoderno, ciên-

od V
cia newtoniana, teoria quântica, teoria da relatividade etc.)” (p. 15).

aut
Epistemologicamente, as bases da decolonialidade são oriundas de
diferentes quadrantes do planeta, pois a experiência decolonial se localiza
“[...] en la densa historia del pensamiento planetario de-colonial” (MIG-

R
NOLO, 2008, p. 250), o que provoca o surgimento de uma narrativa epistê-
mica de enlace global do pensamento decolonial. O autor corrobora esta ideia

o
em outro texto ao afirmar que a decolonialidade:
aC
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Não é apenas um problema dos nativos americanos como às vezes ouço


as pessoas dizerem após minhas palestras. Intelectuais críticos de todo o
mundo estão conscientes dos limites dos arquivos ocidentais. No caso da
visã
China, consulte os quatros volumes de Wang Hui, The Rise of the Modern
Chinese Thought. [...]. Para o mundo muçulmano, consulte Al-Jabri, 1995
(MIGNOLO, 2017, p. 21).
itor

No âmbito da América Latina, mais precisamente na primeira metade


a re

do século XX, a contribuição praxiológica de Orlando Fals Borda e Paulo


Freire representa um gérmem matricial da decolonialidade, isto é, o legado de
ambos “[...] antecipa vários dos questionamentos feitos posteriormente pelos
teóricos reconhecidos como decoloniais ou mesmo pós-colonais, ainda que
par

com outra linguagem” (MOTA NETO, 2016, p. 21).


Contudo, de acordo com Mota Neto (2016, p. 17), o pensamento deco-
Ed

lonial passa a ganhar mais contundência teórica e epistemológica apenas por


volta dos anos 1990, com a constituição da rede modernidade/colonialidade,
que “[...] reúne nomes como Enrique Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Qui-
ão

jano, Catherine Walsh, Ramón Grosfoguel, Santiago Castro-Gómez, Edgardo


Lander, Arturo Escobar, Nelson Maldonado-Torres, entre outros”.
s

Nesse sentido, a decolonialidade se configura não apenas como energia de


ver

resistência – o “combustível” das lutas e dos movimentos sociais, mas também


como razão “des-colonial, isto é, uma postura ético-política e teórica que ao
se opor à mentira e à hipocrisia moderna colonial, enfoca novas bases para o
conhecimento e, sobretudo, busca caminhos para um humanismo de reconheci-
mento das alteridades em nível planetário (MALDONADO-TORRES, 2008).
104

Faz-se pertinente afirmar que, como energia de resistência e como razão


“des-colonial”, a decolonialidade está para além de ser representada apenas por
intelectuais. De fato, opera por mão dupla: as expressões de luta e resistência
contra a modernidade/colonialidade e as elaborações teóricas de intelectuais
engajados, sobretudo, os situados na porção Sul do planeta. Dito de outro
modo: “[...] diferentemente das teorias tradicionais, a decolonialidade não é

or
pensada exclusivamente por intelectuais, mas é forjada, também, no interior
das lutas e dos movimentos sociais de resistência em todo o mundo, e em

od V
particular no Sul global” (MOTA NETO, 2016, p. 19).

aut
Nesse sentido, a genealogia da decolonialidade, embora surgida com
o 1492, ultrapassa os marcos da América Latina, torna-se mundial, abarca

R
movimentos sociais e instituições e não se limita a indivíduos, a intelectuais,
conforme assevera Mignolo (2008, p. 258):

o
La genealogía del pensamiento de-colonial es planetaria y no se limita
aC

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a individuos, sino que se incorpora en movimientos sociales [...] y en la
creación de instituciones, como los foros que se acaban de mencionar
[Fórum Social Mundial e o Fórum Social das Américas].
visã
É nessa esteira que o presente capítulo ganha contornos de autonomia
intelectual ao enfatizar uma aproximação entre a educação do campo e as
pedagogias decoloniais, na medida em que resulta da luta de movimentos
itor

sociais brasileiros por reforma agrária – entre os quais se destaca Movimento


a re

dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), assim como traz consigo a elabo-
ração teórica de intelectuais engajados na luta por um mundo mais solidário e
justo e que já produz resultados, como garantias legais e a efetivação de uma
proposta de graduação que rompe com a hegemonia epistemológica-cultural
par

de base eurocêntrica. Tema que será explicitado a seguir.


Ed

Educação do campo e pedagogias decoloniais:


aproximações por semelhança
ão

A decolonialidade é “energia” de resistência real e pujante dos movimen-


tos sociais e de entidades e intelectuais organicamente enredados pela luta por
s

igualdade global e por justiça ante toda e qualquer conjuntura de negação e


ver

de necrofilização da vida, provocada pela colonialidade/“modernidade” e seu


mito sacrificial. Nesse sentido, considera-se conforme Mignolo (2017), que
esta “energia” de resistência é própria dos que sentem ou sentiram os efeitos
da colonialidade/modernidade e é uma “energia” que se desdobra em diversas
frentes de luta, como as pedagogias decoloniais, que são:
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 105

[...] pedagogias que dialogam com os antecedentes crítico-políticos, ao


mesmo tempo em que partem das lutas e práxis de orientação decolonial.
Pedagogias que [...] enfrentam o mito racista que inaugura a modernidade
[...] e o monólogo da razão ocidental; pedagogias que se esforcem por
transgredir, deslocar e incidir na negação ontológica, epistêmica e cos-
mogônico-espiritual que foi, e é, estratégia, fim e resultado do poder da
colonialidade (WALSH, 2009, p. 27 – grifo nosso).

or
Portanto, a pedagogia decolonial é uma denominação genérica dada às

od V
pedagogias críticas que, ao se alinharem praxiologicamente ao pensamento

aut
decolonial, transgridem às inúmeras expressões da colonialidade e da moder-
nidade como mito sacrificial.

R
Nessa direção, Mota Neto (2016) também expressa uma definição de
pedagogia decolonial que tem sua identidade ancorada na práxis da luta

o
contra a colonialidade/“modernidade”, que se dá por meio de processos de
aC
formação humana, tendo em vista a construção de uma sociedade justa,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

solidária, livre e amorosa:

[...] a pedagogia decolonial refere-se às teorias-práticas de formação


visã
humana que capacitam os grupos subalternos para a luta contra a lógica
opressiva da modernidade/colonialidade, tendo como horizonte a for-
mação de um ser humano e de uma sociedade livres, amorosos, justos e
solidários (MOTA NETO, 2016, p. 318 – grifo do autor).
itor
a re

Nota-se que em ambas as definições há em comum o sentido da resis-


tência como práxis humana contra a colonialidade/“modernidade”. Nesse
sentido, cabe destacar a relação entre estas definições de pedagogia decolonial
e a educação brasileira e, mais precisamente, com a educação do campo.
par

No período do Colonialismo, a educação do Brasil-Colônia interdi-


tou negros, índios e quase a totalidade das mulheres (devido à sociedade
Ed

patriarcal, que perdura inclusive com outras nuances), por meio de incul-
cações ideológicas e processos educativos conduzidos por jesuítas que, nos
dizeres de Ana Freire (1995, p. 34), estigmatizava o negro, o índio (ambos
ão

não europeus) e:
s

[...] valorizavam Deus, o Céu, o sacerdote, o branco, o cristão, o casado


ver

pelas leis católicas, a monogamia, a nomeação (após o batismo o gentio


tinha um nome), o conquistador, o bem, a alma, o tempo, a cultura, as
línguas latinas e portuguesa, o civilizado, o trabalho, a metrópole, a guerra
justa, a legalidade, a racionalidade e o aldeamento” gerando, desde esse
momento histórico, um grande contingente de analfabetos.
106

Deste fato da história brasileira, que em muita se assemelha à história dos


demais países da América Latina, geraram-se relações assimétricas de poder/
subordinação para com os povos não brancos, que constituem a diversidade
do país. Nas palavras de Arroyo (2014, p. 61):

As formas de pensar os indígenas, negros, quilombolas, ribeirinhos,


das florestas como forma de pensar os trabalhadores dos campos e das

or
cidades se articulam com as relações sociais, de produção, de trabalho,
com o padrão de poder, dominação/subordinação a que esses coletivos

od V
foram subordinados.

aut
Dessas relações de colonialidade impingidas por um projeto eurocêntrico

R
de “modernidade” foram se constituindo desde o Brasil-Colônia, pedagogias
de dominação/subalternização, que se caracterizam pela dominação/subalter-

o
nização dos povos originários, dos negros, dos quilombolas, dos camponeses,
aC
dos ribeirinhos, dos povos da floresta (ARROYO, 2014). Estas experiências

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


pedagógicas não ficaram no passado. Ao contrário, deram “[...] uma especifici-
dade à história de constituição das concepções, teorias, e práticas pedagógicas
não apenas da colonização, mas da modernidade” (p. 154).
visã
Atualmente, como elemento constitutivo do padrão mundial de poder
capitalista, a colonialidade, bem como o mito da modernidade continuam a
reforçar um projeto hegemônico de “modernidade”/colonialidade, inclusive
itor

por meio dos processos educativos, que:


a re

[...] estabelece os padrões e as referências de racionalidade e de sociabi-


lidade ocidentais como universais para o mundo, sendo esse paradigma
fundamentalmente particular e consequentemente elitista, discriminatório e
excludente, posto que apresenta e impõe um único padrão de pensar, agir,
par

sentir e ser como válido para todos, independentemente da diversidade


de classe, raça, etnia, gênero, idade, existentes na sociedade capitalista
Ed

mercadológica, deslegitimando outros modos de representar o mundo e


produzir a vida (HAGE et al., 2010a, p. 402).
ão

Considerando a educação do campo nessa conjuntura de colonialidade


dentro do sistema capitalista, tem-se como corolário, o fortalecimento de
uma concepção de mundo urbanocêntrica no qual a cidade é superior, no
s

sentido de bens e serviços e locus de desenvolvimento, da tecnologia e de


ver

futuro enquanto o campo é visto como lugar da falta de condições materiais


de sobrevivência, do atraso, da ignorância. Daí se desdobra o paradigma da
escola urbanocêntrica (HAGE, et al., 2010b).
No entanto: “Nas últimas décadas, assistimos a uma marcante e instigante
presença dos sujeitos do campo na cena política e cultural do país. Mostram-se
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 107

diferentes e exigem respeito” (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2009, p.


7 – grifo nosso). Momento em que surge a educação do campo como projeto
protagonizado pelos trabalhadores do campo e suas organizações a lutar por
política e educação, desde os seus interesses materiais (CALDART, 2012).
De fato, em termos de atualidade, ao se considerar a luta dos movimentos
sociais, pode-se precisar que desde o ano de 1981, a educação tem sido uma
pauta em suas agendas, sobretudo, em se tratando do MST, pois conforme

or
Kolling, Vargas e Caldart (2012, p. 502):

od V
aut
A educação entrou na agenda do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) pela infância. Antes mesmo da sua fundação, ocorrida
em 1984, as famílias Sem Terra, acampadas na Encruzilhada Natalino,

R
Rio Grande do Sul (1981), perceberam a educação da infância como uma
questão, um desafio.

o
aC
De 1981 para este início de século, houve inúmeras lutas protagonizadas
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

pelos movimentos sociais para legalizar e materializar uma proposta de educa-


ção do campo, que tem sido denominada de Paradigma da Educação do Campo
Crítico, que: “ao reivindicar uma educação específica e diferenciada, coloca
visã
como protagonistas os povos campesinos e suas lutas históricas, incorporando
de maneira mais significativa às questões de gênero, raça, sexualidade, terri-
tório, unificadas pela Reforma Agrária” (SILVA et al., 2014, p. 25).
itor

Esta proposta paradigmática de educação do campo se alinha ao referen-


a re

cial teórico da decolonialidade pelo protagonismo de sujeitos subalternizados


pela colonialidade/modernidade e seu mito sacrificial e, mais importante,
há a proposição de uma sociedade justa, que luta por reforma agrária e por
uma educação contra-hegemônica, do diálogo entre distintos modos de ser e
de conhecer, restauradora da humanidade dos que são negados, silenciados,
par

marginalizados pelo padrão hegemônico de política, de sociedade, de cultura,


Ed

desde o 1492 à atualidade.


De nosso ponto de vista, outra semelhança entre o pensamento decolo-
nial/pedagogias decoloniais e a educação do campo se dá na medida em que,
ão

tal como aponta Mignolo (2008), o pensamento decolonial é constituído de


instituições, de movimentos sociais e de intelectuais engajados; e, nesse caso,
a educação do campo, luta por uma educação “no” e “do” campo, articulado a
s

movimentos sociais e teóricos de universidades, comprometidos com projetos


ver

decoloniais de sociedade, sustentabilidade, afirmação cultural, entre outros


direitos sociais, conforme destaca Silva et al. (2014, p. 27):

[...] os Movimentos Sociais Campesinos articulados com alguns teóri-


cos das universidades, tais como Miguel Arroyo, Mônica Molina, Roseli
108

Caldart, Antônio Munarin, entre outros, adotam a prerrogativa de que a


educação ofertada aos sujeitos campesinos deve ser Do e No campo. Neste
sentido, Caldart (2004, p. 149) explica que: ‘No: o povo tem direito a ser
educado no lugar onde vive e Do: o povo tem o direito a uma educação
pensada desde o seu lugar e com a participação dos atores sociais do
campo, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais’.
Assim sendo, a luta pela educação Do e No campo engloba princípios que

or
diferenciam esta modalidade de educação. Esses princípios desdobram-se
no comprometimento com a emancipação social, o vínculo com o projeto

od V
de desenvolvimento autossustentável, a luta pela afirmação cultural dos

aut
diferentes povos camponeses entre outros direitos sociais.

R
Não sem motivo, esta aproximação histórica contribui para aproximações
teóricas, pois, por exemplo, Silva et al. (2014) se embasam em autores como

o
Aníbal Quijano, Catherine Walsh e Walter Mignolo – notadamente, intelectuais
aC
engajados que ajudam a construir o pensamento decolonial na América Latina.

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Nos marcos da educação do campo brasileira, estas lutas decoloniais
tiveram algumas relevantes conquistas, entre as quais:
visã
Destacamos na construção de órgãos (como a SECADi), de encontros
(como as Conferências Nacionais de Educação do Campo) e da Legislação
Específica para a Educação do Campo o protagonismo dos Movimen-
tos Sociais que caracteriza o Paradigma da Educação do Campo Crítico
itor

(SILVA et al., 2014, p. 27).


a re

Entre estas conquistas, confere-se destaque para: a aprovação de marcos


legais como a definição da educação como campo como modalidade de ensino
da educação básica, desde a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação
par

Nacional; a aprovação das Diretrizes Operacionais da Educação Básica do


Campo; a recente aprovação do Parecer CNE/CEB Nº 6/2006, que fortalece a
Ed

prática da pedagogia da alternância; e a publicação do Decreto Nº 7.352/2010,


que dispõe sobre a política nacional de educação do campo e sobre o Programa
Nacional de Educação na Reforma Agrária.
ão

Muitas outras conquistas estão por ser tornar ato. No entanto, a conjun-
tura da política nacional, desde o atual Presidente da República a todos os
s

ministros que têm passado pelo Ministério da Educação, muito mais têm se
ver

ocupado em desmontar, irresponsavelmente, a educação pública, gratuita e de


qualidade social em nome de um projeto neofacista, ultradireita e neoliberal.
Conjuntura esta, que exige resistência organizada, unidade e luta social, para
evitar que se percam as poucas conquistas que dizem respeito à construção
de um mundo que considere positivamente a alteridade do mundo.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 109

Considerações finais

Ao considerar que o objetivo central do capítulo foi identificar aproxima-


ções históricas entre pedagogias decoloniais (como expressões do pensamento
decolonial) e a educação do campo, destaca-se que a educação do campo pro-
vém da luta dos movimentos sociais. Em termos atuais, estas lutas resultam de
energias de resistência contra uma dominação geopolítica, econômica, cultural

or
e epistemológica que acomete diversas dimensões da existência humana, de

od V
inúmeros povos, gerando subalternizados, “colonizados” de mente, gente que

aut
não se reconhece como gente, mas como inferior, sub-humano. Fato que se
assemelha à origem do pensamento decolonial como energia de resistência,
desde o ano de 1492.

R
A educação do campo, além de contar com movimentos sociais e entida-
des como seus principais animadores, conta também com intelectuais engaja-

o
dos na sua estruturação praxiológica. Este dado se coadura com a genealogia
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

do pensamento decolonial.
Outro dado importante de ser destacado como aproximação por seme-
lhança é que suas histórias, apontam que ambas lutam por uma estrutura
societal de justiça, que valoriza a diversidade étnica dos povos, assim como
visã
seus saberes em diálogo com outras fontes culturais.
Estes são alguns elementos preliminares que apontam a urgente necessi-
dade de se discutir/propor articulação entre a educação do campo e o pensa-
itor

mento decolonial com o fim de produzir organicamente pedagogias decoloniais


a re

e propostas curriculares a sujeitos historicamente marginalizados e negados


de se “sentir gente”, como os ribeirinhos, os agricultores familiares, os extra-
tivistas, os quilombolas e povos indígenas.
par
Ed
s ão
ver
110

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ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
DECOLONIALIDADE E HISTÓRIA
DA EDUCAÇÃO: por apontamentos
epistemológicos “outros”

or
od V
Vitor Sousa Cunha Nery

aut
R
Introdução

o
A proposta de tematizar os estudos subalternos e decoloniais e a pesquisa
aC
em História da Educação parte de dois pontos fundantes. O primeiro é a per-
cepção de que sujeitos e grupos populares têm ficado à margem de produções
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

científicas, inclusive histórico-educacionais no contexto amazônico.


O segundo ponto fundante da pesquisa que gerou este artigo foram as
visã
leituras e reflexões feitas acerca dos estudos pós-coloniais, principalmente
de historiadores indianos do “Grupo de Estudos Subalternos”, do “Grupo
Latino-Americano de Estudos Subalternos” e de intelectuais da Rede “Moder-
itor

nidade/Colonialidade” (M/C).
a re

A partir das quais se considera que as perspectivas epistêmicas subal-


ternas são uma forma de conhecimento que, “vindo de baixo”, origina uma
crítica do conhecimento hegemônico científico, autorreferenciado em países do
Ocidente, de tal modo que a narrativa hegemônica historiográfica assente no
imaginário dessa porção do hemisfério foi produtora e produto da colonização.
par

Uma geopolítica do conhecimento que gerou subalternidade de saberes, povos


Ed

e culturas, resultando numa genealogia dos processos de subalternização das


diferentes formas de saberes, línguas, histórias locais, memórias e costumes
que foram subsumidas no contexto da colonialidade (SANTOS, 2009).
ão

Motivo pelo qual, faz-se necessário (re)afirmar lugares de enunciação,


que se configuram como espaço fronteiriço, como “espaço subalterno”, ou
seja, um pensamento que identifica o potencial do pensamento que surge
s

da subalternidade colonial, o espaço no qual o pensamento foi negado pelo


ver

pensamento da modernidade, de esquerda ou de direita. Um “pensamento


fronteiriço” que não se configura em um fundamentalismo teórico e prático,
que rejeita tudo e qualquer coisa que seja europeia, mas que considera a
duplicidade de consciência gerado pelo sistema-mundo colonial/moderno
(MIGNOLO, 2003).
Desses pontos fundantes, questionamos: Que contribuições epistemo-
lógicas podem advir dos estudos subalternos e da decolonialidade à pesquisa
114

em História da Educação?. Tendo por objetivo analisar possíveis contribui-


ções epistemológicas da decolonialidade e dos estudos subalternos ao campo
histórico-educacional.
A processualidade do estudo de que resulta esse artigo se deu por meio
de uma pesquisa bibliográfica, fundamentada em autores como Guha (2011),
Chakrabarty (2000), Spivak (2010), Beverley (2004), Mallon (1995), Dussel
(2008, 2016), Quijano (2005), Mignolo (2002, 2003, 2004, 2007), Walsh

or
(2012), Grosfoguel (2016), Streck (2007), Mota Neto (2015), entre outros.

od V
Assim, discorremos sobre os estudos subalternos e decoloniais, seus

aut
principais conceitos e sobre produções científicas que abordam essas teorias
em consonância com a História da Educação Latino-Americana. Em seguida,
apontamos as discussões sobre os estudos subalternos que têm a América

R
Latina como Lócus de Enunciação. Por fim, discutimos a decolonialidade e
suas contribuições para a pesquisa histórico-educacional.

o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Dos estudos subalternos à decolonialidade:
contribuições à história da educação
visã
Do ponto de vista teórico, os Estudos Subalternos se inserem no campo
dos estudos pós-coloniais, que em nossa compreensão remonta aos anos 1950,
com Aimé Césaire em o “Discurso sobre o Colonialismo”, a 1957 com Albert
Memmi em o “Retrato do Colonizado precedido de retrato do colonizador” e
itor

a 1961 com Frantz Fanon a partir de “Os condenados da terra”.


a re

Nos anos 1970, na Índia, alguns pensadores, como Ranajit Guha e Gaya-
try Spivak, passam a utilizar o termo “subalterno” para se referir a grupos
marginalizados; grupos esses que não possuem voz ou representatividade, em
decorrência de seu status social. De acordo com Guha (2011) o subalterno
par

pode ser uma classe, casta, idade, gênero, ocupação ou qualquer outra forma
de dominação que indique uma condição de subalternidade. Spivak (2010)
Ed

refere-se ao termo subalterno não apenas para designar o oprimido, mas tam-
bém como forma de representação dos que não conseguem lugar de atuação na
sociedade. Refere-se àquelas pessoas que não conseguem falar, se posicionar,
ão

expor sua visão de mundo. Nesse caso, a condição de subalternidade é uma


condição de silêncio, já que essas pessoas não dispõem de um representante
para sua condição de silenciado.
s

Nos anos de 1980 os Estudos Subalternos passam a ganhar mais contun-


ver

dência com o indiano Ranajit Guha, a partir de sua intervenção na historiogra-


fia sul-asiática. Dado que possibilitou um enfoque historiográfico dos locais
dominados, até então, vistos apenas do ponto de vista dos colonizadores e
seu poder hegemônico. Emergindo, assim um “grupo de pensadores indianos
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 115

que se opunham ao que consideravam uma visão colonialista e elitista sobre


a história da Índia” (WEINSTEIN, 2003, p. 208). Na contramão dessa visão
elitista, os olhos dos estudiosos dos Estudos Subalternos se voltaram para os
grupos marginalizados e subalternizados da história da Índia.
Desse modo, enquanto se tornava um modelo para o subcontinente e,
rapidamente, possibilitaria uma séria crítica ao pós-colonialismo, a produção
intelectual desse grupo ensejou o debate sobre exilados, excluídos e oprimidos

or
também em outras regiões do mundo, como na América Latina. Na década

od V
de 1990, nos Estados Unidos, surgiu um Grupo Latinoamericano de Estudos

aut
Subalternos, composto por intelectuais de setores da esquerda, formado por
cinco integrantes: John Beverley, Robert Carr, José Rabasa, Javier Sanjinés
e Ileana Rodrigues.

R
Para a pesquisa em História da Educação, advoga-se que os estudos
subalternos podem trazer contribuições em termos teóricos e metodológicos,

o
mas principalmente no sentido de retificar a inclinação elitistas da escrita
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

da História da Educação, por meio de novas possibilidades de análise e de


compreensão do campo educacional.
Nesse sentido, em meados da década de 1990, historiadores da educação
latinos (SAVIANI; RAMA; WEINBERG, 1996), começaram a problematizar
visã
se era possível uma História da Educação Latino-Americana. Apesar da res-
posta afirmativa dos autores, isso só foi possível de fato quando houve a cria-
ção e consolidação dos programas de pós-graduação em Educação (PPGE), de
itor

grupos de pesquisas em História da Educação e com a realização de congressos


a re

locais, regionais, nacionais e internacionais desse campo do conhecimento.


A partir de 2010 já é possível observar uma crescente produção acadê-
mica sobre o objeto de uma História da Educação Latino-Americana – com
ancoragens teóricas e epistemológicas distintas – conforme se exemplifica
par

no quadro a seguir.
Ed

Quadro 1 – algumas produções sobre história da educação latino-americana


Autores Ano Título
Dermeval Saviani
ão

Por uma História da Educação


Germán Rama 1996
Latino Americana
Gregório Weinberg
s

Educação em nossa América:


José Martí 2007
ver

textos selecionados
Fontes da Pedagogia Latino-
Danilo Streck 2010
Americana: uma antologia.
José Gondra História da Educação na América
2011
José Claudio Somma Silva Latina: ensinar & escrever
continua...
116

continuação
Autores Ano Título
Claudia Alves História e Historiografia da
2012 Educação Ibero-Americana:
Ana Crystina Mignot projetos, sujeitos e práticas.
Por uma Pedagogia Decolonial
João Colares da Mota Neto 2016
na América Latina
José Gondra Imprensa Pedagógica na Ibero-

or
2018
Ana Clara Bortoleto Nery América: local, nacional e transnacional

od V
Adriane Raquel Educação para mulheres
2019

aut
Santana de Lima na América Latina
A Educação Popular Latino
Oscar Jara 2020 Americana: História e Fundamentos

R Éticos, Políticos e Pedagógicos

o
Fonte: Elaboração do autor.
aC
Em relação a possibilidades para a pesquisa em História da Educação

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


no contexto amazônico, já se percebe nos PPGE da Universidade do Estado
do Pará (UEPA) e do Instituto de Ciências da Educação da Universidade
Federal do Pará (UFPA) um movimento de produção historiográfico-educa-
visã
cional, que se abre a abordagens para além da referência eurocêntrica, com
problematizações e metodologias que levem em consideração experiências
educativas “outras” – no sentido da alteridade subalternizada e invisibilizada
itor

pelo padrão hegemônico de poder, inclusive científico, que se desdobra, conse-


a re

quentemente, na produção do conhecimento em História da Educação – e que


valoriza conhecimentos pedagógicos diversos para além da educação escolar.
Perspectiva essa desses PPGE’s que amplia as fontes de pesquisa, para
romper com as verticalizações históricas. Procura restaurar as vozes, as expe-
par

riências, as identidades, e as histórias educativas dos subalternos, em que as


práticas de pesquisa dialoguem com os sujeitos e não sobre os sujeitos que
Ed

fizeram e fazem outras formas de educação.


De nosso ponto de vista, considera-se que os historiadores da educação
na Amazônia tem se dedicado nos últimos anos a investigar sujeitos e práticas
ão

educativas subalternas, a partir de experiências de comunidades indígenas,


quilombolas, ribeirinhas, movimentos sociais rurais e urbanos, tendo a sensibi-
lidade de dar centralidade aos sujeitos, compreendendo-os como intelectuais,
s

produtores e intérpretes da realidade social.


ver

Outro ponto de ancoragem da produção científica histórico-educacional


está na valorização das memórias coletivas dos movimentos de resistência,
pois conforme Mota Neto (2015), esses movimentos, há mais de 500 anos,
têm resistido à dominação colonial, imperial, capitalista, armazenando em seus
acervos seculares (e até milenares) de conhecimento uma série de estratégias
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 117

de sobrevivência e enfrentamento da opressão. São conhecimentos que, apesar


do “epistemicídio” promovido pela modernidade/colonialidade, resistem e
são repassados de geração a geração por meio de práticas formativas muito
peculiares, que infelizmente a ciência pedagógica, de dominância positivista
e eurocêntrica, tem ignorado.

Dos estudos subalternos à américa latina

or
como locus de enunciação

od V
aut
O Grupo Latinoamericano, segundo Mignolo (2003), consiste princi-
palmente de críticos literários e culturais, embora inclua um historiador, um

R
antropólogo e um cientista político – nunca foi uma questão crucial à histo-
riografia como formação disciplinar, como nos Estudos Subalternos do Sul da

o
Ásia. Para Beverley (2004), a institucionalização dos Estudos Culturais nos
Estados Unidos levou-o a se inclinar para esse campo, onde encontrou uma
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ligação satisfatória entre a pesquisa acadêmica e a política do conhecimento.


Entretanto, a historiadora chilena-americana, Florencia Mallon, volta-se
para historiografia enquanto disciplina e vê com desconfiança o fato de que um
visã
grupo de latino-americanistas nos Estados Unidos, com formação principal-
mente em crítica literária e cultural, estarem se apropriando da contribuição do
Grupo de Estudos Subalternos do Sul da Ásia, que era formado por um grupo
itor

de historiadores unidos em escrever a história da Índia em uma perspectiva


a re

pós-colonial e subalterna (MIGNOLO, 2003).


Os latino-americanistas deram preferência epistemológica ao que cha-
maram “os quatro cavaleiros do Apocalipse” (MALLON, 1995; RODRI-
GUEZ, 2001), ou seja, a Foucault, Derrida, Gramsci e Guha. Entre estes
quatro, contam-se três pensadores eurocêntricos, fazendo dois deles (Derrida
par

e Foucault) parte do cânone pós-estruturalista/pós-moderno ocidental. Apenas


um, o historiador indiano, Rinajit Guha, é um pensador que pensa a partir do
Ed

Sul. Ao preferirem pensadores ocidentais como principal instrumento teórico,


traíram o seu objetivo de produzir estudos subalternos.
ão

Entre as muitas razões que conduziram à desagregação do Grupo Lati-


no-americano de Estudos Subalternos, uma delas foi a que veio opor os que
consideravam a subalternidade uma crítica pós-moderna – o que representa
s

uma crítica eurocêntrica ao eurocentrismo – àqueles que a viam como uma


ver

crítica decolonial – uma crítica por parte dos povos e saberes silenciados e
subalternizados) (MIGNOLO, 2003). Diante disso, o diálogo com o Grupo
Latino‑americano de Estudos Subalternos, tornou evidente a necessidade de
transcender epistemologicamente – ou seja, de decolonizar – a epistemologia
e o cânone ocidentais.
118

O campo de estudo da história latinoamericana segundo Mallon (1995)


vem tendendo se relacionar mais prontamente com tradições históricas e teóri-
cas baseadas na Europa do que com as nascidas e criadas no Terceiro Mundo.
Diante disso, o historiador indiano Chakrabarty (2000) afirma que escrever
história implica em permanecer sob a hegemonia da Europa, sua proposta
de supera-la é “Provincializar a Europa”, por meio de uma historiografia
da intersecção de ambos os lados da modernidade, como o Terceiro Mundo

or
contribui para modernidade ao mesmo tempo que a modernidade produz o

od V
Terceiro Mundo, ou, de forma equivalente, como interagem no interior da

aut
diferença colonial da modernidade (CHAKRABARTY, 2000).
O autor coloca como grande desafio aos historiadores resgatar as histórias
subalternas e manter o sujeito subalterno como sujeito da História, condição

R
necessária para sua participação na sociedade e construção de um mundo
mais plural. Esse desafio podemos estender também para os historiadores

o
da educação para a produção e divulgação de estudos e pesquisas sobre os
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


sujeitos silenciados pela história no contexto educacional.
As reflexões dos estudos subalternos inspiraram uma série de aná-
lises de críticos latinoamericanos na década de 1990, que deram origem
ao Grupo Modernidade Colonialidade, formado por pesquisadores com
visã
pensamentos heterogêneos como, Mignolo (2003), Dussel (2008), Quijano
(2010), Walsh (2012), Grosfoguel (2016), entre outros. O termo decolonial
tornou-se a identidade dessa formação de pesquisadores, que conseguiram
itor

complementar e avançar no projeto epistemológico de luta, resistência e


a re

visibilidade dos subalternos.

A decolonialidade como projeto “outro” de sociedade e suas


possíveis relações com a pesquisa histórico-educacional
par

Diante do dilema de Chakrabarty (2000) de “Provincializar a Europa”,


Ed

o filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel (2008), propõe como proposta


nessa construção epistemológica a “transmodernidade”, onde o termo “trans”
quer dizer “além” da modernidade eurocêntrica.
ão

Quando falo de transmodernidade estou me referindo a um projeto global


que busca transcender a Modernidade da Europa e da América do Norte.
s

Este projeto não é pós-moderno, pois a pós-Modernidade ainda é uma


ver

crítica incompleta da Modernidade, feita pelos europeus e pelos norte-a-


mericanos. A transmodernidade, ao contrário, é uma tarefa, em meu caso,
expressa filosoficamente, cujo ponto de partida é aquilo que foi descartado,
desvalorizado e julgado como inútil entre as culturas globais, incluindo
a filosofia colonizada ou das periferias [...] (DUSSEL, 2008, p. 19-20).
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 119

Transmodernidade indica todos os aspectos que se situam “além” (e


também, cronologicamente, “anteriores”) das estruturas valorizadas pela cul-
tura euro-americana moderna, e que atualmente estão em vigor nas grandes
culturas universais não europeias e foram se movendo em direção a uma
utopia pluriversal.
Chakrabarty e Dussel parecem concordar que a modernidade não é neces-
sariamente e apenas a Europa ocidental, e a Europa não é a sede do conheci-

or
mento porque conhecimento é produzido em toda parte. Quando Chakrabarty

od V
reconhece o problema e propõe “Provincializar a Europa” como um projeto

aut
para atuar no sentido da de-subalternização do conhecimento, Dussel propõe
um projeto transmoderno que atuará na interseção e na contribuição planetária

R
para construir a pluriversidade, sem ignorar as relações de poder, ou, como
diria Quijano, a colonialidade do poder.

o
A pretensa superioridade do saber europeu, nas mais diversas áreas da
vida, foi um importante aspecto da colonialidade do poder no sistema-mundo
aC
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colonial/moderno. Os saberes subalternos foram “excluídos, omitidos, silen-


ciados e/ou ignorados” (GROSFOGUEL, 2008, p. 136). Os europeus foram
buscar muito do seu conhecimento utópico nos sistemas históricos não oci-
visã
dentais que encontraram nas colônias, apropriando-se deles e tornando-os
parte fundamental de sua modernidade eurocentrada.
Nesse sentido Mignolo (2003) propõe o pensamento de fronteira, como
itor

resposta epistêmica do subalterno ao projeto eurocêntrico da modernidade.


a re

Ao invés de rejeitarem a modernidade para se recolherem num absolutismo


fundamentalista, as epistemologias de fronteira subsumem/redefinem a retórica
emancipatória da modernidade a partir das “cosmologias e epistemologias do
subalterno”, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial,
rumo a uma luta de libertação descolonial em prol de um mundo capaz de
par

superar a modernidade eurocentrada (GROSFOGUEL, 2008, p. 138).


Neste mesmo direcionamento, com o objetivo de romper com o racismo
Ed

epistêmico da modernidade em diálogo com o pensamento eurocêntrico,


muito embora não tenha por suposição eliminar nem mesmo negar o conhe-
ão

cimento gerado desde o Norte Global, Walsh (2012), propõe uma intercul-
turalidade epistêmica, traduzida como um projeto político e epistemológico
de intervenção na realidade social que considera e revisa aspectos históricos
s

da colonização, recolocando e retomando a história desde outra perspectiva


ver

e outros referenciais, apontando para aquilo que Quijano (2010) denomina


como horizonte de sentido histórico. Tal horizonte pode ser pensado por
meio de perspectivas que de fato considerem outras alternativas epistemo-
lógicas, uma vez que necessariamente, contesta a estrutura colonial e racial
de poder, privilegiando saberes outros, para além do reducionismo e da
120

generalização do projeto de saber eurocêntrico. Todo horizonte de sentido


histórico é uma combinação epistêmica, teórica, histórica, ética, estética e
política (QUIJANO, 2010).
A partir da obra “Histórias Locais/Projetos Globais: colonialidade, sabe-
res subalternos e pensamento liminar”, Mignolo (2003) nos instiga a pensar
na relevância dos estudos decoloniais latinoamericanos para a História e para
História da Educação. Os saberes e as histórias locais europeias foram toma-

or
dos como projetos globais, criando-se um imaginário dominante do sistema

od V
mundo colonial/moderno.

aut
A diferença colonial (física e imaginária) é tida natural como parte da
ordem universal, onde há uma subalternização de saberes, povos e culturas.

R
Para questionar essa ordem, o autor propõe o pensamento liminar/crítico com
a valorização dos saberes subalternos, onde pensamento liminar é o espaço

o
onde as histórias locais adotam, integram, adaptam, rejeitam ou ignoram os
projetos globais (MIGNOLO, 2003).
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


O reconhecimento e a compreensão da diferença colonial bem como da
subalternidade epistemológica são fundamentais para o que Mignolo (2003)
denomina de pensamento liminar realizado “nas e a partir das margens” (p.
visã
30). Maneira de pensar que não é inspirada em suas próprias limitações e
não pretende dominar e humilhar; uma maneira de pensar que é universal-
mente marginal, fragmentária e aberta; e, como tal, uma maneira de pensar
itor

não etnocida.
a re

O pensamento liminar abre espaço para o reconhecimento da diferença


colonial, pode possibilitar a abertura de espaços para a emergência de vozes,
línguas, culturas, significados, histórias antes excluídas, silenciadas ou nomea-
das tão somente por suas carências. Traz à tona a polifonia, a pluralidade de
possibilidades do conhecer e do ser, nenhuma tendo necessidade de eliminar
par

a outra para se afirmar. O exercício de tal pensamento leva à reflexão além


da interpretação, da tradução da perspectiva ocidental hegemônica, podendo
Ed

constituir ruptura epistemológica, criativa, original, libertadora. Segundo Mig-


nolo (2003), o pensamento liminar desenvolve-se nas fissuras da colonialidade,
ão

constrói-se no diálogo com os saberes hegemônicos, mas a partir de saberes


que foram subalternizados nos processos imperiais coloniais.
Nesse contexto, a história da educação brasileira é uma construção
s

cultural complexa, gestada em um contexto dotado de determinadas carac-


ver

terísticas sociohistóricas decoloniais, carregados de colonialidades, mas que


a epistemologia de uma perspectiva histórica hegemônica produz uma narra-
tiva da modernidade dissociada do ponto de vista do subalterno. No entanto,
de acordo com Shueler (2014), é preciso reconhecer que na historiografia
especializada, a categoria “educação” ainda mantém profundos vínculos
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 121

com certas perspectivas criadas pelo pensamento iluminista. Alimentada


pela perspectiva ilustrada que naturalizou o viés civilizatório da educação
formal, a historiografia brasileira mais tradicional quase sempre atentou
exclusivamente para os projetos escolares estatais, que foram concebidos
e administrados pelas elites letradas e proprietárias. Neles, os “de baixo”
sempre aparecem como meros consumidores de produtos culturais “alie-
nantes”, impostos pela classe dominante. No entanto não estamos nem de

or
longe propondo o abandono dos estudos sobre a escola como instituição de

od V
educação, em seus moldes mais clássicos. Entretanto, é necessário avançar

aut
na proposição de novos olhares sobre o mesmo problema de pesquisa, bem
como novos objetos e abordagens (SHUELER, 2014).

R
A história da educação escolar foi, em grande parte, ensinada nos prin-
cípios epistemológicos do colonizador branco, masculino, racional, cristão e

o
heteronormativo europeu. Fazemos um ensino de história que invisibiliza os
conhecimentos e saberes dos povos indígenas, afro-brasileiros, quilombolas,
aC
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ciganos, camponeses, ribeirinhos etc. A escola, de modo geral, tem contribuído


para uma sociedade calcada em práticas preconceituosas e discriminatórias
quando, em boa parte das aulas, não problematiza o currículo eurocentrado,
visã
branco e racista, masculino, cristão (OLIVEIRA, 2012).
A genealogia do pensamento educacional brasileiro foi construída sobre
as bases de uma colonialidade pedagógica europeia, justificada pela sistemática
itor

violência da chamada “missão civilizatória”; na negação da identidade racial


a re

e étnica do colonizado e no abandono forçado de saberes e práticas da cultura


local. Enfrentar a colonialidade pedagógica, significa aprender com a história
que produziu culturas e conhecimentos, mas sem repetir e copiar servilmente
o que se produz no Norte (STRECK; ADAMS; MORETTI, 2010, p. 23).
Os colonizadores preocuparam-se em destruir imaginários, invisibilizar
par

sujeitos para que, assim, pudessem afirmar seu próprio imaginário. Para
tanto, foi preciso reprimir e destruir “los modos de producción de conoci-
Ed

mientos, de saberes, del mundo simbólico, de imágenes, que son propios


del colonizado e impone otros” (OLIVEIRA; CANDAU, 2013, p. 279).
ão

Utilizaram-se de múltiplas estratégias para naturalizar e internalizar um


pensamento único, racional, moderno, cristão dos europeus como sendo o
único correto e, então, construíram a “la subalternización epistémica del
s

otro no europeo y la propia negación y olvido de procesos históricos no


ver

europeos” (OLIVEIRA; CANDAU, 2013, p. 279).


A educação deve dialogar com a história, no sentido de que os homens
e as mulheres a produzem, não conforme as suas escolhas, mas a partir das
situações ou circunstâncias dadas ou transmitidas do passado. Neste sen-
tido, a separação entre história e educação seria a certeza de que a educação
122

capitalista cria e transmite valores que dão legitimidade aos interesses domi-
nantes como se outras alternativas não fossem possíveis e de que a história,
como consequência, devesse ser constantemente adulterada para a sustentação
destes interesses (STRECK; ADAMS; MORETTI, 2010, p. 23).
Desse modo, não há como negar o “legado” da modernidade que chegou
como imposição na América Latina e em especial na área da Educação com
a colonialidade pedagógica, mas é necessário reconhecê-la e contextualizá-la

or
histórica e epistemologicamente por meio da História da Educação.

od V
Os estudos e pesquisas em História da Educação com perspectivas

aut
decoloniais nos cursos de formação de professores, podem contribuir com o
rompimento das colonialidades presentes em nossa sociedade que começam

R
a ser ensinadas em sala de aula desde a educação básica, onde os currículos
supervalorizam a cultura europeia branca, heterossexual, cristã e masculina

o
e inferiorizam e subalternizam outros povos, em especial os indígenas e afri-
canos. De nossa parte, considera-se que as colonialidades presentes nos cur-
aC

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sos de formação de professores influenciam práticas pedagógicas e ações no
contexto da educação escolar.
Tais conhecimentos histórico-educacionais em perspectiva subalterno-de-
visã
coloniais podem e devem ser divulgados nos diversos ambientes educativos,
desde os movimentos sociais, como espaços de luta e resistência em vista de
uma sociedade justa e transmoderna, a ambientes da educação escolar básica,
itor

assim como no âmbito da formação de professores.


a re

Fontes, arquivos e metodologias: olhares a partir das


abordagens dos estudos subalternos e da decolonialidade

Acompanhamos ao longo do capítulo, o quanto os Estudos Subalternos


par

e Decoloniais podem contribuir com a visibilidade de sujeitos silenciados


Ed

pela história e também nos oferecem subsídios para pensarmos metodologias,


fontes e arquivos que dialoguem com essa perspectiva no campo da História
da Educação.
ão

Os objetos e fontes de estudos historiográficos subalternos e decolo-


niais nunca serão plenamente conhecidos e compreendidos em sua inteireza
e completude, no máximo, podemos entendê-lo em seus fragmentos e em
s

suas incertezas. Por mais que o pesquisador tente se aproximar de uma ver-
ver

dade sobre o passado, apostando no rigor metodológico, permanecem sempre


fluidos e fugidos os pedaços de história que se querem reconstruir (LOPES;
GALVÃO, 2005).
Esses vestígios e traços do passado, chamamos de “fontes”, que podem
ser abundantes ou parcas, eloquentes ou silenciosas, muitas ou poucas, elas
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 123

podem estar disponíveis, mas também indisponíveis. É comum no campo


da História da Educação, a utilização de fontes oficiais impressas, as quais
podemos elencar algumas a saber: relatórios de presidentes de províncias;
dispositivos legais como leis, decretos, portarias e regulamentos; jornais e
documentos manuscritos.
Nesses tipos de fontes, nem sempre haverá registros diretos dos grupos
subalternos e quando existem o subalterno nunca é o protagonista da ação,

or
então como devemos analisar esses tipos de fontes numa perspectiva decolo-

od V
nial? Primeiro é preciso admitir que esse tipo de trabalho não é simples e que

aut
o auxílio de outras áreas do conhecimento como a antropologia, a arqueologia,
a sociologia, a demografia e a geografia podem contribuir bastante nas análises
históricas realizadas no campo da História da Educação.

R
Os pesquisadores dos setores subalternos e decoloniais, propõem inova-
ções nas análises de fontes históricas, em particular porque os grupos subal-

o
ternos não deixam seus próprios documentos. Embora apele para alguns
aC
documentos tradicionais no campo da historiografia, como arquivos oficiais
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e arquivos de jornais, eles propõem novas abordagens metodológicas ligadas


à análise do discurso e desconstrutivismo, para construir um sujeito histórico
que tem sido silenciado. Se a existência de diversas vozes no campo da His-
visã
tória é admitida, essas vozes podem mostrar diferentes sujeitos e realidades
(TENTI, 2012).
As fontes oficiais são documentos que não falam por si, são “docu-
itor

mentos contaminados” (NUNES, 1989), diante disso, o historiador em sua


a re

operação de intervenção é que escolhe a fonte, ou documento a ser utilizado


em sua pesquisa. Os relatórios de presidentes de província é um exemplo de
fontes contaminadas.

[...] os relatórios de presidentes de província são documentos oficiais


par

enviados anualmente ou por ocasião da passagem de governo pelo pre-


sidente ou vice-presidente à Assembleia Legislativa da província, com o
Ed

objetivo de prestar conta sobre assuntos diversos, tais como: família impe-
rial, tranquilidade pública, segurança particular, força pública, repartição
de polícia, prisões, administração da justiça, guarda nacional, recruta-
ão

mento, assuntos militares, religião e culto público, assuntos eclesiásticos,


casas de caridade, salubridade pública, colonização, instrução pública
com respectivos mapas estatísticos e documentos comprobatórios anexos
s

(ROSIN, 2003, p. 32).


ver

Os relatórios dos presidentes de província são formados pela acumulação


de vários discursos que partiam de pontos de vistas distintos, os quais eram o
resultado de outras tantas informações reunidas em outros documentos. A esse
respeito, Giglio (2001) complementa que a fala de presidentes de província
124

compõem-se de uma teia de discursos, proferidos pelos diversos agentes do


Estado, que englobam os mais variados âmbitos de responsabilidades, de
subordinação, de hierarquia, revelando o universo prático dos governos dos
homens e das coisas.
Essas fontes, segundo Faria Filho (2000), constituem expressão de sujei-
tos posicionados, onde nos textos desses sujeitos, estão as representações de
suas práticas e também a construção dessas posições, desses lugares, como

or
processos relacionados à constituição de identidades pessoais e profissionais.

od V
Os relatórios presidenciais partem de um lugar de poder e de um lugar insti-

aut
tucional onde podemos perceber as colonialidades, registradas e presentes no
cotidiano da vida pública em determinado momento histórico.

R
No processo de analisar os subalternos como protagonistas das ações
históricas por meio das fontes oficiais, eles só começam a fazer sentido para os

o
pesquisadores na medida em que as evidências, e pistas, que estão “por detrás”
do que aparentemente os documentos trazem, conjuntamente com um trabalho
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


meticuloso de contrastar fontes variadas se apresenta como uma possibilidade
interpretativa profícua, buscando adentrar a lógica subalterna compreendendo
o passado por meio da racionalidade específica desses sujeitos.
visã
Nos documentos, eles tentam discernir as diferenças entre as vozes dos
opressores e as dos oprimidos. A proposta dos Estudos Subalternos e Deco-
loniais baseiam-se, em especial, em uma nova leitura dos arquivos produzi-
itor

dos pelas classes dominantes promovendo novos conteúdos, novas vozes,


a re

investigando os espaços privados e as lacunas, a fim de desenvolver uma


historiografia crítica para observar os traços deixados por uma vida subalterna
ao longo de sua trajetória temporal (TENTI, 2012).
O processo historiográfico hegemônico coloca a ênfase no conceito de
totalidade, quando na realidade, existem sujeitos históricos heterogêneos,
par

daí a importância de insistir na busca de sujeitos excluídos da narrativa his-


toriográfica tradicional. Para isso, é interessante investigar, também, práticas
Ed

não escritas, usando a chamada “história oral”, mas também apelando para
documentos audiovisuais, testemunhos ou ficcionais. Para Mignolo (2002), o
ão

potencial epistemológico da história oral reside no argumento de que é possí-


vel produzir “conhecimento crítico” e que esse conhecimento e compreensão
“crítica” são o que falta à cientificidade das ciências sociais. A tradição oral
s

não é apenas uma nova “fonte” para a historiografia, ela é produção de conhe-
ver

cimento, pois o narrador é equivalente ao cientista social, filósofo ou crítico


social, de modo a eliminar a diferença epistêmica colonial entre os sujeitos
cognoscentes e assuntos a serem conhecidos.
Toda narrativa seja ela oral, escrita ou visual é comunicação, repertório
de saberes e conexão para o entendimento dos modos de vida e de luta de
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 125

povos e culturas em espaços e tempos situados (PACHECO, 2018). Diante


disso, o uso de imagens como fontes historiográficas subalternas, pode em
muito beneficiar o historiador da Educação e enriquecer o conhecimento que
se pretende construir.
Para nós, historiadores da Educação, as imagens representam um impor-
tante elemento da atividade sociocultural humana, principalmente por cons-
tituir um sistema de significações específicas que possibilita a reflexão, ação

or
e expressão do homem em relação a si próprio, aos demais indivíduos e ao

od V
meio em que vive.

aut
A produção historiográfica que, por muito tempo, excluiu as fontes
visuais como fontes históricas e que, ainda, impõe uma desconfiança à ico-

R
nografia quando se trata de utilizar tais fontes no estudo de determinados
temas históricos, rende-se à importância das charges para estudar a história da

o
educação e a história da infância numa perspectiva dos Estudos Subalternos
e Decoloniais (MIANI, 2016).
aC
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À medida que a charge e todo o veículo impresso (jornal, revista, boletim)


vão se distanciando de sua função propriamente comunicativa (grosso modo,
a de oferecer informações e interpretações para subsidiar o conhecimento
visã
cotidiano dos fatos de uma sociedade), eles passam a agregar de maneira
contundente sua condição de fonte histórica.
Uma outra perspectiva de História da Educação Subalterna e Decolonial
itor

possível, pode ser por meio da História Intelectual, que, nos últimos anos,
a re

vem renovando sua área de atuação e não se limita somente aos estudos dos
“grandes intelectuais do mundo letrado”, mas também aos dos intelectuais
do mundo iletrado”, assim como aos chamados “intelectuais da educação”,
onde o foco tem sido a história e atuação de determinados personagens que,
de um modo ou de outro, deixaram contribuições singulares ou plurais no
par

campo da educação (FRANÇA; NERY, 2018). São sujeitos engajados na


educação pública, preocupados com métodos de ensino, com uma proposta
Ed

de alfabetização ou mesmo de expansão de escolas nos seus variados níveis


e objetivos. Nessa empreitada, são muitos os personagens que se tornaram
ão

referências e objetos de estudos que vêm servindo, de maneira problematiza-


dora, à compreensão dos fatos que compõem a malha da história da educação
brasileira (MAGALHÃES; BARRETO, 2016).
s

Trazemos algumas produções sobre Intelectuais e Educação no contexto


ver

amazônico elaborados em nível de doutorados e artigos cientificos, que deixam


claro a viabilidade de utilização da História da Intelectual para uma escrita
da História da Educação Subalterna e Decolonial.
126

Quadro 2 – produções sobre intelectuais e educação no contexto amazônico


N. Ano Natureza Título Autor
A História de um intelectual orgânico em Maria do
defesa da educação na Amazônia: Manoel Socorro
1 2017 Tese
do Carmo e a Casa Familiar Rural de da Silva
Gurupá-Pa Guimarães
A trajetória de uma educadora e sua

or
Ana Maria
2 2017 Tese produção didático pedagógica:
Maciel Corrêa

od V
Ester Nunes Bibas e a Educação do Pará

aut
Raymundo Nogueira de Faria e a “Ilha da
Redenção”: um projeto de vida intelectual Andreson
3 2017 Tese dedicada aos “deserdados da sorte” Carlos Elias

R
em Belém do Pará, Brasil, na primeira
metade do século 20
Barbosa

o
Catequização e pacificação na
Província do Amazonas: As viagens de
aC
4 2018 Artigo Irma Rizzini
Antonio de Macedo Costa e João Barros

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Rodrigues
Mariana Cavalleiro de Macedo: trajetória Maricilde
6 2018 Artigo
de uma normalista modelo Oliveira Coelho
visã
Mestre Oscar Santos e o Território Federal
do Amapá: um projeto intelectual Vitor Sousa
7 2018 Artigo
dedicado ao ensino de música em Macapá Cunha Nery
no século XIX
itor
a re

Fonte: Elaborado pelo autor.

A História Intelectual combinada com a História Comparada também tem


sido muito utilizada por pesquisadores do campo da História da Educação e na
área da educação, a prática da comparação pode trazer bons frutos, na medida
par

que permite estender a compreensão do processo de sua formação em dife-


rentes situações (GONÇALVES NETO; CARVALHO, 2005). A comparação
Ed

é onipresente em educação, pois, sempre que procuramos compreender onde


nos inserimos, recorremos a outros contextos onde se desenvolvem realidades
parecidas. A comparação é seguramente uma forma de alcançar um novo saber
ão

e a Educação Comparada quer que este se construa sobre fatos que pertencem
à realidade educativa de modo a dar a esta uma compreensibilidade que a
s

simples análise, num só contexto, não permite (FERREIRA, 1999).


ver

Assim já podemos observar a produção de pesquisas em perspectiva


decolonial na Amazônia utilizando metodologicamente a História Intelectual
combinada com a História comparada, este movimento teve início em 2011
na Universidade Federal do Pará, com o projeto de pesquisa aprovado e finan-
ciado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 127

– CNPq, intitulado “Um estudo comparado do pensamento educacional na


América Latina – Brasil e Venezuela (1819-1928)”, coordenado pela pesquisa-
dora Dra. Sônia Maria da Silva Araujo. A partir deste projeto, surgiram outros
objetos de estudos e pesquisas em nível de mestrado e doutorado, conforme
podemos observar no quadro abaixo.

Quadro 3 – produções sobre intelectuais e educação no contexto amazônico

or
N. Ano Natureza Título Autor

od V
Raça e Educação na América Latina:

aut
Marlucy do
um estudo comparado do pensamento
1 2014 Dissertação Socorro Aragão
de José Veríssimo (Brasil/1857-1916) e
de Sousa
José Ingenieros (Argentina/1877-1925)

R
A Educação Popular na América latina:
um estudo comparado do pensamento Micheli

o
2 2014 Dissertação social de Simón Rodríguez (Venezuela, Suellen Neves
aC
1771-1854) e Antônio carneiro Leão Gonçalves
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(Brasil, 1887-1966)
Educação e Democracia: um estudo
comparativo entre o Pensamento de Adriana Dias de
3 2015 Dissertação
Pascoal Lemme (1904-1997) e Anísio Moura
visã
Texeira (1900-1971)
Educação Popular e Pensamento
João Colares da
4 2015 Tese Decolonial Latino-Americano em Paulo
Mota Neto
itor

Freire e Orlando Fals Borba


a re

Educação para mulheres e processo de


Adriane Raquel
descolonização da América Latina no
6 2016 Tese Santana de
Século XIX: Nísia Floresta e Soledad
Lima
Acosta de Samper

Fonte: Elaborado pelo autor.


par

O estudo da cultura material tem sido também um poderoso instrumento


Ed

na análise de histórias subalternas e decoloniais no campo da História da


Educação. Durante muito tempo, ignoram-se os estudos sobre cultura material
no contexto brasileiro, ao ponto de não terem legitimidade no meio acadê-
ão

mico. Foi por meio de muitas reivindicações, que a cultura material passou
a fazer parte da agenda de relevância social, histórica, cultural e educativa
(FUNARI, 1993). A cultura material escolar tem se constituído um tema
s

profícuo nos estudos e nas pesquisas em História da Educação pela diver-


ver

sidade de objetos subalternos que envolvem (mobiliários, livro, arquitetura,


dentre outros), pelas inter-relações com outras áreas do conhecimento e pelas
conexões que podem fazer com as relações de gênero, disciplinas escolares,
método de ensino e a variedade de interpretações teóricas e metodológicas
que a temática envolve.
128

No contexto amazônico, de acordo com Maciel (2020), é uma forma de


entender e valorizar a diversidade cultural dos sujeitos e seus usos com arte-
fatos culturais que estão constituídos pelos saberes geracionais transmitidos
pelos intelectuais subalternos adultos, (mestres, artesões, pescadores, agricul-
tores, seringueiros, quilombolas etc.) para os mais jovens e são reinventados
no cotidiano amazônico como um movimento de pertencimento e resistências
pelo saber da tradição que se perpetua até os dias atuais.

or
Os historiadores da educação na Amazônia conseguiram avançar em seus

od V
estudos sobre Cultura Material para além da escola, trabalhando também os

aut
contextos não escolares por meio de artefatos culturais dos sujeitos subalternos
amazônicos, conforme podemos observar no quadro a seguir.

R
Quadro 4 – produções sobre cultura material em
contextos escolares e não escolares

o
aC
N. Ano Natureza Título Autor

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Cultura material escolar e as
representações de educação no Sistema Rogério Andrade
1 2019 Tese
radiofônico para os caboclos “ingênuos” Maciel
na prelazia do Guamá (1957-1980)
visã
O mobiliário escolar na instrução pública
Marlucy do
primária do Pará na Primeira República:
2 2019 Tese Socorro Aragão
entre as “vitrines do progresso” e o
de Sousa
itor

“estado de ruínas”
a re

Cultura Material em contextos não Rogério Andrade


3 2020 Livro
escolares na Amazônia Paraense Maciel (Org).

Fonte: Elaborado pelo autor.

Desse modo, pensar a cultura material escolar e não escolar em contex-


par

tos amazônicos é interpretar que a produção de saberes subalternos e deco-


loniais construídos nas relações entre os sujeitos e seus artefatos culturais
Ed

estão enraizados pelas práticas culturais, identidade cultural, representações


de educação que se desdobram em processos educativos de pertencimento e
ão

que são produzidos historicamente pela sociedade.


Esse alargamento e esse novo olhar subalterno e decolonial sobre as
fontes históricas, por sua vez, impõe ao pesquisador uma série de novas
s

exigências, inicialmente a dificuldade de trabalhar com uma pluralidade de


ver

fontes, porque o pesquisador além de ter o conhecimento do problema que


se coloca, da historiografia, metodologia e teoria da história, deve também
aprofundar-se das teorias e metodologias para o uso do tipo de fonte a que
recorre. Quanto mais se dispuser de uma pluralidade de documentos, mais
possibilidade se têm de melhor explorar as ações dos grupos considerados
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 129

subalternos. O confrontamento e o cruzamento das fontes poderão também


ajudar no controle da subjetividade do pesquisador, nesse sentido acaba sendo
uma operação historiográfica indispensável.
Os fatos históricos e as fontes falam apenas quando o pesquisador os
aborda e os interpreta procurando compreender o pensamento que está por
trás deles. É o pesquisador quem decide quais os fatos e fontes que vêm à
cena e em que ordem ou contexto. Não é por estarem nas fontes que os fatos

or
ocorreram exatamente daquela forma (FÁVERO, 2000).

od V
Ao analisar as fontes, o papel do pesquisador é verificar o passado por

aut
meio dos olhos do presente e a luz dos seus problemas de pesquisa, seu
principal trabalho não é registrar, mas avaliar numa base teórica, no nosso

R
caso optamos pelos Estudos Subalternos e Decoloniais, pois o passado que é
estudado não é um passado morto, mas um passado que, em algum sentido,

o
está ainda vivo no presente, no caso deste estudo, por meio das colonialidades.
É o problema e o tema que o pesquisador se propõe a estudar que nortearão
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

a escolha das fontes que utilizará.


No entanto, a seleção das fontes não é realizada somente pelo pesqui-
sador, ela já foi feita tanto por aqueles que produziram a fonte, pelos que a
visã
conservaram ou que deixaram os rastros de uma destruição – intencional ou
não – por aqueles que o organizaram em acervo e pelo próprio tempo. Nesse
sentido é que a história será sempre um “conhecimento mutilado”, pois só
itor

conta aquilo que foi possível saber a respeito do que se quer saber (LOPES;
a re

GALVÃO, 2005).
No trabalho com as fontes, aprendemos que quando adentramos num
arquivo, dialogamos com as diversas fontes, conseguimos compreender o não
dito ou aquilo que foi esquecido ou silenciado; há uma sensação de descoberta
e de fascínio. Compreendemos que os arquivos não guardam apenas desejos,
par

aspirações e sonhos indivisíveis; são também produtos da sociedade que os


configurou segundo as relações de poder e resistências.
Ed

Considerações finais
ão

O objetivo deste texto foi analisar possíveis contribuições dos estudos


subalternos e da decolonialidade para a pesquisa em História da Educação.
s

Realizou-se uma incursão teórico-reflexiva a partir de temas debatidos pelo


ver

Grupo de Estudos Subalternos Indianos, Grupo Latino Americano de Estudos


Subalternos e Rede M/C.
Conseguimos apontar algumas contribuições em termos de fontes, arqui-
vos e metodologias para escrita de uma História da Educação Decolonial,
desde o trabalho com fontes impressas oficiais, assim como fontes orais,
130

imagéticas e charges. Em termos metodológicos apresentamos o potencial


decolonial da História Oral, História Intelectual, História Comparada e Cul-
tura Material, para o campo da História da Educação, apresentando algumas
produções desenvolvidas por pesquisadores da Amazônia.
Considerando que se tomem os devidos cuidados para escolha de objetos,
fontes e metodologias, os Estudos Subalternos e Decoloniais possibilitarão
um avanço para o campo da História da Educação, tanto em termos de pes-

or
quisa como de ensino, melhorando a qualidade da formação de professores

od V
da educação básica e de futuros pesquisadores.

aut
R
o
aC

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 131

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s ão
ver
POR QUE SULEAR? MARCAS
DO NORTE SOBRE O SUL, DA
ESCOLA À GEOPOLÍTICA11

or
od V
Marcio D’Olne Campos12

aut
UNICAMP e Proposta SULear

R
Introdução

o
aC
Partindo de um texto anterior (CAMPOS, 2016) serão aqui considera-
dos alguns problemas do ensino que envolvem noções de espaço e lugar nas
relações céu-terra, sobretudo, presentes no ensino fundamental. Desta forma,
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pretende-se dialogar, além dos pares e alunos da academia, também com


visã
professores das redes escolares entre os quais observamos muitas marcas do
eurocentrismo e da colonialidade, em geral, de origem no Hemisfério Norte.
Faz-se necessário trazer algumas críticas à ausência da leituras do
itor

mundo13, sobretudo na educação básica, ausência esta devida ao privilégio


a re

dado à alfabetização e leitura alfanuméricas, o que além de uma precariedade


de práticas observacionais do ambiente terrestre e celeste circundantes, ainda

11 O presente texto foi escrito reconsiderando elementos do capítulo de livro já publicado: Campos, M. D.
Por que SULear? Astronomias do Sul e culturas locais. FAULHABER, Priscila; BORGES, Luiz C. (org.).
par

Perspectivas Etnográficas e Históricas sobre as Astronomias. In: IV ENCONTRO ANUAL DA SIAC, 4,


2016, Rio de Janeiro. Anais [...]. Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), 2016,
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p. 215-240. Disponível em: http://www.mast.br/index.php/publicacoes.html#letra_p. Acesso em: 22 set.


2019. Novamente pela segunda republicação desse artigo no presente livro, ele foi apenas reformatado
da forma de artigo (CAMPOS, 2019) para a forma atual de capítulo de livro. Esse artigo constou do Dossiê
SULear por mi, organizado e disponível em http://revista.uemg.br/index.php/Sulear/issue/view/277. Acesso
ão

em: 28 nov. 2019.


12 Marcio D’Olne Campos. Professor aposentado da UNICAMP. Físico (PUC-RJ) e doutor pela Université de
Montpellier (FR). Na UNICAMP foi Prof. no Instituto de Física (1972-92). No IFCH-UNICAMP (1993-98)
s

pertencendo ao Dep. de Antropologia e à área “Itinerários Intelectuais e Etnografia do Saber” (Doutorado


ver

em Ciências Sociais 1992-98). Desde 1980 trabalha em educação (formal e não formal) e pesquisa antro-
pológica/etnográfica sobre relações sociedades-humanos-natureza e saberes, técnicas e práticas locais.
Enfatiza as categorias tempo espaço e lugar nos ritmos e marcadores naturais e sociais de tempos, na
percepção ambiental e nas relações céu–terra (Etnoastronomia e Astronomia nas Culturas). Em outra
vertente trabalha com antropologia da alimentação e patrimônios culturais. Seus interlocutores situam-se
em sociedades indígenas (Kayapó) e costeiras (caiçaras), assim como entre descendentes de imigrantes
italianos (ES e MG). mdolnecampos@sulear.com.br
13 Sobre esse tema ver, sobretudo o primeiro parágrafo de Paulo Feire no diálogo Leitura da palavra... leitura
do mundo (FREIRE; CAMPOS, 1991). Disponível em: http://sulear.com.br/texto06.pdf. Acesso em: 15
set. 2019.
136

se agrava pela importação e adoção pura e simples de noções e regras práticas


vindas do Hemisfério Norte, totalmente inadequadas aos contextos naturais
e socioculturais de vivência e observação no Sul.
Por vivência de contextos naturais e socioculturais é preciso lembrar que
por volta dos anos 80 e 90, havia uma deturpação pela qual pesquisadores de
grandes centros/cidades dos dois hemisférios estabeleciam colaboração em
viagens de intercambio e pretendiam denominar tais opções como “projetos/

or
colaborações interculturais” sem a menor consideração pelo conceito antro-

od V
pológico de cultura. Tais opções têm sido trazidas para o seu devido lugar,

aut
por exemplo, por Catherine Walsh da Universidad Andina Simón Bolívar
através de suas preocupações com o exercício de uma pedagogia decolonial
pautada pela perspectiva da interculturalidade crítica como ela bem reafirma
na introdução de seu artigo:
R
o
Este artículo parte de la necesidad – todavía presente y crecidamente
aC
urgente -, de críticamente leer el mundo, intervenir en la reinvención

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


de la sociedad, y avivar el desorden absoluto de la descolonización,
como apuntaron hace algunos años atrás el martinico Frantz Fanon y
el brasileño Paulo Freire. Considerar este trabajo político-pedagógico
visã
y pedagógico-político en el contexto actual latinoamericano es, tal vez,
más complejo hoy, tanto por el reconocimiento y la inclusión de los
“oprimidos” y “condenados” en las instituciones y el discurso públicos,
oficiales, neoliberales y transnacionalizados – dando la impresión que
itor

el “problema” está disuelto -, como por las luchas que los movimientos
a re

indígenas y afrodescendientes están logrando avanzar en la construcción


de sociedades, Estados y humanidad radicalmente distintos, pero ante
racismos solapados y estrategias opositadas -cada vez más sofisticadas–
de continua manipulación, cooptación y subversión.
[…] Pero, por el otro lado, y aún más central, es el interés de poner en
par

escena – pensando desde y con las luchas arriba señaladas – una pers-
pectiva crítica de la interculturalidad, la que se encuentra enlazada con
Ed

una pedagogía y praxis orientadas al cuestionamiento, transformación,


intervención, acción y creación de condiciones radicalmente distintas de
sociedad, humanidad, conocimiento y vida; es decir, proyectos de inter-
ão

culturalidad, pedagogía y praxis que encaminan hacia la de-colonialidad.


En este afán emprendemos, en la última parte de este texto, un diálogo
desde los aportes de Fanon y Freire (WALSH, 2009, p. 2).
s
ver

No Brasil, esperando não omitir outras equipes trabalhando em educação


na perspectiva da interculturalidade e das pedagogias decoloniais, além de,
mais especificamente na educação em ciências naturais e sociais, vale citar
os trabalhos das equipes de Vera Candau (PUC-RJ), Celso Sánchez (GEA-
Sur – UNIRIO), Bruno A. P. Monteiro (NUTES e LINEC– UFRJ) e Suzani
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 137

Cassiani (UFSC-CCE) entre outros, sendo que duas coletâneas já compreen-


dem artigos destes autores aqui citados (CANDAU, 2009; MONTEIRO et
al., 2019). Também uma excelente coletânea saiu em 2018 problematizando
“Interculturalidade(s)” na América Latina (SOUZA LIMA et al., 2018).
Há ainda o fato relevante do ensino em todos os níveis não ser siste-
maticamente permeado pelo desenvolvimento e uso da noção de referencial
de observação/percepção. Ou seja, da noção de que ‘o que eu vejo/percebo

or
depende de onde eu vejo/percebo – de que ponto de vista. Nesse sentido, o

od V
referencial prioritário de observação de fenômenos próprios das relações

aut
céu-terra é o de pé-no-chão e olho atento para todos os lados, ou seja, o ponto
de vista centrado no lugar em que estamos, isto é, o referencial topocêntrico.
Note-se que a partir das virtuais posições geocêntricas, heliocêntricas ou

R
outras, só se pode calcular ou teorizar sobre o que é imaginado, a não ser que
sejamos todos astronautas para os quais, longe da Terra, não existe nem acima,

o
nem abaixo. O astronauta isolado tem nele o seu próprio centro de gravidade.
aC
Algumas dessa questões dependem de cuidadosas leituras e releituras
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do mundo e para isso, na educação e na pesquisa, torna-se muito conveniente


o seguinte lema: problematizar sempre sobre o que parece óbvio, no entanto
nunca aprofundamos nossa reflexão sobre essa aparente obviedade. Em outras
visã
palavras, leituras e releituras do mundo permitem reproblematizações cons-
tantes para que o que pensamos seja sempre reconsiderado:
itor

Paulo Freire – Sempre repeti que é impossível conceber a alfabetização


como leitura da palavra sem admitir que ela é necessariamente precedida
a re

de uma leitura do mundo. A aprendizagem da leitura e da escrita equivale


a uma “releitura” do mundo. É preciso não esquecer essa evidência: as
crianças pequenas, bem antes de desenharem e traçarem letras, aprendem
a falar, a manipular a linguagem oral. Por intermédio da família, leem
par

a realidade do mundo antes de poderem escrever. Em seguida, apenas


escrevem o que já aprenderam a dizer. Qualquer processo de alfabetização
Ed

deve integrar essa realidade histórica e social, utilizá-la metodicamente


para incitar os alunos a exercerem, tão sistematicamente quanto possível,
sua oralidade, que está infalivelmente ligada ao que chamo de “leitura do
ão

mundo” (FREIRE; CAMPOS, 1991, p. 1).

Um óbvio nem sempre pensado, ocorre quando nos encontramos diante


s

de um globo terrestre observando-o. Nesse caso, embora de pé no chão, esta-


ver

mos desempenhando um papel de astronauta observador do planeta Terra a


partir do espaço sideral. Durante o desempenho desse papel não existe acima
e/ou abaixo para este observador.
Muitas vezes os obstáculos epistemológicos enfrentados através das
obviedades que nos desfiam durante os atos do conhecer estão presentes
138

localmente no próprio contexto de nossos enfrentamentos. Outras vezes, são


aparentes obviedades, assim como epistemes que nos chegam do Norte car-
regadas de eurocentrismo. Nesses casos, nos desvincular dessas obviedades
nos leva a práticas decoloniais para as quais Walter Mignolo (2008) nos
recomenda sabiamente a “desobediência epistêmica”:

Dessa maneira, por “Ocidente” eu não quero me referir à geografia por si

or
só, mas à geopolítica do conhecimento. Consequentemente, a opção des-

od V
colonial significa, entre outras coisas, aprender a desaprender [...], já que

aut
nossos (um vasto número de pessoas ao redor do planeta) cérebros tinham
sido programados pela razão imperial/colonial. Assim, por conhecimento
ocidental e razão imperial/colonial compreendo o conhecimento que foi

R
construído nos fundamentos das línguas grega e latina e das seis línguas
imperiais europeias (também chamadas de vernáculas) e não o árabe, o

o
mandarim, o aymara ou bengali, por exemplo (MIGNOLO, 2008, p. 290).
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Reforçando as ideias até aqui expostas, conclue-se essa introdução
emprestando de Arturo Escobar, no seu artigo dentro desse dossiê, sua exce-
lente visão da proposta SULear:
visã

Abya Yala/Afro-Latinoamérica nos invita a pensar en la geopolítica del


conocimiento, tema crucial en las concepciones de SURear [SULear],
la teoría decolonial, y el pensamiento crítico en general. Desde su con-
itor

cepción inicial, SURear se refirió tanto a una cierta razón cartográfica y


a re

espacial dominante como a los aspectos “ideológicos” (ver, por ejemplo,


Campos 199, 2015: 433). Igualmente, hizo visibles de una forma original
aquellos saberes locales no regidos por la concepción dominante del eje
norte-sur, como el de algunos pueblos indígenas, abriendo las puertas al
par

importante proyecto de SURear como camino para la “descolonización de


nuestro sistema de pensamiento en la academia, le escuela y en nuestras
Ed

vidas” (p. 434). Me parece que las corrientes recientes de pensamiento


crítico que analizo en este texto pueden ser consideradas como una con-
tribución a este proyecto de descolonización epistémica, para así ORIEN-
ão

TARnos de un modo otro en actual geopolítica del conocimiento actual


(ESCOBAR, 2019, p. 38).
s
ver

SULear

[...] “Você deve encontrar o seu norte”!


Está é uma “orientação” ouvida com certa frequência de alguns de nossos
pares terráqueos do Hemisfério Sul.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 139

Essa recomendação que naturaliza no SUL noções e regras apropriadas


ao Hemisfério Norte, corresponde ao verbo NORTEear que significa “enca-
minhar-se em direção ao norte” ou na sua forma absurda – embora frequente
– “subir para o Norte”. O sentido figurado, segundo o Dicionário Houaiss
sugere: “guiar(-se) numa dada direção moral, intelectual etc.; orientar(-se),
regular(-se)”. [grifos meus]

or
Essa orientação para o Hemisfério Norte, não é apenas espacial, mas
subjetiva e referindo-se até à “direção moral”. Isso é evidentemente ratificado

od V
pelas representações – sobretudo geocartográficas do Norte acima e superior

aut
por oposição ao Sul abaixo, inferior.
Dessas relações, pautadas pela superioridade do norte sobre o sul, resul-

R
tam condicionamentos nocivos sobre a construção do conhecimento, assim
como de práticas, tanto no meio escolar, como fora dele, no cotidiano das

o
vivências na metade Sul do Planeta.
aC
Estranhamentos e indignações sobre tendências a nos NORTEarmos
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

no sul do equador, tornaram imperativo cunhar o termo antinômico SULear


(CAMPOS, 1991). Este termo, um ano mais tarde, foi empregado por Paulo
Freire no livro ‘Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do
visã
oprimido’ (FREIRE 1992, p. 24; 218)14.
SULear problematiza e contrapõe o caráter ideológico do termo nortear,
dando visibilidade à ótica do sul como uma forma de contrariar a lógica euro-
itor

cêntrica, nos desvinculando ou nos desarraigando do Norte como referência


a re

universal. O que também significa incorporar em todas as nossas reflexões as


‘epistemologias do Sul’ (SANTOS, 2010; MENESES, 2008).
O vocábulo é um posicionamento crítico sobre as representações gera-
das pelas orientações espaciais e de orientação entre as polaridades do eixo
par

Norte-Sul e as tensões oriundas dessa relação. Tais representações, porque


trazidas de outros contextos sem as devidas problematizações, prejudicam
Ed

pontos de vista e saberes locais – disciplinares ou não – interferindo negati-


vamente em outras percepções e consequentemente, nas leituras do mundo
e da palavra entre populações urbanas e rurais, assim como entre aquelas de
ão

culturas locais distintas (FREIRE; CAMPOS, 1991).


s
ver

14 Detalhes sobre a origem do termo SULear e a relação com a obra de Paulo Freire encontram-se verbete
Sulear muito bem elaborado por Antônio Carlos Silva Júnior, um dos autores nesse dossiê. Disponível
em:https://pt.wikipedia.org/wiki/Sulear. Acesso em: 23 jun 2015. Ver também: Campos M. D. Paulo Freire
adere ao SULear (extratos), Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: http://www.sulear.com.br/textos/p_freire_
sulear.pdf. Acesso em: 14 jul. 2019.
140

ORIENTAr, SULear e a inapropriada


regra que veio do NORTE

Nas escolas e no ensino de geografia no Brasil, é comumente difundida


uma inútil regra “prática” – apenas apropriada ao Norte – para o ensino de
orientação espacial e os pontos cardeais. Propõe-se estender o braço direito
para o Sol nascente para termos assim, grosso modo, o Leste (L) nesta direção,

or
o Norte (N) à frente e o Oeste (W) à esquerda. O consequente absurdo é que

od V
nos puseram de costas para o Sul.

aut
Quando se fala de orientação à noite, o que em geral e inadvertida-
mente se recomenda é que “à noite você deve se orientar pela constelação

R
do Cruzeiro do Sul (Cruxis)”. Aí começam a surgir as inconsequências
pedagógico-educacionais.

o
Quem vive no Hemisfério Norte, usa com êxito esta regra, uma vez que
com o braço direito para Leste e o Norte à frente, este esquema se encaixa
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


muito bem para que à noite – de acordo com o esquema corporal preestabele-
cido – se enxergue acima e à nossa frente a Estrela Polar (Polaris) que é quase
coincidente com o polo norte celeste (PNC, ponto no qual o eixo imaginário
visã
terrestre “fura” o céu). Apontando essa estrela e traçando uma linha imaginária
até a terra encontra-se o sentido norte geográfico – isto significa se NORTEar.
A Estrela Polar não pode ser vista no Hemisfério Sul, pois neste está
itor

sempre abaixo do horizonte. É sobretudo para observações noturnas que


as consequências dessa “regra da mão direita” têm que ser reconsideradas
a re

e contextualizadas.
Por outro lado, o Cruzeiro do Sul é frequentemente15 visível no sentido
Sul. O absurdo é que nos impõem dar as costas para essa constelação pela pura
e simples “importação” de uma regra que, sendo prática para o Hemisfério
par

Norte, não o é em absoluto, para nós do Sul!


Vale uma ironia sobre essa imposição de uma regra corporal, já que ela
Ed

nos foi importada ou escorreu lá de cima do Norte para que nós a “engolís-
semos” sem ao menos conferir sua aplicabilidade. Obedecendo cegamente a
ão

essa regra NORTEada, precisaríamos cavar um túnel na direção do Hemisfério


Norte para, uma vez chegando ao outro lado do Planeta, olhar no sentido norte
e ver a Estrela Polar para que então, uma vez NORTEados, viajarmos de volta
s

ao Sul e, conhecendo o sentido sul sabermos que o Cruzeiro está atrás de nós.
ver

Diante disso, é fundamental contrariarmos a regra prática do Norte


apontando a mão esquerda para o Sol nascente (Figura 1). Com o Oeste à

15 ‘Frequentemente’ aqui se refere ao fato que à medida em que as latitudes se tonam menores ao nos
aproximarmos do equador (latitude 0º) apenas parte do círculo descrito pelo Cruzeiro em torno do polo sul
celeste poderá ser observada – apenas a metade pode ser vista na latitude do equador.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 141

nossa direita, pôr fim estaremos de frente para o sul. Desse modo o diuturno
esquema prático corporal – agora escolhendo apontar a mão esquerda para
o Sol nascente – nos permitirá SULear16 à noite pelo Cruzeiro do Sul e, no
fundo, também de dia quando o Sol nascerá à nossa esquerda e nosso esquema
corporal de orientação se manterá coerente.
Ao contrário, ORIENTar-se apontando a mão direita para o Sol nascente
nos obrigaria a darmos meias voltas entre cada dia e cada noite para nos colo-

or
carmos de frente para o norte e de frente para o sul alternadamente. Tudo isso

od V
para satisfazer a regra do Norte?!

aut
Figura 1 – Esquema corporal que parte da mão esquerda apontando
o Sol nascente para a orientação apropriada ao Hemisfério Sul

R
o
aC
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visã
itor
a re

Fonte: acervo do autor http://sulear.com.br/beta3/.


par

Ao contrário da opção pelo mapa invertido S-N, pode-se ainda salientar


Ed

que os globos terrestres usualmente NORTEados e com a sustentação em uma


base (pé), impõem a nós do Hemisfério Sul, uma contorção para examinarmos
o lugar onde vivemos “do lado de baixo do Equador”17.
ão

É revoltante que uma simples regra prática utilizável no Norte seja assu-
mida aqui no Sul como se fosse uma teoria globalizante quando, de fato, é
s
ver

16 Em outras línguas, por exemplo: SULear (br), SURear (es), SUDer (fr). Em inglês foi um pouco mais difícil
encontrar um correspondente. O termo SOUTHing (en) me foi sugerido por Ana Cecília G. A. de Camargo.
Ao mesmo tempo, Roberto Machado encontrou em Ulisses (James Joyce) o termo “suleando”. Este apa-
rece na tradução de Caetano Waldrigues Galindo (UPPR) referente ao termo “southing” da edição original.
Agradeçemos a todos.
17 Ver/ouvir: “Não existe pecado ao sul do equador” (Chico Buarque; Ruy Guerra). Disponível em: http://www.
vagalume.com.br/chico-buarque/nao-existe-pecado-ao-sul-do-equador.html. Acesso em: 7 maio 2016.
142

uma regra inapropriada a ponto de nos levar a dar as costas para o Cruzeiro
do Sul, até mesmo nas observações noturnas desta constelação. Descasos
dessa ordem sobre o contexto no qual nos situamos para observar permeiam
nossos livros didáticos assim como a internet. O exemplo da Figura 2 ilustra
uma absurda “Orientação pelo Cruzeiro do Sul”. Numa observação noturna
vemos uma menina olhando para o norte com o Cruzeiro do Sul atrás dela.
Portanto, a menina obedece literal e cegamente a regra do Norte para apenas

or
imaginar a constelação do Hemisfério Sul na sua retaguarda.

od V
aut
Figura 2 – SULeamento às avessas pelo Cruzeiro do Sul para preservar
a absurda regra do Norte que aponta a mão direita para o Sol nascente
e nos coloca de costas para a constelação que nos SULeia

R
o
aC

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visã
itor
a re
par

Fonte: colaweb https://www.coladaweb.com/geografia/meios-orientacao-localizacao.


Ed

Muitos sãos os exemplos enganosos com os quais se ensina sem edu-


car, ou melhor, sem uma consistente construção de conhecimento. Um dos
inúmeros exemplos facilmente encontráveis é esse absurdo da Figura 2
ão

recolhida no site cujo nome, desagradável para um site educacional, é “Cola


da Web”. Além dessa cola – termo cujo pior sinônimo é plágio – outro mal
exemplo é encontrável numa “Orientação pelos Astros e Estrelas – Geogra-
s

fia” do “Brasil Escola” 18. Nele mostra-se a regra na qual se deve, suposta-
ver

mente, apontar a mão direita para o Sol nascente e menciona-se, sem mais
detalhes, que à noite devemos nos servir das estrelas para as orientações
18 Os dois maus exemplos citados estão disponíveis em Colaweb, “Meios de Orientação e Localização – Orientação
pelo Cruzeiro do Sul” https://www.coladaweb.com/geografia/meios-orientacao-localizacao e em Brasil Escola
https://m.brasilescola.uol.com.br/amp/geografia/orientacao-pelos-astros-estrelas.htm. Acesso em: 18 jul. 2019.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 143

espaciais. O subtítulo nesse site também causa estranheza: “A orientação


pelos astros e estrelas é uma maneira primitiva de orientação geográfica”
[grifo do autor]. Pergunta-se então sobre o sentido dessa expressão maneira
“primitiva” ... Seria porque efetuada sem uma bússola? Seria uma orien-
tação por pessoas “primitivas”?! Quem são elas? Qual seria uma maneira
oposta à primitiva de orientação geográfica?! Existe? Seria necessária em

or
que contexto e com que precisão?!
Tratando-se de ciências, técnicas, práticas e experimentações, sabe-se

od V
que em geral, é o contexto no qual a experimentação se efetua e os objetivos

aut
a serem atingidos que devem se coadunar com a precisão, assim como com o
conjunto de métodos e os artefatos aos quais se recorrerá. Nada disso é mais

R
– ou menos – primitivo. Todos são modos de construir saberes locais apro-
priados aos contextos vivenciados ao longo do tempo pelas diferentes pes-

o
soas que compõem a diversidade sociocultural do planeta (GEERTZ, 1999;
aC
CAMPOS, 2002).
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Continuemos, agora com boas práticas nos céus do Sul onde, a partir do
Cruzeiro do Sul, encontra-se o polo sul celeste (PSC) e a partir dele deter-
mina-se a linha no sentido do sul geográfico a partir do observador, isto é, a
visã
linha meridiana local sul-norte. O processo não é tão direto quanto na busca
do norte a partir da Estrela Polar, pois esta é afortunadamente coincidente com
o PNC. Essa coincidência leva algumas populações indígenas da América do
itor

Norte a chamá-la “estrela que nunca se move”19.


a re

Circulando a certa distância em torno do PSC, o Cruzeiro do Sul em


seu movimento em torno do PSC observa-se as duas estrelas do braço menor
da cruz precedidas por duas outras da constelação Centauro denominadas α
e β Centauri. Essas quatro estrelas situam-se inscritas num mesmo círculo
par

imaginário cujo centro é o PSC. Basta imaginar as mediatrizes dessas duas


semirretas se prolongando e cruzando-se no centro do círculo que teremos
Ed

encontrado nesse ponto central o PSC. Consequentemente a vertical a partir


do PSC nos define no horizonte o sentido do sul e assim a direção sul-norte
do meridiano local. Detalhes sobre SULeamento e outros conhecimentos
ão

19 Esse “nunca” é relativo pois um dos movimentos da Terra é o de Precessão do eixo polar, análogo a um
s

peão quando vai perdendo energia sendo o eixo do mesmo não mais vertical. Portanto o eixo polar – apesar
ver

hoje e até um futuro muito longínquo ainda apontar para a Polar – inscreve lentamente um círculo no céu
de tal modo que passados muitíssimos anos, a Estrela Polar não será mais polar. O período de uma volta
completa do “peão” é de cerca de 26.000 anos. Desse modo, quando o eixo polar não mais apontar com
boa aproximação para a Estrela Polar um enorme número de gerações já terá se adiantado sobre as que
vivem atualmente no Planeta. Em dois níveis, respectivamente introdutório e mais avançado recomenda-se
as discussões de: 1) “Precessão” http://www.cienciaviva.pt/rede/space/home/anexo3.asp>. 2) “Precessão
do Eixo da Terra” http://astro.if.ufrgs.br/fordif/node8.htm. Acesso em: 28 jul. 2019
144

sobre o Cruzeiro do Sul são apresentados por Tamires Cristina de Souza no


site “O Jardim do Céu na Terra”20 (USP/SC, SP).
Em viagens para o Hemisfério Norte – pelo menos, do que se conhece
entre brasileiros – e na volta “lá de cima”, os viajantes sempre chegam com
relatos de desorientação e inferioridade diante da maior competência dos
habitantes do Hemisfério Norte em tomar seus rumos certos. Claro! Os de lá
têm uma educação apropriada ao Hemisfério no qual vivem – os daqui não!

or
Dificuldades enquanto pedestres no reticulado N-S e L-W das ruas de New

od V
York são um bom exemplo do literal desnorteamento.

aut
Da orientação espacial à ideologia e à geopolítica

R
A proposta SULear surgiu da contestação sobre as formas estrangei-
ras que nos chegam do Norte desorientando os modos de vivenciar e ler o

o
mundo nesse Sul de nossos lugares e espaços – espaços estes por nós cons-
aC

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truídos socialmente (CERTEAU, 1998)21. Sofremos interferências espúrias
pela importação pura e simples de concepções, práticas e regras práticas
socialmente construídas nos espaços do Norte e a eles apropriadas. Tudo isso
visã
é inadvertidamente ensinado como se fossem dados científicos de forma a
NORTEar os nossos lugares próprios do Sul. Com isso, nas escolas, a regra
da mão direita apontando o Sol nascente é mais um contrassenso que tipifica
um desarraigamento22 socioecológico dos nossos lugares do Sul.
itor

Essas questões sobre orientação espacial constantemente nos agridem


a re

pelo modo como são tratadas no ensino fundamental (alunos até cerca de 10
anos). Pelo menos na fase inicial da construção desses saberes no e para o
Sul é até importante que nos sintamos desNORTEados para o benefício de
uma educação contextualizada, problematizadora e, portanto, mais transfor-
par

madora na qual estaremos apropriadamente situados nos espaços e lugares


do Sul – SULeados.
Ed

Assim – uma vez desarraigados do Norte e arraigados ao Sul – nos apro-


priamos do termo ‘arraigamento ecológico’23 adotado por Alexandre Martins
ão

20 Ver a descrição dos procedimentos no site do Centro de Divulgação da Astronomia – Observatório Dietrich
Schiel do Centro de Divulgação Científica e Cultural (CDCC) da USP – Cruzeiro do Sul por Tamires Cristina
de Souza, disponível em http://www.cdcc.usp.br/cda/jct/cruzeiro-sul/index.html. Ver também “SULear vs
s

NORTEar. Orientações” em http://sulear.com.br/beta3/. Acesso em: 28 jul. 2019.


ver

21 Aqui nos referimos a Michel De Certeau na sua discussão sobre “Espaços” e “lugares” (1998, p. 201): o lugar é
aquilo que tem o seu próprio (como uma a caixa de correio própria de alguém) enquanto espaço é socialmente
construído. Ver também o livro ‘Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência’ por Y-Fu Tuan (1983).
22 Segundo o Houaiss a adequação do termo é garantida: “1. germinar ou fazer germinar (a planta), pela
fixação da raiz; 2) estabelecer(-se), assentar(-se), firmar(-se) de maneira definitiva ou profunda
23 A noção de arraigamento ecológico foi elaborada por Alexandre Martins de Araújo durante seus estudos sobre
os processos de migração e adaptabilidade, envolvendo populações rurais que ocupam regiões periféricas de
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 145

de Araújo presente como coautor num dos textos desse Dossiê SULear. Perce-
be-se, em adição, que arraigamento ecológico parece se articular bem com as
ideias da ‘ecologia social’ numa abordagem, com origem desde os anos 1990,
por Becker et al. (1997) do qual é importante trazer algumas defesas que
justificam essa proposta:

Although studies in ecological economics and social ecology focus on

or
different aspects of the society/nature relationship, growing awareness

od V
of social activities outside the market economy, in terms of “social sus-
taining functions” (as analogous to “ecological sustaining functions”) ...,

aut
or to institutional aspects within Ecological Economics, might indicate
a common emerging tendency. It remains to be seen, however, whether

R
these tendencies will result in the emergence of a single transdisciplinary
model of sustainability research, or whether a stimulating multiplicity of

o
cooperating approaches will emerge (BECKER et al., 1997, p. 45).
The decisive reason yet is related to an original scientific challenge. This
aC
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challenge consists in making the understanding of social-ecological sys-


tems the core cognitive interest of research for sustainable development
(JAHN et al., 2011).
During the last decade, the concept of social-ecological systems (SES)
visã
has become central to an increasingly widespread international discourse
on human/nature interactions (BECKER, 2012, p. 1).
itor

As consequências geopolíticas, socioculturais e ideológicas que decor-


a re

rem dessas considerações das regras práticas importadas são evidentemente


preocupantes. Há inúmeras repercussões do Norte sobre modos de vida, lei-
turas do mundo e modos norteados de (mal)educar no Sul (CAMPOS, 2015;
ROIG, 2002; CAMPOS, 1999). “El Sur también existe”24, poesia do uruguaio
Mario Benedetti musicada pelo catalão Joan Manuel Serrat, assim como a
par

composição “Si el Norte fuera el Sur” do guatemalteco Ricardo Arjona são


Ed

contundentes e exemplares nesse sentido25.

Goiânia. Em tais estudos, o autor concebe o arraigamento ecológico como sendo o conjunto de estratégias
ão

adaptativas, historicamente conquistadas, por meio de experiências coletivas, em situações de enfrentamento


às perturbações do meio. Projeto Reativar: agroecologias e intercultualidades https://nuhai.historia.ufg.br.
24 Sugerimos assistir a tradução e leitura em português por Demétrio Xavier de “O Sul Também Existe”, poema
de Benedetti. Demétrio é um competente radialista, músico e antropólogo porto-alegrense, especializado na
s

música crioula do Uruguai e da Argentina. Ele era o âncora do programa “Cantos do Sul da Terra” na Rádio
ver

Cultura FM de Porto Alegre até a extinção da Fundação Piratini em 30/5/2018. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=sLLdw5btNGc>. Acesso em: 7 ago. 2019.
25 Mario Benedetti, El Sur también Existe. Disponível em: http://www.poemas-del-alma.com/mario-benedetti-
-el-sur-tambien-existe.htm> e composta e cantada por Joan Manuel Serrat em: https://www.youtube.com/
watch?v=1ZF6fHU-zEY. Acesso em: 8 maio 2016. A poesia em texto se encontra em BENEDETTI, Mario. El
Sur también existe. In: Preguntas al azar (poesía), Buenos Aires: Seix Barral, 1993. p. 167-171. A composição
de Ricardo Arjona Si el Norte fuera el Sur (CD, CDPL 485254, Columbia, distr. Sony Music, México) intitula
146

Ao orgulho latino-americano do que se compreende por Sul/Sur junta-se


a eterna resistência do Sul/Sur no pensamento decolonial através da bela ironia
de Mario Benedetti. Na Figura 3 preparamos uma distribuição dessa poesia
na alternância Norte/Sul ou acima/abaixo entre os Hemisférios:

Figura 3 – El Sur tabiém existe – Mario Benedetti

or
El Sur También Existe
Mario Benedetti

od V
Con su ritual de acero, con sus predicadores, con su corno francés

aut
sus grandes chimeneas, sus gases que envenenan, y su academia sueca,
sus sabios clandestinos, su escuela de chicago, su salsa americana
su canto de sirenas,
sus cielos de neón,
sus ventas navideñas,
R
sus dueños de la tierra,
con sus trapos de lujo
y su pobre osamenta,
y sus llaves inglesas,
con todos su misiles
y sus enciclopedias,

o
su culto de dios padre sus defensas gastadas, su guerra de galaxias
y de las charreteras, sus gastos de defensa, y su saña opulenta,
aC

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con sus llaves del reino, con su gesta invasora, con todos sus laureles,
el norte es el que ordena. el norte es el que ordena. el norte es el que ordena.

pero aquí abajo, abajo, pero aquí abajo, abajo, pero aquí abajo, abajo,
visã
el hambre disponible, cada uno en su escondite, cerca de las raíces,
recurre al fruto amargo hay hombres y mujeres es donde la memoria
de lo que otros deciden, que saben a qué asirse, ningún recuerdo omite,
mientras el tiempo pasa aprovechando el sol y hay quienes se desmueren
y pasan los desfiles, y también los eclipses, y hay quienes se desviven,
itor

y se hacen otras cosas apartando lo inútil y así entre todos logran


a re

que el norte no prohibe, y usando lo que sirve, lo que era un imposible


con su esperanza dura, con su fe veterana, que todo el mundo sepa,
el sur, el sur también existe el sur también existe que el sur también existe

Fonte: SULear/Curtas http://sulear.com.br/beta3/curtas/.


par

Arturo Andrés Roig, filósofo e historiador argentino, ao “Pensar La


Ed

mundialización desde el Sur” (2002) denuncia a globalização como “la cara


siniestra del actual proceso de mundializacion”:
ão

Las palabras “Norte” y “Sur” no son únicamente categorías geográficas,


son también y principalmente categorías culturales y políticas. Su conte-
nido semántico, organizado sobre posiciones axiológicas, ha sido expresión
s

de una de las tantas dicotomías sobre las que se ha montado y se monta la


ver

mirada colonialista del mundo occidental (ROIG, 2002, p. 15).

o CD e está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=W6TrGIYTaKI&index=5&list=PLo0l0zPRu


U2ObNpQCVx9UncFaP4M51_yK. Acesso em: 8 maio 2016. Letra disponível em: http://www.musica.com/
letras.asp?letra=93672. Acesso em: 8 maio 2016.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 147

Roig nos ajuda a pensar também na ironia de Ricardo Arjona – “Se o


Norte fosse o Sul” – uma vez que este guatemalteco e, portanto, originário
de latitude Norte, se coloca ideologicamente na perspectiva de um SULista,
assumindo o Sul, não uma categoria unicamente geográfica, mas também
cultural, geopolítica e ideológica.
Mariano Baez Landa, antropólogo no CIESAS – Golfo (Centro de Inves-
tigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social, Xalapa, México)

or
bem familiarizado com o Brasil, traz um interessante comentário sob essa

od V
mesma argumentação:

aut
O SUL não é somente um referente histórico e geográfico, mas pode
converter-se numa ferramenta para produzir conhecimentos diferentes e

R
relações sociais, interculturais, simétricas, emancipadoras dentro da diver-
sidade humana. Construir esse SUL, evitando qualquer tipo de hegemonia

o
e relações de poder, implica pensar para além das etnias, as culturas, as
aC
raças, as religiões, as fronteiras e conviver com a grande diversidade
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humana. Pensamos um SUL que não só localiza povos inteiros geografica-


mente, como também engloba aqueles que vivem numa condição marginal
e subalterna dentro do próprio Hemisfério Norte.26
visã

O SULear como “ferramenta emancipatória” para todos os povos sub-


metidos à “hegemonia eurocentrada”, e não só para aqueles localizados no
hemisfério Sul, encontra ressonância nos trabalhos de Anibal Quijano (2005)
itor

e de Júlio Roberto de Souza Pinto e Walter Mignolo (2015), para os quais:


a re

La formación de relaciones sociales fundadas en dicha idea (raza), produjo


en América identidades sociales históricamente nuevas: indios, negros y
mestizos y redefinió otras. Así términos como español y portugués, más
par

tarde europeo, que hasta entonces indicaban solamente procedencia geo-


gráfica o país de origen, desde entonces cobraron también, en referencia a
Ed

las nuevas identidades, una connotación racial. Y en la medida en que las


relaciones sociales que estaban configurándose eran relaciones de domi-
nación, tales identidades fueron asociadas a las jerarquías, lugares y roles
ão

sociales correspondientes, como constitutivas de ellas y, en consecuencia,


al patrón de dominación colonial que se imponía. En otros términos, raza
e identidad racial fueron establecidas como instrumentos de clasificación
s

social básica de la población (QUIJANO, 2005, p. 202).


ver

Sob uma retórica primeiramente salvacionista, depois civilizatória e


finalmente desenvolvimentista, povos e etnias posicionadas na periferia

26 Mariano Baez Landa. Ver “Buscando um Norte às avessas” em http://sulear.com.br/beta3/#3. Texto original
em: Buscando Un SUR Epistémico. Propuestas para GT-CLACSO – Experiencias de Frontera. Contextos
social, político y epistemológico. Bogotá, (mimeo). 2016.
148

do novo centro do mundo, inclusive antigos impérios, em diferentes


graus, têm sido desapropriados de suas terras; têm visto suas cosmolo-
gias, manifestações artísticas, ciências e tecnologias, formas de orga-
nização econômica e política serem reduzidas a superstições, mitos,
folclores, tradições irracionais e idiossincrasias, quando não são total-
mente suprimidas. Sob uma retórica emancipatória, povos e etnias peri-
ferizadas têm sido destituídas de sua subjetividade e dignidade (PINTO;

or
MIGNOLO, 2015 p. 289).

od V
Globos terrestres onde o Sul passa ao largo – ou abaixo

aut
A impropriedade da regra corporal norteada de orientação se repete no

R
uso de artefatos importados, ou mesmo fabricados no Sul, como globos ter-
restres, planisférios27 e mapas de menor escala encontráveis no comercio e

o
nas escolas.
Como sabemos – embora valha a pena insistir – o globo representa o
aC

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Planeta como uma esfera sobre a qual temos que imaginar que quem estiver
de pé no chão, (direção vertical) deve se pensar representado também na dire-
ção vertical de pé sobre o globo e alinhado da cabeça aos pés até o centro da
visã
Terra, para o nadir . O sentido oposto aponta para o alto, ou seja, para o zênite.
Desse modo temos que pensar o solo onde pisamos como um plano
horizontal (plano do nosso horizonte) que seja tangente ao ponto do Planeta
(lugar) em que nos situamos: no Rio de Janeiro, por exemplo. Nesse caso, isto
itor

significa que se o globo puder girar em todas as direções, poderemos dispô-lo


a re

de tal modo que o plano no qual pisamos pode ser pensado como paralelo
ao plano horizontal imaginado que tangencia o globo no nosso lugar. Assim
podemos pensar na analogia pela qual estamos tão de pé no nosso chão como
no nosso “chão” correspondente e imaginado sobre o globo. Se nos represen-
par

tarmo-nos com a ajuda de um boneco no globo, este estará paralelo a nós de


pé no seu “chão” do globo, e como nós, apontando da cabeça aos pés para o
Ed

centro da Terra ou do globo.


Evidentemente, a experiência descrita acima se realiza com dificuldade
nos globos convencionais. Estes são montados num suporte que apesar de
ão

permitir gira-lo, dificulta a operação de assemelhar ou representar o nosso


horizonte em coerência com o horizonte no globo. Nesse caso, um puro e
simples “globo bola” seria mais conveniente. Ou pode-se também retirar o
s

globo da montagem e utilizar simplesmente a bola. Existem alguns globos


ver

infláveis sem a montagem, apenas como uma bola.


Outro inconveniente é que os globos se representam, em geral, com o
Norte para cima numa convenção enganosa como se fosse sempre visto de

27 Planisfério é um mapa que representa um globo (terrestre ou celeste) em um plano retangular.


PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 149

fora da Terra mantendo-o com o Norte acima. Nesse caso, sabemos que esse
olhar é semelhante ao de um astronauta no espaço para quem, na ausência de
gravidade, não existe nem acima, nem abaixo.
Uma alternativa interessante são os globos antigos que apesar de mais
engenhosos e caros, permitem, não só representar o movimento de rotação,
como também girar os planos meridianos (N-S) de modo que o eixo polar
aponte em qualquer direção. Com isso podemos representar o nosso horizonte

or
no chão e no globo simultaneamente. O globo da Figura 4 é desse tipo antigo.

od V
Em qualquer lugar do mundo podemos representar nosso horizonte como um

aut
plano paralelo àquele no qual estamos de pé.

R
Figura 4 – Globo terrestre antigo com dois movimentos nas direções
dos paralelos e dos meridianos. O globo gira em torno do eixo polar e
complementarmente o anel meridiano pode completar 360º. Globo terrestre, 1829

o
aC
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visã
itor
a re
par

Fonte: https://sigarra.up.pt/fcup/pt/web_base.gera_pagina?p_pagina=1019888.
Ed

A essa altura, vocês devem estar se perguntando: Por que todo


esse detalhamento?
ão

Esses detalhes fazem sentido devido aos prejuízos à construção de saberes


e práticas decorrentes dos globos e mapas “convencionalmente” NORTEados
s

disponíveis no comércio e presentes – embora raramente usados – nas escolas.


ver

Estes têm uma base no Sul embaixo que mantem o Norte acima.
Assumindo o globo terrestre como um modelo conveniente para o nosso
Planeta, pode-se pensar que dele são gerados os mapas – representações planas
do globo ou de partes do globo. Sua elaboração pode envolver vários tipos
de projeção para representar a esfericidade do globo num plano ou folha de
150

papel. Numa delas, imaginando-se o globo encaixado num tubo cilíndrico,


pode-se pensar na esfera abrindo-se em gomos sobre o cilindro que pode ser
aberto na forma de um plano como na Figura 5.

Figura 5 – Projeção das “cascas” dos gomos de uma esfera sobre um plano

or
od V
aut
R
o
O mapa à direita é obtido
aC
pela divisão da Terra em gomos

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Fonte: Formas de representação da superfície terrestre. Disponível em: http://
pt.slideshare.net/paula.tomaz/formas-de-representao-da-superfcie-terrestre.
visã
A partir destes gomos planificados percebe-se que resta uma operação
para se chegar ao planisfério (mapa retangular plano) abrindo-se os gomos
pelas pontas polares mostradas na Figura 5. Com isso o mapa obtido mostrará
itor

uma deformação das superfícies do globo com áreas crescentes na direção


a re

dos polos Norte e Sul. Por isso, nos planisférios desta projeção, a Groenlândia
aparece tão grande.
Uma das soluções para este problema veio com uma antiga publicação
de James Gall28 em 1885 que só foi reconsiderada em 1973 pelo historiador
alemão Arno Peters29 e por isso passou a ser conhecida como a Projeção de
par

Gall-Peters. Uma redução dos intervalos entre paralelos e meridianos permi-


Ed

tiu uma reprodução das áreas reais dos continentes, apesar da dos contornos
dos mesmos perecerem deformados em relação ao que nos habituamos a ver
(SEEMANN, 2003). 
ão

Adriano Scalzitti (2012) cita a geógrafa da USP Maria Elena Ramos


Simielli mostrando na sua publicação dois tipos de planisfério nas projeções
de Peters e a de Mercator30. A figura 6 invertida mostra apenas a projeção de
s

Peters com o Hemisfério Norte abaixo na folha.


ver

28 GALL, James. Use of cylindrical projections for geographical, astronomical, and scientific purposes. Scottish
Geographical Magazine, v. 1, n. 4, p. 119-123, 1885.
29 Arno Peters: Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Arno_Peters. Acessso em: 7 maio 2016.
30 Projeção de Mercator: Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Proje%C3%A7%C3%A3o_de_Mercator.
Acesso em: 7 maio 2016.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 151

Simielli (1996, p. 184) dispôs o mundo de “ponta cabeça”, propondo assim


mais um elemento para discussão da questão da superioridade do hemis-
fério norte atribuída à sua ação colonial no hemisfério sul. É interessante
lembrar que a proposta de Peters estava inserida no contexto geopolítico
da Guerra Fria (SIMIELLI, 1996, p. 184 apud SCALZITTI, 2012, p. 86).

or
Figura 6 – projeção de Peters com o planisfério invertido

od V
aut
CARTA DO MUNDO
PROJEÇÃO DE PETERS
OCEANO

R
ÍNDICO

o
aC
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OCEANO
PACÍFICO
OCEANO
ATLÂNTICO
visã
itor
a re

Fonte: Simielli (1996, p. 184) apud Scalzitti (2012, p. 86).

Diante da opção do mapa invertido S-N, pode-se ainda salientar que os


globos terrestres usuais com o Norte para cima e a estrutura de sustentação
com bases (pés) impõem, a nós do Hemisfério Sul, a contorção já mencio-
par

nada para vermos o nosso Sul na parte de baixo do globo. O agravante é


Ed

que se estabelece uma confusão entre nossos pés e o “pé” ou base do globo.
Em pé ficamos nós, terráqueos, alinhados ao longo de uma vertical que vai
da nossa cabeça aos pés e ao centro da Terra. O “pé” do Globo nada tem
ão

a ver com essa discussão e também com os globos e mapas que aqui nos
apresentam norteados e que apenas conservam o inconsequente status quo
do Norte acima.
s

São mais apropriados os globos sem base de sustentação e infláveis,


ver

podendo essa bola girar em todas as direções garantindo que nos represen-
temos coerentemente entre o chão que pisamos e o local correspondente do
globo onde estivermos.
No filme “O Grande Ditador” (“The Great Dictator”, 1940), o diretor/
ator Charles Chaplin baila e brinca com um globo inflável lançando-o em
152

todas as direções (Figura 7). O bailado é lindo, mas causa certa decepção
uma vez que o globo se comporta como um joão-bobo31, pois lhe colocaram
um contrapeso no polo Sul, o que faz com que ao longo de toda a cena,
o Norte sempre aponte para cima e assim é preservada a hegemonia do
Norte32. Chaplin, extremamente crítico e de esquerda, teria deixado passar
esta representação intencionalmente hegemônica, ainda que estivéssemos
nos anos 40?! Coisas da produção?

or
od V
Figura 7 – Chaplin no filme “O Grande Ditador” (1940)

aut
R
o
aC

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visã
itor
a re

Fonte: https://cdn.quotesgram.com/img/37/78/1553147971-
The_Great_Dictator_globe_scene_big.jpg
par

Mapas terrestres e suas contradições: Norte/Sul e acima/abaixo


Ed

Diante da hegemonia do Norte representada nos globos terrestres, os


mapas não ficam atrás e a discussão a seguir evidencia um problema que nos
ão

remeterá novamente aos globos terrestres.


Mapas representam espaços e lugares do Planeta em diferentes esca-
s

las. Queremos problematizar sobre a forma como os nomes desses lugares


ver

(mares, continentes, países, cidades) são inscritos sob a forma de um texto


que os nomeia, mas quando impresso sobre o mapa, apesar de útil no

31 João-bobo (português BR) ou sempre-em-pé (português europeu); tentetieso ou tentempié (espanhol);


culbuto (francês); roly-poly toy ou round-bottomed dol (inglês).
32 Chaplin na cena do bailado. Disponível em: https://youtu.be/IJOuoyoMhj8. Acesso em: 12 set. 2019.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 153

fornecimento dos nomes, pode nos dificultar o uso e a compreensão. Nos


mapas e globos ocorre uma superposição de dois elementos totalmente
independentes entre si. Por um lado, um texto que apenas nomeia os aci-
dentes geográficos sobre a superfície terrestre. Por outro, temos a própria
representação da superfície com seus acidentes, num conjunto que, quando
em maior escala, nos leva ao globo. O problema é que o texto superposto

or
sobre mapas e globos é organizado e uniforme para uma leitura de cima
para baixo entre o início e o final do texto numa folha. Com isso, uma

od V
vez que o texto está aplicado sobre o mapa, somos levados a associar o

aut
acima/abaixo do texto, da mesma forma ao lugar do mapa onde o mesmo
foi superposto. Essa superposição – com raríssimas exceções – nos con-

R
diciona a uma falsa percepção de que o acima/abaixo do texto está para o
acima/abaixo do mapa, assim como Norte/Sul está para superior/inferior,

o
ou seja, uma razão que pode nos induzir a uma inferioridade relativa ao
aC
Norte acima, superior.
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Tanto no caso dos globos, como no caso dos mapas, o texto referido
distribui-se ordenadamente entre o alto e o baixo e, em consequência, suges-
tiona a antinomia alto/baixo que passa a ser assumida como Norte/Sul no
visã
território representado.
Para nos orientarmos a pé ou de carro numa cidade usamos mapas cujas
escalas estão na relação em torno de 1:10.000, de tal modo que se pode ver
itor

as ruas com seus nomes distribuídos ao longo delas, evidentemente, em todas


a re

as direções. Esses mapas devem em geral ser utilizados no plano horizontal


e os nomes alinham-se pelas ruas percorridas pelo usuário. Isso representa
uma salutar exceção, pois em outras escalas33 em torno de 1:1.000.000 onde
as representações das cidades se reduzem apenas a pontos sobre o mapa,
par

os nomes de cidades, países e acidentes geográficos passam a ser inscritos


sobre o mapa como um texto ordenado segundo a proporção ‘acima : abaixo
Ed

:: Norte : Sul’ ou ‘(acima/abaixo) = (Norte/Sul)’. Nesse caso, o mapa passa


a ser decorativo e mal utilizado, pois nessa escala ele, em geral, passa a ser
pendurado nas paredes. Nesse momento torna-se difícil usar conveniente-
ão

mente o mapa e apontar os sentidos em que estarão cidades e países distantes


do nosso entorno. Para isso o mapa deveria voltar ao plano horizontal e
s

orientado por uma bússola ou recurso equivalente para que os sentidos dos
pontos cardeais (ou dos paralelos e meridianos) no mapa coincidam com
ver

os do local em que estamos.

33 Sobre escalas, ver IBGE, Conceitos gerais. O que é cartografia? Escala. Atlas Geográfico Escolar na
Internet, 2019. Disponível em: https://atlasescolar.ibge.gov.br/conceitos-gerais/o-que-e-cartografia/escala.
html. Acesso em: 15 set. 2119.
154

Cabe lembrar o pioneirismo da Austrália no estudo, produção e comer-


cialização de mapas invertidos cujos termos originais variam como: Upside
Down map, South-Up map e Reversed map34.
No caso do globo – ao contrário do que poderiam esperar os que vivem
no Sul – o texto indicador de lugares nos dois Hemisférios é alinhado hori-
zontalmente e superposto ao globo para ser lido a partir do Norte. Daí se

or
inicia a leitura na parte superior do texto. Isto nos induz a assumir o Norte
em cima, e assim o lado superior será sempre o Norte para qualquer dos dois

od V
Hemisférios examinados. Coisas da hegemonia...

aut
Joaquin Torres Garcia, artista plástico e intelectual uruguaio, defendeu
excelentes pontos de vista através de A Escola do Sul (La Escuela del Sur)

R
e, já em 1935, foi um crítico perspicaz dos problemas discutidos no presente
texto. Associado ao seu famoso desenho (Figura 8) ele produziu um texto

o
contendo este importante trecho:
aC

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Uma importante escola de arte teve que ser criada aqui em nosso país.
Digo sem nenhuma hesitação: aqui em nosso país. E tenho mil razões
para afirmá-lo.
visã
Disse Escola do Sul, porque em realidade, nosso Norte é o Sul. Não deve
haver norte, para nós, a não ser por oposição ao nosso Sul.
Por isso, agora colocamos o mapa ao inverso e então temos justa ideia
da nossa posição, e não como querem no resto do mundo. A ponta da
itor

América, desde já, prolongando-se, assinala insistentemente o Sul, nosso


a re

Norte. Igualmente a nossa bússola: inclina-se imperdoavelmente sempre


para o Sul, para o nosso polo.
Os navios, quando partem daqui, descem, não sobem como antes, a fim
de partirem para o norte. Porque o Norte agora está abaixo. O nascente,
par

posicionando-nos de frente para o nosso sul, está à nossa esquerda.


Esta retificação era necessária; por isso agora nós sabemos onde estamos
Ed

(TORRES-GARCÍA, 1992, p. 53)35.

Após a crítica à regra apenas prática para o Norte é um prazer ter a cor-
ão

roboração de Torres-García: “O nascente, posicionando-nos de frente para o


nosso sul, está à nossa esquerda”.
s
ver

34 South-up map orientation: https://en.wikipedia.org/wiki/South-up_map_orientation. The Upsidedown Map


Page. It needn’t be a Eurocentric world: https://www.flourish.org/upsidedownmap/.
35 É sabido que o texto editado por Ramirez foi publicado em TORRES-GARCÍA, Joaquín. Universalismo
Constructivo. Buenos Aires: Ed. Poseidón, 1941 que é uma publicação difícil de encontrar.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 155

Figura 8 – mapa invertido da América – Joaquín Torres García

or
od V
aut
R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
Fonte: Torres-García (1992).
itor

O Norte/Sul, acima/abaixo marcado em desenhos infantis


a re

Em trabalhos e oficinas com professores, já presenciamos absurdos e


descasos com respeito ao uso do Sol em suas diversas posições como recurso
de orientação. Por exemplo, um dos absurdos foi o de supor-se que o sentido
norte está diretamente à nossa frente como se tivéssemos uma seta colada na
par

testa, apontando constantemente para o norte qualquer que fosse o sentido


para o qual nos virássemos.
Ed

No que se refere ao planeta Terra e o sistema solar, percebe-se bastante


confusão entre as representações do Planeta como globo esférico, círculo e cir-
cunferência. Pela dificuldade de representar-se de pé sobre um globo, às vezes,
ão

parece mais fácil substituí-lo por um horizonte como um disco sobre o qual é
mais aceitável estarmos todos de pé. Nas escolas, alguns professores falam de
s

um mundo “redondo” sem que indiquem com precisão a que figura geométrica
ver

– círculo, esfera ou cilindro – o termo redondo corresponde ou significa36.

36 Sabe-se que redondo, tanto pode se referir a circular quanto a esférico e até mesmo a qualquer secção
circular de um sólido como um cilindro. Esse último caso parece até favorecer a cosmovisão de uma terra
(horizonte) situada numa superfície plana de base cilíndrica como é o caso da representação do mundo pelos
Warao da Venezuela (Wilbert 1981). Ainda que sem a perspectiva de SULear-se, discussões interessantes
156

Essas confusões parecem contribuir para que não seja formado um sistema
coerente de leituras e compreensões do mundo em que vivemos. São confun-
didos os distintos referenciais de percepção do sistema solar (topocêntrico,
geocêntrico, heliocêntrico, galáctico etc.), quando cada um deles deveria ser
compreendido como válido para um determinado contexto de observação, cál-
culo ou análise. A má formação que temos sobre a noção de referencial gera,
muitas vezes, a crença de que o “Sol como centro de tudo” deve ser aceito como

or
verdade absoluta – uma vez que Copernicus dixit – impedindo assim que se
admita – como Einstein – a relatividade dos referenciais. Isto ocorre também

od V
no ambiente escolar e traz grandes dificuldades. Trarão também entraves para

aut
quem mais tarde vier a realizar algum trabalho de cunho etnográfico sobre
saberes das relações céu-terra entre indígenas. Estes sabem construir um sistema

R
coerente de saberes e práticas partindo do referencial topocêntrico. Referencial
esse não só ausente da escola como também até mesmo na academia — fora

o
dos cursos de astronomia — trata-se pouco do uso do referencial topocêntrico
aC
para entender os movimentos relativos ao sistema Sol-Terra-Lua.

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A não ser que estejamos astronautas, o estar topocentrado é o único
recurso pelo qual podemos ver os astros como se todos fossem “trazidos” para
uma esfera celeste imaginária centrada na Terra – geocêntrica. O que vemos
visã
a partir do nosso horizonte topocêntrico são os astros num setor dessa esfera,
numa calota, a abóbada celeste como indicado no lado direito na Figura 9.

Figura 9 – de um ponto no globo (concêntrico com a esfera celeste) até a


itor

representação desse ponto no referencial (topocêntrico) do horizonte


a re

PÓLO
NORTE Z
CELESTE
PÓLO
EIXO DE ROTAÇÃO

CELESTE
EQ LEST
CE

SUL
UA E
DO
par

PÓLO
NORTE
L
Ed

S
EQUA
DOR N
O
ão

PÓLO
SUL
s
ver

PÓLO
SUL
CELESTE

Fonte: Saraiva; Oliveira Filho (2010).

sobre a forma da Terra como entendida por crianças, aparecem num livro de orientação para a prática
pedagógica com o Globo em sala de aula (Schaffer 2003: 43) e num texto de Nussbaum (1985).
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 157

Essas ideias ficam tão arraigadas e reforçadas pelo globo terrestre “de
pé” com o Sul para baixo, que interferem fortemente nas conotações culturais
e políticas do “Sul”.
O que é impressionante é que mesmo para crianças do hemisfério Norte,
o fato delas verem com muita frequência o globo com pé/base e com o Sul
para baixo, gera com frequência muitas concepções enganosas.
Joseph Nussbaum (1985) fez uma pesquisa sobre o que e como crianças

or
concebem vários tipos de fenômenos no Planeta Terra. As entrevistas se rea-

od V
lizaram com crianças entre 8 e 14 anos de idade em Nova Iorque, Califórnia,

aut
Israel e Nepal, ou seja, sempre em latitudes do Norte entre os paralelos de 30º
e 45ºN. Fora outras considerações interessantes, fixemo-nos sobre respostas
típicas dessas crianças que sustentam a noção de que pedras lançadas

R
sempre “saem para cima”. Isto é, elas não usam a Terra como referencial
das direções alto-baixo alinhadas com o centro do Planeta e em conformidade

o
com as leis da gravidade. Ao contrário, em geral é assumida a existência de
aC
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uma outra direção ‘alto-baixo’, mas nesse caso, trata-se de uma direção abso-
luta, independente da Terra e de sua atração gravitacional, presente no espaço
cósmico como mostra a Figura 10 (NUSSBAUM, 1985, p. 183). Parece crer
numa direção “vertical” paralela à direção norte-sul do eixo polar terrestre.
visã

Figura 10 – respostas típicas de crianças: pedras lançadas “saem


para cima”. O pontilhado é o céu que rodeia a Terra
itor
a re
par
Ed
ão

Fonte: Nussbaum (1985, p. 183).


s

Fora o lançamento de pedras, Nussbaum (1985) pesquisando com crian-


ver

ças no Hemisfério Norte na sua relação com nosso Planeta, considera vários
outros exemplos nos quais pode-se notar que o globo terrestre mais conven-
cional – com “pé” (base de sustentação) e Norte para cima – desafia de forma
parecida, crianças dos dois hemisférios no seu enfrentamento dos “obstáculos
epistemológicos” (MIGNE, 1994; BACHELARD, 1970) ou dos desafios em
158

seus processos de construção do conhecimento37. Claro que sobre as crian-


ças do Hemisfério Sul, a condição de Sul em baixo ou inferior e marcada de
maneira muito mais forte nas suas leituras do mundo e nas elaborações de
concepções alternativas ou espontâneas:

Os conhecimentos que os alunos trazem para a sala de aula – as CAs [con-


cepções alternativas] – são construídos por eles desde o seu nascimento e

or
se fazem presentes no seu dia a dia, emergindo na sala de aula, momento

od V
em que os conceitos científicos estariam sendo inseridos no processo de

aut
ensino e aprendizagem (KRAUSE; SCHEID, 2018, p. 229).

Alguns desses problemas nas concepções sobre fenômenos relativos à

R
Terra, globos, mapas e ao entendimento do que seja “mundo” na sua polis-
semia, além disso, agravados pelo estar abaixo no Sul, foram abordados na

o
dissertação de mestrado em Educação Matemática por Sonia Clareto (1993).
aC
Numa perspectiva etnográfica, ela investigou alunos entre 8 e 12 anos de

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uma escola primária da praia de Camburi (Ubatuba, SP), pequena comuni-
dade de pescadores-agricultores (caiçaras) no litoral norte do Estado de São
Paulo (Brasil)38.
visã
Em seu trabalho de campo, Clareto pedia às crianças que representassem
por desenhos “o que é o mundo”, enquanto seguia dialogando sobre suas repre-
sentações entre visões de mundo e do cosmos nos domínios da natureza e do
itor

simbólico. Essas crianças viviam bastante isoladas das cidades maiores e por
a re

vezes, manifestavam alguma influência da proximidade de igrejas evangélicas


no local. Além disso, o fato de que muitos deles nunca saíram de seu local
de moradia se refletia na cosmovisão e nos desenhos como uma dificuldade
em pensar em pontos de vista mais gerais do que aquele lugar próprio de
par

suas vivências. Na figura 14 a seguir encontram-se alguns exemplos desses


desenhos recolhidos por Clareto.
Ed

37 É importante notar que uma concepção alternativa (espontânea) se assemelha ao obstáculo epistemológico
ão

que também para Bachelard não corresponde a um “erro”, noção essa muito presente na educação mais
tradicional (bancária, segundo Paulo Freire, conteudista e essencialmente de transmissão de conhecimento);
essa por oposição a uma educação dialógica, contextualizada e problematizadora na qual o saber se
s

constrói no diálogo professor-aluno. Para Bachelard “erro” é apenas um obstáculo ao conhecimento que
ver

ainda não foi devidamente enfrentado no processo cognitivo, não é erro do tipo apenas como “reflexo do
espírito cansado”.
38 Note-se que M. D. Campos foi o orientador de Clareto nessa dissertação de mestrado defendida no Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus
de Rio Claro (SP) em 1993. Caiçara é a denominação usada para pescadores-agricultores, em geral de
descendência europeia, que vivem no litoral Sul e Sudeste do Brasil. Para aspectos relativos a relações
céu-terra e referenciais espaciais entre caiçaras da ilha dos Búzios ver Campos (2005; 1982).
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 159

Figura 11 – Como é o mundo? Resposta desenhadas


pelas crianças da praia de Camburi

or
od V
aut
R
o
aC
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visã
itor
a re

Fonte: Clareto (1993).

Na Figura 11 observa-se em três desenhos (a, b e c) a frequência com


par

que o mar é representado quase fora do Planeta. Em geral, a criança do Sul


– e as vezes a do Norte também – se representa “em pé” dentro do globo
Ed

representado circularmente para estar em acordo com as partes de cima e


de baixo da folha de papel do desenho. Se o mar estiver contido no globo, o
solo aparece mais alto sob os pés e o mar mais abaixo. Assinalemos que para
ão

essas idades no intervalo de 8 a 12 anos, ainda não foi bem assimilada a noção
de perspectiva e, por isso, muitas vezes torna-se difícil para o pesquisador
distinguir se o que está sendo representado é uma distorção de uma visão da
s

Terra esférica ou uma representação plana propriamente dita.


ver

Um dos alunos (9 anos, 2ª série) representou o mar fora do círculo que


disse ser a Terra. Mencionou o Sol e o Japão – nosso antípoda – embora não
soubesse representar esse país no desenho. Disse: “Deus acende o Sol aqui e
apaga no Japão; depois, à noite, apaga o Sol aqui, acende as estrelas e acende
o Sol no Japão”.
160

O Globo com “prateleiras” na figura 11-b foi desenhado por uma aluna (10
anos, 2ª série) que enunciava condições socioeconômicas dos países representa-
dos, tais como, fome, pobreza, riqueza e condições habitacionais. Com relação
à distribuição geográfica dos países, ela comentou: “Eu sei que estou dividindo
errado, mas... é que eu quero representar o Brasil e São Paulo onde nós esta-
mos”. Note-se que o lugar “onde nós estamos” apareceu no limite inferior do
Globo com algum sombreado que representa o solo onde ela pisa, embora ainda

or
relativamente “próximo” do mar que foi desenhado fora do Planeta.

od V
Na figura 11-c o mar, o solo, a criança, as montanhas e o Sol foram

aut
desenhados dentro de um círculo e foi dito que vivemos dentro da Terra;
segundo a interpretação de Clareto, “num disco de raio máximo formado
pela intersecção da esfera com o plano ‘horizontal’”. Aqui, os problemas de

R
perspectiva foram superados pela informação do aluno (12 anos, 3ª série) de
que o disco correspondia ao seu horizonte.

o
A figura 11-d desenhada por uma menina (10 anos, 3ª série), mostra que
aC

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o mar abaixo e as casas acima também estão contidos na Terra. De fora da
Terra estão o Sol e dois outros globos. Acima da Terra está “um planeta ou
uma estrela” onde mora o ET (extraterrestre). Abaixo da Terra existe o mundo
que fica escondido que é “onde mora o bicho que é o diabo”.
visã
Sonia Clareto apresenta na sua dissertação comentários finais dos quais
selecionamos e resumimos alguns pertinentes a nossa discussão:
itor

• Não se percebe uniformidade de modelos cosmológicos entre as


a re

crianças. A forma da Terra é em geral, esférica ou circular, mas pode


também ser um quadrilátero. O movimento do Sol é quase sempre
associado à oposição noite-dia. Em alguns casos explica-se que à
noite o Sol se esconde por trás das montanhas e circula no plano
par

horizontal aparecendo de manhã no outro lado da montanha.


• Há muitos elementos advindos de uma visão mística e religiosa do
Ed

mundo com regiões especificamente reservadas para Deus, anjos


e o diabo.
• A marca do que se aprende na escola aparece com maior frequência
ão

relacionada às afirmações de que “a Terra é redonda” e, em geral,


preocupa mais a forma do que os conteúdos. Note-se que o uso do
termo redondo é uma das consequências da confusão entre globo e
s

horizonte associados respectivamente à esfera e ao círculo e também


ver

por vezes à circunferência.

Na escola a leitura do mundo da criança (sua vida fora da escola) é


ignorada e os conhecimentos transmitidos pela escola acabam sendo
vazios de significado para a criança, não propiciando que ela reflita sobre
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 161

o seu mundo. A releitura do mundo (a partir da escola) não ocorre e os


conhecimentos, estanques e distantes, não são incorporados ao seu mundo
(CLARETO, 1993, p. 264).

Os exemplos de Sônia Clareto são bastante ilustrativos das dificulda-


des impostas pela forma como nos são apresentados os globos terrestres,
sugerindo a coincidência do eixo da direção vertical Norte-Sul com um só

or
sentido do Norte para cima. No entanto, sabe-se das infinitas possibilidades
de verticais sobre o Planeta que se dirigem sempre no sentido do centro da

od V
Terra no horizonte em que estivermos com as coordenadas latitude e longitude

aut
do local. Nota-se nos desenhos que existe, em parte, certa confusão entre as
noções que se referem ao Planeta (globo) e o horizonte local com respeito a

R
referenciais, escalas e contextos correspondentes. Como já foi assinalada, esta
confusão pode não ser própria das crianças, mas pode ter origem na forma

o
como se ensina sobre mapas e globos na escola, muitas vezes recusando a
aC
discussão a partir do referencial de horizonte onde pisamos, desprezando o
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geocêntrico (próprio do globo e apenas imaginado ou calculado) e impondo


o referencial heliocêntrico como se fosse verdade absoluta e não relativa ao
ponto de vista imaginado.
visã
Recusando certas imposições inexplicáveis da escola como as regras de
orientação do Norte, crianças, numa rebeldia não muito consciente se permi-
tem viver no seu “horizonte” e construir – fora da escola e em contato íntimo
itor

com a natureza – suas cosmologias com base apenas em vivências do espaço


a re

local. Vivências essas que, provavelmente, entram em conflito com o que a


escola lhes transmite a esse respeito. A não ser que a educação seja baseada
no diálogo e que as aulas preparadas (estratégias) deem lugar ao recurso às
táticas dos diálogos em processo de constante de enfrentamento/superação
dos obstáculos ao conhecimento.
par
Ed

Considerações finais

No início deste texto insistimos sobre os pontos cardeais e nossa orien-


ão

tação no espaço no qual estamos situados. Vimos o quanto somos – nós do


Sul – prejudicados na nossa visão espacial e orientação por um ensino no qual
– mesmo que haja desejos de que seja dialógico e apropriado ao contexto local
s

– terá disponíveis, não só apresentações descontextualizadas e inapropriadas


ver

nos livros didáticos, como também artefatos de ensino-aprendizagem, como


globos e mapas, manufaturados a partir dos, e para servir aos, contextos e
práticas do Hemisfério Norte.
Uma revisão dos comportamentos no ensino, que permita a construção
local dos saberes e práticas, se faz necessária e poderia possibilitar a produção
162

local de artefatos úteis e utilizáveis, ao contrário dos que vêm do Norte e


servem, muitas vezes como ornamento empoeirado da sala da diretoria.
Os exemplos da construção dos saberes e práticas por sociedades indíge-
nas, pescadores e camponeses, assim como artesãos no meio urbano, deveriam
ser observados e traduzidos no sentido de possibilitar melhor construção do
saber na escola a partir de nossos contextos de vivência. Mas que seja de
vivência vivenciada e experimentada, problematizando sobre tudo que pode

or
parecer óbvio, embora muitas vezes seja enganoso por não termos aprofundado

od V
nossa problematização...Pensar sobre o óbvio não pensado!

aut
Saberes e práticas indígenas, assim como entre populações rurais e cos-
teiras, sempre trazem bons exemplos para nós do Sul que temos nos permitido
inutilmente nos NORTEar, em lugar de insistirmos sobre a importância de

R
pensarmos e agirmos tendo como ponto de partida nossos contextos locais
do Sul, ou mesmo do “Sul” mais simbólico, seguindo as reflexão de Arturo

o
Andrés Roig (2002) e Mariano Baez Landa16 (2016).
aC

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 163

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ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
PEDAGOGIAS E SABERES o
aut
DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA or
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Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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“APRENDO DAS ÁGUAS E DAS
MATAS, OS ENCANTADOS ESTÃO
ATÉ NO AR”: uma pedagogia decolonial

or
a partir da pajelança na Amazônia

od V
aut
Thaís Tavares Nogueira
Maria Betânia Barbosa Albuquerque

R
o
Introdução
aC
Estes escritos partem de um estudo acerca do processo educativo que
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perpassam as práticas de pajelança na ilha de Colares, localizada no nordeste


visã
paraense. Ao se destacar a presença de vários terreiros e pajés, objetivou-se
traçar um perfil pedagógico a partir de um lócus específico, o terreiro de São
Jorge, que tem como pajé o senhor Robson.
Ancoradas na perspectiva da história cultural, direcionamos o olhar para
itor

uma história do presente sem descurar dos processos políticos e sociais mais
a re

amplos acerca das tramas que compõem o universo de quem resiste e atua
em religiões de matriz afroindígenas. Em sintonia com a “história vista de
baixo” (SHARPE, 1992), foi possível dialogar com narrativas e trajetórias
de sujeitos até então subalternizados pela ciência moderna e lógica colonial,
par

como é o caso de pajés e suas práticas no terreiro, as quais mediam e circulam


saberes com significados diversos. Para tanto, enveredamos o diálogo por
Ed

olhares decoloniais, no intuito de compreender mais do campo e aprender a


partir de sujeitos de resistências.
Brandão (2002) entende a educação como cultura, que ocorre em diver-
ão

sos contextos, em práticas de construção do social e representação deste, não


havendo uma forma única de educar. Nessa perspectiva, a educação com-
preende as práticas que estão para além dos espaços escolarizados, como é o
s

caso do terreiro de pajelança, onde é possível observar uma prática educativa


ver

fundada na experiência, na atenção, em trocas culturais estabelecidas cotidia-


namente. Porém, seus sujeitos, representados aqui pelo pajé, ocupam um lugar
de subalternidade frente à uma concepção moderna de ciência, de educação,
onde seus saberes não encontram espaço de diálogo e reconhecimento. Logo,
é preciso que se compreenda a educação no terreiro de pajelança por meio
de uma lógica pedagógica diferenciada, considerando suas relações culturais,
políticas, de resistência.
172

Mota Neto (2016) faz apontamentos fundamentais na construção de uma


prática educativa na qual os sujeitos da história, até aqui silenciados e negados,
possam colaborar significativamente na proposição de uma pedagogia deco-
lonial, em que se reconheça a pluralidade de saberes dos povos colonizados e
“educados” aos moldes eurocêntricos e que, não apenas se passem a conhecer
tais saberes, mas a aprender e a dialogar com eles. Para o autor,

or
se o pensamento decolonial denota as práticas epistêmicas de reconhe-

od V
cimento e transgressão da colonialidade, que se produziram na América

aut
Latina e em outras regiões colonizadas como respostas à situação de
dominação, podemos dizer que a pedagogia decolonial refere-se às
teorias práticas de formação humana que capacitam os grupos subal-

R
ternos para a luta contra a lógica opressiva da modernidade/colonia-
lidade, tendo como horizonte a formação de um ser humano e de uma

o
sociedade livres, amorosos, justos e solidários (MOTA NETO, 2016,
p. 318 – grifo do autor).
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


As teorias acerca do pensamento decolonial partem de um grupo de
pensadores latino-americanos39 que questiona a hegemonia eurocêntrica de
visã
produção nas ciências humanas, em uma geopolítica do conhecimento inven-
tada pelos colonizadores europeus sob o nome de modernidade. Esse grupo
de pesquisadores levanta conceitos importantes para se pensar o processo de
itor

colonialismo que ocorreu nos países da América Latina e que tentou invisi-
bilizar os povos dessa região, bem como seus saberes, suas epistemes, sua
a re

história. As reflexões e trabalhos acerca desse pensamento partem da afirma-


tiva de que “a colonialidade é constitutiva da modernidade, e não derivativa”
(MIGNOLO, 2005, p. 36).
Assim, ao assumirem uma postura política de combate à colonialidade
par

presente na modernidade e toda forma de opressão, discriminação e silen-


ciamentos dos grupos subalternizados por ela, esses intelectuais passam a
Ed

formar um grupo de pesquisadores que atua no programa de investigación


de modernidad/colonialidad, ou seja, a partir de uma perspectiva teórica que
ão

busca não somente revelar esta outra face da modernidade, mas, principal-
mente, resistir a ela, enfrentar, criar e possibilitar meios de reconhecimento
e afirmação dos povos até aqui racializados, discriminados e silenciados, ao
s

romper com a hegemonia epistêmica ocidental.


ver

39 Entre os pensadores associados com este grupo estão o filósofo argentino Enrique Dussel, o sociólogo
peruano Aníbal Quijano, o semiólogo e teórico cultural argentino Walter Mignolo, a socióloga-pedagoga
norte-americana radicada no Equador Catherine Walsh, o filósofo porto-riquenho Nelson Maldonado-Torres,
o sociólogo porto-riquenho Ramón Grosfoguel, o antropólogo colombiano Arturo Escobar, dentre outros (cf.
OLIVEIRA e CANDAU, 2010).
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 173

Decolonialidade é entendida aqui como uma corrente de pensamento e


ações pautadas no sentimento de liberdade, respeito e alteridade, independen-
temente de sua raça, credo, lugar etc., voltada para aqueles que enfrentam
ou necessitam enfrentar a exclusão, o preconceito, o racismo, e impulsiona a
superar toda e qualquer forma de opressão advinda do processo colonizador
europeu (NOGUEIRA, 2019). Fazemos referência, no entanto, ao que Mota
Neto (2016, p. 43) destaca sobre o conceito de decolonialidade:

or
od V
Cabe, no entanto, ressaltar, mais uma vez, que não se deve utilizar o

aut
conceito de decolonialidade para se referir apenas às ideias daqueles que
desenvolveram o termo. Mais importante que o nome é a concepção polí-
tica, ética e epistemológica que lhe é subjacente, concepção, aliás, que tem

R
sido tecida desde a origem do processo colonizador na América Latina, por
muitas mãos, no interior de uma plêiade de movimentos de resistência [...].

o
aC
Importa, então, destacar proposições pedagógicas que considerem outras
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

epistemes, aquelas dos saberes tradicionais, ancestrais, muitas vezes baseadas


somente na oralidade ou observação. Nessa direção, Martinic (2003, p. 98), ao
falar de saber popular, aponta “a necessidade de novas bases epistemológicas,
visã
de conceitos e categorias que nos permitam revelar estruturas de pensamento
onde o mágico é apenas uma maneira de viver o real”.
A educação na pajelança compreende essa relação com o mágico repre-
itor

sentada no aprender tanto com o humano (o pajé), quanto com o não humano
(as entidades), presente nas narrativas do pajé Robson. Latour (2012) discute
a re

a partir da teoria do Ator-Rede (TAR) a superação da dicotomia natureza e


cultura, trazendo à tona olhares determinantes para uma relação simétrica
entre diferentes agentes de um coletivo. A sociedade passa a ser vista em
um movimento de associações que se estabelecem ao longo de uma rede de
par

relações e práticas cotidianas.


Nesse sentido, percorreu-se as trilhas etnográficas de uma pesquisa de
Ed

campo em diálogo com a história oral, visto que nosso olhar se direcionou a
um sujeito, suas práticas religiosas e trajetória de vida, e ninguém melhor do
que ele próprio para narrar essa história. Nessa interação, pudemos conhecer
ão

e compreender acerca de saberes ancestrais presentes no terreiro de pajelança,


visto que estes dificilmente são encontrados em fontes escritas, mas se expres-
s

sam e são repassados por meio da tradição oral.


ver

Assim, as teias do fazer etnográfico tornam-se mais resistentes quando


percorremos pela história oral, já que esta possibilita um espaço de diálogo
e confiança, mais flexível e aberto para realizar as observações em campo,
como nos momentos de conversa do pajé com as entidades. É uma teia de
significados, porém feita por várias mãos, tanto de quem pesquisa, quanto
174

de quem conta e revela essa história. Ao pensarmos o campo a partir de uma


pesquisa etnográfica, enfatizamos a necessidade de se ter cautela, pois enten-
demos que as respostas buscadas estão para além de uma simples descrição
do que se observa ou experiencia. Como define Geertz (2008, p. 4):

praticar etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever


textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por

or
diante. Mas não são essas coisas, as técnicas e os processos determinados,
que definem o empreendimento. O que define é o tipo de esforço intelectual

od V
que ele representa: um risco elaborado para uma ‘descrição densa’.

aut
A relação dialógica estabelecida na pesquisa foi o ponto primordial

R
para que as narrativas do pajé emergissem no momento da entrevista (POR-
TELI, 2016). Tal relação se evidenciou necessária desde o primeiro contato

o
com o campo, quando foi dada a primeira orientação dentro do terreiro, de
aC
que precisaríamos da autorização das entidades da casa para “estudar ali”,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


o que ocorreu em um segundo trabalho quando estas, representadas naquele
momento pelo caboclo Manezinho, orientaram como seguir, respeitando os
limites dados pelos próprios guias.
visã
Logo, pensar a partir de um campo ora marginalizado e excluído de uma
matriz eurocêntrica de saber e poder, é assumir o desafio de se despir de nossas
verdades e não apenas apontar para uma multiplicidade de saberes ou culturas,
itor

mas aprender com eles, a partir de suas lógicas, estabelecendo uma relação
a re

de alteridade no campo, na escrita e no compartilhamento dessa pesquisa.


Precisamos, enfim, decolonizar nosso olhar e práticas de atuação para, então,
conhecer e aprender mais dessa sabedoria que resiste ao tempo e à história.

Pajelança cabocla na Ilha de Colares:


par

resistência e ancestralidade
Ed

Trazer o tema da pajelança como um processo educativo remete a uma


reflexão sobre como se deu o processo histórico dessa prática religiosa, a
ão

transmissão de seus saberes de geração a geração, a circulação dessa cultura


e, principalmente, sua forma de resistência ao processo de colonização.
O termo pajelança, segundo os antropólogos Maués e Villacorta (2011,
s

p. 11), refere-se a “uma forma de xamanismo em que se dá a ocorrência do


ver

fenômeno de incorporação pelo pajé, sendo seu corpo tomado, no transe ritual,
por entidades conhecidas como encantados ou caruanas”. Durante esse ritual
xamanístico, a principal ocupação do pajé é a cura de doenças.
Desde os primeiros registros dos colonizadores, nos relatos de viagem,
é possível observar a existência dessa prática religiosa, como se constata nas
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 175

cartas que descreviam o Brasil, durante a colonização. Assim, podemos afirmar


que sempre existiu na história do Brasil, mais especificamente na história da
Amazônia, a presença desse sujeito chamado pajé.
Os pajés, citados como muito “prestigiados” nas aldeias por onde anda-
vam, desempenharam importante papel nas práticas de cura não só em suas
aldeias, mas estendendo esse saber ancestral aos colonos e colonizadores
de região amazônica. Eram, contudo, vistos como os “maiores inimigos”

or
da igreja, que buscava catequizar a todos eles, posto que usavam de “mui-

od V
tos enganos e feitiçarias”, segundo relatos do padre Manoel da Nóbrega, no

aut
século XVI (ALBUQUERQUE, 2012, p. 111). Logo, suas práticas religiosas
e relação com a natureza, com o sobrenatural, eram vistas como subversivas
à ordem que a igreja católica tentava impor.

R
Figueiredo (2008), destaca a persistência dos praticantes da pajelança,
fortemente marcada pela repressão religiosa e militar na região amazônica,

o
tanto pelo processo de ocupação de seus territórios no período da coloniza-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

ção, quanto nos tempos da belle-époque.40 A religiosidade popular não era


percebida como merecedora de respeito ou reconhecimento em tempos de
“modernização” na belle-époque. Era vista como “crendice” que destoava
com a ordem estabelecida e impulsionada pela modernidade que aqui chegava.
visã
Em vista disso, a igreja católica colocou-se contrária a qualquer manifestação
religiosa que não seguir as regras impostas pelo clero.
Na história presente, são apontados aqui como sujeitos de resistência, represen-
itor

tantes de uma cultura mesclada com outras tantas, como a europeia e a africana, até
a re

mesmo como forma de sobrevivência. Exemplo disso é o que se observa na definição


de pajelança cabocla, de Maués e Villacorta (2011, p. 49):

pajelança cabocla ou rural, que não se confunde com a pajelança indígena,


par

embora com ela mantenha relações, até porque, na sua origem, é um culto
sincrético que incorporou elementos da pajelança dos antigos tupinambás,
Ed

fundindo-os inicialmente com o catolicismo e as crenças, lendas, práticas


e tradições de origem portuguesa, e recebendo, posteriormente, também,
influências de cultos mediúnicos de origem africana (mina, umbanda,
candomblé), e europeia (espiritismo kardecista), ao mesmo tempo que,
ão

de algum modo, os influenciava.


s

Apontamos, então, as práticas da pajelança como resistências à colonia-


ver

lidade do poder, do saber e do ser que tanto se enfrentou e se enfrenta por


praticantes de religiosidades de matriz afro e indígena, com saberes ancestrais
que circulam em seus cotidianos, forjados nas relações com a natureza e o

40 A Belle-époque, de expressão francesa, ocorreu no período de 1850 a 1920, quando a Amazônia era a
maior produtora de borracha do mundo, e se buscava a modernização europeia para a região.
176

sobrenatural. Ao transcender a lógica moderna colonial, a pajelança perpetua-


-se no tempo por gerações, resiste à colonização do ser quando reinventa seus
modos de existir, sua linguagem, numa mestiçagem cultural estabelecida nas
trocas com outros modos de (re)existir, como a cultura negra por exemplo.
Maldonado-Torres (2007) explica que o conceito de colonialidade do ser
perpassa a esfera do poder e do saber que também implicam em diferentes
áreas da sociedade, a partir da diferença colonial. Assim:

or
od V
El concepto de colonialidad del ser nació en conversaciones sobre las

aut
implicaciones de la colonialidad del poder, en diferentes áreas de la socie-
dad. La idea era que si en adición a la colonialidad del poder también
existía la colonialidad del saber, entonces, muy bien podría haber una

R
colonialidad específica del ser. Y, si la colonialidad del poder se refiere
a la interrelación entre formas modernas de explotación y dominación,

o
y la colonialidad del saber tiene que ver con el rol de la epistemología y
aC
las tareas generales de la producción del conocimiento en la reproduc-

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ción de regímenes de pensamiento coloniales, la colonialidad del ser se
refiere, entonces, a la experiencia vivida de la colonización y su impacto
en el linguaje. [...] El surgimiento del concepto “colonialidad del ser”
visã
responde, pues, a la necesidad de aclarar la pregunta sobre los efectos de
la colonialidad en la experiencia vivida, y no sólo en la mente de sujetos
subalternos (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 129-130).
itor

Nesse sentido, Walsh (2008, p. 138) remete à discussão acerca da colonia-


a re

lidade negadora das relações ancestrais que os povos originários estabelecem


com a natureza, uma colonialidade cosmogônica que:

encuentra su base en la división binaria naturaleza/sociedad, descartando


par

lo mágico-espiritual-social, la relación milenaria entre mundos biofísicos,


humanos y espirituales, incluyendo el de los ancestros, la que da sustento
Ed

a los sistemas integrales de vida y a la humanidad misma.

Para Walsh (2008), a natureza integra o social, o ser humano faz parte
ão

dela e necessita aprender a respeitá-la. Um aprendizado possível no enfren-


tamento e superação da colonialidade presente no sistema-mundo moderno,
que subalterniza e nega qualquer manifestação mágica e espiritual, visto que
s

essa cosmologia foge à lógica de dominação. A autora destaca que:


ver

la madre naturaleza – la madre de todos los seres– es la que establece y da


orden y sentido al universo y del vivir. Al negar esta relación milenaria,
espiritual e integral, explotar y controlar la naturaleza y resaltar el poder
del individuo moderno civilizado (que aún se piensa con relación al blanco
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 177

europeo o norteamericano) sobre el resto, como también los modelos de


sociedad «moderna» y «racional» con sus raíces europeo-americanas y
cristianas, este eje de la colonialidad ha pretendido acabar con todo la base
de vida de los pueblos ancestrales, tanto indígenas como afrodescendentes
(WALSH, 2008, p. 139).

Assim, os rituais de pajelança resistem no decorrer da história do sujeito

or
amazônida e são marcados pela relação com a natureza, sua mítica, cosmo-
visões e cosmopolítica, como o pajé que traz o dom de nascença ou é esco-

od V
lhido por simpatia pelos seres encantados das matas e rios; o que se revela

aut
em mais um traço da cultura do caboclo da Amazônia, caracterizada por
uma mestiçagem não apenas étnica, mas de saberes e práticas, que tem uma

R
trajetória de lutas na afirmação de sua mística e mitos próprios dessa região
(LOUREIRO, 2015).

o
Os estudos de Maués e Villacorta (2011) falam da pajelança como um
aC
culto indígena, praticado em comunidades rurais da Amazônia, atualmente,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

por populações não indígenas, mestiças, como é o caso da ilha de Colares.


De sua história sabe-se, por meio dos escritos de padres jesuítas durante os
séculos XVII e XVIII, que o território foi povoado pelos índios Tupinambás,
visã
tendo recebido inclusive o nome de “Aldeia dos tupinambás” (ALBUQUER-
QUE, 2016, p. 65).
Colares se localiza na região do Salgado, no Estado do Pará, às margens
itor

da Baía do Guajará, com cerca de 11 mil habitantes. Com uma extensão ter-
ritorial de aproximadamente 610 KM², possui 28 comunidades rurais. Teve
a re

sua emancipação como município em 29 de dezembro de 1961, quando foi


desmembrado do município de Vigia.41 A região apresenta, ainda hoje, traços
do povoamento indígena em sua cultura e base econômica, tendo na pesca
artesanal e na agricultura os principais meios de subsistência, principalmente
par

dos moradores da zona rural, notado no modo de produção local, como o fazer
farinha que está presente na maioria das localidades da ilha.
Ed

A ilha de Colares é envolvida por uma mística muito forte, que vai
desde o aparecimento de óvnis até às lendas mais tradicionais como a cobra
Maria Vivó, a qual, contam os mais antigos, mora embaixo do farol que fica
ão

na orla da cidade. Mas chamamos a atenção para suas expressões religiosas.


Há uma diversidade delas por toda a ilha, envolvendo religiões como o Santo
Daime, Espiritismo, Protestantismo, Catolicismo, Umbanda e a Pajelança,
s

como destaca Albuquerque (2016). A autora aponta, ainda, para as práticas de


ver

pajelança em Colares como marcas de uma religiosidade tupinambá, repassada


por gerações, ao resistir às imposições do projeto colonizador que repudiava
ações xamânicas. E destaca que,

41 Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pa/colares/panorama. Acesso em: 22 jan. 2018.


178

a despeito do esforço dos jesuítas em extinguir totalmente as práticas


religiosas dos tupinambá, a herança xamanística destes índios foi trans-
mitida oralmente entre os seus descendentes, de forma que, contempo-
raneamente, ainda se veem vestígios de seus saberes seja nas práticas
religiosas da pajelança, seja na utilização das propriedades mágicas e
medicinais das plantas no cotidiano social da ilha de Colares (ALBU-
QUERQUE, 2016, p. 67-68).

or
Atualmente, a ilha de Colares conta com dezenove terreiros de pajelança

od V
e, mesmo tendo conhecido diversos deles, o terreiro de São Jorge, dirigido

aut
pelo pajé Robson, chamou atenção por estar localizado no centro da cidade,
pelo modo como os rituais de cura são conduzidos, em que o pajé suga animais

R
e sangue da pele de pessoas com a boca e utiliza utensílios com espinheiros
durante o ritual sem que saia machucado de tal prática, o que traz de volta

o
fortes elementos de tradições muito antigas de rituais xamânicos42, provavel-
aC
mente de saberes deixados principalmente pelos Tupinambás que habitaram

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a ilha em séculos passados.
O terreiro de São Jorge foi fundado no ano de 2000, quando o pajé Rob-
son tinha apenas 17 anos. Seus primeiros trabalhos eram realizados dentro de
visã
sua casa, localizada no bairro de São Francisco, zona urbana de Colares. Em
seguida, passou a atender no quintal de sua residência, em meio a uma área
verde. Segundo seu Robson, no início era apenas “uma armação de madeira
itor

e caibros, cercado de lona e plástico e coberta de palha”.


O espaço do terreiro, hoje, construído em alvenaria, é disposto em dois
a re

ambientes de acordo com os trabalhos a realizar: trabalhos com a “linha


branca”, ocorrem na parte interna do terreiro, que mede cerca de 45 metros²,
onde são realizados rituais de cura, passes, limpeza do corpo, consulta a
entidades dessa linha, entre outros; e trabalhos com a “linha negra”, que
par

ocorrem na parte externa, num local mais reservado chamado de ganga, com
aproximadamente 4m². Neste espaço, apenas pessoas autorizadas pelas enti-
Ed

dades podem adentrar, visto que lá são realizados trabalhos específicos para
combater feitiços “mais fortes e perigosos”.
Quando perguntamos ao pajé Robson sobre o que seriam essas linhas
ão

“branca e negra”, ele explicou que os trabalhos de cura realizados dentro


do terreiro são feitos por entidades da “linha branca”, que seriam povos das
s

matas, das águas e do ar. Quanto à “linha negra”, o pajé afirmou que a ela
ver

pertencem os povos da encruzilhada, os Exus, que combatem o mal na escu-


ridão e que, geralmente, são os males da “magia negra”43.

42 Relativo ao xamanismo: conjunto de práticas e crenças mágicas do xamã, sacerdote tribal que utiliza meios
mágicos para curar males e doenças.
43 Uso de forças sobrenaturais para realizar propósitos maléficos.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 179

Não é intenção aqui julgar o bem ou o mal praticado nos espaços do


terreiro, mas vale ressaltar que a ideia de que o bem está na linha “branca”
e que o mal pode ser combatido pela linha “negra” remete à construção da
ideia de raça a partir da colonização das Américas (QUIJANO, 2005) que
reproduz, historicamente, o preconceito tão voraz na colonialidade presente,
sofrido e enfrentado por pessoas de cor negra, principalmente afrorreligiosas.
É importante, então, dirimir o pensamento que conduza à má interpretação

or
sobre como os grupos de entidades são percebidos no terreiro de pajelança,

od V
de acordo com as linhas já apontadas, na busca por respeitar as lógicas de

aut
organização do próprio terreiro, sua cosmologia e o reconhecimento de que
todas as entidades desempenham papéis importantes para a realização das

R
curas e demais rituais. Porém, é necessário compreender, como já mencionado,
que tais lógicas foram construídas historicamente, numa relação de resistência

o
ao colonialismo imposto às práticas de pajelança (NOGUEIRA, 2019).
Pajé Robson conta que ao se “firmar” nesse terreiro sofreu muita “perse-
aC
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guição” por parte da vizinhança do bairro, que não aceitava que se praticasse
a pajelança no quintal de sua casa. Os vizinhos chegaram a protestar e fazer
um “abaixo-assinado” para que ele saísse de lá e mudasse para outro local.
visã
Porém, afirma que resistiu e lutou por respeito durante anos, e que hoje muitos
desses vizinhos o procuram em busca de curas e ajudas diversas. Entretanto,
relata que ainda enfrenta o preconceito com relação às suas práticas religio-
itor

sas, mas não desiste por se considerar “escolhido para atuar numa missão tão
a re

bonita como a pajelança”.


Ao adentrar no terreiro, o pajé ainda não está incorporado. Antes, ele
procura sempre pelo banco à frente do altar e senta-se sem falar com as pessoas
presentes, baixa a cabeça, faz uma reza em voz muito baixa, fica concentrado
por alguns instantes e, após isso, passa a entoar o chocalho, dando batidas
par

sobre seus ombros, pés e cabeça, próximo aos ouvidos. Quando inicia o pro-
cesso de incorporação, é perceptível a tentativa de se manter em equilíbrio e
Ed

com a coluna ereta, o que nem sempre é possível, pois depende da entidade
e da forma como ela chega em seu corpo. O pajé, então, levanta e passa a
ão

caminhar lentamente pelo ambiente, com o corpo levemente curvado. Em


seguida, uma a uma, as entidades chegam ao terreiro incorporadas no pajé,
entoam suas doutrinas como forma de apresentar-se aos que ali estão, cum-
s

primentam, algumas vezes, as pessoas presentes e seguem dando passagem


ver

às demais entidades, até que o ritual de cura se inicie.


Durante os trabalhos no terreiro, foi possível apreender a ritualística,
organização, quem ajuda nos trabalhos e quem apenas frequenta, os materiais
utilizados, as doutrinas cantadas a cada incorporação.
180

Aprender com os encantados: uma pedagogia outra

Ao pensar sobre a organização do terreiro de São Jorge, pode-se inferir que


todos que participam dos rituais experimentam algum tipo de aprendizagem,
pois esta se mostra em vários momentos e detalhes. Quando se aprende sobre a
história das entidades nas suas falas e contações durante a passagem no terreiro
(quem são, de onde vem, sua missão); quando se aprende onde sentar, onde

or
não entrar, no que tocar e o que cantar para acompanhar os trabalhos; quando

od V
se escutam as orientações acerca de quais ingredientes da natureza usar para

aut
tomar os banhos ou os chás recomendados pelo pajé, durante a incorporação;
quando se aprende a moral repassada pelas entidades sobre caridade, a missão
nesta terra e o cuidado com o divino. Tudo isso compõe o processo educativo.

R
Essas são, contudo, formas sutis de percepção de uma aprendizagem
ocorrida no espaço do terreiro, onde estão em questão atitudes como observar,

o
escutar, comportar-se, entre outras. Mas é no rito de iniciação que o sujeito
aC

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pajé, assumidamente, revela a postura de um educador ao conduzir aqueles
que irão desenvolver sua mediunidade. Nas suas palavras:

Me considero um educador porquê de acordo com o que a gente vai traba-


visã
lhando, porque já é dezoito anos que eu trabalho, a gente vai adquirindo
experiência, e aquilo ali, um pouco, a gente já vai tentando repassar (Pajé
Robson, entrevista, nov. 2017).
itor
a re

Robson teve o primeiro contato com a pajelança ainda na adolescência,


aos 14 anos, quando se mudou para Colares. Nasceu na cidade de Belém,
mas a família de sua mãe residia na ilha. Destaca que a pajelança faz parte
da história da família, com tios e avós que também atuavam em trabalhos de
cura. Mas foi logo após a mudança, ao participar de um trabalho de cura con-
par

duzido por seu tio Luiz Pantoja, que ele conheceu o ritual pela primeira vez,
endereçado a uma tia que, estando muito doente, buscou ajuda nas entidades.
Ed

Porém, foi apenas aos 16 anos de idade que Robson começou a passar
mal com visões, desmaios, os quais tendiam a aumentar se estivesse nas pro-
ão

ximidades de praias, igarapés e matas da ilha. Mesmo assim, seus familiares


não cogitaram, inicialmente, a possibilidade de estar desenvolvendo um dom
espiritual. Em uma das vezes que sentiu a presença das entidades que queriam
s

“buscá-lo”, o pajé Robson conta que desapareceu por dias, e foi encontrado
ver

dentro da mata com as roupas rasgadas e alguns machucados pelo corpo. A


primeira conclusão da família foi que ele sofria com problemas psiquiátri-
cos, motivo pelo qual buscaram por ajuda médica em Belém. Segundo ele,
foi um período muito difícil em que chegaram a cogitar sua internação por
acreditarem ser um quadro de loucura.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 181

Nesse mesmo período, já por volta de seus 17 anos, Robson abando-


nou os estudos na escola Norma Guilhon, em Colares, quando cursava o
primeiro ano do ensino médio, pois não conseguiu mais suportar as fortes
dores na cabeça, insônias, visões e desmaios. Segundo seus relatos, todas as
manifestações que estava sentido àquela época (nervosismo intenso, dores
de cabeça e problemas de memória) já eram as entidades que queriam iniciar
as incorporações, porém ele desconhecia.

or
Mas, em um certo dia, dentro de sua casa, na presença de sua mãe, sem

od V
nenhum preparo inicial para isso, Robson incorporou o caboclo Manezinho

aut
que orientou sua mãe a buscar ajuda de alguém que pudesse realmente desen-
volver seus dons espirituais ao invés de procurar pelos “homens de casaco
branco” (os médicos). Caso contrário, ele ficaria em estado de “loucura”. A

R
família decidiu, então, levá-lo a um pajé conhecido na região como Dudu,
que residia no município vizinho de Santo Antônio do Tauá, distante apro-

o
ximadamente 23 Km de Colares, para que o mesmo pudesse orientar em
aC
seu tratamento, já que se passou a considerar que os problemas de Robson
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poderiam ser tratados pelo viés espiritual.


Na fala do pajé Robson, destaca-se a necessidade de se ter um guia
espiritual que conduza o processo de amadurecimento do dom descoberto.
visã
Embora afirme que, após a aceitação de sua missão espiritual, tenha muitas
vezes seguido apenas as orientações das entidades sozinho em sua casa, tam-
bém aponta a importância de aprender com alguém já experiente como o pajé
itor

Dudu a quem a família foi buscar ajuda.


a re

Ao considerar a trajetória de vida do pajé Robson, é possível afirmar que


toda a relação travada consigo mesmo, com seus familiares, com as entida-
des e, posteriormente, com o pajé que o iniciou, foi permeada por processos
educativos. Um caminho que, segundo ele mesmo, exige um esforço pessoal,
empenho, dedicação, como qualquer outra aprendizagem.
par

A pajelança se revela, então, como fonte de educação, que está para


Ed

além das práticas de cura ou religiosas que evoca, posto que pressupõe uma
rede de sociabilidade entre os sujeitos envolvidos, sejam eles humanos ou
não humanos. Uma educação que surge a partir da aceitação de um dom
ão

como missão, na prática do terreiro vista como profissão, como a própria vida
ressignificada a partir dessa aceitação. Uma atividade que para se praticar,
também se precisa aprender.
s

Não obstante, destaca-se que essa educação não pode ser pensada pelo
ver

viés hegemônico tradicional como comumente se pensa a aprendizagem esco-


lar, por exemplo. O que buscamos destacar é uma educação pautada no coti-
diano, do aprender consigo, com o outro e com a magia dos seres encantados.
É preciso pensá-la, portanto, a partir de uma lógica própria, envolta nos modos
e olhares próprios dos sujeitos que a vivenciam.
182

Pajé Robson assume, em suas narrativas, a postura de educador, quando


possibilita que se possa conhecer os rituais de cura e as entidades, a partir
de seu olhar e de suas práticas. Sua narrativa assume a função de revelar e
fazer pensar sobre a existência de um modo outro de perceber os processos
educativos para além do território da escola.
Costa e Andrade (2015) discorrem sobre pedagogias atuantes em uma
multiplicidade de espaços, para além daqueles que limitam territórios escola-

or
rizados. A discussão sobre a existência de diversos lugares de aprendizagem

od V
possibilitou chegar ao entendimento de que estes formam “uma das princi-

aut
pais características do imperativo pedagógico contemporâneo”, ou seja, “a
existência de relações de ensino e aprendizagem em diferentes nichos sociais
regulados pela cultura” (COSTA; ANDRADE, 2017, p. 5). As autoras com-

R
preendem, então, a partir dos estudos de teóricos como Elizabeth Ellsworth
e Henry Giroux, que o processo de ensinar e aprender ocorre em diferentes

o
lugares de cultura, que não somente na escola. Ao partir desse entendimento,
aC
embasam a ideia de que a pedagogia não revela um conhecimento pronto, mas

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em construção a partir das relações de seus sujeitos, seus corpos e mentes,
consigo, com os outros e com o mundo.
Observa-se que o ritual de iniciação na pajelança segue uma trajetória
visã
de tempos e tarefas a serem cumpridos. A orientação de todo o processo de
formação do pajé se dá pelos guias, ou entidades, sendo mediado pelo pai
de santo, isto é, o pajé do terreiro onde ocorre o rito. Há, portanto, uma teia
itor

educativa que atravessa o processo de aprendizagem no rito de iniciação den-


a re

tro do terreiro. O pajé assume o papel de educador ao mediar as orientações


dadas pelos guias.
Ao perguntar ao pajé com quem ele aprendeu todo o ritual de iniciação
que pratica no terreiro de São Jorge, ele imediatamente afirma ter sido com
o pajé que o iniciou, fazendo novamente referência à importância de ter um
par

“pai de santo” com experiência e força. Porém, quando questionado mais


Ed

à frente sobre as orientações recebidas das entidades, pajé Robson explica


que todas as ações ocorridas no rito de iniciação são dadas para o pajé
quando incorporado, ou seja, a aprendizagem da pajelança se dá por meio
ão

dos encantados, que ele chama de “guias”. Da mesma forma acontece com
ele quando assume a responsabilidade de iniciar outro pajé, seus ensina-
mentos partirão de sua experiência como pajé e das orientações recebidas
s

dos guias a cada incorporação.


ver

Destaca-se das narrativas sobre o rito de iniciação, o quão presente está


o não humano em todas as formas de aprender e ensinar na pajelança e que,
estes, apresentam subjetividade. Assim, o processo educativo dentro do terreiro
não se limita apenas ao sujeito pajé, mas perpassa, principalmente, pela sua
relação com os guias (encantados), as forças que o orientam.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 183

Sobre essa relação de aprender com entes não humanos, Albuquerque


(2015) discorre sobre a educação que ocorre por meio de plantas e dá des-
taque ao uso da ayahuasca. Para a autora, a aprendizagem também pode ser
vivenciada em uma multiplicidade de espaços, no cotidiano social, a partir
de uma outra lógica de compreensão do real:

A singularidade dos processos de aprendizagem mediados pela ayahuasca/

or
daime reside no fato de que eles não são transmitidos pelos humanos, como
tradicionalmente podemos pensar as formas ocidentais de educação, mas

od V
pela mediação das plantas ou pelas substâncias de que são portadoras.

aut
Esses saberes são, contudo, compartilhados pelos humanos uma vez que
o daime não ensina a si mesmo originando uma ecologia entre plantas e

R
humanos (ALBUQUERQUE, 2015, p. 7055).

o
Ao se revelar a prática educativa na pajelança, emerge a discussão acerca
desse sujeito educador representado aqui pelo pajé Robson, bem como a
aC
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educação que permeia o terreiro e sua episteme particular. Na tentativa de


compreender essa dinâmica, Nogueira (2019) destaca a importância de pen-
sarmos a partir de outra ideia de pedagogia, não circunscrita pela modernidade
visã
eurocêntrica, mas a partir de sujeitos que, para além da lógica ocidental,
mantém vivas tradições milenares em suas formas de educar e de se rein-
ventarem; que, forjada na rede de sociabilidades do terreiro, considera “uma
educação em que o humano é apenas uma das formas de se conhecer e que
itor

a ancestralidade presente nas práticas de pajelança passa a ser considerada


a re

viés importante na construção dessa outra pedagogia” (NOGUEIRA, 2019,


p. 101); uma pedagogia pautada em uma construção dialógica, cultural, de
resistência: decolonial.
par

Considerações finais
Ed

Para compreender o processo educativo vivenciado no interior do ter-


reiro, foi fundamental o olhar alargado acerca do que é educação e de como
esta é forjada e se solidifica nas relações culturais, no cotidiano, em trocas
ão

mútuas de aprendizagem, no diálogo e na atenção, mas, principalmente, na


experiência. Esse olhar possibilitou analisar o terreiro de pajelança como um
espaço educativo, com práticas que fazem circular saberes, com dinâmicas de
s

organização e lógica próprias, configurando uma pedagogia cultural.


ver

Nesse entendimento, a noção de lugar de aprendizagem onde se estabe-


lecem trocas culturais intensificou a ideia de uma pedagogia outra no espaço
do terreiro, em que os conhecimentos não estão prontos, encaixotados para
serem distribuídos. Ao contrário, são construídos nas relações cotidianas,
184

com base no respeito, na alteridade cosmológica estabelecida entre humanos


e encantados.
A lógica que atravessa esse tipo de educação é heterogênea, subversiva
aos moldes ocidentais de explicar a vida e encaixar tudo em uma ciência de
base eurocentrada. Importa compreender que as práticas educativas no terreiro
de pajelança transcendem o que é dito como racional, pois ecoam em uma
pedagogia fincada na ancestralidade dos povos originários. Uma pedagogia

or
que não se adequa ao padrão mundial do sistema-mundo-capitalista, pois

od V
não pode ser dominada, exigindo se despir dos preconceitos imputados pela

aut
colonialidade para que possa ser compreendida.
Cabe referir a esses outros lugares de aprendizagem, não necessaria-
mente físicos, como o “fundo dos rios”, ou um outro lugar de encante, vis-

R
tos, também, como espaços que envolvem uma educação cosmológica, uma
aprendizagem entre mundos, seja com humanos e encantados ou apenas no

o
universo da encantaria. Importa, assim, pensar novas bases epistemológi-
aC

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cas, a partir de outros sujeitos de educação, que possibilitem compreender
o mágico, o sobrenatural, o mundo do encante como outras formas de se
viver, aprender e (re)existir.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 185

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itor
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Ed
s ão
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Ed
s ão itor
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a re
visã R
od V
o aut
or
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MULHERES RIBEIRINHAS NA
AMAZÔNIA PARAENSE: decolonialidade,
resistências e saberes outros

or
od V
Isabell Theresa Tavares Neri

aut
Ivanilde Apoluceno de Oliveira

R
Introdução

o
aC
Ao nos debruçarmos sobre a realidade de mulheres ribeirinhas e com um
cuidado de não projetar uma leitura míope sobre os seus cotidianos, reme-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

temo-nos aos escritos de Teisserene (2010) que levanta uma instigante dis-
cussão sobre o território e a sua importância para as populações tradicionais,
visã
sobretudo as que habitam a Amazônia brasileira.
Nos últimos anos, testemunhamos coletivos encabeçando intensos movi-
mentos em prol do direito à terra e de todas as representações simbólicas,
itor

cosmogônicas, culturais e espirituais que a mesma abarca. Esses atos políticos


a re

envolvem “o estatuto social das populações tradicionais, o uso da terra, as


formas de produção que elas haviam conseguido desenvolver, seus modos de
organização coletiva e o reconhecimento de sua identidade em referência a
uma cultura” (TEISSERENE, 2010, p. 6). Embates que são legitimados por
par

movimentos ambientalistas internacionais e retroalimentados em conferências


mundiais. Nesse sentido:
Ed

o reconhecimento desses saberes está confirmado na constituição da Repú-


blica Federativa do Brasil de 1988, e tem sido regularmente reafirmado em
ão

textos legislativos posteriores [...] O reconhecimento legal tem conduzido


muito naturalmente um certo número de experts e de lideranças a conside-
rar que uma gestão sustentável da biodiversidade dificilmente poderá ser
s

feita sem levar em conta a sociodiversidade (TEISSERENE, 2010, p. 6).


ver

Assim, é cada vez maior o reconhecimento, por parte das ciências sociais,
sobre a necessidade de se pensar em formas de desenvolvimento sustentá-
vel que respeitem a sociodiversidade. Para o autor, o reconhecimento dos
saberes oriundos das populações tradicionais é uma importante aposta na
direção de uma gestão socioambiental que garanta a integridade da flora e da
fauna amazônicas.
190

A articulação entre o desenvolvimento sustentável e a certificação episte-


mológica dos povos da floresta aponta, ainda, para uma reflexão acadêmica a
respeito das múltiplas formas de produção do conhecimento que estão subver-
tendo uma cientificidade ocidental desencantada e cada vez mais sem fôlego
para solucionar problemas emergenciais que atormentam a humanidade.
Nesse artigo, em especial, propomo-nos não apenas em apresentar os
saberes populares edificados por mulheres ribeirinhas da Amazônia paraense,

or
como também em refletir sobre as matrizes decoloniais que sustentam as

od V
mesmas, em um cenário geopolítico onde o eurocentrismo e o capitalismo

aut
insistem em ditar as regras.
O ensaio é fruto de uma dissertação de mestrado finalizada no início
de 2018, que realizou uma cartografia de saberes de mulheres ribeirinhas

R
participantes de atividades educativas, promovidas por uma Classe Hospitalar,
em parceria com o Núcleo de Educação Popular Paulo Freire-NEP, em um

o
hospital público, localizado na região metropolitana de Belém.
aC
A Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará-FSCMP, dentre outras

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


especialidades, é referência mundial no tratamento cirúrgico dedicado a
mulheres acometidas pelo escalpelamento, um acidente que se caracteriza
pela avulsão total ou parcial do couro cabeludo em decorrência do contato das
visã
vítimas com os motores de embarcações fluviais desprovidas de carenagem.
O público em tratamento médico, predominantemente feminino, recebe
alimentação e alojamento em uma casa de acolhimento pertencente ao FSCMP,
itor

denominada de Espaço Acolher, que em 2012, recebeu uma Classe Hospitalar


a re

fruto de uma parceria da Secretaria de Estado de Saúde Pública– SESPA com


a Secretaria da Educação– SEDUC.
O NEP, um Núcleo de ensino, pesquisa e extensão vinculado à Univer-
sidade do Estado do Pará, realiza ações pedagógicas tanto em escolas quanto
em outros espaços sociais, bem como assessorias, planejamentos e formações
par

conjuntamente com a referida Classe Hospitalar.


Ed

Na realização da cartografia de saberes das mulheres ribeirinhas que são


atendidas pedagogicamente pela Classe Hospitalar/NEP, optamos pela carto-
grafia simbólica/ sociologia cartográfica. Um importante instrumento analítico
ão

utilizado pelas ciências sociais com o objetivo de captar as dimensões físicas,


espaciais e simbólicas da realidade social (SANTOS, 2002).
Ao passearmos pelas obras de Santos (2002), acompanhamos a meta-
s

morfose de seu pensamento. Ele, que já se identificou como um pós-moderno


ver

de oposição, ao se render aos escritos pós-coloniais, cada vez mais tem se


dedicado a interpretar a forma como os coletivos das periferias globais tra-
duzem a modernidade e seu egocentrismo.
Entendemos que a cartografia simbólica espelha o esforço desse intelec-
tual, que apesar de ser europeu, por se encontrar em uma geografia periférica
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 191

do continente, também vivenciou formas de discriminação ainda que des-


toantes das violências sofridas por coletivos africanos ou latinos. A sociologia
cartográfica, assim, carrega o desejo de mapear cosmogonias, espiritualidades
e lógicas outras soterradas nos solos cinzentos do pensamento ocidental que,
embora estejam agonizando, ainda pulsam intensamente.
Categorias como trabalho, medicina popular e imaginário foram edifi-
cadas a partir dos relatos das participantes do estudo, coletados por meio da

or
entrevista semiestruturada: um instrumento de coleta de dados que, se utilizado

od V
com prudência, pode trazer resultados satisfatórios.

aut
Segundo Manzini (2004), um dos principais cuidados gravita em torno da
natureza das perguntas: é indispensável que as mesmas estejam em harmonia

R
com os objetivos da pesquisa. Todavia, isso não significa que não possa exis-
tir uma flexibilidade na arquitetura do roteiro. Afinal, entendemos que nesse

o
estudo em particular, cada diálogo abarcou singularidades que expressam a
leitura que fazemos das participantes do estudo enquanto coautoras desse
aC
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processo investigativo, longe de serem vistas como estatísticas, dados ou um


aglomerado de informações desprovidas de subjetividades.
Ao todo, foram entrevistadas 13 mulheres não brancas, dentre pacientes e
visã
acompanhantes, de faixas etárias variadas, oriundas de municípios ribeirinhos
como Breves, Muaná e Porto de Moz. As suas identidades foram preserva-
das com nomes fictícios e o resultado da pesquisa só foi socializado após
itor

ser aprovada nos comitês de ética da UEPA e da FSCMP. Para o tratamento


a re

dos dados, optamos pela análise de conteúdo (BARDIN, 1977) carregada de


possibilidades múltiplas de categorizações que emergiram dos relatos das
educandas e que de forma didática sistematizaram as entrevistas transcritas.
O artigo está estruturado em três eixos: em um primeiro momento, dedi-
camo-nos a realizar um breve diálogo sobre as bases epistemológicas do
par

pensamento decolonial, posteriormente adentramos no universo sociocultural


das mulheres ribeirinhas, que vivem na Amazônia paraense, identificando os
Ed

movimentos decoloniais imiscuídos em seus saberes. Finalmente, guiadas por


uma lógica mais reflexiva do que de encerramento a respeito do diálogo sobre
ão

decolonialidade, tecemos algumas reflexões que apontem possibilidades outras


de ampliação e aprofundamento dessa discussão a partir de novos olhares.
s

Notas sobre o pensamento decolonial


ver

Mota Neto (2016) mostra a estrutura do pensamento decolonial, preocu-


pando-se em dissolver equívocos, estabelecer uma cronologia das fases que
compõem a decolonialidade e de aprofundar conceitos-chave que alicerçam
esse pensamento.
192

Situar a importância da decolonialidade no âmbito das discussões sobre o


cenário educativo atual é primordial para que uma galeria de “temas quentes”,
como as violências raciais e de gênero, o desmonte das escolas e universi-
dades públicas e os questionamentos referentes a currículos insensíveis às
contrastantes regiões brasileiras não passem despercebidos.
As ciências da educação necessitam de um olhar interdisciplinar capaz
de dialogar com distintas áreas de conhecimento como a ciência política, a

or
filosofia, a sociologia dentre outras, se realmente deseja abraçar o binômio

od V
pedagogia e política, a fim de consolidar processos pedagógicos progressistas

aut
e socialmente engajados.
Apostamos que o pensamento decolonial, com toda a sua polifonia epis-

R
têmica, acena para esse horizonte. É possível, por meio de sua epistemologia
em perene metamorfose, refletir sobre as práticas educativas tanto nas esco-

o
las quanto em outros espaços sociais. Afinal, como afirma Brandão (2009),
aC
educação e cultura são inseparáveis. Libâneo (2006), na mesma direção, não

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


receia em reconhecer que a pedagogia só é fomentada no seio de intensas
dinâmicas sociais.
Em um continente, como a América Latina, violentado pelo narcisismo e
visã
eurocentrismo do pensamento ocidental e atravessado por relações de poder de
cunho econômico, racial e de gênero, entender a importância do pensamento
decolonial é uma possibilidade de caminhar com mais firmeza, mesmo em
itor

solo movediço dos conflitos sociais, políticos e econômicos brasileiros e latino


a re

americanos, de forma a enfrentar tais estruturas de opressão.


Mota Neto (2016) elenca os seis principais traços do pensamento decolo-
nial: a) o colonialismo e a colonialidade não possuem o mesmo significado; b)
a colonialidade não é um produto, mas uma parte que constitui a modernidade;
c) é o despertar para uma problematização referente aos discursos eurocêntricos
par

e intramodernos que acompanham a colonialidade; d) implica em reflexões


Ed

sobre o conhecimento e a identificação das relações de poder que o permeiam;


e) Há a necessidade de interpretar a modernidade não como um pensamento
onipotente, mas apenas como mais uma forma de se ver o mundo que deve
ão

reconhecer as coexistências de outras lógicas; f) Há o reconhecimento do


giro decolonial enquanto um passo importante para a edificação de um novo
projeto de sociedade. Nesse sentido, Mota Neto (2016, p. 102) acena para a:
s
ver

a necessidade de uma pedagogia decolonial na Amazônia, que reinvente


modalidades de luta e insurreição contra o colonialismo e a colonialidade
ainda vigentes, estimulando, em contrapartida, a construção de um pro-
jeto de sociedade democrática, inclusiva, autônoma, fundada no respeito
às diferenças.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 193

Realizando o cruzamento entre a citação acima e as principais caracte-


rísticas que constituem o pensamento decolonial, algumas perguntas estão
colocadas na mesa de discussões epistêmicas: como surgiu o pensamento
decolonial? Qual é a sua importância em se tratando das conjunturas geográfi-
cas, históricas e políticas das comunidades ribeirinhas na Amazônia paraense?
Esses questionamentos não exigem respostas engessadas, mas possuem a

or
tarefa de ciceronear um diálogo acalorado a respeito das pedagogias que estão
subvertendo os regimes totalitários eurocêntricos e ocidentais.

od V
O pensamento decolonial, segundo Mota Neto (2016), estreia no cen-

aut
tro de uma rede de investigação chamada de modernidade/colonialidade da
América Latina composta por importantes intelectuais como Catherine Walsh,

R
Enrique Dussel, Aníbal Quijano dentre outras personalidades do cenário inte-
lectual latino.

o
Restituindo os seis principais prismas do pensamento decolonial, esta-
aC
belecer as diferenças entre o colonialismo e a colonialidade é o primeiro
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

passo para compreender esse movimento epistêmico do avesso. Visitando


os escritos de Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) vemos que o colonialismo
corresponde a uma presença física da Europa sobre outros continentes a partir
visã
da implantação de bases políticas e bélicas nos territórios colonizados.
A colonialidade, por seu turno, é bem mais complexa e transcende a
dimensão física das dinâmicas sociais, uma vez que não reconhece, por meio
itor

da supremacia do eurocentrismo, as epistemes, os imaginários e as peda-


a re

gogias dos povos subjugados pela Europa, mesmo após o recorte histórico
tenebroso que correspondeu a colonização da América Latina, da África e da
Ásia (QUIJANO, 2005).
Mota Neto (2016, p. 103), ao estabelecer uma interpretação palatável,
par

mas não menos rigorosa, sobre o pensamento de Walter Mignolo, explica


como a colonialidade é constitutiva da modernidade e a traduz como:
Ed

uma hidra de três cabeças, que simbolizam, cada qual: I) a retórica sal-
vacionista, desenvolvimentista e a promessa do progresso, esta que é a
ão

única face visível da modernidade; II) a colonialidade, que é um padrão


de poder que permaneceu mesmo após o fim da situação colonial e que
entre as suas consequências estão o racismo, a desigualdade, a fome e o
s

machismo, formas de opressão que costumam estar deslocadas do imagi-


ver

nário hegemônico sobre a ideia de modernidade; III) a decolonialidade,


que é uma energia de descontentamento, de desconfiança, de des-
prendimento, mobilizada por aqueles que reagem ante a violência
imperial [grifo nosso].
194

Essa tríade que constitui o sistema modernidade/colonialidade dissolve


dúvidas que assombram o pensamento decolonial. Apartada de uma lógica
de tempo linear, a colonialidade, a modernidade e a decolonialidade estão
presentes em territórios em disputas que vão ganhando forma a partir do pro-
tagonismo humano. Essa leitura revela toda a complexidade dessa corrente
epistêmica que não se encerra nas torres de marfim das academias, porque
necessita do oxigênio que transita entre os corpos colonizados dos oprimidos.

or
Na esteira desse pensamento, as contribuições de Walsh (2013) para

od V
o pensamento decolonial são instigantes. Com uma escrita carregada de

aut
referências latinas, africanas e afro-caribenhas, a intelectual mostra o esplendor
das cosmogonias de povos originários que não necessitam da ditadura da
racionalidade ocidental para caminharem com as próprias pernas.

R
O seu pensamento é o eco da própria essência decolonial que aposta
nas práticas dos coletivos subalternizados como um importante semeador de

o
novas teorias. Nessa direção, Walsh (2013, p. 33) lança algumas provoca-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ções:” como pensar y ejercer esta pratica hoy y ante los momentos políticos
actuales? Cómo caracterizar estos momentos? Y cuáles son los movimentos
teóricos que surgen, llaman y provocan?”
Levando em consideração que Walsh (2013), ao formular essas pergun-
visã
tas, deparava-se com um cenário político latino-americano diferente, ainda
que com seus reveses, que exigiam respostas com tons diferentes dos que
vislumbramos na atualidade.
itor

Em uma política contemporânea com os ânimos totalitários exaltados e


a re

dispostos a asfixiar qualquer atitude progressista, obviamente que a radica-


lização da resistência é indispensável e é no seio da decolonialidade que seu
fôlego se renova.
Além disso, o agravamento de regimes sectários na América Latina e
par

no mundo são decorrentes da própria crise do neoliberalismo. Walsh (2013)


chama atenção para as fissuras que atormentam a lógica capitalista neocolonial
Ed

e que são arquitetadas pelos movimentos de resistência dos povos originários


e afro-caribenhos, sobretudo na América Andina.
Os momentos históricos que testemunham o florescer da decolonialidade
ão

serpenteiam as próprias brechas de qualquer temporalidade cronológica. Movi-


mentos ontológicos e epistêmicos, em todo momento, experimentam avanços e
recuos, que estimulam o desaprender e o reaprender de novos saberes forjados
s

a partir das lutas contra o sistema colonialista.


ver

O encontro de outras pedagogias com a decolonialidade representa para


Walsh (2013, p. 28):

pedagogias que animan el pensar desde y con genealogias, racionalida-


des, conocimentos, praticas y sistemas civilizatorios y de vivir distintos.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 195

Pedagogias que incitan possibilidades de estar, ser, sentir, existir, hacer,


pensar, mirar, escuchar, y saber de otro modo, pedagogias enrumba-
das hacia y ancladas en processos y proyectos de caráter, horizonte y
intento decolonial.

A pedagogia que a autora vislumbra na mirada do pensamento decolonial


é totalmente diferente dos sentidos pedagógicos sacralizados pela lógica oci-

or
dental, porque são processos pedagógicos forjados a partir das insurgências,
das quebras de dicotomias, dos gritos de clamor perante as violações aos

od V
aut
direitos humanos e aos cânones ambientais. De um ponto de vista metafórico
são como floras, que quanto mais são arrancadas do solo decolonial, mais dão
passagem para vegetações robustas.

R
O divórcio de didáticas, planejamentos e currículos cartesianos é inevi-
tável. Entendemos que a educação, em um sentido decolonial, é viva, pois se

o
inquieta, indigna-se e se rebela contra os sistemas opressores por meio de per-
aC
manentes ciclos coletivos de reinvenção, reflexão e transmissão de saberes que
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não são condicionados por relações opressoras racializadas ou generificadas.


Dessa forma, “a decolonialidade tem sido elaborada a partir das ruí-
nas, das feridas, das fendas provocadas pela situação colonial” (MOTA
visã
NETO, 2016, p. 103). Assim, o autor arquiteta o tom de indignação, de
rebeldia, de inconformismo e de subversão que acompanham o pensamento
decolonial por ser o espelho de rostos não brancos violentados sobretudo pela
itor

negação do seu ser. O autor complementa:


a re

[...] a concepção decolonial, como não poderia deixar de ser, revela sua
primeira fase como constituída pela negação a negação. Ela é, assim, anti-
colonial, não eurocêntrica, antirracista, antipatriarcal, anticapitalista, em
seus devidos desdobramentos, e assume um enfrentamento crítico contra
par

toda e qualquer forma de exclusão que tenha origem na situação colonial e


Ed

nas suas consequências históricas. Da negação a negação continua (MOTA


NETO, 2016, p. 103).

Um dos pontos que consideramos interessante, no âmbito do pensamento


ão

decolonial, é o privilégio de traduzir os passos da modernidade a partir do


olhar dos povos colonizados. Durante séculos, uma boa parte da humanidade
s

foi convencida de que os ideais do pensamento moderno eram virtuosos e que


ver

o progresso precisava ser pago com derramamento de sangue. No entanto,


clamores que urgem dos pontos mais abissais do globo terrestre emitiam sinais
de denúncia e de inconformismo desde o primeiro momento que bandeiras
europeias foram cravejadas em seus solos sagrados e macularam as suas
mentes e seus corpos.
196

Esses são movimentos de resistência e de contraposição aos arqué-


tipos androcêntricos e eurocêntricos que são cartografados pelas lentes
da decolonialidade. Ações que se traduzem em “uma quantidade indefi-
nida de estratégias e formas de contestação com vistas a uma mudança
radical nas formas hegemônicas atuais de poder, ser e conhecer” (MOTA
NETO, 2016, p. 103).
A face do giro decolonial se revela, em nosso entendimento, a partir

or
do momento em que, de um lado, a crueldade da modernidade sai dos

od V
escombros de um discurso eurocêntrico salvacionista e civilizatório e,

aut
do outro, com o reconhecimento de trincheiras que abrigam cosmogo-
nias, espiritualidades, pedagogias e outras manifestações ontológicas que

R
pincelam racionalidades ancoradas às experiências das mulheres e dos
homens colonizados.

o
Sem esquecer da historicidade, enquanto importante bússola de enten-
dimento da lógica decolonial, Mota Neto (2016) afirma que a sua genealogia
aC

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está nos povos indígenas e afro-caribenhos ainda nos séculos XVI e XVII e
passa por outros dois momentos protagonizados pela África e pela Ásia em
um circuito histórico que engloba os séculos XVIII e XIX e a guerra fria,
visã
ainda que a rede modernidade/colonialidade tenha se articulado apenas na
década de 1990.
Mota Neto (2016) e Walsh (2013) concordam que Paulo Freire é um
importante expoente do pensamento decolonial na América Latina. Inclusive,
itor

o primeiro aponta que Freire inaugurou no Brasil os diálogos sobre o inte-


a re

lectual africano Frantz Fanon ainda em meados da década de 1960. Navegar


pelos seus livros é encontrar um Brasil, uma América Latina e uma África
desnudados de qualquer fábula; marcados pela denúncia freiriana contra a
violência das grandes metrópoles desferidas sobre os mesmos.
par

Freire (1978) chama essas poções periféricas da geografia global de zonas


de silêncio onde a infraestrutura e a superestrutura se influenciam mutuamente,
Ed

ou seja, enquanto a primeira é produto do trabalho humano e a projeta, a


segunda, por meio de um imaginário colonizado, materializa-se em feridas
no corpo social de grupos historicamente marginalizados.
ão

A cultura do silêncio, assim, não surge do acaso:


s

a cultura do silêncio nasce da relação do terceiro mundo com a metrópole.


ver

Não é o dominador que constrói uma cultura e a impõe aos dominados. Ela
é o resultado de relações estruturais entre os dominados e o dominador.
Assim, para compreender a cultura do silêncio, é necessário primeiro fazer
uma análise da dependência como fenômeno relacional que dá origem a
diferentes formas de ser, pensar, de expressar-se, as da cultura do silêncio
e as da cultura que têm uma palavra (FREIRE, 1978, p. 34).
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 197

Nesse sentido, ao negar o imaginário dos territórios colonizados, as


metrópoles despertam nos mesmos, de modo paradoxal, sentimentos de fas-
cínio e de repulsa que irão influenciar diretamente em sua infraestrutura. Tais
observações tecidas por Freire (1978) sobre territórios historicamente margi-
nalizados, em nossa visão, mostram o vigor de seu pensamento e a posição que
suas obras conquistaram no patamar dos clássicos epistemológicos dedicados
a problematizar a geopolítica do conhecimento, ao denunciar a colonialidade

or
que se derrama sobre as geografias mais desfavorecidas:

od V
aut
as sociedades latino-americanas apresentam-se como sociedades fechadas
desde o tempo da conquista por espanhóis e portugueses, quando a cultura
do silêncio tomou forma. Com exceção da cuba pós-revolucionária essas

R
sociedades ainda são fechadas; são sociedades dependentes, para as quais
o único que tem mudado são os polos de decisão de que são objeto con-

o
forme os diferentes momentos históricos: Portugal, Espanha, Inglaterra e
aC
Estados Unidos (FREIRE, 1978, p. 35).
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Seus textos já denunciavam um Brasil castigado pela precarização das


escolas públicas, exportador de matérias-primas e importador de manufatu-
visã
ras, massacrado por doenças tropicais, que não são frutos de um fatalismo
histórico, mas do descaso governamental dentre outras atrocidades, que não
ofuscavam, no entanto, as possibilidades de transformações jurídicas, políticas
itor

e sociais no cenário brasileiro, por meio da educação.


Uma educação libertadora com a missão de exorcizar nos coletivos
a re

oprimidos a sombra da opressão. Uma pedagogia que advoga a favor do


protagonismo dos subalternizados no decurso de suas histórias e disposta
a travar uma queda de braços contra o processo desumano de massificação
(SCOCUGLIA, 1999).
par

Na mesma direção, Arroyo (2012) e Hooks (2013) enxergam, no pen-


samento de Paulo Freire, uma sensibilidade e um respeito inigualáveis pelas
Ed

pedagogias das camadas populares. Enquanto, que o primeiro centra as suas


atenções para a o interesse freireano em compreender como os oprimidos
ão

elaboram os seus saberes e os compartilham, a segunda enxerga os escritos


freireanos como uma verdadeira ode ao protagonismo das mulheres e dos
homens oprimidos no âmbito das lutas políticas.
s

Nesse sentido, assim como Freire, os escritos colecionados por impor-


ver

tantes intelectuais que se debruçam sobre o pensamento decolonial, possuem


uma sensibilidade para reconhecer que os movimentos sociais de distintas
poções geográficas são os verdadeiros responsáveis pelo enriquecimento
da decolonialidade, ainda que tenham sido asfixiados pela visão sectária
do eurocentrismo.
198

Desta forma, distintos atores que vão desde lideranças religiosas, como
Mahatma Ghandi até os Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terre-MST
são vistos como a espinha dorsal da decolonialidade (MOTA NETO, 2016).
É nesse contexto que situamos os importantes relatos de mulheres ribeirinhas
com relação aos seus saberes cartografados a partir da medicina, do trabalho
e do imaginário na tentativa de garimpar traços marcantes da decolonialidade
em suas vivências.

or
od V
Pedagogias decoloniais molhadas pelos

aut
rios da Amazônia Paraense

R
Sensibilidades, corporeidades, solidariedades e afetos permeiam a rea-
lidade das comunidades ribeirinhas na Amazônia paraense pincelando um

o
cenário epistemológico decolonial em meio a um contexto de conflitos polí-
ticos, jurídicos e territoriais.
aC

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Nas palavras de Verônica:

Fordlândia é um lugar muito lindo. Tem influência dos americanos, por


visã
causa das seringueiras [...] lá era uma comunidade na época. Então, lá tinha
um mutirão. Quando era o tempo da sua roça, todo mundo se juntava e ia
fazer. Aí brotava a roça de todas as famílias. Aí, quando era para derrubar,
começa da sua roça e quando queimava que ia plantar, era do mesmo jeito.
itor

Quando as pessoas que às vezes estavam doentes que faltava gente, meu
a re

pai colocava a gente para trabalhar. Agora, é difícil ver essa união como
havia na comunidade de Sumaúma (VERÔNICA-FORDLÂNDIA).

Há indícios de mentes colonizadas no relato de Verônica. O seu encanta-


mento pelo “sonho americano” materializado na arquitetura da cidade de For-
par

dlândia, que se condensa na cobiça estadunidense sobre a Amazônia é explícita.


Grandin (2010) explica que Fordlândia é fruto de um experimento social
Ed

encabeçado por Henry Ford, vestido de um discurso salvacionista, desbrava o


território, com o apoio do governo brasileiro, às custas de baixos investimen-
ão

tos e de mão de obra barata. O empresário foi estimulado pelos estudos de


um botânico da universidade de Michigan Carl D La Rue que descrevia uma
Amazônia miserável e selvagem. Considera o autor, um fetiche econômico
s

e cultural que se alastrou pelo território amazônico sem conseguir, porém,


ver

soterrar por completo as dinâmicas sociais e econômicas locais que subver-


tem a própria colonização de seus imaginários. Em meio às ruínas do impé-
rio da borracha em Fordlândia, um ponto de resistência é simbolizado pela
comunidade ribeirinha de Sumaúma, palco de processos agrícolas coletivos,
extremamente criativos e voltados para outras lógicas de sustentabilidade.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 199

Entendemos que o pensamento decolonial se faz presente nessa narrativa


ao demonstrar uma nítida fronteira entre, de um lado, a violência colonizadora
dos Estados Unidos sobre o território paraense por meio da mutilação de flora,
ao passo que, do outro lado, processos plurais de interação com a natureza e
de agriculturas oriundas dos povos originários insurgem.
A técnica da coivara, própria da agricultura indígena, é detalhada pela
educanda Juruti:

or
od V
a plantação da mandioca é assim: a gente derruba, depois corta os galhos,

aut
para queimar. Aí, quando queima, vai coivarar, vai cortando os paus,
cavando e plantando. Aí, quando está em tempo de arrancar, arranca e vai
fazendo a farinha já para vender e depois vai plantando de novo [grifo

R
nosso] (JURUTI-SÃO SEBASTIÃO DA BOA VISTA).

o
A coivara, para Guimarães (2014), simboliza uma das formas mais anti-
aC
gas de intervenção humana sobre o meio ambiente e representa um conheci-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

mento vasto sobre os processos naturais e as múltiplas espécies que constituem


a fauna, configurando-se como uma importante aposta para o fortalecimento
do desenvolvimento sustentável.
visã
As epistemologias agrícolas dos povos indígenas e africanos ensopam
o cotidiano das comunidades ribeirinhas. Pedagogias outras, carregadas de
traços decoloniais, pois não foram totalmente apagadas do imaginário social
itor

amazônico ainda que encurralado pela invasão cultural androcêntrica, euro-


cêntrica e cristã.
a re

Pedagogias decoloniais que ecoam, também, nas múltiplas terapêuticas


adotadas pelas comunidades ribeirinhas, para garantirem um bem-estar físico
e emocional demonstrado pelas narrativas a seguir:
par

[...] olha, o chá mais usado para quem está com dor no estômago é o chá
da planta preciosa que dá no mato. É um cipó, a folha da preciosa. Se
Ed

estiver com dor, pode fazer o chá que passa na hora (ARACY-PORTO
DE MOZ).
ele [filho de Verônica] chorava que era uma dor de barriga que ele
ão

sentia. Tinha um senhor que entendia de remédio. Ele examinou e disse


que a doença estava no intestino do meu filho. Então, nós temos que
cuidar do intestino dele e começou a fazer um chá e o meu filho ficou
s

bom. Hoje, ele tem 39 anos, o meu caçula. Esse senhor que fez o remé-
ver

dio já morreu. Eu já tinha levado o meu filho no hospital e não deram


jeito. E ele chegou lá, ele fez uma reza, ele era índio, ele tinha dessas
coisas. Eu sei que o meu filho ficou bom. Graças a Deus. Ele disse que
é uma febre que dá no intestino e que infecciona o intestino da criança
(VERÔNICA-FORDLÂNDIA).
200

A medicina popular apresenta muitas traduções sobre as relações entre


as populações tradicionais e a floresta amazônica. O sentido ocidental sobre a
saúde, em nossa visão, é reconfigurado com o reconhecimento dessas intera-
ções. O bem-estar da floresta emite importantes códigos éticos e estéticos que
devem ser decodificados em imponentes tecnologias medicinais exorcizadas
de processos químicos e de experimentos que ferem a integridade de muitas
formas de vida.

or
As comunidades ribeirinhas, ao revelarem as suas parteiras, curandeiros e

od V
benzedeiros, comungam com o que Almeida (2014) identifica como a pulveri-

aut
zação de uma visão folclórica sobre esses coletivos: vistos erroneamente como
fazendeiros ecológicos e guardiões de bancos biogenéticos para viabilizar a
exploração sustentada pelos caprichos das grandes corporações capitalistas;

R
seus saberes apresentam poderosas pistas de que os recursos florestais podem
ser utilizados por meio de pedagogias ecológicas que respeitem a integridade

o
da flora e da fauna amazônicas.
aC

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Valores éticos e ambientais que se derramam no imaginário dos coleti-
vos amazônicos por meio da crença em seres encantados que ultrapassam as
metamorfoses do tempo, como as narrativas a seguir demonstram:
visã
lá [em Muaná], também tem a cobra grande e ela já correu atrás de várias
pessoas. Eles falam. Até aconteceu com um colega meu. Ele estava pes-
cando, quando ele pegou folha seca e quando ele olha para trás, ele vê
itor

uma coisa verde. Ele remou e saiu da beira, foi para a terra, porque ela
a re

suga a água (ANGRA-MUANÁ).

Em uma globalização capitalista que empurra os ecossistemas para o


abismo, ao provocar crimes ambientais irreparáveis, voltamo-nos para o pen-
samento decolonial que sinaliza para a necessidade de vivermos uma nova
par

descolonização: a do imaginário. Ao mergulharmos na mitologia amazônica,


perscrutamos dimensões paralelas permeadas por seres encantados que tecem
Ed

pedagogias ambientais que garantem o fluxo de cosmogonias responsáveis


por restaurar os sentidos éticos ecológicos violentados pelo neocolonialismo.
ão

No horizonte de uma conclusão em construção


s

As riquezas acadêmicas, sociais e políticas do pensamento decolonial


ver

são inquestionáveis. Em um cenário castigado por territórios em disputa, a


força desse movimento epistêmico ganha destaque e promete estremecer as
edificações da arrogância eurocêntrica.
No acervo de saberes outros que ressurgem das periferias globais, os
conhecimentos tecidos por mulheres ribeirinhas na Amazônia paraense
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 201

desenham novos horizontes nos âmbitos acadêmicos, agrícolas, medicinais


e ambientais, os quais têm sido alvo das vilanias de uma ciência imprudente
sobretudo no último século.
Ao demonstrarem domínio de técnicas agrícolas, de medicamentos natu-
rais e a autoria em um compêndio de lendas, misticismos e narrativas que
parecem ser imunes à corrosão do tempo, essas mulheres negam se curvar ao
eurocentrismo, ainda que os seus corpos estejam violentados pelos discursos

or
intramodernos e eurocentrados.

od V
Pensamos que o giro decolonial se revela nesse momento: em nenhum

aut
momento podemos negar que a realidade social se libertou de barbáries cruéis
pinceladas pela modernidade. Todavia, o reconhecimento de tais atrocidades
não desqualifica e não inviabiliza por completo a invenção, a reinvenção e

R
a transformação de lógicas outras de ser e de estar no mundo, de assumir
intelectualidades não apenas com a mente, mas com corpos com tonalidades

o
e anatomias que devem ser respeitados em sua diversidade. Só o reconheci-
aC
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mento do diverso no que aparentemente é homogêneo, possibilita pensarmos


na ciência em sua pluralidade singular.
visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
202

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o
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
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Ed
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od V
o aut
or
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PARTEIRAS TRADICIONAIS
NO AMAPÁ: saber tradicional,
políticas públicas e epistemicídio

or
od V
Maria das Neves Maciel da Luz

aut
David Junior de Souza Silva

R
Introdução

o
aC
Esta pesquisa tematiza a relação entre a prática tradicional das parteiras
e a rede pública de saúde no município de Macapá-AP. Problematiza-se o
significado atribuído ao saber tradicional das parteiras com o processo de
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

colonização que viveu o país, o racismo estrutural instituído, e diante de


visã
políticas públicas de incorporação de seus saberes tradicionais na estrutura
burocrática do Estado brasileiro.
O objetivo principal é compreender como se deu a inserção das parteiras
itor

tradicionais na rede pública de saúde do estado do Amapá, mediada pela imple-


a re

mentação da Política Pública “Resgate e Valorização das Parteiras Tradicionais


no Amapá”, lançada pelo governo estadual em outubro de 1995. O objetivo
desta política era a inserção das parteiras no Sistema Único de saúde (SUS)
no Amapá. Esta política havia sido criada dentro de um programa maior, o
Programa de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA), que visava o
par

fortalecimento das tradições locais do estado.


Ed

Este objetivo foi desdobrado nas seguintes linhas de reflexão: em que


se baseia cosmologicamente o saber das parteiras tradicionais? Quais os
requisitos exigidos das parteiras para participar da política e quais as ações
ão

propostas pela política tendo como alvo as parteiras? Qual a relação das
parteiras com os funcionários da rede de saúde? Qual a relação das par-
teiras com o saber médico e com os operadores do saber médico (médicos
s

e enfermeiros)?
ver

A pesquisa foi realizada nos anos de 2017 e 2018. A metodologia empre-


gada foi realização de entrevistas com parteiras tradicionais em suas residên-
cias e com funcionários do SUS, sobre o universo formado pelas relações
entre ambos no contexto impulsionado pela política. Malgrado as parteiras
geralmente tenham origem ribeirinha, ou seja, vivam em comunidades rurais,
aquelas entrevistadas, nesta pesquisa, são as que vivem na cidade de Macapá,
e se inseriram na política pública quando de sua implementação.
206

Conforme descobrimos, no espaço urbano do estado do Amapá, a relação


entre conhecimento tradicional e conhecimento científico, quando “ocorre”
geralmente se dá em períodos oscilatórios, com objetivo de aprimorar as
práticas tradicionais das parteiras por meio de dos cursos de capacitações e
troca de saberes entre os agentes envolvidos, mas sempre com prevalência do
saber médico oficial, pois o Estado não as reconhece enquanto profissionais.
Esta inserção é de forma subordinada e descaracterizadora. As parteiras,

or
nos espaços de saúde oficiais, não têm autonomia para realizar seu trabalho,

od V
dado o racismo – velado e institucional – por parte dos funcionários destes

aut
órgãos e da lógica disciplinar e eurocêntrica que os rege. As políticas públicas
de inclusão das parteiras nos espaços oficiais de promoção de saúde pública,

R
assim, tendem a descaracterizar e subordinar seu conhecimento, atualizando o
epistemicídio. Sendo políticas denominadas como de “inclusão”, não contesta-

o
mos que façam esta autoproclamada inclusão, porém trata-se de uma inclusão
epistemicida. As políticas públicas, neste caso, são veículos do epistemicídio
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


e da efetivação completa da colonização.

Modernidade, eurocentrismo e epistemicídio


visã

A modernidade carrega consigo uma ideologia confirmadora para uma


“práxis irracional” de violência: a ideologia do progresso e a ideologia da
ciência moderna como a única capaz de levar ao conhecimento verdadeiro
itor

da realidade natural e social. Esta ideologia institui um mecanismo de poder


a re

absoluto do conhecimento científico sobre o conhecimento tradicional, viti-


mando, pelo racismo epistêmico que institui, principalmente as populações
tradicionais e etnicamente diferenciadas sobreviventes à colonização, deten-
toras de saberes ancestrais e cosmologicamente específicos.
par

O conhecimento científico desenvolve uma relação de anulação em rela-


ção aos saberes locais – notadamente, em relação àqueles que não podem
Ed

explorar economicamente provocando assim, o epistemicídio de determinado


conhecimento milenar. Nesta pesquisa, problematizaremos esta relação de
poder que se estabelece entre a medicina obstétrica institucionalizada e o
ão

saber das parteiras tradicionais.


A primeira etapa do trabalho científico para compreender o sentido desta
s

relação é entender o universo simbólico e cosmológico da modernidade e


ver

contextualizá-la como evento histórico e visão de mundo. A Modernidade se


apresenta como momento mais avançado da história universal, onde os seres
humanos têm máxima consciência e racionalidade de si mesmos e do mundo, e
tem uma postura diante da sociedade para elevá-la às formas sociais, políticas
e cognitivas mais plenas.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 207

Dussel (2005) descontrói o discurso da modernidade sobre si mesma


e contextualiza-a no tempo e no espaço como uma produção simbólica e
ideológica da visão de mundo europeia, conectada intrinsecamente com os
interesses colonizadores e imperialistas europeus sobre o resto do mundo –
produção simbólica pela qual inclusive a Europa reescreve sua própria história
e oculta diversos elementos de sua construção, como forma de potencializar
seus discursos de dominação sobre os demais povos.

or
A universalidade da modernidade e a neutralidade/objetividade do conhe-

od V
cimento científico moderno são estratégias pelas quais a Europa apaga a polí-

aut
tica e seus interesses econômicos de sua produção ideológica e de sua ação
de conquista de territórios pelo mundo; a universalidade da modernidade, e
seu universo simbólico e ideológico precisa ser contextualizada sobre a loca-

R
lização restrita em que emerge, e sua neutralidade e objetividade precisam
ser referenciadas aos interesses que revestem, para que histórica e geografi-

o
camente sejam visibilizados os efeitos geopolíticos desta autoinvisibilização
aC
como estratégia.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Para este contexto-referenciação, Dussel reconta a história da formação


da Europa moderna a partir dos elementos que a ideologia da modernidade
quis ocultar como forma de potenciação de seu discurso de dominação. O autor
visã
reconstrói a história da Europa até a transição definitiva iniciada em 1492, para
explicar por meio deste passado algumas características do sistema-mundial
que o pequeno continente tentava criar – e onde pretendia ocupar posição de
itor

máxima superioridade.
a re

Ao período histórico e formação social global que a Europa chama


de Modernidade (ocultando seus interesses políticos e econômicos nisso),
Dussel propõe que chamemos de “eurocentrismo”, enfatizando o aspecto
absolutamente restrito da cultura do período, com predominância da cosmo-
logia europeia, e ressaltando os interesses de a Europa impor seus valores
par

e visão de mundo.
Ed

O eurocentrismo, como ideologia que alça a Europa e sua cultura à posi-


ção de superioridade, confunde a universalidade abstrata com a mundialidade
concreta, hegemonizada pela Europa como “centro” do mundo, mais “à frente”
ão

no tempo, e no “topo” do sistema-mundo piramidal que ela mesma construiu.


Para estar no “topo”, a Europa tem de provar sua superioridade; como
isto não é possível, a ideologia da modernidade eurocêntrica desqualificou
s

outros povos, sua cultura e seus saberes, como forma de instituir a superiori-
ver

dade europeia. Criou para isso o racismo, espalhou a desumanização que este
opera, em suas diversas formas, uma delas: a do racismo epistêmico – que
desqualifica todo conhecimento que não seja produzido nos moldes europeus
e segundo seus critérios de cientificidade – que de puros e neutros não têm
nada, permeados que são de interesses econômicos e políticos.
208

A ideologia do eurocentrismo se relaciona com o saber/arte de partejar das


carteirinhas ribeirinhas do Amapá na forma do racismo epistêmico, pelo qual
a ideologia eurocêntrica desqualifica e inferioriza estes saberes tradicionais.
As parteiras trazem consigo saberes únicos, capazes de identificar até
mesmo aspectos anatômicos da criança na barriga da mulher tendo como téc-
nicas o olhar, intuições, massagens e toques na barriga da gestante. Orientam
uma mulher que as procuram com dores ou quando a criança está “fora do

or
lugar”, ou seja, na posição incorreta – neste caso, as parteiras posicionam

od V
corretamente o feto com um toque no ventre da mulher, facilitando mais

aut
tarde o nascimento do bebê (RAMLOV; GREVE, 2016, p. 4). Pelo racismo
epistêmico, todavia, a modernidade europeia e sua concepção de saber como
monopólio da ciência europeia desqualificam o saber discursivo e prático do

R
conhecimento tradicional das parteiras.
Diante do racismo epistêmico instituído pela pretensão de monopólio

o
absoluto do saber e da verdade pela razão moderna, Dussel afirma a neces-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


sidade de transcender a razão moderna, mas não como negação da razão
enquanto tal, e sim da razão eurocêntrica, violenta, desenvolvimentista, hege-
mônica, que nega outras formas de saber. A razão eurocêntrica, cujo irmão
gêmeo é o racismo epistêmico, apresenta-se como uma justificativa de práxis
visã
irracional de violência sobre o saber tradicional.
O racismo epistêmico é o produto da epistemologia eurocêntrica e carac-
teriza-se pela monopolização da legitimidade epistêmica aos saberes euro-
itor

cêntricos. O racismo epistêmico estabelece o privilégio monopólico do saber


a re

ao homem branco europeu.

O racismo/sexismo epistêmico é um dos problemas mais importantes do


mundo contemporâneo. O privilégio epistêmico dos homens ocidentais
sobre o conhecimento produzido por outros corpos políticos e geopolíticas
par

do conhecimento tem gerado não somente injustiça cognitiva, senão que


Ed

tem sido um dos mecanismos usados para privilegiar projetos imperiais/


coloniais/patriarcais no mundo. A inferiorização dos conhecimentos pro-
duzidos por homens e mulheres de todo o planeta (incluindo as mulheres
ocidentais) tem dotado os homens ocidentais do privilégio epistêmico
ão

de definir o que é verdade, o que é a realidade e o que é melhor para os


demais. Essa legitimidade e esse monopólio do conhecimento dos homens
ocidentais têm gerado estruturas e instituições que produzem o racismo/
s

sexismo epistêmico, desqualificando outros conhecimentos e outras vozes


ver

críticas frente aos projetos imperiais/coloniais/patriarcais que regem o


sistema-mundo (GROSFOGUEL, 2016a, p. 25).

O racismo epistêmico, a criação de um universo simbólico propício


para descaracterizar o saber das parteiras e subalternizá-las como pessoas,
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 209

é percebido pelas próprias parteiras. A parteira reconhece a fragilidade de


sua condição subalterna diante da medicina oficial. Como afirma a parteira e
curandeira Raimunda Ramos, em depoimento dado à pesquisadora Benedita
Pinto: quando é no hospital que morre uma mulher ou uma criança, nem
médico e nem enfermeira leva a culpa nenhuma; agora se acontece um caso
desses com a gente, que Deus, Nossa Senhora livre, a parteira sempre leva a
culpa (PINTO, 2010, p. 278).

or
O final do processo é o epistemicídio, a destruição do saber tradicional e

od V
a desestabilização completa de sua validade em suas comunidades de origem,

aut
e a negação das condições de possibilidade do conhecimento por parte dos
sujeitos vitimados pelo epistemicídio.

R
Para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação e desqualifi-
cação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente

o
de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação,
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos


diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e pro-
dutor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela
carência material e/ou pelo comprometimento da auto-estima pelos pro-
visã
cessos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não
é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados
sem desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos
itor

cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para alcançar


a re

o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o epistemicídio fere de


morte a racionalidade do subjugado ou a sequestra, mutila a capacidade
de aprender etc.
É uma forma de sequestro da razão em duplo sentido: pela negação da
racionalidade do Outro ou pela assimilação cultural que em outros casos
par

lhe é imposta.
Sendo, pois, um processo persistente de produção da inferioridade intelec-
Ed

tual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades intelectuais,


o epistemicídio nas suas vinculações com as racialidades realiza, sobre
seres humanos instituídos como diferentes e inferiores constitui, uma tec-
ão

nologia que integra o dispositivo de racialidade/biopoder, e que tem por


característica específica compartilhar características tanto do dispositivo
quanto do biopoder, a saber, disciplinar/ normalizar e matar ou anular. É
s

um elo de ligação que não mais se destina ao corpo individual e coletivo,


ver

mas ao controle de mentes e corações (CARNEIRO, 2005, p. 97).

O epistemicídio, assim, é não somente a destruição de saberes conso-


lidados, construídos há séculos, mas também a retirada das condições de
possibilidade de produção do saber dos sujeitos não eurocêntricos. Atingiu e
210

atinge de forma direta as parteiras tradicionais, realizando o extrativismo de


seu conhecimento, para em seguida estabelecer a desacreditação delas como
detentoras do saber e deslegitimar estes próprios saberes.

A relação entre conhecimento científico e


tradicional na colonização europeia do Brasil

or
Sobre o processo colonizatório no Brasil e as culturas tradicionais,

od V
Ribeiro (1986) explica que no Brasil o processo de colonização integrado

aut
ao sistema socioeconômico nacional moderno, provocou grandes impactos
socioculturais sobre os índios, causando a extinção de etnias inteiras e perda

R
parcial ou total dos saberes e culturas de outros; consequentemente seus efeitos
atuaram em vários níveis de emergências, porque concernem a determinantes

o
que agem em planos superpostos e cumulativos.
A perda desses saberes e culturas indígenas ocorreu pelos conflitos que
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


são característicos do processo de colonização: conforme a expansão “civili-
zadora” uniformiza a diversidade da societalidade indígena, as etnias reagem
de forma diferenciada, conforme cada cosmologia interpreta a relação com
visã
este outro que se aproxima de forma violenta. Diz o autor que no processo
de colonização:

Os índios se veem submetidos a uma série de desafios, todos eles con-


itor

ducentes a transformações sucessivas no seu modo de ser e de viver.


a re

Nenhuma oportunidade lhes é dada de preservar seu substrato biológico,


sua sociedade e sua cultura em forma original. Os desafios cruciais com
que se defrontam são os de resguardar sua sobrevivência como contin-
gentes humanos seriamente ameaçados de extermínio; sua identidade e
autonomia étnica a fim de não se verem abruptamente subjugados por
par

agentes da sociedade nacional, a cujos desígnios tenham de submeter seu


próprio destino (RIBEIRO, 1968, p. 220).
Ed

Segundo o autor, o processo de transfiguração e perda dos saberes e cul-


turas das etnias indígenas brasileiras é resultado do enfrentamento entre índios
ão

e sociedade moderna. O primeiro processo é o conflito entre populações de


distintas entidades bióticas; pois o contato entre elas mescla racialmente e se
s

contagiam reciprocamente, acarretando em 96% uma redução exorbitante do


ver

contingente demográfico indígena. A dominação pela sociedade moderna se


sobrepõe rapidamente sobre as etnias formando uma nova sociedade nacional,
adotando um sistema produtivo de relações econômicas em determinados
planos. O estudo das situações de conjunção da sociedade nacional com as
populações tribais permite reconstruir o processo de transfiguração étnica
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 211

como uma sequência de efeitos dos agentes colonizadores e de respostas dos


povos indígenas para sobreviver ao extermínio e escravização impostos.
Doravante, o processo de transfiguração étnica revela o poder da vio-
lência exercido sobre os saberes e culturas de povos indígenas que, além de
usurpar seus conhecimentos e autonomia, uma violência direcionada pelo
objetivo colonial do desenvolvimento capitalista e expansões de territórios.
Por meio da relação entre sociedade nacional e etnias indígenas processa por

or
enfrentamentos entre entidades étnicas mutuamente exclusivas.

od V
aut
A reação destas consiste, essencialmente, num esforço para manter ou
recuperar sua autonomia e para preservar sua identidade étnica, seja atra-
vés do retorno real ou compensatório a formas tradicionais de existência,

R
sempre quando isto ainda é possível; seja mediante alterações sucessivas
nas instituições tribais que tornem menos deletéria a interação com a

o
sociedade nacional (RIBEIRO, 1968, p. 442).
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Diante do exposto, Ribeiro vai dizer que o processo de desenvolvimento


nacional ao longo da colonização no Brasil, provoca violentos conflitos, estes
que têm como efeito a desaparição das etnias ou a absorção destas pela socie-
visã
dade nacional na forma de aculturação progressiva que teria desembocado a
assimilação plena de cultura e saberes de tribos indígenas, por meio da mis-
cigenação. Jamais cessado, até hoje se renovam as violências da sociedade
nacional contra os povos tradicionais, movida pela lógica, interesses e visão
itor

de mundo dos atores que hegemonizam esta sociedade, as personificações do


a re

capitalismo predatório em busca de expansão territorial.

As parteiras tradicionais, o estado e as


políticas públicas no Amapá
par

As parteiras tradicionais são mulheres ribeirinhas ou de origem ribeirinha


Ed

que detêm o conhecimento sobre a arte de partejar e a responsabilidade de


realizar os partos nas comunidades rurais; todavia a partir do momento que
o Estado se apresenta como único poder legítimo, impondo e estabelecendo
ão

regulações sociais ao âmbito da saúde, através de sua institucionalidade por


meio das escolas médicas, oficializando a profissão do parto, o conhecimento
das parteiras é, nacionalmente, desacreditado pelo saber médico. O saber das
s

parteiras não é validado institucionalmente.


ver

No Amapá, houve uma única experiência de reconhecer o saber e a fun-


ção social das parteiras institucionalmente por meio de uma política pública
específica, que buscou reconhecer esses saberes por seu valor cultural intrín-
seco e pela função que representam naqueles territórios dentro do estado onde
a política de saúde oficial não chegava.
212

Esta política pública foi chamada de Resgate e Valorização das Parteiras


Tradicionais no Amapá, criada em outubro de 1995, teve o objetivo manifesto
de fortalecer, manter vivo saberes e fazeres das parteiras, reconhecendo a
importância do conhecimento tradicional para memória histórica e cultural
do estado e tradições locais.
De acordo com Barroso (2017), o projeto teve por objetivo intermediar
a articulação entre Estado e sociedade civil a respeito da viabilização e efeti-

or
vação das políticas propostas; nesse percurso, a ação principal era envolver as

od V
parteiras tradicionais buscando “o reconhecimento e valorização das parteiras

aut
tradicionais, com intuito de tirá-las do anonimato, profissionalizando-as e
apoiando-as em seu trabalho” (BARROSO, 2017, p. 126). A política almejava
a regulamentação da prática tradicional do parto, sem modificar o estilo de
fazer parto.
R
Esta política buscava regulamentação e valorização por meio da inser-

o
ção das parteiras no Sistema Único de saúde (SUS), de forma a estabelecer e
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


articular uma relação entre saber tradicional e saber científico em consonân-
cia com o arcabouço legal do Ministério da Saúde (MS) e com o objetivo da
proteção do patrimônio cultural.
A política pública era um desdobramento também das ações do Pro-
visã
grama de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA), que objetivava
o fortalecimento das tradições locais, no bojo das preocupações já com o
enfraquecimento destas tradições causado pela modernização.
itor

A regulamentação visava atribuir oficialidade ou legitimidade institucio-


a re

nal ao partejar tradicional e às parteiras como detentoras de um conhecimento


e uma função socialmente válidos. Um dos elementos desta valorização era
um reconhecimento financeiro por parte do estado, o programa bolsa-parteira.
Entretanto, para viabilizar esta regulamentação do partejar tradicional e
par

a inserção deste no SUS, era preciso estabelecer algumas medidas para con-
ciliar o partejar tradicional com o regimento do Ministério da Saúde. Entre
Ed

estas medidas, estava a frequência pelas parteiras a um curso de capacitação.


O depoimento abaixo é de Dona Caridade do Rosário Sá, 83 anos, mãe
de 5 filhos, viúva, moradora de Macapá (AP). Em entrevista realizada na resi-
ão

dência da parteira, que fez o curso de capacitação e foi cadastrada no programa


bolsa parteira. Em sua fala, ela relata como recebeu o chamado do programa.
s

Quando cheguei a Macapá (1993), a Janete queria parteira para fazer curso
ver

e quando ela soube que eu era parteira, ela mandou me buscar aqui em
casa eu nem sabia de nada, foi quando chegou um homem bem vestido
num carrão preto me buscar para comparecer na reunião das parteiras,
com papel e tudo na mão para falar da minha história de parteira, hoje não
lembro, mas quanto parto já fiz, mas peguei uns quantos filhos no interior.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 213

Em Macapá, fiz cinco partos, hoje não pego, mas devido minha idade 83
anos, mas puxo barriga até hoje eu puxo, e ajudo muitas mulheres não
serem cortadas (Dona Caridade, 2017).

Conforme Barroso (2017), no primeiro encontro, compareceram 62 par-


teiras para reunião com a primeira dama do estado da época; o objetivo do
encontro foi ouvir as necessidades e dificuldades enfrentadas pelas parteiras

or
tradicionais. Na oportunidade, as parteiras questionaram a realização do curso

od V
de capacitação. Na exposição, Barroso enfatiza que as temáticas expostas para

aut
as parteiras eram um elemento novo, uma realidade diferente dos seus costu-
mes e práticas. Em seus depoimentos, vê-se que nesse período, as articulações
e implantações desse projeto de capacitação, muitas parteiras tinham medo

R
de prestar assistência ao parto dentro da maternidade, porque segundo elas,
no hospital sempre tem alguém que observando seus atos, pronto a condenar

o
seu modo de pensar e de conduzir os partos.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Sobre isso, abaixo segue o relato da parteira Dona Celeste, de 81 anos,


mãe de 7 filhos, viúva, moradora da cidade Macapá. Em seu relato, em entre-
vista realizada na sua casa, Dona Celeste diz que fez o curso de capacitação,
visã
foi cadastrada no programa das parteiras e recebia meio salário mínimo; e
relata o porquê do medo.

Após o curso de capacitação nós fomos fazer o teste na Maternidade


itor

Mãe Luzia, para fazer o parto como teste, e nós parteiras tinha medo de
a re

errar, então acontecer alguma coisa ruim dentro do Hospital, pra saber
se a gente sabia mesmo fazer parto, tinha uma enfermeira nos acompa-
nhado, todo tempo eu fui a escolhida do grupo, pra fazer a prática nesse
dia, depois que fiz o parto, era até, uma menina lembro como se fosse
hoje, graças a Deus deu tudo certo foi elogiada e ganhei até os parabéns
par

da enfermeira que nos acompanhava, e disse que eu fiz direitinho, então


Ed

respondi no interior minha mana a gente não tem como, a gente pega a
criança com a graça de Deus mesmo, e comigo nunca aconteceu nada de
errado (CELESTE, 2017).
ão

Segundo os depoimentos das parteiras entrevistadas na pesquisa, perce-


be-se que as parteiras tradicionais têm o conhecimento do saber partejar por
s

dom; no que resulta que algumas parteiras tinham receio de fazer as aulas
ver

práticas nos cursos de capacitação, pois o sentido desses cursos não era ensi-
nar a fazer parto, porque isso a parteira já sabia fazer, o objetivo dos cursos
de capacitação era a busca por reconhecimento das práticas e habilidades
do conhecimento tradicional, mediante sua colocação dentro do padrão da
vigilância sanitária conforme o Ministério da Saúde.
214

O primeiro curso de capacitação ocorreu de 9 a 13 de julho de 1996, em


que foram capacitadas 327 parteiras tradicionais. Ao término do curso, as
parteiras receberam bolsas parteiras, certificados e crachá.
A política de valorização das parteiras teve outros objetivos, dos quais
citamos alguns aqui: realizar o censo das Parteiras Tradicionais, buscando
identificá-las; realizar cursos de capacitação para essas parteiras; distribuir
uma bolsa kit com o material necessário para a realização do parto domiciliar,

or
esclarecendo a importância da utilização deste material; difundir os conheci-

od V
mentos da “arte de partejar” entre os profissionais de saúde (convencionais

aut
ou não, estabelecer um sistema de referência para gravidez de risco e partos
complicados, e reconhecimento profissional, com inserção das parteiras nos

R
serviços locais de Saúde, buscando assegurar assim seus direitos.
Conforme Barroso (2017), o programa de capacitação conviveu com

o
uma forte tendência de romantização das parteiras, romantização pela qual
estas se tornam símbolos anacrônicos “de um passado ao qual não se pode
aC

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pretender retornar”, porém que, todavia, ecoa na resistência à medicalização
do parto, à mercantilização da saúde e à fragmentação do ser humano. Con-
forme a autora, o projeto buscava a visibilidade das atividades das parteiras,
visã
reconhecendo nele um aspecto da cultura local, sobretudo valorizar, definir e
integralizar ao sistema de saúde do Estado, a fim de garantir um atendimento
“eficaz” e “contínuo”, incorporando assim a participação e formação cons-
itor

ciente da cidadania, voltada para a manutenção e regularização da cultura do


a re

parto tradicional.
No arcabouço legal nacional, há já o reconhecimento da parteira.
Consta na lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, que dispõe sobre regu-
lamentação do exercício da enfermagem. Seu artigo 9º define como são
reconhecidas legalmente as parteiras, vinculando esse reconhecimento ao
par

certificado previsto no art. 1º do Decreto-Lei nº 8.778, de 22 de janeiro


de 1946, observado o disposto na Lei nº 3.640, de 10 de outubro de 1959.
Ed

No estado do Amapá, a lei nº 3.308-B, de 2004 reconhece as parteiras como


profissionais do parto.
ão

O reconhecimento profissional e da função social das parteiras conflita


com esta romantização, sedimentada em momentos pelos quais a sociedade
apenas as vê sob o viés do patrimônio cultural, em eventos esporádicos, cele-
s

bram sua existência em datas comemorativas, como por exemplo, a promovida


ver

pela Organização Mundial da Saúde (OMS), datando o dia 5 de maio como


dia Internacional da Parteira desde 1991.
Estas datas comemorativas realizam algum tipo de reconhecimento sem
reconhecimento, porque, apesar das celebrações, as parteiras continuam sem
uma legitimação e reconhecimento concreto no arcabouço jurídico estatal.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 215

Esses efeitos aos povos tradicionais não ocorrem de forma esporádica, mas
sistêmica, da omissão e negligência dos sucessivos governos. É fruto da
intolerância e do preconceito perpetuados em todos os rincões do Brasil.
Por ser um País pluriétnico, deveria reconhecer a existência de diversos
“grupos participantes do processo civilizatório nacional”, “em prol da
diversidade étnica e regional”, como determina a Constituição, em seus
artigos 215 e 216. Esses grupos são indígenas, quilombolas, ribeirinhos,

or
quebradores de coco babaçu, peconheiros (apanhadores de açaí). Deno-
minados de povos ou comunidades tradicionais, são sujeitos de direitos

od V
específicos (PONTES JUNIOR, 2017, p. 14).

aut
R
A política de capacitação e profissionalização:
contradições da inclusão

o
aC
Esta seção discute os desafios e contradições da política de inserção das
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

parteiras no Sistema Público de Saúde especialmente às exigências exógenas


de adequação da atuação das parteiras às normas vigentes estabelecidas pelo
Ministério da Saúde.
visã
O caminho para viabilizar legalmente a inserção das parteiras no sistema
de saúde pública foi pelo viés da Política Nacional de Atenção Integral à
Saúde da Mulher (PNAISM). Todavia, mesmo com o diálogo possibilitado
itor

pela PNAISM, que tem como princípios orientadores para esta inserção os
a re

conceitos de descentralização, hierarquização e regionalização dos serviços de


saúde, esta inserção realizou-se problemática na prática, por conta das exigên-
cias de monitoramento estabelecidas por uma episteme alheia ao saber-fazer
das parteiras, aquela do saber médico. Esta inclusão resultou uma forma de
descaracterização e controle estatal do saber-fazer das parteiras, porque para
par

serem reconhecidas, precisavam obrigatoriamente reorganizar sua prática


Ed

conforme os critérios estabelecidos pelo poder estatal – critérios criados pelo


saber médico-hospitalar.
Conforme a análise de Barroso (2017), o PNAISM recomenda deter-
ão

minadas medidas para melhoria do parto domiciliar realizado pelas parteiras


tradicionais, após treinamentos, supervisão, fornecimento de material estabe-
lecido pelos mecanismos referenciais do SUS. Segundo Barroso, o SUS tem
s

apresentado perspectiva positiva nesse contexto social de políticas inclusivas


ver

dos saberes das parteiras tradicionais, sobretudo, diante do objetivo de resgatar


e apoiar o tradicional trabalho das parteiras em suas comunidades – onde não
exista rede de saúde oficial – para que elas contribuam com atenção à saúde da
mulher nos períodos da gestação, parto e pós-parto. Conforme a autora, essa
atuação poderia ocorrer nas comunidades rurais em forma de acolhimento,
216

na rede estadual de saúde, sua participação caberia no programa saúde da


família, com intuito de reduzir a mortalidade materna dependendo da região.
Mesmo com essa possibilidade de inserção limitada, para atuação das
parteiras onde a rede de saúde estatal não chega, o saber tradicional enfrenta
muitas barreiras diante do poder-saber médico cristalizado no Estado, saber
este que não permite uma relação compartilhada entre saber científico da
medicina e saber tradicional das parteiras. No estado do Amapá, mesmo com

or
programas de incentivos e articulações em prol do trabalho das parteiras, os

od V
testemunhos das parteiras confirmam que não se estabelece uma relação de

aut
integração com os profissionais da saúde pública. Na prática, as parteiras têm
sua inclusão negada para atuarem nos órgãos de saúde pública.
As ações educativas são peça central destas políticas de inserção e reco-

R
nhecimento das parteiras, pois ajudam no possível processo de inclusão do
trabalho das parteiras no SUS mediante o curso de capacitação. A ação edu-

o
cativa incidindo sobre as parteiras foi atividade central da política, ocorrendo
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


o lançamento do manual Trabalhando com Parteiras Tradicionais, onde são
descritos todos os mecanismos que a parteira precisa saber para fazer um parto
de forma estabelecida como segura pelo ministério da Saúde.
visã
Algumas destas ações educativas realizavam-se como formas de aper-
feiçoar as práticas das parteiras tradicionais e melhorar as condições de
trabalho, com práticas técnicas da medicina obstetrícia. Porém a capa-
itor

citação dessas práticas aos moldes da ciência moderna evidencia uma


a re

estratégia que reduz a complexidade da questão do saber/fazer da parteira


(BARROSO, 2017, p. 60).

O que está em ação nesta política é um processo lento de epistemicídio do


saber tradicional das parteiras, realizado por uma política pública de inclusão
par

e reconhecimento.
O discurso da política pública é o de que o compartilhamento de
Ed

saberes e a capacitação das parteiras para o uso de objetos e tecnolo-


gias biomédicas são efetivados para apoiar e fortalecer suas atividades de
ão

partejar. Concordamos com Barroso (2017) que isto se constitui em uma


intervenção no modo de assistência ao parto domiciliar e vem modificando
o modo de cuidar da mulher na gestação e no parto domiciliar feito pelas
s

parteiras tradicionais.
ver

Este compartilhamento, advogado na política pública, realizou-se já


na história das relações entre saber médico e saberes tradicionais sobre a
saúde, porém não na forma de uma valorização recíproca, e sim na forma da
apropriação dos saberes populares pela ciência médica oficial, processo que
nominamos como extrativismo epistêmico.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 217

O extrativismo epistêmico é uma das formas da relação historicamente


estabelecida entre ciência moderna e saberes indígenas, na qual a finalidade
é a exploração destes saberes e sua incorporação ao arcabouço da ciência
moderna, para fortalecer a esta e como forma de atender ao movimento de
ampliação com vistas à absolutização desta. Nas palavras de Grosfoguel o
“objetivo del “extractivismo epistémico” es el saqueo de ideas para merca-
dearlas y transfórmalas en capital económico o para apropiárselas dentro de

or
la maquinaria académica occidental com el fin de ganar capital simbólico”

od V
(GROSFOGUEL, 2016b, p. 133).

aut
Qualquer relação de paridade ou reciprocidade ou mesmo respeito está
ausente do extrativismo epistêmico.

R
No busca el diálogo que conlleva la conversación horizontal, de igual a
igual entre los pueblos ni el entender los conocimientos indígenas en sus

o
propios términos, sino que busca extraer idea como se extraen materias
aC
primas para colonizarlas por medio de subsumirlas al interior de los paráme-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

tros de la cultura y la episteme occidental (GROSFOGUEL, 2016b, p. 132)

A consolidação da ciência médica obstétrica no Brasil efetivou-se com


visã
o extrativismo da episteme das parteiras tradicionais, como vemos na análise
de Celeste Pinto (2010).
Segundo a autora, o percurso da história demonstra que no Brasil a
itor

ascendência do conhecimento da ciência médica do cuidado da mulher se dá


a re

no século XIX, com a criação das escolas Médicas Cirúrgicas, nos Estados da
Bahia e do Rio de Janeiro, em 1808. Com a criação destas escolas, delega-se
aos médicos o papel de formar novos profissionais na arte de partejar. Segundo
a autora, geralmente se buscava qualificar as próprias parteiras, curandeiros,
benzedeiras, por já exercerem esses saberes tradicionais, uma prática não
par

formalizada à época e que até os dias atuais, elas continuam a exercer um


papel informal na profissão do parto.
Ed

Todavia, Pinto (2010) demonstra que apesar da indicação profissional


dessas mulheres detentoras do conhecimento tradicional, muitas não eram
alfabetizadas ou sabiam ler pouco, e isso se tornou um problema na profis-
ão

sionalização do ensino da prática das parteiras de forma legal.


O saber médico assim se apropria monopolicamente deste domínio,
s

impondo a validade exclusiva da ciência moderna. O saber das parteiras,


ver

única forma conhecida pela humanidade para realizar os partos até então, é
invalidado a partir da monopolização realizada pelo saber médico.
O efeito, conforme Pinto (2010), é que o saber tradicional das parteiras se
torne excluído diante do saber médico. As parteiras, até então as “aparadoras de
vidas” e “conselheiras do bom nascer”, passam a ser alvo de estigmatizações;
218

seus relicários de simpatias, massagens, chás, unguentos e banhos passam para


um patamar inferior aos olhos dos domínios das novas técnicas obstétricas
das modernas maternidades do poder público (PINTO, 2010, p. 136). Esse
processo de exclusão segundo a autora, se dá, sobretudo, pelo movimento
da modernidade eurocêntrica, que por medidas de aperfeiçoamento e novas
técnicas do saber/fazer, acaba excluindo saberes locais como os das parteiras
tradicionais, que há tempos imemoriais praticam esse saber-fazer.

or
Tanto que para Pinto (2010), as ações e projetos governamentais, que

od V
se de um lado apontam um caminho para legitimidade ou valorização por

aut
meio de políticas em prol das práticas tradicionais de trabalho das parteiras,
por outro lado, têm o objetivo de “higienizar” a prática destas mulheres,
considerando seus ofícios errados, impróprios para uma profissionalização

R
diante do conhecimento cientifico hegemônico. Porém a autora ressalta que
as parteiras tradicionais resistem e insistem na preservação de seus direitos

o
enquanto práticas ancestrais buscando reconhecimento e valorização dos seus
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


saberes tradicionais, ao contrário do saber formal dos médicos ou agentes
oficiais de saúde dirigidos pela instituição do Estado Moderno que reconhece
a legalidade exclusiva desses profissionais de saúde. Diz a autora:
visã
Não se pode negar o avanço da medicina nos últimos tempos e o sur-
gimento de instrumentos sofisticados, técnicas e medicamentos ino-
vadores. Mas o confronto entre o saber científico e o saber popular, o
itor

tradicional ainda persiste, visto que, a maioria dos aparatos técnicos da


a re

moderna medicina ainda é totalmente inacessível às populações pobres


(PINTO, 2010, p. 140).

Nesse sentido, o eurocentrismo, como uma de suas formas de coloni-


zação, carrega a ciência moderna como instrumento de imobilização e sub-
par

jugação dos povos. O cientificismo, como monopólio absoluto da ciência


europeia sobre todos os campos do saber, realiza o epistemicídio dos saberes
Ed

dos povos tradicionais vítimas da colonização.


Aspirantes ao universalismo e à neutralidade, a ciência moderna é sus-
tentada sobre práticas e cosmologia eurocêntrica, instituindo seus saberes
ão

e práticas como monopólicos e realizando o epistemicídio dos saberes não


eurocêntricos.
s
ver

Considerações finais

O Brasil é um país pluriétnico, mas não tem um correspondente Estado


Plurinacional. Muitos direitos étnicos estão garantidos na Constituição,
como direito ao território, ao modo de vida diferenciado, à própria cultura e
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 219

religiosidade; porém o problema se dá na efetivação da cidadania: na enorme


distância que há entre o direito instituído na Constituição e o efetivado e
reconhecido na realidade social.
O direito aos saberes tradicionais é um destes saberes garantidos na
Constituição do Brasil, pela qual os povos tradicionais estão protegidos da
discriminação e do desrespeito face a seus conhecimentos e visão de mundo.
Todavia, são poucos os instrumentos administrativos, educativos e jurídicos

or
instituídos no Estado brasileiro para efetivar de fato este direito e proteger

od V
os povos da discriminação – o que implica poucas ações estatais de proteção

aut
contra violências e reparação de agressões.
Nesta seara, no Amapá houve a criação de uma política pública muito
significativa neste domínio, que objetivava formalmente o reconhecimento e

R
valorização do saber de um grupo tradicional específico, as chamadas “par-
teiras tradicionais”, detentoras do saber partejar e de conhecimentos de ervas

o
e raízes medicinais.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Neste texto, avaliamos o sentido de uma política pública de inclusão


realizada pelo e no arcabouço burocrático do Estado brasileiro. O resultado
é que por características estruturais e por uma série de reveses, que incluem
contrariar poderes econômicos e políticos estabelecidos e pelo racismo estru-
visã
tural (velado e institucional) a política configurou-se em mais uma ação epis-
temicida do Estado para apagar o saber das parteiras e subalternizá-los como
grupo tradicional.
itor

O universalismo e neutralidade/objetividade da ciência moderna conver-


a re

te-se em instrumento de apagamento dos saberes tradicionais e subjugação


dos outros povos. Diante deles, realiza o racismo epistêmico, invalidando-os;
quando pretexta o diálogo, realiza o extrativismo epistêmico, do qual se ali-
menta dos saberes tradicionais, higienizando-os e em seguida, deslegitimando
par

seu exercício pelos povos que os criaram.


A política pública de inclusão e reconhecimento se tornou outra tecno-
Ed

logia de epistemicídio, colonialismo interno e subcidadania.


s ão
ver
220

REFERÊNCIAS
ACKER, J. I. B. V. et al. As parteiras e o cuidado com o nascimento. Revista
Brasileira Enfermagem, v. 59, p. 647-51, 2006.

BARROSO, I. C. “Capacitação” de parteiras tradicionais do Amapá:

or
tensões entre incorporação de saber médico e resistência cultural na prática
de partejar. 2017. Tese (Doutorado) – Centro de Humanidades, Universidade

od V
Federal do Ceará, Brasil, 2017.

aut
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como

R
fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) –Programa de
Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo.

o
aC
DUSSEL, E. Europa, modernidade e Eurocentrismo. In: LANDER, Edgardo

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


(org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos
Aires: Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, 2005.
visã
GROSFOGUEL, R. Del “extrativismo económico” al “extrativismo episté-
mico” y al “extrativismo ontológico”: una forma destructiva de conocer, ser
y estar en el mundo. Tabula Rasa, Bogotá, n. 24, p. 123-143, 2016b.
itor
a re

GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades


ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epis-
temicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1,
p. 25-49, jan./abr. 2016a.
par

PINTO, B. C. de M. Filhas das matas: práticas e saberes de mulheres qui-


lombolas na Amazônia Tocantina. Belém: Açaí, 2010.
Ed

RAMLOV, C. M.; GREVE, V. G. P. Mães de umbigo: histórias das parteiras


do Amapá. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação, Centro
ão

de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina,


Brasil, 2016.
s
ver

RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das Populações


Indígenas no Brasil Moderno. 5. ed. Petrópolis, Vozes, 1986.
INTERFACES ENTRE O PESAMENTO
DECOLONIAL E AS NARRATIVAS DE
DUAS OBRAS DE ENEIDA DE MORAES

or
od V
Ana D’Arc Martins de Azevedo

aut
Elziene Souza Nunes Nascimento

R
Introdução

o
aC
Este capítulo foi elaborado para discutir sobre as bases teóricas da deco-
lonialidade que podem ser percebidas nas entrelinhas de duas das obras de
Eneida: “Aruanda” (1957) e “Banho de Cheiro” (1962). Nesse sentido, emerge
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a análise acerca dessa interface que visa estabelecer uma ligação lógica entre
visã
a decolonialidade e as narrativas de Eneida, sem que a mesma se quer tenha
citado a nomenclatura “decolonial” nas suas memórias escritas.
Trata-se de um estudo inovador, tendo em vista a inexistência dessa
itor

temática na literatura paraense. A iniciativa por pesquisá-la se efetivou a partir


do contato no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Comunicação,
a re

Linguagens e Cultura da Universidade da Amazônia – UNAMA, mediante


estudos baseados em um amplo referencial teórico sobre as narrativas tradi-
cionais e contemporâneas, nos quais se teve acesso a duas obras de Eneida
“Aruanda” e “Banho de Cheiro”. Já tendo sido concebida e internalizada,
par

anteriormente, a proposta da decolonialidade, pensou-se em estabelecer um


estudo de interfaces.
Ed

A opção em priorizar as narrativas de Eneida se dá em função de que


o sangue amazônico corria em suas veias por ela “contar” a Amazônia em
suas narrativas e ser sensível aos problemas sociais, denunciando as injusti-
ão

ças. Eneida é considerada uma mulher que viveu seu tempo plenamente, em
momentos de opulência e, também, de modéstia. É considerada uma mulher
s

com pensamento de luta e de caráter otimista.


ver

Mediante as questões aqui pontuadas, a problemática que norteia o pre-


sente estudo de cunho bibliográfico é: Quais as bases do pensamento deco-
lonial estão presentes nas narrativas de Eneida em suas obras “Aruanda” e
“Banho de Cheiro”?
O presente capítulo tem como objetivo geral analisar o pensamento deco-
lonial nas narrativas de Eneida por meio do estudo de interfaces. E os obje-
tivos específicos são: I) Conhecer o perfil da mulher Eneida; II) Caracterizar
222

a decolonialidade; III) Identificar as bases do pensamento decolonial nas


narrativas de Eneida. Metodologicamente, trata-se de um estudo de caráter
bibliográfico. Sobre a pesquisa bibliográfica:

A pesquisa bibliográfica permite compreender que, se de um lado a reso-


lução de um problema pode ser obtida através dela, por outro, tanto a
pesquisa de laboratório quanto à de campo (documentação direta) exigem,

or
como premissa, o levantamento do estudo da questão que se propõe a ana-
lisar e solucionar. A pesquisa bibliográfica pode, portanto, ser considerada

od V
também como o primeiro passo de toda pesquisa científica (LAKATOS;

aut
MARCONI, 1992, p. 44).

R
Neste sentido, esta pesquisa encontra-se fundamentada em Moraes
(1989); Quijano (2005); Mignolo (2008), dentre outros. Para a investiga-

o
ção do pensamento decolonial nas narrativas de Eneida, foram menciona-
das algumas citações de suas obras “Aruanda” e “Banho de Cheiro” que
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


rementem aquela proposta, estabelecendo o diálogo com autores decolonias,
seguida de análises.
Este estudo, além da introdução, está organizado em três bases centrais:
visã
na primeira procura-se focar o perfil da mulher Eneida, por meio da apresen-
tação de suas várias faces; na segunda registra-se, de forma sucinta, o entendi-
mento sobre a decolonialidade; e na terceira, cita-se a ligação lógica existente
itor

entre o pensamento decolonial e as narrativas de Eneida em “Aruanda” e


“Banho de Cheiro”, seguindo-se das considerações finais.
a re

As várias faces da mulher Eneida

Aqui focamos o perfil da mulher Eneida, que para Loureiro (s/a) suscita
par

a existência dessa multi mulher: criança, adulta, odontóloga por profissão,


escritora que narrava com paixão, jornalista, pesquisadora, mãe de dois filhos,
Ed

viajante pelo mundo levando a ideologia de luta política brasileira, guerreira,


militante de esquerda, intelectual, boas amizades, bons momentos, outros nem
tanto. Contudo, gostava de ser chamada simplesmente por Eneida. Foi uma
ão

mulher, filha da Amazônia paraense, nasceu em Belém no dia 23 de outubro


de 1904, tendo como pais Guilherme Joaquim da Costa e Júlia Vilas Boas
s

Costa (BRINCHES, 1974).


ver

Desde criança já demonstrava seus dotes literários. Aprendeu a declamar


poemas e, aos sete anos, escreveu seu primeiro conto, recebendo sempre o
incentivo de seus pais e de sua babá, uma francesa chamada de Elise Platt.
Estudou como interna no Colégio Notre Dame de Sion, educandário de freiras
localizado em Petrópolis (RJ), onde permaneceu dos oito aos treze anos. Ao
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 223

retornar à Belém, já tinha dezessete anos, período da morte de sua mãe em


função da gripe espanhola, a qual lhe deixou como herança uma biblioteca
fascinante (BRINCHES, 1974).
Ao estudar em Colégio interno, em outro Estado e longe da família,
Eneida sem saber já estava sendo preparada para os desafios que a vida
lhe traria. Sua família primou para que tivesse uma excelente educação e
o fato de ter uma biblioteca com acervo invejável demonstra a origem de

or
sua intelectualidade.

od V
Estudou no Colégio Gentil Bittencourt e cursou a Faculdade de Odon-

aut
tologia, na cidade de Belém. Desde esse período, participava do movimento
literário do Pará, publicando crônicas e poesias em diversos jornais — entre
os quais o Estado do Pará — e revistas como “Guajarina” e “A Semana”, da

R
qual foi secretária, em substituição a Pelegrino Júnior (BRINCHES, 1974).
Observa-se que, desde muito cedo, Eneida já percorria uma trajetória

o
de intelectual, uma educação que lhe rendeu ter acesso a cultura letrada e,
aC
consequentemente, uma visão crítica e ampla do mundo que a cercava. Já
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

adulta, morou em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nestes Estados, participou


ativamente do movimento esquerdista. Enquanto militante, foi presa várias
vezes, em diferentes momentos históricos: 1932 (por 4 vezes), e durante o
visã
Estado Novo (1937-1945). Porém, seja livre ou detida no pavilhão, continuava
a escrever suas magnificas obras. Era, em sua essência, uma intelectual das
letras. Nesse período, já separada do marido, com quem deixara seus dois
itor

filhos, percorreu o centro-sul do Brasil deixando sua marca de garra e coragem,


a re

já que, quando havia feriados, tinha paralizações e greves nesses Estados e,


Eneida era articuladora desses movimentos. Também, por isso, fora presa por
diversas vezes (BRINCHES, 1974).
Eneida escrevia para revistas e jornais, obras de caráter poético-jornalís-
tico. Era uma mulher ligada a grupos de escritores e intelectuais no Brasil e
par

no mundo. Foi engajada em intensa atividade política, e foi membro da seção


Ed

paulista do Partido Comunista Brasileiro, então Partido Comunista do Brasil


(PCB) (BRINCHES, 1974). Nesse período, os comunistas no Brasil eram
considerados como criminosos e uma ameaça “a paz nacional”. Os membros
ão

do partido comunista sofriam perseguição de toda sorte. Destaque para a garra


e coragem de Eneida.
Seja em São Paulo ou na cidade do Rio de Janeiro, ao apoiar a causa
s

feminina, lutava com objetivo de uma proposta pela ampla aceitação dos
ver

direitos políticos, sociais e trabalhistas da mulher. Quando foi esmagada a


Revolta Comunista, promovida pela ANL em novembro de 1935, Eneida
fora presa pela polícia do Distrito Federal sob a acusação de ter mantido
contatos – usando o pseudônimo “Nat” com os chefes do movimento armado
(BRINCHES, 1974).
224

Eneida teve uma vida de riqueza durante a infância e juventude, porém,


seu olhar a favor de uma sociedade justa é uma marca percebida na sua ban-
deira de luta. Ao ser presa, passava por sérias dificuldades. Dessa forma, teve
que trabalhar como operária, tradutora e redatora de artigos políticos. Con-
tudo, marcou sua presença como delegada de Minas Gerais, do I Congresso
Brasileiro de Escritores, em São Paulo, num momento político que marcava
o início do desmoronamento da ditadura estado-novista (BRINCHES, 1974).

or
É preciso verificar que Eneida conheceu também o lado restrito de uma

od V
vida sem condições financeiras, contudo, nada disso a esmorecia, seu foco

aut
era lutar em favor de melhores condições de vida a população de seu país.
Em 1946, já no governo do general Eurico Gaspar Dutra, começou a escrever

R
para o “Momento Feminino”, do Rio de Janeiro. Três anos depois, viajou
a Paris, onde, além de estudar literatura, tornou-se colaboradora do Diário

o
Carioca. Travou conhecimento com Jean Cocteau, Paul Eluard, Louis Aragon
e Pablo Picasso (BRINCHES, 1974).
aC

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Eneida cultivou amizade com intelectuais da época, socializando seus
saberes e “sofrendo” influência dos mesmos, ampliando ainda mais sua cul-
tura. De volta ao Brasil, começou a trabalhar em 1951 no Diário de Notícias,
visã
assinando uma coluna de informes literários intitulada “Encontro matinal”.
Continuou lançando livros: “Sujinho de terra”, que lhe valeria em 1957 o
prêmio de literatura infantil da Prefeitura do Distrito Federal. Ainda, em 1953,
deixou o “Diário Carioca” e, a partir de então, intensificou sua produção lite-
itor

rária. Em 1954, lançou os livros “Cão da madrugada”, com crônicas, recor-


a re

dações de infância e impressões de Paris, alguns personagens, reunindo uma


novela e cinco reportagens e, em 1957, publicou “Aruanda”, com crônicas e
memórias. Em “História do carnaval carioca”, editado em 1958, revelou sua
paixão pelo carnaval, do qual foi grande entusiasta, tendo inclusive criado o
par

baile do Pierrô (BRINCHES, 1974).


Em meados de 1959, viajou à União Soviética, a convite do Sindicato
Ed

de Escritores daquele país. Visitou também a China Popular e outros países


socialistas. Suas impressões de viagem ganharam a forma de livro em “Os
caminhos da terra”, lançado em 1960, e no mesmo ano, publicou “Guia da
ão

mui bem-amada cidade”. Em 1961 publicou “Romancistas” também perso-


nagens e em 1962 “Banho de cheiro”, no qual relata episódios de sua prisão
s

em 1935. “Molière” narrado para crianças e “Boa noite professor”, ambos


ver

livros de contos, datam de 1965. Veio a falecer na cidade do Rio de Janeiro,


em 27 de abril de 1971 (BRINCHES, 1974).
Nessas narrativas, percebe-se a vivacidade da mulher Eneida, incansável
em seu ofício de escritora que contemplava e valorizava o mundo ao seu redor.
Da militante destemida que enfrentou a “velha” política brasileira, criticando
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 225

o populismo e as injustiças sociais, também lutou pelos direitos das mulheres,


dos jovens e das crianças. O seu ideal foi a valorização da liberdade de caráter
decolonial. Isso é decolonialidade.

Entendendo a decolonialidade

“Decolonialidade” é um termo cunhado por um grupo composto por

or
intelectuais latino-americanos que, fundamentalmente, quer dizer ‘o movi-

od V
mento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da

aut
modernidade/colonialidade’. Segundo Mignolo (2008), “a conceitualização
mesma da colonialidade como constitutiva da modernidade é já o pensamento
de-colonial em marcha” (MIGNOLO, 2008, p. 249).

R
Compondo a genealogia global do pensamento decolonial, pode-se elen-
car intelectuais tais como: Mahatma Gandhi, W. E. B. Dubois, Juan Carlos

o
Mariátegui, Amílcar Cabral, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Fausto Reinaga,
aC
Vine Deloria Jr., Rigoberta Menchú, Gloria Anzaldúa mas, também, o movi-
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mento Sem Terras no Brasil, os zapatistas em Chiapas, os movimentos indí-


genas e afros na Bolívia, Equador e Colômbia, o Fórum Social Mundial e o
Fórum Social das Américas. Observa-se que: “A genealogia do pensamento
visã
decolonial é planetária e não se limita a indivíduos, mas se incorpora nos
movimentos sociais (o qual nos remete aos movimentos sociais indígenas e
afros)” (MIGNOLO, 2008, p. 258).
itor

A proposta decolonial, a partir de estudos na América Latina, é uma


a re

abordagem mais recente, tendo como parâmetro o que em outro lugar Mig-
nolo (2008) denominou de “pensamento fronteiriço”: tal pensamento fron-
teiriço, desde a perspectiva da subalternidade colonial, é um pensamento
que não pode desconhecer o pensamento moderno, mas que não pode tam-
pouco atrelar-se a ele, ainda que o mesmo seja de esquerda ou progressista.
par

O pensamento fronteiriço é o pensamento que garante o espaço de onde o


Ed

pensamento foi negado pelo pensamento da modernidade, de esquerda ou


de direita (MIGNOLO, 2003).
Os embriões da ideia de decolonialidade latino-americana estavam pre-
ão

sentes em Quijano (2005). Em seu artigo, lançou a ideia de colonialidade do


poder, se referindo à necessidade de descolonização. A transmodernidade é
uma solicitação a refletir a modernidade/colonialidade de maneira crítica, desde
s

posições e de acordo com as várias experiências dos indivíduos que padecem


ver

por diferentes formas de opressão a colonialidade do poder, do saber e do ser.


“A transmodernidade envolve, pois, uma ética dialógica radical e um cosmo-
politismo de-colonial crítico” (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 162).
Pelo exposto, a decolonialidade é caracterizada pela resistência à lógica
colonial e envolve a negação das diversas dimensões relacionadas com a
226

colonialidade do ser, saber e poder. É uma proposta baseada na luta dos


movimentos sociais e não apenas em indivíduos isoladamente, e que pretende
oportunizar o poder de fala das “minorias” assistidas pelas políticas públicas,
fazendo um convite ao ato de pensar junto, um convite ao diálogo. Porém, o
diferencial nos estudos decoloniais apontam que, o ‘olhar’para velhos pro-
blemas latino-americanos devem efetivar-se por meio de outros prismas e não
focar, fundamentalmente, nos problemas em si.

or
od V
Interfaces entre o pensamento decolonial

aut
nas narrativas de Eneida

R
Tendo concebido o perfil da mulher Eneida e as bases da proposta
decolonial em diálogos teóricos e análises, partir-se-á para o estudo de

o
interfaces. Tendo como base duas obras de Eneida “Aruanda” (1957) e
“Banho de Cheiro” (1962), estabelecendo a relação destas obras com o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


pensamento decolonial.
Em “Aruanda”, são enfatizadas as temáticas pertinentes ao cotidiano,
luta social e autobiografia dessa mulher amazônida que deixou sua marca ao
visã
participar com afinco do cenário literário e político brasileiro. No que tange
ao livro “Banho de Cheiro”, são pontuados alguns aspectos, por meio da
memória da escritora, tais como o tradicionalismo, a severidade dos padrões
itor

de conduta e a história da cidade de Belém durante dois momentos: na época


de sua infância e no período de declínio da borracha.
a re

Dessa forma, a primeira obra a ser analisada neste estudo de interfaces:


decolonialidade e Eneida será “Aruanda”, para tanto, foi realizado um recorte
de trechos da referida obra. É um lugar onde todos podem ser livres e viver
em paz. A autora criou o nome e o lugar em sua mente. A sua trajetória de vida
par

demonstra que buscou tanto na sua ação, quanto em suas narrativas, levantar
a bandeira de luta política e transformar o mundo em “Aruanda”.
Ed

Percebendo a decolonialidade em “Aruanda”


ão

Várias passagens da obra “Aruanda” remetem ao pensamento decolo-


nial. Esse artigo elencou algumas delas, tais como: “Que importa esse correr
s

desenfreado de noites e dias, se mantivermos dentro de nós a vontade de


ver

luta” (MORAES, 1989, p. 25). A essência decolonial é estruturada também


na luta contra o poder opressor vigente. É possível verificar essa postura na
narrativa de Eneida que sendo uma militante, não fugia à luta e manifestando
ações de oposição ao governo ditador. Logo, em sua postura se caracteriza
a decolonialidade.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 227

Em outra passagem ressalta o seguinte: “Riscou em nós os preconceitos


raciais” (MORAES, 1989, p. 57). Ao posicionar-se dessa forma, Eneida se
fundamenta na proposta decolonial. Tendo em vista que: o espírito decolonial
é sobretudo, antirracista:

O que se propõe aqui é a abertura para o diálogo crítico com o propósito


de construir um paradigma para a próxima revolução, na qual a luta por

or
uma sociedade mais igualitária, democrática e justa, a busca de soluções
para o patriarcalismo, o racismo, a colonialidade, o capitalismo possa

od V
estar aberto para as diversas histórias locais, para as diversas perspectivas

aut
epistêmicas e para os diversos contextos em que são encenados os projetos
de resistência (GROSFOGUEL, 2012, p. 98).

R
A mãe de Eneida lhe ensinara: “Todos são iguais [...]” (MORAES, 1989,

o
p. 57), e a mesma apreendeu esses ensinamentos como bandeira de luta ao
longo de sua trajetória de vida. As narrativas de Eneida demonstram que ao
aC
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longo de seu percurso encontrou pessoas silenciadas: “encontro pessoas que


somente aprovam, que por medo ou timidez não tem opiniões nem capaci-
dade para defendê-las” (MORAES, 1989, p. 67). É importante salientar que
visã
a proposta decolonial valoriza o local de fala dos indivíduos, requerendo
que opinem, critiquem e apontem possíveis propostas e soluções aos pro-
blemas vivenciados. Portanto, propõe a apreender a consciência subalterna
silenciada no e pelo discurso colonial e nacionalista, buscando nas fissuras
itor

e contradições desses discursos, as vozes obliteradas ou silenciadas dos


a re

subalternos (GUHA, 1997). Tendo Eneida desaprovado o poder opressor,


ao silenciar as vozes dos sujeitos que devem ser ouvidos, manifesta uma
atitude decolonial soberana.
Em outro fragmento, a autora narra o seu próprio “chão”, a Amazônia
par

paraense, enfatizando um tradicional costume local: o “banho de cheiro”.


Exalta-o como uma crença popular (folclore), como o “banho da felicidade”
Ed

no qual os sujeitos desse espaço acreditam que a felicidade virá por meio dele.
Com essa atitude, Eneida valoriza o conhecimento originário de sua cultura
em detrimento de outros saberes: “[...] em minha terra na longínqua e amada
ão

cidade de Santa Maria de Belém do Grão-Pará, há uma prática extremamente


bela perfumada, que se chama banho de cheiro...” (MORAES, 1989, p. 69).
É nesse sentido que Ansara (2012), do mesmo modo, ressalta que se deve
s

desconstruir a matriz colonial. Isso significa que:


ver

Enfatizar outras maneiras de contar a história, outras formas de organiza-


ção da vida e dos saberes, bem como a produção de novas subjetividades
que não carreguem a herança dos padrões coloniais de poder que seguem
vigentes na sociedade (ANSARA, 2012, p. 310).
228

Nota-se esse modo de vida em Eneida, quando a autora narra suas vivên-
cias na Amazônia paraense. Nesse sentido, é importante também mencio-
nar o diálogo com Quijano (2005) e Mignolo (2007) os quais pontuam na
proposta dos estudos decolonias a existência da chamada colonialidade, a
qual é caracterizada pela colonização do imaginário e do saber. Não se trata
de negar a história oficial, mas de recontá-la à luz das experiências e das
culturas colonizadas. Na História vista de baixo: a cultura popular, obra

or
de Thompson (2001), descreve como refletir nos hábitos culturais locais de

od V
comunidades tradicionais, movimentado uma escrita da história que conceda

aut
o protagonismo a classe marginalizada, em detrimento de uma história que
evidencia somente os grandes heróis. Ao observar Eneida, a qual prioriza a
história do seu próprio “chão” ao mencionar os hábitos culturais de seu povo

R
em suas narrativas, coloca em evidência a valorização da cultura popular
que era prejudicada pela cultura externa, principalmente europeizada. Nessa

o
perspectiva sua postura é decolonial.
aC

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Partindo do pressuposto que Eneida “abria os olhos” e se posicionava em
favor dos oprimidos, vê-se que, em sua essência, pulsava o espírito contra a
opressão e injustiça, visando a equidade social. Logo, em suas veias, corria
a proposta decolonial: “palavras que em qualquer momento me despertam e
visã
agitam – fome, miséria, injustiça, opressão, liberdade, direito, saúde, alegria
(MORAES, 1989, p. 89). As análises da decolonialidade giram em torno das
falas dos oprimidos. Observe:
itor
a re

O que é fundamental no registro e na análise dessas interpretações e prá-


ticas políticas e culturais é a restituição da fala e da produção teórica e
política de sujeitos que até então foram vistos como destituídos da con-
dição de fala e da habilidade de produção de teorias e projetos políticos.
Reler autores que foram silenciados pela academia não significa somente
par

se deparar com testemunhos sobre os efeitos da dominação colonial, sig-


nifica deparar-se com o registro de múltiplas vozes, ações, sonhos que
Ed

lutam contra a marginalidade, a discriminação, a desigualdade e buscam


a transformação social (MORAÑA; DUSSEL; JÁUREGUI, 2008, p. 10).
ão

As mulheres são evidenciadas por Eneida, nesse rol, a própria


encontra-se inserida:
s

Contando-lhe estórias de outras mulheres que também haviam perdido


ver

empregos; falei-lhe de prisioneiras corajosas, narrei estórias e mais


estórias de mulheres valentes... (p. 119). Éramos vinte e cinco mulhe-
res presas políticas numa sala da Casa de Detenção, Pavilhão dos
Primários, 1935,1936,1937,1938. Quem já esqueceu o sombrio fas-
cismo do Estado Novo, com seus crimes, perseguições, assassinatos,
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 229

desaparecimentos, torturas? (p. 131). [...]. Mas nós somos antifascistas, nós
somos presas políticas... Somos todas brasileiras (p. 135) (MORAES, 1989,
p. 119, 131 e 135).

A história da mulher, enquanto protagonista, foi marginalizada em detri-


mento de uma historiografia que valorizava apenas a figura masculina. Con-
tudo, as narrativas de Eneida vêm manifestar a sua ação e a de outras mulheres

or
militantes no período crítico de ataque a democracia brasileira (décadas

od V
de 1930 e 1940). Essas mulheres são feministas, segundo Esmeraldo (1988),

aut
são mulheres ligadas as organizações de esquerda: são grupos de autoconsciên-
cia formada durante os anos de repressão, agrupando sobretudo intelectuais
que exerciam distintas profissões. A proposta decolonial dá conta de orientar

R
a respeito da constituição de hierarquias e desigualdades, condenando-as e,
Eneida, em suas narrativas, valoriza a figura da mulher, demonstrando suas

o
lutas em favor de melhores condições de vida para si e para seu povo. Comun-
aC
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gando dessa proposta, Eneida manifesta sua decolonialidade.


“Vida mesquinha, salários pequenos. São homens que morrem como
vivem e nascem: rasteiros, sem vôos, sem conhecimentos, engolindo dese-
jos, esmagando vontades. Não crescem, aumentam. Não amam, procriam;
visã
não se alimentam, comem” (MORAES, 1989, p. 165). No sistema opressor
capitalista, no qual o mundo encontra-se imerso, é dessa forma que, misera-
velmente, muitos sobrevivem. No discurso colonial, o corpo colonizado foi
itor

visto como corpo destituído de vontade, subjetividade, pronto para servir e


a re

destituído de voz, corpos destituídos de alma, em que o homem colonizado


foi reduzido a mão de obra, e a mulher colonizada tornou-se objeto de uma
economia de prazer e do desejo.
Mediante a razão colonial, o corpo do sujeito colonizado foi fixado em
par

certas identidades (HOOKS, 1995). Quando Eneida lança seu olhar para esses
indivíduos e percebe a penúria de vida que levavam, fazendo disso sua ban-
Ed

deira de luta contra o poder opressor, ela se efetiva na proposta decolonial:

Penso em meus olhos que estão cada vez mais desbotados – eles que foram
ão

muito verdes – e imagino como tem sido grande minha luta, tão persis-
tente em dificuldades é a minha vida (p. 176). As vozes estão cada vez
mais altas. Todos têm seus problemas de dinheiro pequeno para despesas
s

grandes, o trânsito fica interrompido..., mas as vozes e a multidão crescem


ver

e começam a meter medo (MORAES, 1989, p. 176, 180).

A “fala” de Eneida, em meados de 1950, soa tão contemporânea em 2019,


quando nos deparamos com os mesmos terríveis sofrimentos e privações que
ainda vive a população brasileira. Porém, a conscientização política desses
230

indivíduos os motiva à luta. Dessa forma, o que é decisivo para se pensar a


partir da perspectiva subalterna é o compromisso ético-político em elaborar
um conhecimento contra hegemônico (GROSFOGUEL, 2009). Ao também
perceber essa postura de luta da sociedade rumo a garantia de seus direitos,
percebe-se o teor de decolonialidade novamente. A seguir aborda-se sobre a
decolonialidade em Banho de Cheiro.

or
Percebendo a decolonialidade em banho de cheiro

od V
aut
Em vários momentos da obra “Banho de Cheiro”, percebe-se a proposta
do pensamento decolonial. Eneida evidencia falar da sua Terra: a Amazônia
Paraense. Pode-se destacar: [...] Patchuli e pau-de-angola, priprioca, catinga

R
de mulata, manjerona, bergamota, pataqueira, cipó-catinga, arruda, cipó-uíra,
perfumes selvagens é certo [...] (p. 198). [...] Ver-o-Peso[...] (p. 198). – Todo

o
mundo é igual [...] (p. 209). [...] céu do Marajó [...] (p. 211). Foi em 1616 que
aC
Francisco Caldeira Castelo Branco fundou a cidade que denominou de Feliz

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Lusitânia e depois tomou o nome de Nossa Senhora de Belém do Grão-Pará
(p. 213). O amor mesmo era o rio Amazonas... o maior rio do mundo...O
Amazonas e meu pai contando lendas: o boto [...] (p. 214). ... geografia ama-
visã
zônica... canais, ilhas, cabos, lagoas, lagos. Aqui, a Ilha do Marajó... (p. 214).
Praça da República... Avenida Nazaré... mangueiras... chega outubro é a festa
de Nazaré... Transladação... (p. 216).
itor

Em todos os trechos elencados acima, Eneida privilegia falar do seu


a re

próprio “chão”: locais (Ver-o-Peso); costumes (banho de cheiro); folclore (len-


das) e as belezas naturais (Ilha do Marajó), de sua terra natal “Nossa Senhora
de Belém do Grão-Pará” (MORAES, 1989, p. 23). É fato que ainda existe o
preconceito que marginaliza o Norte do Brasil e que valoriza o Centro-Sul
enquanto modelo econômico-cultural.
par

Isso ocorre devido a valorização de uma única forma de falar e escrever e


Ed

de supor que uma região é mais civilizada que a outra. A proposta decolonial
enfatiza a nomenclatura colonialismo, a qual se refere a tomada empírica
propriamente dita dos territórios colonizados. De fato que, historicamente, a
ão

Amazônia sofreu um processo de dominação, e essa lógica ainda se reestrutura


atualmente: substituiui-se o colonialismo externo por um interno, pois as elites
locais continuam a perpetuar a exclusão dos povos que não se enquadravam no
s

entendimento europeu de civilização. Então, quando Mignolo (2007) aponta


ver

a necessidade de descolonizar o pensamento, é essa postura de Eneida que


ele quer salientar: mostrar que na Amazônia existe gente e que precisa ser
reconhecida e valorizada.
Quando Eneida privilegia narrar sobre o “banho de cheiro”, como uma
prática cultural popular de sua terra natal, ela enfoca a história vista de
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 231

baixo: a cultura popular (THOMPSON, 2001), a qual tem como proposta


produzir um estudo sobre um processo histórico focado na massa dos esque-
cidos (THOMPSON, 2001), considera-se que a tradição cabocla amazônida
esteja inserida nesses sujeitos que precisam ser reconhecidos. Eneida, dessa
forma, lança-se na seara de Sarlo (2007, p. 16) quando teoriza “na inventivi-
dade subalterna”, trata-se de um novo olhar do historiador que tem interesse
nesses “novos” sujeitos, focados pela nova historiografia, são aqueles que

or
contam suas histórias de vida cotidiana e, Eneida lança mão desse enfoque

od V
de forma ímpar.

aut
A proposta decolonial em seu amplo universo de desconstrução, de pes-
quisa, de novos conhecimentos, de repensar lugares de privilégios, pondera
que as mudanças implicam em fugir do discurso óbvio e sensacionalista para

R
que, de fato, se possa falar de democracia, liberdade, feminismo, raça, ética,
cidadania... e que essa fala ecoe por meio de múltiplas vozes. Que essa fala,

o
de fato, materialize-se num debate honesto e com equidade (RIBEIRO, 2018).
aC
O debate que envolveu os trechos das narrativas de Eneida com os teóri-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

cos decoloniais, bem como as análises, deram conta de enfatizar que o pensa-
mento decolonial na referida autora é mais presente do que se supôs imaginar.
A seguir serão enfatizados mais alguns trechos das narrativas de Eneida
visã
em “Banho de Cheiro” que focam as premissas decoloniais.

Os seringalistas eram donos do mundo – aquele mundo– mas os serin-


itor

gueiros esses vivem prisioneiros dos armazéns, aumentando a riqueza


a re

dos donos dos seringais, enchafurdando-se de dívidas e misérias[...] (p.


206). Como acontece em toda parte, há ricos e pobres, hoje como ontem
na minha cidade.. (p. 219). Algumas injustiças, muitas incompreensões,
sempre preocupada em julgar, criticar, debater problemas.. (p. 276). Como
uma homenagem a vocês que nada temeram, a vocês que continuam com-
par

pondo esse fabuloso exército de homens conscientes de seu papel histó-


rico, grande Partido dos homens sem medo (p. 295) (MORAES, 1989,
Ed

p. 206, 219, 276, 295).

Nessa segunda parte de análise, percebe-se que os trechos das citações


ão

acima relatam precisamente a opressão vivida pelos seringueiros no período


conhecido como “ciclo da borracha”. Foi identificado pontos de exploração,
injustiças, mas também, percebe-se que esses homens começam a compor
s

vozes destemidas de luta.


ver

A proposta decolonial visa denunciar todas as insurgências contra os


indivíduos que são historicamente explorados. A partir do conceito de colo-
nialidade do poder, é possível visualizar um padrão de poder mais estático,
que teve sua origem nas administrações coloniais e se mantém até o presente.
Este conceito pode ser complementado pelo conceito de interseccionalidade,
232

uma vez que este nos remete a uma dimensão mais dinâmica da produção,
manutenção, das lutas e resistências às desigualdades e às identidades estig-
matizadas e subalternizadas (COSTA, 2016).
A colonialidade do poder, entendida como padrão de poder que se
constitui juntamente com o sistema-mundo moderno/colonial, engendrou
simultaneamente lutas e resistências. Em outras palavras, as populações
subalternizadas e colonizadas não se sujeitaram passivamente ao padrão de

or
poder que as inferiorizavam, ao contrário, elaboraram projetos de resistência

od V
e de ressignificação da vida. Ao compor movimentos de resistência, dá ori-

aut
gem a um movimento de recriação de valores, denominado de reexistência
(BERNARDINO-COSTA, 2016).
Estes movimentos são efetivamente movimentos decoloniais, pois obje-

R
tivam superar o padrão de poder constitutivo da modernidade/colonialidade,
que não somente criou raças novas, mas as associou a determinadas posições e

o
funções. Quando Eneida narra essas histórias, toma para si a responsabilidade
aC

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de denunciar as atrocidades vividas por esses trabalhadores nos seringais. É
possível ver que, em suas veias, já pulsava o “sangue” da decolonialidade.

Considerações finais
visã

As abordagens presentes neste artigo possibilitaram analisar um estudo de


interfaces: o pensamento decolonial nas narrativas de Eneida. A problemática
itor

foi apresentada buscando analisar se as bases do pensamento decolonial se


a re

apresentavam nas narrativas de Eneida em duas de suas obras “Aruanda” e


“Banho de Cheiro”
Para entender esse norteamento foi realizada a pesquisa de caráter biblio-
gráfico a fim de conhecer o perfil da mulher Eneida, o entendimento da pro-
par

posta decolonial, bem como entender as entrelinhas das narrativas de Eneida


que comportam as bases do pensamento decolonial.
Ed

Ao ter acesso as referências que tratavam de pesquisar sobre Eneida se


teve o entendimento de que a mesma tinha ‘várias faces’, visto que apresentava
a feição de uma multi mulher que ia desde a meiguice de uma menina inocente
ão

para uma mulher militante de esquerda que foi linha de frente em protestos
de greve e que por várias vezes fora presa pelo poder nacional.
s

Mediante a luta dessa mulher, vimos que em seu sangue “corria a Ama-
ver

zônia”, que não fugiu às suas raízes, tanto que estampou em suas narrativas
sua infância em Belém, os lugares pelos quais percorreu, os costumes do povo
e o engrandecimento das belezas da Amazônia paraense.
Considerando as informações, no que tange ao tema abordado nessa
pesquisa, os objetivos específicos contemplaram o referencial teórico de modo
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 233

que foi viável alcançar o objetivo geral do presente artigo. Neste estudo de
interfaces, identificou-se que as bases do pensamento decolonial estão pre-
sentes nas narrativas de Eneida, desde as primeiras laudas de “Aruanda” e
“Banho de Cheiro”.
De fato, que a expressão decolonialidade nunca foi utilizada por Eneida,
aliás, sequer existia no período de suas narrativas. Tal proposta, porém, é
secundária neste estudo, tendo em vista que a autora examinada manifesta uma

or
postura de luta e resistência frente a governos autoritários que não valorizam

od V
a voz do seu povo.

aut
Assim, o pensamento decolonial está presente nas narrativas de Eneida.
Nas suas duas obras analisadas, sua postura de atuação para que a vozes
subalternas ecoassem foi evidente, de modo inquestionável, ao contar as suas

R
memórias pessoais e escrevê-las como a história de seu povo amazônico.
Esta pesquisa, então admite que o pensamento decolonial está presente

o
também nas narrativas literárias e não apenas em estudos historiográficos,
aC
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educacionais, antropológicos e sociais. Abre precedentes para diversos pos-


síveis estudos, tanto em outras obras de Eneida quanto em outros autores de
décadas passadas. Encontrar respostas e dúvidas na execução das pesquisas
é natural, mas se lançar na proposta decolonial aplicada em práticas e teorias
visã
de estudiosos paraenses e brasileiros soa interessante.
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
234

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ver
ver
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od V
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UMA DEUSA NA AMAZÔNIA: Zélia
Amador de Deus, herdeira de Ananse

or
Daniela de Oliveira Senna
Carla Joelma de Oliveira Lopes

od V
aut
Introdução

R
Já faz tempo que “namoramos” com as deusas da Amazônia44. Elas nos

o
encantam com seus cheiros, cantos, sons, danças, tons. Elas são múltiplas,
aC
versáteis, ávidas em aprender, fecundas em ensinar, são vibrantes. Margeiam
os rios e florestas, vivem aqui e ali em movimento constante, ultrapassam os
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tempos, os espaços, as lógicas, não se permitem aprisionar. São entidades que


se manifestam em corpos de mulheres (ou de quem se sente como uma delas)
visã
provando que a natureza é sagrada e feminina. Mulher/natureza, natureza/
mulher, mulher/natureza/sagrada.
Só que nem sempre podem ser vistas. E não é porque o esplendor as
itor

ofusca. Ou porque procuram o segredo voluntariamente, ao contrário, são


“empurradas” para ele. Silenciadas por aqueles que não desejam desvelar a
a re

tessitura do legado colonial que impõe à mulher o lugar do silêncio. Existem


intenções de ocultamento.
Nos livros didáticos de História, por exemplo, as mulheres estão subsu-
midas, as negras, sobretudo. O que nos recorda o trabalho de Senna (2018)
par

ao denunciar o fato de que a historiografia oficial colocou as mulheres negras


em situação de desvantagem, em lugar de subordinação, na retaguarda dos
Ed

homens e/ou esperando por eles. Em seu estudo sobre a presença da mulher
negra no livro didático de história, a autora revela que mais que invisibilisada,
a representação que ainda é predominante é a da negra como escrava, como
ão

subalterna, como inferior.


Pressupomos então, que não é só apagamento é, antes de tudo, subor-
dinação, é mutilação histórica. Fenômeno que se torna mais profundo ainda
s

quando ganha dimensões espaciais particulares. A mulher negra da Amazônia


ver

tem sido silenciada tão quanto a Amazônia nos livros didáticos. Sexismo,
machismo, racismo, colonialidade do saber, parecem facetas que materializam
o cenário de exclusão que acompanhamos em nossos recursos pedagógicos.

44 A inspiração para este trabalho nasceu no curso de Especialização em Ensino de História promovido pela
UFPA/2018. O debate com o feminismo negro e o feminismo decolonial consolidaram nosso interesse por
entender a relação tecida entre negras, entidades sagradas e Livro Didático de História. Deriva dessa experiência
o Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Onde está Tereza? A presença da mulher negra no livro didático”.
238

Foi essa falta que nos moveu em direção às deusas da Amazônia. Sobre-
tudo, porque encontramos nelas o aconchego de quem, com imensa sabedoria,
denuncia a exclusão e luta insistentemente contra ela. São deusas que militam.
Cada uma a sua maneira. Com suas potencias ativadas, energizadas pela fé
no movimento. Energizadas pelo som incansável das matas, rios e ruas desta
terra encantada, mas tão reclamada pelos poderosos. Assim, chegamos a Zélia,
à “herdeira de Ananse”, nossa primeira deusa amazônida.

or
Zélia Amador de Deus, figura entre as principais intelectuais negras da

od V
Amazônia. A trajetória dessa mulher aos poucos, passa a ser conhecida no

aut
território brasileiro, contudo, o movimento ainda é tímido. Sua história nos
convida a desafiar os moldes conservadores e excludentes que destinam à

R
Amazônia e a seu povo, um lugar subalterno. Sua existência desafia a colo-
nialidade do saber e do poder, por isso tão necessária entre nós.

o
Nosso objetivo neste trabalho não é o de construir uma biografia de Zélia,
até porque ela fala sobre si mesma muito bem. Ao invés disso, pretendemos
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


pensar em como o exemplo de Zélia nos inspira a discutir o feminismo negro,
o feminismo decolonial e a relação de ambos com a Amazônia. Nossa “her-
deira de Ananse” nos ensina a pensar o “Outro”, inspira-nos a fazer novas
visã
interrogações e a imaginar que é possível construir “Outras Pedagogias” como
tão bem nos recorda Miguel Arroyo (2014).
Procuramos fundamentar nosso texto entre aquelas e aqueles que, de
itor

alguma forma, compartilham conosco essa inquietação. Assim, descobrimos


a re

no trabalho recente de Sepulveda (2019), uma inspiração semelhante a nossa,


posto que o autor apresenta a trajetória de Zélia como uma importante inte-
lectual negra brasileira que precisa ser compreendida a partir da interlocução
que estabelece com o Movimento Negro e a carreira docente dentro da Uni-
versidade Federal do Pará (UFPA).
par

No texto de Ribeiro (2017), encontramos pistas para pensar o feminismo


negro considerando as intersecções entre gênero e raça. Na leitura de Lima
Ed

(2016), deparamo-nos com reflexões profundas sobre os processos de des-


colonização da América Latina que envolvem mulheres e suas pedagogias.
ão

Em Lopes (2018), pudemos acompanhar a intimidade do cotidiano de lutas


e conquistas de mulheres quilombolas na Amazônia Paraense, mulheres que
com sua agência política descolonizam saberes e fazeres propondo a si mesmas
s

como sujeitos de direitos. Mas nosso diálogo não se encerra por aí. Nosso
ver

texto, pretende outros encontros.


E assim, a partir das lentes dadas pelo protagonismo de Zélia, vamos
compreendendo a Amazônia, suas nuanças, suas deusas, suas sabedorias, suas
escolhas, seus silêncios, lutas e lutadoras.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 239

Quem é Zélia Amador de Deus?45

Esta não é uma pergunta muito fácil de responder, principalmente, porque


as respostas nos parecem múltiplas. Optamos, portanto, por descrever o que
a própria Zélia falou de si mesma. Parece-nos mais justo, em se tratando de
uma deusa.
Ela nos contou que nasceu na Ilha do Marajó em 24 de outubro de 1951.

or
Foi criada pelos avós e pela mãe, que era adolescente ainda quando Zélia

od V
nasceu. Com apenas um ano e meio de idade migrou para Belém, veio morar

aut
na capital paraense com seus avós, o que lhe possibilitou estudar mesmo
em meio a dificuldades financeiras. Na infância, ouviu histórias de “Bento
Amador”, referência importante da família dos Amador. Eram histórias de

R
lutas e conflitos por terra, disputas entre o povo preto e o povo branco. De
acordo com ela, herdou o legado da coragem de seus ancestrais. A valentia

o
dos Amador lhe inspirou.
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Ela também recorda que uma vez pensou em matar uma aranha. Sua avó
a impediu. “Não! Não se deve matar uma aranha! Essa aranha pode ter mãe.
A mãe dela pode ser uma deusa. Ela pode ser filha de Anansia” (AMADOR
DE DEUS, 2008, p. 13). Sepuvelda em diálogo com Zélia escreve:
visã

A Ananse representa, segundo Deus, a capacidade e o poder que seus filhos


– os povos africanos – tiveram para resistir e contar suas próprias histórias.
itor

Essa divindade orienta a estrutura da pesquisa de doutorado da socióloga


a re

negra, já que as teias de Ananse a envolveram há mais de três décadas na


luta antirracista, de onde não pôde mais sair (SEPUVELDA, 2019, p. 74).

Assim, tornou-se “herdeira de Ananse”. Deusa que, em meio a teias e


lutas, vem escrevendo uma nova história para o povo negro na Amazônia.
par

Mas, não bastasse a herança sagrada africana, Zélia descobriu que, também,
é “filha” de Nanã Buruquê, um orixá feminino que domina rios, ribeirões,
Ed

mangues e lamas e que protege as pessoas nas situações tormentosas. Nanã é


o orixá mais velho do panteão africano e por isso representa a maternidade,
a proteção, o senso de justiça. Talvez a ancestralidade de Zélia fale por si
ão

mesma. Ela poderia ser diferente? Não sabemos. Mas a Zélia que conhecemos
tem a fala aguerrida e, ao mesmo tempo terna, de quem sempre se preocupa
s

em combater injustiças.
ver

Entre os anos de 1971 e 1974 foi aprovada no vestibular e concluiu o


curso de Letras na UFPA. Mas foi o curso de formação de ator o que mais
lhe marcou. Nossa deusa faz questão de afirmar-se como atriz e diretora de
45 As informações contidas nesse trabalho sobre a professora Zélia Amador de Deus derivam de entrevista
realizada na UFPA/GEAM no dia 18/06/2018.
240

teatro. É mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas


Gerais (2001) e doutora em Ciências Sociais pela UFPA (2008). Sua carreira
docente, contudo, iniciou-se antes disso. Tornou-se docente da UFPA em 1978,
assumindo as disciplinas de História da Arte, História e Teoria do Teatro e
Estética. Foi diretora do Centro de Letras e Artes entre os anos de 1989 e 1993
e vice-reitora da UFPA (1993-1997).
Ao mesmo tempo em que ingressava na carreira docente, Zélia partici-

or
pava da fundação, em 1980, do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará

od V
(CEDENPA), entidade que é referência no Pará e no Brasil na luta pelos direitos

aut
do povo negro e no combate ao racismo, preconceito e diversas formas de dis-
criminação. O CEDENPA assumiu um protagonismo indiscutível no processo
de luta dos direitos territoriais e culturais dos povos quilombolas por ocasião da

R
elaboração da Constituição Federal (CF) de 1988. As conquistas do movimento
negro materializaram-se nos artigos 6846, 21547 e 21648 da CF/88. Além destas,

o
Zélia atuou ativamente na organização da Marcha das Mulheres em 2015.
aC
Atualmente Zélia é coordenadora do Grupo de Estudos Afroamazônicos

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


(UFPA) e do Curso de Especialização “Saberes Africanos e Afro-Brasileiros
na Amazônia”. Seu papel é fundamental no debate sobre as políticas de ação
afirmativa, do sistema de cotas na UFPA, da questão racial e de gênero na
visã
Amazônia. Zélia vive entre nós. É uma “herdeira de Ananse” que se materia-
lizou e que tem trazido propostas inovadoras para o povo negro. Assim, con-
forme Sepuvelda (2019, p. 89) tão bem ressalta, “A metáfora de Ananse serve
itor

não só como fio condutor do pensamento da intelectual, mas como a própria


a re

reafirmação do valor e da história afro-brasileira e afro-latina– americana”.


A “herdeira de Ananse” nos encontrou em momentos diferentes. Somos
duas pesquisadoras negras marcadas pela distância do tempo. A mais velha
de nós a encontrou na década de 1990 e com ela, aprendeu a reconhecer-se
como negra, a procurar entender de si mesma, de suas origens, de sua ances-
par

tralidade, dessa forma, “Ananse” tecia seus fios. A mais jovem, teve a honra
de ouvi-la quase trinta anos depois e de por ela (também) se deixar encantar.
Ed

Foi tão intenso o encontro que inspirou um trabalho, um projeto, um sonho.


E, assim, os fios permanecem sendo tecidos.
ão

Zélia talvez não saiba, mas sua influência atravessou duas gerações, em
particular. Somos mãe e filha. Negras, feministas, intelectuais e buscamos,
s

46 O artigo 68 presente no ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) estabelece que aos rema-
ver

nescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos (BRASIL, 1988).
47 Estabelece que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da
cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais (idem, ibidem).
48 Estabelece que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 241

em movimento constante, nos apropriar de nosso legado, o legado de Ananse.


Procuramos, sobretudo, alargar os fios e teias sobre a Amazônia. Encontrar
novas mulheres que, assim como nós, se deixaram seduzir pelo encanto de
Zélia e por seus inegáveis poderes.

Feminismo negro

or
od V
O racismo é um fenômeno que tem como um de seus suportes

aut
a crença na naturalização da superioridade do colonizador.
E em consequência a naturalização da existência de grupos
naturalmente hierarquizados (AMADOR DE DEUS, 2008, p. 40).

R
Iniciamos nosso debate sobre o feminismo negro citando Zélia. E como

o
poderia ser diferente? Alguns podem até tentar dizer que as questões ligadas
ao feminismo negro não estavam no horizonte da autora ao escrever esse
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

trecho de sua tese. Que o objeto de sua investigação foi o movimento negro
e seu protagonismo na luta intensa pela conquista e consolidação de ações
afirmativas, sobretudo as cotas para negros na universidade. Ao que respon-
visã
deremos sem hesitar, mas ela tratava dos filhos de Ananse.
O mito de Ananse está relacionado a deusa Aranã, divindade portadora de
um repositório de memórias sobre as múltiplas culturas africanas, que acompa-
nhou seus filhos nas longas travessias provocadas pela diáspora forçada. A deusa
itor

mãe, mulher, griot, manteve ativa a memória coletiva, produziu resistências e


a re

energizou a esperança dos povos negros. Ananse na cultura africana “[...] simbo-
liza uma aranha-heroína que recorreu a infinitos truques para vencer o inimigo”
(AMADOR DE DEUS, 2008, p. 20). E por ela Zélia se deixou envolver.
E assim, a intelectual negra, amazônida, herdeira de Ananse, denuncia em
par

seu trabalho a profunda conexão entre racismo e colonialismo, revelando-nos


como o colonizador conseguiu impor crenças de inferioridade racial que foram
Ed

incorporadas/naturalizadas e que geraram hierarquizações/subordinações de


corpos e mentes. Ao ler Zélia, recordamos de outra reflexão, de cunho poético,
dessa vez, e tão profunda quanto a dela:
ão

Tinha sete anos apenas, apenas sete anos. Que sete anos! Não chegava
nem a cinco! De repente umas vozes na rua me gritaram Negra! Negra!
s

Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! “Por acaso sou negra?” –
ver

me disse. SIM! “Que coisa é ser negra?” Negra! [...]. ! [...] (VICTÓRIA
SANTA CRUZ, 1960)49.

49 Trecho do poema “Me gritaram negra” de Victória Santa Cruz (1960), que se tornou música. Encontrei-o na
Internet depois de ter ouvido várias pessoas falando sobre ele, mas estava musicado. Está disponível em:
https://vermelho.org.br/2013/09/27/me-gritaron-negra/. Acesso em: 18 jul. 2020.
242

O trecho do poema de Victória Santa Cruz nos traz pistas do quanto


ser mulher negra no mundo contemporâneo é desafiador. Ao mesmo tempo,
indica que o ato de se reconhecer negra é construído socialmente. A iden-
tidade negra é/foi produzida em interlocução com processos descontínuos,
múltiplos e difusos, o que rememora a reflexão de Hall (2013, p. 12) ao
afirmar que “[...] a identidade negra é sempre atravessada por outras iden-
tidades inclusive de gênero [...]”. Dessa forma, para o autor, a contempora-

or
neidade tem produzido identidades não estáveis marcadas por sobreposições

od V
e intersecções.

aut
Mas, afinal, voltemos a inquietação provocada pela poesia de Victória e
pelas reflexões de Zélia. O que é ser negra? Mais ainda. O que é ser negra no

R
mundo atual, na América Latina, no Brasil, na Amazônia? Estaríamos falando
de condições semelhantes? De fenômenos comuns? Ou há especificidades

o
nestas vivências como sugere Hall? Hooks (2015) ao tratar do “nascimento”
do movimento feminista nos Estados Unidos, denunciou o fato de que as
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mulheres brancas que anunciaram a intenção de resistência contra o machismo
e a opressão que experimentavam, não incluíram as mulheres negras e pobres
em seus debates. Esse feminismo não
visã

[...] falou das necessidades das mulheres sem homem, sem filhos, sem
lar, ignorou a existência de todas as mulheres não brancas e das brancas
pobres, e não disse aos leitores se era mais gratificante ser empregada,
itor

babá., operária, secretária ou uma prostituta do que ser dona de casa da


a re

classe abastada (HOOKS, 2015, p. 194).

Assim as primeiras manifestações do feminismo norte-americano igno-


raram o classismo, o racismo, o sexismo contra a maioria das mulheres que
par

vivia no país e se moldou a partir de uma perspectiva unidimensional, carac-


terística que deixou profundas influências no movimento feminista contem-
Ed

porâneo. As mulheres foram tratadas como iguais, mesmo tendo demandas e


realidades diferentes e específicas. As negras, sobretudo, nem sequer foram
consideradas nesse debate.
ão

Construiu-se, nessa perspectiva de feminismo, uma narrativa única que


se quis hegemônica e dominante. O que nos recorda um discurso feito por
Sojouner Truth em 1851 na Convenção dos Direitos da Mulher em Ohio nos
s

EUA, onde ela pergunta: “E eu não sou uma mulher?”, referindo-se ao fato
ver

de que a proposta de feminismo ali exposta, universalizava as mulheres e


desconsiderava as estruturas de opressão de raça, orientação sexual, identi-
dade de gênero, entre outras. Dessa maneira, ignorava as várias formas de ser
mulher. Na prática, a narrativa de Truth denunciava uma
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 243

[...] disfonia em relação à história dominante do feminismo, mas também


a urgência por existir e a importância de evidenciar que mulheres negras
historicamente estavam produzindo insurgências contra o modelo domi-
nante e promovendo disputas de narrativas (RIBEIRO, 2017, p. 26).

As mulheres negras gritavam ao mundo através de Truth que outras


verdades precisavam ser reveladas, que o feminismo que tratava de mulheres

or
brancas de classe social privilegiada não dava conta de perceber a realidade
das que não se enquadravam nesse perfil. Que outras mulheres, em outras

od V
aut
condições, demandavam atenção e lutavam, assim como aquelas, para que
seus clamores fossem atendidos, tanto do ponto de vista social, como do
ponto de vista político e histórico. Que as mulheres não são iguais, mas que

R
as diferenças entre elas não podem se converter em desigualdades.
Entre as negras, também, existem diversidades. Como não considerar que

o
uma mulher negra de classe média e uma mulher negra pobre tem realidades
aC
particulares? Como não dimensionar o que ocorre com a vida de uma mulher
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

negra, lésbica e pobre? Uma mãe solteira negra? Só para citar algumas das
intersecções possíveis. Ser mulher negra implica, portanto, considerar uma
multiplicidade de condições.
visã
Collins (2017) ressalta que entre as negras há uma diversidade significa-
tiva que origina um discurso próprio, um ponto de vista que opera de dentro
pra fora explicando, assim, a necessidade de emergência de um feminismo
itor

negro. De acordo com ela,


a re

Usar o termo “feminismo negro” desestabiliza o racismo inerente ao apre-


sentar o feminismo como uma ideologia e um movimento político somente
para brancos. Inserindo o adjetivo “negro” desafia a brancura presumida
par

do feminismo e interrompe o falso universal desse termo para mulheres


brancas e negras. Uma vez que muitas mulheres brancas pensam que as
Ed

mulheres negras não têm consciência feminista, o termo “feminista negra”


destaca as contradições subjacentes à brancura presumida do feminismo
e serve para lembrar às mulheres brancas que elas não são nem as únicas
ão

nem a norma “feminista” (COLLINS, 2017, p. 13-14).

Mais do que propor cisões, o que o feminismo negro apresenta é a pos-


s

sibilidade de uso de lentes mais amplas capazes de dar visibilidade a outras


ver

formas de opressão que também incidem sobre as mulheres negras. O femi-


nismo negro materializa as vozes e as preocupações de todas as negras diante
da continuidade de políticas públicas discriminatórias, do mascaramento do
racismo através de processos de aparente inclusão simbólica, da permanência
da mercantilização e violação dos corpos da mulher negra.
244

No Brasil, o feminismo negro também tem especificidades. Figueiredo


(2018) nos recorda que os inúmeros crimes cometidos contra a população
negra se transformaram em pauta do encontro realizado em 13 de março
de 2018 pela Rede de Mulheres Negras. Em outra frente promovida pela Arti-
culação de Organização de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) acontecia no
mesmo dia o Fórum Permanente de Mulheres Negras: avaliação dos 30 anos
do Encontro Nacional de Mulheres Negras. Os dois eventos antecederam um

or
acontecimento criminoso. No dia 14 de março de 2018, a vereadora Marielle

od V
Franco (PSOL/RJ) e seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados.

aut
A morte de Marielle chama a atenção para o fato de que o crime contra
a mulher negra não é um episódio isolado no país. Para além das motiva-
ções político-partidárias que possa ter tido, a violência contra o corpo da

R
mulher negra que milita, que luta por justiça social, que evidencia o racismo, o
sexismo, as estruturas patriarcais, o desrespeito aos direitos humanos, denuncia

o
o quanto a luta do feminismo negro incomoda o Brasil. Recuperamos aqui a
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


fala de Angela Davis proferida em 2017 na abertura da Escola de Pensamento
Feminista Negro: “quando as mulheres negras se movem, toda a estrutura
política e social se movimenta na sociedade”.
Podemos afirmar, dessa forma, que o feminismo nasceu negro. Apenas
visã
ele poderia ter realmente provocado fissuras na estrutura dominante hegemô-
nica. Estrutura patriarcal, machista, sexista, misógina, homofóbica. Apenas
ele poderia ter denunciado os privilégios epistêmicos, resultante da negação
itor

das epistemes negras, apenas ele poderia exibir a hierarquização de saberes


a re

e poderes cristalizada entre os brancos. Apenas ele poderia restituir humani-


dades negadas.

Feminismo decolonial
par
Ed

Por que a mulher foi subtraída ou subalternizada na


história? Que diferenças existem entre o feminismo latino-
americano e o europeu/norte-americano? Podemos falar de
ão

um mesmo feminismo? Devemos falar na mulher, no singular,


ou nas mulheres, no plural? (LIMA, Adriane, 2016).
s

Iniciamos a reflexão sobre o feminismo decolonial trazendo proposi-


ver

talmente algumas indagações feitas por uma jovem intelectual da Amazônia


paraense, Adriane Lima. Ao defender uma tese que se propunha a pensar os
processos de descolonização da América Latina no século XIX, a pesquisadora
tomou como referência dois exemplos de escritoras latinas, Nísia Floresta e
Soledad Acosta de Samper, ambas nascidas no século XIX. A escolha tem
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 245

relação com o fato de que essas mulheres se dedicaram a pensar a formação


educacional da mulher a partir da relação dos movimentos políticos de des-
colonização do continente sul-americano.
Temos, portanto, algumas pistas nessa linha de investigação. Ela sugere
que existem formas de pensar a mulher que estão atreladas ao eurocentrismo
e que, sendo assim, não conseguem dar visibilidade para a mulher periférica,
seja ela negra, parda, pobre, rica ou branca, ela está de fora, caminha ao

or
largo dos feminismos pensados para o centro do mundo, mesmo que nem

od V
sempre se dê conta disso. A reflexão da autora também nos leva a recor-

aut
dar as palavras de Apple (2002, p. 33) ao denunciar que “[...]. O “centro”
arrogante determina o lugar ocupado pelas periferias, lugar de apagamento,
silenciamento e negação”.

R
Apple, de maneira muito sagaz, percebe que existem geografias da

o
dominância marcadas por aquilo que ele denominou de branquidade.
Segundo o autor, “sob muitos aspectos, branquidade é um conceito espacial”
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

(APPLE, 2002, p. 36). É um tipo de conceito que se manifesta em práticas


legitimadas pelo senso comum, conectadas, em geral, a um centro dinâmico
e exógeno que impõe saberes e fazeres e que determina as hierarquias dos
visã
corpos e mentes.
Branquidade e colonialidade estão, pois, atrelados de forma indelével.
Mas as reflexões de Adriane também nos fazem recordar do que lemos em
itor

Jardim e Cavas (2017). Os autores revelam o quanto o imperialismo e as


a re

práticas coloniais monopolizam sistemas de representações que cooperam


para configurar estruturas ideológicas que justificam e determinam a opressão
sobre às mulheres e à população negra. De acordo com eles:

O imperialismo e as práticas coloniais, incluindo a ideologia do patriar-


par

cado, monopolizaram todo um sistema de representações. O poder de


representar é um importante instrumento ideológico que possibilita des-
Ed

crever e controlar o modo como os Outros são percebidos, seja no colo-


nialismo, nas relações assimétricas entre colonizador/colonizado, ou no
patriarcalismo, nas relações de gênero (JARDIM; CAVAS, 2017, p. 77).
ão

Assim, o discurso colonial, ainda resistente (muito embora denunciado


e questionado) em nossos tempos, produz significados que naturalizam as
s

relações desiguais e assimétricas destinadas aos povos periféricos. Sobre isso,


ver

aproveitamos para trazer a narrativa de Zélia:

À convocação ao esquecimento e à naturalização da desigualdade foram


mecanismos urdidos de forma tão eficiente pelo antagonista, que fez com
que a sociedade brasileira caminhasse tranquila, de olhos inteiramente
246

vendados, com os sentidos inteiramente anestesiados em relação a


uma grande parte de sua população que, em princípio foi condenada
previamente ao fracasso (AMADOR DE DEUS, 2008, p. 154).

A mulher negra condenada ao fracasso sucumbe, dessa maneira, a um


destino de subalternização. Nesse sentido, recuperamos aqui algumas das con-
tribuições de Lélia Gonzalez (2016) ao recordar que entre as décadas de 1950

or
e 1970 no Brasil, a situação das mulheres negras não era nada simples. 90%
delas trabalhavam na prestação de serviços domésticos, não tinham acesso à

od V
formação adequada, nem chances efetivas de inserção no mercado de trabalho

aut
em melhores postos de trabalho. Segundo a autora:

R
Ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é um objeto de tripla discrimi-
nação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo

o
a colocam no mais alto nível de opressão. Enquanto seu homem é objeto
aC
da perseguição, repressão e violência policiais, [...] ela volta-se para a

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prestação de serviços domésticos junto às famílias das classes média e alta
da formação social brasileira. Enquanto empregada doméstica sofre um
processo de reforço quanto à internalização da diferença, da subordinação
visã
e da inferioridade que lhe seriam peculiares (GONZALEZ, 2016, p. 408).

As palavras de Lélia rememoram as reflexões de Zélia Amador de Deus


ao apontar o racismo como antagonista, ao denunciar seu caráter excludente,
itor

perverso e hierarquizador. Ao demonstrar as teias que tece para garantir que


a re

as formas de opressão se recriem e garantam o sentimento de inferioridade


dos outros, dos diferentes. Lélia e Zélia confirmam, dessa maneira, que o
racismo reproduz estruturas de classe fundadas na subordinação dos consi-
derados inferiores.
par

Esse cenário demanda a constituição de outro feminismo. De um femi-


nismo que problematize os efeitos tirânicos do colonialismo. Que rompa com
Ed

as continuidades e permanências do modelo eurocêntrista que universalizou


as lutas das mulheres ignorando as diversidades que as envolvem, sobretudo
nas áreas periféricas do mundo. Que denuncie o estabelecimento daquilo que
ão

Jardim e Cavas (2017, p. 75) denominam de “[...] fronteiras dicotômicas e


hierárquicas – de gênero, orientação sexual, raça/etnia, classe social e loca-
s

lização geográfica, [...]”.


ver

Feminismo que não se furte a exibir os ranços cristalizados do colonia-


lismo presentes na história dos povos oprimidos de quase todo o mundo, entre
eles, os da América Latina. Feminismo que considere as teorias e epistemo-
logias dos povos do Sul e que rejeite noções de modernidade fincadas pelo
viés colonialista. Feminismo que dialogue com a teologia da libertação, com a
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 247

pedagogia dos oprimidos, que promova contínuas reflexões sobre a realidade


cultural, social, política e econômica dos povos explorados e que, fundamen-
talmente, coopere para a construção da autodeterminação das mulheres negras
e dos povos negros periféricos.

Ananses na Amazônia

or
od V
Ananse, a divindade da cultura fanti ashanti, deusa Aranã que se apresenta

aut
em forma de aranha, quando assume esta forma, recebe o nome de Ananse.
É esta poderosa Aranha com suas teias que, aqui, tomarei como metáfora
das ações desempenhadas por um povo que lançado em situação limite

R
buscou força para resistir (AMADOR DE DEUS, 2008, p. 130).

o
1988 é um ano marcante na história brasileira. Para os povos da Ama-
aC
zônia, em particular, simboliza um ano de vitórias nos marcos legais. Con-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

quistou-se, por exemplo, através do artigo 68 do ADCT (Ato das Disposições


Constitucionais Transitórias) o direito de reconhecimento da propriedade
definitiva das terras ocupadas por comunidades negras rurais. Nos artigos 215
visã
e 216, estão contemplados, respectivamente, o exercício dos direitos culturais
das populações indígenas e afro-brasileiras e o tombamento de documentos e
sítios detentores de reminiscências históricas entre os quilombos.
itor

A conquista histórica esteve atrelada às filhas e filhos de Ananse. De


a re

acordo com Lopes, “É preciso destacar os esforços do movimento negro urbano


que, no Pará, principalmente representado pelo CEDENPA (Centro de Estudos
e Defesa do Negro do Pará), militou de forma atuante na direção das conquistas
territoriais e políticas dos povos negros rurais” (2017, p. 85). Zélia foi prota-
gonista nesse processo e representando o CEDENPA, guerreou de forma con-
par

tundente a favor dos povos negros da Amazônia. Um estudo de Senna (2018)


recuperou outros aspectos da vida de nossa Ananse. Segundo a autora, Zélia
Ed

Teve e tem ainda agência atuante na luta pela consolidação de políticas


de ação afirmativa e pelo sistema de cotas na UFPA. A participação da
ão

Marcha das Mulheres em 2015, com intensa atuação do CEDENPA, foi


um episódio que marcou sua vida, entre os tantos que a professora relata
com emoção e vivacidade. Zélia acha importante o fato de ocupar um
s

cargo/função que, em princípio, não está reservado para negros, pois,


ver

assim, é possível mostrar às gerações futuras que existem possibilidades


de lutar pela garantia da presença negra nos espaços públicos e políti-
cos do país. Ela afirma que trabalha e luta para transformar esse mundo
num lugar melhor, sobretudo, com mais oportunidade para o povo negro
(SENNA, 2018, p. 27).
248

As teias da deusa amazônida renderam frutos. Tanto que outras Ananses,


assim como ela, assumiram seu papel na luta cotidiana contra o racismo e todas
as formas de opressão. Denunciaram a invisibilidade histórica reservada às
mulheres amazônidas, compartilharam pesquisas que revelam o protagonismo
do povo preto a partir do papel das mulheres nos quilombos, nos campos,
nas cidades. Gritaram em alto e bom som e anunciaram através da linguagem
digital que é possível unir as mulheres na luta contra a violência, o machismo,

or
o sexismo, o racismo, a homofobia, o classismo, a invisibilidade histórica e

od V
o silêncio sobre elas.

aut
Recuperamos aqui o exemplo de Rosa Acevedo Marin, refletindo sobre o
trabalho escravo e trabalho feminino no Pará (1987). A pesquisadora alertava
para o fato de que as especificidades do regime colonial acabavam por impor

R
na Amazônia uma nova configuração para o mundo do trabalho. Nele, mulhe-
res viúvas, separadas, abandonadas, concubinas, escravas ou forras, viam-se

o
envolvidas na trama das relações de produção, mantinham a si mesmas e as
aC
suas famílias, foram protagonistas da própria história e da história amazônica,

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mas não tiveram visibilidade no tecido historiográfico regional.
Lembramos aqui de Eliana Ferreira (1999, 2003) que realizou diversos
estudos sobre cidades e mulheres no Pará imperial oitocentista. Seu trabalho
visã
anuncia a existência de um conjunto de experiências e vivências que se dife-
renciavam a partir dos extratos sociais que as mulheres oitocentistas ocupa-
vam. Sua pesquisa apontava para o fato de que, eram especialmente as mais
itor

pobres, em geral, negras ou mestiças as que mais circulavam no ambiente


a re

público. As que labutavam de sol a sol para garantir a reprodução de seu grupo
familiar. Também foram silenciadas pela história.
Não poderíamos deixar de recordar as pesquisas de Benedita Celeste
Pinto (2001, 2002, 2004, 2009, 2015) que destacam a importância feminina
na formação e liderança das comunidades negras rurais. A pesquisadora nos
par

conta que as mulheres negras sempre estiveram de alguma forma envolvidas


Ed

em manifestações de resistência e oposição a ordem estabelecida. Assumi-


ram no passado e assumem na atualidade o papel de parteiras, curandeiras,
professoras, agricultoras, pescadoras. São mulheres que com sua liderança e
ão

carisma conduzem suas comunidades, guerreiam suas guerras.


E como não citar Anna Linhares (2019)? Essa jovem pesquisadora vem
encantando o Pará e as paraenses com suas reflexões sagazes e astutas sobre
s

a condição da mulher amazônica. Sua pesquisa mais recente indica o quanto


ver

o caráter emancipatório da educação pode produzir mudanças profundas


nas teias relacionais e desafiar o machismo cristalizado nas racionalidades
e nas práticas sociais. Pode ajudar a enfrentar a violência doméstica, a res-
significar e a construir parâmetros mais saudáveis e felizes do ser mulher
na contemporaneidade.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 249

Não findaríamos aqui nossa lista. As herdeiras de Ananse são muitas.


Todas estão em interlocução. Produzindo teias e envolvendo outras mulhe-
res, herdeiras da diáspora forçada. Mas acreditamos que elas, de alguma
maneira, receberam a mesma iluminação. O desejo de manter alimentado o
sentimento de resistir.

Considerações finais

or
od V
Colocar em evidência a trajetória de Zélia Amador de Deus, no sentido

aut
de mostrar como ela representa e materializa a presença de Ananse na Ama-
zônia, é uma tarefa magnífica, ainda que complexa. Primeiro porque nos deu

R
muito prazer ouvi-la, acompanhá-la, com ela aprender, deixar-se envolver
em suas teias. Depois porque ela nos ensinou muito sobre o que é ser mulher
na Amazônia.

o
Nossa pele, seja negra, branca, amarela, fala muito de nós. De nossos
aC
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cruzamentos, de nossos ancestrais. Das nossas vivências de sofrimento,


de exclusão, de luta contínua para garantir a existência resistindo. Ela nos
ensinou que a diáspora forçada, silenciou estrategicamente alguns, apenas
visã
para que sussurrassem nosso grito de vitória enquanto os antagonistas pas-
savam ao largo.
Há o momento certo de gritar, disse a deusa. Em 1988, na luta por direitos
territoriais! Nas universidades, por cotas para negras e negros! Na Marcha
itor

das Mulheres Negras, na luta por visibilidade, respeito, pelo fim da opressão,
a re

machismo, racismo, misoginia! Na atualidade, denunciando o fascismo, a


perversidade política que se instalou no país! Na pergunta que não quer calar:
quem matou Marielle?
Aprendemos com Zélia que as filhas e filhos de Ananse estão em todos os
par

lugares. São conhecidas como Anna, Adriane, Benedita, Eliana, Rosa, Lélia,
Angela, Bell, Patrícia, Djamila, Victória, Sojouner, entre outros nomes, entre
Ed

outras lutas, entre outros sonhos. Estão no Sul e no Norte, em diálogo, em


movimento, em reflexão constante. Nos rios da Amazônia, florestas e sertões.
Feministas em essência.
ão

Nem sempre elas sabem de si. Mas sempre conseguem ensinar.


s
ver
250

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visã
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a re
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DECOLONIAIS
od V
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS or
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Ed
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visã R
od V
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
DE DECOLONIALIDADE
NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

or
QUILOMBOLA DA AMAZÔNIA

od V
aut
Ana D’Arc Martins de Azevedo
Laís Rodrigues Campos

R
Simone de Freitas Conceição Souza

o
aC
1. Introdução
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Este capítulo é fruto de recortes de duas pesquisas realizadas em dois


Quilombos na Amazônia, enquanto investigações científicas que adentraram
visã
em escolas desses quilombos sobre as práticas pedagógicas de professores
atuantes na Educação Básica.
Nesta seção, consideramos que as práticas pedagógicas de professores
itor

em quilombos devem se configurar em “uma perspectiva mais complexa, a


a re

da formação do cidadão nas diversas instâncias em que a cidadania se mate-


rializa: democracia, social, solidária, igualitária, intercultural e ambiental”
(MIZUKAMI, 2002, p. 12).
Nesse cenário, exige-se uma prática docente reflexiva mais competente
par

pela via das dimensões: humana (ética) que subsidia a compreensão para
entender práticas que, embora ainda mantenham uma dependência direta
Ed

daqueles que estão envolvidos em seu desenvolvimento, adquirem, no entanto,


um caráter social e cultural que ultrapassa os indivíduos concretos que as
praticam (SACRISTÁN, 1999, p. 30).
ão

No entanto, “no cotidiano da sala de aula, o professor defronta-se com


múltiplas situações divergentes, com as quais não aprende a lidar durante seu
curso de formação” (MIZUKAMI, 2002, p. 14), o que gera ao professor uma
s

preocupação em não se considerar apto no processo de ensinar “ao desconsi-


ver

derar a complexidade dos fenômenos educativos” (MIZUKAMI, 2002, p. 14).


Essa reflexão acontece envolta em aspectos, assim definidos: o conhe-
cimento-na-ação (evidencia-se no saber fazer); a reflexão-na-ação (eviden-
cia-se no ato educativo, ou seja, aprender com seus próprios erros, e assim
ressignificar a sua prática); reflexão-sobre-a-ação e sobre a reflexão-na-ação
(evidencia-se a posteriori da ação; o professor reflete e ressignifica sua prática
inserida em um contexto) (MIZUKAMI, 2002).
256

É o currículo escolar exercendo função social entre a escola e o contexto


sociocultural, cujo olhar está sempre atento para sua finalidade, o que supõe
voltar-se a serviço de práticas de professores que convergem para uma ação
educativa curricular autocrítica e autorrenovadora, sob um cenário cultural,
político e social, inebriado de valores que cabe decifrar.
Esse princípio curricular, então, considera a política enquanto conteúdo
que materializa o princípio da vida, vida humana, o viver melhor, e em con-

or
dições dignas para a sobrevivência e perpetuação da espécie humana, e a

od V
ética está implícita nesse contexto quando atua em vários campos concretos:

aut
econômico, pedagógico, esportivo, familiar, cultural, etc (DUSSEL, 2007).
A problemática que move o presente estudo é a seguinte: Quais as prá-

R
ticas pedagógicas de decolonialidade que se dão no contexto da educação
escolar quilombola realizada em dois Quilombos da Amazônia? Nesta pers-

o
pectiva, o objetivo geral deste capítulo é conhecer as práticas pedagógicas
de decolonialidade que se dão no contexto da educação escolar quilombola
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


realizada em dois Quilombos da Amazônia.
Essas questões tiveram suas bases nas análises de autores como: Dussel
(2007); Quijano (2002), dentre outros. As pesquisas apresentadas com alguns
visã
recortes neste capítulo foram do tipo Estudo de Campo de abordagem qua-
litativa. Essas pesquisas investigaram práticas pedagógicas de professores
em dois Quilombos localizados em Moju e Salvaterra que foram subsidiadas
por estudos, a partir de livros, periódicos, artigos on-line, revistas, portarias
itor

ministeriais etc.
a re

Na produção de dados das pesquisas, optou-se por questionários abertos


e observações diretas dessas práticas pedagógicas. O subsídio teórico apre-
sentado no relatório científico deu base para análise dos dados da pesquisa em
categorias analíticas. Os participantes desta pesquisa tiveram a sua privacidade
par

reservada, identificado por meio de nomes fictícios.


Este capítulo encontra-se assim dividido: O cenário da Educação Escolar
Ed

quilombola na Amazônia Paraense; Práticas Pedagógicas de Decolonialidade


no contexto da educação Escolar Quilombola: o caso de Moju e Salvaterra,
e Considerações Finais.
ão

O cenário da educação escolar quilombola


s

na Amazônia Paraense
ver

O tema educação na história brasileira vem sendo tratado ao longo da


trajetória política brasileira por meio de tímidos arranjos e pálidas iniciativas
por parte dos governos. As mobilizações em torno da edificação de um campo
onde o projeto central seja a produção de sujeitos conscientes de seus lugares
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 257

construídos por meio de histórias de resistência e produção de saberes vem


sendo uma proposta ousada dos coletivos diversos que buscam inscrever na
agenda do Governo Federal suas pautas de inclusão e permanência nas ins-
tituições de ensino do país.
Nessa arena de conflitos, tensões e intensões de vários atores, a educação
escolar quilombola diz respeito a aceitação de outras narrativas sobre viver e
ser. Significa dizer que devem ser consideradas a história, a memória e, sobre-

or
tudo, as formas desses povos estarem no mundo e produzirem conhecimento

od V
sobre seus próprios contextos. A perspectiva das comunidades negras rurais

aut
precisa estar dita e escrita de maneira que a escola seja esse lugar de poder e
saber já mencionados linhas acima.
Nesse sentido, a Educação Escolar Quilombola como tema e matéria

R
política emerge por meio da pauta antiga e original da luta campesina na
década de 1980 que pontuou a necessária assunção por parte da Assembleia

o
Constituinte da diversidade dos povos da floresta e, que isso significaria ins-
aC
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crever na Carta Magna não somente as conquistas fundiárias, mas, sobretudo,


o direito de sobreviver de acordo com seus saberes e práticas ancestrais. Sendo
assim, a militância camponesa negra passou a se mobilizar a fim de levantar
e catalogar informações que pudessem fazer parte da Constituição brasileira.
visã
Uma arquitetura de retomada do poder estaria sendo engendrada por meio
da conexão entre os militantes e a academia foi um aspecto determinante
para o sucesso dessa caminhada pelo chão do território (ALMEIDA, 2012;
itor

ARRUTI, 2011).
a re

Segundo dados da Comissão Pró Índio50 (CPI), o Pará é a quarta região


em número de comunidades quilombolas. Os encaminhamentos políticos
em torno do reconhecimento e titulação dessas terras tem se efetivado por
meio das ações dos movimentos sociais negros da região, notadamente o
par

CEDENPA. O Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA) parti-


cipou de forma contundente embasando a militância com as pesquisas. Por-
Ed

tanto, militância e produção acadêmica deram o tom do campo político que


foi construído no contexto paraense.
Arruti (2002, p. 79) considera que:
ão

por uma iniciativa desenvolvida em duas frentes: pelo convênio entre o


Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA-UFPA) e o Governo do Pará
s

e pelo projeto de pesquisa do mesmo NAEA-UFPA, financiamento pelo


ver

CNPQ, ambos entre os anos de 1998 e 2000. Em 1997 o governo do Pará


havia criado um Grupo de Trabalho formado pelos órgãos oficias ITERPA,
SECTAM, SECULT, SAGRI e por entidades representativas do movimento

50 Há divergências entre os dados da militância e a Fundação Cultural Palmares (FCP).


258

negro e do movimento camponês como a ARQMO, o CEDENPA, a CPT


e a FETAGRI, que conclui pela necessidade de promover estudos sobre
as comunidades remanescentes de antigos quilombos. O ponto de partida
do projeto foi o levantamento organizado em parceria com CEDENPA e
pelos Sindicatos de Trabalhadores Rurais e apresentados no I Encontro
de Comunidades Negras Rurais do estado, em 1998. A partir daí o projeto
identificou 253 comunidades, distribuídas por 31 municípios, agrupados

or
em cinco regiões de concentração. O aspecto de maior destaque no relato
disponível sobre o projeto é justamente a natureza social e politicamente

od V
produtiva do próprio levantamento (ARRUTI, 2002, p. 79).

aut
A análise desse campo, portanto, possibilita a observação na perspec-

R
tiva genealógica que conduz aos dias atuais trazendo a visão dos embates e
fricções desse lugar de maneira que é possível uma avaliação real do que se

o
construiu e como as articulações vão se adequando ao momento político e
suas prioridades.
aC

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Em 1988 foi dado o impulso determinante com o I Encontro Raízes
Negras realizado pela Associação Cultural de Óbidos (ACOB) em parceria
com o CEDENPA. A partir desse evento, a militância paraense, a fim de
visã
empreender efetivas medidas para exigir do Governo paraense o “cumpra-se”
do Artigo 68 da Constituição, emerge como principal agência dessa e, por-
tanto, responsável pela imperiosa articulação das comunidades quilombolas,
itor

localizadas no Pará. Sendo assim, o termo “remanescente de quilombo” foi


sendo ressignificado para que fosse “construído” um caminho possível de
a re

apropriação desse construto presente na Carta Magna, de modo que as comu-


nidades negras rurais pudessem exigir a legalidade em suas terras de posse
consciente de sua identidade (ARRUTI, 2002).
Dessa maneira, observa-se que a educação quilombola no Pará está
par

acomodada num campo onde estão inscritos os avanços da militância, no


sentido de diminuir a distância entre as demandas da população quilombola
Ed

e as ações do Governo. Sendo assim, em 2002 foi criado o primeiro órgão no


âmbito estadual da educação com vistas a atender as demandas étnicos raciais,
ão

apontadas pelas organizações negras paraenses como órgão que deveria ser a
ponte entre o que havia e o que precisava ser realizado.
Desse modo, foi criada a Seção Técnica-Pedagógica de Relações Étnico
s

Raciais na Secretaria de Estado de Educação e em 2005 foi substituído pela


ver

Coordenadoria de Educação para a Promoção das Relações Éticas Raciais


(COPPIR). Esse órgão foi ocupado por profissionais da educação militantes
e vinculado à Secretaria de Educação do Estado. A intenção desses profis-
sionais encontra os entraves do sistema estadual de educação no qual há 144
municípios com 887 escolas com mais de 87 anexas. Nesse numerário, estão
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 259

as 181 escolas classificadas como escolas quilombolas e para gerir esse mapa
de demandas, a COPPIR contava com algo em torno de 13 profissionais51.
A Educação Escolar Quilombola posta na Lei 10.639/03 recebe do Con-
selho Nacional de Educação em 2004, a aprovação do parecer que propõe as
Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileiras. Finalmente em 2012,
foram aprovadas pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional

or
de Educação, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

od V
Quilombola (MEC, 2012) que devem orientar os sistemas de ensino para que

aut
eles possam colocar em prática a Educação Escolar Quilombola em diálogo
com a realidade sociocultural e política das comunidades e dos movimentos

R
quilombola. A partir desse documento, a Educação Quilombola torna-se uma
modalidade da Educação Básica.

o
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilom-
bola foram construídas a partir de consultas públicas oficiais no Maranhão, na
aC
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Bahia e em Brasília, realizadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE)/


Ministério da Educação (MEC), assim como de consultas públicas em outros
estados considerando iniciativas locais e autônomas, reivindicadas pela mili-
visã
tância (ARRUTI, 2008).
No entanto, esse arcabouço não tem sido suficiente para a transição de
uma educação escolar para a radicalização proposta na legislação e a institui-
itor

ção do órgão na região. O Estado ainda não avançou na efetivação da legisla-


a re

ção, no direito que as comunidades negras rurais têm de estarem representadas


na escola, tendo suas histórias e memórias inscritas nos currículos e projetos
pedagógicos de modo contínuo e crítico.
Nesse cenário de vanguarda, há duas regiões em destaque no que se refere
a aprofundar o alcance da legislação a despeito da ineficiência da máquina
par

estatal, ampliando o conjunto normativo na medida em que especifica suas


peculiaridades regionais. A saber, Moju e Salvaterra. Ambos os casos trazem
Ed

informações sobre a prática e protagonismo das mobilizações, sobretudo, no


centro da vida escolar o que nos faz pensar a respeito da radicalidade das ações
ão

da militância negra. A relação entre agências e agentes no campo dinamizando


o texto político e sobre o que esse texto pode refletir.
De que modo resistir a esse momento emblemático brasileiro onde as
s

estruturas de opressão buscam reavivar a subalternidade das vozes? Esses dois


ver

municípios estão em pleno trabalho, no sentido de manter o processo de demo-


cratização e implementação de uma educação que aliada a garantia dos outros
direitos sociais elementares, possa garantir a justiça social (MELLO, 2009).

51 Ver dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP).


260

É possível refletir a respeito de como nessas regiões os agentes


locais trazem a urgência da proposta da educação antirracista para a pauta
governamental. Ratificando, dessa forma, que as relações raciais, no formato
brasileiro, são relações de poder e que a intensidade da organização fará a
reversão desse quadro social, econômico e histórico. Isso se reflete nas ple-
nárias, fóruns, assembleias que antecedem os documentos e propostas efeti-
vas que tanto Moju com as Diretrizes Curriculares para a Educação Escolar

or
Quilombola como em Salvaterra com um currículo específico.

od V
Nesse sentido, para além de uma seleção de temáticas que tenham objeti-

aut
vos, o currículo escolar é uma construção social. Entende-se que “os conteúdos,
como toda realidade educativa tal como a conhecemos em suas instituições, nas

R
práticas pedagógicas, não foram criados decisivamente pelo pensamento edu-
cativo, mas são isso, sim, frutos de uma história (SACRISTÁN, 1998, p. 155).

o
Nesse caso, buscamos como perspectiva, a noção de que “o currículo
deve considerar, na sua organização e prática, os contextos socioculturais,
aC

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regionais e territoriais das comunidades quilombolas em seus projetos de
Educação Escolar Quilombola” (BRASIL, 2012, p. 34).
A respeito da Educação Escolar Quilombola, existe uma concepção de
visã
currículo diferenciado que seja elaborado em consonância com as práticas
sociais, econômicas, culturais e de saberes das populações quilombolas.
Com isso, compreendemos que a questão curricular nesse caso, não opera
como meio de reprodução cultural. Por isso, concordamos com Lopes e
itor

Macedo (2011, p. 203): “não estamos tratando a cultura como objeto de


a re

ensino nem apenas como a produção cotidiana de nossas vidas. Estamos


operando como uma compreensão mais ampla de cultura como aquilo
mesmo que permite significação [...]”.
Nota-se que currículo não pode ser visto ou entendido como simples
par

extrato de conteúdos, pois seu processo de construção implica no discurso de


conhecimentos pedagógicos, escolares, que se constitui de símbolos, valores,
Ed

ideologias, intencionalidades e significados. Em relação, às escolas quilom-


bolas, temos as seguintes orientações curriculares:
ão

Art.34 o currículo da Educação Escolar Quilombola diz respeito aos modos


de organização dos tempos e espaços escolares de suas atividades peda-
s

gógicas, das interações do ambiente educacional com a sociedade, das


relações de poder presentes no fazer educativo e nas formas de conceber
ver

e construir conhecimentos escolares, constituindo parte importante dos


processos sociopolíticos e culturais de construção de identidades. §1º Os
currículos da Educação Básica na Educação Escolar Quilombola devem
ser construídos a partir de valores e interesses das comunidades quilom-
bolas em relação aos seus projetos de sociedade e de escola, definindo
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 261

nos projetos político-pedagógicos. Art.38– A organização curricular da


Educação Escolar Quilombola deverá se pautar em ações e práticas polí-
tico-pedagógicas que visem: V– a adequação das metodologias didáti-
co-pedagógicas às características dos educandos, em atenção aos modos
próprios de socialização dos conhecimentos produzidos e construídos
pelas comunidades quilombolas ao longo da história; VI– a elaboração e
uso de materiais didáticos e de apoio pedagógico próprios, com conteúdos

or
culturais, sociais, políticos e identitários específicos das comunidades
quilombolas (BRASIL, 2012, p. 13).

od V
aut
Diante disso, por exemplo, no cenário educacional, em Salvaterra veri-
ficamos que a questão quilombola como dispositivo curricular foi organizada

R
a partir de quatro grandes eixos: memória e cultura; saberes e tecnologia;
relações ambientais; promoção e igualdade racial e de gênero a partir dos

o
conteúdos das disciplinas específicas. Além disso, em caráter interdisciplinar
foi criada a disciplina Educação e Cultura Quilombola52, modelo que está em
aC
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processo de implementação na educação escolar quilombola do município.


Segue diante do exposto, o cenário de Moju e Salvaterra, a partir de
dois recortes de pesquisa de doutorado em contextos teóricos definidos
visã
neste capítulo.

Práticas pedagógicas de decolonialidade no contexto da


itor

educação escolar quilombola: o caso de Jambuaçu (PA)


a re

A pesquisa realizada em Jambuaçu demarca que ser professora quilom-


bola nesse Quilombo está intimamente ligada com o lugar que pertence, onde
mora, e que, se o Quilombo de Jambuaçu tem uma história de tensões de
permanecer na terra, o Sujeito (professor) pode ser considerado não como
par

um problema, mas como elemento enriquecedor do leque de opiniões (cons-


cientizador das identidades de projeto decolonial) da comunidade, pois o que
Ed

se pretende discutir e implementar nesses espaços são posturas docentes que


apresentem engajamento político nas questões cotidianas em suas práticas na
sala de aula, bem como modos e estratégias curriculares de cunho valorativo
ão

da identidade quilombola.
Nesse contexto, é o currículo escolar exercendo função social entre a
s

escola e o contexto sociocultural, cujo olhar está sempre atento para sua
ver

finalidade, o que supõe voltar-se a serviço de práticas de professores que


convergem para uma ação educativa curricular autocrítica e autorrenovadora
decolonial, sob um cenário cultural, político e social, inebriado de valores
que cabe decifrar.
52 A Secretaria Municipal de Educação de Salvaterra aprovou em 2017 a disciplina Educação Quilombola.
262

Portanto, a relevância de um currículo escolar pautado por caminhos


que implicam no “mergulhar” nas práticas educativas, considerando observar
as relações de interação que ocorrem nessas práticas, para que assim esse
currículo se constitua em esquemas de representações advindas de aspectos
pedagógicos inseridos em contexto histórico e sociocultural, pois não há como
teorizar o currículo fora do contexto do qual procedem. O que consideramos
práticas pedagógicas de decolonialidade.

or
od V
Devemos abordar aspectos que valorizem o aluno. Devemos assumir o que

aut
Paulo Freire ensinava: o aluno é o sujeito do processo, chega de fazê-lo
objeto, deposito de conhecimentos, reprodutores da sociedade dominante
capitalista. Então, a minha percepção sobre identidade é que ela precisa

R
ser trabalhada que ela precisa ser valorizada é que o próprio destinatário
da educação que é o Quilombo requer conhecer a realidade que muitas

o
deles não conheceram, bem como conhecer as Leis e os projetos, porque
aC
a partir disso, conhecem seus direitos, e assim criam coragem, e se auto

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identificam (MARIA apud AZEVEDO, 2011, p. 132).

No entanto, torna-se desafiador e complexo, definir em que âmbito his-


visã
tórico e sociocultural o currículo está envolvido, a fim de analisar essa rea-
lidade com intuito de conscientizar e contribuir com as dificuldades que se
apresentarem. É ação dialógica entre o pensamento e a ação em educação,
que é voltar-se para a cultura local com efeitos ainda de colonialidade como
itor

um todo antropológico de processos educativos que constituem os modos de


a re

vida de uma sociedade.


Logo, é propiciar e determinar ação e prática (cultura) enquanto ação
dinâmica que se fundamenta para direcionar os fenômenos educativos. É
cultura mutante que se configura em circunstâncias variáveis e provisórias “O
par

trato que venho dando aos conteúdos no Quilombo é trabalhar as questões,


como, as raízes das nossas etnias, o Sítio Arqueológico, os pajés, a mandioca,
Ed

o miriti, etc.” (JOÃO apud AZEVEDO, 2011, p. 133).


Essa inserção mostra-se estrategicamente um cenário significativo, moti-
vador, processual, pelo qual João traduz e redefine como possibilidades de
ão

inovar sua prática de sala de aula, diante de elementos históricos e sociocul-


turais que o Quilombo de Jambuaçu apresenta.
s

Discuto a identidade quilombola de Jambuaçu por meio do envolvimento


ver

dos pais, à base de textos, historinhas, casos contados por moradores


antigos, lendas, etc. Atualmente, proponho discutir, a questão da cultura,
da fonte de renda, da economia, e da mandioca enquanto fonte geradora
da economia do município, bem como o que ela representa como forma
de se contrapor a uma nova proposta de economia que está tentando, de
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 263

certa forma, induzir o agricultor de Jambuaçu a mudar da mandioca para


o dendê, pois sabemos que temos de preservar constantemente a nossa
cultura, e o dendê vem trazer prejuízo, em todos os segmentos, principal-
mente na questão da origem, pois se deixarmos de produzir a mandioca
para produzir o dendê, o nosso cotidiano sofrerá alterações significativas,
como mudanças de hábitos, a maneira de vender também vai ser diferente,
aquele contato de pessoa para pessoa vai mudar, geralmente a mandioca

or
se trabalha com mutirão (MARIA apud AZEVEDO, 2011, p. 133).

od V
E Maria explicita algumas estratégias que vêm desenvolvendo em suas

aut
práticas de sala de aula, considerando a inserção das famílias de seus alunos,
os personagens principais para compor um referencial histórico e sociocultural

R
sobre a identidade quilombola de Jambuaçu.
Diante disso, Maria pressupõem que as suas práticas de sala de aula se

o
enriquecem e dão um novo sentido quando, as mesmas adentram e pene-
tram em acontecimentos, em problemas que esse Quilombo vivencia no
aC
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seu cotidiano.

Vamos perder aspectos da nossa cultura validada enquanto colônia;


visã
povoado, onde os afros que viviam aqui, saíam para trabalhar em “cantu-
ria”, tinham “canturia” para lavrar, para serrar a madeira, para derrubar o
roçado, para plantar e colher. Então, podemos perder tudo isso, e já vemos
que já está acontecendo, pois os moradores dificilmente cantam nos muti-
itor

rões, deixaram de produzir a cachaça da mandioca, de produzir a peneira,


a re

compram tudo no comércio. Diante desse cenário, estamos organizando


oficina de paneiro, oficina de canturias, oficina de dança. Nesse sentido,
as crianças aprendem a sua história em sala de aula, contada pelos seus
próprios pais e avós, e aprendem a gostar e continuar com essa história e
passar para os filhos deles no futuro, e aprender a ler e escrever as palavras
par

geradas do vocabulário dos antigos que também estão perdendo, porque


acham que é feio, que é cafona. Também discutimos sobre a importância
Ed

de ser quilombola que está se perdendo no contato com a cidade. Nesse


sentido, consideramos o que é viver no Quilombo e o que é viver na cidade,
porque as crianças ao irem à cidade acham que não é interessante viver
ão

no Jambuaçu, e nem gostam de dizer que são quilombolas (MARIA apud


AZEVEDO, 2011, p. 134).
s

É um currículo, portanto, envolvido em contextos históricos e sociocultu-


ver

rais pelo qual se configura sob a égide de acontecimentos tensos no cotidiano


de Jambuaçu, e que assim, esse currículo, modela-se e se configura dentro
desses cenários que Jambuaçu experimenta. Com isso, o currículo gravita
e circunda nesses espaços e se desdobra em protagonista predispondo sua
condição e função social.
264

Práticas pedagógicas de decolonialidade no contexto da


educação escolar quilombola: o caso de Salvaterra (PA)

A escola quilombola é mais do que um espaço institucionalizado, de


conhecimentos disciplinares, sua função também se foca no reconhecimento
do território quilombola, das identidades historicamente construídas e mobili-

or
zadas pelo saber local. Nesta relação do conteúdo disciplinar com a identidade
quilombola, aponta-se uma educação escolar diferenciada.

od V
Desse modo,

aut
o que demarca, então, educação escolar diferenciada? Um argumento

R
categórico é a localização dessas escolas no território da comunidade, a
fim de intensificar a participação das comunidades nas definições curricu-
lares e a incorporação da cultura como saber (MIRANDA, 2018, p. 204).

o
aC
Entende-se que o professor ao abordar na escola, o espaço vivenciado

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


pelo aluno, necessita articulá-lo aos instrumentos conceituais (conceitos) do
conhecimento. É fundamental estabelecer um exercício crítico sobre a rea-
lidade e os fenômenos. No caso da Educação Escolar Quilombola, o ensino
visã
deve ocorrer partir de uma leitura da vivência, do território, das identidades,
do pertencimento do grupo social e das relações que se articulam entre o con-
teúdo estabelecido e os elementos socioculturais das populações quilombolas.
itor

Nesse aspecto, trazemos os seguintes relatos de duas professoras da escola


a re

quilombola da comunidade Vila União/Campina em Salvaterra:

Educação quilombola pra mim, é quando nós trabalhamos contextos que


estão inseridos, que estão muito vivíveis na comunidade, por exemplo,
par

aqui nós temos traços dessa situação de raízes e aí teve certo período que
a escola não trabalhava dessa forma e hoje graças a deus já conseguimos
Ed

inserir na proposta curricular para trabalhar essas intervenções inclusive


são intervenções muito boas, é boa porque vem fazer com que os alunos
se identifiquem com o lugar porque a gente tem essa resistência aqui na
ão

escola, então educação quilombola pra mim, é resgatar realmente esse


conhecimento dessas raízes que nós temos na nossa comunidade (PRO-
FESSORA PAULA apud CAMPOS, 2019, p. 123).
s

Eu compreendo como uma modalidade de educação ainda com material


ver

muito escasso e aqui no município, é muito difícil de trabalhar a temática.


É um trabalho muito minucioso, há conflitos enormes, mas, nos temos
tido resultados positivos e muito, porque havia uma rejeição muito grande
e hoje em dia, já conseguem aceitar melhor a modalidade de educação
(PROFESSORA JÚLIA apud CAMPOS, 2019, p. 124).
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 265

Nesse caso, é fundamental articular a prática docente e a cultura esco-


lar ao pertencimento étnico-cultural da comunidade. Mediante esse cenário,
no ensino da escola quilombola “é necessário inserir no projeto educativo,
os conteúdos éticos, morais, comportamentais, culturais, sociais [...] não os
desvinculando dos conteúdos de cada área de conhecimento ou de cada dis-
ciplina” (LARCHERT; OLIVEIRA, 2013, p. 53).
As práticas pedagógicas desenvolvidas por essas professoras, na escola

or
quilombola, demonstram que é preciso superar a visão colonialista do saber,

od V
que no interior desses espaços de ensino, existem sujeitos que possuem conhe-

aut
cimentos muitas vezes invisibilizados por um sistema educacional hegemô-
nico. Por isso:

R
A compreensão das formas por meio das quais a cultura negra, as questões
de gênero, a juventude, as lutas dos movimentos sociais e dos grupos

o
populares são marginalizadas, tratadas de maneira desconectada com a vida
aC
social mais ampla e até mesmo discriminadas no cotidiano da escola e nos
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currículos pode ser considerado um avanço e uma ruptura epistemológica


no campo educacional (GOMES, 2012, p. 104).
visã
A ruptura desse paradigma dominante nos leva a uma outra imagem do
contexto educacional amazônico e contrapõe-se ao imaginário colonialista que
muitos indivíduos têm em relação às comunidades quilombolas rurais na Ama-
itor

zônia, algo que perpassa por uma concepção tradicional de quilombo. Assim,
Quijano (2002, p. 14) aponta que “a descolonização é o piso necessário de toda
a re

revolução social profunda”. Portanto, a educação escolar quilombola precisa ser


significativa no processo de reconhecimento e afirmação identitária dos alunos.

Considerações finais
par

É possivel afirmar que as práticas pedagógicas de decolonialidade para


Ed

uma educação escolar quilombola pressupõe dentre outras características, a


autonomia, o que implica que o sujeito coletivo precisa julgar a realidade e
apresentar soluções compatíveis com o estilo de vida. A escola autônoma que
ão

planeja sua atividade com liberdade estabelece rotinas sobre o que e como
fazer e executa suas ações visando à obtenção dos resultados (re)definidos
s

pelo próprio grupo.


ver

Assim, sugerimos um poder político na escola que passa a ser condutora


de sua própria história e a responsável por seus diferentes processos, e pela
solução de seus problemas. A escola é espaço de disputa de narrativas, no
entanto, a negocição, o olhar, o conflito podem fazer desse espaço um campo
vigoroso, potente de resistência absoluta.
266

A mediação e a articulação do projeto educacional dinamizado pela


necessidade de sujeitos coletivos que estejam envolvidos em uma direção de
relações educativas conscientes cujo propósito é aumentar a participação do
estado de bem-estar social, pode mudar o rumo da história atual brasileira.
Desse modo, a Educação Escolar Quilombola, no Pará, é a proposta
antirracista que as comunidades negras rurais estão articuladas desde muito
tempo. Há muita história vitoriosa nessa trajetória, e a radicalidade está em

or
seguir com o que se faz fora do espaço escolar para o fortalecer. As estra-

od V
tégias que vêm por meio de projetos orgânicos têm conquistado espaços

aut
determinantes nessa luta, como é o caso paraense. O poder que representa a
escola em todos os níveis e dimensões foi anunciado por muitos, de diver-
sas formas. Nesse momento, portanto, é hora de seguir com a estratégia

R
revolucionária de ocupar efetivamente os espaços com outras narrativas e,
efetivar a justiça social.

o
aC

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 267

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itor

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Médicas, 1999.
par
Ed
s ão
ver
OS MODOS DE SABER E FAZER
DAS CRIANÇAS QUILOMBOLAS
MARAJOARA-SALVATERRA-PARÁ

or
od V
Érica de Sousa Peres

aut
Nazaré Cristina Carvalho

R
Introdução

o
aC
Este estudo é fruto da pesquisa de mestrado realizada no “Programa de
Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual do Pará – UEPA, no
período de 2016-2018. Vale ressaltar que apresento aqui modos de saber e
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fazer de crianças que aprendem de maneiras especificas, saberes que são de


visã
extrema importância para sua cultura étnica.
Com isso, este estudo fundamenta-se na sociologia da infância, com
o objetivo de reposicionar as crianças como sujeitos ao invés de objetos
itor

de pesquisa, de modo que “o processo de pesquisa reflete uma preocupa-


ção direta em capturar as vozes infantis, suas perspectivas, seus interesses”
a re

(CORSARO, 2011, p. 57). E ainda nos estudos antropológicos da infância


que tal qual as pesquisadoras que aqui escrevem consideram as crianças como
sujeitos produtores de cultura, ou seja, sujeitos ativos de sua própria história.
Nesse sentido, Conh (2005, p. 35) ressalta que:
par

As crianças não são apenas produzidas pelas culturas, mas também pro-
Ed

dutoras de cultura. Elas elaboram sentidos para o mundo e suas experiên-


cias compartilhando plenamente de uma cultura. Esses sentidos têm uma
particularidade, e não se confundem e nem podem ser reduzidos àqueles
ão

elaborados pelos adultos.

Diante disso, as crianças quilombolas marajoaras vivenciam aprendizados


s

significativos, compartilham experiências e vivências que na praxis cotidiana


ver

se transformam em maneiras especificas de saber e de fazer.

O caminho para o lócus

Navegando por esses saberes que se constroem nas práxis cotidianas


das crianças, escolhemos como lócus para a minha pesquisa a comunidade
remanescente de quilombo Vila de Mangueira, localizada na zona rural do
270

município de Salvaterra – Marajó – Pará. Trata-se de uma comunidade qui-


lombola que já possui seu território certificado junto ao órgão responsável
(Fundação Cultural Palmares). Segundo este órgão, a abertura do processo de
certificação da comunidade ocorreu em 2011. Contudo, a comunidade ainda
aguarda o processo de titulação da terra pelo Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária – INCRA, na vigência do Decreto n. 4.887/2003.
A escolha por esse lócus se deu inicialmente por conta do meu percurso

or
como docente nas comunidades quilombolas do Marajó. Escutei várias his-

od V
tórias de origem das comunidades sendo sempre iniciadas em Mangueira, o

aut
que me causou curiosidade e impulso em conhecer a vivência dessa comuni-
dade. A posteriori, busquei pesquisas que a tivessem como lócus. Encontrei

R
somente estudos no âmbito da saúde e da pesca. Isto me instigou ainda mais,
pois meu estudo se centra na educação e poderia figurar como o primeiro
com esse caráter investigativo. Com esses elementos em mente, propus-me

o
a mergulhar nesse rio da pesquisa.
aC

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Segundo as informações colhidas em estudos relacionados a quilombos
marajoaras na região de Salvaterra, e também com pessoas pertencentes a
comunidades do entorno de Mangueira, o mito de origem das comunidades
visã
remanescente de quilombo de Salvaterra está sempre ligado a alguém que veio
da Vila de Mangueira se instalando em outra terra e formando outro quilombo.
Assim, esta figura atua como o elo entre todos os outros quilombos, sendo
denominada de “quilombo-mãe”53, isto é, aquele que gerou todos os outros.
itor

Diante desse contexto, a comunidade remanescente de quilombo Vila


a re

de Mangueira foi o primeiro quilombo do município de Salvaterra, o que é


ressaltado pela oralidade e pela memória. Dessa forma, essa comunidade se
estabelece enquanto mito de origem preservado na memória dos quilombo-
las, o que vem ao encontro do dizer de Le Goff (1992) quando destaca que a
par

memória é a propriedade onde se conserva certas informações. Percebe-se que


é a partir desta propriedade que as informações sobre a origem ou a história
Ed

do lugar são transmitidas de geração em geração.


Outrossim, a comunidade está localizada à margem do rio Mangueira,
situa-se cerca de 1h30min. do centro de Salvaterra. Vale ressaltar que o acesso
ão

é dificultado pela necessidade de transporte terrestre e fluvial. A estrada que


dá acesso à comunidade é de chão batido, apresentando muitos buracos, o que
s

complica e dificulta o caminho. No fim da estrada, há uma pequena travessia,


que pode ser feita em pequeno barco, chamado de rabeta, ou em uma pequena
ver

balsa que foi recentemente cedida pela prefeitura de Salvaterra à comunidade.

53 Utilizo o termo quilombo-mãe para designar aquele que, segundo as memórias que me foram narradas por
moradores de outras comunidades, foi o primeiro quilombo a ser formado em Salvaterra, sendo o refúgio
inicial dos negros que fugiam da escravidão imposta nas fazendas de Souré.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 271

O cotidiano dos moradores da comunidade remanescente de quilombo


Vila de Mangueira é permeado pelo trabalho com a pesca e nas fazendas pró-
ximas, no ir até a cidade de Salvaterra, nos afazeres de casa, nas atividades
com o sagrado, nas festas programadas pela comunidade e pela escola, pelo
futebol nos campos, pelo jogo de cartas nas malocas e pelas brincadeiras das
crianças, o que ressalta que o lazer sempre foi um aspecto relevante no coti-
diano social do povo negro que foi escravizado na Amazônia desde o Brasil

or
Colônia. Nesse contexto, Vicente Salles (2005, p. 185) evidencia que “uma

od V
das condições impostas pelos escravos para dar ao senhor maior produtividade

aut
foi certamente o uso do lazer”.

Os navegantes
R
o
Os navegantes desta pesquisa são crianças quilombolas marajoaras,
sujeitos sociais que possuem experiências culturais diferenciadas, as quais só
aC
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podem ser entendidas em seu contexto. Neste estudo, o contexto configura-se


numa comunidade quilombola marajoara, a comunidade Vila de Mangueira.
Diante disso, busquei conhecer a concepção e o ponto de vista das crianças
visã
dessa comunidade. Conforme ressalta Cruz (2008, p. 13):

A ideia fundamental para as teorias sociológicas da “reprodução interpre-


tativa”, de que a criança não é apenas, mas também construtora de cultura,
itor

estimula o desejo de conhecer a sua perspectiva, os seus pontos de vista.


a re

Eles podem ser bastante heterogêneos, já que, além de expressarem as


peculiaridades da história de cada uma delas, também são marcados pelas
experiências concretamente vividas em determinado contexto, momento
histórico, profundamente influenciadas pelos lugares que as crianças e sua
família ocupam na sociedade, assim como pelo pertencimento a determi-
par

nado gênero, etnia e cultura.


Ed

Nessa perspectiva sociológica, a pesquisa com crianças busca conhecer


a perspectiva e o ponto de vista das crianças, visto que elas são também
produtoras de cultura, o que é desafiante e também estimulante e renovador
ão

por muitas razões. Inicialmente, pelas poucas produções que possibilitam às


crianças se mostrar e/ou ter voz. Posteriormente, por elas estarem envolvi-
s

das num universo singular e particular a ser desvelado. Isso faz com que os
ver

estudos da criança se caracterizem na proposição de uma abordagem inter e


multidisciplinar da infância.
Diante disso, a cultura negra expressa nas comunidades remanescen-
tes de quilombo do Marajó, e mais precisamente aquela exteriorizada pelas
crianças, tem em si aspectos viscerais, como o imaginário, a ludicidade e a
272

leveza que se constitui em inúmeras representações simbólicas que elas são


capazes de abstrair do seu cotidiano e de sua vivência. Portanto, com este
estudo, temos o comprometimento de assegurar que a voz das crianças e os
saberes produzidos por elas em seu cotidiano sejam os elementos fundamen-
tais da presente análise.
A escolha por essas crianças justifica-se pela disposição e modos próprios
de elas se expressarem no cotidiano quilombola. Elas têm tempo, espaço e

or
motivação para serem crianças. Inventam sua diversão a todo o momento,

od V
fazendo uso de coisas simples, e muitas vezes buscam na natureza o seu

aut
brinquedo. Valem-se da criatividade e imaginação para viver suas infâncias e
assim expressam a liberdade e leveza do brincar em meio aos quintais, terreiro,

R
rio, barco e ao campo, que são espaços comuns de todos: “a gente brinca aqui
porque aqui é de todo mundo” (informação verbal)54.

o
O cotidiano dessas crianças é marcado pelo contato com a natureza
(campo/floresta, rio), com a liberdade e o tempo para brincar e estar entre
aC

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amigos e parentes. Nesse contexto, aprendem e convivem com os velhos da
comunidade. Desse cotidiano, busco compreender as manifestações lúdicas
expressas nas brincadeiras que envolvem e/ou desenvolvem as crianças resi-
visã
dentes desta comunidade.
Vale destacar que os critérios utilizados para a escolha dos sujeitos da
pesquisa se deram inicialmente pela faixa etária prevista no início do projeto;
itor

posteriormente, pelo consentimento da criança, bem como a autorização dos


a re

responsáveis e ainda ser nascido e residente da comunidade quilombola Vila


de Mangueiras – Salvaterra – Marajó – Pará.
No entanto, ressaltamos que foram as crianças que determinaram e deci-
diram sua participação na pesquisa. Elas permitiram e “fixaram as regras” a
serem seguidas, ou seja, “na investigação com as crianças, são as crianças
par

que detêm o saber, dão a permissão e fixam as regras – para os adultos.


A investigação com crianças vira parte do mundo às avessas” (GRAUE;
Ed

WALSH, 1956, p. 76-77).


E assim, “às avessas”, foi com as crianças quilombolas da Vila de
ão

Mangueiras. Mesmo com os esclarecimentos e a exposição da faixa etá-


ria a que este estudo se propunha, as crianças, à revelia da nossa ordem,
organizavam-se e, nos momentos em que nos reuníamos, seja nas rodas de
s

conversa na sede ou nos passeios de ida ao igarapé, ou ainda no caminho da


ver

escola, elas reuniam, chamavam as outras crianças, demarcando claramente


a importância da participação coletiva das crianças da comunidade, inclusive
crianças bem pequenas.

54 Fala de uma das crianças se referindo ao local da brincadeira – quintal de uma casa.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 273

Em consonância com o caráter social desta pesquisa, adotamos a amostra-


gem por acessibilidade, a qual se caracteriza por um tipo de amostragem não
probabilística que, segundo Gil (2008), é uma amostragem menos rigorosa no
sentido do rigor estatístico, uma vez que permite ao pesquisador selecionar os
participantes de acordo com o acesso disponível e, a partir deles, demonstrar
o universo desejado.
Embora este estudo tenha contado com a participação expressiva das

or
crianças da Vila de Mangueira, nem todas se expressaram através da fala nas

od V
rodas de conversa e entrevistas, mas elas estavam lá, participando de todos os

aut
momentos da pesquisa, contribuindo com as demonstrações de suas brinca-
deiras, observando e sendo observadas na coletividade das suas vivências. A
rigor, o estudo contou com 15 crianças nascidas e residentes na comunidade

R
remanescente de quilombo Vila de Mangueira, sendo oito meninos e sete
meninas, intérpretes selecionados por acessibilidade, com a permissão das

o
próprias crianças e de seus pais ou responsáveis.
aC
A escolha dessas crianças como intérpretes da pesquisa está intrinseca-
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mente ligada ao meu primeiro contato com a comunidade remanescente de


quilombo Vila de Mangueiras, quando observava da janela da casa dos profes-
sores aquelas crianças brincando livremente. E assim, pude fazer um passeio
visã
pelas lembranças de minha própria infância, quando, assim como elas, pude
desfrutar o prazer do tempo de brincar. Posteriormente, fui envolvida pela
curiosidade investigativa de conhecer e compreender os saberes do brincar
itor

das crianças envolvidas no contexto quilombola, pois há poucos estudos que


a re

dão conta da criança nesse contexto.


Desse modo, as crianças foram consideradas intérpretes neste estudo,
visto que apresentaram suas próprias interpretações em relação às suas vivên-
cias na comunidade de origem, ao seu cotidiano, aos seus saberes, e assim
evidenciam a liberdade e o descompromisso expressando-se através da “per-
par

formance, a voz e o gesto”, que diária e livremente se mostram tal qual são.
Ed

Em consonância com o dizer de Paul Zumthor, o intérprete “é o indivíduo de


que se percebe, na performance, na voz e no gesto, pelo ouvido e pela vista.
Ele pode ser também compositor de tudo ou parte daquilo que ele diz ou
ão

canta” (ZUMTHOR, 2010, p. 239).


Salienta-se que legitimar as crianças quilombolas enquanto sujeitos de
pesquisa é se contrapor à invisibilidade e ao silenciamento imputados a esses
s

sujeitos na história oficial. Ademais é importante frisar que, mesmo nesse lugar
ver

invisível que lhes fora destinado, as crianças sempre se mantiveram firmes e


resistiram ao longo do tempo. Como bem mostra a história da infância brasi-
leira, apesar de todos os seus algozes, da visão adultocêntrica, que as vê como
seres em transição, da concepção de tê-las como um adulto em miniatura, as
crianças demarcam as suas particularidades e singularidades de ser criança.
274

Mediante a isso, faz-se necessário ressaltar a voz e a autonomia desses


atores sociais, sujeitos de direitos e produtores de cultura e saberes. Como
menciona Sarmento (2004, p. 10):

As crianças são também seres sociais e, como tais, distribuem-se pelos


diversos modos de estratificação social: a classe social, a etnia a que
pertencem, a raça, o gênero, a região do globo onde vivem. Os diferentes

or
espaços estruturais diferenciam profundamente as crianças.

od V
Com os “espaços estruturais” diferenciados, as crianças quilombolas do

aut
Marajó, que vivem suas infâncias envoltas pela cultura ancestral negra, são
seres sociais que se diferenciam, pois possuem particularidades e especifici-

R
dades que se relacionam com seu território de vivência. Nesse sentido, elas
têm uma liberdade de brincar, pois possuem tempo e espaço para isso, já que

o
seu modo de vida permite que as brincadeiras sejam uma constante em sua
aC
vida. Assim, compreendemos que trazer as vivências lúdicas através da voz

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das crianças quilombolas marajoaras para a pesquisa equivale a contribuir
para a visibilidade da infância nesse contexto.
visã
Os modos de saber e fazer das crianças quilombolas marajoaras

Desse modo, a cultura se interliga ao processo de ensinar e aprender,


itor

como se explicita no cotidiano dessas crianças, que, através das suas brin-
a re

cadeiras, aprendem e ressignificam práticas cotidianas de sua comunidade.


Nesse sentido, Brandão (1995) destaca que:

A educação existe onde não há a escola e por toda parte podem haver redes
e estruturas sociais de transferência de saber de uma geração a outra, onde
par

ainda não foi sequer criada a sombra de algum modelo de ensino formal
e centralizado. Porque a educação aprende com o homem a continuar o
Ed

trabalho da vida (BRANDÃO, 1995, p. 13).

Com essa educação que pode existir em toda parte, “a criança vê, entende,
ão

imita e aprende com a sabedoria que existe no próprio gesto de fazer a coisa”
(BRANDÃO, 1995, p. 18). Assim, os saberes e as práticas educativas passam
a permear a vivência das crianças que residem nos quilombos marajoaras.
s

E os modos de saber e fazer das crianças quilombolas marajoaras consti-


ver

tuem-se em compreender a educação de forma ampliada, considerar a apren-


dizagem que ocorre no contexto de cada cultura, isto é, considerar a educação
como cultura e entender que o conhecimento não se desvincula das práxis
cotidianas. Nesse estudo, a partir da observação em lócus, percebemos que
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 275

nas comunidades quilombolas da ilha do Marajó, há uma circularidade de


saberes que se desenvolvem através de processos de ensinar e aprender que
são significativos para o bem viver desse contexto específico.
Desse modo, os processos educativos que possibilitam uma educação
não formal valorizam diferentes espaços de aprendizagem. Nessa pers-
pectiva, a educação estará onde as crianças estiverem, nas brincadeiras,
na maré, na igreja, no convívio social, familiar e comunitário. Posto isso,

or
um universo de saberes e práticas educativas se revelam pelas vivências

od V
cotidianas das crianças quilombolas marajoaras, apresento o quadro abaixo,

aut
que didaticamente sistematiza os saberes, a forma como cada saber é com-
partilhado a prática educativa que o envolve e a educação com a qual eles
se relacionam.

R
Quadro 1 – Saberes e práticas educativas das crianças quilombolas marajoaras

o
aC
Educação
Como o
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Processos e práticas que o


O Saber saber é
educativas saber está
compartilhado
associado
visã
Oralidade Brincar
Educação
Observação Brincadeiras
pela
SABERES LÚDICOS Orientação Teatro (repetição das
ludicidade e
Prática falas e representação
pela arte
itor

Repetição dos personagens)


a re

Oralidade
Ajuda aos pais ou
Orientação
SABERES DO responsáveis a realizar as Educação
Escuta
TRABALHO atividades do trabalho pela atenção
Atenção
e atividades domésticas
Prática
par

Oralidade Educação
O manuseio das ervas
Orientação para o
Ed

SABERES DO e matos
Diálogo bem-estar
COTIDIANO Horários da maré
Atenção e cultura da
Sinais da natureza
Convivência conversa
ão

Divisão de tarefas.
Respeito e
Oralidade reconhecimento da Educação
s

SABERES DA Convivência experiência dos mais pela


ver

EXPERIÊNCIA Exemplo velhos da comunidade. valorização e


Orientação O cuidado com os outros pelo respeito
(a criança mais velha
cuida da menor)
continua...
276

continuação
Educação
Como o
Processos e práticas que o
O Saber saber é
educativas saber está
compartilhado
associado
Conhecimento dos
territórios quilombolas,
localização dos

or
componentes da
comunidade: maré, igreja,

od V
escola, sede, bar, maloca

aut
e campo
Oralidade O significado da cerca de
SABERES DA Convivência arame farpado que limita a Educação
TERRITORIALIDADE

R
Observação
Orientação
comunidade.
A distância e diferenças
entre a capital e os
territorial

o
municípios próximos,
aC
Soure e Salvaterra; a

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expansão territorial da Vila
de Mangueira
Noção de Tempo e
Espaço
visã

Oralidade Rezas; ladainhas;


SABERES DA Observação informações sobre Educação
RELIGIOSIDADE Orientação práticas e costumes religiosa
itor

Escuta religiosos
a re

Fonte: Análises feitas nesta pesquisa pela autora.

Conceber a educação na perspectiva dos saberes é legitimar os conheci-


mentos que se constroem na práxis cotidiana. Para Brandão (2002), a educação
par

é cultura, pois considera como prática educativa tudo o que o homem constrói,
como seus saberes, significados e experiências de vida.
Ed

Nesse panorama, os saberes protagonizados pelas crianças nas suas


vivências cotidianas compreendem práticas educativas que evidenciam uma
educação que não se restringe aos muros da escola. Assim, a “educação apa-
ão

rece sempre que surgem formas sociais de condução e controle da aventura


de ensinar – e – aprender” (BRANDÃO, 1995, p. 26).
Com base nesses ensinamentos vivenciados nas práxis cotidianas, iden-
s

tifico cinco saberes, quais sejam: lúdicos, do trabalho, do cotidiano, da hie-


ver

rarquia, da territorialidade e da religiosidade, os quais se relacionam com


diferentes tipos de educação, como Educação pela ludicidade e pela arte,
Educação pela atenção, Educação para o bem-estar e cultura da conversa,
Educação pela valorização e pelo respeito, Educação territorial e Educação
religiosa. Destarte, reconhecer esses saberes provenientes das vivências das
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 277

crianças quilombolas marajoaras é considerar um processo de ensino-apren-


dizagem que educa para além dos conteúdos cientificistas: educa para a vida.
Para Tim Ingold (2010), a contribuição que cada geração dá à seguinte
não é um suprimento acumulado de representações, mas uma educação da
atenção. É preciso estar atento para aprender, pois o modo de aprender está
atrelado à observação, ao olhar o outro fazer para assim aprender. Eviden-
ciei que as crianças da Vila de Mangueira observam atentamente os saberes

or
transmitidos através da oralidade pelos mais velhos. Desse modo, os saberes

od V
populares vão se perpetuando no seu modo de agir e de pensar o mundo.

aut
Dessa forma, os saberes tornam-se intrínsecos ao contexto vivenciado
pelas crianças. Diante disso, o saber é construído na práxis cotidiana, no ver

R
e no fazer, e assim, vão se integrando ao cotidiano e se relacionando com
a educação, com a realidade e com as particularidades de uma comunidade

o
quilombola. Para Martinic (1994), a sabedoria popular refere-se ao acervo de
conhecimento produzido e acumulado historicamente pelos grupos sociais e
aC
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permitem aos sujeitos relacionar suas experiências e objetivações que encon-


tram sentido nas práticas do grupo em que estão inseridos.
Desta feita, a educação pode ser encontrada nos diversos saberes popula-
visã
res. O processo de ensino-aprendizagem perpassa diversos aspectos; entre os
quais, destaco a “educação da atenção”, a qual é encontrada no cotidiano das
crianças da Vila de Mangueira, conforme fica latente nas falas dos intérpretes.
Nas vozes das crianças, verifica-se um processo de ensino-aprendizagem que
itor

depende da atenção ao que acontece no entorno, e assim se aprende a cozinhar,


a re

a jogar bola e a pescar, como destacam os intérpretes.


A aprendizagem é baseada na atenção, na observação, no olhar o fazer do
outro e posteriormente fazer, e esse processo se aplica tanto para se aprender as
brincadeiras quanto para atividades domésticas e atividades laborais comuns
par

no contexto das comunidades quilombolas marajoaras. Segundo o antropólogo


Tim Ingold (2010), tal processo resulta numa “educação da atenção”, isto é, no
Ed

momento de “aprender a sintonizar o momento de sua atenção ao movimento


da ação do outro que nos cerca”. A educação proposta pela experiência con-
sidera o local de pertencimento e a vivência do sujeito, bem como a maneira
ão

como aprende e ensina, tendo na observação e na atenção os instrumentos de


aprendizagem. Dessa forma, é necessária uma observação minuciosa e atenta
s

para, assim, aprender o que o outro ensinar em seu fazer prático.


ver

Portanto, a maneira e/ou modo como as crianças quilombolas aprendem


suas atividades cotidianas se configuram como um espaço educativo, onde o
processo de ensino-aprendizagem se constitui em estar atento para aprender,
e assim saber e fazer. Esses modos de ser, de aprender e de fazer foram reve-
lados e protagonizados pelos intérpretes desta pesquisa.
278

Considerações finais

Ao observar que os saberes são construídos nas práxis cotidianas com


processos culturais nos quais os sujeitos estão envolvidos, fica patente que
eles dialogam e aprendem através da interação. Nesse sentido, Freire (2011)
apresenta a dialogicidade, concedendo aos participantes do processo educativo
a liberdade de expressão e o diálogo, de modo que se reflete em conjunto e

or
em mesmo grau de importância sobre aquilo que se ensina e aquilo que se

od V
aprende. Mediante essa conjuntura, a educação que se instala fora do ambiente

aut
escolar reflete uma educação da experiência do sujeito, no seu local de vivên-
cia e pertencimento.
Diante do exposto, entendemos claramente que problematizar os saberes

R
que se constroem nas práxis cotidianas e/ ou nas vivências das crianças qui-
lombolas do Marajó perpassa por uma concepção de que os saberes culturais

o
são construídos e ressignificados pelos próprios sujeitos no seu cotidiano.
aC

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Desse modo, elas podem ser vistas como sujeitos que ressignificam sua vivên-
cia e trazem e/ou constroem saberes, haja vista que estão envolvidas num
território onde educação e cultura se entrelaçam, situação que não pode ser
desconsiderada pelo contexto educacional.
visã
Assim, este estudo visa a contribuir para que as crianças sejam sujeitos
ativos e autônomos de sua história, tendo em vista que, quando se propõe
pesquisar a partir da perspectiva da criança, permite-se que ela se desvele
itor

e se torne visível. Além de colaborar com o conhecimento disponível em


a re

torno de uma história que foi silenciada pela história oficial, que é a história
do povo negro que aportou na Amazônia Marajoara, e assim conferir voz aos
que ficaram à margem, dizer “o que não foi dito”, mas ainda assim constitui
socialmente, historicamente e culturalmente “o ser amazônico”.
par

Com isso, consideramos que este estudo também está em consonância


com a Lei n° 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de história e cultura
Ed

africana e afrodescendente, já que busca desvelar os saberes do brincar de


crianças quilombolas marajoaras, considerando que o povo negro contribuiu
e contribui significativamente para a história da Amazônia Marajoara. Assim,
ão

a criança envolta na etnicidade expressa nos quilombos demonstra, através


de seu brincar e de suas brincadeiras, a cultura quilombola.
s
ver
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 279

REFERÊNCIAS
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Letras, 2002.

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Paulo: Cortez, 2008.
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GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 2008.


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fica com crianças: teorias, métodos e ética. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1956.
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http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/677/4943.
Acesso em: 16 jan. 2018.
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SARMENTO, M. J. As culturas da Infância: nas encruzilhadas da 2. Moder-


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perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Rio de Janeiro:
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CELOS, V. M. R. de; SARMENTO, M. J. Infância (in)visível. Araraquara:
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ZUMTHOR, P. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.

aut
R
o
aC

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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
CONVERSAS DO PENSAMENTO
DECOLONIAL COM O CURRÍCULO
CULTURAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA

or
od V
Flávio Nunes dos Santos Junior

aut
Marcos Garcia Neira

R
Introdução

o
aC
A sociedade contemporânea, estruturalmente marcada por uma profunda
desigualdade, pelos fluxos da globalização e pela produção multicultural, vem
impondo desafios de grande complexidade ao fazer pedagógico. As deman-
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das, em certa medida, se refletem no currículo, de tal modo que incitam ao


visã
questionamento da naturalização da ordem estabelecida a contragosto de uma
parcela significativa de sujeitos, grupos e territórios.
Infelizmente parece não ser muito bem desejada por alguns setores uma
itor

proposta que atente a determinadas questões sociais. A educação escolarizada,


a re

uma maquinaria de governo da infância, conforme colocam Varela e Alvarez-


Uria (1992), resulta dos anseios da Modernidade. Permeada de universalismos,
se sustenta nos princípios de progresso constante por meio da razão e da ciência,
de desenvolvimento do sujeito autônomo e livre (SILVA, 2015).
As noções de educação, pedagogia e currículo adotadas atualmente estão
par

alinhadas ao projeto moderno (SILVA, 2015). Seus objetivos consistem em


Ed

transmitir o conhecimento valorizado socialmente por certos grupos, formar


um sujeito supostamente racional e moldar o cidadão e cidadã da moderna
democracia representativa. É constituindo um sujeito racional, autônomo e
ão

unitário que se pretende alcançar o ideal moderno de uma sociedade racional,


progressista e democrática.
Foi por meio do currículo que a escola se tornou fio condutor das artima-
s

nhas de domínio de poucos grupos sobre os demais. No sentido de apresentar


ver

a cultura tida como ideal e necessária para a vida, o modo de pensamento, os


conhecimentos, os valores e os comportamentos postos como mais sofisticados
e interessantes, o sistema educacional se mostrou uma ferramenta eficaz de
colonização de diferentes populações e sujeitos.
Enquanto dispositivo dessa estrutura colonial moderna, a Educação Física
foi apoderada e utilizada como instrumento de supressão de corpos, saberes
e formas de existir distanciados da ordem desejada. Com o passar do tempo,
282

sua existência no espaço escolar buscou justificativas variadas: com a ginás-


tica, perseguiu finalidades higienistas pautadas na anátomo-fisiologia; com
o esporte pretendeu formar sujeitos dinâmicos, de espírito competitivo, res-
peitadores de regras e princípios morais universais; mediante tarefas motoras
fragmentadas e descontextualizadas, objetivou constituir um cidadão desen-
volvido nos âmbitos psicomotor, cognitivo e socioafetivo; para promover

or
um estilo de vida ativo, baseou-se no ensino de conceitos e procedimentos
que relacionam a atividade física a benefícios para saúde corporal e; com a

od V
intenção de fomentar o pensamento crítico e consciente da realidade, propôs

aut
intervenções calcadas nas análises da ideologia capitalista.
Essas propostas para o ensino de Educação Física têm em comum a

R
homogeneização dos corpos discentes e docentes, pois, ao se prenderem à
valorização dos conhecimentos produzidos pela ciência enquanto subjugam

o
outros, expõem o desejo de tornar os educandos produtores de cultura, habi-
aC
lidosos, saudáveis, atléticos, higiênicos, críticos e emancipados, a tal ponto

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de colocar aquele ou aquela que não alcança essa façanha na condição de
excluído, de Outro.
Por entender que essa conjuntura não dialoga com as necessidades
visã
reais da maioria da população, o presente texto se coloca como uma forma
de resistência aos discursos que promovem desigualdades, ao privilégio de
determinadas vidas em detrimento de outras. Nele assume-se a tentativa de
itor

fissurar, subverter, as estruturas que alimentam a hierarquização de conheci-


a re

mentos e sujeitos. Configura-se como possibilidade de combate às narrativas


que alimentam estereótipos, preconceitos, marginalização e violência contra
diferentes modos de pensar, estar, viver e conviver.
Aqui se busca estreitar a relação entre o pensamento decolonial e o
par

currículo cultural da Educação Física, objeto de estudo e experimentação


no Grupo de Pesquisas em Educação Física escolar (GPEF)55 da Faculdade
Ed

de Educação da Universidade de São Paulo. Uma aproximação necessária


e possível, uma vez que ambos se incomodam e buscam bulir e subverter a
estrutura patriarcal, colonial e capitalista que assombra incontáveis vidas no
ão

mundo contemporâneo.
Longe de esgotar o debate, até mesmo porque é um estreitamento recente
s

e complexo, merecedor de novos encontros, reconhecemos que a empreitada


é repleta de riscos. Tampouco queremos incorrer numa visão única, total e
ver

acabada, é apenas uma discussão dentre tantas possíveis, passível de ques-


tionamentos, cercada de dúvidas e incertezas.

55 A produção do GPEF está disponível em: www.gpef.fe.usp.br.


PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 283

Incursões teóricas

O pensamento decolonial é uma construção do grupo Modernidade/Colo-


nialidade. Um coletivo composto por intelectuais latinoamericanos que busca
radicalizar a descolonização do pensamento, transcender a epistemologia, a
geografia e o cânone ocidental. O foco do coletivo é intervir na discursivi-
dade das ciências modernas para configurar outro espaço para a produção do

or
conhecimento, um paradigma outro que abre a possibilidade de falar sobre

od V
mundos e conhecimentos de modo diverso (ESCOBAR, 2003).

aut
Seus integrantes lançam e compartilham conceitos causadores de grandes
renovações nas ciências sociais latinoamericanas do século XXI. Vendo com

R
Ballestrin (2013), Modernidade/Colonialidade, colonialidade, sistema mundo-
moderno/colonial, colonialidade do poder, colonialidade do ser, colonialidade

o
do saber, decolonialidade, giro decolonial, são alguns conceitos fundamentais.
Quijano (2005) faz uma clara denúncia sobre o mito de fundação da
aC
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Modernidade, ao afirmar que sua invenção não foi uma autoemancipação


interna da própria Europa, saindo de uma condição imatura em direção a um
estado mais evoluído por meio do esforço natural da razão. Na verdade, sua
visã
construção e afirmação se deram mediante violência colonial. Assim, não
há Modernidade sem colonialidade, a segunda é constitutiva da primeira, a
colonialidade é a cara oculta da Modernidade.
Quijano (1992) acena que a colonialidade é o modo mais geral de domi-
itor

nação do mundo, já que o colonialismo, enquanto ordem política explícita,


a re

foi destruído. Pensando com Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) e Maldona-


do-Torres (2007), é possível afirmar que a colonialidade está intrinsicamente
envolvida com os processos de colonização moderna das Américas e a cons-
tituição da economia-mundo capitalista como parte de um mesmo processo
par

histórico iniciado no século XVI.


Todavia, em vez de restringir-se a uma relação formal de poder entre
Ed

povos e nações, a colonialidade diz respeito ao modo como trabalho, conheci-


mento, autoridade e relações intersubjetivas se articulam por meio do capital
mundial e da ideia de raça. Nesse cenário, percebemos uma transição do
ão

colonialismo moderno para a colonialidade global, processo que aprimora as


formas de dominação implementadas pela Modernidade, projetanto a estru-
s

tura das relações centro-periferia a uma escala mundial (CASTRO-GÓMEZ;


ver

GROSFOGUEL, 2007; MALDONADO-TORRES, 2007).


O conceito de colonialidade é operado dentro da tríade: poder, saber e ser.
A colonialidade do poder é um conceito inaugurado por Anibal Quijano, na
tentativa de abordar as múltiplas hierarquias de poder produzidas pelos diferen-
tes e contraditórios processos históricos-estruturais do capitalismo. No centro,
284

está o padrão de poder colonial que constitui a complexidade dos processos de


acumulação capitalista articulados numa hierarquia étnico-racial global e suas
classificações derivativas de superior/inferior, desenvolvido/subdesenvolvido,
civilizado/bárbaro (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).
A colonialidade do saber relaciona-se com a produção do conhecimento
na ordem da dominação, quando se impõe apenas uma forma de organi-
zar o pensamento, impossibilitando enxergar as coisas do mundo a partir de

or
diferentes lugares e epistemologias (LANDER, 2005). Olhando com Ramon

od V
Grosfoguel (2016), a estrutura de poder inspirada na colonialidade contemplou

aut
um padrão cognitivo, uma perspectiva de conhecimento que considera o não
europeu como atrasado e ligado ao passado, tido como inferior, dentro de um

R
estado primitivo, algo a ser superado. Logo, a Modernidade e a racionalidade
foram imaginadas como experiências e produtos exclusivos do europeu, o

o
que ressoa até os dias atuais, uma vez que a produção do conhecimento está
amplamente caracterizada pela lógica classista, racista, sexista, patriarcal.
aC

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A colonialidade do ser tem uma estreita relação com as experiências
decorrentes dos processos de colonização. Maldonado-Torres (2007) revela
que a falta de racionalidade foi diretamente vinculada à ideia de ausência de
visã
“ser” em sujeitos racializados, situação que justificou todo tipo de violência e
extermínio. A negação das faculdades cognitivas nos negros e indígenas, além
do privilégio do conhecimento para os brancos, nutriram a recusa ontológica
– “Outros não pensam, logo não são”. Para o pensamento eurocêntrico da
itor

Modernidade – o Ego cogito – não pensar se converteu em não estar ou não ser.
a re

Afetado pelo debate das colonialidades do saber, do ser e do poder, Patrí-


cio Guerrero Arias (2010)56 empregou o conceito corazonar para contestar
o uso da razão pelas estruturas da Modernidade/Colonialidade. Inspirado
nos ensinamentos do povo Kitu Kara, explica que nos foram sequestrados
par

o coração e os afetos para tornar mais fácil a dominação das subjetividades,


do nosso imaginário, do nosso desejo, do nosso corpo, territórios onde se
Ed

constrói a poética da liberdade e da existência. O autor equatoriano denuncia


que sensibilidade e afetividade não escaparam da colonização.
Para legitimar o domínio da razão, silenciou-se a voz do coração, ou seja,
ão

não poderia haver lugar para a afetividade no conhecimento racionalizado. Em


outras palavras, sentir representava uma ameaça ao patriarcado, à vida masculina
s

dominadora. Nessa lógica, a afetividade e o sentimento deveriam ser excluídos,


ver

exterminados da vida intelectual e acadêmica. Essas dimensões cabiam apenas


àqueles que se encontravam nas esferas ditas não racionais, como as mulheres,

56 Patrício Guerrero Arias não é membro do grupo Modernidade/Colonialidade, mas acompanha e se apropria
do debate decolonial. Denuncia o suposto esquecimento da colonialidade da afetividade por parte da ciência,
e até mesmo do coletivo Modernidade/Colonialidade.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 285

os loucos, os poetas, os artistas ou as crianças. Portanto, o corazonar é uma


resposta insurgente às dicotomias excludentes do Ocidente, que tentam separar
o sentir do pensar, o coração da razão. Corazonar é uma reintegração, uma
busca por recolocar a dimensão da afetividade numa condição de igualdade em
relação à razão. Não existe centro, busca-se descentrar, fraturar a hegemonia
da razão. É dar afetividade à razão. É uma questão de vida.
No meio das tensões, o pensamento decolonial vai se apropriar do

or
debate teórico a respeito do sistema-mundo57 promovido por Immanuel Wal-

od V
lerstein. Engajado nas discussões da colonialidade, Walter Mignolo acres-

aut
centou o olhar latinoamericano, nomeando-o de sistema-mundo moderno/
colonial (CASTRO-GÓMEZ, 2005). Atentos a isso, Castro-Gómez e Gros-

R
foguel (2007) defendem o alargamento do conceito, preferindo sistema-
-mundo europeu/euroestadunidense capitalista/patriarcal moderno/colonial,

o
uma vez que o pensamento da Modernidade estava carregado da lógica
capitalista, patriarcal, colonial, eurocêntrica. Isto é, foram organizadas e
aC
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operadas diversas formas de exclusão, indo para além do âmbito econômico.


A violência colonial se espraiou para as dimensões espirituais, epistêmicas,
étnico-raciais, de gênero e sexualidade.
visã
Mignolo (2007, 2018) também denomina o movimento decolonial de giro
decolonial, uma forma de ilustrar processos de resistência à violência colonial.
Pensando que colonialidade representa as consequências (não)intencionais das
itor

narrativas da Modernidade, seu lado mais sombrio e oculto, a decolonialidade


a re

se propõe a fraturar essa estrutura. A grande tarefa é desvelar os processos


escondidos na lógica da colonialidade, que são sentidos nas trajetórias de
histórias coloniais, inscritas nos corpos e na sensibilidade de determinados
grupos sociais. Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) assumem que a decolonia-
lidade problematiza a dinâmica do sistema-mundo europeu/euroestadunidense
par

capitalista/patriarcal moderno/colonial, ou seja, tensiona marcadores sociais


como raça, etnia, sexualidade e gênero, além dos epistêmicos e econômicos.
Ed

Nesse contexto, ergue-se a bandeira do pluriversalismo como forma de


radicalizar a defesa pela coexistência de diferentes formas de conhecer, ser,
ão

memórias, economias, subjetividades. Uma tentativa de rechaçar o universa-


lismo, o extermínio e a violência decorrente da imposição do modo ociden-
tal como única forma de pensar e existir (MIGNOLO, 2007). Conversando
s

com Grosfoguel (2007), o lema ‘andar perguntando’ do Movimento Zapatista


ver

retrata bem a defesa por um mundo pluriversal. Ao apreciar e valorizar o

57 Ramon Grosfoguel (2019) coloca que a ideia de sistema-mundo simboliza um rompimento com a ideia
moderna que reduz a sociedade às fronteiras geográficas e jurídico-políticas de Estado-nação. Nesse sen-
tido, a teoria do sistema-mundo deseja mostrar que há processos e estruturas sociais cuja temporalidade
e espacialidade vão além do Estado-nação.
286

perguntar e o escutar, busca-se o escape de programas predefinidos. A proposta


é resistir em grupo, uma prática de luta que seja construída com e não para
os coletivos que sofrem os efeitos da colonialidade.
O giro decolonial busca intervir nas ciências sociais e em todas as ins-
tituições modernas, reivindicando a incorporação do conhecimento subal-
ternizado aos processos de produção do próprio saber, uma radicalização da
descolonização. Dialogando com Castro-Gomez e Grosfoguel (2007), esse

or
horizonte traz consigo a valorização dos conhecimentos produzidos pelos

od V
grupos e sujeitos alvos da colonialidade. É uma produção do conhecimento

aut
interstício, híbrido, que reconfigura as hierarquias epistêmicas a partir das
subjetividades subalternizadas, são os conhecimentos práticos de trabalhado-
res, mulheres, sujeitos racializados, coloniais, LGBTQI+ e pertencentes aos
movimentos antissistêmicos.
R
O propósito de desvelar a herança da Modernidade, trazer à tona as

o
narrativas que oprimem diferentes sujeitos, faz do pensamento decolonial
aC
um exercício político, uma práxis. Pensando com Castro-Gomez e Grosfo-

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guel (2007), isso se faz necessário porque todo conhecimento possível se
encontra (in)corporado, encarnado em sujeitos atravessados por condições
sociais, vinculados a lutas concretas, encrustados em determinados pontos de
visã
observação. Logo, desconstrui-lo, problematizá-lo, torna-se parte da luta, é
tarefa fundamental desvelar os interesses alocados na circulação e produção
de determinados conhecimentos.
itor

A decolonialidade do conhecimento passa pela valorização e reconhe-


a re

cimento de outras epistemologias e modos de existir. Vale frisar que essa


ação não se assenta no equívoco de trocar um conhecimento pelo outro, de
retirar o dominante e inserir o subalternizado. Tamanha dinâmica política
busca consolidar aquilo que Mignolo (2003) nomeia de ‘paradigma outro’
(um pensamento outro, uma língua outra, uma lógica outra). Nada mais é do
par

que um pensamento crítico, analítico e utópico que contribui para constru-


ção e consolidação de espaços de esperança em um mundo que preza pelo
Ed

sistema-mundo europeu/euroestadunidense capitalista/patriarcal moderno/


colonial. Dessa forma, ao se ancorar nas histórias e experiências marcadas
pela colonialidade, não se refere a um outro paradigma, como se fosse uma
ão

soma daquilo que já existe numa condição hegemônica. Trata-se de abrir o


pensamento, de subverter a lógica da Modernidade com vistas a fazer emergir
s

formas de vidas-outras, conhecimentos-outros.


ver

Portanto, para Mignolo (2003, 2018), a descolonização do conhecimento


representa um vir a ser, tornar-se aquilo que a colonialidade impediu. Reside aí
a tarefa fundamental da decolonialidade: deixar de ser usado pelo imaginário
da Modernidade, recusando que a colonialidade opere sobre o corpo. Nas
palavras do autor, é preciso um reaprender a ser, um reexistir.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 287

Conversas com o currículo cultural de Educação Física

O pensamento decolonial oferece elementos para elaboar encaminha-


mentos pedagógicos a favor dos sujeitos e práticas sociais que sofrem os
efeitos da colonialidade. Olhando a Educação Física, há que se considerar
os corpos não saudáveis, não habilidosos, não críticos, além das práticas
corporais não euroestadunidenses, não masculinas, não cristãs, não brancas,

or
não heteronormativas.

od V
Imergir o currículo cultural (NEIRA; NUNES, 2006, 2009) nas discus-

aut
sões políticas decoloniais pode fortalecer as contribuições para pensar numa
organização das situações didáticas58 que não recaia em ações que imponham

R
um único olhar sobre a ocorrência social das brincadeiras, danças, esportes,
lutas e ginásticas, bem como dos sujeitos que se assumem parte delas.

o
O chamado currículo cultural da Educação Física experimenta uma
constante produção desde os anos 2000. Reflete a perspectiva do conflito,
aC
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do embaraço, buliçosa, mexe com as naturalizações, procura trazer para a


cena escolar os conhecimentos produzidos pelos grupos subjugados, poten-
cializando a voz e vez daqueles que foram e são silenciados pelos discursos
visã
do dominador, do legislador, do opressor, da colonialidade (NEIRA, 2020).
Ao buscar apoio nas chamadas teorias pós-críticas,59 o currículo cultural
concebe o objeto de estudo da Educação Física, a cultura corporal, como um
itor

campo de luta pela imposição de significados que acompanham as práticas


corporais. Sendo assim, as danças, ginásticas, esportes, lutas e brincadeiras são
a re

vistos como textos da cultura passíveis de inúmeras leituras, interpretações e


produções, atravessados por relações de poder que atuam para afirmar o que
são ou deixam de ser (NEIRA, 2019).
As aulas de Educação Física culturalmente orientadas não se limitam à
par

oportunidade de crianças, jovens, adultos e idosos se movimentarem, mas se


tornam um espaço de experimentar e problematizar a ocorrência social das
Ed

práticas corporais na sociedade mais ampla, bem como o que se afirma sobre
elas e seus representantes (NEIRA, 2019). A perspectiva cultural considera
ão

fundamental o direito de todos e todas terem uma vida digna e sensibiliza-se


com significados do tipo, equidade, direitos, justiça social, cidadania e espaço
público (NEIRA, 2016).
s

Diante de tantas conexões possíveis, percebemos que o debate acerca


ver

da colonialidade do poder possibilita pensar uma ação pedagógica atenta aos

58 De acordo com Neira (2011; 2019), as situações didáticas do currículo cultural são: mapeamento, vivência,
aprofundamento, ampliação, leitura da prática corporal, ressignificação, avaliação e registro.
59 Figuram entre as teorias pós-críticas os estudos culturais, o multiculturalismo crítico o pós-colonialismo, o
pós-estruturalismo, o pós-modernismo, a teoria queer, os estudos feministas, entre outras.
288

discursos estruturados numa racionalidade dita universal, que atuam para


consolidar hierarquizações entre as práticas corporais, conforme as pessoas,
grupos e territórios de origem.
Por sua vez, as discussões que tratam da colonialidade do saber permitem
vigiar os conhecimentos produzidos e disseminados acerca de brincadeiras, dan-
ças, ginásticas, esportes e lutas com pretensões de fixar e essencializar o modo
como ocorrem socialmente, impedindo que outros modos de conhecê-los e orga-

or
nizá-los possam se fazer presentes em meio às aulas e até mesmo na sociedade.

od V
No que diz respeito à colonialidade do ser, é possível pensarmos numa

aut
prática pedagógica atenciosa às narrativas que assolam as existências e sub-
jetividades presentes na produção social das práticas corporais, de maneira

R
a perceber como certos representantes são execrados pela condição que
as performam.

o
Portanto, numa aula de Educação Física agenciada por princípios éti-
co-políticos60 a favor das diferenças e encaminhamentos pedagógicos que
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


se preocupam em observar, identificar e subverter a colonialidade do poder,
do saber e do ser, tende-se a oportunizar experiências mais democráticas.
Tamanha organização contribui para fissurar as estruturas do sistema-mundo
visã
europeu/euroestadunidense capitalista/patriarcal moderno/colonial, sobretudo,
porque insere no currículo acessado e produzido pelos estudantes práticas
corporais elaboradas e desenvolvidas não somente pelo homem europeu,
cristão, branco, burguês, mas também por grupos e sujeitos que fogem desse
itor

padrão, como indígenas, negros, LGBTQI+, mulheres, africanas.


a re

Nesse cenário, torna-se possível uma Educação Física pluriversal, qual


seja, uma prática pedagógica sensível ao enfrentamento de tensões inerentes à
colonialidade conforme as necessidades da comunidade escolar. Isso significa
desprendimento de modelos fechados, pré-formatados, e aberta a construir
par

com estudantes toda a tematização61, ou seja, a definição da prática corporal


e as situações didáticas entram em consonância com as demandas surgidas
Ed

no momento. Olhando o lema zapatista ‘andar perguntando’ é levantar pro-


blematizações62, para aquilo que se apresenta em cada contexto, de modo a
ão

60 Os estudos realizados por Bonetto (2016), Neira (2019) e Santos Júnior (2020) demonstram que os educadores
que assumem colocar em prática co currículo cultural, são agenciados por princípios ético-políticos na definição
da prática corporal a ser tematizada e das situa]ções didáticas, são eles: justiça curricular, reconhecimento do
s

patrimônio cultural corporal da comunidade, ancoragem social dos conheicmentos, descolonização do currículo,
ver

articulação com o projeto poítico pedagógico e favorecimento da enunciação dos saberes discentes.
61 Tematizar implica a realização de diversas atividades que buscam oferecer aos estudantes uma compre-
ensão ampla e com certa profundidade acerca de elementos que dão às práticas corporais determinadas
caraterísticas (SANTOS, 2016; NEIRA, 2019).
62 Para Santos (2016), problematizar, no currículo cultural de Educação Física, favorece a desconstrução e
potencializa novos acontecimentos, atua na desnaturalização daquilo que aparentemente está consolidado,
favorece a negociação, é um elemento pedagógico que alimenta e dá corpo à tematização.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 289

desmascarar a lógica capitalista, patriarcal e colonial, é uma abertura para


constituir o processo educacional com o outro e não para o outro.
Um currículo desejante por emperrar as engrenagens da colonialidade,
ou melhor, do sistema-mundo europeu/euroestadunidense capitalista/patriar-
cal moderno/colonial, precisa se afetar por práticas corporais de inúmeros
territórios e grupos, necessita se conectar com infinitas formas de entendê-las
e vivenciá-las, que não somente aquelas fabricadas pelas lentes masculina,

or
cristã, heteronormativa, eurocêntrica, burguesa, científica. Queremos dizer

od V
o seguinte, para fugir da colonialidade do poder, do saber e do ser, o pro-

aut
fessor ou a professora quando seleciona como tema uma prática corporal
indígena, por exemplo, deve proporcionar aos estudantes momentos que

R
lhes permitam vivenciar e compreender o modo como as próprias comuni-
dades indígenas a significam, escapando da armadilha de utilizá-la como

o
instrumento para desenvolver demandas do mundo capitalista, colonial,
patriarcal, como a melhora do condicionamento físico ou aprimoramento
aC
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dos domínios do comportamento.


Isso significa que maculelê, maracatu, hip-hop, capoeira, funk, huka-
-huka, marajoara e demais práticas que fogem ao padrão euroestadunidense,
visã
têm igual importância e relevância que futebol, basquetebol, handebol e
voleibol, logo, podem compor o currículo. Vale frisar que não se quer retirar
um conhecimento legitimado para inserir um subalternizado, mas sim, fazer
defesa pela coexistência, por um agir didático que se permita tocar de igual
itor

modo pelas culturas indígenas, africanas, orientais, ocidentais, afrobrasilei-


a re

ras etc. Com isso, as hierarquias que colocam determinados sujeitos numa
condição de privilégio enquanto outros experimentam a não existência são
derretidas, fissuradas.
O corazonar defendido por Guerrero Arias (2010) nos ajuda a compreen-
par

der e borrar a racionalidade que acompanha a educação. Por entendermos


com Silva (2015) que o conhecimento é produzido no currículo em meio a
Ed

lutas, acreditamos que o corazonar alimenta um engajamento intenso a favor


das diferenças. Ao reintegrar as emoções e os afetos à razão que nos move,
colocando-os no mesmo grau de importância, a constituição do conhecimento
ão

nas aulas de Educação Física que se opõem ao sistema-mundo europeu/euroes-


tadunidense, capitalista/patriarcal e moderno/colonial se interconectam com
s

a produção de um ‘paradigma outro’ de que trata Mignolo (2003).


ver

Ao se carregar de emoções, sentimentos e afetos em meio às proble-


matizações de saberes das práticas corporais que alimentam desigualdades,
um conhecimento-outro atravesa as aulas de Educação Física tomadas pelo
currículo cultural. Nessa empreitada, vale frisar que estando a favor dos
grupos e sujeitos subjugados historicamente, alvos da colonialidade, não há
290

possibilidade do docente separar a priori determinados conhecimentos sem


conexão alguma com o contexto, simplesmente por considerá-los importantes.
Levando em conta o ‘andar perguntando’ do Movimento Zapatista, o docente
precisa fazer uso da escuta, deixar-se sentir, tocar, por aquilo que os educandos
expressam por meio de suas gestualidades e vozes. Sendo assim, as atividades
lançadas pelo educador precisam ter como referência aquilo que é dito pelos
alunos e alunas, as dúvidas apresentadas sobre o tema, além de enfrentar,

or
problematizar, as falas que permeiam a ocorrência social da prática corporal

od V
em tela com vistas a rebaixar, discriminar subjetividades.

aut
À medida que oferece condições aos estudantes para terem contato com
aquilo que parece estranho, fora da normalidade, o contraditório, a aula parece

R
caminhar afastada da racionalidade moderna. Não só isso, quando a atenção
está redobrada para perceber a quem interessam os discursos preconceituosos,

o
discriminatórios e violentos cristalizados e naturalizados nas falas discentes, a
aula passa a se constituir como um encontro carregado de afetos, sentimentos,
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


emoções a favor da vida, da existência que escapa da lógica capitalista,
patriarcal e colonial, logo, um conhecimento-outro tende a emergir.
Pensando com Mignolo (2018), uma aula de Educação Física que se
visã
deixa atravessar por uma postura política de valorizar, reconhecer e possibilitar
condições para a afirmação de diferentes afetos, discursos, epistemologias,
atua interconectada com a consolidação e constituição da decolonialidade do
itor

conhecimento, um conhecimento-outro. Assim, oportuniza-se a invenção e


a re

o desenvolvimento de uma educação disposta a potencializar vidas, viveres,


sensível a um vir a ser que as amarras da colonialidade possivelmente impe-
diriam, ou seja, é um reexistir, é uma poética da existência.

Considerações momentâneas
par

Reafirmando o que foi mencionado inicialmente, as discussões tecidas


Ed

são incipientes, estão marcadas por incertezas, dúvidas, riscos. Não queremos
finalizar as conversas em torno das possíveis aproximações entre o currículo
ão

cultural da Educação Física e o pensamento decolonial. Consta aqui uma


leitura dentre tantas possíveis, logo, acreditamos ser razoável a promoção
de uma constante e mais profunda interlocução, sobretudo porque há notória
s

complexidade em ambos.
ver

Pensar o fazer pedagógico a partir das lentes do pensamento decolonial


certamente possibilita um fortalecimento de propostas que problematizam a
ordem estabelecida. Alianças para enfrentar, desnaturalizar e deslegitimar a
estrutura patriarcal, capitalista e colonial são urgentes, sobretudo quando se
trata do currículo da Educação Física. Uma vez que a perseguição pelo corpo
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 291

saudável, desenvolvido e crítico é uma constante nas narrativas que circu-


lam no imaginário social do componente curricular, o que tende a alimentar
a produção da barbárie, do ódio, da violência contra aqueles e aquelas que
fogem à normalidade.
A aproximação com o pensamento decolonial pode ser um respiro a
favor das vidas que pulsam no chão da escola, nas periferias do mundo, ao
enfrentar as hierarquias herdadas da Modernidade, que servem apenas para

or
subjugar, anestesiar e marginalizar pessoas, coletivos e territórios. Além de

od V
vislumbrar uma Educação Física atrelada às práticas corporais de diferentes

aut
grupos com vistas a compreendê-las e vivenciá-las de infinitas formas, sem
deixar de questionar os conhecimentos que as compõem e como ocorrem
socialmente. Uma postura que faz da aula um potente encontro de afetos,

R
sentimentos, saberes, corpos, fazendo da vida uma constante invenção criativa.
Contudo, impulsionamos o currículo cultural a um movimento que ele

o
próprio se propõe a fazer, a descolonização/decolonização. Pois, embora se
aC
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situe ao Sul geográfico, seus referenciais63 partem majoritariamente do Oci-


dente e, em específico, das nações que desfrutam de maior poderio econômico.
Olhando com Grosfoguel (2008), a perspectiva cultural está embebida de
teorias eurocêntricas que produzem fortes contestações ao próprio eurocen-
visã
trismo. Cabe destacar que a descolonização do conhecimento exige atenção à
perspectiva/cosmologia/visão de pensadores críticos do Sul global que pensam
com e a partir de corpos e lugares étnico-raciais/sexuais/de gênero subalterni-
itor

zados. Ao adotar um pensamento latinoamericano, não queremos torná-lo ou


a re

chamá-lo de decolonial, mas sim ampliar a rede de inspirações para produzir


uma prática pedagógica cada vez mais compromissada com a afirmação das
diferenças, com a poética da existência.
par
Ed
s ão
ver

63 Estudos Culturais, multiculturalismo crítico, pós-estruturalismo, pós-modernismo estão entre os principais


referenciais adotados pelas pesquisas ligadas ao currículo cultural. Para Neira (2019), esses referenciais
atuam como campos teóricos que inspiram professores e professoras que assumem colocar a perspectiva
em ação, a produzirem uma análise social em sintonia com as demandas contemporâneas, bem como a
um comprometimento de relações menos desiguais, de afirmação das diferenças.
292

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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


QUIJANO, Anibal. Colonialidad y modernidada/racionalidade. Perú Indí-
gena, Lima, v. 13, n. 29, p. 11-20, 1992.
visã
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina.
In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e
ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Ciudad Autónoma de Buenos
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Aires, Argentina, Coleccion Sur Sur, CLACSO, set. 2005. p. 107-130


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SANTOS, Ivan Luís. A tematização e a problematização no currículo


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– Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São Paulo, 2016.
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SANTOS JUNIOR, Flávio Nunes. Subvertendo as colonialidades: o currí-


culo cultural de Educação Física e a enunciação dos saberes discentes. 2020.
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184 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Uni-


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VARELA, Julia; ALVAREZ-URIA, Fernando. A maquinaria escolar. Teoria


& Educação, Porto Alegre, n. 6, 1992. p. 68-96.
DECOLONIALIDADE E
CURRÍCULO: uma análise preliminar
da matriz curricular intercultural para

or
as escolas indígenas do Amazonas

od V
aut
Lucas Antunes Furtado

Introdução

R
o
aC
É necessário reconhecer que a questão da escolarização dos povos
indígenas foi pensada pelos não indígenas desde o início da colonização
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

até o século XX, com intuito de impor os padrões europeus como sinônimo
visã
de desenvolvimento, servindo para a construção de uma “nova civiliza-
ção”. Para isso, a educação formal foi usada como estratégia para atender
aos interesses dos colonizadores, negando a pluralidade sociocultural dos
itor

povos originários e homogeneizando-os em uma cultura ocidentalizada,


cristocêntrica, patriarcal e colonial. A partir desse processo de colonização,
a re

produziu-se, na América Latina, uma cultura que subalterniza e tende a


manter os indivíduos presos aos grilhões dos sistemas políticos, econômicos
e socioculturais europeus, norte-americano e das elites locais, que em geral
são subservientes aos padrões hegemônicos de dominação. Essa cultura
par

perversa é conhecida como “Matriz Colonial de Poder” (QUIJANO, 2000),


ela condiciona o sujeito aos modos e costumes do colonizador, sendo um
Ed

fenômeno subjetivo e herdado historicamente.


Ante a esse contexto, a Secretaria de Estado de Educação do Ama-
ão

zonas (SEDUC/AM), através da Gerência de Educação Escolar Indígena


(GEEI), vem propondo alternativas para atender às exigências das políti-
cas públicas educacionais e às reais necessidades dos povos indígenas do
s

estado do Amazonas. A Matriz Curricular Intercultural (MCI) visa “[...]


ver

reverter as desigualdades sociais, relacionadas à cultura, à economia e às


políticas de atenção aos projetos societários e educativos [...]” (SEDUC/
AM, 2015, p. 10).
A GEEI apresenta a referida proposta pedagógica como referência para
elaboração de outras matrizes curriculares das escolas indígenas no estado.
Desta forma, questiona-se: a MCI propõe verdadeiramente uma ruptura aos
padrões pedagógicos coloniais e hegemônicos presentes nas escolas indígenas
296

do Amazonas? Assim, o capítulo tem como objetivo analisar a Matriz Curri-


cular Intercultural a partir do pensamento decolonial.
O capítulo encontra-se configurado da seguinte forma: no primeiro
momento, procura-se analisar os conceitos de Decolonialidade e Currículo e
sua relação com a Educação. No segundo momento, apresenta-se a proposta
de Matriz Curricular Intercultutal (MCI). Por último, encontra-se a análise
da presente proposta, evidenciando as suas contradições e possibilidades.

or
od V
Decolonialidade, educação e currículo

aut
Entende-se que a educação é um campo de disputas entre grupos

R
com diversos interesses antagônicos, e por isso as relações são tensio-
nadas e complexas. Essas disputas estão gravadas na história e a partir
dela, pode-se perceber as origens dos discursos interessados em obter o

o
domínio e controle do sistema de educação nacional e suas modalidades.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Isto posto, a educação escolar indígena, por fazer parte do sistema de edu-
cação, não está isenta de influências sutis e sofisticadas de concepções e
teorias hegemônicas que atendem aos objetivos de um projeto de sociedade
visã
“ocidentalizada, cristocêntrica, moderna, colonial, capitalista e patriarcal”
(GROSFOGUEL, 2012, p. 339).
Para se fazer a análise crítica sobre esses processos de controle e domi-
nação da educação escolar indígena, ancora-se no pensamento decolonial
itor

para desvelar as contradições presentes e propor ações teórico-metodológicas


a re

concretas e objetivas para contrapor os espectros coloniais que influenciam,


direta e intencionalmente, a produção das matrizes curriculares interculturais
das escolas indígenas.
O pensamento decolonial denuncia a estrutura/hierarquia, político-e-
par

conômico-sociocultural eurocêntrica, imposta e operacionalizada a partir do


ano de 1492, que é o marco da invasão das Américas, liderada pelo genovês
Ed

Cristóvão Colombo que atendeu aos interesses da Coroa espanhola. A estrutura


supracitada deve ser analisada a partir de três categorias que, por sua vez,
estão presentes nos processos socioeducativos das escolas indígenas. São elas:
ão

Modernidade, Colonialismo e Colonialidade.


A Modernidade é um paradigma complexo e perverso que invisibi-
s

lizou o não europeu e usurpou suas riquezas materiais e imateriais para


ver

criar, sustentar e disseminar “o mito da modernidade europeia” (DUS-


SEL, 1993) nos idos dos séculos XV e XVI. A partir do mito da Moderni-
dade, foi possível a produção e consolidação de um paradigma dominante,
um modelo de racionalidade, configurando-se como uma revolução cientí-
fica no domínio das ciências naturais que influenciou as ciências humanas
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 297

emergentes nos idos do século XIX. Com isso, criou-se um outro mito, o
modelo global de racionalidade onde outras formas de interpretação da
vida seriam marginalizadas.
A Modernidade, entretanto, não foi marcada somente pelas transfor-
mações dos aspectos culturais e epistêmicos, reitera-se. A economia e a
política foram categorias estratégicas para a expansão do território europeu.
Por necessidades econômicas, a Europa empreendeu as grandes navegações

or
nas quais encontraram as Américas e iniciaram o projeto de colonização

od V
(exploração/escravização) dos povos originários que ali habitavam, ou seja,

aut
iniciou a extensão dos modos de organização social de uma nação para
controlar o Outro.

R
O Colonialismo impõe suas estruturas/instituições horizontais que não
respeitam as especificidades socioculturais da nação e/ou do povo que está

o
sofrendo a invasão. Esse processo é entendido como uma estratégia de controle
e dominação por não reconhecer a alteridade do povo, produzindo e disse-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

minando através das estruturas/instituições uma cultura de subalternidade,


consequentemente, formatando as novas gerações num projeto de sociedade
eurocêntrica. Segundo Quijano, o Colonialismo é “[...] uma dominação/explo-
visã
ração onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do
trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade
e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial
[...]” (QUIJANO, 2010, p. 84).
itor

Como consequência do Colonialismo, processo perverso de dominação/


a re

exploração, temos o “lado mais escuro da Modernidade” (MIGNOLO, 2017,


p. 2): a Colonialidade. Esse conceito foi criado pelo sociólogo Aníbal Quijano
na virada da década de 80 para 90. A Colonialidade é um fenômeno subjetivo,
ela só aparece aos olhos quando se analisa de forma profunda e densa a história
par

do processo “civilizador”, imposta pela Europa e seus desdobramentos.


Analisam-se as estruturas/instituições que se consolidaram como padrão de
Ed

organização social. Quando se faz essa análise densa, percebe-se que existem
novas formas de relações e trânsitos sociais, que foram formatadas pelas
estruturas/instituições a partir do momento que elas foram impostas como um
ão

padrão de “desenvolvimento” para o não europeu. Percebe-se aqui a euro-


centrização das Américas.
s

A Colonialidade então é um padrão de poder colonial que nega o Outro,


ver

encoberta todas as especificidades de seus povos, homogeneíza as relações,


os hábitos e costumes. Em outras palavras, invisibiliza os aspectos sociocul-
turais, políticos e econômicos do não europeu face ao padrão de sociedade do
colonizador. Quijano (2000) afirma que esse processo se torna uma “Matriz
Colonial de Poder”, por tornar-se uma matriz, condiciona o não europeu aos
298

modos e costumes do colonizador. Esse fenômeno subjetivo é herdado histo-


ricamente. Existe, assim, um espectro eurocêntrico que assombra as mentes
dos não europeus, dificultando ações de rompimento com tal paradigma, pois
aprende-se que o padrão aceitável de desenvolvimento social é o “[...] sis-
tema-mundo ocidentalizado cristocêntrico, capitalista, patriarcal, moderno e
colonial [...]” (GROSFOGUEL, 2012, p. 341), atendendo assim os objetivos
antagônicos do colonizador.

or
A Colonialidade, como matriz consolidada na sociedade, está introjetada

od V
nas “novas” instituições sociais produzidas no processo histórico de domina-

aut
ção e exploração. Assim sendo, a escola como instituição “eleita” para educar
as novas gerações e contribuir com o desenvolvimento da nação, tende a estar

R
influenciada pela lógica da Colonialidade. Tal influência é perceptível quando
se analisa o sistema de educação básica e suas modalidades. Percebe-se que

o
o projeto de educação, as políticas públicas, as teorias sobre educação, cur-
rículos, as práticas pedagógicas, entre outros, estão alinhadas às concepções
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


eurocêntricas, supervalorizando um conjunto de conhecimentos produzidos
historicamente pelo homem europeu, e desvalorizando perversamente outras
formas de perceber e interpretar o mundo. Essa desvalorização se justifica por
visã
ter outros métodos de produção, formas que não necessariamente obedecem
à racionalidade “moderna” eurocentrada e, por isso, não são reconhecidas
como legítimas pelos doutos guardiões da episteme branca.
itor

Nesse sentido, precisa-se problematizar os processos socioeducativos


desenvolvidos no chão da escola, e ter um olhar crítico para as matrizes curri-
a re

culares interculturais que estão sendo produzidas para orientação no processo


de construção dos currículos específicos e diferenciados das escolas indígenas.
Este olhar crítico justifica-se porque o currículo não é apenas um documento
que organiza conteúdos escolares, mas é um documento ético-político que
par

subsidia a produção do conhecimento e o trabalho docente no chão das escolas.


Portanto, faz-se pertinente o empreendimento de análise criteriosa sobre a
Ed

Matriz Curricular Intercultural (MCI) para as escolas indígenas no Amazonas.


ão

Matriz curricular intercultural para


escolas indígenas no Amazonas
s

A Matriz Curricular Intercultural (MCI) caracteriza-se como uma pro-


ver

posta pedagógica de referência e indica caminhos pedagógicos no processo


de elaboração dos currículos interculturais para o ensino fundamental e médio
das escolas indígenas do estado do Amazonas. A proposta tende a possibilitar a
construção de escolas indígenas respeitando os aspectos legais e etnoculturais
dos povos em questão.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 299

A MCI surge como uma alternativa para suprir uma lacuna na educação
escolar indígena do Amazonas. Atualmente, existem escolas indígenas de
ensino fundamental e médio que “[...] funcionam com estrutura curricular
de escolas não-indígenas [...]” (SEDUC/AM, 2014, p. 13). Esses projetos de
escolas indígenas se caracterizam como uma extensão de escolas estaduais
regulares, com processos de ensino-aprendizagem descontextualizados, non
sense, que por sua vez produzem práticas pedagógicas que não dialogam

or
com as especificidades socioculturais/políticas dos povos indígenas. A con-

od V
sequência dessa realidade é a continuação e a reprodução da racionalidade

aut
eurocêntrica que invisibiliza o Ser.
Dessa forma, a MCI se insere como uma proposta para contribuir com a
construção dos Projetos Político-Pedagógicos e os respectivos currículos espe-

R
cíficos e diferenciados das escolas indígenas, salientando que “[...] o estado
do Amazonas concentra a maior população e a maior diversidade etnocultural

o
do Brasil, e foi o primeiro Estado da Federação a instituir a educação escolar
aC
indígena no sistema de educação [...]” (SEDUC/AM, 2014, p. 14). Assim,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

configura-se como uma proposta estratégica para o avanço da educação escolar


indígena no estado do Amazonas.
A MCI foi produzida no período de 2013 a 2014, a partir de um extenso
visã
debate sobre os fundamentos da educação escolar indígena: autonomia, valo-
rização dos saberes/oralidade, princípio de igualdade social, da diferença,
da especificidade, do bilinguismo, da gestão própria e da interculturalidade.
itor

Esse processo de construção foi realizado nos Territórios Etnoeducacionais


a re

(TEE): Rio Negro, Baixo Amazonas, Alto Solimões e Vale do Javari (SEDUC/
AM, 2014, p. 22).
Esse processo de elaboração, contou com a articulação de entidades
como: Gerência de Educação Escolar Indígena (GEEI); Conselho Estadual de
Educação Escolar Indígena (CEEI/AM); Universidade Federal do Amazonas
par

(Ufam); Universidade Estadual do Amazonas (UEA); Fundação Nacional


Ed

do Índio (Funai); Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia


Brasileira (Coiab); Conselho Indigenista Missionário (CIMI); e Associação
Serviço e Cooperação com o Povo Yanomami (Secoya). Teve como funda-
ão

mentação jurídica os seguintes marcos legais: Constituição Federal de 1988;


LDB/9394/96; Plano Nacional de Educação/Lei 10.172/01; as Resoluções
CNE/CEB Nº 03/1999 – CNE/CEB Nº 05/2012 e RE Nº 011/2001/CEE/AM;
s

e a Convenção 169/OIT (SEDUC/AM, 2014, p. 9-22).


ver

A MCI estrutura-se por área de conhecimento para o Ensino Fundamen-


tal, 1º ao 9º Ano, e Ensino Médio, 1º ao 3º Ano: Linguagem, Matemática,
Ciências Naturais, Ciências Humanas e Formas Próprias de Educar. Essa estru-
tura tem como objetivo possibilitar que os componentes curriculares sejam
compreendidos como elementos com sentidos e significados étnico-políticos
300

para a comunidade educativa e para o povo indígena. Sendo assim, uma pro-
posta “[...] inovadora, com o propósito de fazer do ambiente escolar um meio
adequado ao ensino e à aprendizagem, fortalecendo sua identidade étnica e
cultural” (SEDUC/AM, 2014, p. 14).
Essa referência de currículo é vista como uma proposta aberta, consi-
derando os objetivos, os conteúdos e os procedimentos pedagógicos a serem
aproximados às múltiplas realidades socioculturais em que as escolas estão

or
inseridas. Indica ainda que “[...] esses aspectos devem estar apontados no Pro-

od V
jeto Político Pedagógico, serem claramente especificados na organização das

aut
atividades curriculares e presentes no planejamento didático [...]” (SEDUC/
AM, 2014, p. 46). Na tabela a seguir, apresenta-se as MCI de referência para
o ensino fundamental, 1º ao 9º ano e ensino médio, 1º ao 3º ano, das escolas
indígenas da SEDUC/AM.
R
o
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Tabela 1 – MCI de Referência para o Ensino Fundamental, 1º ao 9º ano, Ensino
Médio, 1º ao 3º ano, para as Escolas Indígenas SEDUC/AM
1º Ano 2º Ano 3º Ano 4º Ano 5º Ano 6º Ano 7º Ano 8º Ano 9º Ano Carga
Áreas do Componentes
Legislação Horária
Conhecimento Curriculares A.S H.A A.S H.A A.S H.A A.S H.A A.S H.A A.S H.A A.S H.A A.S H.A A.S H.A Total

Lei Federal Linguagens Língua Indígena 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 1.440
Nº 9.394/96
Língua
RES. Nº
Portuguesa e
7/2010CNE 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 1.440
Conhecimentos
Ed
RES. Nº
Tradicionais
ver
05/2012CNE
RE. Nº
s Arte, Cultura e
2 80 2 80 2 80 2 80 2 80 2 80 2 80 2 80 2 80 720
Fundamentos, Pesquisas e Práticas

11/2001CEE/ Mitologia
ão
AM L. Estrangeira - - - - - - - - - - 2 80 2 80 2 80 2 80 320
itor
Práticas
par
Corporais e 1 40 1 40 1 40 1 40 1 40 1 40 1 40 1 40 1 40 360
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:

Esportivas
aC
Matemática Matemática e
a re
Conhecimentos 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 4 160 1.440
Tradicionais
Ciências da Ciências
visã R
Natureza e Saberes 1 40 1 40 1 40 1 40 1 40 2 80 2 80 2 80 2 80 520
Indígenas
od V
Ciências História e
Humanas Historiografia 1 40 1 40 1 40 1 40 1
o 40 2 80 2 80 2 80 2 80 520
Indígena
Geografia e
aut
1 40 1 40 1 40 1 40 1 40 2 80 2 80 2 80 2 80 520
Contextos Locais
or
Formas Próprias de Educar:
oralidade, Trabalho, lazer e 2 80 2 80 2 80 2 80 2 80 2 80 2 80 2 80 2 80 720
Expressões Culturais.
TOTAL GERAL DA CARGA
20 800 20 800 20 800 20 800 20 800 25 1000 25 1000 25 1000 25 1000 8000
HORÁRIA
301

continua...
continuação
1º Ano 2º ano 3º Ano Carga
302
Áreas do
Legislação Componentes curriculares Horária
conhecimento A.S H.A A.S H.A A.S H.A Total
9.394/96 Linguagens Língua Indígena 3 120 3 120 3 120 360
RES. Nº 02/2 Língua Portuguesa e Conhecimentos 3 120 3 120 3 120 360
012CNE Tradicionais
RES. Nº
05/2012CNE Arte, Cultura e Mitologia 1 40 1 40 1 40 120
L. Estrangeira 1 40 1 40 1 40 120
Práticas Corporais e Esportivas 1 40 1 40 1 40 120
Ed
Matemática Matemática e Conhecimentos Tradicionais 3 120 3 120 3 120 360
ver
s Ciências da Biologia e Conhecimentos Tradicionais 2 80 2 80 2 80 240
Natureza
ão
Física e Conhecimentos Tradicionais 2 80 2 80 2 80 240
Química e Conhecimentos Tradicionais 2 80 2 80 2 80 240
itor
Ciências História e Historiografia Indígena 1 40 1 40 1 40 120
par
Humanas Geografia e Contextos Locais 1 40 1 40 1 40 120
aC
Sociologia e Estudos Específicos 1 40 1 40 1 40 120
a re
Filosofia e Interfaces Culturais 1 40 1 40 1 40 120
Direitos Indígenas
visã R 1 40 1 40 1 40 120
Formas Próprias de Educar: Oralidade, Trabalho, Lazer e 2 80 2 80 2 80 240
od V
Expressões Culturais o
TOTAL GERAL DA CARGA HORÁRIA 25 1000 25 1000 25 1000 3000

Legenda: A.S: Aulas semanais – H.A: Horas anuais Semanas letivas: 40.
aut
Fonte: Secretaria de Educação de Estado do Amazonas/SEDUC (2014).
or
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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 303

Em síntese, a Matriz Curricular Intercultural (MCI) é apresentada como


uma concepção étnico-política, propondo alternativas teórico-pedagógicas
que permitem a comunidade educativa desenvolver ações socioeducativas
respeitando a diversidade sociocultural a partir da articulação entre as áreas
temáticas e outros conhecimentos. Todavia, sabe-se que existem contradições
no processo de produção de qualquer matriz curricular, essas contradições
precisam ser identificadas e analisadas com o objetivo de contribuir para o

or
avanço da educação escolar indígena no Amazonas. Portanto, necessita-se

od V
identificar e analisar as contradições presentes na Matriz Curricular Intercul-

aut
tural (MCI) sob a perspectiva do pensamento decolonial.
Isto posto, a pergunta a ser feita é: a MCI propõe verdadeiramente uma
ruptura aos padrões pedagógicos coloniais e hegemônicos presentes nas esco-
las indígenas do Amazonas?
R
o
Matriz curricular intercultural/MCI:
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

contradições e possibilidades

A problematização acima supracitada desdobra-se em três questiona-


visã
mentos objetivos: primeiro, ainda existem escolas indígenas no Estado que
reproduzem matrizes curriculares das escolas regulares urbanas? Segundo:
quais são os condicionantes objetivos que mostram o nível de colonialidade
presente na MCI? Por último, quais seriam as contribuições do pensamento
itor

decolonial para a radicalização da MCI?


a re

Ao analisar as complexidades políticas, geográficas, econômicas e cul-


turais do estado do Amazonas, não é de se estranhar a existência de esco-
las indígenas que reproduzem matrizes curriculares das “escolas de branco”
(WEIGEL, 2000). A simples reprodução não atende às especificidades socio-
par

culturais e políticas dos povos originários. Isso é um fato identificado pela


própria MCI (SEDUC/AM, 2014, p. 13) citado acima e, inclusive, é uma
Ed

das justificativas para a produção da presente proposta curricular em análise.


Isso é um ponto positivo a ser destacado, pois a MCI surge com o objetivo
de preencher tal lacuna no cenário educacional dos povos indígenas, ou seja,
ão

existem ações político-pedagógicas em andamento no Estado, com intuito


de superar tal entrave.
s

No que se refere à segunda questão, a MCI é apresentada como uma pro-


ver

posta de referência e inovadora para o cenário da educação escolar indígena.


Por se tornar referência e se colocar como proposta inovadora, critica-se a
organização curricular por área de conhecimento.
Destaca-se inicialmente que a MCI é um esforço legítimo de pensar a
educação escolar indígena. Está respaldada por critérios legais (SEDUC/
304

AM, 2014, p. 9-22), propondo uma educação específica, diferenciada, bilín-


gue, intercultural e de gestão comunitária. Porém, o currículo organizado por
área de conhecimento tende a privilegiar o conteúdo não indígena, caracteri-
zando-se como uma grade e servindo como manual para regular os conheci-
mentos e as práticas pedagógicas, longe de ser uma matriz flexível e aberta
para a realidade onde a escola está inserida.
Percebe-se que há a prevalência da área de conhecimento em detrimento

or
aos componentes curriculares, ou seja, o conteúdo escolar eurocêntrico ocupa

od V
um lugar privilegiado em comparação com os elementos socioculturais dos

aut
povos indígenas, o conhecimento indígena é considerado transversal (SEDUC/
AM, 2014, p. 36). Na hierarquia de conteúdo, transversalizam-se os elemen-

R
tos socioculturais indígenas, tendo como foco o conteúdo não indígena que
norteará as outras formas de perceber e ler o mundo, correndo o risco de

o
invisibilizar ou deslocar o olhar do povo indígena.
Em outras palavras, a organização por área de conhecimento pode ser
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


mais uma forma sutil e sofisticada de “embranquecimento” da educação esco-
lar indígena, “[...] continuando com as práticas reprodutoras da velha e pobre
educação resistente à consciência de mudança” (ARROYO, 2015, p. 50). Esses
visã
entraves são percebidos na prática pedagógica do(a) professor(a) quando existe
a possibilidade de relacionar o conteúdo eurocêntrico com os componentes
curriculares que seriam também os elementos socioculturais do povo indígena.
Nesse processo de imbricamento, é possível trabalhar de forma intercultural,
itor

porém, uma interculturalidade relacional que foca nos elementos sociocultu-


a re

rais locais, mas não avança para a problematização dos desafios enfrentados
no cotidiano do povo e “dejando de lado las estructuras de la sociedad que
posicionan la diferencia cultural en términos de superioridad e inferioridad”
(WALSH, 2009, p. 77).
par

Desta forma, reconhece-se que o rompimento da lógica conteudista e


disciplinar não tem sido uma tarefa fácil, contudo, deverá ser a ação para
Ed

possibilitar que os conhecimentos dos povos indígenas, as matrizes formativas


do Ser, ocupem o espaço central no processo socioeducativo, tornando-se ele-
mentos dinâmicos e estratégicos para a resistência e a superação das relações e
ão

estruturas opressoras construídas e consolidadas historicamente na sociedade.


Assim sendo, questionam-se quais seriam as contribuições do pensamento
s

decolonial para a radicalização da MCI e superação da hegemonia cultural


ver

“euro-norte-americana” (DUSSEL, 2012)?


A contribuição centra-se na consciência de mudança presente nos movi-
mentos indígenas. Discutir educação escolar indígena sem reconhecer o papel
pedagógico revolucionário dos movimentos indígenas é obliterar a história de
resistência e luta dos povos originários desde o início da invasão das Américas.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 305

Os movimentos indígenas estão imbricados com a educação. Movimento


indígena é educação. É pedagógico e essencial para a manutenção da vida dos
povos, não podendo ser entendido como uma questão transversal.
Considerar a escola indígena sem reconhecer a centralidade dos movi-
mentos indígenas é sem dúvida simplificar os processos educativos, redu-
zindo a escola a um espaço vazio com práticas pedagógicas burocráticas sem
relação com a realidade do povo. Esse padrão de escola, como afirma Arroyo

or
(2015), “são de correlações de forças econômicas e políticas a que em nossa

od V
história esteve atrelada a construção da inexistência e fraqueza do nosso sis-

aut
tema educacional” (p. 51). Portanto, os movimentos indígenas revelam uma
consciência histórica de resistência, luta e mudanças das condições materiais
para a manutenção e transformação dos modos de existência, na tentativa de

R
superar as forças econômicas e políticas hegemônicas que desestruturam e
desarticulam politicamente os povos indígenas.

o
Os movimentos indígenas devem ser vistos como elementos indissociá-
aC
veis do processo de escolarização dos povos originários, pois a partir deles
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foram identificados inúmeros mecanismos de controle e dominação que cul-


minaram com perdas políticas, econômicas e socioculturais para os povos.
Destaca-se a questão do Território Indígena (TI). Ele nunca foi deslo-
visã
cado da educação indígena, pelo contrário, os indígenas entendem que o “[...]
território faz parte da educação de cada povo [...]” (LUCIANO, 2006, p. 94)
e “compreendem a relação dos limites de terra como espaço que cada povo
itor

pode usufruir e travar diálogos com outros espaços” (REZENDE, 2015, p. 83).
a re

Nesse sentido, considera-se que não há espaço para uma educação indí-
gena e escolar aberta à cosmovisão dos povos se não entender o território
como um dos elementos centrais da vida, ou seja, sem território não há espaço
e tempo para o devir indígena.
Os movimentos indígenas indicam a necessidade do retorno dos territó-
par

rios invadidos ao longo do tempo, pois presenciam-se, atualmente no Brasil,


Ed

várias estratégias políticas para legalizar os territórios invadidos pelos não


indígenas e para “desterritorizar” outros povos tradicionais. Salienta-se que
tais políticas genocidas, presentes no Congresso, são patrocinadas pelo inte-
ão

resse do agronegócio.
Avultam-se, portanto, dois casos que estão em curso: a Proposta de
Ementa à Constituição (PEC) 215/2000 e o caso dos Guarani Kaiowá. O pri-
s

meiro ilustra a articulação do agronegócio com o Congresso, e o segundo, as


ver

consequências perversas de tais articulações políticas/econômicas aos povos


indígenas em destaque.
A PEC/215/2000 propõe a alteração da Constituição para transferir ao
Congresso o poder de decisão final sobre a questão de demarcação das Terras
Indígenas, Territórios Quilombolas e Unidades de Conservação no Brasil
306

(PEC, 2000). Sabe-se que o Poder Executivo junto aos órgãos técnicos tem a
autonomia para decidir sobre as demarcações e não o Poder Legislativo, ou
seja, não cabe ao Congresso Nacional a decisão final no assunto. A transfe-
rência de competências impactará em todas as terras que estão no processo
de reconhecimento e demarcação.
Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), atualmente existem 698 Terras
Indígenas ocupando uma área total de 113.599.277 hectares, o equivalente

or
a 13% do território nacional. Desse total, 98,39% da extensão das terras

od V
indígenas situam-se na Amazônia Legal. O detalhe é que o número total das

aut
Terras Indígenas no território brasileiro está em diferentes estágios de reco-
nhecimento, sendo que 67,48% estão homologadas ou reservadas (relatório
Impactos da PEC 215/2000 sobre os povos indígenas, populações tradicionais
e o meio ambiente/2015).
R
o
Tabela 2 – Terras indígenas, extensão e população por região
aC

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Região Nº de terras Extensão (ha) População
Amazônia Legal 419 111.765.528 338.382
Fora da Amazônia Legal 279 1.861.295 275.703
visã
Total 698 113599.277 614.085

Fonte: Relatório Impactos da PEC 215/2000 sobre os povos indígenas,


populações tradicionais e o meio ambiente/ISA/2015.
itor
a re

A transferência do poder de decisão é vista, pelos povos indígenas, como


uma estratégia para dificultar os processos de demarcação ou ampliação de
territórios tradicionais. Como consequência disso, as áreas ficariam desprote-
gidas, facilitando a exploração hidrelétrica, de mineração e do agronegócio,
aumentando exponencialmente os conflitos por terra e grilagem. Alerta-se,
par

ainda, que a implementação da PEC/215/2000 corrobora, direta e intencional-


mente, com práticas genocidas e etnocidas em relação aos povos originários e
Ed

tradicionais, tendo impacto ainda mais perverso sobre “[...]os povos e terras
em processo de identificação e demarcação nas regiões do Centro Oeste, Sul,
Sudeste e Nordeste, por concentrar os interesses do agronegócio e dos grandes
ão

latifundiários [...]” (ISA, 2015, p. 9).


Por conseguinte, a Proposta de Ementa à Constituição (PEC) 215/2000
s

é a concretização da Colonialidade na política e na economia, mostrando-se


ver

como um retrocesso social e histórico. Observa-se o caso dos Guarani Kaiowá,


etnias falantes da língua Guarani, do tronco linguístico Tupi-Guarani, locali-
zados em territórios espalhados por vários estados brasileiros – Paraná, Rio
Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul – e nos países
que fazem fronteira com o Brasil – Paraguai e Argentina.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 307

No estado do Mato Grosso do Sul, existem “[...] 37 Terras Indígenas


ocupadas pelos Guarani Kaiowá, representando apenas 0,5% da área total
do estado [...]” (ISA, 2015, p. 12). Grande parte delas está em processo de
reconhecimento, porém, mesmo as homologadas, um total de 21 terras,
encontram-se invadidas por fazendeiros ou têm seus processos de demarca-
ção contestados e “até anulados na justiça, como é o caso da TI Arroio-Kora
(Paranhos/MS), homologada em 2009, mas disputada por fazendeiros e par-

or
cialmente suspensa pela Justiça” (ISA, 2015, p. 12).

od V
aut
Tabela 3 – Terras indígenas, extensão e população Mato Grosso do Sul
Estado Nº de terras Indígenas Extensão (ha) População

Mato Grosso do Sul


-
37
R 357.145.532
1.785.727
2.713.147
325.527.64

o
Total 37 0.5% 12%
aC
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Fonte: Relatório Impactos da PEC 215/2000 sobre os povos indígenas,


populações tradicionais e o meio ambiente/ISA/2015.

Estima-se que as alterações propostas na PEC/215/2000 impactarão no


visã
processo de demarcação de 228 Terras ainda sem homologação, as quais
devem ser paralisadas, “essas terras representam uma área de 7.807.539 hec-
tares com uma população de 107.203 indígenas. Devem ser afetadas ainda 144
itor

terras cujos processos de demarcação estão judicializados, que totalizam uma


a re

área de 25.645.453 hectares, com uma população de 149.381 pessoas (ibid,


p. 13). Apenas no estado do Mato Grosso serão afetadas 16 Terras Indígenas
dos povos Guarani Kaiowá.

Tabela 4 – Do impacto da aprovação da PEC215/2000


par

Nº Terras Indígenas sem Homologação Extensão (há) População


Ed

228 7.807.539 107.203


Nº de Terras Indígenas em Processo de Demarcação Extensão (há) População
ão

144 25.645.453 149.381

Fonte: Relatório Impactos da PEC 215/2000 sobre os povos indígenas,


populações tradicionais e o meio ambiente/ISA/2015.
s
ver

Desse modo, é evidente que a questão do território e dos movimentos


indígenas se configura como estratégica para a organização dos proces-
sos socioeducativos dos povos originários, pois “[...] território é o mundo
onde se pode sonhar, viver uma relação educacional e poder fortalecer a
cultura, a religiosidade, os costumes e dar significados para esse mundo”
308

(REZENDE, 2015, p. 85). E a partir da organização e articulação dos povos


indígenas “[...] ao lutarem pelo direito ao conhecimento, à cultura, às artes,
aos valores, estão a exigir currículos densos na garantia desses direitos [...]”
(ARROYO, 2015, p. 54).
Portanto, uma matriz curricular intercultural (MCI), que é referência e
se coloca como uma proposta inovadora, requer a superação dos espectros de
uma cultura acadêmica eurocêntrica, requer a superação da ocidentalização dos

or
processos socioeducativos dos povos indígenas. Caso contrário, continua-se a

od V
reproduzir práticas pedagógicas missionárias, nas quais o conhecimento do não

aut
indígena é visto como sacro em detrimento a cosmovisão dos povos originá-
rios. Assim, perpetua-se a herança cultural europeia de formação de “[...] mão
de obra colonial explorada e dominada [...]” (GROSFOGUEL, 2012, p. 349).

Considerações finais R
o
aC

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Tendo em vista a análise da MCI, é possível considerar que a proposta se
torna um marco para a educação escolar indígena por dois motivos: primeiro,
ela surge para suprir uma lacuna no estado do Amazonas, pois até então não
visã
existia uma Matriz Curricular de referência que atendesse e respeitasse a
diversidade sociocultural dos povos indígenas. É um passo importante para
estado, pois o Amazonas “[...] foi o primeiro estado da Federação a instituir a
educação escolar indígena no sistema de educação [...]” (SEDUC/AM, 2015,
itor

p. 14). Sendo assim, o estado está na vanguarda e chamando para si a respon-


a re

sabilidade de pensar, ofertar, executar e acompanhar os processos de escolari-


zação dos povos indígenas respaldados nos dispositivos legais: Constituição
Federal de 1988; LDB/9394/96; Plano Nacional de Educação/Lei 10.172/01;
Resoluções CNE/CEB nº 03/1999 – CNE/CEB nº 05/2012; RE nº 011/2001/
par

CEE/AM; e Convenção 169/OIT.


Segundo, por ser uma proposta relativamente nova, produzida nos idos
Ed

de 2013 e 2014, e por ser uma matriz de referência para as escolas indígenas,
insere-se em um contexto complexo e tensionado, pois vivencia-se um con-
fronto entre projetos de escolarização dominante, eurocêntrico, com práticas
ão

pedagógicas que impõem sistemas conceituais e simbólicos, hábitos e atitudes


da cultura dos não indígenas, e um projeto de escolarização pautado em valo-
s

res, regras, concepções da cosmovisão indígena, ou seja, escolas voltadas para


ver

o imbricamento entre os elementos culturais dos povos indígenas e conteúdo


não indígenas. Assim, a MCI encontra-se nesse processo de mediação entre
uma cultura pedagógica hegemônica e outras pedagogias. É por esses dois
motivos que a referida proposta se configura como um marco para a questão
da educação escolar indígena no estado do Amazonas.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 309

Não obstante, critica-se veemente a sua organização curricular, pois,


como já foi dito, “a organização por área de conhecimento pode ser mais
uma forma sutil e sofisticada de embranquecimento da educação escolar indí-
gena”, já que transversaliza duas questões de extrema importância para os
povos indígenas: Movimentos Indígenas e Território. Assim sendo, consi-
dera-se que a MCI não rompe com a herança colonial, com a colonialidade
do saber, presente nas escolas indígenas. Ela ainda está atrelada a “[...] um

or
sistema de classificação social que legitima as relações de poder-dominação-

od V
subalternização [...] determinante no projeto pedagógico hegemônico [...]”

aut
(ARROYO, 2018, p. 7).
Propõe-se um pensar pedagógico crítico-radical que entenda aos pro-
cessos de opressão atual e compreenda a educação escolar com um espaço

R
legítimo para formar agentes de transformação social que atuarão em prol
dos direitos dos povos indígenas. Neste sentido, percebe-se que existem

o
outras pedagogias que “[...] interrogam, descontroem as pedagogias hegemô-
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

nicas, que se julgam únicas e universais [...]” (ARROYO, 2018, p. 2). Cabe
a todos (as) envolvidos (as) com a educação escolar indígena a consciência
de que a educação deve ser radical no sentido de contribuir com a superação
dos mecanismos de controle e dominação postos na sociedade, e por ser
visã
radical não se pode minar ou obliterar outras alternativas e experiências
pedagógicas contra hegemônicas. Aqui se fazem necessárias as pedagogias
insurgentes e transgressoras.
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
310

REFERÊNCIAS
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currículos. Educar em Revista, UFPR, n. 55, p. 47-68, jan./mar. 2015.

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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


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Museu Nacional, 2006.
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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
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od V
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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS,
INTERCULTURALIDADE
CRÍTICA E FORMAÇÃO DE

or
PROFESSORES INDÍGENAS EM

od V
AÇÕES EXTENSIONISTAS

aut
R
Cristiane do Socorro dos Santos Nery

o
aC
Introdução
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Neste capítulo, socializa-se vivências em dois projetos de extensão rea-


lizados durante o ano de 2018, no Curso de Licenciatura Intercultural Indí-
visã
gena, da Universidade Federal do Amapá, Campus Binacional do Oiapoque
(CLII/Unifap-Oiapoque), vinculados ao projeto de pesquisa “Formação de
professores indígenas: história e memória de discentes do CLII – Unifap”.
itor

O Curso foi implementado em 2007 em atendimento as demandas edu-


a re

cacionais das comunidades indígenas do Amapá e norte do Pará. São elas: as


etnias do Amapá da região de Oiapoque – os Galibi-Kalinã, os Galibi-Mar-
worno, os Karipuna e os Palikur, que habitam as Terras Indígenas (TI) Uaçá,
Juminã e Galibi; a etnia Wajãpi, da TI Wajãpi; e as etnias da região norte
do Pará – os Tiryió, Aparai, Wayana e Katxuyana, habitantes da TI Parque
par

Nacional Montanhas Tumucumaque.


Ed

O CLII/Unifap forma professores para atuar no ensino médio e nas


séries finais do ensino fundamental nas escolas indígenas de suas comunida-
des em uma das três áreas do conhecimento: (1) Ciências Exatas e da Natu-
ão

reza, (2) Ciências Humanas e (3) Linguagens e códigos. Além do ensino,


são ofertadas atividades de pesquisa e extensão desenvolvidas por grupos
de pesquisa vinculados ao Curso, como é o caso do Grupo de Estudos,
s

Pesquisas e Práticas em Educação Intercultural em Ciências da Natureza e


ver

Matemática (GECIM), que em 2018 desenvolveu projetos de extensão com


o objetivo de valorizar os conhecimentos dos povos indígenas do Amapá
e norte do Pará, bem como, fomentar o desenvolvimento profissional e a
autonomia dos estudantes indígenas.
Compreende-se a extensão universitária como um processo educativo,
interdisciplinar, cultural, científico e político que articula ensino e pesquisa
de forma indissociável e visa promover a interação transformadora entre a
314

universidade e outros setores da sociedade. De acordo com Santos (2004),


devemos conceber a extensão de modo alternativo ao capitalismo global,
atribuindo às universidades uma participação ativa na construção da coesão
social, no aprofundamento da democracia, na luta contra a exclusão social, a
degradação ambiental e em defesa da diversidade cultural.
Nesse texto, discorre-se, a seguir, sobre os dois conceitos que nortearam
as ações extensionistas: a interculturalidade crítica e a pedagogia decolonial,

or
bem como, sobre sua importância na formação de professores indígenas e se

od V
apresenta uma síntese das vivências nos projetos de extensão, evidenciando

aut
as contribuições e desafios no processo formativo.

Decolonialidade e interculturalidade crítica: eixos de


R
convergência com os conhecimentos indígenas

o
Os estudos decoloniais denunciam e problematizam a lógica da coloniali-
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


dade do poder, do saber e do ser. Os teóricos decoloniais discutem o giro-deco-
lonial como desprendimento das amarras (econômicas, culturais, institucionais,
políticas, entre outras.) impostas pelo pensamento moderno/colonial.
visã
Com relação à educação e a formação de professores indígenas, as discus-
sões sobre a preservação, valorização e manutenção do conhecimento indígena
estiveram/estão em pauta nas reivindicações dos movimentos dos povos ori-
itor

ginários no Brasil por uma educação (escolar e acadêmica intercultural, bilín-


gue/multilíngue, específica e comunitária) de qualidade (GRUPIONI, 2006;
a re

2008; NERY, 2018). Nessa perspectiva e a partir da vivência com as etnias


do Amapá e norte do Pará, destacam-se dois eixos de convergência do pen-
samento decolonial com os conhecimentos indígenas: (1) interculturalidade
crítica e conhecimento indígena e (2) pedagogia decolonial e a formação
par

acadêmica de professores indígenas.


Ed

Interculturalidade crítica e conhecimento indígena

A interculturalidade crítica na perspectiva de Walsh (2007, 2009, 2014)


ão

surge no seio do movimento dos povos indígenas e afrodescendentes da Amé-


rica Latina e particularmente do Equador, atrelada a suas lutas históricas e
s

atuais. A interculturalidade crítica parte de uma perspectiva, conceito e prática


ver

proveniente de um movimento étnico-social e não dos centros acadêmicos de


produção de conhecimento. Ela visa um projeto político, social e epistêmico
em diálogo com os movimentos sociais, os intelectuais ativistas e outros atores
sociais que possam contribuir para descolonizar o saber/poder/ser.
A interculturalidade crítica é proposta por Walsh (2009, p. 25) como:
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 315

Uma ferramenta pedagógica que questiona continuamente a racialização,


subalternização, inferiorização e seus padrões de poder, visibiliza maneiras
diferentes de ser, viver e saber e busca desenvolvimento e criação de com-
preensões e condições que não só articulam e fazem dialogar as diferenças
num marco de legitimidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito,
mas que – ao mesmo tempo – alentam a criação de modos “outros”64 – de
pensar, ser, estar, aprender, ensinar, sonhar e viver que cruzam fronteiras.

or
Nesse sentido, a interculturalidade crítica é adotada em licenciaturas

od V
indígenas brasileiras como conceito central de suas matrizes curriculares,

aut
como princípio que orienta enfoques epistêmicos e dialoga com os contextos,
saberes e fazeres específicos das etnias atendidas pelos cursos.

R
A interculturalidade crítica e a decolonialidade permitem destacar as
diversidades de conhecimentos e seus (re)conhecimentos nos espaços escolares

o
e acadêmicos. A valorização dos saberes ancestrais que emergem de contextos
aC
culturais específicos e plurais e de processos de aprendizagem próprios dos
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povos autóctones, com a promoção de práticas de uma pedagogia decolonial.

Pedagogias decoloniais e a formação acadêmica de


visã
professores indígenas

As Pedagogias Decoloniais problematizam o conhecimento institucio-


itor

nalizado, a partir da crítica ao pensamento moderno e a colonialidade do


a re

saber/ser/poder nos espaços pedagógicos (escolar e acadêmico) e na educação


formal e disciplinar.
As discussões, em torno das Pedagogias Decoloniais, trazem para o
debate os problemas centrais relacionados ao lugar de fala dos sujeitos subal-
ternizados pela modernidade/colonialidade, as relações entre saberes e práti-
par

cas não legitimados, a violência epistêmica-institucional e a necessidade de


promover ações concretas de cunho decolonial (PALERMO, 2014).
Ed

Com base nos estudos de opção decolonial, Oliveira (2018) expõe o con-
ceito de Pedagogia Decolonial como um ato político, intercultural, antirracista
e contrário às formas de exploração e opressão da Modernidade/Coloniali-
ão

dade, como produção do conhecimento com foco nas realidades locais e na


interação dos agentes educativos com os movimentos sociais e em constante
s

construção por parte de sujeitos coletivos.


ver

A partir de Freire e Fals Borda, Mota Neto (2015, p. 345) sustenta que
uma concepção de pedagogia decolonial parte das seguintes premissas, dentre

64 A autora utiliza o termo “outros” (modos outros, pensamentos outros, conhecimentos outros, ...) para designar
as formas de pensar, saber, viver, fazer e conhecer que são historicamente subalternizadas e rejeitadas pelo
pensamento moderno-ocidental-colonial.
316

outras: “ (1) requer educadores subversivos; (2) valoriza as memórias coleti-


vas dos movimentos de resistência; (3) está em busca de outras coordenadas
epistemológicas”. Podemos considerar em Walsh (2013), Palermo (2014) e
Mota Neto (2015) que as Pedagogias Decoloniais tratam de ações plurais, de
pedagogias, de projetos políticos e societários de intenção decolonial, e por
conseguinte se conectam com a compreensão de interculturalidade crítica.
Pensar a formação de professores indígenas “com” e “a partir” dos aca-

or
dêmicos indígenas e das comunidades locais tem sido a postura docente

od V
adotada para com os saberes indígenas e o processo formativo no contexto

aut
do CLII/Unifap-Oiapoque, bem como, dos projetos de extensão realizados.
Essas vivências constituem um conjunto de práticas educativas como um
mecanismo de resistência, de afirmação e valorização do conhecimento dos

R
povos indígenas do Amapá e norte do Pará.

o
Trajetória da experiência: práticas decoloniais e
aC

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interculturais na formação professores indígenas

Os projetos de extensão tiveram como colaboradores: professores do


visã
ensino superior; agentes ambientais indígenas de Oiapoque; professores da
educação básica; pesquisadores externos, dentre eles, antropólogos e cientistas
sociais; agentes do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena; acadêmicos
indígenas e não indígenas.
itor

O objetivo dos projetos de extensão consistiu em desenvolver competên-


a re

cias e habilidades na prática educativa de professores indígenas em formação


por meio de minicursos, oficinas e palestras interdisciplinares nas áreas de
Educação, Ciências Exatas e da Natureza, Linguagens e Códigos e Ciências
Humanas. As atividades de extensão tiveram como princípio o “apoio soli-
par

dário na resolução dos problemas da exclusão e da discriminação social e de


tal modo que nele se dê voz aos grupos excluídos e discriminados” (SAN-
Ed

TOS, 2004, p. 67).


O projeto intitulado “Oficinas pedagógicas interdisciplinares na formação
docente, cadastrado no Departamento de Extensão da Unifap (Dex/Unifap)
ão

foi direcionado às discussões sobre tecnologia educacional e alfabetização


digital de professores indígenas. Este projeto foi autofinanciado e contou com
s

uma bolsista voluntária e um total de 125 participantes.


ver

O projeto intitulado “Formação docente indígena: práticas pedagógicas


interdisciplinares”, cadastrado no Dex/Unifap teve como foco os saberes
indígenas frente aos desafios da sociedade contemporânea. Este projeto foi
financiado pelo Programa Institucional de Bolsas à Extensão Universitária
(Pibex), contou com uma bolsista de extensão e um total de 239 participantes.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 317

Esses projetos fazem parte de um conjunto de ações que vêm sendo


desenvolvidas pelo GECIM/Unifap, que atua na Licenciatura Indígena com
enfoque na prática educativa intercultural e interdisciplinar e na formação do
professor indígena, como pesquisador de suas práticas socioculturais.
Os projetos foram executados em parceria com a Comissão de Ativida-
des Complementares do CLII/Unifap-Oiapoque, a Coordenação de Pesquisa,
Extensão e Ações Comunitárias (Copea/Unifap), a Divisão de Pesquisa e

or
Pós-Graduação (Dipespg/Unifap) e o Dex/Unifap.

od V
Teoricamente, os projetos de extensão se fundamentaram na interdisci-

aut
plinaridade, com base em Japiassú (1976), no Campo Epistemológico, e em
Fazenda (1998; 2013), no Campo Pedagógico; na Formação do professor

R
indígena em perspectiva intercultural e decolonial segundo Candau (2009)
e Walsh (2014).

o
As ações extensionistas ocorreram no período letivo, em horário inter-
valar e previsto no calendário acadêmico do curso. Inicialmente, realizou-se
aC
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uma consulta aos estudantes e professores indígenas visando compreender


as necessidades educacionais das comunidades.
Do diagnóstico inicial, identificaram-se algumas temáticas que os estu-
visã
dantes e professores indígenas gostariam que fossem abordadas nas ações
extensionistas, tais como: alfabetização digital, estudos e pesquisas em ciências
humanas, etnomatemática, artesanato e grafismo na educação escolar indígena,
o saber-fazer indígena, meio ambiente e territorialidade, a presença indígena
itor

na universidade. As ações foram organizadas a fim de atender essas demandas.


a re

Foram desenvolvidas sete palestras, cinco oficinas e dois minicursos.


As palestras tiveram as seguintes temáticas: o manejo e a preservação
dos tracajás (Podocnemis Unifilis) na Terra Indígena Uaçá; formação dos
agentes socioambientais indígenas em Oiapoque; experiências etnográficas
par

com estudantes universitários indígenas de Mato Grosso do Sul; ações afirma-


tivas: impactos e desafios para negros e afrodescendentes no Brasil; tendências
Ed

de pesquisas em Educação Matemática; pesquisas em Ciências Humanas;


professores de cultura e educação escolar: possibilidades e limites de uma
pedagogia da cultura.
ão

As palestras ocorreram ao longo do ano de 2018. Estes momentos pos-


sibilitaram reflexões e debates sobre as temáticas. Dos objetivos propostos,
s

destacamos: sensibilizar sobre o manejo e preservação dos tracajás na TI


ver

Uaçá; dialogar sobre a formação de agentes socioambientais indígenas e suas


ações nas terras indígenas; discutir as ações afirmativas na universidade e suas
implicações na educação e a presença indígena na universidade; apresentar
o desenvolvimento da Educação Matemática enquanto campo científico e
as principais tendências de pesquisas nas últimas décadas; promover aporte
318

teórico e metodológico sobre pesquisas qualitativas e quantitativas no âmbito


das Ciências Humanas; promover o diálogo sobre a lógica da cultura escolar,
práticas e inovações para a construção de uma pedagogia intercultural.
As palestras sobre manejo, preservação ambiental, formação de agen-
tes ambientais e Educação Matemática indígena foram direcionadas aos
estudantes das áreas de Ciências Exatas e da Natureza e também aberta à
comunidade. Foram apresentadas as ações desenvolvidas no curso com os

or
estudantes indígenas referentes ao manejo do tracajá e pirarucu que também

od V
são fonte de alimento para as populações indígenas locais, na oportunidade,

aut
os participantes discutiram sobre a preservação das espécies e o consumo
consciente nas aldeias.

R
A palestra sobre a formação dos agentes ambientais foi realizada por
um grupo de agentes indígenas formados pelo Instituto de Pesquisa e Forma-

o
ção Indígena. Os palestrantes debateram sobre suas ações nas comunidades
indígenas e a importância de manter o diálogo com a universidade, tendo em
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


vista, as consequências (para a fauna, a flora e as populações indígenas) do
desmatamento e da exploração mineral dos não indígenas.
Na palestra sobre Educação Matemática, foi apresentado aos partici-
visã
pantes, de forma suscinta, o desenvolvimento do campo da Educação Mate-
mática e suas perspectivas metodológicas com ênfase na Etnomatemática e
Modelagem Matemática. Nas discussões, foram levantadas possibilidades de
itor

atividades interdisciplinares envolvendo meio ambiente, cultura e ensino de


a re

matemática bilíngue/multilíngue.
As duas palestras sobre ações afirmativas ocorreram em momento opor-
tuno, no qual se discutia com os estudantes e lideranças, a questão da presença
indígena na Universidade e as possibilidades e desafios para implementação de
ações de acesso e permanências dos estudantes indígenas em outros cursos da
par

instituição. Ações extensionistas como esta, possibilitam ouvir as comunidades


para se pensar medidas institucionais assertivas e tecer encaminhamentos para
Ed

propostas e políticas em perspectiva decolonial. Esse é um esforço contínuo


das comunidades e militantes pela causa indígena que precisa ser enfrentado
ão

para conquista dos direitos e espaços que lhes foram historicamente negados.
A palestra sobre pesquisas em Ciências Humanas, contribuiu para a for-
mação científica dos estudantes indígenas, principalmente com relação as
s

teorias e metodologias e seus usos em pesquisas qualitativas e quantitativas


ver

no âmbito da Educação e Cultura Indígena.


As oficinas e minicurso ocorreram nos meses de janeiro, fevereiro e
julho de 2018 e contaram com a participação efetiva dos acadêmicos como
ministrantes ou ouvintes (na perspectiva de promover a autonomia, inclusive
intelectual). Foram realizadas duas oficinas sobre elaboração de currículo na
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 319

Plataforma Lattes, com a intenção de viabilizar aos acadêmicos indígenas a


criação e o preenchimento do Currículo Lattes na plataforma do CNPq. Estas
oficinas ocorreram no Laboratório de Informática da Unifap-Oiapoque.
A oficina intitulada “Grafismos indígenas dos povos do baixo Oiapoque,
cultura e identidade: conexão do homem contemporâneo com suas origens”
teve por objetivo valorizar a identidade dos povos indígenas do baixo rio
Oiapoque por meio dos grafismos. Foi ministrada por cinco acadêmicos, três

or
deles da Licenciatura Indígena, sendo dois da etnia Galibi-Marworno e um

od V
da etnia Palikur, e dois acadêmicos do curso de Pedagogia, sendo um da etnia

aut
Karipuna e um não indígena.
Nesta oficina, os acadêmicos indígenas discorreram sobre o histórico e os

R
significados de alguns grafismos indígenas e a importância do reconhecimento,
respeito e valorização da cultura material e imaterial dos povos indígenas

o
da região do Uaçá. Em seguida, apresentaram recursos e técnicas de pintura
corporal e em tecido. Foi utilizado jenipapo e tala para pintura, e, como tela,
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

contou-se com o algodão cru e o corpo humano.


As ações extensionistas e especialmente a oficina de grafismos e a oficina
de jogos digitais possibilitaram a interação entre os acadêmicos indígenas e
visã
não indígenas. A oficina de grafismos viabilizou aos estudantes não indígenas
conhecer um pouco da cultura indígena local invisibilizada pelas próprias
escolas da cidade, o que foi provocativo para os estudantes do curso de Peda-
gogia que participaram da oficina e demostraram interesse para estender a
itor

discussão para o ensino em escolas não indígenas de Oiapoque.


a re

Nesse sentido, Freire (2013, p. 27) refuta a noção de extensão que trans-
fere ou comunica sem a participação reflexiva, dialógica e transformadora dos
sujeitos envolvidos na (re)construção do conhecimento, pois se:
par

[...] exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer uma
ação transformadora sobre a realidade. Demonstra uma busca constante.
Ed

Implica em invenção e em reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada


um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo
e, ao reconhecer-se assim, percebe o “como” de seu conhecer e os con-
ão

dicionamentos aos quais está submetido seu ato. [...] Conhecer é tarefa
de sujeitos, não de objetos. E é como sujeito e somente enquanto sujeito,
que o homem pode realmente conhecer.
s
ver

A oficina, “Metodologia de pesquisa em Ciências Humanas: alguns


aportes da Antropologia”, foi aberta à comunidade acadêmica e indígena.
A oficina abordou metodologias no âmbito das pesquisas antropológicas,
com exemplos e atividades práticas, na qual os participantes puderam tirar
dúvidas, expor suas opiniões e experiências com pesquisas nas aldeias. A
320

oficina ampliou o olhar dos estudantes, tanto para elaboração dos trabalhos
acadêmicos, quanto para sua formação inicial e contínua, como pesquisa-
dores de suas práticas culturais.
A oficina, “Uso de jogos digitais no ensino de Ciências da Natureza e
Matemática”, teve por objetivo proporcionar alternativas para desenvolver
propostas interdisciplinares em ambiente educativo utilizando as tecnologias
digitais. Esta oficina atendeu aos discentes da Licenciatura Intercultural e de

or
Pedagogia que já tinham domínio de informática básica. Foram estudados

od V
objetos de aprendizagem relacionando conteúdos voltados às ciências da

aut
natureza, educação ambiental, matemática e informática.
O minicurso “Etnomatemática dos rios da Amazônia” teve por objetivo

R
discutir cálculos de grandezas vetoriais e escalares contextualizados a situa-
ções de medidas de distâncias como base no rio Oiapoque. Foram desenvol-

o
vidas atividades práticas envolvendo aplicações com instrumentos de medidas
de ângulos como o teodolito.
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


O minicurso “Noções de Informática básica” foi desenvolvido tendo em
vista a alfabetização digital dos acadêmicos e da comunidade indígena que
tinham interesse em dominar as ferramentas tecnológicas para uso acadêmico
visã
e comunitário. Esse minicurso incluiu noções elementares de tecnologia da
informação, uso de computadores, de ferramentas para edição de textos e da
Internet para pesquisa.
itor

As ações desenvolvidas nos formatos de minicurso, oficina e palestra


a re

tiveram como intuito o protagonismo indígena na escolha das temáticas, em


suas participações como palestrantes, ministrantes, organizadores e demais
atividades formativas. Compreende-se que desta, forma os estudantes e a
comunidade desenvolvem conhecimentos e autonomia para gerir e imple-
mentar ações educativas nas aldeias e na luta por seus direitos.
par

Considerações finais
Ed

A educação escolar e universitária indígena são desafios a serem enfren-


ão

tado pelos agentes educacionais indígenas, pelos professores militantes e pelas


lideranças, o que envolve questões didáticas, pedagógicas, políticas e sociais.
Nas atividades extensionistas, desenvolvidas com opção decolonial,
s

ressaltamos o compromisso ético-político com os professores indígenas em


ver

formação, para discussão e proposição de ações educativas, bem como, para


valorização dos saberes e fazeres no contexto das comunidades locais.
As ações extensionistas revelaram resultados positivos do ponto de vista
pedagógico e interdisciplinar relacionados à formação inicial e contínua de
professores indígenas, entre os quais se destacam: o desenvolvimento da
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 321

autonomia docente por meio da participação como palestrantes, ministrantes


e/ou monitores das ações; o diálogo intercultural e a partilha de saberes pro-
venientes de distintas práticas culturais; e o potencial educativo procedente
da interação entre os participantes e ministrantes (indígenas e não indígenas,
acadêmicos da licenciatura intercultural e de outros cursos do Campus Oia-
poque) dos projetos.
Os desafios profissionais e institucionais são diversos, quando se trata

or
de ações interculturais e decoloniais com povos indígenas. Nossa postura

od V
de respeito e reconhecimento dos saberes ancestrais viabilizou o diálogo e

aut
proposição das ações. Enfatizamos a importância de se reconhecer e valorizar
as formas próprias de conhecer das sociedades indígenas para proposição de
políticas e práticas educativas adequadas às suas especificidades educacionais.

R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
322

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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

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visã
itor
a re
par
Ed
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ver
ver
Ed
s ão itor
par aC
a re
visã R
od V
o aut
or
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(RE)EXISTÊNCIAS NO MARAJÓ DAS
ÁGUAS E FLORESTAS: letramentos e
experiências inscritos na organização social

or
e nos saberes de comunidades ribeirinhas

od V
aut
Pâmela Beatriz Ferreira Pelegrini
Erika Rodrigues Cavalcante

R
Eunápio Dutra do Carmo

o
aC
Introdução
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Este capítulo, construído numa perspectiva decolonial, ambienta-se


visã
nas relações socioculturais de três comunidades ribeirinhas do rio Parauaú
– Vila Intel I, Vila Intel II e Magebrás –, na mesorregião do Marajó65. Tra-
ta-se de unidades socioeconomicamente reconstituídas pelos impactos dos
processos de expansão da indústria madeireira na região. São comunidades
itor

originárias de grupos indígenas e caboclos, dotados de saberes e tecno-


a re

logias obtidos nos processos de adaptação e convivência em complexos


ecossistemas florestais, águas e várzeas. É nesse lugar social marcado
pela colonização e, depois, pelos ciclos da borracha, arroz e madeira que
este artigo se ocupará com objetivo de analisar o letramento das comuni-
par

dades ribeirinhas como prática social de resistência inscrita no cotidiano


de conhecimentos e disputas territoriais que formam as sociedades do
Ed

beiradão66 no Marajó.
O capítulo resulta do desdobramento do Projeto de Extensão “Vila Intel
I, Vila Intel II e Magebrás: Participação Social e Cultura de Direitos em
ão

65 O arquipélago do Marajó, com seu conjunto de 2.500 ilhas, ilhotas e 16 municípios, está na foz do Rio
s

Amazonas e é emblemático na manifestação da pujante sociobiodiversidade da região. De Belém ao


ver

Marajó, percorre-se 223 Km atravessando, via transporte fluvial, as baías de Guajará e do Marajó, bacias
com extensões gigantescas devido à proximidade com o Oceano Atlântico, e navega-se por labirintos de
rios, furos, igarapés, tornando a navegabilidade dos rios uma cultura (i)material de fator dominante na
“estrutura fisiográfica e humana, conferindo um ethos e um ritmo à vida regional” (LOUREIRO, 2018). O
rio Parauaú é um dos rios que entrecortam o arquipélago do Marajó, e “se destaca como fornecedor de
recursos biológicos, econômicos, sociais e culturais para o município de Breves” (SEBRAE, 2003 apud
CARMO; OLIVEIRA-FILHO; SILVA-OLIVEIRA, 2013).
66 “Beiradão” é um termo utilizado por Arenz para indicar a localização dos moradores das margens dos rios
Amazonas e afluentes, os chamados “caboclos”, considerados pelo autor uma “população-chave da Região
Norte” (ARENZ, 2000, p. 11).
326

Territórios das Águas na Amazônia Marajoara pós-crise do ciclo da madei-


ra”67, vinculado à Faculdade de Serviço Social do Campus Marajó Breves,
que se propõe a problematizar o quadro social da região e subsidiar ações
políticas junto às comunidades, com vistas à mobilização social. Para tanto,
desenvolve encontros, reuniões de trabalho e oficinas, com foco na valoriza-
ção do protagonismo, organização política e a constituição de associação de
moradores para afirmação dos direitos da comunidade. Com caráter interdisci-

or
plinar e intersetorial, na perspectiva da ecologia de saberes (SANTOS, 2002),

od V
mediando experiências entre universidade e comunidades ribeirinhas, o projeto

aut
busca, junto aos sujeitos, ampliar sua participação social diante dos cenários e
tendências da Amazônia Marajoara, além de projetar ações para a eficácia da

R
política social de direitos territoriais ribeirinhos. Significativas experiências
sociais vivenciadas pelos autores (e membros do projeto) oportunizaram o

o
desenvolvimento desta pesquisa.
Questionando a monocultura do saber, a ecologia de saberes evidencia
aC

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conhecimentos, práticas e contextos de existência antes não considerada,
subalternizados em relação a uma suposta “norma” do saber científico (SAN-
TOS, 2002, p. 250). De mesmo modo, o modelo ideológico de letramento
visã
(STREET, 1995), considerando diferentes contextos, historicidades e especi-
ficidades, evidencia a dimensão sociocultural dos usos da leitura e da escrita
por certos grupos sociais com características próprias em determinados espa-
ços, num caráter complexo e dinâmico onde o fenômeno pode significar uma
itor

resistência inscrita nas estruturas de poder.


a re

Como metodologia, adota-se a abordagem interdisciplinar, relacional


e transescalar. Observações, entrevistas, espaços de formação/informação
e reuniões de trabalho permitiram captar contextos e relações (i)materiais,
multiescalares e multidimensionais, aproximando-nos do entendimento da
par

67 O projeto de extensão é da Faculdade de Serviço Social do Campus Marajó-Breves. Tem o meio ambiente
Ed

como temática central e os grupos socialmente vulneráveis como linha de ação. Foi aprovado no edital 2019
da Pró-Reitoria de Extensão e conta com 28 membros, envolvendo professores, bolsista, técnicos e voluntá-
rios. O projeto pretende ampliar a participação social dos membros das Vilas Intel I, Vila Intel II e Magebrás,
ão

e também de comunidades vizinhas localizadas às margens do Rio Parauaú. O foco é a organização social
para a garantia de direitos sociais num contexto de pós-crise do ciclo da madeira no município de Breves
e a ruptura com a cultura de dominação (moderno/colonial). Nesse sentido, busca-se desenvolver, junto
aos moradores, o seu fortalecimento social, o conhecimento sobre seus direitos e a emancipação humana
s

ribeirinha (lugar da enunciação/decolonial), num processo onde os mesmos possam, do seu lugar social,
ver

empoderar-se em defesa desses direitos, existências, saberes e sociabilidades. Os primeiros contatos com as
comunidades envolvidas se deram em agosto de 2018, quando ocorreu a entrada em campo e estabeleceu-
-se as articulações com lideranças comunitárias para realização do projeto. Houve, nesse período, a ida de
03 (três) turmas de alunos dos cursos de Serviço Social, Letras e Pedagogia do Campus Marajó-Breves. O
projeto visa consolidar-se em três fases, todas no ano de 2019, distribuídas nos meses de: janeiro a março
(Fase I: Diagnóstico Social Comunitário); abril a junho (Fase II – Oficinas de Fortalecimento de Cidadania
e Direitos); setembro a novembro (Fase III – Formação de Associação de Moradores).
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 327

totalidade da realidade social (território-rede). O arcabouço teórico utilizado,


figurando autores como Arenz (2000), Castro (2018), Magalhães (2006) e
Sarraf-Pacheco (2009), valoriza estudos sobre territórios e comunidades ribei-
rinhas amazônicas com identidades histórica e ancestralmente forjadas. Inte-
rações com autores decoloniais, assim como os pensamentos de Paulo Freire
e Boaventura de Souza Santos, embasam nossa discussão sobre os territórios
lócus da pesquisa, os quais, atravessando dinâmicas de ocupação e expansão

or
capitalistas, (re)existem mantendo sociabilidades ribeirinhas.

od V
aut
Decolonialidade e letramento no regime das águas marajoaras

R
A Amazônia é um espaço marcado por disputas: de um lado, agentes
modernos representantes do capital projetam a geração de divisas para merca-
dos a partir dos recursos naturais, reproduzindo riqueza e destruição socioam-

o
biental, e, de outro, povos da floresta e comunidades tradicionais (re)existem
aC
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com modos particulares de vida, ancestralidades, saberes e racionalidades


inscritos na dinâmica com os complexos ecossistêmicos naturais. São pro-
cessos de colonialidade e decolonialidade territorializados nas relações de
visã
poder nestes espaços sociais. Os processos coloniais foram reinventados em
aparatos modernos, com projetos globais de elites alcançando populações e
territórios tradicionais, por meio de relações violentas e aplicação subjetiva
de padrões coloniais atualizados, por detrás de um discurso de progresso. Tal
itor

fenômeno corresponde à Colonialidade, conforme Mignolo (2017).


a re

A Amazônia Marajoara ribeirinha, indígena, africana, mestiça cabocla,


sofre(u) explorações transvestidas de avanços com a instalação de empresas
dos ciclos extrativistas da borracha, do arroz e mais, recentemente, da madeira,
esta última de maior tempo e impacto. Todos os ciclos modificam intensa-
par

mente as relações humano/natureza e de trabalho. As empresas transnacionais


além de modificarem as estruturais nestes territórios, impuseram dominação
Ed

pelo poder, ser e saber frente aos modos de vida tradicionais preexistentes e
territorialmente construídos.
A colonialidade do poder constata a continuidade da existência de
ão

dominação em moldes coloniais mesmo após o fim do período denominado


colonialismo, mantendo zonas periféricas em situação colonial, mesmo
s

sem sujeição a administração de tal caráter (QUIJANO, 2010; BALLES-


ver

TRIN, 2013; GROSFOGUEL, 2008). Soma-se à dominação socioeconômica,


a colonialidade do saber, que diz respeito à rejeição de saberes populares
em detrimento da “prescrição do conhecimento acadêmico com base oci-
dentocêntrica” (LEGRAMANDI; GOMES, 2019, p. 29). Quando se anula o
saber, se quer, em consequência, atingir a essência humana. A colonialidade
328

do ser, por seu turno, é aquela que que se processa por meio da degradação
de seres à posição de objetos (LEGRAMANDI; GOMES, 2019), anulando a
identidade do ser, padronizando pessoas numa tentativa de embraquecimento
e encobrimento do outro.
A colonialidade, de forma geral, alcança diversos espaços sociais. O sis-
tema educacional brasileiro herda características coloniais desde sua gênese,
aplicando uma educação majoritariamente monocultural68, ampliadora da exclu-

or
são e da desigualdade (SANTOS, 2002; LEGRAMANDI; GOMES, 2019). A

od V
razão metonímica ocidental considera a si mesma como único padrão viável, e

aut
a monocultura do saber nega conhecimentos não abrangidos por tal razão. Para
questionar e romper com essa monocultura, Santos (2009) propõe a ecologia
de saberes, a qual identifica “outros saberes e [...] outros critérios de rigor que

R
operam credivelmente em contextos e práticas sociais declarados não existentes
pela razão metonímica” (SANTOS, 2009, p. 24). Na mesma direção, Paulo

o
Freire compreende povos oprimidos/subjugados pelo poder neocolonial, assim
aC

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como processos de resistência na geração de pedagogias emancipatórias e cons-
ciências ético-críticas originadas nos sujeitos subalternos. Dessa forma, “pensar
em como pode-se decolonizar um povo passa, necessariamente, pela educação
dele” (LEGRAMANDI; GOMES, 2019, p. 29). Na educação linguística, a
visã
colonialidade sustenta-se pela manutenção do apontamento de ‘ausências’ ou
‘erros’ em relação a uma norma culta, rejeitando e reduzindo o saber popular.
Assim, decolonizar linguagem e letramentos, significa superar o monolinguismo
itor

(monocultura na linguagem) e as imposições de uma herança educacional euro-


a re

cêntrica, além de avançar em outros processos inscritos na organização social


e modos de vida daqueles socialmente invisibilizados.
As populações dos rios e florestas, a partir de conexões com a força dos
reinos naturais, desenvolveram particulares habilidades, saberes, modos de
par

vida e de trabalho (MAGALHÃES, 2006; SARRAF-PACHECO, 2009). Lidar


com as correntezas das águas, pescar, curar enfermidades através de plantas
Ed

medicinais e realizar extrativismo são práticas comuns desses sujeitos, como


evidenciado no relato de um morador da comunidade ribeirinha marajoara:
ão

Os moradores vivem da pesca do camarão, da produção de açaí e da fari-


nha. Alguns plantam, alguns pescam, [...] e com isso vão levando, para
sobreviver. [...] Eu coloco, assim, o matapi, que eu aprendi, assim, com
s

meu pai e minha mãe (Morador 1 da Vila Intel I, abr. 2019).


ver

68 Este termo faz referência à “monocultura do saber”, da qual deriva uma lógica de produção de “não-existência”
que transforma a ciência moderna e a alta cultura em “critérios únicos da verdade”, arrogando ser um cânone
exclusivo de produção de conhecimento, segundo o qual é inexistente ou inculto tudo aquilo que ele mesmo
não considera ou legitima (SANTOS, 2002, p. 247).
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 329

Os dizeres ilustram a realidade do regime das águas marajoaras, refe-


renciando a “complexa dinâmica que envolve o calendário dos rios” (SAR-
RAF-PACHECO, 2009, p. 50). A essência da sociabilidade e o tempo dos
marajós é definido pelo comportamento das águas. O ritmo da vida ribeirinha,
do trabalho até a devoção religiosa, obedece não ao relógio das instituições,
da indústria, do mercado, da cidade e do capital, mas antes a este “relógio
natural”, cujos ponteiros operam com base na força da natureza, como atesta

or
o relato abaixo:

od V
aut
A maré vai enchendo e vai vazando. Quando tá muito seco, não é todo
lugar que é bom de passar de noite com barco grande, porque encalha na
praia. Mas, barquinho, rabeta, passa tranquilo, porque eles [os pilotos]

R
sabem bem guiar. Mas tem época do ano que isso enche mais que o normal,
quando dá maré lançante. A maresia maior é no verão. Fica mais acalmado

o
no inverno (Moradora 1 da Vila Intel II, jun. 2019).
aC
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Os sujeitos demonstram que as águas que margeiam seus territórios signi-


ficam “a própria organização das paisagens culturais e humanas” (FERREIRA
apud SARRAF-PACHECO, 2018, p. 88), chegando a uma imbricação entre
visã
a história ribeirinha marajoara e o sistema dos rios de maneira tão expressiva
que forjam comportamentos e a identidade sociocultural. Os rios regem a
ribeirinidade69, e por conseguinte todas as práticas sociais desse contexto,
itor

dentre elas, as de letramento, ou seja, práticas relacionadas ao uso de diversos


a re

tipos de leitura e escrita.


Para Soares (2009), leitura é mais que decodificação de letras: implica
diversas habilidades, tais como captar significados, interpretar eventos, entre
outros. Assim, ler o comportamento dos rios permite abstrair informações
utilizadas no seu cotidiano. As escritas realizadas na nomeação de embarca-
par

ções, por exemplo, possuem conexão com práticas socioculturais, tal consta
Ed

no relato abaixo:

O nome do meu barco, eu escrevi bem na parte do casco. Esse nome, eu


ão

mesmo que escrevi, para quando ele estiver amarrado no porto ou quando
estiver quase ancorando saber que aquele barco é meu. Nós, que moramos
no interior, colocamos salmos ou nomes da Bíblia para que a gente seja
s

protegido em nossas viagens (Moradora 1 da Vila Intel II, jun. 2019).


ver

69 O conceito de ribeirinidade aparece pela primeira vez a partir de debates e reflexões de Lourdes Gonçalves
Furtado e Maria Cristina Maneschy, docentes do programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia
da Universidade Federal do Pará, ao publicarem um artigo em coautoria inédito e intitulado Gens de mer et
contraintes sociales: les pêcheurs côtiers de l´etat du Párá, nord du Brésil, em (2002) (NETO; FURTADO, 2015)
330

Os depoimentos são demonstrações vivas de outros saberes e tecnologias,


com história cultural impregnada de símbolos, códigos e relações. E em todos
eles há posturas políticas, éticas e estéticas de uma forma de se relacionar com
a natureza, rompendo a colonialdade do ser, que inferioriza e despreza esses
modos. Visto que o viver ribeirinho liga-se intimamente ao comportamento
da natureza, discutir seu letramento enquanto resistência à colonialidade tam-
bém deve considerar esse fator. As pedagogias decoloniais, como propostas

or
para o ensino, são meios para desconstruir bases epistemológicas de papéis

od V
civilizatórios dos sujeitos, possibilitando reinterpretar a importância de sabe-

aut
res e práticas que foram usurpados pela implantação de projetos globais em
comunidades tradicionais.
Para Freire (1996), a “leitura do mundo” precede sempre a “leitura da pala-

R
vra” (p. 42). No letramento, a diversidade existente no mundo e nos sistemas de
escrita, assim como seus variados usos, são indispensáveis. Qual seja o local,

o
as pessoas primeiro leem o que está sua volta para, nesse contexto, fazerem uso
aC
de conhecimentos de leitura e escrita. Esta concepção converge com o modelo

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


ideológico de letramento proposto por Street (1995), segundo o qual indivíduos
podem ser letrados por suas práticas sociais, sem necessariamente portarem
níveis formais de alfabetização. Existem, então, formas de letramento que se
visã
realizam à margem da escola (STREET, 1995; MARCUSCHI, 2010). Trabalhar
uma educação embasada na compreensão do tempo e do espaço do ribeirinho
trata-se de uma pedagogia decolonial, por evidenciar saberes e práticas que se
itor

originam no contato com o território, contrariando a subalternização operada


a re

pelas colonialidades. No entanto, por vezes, os moradores das comunidades


ribeirinhas percebem que seus saberes e sociabilidades são estigmatizados ou
negados, como transparece no relato de um dos moradores:

Já percebi que frequentemente isso acontece porque temos um jeito [...]


par

do interior e as vezes aquele jeito é o jeito errado, e as vezes as pessoas


ficam rindo da gente, olhando um pro outro. Aqui na Vila, não. Até porque
Ed

a gente temos muito tempo juntos, e por causa da convivência ninguém


se corrige. Em termos de fala, sim, também. As vezes eles ficam rindo e
acabam me corrigindo, mas eu não sou bobo e percebo. Eu acho que meu
ão

conhecimento pode não valer muito, isso porque o conhecimento que eu


tenho da escola é muito pequeno (Moradora 2 da Vila Intel II, jun. 2019).
s

O relato ilustra que o saber escolarizado ou científico é privilegiado


ver

socialmente, ao passo que o saber do ribeirinho é inferiorizado. Sobre esta


relação entre o contexto vivenciado pelos sujeitos no território e seu processo
educativo, na contramão da invisibilidade do “outro”, uma professora atuante
na escola localizada na comunidade ribeirinha Vila Intel I afirma:
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 331

O que a gente busca é fazer uma interrelação, uma interlocução com o


cultural. A gente não interfere muito no cultural, mesmo porque é algo
que a gente tem que respeitar e tentar considerar no ensino. [...] Isso que
a gente busca ensinar a eles. E isso vai desde o primeiro ano (Professora
da Vila Intel I, abr. 2019).

As tentativas do quadro docente em articular a educação e a cultura dos

or
moradores são estratégias para enfrentar o quadro de reprodução da colonia-
lidade presente na educação, onde a apropriação/domínio de leitura e escrita

od V
podem ser uma barreira social para muitos grupos subalternizados, porque a

aut
avaliação escolar é realizada tomando por referência o “padrão legítimo de
uso linguístico” (REZENDE; JÚNIOR, 2018, p. 24). Ainda em relação a tais

R
estratégias, segue o relato de um outro docente:

o
Usamos a grade curricular nacional, mas a gente já cria algumas adapta-
aC
ções, em relação à cultura, à realidade, às questões sociais. A gente é daqui,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

então a gente visa trabalhar daqui o que está mais evidente, a questão da
vulnerabilidade social, a questão das tradições e culturas que a gente vê
aqui no meio (Professor da Vila Intel I, abr. 2019).
visã

Evidenciam-se, dessa forma, esforços para um caminho contrário à con-


cepção de letramento vinculado exclusivamente aos parâmetros escolares, o
itor

qual por Street (1995) é categorizado como letramento autônomo, que sustenta
a colonialidade da linguagem e do saber/poder através de uma alienação das
a re

palavras em relação ao contexto, com “conteúdos que são retalhos da reali-


dade desconectados da totalidade em que se engendram” (FREIRE, 1987, p.
33), numa concepção reducionista geralmente adotada nas escolas urbanas,
privilegiando competências individuais institucionalmente valorizadas. Por
par

outro lado, o “letramento ideológico” (STREET, 1995), abrange uma ampla


dimensão sociocultural, ao reconhecer que o fenômeno diz respeito a um con-
Ed

junto de práticas sociais que envolvem, de quaisquer formas, usos de escrita e


leitura, sejam estas formas dominantes ou subalternizadas (SOARES, 2009;
ão

ROJO, 2009). Pensar pedagogias decoloniais no letramento, portanto, significa


considerar o fator contexto social, além de visualizar relações que subalter-
nizam certos grupos.
s
ver

Sociedades ribeirinhas e saberes das águas e florestas

Estar entrelaçado com a natureza é primordial para os ribeirinhos. A


construção de sua identidade ocorre desde suas primeiras experiências de
vida, numa relação humano/natureza que se constrói no convívio diário, e
332

se materializa por meio de práticas comuns no cotidiano ribeirinho, como


a extração de recursos naturais para produção de alimentos, como a farinha
d’água; a construção de embarcações; a fabricação artesanal de utensílios,
dentre outras atividades que mostram uma certa autossuficiência ribeirinha
frente ao modelo socioeconômico urbano. Nessas atividades, aprendem a
guiar-se pela vastidão dos territórios, como explicitado no relato a seguir:

or
Quando eu era mais nova, minha família me ensinou a conhecer a mata.

od V
E repasso para os meus filhos, eu e o pai deles. Acho bom aqui pras

aut
crianças, elas brincam bastante. Me considero ribeirinha, porque gosto
de morar pra cá pro interior. Aqui... nós faz de tudo, nós pega camarão,
pesca, planta... Depois que tive as meninas, não me vejo assim morando

R
na cidade (Moradora 1 da Vila Magebrás, jul. 2019).

o
Os saberes dos sujeitos marajoaras têm suas próprias racionalidades,
aC
explicações e sentidos atribuídos ao mundo da vida. Os marajoaras possuem

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


entendimentos particulares para “a origem dos rios, dos fenômenos da natu-
reza, das doenças e das práticas de cura [...]” (SARRAF-PACHECO, 2009,
p. 58), o que revela um cabedal característico do amazônida, que sobrevive
visã
perpetuando-se e esgueirando-se entre as tentativas, cada vez mais, invasivas
de repressão e varrimento por parte da lógica modernidade/colonialidade. Tal
lógica opressora de molde colonial foi “manifestada desde a conquista da
itor

região em 1616, e presentificada com a invasão dos projetos globais, os quais


desestabilizaram códigos, saberes locais e princípios de vida” (SARRAF-PA-
a re

CHECO, 2009, p. 58). A decolonialidade contrapõe essa lógica, valorizando


especificidades, culturas e identidades. Nesse sentido, trazemos fragmentos
das experiências vivenciadas junto às crianças da Vila Intel I, em dinâmicas
das oficinas integrantes do projeto de extensão que geraram as informações
par

para este trabalho, descritas nos relatos abaixo.


Ed

Iniciamos as atividades com os alunos do segundo ano do Ensino Funda-


mental Menor, fazendo um círculo e realizando uma dinâmica de apresen-
tação. Logo após, fizemos um passeio, explorando o local. Começamos
ão

perguntando aos alunos se eles conheciam histórias ou mitos da região


que eles aprenderam com seus pais ou avós. Então, os alunos começaram
a citar nomes de histórias, como da Iara, da Cobra Grande70, etc. Em
s

seguida, perguntamos se eles conheciam a história do Boto. Eles disse-


ver

ram que sim, e então começamos a contar a história. Porém, em alguns

70 As citadas estórias “surgidas das lembranças dos sujeitos históricos”, onde figuram seres encantados tais
como o Boto, a Cobra Grande, Iara, sereias e matintas, são lendas ou contos “intimamente ligados aos
elementos da natureza [...] e às representações das moradas dos encantados”, narrativas orais do mundo
amazônico (LEÃO, 2015, p. 04)
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 333

momentos, contávamos algumas partes propositalmente alteradas, e logo


todos percebiam e diziam que a história não era daquela maneira que
estava sendo contada, e sim de outra forma, e então recontavam a história.
Desta forma, pôde-se perceber que os mitos, costumes e superstições
estão entrelaçados com o universo ribeirinho, onde podemos perceber
nessa fala de um aluno, após contarmos que o Boto Rosa teria encantado
a jovem mulher e levado ao fundo do rio, e a engravidado: “Ela pode ter

or
comido um maracujá do Boto também” (Relato escrito por participantes
do projeto de extensão, abr. 2019).

od V
aut
Este rico universo de tradições, por ter o poder de atravessar e fixar-se por
gerações, mesmo coexistindo em disputa com as epistemologias dominantes,

R
nos permite considerá-lo como processo de resistência. Para decolonizar o
saber e o poder, o ribeirinho utiliza seu modo de ler o mundo antes das pala-

o
vras, e isto é o pilar básico de uma educação plural.
aC
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Vila Intel I, Vila Intel II e Vila Magebrás:


experiências, (r)existências e esperanças
visã
A partir de contatos com as comunidades, lócus da pesquisa, em viagens
para realização das etapas do projeto de extensão, no ano 2018, estabelece-
mos uma aproximação dialogada e participativa, interagindo, aprendendo e
itor

escutando sensivelmente relatos das histórias de vida dos sujeitos ribeirinhos.


a re

Metodologias como teatro, conversa, apresentações de vídeos de cunho infor-


mativo/explicativo, dinâmicas em grupo e experiências coletivas do projeto
permitiram conviver com e apreender histórias, tradições e costumes, trazendo
à tona o universo do “reino das águas”71 e florestas.
Historicamente, as referidas comunidades ribeirinhas foram afetadas
par

com a instalação de empresas madeireiras no território para garantir a inte-


gração da região ao mercado nacional e internacional, como dinâmica de
Ed

modernização capitalista e suas promessas de desenvolvimento e felicidade.


Sarraf-Pacheco (2009), em tom crítico, caracteriza a região do Marajó das
Florestas como “matas dominadas pela voraz ganância de elites madeireiras
ão

instaladas na região” (p. 72), onde as empresas transnacionais passaram a


interferir nos modos de vida e formas de organização social sob os parâmetros
s

capitalistas de extração do recurso. Com informações obtidas em oficinas


ver

de grupo72 realizadas nas comunidades, pôde-se inferir que com a migração


houve a inserção de novos membros à dinâmica comunitária local. Dentre

71 Reino das águas é um termo utilizado por Sarraf-Pacheco (2009) para referenciar a região marajoara.
72 As oficinas foram realizadas nos dias 18/05/2019 e 22/06/2019 nas comunidades Vila Intel e II e nos dias
25/05/2019 e 29/06/2019 na comunidade Magebrás.
334

outros fatores, a esperança de trabalho nas empresas madeireiras foi deter-


minante para reconfiguração social das comunidades ribeirinhas. Relatos
dos moradores confirmam: “Meus pais vieram aqui em busca de emprego”
(Morador 1 da Magebrás, julho/ 2019); “[...] atrás de melhorias na parte
financeira” (Morador 1 da Vila Intel II, junho/2019); “[...] para viver mais
tranquilo” (Morador 2 da Vila Intel I, abril de 2019). As falas ilustram a histó-
ria da chegada de sujeitos de outras regiões de várzea, para se estabelecerem

or
próximos às empresas, onde atualmente se encontram às comunidades Vila

od V
Intel I, II e Magebrás.

aut
Neste processo, a identidade tradicional das comunidades defrontou-se
com o modelamento estabelecido por empresas madeireiras para reger vida,
tempo, cultura e economia daqueles ribeirinhos, exercendo certo controle

R
sobre a comunidade com base em “ganhos” e “benefícios” que a empresa
concedera em troca do árduo trabalho, estabelecendo uma relação aproximada

o
a “senhor e servo”, que sujeitou marajoaras a intensas e/ou sobre-humanas
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


jornadas laborais, enquanto os recompensava com regalias, conforme o que
explicita um morador da Vila Intel I, descrevendo os privilégios recebidos:
“Existia uma sede onde aconteciam as festas em datas comemorativas. Tinha
um comércio grande. Os moradores tinham empregos e a energia [elétrica]
visã
era das 6:00hs as 22:00hs” (Morador 1 da Vila Intel I, abril/ 2019). A fala de
outra moradora demonstra felicidade em recordar antigas condições do local:
“Antes, tinha muita casa. Era bonito... muita gente. Era muito bom. Tinha
itor

apoio... Era muito feliz” (Moradora 2 da Vila Intel I, abril/ 2019). Os relatos
a re

seguem, afirmando:

Antigamente a Vila tinha muito mais casas, pessoas, trabalho e vida. Era
diversão pra todo lado... crianças correndo na escola, a empresa funcio-
nando, vizinhos conversando e muitas outras coisas. Quem via aquilo não
par

acreditaria no que vê hoje em dia (Morador 2 da Vila Intel I, abr. 2019).


Ed

A população das vilas foi inserida na diferente sociabilidade trazida pela


instalação da empresa madeireira, que, naturalizando sua hierarquia no territó-
ão

rio, reproduziu relações de dominação que subalternizaram alguns dos modos


de vida tradicionais. Com o passar dos anos, ao se depararem com o fim do
ciclo madeireiro e consequente desinstalação do projeto econômico em razão
s

das denúncias e pressão social e ações federais, as comunidades sofreram um


ver

novo impacto social com a ausência de serviços básicos que eram oferecidos
pela Prefeitura em razão da presença do complexo de madeira na região, ou
seja, há uma interpretação de que os benefícios eram garantidos pela empresa
e não um direito como cidadão brevense. A desconstrução da percepção colo-
nizadora se faz importante para a garantia de sujeitos de direitos. O relato e a
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 335

figura abaixo demonstram o processo em curso de continuidade do processo


histórico de mudanças observadas na sociedade em função do avanço dos
interesses de mercado sobre os territórios tradicionais, contemporizando a
desestruturação socioespacial, provocada por desastres socioambientais via
acirramentos dos conflitos pela terra, racismo/injustiça ambiental e reprodução
da extrema pobreza.

or
Antes a vila era mais feliz, tinha mais gente, a gente comemorava, tinha

od V
festa. Não acabou só a empresa. [...] A vila está acabada, esquecida.... a vila

aut
está destruída. Agora, pra sobreviver, alguns plantam, alguns pescam [...]
e com isso vão levando a vida. [...] os moradores vivem da pesca do cama-
rão e da produção de açaí e farinha (Morador da Vila Intel I, abr. 2019).

R
o
Imagem 1 – Representação produzida por moradores da Vila Intel I, abril de 2019
aC
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visã
itor
a re
par

As sociedades ribeirinhas sofreram e sofrem violações. A exploração da


mão de obra barata, o modelo econômico imposto à região, a intensa explo-
Ed

ração extrativista e a negação/silenciamento de manifestações culturais dos


povos amazônidas fazem-se historicamente presentes. Seus modos de vida
foram estigmatizados como “in-cultos” e “não-redimidos” (Arenz, 2000),
ão

ao passo em que elites dominantes assumiram para si a suposta missão de


torná-los civilizados e “modelados” para se fazerem integrantes subalternos
na sociedade tida como “civilizada”. Insurgindo-se e respondendo a esse
s

processo com luta, determinação e persistência, anota Arenz:


ver

Os ribeirinhos conseguiram resistir a uma colonização total, resgatando


os eixos principais das culturas de seus antepassados indígenas, tanto em
termos econômicos (integração à natureza, extrativismo vegetal) e sociais
(vivência autônoma em pequenas comunidades) quanto em religiosos
336

(prática da pajelança como expressão de sua cosmovisão própria). A língua


portuguesa e a religião católica são” pontes” para o mundo dos “brancos”,
mas não determinaram e nem expressam, por completo, a autonomia social
e cultural dos ribeirinhos (ARENZ, 2000, p. 12).

Os moradores do “beiradão” expressam, em recortes de sua vivência,


formas de resistência, ao transmitir sua cultura oral e mitológica. Reafirmando

or
a configuração das identidades ancestrais herdadas como processos de resistên-

od V
cia, Castro (2018) considera que o acúmulo e transmissão de conhecimentos

aut
entre gerações significam a manutenção de um mundo plural, contrariando
a suposta universalidade/superioridade do saber ocidentocêntrico. Saberes
ribeirinhos, tendo atravessado nascimentos e mortes de ciclos econômicos

R
orquestrados por elites, formam uma cultura dos rios e florestas que não se
deixa ser esquecida pelo tempo. Seu letramento expressa essa resistência,

o
pois, desobedientes de padrões autônomos adotados sobretudo por instituições
aC

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escolares do meio urbano, usos de escrita e leitura são feitos, mesmo que haja
baixo, ou mesmo, nenhum grau de alfabetização. Soares considera que um
indivíduo “pode ser analfabeto, porque marginalizado social e economica-
visã
mente” (SOARES, 2009, p. 24), porém letrado por seu meio social através
de práticas em que usa a leitura e a escrita, direta ou indiretamente. Desse
modo, as diversas práticas sociais realizadas nas comunidades ribeirinhas
marajoaras, tais como os pequenos comércios, as práticas e cultos religiosos,
itor

a nomeação de embarcações, o envio e recebimento de cartas, a audição da


a re

leitura vocalizada por um amigo alfabetizado; todas essas são atividades que
desenvolvem nos sujeitos um letramento que está à margem daquele desenvol-
vido na escola urbana, um letramento ligado sobretudo à sua noção própria de
tempo e espaço, com base no regime das águas marajoaras e a identificação do
par

ser, mesmo após a crise do ciclo econômico imposto à região. Tais processos
de resistência preservam sua cosmovisão, configuram lutas que, inseridas na
Ed

disputa epistêmica inerente a esse contexto, se aproximam da decolonialidade.


Como exemplificação da preservação cultural ribeirinha, cabe anotar um dos
relatos coletados durante visitas à Vila Magebras:
ão

O que eu falo pra minha filha é as lendas, como a do boto, que o pessoal
s

fala essa lenda, e eu falo. Os costumes nossos, eu faço, que aprendi desde
ver

menina, que meus pais me ensinaram e que meus avós ensinaram pros
meus pais. Acho importante repassar a minha cultura e esses conhecimen-
tos pra minha família, mesmo que eles tenham o conhecimento da escola
(Moradora 2 da Vila Magebras, jul. 2019).
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 337

Para Legramandi e Gomes (2019), a resistência decolonial popular tem


estrita ligação com o processo educativo, ao adotar pedagogia que rompa,
transgrida, inverta, desengate-se e desprenda-se dos conceitos e práticas colo-
niais herdadas, evidenciando a cultural local; uma pedagogia forjada junto
ao sujeito – e não forjada para ele – , recuperando sua humanidade, pois uma
pedagogia forjada separada do e transmitida ao sujeito irá lhe tratar apenas
como um objeto, não abrindo margens para seus conhecimentos, que também

or
são emacipatórios (WALSH, 2013, p. 64; FREIRE, 2013, p. 43 apud LEGRA-
MANDI; GOMES, 2019, p. 29). Resistir ao colonialismo enquanto escola, é

od V
contrariar a desumanização, inferiorização, coisificação, alienação cultural,

aut
exclusão, negação e subordinação dos indivíduos, por meio de insurgências.
A insurgência é, para Legramandi e Gomes (2019), o que proporciona a

R
“decolonização de si”. Nesse sentido, processos de resistência empreendidos
pela escola da floresta e das águas podem ser evidenciados pelos esforços de

o
educadores junto à comunidade para a realização de uma educação emanci-
aC
patória. Como saída e esperança em relação à colonialidade, a força e luta de
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

professores juntamente à alegria e envolvimento dos alunos e a comunidade


são vetores-chave para a construção de um fortalecimento de identidades.
Nestes espaços, os educadores buscam meios para fortalecer identidades,
visã
culturas locais e modos de vida da comunidade. Direcionam seus olhares a
questões vivenciadas pelos sujeitos, como a vulnerabilidade social, a busca
por acesso a direitos e a preservação de tradições mesmo diante do avanço
do capital. Esta relação escola/contexto é o que reforça o Professor Waldir
itor

Abreu (apud UFPA, 2019), ao considerar que há uma percepção histórica de


a re

que as comunidades ribeirinhas levam ao espaço escolar não apenas a sua


imediaticidade e presença física, mas também as demandas que envolvem
suas vivências; lutas e resistências por “direito à terra, por direito à saúde,
por direito à educação”, com frequência suficiente para que a instituição
par

compreenda que “precisa estar assentada em um modelo educativo que atenda


às demandas da comunidade”. Aderindo, portanto, a elementos essenciais
Ed

relativos ao contexto das comunidades ribeirinhas marajoaras, as escolas


integrantes destes territórios rurais traçam um caminho de pedagogias deco-
loniais como resistência contra-hegemônica inscrita em letramentos da vida.
ão

Considerações finais
s

Os contatos com as comunidades ribeirinhas aqui analisadas nos aproxi-


ver

maram dos sujeitos através de experiências coletivas de produção de conhe-


cimento embasados no saber local. Estes territórios, de profunda identidade
cultural, foram alvos de violações, explorações, imposições e negligências
históricas, com elites dominantes varrendo culturas que julgavam incultas,
em nome de seu projeto de civilização.
338

As colonialidades que operam na realidade local defrontam-se com a


resistência marajoara ribeirinha, alicerçada num arcabouço cultural das mar-
gens dos rios, saberes adquiridos no relacionar-se com o território de campos e
florestas. Seu letramento é caracterizado como resistência, visto que, distante
de padrões autônomos da educação urbana, os usos de escrita e leitura se dão
até mesmo na ausência de rigorosa alfabetização. As diversas práticas sociais
realizadas nas comunidades ribeirinhas marajoaras desenvolvem nos sujeitos

or
um letramento à margem da escola, ligado à sua noção própria da realidade.

od V
Historicamente, uma hegemonia da cultura erudita ocidental alienou a

aut
autopercepção ribeirinha, grupo que foi então subalternizado e vulnerabilizado.
Para preservar seu sentido de ser e saber, aproximam-se da decolonialidade na
medida em que se empenham em resgatar e manter sua cosmovisão. Esforços

R
de educadores destes meios rurais buscam emancipação humana e a ecologia
dos saberes, lutando, alegrando e envolvendo populares para o fortalecimento

o
de identidades, numa metodologia que volta o olhar a demandas e vivências
aC

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humanas ali existentes.
A hierarquização de saberes acaba por empobrecer os indivíduos que a
adotam, visto que os conhecimentos marginalizados pela modernidade pos-
suem sua igual importância particular. As comunidades tradicionais, margi-
visã
nalizadas, vistas pela epistemologia coloninal como não sabidas, levam este
estigma, marca ou taxação por não estarem assentados no que é validado
pela ciência ocidentocêntrica. Entretanto, seus saberes provêm de um método
itor

onde se testa e aprende com e para o território. Ignorando tais saberes, as


a re

populações vistas como “avançadas” prejudicam-se ao inferiorizar o “outro”,


visto que os saberes urbanos poderiam ser complementados/aprimorados por
conhecimentos que os ribeirinhos desenvolvem sobre a realidade, e a partir
desses conhecimentos fazer uma análise mais aprimorada no caminho da
par

solução de percalços. Quando não se nutre a aversão ao conhecimento do


“outro” e, do contrário, busca-se seu entendimento, há possibilidade de avivar
Ed

expressivas e novas soluções, compartilhando saberes e dando gênese a um


caráter plural da cultura.
s ão
ver
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 339

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visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
DECOLONIALIDADE
PSICOPEDAGÓGICA: conhecimento
teórico-praxiológico aplicado ao

or
contexto social amapaense

od V
aut
Miquelly Pastana Tito Sanches

Introdução

R
o
aC
Neste capítulo, os conhecimentos adquiridos da formação continuada em
Psicopedagogia Institucional são descritos e analisados, sobretudo, da aplica-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

bilidade dos conhecimentos deste Curso/Especialização na realidade de uma


visã
Iniciativa Social no Município de Santana-AP, cujas ações, voltavam-se às
aprendizagens de crianças em situação de vulnerabilidade social e, consequen-
temente educativas na trajetória de suas escolarizações. A relação possível entre
a teoria e a prática desse campo do conhecimento, tornou-se aqui, indispensável
itor

pelo enfoque sociedade-escola-sociedade, em perspectiva decolonial.


a re

Como intitulado, “Decolonialidade Psicopedagógica: conhecimento teó-


rico-praxiológico aplicado ao contexto social amapaense”, apresenta-se de
forma transversal as contribuições decoloniais ao destaque dado à relevância
dos conhecimentos da Psicopedagogia Institucional, e enquanto conhecimento
par

“situado”73, este é problematizado em suas dimensões teórica e prática, e


importante às questões reflexivas de giro decolonial em torno da formação
Ed

em Pós-Graduação. Posto que, na perspectiva decolonial, os conhecimentos


são construídos na/para realidade, portanto, faz-se necessário um olhar cuida-
doso da Psicopedagogia no viés de uma formação mais reflexiva, igualitária e
ão

humana no resgate dos laços de afetividade, respeito e igualdade ao contexto


social amapaense.
Nesse sentido, as ações de cunho sociais em prol de uma educação mais
s

humana, são vivências salutares ao profissional da Psicopedagogia, sendo


ver

assim, espaços com muita ou, em sua maioria, pouca estrutura, mas capazes de
impactar a vida cotidiana e à atuação, em novas experiências. Campo sensível
e de aproximação específica das questões que envolvem as singularidades da
Pós-Graduação, aqui indispensáveis para a compreensão da Psicopedagogia

73 Diagnóstico crítico sobre conhecimentos “situados”, isto é, conhecimentos eurocêntrico-oficiais. Termo criado
por Enrique Dussel (1998).
344

Institucional enquanto conhecimento aplicado ao Social, se propõe o reco-


nhecimento do lugar em que ocorrem as ações sociais, seus/suas envolvidos/
as, as camadas populares e, suas mais diversas peculiaridades.
A Psicopedagogia, em linhas gerais é um campo de conhecimento dentro
de um rol de formações de continuidade nos estudos, aberta aos concluintes
de nível superior, – graduação, ou estudantes na fase final desta. Trata-se do
prosseguimento à habilitação em Pós-Graduação, da qual é tipificada como

or
especialização. Nesse sentido, a Psicopedagogia, como campo específico às

od V
dificuldades no ato de aprender, passou a ser ofertada sob duas formas: Psi-

aut
copedagogia Institucional e Psicopedagogia Clínica.
No que concerne a oferta/divisão da Psicopedagogia, ela envolve a estru-
tura, o acesso, e a atuação do/a profissional. O campo institucional, vale-

R
-se de algumas indagações neste trabalho, são reflexões frente às limitações
de atuação, conhecimento “situado” teóricamente, e de “novos” campos de

o
inserção. Desse modo, indaga-se: quais as contribuições da Psicopedagogia
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Institucional enquanto campo de conhecimento teórico-praxiológico, ora de
exclusividade institucional74, aplicado às iniciativas sociais?
Para responder a esta questão a pesquisa bibliográfica tornou-se oportuna
devido conforme Severino (2007), possibilitar a sua realização a partir do
visã
registro disponível, de pesquisas anteriores, presentes em livros, artigos, teses,
dentre outros. Dessa forma, lança-se para além do que propõe as literaturas
eurocêntricas sobre o tema, a utilização da base teórica da decolonialidade75
itor

e de experiências em uma iniciativa social com crianças do Município de


a re

Santana, no Estado do Amapá, ao Norte do Brasil, formam percurso meto-


dológico imprescindível na realização deste trabalho.
As experiências advindas das ações se realizam enquanto inquietações da
realidade percebida, necessária e urgente em superação. Para tal emergência
par

cabe a contextualização do entendimento de uma epistemologia eurocêntrica, –


colonial, moderna e capitalista assentada na América Latina e por todo o globo,
Ed

portanto presente (QUIJANO, 2010), são ao todo, vivências precárias, que põe
em risco a vida das pessoas, sobretudo o crescimento humano e intelectual de
crianças no quesito qualidade e igualdade de condições. Tais questões, foram,
ão

portanto, historicamente e geograficamente localizadas, fazendo emergir da


e na subalternidade esforços pela mudança.
Desse modo, do ponto de vista do conhecimento Psicopedagógico Ins-
s

titucional, vê-se sobre esta realidade, um saber e atuação localizados, aqui


ver

74 Refere-se ao caráter exclusivo escolar, empresarial e hospitalar, como campo de atuação da Psicopedagogia
Institucional (SERRA, 2012).
75 Conforme Mota Neto (2016), trata-se de um questionamento radical que visa superar as mais distintas
formas de opressão perpetradas pela modernidade/colonialidade, o que significa dizer que as superações
precisam ocorrer em diversos campos possíveis, dado o encontro com o colonial.
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 345

problematizados e levados à subversão de sua base eurocentrada/ocidentali-


zada, dentre as quais busca-se saber: são as contribuições à pratica diária dos/
as profissionais que atuam diretamente nas comunidades, e lidam, portanto, de
perto, in loco, com as dificuldades que se apresentam pela população, espe-
cialmente de crianças e as diversas exclusões, privações e vulnerabilidades
sentidas nas relações sociais.

or
Psicopedagogia: teoria, praxiologia e o viés decolonial

od V
aut
De acordo com Serra (2012) valer-se do conceito de Psicopedagogia
para além de um conceito restrito de objeto de estudo, deve ser conhecido

R
na praxiologia76. Isso porque, a Psicopedagogia institui-se no convívio de
todo ser humano por meio da produção de suas atividades, o qual nos mais
diversos espaços e ambientes se dá com a aprendizagem, pela aprendizagem,

o
o que envolve em si, as fragilidades desse aprender, a prevenção deste, e a
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

aplicabilidade no desempenho das ações coletivas, engajadas em suas espe-


cificidades, partindo da política, economia, sobretudo, da educação que per-
passa o âmbito em que as articulações aparecem como desafios à superações
visã
sociais e educativas.
Data-se assim, no século XIX, o surgimento da Psicopedagogia, – campo
de pesquisa sob as vertentes Teórica e Praxiológica, indissociáveis ao bom
progresso do aprender. Tal como tornando sólidas contribuições, a saber, de
itor

outras regiões do globo, sob a influência eurocêntrica, como a argentina na


a re

difusão do pensamento psicopedagógico, com a epistemologia convergente.


Seus principais representantes segundo Serra (2012) foram Jorge Visca, Alicia
Fernandez e Sara Paín. Na argentina segundo a autora, a psicopedagogia teve
eixo teórico em três áreas da psicologia: a Psicologia Genética de Jean Piaget,
par

a Psicanálise de Freud e a Psicologia Social de Pichon-Rivière.


Outras contribuições teóricas, foram fundamentadas pelas teorias de Vygo-
Ed

tsky, Ana Teberosky e Emília Ferreiro. Entretanto “[...] o berço, a gênese, o


nascimento da Psicopedagogia acontece, de fato, com essas três teorias: Psica-
ão

nálise (Freud), Psicologia Genética (Piaget), Psicologia Social (Pichon-Rivière)


e, é claro, com a herança francesa” (SERRA, 2012, p. 6). Atualmente, a psico-
pedagogia divide-se em duas, Clínica e Institucional. Segundo Serra (2012) a:
s
ver

Psicopedagogia Clínica, de caráter predominantemente curativo. Seu


espaço de trabalho é o consultório, e o atendimento individualizado é
a forma mais comum. A Psicopedagogia Institucional possui caráter

76 Conhecimento teórico do mundo social (BOURDIEU, 1994). A praxiologia concebe explicações ampliadas
e profundas sobre os complexos processos sociais e deste produz ciência.
346

predominantemente preventivo, e normalmente a atuação ocorre com


pequenos grupos de alunos, trabalhadores, pessoas em geral. A área insti-
tucional se divide hoje em três formas de atuação: a escolar, a empresarial
e a hospitalar (SERRA, 2012, p. 6).

O conceito de Psicopedagogia assume hoje a definição de uma ciência


voltada a investigação e proposta mais detalhada na ação de olhar os diferentes

or
processos que envolvem o déficit de aprendizagem, mas especificadamente,
o cognitivo. Como menciona a autora na citação acima, na Psicopedagogia

od V
aut
Institucional, há três formas de atuação, mais adiante, são problematizadas
neste estudo. A psicopedagogia constitui, assim, parte integrante de um estudo
interdisciplinar e necessitou de outros campos de saber para aplicabilidade

R
prática em suas ações frente às dificuldades de aprendizagens.
A Psicopedagogia, por meio deste termo, ganhou espaço nas instituições,

o
principalmente a escolar, onde é espaço que concentra inúmeras dificuldades.
aC
Nesse sentido, o objeto de estudo da Psicopedagogia é a aprendizagem que

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


está circunscrita em um quadro de aspectos que abrange a cognição, afetos
e aspectos sociais. A esse objeto, o processo de aprendizagem baseia-se em
duas importantes áreas: preventiva e terapêutica. A primeira, consiste em
visã
previamente envolver-se com a aprendizagem, a partir de um olhar amplo.
Convida os aspectos já mencionados a participar e reconhecer a importância
de caminhar no olhar do avanço educacional em coletividade. A terapêutica
itor

ocorre por meio de uma problemática específica da pessoa, criança, aluno/a.


a re

Para Bossa (2007) a Psicopedagogia,

[...] estuda as características da aprendizagem humana: como se aprender,


como essa aprendizagem varia evolutivamente e está condicionada por
par

vários fatores, como se produzem as alterações na aprendizagem, como


reconhecê-las, tratá-las e a preveni-las (BOSSA, 2007, p. 24).
Ed

As Teorias que embasam o trabalho psicopedagógico são duas: Abor-


dagem Psiconeurológica e a abordagem Behaviorista. A abordagem Psico-
ão

neurólogica avalia do ponto de vista terapêutico os problemas relacionados


à aprendizagem, a este respeito “Existe uma alteração no funcionamento
cerebral que “atrapalha” o comportamento de aprender”. Nesse sentido, a
s

atenção voltou-se a compreender a parte neurológica que resultava nos pro-


ver

blemas de aprendizagem. Quanto a abordagem Behaviorista, ela se ateve em


explicar que as aprendizagens ocorrem de forma diferenciada, e por diferentes
questões que vão desde individuais, hereditárias, quanto aspectos culturais.
Segundo Scoz em Bossa (2000) a psicopedagogia estuda o processo de
aprendizagem e suas dificuldades, e numa ação profissional ela deve englobar
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 347

vários campos do conhecimento, integrando-os e sintetizando-os, para que


assim se compreenda e atua em sua causa. A Clínica centra-se em trabalhar
com dificuldades mais especificas que dizem respeito a distúrbios e diagnós-
ticos. Enquanto a Institucional realiza-se no campo preventivo, e de encami-
nhamento de eventuais possibilidades nessas dificuldades. Ambas estreitam
uma relação de dependência, todavia, separadamente, conseguem se organizar:
uma no campo mais clínico e a outra em campo mais social e coletivo.

or
Logo, o termo praxiologia se propõe nos estudos de Pierre Bourdieu

od V
(1994) no abandono de uma teoria em que nela a prática é mecânica, onde

aut
as questões já são/estão determinadas. No caso da Psicopedagogia, vê-se
historicamente a atuação deste campo de conhecimento ligado à uma “prática

R
social” que posiciona um saber localizado, restrito, dependente e laboral a
partir de uma percepção prática que precisa ser realizada institucionalmente,

o
e, portanto, em perspectiva decolonial, a superação é urgente.
Na concepção de Bourdieu (1994), o social é mais abrangente, complexo,
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

sendo necessário uma relação ser estabelecida na autonomia. Isso, se constata


com as ações e/ou iniciativas sociais que utilizam dos saberes psicopedagógi-
cos como proposta de uma ação na aprendizagem in loco, portanto, distante
visã
daquelas em que situado está a psicopedagogia Institucional, isto é, histori-
camente ocidental. Considera-se a partir deste olhar mais ampliado, que os
estudos de Bourdieu (1994) veem a praxiologia modo de prática autônoma
e, portanto, capaz de produzir conhecimento que considera prioritariamente
itor

o conhecimento do social para o teórico de sua discussão. A psicopedagogia


a re

Institucional, portanto, para além de perceber o problema do/a aluno/a, da


criança em espaços institucionais formais, ela é um importante conhecimento
do campo social informal.
par

A busca de novas propostas pedagógicas que resgatem os


laços de afetividade no contexto da aprendizagem social
Ed

Na concepção de Wess (1992), na educação, a psicopedagogia busca a


ão

melhoria da relação com a aprendizagem e envolve principalmente a quali-


dade nos laços de afetividade de alunos/as e professores/as. A respeito disso,
o artigo de Elisandra Mottini Freschi e Márcio Freschi (2013) abordam ques-
s

tões relacionadas ao bom convívio entre esses atores e demais profissionais


ver

no ambiente escolar, partindo da importância de manter as interações sociais


para a garantia da qualidade na construção da aprendizagem nesses espaços.
Segundo Freschi e Freschi (2013), as relações afetivas no contexto da
escola são importantes no rendimento dos/as seus/suas envolvidos/as. As rela-
ções, quando comprometidas, resultarão ao processo educativo: dificuldades.
348

Na relação professor/a-aluno/a, é importante que o/a professor/a perceba seu/


sua aluno/a dentro de um contexto cultural, sabendo que este tem inúmeras
experiências que poderão ser dialogadas, e num momento de trocas de infor-
mações, é importante aproximar o/a aluno/a de sua realidade, ao passo que
juntos, professor/a-aluno/a, possam construir sólida relação interpessoal.
Os/As estudiosos/as, também chamam a atenção para a questão das rela-
ções entre os papéis de aluno/a-aluno/a e das divergências que são possíveis

or
de serem apresentadas em sala de aula por parte desses. Relatam, portanto,

od V
o papel do/a professor/a de ser o/a mediador/a, de modo que as relações não

aut
se fragilizem e/ou tornando o ambiente desarmonioso entre os/as alunos/as.
Para tanto, os/as pesquisadores/as da temática, reforçam ainda a atenção em

R
razão da afetividade, do carinho, amor, compreensão no ambiente escolar com
todos/as os/as seus/suas integrantes, em especial vivenciando a realidade da

o
escola, e articulando saberes diversos.
Para os autores, a realidade do ambiente de trabalho escolar precisa ir
aC

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além da prática do dar aula e do estar em sala de aula, necessita primeiramente
de um ambiente harmonioso, e logo, motivador para que ocorra a aprendi-
zagem. Afirmam que é por meio das interações entre seus participantes que
visã
isto é possível.
Desse modo, percebe-se a relevância da afetividade no ambiente esco-
lar e das relações interpessoais. Diante de uma análise mais atenciosa das
itor

relações sociais, essas não podem ser restritas as coordenações pedagógicas,


a re

as salas gestoras, as secretarias, as cantinas, ou as salas de aula, ou seja, res-


tritas ao espaço educacional formal. Vislumbra-se a afetividade em espaços
informais como perspectiva de alcance social e das vulnerabilidades de apren-
dizagens que dialogam com os processos que ocorrem dentro do ambiente
escolar formalizado.
par

Trata-se de uma intervenção in loco, uma realidade em que a afetividade


é extremamente indissociável do aprendizado. Nesta seção, buscou-se apre-
Ed

sentar, um olhar às ações ou iniciativas sociais não estão descritas como uma
atuação de psicopedagogos/as. Levando em consideração a práxis Psicope-
ão

dagógica da realidade, Vygotsky (1994) ressalta a importância das relações


interpessoais, e esta, sob sua afirmação não se trata apenas do ato de construir
conhecimento, mas para além disso, envolve a própria formação do sujeito,
s

possibilitando suas ações nos espaços em que vivem.


ver

Para tanto, vale ressaltar que a Europa estabeleceu palco da criação dos
processos que envolveram o pensar das fragilidades da aprendizagem, exa-
tamente articulando campo de estudo específico que pudesse dar a atenção
devida as dificuldades que se acendiam no país, tendo como referência o
aprender. O que não se pode esquecer é que as dificuldades de aprendizagem
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 349

constituíram anseios, desigualdades e discrepâncias de uma sociedade, sobre-


tudo, ao perfil de sociedade do modelo europeu, designando assim aprendi-
zagem (do ponto de vista normativo) e não aprendizagem (do ponto de vista
patológico), em suma, rendeu-se ao caráter patológico a partir do normativo,
e em que pese às discussões sociais, a decolonialidade, enquanto categoria de
análise teórica começou a ser desenvolvida recentemente no universo acadê-
mico, ampliando olhares sobre a produção histórica como o de conhecimentos

or
inseridos numa “cultura” educacional privilegiada, e colonial, em vista de

od V
outros espaços para sua integração.

aut
Sua genealogia busca nas vozes, nas memórias e nas histórias dos sujeitos
marginalizados e subalternizados pelos processo de exploração e dominação
colonial, a reconstrução dos significados culturais, políticos e econômicos esca-

R
moteados pelo processo de colonização instituído sob a égide da Modernidade,
nesta discussão, Mota Neto (2016) vai a fundo, principalmente pelas análises

o
de Paulo Freire e Orlando Flas Borda. A decolonialidade segundo Mota Neto:
aC
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Trata-se de uma concepção [...] marcada por uma busca persistente pela
autonomia, o que só pode ser entendido se tivermos em conta que a deco-
lonialidade tem sido elaborada a partir das ruínas, das feridas, das fendas,
visã
provocadas pela situação colonial. Portanto, é a partir da dor existencial,
da negação de direitos (incluindo os mais elementares, como o direito
à vida), da submissão de corpos e formas de pensamento, da interdição
itor

a uma educação autônoma que nasce a concepção decolonial (MOTA


NETO, 2015, p. 49).
a re

Em face disso, propõe-se pensar esse ambiente de harmonia, na educação


informal que se dá na experiência de iniciativas sociais que se realizam por
diversificadas pessoas. Logo, avança-se pela Decolonialidade Psicopedagó-
par

gica, como uma intervenção que prioriza o sujeito e seu contato direto com
o espaço em que vive, portanto, suscetível à aprendizagem. Nesse sentido, a
Ed

decolonialidade é entendida como um estudo que se volta ao campo social de


discussão, enquanto teoria que escava as fendas, feridas e processos de nega-
ções deixadas e adquiridas pela epistemologia de base eurocêntrica, moderna,
ão

colonial do sistema mundo europeu, fazendo pensar e repensar culpabilidade


na fragilidade dos alunos, professores, e sobre estes, a responsabilidade de
s

corrigir uma epistemologia, no cenário que é outro, além de subjuntivo, é


ver

social e marcado por diferentes questões vulneráveis que atravessam sobretudo


o ambiente educacional.
Através de iniciativas na comunidade, nos bairros, nas ruas e avenidas,
as propostas pedagógicas têm surgido e resgatado os laços de afetividade no
contexto da aprendizagem social. No Amapá, reserva-se a seção a seguir, como
350

uma intervenção Psicopedagógica com crianças da comunidade Santanense.


As experiências surgem como relato para se ir além, romper com determi-
nações que foram limitadas e/ou circunscritas do ponto de vista histórico e
geograficamente situado do conhecimento e de sua aplicabilidade.

Experiências decoloniais: a psicopedagogia


e a iniciativa social Realize-AP

or
od V
O Projeto Realize: Oficinas Pedagógicas, é uma iniciativa informal, de

aut
cunho social, idealizada pelo anseio pessoal de contribuir com a educação de
crianças em vulnerabilidade social e com dificuldades educativas relacionadas

R
aos cinco primeiros anos do ensino fundamental, matriculadas em escolas
públicas no Município de Santana-AP.

o
Em 2016, o REALIZE foi selecionado pelo Edital da Brazil Foundation
(BF) em seu projeto pioneiro intitulado de “Prêmio de Inovação Comunitária”
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


sendo principal fornecedor de recursos materiais durante o período de três
meses. Carinhosamente as iniciativas informais como o Realize, chamam-se
de OP (=Outra Parada), por não haver inscrição/CNPJ, mas foram amadrinha-
visã
dos por associações ligadas à BF. O Realize recebeu o 1º Prêmio de Inovação
Comunitária da BF em 2016 que teve como Madrinha a Associação Florescer
no Estado do Amapá.
itor

A metodologia do Projeto, voltou-se às crianças que estavam à cursar


os cinco primeiros anos do ensino fundamental (1º ao 5º) com faixa etária
a re

de 6 a 11 anos de idade, atendidas sob o requisito de estarem matriculadas e


frequentes nas escolas públicas no Município de Santana, AP. As atividades
do Realize, dentre o período que esteve ligado à BF, ocorreram duas vezes
no ano, seguindo a lógica de 3 (três) consecutivos meses no 1º semestre e 3
par

(três) meses no 2º de 2016, dentro de um cronograma que ofertou 10 (dez)


oficinas, 1 (uma) a cada semana, aos sábados. As oficinas foram organizadas
Ed

e ministradas por diferentes professoras e professores voluntárias/os.


Em vista disso, apoiando-se sobre as atividades a serem desenvolvidas
ão

no âmbito do projeto, e a realidade diversa e social das crianças, como ponto


comum, identificou-se a dificuldade de aprendizagem, e isto serviu de base
às análises sobre o pouco envolvimento das crianças em algumas atividades
s

no interior do projeto, levando a atuação Psicopedagógica priorizar o contato


ver

das crianças por meio do reforço escolar a partir de suas experiências coti-
dianas. Dessa dimensão, o convívio com as crianças, permitiu perceber que
isto precisava de mais atenção.
De certo, a educação, é um dever de todas e todos os envolvidos na
sociedade (BRASIL, 1988). No que concerne ao dever do Estado, criou-se
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 351

especificidades que pudessem direcionar os sistemas educacionais informais


de ensino, possibilidades de erradicar fragilidades educativas que assim se
apresentavam nos ambientes educacionais formais. Mediante isso, o cená-
rio de formação continuada cresceu nas últimas décadas, especificando os
conhecimentos, tornando-os densos, ao sentido do objetivo e especificidades
das áreas de atuação.
Tal como, para além disso, vê-se o envolvimento da sociedade civil

or
na compreensão e execução ativa das questões que impactam o dia a dia

od V
da sociedade. De acordo com Gohn (2011) a educação tem seu papel na

aut
aprendizagem e participação social em ações coletivas, engajadas em espe-
cificidades. No caso do Realize, o objetivo comum foi o de contribuir com
o desenvolvimento social e com a aprendizagem das crianças em vistas de

R
suas fragilidades escolares.
Na área da educação, a autora se posiciona “o compromisso ético e a

o
opção pelo desenvolvimento de propostas que tenham como base a participa-
aC
ção social pelo protagonismo da sociedade civil exigem clara vontade política
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

das forças democráticas” Gohn (2011, p. 311). Na razão de construir por meio
dos movimentos sociais, significa, portanto, resistir aos modelos de injustiça.
Corroborando esta afirmação, Vygotsky (1994) apresenta ainda a media-
visã
ção como aspecto fundamental da aprendizagem, e isto se dá pela intensifi-
cação dos processos interativos entre as pessoas, como ocorrido no projeto
Realize. Portanto, Candau (2012) ressalta a necessidade do sentido da educa-
itor

ção ser ressignificada, o/a educador/a como agente social, assume importante
a re

papel frente aos desafios de considerar os saberes e culturas no dia a dia de


sua prática educativa.
Assim, falar de outros lugares e saberes, como o dos movimentos sociais,
das culturas, por exemplo, é medida indispensável ao ser professor/a, psico-
pedagogo/a, pois se fala da realidade dos indivíduos, da realidade tal como
par

ela é, percebendo assim cada criança em particular.


Ed

Edgardo Lander (2005), responsável pela crítica à Colonialidade do Saber


na esfera do conhecimento eurocentrado, corrobora que os conhecimentos
fazem parte, sobretudo, da subordinação da periferia pelo centro europeu
ão

como vertentes do pensamento hegemônico na América Latina, são coloniais/


eurocêntricos. Desse modo, um substrato colonial é reflexo da distribuição
de conhecimentos tidos como legítimos, universais e limitadores. De acordo
s

com o autor: “as ciências sociais ensinam quais as ‘leis’ que governam a
ver

economia, a sociedade, a política e a História. O Estado, por sua vez, define


suas políticas governamentais a partir desta normatividade certificadamente
legitimada” (LANDER, 2005, p. 81).
A pensar nisso, nossas instituições foram se preocupando com a cultura,
com o social, todavia, a passos lentos e distantes e até por vezes, uma realidade
352

sendo apresentada por teorias fundantes de um pensamento localizado. Assim,


retomando ao que Bourdieu (1994) problematizou, é valido lembrar a neces-
sidade de um conhecimento teórico que emerja da prática.
Algumas aproximações já são possíveis, em especifico o caráter psico-
lógico, pensando o termo diferença como características físicas, sensoriais,
cognitivas e emocionais que particularizam e definem cada indivíduo, evi-
dencia que a questão da diferença tem estado presente na reflexão pedagógica

or
principalmente por meio da aproximação dessa corrente, todavia, tal relação se

od V
mostra mínima no entendimento das particularidades dos indivíduos no campo

aut
social e cultural. E por se tratar da perspectiva intercultural, precisa-se haver
uma incorporação pedagógica, capaz de valorizar no sentido mais amplo das

R
culturas, indo a elas, reconhecendo-as, firmando-as num processo de construção
prática-teoria, praxiologia.

o
Assim, conhecimentos de psicopedagogia Institucional aplicados às
iniciativas sociais, somam-se enormes contribuições nas aprendizagens
aC

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das crianças. Ao todo, o cotidiano experimentado, atividades que incluíam
o fazer in loco nas diversidades de oficinas, possibilitaram a ampliação no
campo de conhecimento teórico-praxiológico deste curso, para além de suas
visã
atuações formais.

Considerações finais
itor

Historicamente, as desigualdades econômicas, políticas e epistêmicas,


a re

foram inculcadas pela colonialidade/modernidade na sociedade. Frente a isso,


pessoas da comunidade despertam um fazer social que tem impactado posi-
tivamente a vida de inúmeras pessoas na realidade em que vivem, e isso é
constatado principalmente pelo viés da decolonialidade, como um protago-
par

nismo que busca na subalternidade e por ela exercer atividades que superem
as desigualdades existentes.
Ed

Assim, dedicou-se neste trabalho a perceber esta e outras questões pelo


projeto Realize, bem como evidenciar que a busca pela habilitação Psico-
ão

pedagógica aplicada ao social, vislumbra novas propostas pedagógicas que


resgatem os laços de afetividade no contexto social amapaense.
Os conhecimentos provenientes da habilitação Psicopedagógica reve-
s

lam contribuições satisfatórias no desenvolver das atividades e das fragi-


ver

lidades de crianças. Esse conhecimento se tornou imprescindível quanto


às experiências ao idealizar, exercer a docência e coordenar a iniciativa
no contexto social amapaense. Em vista disso, as demandas de aprendiza-
gem, sobretudo relativas aos cinco primeiros anos do ensino fundamental
das crianças que integraram o projeto em 2016, refletiram necessidade de
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 353

contínua busca pelo conhecimento, despertando interesse pelo curso de


Psicopedagogia, a priori estudo restrito às instituições, e que no dia a dia
das ações, mostraram-se imprescindíveis.
Desse modo, “Decolonialidade Psicopedagógica”, portanto, é projetada
aqui como busca de novas propostas pedagógicas que resgatem os laços de
afetividade no contexto social amapaense, não somente envolvidos em limites
institucionais, mas para desconstrução/ampliação de debates a partir de dis-

or
cursos texativos entorno do que é a “normalidade” e o que foge à ela, isto é,

od V
da projeção patológica em torno do Ser. Os conhecimentos da Psicopedagogia

aut
Institucional, como se vê na abordagem feita neste estudo, se aplicam, assim,
significativamente pelo protagonismo subalterno da comunidade civil, de
modo que colabora na superação das distintas formas de negação, opressões

R
e desigualdades, atreladas a herança colonial, moderna e capitalista em que
se encontra a sociedade.

o
aC
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visã
itor
a re
par
Ed
s ão
ver
354

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VYGOSTSKY, Lev Semyonovich. A formação social da mente. 5. ed. São


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ÍNDICE REMISSIVO

or
Aprendizagem 26, 28, 30, 44, 47, 51, 61, 69, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 137, 158,

od V
161, 180, 181, 182, 183, 184, 274, 275, 277, 299, 300, 315, 320, 345, 346,

aut
347, 348, 349, 350, 351, 352

R
B
Brasileira 28, 29, 30, 52, 55, 56, 57, 61, 81, 98, 105, 106, 108, 120, 121, 125,

o
131, 167, 186, 189, 220, 222, 225, 229, 238, 240, 245, 246, 247, 250, 256,
257, 266, 268, 273, 292, 299, 339, 354, 367, 372
aC
C
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Campo da educação 23, 24, 27, 28, 55, 56, 57, 67, 71, 76, 125, 132, 318
visã
Capitalista 16, 24, 26, 32, 86, 97, 99, 102, 106, 116, 122, 184, 194, 200, 211,
229, 262, 282, 283, 284, 285, 286, 288, 289, 290, 296, 298, 333, 344, 354
Coloniais 15, 16, 25, 27, 32, 40, 41, 50, 54, 57, 62, 68, 82, 111, 113, 114,
itor

120, 190, 208, 227, 231, 234, 245, 285, 286, 293, 295, 296, 303, 327, 328,
a re

337, 339, 351, 354


Colonialidade 15, 16, 17, 23, 24, 25, 26, 27, 30, 31, 32, 33, 36, 37, 38, 39,
40, 41, 42, 46, 48, 49, 50, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 67, 68, 76,
77, 80, 82, 86, 87, 97, 98, 99, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 111, 113,
par

117, 118, 119, 120, 121, 122, 133, 135, 166, 172, 175, 176, 179, 184, 186,
187, 192, 193, 194, 196, 197, 203, 220, 225, 226, 227, 228, 231, 232, 234,
Ed

235, 237, 238, 245, 262, 268, 283, 284, 285, 286, 287, 288, 289, 290, 293,
294, 296, 297, 298, 303, 306, 309, 310, 314, 315, 327, 328, 330, 331, 332,
337, 339, 340, 344, 351, 352, 354
ão

Colonialidade do poder 36, 60, 64, 111, 119, 133, 166, 175, 187, 225, 231,
232, 235, 283, 287, 288, 289, 294, 310, 314, 327, 340, 354
s

Colonialidade do saber 33, 76, 133, 166, 186, 187, 203, 220, 235, 237, 238,
ver

283, 284, 288, 293, 294, 309, 315, 327, 351


Colonialismo 25, 27, 36, 37, 39, 40, 42, 55, 56, 57, 59, 76, 81, 86, 98, 99,
101, 102, 105, 114, 115, 172, 179, 192, 193, 219, 230, 241, 245, 246, 251,
283, 287, 296, 297, 327, 337
Colonização 55, 56, 82, 106, 113, 119, 123, 174, 175, 176, 179, 193, 198,
205, 206, 210, 211, 218, 228, 270, 281, 283, 284, 295, 297, 325, 335, 349
356

Comunidades 11, 17, 18, 65, 67, 72, 102, 116, 164, 177, 193, 198, 199, 200,
205, 209, 211, 215, 228, 240, 247, 248, 257, 258, 259, 260, 261, 264, 265,
266, 268, 270, 271, 275, 277, 289, 313, 316, 317, 318, 320, 325, 326, 327,
330, 333, 334, 336, 337, 338, 339, 345, 367
Constituição 38, 40, 42, 43, 44, 48, 50, 51, 70, 92, 103, 106, 124, 189, 215,
218, 219, 229, 240, 246, 257, 258, 283, 289, 290, 299, 305, 306, 308, 311, 326

or
Contexto da educação escolar 122, 256, 261, 264
Crianças quilombolas 10, 17, 269, 271, 272, 273, 274, 275, 277, 278

od V
aut
Crítica 11, 25, 26, 27, 30, 31, 32, 35, 36, 37, 38, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46,
47, 48, 49, 51, 52, 54, 55, 57, 62, 65, 66, 68, 73, 76, 79, 81, 83, 86, 95, 101,

R
111, 113, 115, 117, 118, 124, 134, 136, 154, 165, 167, 202, 223, 225, 292,
294, 296, 311, 313, 314, 315, 316, 319, 323, 339, 341, 351, 354

o
Crítica e pedagogia decolonial 25, 42, 54, 57, 83, 95, 111, 323
aC
Culturas 15, 16, 18, 30, 44, 51, 60, 69, 88, 90, 95, 100, 113, 118, 119, 120,

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121, 125, 135, 139, 147, 163, 174, 185, 202, 210, 211, 228, 241, 269, 279,
289, 331, 332, 335, 337, 351, 352, 367, 369
Currículo cultural da educação 282, 287, 290, 293, 294
visã

D
Debate 30, 41, 42, 43, 48, 53, 56, 57, 58, 59, 67, 71, 76, 79, 91, 115, 202,
itor

231, 235, 237, 240, 241, 242, 282, 284, 285, 287, 299, 315
a re

Desenvolvimento 25, 31, 37, 47, 70, 89, 90, 92, 100, 101, 106, 108, 126,
137, 164, 189, 190, 199, 205, 211, 212, 255, 281, 290, 295, 297, 298, 313,
315, 317, 318, 321, 326, 333, 351, 354, 367
Diálogo 18, 23, 25, 27, 30, 38, 44, 48, 51, 53, 55, 56, 59, 60, 64, 67, 69, 72,
par

77, 78, 107, 109, 117, 119, 120, 135, 136, 158, 161, 171, 173, 183, 191, 193,
Ed

215, 217, 219, 222, 226, 227, 228, 238, 239, 249, 259, 275, 278, 292, 314,
318, 321
Direitos 4, 88, 93, 107, 108, 195, 214, 215, 218, 223, 225, 230, 238, 240,
ão

242, 244, 247, 249, 259, 262, 274, 287, 302, 308, 309, 318, 320, 326, 335,
337, 340, 349
Diversidade 40, 46, 78, 89, 91, 97, 98, 99, 106, 109, 110, 127, 128, 143, 147,
s

177, 201, 210, 215, 243, 257, 292, 299, 303, 308, 314, 322, 330, 365, 370
ver

E
Educação do campo 9, 57, 78, 97, 98, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110,
111, 267, 365, 369
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 357

Educação em perspectiva decolonial 9, 55, 58, 60, 62, 72


Educação escolar indígena 18, 295, 296, 299, 303, 304, 308, 309, 317
Educação escolar quilombola 10, 17, 255, 256, 257, 259, 260, 261, 264,
265, 266, 267
Educação intercultural na américa 54, 57, 83, 95, 111, 164, 167, 323
Educação na Amazônia 13, 68, 82, 116, 126, 128, 131, 370, 371, 372

or
Educação popular e pensamento 43, 54, 81, 127, 133, 322, 354

od V
Educacional 24, 28, 32, 45, 51, 56, 57, 61, 88, 90, 91, 114, 115, 116, 118,

aut
121, 127, 142, 245, 260, 261, 265, 266, 278, 281, 289, 303, 305, 307, 316,
328, 346, 348, 349, 354, 371

R
Educativas 13, 18, 19, 29, 30, 89, 91, 116, 184, 186, 190, 192, 216, 262, 266,
268, 274, 275, 276, 316, 320, 322, 343, 345, 350, 351, 365, 366, 372

o
Energia de resistência 37, 38, 39, 42, 50, 86, 101, 102, 103, 104, 109
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Epistemologias 25, 33, 36, 52, 60, 61, 63, 66, 67, 69, 72, 76, 81, 111, 119,
134, 139, 165, 166, 199, 234, 246, 284, 286, 290, 293, 311, 333, 339, 340
Escolas 11, 16, 18, 61, 67, 110, 111, 125, 140, 144, 148, 149, 155, 190, 192,
visã
197, 211, 217, 255, 258, 259, 260, 264, 267, 295, 296, 298, 299, 300, 301,
303, 308, 309, 311, 313, 319, 331, 337, 350
Estudos subalternos 16, 41, 50, 113, 114, 115, 117, 118, 122, 124, 125, 129,
itor

130, 132, 133


a re

Eurocêntrica 23, 24, 26, 37, 41, 49, 59, 60, 63, 86, 99, 100, 101, 104, 116,
117, 118, 139, 172, 174, 183, 195, 199, 200, 206, 207, 208, 218, 285, 289,
296, 297, 299, 308, 328, 344, 345, 349
Eurocentrismo 33, 36, 53, 57, 58, 59, 60, 67, 77, 110, 117, 133, 135, 138,
par

166, 186, 187, 190, 192, 193, 198, 201, 203, 206, 207, 208, 218, 220, 235,
245, 291, 293, 294, 310
Ed

Existência 48, 67, 70, 74, 75, 99, 101, 109, 123, 157, 174, 182, 211, 214,
215, 222, 228, 238, 241, 242, 248, 249, 282, 284, 289, 290, 292, 293, 303,
ão

305, 326, 327, 328

F
s

Feminismo 231, 234, 237, 238, 241, 242, 243, 244, 246, 250, 251
ver

Formação de professores indígenas 11, 18, 311, 313, 314, 316, 322

G
Gênero 14, 29, 39, 46, 50, 58, 60, 73, 75, 98, 106, 107, 114, 127, 192, 238,
358

240, 242, 245, 246, 250, 251, 261, 265, 271, 274, 285, 291, 354, 370
Global 16, 26, 27, 33, 38, 52, 53, 55, 75, 80, 97, 103, 104, 118, 119, 186,
196, 202, 207, 225, 234, 235, 283, 284, 291, 292, 293, 297, 314, 323, 339

H
História da educação 9, 13, 16, 56, 58, 62, 82, 98, 113, 114, 115, 116, 120,

or
121, 122, 123, 125, 126, 127, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 366, 370, 372

od V
I

aut
Identidade 39, 54, 70, 87, 99, 105, 118, 121, 128, 165, 186, 189, 210, 211,
240, 242, 258, 261, 262, 263, 264, 267, 268, 279, 294, 297, 300, 319, 328,
329, 331, 334, 337
R
Indígena 18, 57, 60, 175, 177, 199, 210, 289, 294, 295, 296, 299, 300, 301,

o
302, 303, 304, 305, 308, 309, 313, 314, 316, 317, 318, 319, 320, 322, 327, 366
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Intelectuais 17, 23, 24, 38, 55, 57, 58, 59, 60, 73, 86, 103, 104, 107, 108,
109, 113, 115, 116, 125, 126, 127, 128, 131, 132, 135, 172, 193, 197, 209,
223, 224, 225, 229, 234, 238, 241, 252, 283, 314, 369
visã
Intelectual 28, 39, 40, 46, 53, 57, 68, 72, 73, 76, 103, 104, 115, 125, 126,
130, 139, 154, 174, 190, 193, 194, 196, 209, 222, 223, 238, 240, 241, 244,
284, 318, 344
itor

Interculturalidade 11, 25, 26, 27, 42, 47, 48, 52, 54, 56, 57, 70, 78, 83, 95,
a re

111, 119, 131, 136, 137, 167, 299, 304, 313, 314, 315, 316, 323

L
Lutas 14, 16, 18, 19, 47, 48, 58, 60, 62, 65, 66, 87, 103, 104, 105, 107, 108,
par

109, 177, 194, 197, 229, 232, 238, 239, 246, 249, 265, 286, 287, 288, 289,
314, 336, 337
Ed

M
Modernidade 15, 16, 23, 24, 25, 26, 27, 30, 32, 33, 36, 37, 38, 39, 40, 41,
ão

42, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 53, 55, 63, 67, 74, 75, 86, 87, 95, 97, 98, 99, 100,
101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 113, 117, 118, 119, 120, 122, 166, 172,
s

175, 183, 186, 190, 192, 193, 194, 195, 196, 201, 206, 207, 208, 218, 220,
ver

225, 232, 246, 279, 281, 283, 284, 285, 286, 291, 292, 296, 297, 310, 315,
332, 338, 344, 349, 352
Movimentos sociais 14, 15, 23, 26, 27, 30, 32, 38, 42, 51, 56, 57, 58, 62, 66,
67, 82, 97, 103, 104, 107, 108, 109, 116, 122, 197, 202, 225, 226, 257, 265,
310, 314, 315, 351, 354, 369
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 359

N
Natureza 31, 39, 49, 69, 72, 126, 127, 128, 135, 158, 161, 173, 175, 176,
177, 180, 191, 199, 237, 240, 258, 272, 275, 301, 302, 313, 316, 318, 320,
327, 329, 330, 331, 332, 335, 366, 369

or
Opressão 16, 32, 62, 66, 74, 75, 76, 87, 97, 117, 172, 173, 192, 193, 197,
225, 228, 231, 242, 243, 245, 246, 248, 249, 259, 309, 315, 344

od V
Organização 11, 18, 44, 51, 66, 74, 100, 148, 179, 180, 183, 189, 214, 227,

aut
240, 244, 260, 261, 287, 288, 297, 300, 303, 304, 307, 308, 309, 325, 326,
328, 329, 333

P R
o
Patriarcal 60, 105, 244, 282, 284, 285, 286, 288, 289, 290, 295, 296, 298
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Pedagogias decoloniais 3, 4, 7, 9, 11, 13, 14, 15, 16, 18, 21, 35, 36, 39, 41,
42, 43, 50, 57, 58, 86, 87, 97, 98, 104, 107, 109, 136, 198, 199, 313, 315,
316, 330, 331, 337, 365, 366, 367, 368, 369, 370, 372
visã
Pensamento 10, 14, 23, 24, 25, 26, 27, 31, 33, 38, 40, 43, 54, 55, 56, 57, 58,
60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 74, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 86, 87, 90, 93, 94,
97, 98, 102, 103, 105, 107, 108, 109, 111, 113, 119, 120, 121, 127, 129, 133,
itor

134, 146, 172, 173, 179, 186, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 196, 197, 199,
200, 202, 221, 222, 225, 226, 230, 231, 232, 233, 234, 235, 240, 244, 260,
a re

262, 281, 282, 283, 284, 285, 286, 287, 290, 291, 292, 293, 296, 303, 304,
314, 315, 322, 339, 340, 345, 349, 351, 352, 354
Pensamento afrodiaspórico 78, 79, 80
par

Pensamento decolonial 10, 14, 40, 43, 54, 55, 56, 57, 74, 81, 86, 87, 97, 98,
102, 103, 105, 107, 108, 109, 127, 133, 146, 172, 191, 192, 193, 194, 195,
Ed

196, 197, 199, 200, 221, 222, 225, 226, 230, 231, 232, 233, 281, 282, 283,
285, 286, 287, 290, 291, 293, 296, 303, 304, 314, 322, 354
Populações 13, 55, 58, 67, 73, 139, 143, 144, 162, 177, 189, 200, 206, 210,
ão

218, 220, 232, 247, 260, 264, 281, 306, 307, 310, 318, 327, 328, 338, 365,
366, 372
s

Povos indígenas 16, 18, 67, 109, 121, 196, 199, 211, 295, 299, 303, 304,
ver

305, 306, 307, 308, 309, 310, 313, 314, 316, 319, 321
Práticas pedagógicas de decolonialidade 10, 255, 256, 261, 262, 264, 265
Produção do conhecimento 7, 31, 55, 57, 58, 59, 60, 62, 63, 64, 65, 66, 71,
72, 73, 77, 116, 190, 283, 284, 286, 298, 315
360

Professores indígenas 11, 18, 311, 313, 314, 315, 316, 317, 320, 322
Psicopedagogia 343, 344, 345, 346, 347, 350, 352, 353, 354, 370

Q
Quilombola 10, 17, 97, 98, 251, 255, 256, 257, 258, 259, 260, 261, 262, 263,
264, 265, 266, 267, 268, 270, 271, 272, 273, 277, 279

or
R

od V
Racismo 16, 24, 25, 26, 28, 43, 60, 73, 74, 75, 80, 119, 132, 173, 193, 205,

aut
206, 207, 208, 219, 220, 227, 237, 240, 241, 242, 243, 244, 246, 248, 249,
250, 293, 335

R
Relações de poder 30, 38, 119, 129, 147, 192, 234, 260, 287, 309, 327

o
S
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Saberes e práticas educativas 13, 275, 365, 366, 372
Saúde 7, 18, 110, 190, 200, 205, 206, 211, 212, 214, 215, 216, 218, 228,
270, 282, 337, 365, 370
visã
Sociedade 7, 13, 28, 29, 30, 31, 38, 39, 44, 49, 51, 61, 63, 65, 66, 74, 80,
85, 87, 105, 106, 107, 114, 118, 121, 122, 125, 128, 129, 132, 172, 173, 176,
192, 206, 210, 211, 212, 214, 220, 224, 227, 230, 234, 240, 244, 245, 250,
itor

260, 262, 271, 279, 281, 285, 287, 288, 293, 296, 297, 298, 304, 309, 314,
a re

316, 335, 343, 349, 350, 351, 352, 354, 372


Subalternizados 14, 24, 26, 27, 30, 58, 59, 62, 63, 66, 67, 69, 77, 86, 107,
109, 115, 117, 120, 171, 172, 194, 197, 291, 315, 326, 331, 349
par

T
Território 17, 18, 107, 126, 153, 177, 182, 189, 198, 199, 218, 238, 251,
Ed

257, 264, 270, 274, 278, 297, 305, 306, 307, 309, 311, 327, 330, 333, 334,
338, 367
ão

V
Violência 25, 37, 49, 75, 100, 101, 121, 193, 196, 199, 206, 208, 211, 244,
s

246, 248, 282, 283, 284, 285, 291, 315


ver
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Alder de Sousa Dias

or
Doutorando em Educação (UFPA), Mestre em Educação (UEPA), Especialista

od V
em Filosofia da Educação pelo (UFPA) e Graduado em Pedagogia pela UEPA.

aut
Professor Assistente do Curso de Licenciatura em Educação do Campo da
Unifap – Campus Mazagão. Pesquisador dos grupos de pesquisa “Amazônia
Sustentável” (Unifap/CNPq) e “Gepea” (UEAP/CNPq) e integrante da “Rede

R
de Pedagogias Decoloniais na Amazônia” (RPPDA).
E-mail: alderdiass@yahoo.com.br.

o
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/906521181641480
aC
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0996-0000
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão

Ângela do Céu Ubaiara Brito


Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Prof. Adjunta da Uni-
visã
versidade do Estado do Amapá. Prof. no Mestrado em Educação no Programa
da Universidade Federal do Amapá – PPGED/Unifap. Linha de Pesquisa:
Educação, Cultura e Diversidade. Líder do grupo de pesquisa Ludicidade,
itor

Saúde e Inclusão – LIS.


a re

E-mail: angela.brito@ueap.edu.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2696181179461504
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4335-8163

Ana D’Arc Martins de Azevedo


par

Doutora em Educação pela PUC/SP. Professora da Universidade do Estado


Ed

do Pará – Uepa. Professora do Programa de Pós-Graduação da UNAMA nos


cursos: PPGCLC e PPGC. Coordena o Grupo de Pesquisa Saberes e Práticas
Educativas de Populações Quilombolas (Eduq/Uepa) e o Grupo de Pesquisa
ão

em Diversidade e Inclusão (Gepidi/Unama).


E-mail: azevedoanadarc@gmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0257982352792085
s

Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4240-9579
ver

Adriane Raquel Santana de Lima


Professora do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal
do Pará. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Pará. Coorde-
nadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Educação, Gêneros, Feminismos e
Interseccionalidade.
E-mail: adrianelima29@yahoo.com.br
362

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5012265242662359


Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4102-9104

Carla Joelma de Oliveira Lopes


Pesquisadora do Grupo de Pesquisas Saberes e Práticas Educativas de Popu-
lações Quilombolas – EDUQ/UEPA. Doutoranda do Programa de Pós-Gra-
duação em Geografia – PPGEO/UFPA. Professora de História e Geografia

or
da Educação Básica.

od V
E-mail: carlajoelma@gmail.com

aut
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2927511730230138
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5797-2992

R
Cristiane do Socorro dos Santos Nery
Docente do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal

o
do Amapá (Unifap). Doutoranda em Educação em Ciências e Matemáticas pela
aC
Universidade Federal do Amapá (UFPA). Mestre em Educação e Graduada em

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Licenciatura Plena em Matemática pela Universidade do Estado do Pará (UEPA).
Líder do Grupo de Estudos, Pesquisas e Práticas Interculturais em Ciências da
Natureza e Matemática (GECIM/Unifap). Membro da Rede de Pesquisa sobre
visã
Pedagogias Decoloniais na Amazônia (RPPDA). Membro do Grupo de Pesquisa
sobre Práticas Socioculturais e Educação Matemática (GPSEM/UFPA).
E-mail: csfsantos30@gmail.com
itor

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4754278141188631


a re

Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1323-6069

Daniela de Oliveira Senna


Pesquisadora do Grupo de Pesquisas Saberes e Práticas Educativas de Popula-
ções Quilombolas – EDUQ/UEPA. Mestranda no Programa de Pós-Graduação
par

em Ciências do Patrimônio Cultural – PPGPatri/UFPA. Especialista em Ensino


Ed

de História. Professora de História da Educação Básica.


E-mail: danisenna89s2@gmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2752265321730467
ão

Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7490-0808

David Junior de Souza Silva


s

Professor da Universidade Federal do Amapá (Unifap). Doutor em Geogra-


ver

fia. Coordenador do Núcleo de Estudos em Etnopolítica e Territorialidades


na Amazônia.
E-mail: davi_rosendo@live.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4265076306351873
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-2336-4870
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 363

Elziene Souza Nunes Nascimento


Mestra em Comunicação, Linguagens e Cultura. Especialista em Libras e em
Educação Especial. Professora da Educação Básica da Secretaria de Educação
do Pará – SEDUC.
E-mail: elzienenunes@gmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7126528052121192
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1234-6167

or
od V
Érica de Sousa Peres

aut
Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação
(PPGED/UFPA), Mestra em Educação (PPGED-UEPA), Especialista em
Saberes Africanos e Educação Afro-brasileira na Amazônia (UFPA), Graduada

R
em Letras e Bacharel em Serviço Social pela UFPA. Atualmente é professora
Ad-4 Seduc e docente da Unama– Ananindeua. Membro do grupo de pes-

o
quisa Culturas e Memórias Amazônicas e da Rede de Pedagogias Decoloniais
aC
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na Amazônia.
E-mail: ericaperes_22@yahoo.com.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6944880124605377
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1851-8997
visã

Erika Rodrigues Cavalcante


Discente da Faculdade de Letras (UFPA – Campus Universitário do Marajó-
itor

Breves) e bolsista do Programa Redes de Comunidades Ribeirinhas.


a re

E-mail: cavalcante.erika09@gmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0206547806274447
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4058-7080

Eunápio Dutra do Carmo


par

Docente da Faculdade de Serviço Social (UFPA – Campus Universitário do


Ed

Marajó-Breves). Pós-Doutor em Desenvolvimento Socioambiental (2015),


Doutor em Ciências Humanas: Educação pela PUC-Rio (2010). Coordena-
dor do Programa Redes de Comunidades Ribeirinhas, membro do Grupo de
ão

Pesquisa Estado, Território, Trabalho e Mercados Globalizados e integrante


da Rede de Pesquisa sobre Pedagogias Decoloniais na Amazônia.
E-mail: eunapiodocarmo@gmail.com
s

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7347286742599751


ver

Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8186-8789

Flávio Nunes dos Santos Júnior


Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São
Paulo (2020), professor efetivo da rede pública de ensino do município de
364

São Paulo e membro do Grupo de Pesquisa em Educação Física Escolar da


Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
E-mail: flajnr@yahoo.com.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0514622739144152
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9143-5020

Isabell Theresa Tavares Neri

or
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Pará (PPGED/UFPA). Pesquisadora do Núcleo de Educação Popu-

od V
lar Paulo Freire (NEP/UEPA/CNPq).

aut
E-mail: educadorauepa@gmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3039078409617214

R
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4224-4022

o
Ivanilde Apoluceno de Oliveira
aC
Pós-doutora em Educação pela PUC-Rio. Doutora em Educação – Currí-

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culo, pela PUC-SP e UNAM-UAM– Iztapalapa – México. Professora Titular,
pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e coordenadora
do Núcleo de Educação Popular Paulo Freire e da Cátedra Paulo Freire da
visã
Amazônia.
E-mail: nildeapoluceno@uol.com.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6486192420682817
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3458-584X
itor
a re

João Colares da Mota Neto


Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do
Estado do Pará. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará.
Coordenador da Rede de Pesquisa sobre Pedagogias Decoloniais na Amazônia.
par

E-mail: joaocolares@uepa.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6415743127554581
Ed

Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3346-1885

Laís Rodrigues Campos


ão

Doutora em Geografia (PPGEO-UFG), Professora Adjunta do Centro de


Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação da Universidade Federal de Goiás.
E-mail: laisrcufpa@gmail.com
s

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6081317744445989


ver

Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0221-9850

Lucas Antunes Furtado


Doutorando em Educação na Universidade Federal do Pará (UFPA). Docente
da Faculdade de Educação (FACED), da Universidade Federal do Amazonas
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 365

(UFAM). Pesquisador da Rede de Pesquisas sobre Pedagogias Decoloniais


na Amazônia (RPPDA).
E-mail: lucasfurtado@ufam.edu.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/0071099154327758
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5782-7584

Luiz Fernandes de Oliveira

or
Doutor em Educação pela PUC – Rio, Professor do Programa de Pós-Gra-

od V
duação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares

aut
– PPGEDUC/UFRRJ e da Licenciatura em Educação do Campo da UFRRJ.
Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais
e Culturas (GPMC).
E-mail: axeluiz@gmail.com
R
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7006752768658988

o
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3955-3732
aC
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Marcio D’Olne Campos


Professor aposentado da Unicamp. Físico (PUC-RJ) e doutor pela Université
de Montpellier (FR). Na Unicamp foi Prof. no Instituto de Física (1972-
visã
92). No IFCH-Unicamp (1993-98) pertencendo ao Dep. de Antropologia e à
área “Itinerários Intelectuais e Etnografia do Saber” (Doutorado em Ciências
Sociais 1992-98). Desde 1980, trabalha em educação (formal e não formal)
itor

e pesquisa antropológica/etnográfica sobre relações sociedades-humanos-


a re

natureza e saberes, técnicas e práticas locais. Enfatiza as categorias tempo,


espaço e lugar nos ritmos e marcadores naturais e sociais de tempos, na
percepção ambiental e nas relações céu–terra (Etnoastronomia e Astronomia
nas Culturas). Em outra vertente, trabalha com antropologia da alimentação e
par

patrimônios culturais. Seus interlocutores situam-se em sociedades indígenas


(Kayapó) e costeiras (caiçaras), assim como entre descendentes de imigrantes
Ed

italianos (ES e MG).


E-mail: mdolnecampos@sulear.com.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3238046640943002
ão

Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7799-3336

Marcos Garcia Neira


s

Doutor em Educação, Pós-doutor em Currículo e Educação Física e Livre-Do-


ver

cente em Metodologia do Ensino de Educação Física. É Professor Titular da


Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, onde exerce a função
de Diretor (2018-2022) e atua nos cursos de graduação e pós-graduação,
orienta pesquisas em nível de iniciação científica, mestrado e doutorado, e
supervisiona pesquisas de pós-doutorado. Investiga a prática pedagógica da
366

Educação Física com apoio da FAPESP e do CNPq, é coordenador do Grupo


de Pesquisas em Educação Física escolar.
E-mail: mgneira@usp.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5159221005050962
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1054-8224

Maria Betânia Barbosa Albuquerque

or
Doutora em Educação. Docente no Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Coordena o Grupo de Pesquisa

od V
História da Educação na Amazônia (GHEDA) e participa da Rede de Pesquisas

aut
sobre Pedagogias Decoloniais na Amazônia (RPPDA).
E-mail: mbetaniaalbuquerque@uol.com.br

R
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6849661131305117
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9681-9293

o
aC
Maria Carolina Henrique Marques

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Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Amapá – PPGED/
Unifap. Linha de Pesquisa: Educação, Cultura e Diversidade. Graduada em
Licenciatura pela Universidade do Estado do Amapá – UEAP (2017). Membro
visã
do grupo de pesquisa Ludicidade, Saúde e Inclusão – LIS.
E-mail: mariacarolina.hmarques@hotmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3301828210444639
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8751-3655
itor
a re

Maria das Neves Maciel da Luz


Discente da Pós-Graduação em Estudos Culturais e Políticas Públicas –
PPCULT/Unifap. Licenciada e Bacharela em Ciências Sociais.
E-mail: nevesunifap@gmail.com
par

Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4804952121029797


Orcid: Https://orcid.org/0000-0002-1376-7441
Ed

Miquelly Pastana Tito Sanches


Mestra em Educação pela Universidade Federal do Amapá – PPGED/Unifap.
ão

Especialista em Psicopedagogia Institucional pela Faculdade Campos Elí-


sios – FCE. Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Amapá
– UEAP. Integrante da Rede de Pesquisa sobre Pedagogias Decoloniais na
s

Amazônia – RPPDA e Grupo de Pesquisa Gênero, Educação, Decolonialidade


ver

e Diversidades – GPGEDD. Professora Substituta do Curso de Pedagogia da


Unifap/Campus Universitário de Santana.
E-mail: miquellytito@yahoo.com.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1578118284847723
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2170-5574
PEDAGOGIAS DECOLONIAIS NA AMAZÔNIA:
Fundamentos, Pesquisas e Práticas 367

Pedro Correia de Souza


Docente vinculado ao Curso de Licenciatura em Pedagogia da Universidade
do Estado do Amapá e pesquisador do “Grupo de Estudos, Pesquisas e Práticas
em Educação na Amazônia Amapaense” (GEPEA/UEAP/CNPq).
E-mail: pedro.souza@ueap.edu.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2941091069089268
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4012-2366

or
od V
Pâmela Beatriz Ferreira Pelegrini

aut
Discente da Faculdade de Letras (UFPA – Campus Universitário do Marajó-
Breves) e bolsista do projeto de extensão “Retratos o Marajó: idosos, memó-
rias e saberes sob foco” (UFPA)

R
E-mail: beatrizfpelegrini@gmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1311746874510497

o
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1890-3393
aC
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Nazaré Cristina Carvalho


Doutora em Educação Física e Cultura (UGF2006); Mestra em Educa-
ção (UNIME/SP 1998). Possui Estágio Pós-Doutoral em Educação (PUC/
visã
RJ 2014). É licenciada em Educação Física e Ciências Sociais. Atualmente é
professora adjunta da Universidade do Estado do Pará (UEPA)/ Departamento
de Artes Corporais e Programa de Pós-Graduação (mestrado) em Educação.
itor

Tem experiência na área de Educação Física, com ênfase em Educação Física


a re

e Cultura, saberes culturais e ludicidade. É vice líder do Núcleo e grupo de


pesquisa Cultura e Memórias Amazônicas /CUMA-UEPA/CNPq).
E-mail: n_cris@uol.com.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3419837056969280
par

Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8417-3504
Ed

Raimunda Kelly Silva Gomes


Doutora em educação, pela universidade Federal do Pará. Tem experiência
na área de Educação Ambiental. Atualmente é docente da Universidade do
ão

Estado do Amapá, curso de licenciatura em Pedagogia onde vem desenvol-


vendo atividades de pesquisa e extensão universitária, como líder do grupo de
integração socioambiental e educacional (GISAE) e Professora do Programa
s

de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Amapá (Unifap).


ver

Além disso, orienta iniciação cientifica e mestrado, com estudos voltados as


questões socioambientais e educacionais no Estado do Amapá.
E-mail: rkellysgomes@yahoo.com.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1668096856877502
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4653-4000
368

Simone de Freitas Conceição Souza


Mestra em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro.
Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas da UEPA, Saberes e Práticas
Educativas de Populações Quilombolas EDUQ – Coordenadora do Projeto
de Extensão Roda Viva: Negritudes em Movimento.
E-mail: simonecon44@gmail.com
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1597934752664952

or
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9429-5222

od V
aut
Thaís Tavares Nogueira
Doutoranda e Mestra em Educação pela Universidade do Estado do Pará
(UEPA). Integra a Rede de Pesquisa sobre Pedagogias Decoloniais na Ama-

R
zônia (RPPDA) e o Grupo de Pesquisa História da Educação na Amazônia
(GHEDA).

o
E-mail: thaistnogueira31@gmail.com
aC

Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão


Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3745182308755855
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9610-0679

Vitor Sousa Cunha Nery


visã
Doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Educação na modalidade
sanduíche (UEPA/PUC-Rio). Professor de História da Educação da Univer-
itor

sidade do Estado do Amapá (UEAP), Líder do Grupo de Estudos, Pesquisas


a re

e Práticas em Educação na Amazônia Amapaense (GEPEA) e Integrante da


Rede de Pesquisas sobre Pedagogias Decoloniais na Amazônia (RPPDA).
Filiado à Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE) e à Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED).
par

E-mail: vitor.nery@ueap.edu.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9251181951280163
Ed

Orcid: http://orcid.org/0000-0002-1309-6094

Waldir Ferreira de Abreu


ão

Pós-Doutor em Ciências da Educação – Espanha (2013), Doutor em Ciências


Humanas: Educação pela PUC-Rio (2010). Professor adjunto IV do Curso de
Licenciatura em Pedagogia da UFPA e do Programa de Pós-Graduação em
s

Educação (PPGED)/ICED-UFPA. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em


ver

Educação, Infância e Filosofia (GEPEIF/UFPA/CNPq).


E-mail: awaldir@ufpa.br
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6364117476478718
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0245-9072
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ver
Ed
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par aC
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SOBRE O LIVRO
Tiragem: 1000
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 X 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 11,5/12/16/18
Arial 7,5/8/9
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

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