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ORGANIZADORES
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Robert Wagner Porto da Silva Castro / Moacir Silva do Nascimento
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
MARINHEIROS
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e cidadania no Brasil
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Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
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MARINHEIROS E CIDADANIA
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Editora CRV
Curitiba – Brasil
2020
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Diagramadores e Designers CRV
Revisão: Analista de Línguas CRV
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
CATALOGAÇÃO NA FONTE
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Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506
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M298
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Marinheiros e cidadania no Brasil: contribuições para uma história social militar-naval /
Robert Wagner Porto da Silva Castro, Moacir Silva do Nascimento (organizadores) – Curitiba :
CRV, 2020.
cidadania I. Castro, Robert Wagner Porto da Silva. org. II. Nascimento, Moacir Silva do. org.
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2020
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 - E-mail: sac@editoracrv.com.br
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Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Adriane Piovezan (Faculdades Integradas Espírita)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Alexandre Pierezan (UFMS)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Andre Eduardo Ribeiro da Silva (IFSP)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Antonio Jose Teixeira Guerra (UFRJ)
or
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Antonio Nivaldo Hespanhol (UNESP)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Carlos de Castro Neves Neto (UNESP)
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Carmen Tereza Velanga (UNIR) Carlos Federico Dominguez Avila (UNIEURO)
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Celso Conti (UFSCar) Edilson Soares de Souza (FABAPAR)
Cesar Gerónimo Tello (Univer .Nacional Eduardo Pimentel Menezes (UERJ)
Três de Febrero – Argentina) Euripedes Falcao Vieira (IHGRRGS)
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Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Fabio Eduardo Cressoni (UNILAB)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) Gilmara Yoshihara Franco (UNIR)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Jairo Marchesan (UNC)
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Élsio José Corá (UFFS) Jussara Fraga Portugal (UNEB)
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Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Karla Rosário Brumes (UNICENTRO)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Leandro Baller (UFGD)
Gloria Fariñas León (Universidade Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO)
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Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA) Sylvio Fausto Gil filho (UFPR)
ver di
Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO
PREFÁCIO ������������������������������������������������������������������������������������������������������� 9
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Fernando da Silva Rodrigues
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PRÓLOGO ����������������������������������������������������������������������������������������������������� 13
Jorge Magasich
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A COMPANHIA DE APRENDIZES-MARINHEIROS: o recrutamento da
infância para a marinha imperial ��������������������������������������������������������������������� 23
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Wagner Luiz Bueno dos Santos
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A PRIMEIRA COMPANHIA DE APRENDIZES-MARINHEIROS (1840):
a história política como alicerce para a criação e consolidação da
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Silvia Capanema
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A UNIDADE DE MOBILIZAÇÃO NACIONAL PELA ANISTIA E A
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CONSTITUIÇÃO DO PARTIDO MILITAR DOS MARINHEIROS ������������� 229
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Ricardo Santos da Silva
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trazer para a superfície aquela que ficou conhecida com a História “vista por
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baixo”, tão pouco praticada no Brasil, principalmente nos estudos sobre os
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praças da Marinha.
A abordagem empreendida na obra busca revelar alguns aspectos dessa
relação conflituosa que é a história dos marinheiros ao longo dos tempos, neste
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caso, estudos articulando as tensões existentes na Marinha, que envolvem a
condição de inferioridade profissional do marinheiro militar e o ser cidadão
o
brasileiro em épocas passadas, pois muitas vezes esse sujeito era considerado
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cidadão de segunda classe e, assim sendo, foi relegado aos porões da história
naval institucional.
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dia da vida humana, seja na escola (professor e aluno), dentro do seio familiar
(pais e filhos) e, principalmente, nas Forças Armadas (oficiais e praças), que
adotaram tal princípio junto com a disciplina.
Para os militares, as suas relações internas têm como princípio básico a
hierarquia, aquela que marca também o tempo de serviço na profissão, mas
que é definida, sobretudo, pelas classificações gerais que são obtidas dentro
da força, com: exames, méritos pessoais e profissionalização. A hierarquia
dirige toda a vida da instituição militar, é o principal princípio da divisão social
das tarefas e posições dentro da Marinha, mas também o cerne das tensões.
A própria dificuldade em encontrar na atualidade publicações das mais
diversas naturezas literárias que envolvam a pesquisa sobre marinheiros, já
10
demonstra que algo está errado. O erro talvez comece pela dificuldade de se
encontrar fontes em grande quantidade nos Arquivos Militares sobre os praças.
Os arquivos foram criados como locais de guarda da documentação oficial
produzida, e porque não dizer, dos oficiais da instituição militar.
or
Os documentos produzidos pela administração naval, principalmente
sobre os oficiais, em sua maioria estão bem guardados. Documentos como:
od V
os livros históricos dos navios e organizações militares, livros de serviço de
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quarto (livros de quarto), relatórios anuais do Ministério da Marinha, ordens do
Quartel-General da Marinha e do Estado-Maior da Armada, boletins adminis-
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trativos, plantas e planos de linha de navios e avisos expedidos pelo ministro
da Marinha. São documentos produzidos, na maioria das vezes, pelos oficiais
e para os oficiais.
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Nos últimos dez anos a produção de conhecimento científico sobre a
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história naval aumentou significativamente, mas considero que a documen-
tação ainda é muito pouco explorada, se comparado ao que foi produzido e
or
desenvolver atividades específicas do meio acadêmico na esfera militar. Pro-
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fissionais que aprofundaram sua formação intelectual por meio de programas
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de pós-graduação, se especializando em temas relacionados à história militar.
Esses militares, que também são profissionais da área da História, desenvol-
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vem pesquisas e realizam trabalhos diários nessas instituições, se tornando
peças importantes desse processo na medida em que são atores que transitam
o
no meio militar e no meio acadêmico. Promovendo a diminuição das tensões
existentes entre as duas categorias sociais, herdadas de um momento histórico
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anterior marcado pela permanência de governos militares.
O enfoque do livro organizado por Robert Wagner Porto da S. Castro e
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praças, e nas próprias relações entre civis e militares, que as vezes melhoram
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Wagner Luiz Bueno dos Santos; e ainda os estudos dos próprios organizadores.
O resultado de tal empreendimento foi a produção de uma obra grandiosa que
nos possibilita repensar a história social militar brasileira, relacionada aos
estudos dos marinheiros e sua relação com a busca da cidadania. Conformando
um conjunto harmonioso e instigante, trazendo ao leitor outras perspectivas
sobre temas já conhecidos e sobre outros não tão conhecidos do público geral.
1 Professor Titular do PPGH da Universidade Salgado de Oliveira. Diretor da Rede Hermes – Fronteiras,
Integração e Conflitos. Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ
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PRÓLOGO
As crises sociais nas marinhas tem sido relativamente frequentes ao longo
do século XX, afetando as forças navais de vários países, em ao menos três
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continentes. No quadro desses acontecimentos, é fundamental compreender
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as relações sociais estabelecidas entre os militares dessas instituições e des-
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tes com as sociedades das quais são parte. Especialmente a participação dos
praças enquanto atores do processo histórico nesses instantes tensionados e os
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vínculos por eles estabelecidos com a sociedade civil, além de suas vivências
e aspectos cotidianos nessas forças navais, sobretudo aqueles relacionados às
o
suas carreiras e prática laboral. É nesse sentido que se colocam as proposta
dos textos que integram a presente coletânea.
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Assim, no intuito de contribuir para uma percepção mais ampla acerca
da relevância da presente obra enquanto contraponto a uma historiografia
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XX, tinham como principal fator motivador a oposição a uma ordem social
são to
servos e escravos.
A mítica sublevação no moderno encouraçado Potemkin1, em 1905, se
deu quando a Rússia vivia uma onda revolucionária precipitada pela derrota na
guerra contra o Japão. A central socialista do Porto de Odessa, no mar Negro,
havia planejado uma insurreição na frota para fins de julho. Os marinheiros
do Potemkin permaneceram indecisos até que um incidente detonou o con-
flito: descobriram que a alimentação que lhes seria servida estava composta
por carne putrefata e se negaram a entrar no refeitório. Para o comandante
Giliarovsky, essa iniciativa dos “de baixo” merecia um castigo exemplar:
or
Cinco anos depois, em 1910, sobreveio a revolta brasileira2. O Brasil,
od V
assim como Argentina e Chile, dispunha então de uma impressionante Armada,
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dotada de navios que demandavam avançados conhecimentos técnicos por
parte de suas tripulações. Nesse sentido, destacamentos de marinheiros bra-
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sileiros estudavam, na Inglaterra, novas técnicas que lhes qualificariam pro-
fissionalmente para lidar com as novas tecnologias que passavam a integrar
o
equipamentos e sistemas das belonaves da Armada brasileira. Ali tiveram
contato com alguns dos trabalhadores mais bem organizados da época e,
aC
sem dúvida, perceberam o abismo entre os castigos físicos, particularmente
a odiada chibata – símbolo de um passado escravista – e sua nova condição
por seus marinheiros3, teve início uma série de revoltas navais nas Armadas
de muitas dessas nações.
Em outubro de 1918, quando já era evidente que a Guerra estava per-
dida, o Kaiser designou como chanceler o nobre liberal Max de Bade, com
a missão de negociar um armistício e assim evitar uma revolução social,
como na Rússia. O novo governo, que incluía pela primeira vez três ministros
2 Maestri, Mario, Cisnes Negros. Uma história da Revolta da Chibata, Porto Alegre:
Editora Moderna, 2000 e Nascimento, Álvaro Pereira do� A Ressaca da Marujada.
Recrutamento e disciplina na Armada Imperial, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.
3 Ver : BROUÉ, Pierre� Révolution en Allemagne (1917-1923), Paris: Les éditions de
minuit, 1971 e WINKLER, Heinrich� Histoire de l’Allemagne. xixe – xixe siècles. Le long
Chemin Vers l’Occident� Paris: Fayard, 2000�
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 15
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O comando da marinha, em aberto desacato, preparou a Armada Impe-
rial para tomar parte em uma “última batalha”. Os marinheiros, consternados
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frente a iminência de uma morte absurda, protestaram a bordo dos navios
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contra tal decisão. Centenas foram presos e / ou desembarcados, enquanto
zarpavam cinco navios de Wilhenlmshaven a Kiel, onde os marinheiros soli-
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citaram o apoio dos operários. No dia 3 de novembro uma patrulha disparou
contra manifestantes em uma das manifestações propostas pelo marinheiro
Karl Artelt, restando vinte e nove feridos e nove mortos. Foi a “gota d’água”
o
que faltava. Durante aquela noite os marinheiros iniciaram sua mobilização
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e, a bordo de um contratorpedeiro, Karl Arlet propôs eleger o primeiro conse-
lho de marinheiros. Os delegados, em representação de vinte mil homens, se
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reuniram com o almirante Wilhelm Souchon que, sem ação frente aos acon-
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tecimentos, aceitou todas as reivindicações, com destaque para as seguintes:
abolição da saudação militar obrigatória, redução do serviço e libertação de
detidos. No entanto, os marinheiros não se satisfizeram e o movimento seguiu
r
avançando. Milhares de marinheiros tomaram o controle de cerca de setenta
navios, muitos oficiais foram presos enquanto a bandeira vermelha tremulava
a re
4 GUTTRIDGE, Leonard� Mutiny. A Historiy of Naval Insurrection, New York : Ed� Berkley
Books, 2002� p�157-159�
16
Nos últimos meses da Guerra, a França enviou seus navios aos portos
do Mar Negro, oficialmente para organizar a retirada alemã, mas a verdadeira
missão era apoiar os exércitos “brancos” em conflito com o governo sovié-
tico5. Várias tripulações se recusaram a participar de uma guerra não decla-
or
rada contra o regime revolucionário da Rússia e, acima de tudo, desejavam
regressar às suas casas. Eclodiram então revoltas totais ou parciais em onze
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navios da frota francesa do Mar Negro, que, por fim, levaram os marinheiros
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revoltosos a alcançar seu intento, interrompendo as ações francesas contra o
governo russo naquele momento.
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Uma terceira onda de levantes ocorreu após a crise financeira de 1929,
que causou, entre outras coisas, uma forte restrição orçamentária, acarretando
o
a redução dos salários dos funcionários públicos, inclusive dos militares. A
defesa do padrão de vida motivou revoltas navais no Chile e na Inglaterra,
aC
em setembro de 1931 e no Peru, em 1932.
Em 1931, parte da esquadra chilena estava no porto de Coquimbo, onde
5 Ver : MARTY, André� La Révolte de la mer Noire, Paris: Ed� Temps de Cerises, 1999�
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 17
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para controlar a situação acabaram aderindo ao movimento, que conseguiu
limitar a redução dos salários e demonstrou o poder da ação coletiva dos
od V
marinheiros na frota.
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No ano seguinte, em maio de 1932, no Peru, um grupo de marinheiros
ligados à Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA) apreendeu três
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navios, em protesto contra a arbitrariedade do regime ditatorial de Sánchez
Cerro6. Um grupo de marinheiros do cruzador Bolognesi, liderado por Artemio
Collazos e Eleuterio Medrano, detiveram os oficiais e tomaram o controle
o
do navio depois de realizarem alguns disparos com armas curtas. De forma
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semelhante, outro grupo tomou o contratorpedeiro Rodríguez, cujos oficiais
presos foram concentrados no Bolognesi. Entre esses marinheiros parecia
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6 Ver : JORGE, Ortiz Sotelo� “Las rebeliones navales del Callao: 1932 y 1948”, Apuntes,
Lima: Centro de Investigación, Universidad del Pacífico, 2º sem., 1999. p.84-87.
7 VAN BUREN, Mario Barros� “La actividad naval durante la Guerra Civil Española”,
Revista de Marina, Valparaíso, ene/feb�, 1996� p 4�
8 PERY, José Cervera� La guerra naval española (1936-1939), Madrid: Ed� San Martín,
1998� p 36�
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julho, Balboa alertou às tripulações por rádio, de forma clara, mantendo-as
informadas e dando instruções para enfrentar o levante. Orientando os mari-
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nheiros, na maioria dos navios, alguns em plena navegação, para que prendes-
aut
sem os oficiais golpistas e executassem os que manifestassem resistência. Essa
reação dos marinheiros legalistas conseguiu manter o essencial da esquadra
R
sob o comando da República, impedindo assim o sucesso inicial do golpe.
Um mês mais tarde, em setembro de 1936, em Lisboa, Portugal, as tri-
o
pulações de dois importantes navios da Armada portuguesa se sublevariam
contra o ditador Antônio de Oliveira Salazar. Nesse levante, cabe destacar que,
aC
desde 1932, existia na Marinha portuguesa a Organização Revolucionária da
Armada (ORA), composta por marinheiros próximos ao Partido Comunista
or
partidos de esquerda para denunciar a iminência do golpe de Estado que se
gestava na Armada e propor uma ocupação preventiva da frota. Essa mobi-
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lização foi descoberta pelo serviço secreto da Marinha e muitos marinheiros
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foram presos e torturados em diversos quartéis e complexos navais.
As crises nas marinhas tiveram como pano de fundo o virulento embate
R
entre o novo estatuto social das tripulações, que no século XX passaram a
ser cada vez mais técnicos e especializados, e as arcaicas relações sociais que
o
imperavam a bordo.
O fato de os marinheiros refletirem, criticarem, reivindicarem e se orga-
aC
nizarem não se enquadra na imagem das marinhas como exemplo de ordem,
especialmente àquela representação apresentada por uma historiografia con-
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ingleses por meio do contato com seus pares chilenos em Devonport9. Cada um
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em 1910; da Alemanha, em 1917; do Chile, em 1931 e 1973 e de Portugal,
od V
em 1936. Desse modo, os marinheiros têm demonstrado uma preferência
aut
marcante por se organizar e agir entre si. Em movimentos e revoltas que,
geralmente organizados com pouca ou nenhuma coordenação com outros
R
movimentos sociais, incorriam no inevitável risco de isolamento. Enfrentando,
como regra, a dura repressão, especialmente em regimes autocratas e ditato-
o
riais, onde o alto comando buscava aplicar derrotas e punições exemplares
aos marinheiros, com a justificativa principal de restabelecer a hierarquia e
aC
a disciplina.
Ao reunir estudos sobre a Marinha brasileira desde uma perspectiva
nea. Uma contrubuição à historiografia brasileira que lança luz sobre esses
ver di
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é estudado em três outros artigos: “Associação de Marinheiros e Fuzileiros
od V
Navais do Brasil: identidades em uma luta submersa” de Robert Wagner Porto,
aut
“Militância, exílio e anistia: travessias de um marinheiro e as tormentas de
um passado que não passa (1964 – 2009...)” de Anderson da Silva Almeida,
R
onde o autor apresenta a trajetória de Antônio Geraldo Costa, o último dos
marinheiros da Associação a regressar ao país após o exílio, e “A unidade
o
de mobilização nacional pela anistia e a constituição do partido militar dos
marinheiros” de Ricardo Santos da Silva, que aborda o debate e a luta pela
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anistia daqueles marinheiros e fuzileiros navais que sofreram com a repressão
da Marinha no caso da Associação.
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Jorge Magasich10
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10 Professor do Institut des Hautes Études des Communications Sociales (IHECS) Bruxelas – Bélgica.
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A COMPANHIA DE APRENDIZES-
MARINHEIROS: o recrutamento da
infância para a marinha imperial
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Wagner Luiz Bueno dos Santos1
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Combinando interesses, construindo consenso: a reforma da
marinha imperial e a formação das praças, à guisa de introdução
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Reformular e expandir a Administração Naval pelo território do Império
foi um dos objetivos do projeto de reforma do estado implementado pela
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poder militar naval pelo litoral do território do Império, ampliando seu aparato
burocrático, administrativo e coercitivo. Para cumprir essa agenda, o governo
tomou algumas iniciativas, uma delas foi a adoção de uma política de reforma
na estrutura de formação militar. Dessa forma, ao longo da segunda metade
E
1 Mestre em História social pela UFRJ, Doutorando em História social pela UNIRIO, pesquisador na Diretoria
do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha, contato wluizbueno@yahoo.com.br.
2 A partir dos anos de 1840, a Marinha ampliou suas repartições descentralizando, a partir do seu núcleo na
Corte, a Administração Naval. O território do Império foi dividido em Seções, estas com suas respectivas
Capitanias dos Portos e delegacias, os já existentes Arsenais deixaram às poucas suas funções adminis-
trativas e passaram a exercer somente sua natureza industrial à medida que eram criadas repartições de
intendência, fazenda e contadoria.
3 Relatório do ministro da Marinha, 1838, p. 3. Disponível em: http://www-apps.crl.edu/brazil/ministerial.
Acesso em: 25 mar. 2016.
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da Armada Imperial, era por meio do recrutamento forçado que se fazia boa
od V
parte dos marujos. Dessa forma, marginais, ladrões, sentenciados e, embora
aut
a Lei fosse taxativa em favor da propriedade privada, não era raro encontrar
africanos escravizados tripulando os navios da Armada Imperial. Assim como
R
a mão-de-obra dos portos e dos navios mercantes, o recrutamento de cativo
rendia sérios prejuízos à economia.
o
Na interpretação das autoridades navais, o recrutamento levou para os
navios da Armada indivíduos desclafissicados responsáveis pelo ambiente de
aC
insubordinações e rebeliões, construía-se assim um consenso entre legisla-
dores, ocupantes do governo e autoridades navais que era preciso “aplicar a
4 Idem.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 25
or
era organizar companhias de marujos para embarque nos navios da Armada.
Cabiam ainda a essas companhias a responsabilidade pela formação de meni-
od V
nos que ingressavam na profissão militar, a incipiente ideia chamou atenção
aut
do então ministro Rodrigues Torres. Segundo o político Saquarema, a ideia
de Salvador Maciel foi um passo importante para alcançar uma Marinha
R
de Guerra apropriada “aos fins a que se destina”, como “importantíssimo
elemento da força pública”. A partir de então, a formação de marinheiros se
o
tornava uma discussão singular num ambiente plural envolvendo o Governo
e o Congresso. Ao ministro Joaquim Torres coube a tarefa de alinhavar todos
aC
os pontos. Segundo ele, era necessário,
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Fazer nos dar a mão ao um desígnio, a que com o andar do tempo pode
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responder o sucesso, e por isso é minha opinião, que, em lugar de criarmos
já Companhias de Marinheiros as formemos de Aprendizes-Marinheiros,
onde são admitidos moços de 10 a 18 anos, os quais recebendo desde
tenra idade a educação, e instrução apropriada, poderão formar, chegando
r
a idade viril, Companhias e Corpos permanentes de marinheiros conse-
a re
5 O então Vice-Almirante Tristão Pio dos Santos integrou o gabinete de 16 de maio de 1837. Sua trajetó-
ria na Marinha foi marcada com significativo envolvimento em questões políticas desde do processo de
independência do Império quando se aproximou dos irmãos Andradas que, após conflitos que resultaram
na promulgação da Constituição de 1824, se encontravam no exílio. Pio dos Santos, quando Inspetor do
Arsenal da Marinha da Bahia, conspirou contra a causa dos portugueses fazendo atrasar a construção de
E
uma fragata que seria utilização contra a Armada da Independência, perseguido, o então capitão-Tenente
Tristão Pio dos Santos, partiu para a Corte onde integrou a comissão encarregada de identificar oficiais
leiais a causa da independência.
6 O Chefe de Divisão Jacintho Roque de Senna Pereira, veterano dos conflitos no Rio da Prata, integrou os
gabinetes de 16 de abril de 1839, 01 de setembro de 1839 e 18 de maio de 1840, neste foi substituído por
Joaquim José Rodrigues Torres.
7 Salvador José Maciel transitou no Governo desde a primeira Regência do Ato Adicional até o 3º gabinete da
Maioridade (1836 a 1843), período em que se verifica a hegemonia dos políticos fluminenses no Governo.
Suas inclinações liberais não impediram a amizade com Luiz Alves de Lima, futuro Duque de Caxias, que o
tinha como militar de confiança, e de se aproximar do projeto conservador. Em sua trajetória política começou
como governador da província do Rio Grande do Sul, cargo do qual foi destituído em 2 de agosto de 1829,
diante das denúncias do ministro do Império de ter ideias absolutistas. Quando assumiu como ministro da
Marinha, em 1836, aventou a ideia de criar um espaço onde poderiam ser educadas e treinadas as praças,
visando a jovens que desejassem seguir a carreira militar, foi substituído por Joaquim José Rodrigues Torres,
em 1838.
26
consideração ao que levo exposto, e porque mesmo entendo, que tal foi
o espírito da instituição das Companhias Fixas.8
or
Imperial. Ao fazer referência às Companhias Fixas, não esconde que se tratam
od V
da base de seu projeto de formação de praças e propõe que o Congresso “dê a
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mão ao desígnio”, que o tempo responderá com o sucesso. Rodrigues Torres já
trazia em sua carreira política e intelectual experiência em relação à educação
R
pública quando, em 1834, à frente da presidência no Rio de Janeiro, idealizou
e criou a primeira Escola de Formação de Professores no Império, que funcio-
naria como laboratório para as demais províncias.9 Naquela ocasião, Torres
o
havia se apropriado das ideias de François Guizot, político francês, ministro
aC
da Instrução Pública da França no início de 1832, e idealizador e criador de
uma escola de formação de professores durante a restauração francesa.10 A
or
de aprendizes-marinheiros
od V
As Companhias Fixas do ministro Salvador José Maciel cumpriam o
aut
objetivo de organizar os marujos em corpos militares para embarque nos
navios da Marinha de Guerra, oferecendo alguma ordenação ao que naquela
R
época chamava-se marinhagem.12 Porém, ao inserir a ideia de formação, ins-
trução e educação militar, em seu projeto, estava o militar do Exército inau-
o
gurando na Armada uma nova concepção acerca do marinheiro. O Projeto de
Lei foi encaminhado à Câmara em 1836, previa a fixação de forças de mar
aC
para o biênio 1837-1838 e apresentava um projeto de formação de praças
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12 Chamava-se assim os marujos de baixa patente que não pertenciam a uma classe específica de marinheiros,
muitos deles oriundos do recrutamento forçado. Quando, em 1840, foi criada a Companhia de Aprendizes-
-Marinheiros, essa categoria ficou mais evidente nos quadros da Marinha Imperial, pois aqueles marinheiros
que passavam pelo processo de aprendizagem e instrução militar nas Companhias eram denominados
Imperiais Marinheiros assim como aqueles recrutados na Corte por força do Art. 32 do Decreto nº 411 A,
de 5/6/1845, a partir de então a marinhagem se destacava como um grupo de marujos sem pertencer a
um corpo militar dentro da Armada até que fosse remetido ao Quartel General na Corte. A função desses
marujos era uma gama de serviços e tarefas de bordo, além de suas atividades como militar, executavam
as “faxinas” (trabalhos) nos conveses, tais como limpeza dos equipamentos, armamentos e dos espaços
internos de um navio de guerra conforme as disposições do Regimento Provisional da Armada.
28
or
usam nos combates navais, e nos de terra.13
od V
aut
É bem evidente a classe social a qual se refere o texto, indivíduos que
vivem à margem da miserabilidade e com pouquíssimos meios de subsistên-
cia, localizados nos mais baixos níveis de subalternidade do tecido social.
R
Esses, para o ministro, estariam aptos a ingressarem nas fileiras da Armada
para serem instruídos na mais severa disciplina e submetidos à subordinação
o
mais rígida, pois, dessa forma, continua o ministro,
aC
Conseguiremos formar uma marinha numerosa, e respeitável pela quali-
or
foi autorizado a elevar o número de Companhias para dez por meio da Lei
de 10 de outubro de 1837; era o início de um processo que avançou por toda
od V
segunda metade do século XIX.
aut
Foi nesse tom que, entre os anos de 1836 e 1840, o debate em torno
do projeto de formação de praças para a Marinha Imperial foi conduzido na
R
agenda das propostas do governo. A criação das Companhias Fixas aparece
com uma “vantagem real”15 para organização e formação dos marujos nos
o
relatórios dos ministros que sucederam a Salvador Maciel. Porém, somente
na consolidação e no auge da conformação política com a liderança dos
aC
Saquaremas, quando Salvador Maciel, Jacintho Roque de Senna Pereira16 e
Rodrigues Torres, em 1840, conduziram o projeto que foi possível avançar.
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or
alcançar as “Nações Civilizadas”, na Armada Imperial ela poderia promover
od V
a ordem e a manutenção da disciplina, expurgando o indivíduo sedicioso e
aut
eliminando as revoltas e rebeliões a bordo dos vasos de guerra da Marinha,
acreditava Rodrigues Torres. Ao longo de meados do século XIX, depois de
R
um espaço de tempo de 15 anos, foram criadas 18 Companhias. Compreen-
demos esse intervalo de tempo na perspectiva de laboratório, assim como foi
o
a Escola de Formação de Professores, criada na Corte por Rodrigues Torres,
a Companhia de Aprendizes da Corte funcionou como espaço de experimen-
aC
tação. As Companhias de Aprendizes-Marinheiros foram distribuídas pelo
território do Império conforme quadro a seguir:
Pará
são to
Coleções de Leis do Império do Brasil� Rio de Janeiro, RJ� Thipographia Nacional, 1875�
Biblioteca Digital do Senado Federal; CAMINHA, Hendrick Marques. Organização e
Administração do Ministério da Marinha no Império� Serviço de Documentação da Marinha, 1986�
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 31
or
Lei da Chibata”, resta saber se, embora o art. 77, da Lei nº 304, de 2 de junho
de 1843, que submetia os Imperiais Marinheiros ao Regimento Provisional da
od V
Armada e ao Artigos de Guerra, os aprendizes recebiam o mesmo tratamento,
aut
pois na Lei não havia previsão de punições para os aprendizes. Porém, outras
práticas não inscritas, ou até mesmo à luz da legislação, porém ao sabor das
R
interpretações dos comandantes, nos levam a crer que formavam um rol de
punições estabelecidas a partir das relações interpessoais.
o
Em 1845, foi estabelecido um novo Regulamento17 para o Corpo de Impe-
riais Marinheiros e a Companhia de Aprendizes continuava sob sua subor-
aC
dinação. Na mesma forma do regulamento anterior, o documento previa que
as praças do Corpo de Imperiais Marinheiros continuavam submetidas aos
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or
plinar rígido, a um regulamento que, além de restringir direitos, possibilitava
punições e castigos não previstos em lei.
od V
Por exemplo, segundo o Decreto de 5 de julho de 1845, o mancebo
aut
aprendiz só passaria a contar de tempo de serviço militar quando ingressava
no Corpo de Imperiais Marinheiros, só assim poderia garantir alguns direitos,
R
pois, segundo o Decreto,
o
Os Imperiais Marinheiros que, como tais, servirem por espaço de seis anos,
obterão, se quiserem, licença, em tempo de paz, para navegar em navios
aC
mercantes, por tempo de três anos, findos os quais, deverão apresentar-se
no Corpo, sob pena de serem considerados desertores. Os que completarem
Combinando essa passagem do Decreto com seu art. 20, que atribuía
aos aprendizes “todo o serviço de marinheiro que for compatível com as suas
são to
mais severa”, o aprendiz estava sob o julgo de seu comandante e, até que se
tornasse um Imperial Marinheiro, todo o tempo que permaneceu a bordo como
aprendiz não poderia ser computado para garantir sua “licença, em tempo
de paz, para navegar em navios mercantes”, muito menos para “baixa” ou
“reforma do serviço militar”. Em que medida podemos considerar essas prá-
or
ticas como uma forma de punições, diante das regras legais, podemos supor
od V
que, permanecer como aprendiz, era uma forma de punição aos indisciplinados
aut
e aos que cometiam insubordinação.
Contrariando o que estava previsto no Regulamento de 1845, a Compa-
R
nhia de Aprendizes da Corte não foi instalada na Fortaleza de Villegagnon,
junto ao Corpo de Imperiais Marinheiros. Alguns documentos, como avisos e
o
ofícios, comprovam que ela foi instalada na Ilha de Boa Viagem, em Niterói.
O relato do viajante alemão Thomas Ewbank, além de localizar onde funcio-
aC
nava a Companhia de Aprendizes-Marinheiros da Corte, nos traz uma imagem
bastante interessante e significativa para ilustrar a atmosfera, o ambiente e
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de quatros pés de altura nem dez anos de idade. Percebo que um deles era
são to
índio. O que tudo isso significa não concluí nem tive fôlego para perguntar.
Deixaram-nos passar, e passamos os dois suando e palpitando, exaustos,
em direção ao santuário. Tomando ora este, ora aquele caminho, paramos
finalmente para descansar, quando H me disse que o lugar tinha sido ulti-
par
ver di
21 EWBANK, Thomas. Vida no Brasil: ou o diário de uma visita à terra do cacau e das palmeiras. SP: EDUSP,
1990, p. 196-199. Apud ANTUNES, Edna Fernandes. Op. Cit.
34
or
recolhem ondem possam encontrar” e que, aos olhos, os liliputianos não
chegavam a 10 anos de idade e não alcançavam 5 pés de altura, aproxima-
od V
damente 1,50 m. Entre os “guerreiros” que manuseavam armas e guarne-
aut
ciam o local havia muitos índios, que, segundo Ewbank, eram provenientes
das aldeias jesuíticas. Portanto, até então, percebe-se que o recrutamento de
R
menores acompanhava as antigas formas de recrutamento forçado e recaindo
sobre as parcelas subalternas do tecido social submetendo a esses indivíduos
o
condições precárias de sobrevivência.
Entretanto, um grande esforço se percebe durante o processo de criação
aC
e formulação das Companhias de Aprendizes-Marinheiros para consolidá-la
como espaço de educação, formação e instrução militar, tentando distanciá-la
gabinetes mais confortáveis da Corte até chegar ao simples policial e aos tais
“indivíduos” das cidades mais distantes do País.23
Embora as redes do recrutamento já recaíssem sobre a infância, a Armada
Imperial precisou de um grande esforço para preencher as fileiras das Com-
or
panhias de Aprendizes. Uma das primeiras medidas foi promover mudanças
na legislação. Em 1841, logo após a criação das Companhias de Aprendizes,
od V
o Aviso de 30 de janeiro, do ministro Holanda Cavalcanti, instruía como
aut
deveria ser praticado o recrutamento para a Marinha. O Aviso circulou na
imprensa imperial, encontramos publicado em um jornal de grande circulação
R
na Província de Pernambuco em 1845. Além de orientar sobre o recruta-
mento de menores, incentivava autoridades, agentes do recrutamento, pais e
responsáveis a entregarem os menores com a promessa de uma gratificação.
o
Dizia o Aviso,
aC
Poderão ser recrutados todos e quaisquer indivíduos menores que viverem
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Para ser admitido [...] é necessário: 1º, ter de dez até dezessete anos de
idade; 2º, constituição robusta e própria para a vida do mar; 3º apresentar-
E
23 Idem. p. 71.
24 Art. 10 e 11 do Aviso Ministerial de 30 de janeiro de 1841, dando instruções acerca do recrutamento voluntário
para os corpos d’ Armada, arsenais e Marinha. Publicado no Diário Novo de Pernambuco, ano IV, n. 167,
publicado no dia 1o de agosto de 1845. Parte Oficial. p. 2.
25 Art. 28 do Decreto nº 304, de 2 de junho de 1843, Coleção de Leis do Império. https://www2.camara.leg.
br/atividade-legislativa/legislacao/doimperio/colecao4.html. Acesso em: 15 jul. 2019.
36
or
Passados 15 anos, na Província do Pará foi instalada uma Companhia de
Aprendizes-Marinheiros. O Decreto de criação27, que também estabeleceu o
od V
primeiro Regulamento para a instituição, tornou as Companhias uma unidade
aut
autônoma dentro da Administração Naval, agora não estava mais subordinada
ao Corpo de Imperiais Marinheiros.
R
O Regulamento promoveu algumas mudanças na organização da institui-
ção e, se o objetivo foi aumentar o número de menores, a principal novidade
o
do Regulamento foi a diminuição da idade para ingressar nas Companhias de
Aprendizes. A partir de então, seriam aceitos meninos menores de 10 anos,
aC
bastavam ter “suficiente desenvolvimento físico para começar o aprendizado”.
Além de oferecer autonomia à instituição, o novo regulamento possibilitou
do Porto, caso a Província não contasse com um Arsenal. Esses dois funcioná-
são to
rios, por sua vez, ficariam responsáveis por receber os menores voluntários e
os remetidos pelas autoridades locais, para depois remetê-los ao comandante
das Companhias de Aprendizes, o que antes era centralizado no Quartel-Ge-
par
ver di
neral, para onde eram encaminhados todos aqueles que ingressariam no Corpo
de Imperiais Marinheiros.
O decreto possibilitou ainda a divisão das Companhias em duas seções,
medida que posteriormente será utilizada para estabelecer uma unidade fora da
capital da província, a fim de facilitar a aquisição de menores nas comarcas e
E
26 Idem.
27 Artigo 9º, do Decreto nº 1.517, de 4 de janeiro de 1855. https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/
legislacao/doimperio/colecao4.html. Acesso em: 15 jul. 2019.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 37
or
para as Companhias de Aprendizes-Marinheiros. Segundo Edna Fernandes
od V
Antunes, recrutar menores era tarefa difícil; para autora, uma das dificulda-
aut
des era convencer os pais a encaminharem seus filhos para os cuidados da
Marinha.28 Na tentativa de não só atrair os menores para a instituição, mas
R
também convencer os pais a entregarem seus filhos aos cuidados da Armada
Imperial, a Marinha contou com a imprensa. Nas páginas dos jornais das capi-
o
tais das Províncias, o esforço das autoridades navais podia ser percebido nas
publicações de editais e chamadas para o recrutamento, e ainda nos elogios
aC
às Companhias de Aprendizes por parte de alguns editores.
Muitos jornais e periódicos passavam a ideia de que os meninos encon-
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Província, na matéria, o jornal começa por destacar que a instituição era de,
são to
José Francisco Pinto, por certo esses meninos ter em vez de comandante,
um pai extremoso. Temos por vezes observado o modo por que são os
aprendizes tratados, pelo seu comandante e demais oficiais. O cuidado e
extremo, quer no gozo de saúde quer quando doentes, nada lhes falta, a
comida é abundante, bem feita e do melhor gênero, o vestuário é o que
todo o público observa: sempre limpos e bem vestidos. E a alegria que
28 ANTUNES, Edna Fernandes. Marinheiros para o Brasil: o recrutamento para a marinha de guerra impe-
rial (1822-1870). Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de mestre, ao
Programa de Pós-graduação em História social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de
concentração: História social do Território. São Gonçalo, 2011.
38
or
iria moralizar a Armada Imperial, tinha duas funções fundamentais, destaca o
od V
texto: formar marinheiros “moralizados” e oferecer uma boa educação, ensi-
aut
nando os menores a ler e escrever e os transformando, assim, em indivíduos
úteis; isto é, não seriam mais desvalidos, “desprovidos de valor”. Ao deixarem
R
suas casas e seus familiares, encontrariam na instituição um substituto para
seus pais, o comandante da Companhia, que, com todo seu zelo, assim como
os demais oficiais, dispensaria aos aprendizes um tratamento com extremo
o
cuidado, tanto no gozo da saúde quanto no tratamento de enfermidades. Pois,
aC
nada faltaria ao futuro marinheiro, dessa forma, o periódico pernambucano
ironizava a ideia de que as crianças encontrariam nas Companhias uma boa
das denúncias veiculadas pelo jornal diz respeito ao prêmio oferecido àqueles
a re
valor deveria ser entregue aos pais, mães e avós, que seriam seus verdadeiros
herdeiros e não aos tutores, padrinhos ou outros que, após seduzi-los, levavam
os meninos para as autoridades do recrutamento. O editor afirma que,
par
ver di
Temos sabido que indivíduos sem eira nem beira que procuram haver
tutelados para imediatamente mamarem o prêmio; padrinhos que andam
à cata dos afilhados de quem nunca fizeram caso, seduzindo-os e levando
a Companhia.31
E
or
oferecidas pela Marinha, uma rede de recrutamento que recaiu sobre a infância
das camadas mais pobres dos setores subalternos da sociedade imperial.
od V
Ao estabelecer um prêmio aos responsáveis que apresentassem seus filhos
aut
e tutelados como voluntários às Companhias, a Marinha acabou garantindo a
prática do recrutamento de menores como uma atividade rentável. Tal medida faz
R
ganhar espaço, com muita força, a figura do tutor32, como agente ativo na prática
de recrutamento de menores que, com as garantias do Estado, agia com respaldo
o
da legislação. Como apontou Edna Fernandes Antunes, ao esclarecer que,
aC
A tutela ampliava o conceito de orfandade, pois menores com pais ainda
vivos ficavam sujeitos a receberem este registro por parte do Estado atra-
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Eram indivíduos que, por muitas vezes, estavam ali para captura de novos
marinheiros pela garantia de um retorno financeiro, porém essa mobilização
não se encerrava na busca por delinquentes, futuros marginais e ladrões em
troca de dinheiro. O que se estabeleceu foi uma estrutura para atender ao
par
ver di
32 A Lei de 28 de novembro de 1828 dava aos juízes de Órfãos o poder de nomear tutores aos casos marcados
por lei aos expostos, aos filhos de quem se ausentar por muito tempo, filhos de pais bêbados por hábito e
jogadores por ofício. https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/doimperio/colecao4.html.
Acesso em: 15 jul. 2019.
33 ANTUNES, Edna Fernandes. op. cit. p. 101.
40
or
que estavam chegando, pelas mãos de particulares, menores que não tinham
nenhuma relação paternal ou tutelar com aqueles indivíduos. Passou-se a exigir
od V
certidão de nascimento, batismo ou tutela para comprovação do nome, idade,
aut
filiação e a naturalidade dos menores. Na medida em que buscava-se evitar
a caçada por menores, tais exigências acabaram por dificultar recrutamento
R
para as Companhias, como apontou Edna Fernandes Antunes, as exigências
provocaram redução de obtenção de menores voluntários para as Companhias
de Aprendizes, afirma a autora35. Por outro lado, tal medida talvez tenha sido
o
tomada pensando-se em redução de gastos, pois a Marinha atravessava um
aC
momento de rigorosa fiscalização com objetivos de reduzir custos, intensi-
ficando a fiscalização das contas na Administração Naval. Combater falsos
34 Coleções de Leis do Império do Brasil. Decisões do ministro da Marinha. Aviso de 19 de junho de 1878. https://
www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/doimperio/colecao4.html. Acesso em: 15 jul. 2019.
35 ANTUNES, Edna Fernandes. op. cit. p. 99.
36 Na província baiana, precisamente na capital, Salvador, a economia, em grande medida, concentrava-se na
atividade comercial que escoava pelo mar, devido à sua localização privilegiada, que favorecia a navegação
marítima de longo e curto curso. Encontrava-se na Bahia o segundo maior centro administrativo da Marinha
Imperial; na província estava instalado o segundo maior Arsenal da Marinha, unidade que concentrava o
centro administrativo e industrial mais importante depois da unidade da Corte.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 41
or
sião, o Juiz de Órfãos, Francisco Gonçalves Matos, fez embarcar os menores
órfãos de pais Antônio Ignácio Albernaz, branco, 11 anos de idade; Anceto
od V
Cordolino, pardo, 11 anos de idade; Procópio Coelho, cabra, 13 anos de
aut
idade, e Leopoldino de Deus Martins, branco, 16 anos de idade. O destino
dos meninos era o intendente da Marinha na Capital da Província.38 A Vila
R
de São Francisco também recebeu a visita da São Leopoldo, porém o número
de menores enviados não foi satisfatório, foi o que relatou o juiz de Órfãos e
o
delegado Manoel Joaquim de Azevedo Pontes em seu Ofício de 29 de outubro
de 1857. Azevedo Pontes escreveu, em resposta ao ofício do intendente de 17
aC
de outubro de 1857, que,
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37 Ofício da Secretaria de Estado e Negócios da Marinha à Intendência da Marinha da Bahia. Arquivo Nacional,
Série Marinha. Códice IXM-84 – subsérie Intendência da Bahia.
38 Ofício do Juiz de Órfãos da Cidade de Cachoeira, na Bahia, ao Chefe de Divisão Intendente de Marinha
Felipe José Vieira. Arquivo Nacional, Série Marinha. Códice IXM-70 – subsérie Intendência da Bahia.
39 Ofício do Juiz de Órfãos e Delegado da Vila de São Francisco, Manoel Joaquim de Azevedo Pontes, ao
Intendente de Marinha da Província da Bahia Diogo Ignácio Tavares. Arquivo Nacional, Série Marinha.
Códice IXM-70 – subsérie Intendência da Bahia.
42
tesouro daquele juízo para depois ser remetido ao menor quando este comple-
tasse a idade de 18 anos.40 Casemiro parecia legislar em causa dos menores
órfãos e contra o decreto que determinava que o prêmio fosse entregue “aos
pais, tutores ou quem suas vezes fizer”. Em outro ofício, encaminhando os
or
órfãos desvalidos Sinfrânio e Marcelino por não terem meios de subsistência,
solicita que o intendente de Marinha Diogo Inácio Tavares os matriculasse
od V
na Companhia de Aprendizes e, devido à renúncia de seu tutor, que o prêmio
aut
fosse depositado na tesouraria por empréstimo a juros e que fosse entregue
aos menores assim que completassem a maioridade41. Disse o juiz que,
R
Embora pareça eles de pouca idade e falta desenvolvimento no cresci-
o
mento, todavia assegura-se o [ex] tutor que ambos podem por equidade
ser admitidos na dita Companhia, se V.S.ª assim quiser favorecer sem
aC
prejuízo do serviço público.42
filhos e tutelados fossem aceitos pelas autoridades navais. Nesse sentido, havia
a re
Podendo V. S.ª dignar-se de providenciar para que ao seu tutor [?] Gomes
da Silva, portador deste [ofício], seja entregue a quantia de cem mil réis
40 Ofício do Juiz de Órfãos da Capital da Província da Bahia, em 5 maio 1856, ao Intendente de Marinha da
Província da Bahia Diogo Ignácio Tavares. Arquivo Nacional, Série Marinha. Códice IXM-70 – subsérie
Intendência da Bahia.
41 O pagamento do prêmio aos recrutas da Companhias de Aprendizes ao invés de serem entregues aos pais,
responsáveis e tutores, também foi discutido por Álvaro Pereira do Nascimento, em A ressaca da Marujada:
recrutamento e disciplina na Armada Imperial. p. 80-81.
42 Ofício do Juiz de Órfãos da Capital da Província da Bahia, em 28 jan. 1857, ao Intendente de Marinha da
Província da Bahia Diogo Ignácio Tavares. Arquivo Nacional, Série Marinha. Códice IXM-70 – subsérie
Intendência da Bahia.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 43
que a lei tem estabelecido como gratificação a fim de ser ela devidamente
recolhida a algum estabelecimento bancário em favor do mesmo menor.43
or
Augusto encaminhou o menor Romão Barbosa do Nascimento ao inten-
od V
dente Diogo Ignácio Tavares sem fazer qualquer referência ao prêmio.44 Da
aut
mesma forma agiu o juiz de Órfãos da Cidade de Cachoeira na Bahia, Ricardo
Pinheiro, quando encaminhou os menores João Evangelista de Almeida e Apo-
linário João de Almeida, de 13 e 11 anos, respectivamente, filhos dos finados
R
João Evangelista de Almeida e Mathilde dos Santos e Almeida, “vítimas de
epidemia”,45 e o órfão Vicente Mendes da Silva, de 10 anos de idade, em 18
o
de dezembro de 1856. No caso deste, o juiz solicitou ao intendente da Marinha
aC
apenas que cobrisse as despesas de transporte com o menor,46 porém, assim
como o delegado Antônio Augusto, Ricardo Pinheiro, em nenhum dos dois
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Em outra ocasião irá o tutor deste, (de Leopoldino Lopes), e dos dois órfãos
são to
que remeti primeiro a V.S.ª Ex.ª receber o prêmio concedido pelo Srº aos
voluntários, em cuja qualidade também este deve dá a ser recebido, e o
dito prêmio será aplicado em benefícios deles [dos menores].47
par
ver di
43 Ofício do Juiz de Direto da Cidade de Nazareth, Bahia, ao Intendente de Marinha. Arquivo Nacional, Série
Marinha. Códice IXM-70 – subsérie Intendência da Bahia.
44 Ofício do Delegado da Província da Bahia ao Intendente de Marinha da Província da Bahia Diogo Ignácio
Tavares. Arquivo Nacional, Série Marinha. Códice IXM-70 – subsérie Intendência da Bahia.
45 Ofício do Juiz de Órfãos da Cidade de Cachoeira, Bahia, em 18 dez. 1856, ao Intendente de Marinha.
Arquivo Nacional, Série Marinha. Códice IXM-70 – subsérie Intendência da Bahia.
46 Ofício do Juiz de Órfãos da Cidade de Cachoeira, Bahia, em 8 out. 1855, ao Intendente de Marinha. Arquivo
Nacional, Série Marinha. Códice IXM-70 – subsérie Intendência da Bahia.
47 Ofício do Delegado João José Oliveira Junqueira ao Intendente de Marinha da Província da Bahia. Arquivo
Nacional, Série Marinha. Códice IXM-70 – subsérie Intendência da Bahia. Grifo meu.
44
or
a percepção de que o prêmio deveria ser reservado ao menor recrutado. Como
o curioso caso protagonizado por Sr. Pedro Moraes, que acumulava o cargo de
od V
Juiz de Órfãos e delegado. O juiz enviou um ofício ao intendente da Marinha
aut
informando que o valor, que já havia sido reservado e depositado em favor do
menor João Damasceno, que já havia sido matriculado como aprendiz-mari-
R
nheiro, deveria ser entregue ao seu tutor, o Major Manoel Rufino.49
Outro caso curioso, que fez valer a letra da lei para garantir o prêmio,
o
foi protagonizado pelo juiz de Direito da Vila de Ilhéus, Hermando Domin-
gues do Couto. Ao entregar às autoridades navais os jovens Manoel da Ora,
aC
de 12 anos de idade, cariboca, filho da índia Benta Josefa, já falecida, e de pai
incógnito; e Januário Fernandez, também de 12 anos, índio, filho legítimo de
48 Oficio do Delegado da [?] ao Chefe de Divisão e Intendente da Marinha. Arquivo Nacional, Série Marinha.
Códice XVI M-5 – subsérie Capitania dos Portos.
49 Ofício do Juiz de Órfãos e Delegado Pedro Moraes, em 29 maio 1855, ao Intendente da Marinha da Bahia.
Arquivo Nacional, Série Marinha. Códice IXM-70 – subsérie Intendência da Bahia.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 45
REFERÊNCIAS
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Marinha de Guerra Imperial (1822-1870). 2011. Dissertação (Mestrado) –
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do Rio de Janeiro. História social e Território. 2011.
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Departamento de História da Universidade de São Paulo, 2001.
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de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social Belo Hori-
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC. 1987.
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visã
são to
r par
a re
ver di
E
Ed
ver
são itor
par
a re aC
visã R
od V
o aut
or
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
A PRIMEIRA COMPANHIA DE
APRENDIZES-MARINHEIROS (1840): a
história política como alicerce para a criação e
or
consolidação da “esperança da armada imperial”
od V
aut
Jorge Antonio Dias1
R
o
Nossos primeiros passos
aC
a imersão histórica que propomos nesse estudo possui íntima e direta
ligação com dois aspectos que precisam ficar devidamente claros ao leitor a
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
cidos até agora e que se tem dedicado aos temas ligados as Companhias de
Aprendizes-Marinheiros do Rio de Janeiro e demais províncias produzidos por
diferentes historiadores ainda que, em temporalidades e espaços diferentes,
as relações entre a Política e a História têm sido objeto de preocupação, sem
E
1 Jorge Antonio Dias. Doutor em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC – Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV – Fundação Getúlio Vargas/RJ. Email: dia-
santj@hotmail.com
2 Há um número significativo de trabalhos acadêmicos (artigos, dissertações e teses) das áreas de Educação
e História concluídas, ou ainda em fase de estudos que podem ser consultados no banco de dados no portal
do CNPQ, ou na introdução da tese: DIAS, Jorge A. O Processo de Criação e Consolidação da Primeira
Companhia de Aprendizes-Marinheiros do Brasil Imperial (1840). Tese de Doutorado, Rio de Janeiro, CDOC/
FGV, 2017.
50
or
àquilo que antes estava esquecido, o que consequentemente apontou um novo
od V
caminho que articulava e permeava as diferentes relações sociais. Afinal, a
aut
constatação de que o político é elemento presente nas mais variadas dimensões
da vida social é certamente o vetor das análises apresentadas.
R
Em outras palavras, é da questão do poder que se trata no campo da
política. E as questões que se colocavam apontavam, naqueles momentos
o
históricos e políticos invariavelmente, para a maneira como essas se manifes-
tavam e orientavam as ações sociais definindo os destinos daqueles homens,
aC
os trabalhadores do mar.4
O segundo aspecto diz respeito à filiação desse objeto a chamada nova
or
para o recrudescimento e enfoque apenas político dessa presença nas pesqui-
sas acadêmicas.
od V
Ainda que a nova História Militar venha se apresentando como um campo
aut
modesto dos estudos históricos no Brasil, temos a clareza e a percepção que o
número de pesquisadores e as áreas de interesse têm aumentado substancial-
R
mente; e a presença de grupos temáticos em diferentes encontros regionais e
nacionais, diferentes simpósios e encontros sobre a História Militar aliado a
o
publicações de livros e revistas de interesse acadêmico, militar e geral, muito
tem contribuído para isso. Pois, reunir acadêmicos, militares, professores e
aC
discentes de diversas áreas do conhecimento que se interessam pelo estudo
de questões ligadas às temáticas militares favorece o acesso à informação
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Nélson W. História Militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civ. Brasileira, 1965. CASTRO, Celso. IZECKSOHN,
Vitor. KRAAY, Hendrik (org.). Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. SOARES,
Luis Carlos; VAINFAS, Ronaldo. Nova história militar. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo
(org.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
52
or
encontravam imerso nessa fase, ao qual denominamos de Aristocratas do
od V
Trabalho Naval; além do enfardamento propriamente dito. Como primeira
aut
unidade, a Companhia do Rio de Janeiro serviu como um modelo de utili-
dade para as futuras, e por seu intermédio as autoridades navais constituídas
puderam vislumbrar que ali estaria se constituindo a “esperança da Armada
R
Nacional e Imperial”:
o
A instituição do Corpo de imperiais Marinheiros e de Aprendizes-Mari-
aC
nheiros é, por ora, e será ainda por longo tempo a esperança da Armada
(VIEIRA TOSTA, 1848, p. 3).
nado. Afinal, a criação da Companhia de Aprendizes nos anos de 1840 foi uma
a re
6 http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=66766&norma=82700
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 53
or
CIMENTO, 1997, p. 25). Ainda sobre a Companhia de Aprendizes do Rio de
Janeiro entre os anos de 1881-1882, afirmou Nascimento que:
od V
aut
[...] as escolas funcionavam como “viveiros” onde o menor teria de aprender
a respeitar e a seguir a disciplina militar. Porém, essas escolas se mostraram
R
débeis ao longo do tempo, pelo menos foi o que conseguimos localizar em outros
relatórios. [...] Na realidade, as escolas eram espaços de confinamento até que
o menor alcançasse a robustez necessária para enfrentar o duro serviço a bordo
o
dos navios. A Armada precisava de homens, só e só (NASCIMENTO, op. cit.).
aC
As críticas ao funcionamento e ao papel que representou as compa-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
atenção pela narrativa em que coloca seu espanto em observar que “nenhum
desses guerreiros ia além de quatros pés de altura nem dez anos de idade”
(EWBANK, 1990, p. 196), percebendo serem alguns deles:
índios e que o governo tinha estabelecido ali uma escola para uma centena de
meninos serem educados como marinheiros”; “numerosos índios estão entre
eles, principalmente índios domesticados; as autoridades recolhem-nos onde
possam encontrá-los e mandam-nos para as escolas navais daqui. Dizem que
acabam dando bons marinheiros. (EWBANK, op. cit.)
54
or
obra ter-se dado em menor número, ou pelo menos não ser considerada de
forma clara quando da identificação desses nos livros de socorros ou assenta-
od V
mentos da Marinha. A utilização de denominações de cor como caboclando,
aut
cabocla, pardos, ou mesmo; as lacunas nesse item sugerem o resultado de
diferentes significados, conforme percebido nos livros de socorros da Fragata
R
Príncipe Imperial de 1836.7
Embora seja inegável o valor dos relatos de viajantes como fonte docu-
o
mental que nos informam sobre determinado período, não podemos perder de
vista a complexidade que envolve sua produção. Como também perceber que
aC
o viajante busca enxergar sobre o outro aquilo que ele quer ver. Nesse sentido,
devemos entender esse e outros relatos de viagem como uma produção que
7 Em 1825, foi autorizada a criação de uma Companhia de índios para os serviços do Arsenal e Navios da
Armada – CLI, 1825, p. 200. Em 1827, há relatos de deserção de dois índios do Arsenal da Corte – AN.
Série Marinha, XM 793, Ofícios do Inspetor. Em 1837, autorizado pelo ministro da Marinha por intermédio
do aviso de 3 de julho de 1837, o engajamento de dois jovens indígenas de 10 anos. AN. Série Marinha,
Avisos do ministro, 1837.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 55
or
tro Holanda Cavalcanti. Afinal, tratou-se ali de fazer uma associação direta
od V
entre aspectos internos necessários a constituição de uma Marinha que melhor
aut
pudesse servir as expectativas daquilo que as autoridades navais constituídas
enxergavam como sendo o papel a ser exercido pelas forças militares, ou
R
seja, unidades instruídas nas armas correspondentes, disciplinadas e aptas
à repressão.
Notamos, conforme ênfase no início desse texto que a criação das Com-
o
panhias de Aprendizes e do Corpo de Imperiais Marinheiros era revestida de
aC
grande esperança por parte dos sucessivos ministros da Marinha no intuito de
resolver também os latentes e históricos problemas relacionados às composi-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Ainda segundo Prado Maia, com o passar dos anos, os marinheiros ori-
ver di
Todavia, ao que nos parece, com base em tudo que já foi até aqui apre-
sentado, a esperança residia como “retórica” nos discursos oficiais de alguns
ministros apoiados em dados estatisticamente favoráveis (PERELMAN;
OLBRECHTS-TYTECA, 2005, p. 45)8. De acordo com os relatórios do Corpo
de Imperiais Marinheiros de 18579 e do Mapa Estatístico do Corpo de Impe-
riais Marinheiros que integra o relatório ministerial do ministro Afonso Celso
de Assis Fiqueiredo de 1867, anexo 10, assentaram Praça na Companhia de
Aprendizes do Rio de Janeiro 1.655 indivíduos entre os anos de 1836 a 1855.
8 Aqui nos reportamos a ideia da utilização por parte dos ministros da técnica argumentativa própria da
retórica no sentido de persuadir e convencer
9 AN. Série Marinha III M 674, B5
56
or
Abaixo compilamos em uma tabela os dados mencionados:
od V
Tabela 1 – Demonstrativo de ingresso na Companhia de Aprendizes -1836/1855
aut
COMPANHIA DE Aprendizes-Marinheiros DO RJ
R
ASSENTARAM
PASSARAM BAIXAS
PRAÇA
(ao Corpo de Imperiais Marinheiros) (Inspeção) *
(1836-1855)
o
1.655 879 55
aC
Fonte: RMM, Afonso Celso de Assis Figueiredo, 1867, anexo número 10�
de Imperiais Marinheiros.
Em uma tabela mais elaborada chamamos atenção do leitor para
alguns dados relativos às formas de recrutamento, número de mortes e bai-
par
xas respectivamente:
ver di
(1840-1855)
ASSENTARAM
SOMA MORRERAM SOMA BAIXAS SOMA
PRAÇA
or
ainda que em um período de tempo menor. Esse aspecto não foi mencionado
pelo autor do relatório. Mas, podemos inferir, à partir do exemplo de outros
od V
documentos pesquisados que pode ter existido um equívoco nas anotações dos
aut
livros de assentamentos, ou ainda; o que não era incomum, o recrutamento
de indivíduos de idade superior a estabelecida por lei associado a prática de
R
recrutamento pouco ortodoxo que passavam despercebidas pelas anotações.
O número de mortes por doenças também chama atenção, ao mesmo
o
tempo desnudando uma realidade que a partir deste dado tornou-se evidente
e, em parte evidenciada pela documentação. Ou seja, a possibilidade de serem
aC
encontradas péssimas condições de salubridade nas instalações/alimentação e
consequentemente no cotidiano dos trabalhos dos marinheiros nas unidades
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
10 AN. Série Marinha. Inspeção do Arsenal da Corte, XM 675, Fundo B2 – Queixa do Oficial Comandante Pedro
da Cunha sobre o tipo de carne servida. Segundo o comandante a carne de porco e o bacalhau pioravam
a infestação de sarna a bordo das embarcações das Companhias fixas.
58
or
objetivos. Acreditamos que esta documentação existe e aguarda ser revelada na
imensidão de documentos que se encontram sob a custódia do Arquivo Nacional
od V
no Rio de Janeiro; maior depositário de documentos sobre a Marinha fora do
aut
DPHDM – Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha.
Todavia, a Companhia do Rio de Janeiro foi a primeira a se estabelecer
R
e a funcionar durante quinze anos. Ou seja, de 1840 a 1855 foi a única a pre-
parar os Aprendizes para os trabalhos em mar. Nesse sentido, acreditamos
o
que como modelo de utilidade, ou como espaço de experimentações, as 17
companhias seguidamente criadas a partir de 1855 estivessem alinhadas em
aC
forma e conteúdo no que diz respeito as práticas de instrução e “educação”
dos Imperiais Marinheiros. Assim como, refletidos os problemas e as dificul-
deu entre os anos de 1841 e 1850, e acreditamos que isso foi possível devido
a implantação de seguidas regulamentações nos anos de 1843 e 1845, que
criaram diferentes expectativas e medidas estratégicas que visavam a fixação
par
or
jovens em sua maioria com idades entre 10 e 17 anos, provenientes dos lares
de órfãos.12 Pois, estes eram preferencialmente os indivíduos que deveriam
od V
se tornar os “desejáveis úteis, para si e para a Nação” com vistas a compor
aut
o quadro de Imperiais Marinheiros.
Contudo, conforme deixamos transparecer os problemas acompanharam
R
todo o processo, e um deles foi detectado com bastante clareza. Se, por um
lado, a Marinha enquanto instituição, estaria por intermédio da Companhia de
o
Aprendizes de Marinheiros determinada a mobilizar um grande número de indi-
víduos para compor os quadros de marinhagem; por outro, a persistência dos
aC
castigos como forma de correção disciplinar e neles fundamentando o processo
de permanência de marinheiros engajados e sua promoção, eliminava quase
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Para a classificação dos Imperiais Marinheiros nas praças que devão com-
petir-lhes, e para o seu regular acesso nas Companhias, passarão eles por
r
12 AN. Livro de Socorros da Companhia Agregada de Marinheiros Fixos do Rio de Janeiro – 1837. Arquivo
Nacional – Série Marinha, subsérie Socorros de Marinha/Corpo de Fazenda, códice XVII M 5314.
60
Porém, até onde nos foi possível verificar, não encontramos aplicação de
nenhum exame específico. Exceto avaliações simples relacionadas às aptidões
or
ou não para leitura, ou atividades matemáticas como somas e subtrações.
od V
Este foi o caso de um Imperial Marinheiro cujo nome não conseguimos
aut
identificar. Ele era egresso da Companhia de Aprendizes do Rio de Janeiro,
desertando pouco tempo depois de fazer parte do Corpo de Imperiais Mari-
R
nheiros, em 1872. Dois anos depois, após ter sido castigado pelo crime de
primeira deserção simples, foi capturado e assentou praça como grumete.
o
Em 1876, foi promovido a marinheiro de primeira classe. Mas, por ter se
ausentado sem permissão do Comandante, foi mais uma vez castigado com
aC
prisão e rebaixado, mais uma vez a grumete.14
Não conseguimos acompanhar por mais tempo a trajetória individual
or
entre indivíduos e grupos, determinava as posições de cada parte envolvida, e
o conjunto dessas posições se constituiu em uma importante ferramenta inter-
od V
pretativa da realidade no contexto do desenvolvimento desse trabalho.16
aut
No ano de 1833, em pleno curso das propostas liberais empreendidas
pelos moderados, o então ministro da Marinha Joaquim José Rodrigues Torres
R
apresenta ao Senado projeto aprovado pela Câmara dos Deputados com aval
da comissão de Marinha e Guerra que fixava as forças navais para os anos
o
de 1834 e 1835. Durante a terceira discussão na câmara do projeto de lei de
fixação das forças navais, Salvador Maciel mandou à mesa, sendo apoiado
aC
pela casa, o seguinte artigo aditivo:
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
16 O conceito de habitus emerge na obra de Bourdieu, no contexto de suas reflexões críticas sobre o papel
da escola na reprodução social. Segundo ele, o momento da construção do habitus como sistema das
disposições socialmente construídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o
princípio gerador e unificador do conjunto de práticas e ideologias características de um grupo de agentes.
Tais práticas e ideologias poderão atualizar-se em ocasiões mais ou menos favoráveis que lhes propiciam
uma posição e uma trajetória determinadas no interior de um campo intelectual que, por sua vez, ocupa
uma posição determinada na estrutura da classe dominante. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas
simbólicas. Introdução, organização e seleção Sérgio Miceli. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 191 – (Coleção
estudos 20). Esse conceito foi trazido ao nosso trabalho por propiciar, junto a outros elementos teóricos,
a possibilidade de compreensão da emergência de uma nova configuração (práticas socializadoras), em
que o processo de construção dos habitus passa a ser mediado pela coexistência de distintas instâncias
culturais e referências identitárias.
17 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 31 de maio de 1833.
18 op. cit.
62
or
Pernambuco como organizador das milícias (1824), serviu na província da
Bahia como diretor do Arsenal de Guerra, Inspetor de Fortalezas e Portos
od V
(1824), Presidência da Província do Rio Grande do Sul (1826-29), Deputado
aut
na segunda legislatura (1830-33) e ministro da Marinha (1836). Um aspecto
interessante foi, naquele momento, ter sido ele a apresentar o artigo aditivo à
R
lei de fixação naval, sendo um integrante do exército. Uma hipótese plausível,
entre outras, seria considerar que Salvador Maciel, com esse gesto demons-
o
trava um bom relacionamento desse ramo das Forças Armadas com as repre-
sentações de parte da elite civil; ou, um provável controle civil objetivo sobre
aC
os militares, aliando-se a isso a clareza das dificuldades estruturais, históricas
e sociais impostas pelo recrutamento às duas Forças – Exército e Marinha.
quando embarcados.19
Os debates no Senado sobre o artigo que propunha a criação de quatro
Companhias de Aspirantes Marinheiros revelaram, pela abordagem adotada
pelos senadores, que ser aspirante era aquele indivíduo que desejava alcan-
çar o posto de oficial de Marinha; diferentemente do sentido semântico e
E
or
tenho dito que quer que deem os elementos necessários para termos no
od V
futuro uma marinha compatível com a nossa posição.20
aut
Por fim, o artigo foi rejeitado e derrota do ministro Rodrigues Torres naquele
momento histórico e político foi também a derrota de Salvador Maciel, e de
R
uma intenção, que em nossa percepção caminhava em parte ao encontro das
experiências percebidas pelos oficiais da Armada, e deles próprios. Por intermé-
o
dio das experiências vividas, experimentadas e compartilhadas perceberam as
aC
dificuldades de seu campo de trabalho na inaptidão dos corpos de marinhagem.
Naquele momento, ao se lançarem ao debate expressaram-se por meio das formas
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
20 Anais do Senado, Joaquim José Rodrigues Torres, Sessão de 8 de julho de 1833, p. 132.
21 Para conhecer mais a fundo as discussões sobre as Companhias de Aspirantes ver: DIAS, Jorge A. &
SERRALHEIRO, Cosme. Caminhando rumo a uma Marinha forte, homogênea e exercitada: a proposta de
criação de quatro Companhias de “Aspirantes” Marinheiros nas discussões do Senado em 1833. Revista
Navigator, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2016. Disponível em: https://www.revistanavigator.com.br/navig24/
N24_index.html.
22 Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 6 de maio de 1836. http://imagem.camara.gov.br/dc_20b.
asp?selCodColecaoCsv=A&Datain=6/5/1836#/
64
or
od V
Cumpre pois criar, quanto antes, companhias fixas de marinheiros, aonde
aut
se obriguem a servir, como Aprendizes-Marinheiros todos os rapazes sem
meios de subsistência, e os que se não aplicarem assiduamente a algum
R
ofício ou ocupação: estes corpos devem ser organisados de tal forma, que
se tornem aptos para todo o serviço de Mar, e aprendão conjuntamente
o manejo dàrtilharia, de Fuzil, e de todos as armas, que se usam nos
o
combates navais, e nos de terra. Deste modo conseguiremos formar uma
aC
Marinha numerosa, e respeitável pela qualidade das tripulações, e conver-
ter em hábeis navegadores, e bravos defensores da Pátria, indivíduos, que
des” envolvendo Salvador José Maciel e Rodrigues Torres. Ainda que ambos
a re
são to
ministro, militar e político Maciel adquiriu a clareza que somente com uma
política de fixação dos corpos na Marinha seria possível sua transformação.
Ao que nos parece, essa “pedagogia política” de fixação de indivíduos
pensada por Maciel, em certa medida comungada por Rodrigues Torres, estru-
turava-se na configuração da sociedade da época e nas mudanças de com-
portamento dos indivíduos que “habitavam” os quartéis e navios. Ou seja,
na experiência histórica dos equívocos em que se tornaram as experiências
e práticas do recrutamento, e em pensar de forma desconectada o trabalho
naval envolvendo oficiais e marinheiros;
or
havemos exposto, se poderão conseguir com o andar do tempo numerosas
e boas equipagens para a Marinha de Guerra, e vasos mercantes, criando-
od V
-se um viveiro de excelentes oficiais marinheiros e práticos instruídos.24
aut
Afinal, para ambos, os bons resultados de suas intenções a nível insti-
R
tucional poderiam transcender desde que empregados todos os meios por ele
expostos nos portões dos quartéis, e nos conveses dos navios. E Salvador
o
Maciel reiterava,
aC
Com essas companhias procura-se aperfeiçoar o ensaio que já se começou
a fazer, e está se fazendo a bordo da Fragata Príncipe Imperial. Declarando
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
que são essas companhias fixas organizadas da nossa mocidade indigente que
visã
vagando pelas ruas das cidades e que vêm acabar desgraçada dos outros, con-
vido os senhores deputados a visitar esse estabelecimento onde verão moços
de pouca idade aprendendo, além de exercícios de marinheiro e artilheiro,
outras doutrinas que os podem tornar homens inteligentes no serviço da nação
r
e úteis a si, demais esta providência vai cortar o mal que já se principia a
sentir-se da falta de oficiais marinheiros.25
a re
são to
sentou a criação de uma nova instituição. Fez parte sim, parte de um processo
ver di
REFERÊNCIAS
AN. Livro de Socorros da Companhia Agregada de Marinheiros Fixos do Rio
de Janeiro – 1837. Arquivo Nacional – Série Marinha, subsérie Socorros de
or
Marinha/Corpo de Fazenda, códice XVII M 5314.
od V
aut
AN. Série Marinha III M 674, B5
R
AN. Série Marinha, Avisos do ministro, 1837.
o
aC
AN. Série Marinha, XM 793, Ofícios do Inspetor.
or
Navigator, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2016.
od V
aut
DIAS. Jorge A. “O tio navio revolta-se contra o sobrinho presidente”. Histo-
riografia e os usos políticos da memória da Revolta dos Marinheiros de 1910
R
pelo Movimento Negro Brasileiro. 2012. Dissertação (Mestrado em História
social) – Vassouras: USS, 2012.
o
DIAS. Jorge A.; Jorge A. O Processo de Criação e Consolidação da Primeira
aC
Companhia de Aprendizes-Marinheiros do Brasil Imperial (1840). 2017. Tese
(Doutorado) – Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 2017.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
visã
EWBANK, Thomas. Vida no Brasil: ou o diário de uma visita à terra do cacau
e das palmeiras. SP: Edusp, 1990.
HTTP://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.
r
action?id=66766&norma=82700
a re
são to
RÉMOND, René. (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro, UFRJ,
or
FGV, 1996.
od V
RMM, Afonso Celso de Assis Figueiredo, 1867
aut
RMM, Joaquim Elísio Pereira Marinho, 1888
R
RMM, Joaquim José Rodrigues Torres, 1832
o
RMM, Joaquim José Rodrigues Torres, 1838
aC
RMM, Manuel Vieira Tosta, 1849
or
od V
Silvia Capanema1
aut
No final do século XIX, dois grandes acontecimentos representaram
R
um passo importante para que o Brasil entrasse na “modernidade ocidental”,
conforme a aspiração das autoridades e elites locais: a abolição da escravatura,
o
em 13 de maio de 1888, e a Proclamação da República, em 15 de novembro
aC
de 1889. Nesse contexto de profundas transformações, como se articulam as
noções de cidadania e liberdade? Considerada a periodização política clássica,
como os desafios da Primeira República (1889-1930) se cruzam com os do
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
1 Professora adjunta (Maîtresse de conférences) na Universidade de Paris 13 – Sorbonne Paris Nord desde
2010 e Doutora em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris – França.
Possui ainda Mestrado em História também pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS);
Pós-Graduação (Master-1) em Langues, Littératures et Civilisations Étrangères pela Université Blaise Pascal,
Clermont Ferrand, França e Graduação em Comunicação Social / Jornalismo pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG). Foi vereadora da cidade de Saint-Denis (2014-2020) e é deputada departamental
(conseillére départementale) de Seine-Saint-Denis desde 2015.
2 O período pós-abolicionista corresponde mais a um contexto de várias décadas que definem uma realidade
social que a uma periodização política marcada por uma data precisa. Sobre esta noção transnacional ou
transatlântica que propõe uma nova perspectiva historiográfica, ver RIOS, A. M.; MATTOS, H.M. O pós-
-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas. Topoi, Rio de Janeiro, v. 5, n. 8, p. 170-198,
jan./jun. 2004.
3 Pensamos aqui na noção de biopolítica, com a manifestação do poder sobre os corpos. Mas também, para
os marujos, a importância de um reconhecimento como atores sociais e políticos a partir de um outro olhar
e tratamento dos seus corpos. Ver : La Biopolitique (d’)après Michel Foucault. Labyrinthe, n. 22, 2005.
70
or
cidadão”5.
od V
No entanto, a instauração da República é repentina6. Uma parte das
aut
tropas que participaram do golpe de Estado nem mesmo sabia da mudança
de regime. Quanto ao povo brasileiro, este iria assistir à conversão da monar-
R
quia à República bestializados, nas célebres palavras do jurista e jornalista
Aristides Lobo7, recuperadas pelo historiador José Murilo de Carvalho em
o
obra clássica8. De fato, diversos estudos mostram um paradoxo: a monarquia
caiu enquanto começava a receber importante apoio popular graças às leis
aC
consideradas como favoráveis aos escravos e à abolição9.
Na ausência de um projeto claramente definido, a República segue uma
or
entre um projeto republicano teórico e uma prática política de exclusão e de
alianças é significativa na imprensa satírica, desde o fim do século XIX11,
od V
como em outros textos e manifestações. A situação é confirmada por estudos
aut
dedicados a diferentes movimentos populares: nas áreas urbanas, por exemplo,
a revolta contra a vacinação obrigatória, no Rio de Janeiro, em 190412, e, no
R
interior, a formação de um povoado em Canudos, na Bahia, combatido pelo
Exército republicano em 189713.
Contudo, a distância das camadas populares da política não significa que
o
não tivessem uma opinião positiva ou negativa sobre o regime. Assim, entre
aC
novembro e dezembro de 1889, vários batalhões de soldados se rebelaram
nos novos Estados da República para mostrar sua ligação ao Império e à
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
no centro do Rio de Janeiro – que muitas vezes evocam o apego aos valores
da modernidade e do progresso vinculados à noção de República15.
Apesar da racialização do pensamento que marca as instituições na
par
ver di
Cahiers du Brésil Contemporain, n. 19, 1992, p. 69-91; VISCARDI, C. O teatro das oligarquias: uma revisão
da “política do café com leite”. Belo Horizonte: C/Arte, 2001.
11 Sobre caricatura e imprensa satírica nesse contexto, ver: SILVA, M. A. A caricata República: Zé Povo e o
Brasil. São Paulo: CNPq-Marco Zero, 1990.
12 CARVALHO, J. M. de. Os Bestializados..., op. cit.
13 CUNHA, E. Os sertões: Campanha de Canudos. 18e ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996,
14 Ver CASTRO, C. Revoltas de soldados contra a República. In: CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vitor; KRAAY,
Hendrik (org.). Nova História Militar Brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV; Bom Texto, 2004. p. 301-313.
15 MELLO, M. T. C. A República consentida: cultura democrática e científica no final do Império. Rio de Janeiro:
FGV/Editora da UFRJ, 2007.
16 SCHWARCZ, L. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São
Paulo: Cia das Letras, 2005.
72
pelos artigos 391 a 404 do código penal de 1890. O direito brasileiro procura
“enquadrar” uma população sem trabalho, sem dinheiro e sem casa. Os sujeitos
nessas situações poderiam ser direcionados a diferentes instituições, como às
colônias correcionais ou ainda ao Exército e à Marinha.
or
Através da revolta de marinheiros nacionais que se opõem, em 1910, às
punições corporais, este artigo pretende mostrar como a simbologia republi-
od V
cana pode, 22 anos após a abolição da escravatura, ser interiorizada por jovens
aut
de origem popular, em sua maioria negros ou pardos. Em outros trabalhos,
já discuti as origens sociais, a questão racial e de identidade dos marujos, a
R
chegada das ideias republicanas e de direitos no meio naval17. Neste texto,
pretendo analisar a maneira pela qual as noções de cidadania e de liberdade
o
se articulam no discurso dos marinheiros e como elas se combinam com
outras reivindicações próprias ao seu meio. Se, na origem, a República não
aC
foi o projeto dos afrodescendentes e das camadas populares, aos poucos,
entretanto, ela se torna objeto de reapropriação, principalmente pela utilização
17 Ver CAPANEMA, S. “Nous, marins, citoyens brésiliens et républicains ?”: identités, modernité et mémoire
de la révolte des matelots de 1910. 2009. Tese (Doutorado em História) – École des Hautes Études en
Sciences Sociales. Paris, 2009 e CAPANEMA, S., “Être noir, brésilien et marin : identités et citoyenneté
dans la période post-abolitionniste”, e Id., Être Noir, Brésilien et marin. Identité et citoyenneté dans la
période post-abolitionniste (1888-1914). In: ALMEIDA, Silvia Capanema P. de; FLECHET, Anaïs. (org.). De
la démocratie raciale au multiculturalisme: Brésil, Amériques, Europe. 1ed.Bruxelas: Peter Lang, 2009, v.,
p. 53-74.
18 À título de exemplo, o manifesto republicano de 1870 não menciona a abolição da escravatura, mesmo que
tenha sido publicado um ano antes da dita Lei do Ventre Livre, que libertou aos 21 anos os filhos de escravos
nascidos a partir daquele ano e constituiu a principal reforma social antes da abolição final: MATTOS, H.,
op. cit, p. 86.
19 A noção de identidade não é tomada como uma categoria fixa, mas como formas relacionais que se justapõem
e estabelecem lugares sociais, num contexto em que as identificações policiais e institucionais proliferam
no mundo ocidental e ocidentalizado. Ver, dentre outros : NOIRIEL, Gérard, L’identification. Genèse d’un
travail d’Etat. Paris: Belin, 2007.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 73
Raça e república
or
formam igualmente as camadas populares – difere da dos brancos. Reto-
od V
mando um esquema interpretativo da República francesa, modelo simbólico
aut
da jovem República brasileira, o autor utiliza a fórmula: “a liberdade é negra;
a igualdade, branca e a fraternidade, mestiça”. Em outros termos, a “liber-
R
dade” é sobretudo associada aos escravizados e aos seus descendentes que,
mesmo livres ou libertos, vivem sob o medo da reescravização, nas últimas
décadas de escravidão e até mesmo após a abolição21. A “cidadania” repu-
o
blicana é apresentada como uma noção mais ligada às classes médias, aos
aC
militares positivistas e aos grandes proprietários, favoráveis ao federalismo
norte-americano, igualmente previsto pelo projeto brasileiro de República. A
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O processo que levou à abolição não pode se resumir à lei assinada pela
princesa Isabel em 13 de maio de 1888 (a chamada “Lei Áurea”), que fez do
Brasil o último país a abolir a escravidão nas Américas. Não se deve confundir
par
ver di
or
ainda as numerosas fugas e a criação dos quilombos, apoiados por partidários
da abolição, especialmente a partir dos anos 187025. Uma pessoa negra ou
od V
parda poderia ser escrava, mas também, livre ou liberta, como indicam os
aut
recenseamentos da época26. O termo pardo carrega várias acepções. Durante o
período escravagista, era frequentemente utilizado para se referir aos livres ou
R
libertos27. Já após a abolição, podia indicar tanto algum grau de mestiçagem
(africana, até indígena), mas também relativizar, de acordo com o estatuto,
o
as origens ligadas à escravidão. Na Marinha do início do século XX, por
exemplo, homens negros ou mestiços são identificados como pardos28.
aC
Após o 13 de maio de 1888, várias famílias de ex-cativos continuaram
a trabalhar como mão-de-obra nas propriedades onde haviam sido escra-
Guarda Negra, forma de milícia composta por negros que deveriam proteger a
são to
24 Ver SILVA, A. C. Um rio chamado Atlântico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira-Ed, UFRJ, 2003, p. 22.
25 Sobre quilombos abolicionistas, ver: SILVA, E. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma
investigação de história cultural. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
26 Ver H. MATTOS, H. M. Das cores do silêncio: o significado da liberdade no sudeste escravista. Rio de.
Janeiro: Nova Fronteira, 1998; LIMA, I. S. Cores, marcas e falas: sentidos da mestiçagem no Império do
Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
27 MATTOS, H. M. Das cores do silêncio..., op. cit.
28 CAPANEMA, S. P. de A., Être noir, brésilien et marin…, op. cit.
29 Esta milícia demonstra a popularidade da monarquia com os libertos de 13 de maio e outros descendentes
de escravos após a abolição. Ver GOMES, F. dos S. Negros e política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2005; ALBUQUERQUE, W. R. de. O jogo da dissimulação. Abolição e cidadania negra no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
30 DOMINGUES, P. Os jornais dos filhos e netos de escravos (1889-1930). In: A nova abolição. São Paulo:
Selo negro, 2008. p. 19-58.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 75
or
1), denuncia, através da inversão de papeis, como 29 anos após a abolição,
dificilmente se previa uma igualdade efetiva para os negros. Intitulado “13
od V
de maio”, o desenho representa uma mulher negra elegantemente vestida,
aut
recebida em uma loja de sapatos por um empregado branco, em posição de
evidente submissão. Ela diz, em uma linguagem que tenta restituir as marcas
R
da oralidade de origem africana: “Ande di pressa, moço! São duas hora e já
divia está no instituto di belleza!”. Não é mera coincidência o fato de que a
o
cena se passa em uma loja de sapatos: os escravizados eram conhecidos por
andar descalços.
aC
Figura 1. O 13 de maio
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visã
são to
r par
a re
ver di
E
31 Julião Machado (1863-1930), nascido em Luanda (Angola), estudou e trabalhou em Portugal. No Brasil,
fundou com Olavo Bilac as revistas ilustradas A Cigarra e A Bruxa. Ver LIMA, H. História da caricatura no
Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, 4 vol., p. 963-985.
76
or
gênero e de raça. No entanto, mudanças poderiam acontecer, ameaçando a
ordem e o poder estabelecidos. No mesmo contexto, a inversão da ordem, vista
od V
como absurda e ofensiva, foi objeto de outras caricaturas, como evidenciado
aut
por uma ilustração referente à revolta dos marinheiros de 191032.
R
Raça e revolta
o
Em 10 de dezembro de 1910, a revista satírica Careta publica na capa
uma caricatura assinada por J. Carlos33 que ilustra da mesma forma essa
aC
inversão de papeis:
32 Sobre a caricatura dos negros no Brasil durante o período pós-abolicionista, ver CAPANEMA, S.; SILVA,
R. Do (in)visível ao risível: o negro e a raça nacional na criação caricatural da Primeira República. Estudos
Históricos (Rio de Janeiro), v. 26, p. 316-345, 2014.
33 José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950), conhecido como J. Carlos, originário do Rio de Janeiro, estreou
em O Tagarela em 1902 e trabalhou em várias revistas ilustradas, como Careta, Fon-Fon!, O Malho, Para
Todos, O Cruzeiro. Ele é um dos caricaturistas mais célebres da época, um dos que melhor representaram
as mudanças da modernidade carioca. Ver LUSTOSA, I. J. Carlos: art et caricature au Brésil du premier XXe
siècle”. In: Peinture et caricature. Actes du colloque de Brest 13-15 mai 2004, Ridiculosa, n. 11, 2004, p. 99-110.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 77
Figura 2
or
od V
aut
R
o
aC
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visã
r a re
34 Um quarto navio foi envolvido no levante, o encouraçado Deodoro. Os principais navios eram batizados
com nomes de políticos, mas também dos Estados da República, uma forma de afirmar a importância do
federalismo inspirado na prática de nomeação dos Estados Unidos.
78
or
Quase mil marinheiros são excluídos da Marinha no início do mês de
od V
dezembro. Um clima de desconfiança se instaura entre os oficiais e os maru-
aut
jos subalternos após o retorno à ordem. Os rumores de ataques a navios pelo
Exército circulam, alimentando tensões a bordo. É nesse contexto que uma
R
segunda rebelião eclode no início de dezembro entre os fuzileiros navais,
rapidamente esmagada pelas forças oficiais da República brasileira que declara
o
estado de sítio e realiza várias prisões. Um navio é fretado para deportar para
Amazônia 491 pessoas, dentre as quais 105 marinheiros e outros sujeitos iden-
aC
tificados como “vagabundos, prostitutas, soldados do exército”35. Muitos pas-
sageiros morrem ao longo da viagem, nove são fuzilados. Posteriormente, as
bro. Dos 70 acusados, somente dez se apresentam, os outros são dados como
são to
or
evocando as marcas da escravidão. Ele carrega uma medalha na qual lê-se a
data 23 de novembro de 1910, dia seguinte à revolta, que marcaria os novos
od V
tempos na Marinha. A representação caricatural dos marujos está longe de ser
aut
um caso isolado. Diversas são as caricaturas que evocam a inversão da ordem
social-racial logo após revolta ou que representam os marujos como figuras
R
simiescas, feias, animalescas. Esse tipo de representação de marujos negros é
anterior à revolta. Uma caricatura de 19 de novembro de 1903 publicada em
o
O Tagarela mostra um marinheiro negro com traços de macaco37. A legenda
fala de um rumor de revolta.
aC
As caricaturas atestam a existência de um olhar carregado de preconceito
racial. Como os marinheiros se viam? O que eles queriam? Como eles se
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or
vaso de guerra foi porque eram castigados barbaramente, o que é con-
od V
trário às leis da Marinha […]. A nenhum outro motivo, frisaram, deve-se
atribuir o seu procedimento ; e que, quanto à aclamação que fizeram do
aut
distinto Sr. Capitão-tenente José Joaquim Rodrigues Torres, para chefe da
flotilha e comandante da Marajó tem sua explicação no fato de ser esse
R
oficial, disciplinador, mas ao mesmo tempo garantidor dos direitos dos
seus companheiros40.
o
aC
As similaridades entre o movimento de 1893 e o dos marinheiros de 1910
são muitas, da crítica às bárbaras punições à recusa de misturar o movimento
40 Eco do Sul, 8 de junho de 1893, citado por NASCIMENTO, A. P. do. A ressaca da marujada..., op. cit., p. 129.
41 Ver MOREL, E. A Revolta da Chibata, op. cit., p. 60. Morel cita também outros levantes em outros navios
pelas mesmas razões, sem precisar datas.
42 Citado por NASCIMENTO, A. P. do. A ressaca da marujada..., op. cit., p. 131-132.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 81
or
de Notícias:
od V
Em 15 de novembro desse ano o marechal tomava posse do governo. Por
aut
essa época tinha-se tornado impossível a vida a bordo. Só em um dia,
por esse tempo, a bordo do Minas Gerais, foram chibatados nada menos
R
que 42 marinheiros. Foi só então que se resolveu, entre os marinheiros
que faziam parte da guarnição desse navio, tomar providência para fazer
cessar esse estado de coisas. Não sendo, porém, aceitas pelas autoridades
o
competentes as reclamações justas feitas em atitude moderada pelas pra-
aC
ças, é que ficou assente tomar-se por meios violentos as providências que
o caso exigia, convocando-se para isso sessões nesta capital, assistidas
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or
No Rio de Janeiro, os locais onde os membros do “Comitê Revolucioná-
od V
rio” da revolta se encontram estão localizados no centro e nos bairros portuá-
aut
rios da cidade, como Saúde e Gamboa46. Os bairros populares, vigiados pela
polícia, são territórios de contestação e de revoltas, como no caso da revolta
R
da vacina de 1904. Os bairros próximos do porto também são habitados por
migrantes do Norte e Nordeste do país e por antigos escravos e seus descen-
dentes. Apelidados de “Pequena África”, são conhecidos por serem os locais
o
de origem do samba e de outras manifestações da cultura popular47, lugares
aC
que são também de sociabilidade e de criação cultural e política.
Em razão do tempo ruim, a revolta é adiada para 22 de novembro e é
45 MIS. João Cândido, o almirante negro. Rio de Janeiro: Gryphus; Museu da Imagem e do Som, 1999, p. 75.
46 O comitê da Vila Rui Barbosa estava na Rua dos Inválidos, 71, no Centro, mas os encontros também
aconteciam na Rua do Livramento e em um bar na Rua do Jogo da Bola (Morro da Conceição). MOREL,
E. A Revolta da Chibata, op. cit., p. 74.
47 MOURA, R. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 83
or
od V
Da parte dos marujos, o marinheiro Adalberto Ferreira Ribas, um dos
líderes de 1910, contou a seus filhos que após a viagem à Inglaterra a bordo
aut
do São Paulo, ele voltou com algumas reivindicações nascidas da sua expe-
riência no exterior, “porque a revolta não foi só por causa da chibata. A revolta
R
também era pelos maus tratos em alimentação e o plano de carreira da Mari-
nha, que não tinha”49. Os filhos de Adalberto Ferreira Ribas se lembraram
o
que seu pai dizia que, para a guarnição do navio Bahia, foi a experiência de
aC
uma viagem à ocasião do centenário da independência do Chile, em 1910,
que havia provocado indignação conduzindo à revolta. Durante a viagem,
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um incidente aconteceu:
visã
E no estreito de Magalhães, um dos marujos não quis fazer a manobra
lá em cima porque o tempo estava terrível e no estreito de Magalhães o
mar é revolto, né? Penhascos, aquela coisa, o navio inclina de um lado
r
para o outro. Aí, o cara não fez a manobra. E ele subiu. E quando o navio
a re
Ao longo dessa viagem, uma mensagem assinada por “Mão Negra” foi
endereçada ao comandante do navio, questionando-o sobre os maus-tratos
dos marinheiros. Estes, dizia, já tiveram o suficiente de “chibata” e não que-
riam ser tratados como “bandidos” ou “escravos de oficiais”. A condenação
E
48 BRASIL. Ministro Joaquim Marques Baptista Leão. Introdução ao Relatório do ano de 1910. Apresentado
ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil. Em maio de 1911. Publicado em 1911.p. 23.
49 Entrevista de Marcos Valério Ferreira Ribas e Adaleia Ribas Barbosa (filhos do ex-marinheiro Adalberto
Ferreira Ribas), com Silvia Capanema e Marco Morel, em 12 de setembro de 2009, em Saquarema, Rio de
Janeiro. É necessário lembrar ainda que os marinheiros europeus recrutados no Minas Gerais organizaram,
durante sua viagem de volta, um movimento grevista e foram desembarcados.
50 Ibid.
84
or
com uma grande variedade de formas associativas, de sociedades, de centros e
sindicatos proliferam no Rio, São Paulo e Minas Gerais. As principais reivin-
od V
dicações tratam da jornada de trabalho de oito horas, de melhores salários e
aut
do direito a uma organização associativa de assistência mútua e resistência51.
No meio naval, uma “Associação de resistência dos marinheiros e rema-
R
dores” é criada em 31 de maio de 190552. A expressão “associação de resis-
tência” é utilizada para marcar a diferença das “associações mutualistas” cujo
o
objetivo principal era a assistência, mesmo que também tenham objetivos
sociais53. É notadamente o caso da associação de marinheiros da marinha
aC
mercante que, de acordo com seu registro de criação, busca fundar um caixa
comum a fim de sustentar os associados obrigados a abandonar o trabalho; a
or
Exceto pelas exigências relativas à abolição do castigo corporal e à
demissão de oficiais incompetentes, as outras reivindicações se juntam àquelas
od V
aut
do meio operário, principalmente, dos trabalhadores marítimos. Durante a
rebelião, os marinheiros mencionam o excesso de trabalho e reclamam anis-
R
tia. Se a qualidade da alimentação não é mencionada em manifestos escritos
durante o levante, aparece no discurso dos parlamentares e em suas memórias.
Outra palavra aparece frequentemente no discurso dos marujos, mesmo
o
que nem sempre explicitamente expressa nos comunicados destinados às
aC
autoridades: liberdade. Quando os marinheiros tomam o poder, eles o fazem
sob gritos de “Abaixo a chibata” e “Viva a liberdade” – essa palavra está
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Figura 3
or
od V
aut
R
o
aC
que eles costumavam fazer todos os dias”58. Inverteram essa ordem na medida
em que ocupavam o lugar dos oficiais, sem, contudo, pôr em causa a própria
hierarquia, mas, ao contrário, reafirmando-a.
Se essa concepção de ordem expressa um ethos militar e uma cons-
or
ciência cidadã e republicana – mesmo que não passe necessariamente por
direitos políticos –, o emprego da palavra liberdade indica outro nível de
od V
percepção da dimensão da cidadania. Em oposição à palavra escravo – outra
aut
palavra usada em seus discursos –, os marinheiros pediam liberdade, pediam
para terem o direito à sua integridade física, exigiam que fossem respeitados
R
como indivíduos e trabalhadores (mesmo como militares), não admitindo
mais os castigos corporais ou outros abusos de poder por parte dos oficiais.
o
Trata-se de um dos primeiros sentidos de cidadania: o direito à dignidade
humana, contrariando os preconceitos59. Os castigos corporais perderam sua
aC
legitimidade – assim como outros maus-tratos – pois os oficiais não tinham
o direito de bater em homens livres, cidadãos, militares ao serviço da pátria.
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acabar por completo com estas infâmias a que ninguém nos dá direito,
temos a tristeza de escolhermos estes termos tão desastrosos em nosso
procedimento. Por isto pedimos a V. Excia. abolir o castigo da chibata e
os demais bárbaros castigos pelo direito da nossa liberdade, a fim de que
par
ver di
58 Entrevista de Hélio Leôncio Martins (vice-almirante da marinha brasileira) com Silvia Capanema, em 9 de
agosto de 2006, em Copacabana, Rio de Janeiro. O oficial também é autor de um livro sobre a revolta dos
marinheiros: MARTINS, H. L. A revolta dos marinheiros, 1910. São Paulo-Rio de Janeiro, Editora Nacio-
nal-Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1988.
59 José Murilo de Carvalho mostra como a aquisição de direitos civis, políticos e sociais foi um processo longo
no Brasil: CARVALHO, J. M. de. Cidadania no Brasil: um longo caminho. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005. Entretanto, a cidadania reclamada pelos marinheiros, em nossa opinião, não
corresponde necessariamente às esferas do direito, mas a uma noção ainda mais essencial ligada à busca
do reconhecimento e devido respeito como indivíduos livres. Nesse sentido, fazemos referência a MATTOS,
H. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
60 Citado por MOREL, E. A Revolta da Chibata, op. cit., p. 90 (s.d.).
88
or
Querida Madrinha, [...] hoje estou considerado comandante de uma revolta
a fim de melhorar o nosso ordenado muito mesquinho, porém ainda não foi
od V
começado, talvez que seja em fevereiro. Não sei se perderei a vida ou se
aut
sairei vitorioso em meu combate. Só eu e mais mil homens nós queremos
mostrar que marinheiro brasileiro é homem de coragem e valentes nós
queremos ou liberdade ou morte, estamos com os navios preparados para
R
o combate. Peço-lhe que não tenha receio de nada. Ou as coisas melhoram,
ou morrem todos, ou por hora fica o Brasil completamente desgraçado.
o
Porém, eles há de compreender que a Marinha é valente. (…) Só assim
aC
podemos viver bem toda a vida.61
documento é obra de seu pai, que seria o marinheiro apelidado de Mão Negra
e autor de outras mensagens64. Os diferentes traços de domínio de graus varia-
dos de leitura e escrita65 apontam para várias situações entre o analfabetismo
completo e o bom domínio da palavra escrita. A maioria dos marinheiros
E
61 Arquivo Nacional, Supremo Tribunal Militar, Processo “João Cândido e Outros”, Série Judiciaria, Subsérie:
Processo Crime, 1913, BW 2847 (3v.), f. 369/31. Marques Pimentel é pouco conhecido da historiografia.
Após as memórias de João Cândido, ele foi seu assistente durante a revolta. Não sabemos mais sobre ele
porque, estranhamente, não estava na lista de acusados durante o julgamento de 1912. Ver “Memórias de
J. Cândido”, Gazeta de Notícias, 7 de janeiro de 1913.
62 O mês anterior à revolta, as notas e os manifestos tinham circulado em diferentes embarcações, como nos
indicam as memórias de João Cândido e outras mensagens dos marinheiros.
63 Ibid.; MARTINS, H. L. A revolta dos marinheiros, op. cit.
64 Entrevista com Marcos Valério Ferreira Ribas e Adaleia Ribas Barbosa, loc. cit
65 CHARTIER, R. Du livre au lire. In: Pratiques de la lecture, Paris: Payot, 2003, p. 81-118.
66 Sobre as estatísticas, ver CAPANEMA, S. P. de A., Être noir, brésilien et marin..., op. cit.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 89
or
marinheiros67. Sem dúvida, as mudanças introduzidas pela modernização téc-
nica da Marinha contribuíram para o fortalecimento de um espírito de corpo
od V
entre os marujos brasileiros. Eles conseguiram organizar uma revolta sem
aut
precedentes, abolindo definitivamente o uso da chibata na Marinha brasileira
e ocupando um lugar na memória e na história nacionais.
R
Considerações: sobre a cor da cidadania a partir
o
da experiência dos marinheiros nacionais
aC
A revolta dos marinheiros de 1910 constituiu um evento revelador
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ventura, dos males sociais, pelos quais ainda hoje penarem-se no Brasil,
se deve à influência moral da escravidão, há tantos anos entre nós já
extinta. Extinguimos a escravidão sobre a raça negra; mantemos, porém,
67 Sobre o tema, ver. ALMEIDA, Silvia Capanema. A modernização do material e do pessoal da Marinha nas
vésperas da revolta dos marujos de 1910: modelos e contradições. Revista Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 23, n. 45, p. 147-170, ago. 2010.
68 O escritor e jurista Rui Barbosa (1849-1923) também foi deputado, senador do Estado da Bahia, ministro da
Fazenda, diplomata e candidato de oposição à Presidência do Brasil em 1910 contra Hermes da Fonseca.
Sobre sua participação no movimento abolicionista, ver SILVA, E. As camélias do Leblon, op. cit. Rui Barbosa
foi muito ativo principalmente no bloqueio aos pedidos de indenização feitos por antigos proprietários de
escravos após a abolição. Isso o levou a queimar grande parte dos documentos relativos à propriedade
de escravos no Brasil. Ver: LACOMBE. A. J.; SILVA. E.; BARBOSA. F. de A. Rui Barbosa e a queima dos
arquivos. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988.
90
Vê-se, neste extrato, mesmo que a escravidão tivesse sido abolida, que a
sociedade brasileira continuava profundamente marcada pelas práticas escra-
or
vagistas – os castigos corporais na Marinha, por exemplo – cujas vítimas eram
od V
principalmente negras. Rui Barbosa, cujo papel na campanha abolicionista
aut
fora importante, tinha que justificar o fato de não “chicotear (seus) subor-
dinados”. Entretanto, mesmo que os marinheiros fossem majoritariamente
negros e mestiços, e identificados como tais, essa evidência não é colocada
R
em questão no discurso do senador. Os marinheiros, sem negar as solidarieda-
o
des e fraternidades de origem racial e social, tinham escolhido se apresentar
como outros tantos “marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos”. Eles
aC
reivindicavam assim o pertencimento às Forças Armadas (marinheiros), à
nação (como brasileiros, ou seja, “mestiços”, por definição) e à esfera da
brada por pessoas que não da mesma cor de pele, neste caso para os brancos,
a re
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a re
são to
or
od V
Moacir Silva do Nascimento1
aut
Das três Armas que existem no Brasil, a Marinha do Brasil (MB) é a que
R
mais se percebeu as reverberações dos processos de racialização e racismo,
asseverando com forte impacto as relações sociais que se construíram entre
o
praças e oficiais e que, com efeito, ecoam ainda hoje nos navios de guerra e
aC
nas Organizações Militares (OM) da Marinha em todo o país, determinando
as lógicas de trato, formas de mando (ou desmando), que muitas vezes, se
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1 Mestre em História pela Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Membro do Grupo de Pesquisa do CNPq:
Cosmologias, lógicas de ação e manifestações expressivas de grupos afrodescendentes – UFPel.
96
or
acostumei a ouvir entre meus pares “os lordes” ou “os sangue azul”. Naquele
od V
mesmo ano, durante o curso de formação, percebi que entre os oficiais não
aut
havia nenhum que fosse negro, antes todos eram brancos, mas entre meus
pares, cabos, sargentos e suboficiais era notória a presença marcante de negros.
R
Por um momento, achei que fosse algo característico daquela Escola em
particular, no entanto, ao término do curso, fui transferido para um navio
o
da esquadra brasileira e, infelizmente, embora tivesse me deparado com o
caso de um oficial negro, a supremacia branca entre os oficiais permanecia.
aC
Desde então, percebi que essa realidade racial não estava restrita àquelas
duas OM por onde passei, porém era presente em toda a MB. Não estou
fazer suposições sem o necessário rigor científico. Diante disso, fica patente
(e essa era a minha intenção) que as motivações da presente pesquisa são,
primeiramente, a partir de minha experiência pessoal com o tema proposto.
par
or
três grandes escolas de teorização racial, a saber, a escola etnológica-biológica,
a escola histórica e o darwinismo social, no intuito de assinalar os impactos
od V
diretos dessas correntes de pensamento na intelectualidade brasileira e nos
aut
principais centros de formação científica e cultural do país e, naturalmente,
os caminhos que essas visões de mundo impuseram a população negra e
R
reverberaram na Marinha com filtros próprios de uma instituição total.
Somados aos pressupostos teórico-racistas que se engendraram na estru-
tura cultural do imaginário da sociedade brasileira, estão os “mitos fundadores”
o
que imbricados na matriz social naturalizaram as desigualdades e determina-
aC
ram a inferioridade de uns e a superioridade de outros. Marilena Chauí escla-
rece que foi na formação do “caráter nacional” e da “identidade nacional” que
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tendem a aparecer ora como desvios da norma (no caso das diferenças
a re
or
em Norfolk, Virgínia, onde alguns de seus oficiais foram acusados em
od V
hotéis sob a alegação de que eram negros – uma experiência especialmente
aut
exasperada em vista da visível tentativa da Marinha de manter branca sua
oficialidade (SKIDMORE, 2012, p. 91).
R
Fica, assim, explícito como que os ideários racistas, fomentados ao longo
do século XIX e primeiras décadas do século XX, determinavam as regras de
o
seleção para compor as fileiras da oficialidade na Marinha brasileira e que,
aC
também, expressavam os intentos do país em “branquear” sua população.
A partir da premissa teórica da história social, entende-se que as per-
como, desde a sua gênese, a Marinha primou por estruturar sua oficialidade
são to
or
Navaes”, cotejando a abertura racial na oficialidade que ela operou em opo-
od V
sição ao determinismo sócio racial que marcou a Escola Naval ao longo de
aut
sua existência. Somados a esses embates, propus também uma reflexão sobre
os parâmetros raciais verificados na MB quando se observa a constituição dos
R
quadros de praças e oficiais, onde indiscutivelmente os lugares sociais de cada
tipo racial são consolidados.
o
Após estabelecer os alicerces que sustentam esta pesquisa, prossigo para
aC
o que pode ser considerado o núcleo deste trabalho, onde realizei diversas
análises das principais fontes documentais que, em primeiro lugar, demons-
traram um caminho alternativo que alguns poucos homens negros e pobres
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or
e, também, contextualizar a presente pesquisa dentro dos preceitos racialistas
que estavam em voga no final dos oitocentos e início do século XX, proponho
od V
a análise da principal fonte que utilizei para obter dados que substanciam a
aut
argumentação mais relevante deste trabalho: que apesar da segregação racial
“sutilmente” empreendida pela Marinha, no sentido de cercear o ingresso de
R
negros na Escola Naval, estes mesmos homens buscaram alternativas para tor-
narem-se oficiais, posição esta que lhes conferiria a oportunidade de ascensão
o
social. E um dessas brechas no sistema excludente da Marinha foi a carreira
de maquinistas navais.
aC
Os indivíduos que integravam o Corpo de Maquinistas Navais eram, em
sua maioria, com origem nos estratos mais baixos da sociedade, com pouca
a) Corpo da Armada2
b) Corpo de Engenheiros Navais3
E
c) Corpo de Saúde4
d) Corpo de Comissários5
2 Lei nº 732, de 20 de dezembro de 1900. Reorganisa o quadro dos officiaes da Armada e dá outras provi-
dencias. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/republica/colecao2.html.
Acesso em: 19 fev. 2019.
3 Decreto nº 10.685, de 14 de janeiro de 1914. Dá novo regulamento ao Corpo de Engenheiros Navaes.
Disponível em: http://legis.senado.leg.br/legislacao/PublicacaoSigen.action?id=419837&tipoDocumento=-
DEC-n&tipoTexto=PUB. Acesso em: 19 fev. 2019.
4 Decreto nº 7.204, de 3 de dezembro de 1908. Approva o regulamento para o Corpo de Saude da Armada.
Disponível em: http://legis.senado.leg.br/legislacao/PublicacaoSigen.action?id=411803&tipoDocumento=-
DEC-n&tipoTexto=PUB. Acesso em: 19 fev. 2019.
5 Decreto nº 11.838, de 29 de dezembro de 1915. Dá novo regulamento ao Corpo de Com-
missarios da Armada. Disponível em: http://legis.senado.leg.br/legislacao/PublicacaoSigen.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 101
e) Corpo de Maquinistas6
or
Engenheiros Navais e Comissários, o acesso se dava pela Escola Naval, o
od V
que automaticamente bloqueava o ingresso de negros para a Marinha por este
aut
caminho. Para o Corpo de Saúde, era necessário cumprir uma série de rigoro-
sos requisitos, dentre eles, ser doutor em Medicina ou médico, ambos os casos
R
por alguma faculdade brasileira e, também, ser aprovado em concurso público
para tal; fatos que, devido às condições de instrução da maioria indiscutível
da população negra, corroboravam para impossibilitar o oficialato naval. O
o
que restava era a carreira de maquinista, que mesmo tendo sua reconhecida
aC
importância à época para o “futuro da Marinha”, não era atrativa para boa parte
dos jovens oficiais que, na verdade, preferiam “falar francês e inglês, seguir
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or
1º Ser brazileiro, menor de 25 e maior de 16 annos, ter bom procedimento
od V
e aptidão physlca para a vida do mar; e
aut
2º Ter approvação da Escola de Machinistas, e, pelo menos, dous annos
de pratica, com aproveitamento, nos trabalhos das officinas dos arsenaes
de marinha. Estes requisitos serão irremissivelmente comprovados por
R
certidão de baptismo, attestados das autoridades competentes e por ins-
pecção de saude.
o
Art. 4º. Para ser nomeado praticante são necessarios os seguintes requisitos:
§ 1º Ser brazileiro, menor de I9 annos e maior de 15, ter bom procedimento
aC
e aptidão physica para a vida do mar;
§ 2º Ter concluido com approvação o curso de machinas da Escola Naval,
que muitos homens de pouca instrução, das camadas mais pobres e negros
acessassem o oficialato naval através da carreira de maquinista. Ambos os
regulamentos estabelecem que todos os candidatos à carreira de máquinas
começariam como Praticante de Máquinas e, no decorrer da carreira, pode-
E
or
maquinistas. Esta constatação revela que, após a inclusão da exigência do
candidato ter que fazer o curso de maquinista na Escola Naval, a procura
od V
pela carreira em questão diminuiu, limitando o Corpo de Maquinistas Navais
aut
apenas naquele número de homens que já exerciam a profissão na Marinha.
Como já demonstrado em alguns parágrafos acima, na MB as opções
R
de carreira para homens negros eram restritas as classes subalternas, ou seja,
a de praças (soldados, cabos e sargentos e, posteriormente, como subofi-
cial). Ser um oficial de convés (do Corpo da Armada), médico, engenheiro
o
naval ou comissário era praticamente impossível. Restava a alternativa mais
aC
árdua e difícil, a de ser oficial maquinista e que implicava, além do trabalho
extenuante, uma significativa estigmatização pejorativa dada sua função nos
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“infernais” porões dos navios da Armada. Por ser uma carreira que durante
visã
muito tempo não se exigia muita instrução ou necessidade de ingresso na
Escola Naval, foi possível que alguns poucos homes pretos, mestiços e pardos
conquistassem, ainda que guardadas as contradições, o status de oficial da
r
Marinha do Brasil. Esta conquista representava uma considerável ascensão
social que rompia com paradigmas e, também, constituía uma forma de resistir
a re
Cada livro possui 250 registros, o que totaliza algo em torno de 1000 indiví-
duos identificados no período supramencionado (ressalto que em muitos casos
um indivíduo poderia ter dois ou mais registros conforme a necessidade de
se identificar, muitas vezes provocados por promoções ao longo da carreira
E
1. Registros biográficos
a) nome;
b) idade;
c) naturalidade;
d) pai;
e) mãe;
104
f) profissão;
g) instrução;
h) estado (civil);
i) endereço (residencial); e
motivo (da identificação).
or
j)
od V
2. Marcas particulares, cicatrizes e tatuagens
aut
a) mão direita;
b) mão esquerda; e
R
c) cabeça.
o
3.
aC
4. Filiação morfológica e exame descritivo
a) estatura;
g) lábios;
a re
h) queixo;
são to
k) cor;
ver di
l) cabelos;
m) barba;
n) bigodes;
o) olhos; e
E
5. Histórico
or
revelam sua profissão/cargo ou patente, naturalidade e cor. Em um segundo
od V
momento, elaborei uma categorização de dados que permite visualizar os úni-
aut
cos indivíduos que foram classificados dentro do seguimento mestiço-pardo,
sinalizando suas idades, datas de nascimento, filiações, profissões/cargos ou
R
patentes, naturalidades e cores.
Na dissertação de mestrado expus os indivíduos que constam do livro-re-
gistro nº 1, com intuito de listar todos os homens que foram identificados pelo
o
GIA no período de 1908 a 1917, de modo a proporcionar uma visualização
aC
nominal, de suas profissões/cargos, naturalidades e referência racial, já que
mais que afirmar a maioria branca entre oficiais, é relevante possibilitar a
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exposição de quem eram estes homens. Saliento que nas análises que fiz do
visã
presente livro, levando em consideração que tais registros poderiam somar
em cada livro 250 identificados, no livro-registro em questão foi possível
encontrar 244 registros de identificação, sendo que os 6 restantes não se
r
encontram no livro em tela, restando apenas alguns indícios das páginas que
foram arrancadas.
a re
MESTIÇA 2
or
MESTIÇA MORENA 2
od V
PARDA CLARA 1
aut
MORENA 3
R
BRANCA MORENA 5
BRANCA CORADA 3
o
BRANCA 227
aC
Fonte: DPHDM, GIA, OF, L1, 1908, adaptado pelo autor, 2019�
clara” e “morena” foram, nas fontes deste trabalho, utilizadas para designarem
a re
or
a ambiguidade de tais categorias semânticas raciais é característico.
Porém, saliento que para o caso específico desta pesquisa, percebe-se que
od V
a metodologia praticada pelos identificadores do GIA é objetiva no sentido de
aut
diferenciar o máximo possível os tipos raciais, até mesmo entre os classifica-
dos como brancos, pode ser verificada a intenção de distinguir “brancos” de
R
“brancos corados” e “brancos morenos”, ou seja, é incontestável a disciplina
empregada no sistema de identificação da Marinha para o aspecto da raça.
Com relação ao termo pardo (a), existem variadas formas de significa-
o
ção que se distinguem conforme a análise que se pretende fazer. Conforme
aC
salientou Rodrigo de Azevedo Weimer (2013):
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
A categoria pardo (a) é o léxico racial que tem mais a ver com o status
social que uma condição apenas racializada de um indivíduo, embora seu uso
seja indissociável da tez da pele, de estereótipos racializantes e, por assim
dizer, do racismo brasileiro. Se o objetivo é compreender os usos e aplica-
ções da categoria em questão durante o Império, entende-se que possuía a
conotação de afastamento da condição de escravo (forro ou liberto). Em outra
perspectiva, o termo seria utilizado para positivar (ou pelo menos essa seria a
intenção) um indivíduo outrora classificado como mestiço ou preto ou moreno,
caso houvesse ascendido socialmente.
108
or
Gráfico 2 – Porcentagem grupo
od V
MESTIÇA PARDA CLARA
aut
MORENA 0,41% MORENA BRANCA
0,82% 1,23% MORENA
2,06%
MESTIÇA
R
0,82%
BRANCA
CORADA
o
1,23%
aC
BRANCA
a re
93,42%
são to
par
ver di
Desta forma, o gráfico acima possibilitou inferir que quase 97% dos
identificados no livro-registro nº 1 do GIA eram brancos e apenas cerca de 3%
E
or
DINAMARCA 1
MARANHÃO 13
od V
MATO GROSSO 1
aut
MINAS GERAIS 7
PARÁ 8
PARAÍBA 4
PARANÁ 5
R
PERNAMBUCO 4
PIAUÍ 3
PORTUGAL 5
o
RIO DE JANEIRO 129
RIO GRANDE DO NORTE
RIO GRANDE DO SUL
2
aC
13
SÃO PAULO 8
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SANTA CATARINA 1
SERGIPE 4
visã
Fonte: DPHDM, GIA, OF, L1, 1908�
o período imperial.
Para uma maior compreensão da origem dos indivíduos que ingressavam
na carreira de oficial na Marinha do Brasil, elaborei, também, um gráfico que
organiza a distribuição destes homens por região:
E
110
or
od V
NORDESTE
aut
23,89%
R
o
aC 3,54% NORTE
como a segunda região que mais possuía homens que enfileiravam a oficia-
ver di
or
considerável de oficiais da Marinha naturais da região nordeste, pode ser
od V
explicada pelo aspecto político, uma vez que o estado republicano daqueles
aut
dias priorizava que as lideranças militares não fossem ocupadas por paulistas
ou mineiros, já que representavam uma ameaça por serem as duas principais
forças políticas. No caso do Rio Grande do Sul, o número significativo deve-se
R
ao fato da fronteira viva entre o Uruguai e a Argentina.
Retornando às questões de inserção de negros na carreira de oficiais da
o
Marinha, convém expor os únicos casos que foram possíveis de serem detec-
aC
tados durante o exame que fiz nos registros do livro nº 1. No entanto, entendo
ser necessário explicar algumas questões: a) ao contrário do que fiz na tabela
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or
Gesuina Maria NISTA
OLIVEIRA RENA
de Oliveira
od V
2º SAR-
aut
Athanazio Jose GENTO
JASON
dos Santos DO SOL-
JOSÉ DOS 25 11/06/1892 SIM SE MESTIÇA
Amelia Araujo CORPO TEIRO
SANTOS
dos Santos? DE MARI-
R
NHEIROS
CAPI-
o
TÃO DE
Antonio Daniel
ANTONIO CORVETA CAPI-
Mendes PARDA
DANIEL 46 20/09/1871
aC
Liberata Maria
ENGE- SIM TAL FE- CASADO
CLARA
MENDES NHEIRO DERAL
Mendes
MAQUI-
duo era natural do Rio de Janeiro, o que pode significar que as maiorias dos
são to
nordestinos e maquinistas.
ver di
or
Um aspecto relevante que emerge a partir da análise da tabela acima é
od V
que o único caso de um oficial classificado como pardo é aquele que, obje-
aut
tivamente, possui a maior patente entre os 5 indivíduos. Este dado torna-se
expressivo à medida que corrobora com a perspectiva que tal taxonomia
R
sócio racial era empregada a um indivíduo (que poderia ser identificado como
mestiço preto ou moreno) que alcançava um status social que o diferenciava
o
dos seus pares raciais, subjugando os obstáculos cromáticos que poderiam o
relegar a subalternidade.
aC
Por qual razão o Almirante Alexandrino em seu relatório de 1923, ao se
reportar ao Presidente da República, narrou diversas situações em que ficou
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negro e pobre estava reservada a carreira de praça, por mais que pertencer
a esta classe representasse minimamente uma ascensão social, era um lugar
subalterno, que reproduzia a realidade de toda a sociedade brasileira.
par
Registro nº 95
a re
visã R
od V
o aut
or
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MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 115
Registro nº 121
or
od V
aut
R
o
aC
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visã
são to
r par
a re
ver di
Registro nº 141
a re
visã R
od V
o aut
or
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MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 117
Registro nº 188
or
od V
aut
R
o
aC
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visã
são to
r par
a re
ver di
Registro nº 203
or
od V
aut
R
o
aC
or
cabelos grisalhos e barba feita. Nos registros do histórico de identificações,
od V
consta que em 29 de abril de 1937, como Capitão de Fragata Intendente Naval
aut
da reserva de 1ª classe, compareceu no GIA para obter a 2ª via da carteira de
identidade, o que ocorreu em 7 de maio do mesmo ano.
R
A terceira ficha traz a identificação de RUBEM CESAR DE OLIVEIRA,
sob o registro nº 141 do livro-registro nº 1, filho de ANTONIO CESAR DE
o
OLIVEIRA e GESUINA MARIA DE OLIVEIRA, nascido no Rio Grande do
Norte em 19 de junho de 1888. A cor indicada pelo identificador é a “mestiça”,
aC
com a categoria “morena” redigida ao lado entre parênteses e sua profissão
é a de “Machinista”. Rubem foi identificado em 24 de outubro de 1916,
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possuía 1,64 metros de altura, com cicatrizes por ferimento no dedo médio
visã
da mão direita e no dedo indicador da mão esquerda; e um “sinal escuro”
acima do supercílio esquerdo (ao que parece pela observação que se faz das
fotografias disponíveis, tal sinal foi assinalado quando da ocasião da segunda
r
via da carteira de identidade). Na primeira identificação, possuía bigodes
a re
or
Daniel foi identificado (espontaneamente) no dia 13 de agosto de 1917, pos-
od V
suía 1,69 metros de altura e, ao que parece, alguma cicatriz ou marca no dedo
aut
médio da mão direita devido a uma moléstia. Alguma cicatriz ou marca no
dedo indicador da mão esquerda e calvície frontal acentuada. Tinha bigodes
R
e barba feitos e cabelos escuros. No histórico de identificações consta que:
recebeu sua carteira de identidade em 24 de agosto de 1917. Recebeu a 2ª via
o
da carteira por ter sido promovido ao posto de Capitão de Corveta em 3 de
aC
outubro de 1921. Recebeu a 3ª via em 10 de janeiro de 1927. Recebeu a 4ª
via em 18 de março de 1932.
Após a exposição de todos os conteúdos que constam das 5 fichas cor-
Daniel poderia ser classificado também como mestiço, visto a observação que
se faz da tez de sua pele, o que me faz acreditar com mais convicção que o
mesmo só fora classificado como pardo por ocasião de sua ascensão ao posto
de oficial superior da MB, visto ser a categoria parda, como já debatido neste
E
or
daquela época reputava ser inclinado a criminalidade. Mesmo fardado, com
uma formação militar, Jason não se viu livre de todas as marcas que a popu-
od V
lação negra carregou e carrega, sendo classificados em seus corpos como
aut
atrasados, imprevidentes, preguiçosos, criminosos, vagabundos e vadios.
Sobre THEODORICO ALVES DE SOUSA e ANTONIO DANIEL MEN-
R
DES, ambos pertencentes ao Corpo de Maquinistas Navais, ao analisar seus
respectivos livros-mestres (assentamentos), encontrei registros que revelam
o
que Theodorico esteve envolvido com os acontecimentos da Revolta do Bata-
aC
lhão Naval em 1910, onde lutou a favor da Marinha e contra os revoltosos.
Enquanto Antonio Daniel esteve, também ao que parece ao lado da Marinha,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
são social.
ver di
Como ficou nítido por meio das exposições que fiz no decorrer desta
pesquisa, a Marinha privilegiou durante longo período aos brancos a pos-
sibilidade de ostentarem os galões de oficial, destinando aos outros grupos
raciais as graduações subalternas. Ao analisar os outros 3 livros-registros do
GIA disponíveis na DPHDM, que percorrem o período de 1917 a 1925, pude
122
or
Gráficos 5 e 6 – Distribuição Racial – Livro nº 2 (1917-1918)
od V
aut
0 50 100 150 200 250 0 50 100 150 200 250
PRETA 2 PRETA 2
R
MESTIÇA 7 MESTIÇA 7
o
PARDA 6 PARDA 6
aC
PARDA CLARA 1 PARDA CLARA 1
PARDA 11
MORENA 22 BRANCA
86,00%
E
BRANCA 215
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 123
PARDA PARDA
PARDA 9
3,60% CLARA
or
0,80% MORENA
12,80%
od V
PARDA CLARA 2
aut
BRANCA
R
MORENA 32
82,80%
o
BRANCA 207
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
or
do Brasil. Além disso, permite inferir sobre a complexidade das formas de
resistência e acomodamento racial na primeira metade do século XX.
od V
aut
Considerações
R
Neste trabalho, tive como objetivo analisar o processo de inserção de
negros na oficialidade da Marinha de Guerra do Brasil no pós-abolição (1908-
1917), tendo em vista tratar-se de um quadro de profissionais tacitamente
o
constituído a partir de critérios elitistas e, também, como defendido nesta
aC
pesquisa, por meio de um processo excludente e racista. Para proceder com
os propósitos desta pesquisa, farei algumas reflexões que se estabeleceram
conduta dessa instituição para estruturar esses quadros. Nesse sentido, tornou-
-se relevante expor como se deu a formação da Força Naval e, principalmente,
a construção da carreira de oficiais, apontando como, desde as suas origens,
par
ver di
teve a preferência por atrair homens das famílias mais ricas da sociedade.
Analisei a implantação do órgão oficial de identificação da Marinha, o
Gabinete de Identificação d’Armada (GIA). A partir da descrição das meto-
dologias de identificação humana desenvolvida no mundo e sua chegada ao
Brasil, foi possível perceber as influências que tais processos de identificação
E
or
elitista e racialmente branco que se exigiu por muito tempo para se ingres-
sar na EN. Através de documentações produzidas no contexto da presente
od V
pesquisa, pude demonstrar que embora não tenha existido oficialmente (por
aut
escrito) qualquer norma que expusesse a segregação racial no construto dos
quadros de praças e oficiais, de forma sutil e operando “normas surdas” a
R
Marinha se consolidou como uma Arma que fixou concretamente os lugares
sociais de cada grupo racial. No entanto, a EMN foi o caminho que pretos,
o
mestiços, morenos e pardos encontraram para resistir às imposições racistas
da Marinha, rompendo tais paradigmas sociorraciais. Destaco que o Corpo
aC
de Maquinistas Navais por apresentar essa característica de ser composta por
homens negros e pobres, provavelmente, foi um dos principais motivos para
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
maquinistas, o que me fez perceber que foi através do ofício nos porões das
praças de máquinas dos navios de guerra, que estes homens conquistaram o
status de oficial da Marinha. No entanto, tais indivíduos, apesar da ascensão
social apresentada, não se viram livres do preconceito racial, pois foram cer-
or
ceados de gozar de todas as prerrogativas conferidas a alguém pertencente a
oficialidade da MB, por conta de suas origens raciais e sociais.
od V
Nas mesmas documentações, encontrei as marcas indeléveis que o
aut
racismo e o processo racialista deixam nos corpos de suas vítimas. Como
demonstrei, independente do fato de envergarem o uniforme da Marinha,
R
de fazerem parte de uma instituição com certo prestígio na sociedade, estes
homens negros “trabalhadores do mar” se deparavam com o estigma de
o
serem reputados como inclinados a criminalidade e a vadiagem, haja vista a
preocupação dos identificadores em se registrar se um “preto” tinha alguma
aC
ocorrência policial, sem se preocuparem em mesma medida com os brancos.
Outra questão se refere às ambiguidades encontradas no manejo dos
cromático, ora enfatizando a sua cor de pele atrelada a sua condição social.
O presente trabalho permitiu abrir outros caminhos de pesquisa, como
por exemplo, analisar as trajetórias desses homens negros que ingressaram na
par
possuíam, entre outras questões que serão tratadas em futuras pesquisas. Nesse
sentido, este trabalho coopera com a historiografia na medida em que revela
alguns exemplos dos entraves e dificuldades porque passou a população negra
no pós-abolição da escravatura, no entanto, de forma inédita ao revelar tais
processos de segregação racial em uma instituição militar, especificamente
na carreira de oficiais da Marinha. Também, contribuiu para os estudos que
se debruçam sobre os mecanismos de manejo das classificações raciais exis-
tentes no Brasil, lançando questões sobre os graus de fluidez das diversas
categorias de racialização operacionalizadas em órgãos de identificação que
não os pertencentes as esferas policiais.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 127
or
ção de mecanismos racializantes que foram fundamentais na consolidação e
conformação dos lugares sociais dos grupos raciais que constituem a socie-
od V
dade brasileira.
aut
A presente pesquisa, certamente, deixa algumas interrogações que pro-
curarei responder na continuidade que a carreira de pesquisador proporcio-
R
nará, desta vez, realizando um mapeamento das trajetórias desses homens que
desafiaram as lógicas sóciorraciais para romperem os “muros do racismo” e
conquistarem o estatuto de oficiais da Marinha do Brasil.
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
visã
são to
r par
a re
ver di
E
128
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REFLEXÕES SOBRE UM BRASIL
ESQUECIDO: revolucionários
de 1910: presente!1
or
od V
José Miguel Arias Neto2
aut
R
[...] apenas aqueles que conheceram a liberdade da necessidade
[estão] na posição de apreciar completamente o que significa ser
o
livre também do medo. [...] aqueles que se dedicaram à liberdade
aC
nunca mais puderam se reconciliar com um estado de coisas no
qual ser livre da necessidade fosse um privilégio de poucos.
Hannah Arendt. Revolução e liberdade, 1961.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
visã
Qual seria a importância de repensarmos a Revolução dos Marinheiros
de 1910 neste final da segunda década do século XX?
O termo revolução incomoda muitos intérpretes. Há desde a primeira
metade do século XX duas grandes linhas interpretativas do movimento
r
de 1910: uma que trata o acontecimento como revolta popular e/ou revolta
a re
Love, e os meus, dentre outros. Além disto há uma memória popular muito
importante que opera em vários registros interligados e tem João Cândido,
líder da revolta, como símbolo da revolta popular, da luta dos marinheiros
em 1964, mas também, como representante do integralismo, como é o caso
E
1 Este texto é resultado de reflexões iniciadas em minha tese de doutoramento concluída em 2001 e aproveitou
partes da redação daquele trabalho.
2 Doutor em História social pela USP. Professor de História Contemporânea. Universidade Estadual de Lon-
drina. Integra os programas de pós-graduação em História social – UEL e História e Regiões UNICENTRO
– Universidade do Centro-Oeste do Paraná.
136
or
o fato de que prolonga a centralização e o estatismo existentes no Antigo
Regime e, neste sentido é uma continuidade deste. Mas Tocqueville refe-
od V
re-se ao período da Convenção até o Império. Para ele, a ruptura ocorrera
aut
entre 17 de junho de 1789 e 20 de setembro de 1792, isto é, o período da
Assembleia Nacional e da instauração da Constituinte, da Declaração dos
R
Direitos, em suma da dominação de uma aristocracia burguesa baseada em
uma participação política restrita como pensaram os liberais do século XVIII
o
(TOCQUEVILLE, 2009). Este projeto de governo aristocrático é repetido
por historiadores e intelectuais, como por exemplo, Fustel de Coulanges, que
aC
condena a República Francesa e a Comuna de Paris, em 1871(2003), ou, dentre
muitos outros, por Gustave Le Bon, que imagina um governo aristocrático
cuja memória deve ser reificada pois, “se é verdade que todo pensamento se
inicia pela lembrança, também é verdade que nenhuma lembrança está a
salvo, a menos que se condense e se destile num quadro de noções conceituais
par
(....) toda iniciativa exercida até então pelo Estado foi posta nas mãos da
Comuna [...] A Comuna de Paris deveria servir de modelo[...] A unidade da
nação não seria quebrada, mas ao contrário, organizada por meio de uma
constituição comunal [...]” (MARX, 2011, p. 58).
Ora, meu argumento central é, portanto, que 1910 foi um momento revo-
lucionário, inédito até aquele momento, na história da República porque fun-
dou um poder novo. Como a Comuna de Paris, projetava a construção de um
espaço de liberdade, de participação no governo, de vivência pública e gestio-
nária. Visando desenvolver este argumento vou revisitar o movimento, alguns
comentadores e fontes para, ao final, retomar estas reflexões iniciais e apontar
alguns enfeixamentos de questões que configuram problemas fundamentais
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 137
or
a Comuna de Paris é pertinente: a bárbara – e sádica é forçoso acrescentar
– repressão desencadeada sobre os marinheiros foi seguida pela sistemática
od V
luta por soterrar a memória deste momento revolucionário pela oficialidade
aut
naval e pela Marinha como instituição. Como os franceses que construíram
a Sacré Coeur em Montmartre, a Marinha também ergueu seus monumentos:
em 1910 já existia um “almirante negro” e uma década depois Tamandaré foi
R
tornado patrono da força. Pensar essa revolução no presente significa refletir
o
acerca da longa agonia das lutas para consolidar uma democracia no Brasil,
cujos pequenos avanços estão sendo barbaramente destruídos e há uma guerra
aC
cultural em andamento em torno da memória e da história das lutas sociais no
país. O elogio da ditadura militar de 1964 – em declarações, artigos, livros e
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
1910
r
or
partia da ilha das Cobras em direção ao continente, rapidamente foi reprimida.
Naquela madrugada, alguns navios de guerra – a divisão de contratorpedeiros
od V
e o cruzador Barroso – ancorados na baía de Guanabara iniciaram o bombar-
aut
deio da ilha, reforçados, a partir das 05:00h do dia 10, pelas baterias de terra
assestadas no arsenal de Marinha e no mosteiro de São Bento. O intenso fogo
R
das forças de terra e dos navios perdurou até às 15:30h, embora os rebeldes
tenham hasteado a bandeira branca da rendição por volta de 14:00h. Este
o
episódio foi, já há alguns anos, reconstituído por Henrique Samet, em sua
obra intitulada A Revolta do Batalhão Naval datada de 2011. Na mesma noite
aC
houve uma tentativa de rebelião dos marinheiros do cruzador Rio Grande do
Sul, imediatamente dominada. O cruzador fez parte da esquadra que partici-
cruzador ligeiro Rio Grande do Sul e batalhão naval, instaurado pela Polícia
a re
Civil do Distrito Federal, arquivado sem que chegasse ao Judiciário, por não
são to
(Ibidem, p. 313).
No momento em que a ilha das Cobras era arrasada pelo canhoneiro das
forças legais, o Congresso Nacional concedia o estado de sítio ao governo
da República. Entre os dias 11 e 13 de dezembro, as guarnições dos navios
E
or
qual constava insolação como causa mortis. No mesmo dia o comandante do
batalhão naval, alvo principal da denúncia, foi exonerado pelo ministro da
od V
Marinha pois, na noite do dia 24, havia se retirado para o continente levando
aut
consigo as chaves da cela em que se encontravam os prisioneiros, impedindo
o socorro aos mesmos. Posteriormente submetido a conselho de guerra, foi
R
absolvido. Ainda no dia 25 de dezembro, o navio mercante Satélite do Lloyd
Brasileiro partiu para o Acre, a fim de conduzir à Santo Antônio do Madeira
e à Linha Telegráfica, cento e cinco ex-marinheiros que estavam detidos no
o
quartel general do Exército e no quartel da Força Policial do Distrito Federal,
aC
cinquenta praças do Exército, duzentos e noventa e três homens e quarenta e
quatro mulheres classificados como ladrões, vagabundos e prostitutas. Sob o
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
e na imprensa, porém não houve uma resposta objetiva por parte do governo
a re
or
do problema do material sobre o problema do pessoal” (1911, p. 84). De um
lado, foram adquiridos novos e modernos navios, de outro, as guarnições con-
od V
tinuavam a ser compostas por elementos perniciosos à moral e à disciplina de
aut
bordo. Os contingentes oriundos das escolas de aprendizes eram analfabetos,
e aumentavam a massa de “infelizes” e “viciados”. As escolas profissionais
R
formavam poucos especialistas, que naquele meio eram contaminados pela
degradação moral. As guarnições dos navios, formadas majoritariamente por
o
negros, eram, portanto, o retrato da decadência e da incapacidade:
aC
Os negros são raquíticos, mal-encarados, com todos os signos deprimen-
tes das mais atrasadas nações africanas. As outras raças submetem-se à
é admirada; o macho impõe-se pela força e uma vasta intriga urdida nas
são to
or
por voluntários e pelo sorteio. A grande instabilidade política dos anos iniciais
od V
do regime e do envolvimento das Forças Armadas nos conflitos deste período
aut
haviam criado um quadro desolador na força naval: deterioração do material,
divisões entre os oficiais, o esvaziamento dos quadros de marinhagem. Isto em
R
um momento em que a concorrência imperialista se encontrava em uma fase
particularmente agressiva e a corrida armamentista na Europa era crescente.
o
A unificação da Alemanha e da Itália nos anos de 1870 havia colocado um
ponto final na chamada política de equilíbrio europeu estabelecido pós-guerra
aC
napoleônicas, pois representou a emergência de dois novos poderosos atores
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
or
ciência numérica, por baixos salários e por um excesso de trabalho espe-
cializado, que era desempenhado por marinheiros despreparados para estas
od V
funções, homens submetidos ao poder arbitrário dos comandantes. Somou-se
aut
a isto, ainda, a permanência também das baixas condições de saúde.
Por outro lado, as versões que enfatizam a versão do movimento como
R
revolta popular tiveram seu ápice no livro A revolta da chibata de Edmar
Morel, publicado pela primeira vez em 1959. Marco na historiografia e na
memória de 1910, o livro narra a “história da revolta e de seu líder”, o mari-
o
nheiro João Cândido. A revolta contra os castigos corporais na Armada, que
aC
mantinha uma mentalidade ainda escravista, é legitimada a partir da ideia da
luta pela justiça e pelos direitos. João Cândido e os marinheiros não se carac-
de seu líder. Em 2010 foi publicada a quinta edição do livro, organizada pelo
a re
seu filho Marco Morel. Há uma belíssima apresentação que é, em si, um estudo
são to
Mas elas são fundamentais. Em sua obra A República Velha: evolução política,
embora tratasse rapidamente do tema, desenvolveu ideias bastante sugestivas
sobre ele. Ele considerou a revolta um “incidente inesperado” dentro de um
período governamental que teria representado um momento de “abalo do
or
regime oligárquico” (1974, p. 257). Tendo por fontes principais os livros
Política versus Marinha e A revolta da Chibata, Carone apresenta a ideia, não
od V
desenvolvida e elaborada em todas as suas consequências, de que a revolta
aut
havia sido resultante da intersecção de duas questões: das transformações
da Armada e dos conflitos de classe presentes na sociedade brasileira. Abriu
R
assim, um caminho que só mais recentemente vem sendo explorado nas análi-
ses acerca das instituições militares do país. De fato, foi a partir dessa ideia que
o
pude melhor compreender os termos do manifesto dos marinheiros, documento
chave para a compreensão do movimento, que, acrescido das memórias de
aC
João Cândido e da entrevista por este concedida ao Museu da Imagem e do
Som do Rio de Janeiro em 1968, foram um corpus documental consistente e
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versão do jornal, fora palco de um espetáculo que revelava uma alma nova do
são to
Brasil. Era o ápice, por assim dizer, da regeneração nacional. Meses depois,
contudo, os marinheiros roubaram a cena e passaram ao primeiro plano: na
noite de 22 de novembro de 1910, os impressionantes canhões de 305 mm
par
or
José Carlos de Carvalho, educar os marinheiros que não tem competência
od V
para vestir a orgulhosa farda, mandar por em vigor a tabela de serviço
aut
diário, que a acompanha. Tem V. Excia. o prazo de 12 horas, para man-
dar-nos a resposta satisfatória, sob pena de ver a Pátria aniquilada. Bordo
do Encouraçado São Paulo.
R
No manifesto se apresenta um sujeito coletivo que se define como “
o
marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos”. Este enunciado é bastante
significativo pois exprime uma condição e um credo político que necessitavam
aC
ser explicitados. Julgavam os redatores, portanto, que o estatuto de cidadãos
dos marinheiros não era reconhecido, e isto torna-se evidente no decorrer do
or
decretarem o estado de sítio no mar e, feito isto, proclamarem uma República
Flutuante [...]” (apud MOREL, 2010, p. 302). No mesmo texto observa,
od V
“fui intimado a tomar o comando. A princípio recusei-me, mas [...] aceitei a
aut
intimação, antes, porém, propondo as condições em que ia tomar a direção
da revolução” (Ibidem, p. 304).
R
A repressão desencadeada pelo Estado demonstra que o desarmamento
dos navios não era suficiente – exatamente porque eles eram apenas instru-
o
mentos – para neutralizar o poder dos marinheiros. Foi a tentativa de aniquilar
– à semelhança da Comuna de Paris – os últimos vestígios físicos, os últimos
aC
repositórios vivos da memória do poder dos marinheiros. A versão dos oficiais
de Marinha sobre 1910 tem, nestes dois eventos, seu ponto central: trata-se da
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ao MIS João Cândido, deixa entrever este fato: “Eu tive o poder na organiza-
ção da conspiração e tive o poder determinado pelos comitês para assumir
a direção da revolução. [...].” (JOÃO CÂNDIDO, 1968). A desqualificação
par
de João Cândido pelos militares visa obscurecer o que ele próprio representa
ver di
or
rituais e as hierarquias militares foram obedecidos durante o movimento, os
dísticos “Pátria e Liberdade”, “Ordem e Liberdade” encimavam os navios.
od V
O documento demonstra ainda que os marinheiros, ou, ao menos os comitês
aut
responsáveis pelos termos do manifesto, partilhavam com os oficiais a mesma
representação da Armada como espelho da nação republicana. Essa é também
R
a visão de João Cândido em suas memórias e na entrevista. Os marinheiros
desejavam reformas gerais no sistema militar. A satisfação das reivindicações
o
apresentadas – recomposição das estruturas hierárquicas, reforma dos códigos
aC
disciplinares com a eliminação dos castigos corporais e do arbítrio, educação
generalizada, lazer propiciado a partir regulamentação do tempo de trabalho
e a eliminação dos oficiais incompetentes –, representaria o primeiro passo
or
processo de construção da cidadania no Brasil e ata, indissoluvelmente, 1910
od V
ao movimento global de construção da República Democrática.
aut
1910 hoje
R
Não cabe perguntar o que teria ocorrido caso a revolução de 1910 hou-
o
vesse sido vencedora. Mas é pertinente indagar se ela foi de fato derrotada.
aC
Certamente aqueles que foram excluídos da Marinha, os que foram bar-
baramente torturados e executados nos falariam de derrotas. Mas os processos
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or
cional da Garantia da Lei e da Ordem. O autoritarismo interno à casta também
foi se aprofundando ao longo do século na medida em que, contrariamente
od V
aos processos políticos da República Velha, o próprio oficialato divergente
aut
é punido de modo irreversível, o que é confirmado pela tentativa atual de
reversibilidade da anistia concedida a militares perseguidos após 1964.
R
Ao longo do século, o espectro do comunismo – como afirmava Marx
em 1848 – foi se consolidando como ameaça cada vez mais presente. Embora
o
mais imaginária que real, serviu de combustível à repressão dos movimentos
sociais em luta pela democracia. Esse processo, atualmente, possui muitas
aC
características do que Umberto Eco (2019) denomina de fascismo eterno.
Eterno porque ao contrário do nazismo, o fascismo não possui um quadro
em 1964 e no presente.
Neste sentido, podemos afirmar, com Angela Davis, que a liberdade é
uma luta constante, isto é, “à medida que amadurecem nossas lutas produzem
E
novas ideias, novas questões e novos campos nos quais nos engajamos pena
busca pela liberdade” (DAVIS, 2018, p. 27).
Revolucionários de 1910: Presente!
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 149
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COMO UM VENTRE LIVRE
TORNOU-SE ALMIRANTE,
MÚSICA, TATOOS E GRAFITES.
or
od V
Álvaro Pereira do Nascimento1
aut
Gaúcho nascido de ventre livre, marinheiro e com pouca instrução esco-
R
lar, João Cândido Felisberto tornou-se personagem singular da História do
Brasil. Liderou a Revolta dos Marinheiros de 1910, comandando quase 2000
o
homens e quatro navios de guerra – dois deles internacionalmente incluídos
aC
entre os mais poderosos do mundo. Era o mais experiente, somando diversas
missões em 15 anos de serviços militares prestados à Marinha de Guerra e
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1 Álvaro Pereira do Nascimento é Doutor em História pela UNICAMP, professor associado UFRRJ e
Pesquisador de Produtividade do CNPq. Contato: alvaropn@uol.com.br
2 Esta é uma versão ampliada de um capítulo da biografia que escrevi de João Cândido (NASCIMENTO, 2020).
154
or
sociais e culturais organizados, através de músicas, peças teatrais, enredos de
escolas de samba e a imagem do marinheiro negro estampada em camisetas,
od V
tatuagens3 e grafites4 nas ruas.
aut
Politicamente sedutora de ser rememorada, esta imagem tem um rosto
sem as marcas da passagem do tempo. Representa um homem negro, jovem,
R
forte, altivo e orgulhoso por seus atos, somando 30 anos de idade. Ele está
vestido com a farda branca dos marinheiros, pescoço envolto por um lenço
o
vermelho, equilibrando um quepe sobre a cabeça. Esta imagem representa
aquele homem que liderou quase dois mil brasileiros pobres, de imensa maio-
aC
ria negra, que ameaçou diretamente o governo federal com armamento capaz
de destruir boa parte da Capital Federal.
or
Essa imagem também foi e é paradigmática para os movimentos sociais
organizados ou político partidários, como a Aliança Integralista Brasileira
od V
(AIB) e o Partido Comunista Brasileiro (PCB), na década de 1930, a Asso-
aut
ciação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), na década
de 1960 e, mais recentemente, nos coletivos e associações formadas por negros
R
e negras na luta antirracista.
As histórias de João Cândido e da revolta tornaram-se parte da história
o
contada em livros escolares ou em momentos de efemérides. Mas ela ainda
desperta tensões nos meios militares e políticos. Nossa proposta então será
aC
narrar e compreender os usos desta imagem, entre as décadas de 1930 e 1950,
atravessando os governos Vargas, o processo de redemocratização e o lança-
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O golpe de estado de 1930 deu início à Era Vargas (presidente entre 1930
e 1945) e derrubou aquele formato de Estado Liberal, vigente desde 1889,
ampliando as expectativas dos que lutavam e almejavam por mudanças. Entre
par
or
João Cândido e foi abraçada pelas alas mais liberais e ligadas ao PCB.
O jornalista Aparício Torelly, o famoso Barão de Itararé, era membro do
od V
PCB e diretor do jornal crítico e humorístico A Manha. Em 1934, fundou o
aut
Jornal do Povo, de imprensa militante de combate ao integralismo e voz do
partido comunista, embora assim não se definisse. Logo no primeiro número
R
informou aos leitores que publicaria uma história da revolta de 1910 em capí-
tulos. Apporelly e seus colegas de redação, na verdade, planejaram dividir o
o
texto de um livro quase artesanal, possivelmente publicado em Pelotas, Rio
Grande do Sul, em 1934, escrito pelo jovem comunista e recém-formado
aC
médico Adão Manuel Pereira Nunes. Com o pseudônimo Benedito Paulo,
Nunes escreveu e publicou A Revolta de João Cândido, em 1932. O autor
A revolta dos marinheiros havia sido uma prova dessa luta esmagada pelos
par
ver di
O jornalista percebeu que não eram bandidos, quando um deles ordenou que
Torelly assumisse o “compromisso de retirar o Jornal do Povo e o folhetim
sobre a revolta dos marinheiros de 1910” de circulação. Negando-se vee-
mentemente a assim proceder, seus sequestradores passaram a ameaça-lo de
morte, espancaram-no, cortaram seus cabelos e o deixaram “despojado de
or
tudo que possuía, num local deserto para os lados de Jacarepaguá” (FIGUEI-
od V
REDO, 2012).
aut
Foi um escândalo na imprensa, mas os sequestradores nunca foram pre-
sos e condenados pelos crimes cometidos. A revolta estava viva e não seria
a única intervenção de oficiais da Marinha de Guerra em jornais contra João
R
Cândido, mas sem as violências física e moral praticadas contra o Barão de
o
Itararé. O jornalista se sentiu desprotegido para prosseguir com a série de
matérias no jornal e, com seu jeito sarcástico, pendurou em sua porta a placa
aC
“Entre sem bater...”
O ato terrorista contra Apparício Torelly também serviu como censura à
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grande risco para o autor do texto, mas também recairia sobre o editor, por
ter autorizado a publicação, e mesmo para a existência do jornal, que poderia
ser fechado pelo próprio governo.
par
or
de calar-se ante à ditadura.
od V
Com o fim do Estado Novo, em outubro de 1945, e a promulgação da
aut
nova constituição, em setembro de 1946, o país retornava à democracia. O
artigo 141, § 5º, foi comemorado por garantir a liberdade de pensamento, a
R
publicação de livros e periódicos sem a licença do poder público e os direitos
de manifestação. Não era tolerada, mesmo assim, “propaganda de guerra, de
o
processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos
aC
de raça ou de classe”. Aquelas trágicas experiências de Apparício Torelly e
Gustavo Barroso não poderiam mais ser toleradas.
e tréplica.
Com aquele título, Raimundo Magalhães Jr. noticiava mudanças na Aca-
demia Brasileira de Letras, a famosa Casa de Machado de Assis, o maior
cenáculo brasileiro até os dias atuais. A matéria explorava a sessão de posse
de Afonso Pena Jr. naquela instituição, quando passou a ocupar a cadeira do
falecido acadêmico Afrânio Peixoto.
Com o passamento de um dos seus membros, seu sucessor deve ser
recepcionado por um acadêmico, a quem compete proferir um discurso citando
o escritor falecido. Foi Alceu do Amoroso Lima (também conhecido pelo
pseudônimo Tristão de Ataíde) quem recepcionou Afonso Pena Jr. O discurso
trazia um elemento que alimentaria os debates no jornal Diário de Notícias,
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 159
or
As boas-vindas à cidade do Rio de Janeiro não saíram como de praxe. Pelo
contrário, foi uma verdadeira aventura para Afrânio Peixoto, que desembarcou
od V
“nos dias da revolta de João Cândido”, quando a cidade estava em pânico pela
aut
possibilidade de bombardeio”. Peixoto dizia que João Cândido, um “homem
rude”, deixou-se “embair pelas falas oficiais. Poupou o Rio e entregou-se de
R
boa fé ao governo” (LIMA, 1948).
Afrânio Peixoto sinalizava que a rendição em troca da anistia havia sido
o
um grave erro de João Cândido. A repressão, enfim, já estava preparada. O
líder da revolta “foi mais tarde enclausurado num dos cubículos da Ilha das
aC
Cobras pelo Comandante Marques dos Reis, perecendo todos os seus dezesseis
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companheiros, apenas resistindo ele João Cândido, porque Deus sabe depois
de que lutas pela vida conseguiu, sobre um montão de cadáveres” sobreviver.
visã
Foi a chave para que Magalhães Jr escrevesse sua coluna na manhã
seguinte. Estalou os dedos, apontou a caneta para as folhas de papel e redi-
giu parte volumosa da disputadíssima primeira página de qualquer jornal. O
r
cenáculo era o lugar de culto e defesa da língua, das obras imortais e de seus
a re
autores. Não poderia a proeza de João Cândido ser relembrada numa das salas
são to
saiba que muita gente em grande toilette, casacas, fardões, smokings lhe ouviu
o nome por três vezes, sábado último, na Academia. Nem talvez lhe interesse
saber. É um homem que cumpriu sua missão. E pode tranquilo descarregar seu
peixe”. O nome do Almirante Negro finalmente estava registrado nos anais
dos discursos da Academia Brasileira de Letras, e aquela luxuosa plateia ouviu
que o falecido acadêmico Afrânio Peixoto reconhecia a injustiça praticada por
oficiais da Marinha de Guerra para com o velho marinheiro, que descarregava
peixes e caranguejos na Praça XV.
Tal comentário num artigo de primeira página despertou o debate, um
duelo no qual as armas seriam as letras. O comandante Luiz Alencastro Graça,
contemporâneo daqueles dias de novembro e dezembro de 1910, sentiu o
160
or
sua irritação pelo fato de o nome de João Cândido ter sido pronunciado na
Academia Brasileira de Letras.
od V
Seis meses antes, lembrava ele, o mesmo ocorrera numa outra casa de
aut
imortais, ainda mais antiga que a Academia Brasileira de Letras, referindo-se
ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Na comemoração do
R
centenário de nascimento do deputado José Carlos de Carvalho – mediador
entre os marinheiros revoltados e o então presidente Hermes da Fonseca – o
nome de João Cândido havia sido pronunciado.
o
No restante da coluna, Alencastro Graça procurava justificar as ações dos
aC
oficiais que comandavam a Marinha de Guerra à época da revolta, perdoan-
do-os por lançarem mão dos castigos corporais. Atacava ainda a imprensa,
quatro dias depois, sendo cirúrgico em sua fala. Rebateu cada posição do ofi-
são to
um lado só”. Raimundo Magalhães Jr. aproveitou ainda para lembrar o quanto
Gustavo Barroso havia sido ameaçado por oficiais da Marinha ao publicar
suas memórias naquela matéria no jornal A Manhã, em 1942. O ponto mais
provocativo do texto, um presságio concretizado décadas depois, Magalhães
E
“Quero tão somente dizer que João Cândido tem um lugar na nossa His-
tória. O nome de muitos almirantes, vice-almirantes e oficiais superiores
desaparecerá. E o desse negro que descarrega balaios de peixe no cais
Pharoux ficará.”
or
nha de qualquer ameaça. Também desembainharia sua espada contra qualquer
pessoa que pusesse um “Zé da Ilha”, tomado pelos “vícios da pederastia e
od V
alcoolismo” no lugar dos almirantes Tamandaré e Barroso. Não imaginava ele
aut
que seu esforço seria em vão. A imagem de João Cândido fortaleceu-se com
o passar das décadas e o presságio de Magalhães Jr concretizou-se. A espada
R
do almirante mostrou-se inútil para cortar o corpo da História.
Quanto à acusação de que João Cândido dava-se aos “vícios de pederastia
o
e alcoolismo”, possivelmente, Alencastro Graça desejava acionar a homofobia
e o moralismo dos leitores, incitando-os a rechaçarem qualquer proposta de
aC
João Cândido figurar como parte da História do Brasil ou de ocupar lugar de
herói nacional, reservado aos almirantes da Marinha de Guerra. Alencastro
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Graça transformou sua caneta em canhão para atacar aqueles que “ora teimam
em rememorar” aquela catástrofe, num momento de “práticas e doutrinas
visã
dissolventes”. Estaria ele pronto para defender a Marinha e combater até
alcançar a “radical eliminação de cultos malditos”. E assim terminou o debate
entre estes dois contendores.
r
castro Graça. Quando João Cândido retornou a ser debatido por intelectuais e
são to
or
como publicou o Jornal do Commercio, em 25 de novembro de 1948. Havia
od V
três anos que o país saíra de sua primeira ditadura, na qual direitos foram
aut
suspensos e a imprensa tornou-se refém de um departamento de censura
moral e política das piores possíveis. Os comunistas já haviam participado
R
de manifestação igual a esta na véspera da tentativa da Revolta Comunista,
que explodiu na cidade de Natal, em 23 de novembro de 1935, data do ani-
o
versário de 25 anos da Revolta de 1910. Por isso, eles deveriam estar ao lado
dos marinheiros em 1948.
aC
Um comunicado do ministro da Marinha procurava despolitizar a par-
ticipação dos marinheiros, assemelhando-os à “massa de manobra” utilizada
esta visão, mas também faziam política muito antes de o próprio Partido
são to
maram, os marinheiros sabiam muito bem o que desejavam. Não eram uma
folha em branco a ser escrita por qualquer um que lhes trouxessem ideias.
Poderiam amar a pátria e até morrer por ela, mas antes de tudo eram homens
com responsabilidades quotidianas e princípios como qualquer elemento civil.
E
or
Lott, que havia sido ministro da pasta da Guerra (posteriormente desmembrada
em três ministérios referentes às três armas). Antecipou-se aos udenistas e deu
od V
um “golpe preventivo”, em 11 de novembro de 1955, enviando militares para
aut
ocuparem as ruas, órgãos de imprensa e prédios públicos. Derrubado Carlos
Luz, assumiu a presidência o senador Nereu Ramos, presidente do Senado
R
Federal, como também previa a constituição, que se manteve no governo até
a posse de Juscelino Kubitschek, vitorioso que foi no pleito de 1955.
O deputado federal Aliomar Baleeiro pelo estado da Bahia, pertencente à
o
UDN, publicou em 18 de novembro de 1955, um artigo no Diário de Notícias
aC
procurando mostrar que general Lott havia praticado um levante, injustificável
quando comparado ao levante do ex-marinheiro João Cândido, que defenderia
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
seus colegas dos castigos corporais. Irritado com o golpe preventivo de Lott,
Baleeiro o acusava de “rebelde” e delinquente.
visã
No momento em que o herói [marechal Lott] ganha missa festiva [...] não
é fora de propósito recordar outras gloriosas figuras de rebeliões, como
r
João Cândido, que se não fosse preto e pobre, teria também os ditirambos
a re
Afinal, ele derrubou o presidente Carlos Luz com um golpe militar, que,
temeroso, refugiou-se no navio Tamandaré, da Marinha de Guerra, com outros
oficiais militares, Carlos Lacerda, ministros e mais pessoas. O navio tomou
par
ver di
rumo para Santos e, na saída da baía da Guanabara, quase foi alvejado pelas
fortalezas, sob as ordens de Lott.
Se comparamos os responsáveis pelos dois bombardeios, perceberemos
que Lott deu um golpe de estado e ainda mandou bombardear quem exercia
E
Sou um homem sem instrução, mas que lê. Nos jornais só se fala em liber-
dade, humanidade e outras coisas nobres. Por que lutei? Não foi justamente
para isso? Não me arrependo, e tenho o meu ato como a coisa mais decente
que já fiz na vida. Lutei contra os maus tratos dado aos marinheiros, e fiz
sem ódios pois nunca fui punido”.
or
od V
Não era a primeira vez que respondia a esta pergunta nos 46 anos que o
aut
afastavam de 1910, mas a resposta era sempre a mesma. Após tantos solavan-
cos em sua história de vida, na qual obteve protagonismo poucas vezes alcan-
çados por homens negros na política nacional, esse mesmo homem estava num
R
lugar inimaginável aos olhos de repórteres e outros comentaristas da imprensa.
Como este ícone poderia estar pobre, descarregando peixe ou fazendo bicos
o
como vendedor ambulante nas proximidades do mercado, e morando com a
aC
família tão distante do centro nervoso da política nacional?
Foi justamente neste momento difícil que veio a público A Revolta da
Nada muito distante do dito por outros oficiais no passado em relação à figura
do Almirante Negro: “criatura imperfeita, por complexos originais [...] indivi-
dualidade destituída de propriedade e fibras para reagir, lutar e vencer, como
realmente veio provando durante a longa existência de frustrações e confor-
or
midades” (MOREL, 1986).5 Mais uma tentativa infundada e preconceituosa
da imagem que estava ficando para a história e muito pouco poderia ser feito
od V
para reverter aquela situação.
aut
Certamente, o livro de Adão Pereira Nunes foi uma primeira experiência,
destituída, porém, da profundidade de pesquisa de Morel, e carregada pela
R
propaganda do PCB. Embora Edmar Morel tenha sido da Aliança Nacional
Libertadora, estando mais próximo aos comunistas, seu texto fora criado para
registrar a história do “herói da ralé”, e finalmente vinha a público.
o
A repercussão foi imediata chegando convites para que João Cândido
aC
visitasse seu estado e cidade natal, onde diversas homenagens foram ofereci-
das. João Cândido, enfim, começava a ter o reconhecimento e a popularidade
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
por ele esperada. No entanto, sua imagem ainda era instrumentalizada politi-
visã
camente para disputas de toda espécie em locais públicos diversos.
O Diário de Notícias, em 10 de dezembro de 1959, mostrava um destes
usos, no caso o deputado federal gaúcho Paulo Mincarone eleito pelo Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB). O parlamentar vivia estremecido relacionamento
r
nas obras do porta-aviões Minas Gerais. Esse mesmo deputado propôs uma
são to
5 Luis Alves de Oliveira Bello. “Versão Oficial”, 1960. Este trabalho não chegou ao fim. O redigido está
datilografado no Arquivo da Marinha, mas foi anexado à 3ª edição do livro de Edmar Morel, 1979.
166
or
auxiliar o pai nesta tarefa.
Aos poucos João Cândido terminava seus dias, sempre apertado com os
od V
gastos diários e com a esperança de voltar a vestir a farda da Marinha, que
aut
tanto amou por sua vida.
Considerações
R
o
O livro e João Cândido não gozariam das luzes por muito tempo. Com o
golpe civil-militar de 1964, livro, autor e João Cândido saíram dos holofotes.
aC
A editora responsável pela segunda edição retirou a Revolta da Chibata das
livrarias, Morel perdeu seus direitos políticos e o emprego. João Cândido saiu
tentou mas não conseguiu realizar tal proeza. A memória e a história de 1910,
enfim, resistiram à opressão com arte, cultura e pesquisa desenvolvidas por
homens e mulheres nas academias, sindicatos, movimentos sociais, festivais
par
or
ciamento e interesse entre os mais jovens.
A maior homenagem e reconhecimento pelo feito se deu no simbólico e
od V
auspicioso Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro de 2008, quando
aut
foi inaugurado o monumento a João Cândido num evento de grande reper-
cussão nos meios de comunicação. Estavam presentes o presidente da Repú-
R
blica Luiz Inácio Lula da Silva, filhos e parentes do homenageado, políticos,
militantes diversos, simpatizantes e público em geral. O local escolhido para
sediar o monumento não gozava da simpatia de oficiais da Marinha de Guerra,
o
talvez por ficar muito próximo às ilhas das Cobras e de Villegaignon. Nelas,
aC
importantes unidades militares estavam e ainda estão sediadas, nas quais
João Cândido trabalhou por 15 anos, partiu e comandou os navios rebelados,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
permaneceu preso por dois anos e presenciou a morte por asfixia de 16 cama-
visã
radas envolvidos na revolta.
Esse lugar, a Praça XV de Novembro, Centro do Rio de Janeiro, também
presenciou o homenageado carregando balaios de peixe sobre a cabeça, dos
r
barcos ao mercado, ou, em outros momentos, vendendo os pescados para tran-
seuntes que retornavam às suas casas nas barcas Rio-Niterói. A inauguração
a re
pobre, doente e cansado. Sua imagem, porém, permanece viva, jovem, forte,
austera, fardada com o lenço vermelho contornando o pescoço e com passos
fortes sobre as pedras pisadas do cais. Sua existência está em grafites e braços
tatuados, nomes de escolas, movimentos sociais, entre tantos outros lugares.
Essa imagem atormenta os dias de uns que não suportam um herói negro
na História do Brasil, e ilumina a vida de outros que reagem a qualquer tipo
de opressão. O presságio de Magalhães Jr, enfim, continua a singrar os mares
de vento em popa. Afinal, como dizia João Cândido, “O mar é meu amigo”.
168
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvia Capanema P. de. Nous, marins, citoyens brésiliens et répu-
blicains: identités, modernité et mémoire de la révolte des matelots de 1910.
or
2009. Thèse (Ph.d.) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris.
od V
2009.
aut
ALMEIDA, Silvia Capanema P. de. Do marinheiro João Cândido ao Almirante
Negro: conflitos memoriais na construção do herói de uma revolta centenária. Revista
R
Brasileira de História, São Paulo, v. 31, n. 61, 2011.
o
ARIAS NETO, José Miguel. Joao Cândido 1910-1968: arqueologia de um
aC
depoimento sobre a Revolta dos Marinheiros, 2014. Disponível em: http://
www.uel.br/pessoal/jneto/arqtxt/JoaoCandido1910-1968.pdf. Acesso em: 19
em: http://www.academia.org.br/academicos/afonso-pena-junior/discurso-de-
são to
or
Niterói, EdUFF, 2020. [no prelo].
od V
SCHWARCZ, Lilia. As barbas do imperador. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
aut
SILVA, Marcos A. Contra a chibata. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982.
R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
visã
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a re
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são itor
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a re aC
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o aut
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ASSOCIAÇÃO DE MARINHEIROS E
FUZILEIROS NAVAIS DO BRASIL:
identidades em uma luta submersa
or
od V
Robert Wagner Porto da Silva Castro1
aut
R
Um dia, quando olhares para trás
verás que os dias mais belos
o
foram aqueles em que lutaste.
aC Sigmund Freud
milhares desses militares em todo o território nacional, até ter suas atividades
são to
marcado pela violenta repressão e por graves violações dos direitos humanos,
cujas memórias se encontram em disputa aberta, sendo até mesmo amplamente
utilizadas no embate político nos últimos anos.
1 Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) / Bolsista
CAPES e Mestre em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). É pesquisador do Núcleo de
Pesquisa em História Regional Platina -NPHR/UFPel e do Grupo de Estudos de História do Tempo Presente
– PUCRS. robert.castro@edu.pucrs.br
2 Expressão manifesta no cabeçalho do Estatuto da AMFNB – Projeto Brasil Nunca Mais Digital – http://
bnmdigital.mpf.mp.br – BNM 149, p. 2588-2594.
3 Conforme Estatuto da AMFNB – BNM 149, p. 2588-2594.
4 Termo empregado para aludir ao que é comum a marinheiros e fuzileiros navais.
172
or
durante os anos iniciais da década de 1960. Ou ainda, estudos cujo enfoque
principal se estabeleça sobre temáticas como a repressão5 e luta armada6. A
od V
proposta do presente escrito é observar a AMFNB desde uma perspectiva
aut
mais ampla, ou seja, enquanto parte de um longo processo de construção de
identidade desses militares. No sentido de, mormente a partir da memória
R
reavivada de seus membros e apoiadores, iluminar aspectos que marcaram
negativamente suas experiências na Marinha do Brasil. Notadamente aque-
les relacionados a questões específicas à carreira e condições de trabalho,
o
além de outras afetas a direitos e garantias sociais. Todas ancoradas em uma
aC
significativa tensão social entre oficiais e praças, há muito latente no seio da
força naval brasileira.
5 Ver: VASCONCELOS, Cláudio Bezerra de. A política repressiva aplicada a militares após o golpe de 1964. 2010.
Tese (Doutorado em História social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Rio de Janeiro, 2010.
6 Ver: ALMEIDA, Anderson da Silva. Todo leme a bombordo – marinheiros e ditadura civil-militar no Brasil:
da Rebelião de 1964 à Anistia. 2010. Dissertação (Mestrado em História social) – Universidade Federal
Fluminense – UFF. Niterói, 2010.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 173
or
em práticas com sentido e lógica próprios (CHAUI, 1986, p. 63). Podemos
ponderar que a resistência está diretamente relacionada às práticas cotidianas
od V
empreendidas por marinheiros e fuzileiros navais. Especialmente quando
aut
consideramos que:
R
O cotidiano é a vida de todos os dias; dos gestos, ritos e ritmos repetidos
diariamente. Seu espaço é o do automático, da rotina, do instintivo, do
familiar, do conhecido [...] esta sucessão repetitiva do dia a dia comporta
o
conteúdos bastante heterogêneos: engloba a vida familiar, o trabalho, as rela-
aC
ções de vizinhança, o lazer, entre outros aspectos. Além disso, no cotidiano,
o homem pode permanecer imerso na alienação (favorecida pelo automa-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
(POLLAK, 1989, p. 8). Sendo aqui empregadas como fontes para uma his-
tória “militante, solução para dar voz às minorias e possibilitar a existência
de uma História vinda de baixo” (ALBERTI, 2011, p. 157). Nesse sentido,
no contexto do que se propõe este estudo, podemos considerar que, ao buscar
E
or
cífico de “trabalhadores navais” e, sobretudo, concorrer para conferir espaços
od V
às “vozes” de parcelas da sociedade, relativa ou absolutamente silenciadas
aut
em ambientes de intensa disputa de memórias.
R
Marujos e fuzileiros
o
Sendo a AMFNB composta por marujos e fuzileiros, como sua própria
denominação faz referência, cumpre apresentar brevemente algumas das
aC
principais distinções entre esses integrantes de duas das mais importantes e
tradicionais frações que compõem a estrutura organizacional do contingente
or
em duas dessas subdivisões, cabendo aos marujos o Corpo do Pessoal Subal-
terno da Armada (CPSA) e aos fuzileiros o Corpo do Pessoal Subalterno do
od V
Corpo de Fuzileiros Navais (CPSCFN). Significativamente mais abrangente,
aut
o CPSA11 concentrava a maior parte dos praças da Marinha, cujo ingresso na
força se dava por meio de processo seletivo às Escolas de Aprendizes-Mari-
R
nheiros (EAM) ou por intermédio do recurso à conscrição e ao voluntariado.
A incorporação destes últimos ao serviço ativo da Armada se dava somente
o
mediante autorização12 do ministro da Marinha, que considerava, entre outros
aspectos, o quantitativo de marinheiros formados pelas EAM em determinados
aC
períodos e a demanda da força em relação ao guarnecimento de seus navios
e estabelecimentos de terra. Tanto no caso das EAM quanto na conscrição e
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
11 Conforme o Art. 1º e seu Parágrafo Único, do Decreto do Conselho de ministros nº 205, de 23 de novembro
de 1961, que aprovou e mandou executar o Regulamento do Corpo do Pessoal Subalterno da Armada,
tinha como finalidades guarnecer e prestar serviços nos órgãos, estabelecimentos e repartições navais.
Podendo, excepcionalmente, ser empregados em serviços de utilidade pública, estranhos à Marinha do
Brasil, a critério da autoridade competente.
12 Art. 17 e 18 Idem.
13 Art. 16 a 18 Idem.
14 Art. 16 Idem.
15 Art. 7º Idem.
16 Art. 8º Idem.
176
or
faziam na piscina, outros na casa dos oficiais, vigiar a casa dos oficiais,
od V
outros no portaló18 [...] e você só sairia de licença19 ou sábado ou domingo.
aut
É um internato incrível mesmo. O regresso à meia noite, você podia sair
depois de manhã e o regresso, teria que regressar meia noite, quando
estivesse de folga. Isso durante um ano e oito meses20 foi assim, sempre
R
essa rotina. [...] as disciplinas, eu vou te falar francamente. Quanto ao
conteúdo disciplinar era excelente, na prática propedêutica principalmente.
o
Eu não digo a profissional porque ali tu tinha noções de algumas coisas; o
aC
cara de serviço de convés tinha noções das bases das especialidades que
o convés, que quem optou pelo convés iria cursar [...] então a turma se
dividia em duas, quem ia pro serviço de máquina e quem ia pro serviço
17 Paulo Fernando Santos da Costa, gaúcho da cidade de Rio Grande. Ingressou na Marinha no ano de 1961
por meio da Escola de Aprendizes-Marinheiros de Santa Catarina, situada na cidade de Florianópolis e
atualmente se encontra na condição de militar reformado, por força de ação na justiça.
18 Passagem nas balaustradas ou aberturas nas bordas e/ou nos costados dos navios, por onde entram e
saem de bordo pessoal e carga leve (FONSECA, 2002, p. 30).
19 Termo empregado na Marinha em referência à autorização do comando para o militar ausentar-se da
organização militar em que servia, mesmo após o expediente. Denotando o caráter de precário do direito
de ir e vir desses homens em função da exigência de dedicação em tempo integral à força naval.
20 O curso nas EAM, que normalmente tinha duração de um ano, poderia ser mais longo ou mais breve que
esse período, a depender de questões relativas à carreira, pessoal e recursos financeiros. Naquele ano foi
ampliado para um ano e oito meses.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 177
QUADRO DE ESPECIALIDADES
CORPO DO PESSOAL SUBALTERNO DA ARMADA
SGC SGM SGT
Manobra Máquinas Principais Arrumadores
or
Artilharia Motores e Máquinas Especiais Cozinheiros
Torpedos, Minas e Bombas Caldeiras Barbeiros
od V
Sinais Eletricidade Padeiros
aut
Telegrafia Carpintaria e Controle de Avarias Suplementar de Taifa
Escrita e Fazenda Artífice de Mecânica
R
Enfermagem Artífice de Metalúrgica
Educação Física Suplementar de Máquinas
o
Eletrônica
Direção de Tiro
aC
Operação de Radar
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Operação de Sonar
Hidrografia e Navegação
visã
Paioleiros
Suplementar de Convés
21 Cujo regulamento foi aprovado e mandado executar pelo Decreto nº 28.880 de 20 de novembro de 1950.
22 § 2º do Art. 7º do Decreto nº 28.880 de 20 de novembro de 1950.
23 § 1º Idem.
178
QUADRO DE ESPECIALIDADES
CORPO DO PESSOAL SUBALTERNO DO CORPO DE FUZILEIROS NAVAIS
RGF RGSE RGA
Infantaria Escrevente Carpinteiro
or
Artilharia Sinaleiro Eletricista
Engenharia Telegrafista Torneiro – Fresador
od V
Enfermeiro Sapataria – Correaria
aut
Músico Ferreiro – Serralheiro
Corneteiro – Tambores Caldeireiro de Cobre – Soldador
R
Condutor – Motorista Bombeiro Hidráulico
o
do Corpo do Pessoal Subalterno do Corpo de Fuzileiros Navais�
aC
Considerando as finalidades do Corpo de Fuzileiros Navais enquanto
or
Contribuindo, como será possível observar mais adiante, para uma presença
substancialmente maior de marinheiros no quadro das mobilizações que cul-
od V
minaram na constituição da Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais
aut
do Brasil. Uma organização “fuzinauta”, oficialmente instituída, para além
dos limites da estrutura administrativa da Marinha.
R
Assim, compreender quem seriam esses marinheiros, a partir de suas
origens, especificidades de carreira e cotidiano na Armada. É fundamental
o
para um melhor entendimento acerca da própria mobilização em tela.
aC
O marinheiro
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e traba-
E
Nas instituições totais existe uma divisão básica entre um grande grupo
controlado [...] e uma pequena equipe de supervisão. [...] Cada agrupa-
mento tende a conceber o outro através de estereótipos limitados e hostis
[...] Os participantes da equipe dirigente tendem a se sentirem superiores
e corretos; os internados tendem, pelo menos sob alguns aspectos, a sen-
or
tir-se inferiores, fracos, censuráveis e culpados. [...] geralmente há uma
od V
grande distância social e esta é frequentemente (sic.) prescrita. (GOF-
aut
FMAN, 1974, p. 18-19, grifo meu).
Essa “distância social” não se restringia aos limites das instituições das
R
quais eram integrantes, mas se espraiava para o meio civil, onde estereótipos
comumente atribuídos aos marinheiros e à oficialidade naval eram absolu-
o
tamente distintos entre si. No que concerne aos marinheiros, o historiador
Flávio Rodrigues afirma que:
aC
própria experiência:
[...] quando nós chegamos no Rio, marinheiro era marginalizado. Por quê?
O cara com o que ganhava como é que ia procurar mulher? Não tinha
condições! [...] O cara vivia ali, na Central do Brasil [...] Que tinha ali na
Central do Brasil, tinha um, entre a Central do Brasil e o Ministério, era
Ministério da Guerra ali. Ali tinha um abrigozinho, um abrigo tipo esse
24 Pseudônimo adotado a fim de assegurar o anonimato perpétuo ao entrevistado, condição imposta pelo
mesmo para que fosse realizada a entrevista. Gaúcho da cidade de Pelotas, ingressou na Marinha no ano de
1959, por meio da Escola de Aprendizes-Marinheiros de Santa Catarina, situada na cidade de Florianópolis,
e atualmente se encontra na condição de militar reformado, por força de ação na justiça.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 181
abrigo que nós tinha aqui (referindo-se ao abrigo de bondes na área central
da cidade de Pelotas-RS) onde passava os bonde ali. E ali tava sempre
cheio de vagabunda. E o marinheiro ia ir aonde? Se metia sempre no meio
das vagabunda ali entendeu!? O nosso meio social, de quem não era de
lá, de quem não tinha família lá, era tá no meio das vagabunda ali. E até
or
por isso as famílias não aceitava marinheiro. Deus o livre que uma moça
od V
fosse namorar um marinheiro! De jeito nenhum! Eu tinha, eu arrumei uma
aut
namorada em Copacabana, ela era empregadinha em Copacabana, o dia
que eu disse pra ela que eu era marinheiro, terminou o namoro na mesma
hora [...] Então, agente, na realidade, agente era marginalizado. (sic.)
R
A questão salarial, ressaltada pelo ex-marinheiro no trecho acima, tinha
o
fundamental importância na construção do quadro de acentuada vulnerabili-
aC
dade social vivenciado por muitos marinheiros. Em especial aqueles naturais
de outras localidades do país, os quais não dispunham de quaisquer relações
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
familiares no Rio de Janeiro e que ao chegarem nos navios, para os quais foram
designados após a conclusão do período nas Escolas de Aprendizes-Marinhei-
visã
ros, notavam que a questão da moradia se revestia de grande importância.
Sobretudo no que concerne à construção de uma vida social no meio civil
após o longo período de semi-internato nas Escolas, em uma grande cidade
que, para muitos, parecia significativamente estranha em termos culturais.
r a re
25 No complexo naval onde funcionava, entre outras organizações militares, o antigo Ministério da Marinha e o
Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (AMRJ), este estabelecido na Ilha das Cobras, local onde comumente
permaneciam atracadas as principais belonaves da Armada.
182
or
hierarquia social entre eles.
Assim, entendendo que a “identidade está ligada a sistemas de represen-
od V
tações e tem estreitas conexões com relações de poder” (SILVA, 2014, p. 97),
aut
ao desvincular o oficial da representação comum do marinheiro, garante-se
a construção de identidades distintas e a distância social entre os dois seg-
R
mentos, além de apontar o lugar social de cada um na instituição e na própria
sociedade. Nesse quadro, podemos reputar que a identidade do marinheiro
o
não se constrói apenas desde o modo como é idealizado no senso comum,
mas também a partir das experiências daqueles militares e de suas relações
aC
com outros grupos e segmentos sociais. Isto é, em um contexto relacional com
outras identidades onde as diferenças, marcadas por representações simbólicas,
or
eletricidade, caldeiraria, tornearia, hidráulica, entre outras. Por outro lado,
a oficialidade era responsável pela condução do navio, gerenciamento das
od V
atividades necessárias ao seu funcionamento e manutenção da disciplina a
aut
bordo. Dessa forma, construía-se um cenário propício à formação de espaços
de disputas de poder onde – a partir da interação dos atores sociais – relações
R
de identificação, controle e resistência poderiam emergir, mesmo em uma
instituição militar. Conforme propõe Jorge Magasich:
o
[...] desde a Revolução Industrial se exija (sic.) às guarnições dos navios
aC
de guerra mais empenho no campo do conhecimento do que propriamente
no uso da força bruta. Os navios modernos requerem [...] numerosos téc-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
nicos que aspiram uma nova posição social. No entanto, as hierarquias das
Armadas e sua regulamentação disciplinar conservam o cunho de outros
visã
tempos.” (apud OLIVEIRA, 2009, p. 17)
26 Revista Marítima Brasileira, ano 82, n. 4, 5 e 6 abr./maio/jun. 1962, p. 103-117. Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=008567&Pes-
q=%22Ant%c3%a3o%20Alvares%20Barata%22&pagfis=89620. Acesso em: 21 abr. 2020. A Revista Marítima
184
or
A Marinha e a nação foram surpreendidas e alarmadas na manhã de 23
de novembro de 1910, com a notícia de que, cerca de 23 horas da noite
od V
precedente, tinham-se sublevado os marinheiros dos navios da Armada,
aut
sem que pudessem imaginar os motivos de tal levante. Vamos agora,
procurar determinar esses motivos, que permitiram essa ocorrência de tão
nefastas consequências. [...]
R
O palestrante seguiu argumentando contra algumas manchetes de jor-
o
nais da época, como as do Diário de Notícias e do Correio da Manhã, que
aC
criticavam a prática da chibata na Marinha e militavam pela anistia aos mari-
nheiros revoltados. O principal argumento do almirante Antão se fundamenta
Brasileira é o mais antigo e importante periódico oficial da Marinha do Brasil. Fundada em 1851, é a mais
antiga revista marítima ainda em atividade no mundo.
27 Revista do Clube Naval, ano 120, n. 361, jan./fev./mar. 2012, p. 8-9.
28 A matéria sobre os movimentos de bombeiros do Rio de Janeiro e policiais militares da Bahia encontra-se
na parte da revista destinada à “política interna”, na sequência, está um espaço destinado à “reminiscência”.
29 Conforme Decreto nº 3 de 16 de novembro de 1889, que reduziu o tempo de serviço de algumas classes
na Armada e extinguiu nesta o castigo corporal.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 185
or
dar um exemplo [...] [grifos meus]
od V
aut
Em seu discurso evidenciam-se alguns aspectos muito relevantes no que
concerne às relações entre oficiais e marinheiros. As tradições, são um desses
fatores que merecem destaque na medida em que se revestem de significativa
R
relevância no contexto da definição do lugar social destinado a esses mili-
tares na corporação. O posicionamento do palestrante vem corroborar esse
o
entendimento, visto que procura embasar alguns de seus argumentos sobre
aspectos relacionados à tradição, como no instante em que procura justificar
aC
o emprego da chibata na Marinha brasileira já durante o regime republicano.
Desse modo, podemos compreender que essas “tradições”, segundo as
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
quais, de acordo com Antão Álvares Barata, as chibatadas seriam “aceitas com
visã
naturalidade” pela marujada e aplicadas com “repugnância” pela oficialidade,
evidenciam e ajudam a reforçar as posições de oficiais e marinheiros naquele
universo social. Ao passo que, sendo reservado exclusivamente aos praças os
castigos físicos e à oficialidade à aplicação dos mesmos, podemos perceber a
r
or
menores à Escola de Aprendizes-Marinheiros. [...] Em vista desse sistema
od V
de recrutamento, à força, de gente de tal espécie, como esperar outro
aut
desfecho em 1910, numa sublevação de equipagens assim constituídas?
Embora certos hábitos antigos tivessem sido abolidos com o advento da
República, a corja não melhorou. [...] Após a rebelião dos nossos próprios
R
marinheiros verificou-se que eles tinham executado, fielmente, tanto no
Minas como nas outras unidades navais, os mesmos passos do motim
o
inglês, só diferindo os dois movimentos, no final: é que na sublevação dos
britânicos os cabeças foram sumariamente enforcados, enquanto no Brasil
aC
os marinheiros assassinos foram indignamente anistiados. Seu suposto
chefe, covarde e bárbaro, tem sido até hoje homenageado, além de se ter
conteúdo da palestra e do modo como foi por duas vezes publicada. E ainda
a re
que um exame assim não seja objeto do presente estudo, cumpre ressaltar
são to
or
presente, contribuindo para a manutenção de um status quo de dominação,
fundamentada em preconceitos étnicos e sociais, sob o “manto” da hierar-
od V
quia e da disciplina. Nesse sentido, cabe ressaltar o posicionamento de E. P.
aut
Thompson (2001, p. 235), ao afirmar que:
R
Geralmente, um modo de descobrir normas surdas é examinar um episó-
dio ou uma situação atípicos. Um motim ilumina as normas dos anos de
tranquilidade, e uma repentina quebra de deferência nos permite entender
o
melhor os hábitos de consideração que foram quebrados.
aC
No caso dos marinheiros, tanto em 1910 quanto em 1964, essas “normas
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Erving Goffman (1974, p. 19) aponta como concepções por meio de “este-
são to
or
Em nossos corações de jovens marujos palpita o mesmo sangue que corre
nas veias do bravo marinheiro João Cândido, o grande Almirante Negro33,
od V
e seus companheiros de luta que extinguiram a chibata na Marinha. Nós
aut
extinguiremos a chibata moral, que é a negação do nosso direito de voto
e de nossos direitos democráticos. [grifo meu]
R
Fica evidente que a simbólica presença do “Almirante Negro” nessa
assembleia revela o caráter de resistência daquela associação e o sentido de
o
continuidade do movimento “fuzinauta” em relação à “Revolta da Chibata”
aC
e a Revolta do Batalhão Naval. De modo que, pouco mais de cinquenta anos
após o fim do uso da “chibata” em seus corpos, marujos e fuzileiros, orga-
dro das relações sociais vigentes na Armada e das motivações para a referida
são to
32 Em virtude da insígnia de marinheiro de primeira classe contar com duas divisas, a exemplo da insígnia
de cabo no Exército, alguns autores atribuem a graduação de cabo à José Anselmo dos Santos, de modo
que ficou popularmente conhecido como “cabo” Anselmo. Foi o segundo presidente da AMFNB, eleito por
ocasião das eleições convocadas em abril de 1963.
33 Alcunha pela qual ficou conhecido o marinheiro João Cândido, uma das principais e a mais emblemática
das lideranças da Revolta dos Marinheiros de 1910.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 189
or
nas quais estavam inseridos, ultrapassavam os limites de suas instituições
espraiando-se para a arena pública, mais especificamente para o campo da
od V
política. Nesse prisma, considerando que:
aut
As praças eram de fato recrutadas entre as camadas proletárias da popula-
ção, diferentemente do que acontecia com os oficiais. [...] Como a socia-
R
lização nos princípios da disciplina não era suficientemente forte para
superar a consciência da exploração, o conflito permanecia latente e podia
o
explodir quando surgisse conjuntura favorável. Quando trabalhadas por
aC
elementos do Partido Comunista, as praças mais facilmente extrapolavam
a dominação de que eram vítimas dentro da organização para a sociedade
como um todo, alinhando-se com sua classe de origem e identificando os
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
34 No século XX podemos destacar a Revolta dos Marinheiros de 1910, a Revolta do Batalhão Naval, a Revolta
dos Sargentos 1963 e a AMFNB (1962-1964). Além das outras obras já indicadas, ver: PARUCKER, Paulo
Eduardo Castello. Praças em pé de guerra: O movimento político dos subalternos militares no Brasil (1961-
1964) e a Revolta dos Sargentos de Brasília. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
190
or
od V
Cerne das motivações para as principais mobilizações de marinheiros na
aut
Marinha do Brasil durante o século XX, as tensões que fermentaram de modo
latente no seio dessa instituição durante anos podem ser melhor compreendi-
R
das quando observamos as demandas apresentadas por marujos e fuzileiros
nesses momentos de crise.
Destarte, a fim de possibilitar uma melhor percepção da cotidianidade
o
desses militares, de modo a descortinar as bases de suas reivindicações e,
aC
consequentemente, de seus movimentos, a memória se apresenta como fonte
indispensável. Na medida em que, como já citado, está associada ao processo
or
ros e fuzileiros navais constituíram uma associação durante os conturbados
anos iniciais da década de 1960, já no governo do presidente João Goulart.
od V
Seguindo o entendimento de Maria Aurora Rabelo (1992, p. 73), podemos
aut
compreender que aqueles marinheiros experimentaram sua cotidianidade e
decidiram buscar maneiras de mudar ou ao menos melhorar sua realidade na
força naval. Corroborando o que indica a expressão marinheira “marujo não
R
é caixote”, no sentido de que, diferente de um caixote, o marinheiro “se vira
o
sozinho”, ou seja, não importa as condições que se apresentem, ele sempre
encontra soluções para suas dificuldades.
aC
Segundo o ex-marinheiro Antônio Duarte, o conflito que se evidenciava
no seio da força naval brasileira, seria “originado na estrutura envelhecida da
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35 Decreto nº 38.010, de 5 de outubro de 1955, que aprovou o Regulamento Disciplinar para a Marinha (RDM).
36 Item 52 do Art. 7º do RDM.
192
or
estado da Guanabara, a AMFNB foi fundada como órgão de representação
social de classe. Composta por marinheiros e fuzileiros navais nas graduações
od V
até cabo, aquela associação trazia em seu estatuto38 sete finalidades, cinco das
aut
quais tinham caráter essencialmente assistencial relacionado diretamente às
demandas sociais dos seus associados. Finalidades que se materializavam
R
em ações empreendidas junto aos seus membros e respectivas famílias, tais
como: assistência médica e jurídica, desenvolvimento de projetos de incentivo
o
à educação com parcerias que proporcionavam o acesso às salas de aula, cur-
sos de etiqueta básica, cursos de inglês, atividades recreativas (bailes, futebol
aC
e passeios pela cidade) e ajuda aqueles que desejassem abandonar vícios
como o jogo e o alcoolismo. Dessa maneira, os marinheiros encontravam na
[...] a associação pra quem queria algo diferente na Marinha, poder estudar
[...] Só que as reivindicações, nós não podia andar civil na rua, era umas
r
das reivindicações era andar civil. [...] Então era uma série de regras, você
a re
não podia casar, o pessoal não podia, era proibido casar. Então tinha uma
são to
Não fazia parte do nosso cotidiano, as festas. Nós não éramos convidados
E
37 Item 39 Idem.
38 BNM 149, p. 2588-2594 – Estatutos da AMFNB.
39 Entrevista concedida a Anderson da Silva Almeida em 22 dez. 2009. Apud ALMEIDA, 2010, p. 40.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 193
or
dência de algum navio que viajasse para a sua terra natal para que, mediante
autorização de seu comandante e vaga disponível no navio que realizaria
od V
a viagem, pudesse ser destacado nessa embarcação para, enfim, visitar sua
aut
família durante alguns dias. O seguinte trecho da narrativa do “Entrevistado
B”40 ilustra bem essa situação. O ex-marinheiro relata uma audiência com
R
José Uzeda de Oliveira, comandante do cruzador Tamandaré no ano de 1962,
navio em que o entrevistado servia à época:
o
Uma vez eu fui pro livro de ocorrência41. Cheguei lá, começamos a conver-
aC
sar e ele disse: “Da onde é que tu é?” Eu disse: “Ah eu sou do Rio Grande
do Sul, de Pelotas.” E ele disse: “Tu tem ido em casa?” Eu digo: “Não. Nas
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férias eu fico por aqui mesmo. Não vou em casa.” Ele disse: “Mas tu não
vai em casa?” Digo: “Não.” Ele: “Quanto tempo faz?” Parece que fazia
visã
uns oito anos que eu não vinha aqui. Ele disse: “Não, mas tu tem que ir
em casa. Peraí um pouquinho.” Chamou o ajudante dele lá e disse: “Vê se
tem algum navio que sai pro sul agora.” Aí ele me disse: “Vai embora que
r
depois eu vou mandar te chamar pra nós conversar aqui.” Eu disse: “Tá
a re
bom.” Fui embora. Passou uns dois dias ele mandou me chamar e disse:
“Arruma tuas coisas que tu vai ser destacado no contratorpedeiro Bauru
são to
que vai pro sul. Vai lá pra ver a tua família. Ele vai a Pelotas, o Bauru”.
Eu digo: “Então tá.” Aí fui. [...] (sic.)
par
aspectos das suas vidas, como ilustra Paulo Costa ao relatar uma das muitas
dificuldades enfrentadas por aqueles marinheiros, especialmente por aqueles
que residiam a bordo, chamados na Marinha de “mexilhões”42:
40 “Entrevistado B” é o pseudônimo adotado para garantir o anonimato perpétuo, condição imposta para que
fosse realizada a entrevista. Gaúcho da cidade de Pelotas, ingressou na Marinha no ano de 1961 por meio
da Escola de Aprendizes-Marinheiros de Santa Catarina, situada na cidade de Florianópolis e atualmente
se encontra na condição de militar reformado
41 No “Livro de Contravenções” eram lançadas as contravenções (faltas disciplinares) cometidas por militares
nas graduações até sargento, inclusive, a fim de que estes fossem à audiência com o comandante do
navio ou quartel. A quem, à luz dos regulamentos disciplinares, cabia a responsabilidade pelo julgamento
e eventual aplicação de sanção disciplinar.
42 Marisco comumente encontrado vivendo preso aos cascos dos navios.
194
or
de goiabada, lata disso, lata daquilo; fazia um escambo [...] pra poder tua
od V
roupa ser lavada. [...] Mas nós éramos obrigados a fazer isso pra poder
aut
manter o uniforme em dia. [...] (sic.)
R
recorrente entre os militares da Marinha do Brasil, que diz: “a Marinha man-
dou marchar, não mandou chover!” Ou seja, não importa se aqueles marinhei-
o
ros que residiam nos navios não tinham onde lavar suas fardas ou dinheiro
aC
para pagar pelo serviço. O regulamento disciplinar exigia que eles estivessem
com seus uniformes devidamente alinhados43, sob pena de serem impedidos
or
Os trechos das narrativas apresentadas anteriormente evidenciam apenas
od V
alguns dos óbices enfrentados por aqueles militares no cotidiano da Armada.
aut
Na esteira dessa realidade, já no ano de sua fundação a AMFNB procurou atuar
junto aos marinheiros, tanto na urbe carioca – a bordo dos navios e estabele-
cimentos de terra – quanto nas escolas de formação e demais organizações da
R
Marinha situadas nos diversos estados do país44. A divulgação era feita entre
marinheiros e fuzileiros com objetivo de obter novos associados e represen-
o
tantes (denominados “delegados”) a bordo das organizações militares da força
aC
naval. O comprometimento da associação “fuzinauta” com a questão social
fica patente tanto nas finalidades apresentadas na ata de fundação45 quanto na
seção um do seu estatuto46, que apresenta todas as sete finalidades da entidade.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
estivessem lotados.
são to
44 O próprio artigo 2º do estatuto da AMFNB previa que a sede da associação seria no estado da Guanabara,
com representações nos demais estados do país. BNM 149, p. 2588 – Estatutos da AMFNB.
45 BNM 149, p. 2585-2586 – Ata de Fundação da AMFNB.
46 BNM 149, p. 2588 – Estatutos da AMFNB.
47 BNM 149, p. 2594 – Idem.
48 Organização militar, situada na Ilha das Cobras (região central da cidade do Rio de Janeiro), destinada
ao cumprimento de penas restritivas de liberdade aplicadas aos militares da Marinha. Inclusive aquelas
196
[...] Eu, uma vez, o meu oficial, da minha divisão, me prendeu e mandou
eu me apresentar no navio porque eu tava paisano na frente do Ministé-
rio da Marinha. Eu tava na rua, em frente ao ministério, ele passou e me
prendeu. Que não podia andar a paisano ali. [...] (sic.)
or
De mesmo modo, Paulo Costa também narra uma ocasião em que foi
od V
preso por estar nas ruas após a meia noite:
aut
[...] Depois da meia noite se – mesmo fardado – tu estiver pela rua, não
podia estar depois da meia noite na rua, chegava o camburão, que vinha
R
com a escolta naval, feita de fuzileiros, e recolhia. Eu mesmo fui recolhido
duas vezes pro Presídio Naval e no outro dia de manhã era solto. [...] (sic.)
o
aC
Sem o apoio formal da instituição, parte daqueles militares que desejas-
sem estudar dependia da simpatia de seus superiores para frequentar as salas
de aula. Em seu relato, Avelino Capitani (1997, p. 19) afirma que:
o oficial passava revista e dizia: “Teu chapéu tem uma pequena sujeira”.
a re
Em sua narrativa, Paulo Costa também relata como sofreu com esta
par
[...] esse oficial da primeira divisão começou a pegar no meu pé, enten-
desse. Começou a pegar no meu pé e [...] Dava licença e eu ia formar;
por que lá você pra baixar terra49 no Tamandaré, você tinha que formar
E
e o oficial vinha te vistoriar de cima a baixo pra ver como é que tu tá pra
poder sair. Esse oficial chegava e ele olhava, se eu tava ele passava pelos
outros e olhava eu, dizia: “Paulo, vem aqui.” E sempre arrumava uma
desculpa: “Vai passar um Kaol50 no cinto, vai engraxar o sapato, vai cortar
o cabelo”; e eu não conseguia baixar terra [...] (sic.) [grifo meu].
relativas às faltas disciplinares aplicadas por comandantes de navios e quartéis onde não houvesse local
disponível para a guarda de presos, local este denominado na Marinha como “bailéu”.
49 Termo utilizado na Marinha, mesmo em estabelecimentos em terra, para referir-se a sair de bordo, isto é,
sair do navio ou quartel. Remontando ao período da propulsão à vela, quando os navios permaneciam
fundeados ao largo do porto e, nessa condição, o licenciamento da tripulação era realizado por meio de
escaleres, que baixavam do navio a fim de conduzir o pessoal de bordo à terra.
50 Marca de um produto utilizado para dar brilho em metais, muito empregado na Marinha.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 197
Por “tradição”, que muitas vezes era institucionalizada por meio de nor-
mas e regulamentos internos de cada OM, todos os praças nas graduações
iniciais deveriam formar no convés (ou local previamente estabelecido) a
fim de serem inspecionadas, para que, só então, pudessem deixar seu navio
ou quartel ao final do expediente. Essa inspeção, normalmente a cargo do
or
oficial de serviço no dia, consistia na verificação das condições relativas à
od V
apresentação pessoal do militar, ou seja, barba, cabelo e uniforme. Além de
aut
inspecionar eventuais volumes particulares que esses militares estivessem
levando consigo, como: sacolas, bolsas e mochilas. A fim de que pudesse
R
constatar se não estariam saindo com algum material de propriedade da Mari-
nha, sem a devida autorização.
o
Não obstante as referidas inspeções, existiam ainda horários para que os
praças pudessem deixar o navio, isto é, nas normas internas que regulavam as
aC
rotinas de cada organização militar da Marinha existiam horários preestabe-
lecidos para que esses militares pudessem “baixar terra”. Caso, por qualquer
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51 Termo utilizado na Marinha para fazer referência ao ato de um navio deixar o cais ou fundeadouro para
navegar.
198
or
Diante dessa situação, a extinção das cadernetas-registro era uma das
reivindicações dos marinheiros. Pois, segundo eles, o documento, que é indi-
od V
vidual para cada militar, se constituía em instrumento poderoso de dominação,
aut
já que os registros nele contabilizados ficavam a cargo dos oficiais. Que,
em algumas ocasiões, por interesses próprios, poderiam lançar punições por
R
entenderem que o militar “estava com a barba grande” ou com o “sapato
não condizente com a farda da Marinha”, por exemplo. Ou seja, situações
o
altamente subjetivas, que poderiam ser utilizadas de acordo com a simpatia
de um oficial por um determinado militar ou de seus interesses pessoais. Esta
aC
subjetividade se evidenciava em diversas contravenções disciplinares elenca-
das no artigo 7º do RDM, tais como: “responder de maneira desatenciosa ao
da AMFNB atuava com uma postura que visava as mudanças na Marinha por
meio da aproximação com a alta administração naval. Pois, dessa maneira
seria possível, em um primeiro momento, alcançar o reconhecimento oficial
par
ver di
da força naval.
Essa busca pelo reconhecimento oficial da AMFNB junto à administração
da força naval se fez presente desde o primeiro ofício55 emitido pela entidade.
O qual, endereçado ao ministro da Marinha, além de participar a criação e
fundação da associação “fuzinauta”, também solicitava seu reconhecimento
52 Documento administrativo comum a todos os militares da Marinha (oficiais e praças) onde se realizava o
acompanhamento da carreira do militar, registrando todas as ocorrências relativas ao mesmo, não somente
as punições.
53 Conforme os Art. 71 e 118 do Regulamento para o Corpo do Pessoal Subalterno da Armada e § 1º do Art.
28 do RDM.
54 Somente aplicada aos praças das graduações inferiores à de suboficial, conforme o Art. 13 do RDM.
55 BNM 149, p. 2580-2581.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 199
or
combativo e politizado, formado em sua maioria por marinheiros que serviam
od V
embarcados nos navios, passou a fazer forte oposição interna à primeira dire-
aut
toria da associação. Oposição que se fundamentava em denúncias contra o
presidente, cabo João Barbosa, acerca de sua tendência de aproximação em
R
relação ao Conselho do Almirantado56 em detrimento de ações mais significa-
tivas para apresentar e reivindicar as demandas dos marinheiros. Essa divisão
o
culminou na convocação de eleições em abril de 1963, as quais foram vencidas
pelo grupo de oposição que passou então a compor a diretoria da AMFNB.
aC
Cuja diretoria passou a ser composta por nomes como Marco Antônio da
Silva Lima, Avelino Bioen Capitani e os irmãos José e Antônio Duarte dos
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56 De acordo com o Art. 1º do Decreto nº 22.070, de 10 de novembro de 1932; este é um órgão consultivo
da administração naval para o estudo de problemas técnicos e administrativos que não sejam de caráter
privativo do ministro da Marinha.
200
or
assembleia. A reunião converteu-se em ato permanente de protesto.
od V
Com a simbólica presença de João Cândido, além de políticos e lideran-
aut
ças de entidades de representação, o clima no interior do sindicato foi ficando
mais tenso, especialmente depois da decretação de prontidão rigorosa e dos
R
acontecimentos supramencionados. Diversos pronunciamentos passaram a
ser realizados, com destaque para o discurso do “cabo” Anselmo, no qual
o
declarava apoio ao presidente Goulart e ao seu projeto reformista, bem como,
demonstrava alinhamento às pautas defendidas pelos segmentos sociais e
aC
categorias que apoiavam João Goulart.
reivindicações do movimento.
[...] Autoridades reacionárias, aliadas ao antipovo e escudadas nos regu-
lamentos arcaicos e em decretos institucionais, qualificam de entidade
subversiva. Será subversivo manter cursos para marinheiros? Será subver-
sivo dar assistência médica e jurídica? Será subversivo visitar a Petrobrás?
Será subversivo convidar o Presidente da República para dialogar com o
povo fardado? [...] Quem tenta subverter a ordem não são os marinheiros,
os soldados, os fuzileiros, os sargentos e os oficiais nacionalistas [...]
Quem tenta subverter a ordem são aqueles que proibiram os marujos do
Brasil, nos navios, de ouvir a transmissão radiofônica do Comício das
or
Não interferência do Conselho do Almirantado nos negócios internos da
od V
Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil;
aut
Reconhecimento pelas autoridades navais da AMFB;
Anulação das faltas disciplinares que visam apenas intimidar os associados
e dirigentes da AMFB;
R
Estabilidade para cabos, marinheiros e fuzileiros; [...] (sic.)
o
Fuzileiros navais foram enviados ao sindicato, por ordem do ministro da
Marinha, almirante Sylvio Mota, com o objetivo de pôr fim à assembleia. Mas,
aC
diante dos apelos de seus companheiros reunidos no interior do “Palácio de
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onde ficaram detidos até o dia 27, quando o recém empossado ministro da
a re
são to
Considerações
58 Comício das Reformas de Base realizado no dia 13 de março de 1964 na Central do Brasil, região central
da cidade do Rio de Janeiro. Muitos marinheiros compareceram a este comício, alguns inclusive fardados,
contrariando os regulamentos disciplinares e a orientação da própria associação.
59 Unidade do Exército Brasileiro também situada no bairro de São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro.
202
or
a condição desses homens enquanto sujeitos do processo histórico naquele
od V
instante tensionado da história do país. Foi nesse sentido que se estruturou a
aut
presente análise.
Destarte, podemos considerar que a mobilização desses marinheiros,
R
cujo ápice se deu entre os anos de 1962-1964, materializada, principalmente,
na emblemática assembleia do dia 25 de março de 1964, com a simbólica
presença de João Cândido, evidenciou um processo de identificação que trans-
o
borda os limites temporais da própria associação “fuzinauta”. Tendo em conta
aC
que a partir de uma condição de subalternidade, a que estavam submetidos pela
própria hierarquia militar, associada a regulamentos, tradições e simbolismos
or
na Marinha e a ampliação de direitos e garantias sociais.
od V
Marcha que foi abruptamente interrompida com o golpe de Estado,
aut
do qual os marinheiros foram seu “quebra-mar”. Suportando os primeiros
“impactos”, imediatamente após a queda de Goulart, de uma “tempestade”
R
que duraria mais de vinte anos.
Desse modo, foi no transcurso do processo histórico que esses mari-
o
nheiros desenvolveram uma incipiente consciência enquanto grupo social
específico. E, ao se identificarem a partir de suas vivências em um cotidiano
aC
de resistências e lutas, esses militares construíram uma sólida concepção
de grupo. Aspecto que merece ser destacado por se revestir de significativa
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-3-16-novembro-1889-524482-publicacaooriginal-1-pe.html#:~:text=Veja%20
tamb%C3%A9m%3A–,DECRETO%20N%C2%BA%203%2C%20DE%20
o
16%20DE%20NOVEMBRO%20DE%201889,extingue%20nesta%20o%20
castigo%20corporal.&text=2%C2%BA%20Fica%20abolido%20na%20arma-
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da,de%201889%2C%201%C2%BA%20da%20Republica. Acesso em: 10
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“ENTREVISTADO A” (marinheiro membro da AMFNB) – Entrevista reali-
R
zada pelo autor, em 21 de novembro de 2013, nas dependências do Núcleo de
História Regional, no Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal
o
de Pelotas, no bairro Centro, cidade de Pelotas-RS. 21 nov. 2013
aC
“ENTREVISTADO B” (marinheiro) – Entrevista realizada ppelo autor, em 13
de março de 2014, na residência do entrevistado no bairro Areal, cidade de
tiva, 1974.
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OLIVEIRA, Gisela Santos de. A Revolta dos Marinheiros de 1936. Venda
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gentos de Brasília. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
o
PAULO FERNANDO DA COSTA (marinheiro e uma das lideranças da
aC
AMFNB) – 1ª Entrevista realizada pelo autor, em 2 de novembro de 2013,
na residência do entrevistado no bairro Cassino, cidade de Rio Grande-RS.
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Letras, 1998.
or
QUE NÃO PASSA (1964-2009...)
od V
aut
Anderson da Silva Almeida1
R
Em maio de 1981 a revista Veja publicou um artigo com a chamada
“Exilados” no qual Herbert Daniel – estudante de Medicina em Minas Gerais
o
aC
nos anos 1960 e que se tornaria guerrilheiro – aparecia como o último exilado
político da Ditadura. Naquele momento, o entrevistado morava em Paris e
trabalhava em uma sauna. Daniel, lutava para voltar ao Brasil depois de
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
que permaneciam exilados desde a aprovação da Lei da Anistia, que ele con-
a re
1 Doutor em História social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor Adjunto da Universidade
Federal de Alagoas atuando nos cursos de Graduação e Pós-Graduação. E-mails: prof.anderson.ufal@
gmail.com; andersonhistoriauff@gmail.com.
2 Para todas as informações desse parágrafo ver GREEN, James N. Revolucionário e Gay: a vida extraordinária
de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2018, p. 248-250.
210
or
Seus pais trabalhavam e moravam numa propriedade de cultivo da cana de
açúcar. Na história da cidade, é curioso o fato de que em diversos momentos
od V
a povoação terá seu nome alterado. Desde seu desmembramento do município
aut
de Atalaia, em 1860 – momento no qual foi alçada à categoria de Vila – Capela
receberia diversas denominações: Euclides Malta, Paraíba e Conceição da
R
Paraíba – até voltar, em 1949, ao seu nome original.3 Foi lá que o menino
Antônio cresceu. Assim como sua cidade natal, Geraldo terá diversos nomes
o
e codinomes em sua trajetória.
Por volta dos 13 ou 14 anos, já morando em Maceió, foi alfabetizado. Em
aC
suas memórias aparece a influência dos tios como importantes personagens
no sentido de despertar no jovem a consciência para a luta política, visto que
por seguir carreira na Marinha, sendo designado então para o Rio de Janeiro,
são to
sede da Armada brasileira. Em seus registros na Marinha, além dos dados bási-
cos de filiação e local de nascimento, o responsável pelo alistamento registrou
que nosso personagem era da cor preta e tinha 1,57 m de altura (BNM 034,
par
ver di
or
sair do navio após o expediente. Nos documentos consultados sobre sua vida
militar, nenhuma punição por atividade política.
od V
Sentindo-se desprestigiados pela alta administração naval, marinheiros,
aut
cabos e soldados criaram, em 1962, a Associação de Marinheiros e Fuzileiros
Navais do Brasil (AMFNB). Geraldo foi escolhido, pelo Conselho Delibera-
R
tivo, o primeiro vice-presidente da histórica instituição (RODRIGUES, 2004,
p. 66). Em abril de 1963 foi realizada eleição para a segunda diretoria. O cabo
o
alagoano chegou a ser cogitado para a presidência, mas a preferência recaiu
aC
sobre José Anselmo dos Santos, que posteriormente entraria para história
como um dos maiores traidores da esquerda armada do País, sob a alcunha
equivocada de “cabo Anselmo”, já que era marinheiro de primeira classe. Ao
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
or
nheiro alagoano.
od V
[...] Apresentado ao cabo Antônio Geraldo da Costa, Marighella assuntou
aut
sobre o cotidiano nos navios e quartéis [...] explicou sua discordância com
a via pacífica preconizada pelo partido para buscar o poder e enalteceu
R
os fuzis de chineses e cubanos. O alagoano Geraldo não precisava nave-
gar tão longe para se deixar cativar: ele era criança quando surpreendeu
capangas de proprietários de terra trucidando as cabras de sua família a
o
cujo leite ele creditaria seus dentes ainda alvos e intactos na velhice. Não
aC
se esqueceu da lição da mãe lavradora: ‘Os fazendeiros só entendem a
linguagem do bacamarte’.6
durou três dias e causou um grande desgaste para o presidente João Goulart
são to
6 MAGALHÃES, Mário. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo. Rio de Janeiro: Companhia das
Letras: 2012, p. 295.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 213
or
Em depoimento prestado no mesmo processo, o marinheiro Raul Alves
do Nascimento declarou que por volta do dia seis de abril encontrou Geraldo
od V
nas proximidades de uma agência dos Correios, em Recife, e o alagoano
aut
confidenciou sua intenção de fugir do navio. O plano era voltar para o Rio
de Janeiro e pedir asilo em alguma embaixada. Retorno assegurado, tiveram
R
o apoio logístico de alguns companheiros e ficaram instalados por curtos
períodos em apartamentos divididos com amigos do tempo da Marinha com
o
o apoio de integrantes da POLOP. O reencontro de Geraldo com Raul na
Guanabara, teria ocorrido em 11 de junho (BNM 034, p. 60-64).
aC
Nesse período, várias articulações ocorreram e as ações armadas já esta-
vam no horizonte. Entre os principais interlocutores dos marinheiros e fuzi-
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
leiros expulsos, aparece a figura do intelectual Ruy Mauro Marini, que viria
visã
a ser preso e torturado pelo Centro de Informações da Marinha (CENIMAR).
Esse grupo teria planejado, de acordo com os documentos, uma ação no
Esquadrão de Helicópteros da Marinha visando a obtenção de armas. Plano
r
que não foi levado à frente, mesmo após a elaboração dos croquis, a cargo de
Geraldo (BNM 034, p. 1995). O fato é que após alguns meses de conspiração,
a re
7 Sobre o apelido, Geraldo afirmou em entrevistas após seu retorno que não o via de forma preconceituosa,
mas de uma maneira carinhosa e positiva. Ver: Neguinho, o primeiro mês do último anistiado, 28 ago. 2009.
Entrevista a NADDEO, André. Disponível em: https://tvuol.uol.com.br/video/neguinho-o-primeiro-mes-do-
-ultimo-anistiado-0402386EC4911366. Acesso em: 9 abr. 2019.
214
or
ao deputado Cid Carvalho:
od V
Rio de Janeiro, 23 de setembro de 1964
aut
Exmº. Sr. Deputado
Por meio desta deixo V. Exª. a par de minha situação como prêso político
R
à disposição do Centro de Informação da Marinha (CENIMAR). Dia 21
de julho de 1964, eu e vários companheiros fomos presos em Copacabana
por agentes do DOPS a serviço do CENIMAR. Fui transportado para
o
aquela repartição às 21 horas do mesmo dia, e lá chegando, fui atirado a
um cubículo.
aC
Na noite do dia 22 para 23, fui levado para uma das salas do CENIMAR,
Vivemos sob constante ameaça de ser dado sumiço. Aqui termino certo de que
nosso grito de dor e angústia será ouvido” (ALVES, 1967, p. 174).
Depois de certo tempo encarcerados, já conhecidos pelos agentes como
“presos políticos”, os marinheiros passaram a adquirir a confiança de alguns
E
or
Ácidas guerrilhas
od V
A partir da escapada, já expulso, a Marinha perderia não só um de seus
aut
prisioneiros, como também o especialista em sinais. A prisão ficaria sem
Neguinho. Os grupos armados ganhariam um “Tigre”.
R
A primeira organização a acolhê-lo foi o Movimento Nacionalista Revo-
lucionário (MNR) que tinha como principal líder Leonel Brizola, exilado
o
no Uruguai. Neguinho já era conhecido dos brizolistas desde os tempos da
AMFNB e das articulações com a POLOP e, por esse motivo, recebeu tarefas
aC
no sentido de articular a ida de ex-militares para o MNR, particularmente
praças, expulsos das Forças Armadas após o Golpe. Geraldo teve como base
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
9 COSTA, Antônio G. A luta continuou. In: FERRER, Eliete (org.). 68 – a geração que queria mudar o mundo:
relatos. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia, 2011, p. 314-316.
216
or
foi. Ficaria no Brasil participando da captação de recursos através de ações
expropriatórias. Foi entre 1967 e 1968, ao participar de ações armadas, que
od V
ganhou o apelido que jamais o abandonaria: Tigre.
aut
Geraldo não queria teorizar. Juntou-se aos que estavam na linha de frente.
“A equipe logo foi batizada Grupo Tático Armado (GTA), como Marighella
R
escreveu em 1968. Era tático porque o Grupo de Trabalho Estratégico (GTE),
mais relevante, lutaria no campo” (MAGALHÃES, 2012, p. 378). Lá já estava
o
Helinho, outro alagoano, ex-marinheiro, professor da AMFNB, também con-
denado e procurado pela Ditadura. Sobre esse tempo no qual viveu clandes-
aC
tino, vale a pena mais uma vez “ouvirmos” nosso personagem. Ao relembrar
o período da vida clandestina e sua militância armada, sublinhou a dureza
pra mim foi uma opção entrar na ALN. [...] Nós, as organizações armadas,
jamais atacaram (sic) bancos, jamais roubaram banco, jamais. As organi-
zações revolucionárias aqui e no mundo, desapropriavam. Nós cobráva-
mos impostos revolucionários. Essa que é a palavra certa para financiar
E
10 Neguinho, o primeiro mês do último anistiado, 28 ago. 2009. Entrevista a NADDEO, André. Disponível em:
https://tvuol.uol.com.br/video/neguinho-o-primeiro-mes-do-ultimo-anistiado-0402386EC4911366. Acesso
em: 9 abr. 2019.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 217
or
a ousada ação, Marighella foi procurado mas considerou que o plano era de
alto risco e optou por não participar. Entretanto, liberou Neguinho e Hélio
od V
para apoio externo aos ex-companheiros da Marinha que articularam o plano
aut
de dentro do presídio. Era 27 de maio de 1969 quando praticamente todos os
jornais fluminenses deram em destaque a manchete da fuga ocorrida no dia
R
anterior. Como saldo negativo, dois feridos de forma não letal e um guarda
penitenciário que faleceria dias depois (ALMEIDA, 2012, p. 117-118).
Nas palavras de Mário Magalhães, “[...] Se Hollywood se locali-
o
zasse no Brasil, a Operação Liberdade, como seus artífices denominaram
aC
a fuga cinematográfica, teria rendido filmes de tirar o fôlego” (MAGA-
LHÃES, 2012, p. 473). Difícil não concordar. Foram nove condenados que
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
escaparam pela porta da frente. Entre eles, Avelino Capitani, Antônio Duarte
visã
e Marcos Antônio. Companheiros de longa data nos tempos da Marinha.
Seria a morte desse último, o Marcão, que levaria o “Tigre” e muitos mari-
nheiros, lá pelos idos dos anos 1970, a abandonar a luta armada e partir
definitivamente para o exílio. De acordo com Flávio Rodrigues (2017, p.
r
or
geógrafo norte-americano David Lowenthal,12 Luciana Fagundes nos revela,
com absoluta propriedade, a imagem do passado como “um país distante e
od V
diferente que necessita de ordenação, de nexo, de uma lógica capaz de dar
aut
alguma inteligibilidade [...]. O passado não está dado, não é algo imóvel e
imutável... o passado, como o presente, é sempre uma construção... também
R
transitória, assim como o futuro” (FAGUNDES, 2017, p. 18).
A partir dessa ilustração, fica evidente a comparação entre o trabalho do
o
historiador e a condição do exilado. Ao mergulharmos em um tempo que nos
é estranho, que comumente mobiliza outras linguagens e signos, alimenta-se
aC
a partir de outros cardápios e lança mão de um vestuário específico, estamos
nessa condição, nunca estática, de desterrados. Porém, uma diferença signi-
11 Alguns autores que mencionarei a partir desse ponto já foram citados em ALMEIDA, Anderson da S. ...como
se fosse um deles – Almirante Aragão: memórias, silêncios e ressentimentos em tempos de ditadura e
democracia. Niterói: Eduff, 2017, p. 177-178. Quando necessário, adaptei o texto, quando não, foi mantido.
12 Sobre David Lowenthal, ver: https://www.theguardian.com/culture/2018/sep/27/david-lowenthal-obituary.
Acesso em: 20 mar. 2019.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 219
or
destino, como também pelas referências e interesses individuas e/ou coletivos.
od V
Nas atividades políticas e culturais dos exilados, podemos encontrar, segundo
aut
Rollemberg, “os valores de cada fase e como se modificaram, indicando rup-
turas e continuidades na esquerda exilada” (Ibidem, p. 189).
R
Trazendo essas problematizações para a análise do exílio de nosso perso-
nagem, nas várias entrevistas que deu após seu regresso, Geraldo relembrou os
o
pormenores da travessia Uruguai-Argentina-Chile-Suécia. Sublinhou o difícil
momento no qual teve que aceitar que era chegada hora de arriar as armas,
aC
deixar o País e lutar contra a Ditadura com outros meios. “Eu pessoalmente
não queria sair do Brasil nem da América Latina. Nós fomos forçados a sair
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
do país, nós não fugimos, nós fomos forçados a sair do país. Nós percebemos
visã
[que deveria deixar o país] quando as organizações revolucionárias estavam
sendo destruídas”13, disse ele.
Não foi fácil aprender o idioma sueco, como também lidar com o frio
r
e os dias cinzentos de Lund, a pequena cidade onde se estabeleceu com o
apoio do ex-marinheiro que lá se encontrava desde 1966, o gaúcho de Rio
a re
Grande Guilem Rodrigues da Silva. Nos relatos de seu anfitrião, para quem
são to
o Brasil ganhou a Copa” era uma das poucas referências que tinham antes da
decisão de pra lá se dirigirem. Nas memórias de Silva, os detalhes:
13 Neguinho, o primeiro mês do último anistiado, 28 ago. 2009. Entrevista a André Naddeo. Disponível em:
https://tvuol.uol.com.br/video/neguinho-o-primeiro-mes-do-ultimo-anistiado-0402386EC4911366. Acesso
em: 8 fev. 2019.
14 SILVA, Guilem R. da. A Suécia era sinônimo de fim de mundo. In: FERRER, Eliete (org.). 1968 – a geração
que queria mudar o mundo: relatos, 2011, p. 631.
220
or
manhãs de Lund. Sobre esses caminhos na nova vida, rememorou:
od V
É realmente um choque cultural. O problema linguístico, adaptação.
aut
Quando você compara a sociedade, não deixou de ser um choque pra
nós. Chega numa sociedade livre, democrática, fomos recebidos de bra-
R
ços abertos. Foi o governo sueco da época que nos recebeu, mandou as
passagens. Eu agradeço ao povo sueco. Por exemplo, eu vi muitas vezes
o primeiro ministro sueco andar pra lá e pra cá na rua, os membros do
o
Parlamento... isso cria um certo choque quando você pensa no Brasil. [...]
aC
o meu primeiro trabalho foi entregar jornais. De madrugada, frio, no gelo,
na rua. Mas isso foi uma maneira de me integrar no mercado de trabalho
das suecas.15
a re
são to
[...] O Carlos Juarez era Neguinho estraçalhado pela tortura, casmurro, pão-
-duro na risada e atormentado por uma brutal mania de perseguição que o
E
impediu de voltar ao país mesmo depois da Lei da Anistia [...] era Neguinho
vendo espião do regime em cada esquina, em qualquer parte do mundo. [...]
Falava o necessário, em volume baixo, quase nunca sobre o passado. [...] Se
ia a uma festa, coisa rara, escafedia-se sem se despedir, sem deixar rastro.
Mas não sem antes atormentar os mais chegados com a frase que se tornou
bordão: ‘Tem um cara estranho ali, sei não, vamos embora?’16
15 Neguinho, o primeiro mês do último anistiado, 28 ago. 2009. Entrevista a André Naddeo. Disponível em:
https://tvuol.uol.com.br/video/neguinho-o-primeiro-mes-do-ultimo-anistiado-0402386EC4911366. Acesso
em: 8 fev. 2019.
16 CRUZ, Christian Carvalho. Entretanto, foi assim que aconteceu: quando a notícia é só o começo de uma
boa história. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2011, p. 17-19.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 221
or
Anistia tem gosto de feijão com arroz
od V
aut
A demora de Geraldo em regressar ao Brasil pode ser analisada a partir
de vários aspectos. Desde sua adaptação forçada à nova realidade na Suécia,
R
visto as diversas mortes de militantes que continuaram a acontecer no Brasil,
passando pelas condenações que o exilado carregava – tanto pela Rebelião
o
dos marinheiros, quanto pelas ações armadas nas quais esteve envolvido ati-
vamente – até o problema da interpretação da Lei 6.683, sancionada em 28 de
aC
agosto de 1979, que excluiu grande parte dos guerrilheiros. A anistia nunca
foi ampla, geral e irrestrita. A rigor, a condição de “expulso” e o acesso à
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
e, por fim, já sob a presidência de Luís Inácio Lula da Silva, em 2012, a apro-
vação de mudanças significativas no texto (LEI 10.559), possibilitando que
inúmeros marinheiros conquistassem vitórias jurídicas e a condição de anis-
tiados políticos com suas devidas reparações (ALMEIDA, 2012, p. 187-213).
E
or
assinar. O momento no qual teve de volta o passaporte brasileiro com seu nome
verdadeiro foi filmado e fotografado. Como fundo musical do pequeno vídeo
od V
produzido sob sua encomenda, Pra não dizer que não falei das flores, canção
aut
emblemática do paraibano Geraldo Vandré.17 Aquela mesma que fala em “sol-
dados armados, amados ou não, quase todos perdidos de armas na mão”. Da
R
imagem poética das “flores vencendo o canhão”. Do “vem, vamos embora...”
A partir daquele dia desapareceria Carlos Juarez. Renasceria Antônio
o
Geraldo Costa. Dali a alguns dias, seria um personagem de alcance nacional.
Símbolo de um País que tentava resolver seus problemas com o passado. A
aC
Anistia para Geraldo não era sinônimo de amnésia, esquecimento, perdão.
Para ele significava os vários retornos. Ao seu nome de batismo, ao Brasil, à
17 Ver: Antônio Geraldo Costa recebe passaporte com seu nome original depois de 45 anos na clandestinidade.
Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0B4GFEkYIrI. Acesso em: 21 abr. 2019.
18 Imagens dessa chegada podem ser conferidas em: https://www.youtube.com/watch?v=Ie2oksheZ8I. Acesso
em: 21 abr. 2019.
19 Cf. O Último exilado – Neguinho desembarca no Galeão RJ – TV Brasil – 21 jul. 2009. Reportagem disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=ZbL-eWJim0I. Acesso em: 15 abr. 2019.
20 O GLOBO, 22 jul. 2009, p. 2.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 223
or
nome verdadeiro, que exibia ontem como troféu, o direito à pensão garantido
e o apoio dos amigos, o ex-militante resolveu então fazer sua viagem de volta
od V
ao Brasil” (O GLOBO, 22 jul. 2009, p. 8). Geraldo agradeceu ao ministro da
aut
Justiça, Tarso Genro, e disse que “faria tudo de novo, agora com mais expe-
riência”,21 levando à euforia as dezenas de amigos que foram recepcioná-lo
R
com abraços, faixas e um gigantesco desenho do “Tigre”.
Considerações
o
aC
A história tem suas surpresas. Como nos referimos anteriormente a David
Lowenthal, o passado, assim como o presente, está sempre em construção,
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
revisão e ressignificação. Assim como Herbert Daniel não era o “último exi-
visã
lado” em 1981, Geraldo também não o era em 2009. Depois de seu retorno,
o epíteto foi utilizado por outros jornalistas ao abordarem casos semelhantes
nos anos seguintes.
r
Já em janeiro de 2010 alguns sites divulgaram a existência de outro mari-
nheiro, então exilado no México, que vivia doente e sem condições financeiras
a re
da reportagem não poderia ser outro: “último exilado brasileiro vive doente
no México”.22 A partida de Edilton para o México aconteceu em 1966, em
companhia de mais outros colegas de farda, conforme pude constatar no livro
par
ver di
or
é intencional e tem o propósito claro de tentar construir um consenso social
od V
no apoio à participação dos agentes de segurança na política, em especial
aut
ao Exército Brasileiro, sob os limites de uma frágil democracia verde-oliva.
Por fim, eu diria a Jadir S. Bandeira – o “último exilado” aqui mencio-
R
nado – que o tempo realmente não voltará, simplesmente porque ele ainda não
passou. Sem dúvida presenciaremos ainda incontáveis “retornos” – físicos,
o
conceituais e ideológicos – até que um dia, quem sabe, o último desterrado
seja realmente o derradeiro e a historiografia possa continuar a fazer seu
aC
trabalho no enfrentamento das falsificações e negacionismos do passado e,
sobretudo, do nosso tempo presente. Nesse aspecto, trajetórias, histórias de
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Introdução
aC
O debate sobre a Lei de Anistia 6.683 de 28 de agosto de 1979 foi
retomado com a aprovação da Emenda Constitucional 26/19852. Esta última
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com.br.
2 O trabalho de Mezarobba (2003) trata da reabertura de discussão da anistia em 1985. Este remete a disputa
dos projetos de Emenda Constitucional do deputado federal Jorge Uequed (favorável aos marinheiros) e o
substitutivo do deputado federal Valmor Giavarina (restrito aos marinheiros). O último acabou prevalecendo
com a atuação decisiva do lobby das Forças Armadas.
3 O artigo 2º da Lei n.º 6.683/79 indicava que o militar demitido, posto em disponibilidade, aposentados,
transferidos para a reserva ou reformados podia requerer o retorno ou a reversão ao serviço ativo no
prazo de 120 dias a partir da publicação desta Lei. Já o artigo 3º assinalava que o deferimento de tais
requerimentos ficava condicionado ao interesse da instituição militar e se houvesse vagas, este assumiria
o mesmo posto ou graduação que ocupava anteriormente. Os requerimentos eram analisados por uma
comissão constituída para esta finalidade nas repartições militares, sendo que o parágrafo 4º deste mesmo
artigo colocava que não seria aceito o retorno ou a reversão ao serviço ativo do militar que tivesse sido
motivado por incompatibilidade do servidor, neste caso, dos marinheiros.
4 Os marinheiros eram acusados injustamente pela Marinha de terem sido punidos por crimes submetidos
a legislação ordinária, por homossexualismo, pederastia e ladrões.
230
or
militares cassados com vistas a concretizar o que planejavam, ou seja, excluí-
rem os marinheiros6. O primeiro sinal veio com a permissão de reincorporar
od V
e promover apenas oficiais e sargentos, o que de certa forma abria uma cisão
aut
entre aqueles, isolando praças e marinheiros7. O ex-cabo da FAB e membro
da União dos Militares Não-Anistiados, Paulo de Oliveira Pereira, nos relata
R
que “os oficiais estavam preocupados com seus próprios interesses e deixam
em segundo plano os marinheiros e cabos”, ao passo que, ao ser acusado de
infiltrado por Ferro Costa, Pereira explicitou que os oficiais fazem pressão
o
sobre os marinheiros porque “querem exercer ascendência hierárquica” (OS
aC
MILITARES..., 1985, p. 4).
As pressões dos comandantes militares partiam do pressuposto de que
e não tinha dinheiro para pagar tanta gente, quer dizer, eles queriam se
ver di
5 Representando entidades de civis e militares cassados. Para maiores detalhes consultar o trabalho de
Machado (2006).
6 Um dos expedientes utilizados dizia respeito aos recursos disponibilizados para a indenização dos militares
cassados.
7 O artigo 4º da Emenda Constitucional n.º 26/1985 concedia anistia a todos os servidores públicos da Admi-
nistração direta e indireta e aos militares punidos por atos institucionais, exceção ou complementares o que
beneficiaria os marinheiros. Os oficiais e sargentos foram promovidos e reintegrados com base neste artigo,
mais especificamente, pelo §3º que concedia promoções na aposentadoria ou na reserva, cargo, posto ou
graduação a que teriam direito se estivessem no serviço ativo. Aos praças e marinheiros não-anistiados
só lhes cabia naquele momento preencher os requerimentos e reenviarem-no aos órgãos das instituições
militares de origem, pois o § 4.º do mesmo artigo assinalava que cabia exclusivamente a estas readmitir
ou reverter ao serviço ativo o militar anistiado.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 231
or
marginalizados pelos demais segmentos de militares cassados, os marinheiros
da entidade compreenderam que a anistia, da forma como estava colocada, não
od V
avançaria sem uma atuação política. Deste modo, com o retorno dos debates
aut
sobre a anistia no Congresso Nacional, os membros da entidade trabalharam
para a formulação de uma abordagem diferente para conquistá-la, debatendo
R
e formulando internamente uma pauta reivindicatória que atendesse aos seus
interesses, na medida em que a anistia era mantida nos termos em que o
pesquisador Paulo Ribeiro da Cunha indicou ser: “socialmente limitada e
o
ideologicamente norteada” (CUNHA, 2010, p. 16).
aC
Nesse sentido, os membros da UMNA entenderam que era preciso fechar
uma pauta tendo em vista a compreensão do novo patamar que se abriu para a
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luta pela anistia: “Numa pauta política pra lutar numa anistia política porque
visã
só a anistia política nos dava direitos” (COUTINHO, 2011).
A atuação na constituinte
r
tuinte, com a finalidade de redigir uma nova Constituição para o país entre
são to
8 Machado (2006) relata que os trabalhos no Congresso Nacional foram divididos em Comissões e Subcomis-
sões. O debate sobre a ampliação da anistia foi realizado na Subcomissão dos Direitos Políticos, Coletivos
e Garantias (relator deputado Lysâneas Maciel – PMDB/RJ), sendo os projetos analisados em seguida na
Comissão de Ordem Social (relator senador Almir Gabriel – PMDB/PA) finalizando-se na Comissão de
Sistematização (presidente senador Afonso Arinos PFL e Bernardo Cabral – PMDB/AM como relator).
9 A Federação das Associações de Defesa da Anistia (FADA) foi formada pela Associação dos Militares
Incompletamente e Não-Anistiados (AMINA), Associação Democrática e Nacionalista dos Militares (ADNAM),
Associação de Defesa dos Direitos e Pró-Anistia dos Atingidos por Atos Institucionais (AMPLA), Tortura
Nunca Mais, além de comissões dos anistiados da Petrobrás e dos Ferroviários. (MILITARES..., 1987;
LOBBY..., 1987, p. A-9). Para maiores detalhes consultar o trabalho de Machado (2006).
232
or
de coronel. Em contraste, praças e marinheiros permaneceram na condição
de não-anistiados ao continuarem punidos e excluídos destas legislações.
od V
Neste sentido, “os oficiais que insuflavam a marujada [...] foram indenizados,
aut
enquanto os marinheiros, depois de verem a prisão ou o desemprego, viram
navios” (MARUJOS..., 1988, p. 33).
R
A Subcomissão dos Direitos Políticos, Coletivos e Garantias discutiu
alguns projetos de ampliação da anistia. O relator Lysâneas Maciel construiu
o
uma proposta que reuniu as emendas do deputado Vilson Souza (PMDB-SC) e
do Movimento de Unidade Progressista (MUP). Nesta mesma Subcomissão, o
aC
senador Jamil Haddad (PSB-RJ) procurou inserir uma emenda que garantisse
o pagamento aos anistiados e as referidas promoções a que teriam direito se
10 Cunha (2010) explica que a revolta de Aragarças ocorrida em 1959, da autoria de oficiais da extrema
direita militar da Aeronáutica e colocou em xeque a estabilidade do governo de Juscelino Kubitschek e o
cumprimento de um calendário eleitoral para a escolha de um novo presidente da República no ano de
1960. O autor destaca ainda, que os rebeldes optaram pelo exílio diante da eminência da derrota e por
estarem isolados politicamente. Estes seriam anistiados em 1961.
11 Lysâneas explica que eles percebiam seus vencimentos em dólares. Realiza esta comparação para mostrar
a situação vivenciada pelos praças e marinheiros punidos pelo golpe de 1964.
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 233
lado, é relevante o fato – chamo a atenção dos Constituintes para esta obser-
vação de que as anistias anteriores a 64 sempre beneficiaram brasileiros que
haviam sublevado contra a lei, contra a ordem e contra os regimes legalmente
constituídos. Mas é a partir da sucessão de golpes militares aos governos da
América Latina que nos alcançou, em 64, que se inicia a escalada de violên-
or
cias contra os que permaneceram ao lado dos governos legitimamente eleitos
od V
pelo povo e em defesa do regime democrático. (ASSEMBLEIA NACIONAL
aut
CONSTITUINTE – ATAS DE COMISSÕES, 1987, p. 67).
R
seriam apreciados e votados, a proposta aperfeiçoada de Vilson de Souza
ficou sob o ataque de parlamentares que encabeçavam o lobby12 das Forças
o
Armadas contra a ampliação da anistia. Os marinheiros não-anistiados se
aC
depararam com um projeto substitutivo do deputado Bernardo Cabral, que
manteve a maior parcela das restrições anteriores. Quando esta Comissão
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12 Entre os parlamentares que encabeçam o lobby das Forças Armadas estavam o deputado Ricardo Fiúza
(PFL-PE) e João Agripino (PFL-RN): “Os projetos de interesse das Forças Armadas sempre são apresentados
pelo deputado Ricardo Fiúza (PFL-PE)”. (LOBBY, 1987, p. A-9).
13 Almeida (2010) mostra que a Exposição de Motivos n.º 138 de 21 de agosto de 1964 do ministro da Mari-
nha pedia a autorização do general-presidente Castelo Branco para expulsar os envolvidos no episódio
da rebelião dos marinheiros de 25 a 27 de março no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, pedido
que segundo o pesquisador fora concedido.
14 Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas e José Richa.
234
justificar a mudança de voto nesta Comissão: “Foi o medo dos urutus saíssem
as ruas” ou que “meia hora depois que estiver aprovada a ampliação da anistia
os urutus estarão nas ruas do Brasil” (MILITARES..., 1987, p. 6).
Em nosso entender, a recusa da ampliação da anistia fez parte de um
or
acordo do governo José Sarney, cujos termos eram brecar a anistia e aprovar
um pacote de benesses para o próprio chefe de Estado. O marinheiro Ave-
od V
lino Bioen Capitani relata tal fato ao mencionar que o pacote oferecido pelo
aut
governo Sarney incluiu, entre outros pontos, à concessão de emissoras de rádio
e televisão aos parlamentares que votassem contra a ampliação da anistia aos
R
marinheiros (CAPITANI, 2005, p. 93).
O almirante Mauro César Rodrigues Pereira, em depoimento concedido
a Castro e D’Araujo (2001), relatou que uma das preocupações da Marinha
o
era impedir que se realizasse uma anistia acima do que ele considerou de
aC
“adequado”. Contudo, Pereira explica que a anistia aprovada no Congresso
Constituinte ficou acima dos parâmetros estipulados pela instituição militar.
entrada de ações para análise do Judiciário. Neste sentido, o lobby dos cas-
sados conseguiu que uma de suas emendas fosse apresentada e aprovada em
Plenário pelo deputado Aloísio Teixeira (PMDB, RJ). Esta emenda permitiu
par
ver di
15 Em entrevista concedida a uma reportagem, Ferro Costa comenta que a propositura da emenda “Foi um
golpe de mestre”. Diante do impasse de não ter a emenda aprovada, visualizou uma possível aprovação
se esta fosse apresentada por Aloísio Teixeira por ele não ser um parlamentar identificado com a esquerda.
(MILITAR..., 1988). Para um dos representantes da Marinha, almirante Mauro César Rodrigues Pereira, a
anistia ampliada no Congresso Constituinte deu margem para os marinheiros atingidos conseguirem seus
direitos, assim como a celebração de acordos na Justiça. Pereira reclama que “Há casos de sargentos da
Marinha que, por decisões judiciais, foram promovidos a capitão de mar e guerra, quando a Marinha, no
máximo, lhes reconheceria o direito de serem suboficiais. Essas decisões todas estão sendo reformadas.
Na última instância de julgamento, eles começaram a perder. Está todo o mundo voltando a ser suboficial e
tendo que devolver o que ganhou indevidamente” (PEREIRA, 2001, p. 266). Em nossa análise, o almirante
Mauro César Rodrigues Pereira parece expressar o ressentimento da instituição militar para com a abertura
da brecha legal, aprovada no Congresso Constituinte, que concedeu o direito dos praças em, reclamar
por uma anistia Jurídica nos Tribunais de Justiça. Ainda assim, Pereira esquece ou não faz esforço para
lembrar que os regulamentos militares anteriores ao pré-1964 dava a possibilidade dos praças chegarem
a galgar o posto de capitão de mar e guerra. Alguns membros da UMNA conquistaram, até o momento em
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 235
or
não-anistiados causaria grandes problemas com os militares da ativa:
od V
[...] a anistia sempre foi pautada pela ideia de que aquele pessoal que
aut
houvesse sido punido por atos de exceção seria anistiado e compensado
pelas perdas que tivera. E o Covas fez uma emenda – sem entrar em
R
maiores detalhes, porque a história é comprida à beça – que anistiava
também o pessoal que tivesse sido afastado ou transferido para a reserva
por atos administrativos. Então, todo o pessoal que tivesse saído das Forças
o
Armadas naquele período iria voltar para o serviço ativo, com promoções
aC
e recebimentos de atrasados. Ora, de cada 10 capitães-de-mar-e-guerra, um
vai a contra-almirante, nove saem; no Exército, a proporção é de 50, 49
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saem. Então, todo esse pessoal que tinha saído por atos administrativos
ia voltar ao serviço ativo com pagamento de atrasados, promoções. Era
visã
uma maluquice que não tinha mais tamanho. Deu um trabalho infernal,
porque não conseguimos convencer os homens responsáveis de que isso
acabava com as Forças Armadas. Teve que ir a votação – ninguém con-
segue convencer o Covas de coisa nenhuma! No plenário foi derrubada.
r
que a pesquisa foi realizada, galgar o posto de capitão de mar e guerra, ocasião em que fui apresentado a
uma deles que, além de ter galgado a este posto, também tinha proventos de contra-almirante.
16 Os participantes dos levantes de 1935 e da campanha “O petróleo é nosso” haviam sido anistiados pelo
Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969. Sendo assim, o § 1º do artigo 8.º passou a assegurar
promoções, cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem no serviço ativo, obe-
decidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e nos regulamentos vigentes. (BRASIL,
2004, p. 60).
17 As concessões de anistias para ex-militares no Tribunal Federal de Recursos foi um dos motivos para
o endurecimento dos ministros militares contra suas ampliações na Assembleia Nacional Constituinte.
(COMISSÃO, 1987, p. A-9).
236
or
benefícios, extinguiram punições além de conquistarem o direito de serem
transferidos para a reserva remunerada da Marinha. Deste modo, para enfrentar
od V
os custos crescentes advindos da manutenção de ações na Justiça, os mari-
aut
nheiros não-anistiados passaram a trabalhar por uma anistia que fosse política
“sem a necessidade da intervenção judicial” (ALMEIDA, 2010, p. 197-198).
R
A atuação da UMNA enquanto partido militar
o
Com a finalidade de defender seus interesses e de apresentar uma pauta
aC
reivindicatória que assegurasse a aplicação e ampliação da anistia, os mari-
nheiros passaram a se constituir, em nosso entendimento, num Partido Militar,
lobby das Forças Armadas, que não queriam vê-los anistiados, os marinheiros
são to
or
od V
O Projeto de Emenda Constitucional 188/1994 recebeu o primeiro parecer
aut
favorável no dia 27 de abril de 1995. Este parecer indicava que a proposta
era subscrita por 250 deputados, não “agredia”18 cláusulas pétreas19 e que não
havia qualquer circunstância que impedisse a apreciação da matéria podendo
R
ser inserida nas iniciativas de competência do Parlamento. Logo, a Comissão
de Constituição e Justiça e Redação20 aprovou-a por ela possuir “constitucio-
o
nalidade, juridicidade e boa técnica de redação” (DIÁRIO DO CONGRESSO
NACIONAL, 1995).
aC
A PEC 188, de autoria do deputado Zaire Rezende, teve o deputado
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prova os documentos que tinha em mãos, que foram levantados nos próprios
arquivos da Força Naval21. Coutinho fornece o seguinte depoimento:
par
Então fui arguido pelo presidente e relator por mais de uma hora sobre
ver di
18 O parecer da Comissão de Constituição e Justiça e Redação usa o termo “agressão” e com vistas a evitar
a modificação do sentido do entendimento da redação deste parecer, usei a expressão “agredir”.
19 Cláusulas Pétreas são os dispositivos aprovados e inseridos na Constituição que não podem ser modificados
através de Emendas, mas somente com a promulgação de uma nova Constituição que a substitua.
20 Esta Comissão é responsável em apreciar a constitucionalidade dos Projetos de Lei e congêneres. Só depois
de passar por esta Comissão é que a matéria em questão pode ser analisada no Plenário do Congresso
Nacional.
21 O ministro da Marinha utilizou os mesmos argumentos que foram empregados desde 1979 para barrar a
aplicação da anistia aos marinheiros. Nesse sentido, as acusações de homossexualismo, pederastia e de
criminosos comuns por parte desta instituição não possuía fundamento legal, pois ente outros documentos
conseguidos pelos marinheiros atingidos estavam a “Exposição de Motivos” nº 138 de 21 de agosto de 1964
assinado pelo ministro da Marinha, além dos diversos boletins que informavam o nome é o desligamento
dos mesmos.
238
or
od V
Com o recuo do ministro da Marinha, foi aberta a possibilidade dos
marinheiros serem beneficiados pela PEC 188 ao lado dos sargentos que
aut
originariamente a pleiteavam. Deste modo, com a inclusão dos §§ 6.º e 7º no
artigo 8º no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, os marinheiros
R
conseguiriam galgar postos e reequiparar os seus vencimentos com o dos
militares da ativa. Nestes termos a legislação ficou assim:
o
aC
As mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos
do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao
em lei, o seguinte:
são to
or
e guerra22.
od V
A conquista da Lei de Anistia 10.559/2002
aut
Diante da condição de ainda não-anistiados, os marinheiros da UMNA
R
passaram a atuar politicamente no Congresso Nacional com o objetivo de
conquistar uma anistia ampla que lhes contemplasse. Nesse sentido, tal tema
o
foi retomado no Legislativo. Os legisladores trabalharam no sentido de solu-
cionar as lacunas contidas nas legislações anteriores, ao tentar modificar o
aC
artigo 8.º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias. A ideia foi
a de criar e regulamentar o “Regime do Anistiado Político”.
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Ainda assim, a autora coloca que este dispositivo teria o parecer lido no mês
são to
de novembro de 2002.
Nas explicações de Machado (2006), a MP n.º 2.151 de 2001 foi republi-
cada como MP nº 65 em 28 de agosto de 2002, passando posteriormente por
par
ver di
22 Os militares entrevistados por Ricardo Santos da Silva em março de 2011 possuíam a graduação de
suboficial. Coutinho relata em depoimento concedido ao autor em 19 mar. 2011 que Raimundo Porfírio da
Costa ex-UMNA e atual presidente da MODAC conseguiu o posto de capitão-de-mar-e-guerra na Justiça.
Almeida (2010) indica que a demanda dos marinheiros atingidos para o pleito de graduações e postos está
amparada pelos Decretos 36.450, 10 de novembro 1954, e 46.423, 14 de julho de 1959. Para tanto é preciso
observar os §§ 6º e 7º do artigo 8º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição
Federal de 1988.
240
or
contemplados ‘de verdade’” (MP DOS ANISTIADOS..., 2001). No IV Encon-
od V
tro realizado também em Brasília, no mês de maio de 2002, os não-anistiados,
aut
incluindo-se os marinheiros da UMNA, debateram junto com outras entidades
as questões das garantias envolvendo o pagamento das indenizações. O pre-
R
sidente da Associação Brasileira de Anistiados Políticos, Carlos Fernandes
alertou: “Nós esperamos que, além da aprovação das emendas, seja aprovada
o
a emenda relativa à inclusão no orçamento de verba necessária para o paga-
mento a partir do ano que vem” (ANISTIADOS..., 2002).
aC
Na data de 06 de novembro de 2002, o deputado Luiz Eduardo Gree-
nhalgh leu o Parecer da MP no Plenário, destacando que o referido dispositivo
[...] foi uma luta grande, várias vezes reeditada e a gente tomando aquele
cuidado para que na sua reedição, seu teor não fosse modificado até que
desaguamos na aprovação da Lei 10.529, que foi promulgada em 13 de
novembro de 202 no Congresso Nacional, numa memorável votação [...]
Para nós significou uma vitória memorável. Foi uma vitória da entidade
contra incredibilidade dos advogados que jamais nos apoiaram nessa luta
porque os advogados achavam que a luta agora era uma luta só dos oficiais
e nós tínhamos consciência de que nós podíamos conseguir uma anistia
política. Anistia política que fizéssemos e galgássemos a nossa anistia
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 241
política sem termos que pagar nada a ninguém. Esse foi o espírito de luta
[...] de nossa entidade no que diz respeito à concepção da Lei 10. 559. Foi
instalado a Comissão de Anistia no âmbito do Ministério da Justiça para
implementar a Lei [...] (COUTINHO, 2008).
or
Efetivamente, a Comissão da Anistia foi instalada em 29 de agosto
de 2001, cujo funcionamento ficou estabelecido em Brasília no âmbito do
od V
aut
Ministério da Justiça. Integrada por dez conselheiros, os seus membros são
juristas que exercem suas tarefas sem receber qualquer tipo de remuneração,
R
ao passo que apenas dois destes são representantes legais sendo um dos anis-
tiados e outro do Ministério da Defesa23.
Glenda Mezarobba esclarece que o primeiro presidente da Comissão
o
de Anistia foi Petrônio Calmon Filho, procurador de Justiça do Ministério
aC
Público do Distrito Federal, que ficou nove meses no cargo. Entre os motivos
elencados para a saída do cargo ocupado nesta Comissão estão as pressões
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23 Mezarobba (2003) relata que esta Comissão lida com questões complicadas, exemplificando com as
promoções de militares que além das questões meramente financeiras, também geram direitos como o de
portar armas e obrigações constitucionais.
242
or
Comissão de Anistia e esta passou a exigir a presença de um advogado para
od V
a confecção dos documentos para este objetivo, fato esse que foi comunicado
aut
aos marinheiros:
Fomos chamados pelo presidente da Comissão e ele nos falou: “olha é
R
impossível os conselheiros analisarem os requerimentos da forma que estão
vindo, estão vindo, estão sendo feitos muito assim, de forma primitiva, e os
o
conselheiros não estão tendo condição de analisar e decidir nada, há a neces-
sidade de um concurso de uma pessoa especializada, há a necessidade que os
aC
advogados façam requerimento, viabilizem o requerimento”. A partir daquele
momento, a anistia política teve que, em função da necessidade da Comissão,
Considerações
E
or
netes e em diferentes fóruns para que a agenda deles fossem atendida.
Enfim, em razão da atuação política desse grupo de marinheiros foi
od V
possível avançar e ir além dos limites impostos pela Lei de Anistia de 1979
aut
e conseguir uma anistia que lhes atendesse. Portanto, essa mobilização do
Partido Militar em torno de um dispositivo legal que lhes amparasse deixou
R
em aberto uma situação em que até o momento se encontra em aberto, ou
seja, a manutenção da condição de não-anistiados na medida em que veio a
o
reintegração de tais militares à Marinha do Brasil, mas que não veio acom-
panhado ao longo dos anos desde a abertura política pela reincorporação às
aC
fileiras militares.
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
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são to
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Academia Brasileira de Letras 157, 158, 159, 160
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Administração naval 10, 23, 24, 28, 29, 36, 38, 39, 40, 44, 171, 180, 187,
188, 198, 199, 211
R
Almirante Antão Álvares Barata 183, 185, 186, 187
o
Anistia 8, 21, 78, 85, 86, 137, 142, 148, 153, 158, 159, 163, 172, 184, 204,
206, 209, 215, 220, 221, 222, 225, 226, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 235,
aC
236, 237, 238, 239, 240, 241, 242, 243, 244, 245, 246
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Arsenal 25, 36, 40, 54, 57, 62, 66, 102, 138, 141, 181, 200
Ataque 16, 17, 18, 87, 160, 164, 233
visã
Ato das disposições constitucionais transitórias 231, 235, 236, 238
C
r
Cabos 96, 103, 138, 171, 190, 194, 198, 201, 211, 230, 238, 245
a re
são to
Câmara dos deputados 29, 61, 63, 65, 66, 154, 161, 165, 238, 244, 245, 246
Capitão de corveta 112, 119, 120
Carreira 25, 26, 53, 83, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 105, 109, 111, 113, 118,
par
121, 123, 124, 125, 126, 127, 146, 171, 172, 176, 178, 179, 189, 190, 195,
ver di
Corpo de imperiais marinheiros 29, 31, 32, 33, 35, 36, 51, 52, 54, 55, 56,
57, 58, 60
Corpo de maquinistas navais 99, 100, 101, 102, 103, 112, 121, 125
or
D
od V
Dominação 136, 147, 150, 172, 185, 187, 189, 190, 198, 202, 232
aut
E
R
Escravidão 13, 73, 74, 79, 87, 89, 90, 92, 93, 107, 143, 191
Exército 24, 25, 27, 34, 45, 46, 52, 62, 64, 67, 70, 71, 72, 78, 86, 89, 90,
o
110, 111, 131, 132, 138, 139, 155, 166, 174, 178, 183, 188, 189, 201, 215,
224, 235, 246
aC
Ex-marinheiro 83, 142, 160, 163, 164, 176, 180, 181, 191, 192, 193, 194,
Fuzinauta 171, 179, 186, 188, 190, 191, 192, 195, 198, 201, 202
a re
são to
G
Golpe civil-militar 10, 166, 171, 172, 188, 201, 212
Golpe de 1964 21, 172, 207, 208, 223, 226, 229, 232, 247
par
ver di
I
E
J
Joaquim José Rodrigues Torres 24, 25, 45, 61, 63, 68
Juiz de órfãos 41, 42, 43, 44
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 251
L
Liberdade 69, 72, 73, 74, 79, 85, 87, 88, 90, 93, 107, 135, 136, 142, 146,
147, 148, 149, 158, 164, 195, 200, 212, 217
or
M
od V
Marinha de guerra 18, 25, 27, 28, 31, 32, 37, 44, 45, 65, 67, 77, 79, 90, 98,
aut
124, 142, 150, 153, 154, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 167
Marinha do Brasil 9, 20, 95, 99, 103, 109, 113, 124, 127, 172, 175, 184, 190,
R
194, 203, 205, 238, 243
Marinhagem 27, 37, 54, 55, 59, 63, 65, 141, 185
o
Marinheiro de primeira classe 60, 188, 211
aC
Marinheiros de 1910 10, 53, 67, 72, 76, 80, 84, 88, 89, 121, 132, 135, 153,
157, 169, 173, 174, 187, 188, 189, 190, 206
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
Marinheiros e fuzileiros navais 7, 18, 21, 139, 142, 155, 171, 173, 179, 183,
visã
186, 187, 189, 191, 192, 200, 201, 202, 211, 227, 242, 246
Marujos 15, 24, 25, 27, 29, 69, 72, 77, 78, 79, 80, 82, 83, 85, 89, 91, 174,
175, 178, 180, 181, 188, 190, 195, 200, 201, 211, 212, 221, 232, 233, 235,
r
243, 246
a re
Mestiços 71, 74, 90, 98, 99, 101, 103, 108, 112, 113, 120, 123, 124, 125
são to
Ministério da marinha 10, 25, 26, 29, 30, 45, 66, 128, 130, 132, 141, 181,
196, 200, 233
Movimento dos marinheiros 135, 146, 172, 188, 189, 199, 207, 212, 226,
par
247
ver di
N
Navios de guerra 55, 65, 95, 101, 125, 126, 138, 153, 166, 174, 179, 183,
E
194
Negros 7, 9, 14, 21, 34, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 79, 90, 92, 95, 96, 97,
98, 99, 100, 101, 102, 103, 106, 111, 112, 120, 124, 125, 126, 140, 155, 156,
164, 166, 168, 184
Neguinho 210, 213, 214, 215, 216, 217, 219, 220, 222, 223, 224
O
Oficiais da marinha 17, 69, 99, 108, 109, 111, 112, 113, 121, 126, 127, 132,
153, 156, 157, 158, 159, 160, 161, 164, 165, 167
252
P
Presidente João Goulart 18, 191, 199, 202, 212
Prisão 60, 78, 200, 210, 213, 215, 226, 232
Processo de identificação 106, 172, 178, 183, 190, 202
or
od V
R
aut
Racismo 95, 96, 106, 107, 113, 123, 126, 127, 132, 140, 147
Recrutamento da infância 7, 20, 23, 29, 31
R
Recrutamento de menores 24, 30, 31, 34, 35, 36, 37, 39, 40, 41, 43, 44
Reivindicações 15, 19, 72, 79, 80, 82, 83, 84, 85, 95, 146, 154, 173, 187,
o
190, 191, 192, 198, 199, 200, 231
aC
Revolta da Chibata 14, 78, 80, 82, 85, 87, 93, 142, 143, 150, 153, 155, 164,
166, 168, 173, 174, 187, 188, 206, 246
Rio de Janeiro 49, 50, 51, 52, 53, 55, 56, 58, 59, 60, 63, 66, 67, 68, 69, 70,
a re
71, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 81, 82, 83, 84, 87, 89, 91, 92, 93, 94, 95, 109,
são to
110, 111, 112, 119, 120, 128, 130, 131, 132, 133, 137, 138, 143, 144, 149,
150, 151
Rio Grande do Sul 25, 30, 62, 79, 80, 109, 111, 138, 156, 165, 171, 193,
par
ver di
207, 215
S
Salários 16, 17, 19, 80, 84, 95, 142, 162, 193, 232
E
Salvador Maciel 25, 27, 29, 61, 62, 63, 64, 65, 68
Sargentos 96, 103, 138, 161, 162, 188, 189, 194, 200, 207, 230, 231, 232,
234, 236, 237, 238, 246
T
Tempo de serviço 9, 32, 58, 142, 184, 205, 238, 240
Tensões 9, 11, 19, 55, 72, 76, 78, 147, 148, 155, 190, 199
Tripulações 14, 15, 16, 17, 18, 19, 28, 36, 64, 110
MARINHEIROS E CIDADANIA NO BRASIL:
contribuições para uma história social militar-naval 253
U
Umna 221, 231, 234, 235, 236, 238, 239, 240, 241, 242, 243, 244
or
Vida do mar 35, 101, 102
od V
Violência 50, 97, 137, 140, 144, 145, 146, 147, 149, 166, 218
aut
R
o
aC
Editora CRV - versão para revisão do autor - Proibida a impressão
visã
são to
r par
a re
ver di
E
Ed
ver
são itor
par
a re aC
visã R
od V
o aut
or
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