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O grande número de mortos e feridos devido a acidentes de trânsito na Espanha – tanto nos fins de

semana, quanto no resto do ano – constitui um grave problema comum a outros países, mas sua
evolução possui características distintas em cada um deles. Como o fenômeno não parece obedecer
a uma única causa, seus trágicos resultados exigem uma reação combinada entre sociedade e poder
público.
O Rio Estudos apresenta dois artigos publicados no jornal El País, no dia 14 de dezembro de
2003, com a análise de recentes experiências européias nesse campo e o efeito da comunicação
como eixo principal de uma política de prevenção eficaz e duradoura.

MAIS TECNOLOGIA
Gregorio Martín*

No dia 2 de dezembro de 2003, os grupos do PP, PSOE, CiU e PNV e o


Diretor-Geral do Trânsito firmaram, no Parlamento, a Carta Européia de Segurança
Viária, cuja finalidade é reduzir à metade os acidentes de trânsito em 2010,
proporcionalmente aos números atuais. Seria um objetivo demasiadamente
ambicioso para a Espanha? É possível, mas pode ser alcançado, se houver vontade
política.
Em 2002, na União Européia, os acidentes de trânsito resultaram em mais de
40 mil mortos, 1.700 milhão de feridos e custos de 160 milhões de euros. Nas
estradas, nos últimos 50 anos, morreram mais de 2 milhões de europeus e 100
milhões de pessoas sofreram ferimentos. Na Espanha, os mortos, desde 1986, são
da ordem de uma capital como Castellón.
Os jovens entre 18 e 24 anos, correspondendo a 10% da população,
encontram-se entre os 18% de mortos em acidentes, e, se ampliarmos esse tempo
para 34 anos, temos então 26% da população e 41% desses mortos. Os usuários
vulneráveis pagam um alto preço de morte na União Européia: pedestres, 7.010
(776 na Espanha); condutores de motocicletas e ciclomotores, 6.026 (784), e
ciclistas, 1.795 (96).
Na Europa, o comportamento irresponsável se constitui na causa principal de
mortalidade: velocidade inadequada, 15 mil; uso de álcool, drogas ou cansaço, 10
mil; o não uso do cinto de segurança ou capacete, 7 mil (números não acumuláveis
pela combinação de diversos fatores).
Todos nós cometemos falhas, porém, uma coisa é o erro humano e outra a
imprudência e, diante dela, o rigor se faz necessário. O egoísmo de muitas atitudes

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exige uma reação solidária de toda a sociedade, encabeçada por seus
representantes e coordenada pelos governos competentes.
A bibliografia técnico-científica está disponível e é obrigatório realizar
experiências com diversos tipos de “tolerância zero”, diante de comportamentos que
resultam em mortos, deficientes físicos e graves prejuízos.
a) Em 1987, no Reino Unido, as forças políticas foram postas em ação para
mobilizar a sociedade (nova legislação, investigação sistemática, avaliações
rigorosas, melhores instalações viárias, restrições seletivas, aplicação de novas
tecnologias, decidido apoio aos responsáveis por vigiar e punir, realizar campanhas
informativas, etc.). O Gabinete Ministerial se propôs a reduzir os acidentes em um
terço no ano 2000, tomando como base a média do período 1981-85 (“O Ano 2000:
Metas de Sinistros”), e foi bem sucedido. A redução de feridos foi alcançada em
1992, a redução de mortos começou em 1994 e, em 1997, apesar de um aumento
no trânsito em 52%, os mortos haviam passado de 5.598 para 3.599 e os feridos
graves, de 74.533 para 42.967. Novas leis tiveram de ser aprovadas: um máximo de
10 anos por causar mortes ao dirigir perigosamente ou sob os efeitos de álcool ou
drogas (pena de dois anos se não houver morte); dirigir veículos embriagado resulta
na apreensão da carteira de habilitação por prazo mínimo de um ano, além de uma
multa; a agressividade nas estradas continua sendo um delito e resulta em processo,
etc.
b) Na França, um recém-eleito Jacques Chirac, em 14 de julho de 2001,
obrigou-se a cumprir três objetivos básicos: a luta contra o câncer, a integração dos
deficientes físicos e a segurança viária (presumindo que a educação e as sanções
eram complementares). Os controles do alcoolismo aumentaram em 29%; as multas
aplicadas por excesso de velocidade, em 28%; e as sanções por não usar o cinto de
segurança ou capacete, em 41%. Em um ano, os resultados foram a redução de
mortos em 29% (mais de 1.600 vidas salvas) e em 34% de feridos. As campanhas
de prevenção fizeram seu efeito, os meios de comunicação insistiram e a
consciência coletiva deu um salto adiante...Além disso, em caso de homicídio
involuntário pode haver uma condenação de até cinco anos de prisão; havendo
circunstâncias agravantes (fuga, velocidade excessiva, álcool, reincidência, etc.)
pode chegar a até dez anos. Se não há morte, mas lesões graves, a sanção alcança

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três anos. Conduzir sob os efeitos de drogas ou álcool resulta em dois anos de
prisão e pagamento de 30 mil euros.
c) Na Itália, a carteira de habilitação por pontos já rendeu seus frutos desde
sua polêmica introdução há quatro meses: os acidentes foram reduzidos em 33%, e
os mortos, em 32% (400 vidas salvas). Nas palavras do ministro dos Transportes:
“Quanto menor a tolerância, menos mortos”. Desde julho, foram enviadas 119 mil
cartas à motoristas, comunicando-lhes perdas de pontos na carteira, a cujo “saldo”
se pode ter acesso ligando para um número especial. Esgotados os pontos, perde-
se então o direito de conduzir veículos.
Com a Carta Européia, o uso de novas tecnologias adquire consistência, com
relação ao controle e à sanção. Nas beiras das estradas francesas já está em
funcionamento uma rede de radares automáticos fixos, cuja localização é
perfeitamente conhecida (para a infelicidade dos jornais, que gostam de se
vangloriar de dar a notícia exclusiva em cada operação de trânsito). O sistema
permite produzir automaticamente, em tempo real, a correspondente denúncia,
processando a imagem de vídeo, que resulta como prova da infração. Estas já
superaram os 50 mil e felizmente estão diminuindo, pois a velocidade média caiu
diante da implacável pressão policial. Incluindo-se erros muito comentados, como
um trator detectado à 185/km/hora na auto-estrada, a tecnologia funciona e os
franceses estão aceitando bem esses dispositivos.
Não será preciso esconder as dúvidas que provocam a legalidade de novos
processos punitivos e será necessário realizar importantes reformas no Código. Com
a tecnologia, o que se quer é simultaneamente prevenir e sancionar. Esses radares
automáticos são uma peça a mais numa estratégia aplicada: maior severidade por
parte do sistema judiciário, campanhas de sensibilização sobre os efeitos do álcool e
aumento do respeito à presença policial, seja ela percebida pessoalmente ou por
meio da telemática.
É preciso acabar com esse tipo de observação amoral: “vamos recorrer a
qualquer multa de trânsito”, aproveitando as brechas de uma legislação, que
infelizmente não está adaptada nem à sociedade da informação, nem à dimensão do
problema.
(*) Gregorio Martín é catedrático em Ciências da Computação, Universidade de Valencia.

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O PROBLEMA DA COMUNICAÇÃO
Miguel María Muñoz Medina*

Diante da comoção nos meios de comunicação social, causada pelos trágicos


resultados do último “feriadão”, corremos o risco de nos centralizarmos tanto nas
vítimas (por favor, não falemos em dados estatísticos) do “feriadão”, que as árvores
não nos deixem ver o bosque. Porque, sem minimizá-las, importante na verdade é
que, dia após dia, isso ocorre a cada ano, e principalmente nos últimos nove anos.
Por que esses nove anos? Porque, em 1989, se verificaram na Espanha 9 mil
mortes (números aproximados e computados a cada 30 dias) e, em 1994, 5.500.
Desde 1995, a situação está estabilizada, sem aumentos ou diminuições
significativas. Mas o que ocorreu naqueles cinco anos para, rompendo uma antiga
tendência, as vítimas fatais terem caído em quase 40%? Sem dúvida, a crise
econômica não foi decisiva, porque ela ocorreu no final de 1992, quando a redução
já estava consolidada; de fato, a frota de veículos continuou sendo ampliada e
também o consumo de combustíveis. Tampouco foi de grande influência o fator
veículo, já que a renovação só alcançou os 12% da frota automobilística, e não mais
de um terço foi beneficiado por apreciáveis melhorias da segurança, inclusive a
rodovia teve uma influência puramente marginal; o que importa é simplesmente o
fato de que a diminuição foi equivalente nas cidades em que não haviam sido
realizados investimentos análogos nas infra-estruturas.
Ao chegarmos a esse ponto, é preciso elucidar a que podemos atribuir àquela
evolução, e, o mais importante, como aproveitar aquela experiência para reduzir nos
próximo anos pelo menos outros 40%, o que coincidiria com as metas estabelecidas
pela União Européia.
Sei não ser demonstrável o que vou expor a seguir, mas o contrário também
não é demonstrável. Além disso, espero ter fornecido dados para que as demais
hipóteses fiquem pouco defensáveis.
Acho que o que mudou foi algo intimamente relacionado com a percepção e a
valorização social dos acidentes de circulação, e isso tem muito a ver (talvez
inteiramente) com a comunicação. Abandonemos então uma estéril polêmica sobre
a culpa (sic) dos acidentes seria das estradas ou dos motoristas, polêmica que,

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mesmo colocadas em termos totalmente errôneos, orientou a atenção da cidadania
para a tragédia dos acidentes. Foi também a época da Lei de Segurança Viária e do
Regulamento de Circulação, que substituíram o obsoleto Código de 1934. Porém,
sobretudo, foi o período de cinco anos, em que a opinião pública, seguindo a
liderança natural da imprensa, pressionou todos as Administrações, com pedidos de
solução, mesmo não sendo fácil determinar porque ocorreu aquela pressão.
Diante de uma realidade social tão complexa como a comunicação, não é
possível afirmar, de maneira inequívoca, se o que mais influenciou foi a própria
dimensão alcançada pelos acidentes, se foi a ação dos meios de comunicação
sobre uma nova lei qualificada de modo simplista de repressiva, se foi a mudança no
tom das campanhas de divulgação da prevenção, ou se foi a presença constante em
todos os meios, alimentando todas as polêmicas e participando de todos os debates
imagináveis. Com certeza, nenhuma dessas explicações anteriores é suficiente, por
si só, para justificar uma mudança semelhante na mentalidade coletiva, mas a soma
de todas elas pode nos dar uma pista da quantidade de teclas que temos de apertar
ao mesmo tempo para obter um acorde harmônico, fazendo com que a sociedade
vibre unanimemente, a fim de acabar com uma das piores pragas sofridas pelas
sociedades desenvolvidas.
Ao rememorar aquele qüinqüênio, acredito que nos encontramos em um
momento potencial de esperança. De um lado, parece existir uma mobilização da
opinião pública diante dos acidentes, mais forte e unânime do que habitualmente;
por outro lado, nos encontramos num período de profundas mudanças legislativas
na questão da segurança viária. É certo que essas mudanças nos fazem perder
mais uma vez a onda de determinados avanços (sistema de pontos, unificação
regimes de penalização por conduzir veículos sob efeito de álcool), cuja utilidade
pode ser constatada em outros países. Contudo, agora, o importante é não perder o
momento da comunicação dessas mudanças.
Uma pessoa muito importante na França na área da segurança viária dizia, há
pouco tempo, que os avanços obtidos naquele país, com o endurecimento das
sanções, era mais devido à maciça difusão das normas e de suas severas
conseqüências das punições do que à sua própria aplicação. Isso envolve
claramente com as teses sustentadas por Vicente Verdú, em seu Estilo do Mundo,

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porque neste momento histórico o importante não é tanto o que é, mas sim o que
parece, e afirmo que é possível gerar a dissuasão incorporada a toda norma
penalizadora, independentemente de como seja aplicada. Com relação à isso temos
precedentes: ao ser aprovada a Lei de Segurança Viária em 1990, começou-se a
perceber seu efeito de exemplificação (e, por conseqüência, seu efeito de
prevenção), inclusive antes de sua publicação no Diário Oficial do Estado. Disso se
incumbiu sua enorme divulgação – às vezes de maneira hipócrita – nos meios de
comunicação, e não há razão alguma para que hoje não se possa obter divulgação e
dissuasão análogas. É evidente que para isso falta uma vontade inequívoca de
desenvolver uma pedagogia social e, para tanto, é imprescindível acreditar na
comunicação – enquanto único meio eficiente para entrar em contato com a
sociedade – como o pilar fundamental de uma política eficaz e duradoura da
segurança viária.

(*) Miguel María Muñoz Medina é Presidente do Instituto Mapfre de Segurança Viária.

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