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fevereiro/2024, n. 07, a.

14
• Periódico literário independente
feito em Curitiba-PR desde set/2010
• ISSN 2525-2704
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com/anuncie ou fale conosco no bulas, resenhas e ameaças. Saiba mais em As ilustrações desta edição são de Vini Rocha. Você pode
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DOS CUSTOS DA VIDA (–) CUSTOS FIXOS Fevereiro/2024


Gráfica: R$ 2.280
(+) RECEITA BRUTA Escritório: R$ 300 Editor: Daniel Zanella
Embalador: R$ 50 Editor-assistente: Mateus Ribeirete
Ombudsman: Zeh Gustavo
ASSINANTES: Embalagem: R$ 1.000
Revisão: Às Vezes
R$ 10 Tiago Faria; R$ 20 Substack; R$ 35 Lorenza Ribeirete; Ricardo Rodrigues; Editor-executivo: R$ 1.300 Projeto gráfico: André
R$ 50 Iáscara Guimarães; R$ 70 Roanne Aragão; Leonardo Migdaleski; Jane de Souza; Editor-assistente: R$ 400 Infografia: Bolívar Escobar
Rafael Souza Rodrigues; Osvaldo Jeronymo Neto; Dina Dominick; Alessandra de Mídias sociais: R$ 800 Advogado: Rafael Estorilio
Oliveira; Flavio Joppert; Larissa Lima;Vinicius Fernandes Cardoso; Nathan Santos; Rafael Diagramação: R$ 200 Impressão: Gráfica Exceuni
de Souza; Camila Passatuto; Bruno Santana; Rafael de Arruda Sobral; Juliane Knopik
Colaboradores de janeiro: R$ 540 Tiragem: 4.000
Digiovani; Priscila Nogueira Branco; Rodrigo Gonçalves; Emanuella Ribeiro; Massanori
Takaki; Arribaçã Editora; Cândido Magnus; Ana Sena; Damaris Pedro; Marcella Lopes
Guimarães; Rafael Reinehr; Elton dos Santos; Matheus Chequim; Getúlio Xavier; Pedro (–) DESPESAS VARIÁVEIS
Edição finalizada em 29 de janeiro de 2024.
Araujo; Marcela Parrado; Jaq; Daniel Batista de Siqueira; Maria Diel; Glaucimar Barcelos; Transporte: R$ 200
Roberto Dutra Jr.; Samuel Martins;Vítor de Lerbo; Maria Antônia Silva Salgado; Paulo Correios: R$ 2.630
Marcelo Filho; Luciana Lain; Naná Gevezier; Corina Lovozan; Letícia Voigt Severiano; CONSELHO EDITORIAL
Carlos Santana;Vicente Laurentino Ferreira Netto; Anderson Mezzarano Lucarezi; José (–) DESPESAS ADMINISTRATIVAS
Augusto Ferreira Swaiger; Marco Antonio Milani; Érica Dias Gomes; Grazi Radio; Nara Domínio mensal: R$ 35 Alexandre Guarnieri
Vidal; André Miranda;Vinícius Marinheiro; Fredy Augusto Weber Reynoso; Jacy Ribeiro
Rafael Estorilio
de Castro; Danilo Giroldo; Esmeralda Faiad; Pedro Penido; Helena Luiz; Edmilson (+) Entradas totais: R$ 9.755
Borret; Fábio Cairolli; Sandra Modesto; Bolívar Escobar; Adriana Carneiro;Valentina Celso Martini
(–) Saídas totais: R$ 10.085 Rômulo Cardoso
Gava Chakr; Rodrigo Kmiecik Passos; Otto Winck; Renan Sá; Instituto Carvalho Junior;
Inocêncio Norte Velho; Lais Santos Belini; R$ 80 Rômulo Cardoso; R$ 90 Francisco (=) Resultado operacional: - R$ 330 Felipe Harmata
Leandro Costa; R$ 100 Rafael Zaina Gonsalves; Rosana da Silva Cuba; R$ 105 Catarina Amanda Vital
Lara Rezende; Afonso Felix; Carlos Henrique dos Santos Pinto; Bruna Cristina Martins Whisner Fraga
Freitas; Larissa Martins Leal; R$ 140; Pedro Eilert; Fernando Gimenez; Humanité Eduardo Pereira
Clínica de Neuropsicologia; Thélio Queiroz Farias; Gabriel Ferreira; Sonia Prota; Marina Fernanda Dante
Domingues; Rafael Roefero; Estela Basso; Cristine Daneze Wollenberg; Mayron Discens;
Sandra Santos; Edmar Guirra; Tony Rodrigues; Marson Guedes; Sandro Dalpícolo; Luiz
Gusmão; R$ 150 Zaclis Veiga; R$ 170 Wagner Teixeira; R$ 420 Zeh Gustavo.

TOTAL: R$ 9.205

ANUNCIANTES:
R$ 70 O Alienígena; R$ 200 Editora Penalux; R$ 130 Gato Preto Livros; R$ 70 Flesch
Notes; R$ 100 Tony Rodrigues.

TOTAL: R$ 550

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CARTAS e matando os necessários leões a cada
😍
Dina Dominick Adoro! Ótima qua- criado com poucas certezas familiares

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dia. Sobre Tai-Pan, realmente a língua lidade. e uma delas, junto com o “tem que
anglo-saxã tem nos presenteado com aprender datilografia, meu filho”, era
RELEVO DA DEPRESSÃO grandes aventureiros-escritores. E o Maria Carol Dias Queria assinar de o “tem que ler jornal para se manter
Helena Luiz Piadinha topográfica so- engendrador de TaiPan não foge da novo =) Saudades do meu jornalzinho. informado”. Posso ir além e dizer que
bre poetas tristes: Escarpa, Cuesta, Cha- tradição de Lord Byron e de Jack Lon- minha mãe se alfabetizou lendo jornal.
pada, Serra: / Tudo é relevo. / Depressão don! Prossigam esculpindo em 2D o Sandra Modesto Assinei por um E me passou esse legado, de alguma
também. / Planície, tabuleiro, planalto, RelevO de cada dia! tempo, mas minha vida é cheia de gas- forma, embora eu tenha sido o primei-
montanha: / Tudo é relevo. / Depressão tos com minha saúde. Tive que prio- ro a tirar um grau na faculdade formal.
também. Célio Borba Sugiro que exemplares rizar. Sim, senhores: o branquelo aqui vem
do Jornal estejam disponíveis também de família iletrada e não musicada. Em
DEVOLUTIVAS 2025 nas tubotecas, instaladas dentro de es- Ricardo Rodrigues Fui assinante casa não havia nem livros nem ins-
Vinícius Silva Olá, Jornal, boa tar- tações-tubo de Curitiba. por um tempo. Mas a vida apertou o trumentos; mas havia jornais. E “cai-
de! Li a circular “Vendo pneu, catraca, cinto das minhas calças puídas… xinha” (rádio) tocando. Ninguém do
fumo de arapiraca, pururuca, jararaca, Da redação: Célio, todo mês, desti- RelevO sabe dessa minha história. E
fechadura, faichecler” enquanto vol- namos aproximadamente 400 exem- Marcio Reneé Tenho recebido o não a contei em minha primeira colu-
tava do busão do trabalho, e lembrei plares para as estações-tubo. Infeliz- Jornal e estou adorando. na, em que persigo, bem caxias, cum-
de um e-mail descartando o material mente (ou não), os jornais acabam prir a função e tanger o humor sábio
que havia enviado quase um ano atrás. rapidamente. Gabriel Alencar Até deu vontade de do jornal, com o qual muito me iden-
Pois bem, fez bem. Fez bem porque enviar novos materiais, mas agora o tifico. Aliás, leia o Jornal: a assinatura
acho que não encaixava mesmo no editor está verificando a caixa de en- anual custa 70 reais, o que é muito,
jornal a vertente “homem branco e PUTO DA VIDA trada do e-mail com muita frequência mas muito menos do que você paga
calvo e hetero e triste de barriga de Marcelo Almeida Acabei de termi- e as negativas estão vindo muito rápi- em qualquer streaming, app ou acade-
chope escrevendo e bebendo cerveja e nar o genial e muito bem escrito ar- do. Antes eu me iludia ao menos. mia que você contrata. Você recebe 12
fumando cigarro e batendo punheta”. tigo do Bolívar Escobar na edição de edições de um trabalho de uma baita
Porém, teimoso que sou (uma lástima dezembro/23 do Jornal e já vim para Alice Casimiro Lopes Grande ini- qualidade editorial, feito em geral no
particular), reencaminho novos mate- cá puto da vida. Alguns memes re- ciativa. Gosto muito do RelevO. vermelho da grana e no azul da fibra
riais como uma nova tentativa (agora, produzidos são ilegíveis! A sacada de com que se deve levar uma missão de
espero, mais aguçada) de publicação. acompanhar o pensamento de alguns Eliss de Castro Assino há... quantos arte. Em “Cuidado: há um sambista na
Se um ou mais forem aprovados, be- filósofos em relação a atual socializa- anos, mesmo? Acho que sete. E vou porta lateral”, parto da Gotham City
berei uma cerveja para comemorar. ção do indivíduo através da internet enviar em breve meus mal traçados do Macalé para dizer desse meu lugar
Se nenhum for, beberei mesmo assim. ficou deveras prejudicada. Aliás, a des- versos. dinizista nas letras e canções. Ser om-
OBS.: Agradeço a proposta do envio pedida da ombudsman Amanda Vital budsman do RelevO é mais um desses
do exemplar, mas já sou assinante e poderia ter virado uma nota de roda- Renata Dalmora Eu sou uma escri- movimentos: “Meu amor é bifurcado
leitor. Está em nome da minha espo-
sa (união instável) e usei o nome dela
para prevenir a descoberta de meu
pé. Assim, todo aquele espaço servi-
ria para vocês ampliarem os memes.
E não me venham dizer que a culpa
mas vou tentar hehe
diferente

tora triste escrevendo sobre escrever,
Vou achar algo
como o título do último Jards: poesia
& música — se bem amalgamadinhas,
hum…”. A arte braba da capa de ja-
nome verdadeiro e a ligação com meu é do revisor! Vida longa ao RelevO! neiro e outras ilustrações do mês são
passado criminal intercalado de inter- José Henrique Calazans Desculpem de autoria de Maria Barbieri. Sigamos
nações psiquiátricas involuntárias (ai, DIÁLOGOS pela brincadeira, mas me deu vontade na encruza das artes com a vida levada
que sonho) quando morava em Sampa. Jornal RelevO Que acha da ideia de de fazer alguns versinhos brincando com gana e algum engenho. Axé!
Por considerar o conteúdo do jornal assinar o nosso periódico? com a ideia de um escritor triste fu-
muito próximo da minha personalida- mando em um bar escrevendo sobre
de e de minha inclinação sobre a vida Talido Mida Tenho uma ideia me- o valor de escrever poesia enquanto Jane Souza Sigamos! Com o Jornal
e a humanidade (o cheiro de um pum lhor: o que acha de me contratar para seu amor não correspondido acaba de na caixa de correspondência fica bem
na praia depois de dois engradados de escrever e revisar os textos do Jornal? sair pela porta... (rs). Vocês me autori- melhor. Sorte forte aí!
Skol), fiz questão de assiná-los (na mo- Eu voto na minha ideia. zariam a escrever, mesmo que eu não
dalidade mais barata, mas tá valendo). tenha coragem de enviar? (rs) René Licht E não é que ainda há vida
Até daqui um ano! Fernando Osher Boa tarde, sauda- inteligente…
ções. Bom, infelizmente preciso negar Cora Pandora Gosto muito do tra-
Iáscara Guimarães Assino porque a proposta, pois já estou gastando mui- balho de vcs. assim q puder, assinarei William Sertório Uma iniciativa
incentiva o leitor a publicar. Que é to dinheiro nas mensalidades com o louvável a bem da literatura.
capaz de sonhar e realizar. rabino. Bom trabalho ao editor e para NOVO OMBUDSMAN
toda a equipe. Zeh Gustavo A convite da Amanda
SIM SIM Vital, a quem tenho a honra de suce- Juliana Dacoregio Já tive material
Grilo Borges Olá! Se puderem dar Julia Rodrigues Olá, Jornal, obri- der, e após aprovação pelo Conselho publicado por vocês e guardo com
uma lida nesse conto em anexo, façam gada, por ora não tenho interesse em Editorial do Jornal, assumi em janeiro carinho. Vamos à próxima tentati-
o favor? Se for ruim, podem descer a ser assinante. Parabéns pelo produto, é — vejam só! — um mandato de om- va: será um texto sobre uma escritora
lenha, quero críticas e sugestões, po- bastante singular e o projeto gráfico é budsman no RelevO, que é um im- triste fumando e escrevendo um poe-
dem até xingar dizendo que é ruim muito bonito. Votos de sucesso. presso mensal de literatura, sinônimo ma sobre a importância de se escrever
pra caralho, não me importo, o bom é de humor e resistência cultural sem um poema quando seu amor acabou
escrever mesmo! Valeu e deem um re- CHAMADO DE PUBLICAÇÃO medida, que adentra seu ano 14, com de sair porta afora porque ele não su-
torno, senão eu xingo e não vou mais Curta Poesia Muito bom! Adorei o tiragem mensal de 4 mil exemplares. porta mais estar com uma mulher que
ler esse jornaleco! paporreto com pitadas inteligentes de Para quem não lembra ou não viveu vive escrevendo poemas sobre escrever
ironia. essa época, o ombudsman é uma es- poemas, fumando sozinha no bar.
TAI-PAN pécie de amado maldito, nas redações,
Feliciano Tavares Monteiro Edi- Ray Dias Não conhecia, mas cheguei a quem cabe a tarefa inglória de fazer Maria Clara Aquino Que bonito o
tores e demais apóstolos da livre e aqui por anúncio no Instagram e agora um apanhado de erros e acertos do pe- processo de produção!
solta imprensa possível, o Jornal deu- estou muito curiosa para conhecer vo- riódico, ser uma voz crítica e de diá-
-me muitas alegrias em 2023 e espe- cês! Vou visitar o site e, lógico, enviar logo como os leitores, em meio à roti- Fernanda Jagger O único jornal
ro que continuem vivos, motivados texto, porque somos ousadas. na corrida da disciplina noticiosa. Fui impresso que eu leio!
4 EDITORIAL

Dos búlgaros ao Brasil Poeira

APOIADORES
Abrimos oficialmente a temporada de rimar amor com dor, de perguntas como
“com ou sem caracteres?” e das leituras de novos materiais para as próximas edi-
ções do nosso impresso, quase 14 anos circum-navegando de forma ininterrupta.
Neste período (que engloba 176 edições), publicamos mais de 2 mil autores e au-
toras, 90% destes pela primeira vez em um veículo impresso. Alguns que por aqui
passaram, inclusive, ultrapassaram a barreira da nossa inexpressividade e hoje são
colunistas de jornalões e agitadores sazonais do Twitter-X, o que, muitas vezes,
significa a mesma coisa (ao menos com remuneração bem melhor que o RelevO,
que não volta cashback).
Não fazíamos um chamado público desde março de 2020, primeiros dias da
pandemia. Recebemos, à época, aproximadamente 3 mil colaborações, o que re-
sultou em um caos logístico e editorial. O que mudou de lá pra cá? Além de or-
ganizarmos melhor nosso fluxo de avaliações —acredite: estamos em dia com as
leituras de janeiro de 2024 para trás —, também estamos muito mais esclarecidos
com o que buscamos em nossas páginas. Basicamente, três fatores se desdobram
em outras camadas:
1. Textos bem escritos, ou seja, que respeitam as normas básicas da nossa língua
ou as subvertem conscientemente, criando efeitos estéticos ou sinestésicos in-
teressantes [geram beleza].
2. Textos criativos, inesperados, imprevisíveis, que fogem das soluções mais co-
muns do nosso tempo. Textos que explicam menos e não duvidam da capaci-
dade de compreensão do leitor.
3. Textos simplesmente divertidos e criativos.
Naturalmente, somos surpreendidos com textos que não se encaixam nesses
eixos. Conforme a nossa linha editorial, “não temos nenhuma restrição quanto ao
tema, embora, a bem da verdade, estejamos um pouco cansados de literatura com
a linha ‘escritor triste fumando em um bar’, ‘escritor triste escrevendo sobre escre-
ver’, ‘poema sobre o valor da poesia’ e ‘meu amor não correspondido acaba de sair
pela porta’. Isso não significa que materiais dessa natureza serão automaticamente
piores e/ou recusados”.
Junto do chamado para publicação, também fizemos a devolutiva de mais de
700 textos recusados. Trata-se de um processo desgastante em níveis diversos: res-
ponder negativas (quem gosta de trazer más notícias?); tomar decisões injustas (e se
desmotivarmos um talento genuíno?); e, naturalmente, ler – talvez o melhor verbo
seja “enfrentar” – centenas de textos realmente indefensáveis. Também sabemos
que um autor não selecionado tende a guardar algum rancor do veículo. Não
acontece com todos, mas acontece. Resumindo: perdemos potenciais assinantes
(capital financeiro), perdemos seguidores e entusiastas (capital simbólico).
Sempre reforçamos ao autor que fique à vontade para submeter outros materiais
quando quiser. Esclarecer isso não impede que recebamos algumas tréplicas na
linha “Tudo bem, o texto x é um sucesso de público, talvez o problema não seja
comigo…” ou “Sou jornalista há mais de 20 anos, tendo ganhado alguns prêmios
de literatura com crônicas, contos e poesias. Escrevo diariamente crônicas espor-
tivas para um portal parceiro da rede x, gostaria de saber mais detalhes do por que
minhas obras não seriam publicadas, já que contém potencial literário”. É do jogo,
é do jogo.
Escolhas editoriais, mesmo que guiadas por um farol bem estabelecido, nunca
deixarão de ser subjetivas, ratificando a nossa posição de meros leitores de uma
certa e vasta produção que chega até nós, de traduções de escritoras eslavas a textos
que falam das ”Estradas de chão, violas, bandeiras / Terra de Tom, Tonico e Tião”.
Uma boa leitura a todos.
OMBUDSMAN 5

Zeh Gustavo

CRISE: o que faremos depois da escrotidão?

A culpa não foi, tanto, minha: as cartas de janeiro é que deram a deixa. Valeu,
Catarina Lara Resende (será ela parente do Otto, amigo do Nelsão, a quem este
atribui a frase “O mineiro só é solidário no câncer”?) e suas Doses de escrotidão!
Teve ainda o relato do apogeu e queda do Clube de Literatura Café no Cocô,
por Cândido Magnus, um nome acima de qualquer suspeita. Houve as saliências
de Natan Schäfer, citando José Paulo Paes: é sempre por essas que escrotos como
nós geramos algo como “[...] a carne possuiu a carne” ou “nossa cabana tem furos
no telhado”, em que se acusa a Lua de ser uma tremenda voyeuse. Então pediram,
ah se pediram!
*
O Conselho Editorial deixou passar mais esta: a terapia não está, nunca estará
em dia — falta-me, além de fé na viabilidade de uma adimplência psicológica (!), o
quinhentão mensal para minha autoelevação espiritual diante do mundo da classe
média analisada. Mas, ao contrário da Matilde Campilho (aquieta, coração!), eu
choro fácil. Isso equilibra um pouco as coisas?
*
Já me apresentei, seção passada, mas faltou dizer que eu sou um cara meio
escroto (e precisava?), daqueles apaixonados pelos boleros lúdicos e torpes de
Aldir Blanc, pela cafajestice lírica dos filmes do Hugo Carvana, pela rouquidão
gostosa da Zezé Motta e pelos palavrões da Dercy Gonçalves. Arte-xarope eu
tento sequer nem comentar, quanto mais doar-lhe um roçar qualquer de meus
sete sentidos.
À questão: não bastasse o sequestro de ao menos certos simulacros de escrotidão
pela direita mais imbecil — a fascistada que devia estar em cana! —, noto haver
ainda uma outra crise, fruto de um surto de (pseudo)moralidade nos discursos, so-
bretudo os virtuais. E onde falta escrotidão também há de faltar amor & arte: não
há literatura sem flores de escatologia e cretinice, ou seja, escrotidão tirada a método
e a quente; tampouco amor sem uma sacanagem de leve, essencial à construção de
afetos, digamos, mais carnosos. A assepsia da vida, tudo controladinho como num
aeroporto, é o maior dos precipícios.
*
— Fiu! Já sei! Fazendo caras de intelectual fingindo que tem vida interior intensa, né,
ô babaca?!
—Poupa meu saco, Passarinho, poupa meu saco! (...)
—Já sei! Fazendo caras de intelectual da geração perdida, fingindo que é agressivo e
vingador, né, ô Hemingway de merda?
Carvana e Antonio Pedro riem de soslaio em certo momento dessa passagem
antológica de Bar Esperança: o último que fecha, com Denise Bandeira nuíssima,
Marília Pêra impecável de descolada, Pereio de Pereio e uma penca de gente-
-personagem em rota fácil de ser cancelada no mundo pós-escrotidão. Como a
boa sem-vergonhice, acha-se grátis o clássico no YouTube.
*
Bolívar vai à academia. Olho assustado, adio o quanto der a missão, mormente
após trocarem o velho malhar por treinar, o que nos remete à antiga Melô do
Romário: “Treinar pra quê, se eu já sei o que fazer?!”
*
Erlândia taca o porrete em almas amesquinhadas pela busca do encontro flácido:
somos, cada qual, um microacidente “[...] que é milagre / e desastre / na mesma
medida”.
*
Escrutinadores da Akadimia pululam na redessoci e amam um Jorge Aragão
feito com caipirinha de 51, com um toque de análises sociológicas do novo BBB.
Às vezes, misturam Belo a discurso massa-empoderadx e Bacardi Maçã. Denúncia:
é no dia seguinte disso que boa parte dos artigos e papers são produzidos.
*
Lembremos do que nos dizem os verdadeiros pulhas: crise é oportunidade!
*
Baby, pode soar a cantada barata, mas é importante para o futuro da nossa
relação: você já ouviu falar de caralhinhos voadores?
André Miranda

Urraca

O alvoroço da alvorada conca- como dilúvio garrido, que Urraca nas-


tenava com o zumbido que eram os ceu. De entre as pernas daquela mãe,
pensamentos de Urraca, que, naquele gigante até à hora da morte. Fruto de
momento, após horas agastando-se na um pai desaparecido ainda antes da
cama, desgastada de insónia, olhava a concepção, escapando até de ser re-
praia. Tão cedo repleta. Seria um dia miniscência. Foi educada em casa por
de muito calor. Maria Emília. Uma educação de abis-
Desde pequena moça, desde os mos. Antes das letras ou dos números,
luzidios anos da infância, que Urraca Maria Emília ensinou a Urraca o in-
se questionava por que, sendo portu- tragável da existência. Um ardil urdi-
guesa, assim se chamava. A mãe, Ma- do por um Deus que há muito já nem
ria Emília, recusava-se satisfazer-lhe era silhueta. Sobrava só um resquício
a curiosidade, ralando-se nunca com de faz de conta. E esses gaiteiros que
o espingardeio paulatinamente inces- se esfusiavam com a vida eram uns
sante da filha. Vacilou uma só vez. pobretanas que nunca haviam parado
Quando o coração lhe desaprendia de minuto que fosse para contemplar o es-
bater, Maria Emília, estirada no leito, quálido de existir. E se aqui estamos é
arfava um arfar libidinoso: os pulmões porque o instinto pode mais, concluía
dançavam o tango com a morte de Maria Emília.
gânfias obscenas e perpétuas. Urraca, A morte da mãe não foi liberta-
percebendo o inaudito do momento, dora, nem fez eclodir em Urraca a li-
pensou: é hora. E perguntou: por que bertinagem. Continuou refeiçoando
me chamo eu Urraca? Ao que a mãe lapidarmente: um pedaço de pão, um
sorveu um último trago de oxigénio, toco de carne, uma batata. Comer era
um último torvelinho de ar e, numa um embuste que havia que dilatar o
voz amarfanhada, uma voz que já ul- menos possível. Assim como duchar o
trapassara o funesto umbral, respon- corpo. Urraca entrava no chuveiro às
deu: Afonsos existem os bastantes. arrecuas, a água gélida lacerando-lhe
Foi num dia de grande festim, em as vértebras como pedras lançadas por
que a aldeia celebrava num turbilhão fedelhos. E nas poucas vezes que saía
de casa para comprar o frugal necessá- pés na areia. Tentou chamar a atenção
rio, abria a porta com muito cuidado, da mãe para aquela mulher tão velha
como se coçasse o cu no meio de uma num vai que não vai que cai, prestes
plateia. Apenas abria uma frincha, por a estardalhar-se. Mas a mãe ignorou-
onde esguia pudesse alçar o corpo. -o, preferindo arrazoar com a cunhada
Evitava assim que algum raio lumi- sobre o alucinante preço do raminho
noso de sol lhe entrasse em casa, alas- de salsa. Não foram as únicas a não re-
trando-se e esboroando a nauseabunda parar. Pois os quantos eram na praia
sombra. A passagem dos anos confun- dedicavam-se, como é hábito, e nada
dia-se numa amálgama de silêncios. condenável, à exígua circunferência
Nas raras saídas que tinha, veri- em que cada um de nós é. Exceto o
ficava-se que Urraca ostentava uma rapaz. Especado na mulher.
beleza equiparável ao vozeirão de um Por instantes, Urraca, ao tocar a
cantor de ópera. E à mínima mirada praia, depois de retirar os botins, que-
até o mais empedernido homem em- dou-se quieta, sentindo a areia chis-
bevecia-se por ela. E os infelizes que se pando-lhe quente nos pés. Os primei-
embeveciam, tombavam como chuva ros passos foram atabalhoados. Mas não
enlouquecida ao compreender o in- vacilou. Afinal não era uma cagarola
frutífero das investidas apaixonadas. qualquer. Depressa ganhou-lhe o jeito
Nem a mais desabrida retórica fazia e galgou até ao mar. Aí chegada mor-
Urraca abrir a janela ou correr uma discou com as pontas dos pés a água. O
cortina. Não que ela fosse incapaz de mar apresentava-se de semblante viço-
sentir ou tivesse o coração envolto em so e calmo. E quando já tinha a água
fuligem. Ou tivesse um torniquete na pelas canelas, Urraca sentiu uma mão
aorta que lhe impedisse o fluir de açu- unindo-se à sua. Uma mão pequenina,
carados sentimentos. Simplesmente, os lingrinhas. O sol estava já empoleirado
homens eram insípidos. nos píncaros do céu. Mas o calor todo
Apenas um rapaz lingrinhas repa- estava naqueles dedos entrelaçados. Foi
rou que Urraca se zonzeava ao pôr os um dia de muito calor.
8
9

Juliana de Azevedo

Coisa na comida

Afundou as mãos na mistura de pau para mexer a carne moída. não encontraria mais nada. Sandra pediu espremiam-se centrados no rosto da
manteiga e biscoito triturado, apertan- “O que é isso?”, Sandra apertou as para ela abrir a massa de lasanha e pegar moça, tão angulados quanto seus lábios
do a umidade na pele, contra o fundo sobrancelhas. Com a ponta da colher a maior forma da casa. “Tomara que tra- pintados com batom cintilante.
da tigela. Emergiu as pontas dos dedos e de pau, pegou da carne moída. “Olha gam mais sobremesa”, Madeleine pen- “Ainda não”, Madeleine respon-
passou os polegares nas unhas. Esquecera aqui, deixou cair casca de cebola.” sou quando pegou a forma da largura de deu. Parecia ter desaprendido a usar
de colocar luvas. A do dedo indicador “Ah, sim”, Madeleine disse sem seu quadril 44 para servir seis pessoas. talheres, batendo garfo e faca um no
direito estava mais curta, rente à carne. a alma no corpo, “Eu vi a hora que “Poxa, fiz torta holandesa”, disse outro, descoordenadamente.
Deveria tê-la lixado; imaginou que fosse caiu”. Sandra à mãe assim que ela chegou com “Mas ela vai conversar com a moça
roê-la ou arrancá-la nos dentes, não que “E por que não tirou?” o pai. Edson e Sirlene traziam um bolo do pet shop essa semana, abriu vaga
desaparecesse na comida. Madeleine não tinha uma resposta de frutas. Sandra já havia tentado fazer pra atendente”, disse Sandra no mo-
“Está bem, vó, fico feliz que venha, razoável. Simplesmente não ligava para essa sobremesa, mas não tinha dado cer- mento em que seu braço se estendia
um beijo”, Sandra disse e desligou o casca de cebola na comida, mesmo sen- to. Era pro aniversário de Madeleine. tomando a mesa, tentando alcançar a
celular, colocando-o na mesa, entre a do maior que uma ponta de unha. Foi uma conversa de uma hora pelo te- salada de folhas.
margarina aberta, o saco de farinha de “Nossa! E isso aqui?”, Sandra enfiou lefone, recebendo instruções da mãe de “Tomara que consiga. Morar com a
trigo rasgado, o açúcar derramado, a o rosto na panela de arroz, “Madeleine, como fazer para não deixar a massa seca amiga é bom, mas nada como ter seu
pimenta espalhada fora do saquinho. o que é isso?” e o creme muito doce. Gosto e textu- próprio espaço”, disse Sirlene, sorrin-
“Temos mais dois pro almoço, a vó vai Os dedos de Madeleine afinaram ra ficaram até bons, só faltou beleza no do sem se importar com a boca melada
vir também, ela e o vô”. tanto a massa que quase encontraram bolo. A culpa foi da falta de um recipien- de molho ou se havia alface presa nos
“Que bom”, Madeleine falou com o fundo da forma. te bonito. O bolo precisou se contentar dentes.
um sorriso discreto, os dedos ainda “O que é?” com uma tigela de plástico pequena. “A gente se dá bem”, Madeleine
deslizavam na tigela com movimentos “Vem ver.” “Quanto mais sobremesas, melhor”, falou, começando a enrolar a barra da
lentos, que não condiziam com a velo- Madeleine segurou a respiração e, disse Edson, rindo de deixar os olhos roupa nos dedos.
cidade dos pensamentos. Qual a última cuidando para não fazer ruído com os miúdos. O bolo nas mãos de Sirlene, “Sem querer jogar agouro”, a avó
lembrança com a unha ainda no dedo? chinelos de borracha no piso, aproxi- decorado caprichosamente, em emba- disse, levantando a mão para reforçar
No banheiro, quando foi lavar as mãos mou-se do fogão. A pele do rosto qua- lagem descartável, parecia comprado. seu discurso de matrona, “mas, quan-
para higienizar o forro da forma. A se se soltou dos ossos de tão relaxada Sandra pôs a mesa de um jeito di- do uma de vocês arranjar namorado,
unha só podia estar entre os farelos. quando viu o arroz branco, sem nada. ferente de sempre. Fez questão de co- daí vão mudar a cabeça”. Interrom-
“Acho que já tá bom isso aí, hein”, “Qual o problema?” locar a comida em travessas de vidro e peu-se, havia corpo estranho na boca,
Sandra disse olhando por cima do om- “Não falei pra você ralar a cebola do de madeira, sobre descansos de panela entre os dentes. Tentava reconhecer a
bro da namorada. Madeleine concor- arroz? Olha o tamanho desses pedaços.” feitos de vime. Havia comprado pra- peça rígida que mastigava. Empurrou
dou com a cabeça, não desgrudava os “Cebola cortada grande assim é tos novos, lustrado taças de alças altas com a ponta da língua a migalha cor
olhos da mistura. Esfregava as mãos melhor pra quem não gosta, é mais fá- e posto talheres para conhecerem a luz de nada e semitransparente, “Com-
uma na outra como se as lavasse. Afun- cil de pescar do prato.” do dia. Correu na frente dos pais, ainda prou essa carne dura, filha?”
dava-as na massa outra vez, esfregava “Não, é péssimo. Ralada deixa a não poderiam pisar na sala. Esquecera- Sandra cerrou os lábios e estendeu a
de novo, como se estivesse espalhando comida saborosa, e o paladar de fresco -se de ligar o som, seu pai achava que palma, onde a avó depositou o pedaço
hidratante. Trouxe a forma de fundo não sente.” almoço sem música era velório chique. de gordura.
removível para perto, esbarrou na sacola Madeleine terminou de forrar a A sala se encheu de boleros e cantores “O açougueiro me enganou, dis-
de cebolas, lembrou que picara uma para forma com os farelos úmidos, nada de vozes melosas, melodias de introdu- se que era de primeira”, a moça dis-
o arroz e outra para a carne moída, duas da unha. Se houvesse caído nas pane- ções cinquentenárias. se, saindo da mesa. Jogou o que a avó
panelas borbulhando no fogo. Sandra las, era provável que tenha amolecido. “E como está, Madeleine? Conse- cuspira no lixo da pia.
as rodeava. A faca de picar era afiada, Observou a namorada despejando os sa- guiu trabalho?”, perguntou a avó en- Ainda agarrando a barra da camiseta,
unha nua é transparente, cor de cebo- chês de extrato de tomate sobre a car- quanto partia, tremulamente, um pe- Madeleine espetou o dedo. O pedaço da
la refogada. Sandra pegou a colher de ne moída fumegante. Já era, agora que daço da lasanha no garfo. Seus olhos unha estava preso, escondido no tecido.
Flávia Santos

Abacateiro

Um poema que palmilhe


pedregoso
sentido bairro centro
e vice-versa
áspero
leio muitas páginas por semana
e apenas um exemplar de mim:
contemplo – solitário – abacateiro
Ponte Cidade Jardim
abacates em verde e cinza
apodrecem
na alça, esquina com a ponte
beira do rio
paralelo
um poema que derrube
furibundo
pela raiz
esta melancolia
11
Cartadas Literárias
Quer prêmio, medalha, reconhecimento, amor? Escrever é só um detalhe.

Em mais um magnífico empenho cívico, o Jornal RelevO apresenta em primeira


mão – antes mesmo do revisor acordar do Zolpidem –, o inédito OK, MAS VOCÊ
SABIA QUE EU…: Cartadas Literárias Para a Família Toda, novo livro de Marcos
Sciupettino, premiado escritor de Botucatu-SP, guru e agente de marketing de
rede com dezenas de prêmios literários. “Tenho 53 prêmios literários, e nunca
escrevi uma linha… opa, agora são 54 – acabei de receber um e-mail da Câmara
Municipal de Serra Talhada (PE)”. Nauseada no terreno pantanoso entre a inveja
e o desdém, a estagiária do Jornal preferiu não se manifestar, mas acompanhou
atentamente as lições de Sciupettino, relatadas a seguir. Aprenda com o mestre:

CARTADA #1: O PRÊMIO CARTADA #2: HERÓI DO BATE-BOCA

Esse é o step one, a essência. A árvore da qual todos os frutos derivarão. Sem um Você acha que o Romário era famoso pelos gols ou pelas polêmicas? Pelos gols,
prêmio você não é nada. Você é um bosta. Você não é reconhecido por ninguém. obviamente. Mas você não é o Romário – e as polêmicas ajudam. É preciso
Não engraxa nem conta com 1.200 seguidores. Eu comecei top 2 no “I Prêmio calcular os alvos certos. Comece implantando boatos sobre si mesmo – “deixou
Educar Botucatu de Microcontos”. Bem, não teve um II Educar Botucatu de o professor de Sociologia na ponta do pé no Terceirão” – e acusando de volta
Microcontos. Ninguém se importa, porque a partir dali eu obtive um salvo-con- (quem? Tanto faz, oras. Você tem que ser vítima e, ao mesmo tempo, agressor).
duto. Uma licença. Veja, se o Oscar e a Fifa vivem fazendo cagada com prêmios Depois, parta para os debates, de preferência contra os mais feios – ofender gente
que envolvem centenas de milhões de dólares, você acha que o Concurso de mais bonita que você é um tremendo equívoco. Afirmações rocambolescas que
Ensaios Editora Biquibiriba é coisa séria? Meu amigo, abraça o sucesso e é isso. tragam (antes de mais nada) atenção e um leve senso de “esse cara é perturbado,
Já parou para pensar que, a partir do momento que você ganha um prêmio, você mas todo gênio é perturbado, não?”. Pronuncie-se de boca cheia – “mas ele fala
é – literalmente – premiado? Mais que um prêmio, um adjetivo. Uma qualificação: tão convicto…”. Cuide com a linha da obviedade: não adianta falar que a Terra
uma qualificação inquestionável. Aí você ganha um prêmio (que na maioria das é plana – é preciso ser original uma vez na vida. “Os astecas eram todos gays”;
vezes vale literalmente NADA; capaz até de cobrar participação, impressão e afins) “fui até a Muralha da China e sei que ela não existe”; “Existe uma cidade subter-
e, no segundo prêmio (que também não vale nada), já participa como vencedor do rânea em Araguaína (TO)” (por sinal, fui premiado lá). Por fim, de besteira em
primeiro. No vigésimo – nem todos vão dar certo até lá, o importante é manter besteira, eventualmente você se torna especialista em alguma coisa por acidente.
a constância e fazer o máximo de esforço na luta pelo esforço mínimo –, quem te
recusar já vai começar a duvidar de si mesmo. “Mas ele é tão… premiado! O que
estou deixando de enxergar?”. Assim surge o ciclo divino da primeira carteirada (e
boa parte da roda da vida do professor universitário).
CARTADA #4: ACADEMIA & CARTADA #5: OS CURSOS DO CURSO
CARTADA #3: ESCREVA… SORT OF PERIÓDICOS (ENTENDEU O JOGO DE PALAVRAS?
MINHA SOBRINHA QUE FEZ)
Intermidialidade, semiótica, literatu-
Você deve estar se perguntando: mas poxa, cadê o conteúdo? “Sciupa (como sou ra comparada. O mundo tá cheio de Vender curso, oras. Essa estratégia
conhecido por aqui, e aqui obviamente é São Paulo), como você começa ga- vendilhões do templo, e já pudemos apelativa pode ser óbvia para mim,
nhando prêmio sem escrever?”. A verdade é que esses ChatGPT acabaram com perceber que as habilidades retóricas para você e para todos os seus amigos
toda a graça. Agora ninguém tem desculpa pra não ganhar um prêmio literário. de Jesus você não tem. Então, aprimo- articuladinhos. Mas curso vende, meu
Mesmo. Não tem mais romance. Até pouco tempo atrás, a Cartada #3 exigia re-se em ser o que você sabe que não é amigo. Vende enquanto você lê esse
uma arte, uma beleza. É o que diferencia um vigarista elegante de um golpista pela via de uma palavra malandramen- Jornal, enquanto o Sciupettino grava
fuleiro. Facilitar tanto o charlatanismo foi um duro golpe no charlatanismo. te colocada ao lado da outra. Assim uma masterclass gratuita – o que cara-
Enfim, perdi tudo, mas é preciso se adaptar. Hoje, é só gerar textos ad nauseam nasceu o meu reconhecido artigo “As lhos significa masterclass hoje? Qual é
e enviar pro Brasil inteiro – os melhores prompts (e os melhores concursos) eu veredas de Guimarães Rosa na místi- o sentido das palavras? Por que não
ensino no meu curso, pra você que é toupeira a ponto de precisar desse apoio. ca de Tom & Jerry: uma análise anar- chamamos ventilador de guarda-chu-
Custa menos de R$ 1.000 e dá pra parcelar! Também tem a mentoria… cossindicalista”. Publique. Depois de va e guarda-chuva de armário, já que
publicar, publique novamente. Tudo aprendemos a elasticidade da semânti-
é autoplágio, tudo é metalinguístico. ca? Curso te transforma em referência.
Foi pego no pulo? Era parte do plano. “Pô, o cara tem até curso”. Prêmio +
Era um projeto. Publique como relato. Polêmica + Curso, como chamo de
Autoficção. Se não conseguir publicar, PPC (e você pode chamar de método).
desça ao fundo do poço e crie seu pró- Não é triste a realidade ser tão óbvia,
prio jornal literário. Distribua prêmios tão melancólica? Nossa imbecilidade
– o que vai sempre volta. comunicativa, nossos formatos previsí-
veis não são um problema de civiliza-
ção? Pois é, meu amigo, tanto faz. Al-
guns aproveitam; outros #sciupaodedo.
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Menos
colarinho,
mais
E N C L A
a newsletter do Jornal RelevO
V E Marlon
Assine e receba de graça em seu e-mail:
<https://jornalrelevo.com/enclave> Brando
Você provavelmente está usando uma camiseta agora,
principalmente se estiver em casa. Eu estou. Mas se prestarmos
atenção às representações visuais de um passado não muito
distante – desde o início do século 20 –, observaremos essa
peça em contextos diferentes do atual. Em Mad Men, Peaky
Blinders e virtualmente qualquer filme de guerra ou western, a
camiseta costuma ser encontrada sob a camisa de botões do
personagem masculino.
Ora com henley, ora com ceroula, ora com union suit, fato
é que o dorso esteve coberto de maneiras diversas, interme-
diando a relação da pele com a camisa. Em determinado
momento, porém, a camiseta – esta tão popular hoje – deixou
de ser algo que usa se por baixo para se tornar algo que se usa.
Quando, exatamente?
Claro, transformações culturais não ocorrem do dia para a
noite – seria irresponsável atribuir tal mudança a um só evento.
Por outro lado, isso é exatamente o que faremos, visto que
carecemos de compromisso com a verdade, confundimos
correlação com causalidade e porque, afinal, acabamos de
alertar para nossa licença poética (“qualquer coisa, chama de
literatura”, aconselhou um amigo historiador, sóbrio há quase
dez dias).
Uma contextualização responsável já foi feita no Gizmodo, cuja
leitura recomendamos. Dela extrairemos algumas informações
antes de seguir adiante:

“Pouco após o fim da guerra, o autor F. Scott Fitzgerald se


tornou a primeira pessoa conhecida a usar a palavra
15

‘camiseta’ (ou t-shirt, em inglês), em seu romance Este Lado Mais sedutor do que nunca, Brando foi Stanley Kowalski,
do Paraíso, como um dos itens que o personagem principal papel que já vinha interpretando na peça durante temporada da
leva para a universidade. (…) Quando a Segunda Guerra Broadway. Este personagem havia retornado da Segunda
Mundial começou, a camiseta ‘moderna’ já era comum em Guerra Mundial, e não por acaso é um grande adepto de uma
escolas e universidades pelos EUA, mas não era onipresente simples camiseta (suada, gasta e até rasgada). Stanley é bruto,
e ainda era usada por adultos, por exemplo, como uma instintivo e carnal, uma contraposição visível ao galã
camisa interior. (…) O que fez com que elas se tornassem hollywoodiano clássico.
populares entre todos foi o fim da guerra, quando os Marlon Brando também representava uma mudança na
soldados voltaram para casa e começaram a incorporar a forma de atuar, empregando um envolvimento total ao
vestimenta ao guarda-roupa tradicional, da mesma forma personagem. Essa postura – a que estamos acostumados hoje –
como faziam durante a guerra.” difere do melodrama mais caricato a que associamos a atuação
até meados do século passado. Fato é que Brando – à vontade,
Pois bem. Lembremos o arquétipo do galã na Era de Ouro de ousado, e já falei suado? – tornou-se um ícone visual,
Hollywood, desde antes até depois da Segunda Guerra independentemente de quão abominável pudesse ser o desfecho
(1939-1945): Cary Grant, Clark Gable, Humphrey Bogart e de seu personagem. A partir do filme, a camiseta passou a ser
Gary Cooper, como na imagem de abertura deste texto. Há um muito mais aceita, utilizada e procurada como uma peça
padrão claro ali, isto é, de vestimenta – sequer abordaremos autossuficiente, isto é, sem a condição de roupa íntima.
fatores raciais, ainda mais evidentes. Podemos enxergar este momento como um estopim. A
Estes senhores, enfim, estão devidamente engomados para camisa e o terno são cada vez mais associadas a contextos
nossos padrões atuais. A estrela hollywoodiana, dentro ou fora formais, ao passo que a camiseta, leve e prática – de algodão
das telas, era um homem de terno de flanela cinza até os anos ou poliéster, com ou sem estampa –, foi abraçada pelos mais
1950, e terno, colete, Brylcreem e chapéu. diversos grupos demográficos. Marlon Brando
Em 1951, o filme Uma Rua Chamada Pecado foi lançado, evidentemente não é a causa de adesão generalizada desta
adaptando a peça homônima de Tennessee Williams (A peça no planeta, mas um empurrão – e um ponto de
Streetcar Named Desire, 1947, também traduzida como Um referência. Aquele alinhamento do zeitgeist que, se não
Bonde Chamado Desejo – que, por sinal, hoje seria um ótimo ocorresse por meio dele, talvez ocorreria da mesma forma,
título de funk carioca). E um jovem Marlon Brando, então com pois a receita já estava no forno. (Não somos tão
26 anos, apareceu da seguinte forma. descompromissados com a verdade!)
Bolívar Escobar

Quem cuida dos cuidadores?

Ideia: criar um robô para me ajudar a ser uma pessoa menos desorganizada. E depois criar outro robô para ajudar meu robô a se organizar também.

Está aí o grande problema de tentar Há algum tempo, topei com o livro que esse elenco de caminhantes traz so- Solnit lança exemplos para delinear
pegar carona e publicar algo abordando First Steps, escrito por um professor do mente nomes masculinos. Ele justifica: as diferenças do caminhar que emergem
o assunto do momento no Brasil: você departamento de antropologia da uni- historicamente, caminhar por aí sempre das questões de gênero, nos ajudando a
demora mais de uma semana para escre- versidade de Dartmouth chamado Je- foi mais perigoso para mulheres e outros compreender a longa trajetória do espa-
ver alguma coisa, e nesse meio tempo remy DeSilva. A tese da monografia é grupos minoritários. Por isso, excluindo ço público. Dos gregos antigos aos su-
acontecem mais três ou quatro catástro- deveras interessante: trata-se de uma notáveis exceções como Virginia Woolf búrbios modernos, o ir e vir a pé é re-
fes que mudam completamente o cená- extensa investigação sobre o ato de ca- e Robyn Davidson, há uma lacuna de tratado como parte do extenso aparato
rio, o assunto e o humor da galera. Mas minhar. DeSilva dedica longos capítulos registros sobre caminhantes femininas. de controle sexual feminino. Considere
vamos que vamos. do seu livro para explicar, em termos Sem dedicar mais palavras para essa pe- o ato de caminhar sozinho, recreativa-
No insólito novembro de 2023, as evolucionistas, por que os seres huma- dra no caminho, o autor prossegue para mente. A dimensão simbólica desse ato,
mentes maquiavélicas do INEP resolve- nos se tornaram bípedes e como isso nos o próximo assunto da tese e a moral da essa espécie de deslocamento contem-
ram anunciar um tema de redação para ajudou a sobreviver. história fica por isso mesmo. Caminhar plativo — o caminhar do flâneur ou as
os jovens a partir da seguinte premissa: De fato, praticamente três quartos do faz bem para o cérebro — ao menos, viagens errantes dos exploradores — re-
desafios para o enfrentamento da invi- livro do paleoantropólogo são dedicados para o masculino. vela-se como historicamente reservada
sibilidade do trabalho de cuidado reali- a reportar e discutir pesquisas sobre a his- Respeitando os achados e desdobra- aos homens. É algo perigoso de ser feito
zado pela mulher no Brasil. Aqui, nesse tória do corpo humano e o papel da ca- mentos da pesquisa de Jeremy, começo por uma mulher, que estaria mais segura
preâmbulo, é necessário desde já esclare- minhada nas vidas dos nossos ancestrais. a perceber algumas possibilidades de em casa, cercada pelas paredes. Se cami-
cer que não estou abordando esse tema O autor traz argumentos para defender deixar um pouco mais densa a trama da nhar tem um peso cultural tão evidente,
apenas porque supostamente esteve “na o quanto caminhar é inseparável da nos- história da caminhada. Na verdade, nem e se tal ato é um privilégio masculino, às
moda” comentar a redação do ENEM sa identidade — de fato, nos tornamos tanto em tom de crítica construtiva, mulheres, portanto, “acaba sendo nega-
na internet. É claro que as ondulató- tão bons e eficientes em caminhar sobre mais como pura curiosidade mesmo, a da não apenas uma oportunidade de re-
rias do alvoroço são detectadas nas re- duas patas que pouquíssimas calorias são pergunta que acabo me fazendo é: como creação, mas uma porção da sua própria
des sociais, mas preciso ser um pouco gastas no processo. Podemos caminhar esses caras tinham tanto tempo livre para humanidade”.
mais sincero. Para nós, pessoas cronica- por horas se quisermos. Além disso, ca- ficar caminhando por aí? Retornemos, entretanto, para o pri-
mente online, é muito difícil encontrar minhar ativa os músculos, que começam Encarar a caminhada como um pri- meiro dos três ingredientes da cami-
assuntos legais para comentar a cada 15 a produzir miocina, uma pequena molé- vilégio masculino não é uma novidade. nhada: o tempo livre parece ser o meu
dias em um blog. Então, quando alguma cula proteica que ajuda na manutenção No livro Wanderlust, a escritora norte-a- incômodo principal com a tese de De-
instituição governamental lança um tema do sistema circulatório e tem efeitos sur- mericana Rebecca Solnit dedica páginas Silva. Para uma pessoa decidir caminhar
de redação, a gente gosta de se sentir in- preendentes sobre a memória, descober- mais aprofundadas para essa dimensão como recreação, ela precisa ter o poder
cluído, dá vontade de escrever também. tos recentemente. Ou seja, DeSilva não da atividade muscular dos nossos mem- de escolher esse hobby em vez de estar
A diferença é que a gente não faz isso pra tarda a encontrar conexões entre cami- bros inferiores. Nas palavras da própria, precisando fazer outras coisas. Embora as
ganhar nota. A gente ganha outras coisas¹. nhar e ser uma pessoa saudável e cogni- são três os pré-requisitos para adotar a questões de controle social sejam ampla-
Por sorte, esse tema me fez relembrar tivamente ativa. Um capítulo específico caminhada como uma atividade de la- mente abordadas por Solnit, podemos
de uma ideia engavetada. Algo sobre o do livro chama a minha atenção nesse zer: “a pessoa precisa ter tempo livre, fazer um breve complemento ao proble-
qual eu já elaborei uma meia dúzia de aspecto. um lugar para ir e um corpo desimpe- ma da caminhada a partir do momento
palavras, mas nunca publiquei. Portanto, Após delinear todo o esquema evo- dido por doenças ou restrições sociais”. em que compreendemos que o tempo
vou soltando aqui logo o que eu chamo lutivo do bipedismo humano, DeSilva É nesse último quesito que Solnit lança livre não é um tempo que existe fora das
de corolário da desorganização moder- resolve mencionar algumas personali- suas mais pertinentes observações: por 24 horas que o planeta Terra leva para
na. Em resumo, o que eu gostaria de dades históricas que mantinham regis- exemplo, a ideia de que o mesmo ato completar uma pirueta. O tempo livre
compartilhar, nas linhas a seguir, é uma tros do hábito da caminhada diária. A de caminhar seja visto como exercício, é um produto direto do trabalho de cui-
ideia simples e que talvez até soe repe- lista é composta por pensadores e artistas passatempo ou simples transporte pelos dado feito pelas outras pessoas.
titiva, mas que, quem sabe, eu consiga como Charles Darwin, William Words- homens, também torna-se uma perfor- Seria divertido abraçar a tese de De-
elaborar de forma a causar desconforto e worth, Jean-Jacques Rousseau, Imma- mance para o olhar masculino quando Silva sem questionamentos e começar a
gerar engajamento: ser uma pessoa desor- nuel Kant, Beethoven, Charles Dickens executado por mulheres, cuja adesão às caminhar uma hora por dia para tentar
ganizado não é um traço de personalida- e, mais recentemente, Steve Jobs. Ou- normas sociais impõe locais próprios ficar mais inteligente. Se eu resolvesse fa-
de ou característica pessoal. Ser uma pes- tras figuras famosas compõem o rol, e para caminhar e até mesmo roupas que zer isso, teria que escolher alguma coisa
soa desorganizada é um privilégio. Leiam DeSilva logo emenda uma observação aguçam seus movimentos para padrões para sacrificar. Talvez deixar a louça suja
e depois me digam se faz sentido ou não. pertinente: o leitor deve ter percebido que agradam a esse olhar específico. acumular para lavar tudo no sábado ou
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talvez parar de limpar meu banheiro e de controle sobre essas pessoas, tal e qual A naturalização do trabalho de cui- dispositivos como smartwatches e seus
o banheiro da minha gata. Quem sabe seu dominador o faz quando a leva para dado, enquanto estratégia política, cha- softwares de gerenciamento de tarefas,
eu poderia deixar de ter um blog tam- seu quartinho secreto. ma atenção das pessoas que estudam nos distanciamos de noções localizadas
bém? Logo perceberia que as caminha- Fica estranho pensar nessas celebri- gênero porque há uma evidente recor- do tempo para favorecer decisões execu-
das poderiam até estar causando algumas dades do passado, nesses grandes pensa- rência histórica no quanto esse trabalho tivas sobre o que significa aproveitar o
reações eletroquímicas a mais pelo meu dores, escritores, inventores, sem querer é realizado por mulheres. Meu simples dia ou ter uma manhã produtiva³.
sistema nervoso, mas o preço disso se- problematizar a origem desse tempo li- complemento à crítica de Rebecca Sol- Transferir o trabalho de cuidado de
ria perceber que minha vida pessoal está vre disponível para tanto pensamento. nit sobre o privilégio de caminhar é, um grupo social para uma parafernalha
desmoronando ao meu redor. Já é difícil Eventualmente, aplicar uma simetria é enfim, apontar que há uma engenharia tecnológica serve para continuar natura-
o suficiente manter um ritmo de exercí- válido: percebemos que estamos fazen- social dedicada à fabricação dos privi- lizando sua execução como necessaria-
cios físicos semanais. Já é um saco ter que do o mesmo. Pagar para alguém fazer légios do tempo livre. Deixar de fazer mente invisível. Por algum motivo, nos
ir ao supermercado, escolhendo legumes seu serviço de cuidado é recorrente, até pequenas tarefas, relegar a manutenção convencemos que é degradante ou chato
em vez de fazer coisas mais divertidas. necessário se formos realistas e conside- doméstica para outros ou simplesmente ficar limpando e organizando coisas. E
Aliás, é difícil dedicar algum tempo para rarmos a enorme quantidade de serviço não se importar com organização sig- nos colocamos, dessa forma, em busca
me divertir sem me sentir culpado por de cuidado que precisa ser feito diaria- nifica, em síntese, que há alguém com desse cenário utópico, no qual alguém
não estar trabalhando ou fazendo outras mente. Almoçar em um restaurante é, tempo disponível, menos valioso que ou algo faz tudo e nos deixa livres, sem
coisas mais úteis. em certo nível, pagar por trabalho de o nosso, para fazer essas coisas por nós. nada que precise ser cuidado.
Tento não ser normativo nessas ho- cuidado. Alguém precisou selecionar in- Mas não há um valor inerente ao tempo.
ras, mas sou levado a acreditar que pes- gredientes, preparar, servir, limpar. Ter Ele é relativo à forma como a sociedade
soas que não precisam se preocupar com uma babá ou pagar uma creche; um cui- decide distribuí-lo.
organização só o fazem porque já existe dador para o membro idoso da família. E é aqui que tento forçar meu exer-
alguém organizando as coisas para elas. Considero que a dimensão do trabalho cício de observação para a dimensão
E por organizar quero dizer justamen- de cuidado é um tanto elástica, abran- tecnológica do problema. Nossa socie-
te fazer esse trabalho de cuidado, esse gendo essas diversas manifestações da dade parece aceitar, com cada vez mais
conjunto de manutenções cíclicas. Não manutenção da vida diária, em menor facilidade, que a solução para o volume 1. Geralmente: ofensas gratuitas, es-
é estranho pensar na organização pessoal ou maior grau. acumulado de trabalho de cuidado se cárnio e oportunidades de trabalho
como trabalho de cuidado se repararmos Ao propor essa elasticidade, torna-se resolve com gadgets. Robôs entregado- perdidas por “queimação de filme”.
que todo CEO, executivo ou administra- estranho imaginar que alguém ou algum res, robôs aspiradores de pó, secretárias 2. Não quero soar azedo, mas… ah,
dor do raio que o parta precisa contratar grupo social escolhido tem um “talento falantes da Amazon, panelas que pre- quero sim. Odeio a panela que cozi-
uma secretária para anotar telefonemas, natural” para o trabalho de cuidado, por- param a comida sozinhas², dispositivos nha sozinha. Não estou falando do
agendar reuniões e barrar a entrada de que assumir isso pressupõe duas coisas: a autolimpantes. Parece que é um futuro conceito em si, mas de uma panela
pessoas desimportantes na sala. primeira, e mais óbvia, é que o trabalho promissor que se desdobra, no qual pe- específica que apareceu na timeli-
Nesse ponto, lembro-me da diverti- de cuidado é simples, menos complexo quenos aparelhos com suas baterias de ne nos últimos dias. Ela tem uns 8
da crítica que Heather Havrilesky escre- do que demais categorias laboriosas para lítio mega duráveis irão fazer todo o tra- compartimentos nos quais você de-
veu para a Baffler sobre a série de livros essas pessoas e, segundo, que justamente balho doméstico chato. posita os ingredientes e temperos e
50 Tons de Cinza. O que a autora suge- por ser simples ele não precisa de tanta Mas, de novo, temos que lembrar que ela vai preparando um strogonoff.
re é uma leitura para além do aspecto atenção. Torna-se, consequentemente, a tecnologia não é um fenômeno isolado. Poxa, a parte difícil é justamente
erótico-romântico (legal) do texto. Ela mero background: é algo feito de modo É uma inserção material na rede socio- ficar picando cada ingrediente pra
observa a narrativa dos fatos como uma invisível, sem “grandes impactos”. Se o técnica. Ou seja, por trás de cada gadget fazer o mise en place. Pra mim, esse
rápida ascensão da personagem prin- subproduto mais valioso do trabalho de automatizado, ainda há um trabalho invi- uso não está distante do carro dos
cipal para a classe aristocrática à qual o cuidado é o tempo livre, temos que acei- sível sendo executado, seja para construir Flintstones que precisa ser movido
magnata por quem ela se apaixona per- tar que há uma técnica intrincada na sua esse gadget, transportá-lo, consertá-lo ou pelos pés do motorista.
tence. Isso é sinalizado, evidentemente, execução. Essa técnica custa várias horas, até mesmo dar um sumiço nele depois que 3. Vocês podem me cobrar mais para
pela percepção do quanto o trabalho de pressupõe saberes. Se um grande territó- sua vida útil termina. Essa dimensão não é escrever sobre mediação tecnológica
cuidado sai de suas mãos para os empre- rio do labor é resumido ao background a única problemática. Esse estudo de Pe- porque é isso que estou estudando
gados: ela passa a ter um motorista, uma do dia a dia, esse resumo é uma estratégia ter Nagy e seus colegas demonstra, por no doutorado. Isto é, se eu não es-
cozinheira — e, como não poderia deixar política. Alguém precisa cuidar da casa exemplo, como a mediação tecnoló- tiver ocupado limpando a casa ou
de ser, passa também a projetar desejos enquanto as grandes mentes caminham. gica do tempo funciona. Por meio de cozinhando.
Carvalho Junior

Tradução de Antonio Torres

O homem
Por Daniel Zanella

No início da pandemia, em março de ho.mem: s. m. 1. BIOL. Mamífero da poeira invisível nos escombros do cas- IV.
2020, abrimos um chamado para publi- ordem dos primatas, do gênero Homo, sino caxiense, fôlego e asfixia nos vi- as pernas do homem-tijubina têm o
cação no RelevO que causou um imen- da espécie Homo sapiens, de posição vemorres do rio itapecuru. na esperan- fracasso como farinha, como a massa
so rebuliço entre os editores. Foram ereta e mãos preênseis, com ativida- ça de novos dilúvios, ele recita cecília: de araruta que o alimenta no íntimo.
aproximadamente 3 mil textos envia- de cerebral inteligente, e programado a chuva é a música de um poema de − sem uma pedra na testa, quem pode
dos em um mês. Não nos recuperamos para produzir linguagem articulada. verlaine. fazer um bom festejo? ri das próprias
disso por quase três anos e atrasamos [michaelis.uol.com.br] perturbações com a dentada suja e
vergonhosamente o retorno de autores II. incompleta sem muito se preocupar
muito bons. Foi assim que me deparei, ti.ju.bi.na: s. f. || (Bras.) nome vulgar el hombre-tijubina vive, se dobla, (des) em entender os tipos híbridos que lhe
em janeiro de 2024, com um e-mail de uma pequena lagartixa. dobla y recorta como un fanzine. am- compõem a natureza.
do fim de 2019 do escritor maranhense || (Ceará) (pop.) O mesmo que lam- bulante del bulevar de la afonso cunha,
Carvalho Junior, que morreu de Co- bedeira. [aulete.com.br/tijubina]; eti- pide limosna como un poeta, es este
vid-19 em março de 2021. Chegamos mologia: tupi: teiu-ombý [michaelis. azulejo roto en tus manos. usa collar
a nos falar por telefone algumas vezes e uol.com.br]. de hippie, pulsera de semillas antique- IV.
tínhamos uma parceria com a distribui- branto, antiodio y antiamor al mismo las piernas del hombre-tijubina tie-
ção do Jornal no Nordeste. Nesta edi- I. paso y en el mismo cortar de pulso. nen el fracaso como harina, como la
ção de fevereiro, publicamos um longo o homem-tijubina tem um paladar es polvo invisible en los escombros del masa de maranta que lo alimenta en el
poema dele. [Ler na mensagem o seu exigente. não digere o ovo do óbvio. casino caxiense, aliento y asfixia en íntimo. – sin una piedra en la frente,
número de telefone em anexo me cau- somente silêncios de pássaros lhe pas- los vivemueres del río itapecuru. en la ¿quién puede hacer un buen festejo?
sou uma estranha melancolia.] sam pelos gorgomilos. quando o inda- esperanza de nuevos diluvios, él reci- reí de las propias perturbaciones con la
gam a respeito desta passagem, diz que ta cecília: la lluvia es la música de un dentada sucia e incompleta sin mucho
Carvalho Junior o outro lado da vida está no verso. não poema de verlaine. preocuparse en entender los tipos hí-
<professorcarvalhojunior@gmail.com> tem idade, apenas caminha. às vezes bridos que le componen la naturaleza.
18 de dez. de 2019, 20:38 para frente quase sempre para o fun-
do do poço que guarda as lágrimas dos III. V.
Boa noite, meu amigo. Como pro- seus ancestrais. é um composto de cor- para o homem-tijubina a infância é o homem-tijubina descansa as dores
metido, em anexo, dois arquivos em tes de unhas-de-gato e incoerências. como uma ferida sem costura. diz que no silêncio da caieira quando opera
Word. O primeiro contempla o poema carrega suas corcundas hereditárias pela o carvão guardador dos suspiros do
“O homem-tijubina”, em português e I. força das ladeiras de pedras brancas babaçu que desintegra os rancores no
espanhol. E o segundo, nove poemas el hombre-tijubina tiene un paladar em que um dia correu com os bolsos lábio do machado. como um índio,
do livro homônimo O homem-tijubina exigente. no digiere el huevo del ob- cheios de pitombas, penas de passari- busca remédio nas ervas naturais do
& outras cipoadas entre as folhagens da vio. solamente silencios de pájaros le nhos e sonhos acesos dentro de lam- seu chão e na fé que se agarra como
malícia (Editora Patuá, 2019). Envio pasan por la garganta. cuando lo pre- piões improvisados. quando tomado um ímã na moeda. balança a cabaça da
também uma ilustração que não está guntan sobre este pasaje, dice que el de ira do mundo, enfia o dedo no cu paciência e se benze/cura pelo rabo da
no livro, mas é de um poeta/ilustra- otro lado de la vida está en el verso. das não levezas do cotidiano e brada mucura, pelos tutanos das lendas que o
dor piauiense sobre o personagem do no tiene edad, apenas camina. a veces contra a apatia dos fantasmas bípedes. ninam com uma voz de mãe.
livro. Imagino que ficaria muito lin- para frente casi siempre para el fondo
do uma publicação com essa ilustra do del pozo que guarda las lágrimas de sus
Adriano Lobão Aragão. ancestrales. es una mezcla de cortes de III. V.
Um grande abraço do amigo Carvalho uñas-de-gato e incoherencias. para el hombre-tijubina la infancia es el hombre-tijubina descansa los dolo-
Junior como una herida sin sutura. dice que res en el silencio de la calera cuando
(99) 98268xxxx carga sus corcovas hereditarias por la opera el carbón guardador de suspiros
II. fuerza de las laderas de piedras blancas del babaçu que desintegra los rencores
o homem-tijubina vive, se dobra, (des) en que un día corrió con los bolsillos en el labio del hacha. como un indíge-
dobra e recorta como um zine. came- llenos de pitombas, plumas de paja- na, busca cura en las hierbas naturales
lô do calçadão da afonso cunha, pede ritos y sueños encendidos dentro de de su región y en la fe que se agarra
esmolas como um poeta, é este azulejo los lampiones improvisados. cuando como un imán en la moneda. balancea
quebrado nas tuas mãos. usa colar de poseído de ira por el mundo, mete el el calabacino de la paciencia y se ben-
hippie, pulseira de sementes antique- dedo en el culo de las no levedades del dice/cura por el rabo de la zarigüeya,
branto, antiódio e antiamor ao mesmo cotidiano y brama contra la apatía de por los tuétanos de las leyendas que lo
passo e no mesmo cortar de pulso. é los fantasmas bípedos. arrullan con una voz de madre.
m-tijubina

VI. puede este viejo mitad humano, mitad IX. XI.


rá. o homem-tijubina é um bicho-pa- lagarto colorido de niñez. aquella ter- no piense en el fin, por el amor de la de peito lagartístico e calangnóstico,
pão. rá. o homem-tijubina parece a nura oculta dentro del baúl del arco iris esencia divina de los jenipapos, pal- vagamundeia o homem- tijubina com
velha iaiá. rá. o homem-tijubina não incluso quizás lo mejore, pero la tos del mitos y sapucaias. el hombre-tijubina uma reza inaudível no meio da roça.
sabe assustar. sobrevive de soluços e hombre-tijubina de tan fuerte no cura no muere ni con el cuchillo entrenado avança sobre as bitolas do chão regado
atravessamentos debaixo da ponte caí- ni con leche de una burra dorada. de dueña lourdes tratadora de tripas de urucum e comemora a luz que lhe
da que dá acesso a lugar nenhum. um que corta, sin perdón, hasta mismo atinge de prazer o seio mais delicado
gole humilhado de cachaça cuspida foi los peces en las paredes que el delirio dos abrigos de sua fauna interior. o
o que de melhor lhe aconteceu na úl- VIII. humano-tijubínico sopla. sobrevive al chicote de um sorriso cintila e brinca
tima noite. para quem tem quase nada o homem-tijubina é um poema des- mismo tiempo como el grito de tiêta, com os dados de mallarmé nos aclives/
para viver um pedaço sovinado de prezado, por todas as almas viventes como los dibujos y estatuas de andré declives do mundo novo da sua teia
qualquer morte já é um favor. e vegetativas, resistente às chuvas e às valente. mientras madre bida mueve enrodilhada de pedras.
ferrugens que lhe explodem a pele. el separador de granos al sonido de las
VI. um dia ele nasce alguma coisa dife- gallinas de guinea y cabrones & otros
rá. el hombre-tijubina es el coco. rá. rente e deverá outra vez aprender a cantores de los pueblos artesanales de XI.
el hombre-tijubina parece la vieja iaiá. viver com a indiferença dos homens, las malicias y higueras, el hombre-tiju- del pecho lagartístico y calangnóstico,
rá. el hombre-tijubina no sabe asustar. dos répteis e de todas as (sub) espécies bina renace, se reconstruye y abraza a vagamundea el hombre-tijubina con
sobrevive de hipos y recorridos bajo el por um ou vários deuses, darwins ou sus raíces más una vez montado en un un rezo inaudible en el medio de la
puente caído que da acceso a ninguna big-bangs inventados. caballo-de-paja. plantación. avanza sobre las sendas del
parte. un trago humillado de cachaza suelo regado de urucum y celebra la
escupida fue lo mejor que le pasó la luz que le golpea de placer el seno más
última noche. para quien tiene casi VIII. delicado de los abrigos de su fauna in-
nada para vivir una parte esquivada el hombre-tijubina es un poema des- X. terior. el látigo de una sonrisa centellea
de cualquier muerte ya es un favor. preciado, por todas la almas vivientes quando o homem-tijubina estende y juega con los dados de mallarmé en
y vegetativas, resistente a las lluvias y a as chagas sobre a música das folhas, las bajadas/subidas del mundo nuevo
VII. las herrumbres que le explotan la piel. preenche-se de fôlego para seguir com de su tela retorcida de piedras.
o homem-tijubina não confia na polí- un día él nace alguna cosa diferente y o cabresto aramado da sandália baila-
cia. nos ladrões de meio de rua talvez deberá otra vez aprender a vivir con rina de cipó, improvisando [à sombra
um pouco de vez em quando com os la indiferencia de los hombres, de lo das quatetês sibilinas] o escorpião de
olhos bem vivos. sobre aqueles mo- reptiles y de todas las (sub)especies higuita. o sol lhe doura a tatuagem
ços(as) dos cartazes e santinhos diz que por uno o varios dioses, darwins o big leite castanha de caju com o nome de
são moscas varejeiras prestadoras de bangs inventados. uma lepidóptera mítica. um talo de
culto às grandes merdas que fabricam coco numa mão, uma xícara de café
nos gabinetes. tossir é tudo o que ain- de tucum na outra e cismas incontá-
da pode este velho metade humano, IX. veis sob o cofo sarapintado da pele.
metade lagarto colorido de meninice. não pense no fim, pelo amor da essên-
aquela ternura escondida dentro do cia divina dos jenipapos, palmitos e
baú do arco-íris talvez até o melhore, sapucaias. o homem-tijubina não mor-
mas a tosse do homem- tijubina de tão re nem com a faca treinada da dona X.
braba não cura nem com leite de uma lourdes fateira que talha, sem perdão, cuando el hombre-tijubina extiende
jumenta dourada. até mesmo os peixes nas paredes que las lacras sobre la música de las hojas, se
o delírio humano-tijubínico sopra. llena de aire para seguir con el ronzal
VII. sobrevive ao tempo como o grito de de alambre de la chancla bailarina de
el hombre-tijubina no confía en la po- tiêta, como os desenhos e estátuas de bejuco, improvisando (a la sombra de
licía. en los ladrones de las calles quizás areia de andré valente. enquanto mãe las quatetês sibilinas) el escorpión de
un poco vez u otra con los ojos bien bida movimenta o quibano ao som dos higuita. el sol le dora el tatuaje leche
vivos. sobre los chicos y chicas de los capotes e bodes & outros cantores do anacardo con el nombre de una ma-
carteles y estampitas dice que son mos- sertão artesanal das malícias e gamelei- riposa mítica. un tallo de coco en una
cas de la muerte prestadoras de culto ras, o homem-tijubina renasce, recons- mano, una taza de café de palmera
a las grandes mierdas producidas en trói-se e abraça as suas raízes mais uma en la otra y cismas incontables bajo la
los gabinetes. toser es todo lo que aún vez montado em um cavalo-de-palha. armadura jaspeada de la piel.
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Valentina Gava Chakr

Confessionário

Mais uma primavera se aproxima. anúncio: “Vamos cantar parabéns!”


Filhos, netos, bisnetos, agregados. Al- Bolo profissional, feito em casa. No
guns vieram de avião. Juntos para um lugar das 94 velinhas, um 9 e um 4.
café da manhã especial. Pão francês O sopro é forte. Confetes pressuriza-
com mortadela, café, leite, suco, ma- dos. Estrelinhas coloridas e reluzentes
mão. Flores, vestidos, hidratantes, per- caem por todo lado. Pode varrer com
fumes, presença. Cabeça boa, corpo o maior dos esmeros, sempre vai en-
nem tanto. Vai passar por uma cirurgia contrar uma perdida que se enfiou em
de alto risco no mês que vem. algum vão e de repente resolveu se re-
Todos ainda comem. Sento no sofá. velar.
Aquela mão, de pele delicada como a Fim de tarde, vou me despedir.
de um bebê, encosta em mim e diz, “Bom retorno.” “Obrigada.” “Quan-
serena e convicta: “Não é legal vi- do nos vemos novamente? No Natal,
ver tanto”. Respondo: “Eu imagino”. né?” “Sim, com certeza, no Natal.”
Mas, por dentro, me pergunto: será Alívio. Esperança, medo, vontade ou
que não é mesmo? Se chegar lá, vou otimismo?
poder dizer. “Meu filho não está mais Chegamos em casa, guardamos os
aqui.” “Não tem o que fazer.” Sauda- jogos, as mudas de roupas das crian-
de que nunca vai passar. “Minha irmã ças. Minha visão periférica detecta
mais nova não pode vir, está debilita- um brilho inesperado. Viro-me para a
da.” “É.” estante da televisão. Eis que paira ali
Ouvimos conversas, risadas e um uma estrelinha. Mistério.

Valorizando a literatura
brasileira contemporânea.

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editorasinete.com.br
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Renan Sá

Écfrase

Tal qual Jacobina, estas são as máquina), de profissionais da educação sempre e mal, com edifícios e natu-
coisas que me fazem: perfis de festas que fazem dinheiro em apreço pela reza para efeitos de clarividência, com
techno, de livrarias e sebos, de cria- incapacidade crítico argumentativa quotes melancólicos porque sou tris-
dores de conteúdo adulto, de grandes de estudantes que despendem papéis te, com o meu rosto porque sou bo-
artistas da música popular, de peque- suados de pais desembargadores para nito, com mãos no joelho porque sou
nas bandas e produtores quase desco- pagar aqueles que dissimulam a per- safado, com trechos de filmes franceses
nhecidos, de fotografia de cinema, de fídia de um sistema inquebrável a fim porque sou culto, com dizeres amado-
ícones cristalizados pela cultura, de de (ou variação de conectivo) eviden- res porque busco validação (ou reco-
amor (ou banheirões) entre homens, ciar um mundo que é só palimpsesto nhecimento), com uma crônica autoral
de pensadores e intelectuais contem- e nunca inflexão, de alguns homens que oxida (ou descansa) nas prateleiras;
porâneos, de marcas verdes e susten- que beijei bêbado no banheiro en- e sem monetização, diferente de outros.
táveis que têm responsabilidade (ou quanto havia uma possibilidade de Ah! visto jaqueta de couro e jocks-
capital) social (ou capital), de edito- amor me esperando plantada no pé da trap e isso é classicismo, uso a norma
ras independentes que publicam au- mesa de um bar sujo com litrão bara- padrão com palavras de baixo calão (ou
tores marginais, de grandes editoras to, de amizades que foram elevadas ao porra) e isso é poesia, vou a restauran-
consolidadas por seus autores míticos, status de networking e me provoca- tes veganos e impeço a crise hídrica,
de prêmios literários encerrados no ram vários insights, de editores-chefe colo um doce na língua e viro santo,
cajado (ou na curadoria), de festivais que não sei se peço um beijo ou uma exercito a escrita e me faço estranho,
de música que concedem em seus in- publicação, embora eu pudesse go- fumo oito e já não há mais saída, fecho
gressos a liberdade, de escritores que zar nas duas situações, de arquitetos as janelas, mas ainda ouço os sons da
não leio, mas acompanho, de venda e designers de interiores que plane- avenida, e rimo às vezes porque meu
de câmeras analógicas, de poetas pre- jam lares e me recordam a necessi-
cérebro deteriorado sempre se volta à
miados que guardo no meu bloco de dade da residência ainda que alguns
paroxítona (ou ringard), sorrio e ma-
notas e críticos literários que aplaudo careçam (ou imereçam) de (ou sem
nifesto meu desapreço, amo por dois
quando entre a multidão, de tatuado- preposição) um lugar no mundo, de
anos e sinto que ultrapassei o tempo,
res de arte tradicional com estúdios autores principiantes que revelam o
subverto a sintaxe já que posso (ou pos-
na Augusta ou em Pinheiros, de ho- que as três últimas gerações da minha
mens que flerto com talento e indis- família escondiam às avessas, de pala- suo); e sempre arquiteto textos e perco
posição, de colegas cujo rosto eu só vras estúpidas, mas decadentistas, de o ritmo, e volto ao início, e acaba que
vejo nas avaliações compartilhadas do produtos de pele coreanos que fazem não digo, como todos os outros.
Letterboxd, de notícias progressistas minha dermatologista sorrir ao me E o que acontecerá quando es-
com manchetes mal escritas e impacto cumprimentar; e outros tantos perfis ses perfis se apagarem eu escolho não
midiático que enfatizam a polariza- descartáveis, diferentes do meu. pensar. É que eu sou tão pós-moder-
ção sublimada em eleições ultrapassa- Ainda, no meu próprio, me faço no, vejam que escrevo num fluxo de
das embora elas antecedam o próprio com uma paleta entre o vintage e o ci- consciência; e o meu delito é digitar
corpo (ou software) do hospedeiro (ou bernético, com lugares que frequento maiúsculas.
Gaúcho da Fronteira e Vaine Darde
Trecho de “Herdeiro da Pampa Pobre”

Mas que pampa é este que recebo agora


Com a missão de cultivar raízes?
Se desta pampa que me fala a história
Não me deixaram nem sequer matizes?

Passam as mãos na minha geração


Heranças feitas de fortunas rotas
Campos desertos que não geram pão
Onde a ganância anda de rédeas soltas

Herdei um campo onde o patrão é rei


Tendo poderes sobre o pão e as águas
Donde esquecido vive o peão sem leis
De pés descalço cabresteando mágoas.

O que hoje herdo da minha grei chirua


É um desafio que a minha idade afronta
Pois me deixaram a guaiaca nua
Pra pagar uma porção de contas

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