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Psicologia da oração na ontologia da modernidade ateizante

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Anderson Clayton Pires

Publicado na Revista Psicoteologia em 13/09/2019

Disponível para leitura em :


https://www.yumpu.com/pt/document/read/62829112/psicoteo-13-9-2019

Na concepção do teólogo alemão Bernhard Häring, existe uma “dimensão política” sempre presente na psicologia da oração. Esta

afirmação pode causar um senso estranheza em e para muitos religiosos: Como assim? A pergunta subseqüente, contudo, precisa se pontuada: O que

significa essa “dimensão política da oração”? Significa o “desejo de realização da mudança”. A mudança pode ser compreendida, em termos

ontológicos, como transição qualitativa de uma forma de vida compreendida a uma outra que se deseja obter. Portanto, a oração é o vetor ontológico

da fé através do qual se busca promover essa mudança qualitativa da realidade vivida. Ela possui uma dinâmica intrínseca que move o desejo da fé a

querer alcançar um novo referencial de experiência vivida. Por isso mesmo, na oração há uma auto-denúncia de inadequação sentida pelo modo

como se compreende a própria lógica com que se vive a vida. Deste modo, dela se deduz o movimento ontológico do ego.

Contudo, a oração, a partir do século 18, começa a ser entendida como sintoma de fragilidade racional do indivíduo religioso. Para

Immanuel Kant, na ontologia da oração a afirmação da insuficiência humana se dá de forma operante, uma franca demonstração de “dependência e

fraqueza racional”. Dependência, segundo a tradição escolástica, pressupõe limites ontológicos assumidos e auto-afirmados. Por essa razão, o

conceito de autonomia, no Ocidente pós-iluminista, legou sua chancela ontológica de “triunfo da razão” autodeterminada e emancipada. Fragilidade

das possibilidades auto-compreendidas é o nome que se dá à ontologia da oração para o filósofo iluminista alemão. Ademais, Ludwig Feuerbach

psicologiza negativamente a hermenêutica de sua semântica e interpreta como “manobra de escapismo” a função auto-terapêutica da oração,

significando, com isso, um “alívio” para o coração oprimido e para os segredos que angustiam a alma do cristão, a fim de possibilitar ao mesmo,

usando as próprias palavras de Feuerbach, a “certeza da realização dos seus desejos” (FEUERBACH, A Essência do Cristianismo, 1990).

A secularização subjetiva, da qual nos falou o sociólogo Peter Berger, despotenciou, do imaginário da fé religiosa, a angústia pela

eternidade, deslocando a atenção do indivíduo moderno do além-vida para a imediaticidade das tarefas cotidianas que decorrem do suor do trabalho,

empreendido pelo pragmatismo de uma nova geografia humana que se figura no horizonte axiológico da chamada “tecnópolis” (Harvey Cox). Desta

forma, o efeito colateral da psicologia da secularização tem eliminado, a partir desse contexto e, progressivamente, a possibilidade de se

experimentar uma existência reflexiva na prática/atitude de oração. A demanda por uma racionalidade funcional que seja capaz de produzir bons

dividendos para um tempo que custa “dinheiro”, e que satisfaz as exigências de um sistema axiológico que prioriza os resultados imediatos, acaba

criando um complexo de “inadequação” ontossocial naqueles que se submetem a uma outra lógica compreensiva de mundo, na qual se projeta o

futuro do presente a partir da esperança da fé vivida através da experiência de oração. Por que a prática da oração se tornou algo tão desinteressante

mesmo para o crente que vive no mundo moderno? O que há na modernidade que tornou praticamente desnecessário-supérflua a busca autêntica por

uma vida de oração?

Uma das afirmações mais perspicaz da modernidade tecnocrática é a de que o advento da ciência e tecnologia prescinde a necessidade

de se esperar por um milagre. A revolução tecnocientífica veio para resolver dilemas que exigem soluções rápidas. Sua promessa messiânica é a de

“trazer o céu para a terra” (lembrando as palavras de Karl Popper), transformando necessidades sentidas em realizações experimentadas. Para alguns

analistas sociais, não é a religião, mas o advento da tecnociência o ator protagonista de maior notabilidade da realização de milagres que se esperam

na sociedade moderna. As curas físicas, provenientes dos avanços tecnocientíficos, têm sido disponibilizadas àqueles que têm acesso financeiro a

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Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Teologia pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdades EST (PPG-EST), em São Leopoldo/RS. Professor

visitante no Instituto Superior de Teologia Luterana (ISTL) e colaborador pastoral na Igreja Confessional Luterana.
bons planos de saúde (“estratificação do acesso aos benefícios dela”, segundo Zygmunt Bauman), e que através destes (planos de saúde) eles podem

ver suas necessidades reais serem supridas imediatamente.

Deste contexto emerge uma variável de natureza sócio-psicológica que aumenta cada vez mais o desinteresse pela vida de oração. Trata-

se da “aceleração ontológica do tempo” produzido na era da globalização informacional, o qual opera com respostas precisas em “tempo real”.

Fenômenos acontecem e são mostrados de modo instantâneo. A velocidade como a vida se manifesta aumentou substancialmente. Deste feito da

“era informacional” se deduz uma nova postura psicológica que se evidenciou: a lógica de funcionamento ultra-veloz dos indivíduos em seus

processos interativos. Essa aceleração ontológica no modo de se relacionar no mundo da vida e com as coisas presentes nele acabou afetando a

subjetividade dos indivíduos na “vida real”. Sua psicologia passou a (re)agir com esta mesma disposição: a de querer respostas rápidas, em tempo

real, aos problemas que emergem do cotidiano. Este pragmatismo funcional, internalizado pela psicologia da vida moderna, gerou uma intolerância a

conceitos como “atraso”, “demora”, “retardamento”, e coisas do gênero.

Dispositivos psíquicos que se acionam na perspectiva desta funcionalidade pragmática da vida moderna fazem as coisas acontecerem

com a rapidez que se deseja para obter o que se quer. Esta cultura mental do “eu quero isso agora” tem gerado uma disposição mental cada vez mais

intolerante para o cultivo de uma vida de oração, bem como a paciência para esperar a concretização das metas que nela são colocadas e que

demoram a se transcorrer na própria biografia dos indivíduos. As novas igrejas evangélicas brasileiras, que promovem grandes concentrações

religiosas, alvitram soluções prodigiosas para problemas aparentemente insolúveis e de forma instantânea, em tempo relâmpago. As reuniões dessas

igrejas se tornaram um dos principais agentes de produção da “crença” (uma pseudopistia) de que “oração eficiente” é aquela que produz resultados

desejados instantaneamente.

No entanto, há ainda outra variável psicológica vivida pelos indivíduos (religiosos) no mundo da modernidade que tem servido de

justificação para o baixo interesse pela vida de oração. Trata-se do “medo de continuar acreditando” na eficiência política da providência enquanto se

ora, e ser frustrado por ela. Necessidades não supridas, ou os desejos não realizados que se acumulam ao longo da trajetória de fé dos evangélicos em

geral, formam a plataforma dos discursos das biografias daqueles (as) que se sentem fracassados na vida de fé. Um pedido solícito não concedido

pode exaurir, da esperança da fé, a obstinada motivação que produz o encanto pela oração. Ao orar, as pessoas religiosas procuram legitimar as

razões da fé que desejam ver confirmadas na experiência mística da prece, uma prova viva da existência de um Deus-Senhor que governa a história na

condição de um “Pai atencioso”. As respostas obtidas pelo pedido da fé acabam ganhando um significado apologético que deseja realçar a natureza

objetiva da relação viva e pessoal entre o sujeito solicitante e o Deus a ele revelado. Este é um fenômeno que pode ser compreendido como

“epifanização da bondade divina”, no qual se figura o gesto acolhedor que demonstra “encarnações históricas” do generoso amor de Deus pela sua

criação, e por nós juntamente com ela.

Uma última variável que parece alimentar o desinteresse pela vida de oração dos indivíduos nos dias de hoje é o “medo da reincidência”

de uma experiência de frustração com as expectativas subjetivas que não foram materializadas no cotidiano da fé. A angústia de uma espera que se

prolonga na psicologia da súplica pode significar uma dúvida em relação à realização ou não de um desejo externado pela “garganta da fé” no

contexto da oração. Os horizontes volitivos que se figuram entre as necessidades humanas e os desígnios de Deus nem sempre são convergentes. Na

dúvida, existe quase sempre um protesto da angústia que teme não estar a par da misteriosa gramática da vontade soberana de Deus. O

desconhecimento dos seus desígnios acaba cimentando a incerteza aflita da oração que teme nunca ser respondida por ele. Por isso é que nela (na

oração), a fé procura se alimentar da esperança de realizações que apontam para o telos da promessa, buscando, assim, romper com o horizonte da

tradição de uma existência marcada pela “negatividade histórica” (Hegel).

Estes parecem ser os principais motivos que estão presentes na base subjetiva da biografia dos indivíduos religiosos que se compreendem

inseridos em um tempo moderno de desencanto, no qual se revela o desinteresse cada vez mais crescente de milhares, quiçá, milhões de pessoas

religiosas pela prática oração. Afinal, o que a oração deve significar para a fé de um cristão no mundo moderno? Ela se tornou realmente
desnecessária? Estas perguntas podem apertar ainda mais o cinto da angústia trazido sempre para o contexto da oração. A vida na modernidade criou

um espaço ontológico no qual o interesse pela oração parece ter recuado. A compreensão que dela se desenvolveu é pragmático-funcional. Se ela não

consegue responder equitativamente às facilidades oferecidas pela vida moderna, que gera a comodidade desejada pelos indivíduos que foram feitos

refém da pressa e da velocidade extenuante, ela perde sua relevância, e com ela perde também seu potencial atrativo que no passado exerceu tanto

encanto.

Do ponto de vista da ontologia da fé, no entanto, a oração pressupõe uma vida de descanso na graça. A fisionomia da graça consegue

fazer com que a alegria da espera se transforme em “política de persistência da fé” (Rm 8,24-25). Viver cansado na graça não supõe viver com

desencanto. O apóstolo Paulo chega fazer a seguinte recomendação: “sejam perseverantes na oração” (Rm 12,12). Viver na graça significa caminhar

na vida mesmo quando o fôlego parece ser curto. Na ergometria da graça, o “correr na fé” implica realizar movimentos árduos que revitalizam a força

que não deságua no cansaço (Is 40,31). A graça de Deus se revela preciosa no “corredor estreito” da experiência do medo trazida para a linguagem de

fé da oração. Nela, este mesmo apóstolo que recomenda perseverança também pede para ser eximido da experiência de dor e de sofrimento (2Co

11,7-10). Mas é a partir dela (da experiência de oração) que ele também aprende a não desistir da vida permeada por temores e contradições, ao

ouvir o terno som da voz da providência dizer: “A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2Co 12,9).

Graça é o fôlego concedido por Deus àqueles que caminham cansados no itinerário da fé. Graça é o vento do Espírito que sopra e refresca

a alma atordoada que se sente asfixiada pelo mormaço quente da sensação de autodescrença. Graça é a exuberante luz que redime a visão míope,

trazendo a ela a organização perceptiva que define, com maior nitidez, as imagens que se entortaram na vida por conta da amargura desenvolvida no

pavoroso cemitério do desencanto. Acredite: a melodia da graça só encanta aos ouvidos de quem sofre na vida. É no contexto da negatividade que o

Deus-Senhor da história se torna o “totalmente-próximo” (Schillebeeckx). Pois somente no pavilhão do sofrimento que ela se revela como “esperança

inextinguível” (Moltmann) que produz a coragem que o “portador da fé” precisa para continuar caminhando, na imparcial dependência da

misericórdia de Deus, “transformando”, pela vocação política da oração, a incerteza do futuro em “convicção sobre o que ainda não foi provado”

(Erich Fromm).

Sendo assim, duas perguntas se fazem necessárias agora: Por que a oração se transformou em algo tão desinteressante e irrelevante para

os indivíduos do mundo moderno? Por que a oração se tornou impertinente para maioria das pessoas religiosas que vivem nele com desencanto do

presente e do futuro por conta das experiências negativas do passado que se acumularam e causaram nelas o desejo de desistir da própria vida de fé?

A resposta a essa pergunta pode ser ampla e complexa, mas também pode ser feita de maneira simples e objetiva: as facilidades do mundo moderno

criaram vícios que agora operam contra a natureza da própria fé na vida de oração: desaprendemos a esperar em Deus, a acreditar que ele pode

mudar tudo, inclusive nós, mesmo quando nada aparentemente acontece ao nosso redor. A mudança externa quase sempre vem precedida de uma

mudança interna que acontece no “quarto secreto”, revelando o “grande milagre” que opera na mente daqueles que aprenderam a esperar em Deus

e adquiriram, com isso, a “paciência” (makrothymia), e com ela, conseguiram obter a “maturidade da fé” (teleotheta). Este é o milagre que ainda

precisa acontecer na vida de fé dos cristãos modernos.

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