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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Faculdade Mineira de Direito

CIDADANIA E MOVIMENTOS POLÍTCOS NA REPÚBLICA VELHA

Meiriane Saldanha Ferreira Alves

BELO HORIZONTE
2012
Meiriane Saldanha Ferreira Alves

Cidadania e Movimentos Políticos na República Velha

Monografia apresentada ao Curso de Direito


da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para obtenção
do titulo de Bacharel em Direito.

Orientador: Wellington Teodoro da Silva

Belo Horizonte
2012
Meiriane Saldanha Ferreira Alves

Cidadania e movimentos políticos na República Velha

Monografia apresentada ao curso de Direito da


Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais como requisito parcial para obtenção do
título de bacharel em Direito.

____________________________________________
Dr. Wellington Teodoro da Silva(Orientador) – PUC Minas

____________________________________________
Dr. Adalberto Antonio Batista Arcelo

____________________________________________
Dr. Francis Albert Cotta

Belo Horizonte, novembro de 2012.


Dedico este trabalho aos meus familiares e amigos queridos que sempre
acreditaram que eu podia sonhar e realizar o improvável.
Agradecimentos

Agradeço ao meu marido, companheiro incansável nesta jornada, e na vida,


aquele que me deu mais do que podia e mais do que eu merecia.
Agradeço aos meus amigos fiéis, Ítalo e Laura pela alegria que me
transmitiram todos esses anos e pela confiança inabalável que me dedicaram.
Agradeço aos meus filhos por serem molas propulsoras do meu encontro com
o conhecimento verdadeiro.
Aos meus pais, irmãos e sobrinhas queridas pela admiração que depositam
em mim e pela compreensão da minha ausência.
Ao meu precioso orientador pelo seu olhar único e dedicado, pela paciência
nos momentos de aflição e pelo comprometimento quase altruísta com esse
trabalho.
A todos que de alguma maneira contribuíram para a construção deste
trabalho.
Podemos, assim, afirmar, sem receio, que o amor que um povo dedica a
seu direito, o qual defende com energia, é determinado pela intensidade do
esforço e da luta que esse bem lhe custou. (IHERING, 1999)
RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo investigar o tônus do conceito da conquista dos
direitos da cidadania pela população ou sua outorga pelo Estado no período da
República Velha Brasileira. Para isso, realizou-se um estudo nas obras do
historiador José Murilo de Carvalho sobre a cidadania no período da República
Velha, com apoio em outros autores para corroborar sua opinião e conhecer outros
pontos de vista sobre o assunto. Foi realizado um estudo bibliográfico das condições
econômicas, sociais, culturais e políticas da população em geral e dos diversos
setores da sociedade, que exerceram influencia ideológica no período estudado,
qual seja, de 1889 a 1930. A pesquisa investigou a participação desses grupos e da
população nos atos políticos e as reivindicações que apresentaram para descobrir
se houve ou não luta pela ampliação dos direitos da cidadania na República Velha.
Considerou-se os índices de participação política, e as premissas da ocorrência de
uma acentuada alienação política e apatia pela cidadania ativa em contraposição a
uma intensa identificação dentro da cultura popular, da religião, e da tradição
imperial. Considerou-se também o processo de construção histórica do imaginário
republicano em um percurso de criações simbólicas. O resultado obtido é que não
houve luta pela ampliação dos direitos da cidadania (políticos, civis e sociais). Cada
setor da população exigia um ou outro direito, não a cidadania plena como
conhecemos hoje. A cidadania não era um valor político em disputa na República
Velha Brasileira.
ABSTRACT

This dissertation aims to investigate the tone of the concept of the conquest of
citizenship rights by the population or its granting by the State during the period of
the Old Republic Brazilian. For this, we carried out a study in the works of the
historian José Murilo de Carvalho on citizenship in the period of the Old Republic,
supported by other authors to corroborate your opinion and know other views on the
subject. We conducted a bibliographic study of economic conditions, social, and
cultural policies of the general population and the various sectors of society, that
ideological influences exerted during the study period, from 1889 to 1930. The
research investigated the involvement of these groups in the population and political
acts and claims that had to discover whether there was struggle for expansion of
citizenship rights in the Old Republic. It was considered the indices of political
participation, and the assumptions of the occurrence of a sharp political alienation
and apathy for active citizenship as opposed to an intense identification within
popular culture, religion, tradition and imperial. It was also the construction process of
the historical imaginary Republican in a route of symbolic creations. The result is that
no struggle for expansion of citizenship rights (political, civil and social). Each sector
of the population demanded either right, not full citizenship as we know it today.
Citizenship was not a political value in dispute in the Brazilian Old Republic.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..............................................................................................10

2 A REPÚBLICA VELHA.................................................................................13
2.1 A formação do ideário republicano........................................................14
2.1.1 O Heroi Tiradentes................................................................................16
2.1.2 A figura feminina...................................................................................17
2.1.3 Bandeira e Hino: Tradições culturais..................................................18
2.2 O Coronelismo..........................................................................................20
2.3 A distribuição populacional na República Velha...................................26
2.4 Os anos finais da República Velha (1920 a 1930)..................................30

3 OS GRUPOS POLÍTICOS............................................................................33
3.1 Os positivistas..........................................................................................33
3.2 Os liberais................................................................................................35
3.3 Anarquistas, Socialistas e Sindicalistas Revolucionários..................37
3.4 Os militares...............................................................................................41
3.5 Os operários.............................................................................................44
3.6 Os Messiânicos........................................................................................46
3.7 As mulheres..............................................................................................47

4 CIDADANIA..................................................................................................50
4.1 Conceitos e Origens................................................................................50
4.2 Os movimentos pela ampliação de direitos..........................................52
4.4 O vazio da Cidadania na República Velha.............................................55

5 CONCLUSÃO...............................................................................................60

REFERÊNCIAS........................................................................................................62
10

1 INTRODUÇÃO

Esse trabalho propõe uma analise do tema cidadania ao longo do período da


República Velha (1889 a 1930). Busca-se amparo em trabalhos do historiador José
Murilo de Carvalho sobre este período.
A leitura desse autor nos permite propor que uma das razões fundamentais
das dificuldades da construção da cidadania brasileira está ligada, ao peso do
passado, mais especificamente, ao período colonial. As características do período
colonial que influenciaram na forma como o percurso da cidadania se deu podem ser
conhecidas na obra de Caio Prado Júnior, “Formação do Brasil Contemporâneo”
(2011), na qual ele evidenciou o sentido da colonização portuguesa no Brasil.
Segundo Caio Prado Junior a colônia foi concebida, pela lógica mercantilista,
apenas para fornecer artigos tropicais ao mercado europeu. Para cumprir essa
função econômica, na montagem do sistema colonial, preferiu-se pela mão de obra
escrava e pela sesmaria. Devido a essa especificidade, no Brasil colônia, o que mais
tarde chamaremos de cidadania foi negada quase a totalidade da população. Porém,
os negros foram os mais afetados, afirmação corroborada inúmeras vezes em
Carvalho.
Durante o período imperial, o exercício dos direitos civis e políticos
permaneceu restrito aos senhores de terra e à burocracia instalada no Brasil. Em
1872 os direitos políticos estavam restritos a apenas eram 13% da população . Em
1881 devido à proibição do voto dos analfabetos, o aumento das exigências para
comprovação da renda mínima e a voluntariedade do voto esta porcentagem cai
drasticamente até alcançar 0,8% da população que formava o grupo de cidadãos
que podia votar ou se eleger para cargos públicos. (CARVALHO, 2007, p 395)

Na prática, o número de pessoas que votavam era também grande, se


levados em conta os padrões dos países europeus. De acordo com o censo
de 1872, 13% da população total, excluídos os escravos, votavam. Segundo
cálculos do historiador Richard Graham, antes de 1881 votavam em torno
de 50% da população adulta masculina. Para efeito de comparação,
observe-se que em torno de 1870 a participação eleitoral na Inglaterra era
de 7% da população total; na Itália, de 2%; em Portugal, de 9%; na
Holanda, de 2,5%. O sufrágio universal masculino existia apenas na França
e na Suíça, onde só foi introduzido em 1848. Participação mais alta havia
nos Estados Unidos, onde, por exemplo, 18% da população votou para
presidente em 1888. (CARVALHO, 2002, p. 31)
11

A questão da cidadania na construção do Estado brasileiro no pós-


independência também enfrentou desafios relacionados ao fato de que no Brasil o
Estado antecedeu a nação. O povo excluído do exercício dos direitos civis, políticos
e sociais não se unia pelo sentimento de pertencer ao imaginário de nação
brasileira.
É recorrente entre os estudiosos do período a reflexão de que só com o
advento da Guerra do Paraguai o primeiro traço de sentimento de nação pôde ser
percebido entre os brasileiros. Assim, muitos dos retornados da guerra exigiram
maior participação no sistema político.
José Murilo de Carvalho em “Cidadania Tipos e Percursos” (1996) afirma que
um grande número de brasileiros que durante a colônia se mantinha totalmente
afastado da vida pública, preso, a sua “idiotia”, (entenda-se: não-cidadão) , com o
nascimento da República, saiu de seu paroquialismo e passou a se relacionar com o
Estado. Essas relações, segundo Carvalho (1996) se deram , nas eleições, no
serviço da Guarda Nacional, no júri, no Exército e na Armada.
Estudar os mecanismos políticos da República Velha é fundamental para a
compreensão dos fatos que construíram a história da cidadania no Brasil devido à
fundação de matrizes políticas que permaneceram em cena ao longo de todo o
período republicano, tais como os grupos liberais, marxistas, nacionalistas,
socialistas sindicalistas, católicos intelectuais entre outros que serão tratados mais
adiante nesse trabalho.
Tais grupos foram importantes no sentido de disseminar ideias,
principalmente trazidas do estrangeiro, que por fim culminaram, na medida de suas
proporções, na conquista da cidadania, entendida aqui como os direitos políticos,
civis e sociais.
No período da República Velha encontramos movimentos políticos cujas
ideias defendidas nos são úteis para pensar a cidadania como valor político no
período. De antemão, afirmamos que esse estatuto político da pessoa (cidadania)
não era um valor explícito nesses movimentos. Talvez os valores da cidadania não
fossem negados por alguns deles, no entanto, não eram explicitamente defendidos.
No segundo capítulo tratar-se-á das principais características do regime
republicano com ênfase no coronelismo, a estrutura de poder político e econômico
com raízes na monarquia que perdurou por toda a República Velha. Outras
determinantes da história política brasileira nesse período abordadas neste capítulo
12

são: a recém-abolida escravidão, a grande propriedade rural e o comprometimento


do Estado com o poder privado. Ainda no segundo capítulo com apoio na obra de
Edgar Carone “A República velha: Instituições e classes sociais” (1972) analisar-se-
á a distribuição populacional no período, assim como a repercussão da Proclamação
da República nos setores da elite, intermediário e população rural. O capítulo tratará
também da formação do ideário republicano forjado entre disputas das três correntes
republicanas: os positivistas, os liberais e os jacobinos.
No terceiro capítulo tratar-se-á dos grupos políticos e sua relação com o
regime republicano. Será feita análise de suas aspirações com o objetivo de
compreender sua conexão com a cidadania. Neste capítulo serão evidenciados os
setores da população que se engajaram em lutas e reinvindicações para alterar seu
status na sociedade republicana, quais sejam, os operários, os militares, os
messiânicos e as mulheres.
O quarto capítulo abordará a cidadania, seu conceito clássico e os tipos de
percursos possíveis para seu alcance, também a relação do valor “cidadania” com
os ideais das três correntes republicanas e a ebulição ideológica nos movimentos
pela ampliação da participação.
Por fim tratar-se-á da efetividade da cidadania no período da República Velha,
os direitos conquistados e os não conquistados, muitas vezes nem almejados que
produzem o vazio da cidadania como um valor politicamente considerado.
13

2 A REPÚBLICA VELHA

O Partido Republicano foi fundado em 1870 em São Paulo por liberais


radicais. Ao mesmo tempo, em todo o país surgiram imprensa e movimentos com
ideais semelhantes, vale o destaque aos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio
Grande do Sul. O Manifesto do Partido Republicano1 foi o grande basilar da
propaganda republicana. O seu texto manifesta a defesa da discussão política, os
instrumentos pacíficos da liberdade, a revolução moral e os meios amplos do direito
como condutores ao progresso e a grandeza da pátria.
Em 15 de novembro de 1889, aconteceu a Proclamação da República,
liderada pelo Marechal Deodoro da Fonseca. Nos primeiros cinco anos da
República, o Brasil foi governado por militares, após esse período, governaram
presidentes civis emergidos dos estados que se alternavam no poder. Apoiados
pelos grandes proprietários de terras, sua linha de governo pautava-se sempre pela
proteção de seus apoiadores.
José Murilo de Carvalho assevera que a Proclamação da República não
comoveu as camadas populares, visto que o movimento republicano só atingia
alguns setores da elite econômica e intelectual, tais como cafeicultores irritados com
a abolição da escravidão, além da classe média urbana, médicos, professores,
advogados, jornalistas, engenheiros, estudantes de escolas superiores, e militares.
Em suas palavras: “[...] Além disso, o ato da proclamação em si foi feito de surpresa
e comandado pelos militares que tinham entrado em contato com os conspiradores
civis poucos dias antes da data marcada para o início do movimento” (CARVALHO,
2002, p.80).
Aristides Lobo2, em sua coluna no "Diário Popular" de São Paulo alguns dias
após a Proclamação, descrevendo o acontecimento cunhou a polêmica frase que
nos direciona nesse trabalho: "O povo assistiu àquilo bestializado".

1
Declaração publicada pelos membros dissidentes do Partido Liberal liderados por Quintino
Bocaiúva e Joaquim Saldanha Marinho
2
Jurista, político, jornalista republicano e abolicionista.
14

2.1 A formação do ideário Republicano

A República Velha é um período particularmente importante para o estudo da


cidadania. Pelo fato de que, neste período tinham destaque os republicanos
históricos e os signatários do Manifesto do Partido Republicano, que propunham
trazer o povo para as discussões da atividade política.

[...] tratava-se da implantação de um sistema de governo que se propunha ,


exatamente, trazer o povo para o proscênio da atividade política. A
República, na voz de seus propagandistas mais radicais, como Silva Jardim
e Lopes Trovão, era apresentada como irrupção do povo na política, na
melhor tradição da Revolução Francesa de 1789, a “revolução adorada”,
como a chamava Silva Jardim. (CARVALHO, 2005b, p.11)

Entretanto a República não trouxe grandes inovações para o alargamento dos


direitos políticos, civis e sociais. E Apesar de todas as leis que restringiam o direito
ao voto e da pouca confiabilidade das eleições, não houve no Brasil, até 1930,
movimentos populares exigindo maior participação eleitoral. Excetua-se o
movimento pelo voto das mulheres, mas que por fim só foi alcançado após 1930.
Muitas razões foram apontadas como motivadoras da apatia popular pelo
exercício desse direito. José Murilo de Carvalho (2002) considera determinante a
falta de experiência prévia e a falta de independência para que o cidadão exercesse
suas obrigações cívicas sem ceder às pressões dos senhores de terras. Carvalho
aponta os equívocos cometidos na analise da participação popular:

Os críticos da participação popular cometeram vários equívocos. O primeiro


era achar que a população saída da dominação colonial portuguesa
pudesse, de uma hora para outra, comportar-se como cidadãos atenienses,
ou como cidadãos das pequenas comunidades norte-americanas. O Brasil
não passara por nenhuma revolução, como a Inglaterra, os Estados Unidos,
a França. O processo de aprendizado democrático tinha que ser, por força,
lento e gradual. (CARVALHO, 2002, p.43)

O segundo equívoco, segundo o autor, está na expectativa da democracia.


Para ele não apenas os eleitores estavam despreparados para exercê-la, mas o
governo e as elites (grandes proprietários, os oficiais da Guarda Nacional, os chefes
de polícia e seus delegados, os juízes, os presidentes das províncias ou estados, os
chefes dos partidos nacionais) também estavam, visto que esses setores fraudavam
eleições e dirigiam os votos.
15

José Murilo de Carvalho aponta três características que causaram esse


despreparo de todos os setores da sociedade, que são: o país republicano herdou a
escravidão, que negava a condição humana do escravo, herdou a grande
propriedade rural, fechada à ação da lei, e herdou um Estado comprometido com o
poder privado. Em sua opinião, estas três características condicionaram o percurso
da cidadania no período com ênfase na conquista dos direitos civis.
Podemos buscar apoio ainda nos ensinamentos de Marshall, que considera a
cidadania também pelo viés inverso dos direitos, ele entende que as obrigações
invocadas com a cidadania são aquelas que exigem que os atos dos indivíduos
“sejam inspirados por um senso real de responsabilidade para com o bem-estar da
comunidade.” (MARSHALL, 1967, p.104).
Sendo assim, os setores: população, governo e elite não estavam preparados
para a cidadania e em síntese não a desejavam no período republicano aqui
estudado.
Devido ao que Carvalho chamou de “nula participação popular” na
proclamação da República e a derrota dos esforços de participação nos anos
seguintes, importa analisar sobre que pilares se ergueu e sustentou a República
além dos conhecidos arranjos oligárquicos.
Nascida a República, era necessário lhe dar legitimidade, criando um mito de
origem para compensar a supra tratada apatia popular. Na obra “A Formação das
Almas: O Imaginário da República no Brasil” (2005a) Carvalho, discorre sobre o
processo de legitimação do regime republicano por meio dos símbolos.
Em uma franca tentativa de adesão à república, não só dos setores
dominantes, quanto da população em geral, participaram da elaboração de um
ideário republicano, cada uma a sua medida, as três correntes republicanas: a
liberal, a jacobina e a positivista.
A ideologia do novo regime não poderia ser transmitida por discursos, pois
estes eram incompreensíveis pela maioria da população, era necessário usar
símbolos acessíveis a uma população com pouca educação formal.

A elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de


qualquer regime político. É por meio do imaginário que se podem atingir não
só a cabeça, mas, de modo especial, o coração, isto é, as aspirações, os
medos e as esperanças de um povo. É nele que as sociedades definem
suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu
passado, presente e futuro. O imaginário social é construído e se expressa
16

por ideologias e utopias, sem dúvida, mas também _ e é o que aqui me


interessa_ por símbolos, alegorias, rituais, mitos. Símbolos e mitos podem,
por seu caráter difuso, por sua leitura menos codificada, tornar-se
elementos poderosos de projeção de interesses, aspirações e medos
coletivos (Carvalho, 2005a, p.10)

.
Assim, devido a ausência de participação popular na formação da República,
o caminho para legitimação desta só poderia se dar pelo convencimento do povo.
Para tanto, os propagandistas da República uniram a doutrina de Auguste Comte 3
com a visão dos positivistas ortodoxos e construíram símbolos nacionais de imagens
e ritos além da palavra escrita e falada.
Carvalho destaca que os positivistas lutavam pelo coração e pela cabeça dos
cidadãos por meio da batalha dos símbolos (monumentos, mito de Tiradentes,
bandeira republicana e figura feminina). (CARVALHO, 2005a, p.140)
É importante destacar que os grupos políticos republicanos preocupavam-se
com o Estado, e em determinadas situações com um ou outro dos três direitos
contemplados pelo conceito da cidadania. Dentre a simbologia utilizada por eles
para promover a legitimação da república também não se encontra nenhum
elemento que expresse a busca pela cidadania plena. O que será demonstrado a
seguir.

2.1.1 O Herói Tiradentes

O imaginário republicano precisava de um herói que pudesse forjar uma


identificação coletiva. A escolha de Tiradentes para o papel de mártir se deu porque
Tiradentes simbolizava a Independência, a Abolição, e a República, e seria bem
aceito em todos os setores do novo regime.
Dentre os fatores apontados por José Murilo de Carvalho para a escolha de
Tiradentes está o apelo à tradição cristã do povo que não demorou a ver em
Tiradentes um cristo cívico, o que o coloca em posição de preferencia contra seus
concorrentes ao posto de herói republicano, quais sejam: as personalidades da
Independência e Proclamação da República , Deodoro da Fonseca, Floriano
Peixoto, Benjamim Constant e o Frei Caneca.

3
Filósofo e sociólogo francês fundador do positivismo
17

O outro fator importante apontado por Carvalho para a escolha de Tiradentes


como herói republicano é a localização geográfica:

Um dos fatores que podem ter levado à vitória de Tiradentes, é sem dúvida
o geográfico. Tiradentes era o herói de uma área que, a partir da metade do
século XIX já podia ser considerada o centro político do País _ Minas
Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, as três capitanias que ele buscou , num
primeiro momento tornar independentes. Aí também foi mais forte o
republicanismo. (Carvalho, 2005a, p.67)

Para Carvalho a figura de Tiradentes tocava os sentimentos de todos os


setores da população, todos se identificaram com ele, “[...] ele operava a unidade
mística dos cidadãos” (2005a, p. 68). Tiradentes os unia em torno de um ideal de
independência, república e liberdade. Nenhum desses conceitos idealizados na
figura de Tiradentes, entretanto, contempla o valor “cidadania”.

2.1.2 A figura feminina

Os estrategistas da República inspiraram-se na Revolução Francesa, que


possuía a mulher como símbolo da liberdade, da revolução e da República. Os
franceses por sua vez inspiraram-se em Roma onde a figura feminina era símbolo
da liberdade. Os positivistas associaram a essa figura feminina clássica, a virgem-
mãe de Auguste Comte, que considerava o altruísmo da virgem - mãe, elemento
capaz de simbolizar com perfeição a humanidade, pois apenas o altruísmo poderia
fornecer a base de convivência na nova sociedade.

Os artistas positivistas brasileiros, especialmente Décio Villares e Eduardo


de Sá, foram os únicos politicamente militantes no mundo das artes
plásticas. A eles se devem várias obras, entre pinturas, esculturas e
monumentos. A figura da mulher é aí onipotente, embora como referido,
represente antes a humanidade, ás vezes a pátria, do que a república. Mas
mesmo na França, houve frequente deslizamento no significado da figura
feminina. A república, a revolução, a liberdade e a pátria frequentemente se
intercambiavam daí não ser fora de propósito incluir a humanidade na lista.
(Carvalho, 2005a, p. 84)

Apesar do esforço dos artistas positivistas em transformar a figura feminina,


em uma alegoria cívica brasileira, pode-se dizer que fracassaram. Carvalho explica
que, diferentemente do que ocorreu na França, a figura feminina não conseguiu se
firmar como figura cívica no Brasil.
18

O regime, obviamente apresentou inúmeros problemas já no início, mas aqui


não se tratará de descrevê-los, basta dizer que frustrou a muitos dos seus
fundadores. Diante das insatisfações com o novo regime, caricaturistas 4 passaram
logo a ridicularizar a República, retratando a mulher que a representa como uma
meretriz, tornando-se essa representação dominante entre os escritores, jornalistas
e artistas da época. Era recorrente a representação da república vigente como figura
de mulher abatida, velha e decadente em contraponto à “República dos sonhos”.
Segundo Carvalho, a insatisfação atingia até mesmo os propagandistas do
regime. Como exemplo tem-se Joaquim Saldanha Marinho, importante fundador do
Partido Republicano e autor da célebre frase “Não era essa a República dos meus
sonhos”.

Os obstáculos ao uso da alegoria feminina eram aparentemente


intransponíveis. Ela falhava dos dois lados - do significado, no qual a
República se mostrava longe dos sonhos de seus idealizadores , e do
significante, no qual inexistia a mulher cívica , tanto na realidade como em
sua representação artística. (CARVALHO, 2005a, p. 96)

Carvalho explica o fracasso do símbolo feminino na ausência de raízes


sociais e culturais no Brasil que alimentassem tal símbolo, Na França as mulheres
foram protagonistas de várias das batalhas que culminaram na Revolução, algumas
se tornaram heroínas e verdadeiros símbolos da Republica revolucionária. No Brasil,
essa identificação não existiu.
Quanto aos valores associados a essa figura não se encontra também
nenhuma conexão estrita com a cidadania, sua inspiração era a humanidade, a
revolução, a liberdade e a república.

2.1.3 Bandeira e Hino: Tradições profundas

A Bandeira Nacional e o Hino, ao contrário da figura feminina e do herói, eram


elementos obrigatórios da nação e deveriam ser estabelecidos legalmente. A disputa
entre as correntes ideológicas para apoderar-se do projeto foi acirrada, e segundo
Carvalho, curta em relação às outras referentes ao herói e a alegoria feminina.

4
Os caricaturistas citados por José Murilo Carvalho são: Vasco Lima (1913), K. Lixto (1913), J. Carlos
(1909), Raul (1903), C. do Amaral (1902), A. A (1895).
19

Nesse ponto também Carvalho identifica a única conquista popular na engenharia do


ideário republicano.
Os republicanos não tinham hino próprio, utilizavam La Marseillaise5, que a
propósito era utilizado por todos os outros países em revolução. Tal hino não
despertava a identificação da população brasileira, pelos mesmos motivos da não
identificação com a figura da mulher revolucionária.

Jornalistas ligados ao governo já tinham insistido na necessidade de não


6
trocar o hino, lembrando que a música de Francisco Manuel já se enraizara
na tradição popular, já se tornara símbolo da nação antes que de um regime
político. Raul Pompéia era dessa opinião. Não acreditava em hinos de
encomenda, desligados das alegrias e desespero de um povo.
(CARVALHO, 2005a, p.125)

Após realização de concursos para letra e música de um novo hino, o que


prevaleceu mesmo foi o hino tradicional, da época da monarquia.
Carvalho narra o episódio em que a banda oficial toca o hino monárquico na
frente do palácio e é acompanhada efusivamente pela população que o cantava com
alegria nas ruas, consagrando assim a prevalência do hino monárquico sobre La
Marseillaise ou qualquer outro que pudesse vir a ser apresentado. (CARVALHO,
2005a, p.125).
O mesmo ocorreu com a bandeira. Embora tendo ocorrido a tentativa de
confecção de uma semelhante à americana, acabou prevalecendo a bandeira do
império modificada pela inserção da frase “Ordem e Progresso” acrescida pelos
positivistas por recomendação de Comte. A bandeira deveria simbolizar uma ligação
entre o passado e o presente e tal frase deveria servir a isso.
Tanto a bandeira quanto o hino tiveram mais sucesso na identificação coletiva
do que a figura feminina e o herói Tiradentes, pois estavam mais ligados às
tradições já internalizadas pela população.
Carvalho considera que os esforços dos propagandistas na formação do
ideário republicano em geral caiam no vazio e prestava-se ao ridículo, justamente
por não haver raízes populares que o sustentassem, poucos setores da população
educada e urbana conectavam-se com os ideais republicanos e apenas nos
momentos em que os propagandistas fizeram uso de tradições populares profundas
obtiveram êxito (Bandeira e Hino).
5
Hino nacional da França. Foi composto por Claude Joseph Rouget de Lisle em 1792,
6
compositor, maestro e professor brasileiro autor da melodia do atual Hino Nacional Brasileiro.
20

só quando se voltou para tradições culturais mais profundas , às vezes


alheias à sua imagem, é que conseguiu algum êxito no esforço de se
popularizar , foi quando apelou à Independência e `a religião no caso de
Tiradentes: aos símbolos monárquicos , no caso da bandeira: à tradição
cívica no caso hino. Eram frequentes as queixas dos republicanos em
relação à falta de capacidade do novo regime de gerar entusiasmos.
(Carvalho, 2005a, p.128)

Na conclusão do livro supracitado, Carvalho reafirma a reflexão de que o


projeto de formar um imaginário republicano para expandir a legitimidade do regime
entre os populares não teve êxito, principalmente devido à falta de envolvimento
popular na implantação do novo regime. Deste insucesso, entretanto excetuam-se
os compromissos com a tradição imperial e os valores religiosos que se mostraram
absorvidos pelo povo.
Importa destacar que na engenharia da formação da alma republicana aqui
demonstrada a participação popular foi restrita e seus idealizadores não buscavam
conexão entre os direitos da cidadania e o pertencimento da população ao novo
regime.

2.2 O Coronelismo

Durante o período estudado nesse trabalho, O Brasil era organizado sobre


bases rurais e essa organização agrícola dominou a economia. Os principais
produtos exportáveis eram o açúcar, o algodão e o café. O cultivo e a venda desses
produtos ancoravam a economia nacional. Conforme os dados levantados por
Edgard Carone em “A República Velha, Instituições e Classes Sociais” (1972):

Na última década do século XIX, as zonas de povoamento praticamente


continuavam a ser o que tinham sido nos séculos passados. A população
brasileira espalhava-se pelas zonas litorâneas (Nordeste, regiões Leste e
Sul), pelo planalto paulista e central , pelos vales do São Francisco e do
Amazonas, pela região serrana e pelos pagos do Rio Grande do Sul. [...] A
abertura de novas regiões, durante os séculos XIX e XX , deveu-se a novos
fatores: o café nos Estados de Minas , Rio de Janeiro e São Paulo; a
pequena propriedade no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Espírito
Santo; e a borracha no vale do Amazonas. (CARONE, 1972, p.9)

Por ser a sociedade rural a base estrutural do Brasil no recorte temporal que
aqui se pretende estudar, vale destacar como ela se compunha, esmiuçando as
21

características do coronelismo, uma estrutura de poder característica do Brasil rural


desde a monarquia.
Segundo José Murilo de Carvalho em “Cidadania no Brasil: Um longo
caminho” (2002), a República Velha ficou conhecida como "república dos coronéis".
Coronel era o posto mais alto na hierarquia da Guarda Nacional no Império,
depois do declínio da Monarquia e o consequente enfraquecimento da guarda real,
que deixou de ser um braço militar do governo, os mesmos coronéis da Guarda e
outros que assim passaram a ser chamados por serem proprietários de terras
exercendo funções de líderes locais, passaram a exercer também o poder político.
O coronel era a pessoa mais poderosa política e economicamente do
município. O coronelismo na definição de José Murilo de Carvalho (2002) era a
aliança desses chefes com os governadores dos estados e desses com o presidente
da República. Essa teia de governo marcou toda a história econômica, social e
política da República Velha.
Vitor Nunes Leal, em seu livro “Coronelismo Enxada e Voto” (1997) define o
coronelismo como uma forma peculiar de manifestação do poder privado, o que ele
chama de coexistência do poder privado e do regime político de extensa base
representativa.

O coronelismo é, sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre


o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influencia
social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Não é
possível, pois, compreender o fenômeno sem referencia à nossa estrutura
agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder
privado ainda tão visíveis no interior do Brasil. (LEAL, 1997, p. 40)

As principais características do coronelismo são o mandonismo, o filhotismo,


o falseamento do voto e a desorganização dos serviços públicos locais. (LEAL,
1997). A conjugação desses fatores formava uma teia de troca de favores entre os
chefes locais o governo estadual e federal, para exercer o poder sobre o povo que
ocupava suas terras.
Os traços principais da vida política dos municípios do interior podem ser
compreendidos a partir da figura do coronel, que era sempre uma pessoa com
enorme influencia, por ter excelente situação econômica e derivado disso,
considerável prestigio político, ele é a grande figura de liderança no meio rural.
Entretanto, segundo Leal (1997), os chefes locais poderiam ser também homens
22

formados no ensino superior com espírito de comando e geralmente apadrinhados


por coronéis tradicionais.
Existia uma grande quantidade de pessoas miseráveis que viviam e
dependiam da terra do coronel, para essas pessoas o fato do coronel ser rico o
fazia superior, digno de ser obedecido e temido. Ele atuava muitas vezes como juiz
entre seus comandados, decidindo conflitos e emanando decisões que eram sempre
respeitadas. Carvalho refere-se ao empecilho à cidadania criado pelo coronelismo
da seguinte maneira:

O coronelismo não era apenas um obstáculo ao livre exercício dos direitos


políticos. Ou melhor, ele impedia a participação política porque antes
negava os direitos civis. Nas fazendas, imperava a lei do coronel, criada por
ele, executada por ele. (CARVALHO, 2002, p. 56)

Vitor Nunes Leal (1997) destaca entre os principais traços da sociedade a


ausência de setores intermediários. Só havia os muito necessitados ou os muito
abastados, sendo assim o roceiro só podia contar com o coronel para lhe socorrer
com empréstimo, fiado ou qualquer auxilio em momentos de apuros.
Sendo a população tão dependente financeira e moralmente do coronel, é
fácil deduzir que fariam o que ele ordenasse, principalmente nos assuntos da
política, (mais precisamente nas eleições) a qual não entendiam e pela qual não
tinham interesse. Entretanto há entendimentos diversos, o próprio José Murilo de
Carvalho em “Cidadania Tipos e Percursos” (1996) elenca inúmeras reações
negativas da população à política estatal, tais como a Revolta de Canudos,
Contestado e da Vacina, entre as mais vultosas.
Segundo Leal, o coronel comanda um lote considerável de votos de cabresto
e faz valer os votos da maneira que o beneficiem, eis aí o falseamento das eleições,
em que o voto era duvidoso e a apuração manipulada.
Por diversos fatores a quantidade de grandes propriedades agrárias foi
ficando cada vez menor, isso não quer dizer que diminuiu a extensão do Brasil rural,
absolutamente, apenas que as terras foram sendo parceladas na medida do declínio
dos grandes proprietários. Leal (1997) atribui a esse fator a facilitação da
descentralização do poder político. Essa descentralização evidenciava-se no
processo eleitoral, onde o coronel ou o chefe local comandava o processo desde o
23

financiamento até a coerção dos eleitores para que votassem no candidato indicado
pelo coronel.
Com relação às despesas eleitorais, pode-se dizer que eram altas, devido
principalmente às grandes distancias a serem enfrentadas. São os fazendeiros e
chefes locais que financiam o alistamento eleitoral e as eleições propriamente ditas.
Neste sentido, encontramos em Leal:

A maioria do eleitorado brasileiro reside e vota nos municípios do interior. E


no interior o elemento rural predomina sobre o urbano. Esse elemento rural,
como já notamos, é paupérrimo. São, pois, os fazendeiros e chefes locais
quem custeiam as despesas do alistamento e da eleição. Sem dinheiro e
sem interesse direto, o roceiro não faria o menor sacrifício nesse sentido.
(LEAL, 1997, p.56)

O coronel paga todas as despesas dos trabalhadores rurais com a votação,


visto que estes não poderiam arcar com transporte, alimentação e alojamento para
as viagens que enfrentavam para votar, além disso, recebiam ainda, roupas, sapatos
e chapéus para a viagem.
Quanto à afirmação anterior de que o roceiro não se interessa pela política.
Carvalho em “Os Bestializados, O Rio de Janeiro e a República que não foi” (2005b,
p.147) aponta entre a maior parte da população, uma ausência de visão da política
como um campo em que os cidadãos podem se reconhecer como coletividade, a
população não se sente responsável pela política, apenas comparece a eleição para
fazer a vontade de quem lhe está financiando.
Quanto à visão política do coronel, Leal acredita que erroneamente se atribui
ao chefe local uma falta de espírito público, em seu ponto de vista trata-se de um
engano auferir ao coronel falta de espírito público pelos seguintes motivos:

A falta de espírito público, tantas vezes irrogada ao chefe político local, é


desmentida, com frequência, por seu desvelo pelo progresso do distrito ou
município. É ao seu interesse e à sua insistência que se devem os
principais melhoramentos do lugar. A escola, a estrada, o correio, o
telegrafo, a ferrovia, a igreja, o posto de saúde, hospital, clube, o campo de
football, a linha de tiro, a luz elétrica, a rede de esgotos, a água encanada
―, tudo exige seu esforço, às vezes um penoso esforço que chega ao
heroísmo. (LEAL, 1997, p. 58)

Reunindo esforços ou arcando sozinho com os custos, o chefe local conserva


sua liderança com a execução dessas melhorias.
24

Leal acredita que essa acusação de falta de idealismo político na verdade se


relaciona com o fato de que o coronel defende os interesses do seu local, não se
alinhando aos ideais da pátria. Isso devido ao fato de que no dia a dia da
administração pública o chefe local, coronel, deve concentrar-se na manutenção do
seu poder, não tem tempo ou interesse em ocupar-se de grandes causas nacionais.
Essa manutenção de poder concretiza-se a partir de alguns fatores, como por
exemplo, o mandonismo 7. Essa questão demandaria um estudo mais demorado,
pois há um movimento de afrouxamento e acirramento da hostilidade entre os
adversários antes, durante e após as eleições, ambos os deslocamentos trazem
inúmeras consequências para o município.
Outro fator relevante na estrutura pública do interior era a desorganização.
Existia grande dificuldade em conseguir funcionários capazes para trabalhar no
governo e a isso se aliava o filhotismo, ou seja, o apadrinhamento. O filhotismo para
Leal (1997) é a chamada dos agregados do chefe local para o trabalho municipal.
Soma-se a este esse conjunto de características ao qual Leal chama de
anarquia administrativa, o uso do dinheiro, bens e serviços do governo nas eleições.
O autor destaca ainda que havia entre os governantes estaduais, os coronéis
e outros chefes de grupos ou correntes, conchavos intermináveis, trocas de favores
e muita reciprocidade.
José Murilo de Carvalho em suas diferentes obras e principalmente em
“Cidadania no Brasil. O longo caminho” (2002) define três características
fundamentais da estrutura da República Velha: a recém-abolida escravidão, a
grande propriedade rural e o comprometimento do Estado com o poder privado, as
duas últimas muito consonantes com o entendimento de Vitor Nunes Leal (1997) até
aqui apresentados.
Nas palavras de Carvalho:

A herança colonial pesou mais na área dos direitos civis. O novo país
herdou a escravidão, que negava a condição humana do escravo, herdou a
grande propriedade rural, fechada à ação da lei, e herdou um Estado
comprometido com o poder privado. Esses três empecilhos ao exercício da
cidadania civil revelaram-se persistentes. (CARVALHO, 2002, p. 45)

7
Mandonismo é a perseguição dos adversários políticos. (LEAL, 1997, p.61)
25

Para Carvalho, (2002) as consequências da escravidão não atingiram apenas


os negros. Do ponto de vista que aqui nos interessa - a formação do cidadão - a
escravidão afetou tanto o escravo como o senhor. O senhor não reconhecia nos
escravos a condição de sujeito de direitos iguais aos dele. Se um estava abaixo da
lei, o outro se considerava acima. A libertação dos escravos não trouxe consigo a
igualdade efetiva. Essa igualdade era afirmada nas leis, mas negada na prática.
Períodos de transição têm essa característica em geral, pois a transição de um
regime para outro é um momento de conscientização dos indivíduos para que se
adequem aos novos rumos que a sociedade tomou. A efetividade e a eficácia do
direito muitas vezes deixam a desejar nesses períodos de adaptação.
A efetividade do direito refere-se ao fato das normas jurídicas serem
respeitadas tanto por seus aplicadores como seus destinatários. Já a eficácia, é o
cumprimento da finalidade para qual a norma foi gerada , uma lei é eficaz quando
cumpre a sua função social. Importa dizer que para que uma norma seja eficaz ela
necessariamente deve ser efetiva. Em relação aos negros a Lei Aurea (Lei Imperial
n.º 3.353) de 1888, extinguiu a escravidão no Brasil mas não cumpriu integralmente
sua função social visto que os negros continuaram relegados aos porões brasileiros
por muitos anos.
No artigo “Cidadania brasileira: o negro e o uso do espaço público e privado
em São Paulo” (1900-1937), Ieda Marques Brito esclarece a situação do negro em
São Paulo:
Na cidade de São Paulo, durante o largo período de 1900 a 1937, por
exemplo, é possível registrar, de um lado, ações de segmentos
populacionais negros em processo de afirmação de seus direitos de
cidadãos e de outro, resistências e escamoteações dos mesmos,
manifestadas por vários setores da sociedade. Tratava-se, ainda, da difícil
assimilação do negro como um dos componentes centrais da nova
sociedade brasileira e, principalmente, enquanto agente de seu destino.
(BRITO,1987)

Se em uma área urbanizada, com maior número de pessoas esclarecidas de


seus direitos, as relações de davam neste nível danoso, há que se entender que no
meio rural as situações-problema eram muito mais densas. Os lastros da escravidão
mesmo após o seu fim acarretaram extrema desigualdade social e concentração de
poder, o liberalismo adquiria um sentido de consagração da desigualdade.
26

Condicionada pelas características supracitadas a população rural era


extremamente dependente da figura do proprietário das terras, Carvalho pondera
que o povo não conhecia direitos alheios à figura do coronel nos seguintes termos:

O direito de ir e vir, o direito de propriedade, a inviolabilidade do lar, a


proteção da honra e da integridade física, o direito de manifestação, ficavam
todos dependentes do poder do coronel. Seus amigos e aliados eram
protegidos, seus inimigos eram perseguidos ou ficavam simplesmente
sujeitos aos rigores da lei. Os dependentes dos coronéis não tinham
alternativa senão colocar-se sob sua proteção. Várias expressões populares
descreviam a situação: "Para os amigos, pão; para os inimigos, pau."
(CARVALHO, 2002, p.57)

Carvalho considera ainda que: “Não havia justiça, [...] não havia poder, não
havia cidadãos civis”. (CARVALHO, 2002, p.57.) Essa configuração da sociedade
apesar de permitir o voto não garantia o exercício independente desse direito .

2.3 A distribuição populacional na República Velha

Após a implantação da República e até 1930 o Brasil ainda era um país


predominantemente agrícola. Segundo o censo de 1920, apenas 16,6% da
população vivia em cidades de 20 mil habitantes ou mais, e 70% se ocupava em
atividades agrícolas nas áreas rurais.
Edgar Carone (1972) afirma que o aumento populacional era lento e coaduna
com Carvalho ao afirmar que: “[...] O crescimento demográfico mantém essa
característica, além de uma constante preponderância da população rural sobre a
urbana (de 60%, em 1872, para 64% em 1900 e 70% em 1920)”. (Carone, 1972,
p.11). Observa-se nesse dado uma linearidade desde as duas últimas décadas do
Império até três décadas depois da Proclamação da República.
A República Velha foi dominada pelos estados de São Paulo, Rio Grande do
Sul e Minas Gerais, cuja riqueza, sobretudo de São Paulo, era baseada no café.
Havia, naturalmente, variações determinadas pelo poder econômico dos estados e
essas variações também ocorriam no poder dos coronéis dos estados do eixo
central e periférico do cenário político nacional.
Em relação ao povo urbano, no decorrer da República Velha a estratificação
social já referida neste trabalho que se baseava na polaridade dos coronéis e seus
dependentes, foi aos poucos sendo modificada. Segundo Carone (1972) o
27

aceleramento da divisão social do trabalho, resulta em mudanças dos velhos setores


sociais e aparecimento de novos, sobre a nova configuração social acrescenta:

Dependentes da dinâmica agrária, temos três processos paralelos: o da


formação de uma classe média comerciante e o início da transformação do
imigrante em pequeno proprietário, ou sua migração do campo para a
cidade. (CARONE, 1972, p.150)

O imigrante deve ser considerado na estrutura da República Velha, tanto na


economia agrária quanto no trabalho urbano, segundo Carone “[...] Os dados
confirmam que a maioria esmagadora de trabalhadores, no cultivo de café, é
estrangeira, com uma porcentagem superior a 80%.” (CARONE, 1972 p.150).
Segundo esse autor essa presença de imigrantes, em sua maioria, europeus,
imprime visões de mundo diferentes e provoca ebulições sociais marcantes.
Em relação à burguesia que nasce e se desenvolve na primeira república
pode-se dizer que se dividiu em algumas camadas, sem, contudo, formar uma forte
burguesia nacional, Carone as classifica da seguinte forma: burguesia mercantil,
composta em sua maioria por portugueses importadores e exportadores; burguesia
industrial, que tem crescimento lento e seguro; e a burguesia composta por
banqueiros e especuladores que pode ser considerada a camada burguesa mais
dinâmica socialmente. Sobre o papel da burguesia e seus conceitos ideológicos
Carone explica:
As manifestações das diversas camadas da burguesia – principalmente a
financeira- encontram nas crises políticas e econômicas da última década
do século XIX um obstáculo que se reflete direta e indiretamente sobre a
classe. Depois das guerras civis de 1893-1895, há um enquadramento de
toda a classe dentro da linha predominante a de ajustamento ao sistema
vigente. Em vez das suas poucas manifestações de rebeldia, fazem agora
um esforço para conseguir concessões governamentais. A burguesia vai
procurar expandir-se e, para isto, ela se subordina inteiramente às classes
agrárias, abdicando de seus próprios direitos. (CARONE, 1972, p. 162)

Outra parcela importante na distribuição social da República Velha era a


classe operária será analisada mais detidamente nesse trabalho onde serão tratados
os grupos políticos e os movimentos de ampliação dos direitos de cidadania.
Contudo, pode-se adiantar que entre eles preponderavam os estrangeiros nos
primeiros anos da República, entretanto, segundo Carone (1972.) esta tendência
não permanece. Esclarece que devido a fatores como crises econômicas, retorno ao
país de origem, expulsões e guerra, diminui-se muito a porcentagem de estrangeiros
28

na classe operária, esses fatores aliaram-se ainda à adaptação do nativo brasileiro


ao trabalho técnico.
Jose Murilo de Carvalho (2002, p.83) é enfático em afirmar nesta e em suas
outras obras aqui trabalhadas que na República Velha 1889 a 1930, não havia
população organizada politicamente nem sentimento nacional consolidado, segundo
os marcos dos intelectuais da República relativos à política oficial. A participação na
política nacional, inclusive nos grandes acontecimentos, era limitada a pequenos
grupos. Quando a população agia politicamente, apenas estava reagindo a algo que
considerava extremamente abusivo por parte do Estado. Carvalho conceitua a
cidadania na República velha como uma cidadania em negativo: “[...] Na
implantação da República a participação popular na sua proclamação e nos esforços
de participação nos anos posteriores foi nula.” (CARVALHO, 1997, p.9)
O fato é que a Proclamação da República e o Movimento Republicano não
foram idealizados ou colocados em prática pela população, restringiram-se apenas
aos setores da elite, militares, conspiradores e aos recentes setores intermediários
urbanos, (CARVALHO, 2002, p.80)
Margarida Souza Neves em “Os cenários da República. O Brasil na virada do
século XIX para o século XX.” (2006) corrobora com esta tese afirmando que a
Proclamação da República em 15 de novembro de 1889 foi obra de militares, tanto
na sua concepção como na própria proclamação protagonizada pelo marechal
Deodoro da Fonseca.

A hipótese de que a República brasileira foi, em sua origem, obra dos


militares, resultado do descontentamento de setores do Exército e fruto das
questões militares que se arrastavam desde o fim da Guerra do Paraguai,
encontra respaldo nas versões contemporâneas ao fato e na historiografia.
(NEVES, 2006, p.27)

Em apoio a tal afirmação Neves cita em seu texto trabalhos sobre o tema e
testemunhos escritos de pessoas presentes na época e no fato.
José Murilo de Carvalho por sua vez, afirma ainda que na Proclamação da
República não houve movimentação popular a favor da República nem em defesa
da Monarquia. “[...] Era como se o povo visse os acontecimentos como algo alheio a
seus interesses”. (CARVALHO, 2002, p.81).
Entretanto o povo brasileiro não pode ser ingenuamente adjetivado de
“bestializado”. Carvalho (2005b) afirma que a maioria da população manteve-se fora
29

do sistema político após o advento da República, apesar disso, reuniam-se em torno


da cultura popular, faziam festas, organizavam-se formando uma identidade nacional
entre si, diferente da identidade dos ideólogos republicanos. Nesse sentido suas
manifestações e festas também podem ser considerados atos políticos pois
afirmavam sua identidade e visão de mundo no espaço público, entretanto, tais
movimentações populares não adequam-se aos modelos de ação política oficiais.
Carvalho explica bem essa dualidade da população em “Os bestializados: O
Rio de Janeiro e a República que não foi”.

[...] No entanto, havia no Rio de Janeiro um vasto mundo de participação


popular. Só que este mundo passava ao largo do mundo oficial da política.
A cidade não era uma comunidade no sentido político, não havia o
sentimento de pertencer a uma entidade coletiva. A participação que existia
era de natureza antes religiosa e social e era fragmentada. Podia ser
encontrada nas grandes festas populares , como as da Penha e da Glória ,
e no entrudo; concretizava-se em pequenas comunidades étnicas, locais ou
mesmo habitacionais. (CARVALHO, 2005b, p.38)

A política oficial por sua vez, era apenas um mal necessário, algo com o qual
não deveriam se preocupar, pois não os representava, não pertencia ao povo, não
os interessava em primeiro plano. Sendo assim: a noção de Estado estava
consolidada como algo exterior ao povo, o povo precisava ser “bilontra” (o mesmo
de espertalhão e gozador) para espiar as ações do governo sem se envolver com
elas, apenas atento para desmascarar a farsa do regime Republicano e mostrar que
poderiam usar a força contra ele quando fosse preciso. Neste sentido Carvalho
afirma:
[...] a República não era para valer. Nessa perspectiva, o bestializado era
quem levasse a política a sério, era o que se prestasse à manipulação. Num
sentido talvez ainda mais profundo que o dos anarquistas, a política era
tribofe. Quem apenas assistia como fazia o povo do Rio por ocasião das
grandes transformações realizadas a sua revelia, estava longe de ser
bestializado. Era bilontra. (CARVALHO, 2005b, p. 160)

Até aqui os pontos abordados sobre o ambiente Republicano nos remetem a


algumas considerações importantes. José Murilo de Carvalho considera que ao
adotar o federalismo nos moldes norte-americanos, houve um fortalecimento da
política local por meio das consolidação do poder dos coronéis e não da política
nacional, daí se infere que apesar da unidade ter sido mantida não se pode concluir
que o novo regime foi uma conquista do povo. Não houve identidade nacional na
formação do novo regime. Os movimentos populares ocupavam-se de questões
30

imediatas do seu dia a dia. Carvalho dá como exemplo a Revolta de Canudos e os


demais movimentos messiânicos.
No livro “A Formação das Almas: O imaginário da República no Brasil”
(2005a), aqui já citado, Carvalho analisa a legitimação do regime, investigado seus
contornos na tentativa de envolver a população consolidando no imaginário popular
que o regime era uma conquista do povo. As perguntas que pretende responder no
livro são referentes à consolidação do regime. Dentre elas as mais importantes são:
Teria o novo regime se consolidado apenas com base na força do arranjo
oligárquico? Teria havido tentativas de legitimação que o justificassem? Quais as
tentativas? Qual o resultado?
A consciência da falta de apoio popular levou os republicanos a tentarem
legitimar o regime por meio da manipulação de símbolos patrióticos e da criação de
uma galeria de heróis Republicanos, os diversos setores da sociedade responderam
de maneira diversa aos estímulos simbólicos dos republicanos, entretanto nenhum
deles aderiu amplamente a ideologia mítica como pretendiam os propagandistas.
A República que se inspirava nos ideais da Revolução Francesa, deveria
representar a instauração do governo do país pelo povo, por seus cidadãos, sem a
interferência dos privilégios monárquicos. No entanto, no que se refere à cidadania,
mais precisamente sobre a participação popular pelo voto, apesar das expectativas
levantadas, pouca coisa mudou com o novo regime. Pelo lado legal, a Constituição
Republicana de 1891 eliminou apenas a exigência da renda de 200 mil-réis. A
exclusão dos analfabetos foi mantida. Continuavam também a não votar as
mulheres, os mendigos, os soldados e os membros das ordens religiosas.
Nesse ambiente de mudanças estruturais do governo e deficiente participação
popular alguns setores da população buscavam alterar seu espaço na vida política,
social e cultural da sociedade brasileira.

2.4 Os anos finais da República Velha (1920 a 1930)

Nos primeiros anos da República, a escolha do federalismo era algo que unia
os grupos dominantes, ainda assim, a forma a ser dada ao regime republicano
provocou divergências entre esses grupos, como se analisou neste trabalho em “2.1
A formação do ideário Republicano” (p.14-20).
31

A estabilidade buscada não atendeu a três problemas fundamentais


estipulados por Ferreira e Sá Pinto, em “A crise dos anos 1920 e a Revolução de
1930” (2006, p. 390) quais sejam: a geração de atores políticos, as relações entre os
poderes Executivo e Legislativo e a interação entre o poder central e poderes
regionais.
Na procura pela solução desses problemas, em 1898 Campos Sales8 criou o
pacto político conhecido como “política dos governadores”, tal pacto deveria impedir
que conflitos entre oligarquias regionais provocassem instabilidade política
nacionalmente, assim como apaziguar as relações entre estados e União, Poderes
Legislativo e Executivo e controlar a escolha de deputados.
Como estados detentores das maiores bancadas no congresso, Minas Gerais
e São Paulo controlaram o poder nacional e regional com a chamada “política do
café-com-leite” até o início da década de 1920. Essa política de governadores era
sustentada pelo governo federal e os governadores apoiavam o presidente da
República por meio dos votos no congresso. Ferreira e Sá Pinto afirmam que “[...]
este tipo de acordo se repetia entre os governadores e as lideranças locais, os
coronéis, que controlavam a massa de eleitores.” (Ferreira; Sá Pinto 2006, p.392)
Contudo, no início da década de 1920 muitos conflitos eclodiram entre as
oligarquias e esse sistema começou a declinar.
Em 1922 quando haveria a sucessão do Presidente Epitácio Pessoa, os
estados de São Paulo e Minas Gerais, como de costume, com o apoio de Epitácio
Pessoa, indicaram o mineiro Artur Bernardes para a presidência, entretanto, as
oligarquias do Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro formaram a
uma aliança, lançando a candidatura do fluminense Nilo Peçanha.
A oposição ao candidato dos governadores de Minas e São Paulo chamada
de “Reação Republicana” foi fomentada com a publicação pelo jornal Correio da
Manhã de cartas, falsamente assinadas por Artur Bernardes, ofendendo o ex-
presidente Hermes da Fonseca e o Exército. Os militares exigiram a retirada da
candidatura de Artur Bernardes. Ao que foram combatidos com a decretação do
estado de sítio, fechamento do Clube Militar e a prisão de Hermes da Fonseca.
Quatro dias depois, alguns militares reagiram ocupando o Forte de
Copacabana, no Rio de Janeiro. O exército do governo matou 271 dos 301

8
advogado e político brasileiro, presidente do estado de São Paulo, de 1896 a 1897 e presidente da
República, entre 1898 e 1902.
32

revoltosos. Essa ocupação do forte de Copacabana marcou o início do movimento


“tenentismo”. (fonte: Arquivo Nacional)
O tenentismo, movimento militar a ser estudado com mais vagar no próximo
capítulo, tinha como ideal o combate às oligarquias. Segundo Ferreira e Sá Pinto
(2006), os tenentes acreditavam que as oligarquias haviam transformado o país em
“vinte feudos” cujos senhores eram escolhidos pela política dominante. O tenentismo
marcou a história da década de 1920 e foi importante para a erosão do sistema
vigente e hoje é conhecido na corrente historiográfica mais tradicional como:

Um movimento que, a partir de suas origens sociais nas camadas médias


urbanas, por vezes chamada de pequena burguesia, representaria os
anseios destes setores por uma maior participação na vida nacional e nas
instituições políticas (Ferreira; Sá Pinto apud Santa Rosa, 1993)

Após a principal fase do tenentismo na República Velha (1922 a 1927), as


oligarquias recompuseram-se e voltaram à estabilidade. Mas uma nova tensão intra-
oligárquica perto das eleições presidenciais de 1929 e uma grande crise econômica
desencadearam a chamada Revolução de 1930.
A Revolução de 1930 foi um movimento armado que se originou da união
entre políticos que foram derrotados nas eleições de 1930 e militares que decidiram
pôr fim ao sistema oligárquico simbolizado pela política do "café com leite" através
das armas. Sob a liderança civil de Getúlio Vargas e sob a chefia militar do tenente-
coronel Góes Monteiro, o movimento depôs o presidente da República, Washington
Luís, e impediu a posse do presidente eleito Júlio Prestes apoiado pelo governo de
São Paulo.
Em três de novembro de 1930, Getúlio Vargas assumia o governo provisório,
e a República Velha chegava ao fim. José Murilo de Carvalho afirmou em entrevista
ao jornal Folha de São Paulo (23/10/2010) que a Revolução de 1930 foi mais
importante para o Brasil do que a Proclamação da República e marcou o início do
Brasil moderno, conclui ainda que o país desde então entraria num ciclo inédito de
transformações políticas, sociais e econômicas, para o bem e para o mal.
33

3 OS GRUPOS POLÍTICOS

O ambiente da República Velha foi um campo fértil para o nascimento e a


consolidação de alguns grupos políticos que marcaram a história do país ao
enfrentarem-se e imporem-se contra ou a favor do Estado em diversas vertentes.
Os principais grupos políticos foram os positivistas, os liberais, os anarquistas,
os socialistas, os comunistas e os sindicalistas revolucionários. Pode-se verificar em
“Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi” (2005b), de José
Murilo de Carvalho que o fim do império e o começo da República foram épocas
marcadas pela grande movimentação de ideias, absorvidas parcialmente pelos
brasileiros a partir de exemplos europeus. Em suas próprias palavras, nesta mesma
obra: “[...] Liberalismo, positivismo, socialismo e anarquismo, misturavam-se e
combinavam-se das maneiras mais esdrúxulas na boca e na pena das pessoas mais
inesperadas” (CARVALHO, 2005b, p.42).
Ater-se-á neste trabalho, aos grupos que tiveram maior destaque na
República Velha.

3.1 Os Positivistas

José Murilo de Carvalho em “Cidadania no Brasil, um longo caminho” (2002,


p. 97) conceitua esse grupo como os defensores de uma ideologia industrializante,
simpática à ciência e à técnica, “antibacharelesca”, que fazia oposição aos
proprietários e a elite política civil, quase toda formada de advogados e juristas.
Os positivistas foram atuantes na formação da simbologia da república.
Adotaram a doutrina Comtista, que segundo José Murilo de Carvalho resumia-se a
uma “paródia do catolicismo”, que determinava a divisão do mundo em 500
repúblicas chamadas “mátrias”, cada uma com população máxima de três milhões
de pessoas que deveriam representar verdadeiras extensões do núcleo familiar.
Comte considerava que a fase republicana era essencial para alcançar a fase final,
que era uma sociedade perfeita. (CARVALHO, 2005a, p.131)
A doutrina positivista de Comte pregava o dogma da superioridade do amor
sobre a razão. Carvalho explica da seguinte forma:
34

O dogma da superioridade do sentimento e do amor sobre a razão e


atividade aplicava-se também às raças e às culturas. A raça negra seria
superior à branca por se caracterizar, como as mulheres, pelo predomínio
dos sentimentos, ao passo que a raça branca era marcada pela razão. Os
países latinos estavam na mesma posição vantajosa em relação aos anglo-
saxões. Representariam o lado feminino da humanidade, seriam os
portadores do progresso moral, enquanto os anglo-saxões seriam o lado
masculino, o progresso material, as ciências menos nobres. Apesar da
grande importância do progresso material, seu papel seria secundário na
revolução da humanidade, que se baseava, sobretudo na moral, na
expansão do altruísmo. Entre os países latinos, ainda é Comte que fala, a
França seria “Le pays central” e Paris, a cidade central. Os templos
positivistas deveriam ser construídos voltados para Paris, assim como os
templos mulçumanos se voltavam para Meca. (CARVALHO, 2005a, p.131)

Carvalho considera que os positivistas lançaram-se a doutrinação política


como em um verdadeiro apostolado. Viram no Brasil uma capacidade de saltar fases
evolutivas, um verdadeiro celeiro para transformações políticas. (CARVALHO,
2005a, p.139)
Os positivistas enfatizavam a ideia de pátria baseada na família. Nesse
sentido o amor da pátria é o prolongamento do amor materno, e a cidade era o
prolongamento da família. Pátria e cidade são assim, coletividades de integração e
de convivência afetiva onde não há direitos apenas deveres dos membros para com
a coletividade que lhe é superior.
Sobre o que nos interessa aqui, a noção positivista da cidadania não incluía
os direitos políticos , assim como não aceitava os partidos e a democracia
representativa, admitia apenas os direitos civis e sociais. Assim, os direitos sociais
buscados eram a educação primária, a proteção à família e ao trabalhador. Tais
direitos, para os positivistas não deveriam ser conquistados pela pressão dos
interessados, mas concedidos paternalisticamente pelos governantes a fim de
cumprir com a obrigação que tinham com os destinatários. Nesta visão os cidadãos
deveriam ser inativos e deveriam esperar a ação do Estado.
Apesar deste rigorismo no que diz respeito aos direitos, o grupo destoava do
liberalismo dominante , propunha a adoção de ampla legislação social e promoveu
grande influencia na legislação da década de 1930. Os positivistas ortodoxos, que,
segundo Carvalho eram os mais influentes, defendiam as ideias de cunho social de
Augusto Comte. Comte acreditava que o principal objetivo da política moderna era
incorporar o proletariado à sociedade por meio de medidas de proteção ao
trabalhador e à sua família.
35

O positivismo afastava-se das correntes socialistas ao enfatizar a


cooperação entre trabalhadores e patrões e ao buscar a solução pacifica
dos conflitos. Ambos deviam agir de acordo com o interesse da sociedade,
que era superior aos seus. Os operários deviam respeitar os patrões, os
patrões deviam tratar bem os operários. Os positivistas ortodoxos brasileiros
seguiram ao pé da letra essa orientação. (CARVALHO, 2002, p.110)

Logo no inicio da República, ainda em 1889, eles sugeriram ao governo


provisório uma legislação social muito avançada para a época. Ela previa jornada de
trabalho de sete horas, descanso semanal, ferias anuais, licença remunerada para
tratamento de saúde, aposentadoria, pensão para as viúvas e estabilidade aos sete
anos de trabalho. Carvalho pondera que não foram levados a sério, mas que não
desistiram deste trabalho, e foram constantes na apresentação de projetos
legislativos de cunho social.

[...] políticos ligados ao positivismo continuaram a apresentar projetos de lei


voltados para a questão social. Se conseguiram pouco durante a Primeira
República, pelo menos contribuíram para criar mentalidade favorável à
política social. A maior influencia do positivismo ortodoxo no Brasil verificou-
se no estado do Rio Grande do SuI. A constituição Republicana gaúcha
incorporou varias ideias positivistas. (CARVALHO, 2002, p.111)

É, portanto inegável a relevância dos positivistas na história da República.


Eles tiveram um papel fundamental na estruturação e manutenção da mesma,
exemplo disso é a formação do imaginário republicano tratado no capítulo anterior.
Os lastros da influencia desse grupo na sociedade brasileira perduram até hoje e
podem ser sentidos no sistema jurídico vigente, nas escolas, igrejas, e na maioria
das instituições de todas as ordens no Brasil.

3.2 Os Liberais

A república almejada pelos liberais estava relacionada a uma democracia


representativa, o povo não deveria ir as ruas reivindicar seus direitos, deveriam,
entretanto eleger um líder . Ao povo caberia apenas a liberdade de propriedade,
religião e de opinião. Não Cabe a participação política popular, exceto pelo voto e
mesmo ele bastante restrito.
A liberdade do povo, principalmente no que se refere à propriedade é um dos
pilares da visão de mercado dos liberais. Para eles a sociedade é formada de
indivíduos autônomos que necessitam um mínimo de governo para facilitar a
36

produção privada, manter a ordem pública, fazer respeitar a justiça e proteger a


propriedade. Entretanto as relações entre os sujeitos e os fatos resultantes dessas
relações devem ser regidos pela mão invisível9 do mercado. Um dos escritores mais
importantes do liberalismo, Adam Smith, desenvolveu a teoria da mão invisível em
“Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações”, obra
publicada em Londres, em 1776.
Carvalho (2005b) descreve uma síntese das ideias dos principais nomes do
liberalismo brasileiro na República velha :

Alberto Sales e Sílvio Romero elaboraram uma posição que era a de quase
todos os pensadores representantes do liberalismo burguês no país, de
Teófilo Ottoni a Tavares Bastos, Mauá, André Rebouças, Joaquim Murtinho.
Todos reclamavam da falta entre nós do espírito de iniciativa, do espírito de
associação, do espírito empresarial burguês, enfim, para usar a terminologia
atual. Conversamente criticavam a excessiva dependência em relação ao
Estado como regulador da atividade social e a obsessiva busca do emprego
público. Sílvio Romero usava a expressão capitalismo quebrado para o
caso brasileiro, revelando ter percebido as amplas vinculações da
problemática. (CARVALHO, 2005b, p. 150)

A abolição da escravatura e a posterior proclamação da República são pontos


de partida fundamentais da nova concepção política, social e econômica que deveria
nortear a feitura da nova Constituição Liberal (1891).
Segundo Maria E. L de Resende em “O processo político na Primeira
República” (2006):

No que se refere aos direitos de cidadania, a Constituição de 1891 atém-se,


basicamente, aos direitos individuais (art.72). Trata, assim, de direitos
relativos à liberdade de culto e de expressão de pensamento, de segurança
individual, de igualdade perante a lei, e do direito de propriedade em sua
plenitude. (RESENDE, 2006, p.100. )

Inspirada na Constituição dos Estados Unidos da América o cunho da


Constituição só poderia ser liberal, entretanto, podemos considerar a Constituição
elaborada pelos liberais como conservadora, visto que não ampliou os direitos da
população.

9
O conceito de “mão invisível” foi baseado em uma expressão francesa, “laissez faire”, que significa
que o governo deveria deixar o mercado e os indivíduos livres para lidar com seus próprios assuntos.
37

3.3 Anarquismo, Socialismo e Sindicalismo Revolucionário

O anarquismo, o socialismo e o sindicalismo revolucionário, foram


movimentos que buscaram mudar a concepção de organização dos trabalhadores.
No Brasil, na Primeira República esses grupos tiveram papel fundamental na
tentativa de democratização da sociedade, atuando não apenas na busca pelos
direitos trabalhistas, mas também dos direitos relativos à própria existência e
dignidade humana.
Segundo Edilene Toledo:

Os valores e comportamentos veiculados por esses movimentos foram


capazes de questionar e desconstruir hierarquias sociais consolidadas e
uma mentalidade tradicional que pretendia condenar a maior parte dos
trabalhadores a permanecer fora da política, institucional ou não. (TOLEDO,
2007, p. 55)

Pode-se compreender em seu texto: “A trajetória anarquista no Brasil na


Primeira República”, (2006) que o anarquismo seduziu corações de profissionais
liberais e operários no Brasil como em diversos países mundo afora.
As ideias de sociedade livre, ausência de Estado, igreja e capitalismo trazia a
esperança de transformação, entretanto, os grupos de tradição esquerdista aqui
representados pelo anarquismo , o socialismo e o sindicalismo revolucionário tem
em comum uma confusão teórica e ideológica na República Velha que colaborou
para a vitória da ideologia liberal.
Sobre estes grupos Carvalho pondera:

O Anarquismo negava legitimamente, a qualquer ordem política, não


admitindo, portanto, a ideia de cidadania, a não ser no sentido amplo de
fraternidade universal. Restavam os socialistas democráticos, os únicos a
propor a ampliação dos direitos políticos e sociais dentro das premissas
liberais. (CARVALHO, 2005b, p. 64)

O anarquismo foi um movimento que teve inicio internacionalmente, e foi se


desmembrando em movimentos nacionais nos quais seus adeptos participavam de
um projeto internacional, com foco nas suas lutas locais.
Toledo (2007) afirma que o anarquismo no Brasil nasceu no Paraná com a
Colônia Cecília, fundada em 1890 por Giovanni Rossi e alguns imigrantes italianos.
38

Essa colônia frustrou-se em quatro anos por diversos motivos. É importante, diga-se,
fundamental, a participação dos imigrantes no anarquismo brasileiro, principalmente
italianos e portugueses que difundiram os ideais libertários, denunciando as
condições de exploração no campo e na cidade.
Os imigrantes vieram ao Brasil para servirem de mão-de-obra no campo,
entretanto espalharam–se pelas cidades trabalhando principalmente em fábricas e
dedicando-se a outros trabalhos urbanos. De sua terra natal trouxeram as ideias
libertárias do anarquismo e aqui, propagavam-nas escrevendo artigos, fundando
jornais, palestrando e até fundando uma escola.
José Murilo de Carvalho em “Os Bestializados: Rio de Janeiro e República
que não foi”(2005b) acha importante destacar a ideia de pátria e cidadania para os
anarquistas. Eles negavam totalmente a ideia de pátria, acreditavam que a pátria
dos operários é o mundo, todos os operários do mundo formam uma pátria e
estrangeiros são os capitalistas, isso foi evidenciado em suas campanhas contra a
guerra e o serviço militar obrigatório. (CARVALHO, 2005b, p. 60)
Entre 1898 e 1908 muitos foram os jornais editados com a doutrina anarquista
ou libertária, seus precursores, entretanto podiam ser divididos em dois grupos com
diferenças importantes: Edilene Toledo (2007) considera que o maior grupo buscava
a revolução social, a abolição da propriedade privada e do Estado, mas admitiam o
sindicalismo como arma de luta.
O grupo menor pregava também a abolição do Estado, mas queria a
manutenção da propriedade privada após a revolução e era ainda contra toda forma
de organização que não fosse espontânea.

Apesar da heterogeneidade de opiniões entre os anarquistas, havia uma


unanimidade em relação a certos aspectos que uniam os vários movimentos
em todo mundo: a necessidade da abolição do Estado, a recusa da tática
eleitoral e parlamentar, a oposição à ideia de um partido centralizado, a
defesa da ação direta e a valorização da individualidade.( TOLEDO, 2007,
p.58)

Dentre as tantas divisões , como exemplo pode-se tomar envolvimento de


alguns deles com o sindicalismo revolucionário, o que parecia aos puristas algo
inaceitável principalmente pelo viés marxista que o sindicalismo revolucionário
ostentava no que se refere à luta de classes. Os anarquistas não concordavam com
a ideia de classes distintas, para eles, uma classe sobrepor-se-ia às outras dando
39

lugar ao autoritarismo. Toledo (2007) afirma que apesar disso, muitos anarquistas
aliaram-se ao sindicalismo revolucionário, despreocupando-se com a coerência
doutrinária.
No mesmo texto Edilene Toledo considera sobre o Sindicalismo
Revolucionário:

Ele vai se constituindo num projeto internacional, a partir da década de


1890, por meio da circulação das formas de luta, das práticas e dos
modelos de organização. O sindicalismo revolucionário surge dentro dos
sindicatos, com a prática da ação direta, e depois ganha forma de doutrina
política, reunindo ideias socialistas e anarquistas. (TOLEDO, 2007, p.74)

Os anarquistas, influenciados pelos outros grupos e influenciando-os,


dividiram-se, enfraqueceram e viram-se superados pelos socialistas e comunistas.
O enfrentamento mais importante entre os anarquistas e socialistas
aconteceu em 1906, época do Congresso Operário Regional Brasileiro no Rio de
Janeiro. Ao término do congresso ficaram consagrados os princípios do anarquismo
sindicalista ao estilo da (CGT) Confederação Geral do Trabalho francesa. Tais
princípios regiam-se pela rejeição à luta partidária, a prevalência da luta econômica
através das greves, boicotes, sabotagem, manifestações públicas, formação de
federações de sindicatos e uma confederação.
Segundo Carvalho (2005b, p. 59) Benjamin Mota10 em seu discurso de
encerramento do Congresso Operário, afirmou que o operário deveria abandonar de
todo e para sempre a luta parlamentar e política, deveria também recusar-se a votar
e ao serviço militar bem como ao pagamento de outros tributos. A ação operária
deveria preterir o Estado concentrando-se apenas em lutar contra os patrões, ou
seja, contra a burguesia exploradora.
José Murilo de Carvalho considera o percurso do grupo socialista de pouca
expressão na República Velha, entretanto, para os fins desse trabalho algumas
considerações importantes devem ser expostas, afinal, os socialistas tiveram
importância na conjuntura social da República velha .
Segundo Benito Bisso Schimidt ( 2007, p.142) em “Os partidos socialistas na
nascente República” : A divulgação do socialismo no Brasil intensificou-se com a
crise da monarquia e a consolidação do movimento republicano na década de 1870.

10
Jurista considerado expoente do anarquismo no Brasil
40

Os socialistas creditavam ao partido operário o papel de principal instrumento


de mobilização e ação política, e tomaram as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo
como seu principal âmbito de ação.
Devido a resistência do sistema republicano em permitir a ampliação da
participação nos assuntos estatais, apesar da lógica liberal que representava, o
desencanto com o regime não tardou aparecer.
Dentro dessa realidade “castradora”, os socialistas brasileiros emergiram e
ganharam força ao lado dos anarquistas e sindicalistas revolucionários, apesar de
toda a fragilidade de sua propaganda devido a ausência de paradigma brasileiro na
formação do ideal socialista que defendiam,
José Murilo de Carvalho faz breves observações sobre os socialistas, dentre
elas a de que só reconheciam dois caminhos possíveis: a cooperação direta com o
governo (estadania) ou a anarquia que era a rejeição total do sistema vigente.
Para José Murilo de Carvalho em “Cidadania, estadania, apatia”(2001) a
Estadania está relacionada com o clientelismo entre povo e Estado. O termo
Estadania foi como o próprio historiador admite, inventado por ele para definir uma
situação em que o Estado “[...] Não é um poder público garantidor dos direitos de
todos, mas uma presa de grupos econômicos e cidadãos que com ele tecem uma
complexa rede clientelista de distribuição particularista de bens públicos.” (Artigo
Publicado no Jornal do Brasil, 24/06/2001, p. 8).
Para o autor vários grupos usaram e ainda usam do seu relacionamento com
o poder público para promover a ampliação dos direitos dos quais se julgam
merecedores. Como será visto mais adiante, ainda neste capítulo, sua utilização
pelos militares e operários da União.
11
Por outro lado, França e Silva , segundo Carvalho, tinha propostas que
mais se aproximam do modelo clássico de expansão da cidadania, qual seja: a
defesa da participação popular nos negócios públicos deveria nascer dentro de uma
organização partidária inserida no sistema representativo.

Imprensados entre "amarelos" e anarquistas achavam-se os socialistas, que


julgavam poder fazer avançar os interesses da classe também através da
luta política, isto é, da conquista e do exercício dos direitos políticos.
Sintomaticamente, os socialistas foram os que menor êxito tiveram.
Fracassaram em todas as tentativas de formar partidos socialistas operários

11
Organizador do Congresso Socialista no Rio de Janeiro em 1892, do qual resultou o Partido
Operário do Brasil.
41

no Rio de Janeiro e em São Paulo. A política das oligarquias, com sua


aversão às eleições livres e à participação política, não lhes deixava espaço
para atuar. (CARVALHO, 2002, p.60 e 61)

Apesar dos esforços dos grupos aqui apresentados, Carvalho (2002)


considera que a configuração destes grupos e sua deficiência em relação aos
grupos dominantes cooperaram para que os poucos direitos civis conquistados não
pudessem ser postos a serviço dos direitos políticos.
Contrapuseram-se, de um lado, a absoluta rejeição do Estado querida pelos
anarquistas; de outro, a estreita cooperação defendida pelos setores operários mais
próximos ao governo. Nenhum dos grupos lutava pela cidadania nos moldes do
conceito de Marshall.
Neste contexto José Murilo de Carvalho (2002) conclui que a tradição de
maior persistência e vencedora foi a que buscava melhorias por meio de aliança
com o Estado, por meio de contato direto com os poderes públicos, os liberais.
Independente da ideologia defendida pelos diferentes grupos, só colheu frutos os
que se utilizaram da estrutura republicana dominante para obtenção de avanços, ou
seja, a estadania.

3.4 Os Militares

No livro “Os bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi”,


(2005b) Carvalho aborda de maneira detalhada a participação dos militares nos
movimentos de ampliação de direitos.
Neste ponto da investigação, o autor refere-se à “Estadania”, cujo conceito foi
apresentado no título anterior (p.40). Carvalho diz que os militares buscavam maior
participação através do pertencimento ao estado, eles estavam inseridos nele, eram
o Estado, e usavam desta prerrogativa para buscar a ampliação de seus direitos, em
uma perspectiva completamente particular. Os militares destacaram-se na
propaganda do novo regime, pois havia entre eles insatisfação quanto ao que
consideravam limitações de seus direitos de cidadania, a ideia disseminada entre
eles era a afirmação do chamado “soldado-cidadão”, na prática, as reivindicações
centravam-se no direito de reunião e de livre manifestação da opinião política.
Segundo Maria Efigênia Lara de Resende no ensaio: “O Processo Político na
Primeira República e o Liberalismo Oligárquico” (2006), Tais ideais políticos tem
42

motivação positivista. Tanto é verdade que a partir de 1870 difunde-se o positivismo


nas escolas militares principalmente por força do professor Benjamin Constant. Para
Resende (2006), daí vem uma aguda crítica política por parte dos militares e a
concepção de que possuem uma missão cívica de implantar uma republica
positivista pelo bem do país.
Sabemos que essa ideia mais tarde se tornou suporte para uma ditadura
militar e seus símbolos.
Para Raul Pompéia12 o exército era a único setor organizado do país e o fato
de terem feito a República era uma honra para o exército, a seu ver, o exército era o
povo com armas que enfim era ativo frente a apatia do povo paisano.
O movimento mais importante organizado pelos militares durante a República
foi o “tenentismo” que eclodiu na década de 1920 e perdurou até depois de 1930.
O tenentismo recebeu esse nome por ter sido um movimento chefiado por
oficiais de nível intermediário do Exército, tenentes e capitães, visto que não atingiu
o alto comando das Forças Armadas. Seu surgimento tem como estopim a eleição
de Epitácio Pessoa à presidência do país em 1919. Esse presidente não fazia parte
do arranjo “café com leite” (São Paulo e Minas Gerais), e provavelmente devido a
essa independência decidiu empossar civis nos cargos de chefia e ministério militar.
Lanna Júnior em “Tenentismo e crises políticas na Primeira República” (2006)
escreve que o tenentismo é um marco histórico importante para explicar a crise da
República Velha e a revolução de 1930, “[...] em especial a participação do exército
na política” (Lanna Junior, 2006, p. 315).
Os militares contrariados pela presença de civis em suas pastas ministeriais e
acreditando em um antimilitarismo presidencial, aliaram-se ao legislativo e à
imprensa para criticar as ações do presidente. Estes fatos acrescidos de outros,
aumentaram cada vez mais a oposição ao governo.

Nessa fase heroica, de 1922 a 1927, o tenentismo, como movimento de


conspiração, pegou em armas para lutar contra as oligarquias dominantes.
Nesse período, surgiu como única alternativa aos anseios das classes
médias populares. As mudanças tinham de ser feitas pelas armas, o que
teria transformado os militares rebeldes em vanguarda política da luta
contra o domínio oligárquico da burguesia cafeeira e seus aliados. (Lanna
Junior, 2006, p. 316)

12
Romancista, poeta, cronista, jornalista e caricaturista, bacharel em Direito, abolicionista e
republicano.
43

Apesar disso, Lanna Junior escreve que esse liberalismo militar era de
fachada, pois se mantiveram fiéis à ordem vigente, defendiam apenas a moralização
política das oligarquias cafeeiras e a revolução pelas armas para entregar o governo
nas mãos de políticos que eles consideravam honestos. “[...] Nesse sentido,
destaca-se seu caráter elitista, que pregava a mudança a partir de cima, sem a
participação das classes populares” (Lanna Junior, 2006, p. 316)
Lanna Junior (2006) considera que as ações desse grupo foram reprimidas
pelo governo que articulou a classe política civil, em torno de um inimigo comum e
ao contrário de enfraquecer a oligarquia, terminou por fortalecê-la. Os revoltosos
foram condenados com base no artigo 107 do Código penal vigente à época como
pretendentes a mudanças violentas da forma de governo e da Constituição do país,
o que demonstrou a parcialidade do judiciário e sua submissão ao governo.
Apesar dessa condenação, o movimento Tenentista não parou neste
momento, em São Paulo, a partir de 1924 conseguiram expulsar o governo estadual
o que lhes rendeu apoio de muitas pessoas, classes e organizações, principalmente
estudantes, classes populares e operariado.
Lanna Junior afirma que:

Os estudantes criaram a Brigada Acadêmica que atendia a população civil;


os populares aplaudiam os rebeldes por ocasião da passagem das tropas e
atendiam solicitamente aos soldados nas trincheiras espalhadas pela
cidade; e os operários organizados apoiavam os revolucionários e
exortavam a população a ajudá-los no que fosse possível. (Lanna Junior
apud Forjaz, 1977, p.80).

Mas os militares não estavam interessados nesse apoio popular, desejavam o


apoio das elites políticas, segundo Lanna Junior, eles não acreditavam em uma luta
política popular e sim em uma luta da vanguarda revolucionária em nome do povo.
Em 1925 surge a Coluna Prestes um movimento liderado por militares, e com
a mesma base ideológica dos movimentos anteriores, seu principal líder foi o capitão
Luís Carlos Prestes. A coluna alcançou o maior número de adeptos civis e estados
percorridos, passaram por São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Goiás,
Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco (nestes
estados, Lanna Junior, acredita que a Coluna viveu sua fase favorável). Na Bahia,
viveram seu pior momento, foram atacados em emboscada e enfrentaram coronéis e
cangaceiros numa luta sangrenta. Derrotados, partiram para Minas Gerais de onde
44

voltaram para Goiás e Mato Grosso até atingirem o Paraguai e a Bolívia em 1927,
reduzidos em número pela metade.
Sobre o movimento tenentista José Murilo de Carvalho fez as seguintes
ponderações:
Embora de natureza estritamente militar e corporativa, o tenentismo
despertou amplas simpatias, por atacar as oligarquias políticas estaduais. A
consciência política dos oficiais, sobretudo no que se refere ao mundo das
oligarquias, tornou-se mais clara durante a grande marcha de milhares de
quilômetros que fizeram pelo interior do país na tentativa de escapar ao
cerco das forças governamentais. O ataque às oligarquias agrárias
estaduais contribuía para enfraquecer outro grande obstáculo à expansão
dos direitos civis e políticos. O lado negativo do tenentismo foi a ausência
de envolvimento popular, mesmo durante a grande marcha. Os "tenentes"
tinham uma concepção política que incluía o assalto ao poder como tática
de oposição. (CARVALHO, 2002, p.66)

Depois de 1930, os militares remanescentes do movimento tenentista da


República Velha entram no governo e procuraram lhe dar um rumo que promovesse
seus objetivos, gerando a chamada “estadania” de José Murilo de Carvalho, ou seja,
mesmo depois de 1930, quando tiveram intensa participação política, mantiveram a
postura alheia à mobilização popular.

3.5 Os Operários

O operariado brasileiro, como outros grupos aqui descritos, viu na República


oportunidade de redefinir seu papel político. Assim, logo após a Proclamação houve
tentativas de organizá-los politicamente, a primeira delas por conta dos positivistas.
Sobre as organizações de trabalhadores Claudio H. M. Batalha, no ensaio
“Formação da Classe Operária e Projetos de Identidade Coletiva” (2006), pondera
que:

A organização dos trabalhadores, fossem eles qualificados ou não, é um


traço marcante do Brasil da Primeira República. O volume de associações
criadas tendia a ser particularmente visível em momentos de ascensão do
movimento operário, quando condições econômicas favoráveis conferiam
um maior poder de barganha ao operariado e os movimentos grevistas
tinham maiores chances de sucesso. (BATALHA, 2006, p.172)
45

Em 1889, Teixeira Mendes13 discutiu com 400 operários da União documento


que tratava da necessidade de incorporar o proletariado à sociedade segundo a
visão positivista. O documento propunha uma legislação trabalhista avançada que
previa jornada de trabalho de sete horas, descanso semanal, férias de 15 dias,
licença remunerada para tratamento de saúde, aposentadoria, pensão para viúva,
estabilidade aos sete anos de serviço e etc. (Carvalho, 2005b, p. 52). Tais direitos
hoje nos parecem absolutamente normais e talvez até um pouco tímidos, entretanto
para uma época em que se sentiam ainda os reflexos da escravidão a pouco
vencida, tais direitos eram muito avançados.
No inicio de 1890 houve tentativa de criar o partido Operário (inclusos os
operários do setor privado) França e Silva, líder socialista já citado, e o tenente José
Augusto Vinhaes14 disputaram a liderança operária. Vinhaes teve mais êxito e
depois de eleito para a Constituinte ao defender os direitos dos operários nomeou-se
socialista e foi nomeado pelos adversários de niilista – o que hoje se assemelha à
terrorista.
Batalha pondera ainda sobre a cidadania operária:

As correntes políticas do movimento operário na Primeira República, os


socialistas em particular, propunham em seus programas não apenas
direitos sociais , mas também a ampliação dos direitos políticos, por
exemplo, através da extensão do direito ao voto. Nesse sentido podemos
dizer que lutavam pela cidadania, ainda que o termo não fosse usual no
vocabulário da época. (BATALHA, 2006, p.181)

Segundo José Murilo de Carvalho (2005b), Vinhaes realizou grandes


conquistas em nome dos operários, seus feitos tiveram grande repercussão, pois se
envolveu em diversas greves de natureza política como a dos Ferroviários, dos
estivadores e carroceiros em 1900, também sugeriu e conseguiu a introdução da lei
de proteção ao trabalho do menor (1891) e a Organização do Banco de Operários
(1891). Vinhaes ainda intermediou aquela que José Murilo de Carvalho considera
como a maior conquista do Partido dos Operários, a mudança do Código Penal, nos
artigos que proibiam a greve e a coligação operárias, em dezembro de 1890.

13
Filósofo, autor da bandeira nacional republicana. Participou dos mais importantes eventos políticos
da República Velha: a separação entre a Igreja e o Estado, a revolta da vacina, a negociação dos
limites territoriais , a participação do Brasil na I Guerra Mundial e a legislação trabalhista.
14
Líder operário criou em 1890, o Centro do Partido Operário e fundou o Banco dos Operários. Foi
eleito deputado pelo então Distrito Federal participando da redação da constituição brasileira de1891.
46

Aqui também a tentativa de acesso à cidadania se deu pelas portas ou


porteiros do Estado, o que caracteriza novamente a chamada “estadania”.
Vinhaes, positivista de destaque na República Velha, destaca-se pela
peculiaridade de buscar organizar a classe operária em partidos, movimentos e
representação parlamentar, mas ainda assim o Partido Operário não estava sendo
controlado pelos operários como desejava França e Silva e sim por uma autoridade
estatal, o próprio Vinhaes.
De novo a Estadania misturava-se à cidadania, ou na concepção de José
Murilo provavelmente a superava.

3.6 Os Messiânicos

No mundo rural, foi intensa a luta dos setores subalternos. As figuras centrais
das agitações rurais eram beatos e cangaceiros. O mais dramático de todos esses
movimentos, pelo número de mortos, foi o de Antônio Conselheiro nos sertões da
Bahia.
Jaqueline Hermann no ensaio: “Religião e política no alvorecer da República:
os movimentos de Juazeiro, Canudos e Contestado ” (2006), desenvolve o seguinte
parecer sobre a ideologia em Canudos:

A ética conselheirista é a do sofrimento resignado às leis supremas (...) O


beato prega a continuidade da sujeição à ordem, desde que Deus seja a
autoridade suprema. Todos esses princípios são reafirmados na única
trédica de fundo explicitamente político, Sobre a república. Nesse texto
Antonio Conselheiro deixa claro o limite de sua submissão e prega a
desobediência e o descumprimento das leis civis heréticas e infames.
(HERMANN, 2006, p. 147)

Os beatos do Conselheiro agiram politicamente, ao recusar o pagamento de


impostos e ao rejeitar mudanças nas relações entre Igreja e Estado. Lutando contra
a “lei do cão” do novo regime, os sertanejos deram um exemplo histórico de
fidelidade incondicional às próprias ideias, enfrentaram o Exército, que contra eles
lançou quatro expedições até dizima-los.
Outro movimento messiânico importante foi o do Contestado, localizado em
terras disputadas entre Paraná e Santa Catarina. O monge José Maria dera-lhe
início ainda no Império. Proclamada a República, reagiu contra o que chamava de
“lei da perversão”, o equivalente da “lei do cão” de Canudos. Em 1911, José Maria,
47

lançou um manifesto monarquista e nomeou imperador um fazendeiro analfabeto.


Ainda, criou uma sociedade assemelhada ao comunismo primitivo, sem dinheiro e
sem comércio. Douglas Teixeira Monteiro citado por Hermann (2006, p.154) afirma
que:
“[...] os homens e as mulheres do Contestado viveram uma crise radical ―
“o desencantamento do mundo tradicional do sertão”― através do último
caminho que lhes restara: a religião. Mauricio Vinhas deu feição menos
sagrada e mais material e concreta à luta: apesar de miseráveis e
analfabetos, tiveram “a clara consciência da necessidade de garantir o seu
“direito de terras”, voltando-se contra a “República dos coronéis.”
(HERMANN apud MONTEIRO, 2006, p.154)

Beatos e cangaceiros representavam formas de organização e de reação


construídas à margem do sistema político. Canudos e Contestado, eram modelos
alternativos de governo e foram combatidos e destruídos com violência pelo
Exército.

3.7 As Mulheres

José Murilo de Carvalho em “A formação das almas: o imaginário da


República do Brasil” (2005a) pondera a cerca da participação política feminina
concluindo que não havia povo político masculino muito menos feminino:

se o povo masculino esteve ausente da proclamação, que dizer do povo


feminino? Se não havia povo político masculino, como pensar em povo
político feminino? Havia uma elite política de homens, que eram chamados
públicos. A mulher, se pública, era prostituta. (CARVALHO, 2005a, p. 93)

Dentre os homens havia apenas uma elite masculina politizada. Pensamento


recorrente na época dava conta de que política era coisa de homem.
Os positivistas também consideravam a mulher um ser alheio à política
mesmo afirmando a superioridade da mulher frente ao homem, seu papel era restrito
ao lar, segundo Auguste Conte, assim a mulher garantia a reprodução da espécie e
a saúde moral da humanidade (CARVALHO, 2005ª).
Entretanto, Carvalho joga luz a algumas participações femininas tanto na
Proclamação da República como nos movimentos de ampliação dos direitos.
Ressalte-se que a participação feminina na República não se deu a favor do regime
republicano. Conforme Carvalho, em 1904 durante a revolta contra a vacina, os
48

jornais registraram a participação de prostitutas ao lado dos rebeldes. (CARVALHO,


2005a, p. 93).
Apesar de não estarem intimamente ligadas à Proclamação da República ou
ao Movimento Republicano as mulheres não estiveram excluídas dos movimentos
políticos mais amplos. Por isso este grupo mereceu figurar entre os grupos políticos
neste trabalho, não obstante a afirmação de Carvalho sobre a ausência desse povo
político.
Geralmente as organizações femininas se autodenominavam feministas,
discutiam e propagavam os direitos da mulher. Quase todos os congressos de
mulheres da época se declaravam feministas, e esse era um tipo de iniciativa
frequente no movimento, muitos deles de caráter internacional como foi, em 1906, o
Congresso Internacional do Livre Pensamento organizado pelo Centro Feminista de
Buenos Aires, e o Primeiro Congresso Internacional Feminista, realizado também na
Argentina, em 1910.
Em 1916, outro Congresso Feminista é realizado, desta vez, em Yucatán, no
México. O eixo articulador desses congressos é a demanda pela igualdade jurídica e
o direito ao voto. Em “O movimento feminista no Brasil: dinâmicas de uma
intervenção política” (2005), Ana Alice Alcântara Costa afirma que no Brasil,
surgiram as organizações femininas, sob a orientação do Partido Comunista
Brasileiro, dentre elas a UNIÃO FEMININA, e a ASSOCIAÇÃO FEMINISTA , essas
organizações, tiveram amplo poder de articulação e mobilização no seu campo de
atuação.
O primeiro momento do movimento feminista segundo Ana Alcântara Costa
(2005), em linhas gerais, tinha viés conservador quanto às discussões sobre os
papéis desempenhados pela mulher, em regra reforçando os estereótipos pois
usavam os dotes femininos do cuidado doméstico e caráter maternal como
justificativa para suas reivindicações.
No Brasil, merece destaque a criação do Partido Republicano Feminista no
Rio de Janeiro em 1910, pela baiana Deolinda Daltro15, com o objetivo de mobilizar
as mulheres na luta pelo sufrágio, O Partido Republicano Feminista trouxe para a
sociedade a discussão sobre o direito das mulheres à cidadania, principalmente no
que se refere ao direito de votar e serem votadas.

15
Deolinda Daltro era professora e foi fundadora do Partido Republicano Feminino em 1910, liderou
uma passeata exigindo a extensão do voto às mulheres.
49

Outra organização importante na luta pela ampliação dos direitos foi a


Associação Feminista, de cunho anarquista, com forte influência nas greves
operárias de 1918 em São Paulo.
As duas organizações foram muito ativas e chegaram a mobilizar um número
significativo de mulheres.
A partir dos anos 1920, a luta pelo voto feminino se amplia, em muitos países
latino-americanos, contando com a participação das mulheres de classe alta e
média, que por meio de uma ação direta junto aos aparelhos legislativos, em uma
clara utilização da “estadania”, conquistam o direito ao voto.
No Brasil, o código eleitoral elaborado em 1933 estendeu o direito a voto e a
representação política às mulheres; na Assembleia Constituinte de 1934 houve uma
representante do sexo feminino, a primeira deputada do Brasil: Carlota Pereira de
Queirós.
50

4 A Cidadania

O conceito de cidadania, desde a Grécia antiga, está vinculado à noção de


direitos. Naquela época, privilegiavam-se os direitos políticos, sendo que eles
permitiam o indivíduo interferir nos negócios da cidade. Entretanto, o conceito de
cidadania sofreu modificações em relação ao dos gregos antigos. No fim do século
XVIII assumiu contornos burgueses nas Revoluções Francesa e Inglesa,
representando uma busca por maior participação nas coisas do Estado. No século
XIX e início do Século XX, além dos direitos políticos, o conceito de cidadania
incorporou os direitos civis e sociais.
Atualmente a cidadania, não possui conceito inflexível se apresenta antes
como um conceito histórico, pois possui uma pluralidade de sentidos contrapondo-se
e coexistindo durante a história da humanidade.

4.1 Conceitos e Origens

O conceito de cidadania proposto Marshall na obra “Cidadania, classe social e


status” (1967) é referência teórica fundamental para os que se propõem a pensar e
discutir esse tema. Thomas Humphrey Marshall definiu cidadania como o pleno
exercício de três direitos: civil, político e social. Os direitos civis são os que
abrangem os direitos fundamentais do homem, como o direito à vida, à liberdade, à
propriedade e à igualdade; direito de pensamento e fé, de contratar e o direito à
justiça. Os direitos políticos, que permitem o indivíduo participar do processo
eleitoral e se organizar em partidos políticos, associações e sindicatos; e por último,
os direitos sociais, que consistem no direito à educação, ao trabalho, à saúde e à
aposentadoria. Segundo Marshall (1967), somente o exercício desses três direitos
garante a emancipação humana e a justiça social para o alcance do sujeito pleno.
Importa dizer que o conceito desenvolvido por Marshall foi construído com
base em reflexões e experiências de um sociólogo inserido no Estado de bem-estar
social da Inglaterra da primeira metade do século passado. Portanto reproduz uma
realidade localizada. Na Inglaterra, os direitos vieram na seguinte ordem:

Primeiro vieram os direitos civis, no século XVIII. Depois, no século XIX,


surgiram os direitos políticos. Finalmente, os direitos sociais foram
conquistados no século XX. Segundo ele, não se trata de sequência apenas
51

cronológica: ela é também lógica. Foi com base no exercício dos direitos
civis, nas liberdades civis, que os ingleses reivindicaram o direito de votar,
de participar do governo de seu país. A participação permitiu a eleição de
operários e a criação do Partido Trabalhista, que foram os responsáveis
pela introdução dos direitos sociais. (CARVALHO, 2002, p.10)

Ao aplicar o conceito de Marshall, José Murilo de Carvalho, na obra


“Cidadania no Brasil: O Longo Caminho” (2002) propôs que a construção da
cidadania em nosso País não seguiu a lógica inglesa, em que ocorreram primeiro os
direitos civis, para depois haver a conquista dos direitos políticos e, por último,
alcançar os direitos sociais. No Brasil, de acordo com José Murilo de Carvalho
(2002), ocorreram pelo menos duas diferenças em relação à Inglaterra. A primeira
refere-se à maior ênfase nos direitos sociais em relação aos outros; e a segunda,
refere-se à alteração na sequência em que os direitos foram adquiridos, entre nós, o
social precedeu os demais.
Sobre a anatomia da cidadania Carvalho nos ensina:

Da cidadania como a conhecemos fazem parte então a lealdade a um


Estado e a identificação com uma nação. As duas coisas também nem
sempre aparecem juntas. A identificação à nação pode ser mais forte do
que a lealdade ao Estado, e vice-versa. Em geral, a identidade nacional se
deve a fatores como religião, língua e, sobretudo, lutas e guerras contra
inimigos comuns. A lealdade ao Estado depende do grau de participação na
vida política. (CARVALHO, 2002, p. 12)

Carvalho destaca um fator importante, quiçá fundamental para o que ele


chama de processo histórico de formação da cidadania, a educação popular. Ele a
caracteriza como uma exceção na sequência de direitos, anotada pelo próprio
Marshall. A educação do popular é conhecida como direito social, mas mostra-se
historicamente um pré-requisito para a expansão dos outros direitos.

Nos países em que a cidadania se desenvolveu com mais rapidez, inclusive


na Inglaterra, por uma razão ou outra a educação popular foi introduzi da.
Foi ela que permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e
se organizarem para lutar por eles. A ausência de uma população educada
tem sido sempre um dos principais obstáculos à construção da cidadania
civil e política. (CARVALHO, 2002, p.11)

José Murilo de Carvalho apontou também em seu artigo “Cidadania tipos e


percursos” (1996) a trajetória da cidadania proposta por Bryan S. Turner (1990). Ele
propõe a divisão das tradições da cidadania em dois eixos, o primeiro deles em
relação ao movimento. A Cidadania de baixo pra cima, que segundo Turner é aquela
52

cidadania cujos pilares são as experiências históricas marcadas pela luta por direitos
civis e políticos. Por outro lado, o movimento pode ser de cima pra baixo que é a
cidadania alcançada em países em que o Estado manteve a iniciativa da mudança e
foi incorporando aos poucos os cidadãos, ampliando seus direitos.
No artigo: “Cidadania, estadania, apatia” (Publicado no Jornal do Brasil,
24/06/2001). Carvalho pondera:

O Brasil não se enquadra exatamente em nenhum dos dois casos. Para


início de conversa, pode ser alocado entre os países que seguiram o
segundo modelo. De fato, a independência se fez sem revolução social e
política, o mesmo acontecendo com a proclamação da República e com o
movimento de 1930, chamado embora, o último, de revolução (CARVALHO,
2001, p.8)

O outro eixo apontado por Turner (1990) se refere à diferenciação das


tradições da cidadania em relação à dicotomia público-privado. A cidadania
conforme esta análise pode se dar dentro do espaço público por força de conquista
Estatal ou no espaço privado por força dos cidadãos em busca dos seus direitos
individuais.
O estudo da trajetória brasileira para o alcance da cidadania apresenta
eventos que podem ser enquadrados nos dois modelos durante a república velha. O
sistema político nacional herdado do Império revelou novos vícios e aprofundou
outros, impedindo, assim, o desenvolvimento da plena cidadania no Brasil.

4.2 Os movimentos pela ampliação de direitos

Considerando o cenário até aqui demonstrado, os anos imediatamente


anteriores e posteriores à Proclamação da República foram ambiente favorável a
algumas manifestações de parcela da população que pretendia modificar seu status
dentro da sociedade política. No sentido contrário, houve por parte das autoridades
resistência contínua à ampliação dos direitos da cidadania.
As ideias trazidas da Europa no fim do Império e inicio da República
disseminavam um arsenal de valores burgueses sobre a sociedade brasileira, o
liberalismo alcançava a propriedade rural por meio da Lei de Terras em 1850,
alcançava o capital por meio da Lei das Sociedades Anônimas de 1860, e o trabalho
por meio da Abolição da Escravatura em 1888.
53

Colaborando com as ideias liberais vigorava a constituição de 1824 que


trouxe a liberdade de manifestação, de pensamento, de reunião, de profissão e a
garantia da propriedade.
Esse ambiente propício a discussões políticas evidenciava o caráter da
sociedade que se formava, liberal, mas antidemocrática segundo José Murilo de
Carvalho. Para ele as inovações republicanas no que diz respeito aos direitos
políticos apenas eliminaram a exigência de renda, mas não promoveram um
aumento considerável dos eleitores, mesmo após a implantação do regime apenas
20% da população podia votar.
A tabela a seguir, publicada em “Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a
República que não foi” (2005b) de José Murilo de Carvalho traduz a realidade do
eleitorado brasileiro tendo como modelo o eleitorado do Rio de Janeiro no primeiro
ano da República.

Tabela I
Eleitorado Potencial do Rio de Janeiro, 1890

População fixa total 515 559


Excluindo menores de 21 anos, ficam 299 827
Excluindo as mulheres, ficam 174 565
Excluindo os analfabetos, ficam 118 704
Excluindo as praças de pré e frades, ficam 109 421
Fonte: CENSO DE 1890

A tabela traz os números da exclusão de eleitores, 80% da população não


tinham direito ao voto e entre os que tinham apenas 7% votaram na eleição da
Assembleia Constituinte em 1.890.
Além de ter havido um aumento insignificante do eleitorado com o advento da
República era comum a concepção de que deveria existir uma importante distinção
entre sociedade civil e sociedade política já que na concepção liberal restritiva da
participação, o direito político não é natural, é concedido pela sociedade àqueles que
ela julga merecedores dele. (CARVALHO, 2005b).
54

Nesta concepção, a exclusão dos pobres, mendigos, mulheres, menores de


idade, os praças de pré e os membros de ordens religiosas é legítima, já que voto
deveria ser uma função social, ou seja, dever, não direito. (CARVALHO, 2005b, p.
85)
O regime republicano fez muito pouco em termos de expansão de direitos
civis e políticos e houve retrocessos nos direitos sociais. A cidadania era castrada
desde a sua possível formação, como exemplo ele cita a situação dos analfabetos,
em que se exigia para a cidadania política uma qualidade que só o direito social da
educação poderia fornecer, sendo assim a República era liberal, mas
antidemocrática. Dessa maneira, se não aumentava a participação popular,
aumentava o poder das elites dominantes.

Algumas mudanças, como a eliminação do Poder Moderador, Do Senado


vitalício e do Conselho de Estado e a introdução do federalismo, tinham
sem duvida inspiração democratizante na medida em que buscavam
desconcentrar exercício do poder. Mas, não vindo acompanhadas por
expansão significativa da cidadania política, resultaram em entregar o
governo mais diretamente nas mãos dos setores dominantes [...].
(CARVALHO, 2005b, p. 45)

Esta timidez Republicana no que diz respeito à ampliação da participação


popular frustra a base da propaganda Republicana que eram as promessas
democratizantes. A ideia de povo e de pátria era a de unir a todos.
No artigo: “O pecado original da República: Como a exclusão do povo marcou
a vida política do país até os dias de hoje” (2005), publicado no site da Revista de
História da Biblioteca Nacional, José Murilo de Carvalho considera:

Um ponto central da propaganda republicana era a ideia de autogoverno, do


povo governando a si mesmo, do país se autodirigindo, sem necessidade de
uma família real de origem europeia e de um imperador hereditário. Das três
correntes principais da propaganda, a jacobina era a que atribuía maior
protagonismo ao povo. (CARVALHO, 2005, p.1)

Apesar da pouca abertura estatal para a participação dos cidadãos ocorreram


alguns movimentos, em sua maioria urbanos, em prol dos direitos, mas dado o
caráter rural do país e a vastidão territorial do mesmo, foram pouco sentidos no meio
rural, na maioria das vezes completamente desconhecidos, tais como as
reivindicações de militares e operários consideradas neste trabalho. Com exceção
óbvia aos movimentos messiânicos do meio rural.
55

Para ilustrar o quadro da participação popular, José Murilo de Carvalho, no


artigo “O pecado Original da República” (2005c) faz a seguinte afirmação:

Até 1930, pode-se dividir o povo da República em três partes. Imaginemos


um grande círculo contendo em si círculos menores. O grande círculo
representa o total da população do país; os círculos menores, as parcelas
dessa população dividida de acordo com sua participação política.
Movimentando-nos do centro para a periferia, chamemos o círculo menor de
povo eleitoral, isto é, aquela parcela da população que votava; o círculo
seguinte, um pouco maior, representa o povo político, isto é, a parcela da
população que tinha o direito de voto de acordo com a Constituição de
1891; o círculo seguinte é o do povo excluído formalmente da participação
via direito do voto com os dados do censo de 1920, teremos uma população
total, representada pelo círculo maior, de 30,6 milhões. Este é o povo do
censo que, pelo menos em tese, possuía direitos civis. Mas quantos desses
cidadãos civis eram também cidadãos políticos, quantos pertenciam ao
corpo político da nação? Ficamos reduzidos a míseros 2,4 milhões de
brasileiros legalmente autorizados a participar do sistema político por meio
do voto. Ficam fora do sistema, excluídos, 28,2 milhões, 92% da população.
(CARVALHO, 2005, p.2)

No mesmo artigo, Carvalho conclui que o pecado da República foi não


cumprir com sua promessa de ampliação da participação política e promoção do
autogoverno do povo, diz ainda que a República não unificou os três povos, não os
incorporou. Não os transformou em cidadãos. A ausência de povo deixou marcas
profundas na vida política do país. A apatia popular nas coisas da política até hoje é
prova disso.

4.4 O vazio da cidadania na República Velha

Conforme demonstrado até aqui, apesar das tentativas de resistência ao


regime republicano por determinados setores bem como dos ideais políticos dos
grupos da elite que tencionaram moldar o regime para atender seus anseios, a
cidadania em seu sentido completo não foi desejada ou conquistada no período da
República Velha.
Nenhuma das ideologias das três correntes republicanas contemplou a
cidadania em seu conceito clássico, nos moldes de T.H Marshall.
No que se refere à abertura para a participação popular, Carvalho (2007)
ministra que a corrente mais forte era a liberal-federalista, de derivação anglo-
americana. O liberalismo predominou no Manifesto Republicano de 1870, e tem
56

como expoente Saldanha Marinho16. Esta corrente admitia participação popular,


embora sem lhe atribuir o primeiro plano, como faziam os jacobinos.
Os jacobinos por sua vez, representados por Silva Jardim, grande agitador
popular inspirado na retórica da Revolução Francesa, introduziram uma concepção
de cidadania que coloca o povo como entidade abstrata e homogênea, falando com
uma só voz para defender interesses comuns (CARVALHO, 2007, p.1)
A corrente, positivista, era a única que não previa papel ativo para o povo na
República. Os protagonistas do regime seriam, no campo espiritual, os próprios
positivistas, no campo material, os empresários. Segundo José Murilo de Carvalho
(2007) esta corrente não incluía os direitos políticos, não aceitava partidos ou a
democracia representativa. Admitia apenas a satisfação de alguns direitos civis e
sociais tidos como obrigação do Estado para com o povo, o Estado deveria agir em
favor do povo por conta própria, o povo não deveria reivindicar.
Sem governantes que desejassem a cidadania, sem povo politizado e sem
tradição revolucionária, a maneira brasileira para o percurso da cidadania
diferenciou-se da de outros países, entretanto, não se pode dizer com isso que foi
um percurso deficiente, apenas diferente.

O ponto de chegada, o ideal da cidadania plena, pode ser semelhante, pelo


menos na tradição ocidental dentro da qual nos movemos. Mas os
caminhos são distintos e nem sempre seguem linha reta. Pode haver
também desvios e retrocessos, não previstos por Marshall. O percurso
inglês foi apenas um entre outros. A França, a Alemanha, os Estados
Unidos, cada país seguiu seu próprio caminho. O Brasil não é exceção.
Aqui não se aplica o modelo inglês. Ele nos serve apenas para comparar
por contraste. (CARVALHO, 2002, p.11)

Por meio da leitura das obras de José Murilo de Carvalho podem-se identificar
alguns fatores que condicionaram a história do país nesse sentido, três deles já
considerados nesse trabalho: a escravidão, a grande propriedade rural e o Estado
comprometido com o poder privado. (CARVALHO, 2002, p.45).
Com relação à abolição da escravatura, os libertos não tinham educação,
casa ou emprego e por isso mesmo livres foram submetidos aos trabalhos mais
exaustivos e mal remunerados. A população formada por eles teria uma dificuldade
óbvia em conquistar os direitos da cidadania, visto que eram impotentes perante

16
Joaquim Saldanha Marinho foi advogado, presidente de Minas Gerais e São Paulo, primeiro líder
do Partido Republicano (1870) candidato contra Prudente de Morais à Presidência da Constituinte
Republicana e foi o autor da frase “Não era essa a República dos meus sonhos”.
57

estrutura pós-escravagista e liberal daquele período. Não tinham informação,


educação ou outros meios de influir na política local.
O outro grande obstáculo à expansão da cidadania, herdado da Colônia, foi a
grande propriedade rural comandada pelo coronel. O coronelismo impedia a
participação política independente. A participação resumia-se ao voto, ainda assim,
maculado. Nas fazendas, imperava a lei do coronel, criada por ele e executada por
ele. A justiça e a polícia controladas por ele impossibilitavam o exercício dos direitos
civis. Assim, Carvalho considera: “[...] Nessas circunstâncias, não poderia haver
cidadãos políticos. Mesmo que lhes fosse permitido votar, eles não teriam as
condições necessárias para o exercício independente do direito político”.
(CARVALHO, 2002, p.57).
Em contra ponto a esses dois empecilhos derivados do caráter rural do país,
“[...] o surgimento de uma classe operária urbana deveria significar a possibilidade
da formação de cidadãos mais ativos”. (Carvalho, 2002, p.57). Nesse ponto, o autor
afirma ainda que apesar de pequeno, o grupo de trabalhadores urbanos
apresentava alguma diversidade social e política. Talvez por isso o movimento
operário como um todo foi o mais agressivo no centro urbano, culminando em uma
grande greve geral em 1917.

Sob o ponto de vista da cidadania, o movimento operário significou um


avanço inegável, sobretudo no que se refere aos direitos civis. O movimento
lutava por direitos básicos, como o de organizar-se, de manifestar-se, de
escolher o trabalho, de fazer greve. Os operários lutaram também por uma
legislação trabalhista que regulasse o horário de trabalho, o descanso
semanal, as férias, e por direitos sociais como o seguro de acidentes de
trabalho e aposentadoria. (CARVALHO, 2002, p.60)

Contudo, o grupo operário enfrentava conflitos internos além da repressão


comandada por patrões e pelo governo, visto que o governo estava profundamente
comprometido com o poder privado o que certamente contribuiu para a perda de
força do movimento operário durante a década de 1920, só vindo a ressurgir após
1930.
Segundo Carvalho, no que se refere ao direito social do trabalho havia um
grande empecilho, a Constituição Republicana (1891) proibia o governo federal de
interferir na legislação trabalhista. “[...] Tal interferência era considerada violação da
liberdade do exercício profissional.” (2002, p.62).
58

Como consequência desse dispositivo de cunho liberal, não houve medidas


do governo na área trabalhista. Só em 1926, quando a Constituição sofreu sua
primeira reforma, é que o governo federal foi autorizado a legislar sobre o trabalho.
Ainda assim, fora o Código dos Menores de 1927, nada foi feito até 1930. As
reivindicações dos operários eram intensas, mas conforme se lê no trecho abaixo
apenas duas leis importantes foram criadas, e tiveram efetividade questionável.

Em 1919, uma lei estabeleceu a responsabilidade dos patrões pelos


acidentes de trabalho. Era um passo ainda tímido, pois os pedidos de
indenização deviam tramitar na justiça comum, sem interferência do
governo. Em 1923, foi criado um Conselho Nacional do Trabalho que, no
entanto, permaneceu inativo. Em 1926, uma lei regulou o direito de férias,
mas foi outra medida "para inglês ver”. (CARVALHO, 2002, p. 63)

Nesse sentido podemos perceber que devido ao quadro de dificuldades


apresentado por Carvalho sobre os direitos civis e políticos, muito pouco poderia
haver sobre a conquista de direitos sociais. Além das dificuldades relativas ao
direito trabalhista, Carvalho considera que “[...] A assistência social estava quase
exclusivamente nas mãos de associações particulares” (2002, p. 61). Operavam
nesse setor irmandades religiosas associações e as Santas Casas da Misericórdia.
Segundo Carvalho após a assinatura pelo Brasil, em 1919, do Tratado de
Versalhes e do ingresso do país na Organização Internacional do Trabalho (OIT),
algum progresso foi feito, mas tímido, destacando-se a criação de uma Caixa de
Aposentadoria e Pensão para os ferroviários, em 1923. (2002, p. 63). Essa lei
atribuía a responsabilidade de contribuição conjunta ao governo, aos operários e aos
patrões; entre outras determinações sobre a administração desse fundo. Em 1926,
foi criado um instituto de previdência para os funcionários da União.
É importante lembrar que essas leis só tinham eficácia no meio urbano. No
meio rural, a assistência social que existia era aquela exercida pelos coronéis, já
mencionada no título 2.2 sobre o “Coronelismo”.
Por todas as características apresentadas até aqui, poderia se pensar que
não havia cidadania no período estudado (1.889 a 1.930). De fato, a cidadania
plena, que combine liberdade, participação e igualdade para todos, nos moldes
ocidentais, cuja manifestação popular se dá na esfera do sistema legal sob moldes
oficiais, não houve.
59

Aí reside o vazio da cidadania na República Velha, ao que Carvalho intitula


de cidadania em negativo, para ele, quando o povo agia politicamente, em geral o
fazia como reação ao que considerava arbítrio das autoridades. Como no caso da
revolta da vacina que aconteceu em novembro de 1904 no Rio de Janeiro.
Essa oposição popular teve como principal fundamento um sentimento
moralista. Conforme Carvalho espalhou-se a notícia de que os médicos do governo
visitariam as famílias para aplicar a vacina contra varíola nas coxas, ou mesmo nas
nádegas, das mulheres e filhas dos operários. Esse boato teve um peso decisivo na
revolta. “[...] A ideia de que, na ausência do chefe da família, um estranho entraria
em sua casa e tocaria partes íntimas de filhas e mulheres era intolerável para a
população” (CARVALHO, 2002, p.75).
A população considerou isso uma ofensa à honra do chefe da casa. Daí a
reação ao arbítrio das autoridades. Entretanto nas coisas do Estado de maneira
geral o homem comum não se envolvia.
Carvalho acrescenta em sua reflexão que apesar dessa aparente apatia,
erraram os que intitularam o povo de bestializado: “[...] Aos grandes acontecimentos
políticos nacionais, ele assistia, não como bestializado, mas como curioso,
desconfiado, temeroso, talvez um tanto divertido.” (CARVALHO, 2002, p.83)

O Estado aparece como algo a que se recorre, como algo necessário e útil,
mas que permanece fora do controle, externo ao cidadão. Ele não é visto
como produto do concerto político, pelo menos não de um concerto em que
se inclua a população. É uma visão antes de súdito que de cidadão, de
quem e coloca como objeto da ação do Estado e não de quem se julga no
direito de influenciar. (CARVALHO, 2005b, p.146-147)

Sendo assim, podemos afirmar que mesmo não havendo um povo político
organizado (no sentido oficial), detentor dos direitos políticos, civis e sociais em
plenitude, existiu na República Velha certo sentimento de identidade nacional.
Conforme descrito em outro ponto desse trabalho (p.29), havia participação popular
na maior parte das vezes de natureza religiosa e social. Tal sentimento de
identidade podia ser encontrado, por exemplo, nas manifestações e nas grandes
festas populares. Segundo José Murilo de Carvalho, Esse sentimento acompanha
quase sempre a expansão da cidadania, sem, entretanto se confundir com ela.
60

4 CONCLUSÃO

No inicio da República nasceram ou se desenvolveram várias concepções


sobre a participação popular na política, nem sempre compatíveis entre si.
Entretanto, não se pode concluir nessa pesquisa que a atuação dos diversos grupos
políticos no período estudado se pautasse em uma luta pelos direitos de cidadania
no modelo de Marshall, qual seja: a conquista dos direitos políticos, civis e sociais.
Se a mudança de regime político despertava em vários setores da população a
expectativa de expansão dos direitos políticos e de redefinição de seu papel na
sociedade política, razões ideológicas e as próprias condições sociais do país
fizeram com que o ideal de participação não fosse alcançado.
O setor vitorioso da elite civil republicana ateve-se apenas ao conceito liberal
de cidadania criando todos os obstáculos à democratização. O positivismo desejava
a ampliação dos direitos sociais, mas não admitia manifestação popular para isso. O
anarquismo negava legitimidade à ordem política, assim, só admitindo a ideia de
cidadania no sentido amplo de fraternidade universal. Os socialistas democráticos
foram os únicos a propor a ampliação dos direitos políticos e sociais dentro das
premissas liberais, mas ainda assim não perseguiram a contemplação dos direitos
da cidadania.
A situação era de impasse, o que havia era a negação da participação, a
participação autoritária e a alienação. Tais ideais não se compatibilizavam com o
conceito de cidadania de Marshall.
Pode-se dizer que em resumo, o patrimonialismo, o coronelismo, o
clientelismo e o personalismo se infiltraram em nossas instituições políticas e
sociais, e evitaram o pleno exercício dos direitos que plasmam a cidadania e mais ,
não possibilitaram ao menos que fossem almejados.
A reação pragmática a esta situação por parte dos que se viam excluídos do
sistema vigente à época foi a “estadania”, a participação, não através da luta popular
pela satisfação dos interesses, mas a partir da máquina estatal.
A conclusão possível é que não houve no período estudado a cidadania
clássica de Marshall que Carvalho define como aquela que integra as pessoas ao
governo por meio da participação política, que integra as pessoas na sociedade
garantindo seus direitos individuais e as integra ao patrimônio coletivo por meio da
justiça social.
61

O estudo das lições dos diversos autores aqui citados e principalmente das
obras de José Murilo de Carvalho, esclarece que a inserção das pessoas na política
se dava mais pela porta do Estado, ao que ele chamou de “estadania” do que pela
afirmação de um direito de cidadão.
62

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