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Copyright O 1997, Iná Elias de Castro, Paulo Cesar da Costa Gomes, Roberto voga do SO

Lobato Corrêa, Marcelo Lopes de Souza, Paul Claval, Zeny Rosendahl, Maurício ato Ve
Maria
de Almeida Abreu, Pedro de Almeida Vasconcelos, Olga Maria Schild Becker
ape ne
Capa: projeto gráfico de Leonardo Carvalho, usando detalhe da tela Vôgelteich am
Rio de S. Francisco, atribuída a Carl Friedrich Phillip von Martius, nanquim e sépia,
30,5 x 40,5em (Fundação Maria Luísa e Oscar Americano, São Paulo, Brasil)

Editoração: DFL Sumário


2010
Impresso no Brasil
Printed in Brazil

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

E96 Explorações geográficas: percursos no fim do Século / Iná


42 ed. Elias de Castro, Paulo Cesar da Costa Gomes, Roberto Lobato Apresentação
Corrêa (organizadores). - 42ed. — Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2010.
368p. Geografia fin-de-siêcle: O discurso sobre a ordem
ISBN 978-85-286-0626-3 espacial do mundo e o fim das ilusões 13
1. Geografia. I. Castro, Iná Elias de. II. Gomes, Paulo Cesar Paulo Cesar da Costa Gomes
da Costa. II. Corrêa, Roberto Lobato.

CDD - 910 A expulsão do paraíso. O “paradigma da complexi-


97-1616 CDU - 910
dade” e o desenvolvimento sócio-espacial
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Marcelo Lopes de Souza

Todos os direitos reservados à: As abordagens da Geografia Cultural


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Iná Elias de Castro
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AS ABORDAGENS DA
GEOGRAFIA CULTURAL

Paul Claval*

A geografia cultural está associada à experiência que


os homens têm da Terra, da natureza e do ambiente, estu-
da a maneira pela qual eles os modelam para responder às
suas necessidades, seus gostos e suas aspirações e procura
compreender a maneira como eles aprendem a se definir, a
construir sua identidade e a se realizar.
A geografia cultural demorou muito para se consti-
tuir, uma vez que ela necessita, para se desenvolver, que a
disciplina não seja somente uma ciência natural de paisa-
gens e de regiões, como o era no começo do século, e que
não se reduza à análise dos mecanismos que permitem às
sociedades funcionar, triunfando sobre o obstáculo da dis-
persão e da distância, segundo os esquemas que prevale-
ciam nos anos 1960. É preciso que ela se torne uma refle-
xão sobre a geograficidade, ou seja, sobre o papel que o

* Traduzido do francês por Paulo Cesar da Costa Gomes.

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS AS ABORDAGENS DA GEOGRAFIA CULTURAL

espaço e o meio têm na vida dos homens, sobre o sentido demos reencontrá-la na idéia de força determinante das
que eles lhes dão e sobre a maneira pela qual eles os utili- culturas utilizada por Pierre Gourou ao longo de toda a sua
zam para melhor se compreenderem e construírem seu ser carreira.
profundo. As idéias de Eric Dardel, que foi o primeiro a Existe uma outra maneira, entre os geógrafos france-
lutar por esta concepção verdadeiramente humana da geo- ses, de explorar os fatos da civilização: estudar os traços
grafia, levaram mais de vinte anos para serem reconheci- culturais, sua distribuição e a marca que eles imprimem na
das: as mentalidades não estavam suficientemente maduras paisagem. Este estilo de análise foi posto em prática por
para a mudança radical na concepção da disciplina como Jean Brunhes e desenvolvido por Pierre Deffontaines. Deu
ele recomendava. origem a monografias apaixonantes que, no entanto, abor-
Dizer que a geografia cultural só pôde se desenvolver dam a cultura pelo exterior e se recusam a realizar o ques-
recentemente não quer dizer que este domínio tenha per- tionamento das representações e dos valores que levam as
manecido ignorado pelos pesquisadores. Eles o aborda- pessoas a agirem de uma certa maneira ao invés de outra, a
vam, mas não dispunham dos meios necessários para anali- organizar o espaço segundo um modelo ao invés de outro.
sá-lo em todas as suas dimensões. As abordagens que prati- Pierre Deffontaines aborda a geografia religiosa através das
cavam eram sempre parciais. Alguns exemplos o mostram marcas que esta imprime nas paisagens (igrejas, mesquitas,
muito bem: na França, no começo do século, a noção de santuários, templos, cruz etc.) pelos obstáculos que ela im-
gênero de vida tem uma dimensão ecológica, naturalista; põe a certos gêneros de vida (obrigação do jejum na sexta-
ela serve primeiramente para mostrar como os grupos se feira, interdição do álcool e do consumo da came de porco,
adaptam ao ambiente. Ela tem também, entretanto, uma por exemplo), e pelos gêneros de vida que ela faz nascer (o
dimensão social e cultural: como nota Vidal de la Blache, a dos padres ou dos monges). A religião não é nunca tratada
força do hábito torna-se tão forte que o grupo humano per- nela mesma (DEFFONTAINES, 1948).
de sua plasticidade. Ao invés de se adaptar ao meio, ele Nos Estados Unidos, Carl Sauer se interessa pelas
procura modificá-lo para permanecer com seus hábitos: transformações que a cultura impõe aos ambientes natu-
observa-se por ocasião das migrações; os recém-chegados rais. Ele estuda as paisagens para dimensionar como o ho-
em um país fazem em geral de tudo para continuar a viver men modifica, de forma mais ou menos profunda, o que ele
como eles o faziam em seus países de origem. Vidal de la encontra, instalando-se em meios ainda naturais (SAUER,
Blache, que faz do gênero de vida um dos eixos da geogra- 1963). Aqui ainda a abordagem é exterior.
fia humana que ele elabora, é, desta forma, o primeiro a A geografia cultural de língua alemã se interessa tam-
sugerir que ele pode ter uma dimensão cultural. A idéia bém pela paisagem. Ela estuda a presença de traços cultu-
está presente em muitos trabalhos da escola francesa. Po- rais, à maneira de Jean Brunhes, o recuo da floresta e de

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS AS ABORDAGENS DA GEOGRAFIA CULTURAL

outras formações naturais diante do machado dos cultiva- A geografia cultural parte das sensações e das
dores e das queimadas repetitivas dos criadores de gado. representações
Ela se interessa, também, pela harmonia profunda que se
observa, às vezes, entre a organização do espaço, os traços O homem apreende o mundo através dos seus senti-
visíveis da paisagem e a alma do povo que a modelou dos: ele observa as formas, escuta os barulhos e sente os
(ANDREOTTI, 1994; 1996). odores daquilo que o envolve. Os movimentos do seu cor-
A geografia cultural moderna, ao fazer do homem o po constituem uma experiência direta do espaço. O gosto
centro de sua análise, foi obrigada a desenvolver novas abor- lhe revela, quando ele come ou bebe, outras propriedades
dagens. Ela se construiu em tono de três eixos que são do mundo que o envolve. O homem age primeiramente
igualmente necessários e complementares: primeiro, ela em função das indicações que ele recebe dos seus sentidos.
parte das sensações e das percepções; segundo, a cultura é As sensações são uma apreensão do real, mas só se
estudada através da ótica da comunicação, que é, pois, com- tornam seguras quando assumem uma forma estável. Isto
preendida como uma criação coletiva; terceiro, a cultura é ocorre quando se superpõe à sensação uma percepção. Os
apreendida na perspectiva da construção de identidades, homens quase sempre ouviram falar de lugares que eles
insiste-se então no papel do indivíduo e nas dimensões sim- abordam antes de os pisarem, de modo que seu olhar não é
bólicas da vida coletiva. mais perfeitamente novo. Sua experiência é guiada por
aquilo que eles aprenderam ao escutarem as pessoas em
torno deles e discutindo com elas. A geografia que estuda
Os três eixos da análise geográfica da cultura grupos humanos se detém nos discursos e nas representa-
ções que os codificam, uma vez que estas últimas traduzem
Até os anos 1960, o desenvolvimento da geografia cul- maneiras de ver padronizadas.
tural esteve arrefecido pela sua recusa de se afastar da pai- As representações que o indivíduo recebe através de
sagem ou dos artefatos e por se interessar pelo que se passa sua educação, que ele aprende no contato com outros, que
no espírito das pessoas. Este bloqueio diminuiu hoje em ele constrói e que reinterpreta, constituem um universo
dia. Por se interessar primeiramente pelos homens, os estu- mental que se interpõe entre as sensações recebidas e a
dos podem hoje ir muito mais longe do que no passado. imagem construída em seu espírito. As representações for-
necem malhas para apreender o real. Elas permitem su-
perpor ao aqui e ao agora os algures, que são sociais, geo-
gráficos ou metafísicos. Elas dão assim origem a valores e
instituem uma ordem normativa.

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS AS ABORDAGENS DA GEOGRAFIA CULTURAL

Os homens não agem em função do real, mas em “naturais do corpo, de modo que
se adquire, ao manipulá-
razão da imagem que fazem dele. Aproximar-se da geogra- los, o know how daqueles que os conceber
am. As mídias
fia cultural é, antes de mais nada, captar a idéia que temos modernas permitem as trocas orais
e a aprendizagem pela
do ambiente próximo, do país e do mundo. É se interrogar imitação dos gestos. Elas substituem mal
a escrita para a
em seguida sobre a maneira como as representações são veiculação das idéias abstratas ( MCLUHAN,
1968).
construídas, sobre o seu papel no modelamento do real e As informações que compõem as culturas
transitam
sobre sua permanência, sua fragilidade e as reações que sem cessar de indivíduo para indivíduo.
Elas passam de
provocam. na geração a outra, de modo que
a sociedade permanece
ainda que seus velhos desapareçam e sejam
substituídos pe-
los jovens. Elas circulam entre vizin
hos, entre amigos, entre
A dimensão coletiva: a cultura deve ser estudada sob a parceiros de trabalho ou de negócios. Cada
um recebe, ao
ótica da comunicação longo dessas trocas, know how, conh
ecimentos e scabio
lindos e crenças que lhes eram estranhas; reté
m-se e inte-
O estudo da dimensão coletiva dos fatos culturais foi rioriza-se uma parcela mais ou menos larga.
renovado pelos progressos da lingiística e da teoria da O conteúdo das mensagens trocadas não
pode geral-
comunicação. A cultura é feita de informações que circu- mente ser compreendido fora do contexto
onde se encon-
lam entre os indivíduos e lhes permitem agir. Códigos ser- tram os parceiros. Os jovens citadinos
aprendem o que é o
vem para organizá-los ou para trocá-los. centro de sua cidade sem que isto jama
is lhe tenha sido
As informações que constituem a cultura concemem o explicado: eles vislumbram o termo asso
ciando-o a um cer-
ambiente natural no qual vivem os homens, a maneira de to bairro, ao comércio, aos bares ou
aos bancos que ali se
produzir alimentos, energias e matérias-primas, assim como encontram. Assim, o que eles adquirem
só é válido dentro
as formas de construir instrumentos e de empregá-los para dos limites do grupo de intercomunic
ação ao qual eles per-
criar ambientes artificiais. As informações que constituem a tencem (STASZAK, 1997).
:
cultura tratam em seguida da sociedade, da natureza, dos Esta perspectiva sublinha que a cultura
é antes uma
laços que unem seus membros e das regras que devem ser realidade de escala local: de um círculo
de interação a ou-
respeitadas nas relações que se estabelecem. tro, trocas têm lugar; equivalências se dese
nvolvem, de mo-
Essas informações se transmitem pela observação e do que a comunicação seja possível,
porém nem tudo é
imitação, pela palavra ou pela escrita. Os instrumentos transmitido. Não existe compreensão real
dos processos cul-
têm, assim, um papel importante neste domínio: eles foram turais se negligenciarmos o jogo da intersub
jetividade,
concebidos para guiar os gestos e tirar partido dos ritmos

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AS ABORDAGENS DA GEOGRAFIA CULTURAL
EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS
não se pode alcançar, ou em um futuro indefinido da
A dimensão individual: a cultura forja identidades
Utopia. O mundo real é duplicado por mundos imagina-
dos, que são indispensáveis para lhe dar sentido e apare-
Assim concebida, a cultura não aparece como uma
cem fregientemente como mais autênticos do que aqueles
totalidade que encontraríamos identicamente em todos os
que nossos olhos desvelam. Esses algures afloram em cer-
membros de uma sociedade, como poderia ser o caso de
tos lugares. Eles transformam a sua natureza: ao universo
um mesmo software implantado em milhares de computa-
profano do mundo ordinário se opõem as praias sagradas
dores. Ela resulta de um processo de construção sem fim,
levado a cabo pelos indivíduos.
que manifestam aqui embaixo a existência desses algures
É ao longo da infância que a acumulação de know
(ELIADE, 1965).
A cultura incorpora, assim, valores. Estes têm uma tri-
how, de conhecimentos, de preferências e de crenças toma
pla finalidade: primeiro, guiar a ação, inscrevendo-a em um
forma: o jovem aprende a falar, a se deslocar e a agir den-
quadro normativo; segundo, sublinhar a especificidade de
tro do meio familiar; mais tarde, ele é submetido à apren-
tudo que é social, alçando a uma dignidade superior o que
dizagem, ou vai à escola.
A acumulação de informações estruturadas que resul- passa por procedimentos de institucionalização, e, terceiro,
ta deste processo tem por objetivo dotar cada um da baga-
dar um sentido à vida individual e coletiva.
gem de conhecimentos indispensáveis para trabalhar e A formação dos indivíduos termina quando eles inte-
riorizam o quadro de valores que os insere em um destino
para se integrar à sociedade. A cultura, no entanto, não se
resume a isto: ela serve para dar um sentido à existência coletivo. Esta etapa importante dá lugar a ritos de passa-
gem no momento da adolescência (ERKSON, 1972). É nes-
dos indivíduos e dos grupos nos quais eles estão inseridos.
As informações que circulam nas células do corpo social te momento que a institucionalização do indivíduo termina
e que ele tem acesso ao mundo social pleno, o dos adultos.
comportam narrativas que contam a origem do mundo, o
Ele adquire uma identidade que lhe dá um estatuto no gru-
primeiro homem e a constituição da sociedade; elas inse-
po e o faz existir face às outras coletividades.
rem a existência de cada um em um destino coletivo e lhe
O processo de interiorização e de reconstrução indivi-
dão uma significação.
As perspectivas necessárias aos indivíduos para que dual da cultura não pára na adolescência. Possibilidades de
suas vidas não pareçam inúteis são abertas pela tomada em adquirir novos conhecimentos, de dominar novas técnicas,
consideração do algures, de onde as coisas podem ser vis-
de experimentar novos valores se oferecem permanente-
tas com recuo: eles podem estar situados para além do céu mente. Os empréstimos se sucedem, mas alguns são recu-
ou da razão, ou aqui embaixo, mas nos tempos recuados da
sados, pois colocariam em perigo a identidade individual e,
Idade do Ouro, em uma Terra sem Mal tão afastada que
numa outra escala, a estrutura do grupo. Para aqueles que

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS AS ABORDAGENS DA GEOGRAFIA CULTURAL

não se detêm diante dos obstáculos experimentam fases de Apreensão do mundo através dos sentidos
crise e de reconstrução do eu, frequentemente difíceis;
elas precedem e acompanham as conversões. No nível Se a geografia cultural se dedica à experiência que os
coletivo, as bases morais sobre as quais a sociedade está homens têm do mundo, da natureza e da sociedade, ela
edificada podem ser transformadas, mas ao preço de revo- deve partir daquilo que os seus sentidos lhes revelam. Os
luções que são sempre duras de viver, mesmo que elas não estudos não faltam a este compromisso, mas eles se detêm
sejam acompanhadas por revoltas, massacres ou guerras quase exclusivamente sobre a visão. O olhar que os ho-
civis. mens projetam sobre o ambiente obteve a atenção dos
O processo de institucionalização não diz respeito geógrafos, uma vez que é ele que permite estruturar o
somente ao indivíduo e à sociedade. Ele se aplica aos siste- espaço, de opor o próximo ao distante, de distinguir planos
mas de relações cada vez que estes concernem à riqueza, escalonares e perceber a realidade em múltiplas escalas —
ao poder, ou ao prestígio e interferem por isso no funciona- é sobre esta propriedade que se baseia toda a orientação
mento da sociedade. A abordagem cultural torna-se, assim, geográfica.
indispensável para compreender a arquitetura das relações Mas o olho não é um instrumento neutro: o que nós
que dominam a vida dos grupos. Ela renova a geografia vemos nos agrada, nos emociona, nos amedronta. O olhar
social. Ela ilumina a vida econômica à medida em que põe participa da experiência que temos dos lugares e de sua
em evidência os objetivos perseguidos pelas famílias e dimensão emotiva — por vezes estética.
pelas empresas: suas lógicas dependem da maneira como A audição não tem a mesma significação: ela fornece
elas estão estruturadas e dos valores que as guiam. apenas uma idéia imperfeita da geometria do mundo; ela
informa sobre a direção de onde provêm os sons que per-
cebemos, mas só traduz aproximativamente suas distâncias.
As abordagens culturais: cultura e relações A passagem do agudo ao grave denota, ao contrário, o
com o espaço movimento. O ambiente sonoro faz parte da imagem que
guardamos dos lugares. A lembrança mais forte que guar-
Os geógrafos tiram partido destas orientações recen- damos deles é, no entanto, frequentemente dada pelo olfa-
tes da reflexão (CLAVAL, 1992; 1995; FOOTE et alii, 1993) to: não esquecemos o odor dos maquis da Córsega na pri-
para compreenderem como a cultura define o espaço. mavera, o odor do feno grego nos campos da África do
Norte ou, ainda, da terra depois da chuva de abril, o odor
do feno recém-cortado ou o perfume dos campos de lavan-
da no vapor do mês de julho.

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS AS ABORDAGENS DA GEOGRAFIA CULTURAL
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A experiência do gosto é menos diretamente associa- das entre nosso mundo e o Outro mundo, passa pelo cen-
da aos lugares: a terra não é degustada, só raramente se tro do espaço terrestre. Certa montanha é sagrada e é a
mastiga plantas selvagens. Entre os sentidos, o paladar é o partir dela que o sistema do mundo se ordena — pense-
mais socializado (PITTE, 1991). É através dele que fazemos mos no monte Méru (ELIADE, 1965).
a experiência do cru e do cozido, daquilo que separa os
homens das espécies animais. Os sabores e os odores dos
alimentos consumidos durante a infância estão associados à Cultura e domínio da natureza
imagem do país natal, da família e das tradições que repre-
senta. A cultura não fala somente do espaço; ela fala tam-
bém da natureza. Ela o toma simultaneamente como um
meio a dominar para extrair aquilo que é necessário à exis-
A estruturação do espaço tência e como um conjunto carregado de sentidos.
Os homens tiram de seu ambiente aquilo que eles
O espaço que percebemos é codificado por categorias têm necessidade. Eles procedem pela coleta (o que supõem
que permitem estruturá-lo: ele é ordenado em relação a que eles reconheçam, entre as dezenas ou centenas de
um ponto de origem e às direções, o que permite situar os espécies, aquelas que são nutritivas, aquelas que são vene-

lugares uns em relação aos outros. Se a observação funda- nosas, aquelas que fornecem fibras etc.), pela pesca ou pela
mental se der à beira de um rio que fixa as orientações, a caça (o que implica um inventário detalhado da fauna ter-
montante, a jusante e perpendicularmente, diremos que restre ou aquática), pelo pastoreio (que se baseia na domes-
para atingir tal lugar é necessário subir o rio três horas, ticação de uma ou várias espécies animais, no conhecimen-
depois andar duas horas perpendicularmente ao seu curso, to de suas necessidades alimentares, seus deslocamentos
a sua esquerda. Se as direções são astronômicas se dirá que necessários para aproveitar as áreas de pastagens nos mo-
a cidade B está a cinco léguas ao norte e dez léguas a leste mentos mais favoráveis e no recurso ao fogo para aumentar
da cidade A. Às direções se acrescentam as indicações de ou regenerar as zonas de percurso) é pela agricultura. Nes-
altitude. É preciso subir ou descer, para ir de tal ponto a te último caso, os grupos aprenderam a cultivar, a conservar
outro (PAUL-LÉVY, SÉGAUD, 1983). e a consumir certas espécies. Antes de semear ou de plan-
Na maior parte das sociedades, os pontos cardeais e o tar, eles prepararam as terras utilizando recursos frequente-
alto e o baixo estão conotados de valores: o norte é maléfi- mente complexos. Cada uma dessas operações implica o
co; a oeste se encontra o Reino dos Mortos; o eixo do mun- uso de instrumentais variáveis.
do, pelo qual se estabelecem as comunicações mais cômo- O domínio do meio só é possível porque os homens

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS AS ABORDAGENS DA GEOGRAFIA CULTURAL

souberam se cercar de um universo instrumental que os geografia no começo do século — e os símbolos de sua
permite trabalhar a terra, efetuar as colheitas e preparar, a identidade.
partir de matérias-primas disponíveis, os artigos do qual Os homens inscrevem, nos monumentos que erigem
eles têm necessidade para o consumo. e nas inscrições que fazem aqui e ali, a ordem de significa-
O domínio do meio se baseia também na criação de ções que os motivam. Para James Duncan, por exemplo, a
ambientes artificiais — a roupa, que protege das intempé- paisagem pode ser lida como um texto (DUNCAN, 1990).
res, e a casa. Entre as criações da cultura, a paisagem é a que retém
A geografia das técnicas constituía no começo do nos- maior atenção, pois lança-se sobre ela um novo olhar.
so século o capítulo mais profícuo dos estudos culturais. Augustin Berque tenta compreender os sentidos que
Baseado sobre práticas muito mais do que sobre saberes os grupos dão ao seu ambiente (BERQUE, 1986; 1993).
padronizados, o universo instrumental variava muito pou-
Suas análises tratam do par homem/meio e sobre as paisa-
gens onde ele se manifesta (BERQUE, 1990). Ele forja no-
co. O progresso científico e a facilidade das comunicações
vos conceitos para melhor apreender este domínio, como o
apagaram a diversidade de outrora. A análise das técnicas
de mesologia, “ciência dos meios que não são só objetivos,
tradicionais continua, entretanto, a fascinar um grande
mas vividos pelos sujeitos”. Sua idéia mestre é a de que
número de geógrafos — mesmo porque os contrastes na
a natureza é sempre compreendida em uma perspectiva
maneira de se vestir, de se equipar, de habitar, estão reva-
cultural.
lorizados em uma época onde a geografia tende à unifor-
Denis Cosgrove decifra os modos de produção sim-
midade. bólicos específicos das sociedades pré-capitalistas e capita-
listas em seus trabalhos sobre a iconografia da paisagem
em Veneza e na Inglaterra. As famílias da aristocracia ve-
Cultura e paisagem neziana exprimem suas convicções e suas aspirações nos
palácios e nos jardins que elas se fazem construir sobre a
À paisagem retém a atenção, uma vez que é o suporte terra firme por arquitetos como Palladio (COSGROVE, 1984;
das representações. Ela é simultaneamente matriz e marca COSGROVE, DANIELS, 1988). Possuir uma terra mostra que
da cultura, segundo a fórmula de Augustin Berque (BER- a fortuna de que se dispõe é estável. Transformá-la em uma
QUE, 1984): matriz, visto que a organização e as formas que paisagem harmoniosa prova que se é sensível ao belo e que
estruturam a paisagem contribuem para transmitir usos e se participa de uma elite de espírito cujo magistério é eter-
significações de uma geração à outra; marca, visto que cada no. Os homens de negócio britânicos que multiplicam na
grupo contribui para modificar o espaço que utiliza e gra- úrea rural inglesa do século XVIII belas residências e par-
var aí os sinais de sua atividade — o que era estudado pela ques não procuram outra coisa.

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As abordagens culturais: cultura e construção Não se pode compreender as geografias que se cons-
do eu e da sociedade troem sob nossos olhos se negligenciarmos a qualidade
estética dos ambientes e as possibilidades de realização
A cultura e o enriquecimento do ser que eles oferecem àqueles que os habitam ou que os fre-
quentam. As cidades gastam fortunas para criar e manter
Os indivíduos não permanecem passivos diante da museus, teatros, óperas, ou para organizar festivais: elas
cultura. Eles retêm certas informações mais do que outras, fixam assim as empresas ou atraem os turistas.
se interessam pela destreza demonstrada por um bom ope-
rário ou pelo perfeito bricoleurl, evoluem a vontade na
esfera dos conhecimentos científicos, ou se associam prefe- À construção de identidades e a dialética unificação!
rencialmente à vida religiosa. Esta familiarização com as- diversificação
pectos particulares do universo social lhes permite especia-
lizar-se e ganhar a vida quando as sociedades tornam-se Como fundamento das identidades, a cultura reúne
complexas; eles retiram disso também satisfações pessoais, os homens ou os separa. Quando as pessoas aderem às
ela lhes assegura prestígio e o estatuto acordado ao espe- mesmas crenças, dividem os mesmos valores e associam
cialista, ao cientista ou ao sábio. suas existências a objetivos próximos, nada se opõe a que
À arquitetura, a escultura, a pintura, o teatro estive- eles se comuniquem livremente entre si. Mas desde que
ram durante muito tempo ligados à vida religiosa. Quando eles saem do grupo no qual se sentem solidários, suas atitu-
as sociedades se laicizaram, a vida artística tornou-se autô- des mudam: a desconfiança se instala, as trocas se tornam
noma. Sobressair no domínio da criação aparece então uma fonte de ameaças, na medida em que elas podem
como o signo de uma realização particularmente valoriza- questionar a estrutura sob a qual foram construídas a per-
dora do eu. Todos aqueles que desejam se elevar na escala sonalidade dos indivíduos e a identidade dos grupos.
do prestígio e da consideração, começam a freqiientar as Ao se congregar em torno de preceitos comuns, os
galerias de arte, os museus, as salas de concerto, as óperas grupos abolem as distâncias psicológicas que existem entre
ou os teatros, ou a ler as grandes obras literárias. Eles pro- os seus membros, o que lhes permite triunfar sobre a dis-
curam se afirmar através do consumo cultural de alto nível. persão associada fregiientemente às necessidades da vida.
Joan Gottmann fez desse tema, o das imagens que temos
em comum (ícones, no sentido original do termo), um dos
1 Pessoa que exerce diferentes ofícios; familiarmente se diz de alguém que é
capaz de fazer reparos e de construir pequenas coisas de forma competente, mas
capítulos essenciais da geografia política — é neste sentido
não profissionalizada. que ele fala de iconografia (GOTTMANN, 1952).

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Os homens não param de imaginar novos valores, de ses que os acolhem, mas continuam fiéis às suas culturas de
construir novas classificações e de traçar novas fronteiras. origem e mantêm contatos estreitos com elas. As diásporas
Este movimento não ameaça, entretanto, a coesão das so- se multiplicam (PRÉVELAKIS, 1996).
ciedades que reagrupam populações numerosas. Isto por- As identidades se associam ao espaço: elas se baseiam
que sentimentos de pertencimento podem se hierarquizar, nas lembranças divididas, nos lugares visitados por todos,
assim como as culturas: em pequena escala existem formas nos monumentos que refrescam a memória dos grandes
globalizadoras, que fundam identidades coletivas que com- momentos do passado, nos símbolos gravados nas pedras
partilham um pequeno número de valores políticos, os das esculturas ou nas inscrições. A territorialidade se trans-
princípios da Constituição americana para os Estados Uni- formou em um dos componentes mais importantes das
dos, a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade para a Re- novas orientações do mundo social e político (BONNE-
pública francesa; em grande escala, os particularismos se MAISON, 1986; KEITH, PILE, 1993).
expandem, o dos confessionais, dos grupos étnicos e das
seitas na sociedade americana, o dos laços locais e regio-
nais e dos militantismos políticos ou sindicais na sociedade A cultura recorta categorias no real e lhes dá vida
francesa.
O paradoxo da situação atual é que na época em que Como se dar conta da tendência à pulverização tão
a universalização das técnicas está praticamente consuma- forte do mundo atual? As abordagens culturais, que se
da, os valores com forte carga unificadora de outrora, a fé impuseram logo em seguida aos trabalhos fenomenológicos
no progresso, o liberalismo e a tolerância cessam de ser sobre a intersubjetividade, conduzem ao questionamento
atraentes. O processo de divisão se segmenta, pois cada dos instrumentos que o observador utiliza espontaneamen-
grupo se considera igual aos outros em direito e dignidade. te (STASZAK, 1997; RICHARDSON, 1981). Ao supor formas
É neste contexto que é preciso recolocar a maior par- universais na maneira de conceber o real sobre o qual se
te das pesquisas contemporâneas da geografia cultural: os debruça, o observador tem a tendência de naturalizar a
nacionalismos e os regionalismos se exasperam, as socieda- realidade. A finalidade profunda da geografia cultural é
des onde as minorias acabavam por ser assimiladas através incompatível com uma tal maneira de ver. O problema não
de mecanismos diversos de integração evoluem para o mul- é aplicar ao real uma malha válida em todos os contextos e
ticulturalismo, sem que possamos estar certos de que seus para todas as culturas, mas compreender como cada grupo
componentes possuem ainda realmente alguma coisa em reinventa permanentemente o mundo, introduzindo novos
comum. Os imigrantes que fogem da miséria do Terceiro recortes.
Mundo desejam se beneficiar das vantagens sociais dos paf- A escala das análises muda: para apreender os proces-

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EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS AS ABORDAGENS DA GEOGRAFIA CULTURAL

sos culturais verdadeiramente significativos, os geógrafos interessa pela maneira como são estabelecidos os critérios
se debruçam sobre a experiência das pessoas, sobre seus que separam o grupo do qual fazemos parte daqueles que
contatos, sobre suas maneiras de falar. Eles descobrem, nos são estrangeiros. No mundo atual isto conduz a privile-
assim, como as atitudes mudam e os objetivos coletivos se giar, como objetos geográficos da pesquisa cultural, a raça,
constroem ao sabor das interações. As pesquisas se interes- a etnia, a juventude, a velhice ou as categorias sexuais (ho-
sam mais fortemente pelas pequenas comunidades, pelos mens, mulheres, homossexuais, transexuais): foi a isto que
bandos e gangues dos subúrbios, das comunidades de bair- Peter Jackson reduziu os Maps of Meaning que ele propõe
ros, das células do mundo rural do que pelas realidades na sua interpretação geográfica da cultura (JACKSON, 1989;
globais. Pratica-se a geografia cultural sem que as pesqui- ver também ANDERSON, GALE, 1992; JACKSON, PENROSE,
sas nos levem a informações sobre o que é a cultura chine- 1993). Na geografia política é a imagem da fronteira e da-
sa, à cultura americana, ou a cultura urbana. O que elas queles que estão instalados para além dela, e que são vistos
trazem é a idéia de que as regras da vida social variam de como diferentes, que retém a atenção mais espontanea-
um ponto a outro e se modificam sem cessar. Trata-se mui- mente (PAASI, 1996). O olhar dos ocidentais sobre os outros
to menos de mudança de princípios do que propriamente povos está na base do imperialismo que ele denomina e
da maneira de interpretá-los ou de transgredi-los, para se justifica. Se queremos combater as formas de opressão do
adaptarem às circunstâncias. Os subúrbios populares das mundo atual é mais importante, pois, aprender a descons-
grandes cidades são assombrados por bandos de jovens que truir a imagem do Outro que o mundo ocidental tem como
procuram desesperadamente afirmar sua originalidade, re- evidente desde que começou a se conceber como superior
correndo para isso a temas de uma afligente monotonia, aos outros.
A emergência de subculturas reforça as clivagens que
nascem da divisão do trabalho. Um sentimento de solida-
riedade operária por muito tempo impediu que os filhos A ordem social é culturalmente instituída
dos trabalhadores tivessem um benefício pleno das possibi-
lidades de progressão social oferecidas pela escola. Nas As abordagens fenomenológicas são muito úteis no
zonas onde se acumulam as populações desmunidas das esclarecimento da fusão dos grupos, sua construção e suas
grandes cidades, uma subcultura da pobreza se cria e ten- barreiras psicológicas. Ao se basearem, entretanto, nos es-
de a acentuar a degradação das condições de vida (SIBLEY, tudos da intersubjetividade, estes estudos esquecem que o
1995). mundo explorado pela geografia está investido em todas as
A orientação cultural visa compreender como os gru- suas partes de valores: a encenação dos momentos fortes
pos constroem o mundo, a sociedade e a natureza. Ela se da existência coletiva através de cerimônias, de rituais e de

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festas permite ao grupo se realimentar, fazendo apelo a seus social: sábios ou feiticeiros nas sociedades animistas, sacer-
mitos fundadores. dotes ou gurus nas religiões reveladas, intelectuais no
Atrás dos processos de institucionalização, podem ser mundo moderno, que encontram justificativa nas ideolo-
lidos os jogos que dividem o mundo na esfera do sagrado e gias laicas (CLAVAL, 1980). A perspectiva cultural é assim
do profano. A geografia cultural privilegia assim as reli- indispensável para compreender a geografia política dos
giões e mostra como as ideologias laicas funcionam de fato Estados.
como substitutas das crenças tradicionais. Face aos filó-
sofos do progresso social que dominaram no Ocidente des-
de o Século das Luzes, vê-se desfilarem ideologias da natu- P erspectivas sobre as culturas

reza que, sob o nome de ecologia, transformam profunda-


mente as sociedades, propondo novos critérios do bem e As culturas são diversas. Elas não dispõem das mes-
do mal, do puro e do impuro, e impõem aos poderes novos mas técnicas e não asseguram o mesmo grau de domínio
objetivos para estes alcançarem o aval dos grupos cujo tra- dos ambientes onde vivem. Poder-se-ia imaginar perspecti-
balho é o de legitimar as instituições — ou corroer seus vas que permitissem compará-lasP Há muito tempo, a idéia
fundamentos (BERQUE, 1996). de classificá-las em função de seus níveis de desenvolvi-
Os grupos que elaboram subculturas tentam por ve- mento nos foi imposta. Uma tal operação não pode ser acei-
zes questionar os valores admitidos pelo conjunto do corpo ta sem dificuldade: deve-se considerar que uma sociedade
social: estas contraculturas oferecem um ponto de apoio a capaz de organizar grupos numerosos distribuídos sobre
todos aqueles que se sentem feridos pela sociedade ou que extensos espaços é necessariamente mais avançada que um
se colocam em desacordo com seus princípios. Elas elabo- grupo cujo domínio permanece limitado a um pequeno es-
ram contramodelos que podem seduzir camadas cada vez paço? Que critérios devem ser considerados para medir o
mais amplas da população e conduzir por fim a uma rees- progresso?
truturação cultural do conjunto. As técnicas de comunicação influem diretamente so-
Um dos pontos essenciais de todo grupamento políti- bre a natureza e no conteúdo das culturas: uma sociedade
co é constituído pelo sistema de crenças e de ideologias que se baseia, para transmitir seu saber, apenas sobre a
que dão sentido à vida dos indivíduos e da coletividade, palavra e sobre a imitação direta dos gestos e comporta-
legitimando o que está instituído. A defesa dos valores exis- mentos, apresenta deficiências nos suportes de sua memó-
tentes, ou sua crítica e definição de sistemas concorrentes, ria. Ela mantém relações com o tempo e com a história
mobilizam a energia dos legitimadores, cujos títulos e fun- diferentes daqueles que caracterizam os grupos que dis-
ções variam segundo os níveis e as formas de organização põem de escrita.

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A única perspectiva evolucionista que pode existir na trora. Elas podem ser apreendidas em qualquer lugar des-
geografia cultural é, pois, aquela que classifica as sociedades de que se disponha de obras e revistas onde os resultados
em função dos modos de comunicação que as caracteriza. estão expostos. O cinema e a televisão mostram a todos co-
| mo é fácil utilizar a maior parte dos artigos de consumo
durável oferecidos pela indústria moderna. Na medida em
Revolução das comunicações e uniformização do mundo que a cultura resulta de um jogo de mecanismos de comu-
nicação, ela deveria se uniformizar rapidamente. Isto foi em
| A observação, a imitação e a palavra só são possíveis parte feito — a cultura de massas se assemelha cada vez
| entre pessoas de um mesmo local. Isto quer dizer que os mais em todos os cantos do planeta (MACLUHAN, 1968) —
| aspectos técnicos das culturas tradicionais se transmitem mas outros fatores possuem um sentido inverso e condu-
localmente em boas condições, porém a difusão de um zem à proliferação dos fundamentalismos, dos nacionalis-
| ponto a outro é um processo difícil, lento e comporta inú- mos e das contraculturas.
| | meros problemas. A escrita permite fazer chegar as mensa- A perspectiva evolucionista só é capaz de se dar conta
| gens muito longe, o que favorece a difusão dos conheci- de uma parcela da diversidade das culturas. Para ir adiante
mentos formalizados pela ciência e dos textos que veiculam na compreensão, é preciso prestar atenção e entrar em sua |
religiões ou ideologias. As sociedades tradicionais apresen- lógica. É isto que permite a perspectiva etnogeográfica. il: |
tavam desta forma uma dupla inscrição cultural no espaço:
| o mosaico complexo de dialetos e de know how técnicos se
| inscrevia no seio dos espaços que dividiam, freguentemen- A consideração do saber geográfico dos grupos: ; di
| te sobre muito amplas extensões, a mesma língua, os mes- a perspectiva da etnogeografia |
| | mos conhecimentos científicos, a mesma religião e os mes-

| | mos traços morais: esta era a imagem associada à China há Todas as culturas resultam de um trabalho de cons-
| meio século; esta havia sido a da Europa há dois séculos. trução e dispõem de know how e de saberes relativos ao
| | As culturas populares se opunham à da elite. espaço, à natureza, à sociedade, aos meios e às maneiras de
| A revolução da mídia transformou esta imagem das explorá-lo. E interessante comparar estes saberes, analisar
| culturas primeiramente em um ritmo bastante lento no fim suas bases e seus modos de elaboração e inventariar as
do século passado, depois com uma amplitude cada vez categorias sobre as quais eles repousam. É necessário tam-
| mais viva desde 1950. As pesquisas técnicas restringem bém deter-se sobre a maneira como esses conhecimentos
I cada vez mais o domínio dos know how tradicionais. Os são utilizados, reinterpretados, respeitados (ou transgredi-
conhecimentos formalizados substituem as receitas de ou- dos), em seus conteúdos normativos, por aqueles que os

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colocam em prática. A etnogeografia convida a refletir BERQUE, Augustin (1986). Le Sauvage et Vartifice. Les japona
is
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orientação científica seria assim tão diferente dos shares BONNEMAISON, Joél (1986). Les fondements d'une identit
vernaculares quanto se sustenta geralmente? Sem Emida é. Ter-
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u, Paris,
não: os homens só aprendem a mobilizar a razão progressi- ORSTOM, 2 vols.
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