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Autópsia da sombra
O depoimento terrível de um ex-sargento
que transitava no mundo clandestino da repressiio militar
resgata parte da história de uma guerra suja
ExPEDITO FILHO
Murival Dius Chaves do Oln- para dizer pela primeim ve:¿ que a1u11111 na aQ~ e, portante. centava uma visii.o global
lo lem 45 anos, é moreno, repressao militar. No in(cio, elns reagiram do assunlo. A partir da dcrrubada do presi-
musculoso e está bem conser- assusladas. Mais adiante. emocionadas. dente Joao Goulart. em 1964, com~ou a
vado paro a idade. Nasctdo acabaram estimulando sua decisño de faJar. ser deflagrada ttma guerra suja e surda no
na Bahia. morou muilos anos Urna de suas filhas havia safdo ~ ruas para Brasil. Foi menos violenta do que na Ar-
em Sao Paulo e boje é dono pedir o afustru:nento de CoUor, engrossando J;enrina, ande bouvc quu.se 1O000 desapa-
de um modesto negócio em o movimento dos caras-pintadas e relem- recidos. Mas o ciclo da ditadura no Brasil
Vitória, no Espfñto Santo. brando os anos rebeldes, e só depois soube colocou em a~o L3 000 militantes de es·
Visto ~ distancia. é um cidadiio como que o pai participara ativamente daquele querda. distribuídos cm 29 organiza~
qualq~ outro. De pe11o. tem algurnas periodo. "Eias actmrum que er.l importante que pegaram em armas e outr<IS 22 que
peculiaridades. Cbaves. como é conhecido. contar rudo para passar essa pane da Histó- op¡amm pela chamada resi51él1cia pacífica.
é um homem tenso, habituado a represar r!a a lin1po'', afirma Chaves. Tinham raziio. Do outro lado da lrinchcira, havia pelo
suas emoyCies. Usa um linguqjar que mistu- menos 400 militares envolvidos diretamen-
ra tennos policiais e politices. No seu VISITA 1\ PoJm: - O dramático relato do te cm operay<ies clandestinas. Nesse emba-
vocabulário. aparecem com freqiiéncia pu- ex-s;u-gen1o sobre a vida e morte nos po- te. rcrrori ras assaltaram bancos, seqüestra-
lavrns como "subversivos", paro designar os roes niio tem a abrnngencia cronológica dos ram e assa.'iSinaram. Do outro lado, prende-
militantes de organiza~5es de esquerda, ou vinte anos de dit:adura, muito menos o peso mm pessoa.<; ilegalmente, totturaram e ma-
-elemento'", quando se refere a uma pessoa do relato de alguém que coordenou as tarani. No total. mai de 4 600 pessoas
qualquer. Na semana passada, tiveram seus direitos políticos cas-
Chaves encerrou umn longn série sados, cerca de JO 000 fo ram exi-
de depoimentos a. VEJA e, nas ladas c. na lista dos dcsnpare<:idos,
páginas do seu relato, collStala-se exisrcm 144 nomes.
que Chaves es(á mesmo longe de O depoirnento de Chaves é um
er um cidadao tranqililo. Ele é o relato parcial. Sua importancia re-
primeiro ex-agente dos órgaos de side em mostrar por dentro. e pela
infonna¡;iio do Exército a contar primeira vez. a rotim d il re pres-
tudo o que sabe, com o rcnívei e siio polftica. Cuidadoso, o ex-sar-
esclarecedores detalhes sobre a gento falou apenas do que tem
barbárie dos poroes dos anos de certeza e cal.ou sobre as dúvidas.
cbumbo da di!adura militar. Na larde de • exta-feira da semana
Há mais de urna década, o ex- pnssada. chcgou a tomar um avii:i.o
sargento Chaves vem amadurecen.- para Sao Paulo e ir a Rodovia SP
do sua decisao de faJar. Quando 255, que dá acesso ~ cidade de
ainda transita va pelo ventre da bes- Avaré, no interior do Esrado. Ali.
la, entrando e aindo das mnsmor- há duas pomes. Chaves queria ve-
ras de torrura e gastando horas las para saber de qual deJas eram
lendo depoimentos de presos polí- jogados os corpos de preso as-
ticos, Chaves preocupava-sc em sassinados (veja quadro as págs.
n1emorizar e anotar detalhes. No 12 e 23). Estava satisfciLO com
n1Cs passado, entendeu que a de- eu desabafo. "Foi a cúpula mili-
cretayii.o do impeachmenl do presi- tar que se beneficiou com cargos
dente Fernando CoiJor muda:m o ¡ e funf,(OeS na época da reprcssao··.
pm e. em especial, as Fo~as Ar· e afirma. "A grnnde maioria silen-
n1adas. que se mantiveram na lega- ~ ciosa queria o Exército profissio-
lidade de meras espectadoras da ~ nal, como ele é boje."
crise. Resolveu contar rudo. Há Nos porOes. Chaves garnnte que
duas semanas, cbamou a mulber e nunca ronurou nem leve envolví-
as duas filhas, de l6 e 18 anos, mento direro com assassinaros ou
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ocutrar;ao de cadáveres. "Se tivesse feíto
isso, rulo est:uia dando esse depoimento".
diz. Sua missao era avaliar os depoimenlos
dos _presos e cruzá-los oom as inform!lQOes
rcpassadas ao Exército pelos militames de
esquerda que haviam se convertido em
informantes. Em 1965, entrou para o Exér-
ciro. servindo no Arsenal de Guerra em Sao
P.aulo. Tres anos mais tarde, já sargento.
teve o primeiro contato com atividades de
info1m~ao. "Ficamos sabendo que a Van-
guarda Popular Revolucionária, do capitiio
Carlos Lamarc-a. estava pintando wn cami-
nhao com as cores das Foryas Ammdas para
usar numa ~iio terrorista' ', relembra Cha-
ves. Depois de fazer cursos de oper-~ao na
selva, Chaves foi para o Destacamento de
Ope~6es de lnfomrnyoes, o 001. chetiado
pelo coronel Carlos Albeno Brilhante USIJ'3.
Com~va seu convfvio com o porJ.o.
Seis meses •tes de 1he que estava casada com o mulher entre os tr6s flhoa
ser ..auinadll em Pe- fisico Wilson Silva, com do polones M • • Gostava
tropoh, em 1974, a quem n.norava em sepedo de teatro e psicolo&ia, ado-
prafesson Ana ROM h6 cinco ln06.. Kucinskl irna- rava a escritora francesa
Kudnsld SDva, de 32 &inou que ela escondla o ro- Slmone de Beauvolr e
ano5, encontrou o IF- mance porque aeu pal, M• "nunca leu os manual• de
mlo Bernardo em Sáo Jer, era judeu e nio acelbwla marxismo", seaundo Ku-
Paulo pela última vez. um pnro nio jucleu. O joro cinski. Fol vista pela última
Ana lnslstiu para que nalsta \'Oitou para Londrea vez em 22 de abri1 de
Bernardo Kucinsld ~ sem que Ana lhe contasse a 1974, na Universldade de
mane cuidado com re- .... mais lmpot"talle da Sio Paulo, onde ledonava
preúllaa aoa artlgoa hlstória. Ela era ~ da Qufmlca. O aovemo só se
que escrevla para o joro Aqao Liberbldora Nacional, manifestou sobre o ctesapa.
nal Oplni.lo, do qual era a ALN, assim como o mari- redmento depois de um
correspondente na ln- do Wlaon. ano, dlzendo que o caul
eaaterra. Confldenc:iou- Ana era a ~ e única nlo estava preso em de-
cm faz.er a análisc de informa<;oc~. Eu liu douwr Jairo. que conhc¡;o só pelos codi- Paulo. Depoi de interrogado. ele assinou
os dcpoi menlo:; de presos polílieos loma- nome:.. un1 contr<llo dt: lrnbalho e recebeu uma
dos sob lortura e examinava as informa- importíincia em dinheiro. Nilo me lernbro
~ócs e nviadus pelos nossos infi ltmdos no VEJA - O senlwr crmheceu algum quanlo.
PCB. na ALN. no PC do B ~ nu VA R- infiltrado?
Palrnurcs. Tambérn fazii:l cole1a de d;1clos, CttA~ - Conheci v5rios. Sevcrinu Tc<r VEJA - Cm"'' fm' ll c,:(H)pTllr;iio de Lucicmo
ínvesliga\<OeS, vigiláncia e escuta Lelefo- doro de Mello, do PCB. Joao Henriquc tle Siqueim. do PC dn B?
nica. Qnem coordenava o. cachorro. era Perreirn de C.'l!Valtto, o "Jo1a'', da A LN. CHAvES- Luciano virou cachorro numa
um olicial. Tivemos o doulor Pulrício e o Sabia lambém de lrés infi ltmclo!> do PC do opemt;Jo do Cenlro de l nfonnac;Oe.~ do
B. Eram o Luciano Exércflo em Pernambuco. que visnva des-
Rosn de Siq~•ciru, u munlelar a A;;ilo Popular, a AP, e o pr6prio
advogado Hamihon PC do B. Nessu oper~o. ele foi preso.
pendéncias militares. de Fr.m~a e o médi· torturJdo e virou inliltrudo. Em 1977. quml-
Em buKa da ir ma, Ku- co Fi úza de Mello. do o gcneml Sylvio Frot<1 foi dcmilido do
clnski vJajou até para Todos tr<•balhavam
Nova York, onde en- pnm o Exército.
trou em contato com a
CIA. Certa vez foi e Jt- VEJA - Como se
to r q uldo e pagou c.:o11.vem:ia e:.·se.r mi· "Amputavam as
25 000 dólares a m ili- 1itcmtes a fi¡u rem
tares em troca de infor· espionagem pltrtJ o falangetas,
mac;óes. Eram falsas. Exérciro?
"Enquanto o corpo nio CHAVES - Nt\o amarravam as
é encontrado, a famifla havia um modelo.
nao consegue se livrar Teoúoro de Mello. pernas e
do sentimento de culpa por cxemplo, foi
e faz qualquer coisa pa- prc..'iO em 1974 e le- esfaqueavam a
ra saber o que aconte- vado paro ltapevi.
ceu", diz Kuclnski. De lá. foi tmn Ferido barriga. O corpo
para outro cárcerc.
na citladc de Siio nao vinha a tonan
VEJA. 18 DE NOVEMB RO, 1992
Ministério do Exército. o Centro de lnfor-
A masmorra dos esquartejados m~ do Exército abandonou todos os
cach<>rros e só restabeleceu contato com eles
Na aprazjvel cidade serrana de Romeu é uma das raras sobrevi- em 1982 Participei desse recontato, que foi
Petrópols, no Rio de Janeiro, o ventes da casa de Petrópolis. Em chefiado pelo Paulo Malhaes. Nao estive
Centro de 1~ do Exérd- trM meses de cárcere, Inés foi pessoalmente com Luciano, mas sei que ele
to lnstlllou no inicio dos anos 70 atendda quatro vezes pelo méd"t- morava no bairn> Janga. próximo a Olinda.
um centro de tortura e extemú- co Amlre. Lobo. Numa delas pa- Pernambuco.
nio. Era uma casa de paredes da- ra costu,... o pulso, que cortara
,_, tr6s quartoa, sala, copa e tentando suicidio. Segundo Cha- VEJA - Que ripo de iliforma~iio os ca-
cozinha, para onde erarn envia- ves, lideres esquerdistas pauao dlorros passal'am?
dos os presos condenados il mor· ram pela casa de Petrópolis. Ele CHAVES - O Luciano Siqueira fez várias
te. Seaundo o eK-s&1'8ento Mari- sustenta que o deputlldo Rubens tarefas. Foi ele quem pcm1itiu a prisao de
val Chaves, era comum os mortos Palva morreu all e teve seu corpo muita gente da AP e do PC do B no
ali serem cortado& em vários pe- esquarteJado. Preso no sul do Nonles\e. Em L982. quundo o PC do B
~. embalados em sacos e • • pals e levado para lá, o comunista esmva ~ando candidatos a depurados pelo
terrados em lugares diferentes. David Capistrano também morreu PMDB, el.e fez relatos det:alhados sobre
A ex-terrorista Inés Etienne ne&NCIItiL essas reuni5es. Quando esrava em Sao Pau.-
lo, participando de reonioes do partido. ele
era coordenado pelo coronel Enio da Silvei-
ra. Já o Tcodoro de Mello, do PCB, foi
quem elucidou uma série de dúvidas durnnte
a ~ Radar. Ele ajudou a identificar
muita gente que só conhecíamos pelo nome
de guerra. Com isso. descobrimos que era
gente graúda, da d~ao do partido. Mello
foi um divisor de águas. A partir de suas
irúonnar;Qes, foi possível prender. tortumr e
assassioar vários comunista.;,
podía desabafar scqucr com minha mulller. tuvets na área de infomm<;ao. Com os Sao PauJo para PeU"Ópolis. Ele participou do
Ao acordar. enfrentava a mcsmu rot:ina. Ert~ comandados. era aré genti l. Mas quando desapurccimcnlo de Ana Kucinski e Wilson
um horror. queria, cm duro e enérgico. Suicidou-se em Silvn.
1986. O coronel Paulo Malhiies. que chcfia-
VEJA - Como se ctHIJponavam os que vu conlatru t:om os infiltrndo. . rewva pela VEJA- flm'iltllm JKICIO de sile11cio emre 1
tvmumdavam a repres.wio '! Eram (JeSstKIS mesma canilhu. Ele esteve no Chile. onde malt.ulore~· e Torturadores?
violemas no dicl-!t-tlia! intcnugou e 1onurou bn1sileiros e chilenos. CHAVES - Depois de ~:ada caso. na hom
CHAVES- O coronel Énio du Silveira.ern J~í o coronel Fred Perdigiio, que pcncncia ao c.lo uln"J<X;o. e durante viagens em qurutos de
exll'Cm:uncntc violento. Para ele, a doulrina Cemro de Lnfonm~Oc.-; do Exército desde a hotel. os agentes comcnluvam o que linha
de scgu r.m~a n;JCionaJ estava acima de qual- sua ép<:X:<l de capiliio, 1inhu innuéncia sufi- oconido. ~ conversas cram simulada" e
qucr coisa. Ele tinhu cun;o de lodos o. ciente no pomo pum viver levando presos de ninguém dizia claramente: eu marei.
VEJA -Nenhum ageme ameafOU .sair do do acordei eslava envolvido. O próprlo VEJA - O stmlwr acha que mió se
E:rércíro e comar tudo ? sistema procumva comprometer os envolvi- comprome1eu?
CHAVES - O sujeito que dur.mte a repres- dos. O medo da repressao era muito grande. CHAVES - Se tivesse matado alguém
siio tcnlaSSe se afasw eot.ria o risco de ser Eles criavam sfmbolos na própria fo~ para nao faria este depoimento. É claro q ue
justi<;ado. Um agente, que conh~ s6 pelo mostrar que ninguém poderia reagir. Matar meu trabalho. e af farro mea-cul.pa. con-
codinome de ··Júnior'', foi ufastado da ~o o capitiio Carlos lamarca, por exemplo, tribuiu muito para causar esses males.
de investiga¡;Cies por tentar extorquir dinhei- foi questao de honra. Por isso. da mesma Há pessoas honestus que participaram
ro do jomalista Bernardo Kucin ·ki. jnnao forma que cu. muila gente acabou ficando. du repre ·sao e nao concorduvam com
de Ana, cm troca de infonn~ sobre o apesar de discordar. Em 1985, semi que aquela violéncia insana. Mas até hoje
paradeiro delu. A ~o de investig~o ern hora de me afa~ta r porque os govemos nao tl!rn coragem de contar o que sabem,
pensou em justi<;:á-lo porque ele disse que militares tinham chegado ao fim. Era a que a única lei do porilo era a barbárie.
iria procurdT a Comissao de Justi~ e P.<IZ de hora de me afastar sem me comprometer.
Sao Pauto para denunciar faros sobre a VEJA - O senhor se c:onsh/erc1 um
subversao. democrata ?
CHAVES - Nosso país só será grande
VEJA- Por que o senhor reso/ve¡t falar? vivendo urna profunda democracia. Eu
CHA.VES - As atividadcs de combate a "0 major André estive dentro dos por6es da repressao e
subversao aos poucos foram me dando nojo, ei o que uma ditadura angrcnta sign i-
eojóo. náuseas. vómitos, tudo que voce pode Leite Pereira Filho fica. E espero que esse depoimenl.o con-
inmgmar. Eu vta as coisas arontecerem, triboa para o aprimoram enm da demo-
discordava e nño podia me manifestar. O era o chefe da cracia.
regulamento d isciplinar do Exército era
muito rigido. Existi~ ainda a nonna ger.tl de equipe que matou VEJA - Se uma errJidade de defesa dos
~iio. que impedia o integrante do órgao de direitos lwmano o proc;~ rar para fa-
infon~o de se manifestar ou discutir urna Herzog. Ele pode lar ~-obre des(lpared dos, o se11/ror irá
ordem. Se dcixnsse de cumprir, oconiam colaborar?
puní~ e, em seguida. a pecha de contrário
responder pela CitAVES- Estou d isposto a ajudar e m
?.! RevoJUI;ao de 64. Nao fui fonnado pam todos os sentidos. Quero prestar um ser-
esse tipo de atividade. Fui cooptado e quan- morte de Herzogn vir;o ao pafs. •