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Poema: Um Adeus Português

O’Neill não deixa de tecer críticas ao ambiente que o rodeia quando, supostamente,
está a relatar a forma inglória como se processou um dos seus relacionamentos amorosos.
Em “Um Adeus Português” torna-se evidente que o afastamento dos dois é causado pelo
ambiente castrador e persecutório existente em Portugal que não permite que um
estrangeiro consiga sobreviver em tais condições.
Numa espécie de diálogo virtual com a amada, o sujeito poético vai mesclando essas
alusões a um Estado controlador, tirano, mesquinho e medíocre. Por isso mesmo, a amada
não poderia acomodar-se “à roda em que [ele apodrece] / apodrecemos”; a viver sob a égide
da “pata ensanguentada” que a todos persegue; limitando-se a “ficar [naquela] cadeira/onde
[passa] o dia burocrático”, vendo a “estupidez” e o “medo perfilado” de um “modo funcionário
de viver” já que até os gestos quotidianos foram institucionalizados. Neste contexto, o sujeito
poético compreende que não era possível viver com o fantasma dos delatores, não sabendo
quando chegaria o “dia sórdido/canino/policial” em que alguém os denunciaria nem ficar
reduzida à apatia que dominou os portugueses confinados “à pequena dor”, essa “pequena
dor à portuguesa”. O ambiente de Lisboa, corroído pela “náusea”, “idiotia”, “razão absurda
de ser”, pela “asfixia”, pela falsidade, não é compatível com o local de origem da amada: a
“cidade aventureira” (Paris). Como tal, só restou ao sujeito poético despedir-se, dizer-lhe
adeus e permanecer neste ambiente letal e castrador.
A poesia funcionava como um ato de libertação, combatendo uma sociedade repressiva e
(re)posicionando o homem dentro de uma outra realidade. Nestes poemas torna-se evidente
a capacidade deste escritor em invadir o “lado menor, medíocre, quotidiano e ridículo das
coisas”, uma espécie de “realismo satírico e liquidatário de todas as heranças românticas ou
transcendentais”, que usa o quotidiano para contrapor à imagem sublimada que o regime
salazarista divulgou e impôs aos portugueses.

Análise detalhada do poema:


Ao longo do poema, o sujeito poético interpela insistentemente um ''tu'' isto é visível
através dos pronomes ''tu'' nos versos 5,35,41,45, ''te'' (v. 52) e ''ti'' (v. 55) ; Determinantes:
''teus'' (v. 1), ''teu'' (v. 51) ; Verbos: ''podias'' nos versos 5,12,22,30, ''mereces'' (v. 35), ''és''
nos versos 41 e 45, ''vives'' nos versos 45 e 47 e ''morres'' (v. 47).
É comprovado nos versos 5 e 30 através da palavra presa que o ''tu'' é uma mulher.
O sujeito poético e o ''tu'' têm uma relação amorosa intensa que inevitavelmente acaba com
o afastamento e a despedida dos dois.

Este texto pode ser dividido em 3 partes:


A primeira estrofe apresenta-nos o ''tu'' (mulher amada) e indica já a despedida e separação
iminentes;
A segunda parte começa na estrofe 2 até à 7 e apresenta as várias razões pelas quais o
sujeito poético e o ''tu'' não poderem ficar juntos;
Na última estrofe, dá-se a despedida e separação dos dois.
Para descrever o clima vivido em Portugal nesta época, o sujeito poético fala do
conformismo dos portugueses, da repressão política, da miséria e burocracia e usa como
comparação o ambiente nas touradas.

Alexandre O'Neill crítica o ambiente em Portugal nesta época ao compará-lo a uma tourada,
isto pode ser encontrado nos versos 8 ao 11.
''Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor''

O sujeito poético não critica só o governo mas também o povo português e o facto de este
se conformar com o que tem, esta crítica pode ser encontrada nos vv. 31 ao 35 e dos vv. 38
ao 40.
''Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal''

''Não tu não mereces esta cidade não mereces


esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser''

Algumas das expressões que criticam a repressão política do Estado Novo podem ser
encontradas no verso 19 '' ao medo perfilado'' e nos versos 23 ao 29.
''Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual''

E por fim, a última crítica feita pelo sujeito poético é à miséria e à burocracia em Portugal
que pode ser encontrada desde o v. 12 ao v.21.
''Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia a dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver''

Em relação ao valor expressivo:

 Anáfora que introduz as estrofes 2,3,4 e 6: É iniciada por um advérbio de negação e


serve para ilustrar os motivos que tornam o amor entre o sujeito poético e ''tu''
impossível;
 Enumeração gradativa presente na 3ª estrofe: Vai dos aspetos positivos para os
negativos, realçando a opressão da cidade;
 Acumulação de adjetivos na 4ª estrofe: Adjetivos como ''mortal'', ''sórdido'' e ''canino''
servem para acentuar o clima de repressão vivido na cidade.

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