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'PICA DO TAMANHO DE
UM COMETA'
EXCLUSIVO: rachadinha de Flávio Bolsonaro
financiou prédios ilegais da milícia no Rio,
mostra investigação do MP
Senador Flávio Bolsonaro durante cerimônia
de posse do novo Ministro da Saúde Nelson
Teich, no dia 17 de abril. Foto: Pedro
Ladeira/Folhapress

Sérgio Ramalho
25 de abr de 2020, 06h30

FAÇA PARTE

FLÁVIO BOLSONARO FINANCIOU e

lucrou com a construção ilegal de


prédios erguidos pela milícia usando
dinheiro público. É o que mostram
documentos sigilosos e dados
levantados pelo Ministério Público do
Rio de Janeiro aos quais o Intercept
teve acesso. A investigação preocupa a
família Bolsonaro – os advogados do
senador já pediram por nove vezes que
o procedimento seja suspenso.

O investimento para as edificações


levantadas por três construtoras foi
feito com dinheiro de “rachadinha”,
coletado no antigo gabinete de Flávio
Bolsonaro na Assembleia Legislativa do
Rio, como afirmam promotores e
investigadores sob a condição de
anonimato. O andamento das
investigações que fecham o cerco
contra o filho de Jair Bolsonaro é um
dos motivos para que o presidente
tenha pressionado o ex-ministro Sergio
Moro pela troca do comando da Polícia
Federal no Rio, que também investiga o
caso, e em Brasília.

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O inquérito do Ministério Público do


Rio, que apura fatos de organização
criminosa, lavagem de dinheiro e
peculato (desvio de dinheiro público)
pelo filho de Bolsonaro segue em sigilo.
O Intercept teve acesso à íntegra da
investigação. Os investigadores dizem
que chegaram à conclusão com o
cruzamento de informações bancárias
de 86 pessoas suspeitas de
envolvimento no esquema ilegal, que
serviu para irrigar o ramo imobiliário
da milícia. Os dados mostrariam que o
hoje senador receberia o lucro do
investimento dos prédios, de acordo
com os investigadores, através de
repasses feitos pelo ex-capitão do Bope
Adriano da Nóbrega – executado em
fevereiro – e pelo ex-assessor Fabrício
Queiroz.

Trecho da denúncia do Ministério Público


que tornou o capitão Adriano Magalhães da
Nóbrega foragido da justiça. Essa
denúncia serviu de base para o inquérito
das rachadinhas

O esquema funcionaria assim:

• Flávio pagava os salários de seus


funcionários com a verba do seu
gabinete na Alerj.

• A partir daí, Queiroz – apontado no


inquérito como articulador do esquema
de rachadinhas – confiscava em média
40% dos vencimentos dos servidores e
repassava parte do dinheiro ao ex-
capitão do Bope, Adriano da Nóbrega,
apontado como chefe do Escritório do
Crime, uma milícia especializada em
assassinatos por encomenda.

• A organização criminosa também atua


nas cobranças de “taxas de segurança”,
ágio na venda de botijões de gás,
garrafões de água, exploração de sinal
clandestino de TV, grilagem de terras e
na construção civil em Rio das Pedras e
Muzema.

• As duas favelas, onde vivem mais de


80 mil pessoas, ficam em Jacarepaguá,
na zona oeste do Rio, e assistiram a um
boom de construções de prédios
irregulares nos últimos anos. Em abril
do ano passado, dois desses prédios
ligados a outras milícias desabaram,
deixando 24 mortos e dez feridos.

• O lucro com a construção e venda dos


prédios seria dividido, também, com
Flávio Bolsonaro, segundo as
investigações, por ser o financiador do
esquema usando dinheiro público.

Condecorado por Flávio Bolsonaro


com a Medalha Tiradentes, principal
honraria do Rio, o ex-caveira Adriano
da Nóbrega foi morto a tiros em
fevereiro em um controverso cerco
policial no interior da Bahia com
indícios de queima de arquivo.
Foragido da justiça, o ex-capitão estava
escondido no sítio de um vereador
bolsonarista. Os diversos celulares do
miliciano ainda aguardam por perícia.

As investigações do MP revelaram que


os repasses da rachadinha chegavam às
mãos do capitão Adriano por meio de
contas usadas por sua mãe, Raimunda
Veras Magalhães, e sua esposa, Danielle
da Costa Nóbrega. As duas ocupavam
cargos comissionados no gabinete do
deputado na Alerj entre 2016 e 2017.
Ambas nomeadas por Queiroz, amigo
do ex-capitão dos tempos de 18º
batalhão da Polícia Militar,
Jacarepaguá.

Segundo o MP, a mãe e a mulher de


Adriano movimentaram ao menos R$
1,1 milhão no período analisado pela
investigação, amealhado com o
esquema de rachadinha por meio de
contas bancárias e repasses em dinheiro
a empresas, dentre as quais dois
restaurantes, uma loja de material de
construção e três pequenas
construtoras.

Com sede em Rio das Pedras, as


construtoras São Felipe Construção
Civil Eireli, São Jorge Construção Civil
Eireli e ConstruRioMZ foram
registradas, segundo o MP, em nome de
“laranjas” do Escritório do Crime. O
dinheiro então chegava aos canteiros de
obras ilegais por meio de repasses feitos
pelo ex-capitão aos laranjas das
empresas.

Trecho de interceptação detalha registro


da construtora em nome de laranja.

O papel de “investidor” nas


construções da milícia ajudaria a
explicar a evolução patrimonial de
Flávio Bolsonaro, que teve um salto
entre os anos de 2015 e 2017 com a
aquisição de dois apartamentos: um no
bairro de Laranjeiras e outro em
Copacabana, ambos na zona sul do Rio.
Os investimentos também permitiram
a compra de participação societária
numa franquia da loja de chocolates
Kopenhagen.

Flávio entrou na vida política em 2002,


com apenas um carro Gol 1.0,
declarado por R$ 25,5 mil. Na última
declaração de bens, de 2018, o senador
disse ter R$ 1,74 milhão. A elevação
patrimonial coincide com o período em
que a mãe e a mulher do ex-capitão
estavam nomeadas em seu gabinete.

O papel de Adriano

A ligação do ex-capitão com as


pequenas empreiteiras envolvidas no
boom da verticalização em Rio das
Pedras e Muzema foi levantada em
meio à investigação sobre as execuções
da vereadora Marielle Franco e de seu
motorista, Anderson Gomes, na noite
de 14 de março de 2018. Foi a partir
das quebras de sigilos telefônicos e
telemáticos dos integrantes do
Escritório do Crime que os promotores
descobriram que o grupo paramilitar
havia evoluído da grilagem de terras à
construção civil, erguendo prédios
irregulares na região e, assim,
multiplicando seus lucros.

Adriano da Nóbrega e dois outros


oficiais da PM integrantes do grupo – o
tenente reformado, Maurício da Silva
Costa, e o major Ronald Paulo Alves
Pereira – usaram, segundo os
promotores, nomes de moradores de
Rio das Pedras para registrar as
construtoras na junta comercial do Rio
de Janeiro. A estratégia de usar
“laranjas”, segundo o MP, foi adotada
para tentar dar legitimidade às
atividades do Escritório do Crime na
construção civil.

A descoberta foi usada pelos


promotores como base para a abertura
do inquérito que resultou na Operação
Intocáveis – nome escolhido numa
referência às patentes de oficiais da
Polícia Militar ostentadas pelos chefes
da organização criminosa. A ação
contra a milícia foi coordenada pelo
Grupo de Atuação Especial de
Combate ao Crime Organizado do MP,
o Gaeco, e desencadeada, em janeiro de
2019, como forma de fechar o cerco à
milícia suspeita de arregimentar os
assassinos da vereadora do PSOL. Na
ocasião, o ex-capitão Adriano e outros
12 suspeitos tiveram as prisões
decretadas.

Trecho da denúncia cita a milícia de


Adriano, construções e empresas em nome
de laranjas.

Dados do inquérito a que tive acesso


comprovam que Adriano, Costa e
Pereira eram os “donos ocultos” das
construtoras ConstruRioMZ, São
Felipe Construção Civil e São Jorge
Construção Civil. As três empresas
foram registradas na junta comercial no
segundo semestre de 2018,
respectivamente, em nome Isamar
Moura, Benedito Aurélio Carvalho e
Gerardo Mascarenhas, conhecido como
Pirata. Os três “laranjas” foram presos
na operação policial, juntamente com
os oficiais da PM Costa e Pereira.

Numa das interceptações, o miliciano


Manoel de Brito Batista, que atuava
como uma espécie de gerente das obras,
alerta em tom ameaçador a um
interlocutor que o questiona sobre um
prédio recém erguido na favela Rio das
Pedras: “Eu tenho oito apartamentos
naquele prédio, o resto é tudo do
Adriano e do Maurício. Entendeu?
Você procura eles e fala com eles,
entendeu? Não adianta ficar me
mandando mensagem”. Batista também
foi preso na Operação Intocáveis.

Manoel era o síndico dos negócios no ramo


imobiliário.

Na denúncia do MP, Batista é citado


como responsável pela supervisão dos
canteiros de obras e pela negociação de
imóveis. Numa das escutas telefônicas,
ele oferece um andar inteiro num
prédio recém erguido por 60 parcelas
de R$ 4 mil. Valor previamente
acertado com o ex-capitão Adriano, ora
tratado por “Gordinho”, ora por
“Patrãozão”, apelidos captados nas
investigações da rachadinha e das
execuções de Marielle e Anderson.

Trecho de conversa entre Manoel e


Adriano.

Era Adriano que definia preços,


condições de pagamentos e, em muitos
dos casos, fazia a cobrança dos valores
diretamente aos compradores e
inquilinos. Não há na investigação uma
estimativa dos lucros obtidos pela
milícia no ramo imobiliário, mas o
preço médio dos apartamentos, com
dois quartos, sala, banheiro e cozinha
nas duas favelas gira em torno de R$
100 mil.

Planilhas apreendidas durante a


operação policial num imóvel usado
como sede do Escritório do Crime, o
Moradas do Itanhangá, indicavam
retiradas semanais feitas pelo ex-
capitão e também pelo tenente
reformado Maurício e pelo o major
Ronald, também amigo de Flávio
Bolsonaro. Além de ser o responsável
pela contabilidade do grupo, Ronald
também foi homenageado por Flávio
Bolsonaro com uma menção honrosa
em 2004. Em várias conversas gravadas
pelo MP, o major aparece combinando
de se encontrar com Batista para
“bater” as contas no fim da semana.

Major Ronald mantinha planilhas


contábeis, com repasses de dinheiro para
Adriano, plantas de prédios e outros
documentos relacionados às construções
ilegais.

‘O MP está preparando uma


pica do tamanho de um cometa
para empurrar na gente’

A frase de Queiroz foi dita em áudios


de Whatsapp divulgados pelos jornais
O Globo e Folha de S.Paulo em
outubro. Desde então, muito se
especulou a que ele se referia.
Investigadores ouvidos pela
reportagem acreditam que Queiroz
sabia que o inquérito tinha identificado
o uso do dinheiro desviado no esquema
de rachadinha para financiar o boom de
construções ilegais na Muzema e em
Rio das Pedras, comunidade onde
Fabrício Queiroz se refugiou em
dezembro de 2018, como revelam as
quebras de sigilos telefônicos e
telemáticos.

Na opinião de envolvidos na
investigação da rachadinha, a conclusão
do cruzamento de dados financeiros
dos 86 citados no inquérito, dentre eles
o atual senador Flávio Bolsonaro, vai
ser capaz de comprovar os crimes, entre
eles lavagem de dinheiro. E, assim,
explicar a suspeita evolução
patrimonial do primeiro-filho e,
sobretudo, justificar a movimentação
do senador para tentar a todo custo
paralisar o trabalho dos promotores.

Item 29 revela que o crime de lavagem de


dinheiro está sendo apurado em
procedimento específico no inquérito da
rachadinha do então deputado Flávio
Bolsonaro.

Antes da publicação da reportagem, o


Ministério Público foi consultado
formalmente sobre as investigações
relacionadas ao uso de parte dos
recursos obtidos com o esquema de
rachadinha no gabinete do ex-deputado
no financiamento de construções da
milícia. Por e-mail, a assessoria de
imprensa do órgão confirmou a
existência dos procedimentos
investigatórios que serviram de base
para a reportagem. Disse o MPRJ:
“após consulta junto às coordenações
dos grupos com atribuição nas
investigações”, foi informado que os
procedimentos encontram-se com
sigilo decretado, razão pela qual as
questões enviadas pela reportagem não
poderiam ser elucidadas.

Resposta do MP por e-mail aos


questionamentos da reportagem confirmando
a existência da investigação.

Nas redes sociais e nas poucas


entrevistas em que falou sobre o
esquema de rachadinha, Flávio
Bolsonaro afirma ser vítima de
perseguição da imprensa e critica o
vazamento de informações do processo,
que está sob segredo de justiça. O
político também afirma não ter
conhecimento sobre o fracionamento
de salários de seus funcionários.

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