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O QUE É ESSA TAL ANSIEDADE?

Gosto de “lavar as palavras”. Sempre que inicio uma aula, palestra ou


Live repito isso, e o farei aqui, logo no início da nossa jornada escrita. É muito
positivo que as pessoas se interessem por saúde mental, afinal até bem pouco
tempo atrás havia muito preconceito em relação à psiquiatria e a quem
necessitava de tratamento psiquiátrico. No entanto, quando qualquer tipo de
conhecimento se torna muito popular acabam surgindo equívocos.
Atualmente termos como “depressão”, “déficit de atenção” e “transtorno
bipolar” tornaram-se comuns e passaram a fazer parte dos assuntos tratados
em família durante o almoço de domingo ou mesmo em mesas de bar, entre
amigos.
Há quem diga que acordou “com depressão”, obviamente querendo
dizer que amanheceu “triste” ou “desanimado”, pois tecnicamente, é
impossível que alguém vá dormir saudável e acorde portador de um
“transtorno depressivo”. Nem todas as crianças que não gostam de estudar são
portadoras de “TDAH”, pode ser que sejam só indisciplinadas mesmo (ou
“atentadas” como chamamos aqui em Goiás). Uma pessoa que reaja de forma
agressiva a um incidente no trânsito, e que depois do bate boca, se acalme e se
arrependa, não é, obrigatoriamente, “bipolar”.
O uso coloquial e frequente dos termos psiquiátricos gera falhas de
comunicação. Isso acontece não apenas entre os leigos. Se você chorar durante
uma consulta médica há uma grande probabilidade de receber uma receita de
antidepressivos. Nesse caso o entendimento é que choro significa depressão, o
que, definitivamente, não é verdade para todos os casos.
Termos como tristeza, depressão, ansiedade, luto, insatisfação,
intolerância, irritabilidade, impulsividade, frustração, para dizer apenas alguns,
são muitas vezes misturados e usados para expressar situações e sentimentos
muito parecidos. É importante que as palavras fiquem “limpas”, ou seja, usadas
no seu sentido real, para que um mínimo de comunicação aconteça.
Meu trabalho agora, portanto, é “lavar” a palavra “ansiedade”, para que
você compreenda exatamente o que isso significa. Muitos dizem que não
param de comer e estão acima do peso por causa da ansiedade. Pode ser que
alguém tente explicar sua irritabilidade dizendo estar muito ansioso. Será que
uma pessoa pode desenvolver o hábito de fumar por conta de sua ansiedade?
Um adolescente com muitas notas vermelhas, é ansioso ou preguiçoso?
É hora de mergulharmos um pouquinho mais na neurobiologia da
ansiedade para que possamos compreender plenamente o que esse termo
quer dizer. Começarei, como sempre, com uma breve história, a fim de amaciar
o caminho e facilitar sua compreensão.
Há muitas noites em que tenho dificuldade para dormir, talvez isso
aconteça com você também. Se o dia estava muito cheio de atividades, ou
quando há muito o que fazer no dia seguinte, o cérebro parece mergulhar
numa espécie de looping sem fim de repetições, como se ali, durante a noite,
fôssemos capazes de resolver alguma coisa. O resultado é que o sono não vem!
Geralmente quando entro nesse estado ligo a TV e sintonizo o canal
Animal Planet. Fico assistindo àquelas cenas de florestas, savanas, rios, animais
se perseguindo e em poucos minutos adormeço. Acho inclusive, que se essa
técnica se popularizasse, as vendas de Rivotril cairiam vertiginosamente. Fica a
dica!
Nos programas mais frequentes há sempre um bichinho bonzinho, uma
zebra por exemplo, chegando para beber água às margens de um lago e de
repente, um crocodilo monstruoso salta com sua boca pré-histórica aberta para
tentar devorar nossa zebrinha protagonista. O bichinho malhado, no entanto,
num golpe de sorte, escapa do ataque e se afasta apavorado. Nós, os
telespectadores, ficamos aliviados momentaneamente.
Para nosso total espanto, no entanto, a zebra em poucos minutos parece
esquecer o perigo. O crocodilo está ali, claro, mergulhado na água, e ela, logo
depois de ter escapado por um triz, volta a se aproximar, no mesmo lago, e
principalmente, na mesma margem. Acontece o óbvio, o enorme réptil salta
novamente, e dessa vez tem mais sorte, para azar da nossa protagonista, que
termina sendo devorada.
Pense por um minuto nessa situação. Imagine você no lugar da zebra.
Qual a chance de, após ter escapado por pouco do ataque de um crocodilo,
depois de vê-lo afundar na água, você voltar a chegar perto do lago no mesmo
local? Imagino que sua resposta seja a mesma que a minha. Nenhuma chance,
não é?
Aqui estamos bem perto de compreender um pouco mais sobre a
diferença entre o funcionamento do cérebro humano e de um cérebro mais
primitivo como o de um outro mamífero qualquer. Todos somos capazes de
experimentar emoções, como no exemplo da zebra, o medo.
Emoções são fenômenos psíquicos e fisiológicos que nos preparam
rapidamente para uma ação. A palavra emoção vem do latim emovere, que
significa “antes do movimento”, ou “aquilo que provoca um movimento”. Os
seres humanos são capazes de experimentar 5 emoções básicas: medo, raiva,
tristeza, alegria e nojo. Assim, quando somos expostos a um estímulo, antes
mesmo de pensarmos, somos tomados por uma emoção, que surge numa
fração de segundos, provoca uma série de modificações neurofisiológicas,
promove uma ação, dura alguns minutos, e simplesmente vai embora.
Vejamos um exemplo. Imagine que você está caminhando pela sua casa
à noite, no escuro, pisa em algo meio úmido e mole e, antes de ter tempo de
pensar, dá um salto, seu coração dispara, a respiração torna-se ofegante, suas
mãos ficam suadas, em poucos segundos você está apavorado! Corre até o
interruptor, acende a lâmpada e vê que se trata apenas de uma roupa molhada
deixada descuidadamente no meio da casa. Mesmo após identificar que não há
perigo, a reação não desaparece imediatamente, ela continua por alguns
minutos, até que você finalmente se acalma. Isso mostra que o circuito das
emoções é mais rápido e é independente do circuito cerebral do raciocínio, que
sua estimulação dura alguns minutos, para então desaparecer.
Foi nesse ponto que nossa heroína, a zebra, se deu mal. Ela
experimentou uma intensa emoção, o medo, fugiu, se safou da primeira
investida reptiliana, mas logo que a emoção desapareceu, assim como você, ao
reconhecer a roupa molhada no chão de casa, ela se julgou segura, e esse foi o
seu fim!
Em uma outra situação podemos imaginar que você, no trânsito, seja
surpreendido por alguém furando o sinal vermelho e colocando a sua família
em extremo risco. Imediatamente ficará irado. A raiva é uma emoção muito útil
em situações como essa, de conflito, te ajuda a impor limites nas relações e a
se manter íntegro. Claro que nesse exemplo, ao tentar tirar satisfações, poderá
se surpreender com o motorista do outro carro desesperado levando a esposa
para o hospital em trabalho de parto, e mais uma vez perceberá que as
emoções nem sempre são confiáveis, visto que são muito imediatas. Nem
sempre somos capazes de julgar corretamente uma situação em tão pouco
tempo. Após entender o motivo da pressa sua raiva irá ceder, não
instantaneamente, mas em alguns minutos, claro.
Existem pessoas que criam o hábito de se entregar à preguiça. Conhece
alguém assim? Então, imagine essa criatura, chegando atrasada várias vezes ao
trabalho, até que um dia o patrão se irrita e sumariamente a demite. Ela ficará
triste, claro. A tristeza é uma emoção que nos tira a energia, nos deixa contritos
e nos faz refletir. Pode ser que inicialmente ela até se ache injustiçada, mas
logo perceberá que provocou sua própria demissão. Perceba que a tristeza tem
uma importância fundamental, ela nos induz à autoavaliação. Não menospreze
a sua tristeza, observe o que ela está te mostrando e, se há algo na sua vida a
corrigir, simplesmente o faça.
Há dias em que tudo parece dar certo. “Acordamos com o pé direito”.
Todos parecem sorrir para nós, os problemas se resolvem facilmente, até
mesmo a vaga no estacionamento parecia estar ali, esperando a nossa
chegada. Sentimos uma emoção gostosa, a alegria, que nos dá uma sensação
de energia, de potência, de que a vida vale a pena ser vivida. A alegria é uma
emoção essencial, é ela que nos dá motivação para suportar os dias ruins, nos
faz ter a sensação de propósito e perseverança. É ótimo estar alegre, só não
devemos esperar estar alegres sempre. Buscar isso a todo custo pode ter
efeitos colaterais!
Para finalizar o nosso tour emocional, faltou o nojo. Essa é uma emoção
que aparece quando nos aproximamos de substâncias ou ambientes
potencialmente “contaminados”. Aquela vitamina de abacate amanhecida, o
leite que dormiu fora da geladeira, ou a inconfundível sensação de deitar sobre
o lençol sujo com algum tipo de farelo. A repulsa que essas situações provocam
em nós são de grande valia pois evitam infecções e doenças.
Vejam bem, todas as emoções são úteis e fazem parte do nosso sistema
básico de sobrevivência, a raiva nos ajuda a impor limites, o medo a fugir de
perigos, a tristeza a repensar condutas, a alegria a valorizar a vida e o nojo a
evitar contaminações. Não há nada errado em sentir emoções, mas claro, tudo
em excesso ou fora de lugar pode causar problemas.
Voltemos à desventura da nossa amiguinha zebra. Porque nós não
cairíamos tão facilmente na mesma armadilha de “esquecer” o medo e se
expor ao risco? Porque enquanto a maior parte dos mamíferos depende
exclusivamente de fenômenos externos para despertar suas emoções, nós,
humanos, temos uma fonte inesgotável de estímulos internos capazes de nos
emocionar, nossos pensamentos!
Provavelmente um humano, após sobreviver ao ataque de um crocodilo
na margem de um lago ou rio, não só nunca mais voltaria ao mesmo lugar,
como teria extrema dificuldade de se aproximar de qualquer outra margem.
Qual a explicação para isso? É simples! Nós somos capazes de imaginar, ou seja,
criar imagens mentais, e nessas imagens, ou seja, nos nossos pensamentos,
qualquer porção de água poderá abrigar um monstro predador.
Sentir seu coração batendo mais rápido, ter sua pupila dilatada, seus
pensamentos acelerados, sua respiração ofegante, suas mãos suando, diante
de um perigo real, como um assalto, um acidente ou um animal peçonhento
são sinais típicos do medo.
Sentir exatamente esses mesmos sinais diante de uma ameaça possível,
mas não imediata, algo impreciso, imaginário, que pode ou não acontecer, e
que está, pelo menos por enquanto, apenas nos seus pensamentos, não é
medo, é ansiedade!
Sendo assim podemos dizer que a ansiedade é uma prima-irmã do
medo. Seus sintomas são muito semelhantes, porém a causa não é palpável. Os
motivos que geram a ansiedade são imprecisos e estão ligados aos
pensamentos, expectativas e inseguranças da pessoa ansiosa.
Como eu disse anteriormente, as reações emocionais têm início quase
instantâneo, mas desaparecem logo, às vezes em poucos minutos. A ansiedade,
porém, é causada por pensamentos, e esses pensamentos podem teimar em se
repetir à exaustão, de forma que os sintomas da ansiedade tendem a se
prolongar por dias, semanas, meses e em casos mais graves, anos.
Se novamente voltarmos ao fatídico exemplo da zebra e do crocodilo,
perceberemos que a capacidade de um humano prever possíveis ataques caso
venha a se aproximar da água é uma imensa vantagem evolutiva. Em outras
palavras, a ansiedade foi um excelente negócio para a espécie humana, nos
livrou de diversos riscos, não apenas na pré-história. Provavelmente você já
ouviu o ditado “um homem prevenido vale por dois”. Agora, com seus novos
conhecimentos de neurociências você já pode fazer um upgrade do ditado,
dizendo que “um homem ansioso, vale por dois”.
Se as zebras fossem capazes de experimentar a ansiedade, os crocodilos
teriam que se contentar com outros itens no cardápio. No livro “Porque as
zebras não têm úlceras”, o neurocientista e PHD Robert Sapolsky, formado em
Harvard e hoje professor em Stanford, comenta o fato desses animais
experimentarem o estresse apenas “no momento certo”, ou seja, na presença
do fator estressor, e não “perderem tempo antecipando problemas”, como
fazemos nós, humanos. Não sei quanto a você, mas entre ter úlceras e me
manter vivo, ou manter meu estômago saudável mas acabar dentro do
estômago de outro animal, opto pela primeira alternativa!
Espero, até aqui, ter sido capaz de fazer você compreender o que é
ansiedade e qual a sua função na manutenção da nossa sobrevivência. Com
esse termo devidamente “limpo”, somos capazes de separar “ansiedade” de
tantas outras palavras que têm sido usadas quase como sinônimos. Ansiedade
não é a mesma coisa que depressão, impulsividade, irritabilidade, gula,
preguiça, expectativa, frustração, inquietação ou insatisfação. Cada uma dessas
palavras têm o seu significado, e devem ser usadas para representar um
fenômeno específico.
Somos geneticamente idênticos aos nossos antepassados de 200 mil
anos atrás, que sobreviveram na savana africana, lutando contra todos os tipos
de feras que você possa imaginar. O ambiente era hostil e perigoso, os
alimentos escassos e a sobrevivência, incerta. A ansiedade foi um fator
evolutivo determinante que nos possibilitou chegar até aqui.
Já na época das cavernas, obviamente, os seres humanos não eram
idênticos entre si. Havia os mais corajosos, destemidos e aventureiros, e os
mais medrosos, ansiosos e pacatos. O primeiro grupo passava seu tempo
desbravando, conquistando e testando seus limites, já o segundo optava pelo
que hoje poderíamos chamar de “um estilo de vida mais conservador”, ficando
quietinhos, alimentados e aquecidos dentro das cavernas. Acho desnecessário
dizer que a expectativa de vida dos nossos antepassados aventureiros era bem
menor que a dos nossos tataravós ansiosos. E claro, quem vive mais, se
reproduz mais!
Não é de se surpreender, portanto, que a maior parte de nós,
atualmente, tenha intensos traços de ansiedade, pois literalmente somos
descendentes dos “ansiosos”, já que os “valentões” pré-históricos, na sua
maioria, não viveram tempo suficiente para deixar herdeiros. Está aí explicada
uma das razões pelas quais a ansiedade é um fenômeno tão frequente.
Vivemos em um cenário radicalmente diferente daquele enfrentado
pelos nossos antepassados. Poderíamos dizer que a vida hoje é um “passeio no
parque”, comparada à aventura trágica na savana africana há alguns milhares
de anos. Nada de monstros predadores, a comida é farta e as noites
iluminadas. Temos inúmeras opções de lazer, acesso a todo tipo de conforto,
nos deslocamos a velocidades inimagináveis sem o menor esforço e até mesmo
as sensações de calor e frio são amenizadas por climatizadores.
O DNA, no entanto, é o mesmo. Os mecanismos cerebrais para a
manutenção da sobrevivência funcionam a todo vapor. Monstros horrendos,
massacres, doenças e fome seguem fazendo parte da nossa imaginação, numa
espécie de “memória ancestral”. A vida segue aparentemente tranquila, mas
nós não conseguimos acreditar. É como diz o ditado. “Está bom demais para ser
verdade”! Basta observar o enredo dos principais filmes e séries e verá que os
predadores, a fome e a carnificina seguem fazendo parte do nosso imaginário
coletivo.
Poderíamos dizer, portanto, que do ponto de vista puro e simples de
manter a sobrevivência, talvez nossa ansiedade atualmente pareça “um
pouquinho exagerada”, já que sair para jantar na praça de alimentação de um
shopping oferece riscos consideravelmente menores do que uma épica caçada
na savana pré-histórica.
Os efeitos da ansiedade são desconfortáveis e as causas quase sempre
obscuras ou aparentemente desproporcionais. Em contrapartida, nós vivemos
a era do conforto, controlamos tudo, a temperatura, a umidade do ar, os
odores, a luminosidade. Desaprendemos a experimentar o desconforto.
Julgamos que isso não é mais necessário e nem “normal”.
Vivenciar os sintomas desagradáveis da ansiedade, portanto, passa a ser
“anormal”. Se temos algo anormal acontecendo no nosso corpo, só pode ser
um “transtorno” ou uma “doença”. Uma ideia muito atraente por sinal,
especialmente se tivermos uma população ávida por saídas rápidas para os
seus incômodos e uma indústria farmacêutica pronta para lucrar com
“soluções” na forma de comprimidos.
Então, meu amigo leitor, no próximo capítulo entraremos juntos em uma
reflexão profunda e perturbadora. Até que ponto a ansiedade é uma doença?
Em uma época em que a manutenção da sobrevivência não é mais um desafio,
qual o papel desse complexo mecanismo de defesa ancestral?
Haveriam, atualmente, outras formas de ameaça à nossa liberdade de
experienciar a vida? Com toda a segurança e prosperidade que a sociedade
moderna promete, quais seriam os desafios para vivermos com autenticidade,
autonomia, integridade e felicidade? Estariam esses desafios sendo
denunciados pela atual “epidemia de ansiedade”? É o que veremos.

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