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ÍNDICE Clique em um assunto, se quiser ir direto para a página.

1. Revelação Geral.................................................................03 13. Cânon da Escritura..........................................................41

2. Teologia Natural................................................................08 14. Entendendo o que são manuscritos................................45

3. Revelação Natural é Suficiente?.......................................11 15. Panorama das traduções bíblicas...................................49

4. As Cinco Vias de Aquino...................................................14 16. Cosmovisão Cristã e Teologia Pública............................52

5. Revelação Especial: Naturezas e Modo Histórico.............16 17. A tese de Bauer...............................................................55

6. Revelação Especial: Modo Discursivo e Encarnacional....19 18. Continuidade e usos do Antigo Testamento...................58

7. Inspiração..........................................................................22 19. Tipologia..........................................................................60

8. Teorias e Alcance da Inspiração........................................24 20. O que é hermenêutica e seus 6 abismos........................62

9. Teorias de Inerrância.........................................................27 21. Hermenêutica no Judaísmo..........................................65

10. Necessidade da Escritura................................................31 22. Hermenêutica da Patrística à Idade Média....................68

11. A Autoridade da Escritura...............................................33 23. Hermenêutica da Reforma à Modernidade....................71

12. Fontes e autoridades na teologia....................................38 Bibliografia utilizada...........................................................77

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1. REVELAÇÃO GERAL

C
onversamos sobre a doutrina de Deus, acerca do Deus-Pai. Logo em sequência, o ideal é conversamos sobre bibliologia, a
doutrina da Bíblia, da Palavra de Deus. Esse percurso pode parecer um pouco estranho, pois, depois de falamos do Deus-
Pai, seria natural seguirmos falando do Deus-Filho e do Deus-Espírito Santo. Contudo, há um motivo metodológico

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que justifica a rota escolhida. Obviamente, tudo o que Quando mencionamos revelação, referimo-nos a um Deus
estudamos a respeito do Deus-Pai, a respeito do Deus- que fala de alguma forma. Ele se expressa e nos revela aquilo
Filho e a respeito do Deus-Espírito tem de vir da Bíblia, da que é do seu interesse. Se Deus existe e deseja ter contato
Palavra de Deus. Geralmente, muitas sistemáticas começam com sua criatura, ele necessita revelar-se, manifestar-se e
o arrazoado teológico com bibliologia, já que é da Bíblia que fazer-se conhecido aos seres humanos. Deus escolheu se
vem toda a informação a respeito de Deus. Nós começamos revelar por meio de um livro. Esse livro é a Bíblia, um livro
com Deus-Pai justamente porque pretendíamos deixar que, na sua versão evangélica, possui 66 documentos que
claro que a Bíblia provém de um revelador. A Escritura é revelam quem Deus é e qual sua vontade para seu povo. Eles
a revelação, mas é a revelação de alguém: a revelação do contam a história da criação e do fim dos tempos que ainda
próprio Deus. Começamos com Deus e então, partimos a virá, além de muitas outras coisas.
Bíblia.
Essa Bíblia é conhecida como “revelação especial”. É o
Ora, poderíamos também falar do Deus-Espírito, do Deus- nome que os teólogos dão para esse documento. Ele possui
Cristo, em sequência, logo depois de falar do Deus-Pai. Não esse nome justamente para contrapor à “revelação geral”.
haveria problema algum com isso. Todavia, a fim de sermos São dois tipos de revelação de Deus que possuímos. A
mais bem servidos em nosso esforço teológico para falar revelação geral é aquela em que “Deus faz de si mesmo
do Deus-Filho, para falar do Deus-Espírito e de todo resto a todas as pessoas, em todas as épocas e em todos os
da teologia sistemática, é preferível que já comecemos lugares” (ERICKSON, 2015, p. 140) e diz respeito àquilo que
discutindo bibliologia, tentando entender de onde a Bíblia “é revelado sobre Deus por meio da criação, da história e da
veio, como foi construída, por que damos atenção a esse lei moral no coração humano” (FERREIRA e MYATT, 2007, p.
livro, quais os modelos de inspiração e de autoridade, por 55). Essa revelação acontece, antes de tudo, por intermédio
que Bíblias católicas e evangélicas são diferentes, como a ela dos céus e da terra.
surgiu, dentre outros assuntos. Neste módulo de bibliologia,
gastaremos bastante tempo olhando diretamente para a Deus se manifesta nas maravilhas dos céus – Sol, Lua
Palavra de Deus. Então, estude este módulo com cuidado, e estrelas – e nos prodígios da terra – céus e mares,
dando atenção ao que vamos discutir, porque é muito montanhas e florestas, tempo de plantio e colheita [...]
importante conhecermos a revelação do Senhor. Segundo, no próprio homem Deus também é revelado.

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De acordo com a Escritura, o homem é feito à “imagem” e nós.
“semelhança” de Deus (WILLIAMS, 2011, 28-29).
Deus também se manifesta por meio de obras e eventos
Nós refletimos quem Deus é e, com isso, Ele é revelado por históricos e, nesse aspecto, possui um caráter intimamente
meio do próprio ser humano. O fato de existirmos da maneira teológico. Toda história carrega uma marca da atividade
como existimos já revela uma força superior que é criativa, divina no mundo. Deus é revelado, dessa forma, por
bondosa e poderosa em formar seres como nós. intermédio da ascensão e queda de nações, países, reinos
e impérios, mostrando que , no fim das contas, ainda existe
Em seu alto posto de domínio sobre o mundo; em sua uma justiça que prevalece contra a injustiça e que há um
capacidade de pensar, imaginar e sentir; em sua liberdade progresso histórico em curso.
de ação e muito mais, o homem é feitura singular de Deus. A
isso se deve acrescentar o fato do senso humano do certo e Claro que, conforme lemos a Escritura, não percebemos
do errado, o mover da consciência interna. (WILLIAMS, 2011, uma distinção teológica clara entre revelação natural e
p. 28-29). sobrenatural. No caso, a revelação natural se configuraria
como a revelação de Deus na história e na natureza,
Por isso, muitos juristas alegam o jusnaturalismo: um enquanto a revelação sobrenatural configuraria-se como a
jurismo que se baseia na natureza do ser humano, na revelação de Deus na Escritura. De fato, se nos atentarmos
natureza das coisas e que entende a existência de uma lei cuidadosamente, perceberemos que toda a revelação de
moral escrita no coração dos seres humanos. A lei não é Deus, incluindo a revelação de Deus na natureza, é uma
simplesmente positivada. Ela não é simplesmente escolhida revelação sobrenatural. A palavra "revelação", por si só,
de forma arbitrária por seres humanos que tentam, de não diz nada sobre a naturalidade ou o meio pelo qual ela
alguma forma, criar regras entre eles, como lobos criando acontece. Comunica a ideia de algo que estava escondido e
regras para lobos. Uma vez que se crê que existe uma regra que agora vem à luz (BAVINCK, 2012, p. 307). Em se tratando
moral alheia aos seres humanos, crê-se na existência de de cristianismo, falar de revelação significa dizer que Deus
uma força moral que transcende todos nós e que é inata a possui uma vida independente da nossa, que é distinta da
todos. Nossas leis deveriam ser baseadas exatamente nessa natureza e que, de uma forma ou de outra, apresenta-se
revelação de Deus que encontramos dentro de cada um de diante dos olhos das suas criaturas. A distinção entre uma

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revelação natural e uma sobrenatural não diz respeito ao tipo homem ao longo da história confirmam claramente que
de ação de Deus que se expressa tanto de uma forma quanto essas coisas poderiam ser percebidas até mesmo sem a
de outra, mas sim pelo modo como a revelação ocorre. Em Bíblia (GRUDEM, 1999, p. 82-83). Em Atos 14.17, lemos que
sua origem, toda revelação é sobrenatural, porque toda Deus, por trazer chuvas e colheitas sobre todos, manifesta
revelação procede de Deus. A questão é: qual é o limite de de forma natural que ele é gracioso e bondoso com todos
cada uma dessas revelações, o que as duas revelam e quais os homens. Mas o modo como a santidade e a justiça de
os efeitos disso na vida de quem percebe e recebe essa Deus podem se inter-relacionar e se conciliar com sua
revelação? disposição para perdoar pecados é um conflito para o qual
apenas a Escritura pode oferecer resposta. Não teríamos
Por mais que essa revelação natural traga um senso do esperança se não tivéssemos encontrado uma revelação
divino no coração de cada pessoa – aquilo que Calvino especial de Deus para que saibamos como seguir seus
chamava de sensus divinitatis, um senso pelo divino, uma lei caminhos de forma coerente, a fim de agradar o seu nome
de Deus escrita no coração de cada um, que faz com que os eternamente. Ou seja, a revelação geral pode, no máximo,
homens tenham esse senso de transcendência de alguma comunicar algumas verdades acerca de Deus, mas não
forma – a Escritura nunca indica que alguém possa encontrar pode comunicar fatos teológicos nem a história da nossa
salvação simplesmente pela revelação natural ou que alguém salvação, que são exatamente as bases e elementos da
pode conhecer a Deus de forma pessoal ao ponto de ter um nossa fé. Essa revelação geral restringe o pecado, ilumina
relacionamento íntimo com ele simplesmente por meio da a mente, mas não regenera a natureza de seres humanos
revelação de Deus na natureza. Essa revelação natural, ou caídos. Essa revelação na natureza inspira, dentro de nós,
geral, pode indicar que Deus existe, que ele é nosso criador, temor diante da grandeza daquele que criou essa coisa
que a ele devemos obediência e que pecamos contra ele de imensa que é a natureza, a criação, mas nunca pode inspirar
alguma forma. Ela mostra um Deus que é criativo, poderoso, amor e redenção na pessoa de Jesus. Além disso, esse
presente, sustentador, justo, santo, severo e irado contra o conhecimento que a revelação geral pode fornecer não é
pecado. apenas escasso e, às vezes, até inadequado ou insuficiente,
mas também incerto, constantemente misturado com erro
A presença sempre constante de sistemas de sacrifícios e com impressões falsas a respeito de Deus. Para grande
nas religiões antigas e nas manifestações primitivas do parte das pessoas, é um conhecimento inatingível que

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muitos interpretam de forma errada e, por isso, acabam por teologia bíblica, procura entender uma revelação especial do
adorar a natureza ao invés de adorar o criador de todas as Senhor que é encontrada na Palavra. É na própria Bíblia que
coisas. Pense em tribos antigas que adoravam o céu, o sol, a criação revela a glória de Deus, o que, para o descrente,
as estrelas e as tempestades achando que o instrumento da é mera condenação. Romanos 1.18-20 diz que uma ira de
criação era o próprio Senhor de todas as coisas, tudo porque Deus se revela dos céus contra a impiedade. O Salmo 104,
eles não conseguiam interpretar corretamente essa revelação que aborda a revelação de Deus na criação, não fala sobre
de Deus por causa da maldade do coração ao invés de se aquilo que é revelado ou o sobre o quanto é revelado, mas
submeter à grandeza do Senhor. Eles preferiam ignorar essa sobre os efeitos da revelação sobre aqueles que a recebem
revelação e adorar as coisas criadas ao invés de adorar um de alguma forma. Esse observador do Salmo é também
criador acima de tudo isso. Essa insuficiência da revelação alguém que crê em Deus, ou seja, que recebeu antes de tudo
natural pode ser encontrada também no fato que de nenhum uma revelação especial. Ou seja, nas palavras de Erickson
ser humano consegue se contentar em ficar no mínimo da (2015, p. 146): “quando a revelação especial é dada, ela
revelação da natureza. Essa religião baseada apenas em desperta a percepção da autenticidade da revelação geral”.
revelação geral produz apenas deístas. É a religião da razão Entendemos melhor a revelação geral quando recebemos a
moral de Imanuel Kant, da piedade e obediência de Baruc revelação especial, ou seja: o livro da Escritura explica o livro
Spinoza e são todas meras abstrações que não existem de da natureza.
fato na realidade. Mesmo que os cinco artigos de Hebert
ou a trilogia racionalista de Kant fossem completamente
certos e demonstráveis por rigorosos padrões científicos,
ainda seriam incapazes de fundar uma verdadeira religião ou
plantar uma igreja de fato.

A religião é diferente da ciência porque ela possui outro


fundamento, outra base. Enquanto a ciência busca estudar
o livro de Deus e entender a natureza, a religião cristã, a

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2. TEOLOGIA NATURAL

A
revelação geral acaba gerando teologia natural.
Mas o que é teologia natural? Já falamos que
Salmos e Romanos apresentam a ideia de que
podemos conhecer a Deus na natureza, mas que tipo de
conhecimento é esse? Que tipo de teologia podemos criar
a partir da natureza? Os proponentes da teologia natural
afirmam que não apenas existe uma revelação de Deus
na natureza, revelação essa válida e objetiva, mas que
também é objetivamente possível obter algum conhecimento
verdadeiro de Deus com base na natureza, na história e na
personalidade humana, ou seja, é possível construir teologia
sem a Bíblia. Uma das premissas fundamentais da teologia
natural é a integridade da pessoa que observa e recebe a
revelação natural. Nem as limitações inatas da humanidade
nem os efeitos da queda em nosso corpo e em nossa
mente impediriam que os seres humanos reconhecessem
e interpretassem corretamente as obras do Criador. Outra
premissa é a de que existe uma harmonia muito íntima entre
a coisa criada e a mente da criatura. Essa coerência entre a
mente e a ordem criacional permitiria conclusões corretas
com base nos dados observados à nossa volta.

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Com isso, a teologia natural apresenta a ideia de que
podemos conhecer a Deus com base na razão, unicamente
na razão. A razão seria suficiente para nos fazer interpretar
o mundo corretamente e chegar a conclusões de fé que são
válidas e verdadeiras, sem necessidade de compromisso
de fé real, baseado numa revelação especial encontrada na
Palavra. A razão aqui é justamente essa capacidade do ser
humano de descobrir, compreender, interpretar e avaliar a
realidade de forma suficiente. Um dos grandes proponentes
da teologia natural foi um dos maiores nomes do catolicismo
romano e do cristianismo de forma geral: Thomás de Aquino,
talvez um dos maiores filósofos da história da fé cristã e um
dos teólogos que escreveu obras de maior vulto no começo
da Idade Média. Ele acreditava que a racionalidade da mente
humana era capaz de produzir uma teologia natural mesmo
após a queda das pessoas, de forma que a capacidade do
ser humano de interpretar e compreender as coisas não
havia sido prejudicada o suficiente por causa do pecado,
impedindo que conhecêssemos a Deus na criação. É por isso que Thomás de Aquino utilizou o método filosófico
e natural, que podemos reconhecer como indutivo e racional,
Ele defendia um conflito entre natureza e graça, que seriam para afirmar que o Deus poderoso e infinito existe. Com
duas realidades distintas e dois caminhos distintos para o isso, ele pôde elaborar cinco vias, ou cinco caminhos, que
conhecimento de Deus, um caminho natural e um caminho são basicamente cinco argumentos a favor da existência
revelado, e dois métodos para conhecer e saber: o método da de Deus, os quais são baseados unicamente na razão, uma
razão e o da fé. vez que ele acreditava que por meio do uso natural da mente
humana poderíamos chegar à revelação da existência de
Deus.

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Martinho Lutero, com a Reforma Protestante, rejeitou a Ainda que, segundo Calvino, Deus tivesse impresso em
teologia natural de Thomás de Aquino, sendo profundamente sua criação marcas digitais de sua grandeza, nós somos
influenciado por Agostinho (muito anterior a Aquino), linha incapazes de perceber a grandeza daquilo que Deus fez na
religiosa que seguia. Lutero reconheceu a revelação geral criação. Ele também afirma que existe na mente humana
como um tipo de conhecimento inato da existência de Deus, uma disposição natural por aquilo que é a divindade, o
conhecimento esse que todo ser humano possui e do qual que traduzimos por “senso de divindade”, conhecido como
ninguém pode realmente fugir. Essa lei moral de Deus estaria sensus divinitatis, do latim. O objetivo disso é que ninguém
escrita no coração das criaturas de forma que todo ser se refugie no pretexto da ignorância. Esse Deus estaria
humano dá testemunho daquilo que é certo e errado. constantemente renovando a lembrança de sua existência a
todos os homens. Ninguém conseguiria fugir da existência
A teologia de João Calvino também retornou à de Agostinho de Deus de forma confortável e isso traria condenação
em muitos pontos, seguindo parte do caminho de Lutero. àqueles que rejeitam a grandeza dessa revelação, que, na
Ele enfatizou os efeitos do pecado na mente humana. realidade, é o destino de todos os homens, porque todos os
Chamamos isso, na teologia, de “noéticos do pecado”. homens rejeitam, por causa da própria maldade, a revelação
Noéticos não vem de Noé, mas de nous, do grego, que é a natural de quem é Deus.
palavra para “mente”. Os efeitos noéticos do pecado seriam
os efeitos na mente do ser humano. O pecado, segundo É por isso que Calvino também discordou da teologia natural.
Calvino, teria afetado a mente do homem ao ponto de se O conhecimento de Deus que vem pela natureza é ineficaz
tornar difícil a percepção de Deus de forma perfeita ou dentro para a salvação por causa da má moral do ser humano, por
dos limites daquilo que seria possível ao mundo criado pela causa do pecado que nos rodeia e que nos define.
simples revelação natural. Ele afirma que Deus colocou na
mente humana essa semente de religião. Ainda que Deus
tivesse se revelado de alguma forma na natureza, os homens
não podem abrir seus olhos para essa revelação sem que
Deus os abra para isso, de sorte que a natureza de Deus
transcende a própria criação e a grandeza da sua divindade
acaba escapando aos sentidos humanos.

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3. REVELAÇÃO NATURAL É SUFICIENTE?

E
xistem pelo menos 5 posições básicas sobre o destino
daqueles que não têm acesso à revelação especial
de Deus. Pessoas que recebem apenas a revelação
natural, ou seja, tribos distantes, países e pessoas que nunca
ouviram a pregação do evangelho. Não seria injusto que Deus
condenasse pessoas porque, simplesmente, um missionário
não chegou até elas? Elas não tiveram nem a chance de
rejeitar o cristianismo. Simplesmente, nunca ouviram falar do
cristianismo.

A primeira posição é conhecida como universalismo, a ideia


de que todas as pessoas, no fim das contas, serão salvas
por Cristo Jesus e que ninguém é condenado eternamente.
Eles usam bastante os textos de Romanos 5.18, 1 Coríntios
15.22-28 e 1 Jo 2.2 como argumentos para estabelecer
essa visão. Representantes de vulto dessa posição foram
Orígenes, William Barclay, G.C. Berkouwer, Jacques Ellul e
Karl Barth.

A segunda posição é a da perseverança divina, ou do


evangelismo post-mortem. É a ideia de que os não
evangelizados recebem uma chance de crer em Jesus após a

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de revelação que eles possuem. Eles utilizam como textos-
base, para isso, Jo 12.32, Atos 10.43 e 1 Timóteo 4.10.
Defenderam essa posição Justino Martir, John Wesley, C.
S. Lewis, Clark Pinnock, Wolfhart Pannenberg, o famoso
sistemático, e John Sanders.

A quarta posição é a oportunidade universal antes da morte.


A ideia é que todas as pessoas recebem uma oportunidade
de ser salvas porque Deus lhes envia o evangelho ou no
momento da morte ou por um conhecimento intermediário,
nem que seja por meio de sonhos ou de anjos. Os textos
dos quais fazem uso como base são Daniel 2 e Atos 8.
Defenderam essa posição Thomás de Aquino, Jacó Armínio,
John Henry Newman e Norman Geisler, por exemplo.

A quinta posição é o restritivismo. É a ideia de que Deus não


provê salvação para aqueles que não ouvem especificamente
sobre Cristo Jesus e, consequentemente, não creem nele
antes da morte. Textos-base para isso são João 14.6, Atos
sua morte. Eles usam como argumento João 3.18 e 1 Pedro 4.12 e 1 Jo 5.11-12. Grandes proponentes dessa visão foram
3.18-4.6. Defenderam essa posição Clemente de Alexandria, Agostinho, João Calvino, Jonanthan Edwards, Carl Henry, R.C.
George Macdonald, Donald Bloesch, George Lindeberg e o Sproul, Ronald Nash e vários outros teólogos protestantes
Stephen Davis. principalmente.

A terceira posição, a mais intermediária, é conhecida como Alguns blocos teológicos conhecidos têm posições a
inclusivismo. A ideia é que os não-evangelizados poderiam respeito desse assunto. A teologia liberal do século XX, por
ser salvos se respondessem a Deus em fé baseado no nível exemplo, quando afirmava que Deus não pode ser conhecido

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racionalmente, defendia que Deus pode ser representado por Com isso, Karl Barth rejeitou a analogia entis, que postula
meio de símbolos religiosos gerais e que, por isso, todas as que o ser de Deus pode ser conhecido pelo simples fato de
religiões são tentativas de entender essa manifestação de ele existir, para abraçar a analogia fidei, que propõe que o ser
Deus na natureza, em uma busca de representar o mistério de Deus só pode ser conhecido por meio da revelação.
divino como inefável e toda teologia como uma construção O Concílio do Vaticano II, um concílio católico romano muito
de mundos simbólicos para representar a realidade. Uma famoso, foi muito influenciado pelo liberalismo teológico,
vez que Deus está em algum nível oculto, todas as religiões levando a teologia católico-romana a assumir que o papel da
seriam de alguma forma um esforço para encontrar esse igreja é reunir todos os povos, de forma que a revelação geral
Deus. Então, o conhecimento de Deus seria uma experiência é suficiente para salvar as pessoas que não são católicas.
mistica, irracional e inexprimível. Com isso, a teologia liberal O catolicismo seguiria um caminho que reconhece que a
pressupõe que Deus está de forma completa e total imanente revelação geral tem poder para trazer as pessoas à fé, ainda
no mundo. Isso seria uma forma de os homens das mais que elas, em vida, em nenhum momento assumam crer em
variadas religiões encontrarem salvação, já que cada religião Cristo Jesus.
seria um esforço por representar e encontrar quem é essa
divindade oculta.

Já os neo-ortodoxos surgiram como uma resposta ao


liberalismo teológico que teve como grande proponente Karl
Barth, que nega essa ideia de salvação por meio da revelação
natural a ponto de afirmar que não existe revelação geral,
somente a revelação de Deus na pessoa de Jesus Cristo.
Deus só pode ser reconhecido quando encontra o homem
ou quando Jesus Cristo é revelado a ele. Não existe essa
revelação por meio da racionalidade ou mesmo da história.

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4. AS CINCO VIAS DE AQUINO

V
imos que Thomás de Aquino apresenta um caminho
natural para se chegar a Deus. Esse caminho é
conhecido como cinco vias ou cinco caminhos. Nosso
propósito não é nos determos em uma análise detalhada de
cada um dos argumentos, mas simplesmente apresentar
cada um deles.

O primeiro caminho é o da mutação. Segundo ele, o mundo


não é estático. No mundo, tudo que se move é movido por
outro ser. Esse outro ser é movido por outro ser, que é movido
por outro, num movimento infinito. Como a hipótese de algo
movendo algo no passado infinito não parece muito coerente,
a ideia é que existiu, em algum momento, um motor imóvel:
algo que não é movido, que foi o primeiro a mover tudo. Seria
justamente a figura de Deus.

O segundo caminho é o da causalidade eficiente. Todas as


coisas existentes no mundo não apresentam causa eficiente
de sua existência em si mesmas e devem ser consideradas
como efeitos de outra coisa. Dessa forma, é preciso admitir a
existência de uma Primeira Causa eficiente responsável pela
sucessão de efeitos: Deus.

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O terceiro caminho é o da contingência. Todo ser que é
contingente pode existir e deixar de existir. Se todas as
coisas podem deixar de existir, em algum momento, nada
existiu. Mas, se nada existia, nada existiria até agora. Então,
é preciso admitir um ser que sempre existiu, que nunca
deixou de existir e que não pode deixar de existir, que não
tenha fora de si a causa de sua existência, mas que seja a
causa da necessidade de todos os seres contingentes. Esse
ser necessário é Deus.

O quarto caminho é o dos graus de perfeição. Das coisas


existentes podemos notar graus de perfeição. Isto é, existem
coisas mais belas, perfeitas e melhores que outras. Dessa
forma, podemos supor um ser que possui um alto grau de
qualidade, ao ponto de ser, de fato, o máximo da perfeição
possível. Esse ser perfeito seria Deus. Ele seria o padrão e a
base de qualquer outro grau de perfeição existente.

O quinto caminho seria o do finalismo. Tudo que existe na


criação tem um propósito. Todavia, de onde viria o propósito
das coisas? Para Aquino, necessitamos assumir um ser que
dá, ou concede, propósito para cada criatura, senão as coisas
não teriam razão de existir. Para ele, esse ser ordenador é
Deus.

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5. REVELAÇÃO ESPECIAL:
NATUREZAS E MODO HISTÓRICO

J
á estudamos sobre revelação geral, mas e quanto à
revelação especial? A revelação especial significa “a
automanifestação de Deus a pessoas em particular,
em momentos e lugares específicos, dando-lhes condições
para que tenham um relacionamento redentor com ele”
(ERICKSON, 2015, p. 163). Isso significa que a revelação
especial é, antes de tudo, particular. Deus revela a si mesmo
para um povo específico, justamente o povo que forma a
história da Bíblia. Assim, Deus pode se fazer conhecido de
forma real e verdadeira, de forma adequada, não por meio
de uma revelação geral, na natureza, na história e no ser
humano, mas por meio de sua relação com o povo escolhido.
Essa revelação está arraigada no plano da redenção de
Deus e é dirigida ao homem em sua qualidade de pecador.
Essa revelação só pode ser adequadamente compreendida
e assimilada por intermédio da fé e serve para assegurar
o fim para o qual o homem foi criado, a despeito de toda a
perturbação que foi produzida pelo pecado (BERKHOF, 2007,
p. 36).

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Essa revelação especial, ou revelação específica, possui como uma exposição dos eventos históricos professados
algumas naturezas. A primeira é a sua natureza antrópica. pelo povo de Israel (no AT) e pela igreja cristã (no NT).
Isso significa que Deus falou em linguagem humana. Deus Wright é enfático ao distinguir a revelação da Bíblia como
não falou com uma linguagem desconhecida ou alheia aos uma coleção de doutrinas e como uma narrativa histórica. A
indivíduos, mas manifestou-se por meio de recursos que Bíblia, a rigor, não é a Palavra de Deus, mas sim um registro
conhecemos. Ele falou em linguagem humana por meios dos atos de Deus e da resposta humana a eles. As doutrinas
de categorias de pensamento que também são humanas e bíblicas são inferidas a partir das narrativas históricas. Os
utilizou aspectos comuns da experiência humana para que chamados atributos de Deus não são verdades eternas que
pudéssemos compreendê-lo. nos são transmitidas por meio da Palavra. Ao invés disso,
seriam conclusões inferidas pelo modo como Deus agiu.
Essa revelação especial também possui uma natureza Assim, o próprio conceito de Deus é visto não em termos de
analógica na qual Deus faz uso daqueles elementos sua essência e ser, mas de seus atos (ERICKSON, 2015, p.
universais do conhecimento humano que podem apontar 169).
para semelhanças ou transmitir parcialmente as verdades
da dimensão divina. Ao fazermos uso do termo analógico, Por mais que essa visão acerte no modo como enxerga as
estamos nos referindo a algo da mesma qualidade, ou seja, histórias bíblicas e dá a elas verdadeira atenção, erra ao
a diferença se faz pelo grau, não pelo tipo ou pela categoria ignorar como a verdade de Deus se manifesta na Escritura
(ERICKSON, 2015 p. 167). Essa revelação, que é tanto e, apesar de existir, sim, história, essas histórias possuem
antrópica quanto analógica, também nos apresenta tipos de significados proposicionais e verdadeiros a respeito de quem
manifestação ou modos de revelação especial. Deus é. Seguir a perspectiva de Wright seria acreditar que
aquilo que os autores bíblicos escreveram estaria sujeito
O primeiro desses modos seria a revelação histórica. Essa à revisão de alguma forma, já que tudo era simplesmente
revelação que se dá por eventos históricos é exatamente a fenomenologia de como se percebia Deus e toda a linguagem
autorrevelação de Deus que pode ser encontrada em atos descrevia nada mais do que percepções sobre como Deus
pessoais de Deus na história, em seus grandiosos feitos ao agiu no mundo.
longo dos tempos. Ernest Wright argumenta que a autoridade
da Bíblia está nas narrativas, que devem ser entendidas Millard Erickson contra-argumenta o discurso de Wright

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afirmando que a tarefa do teólogo é averiguar a história Deus, o evento torna-se neutro. A Bíblia é um registro da
como descrita nos relatos bíblicos para “determinar quais revelação que ocorreu. Quando alguém lê a Bíblia ou ouve
características de Deus podem ser inferidas com base na a sua proclamação, o Deus que se revelou a uma pessoa
história real. Portanto, a revelação está contida na história no registro bíblico pode renovar a sua revelação e repetir o
e não pode ser igualada à história” (ERICKSON, 2015, p. que fez na situação descrita no texto. Ele pode se revelar em
170). Por mais que Deus fale por meio da história, ela não um encontro com a pessoa que está lendo ou estudando a
se configura como toda a revelação de Deus. Por mais que Bíblia. Nesse momento, poderia ser dito que Bíblia é Palavra
coisas tenham acontecido, Deus também descreve, julga e de Deus para os neo-ortodoxos, mas não fora disso. A Bíblia
explica os acontecimentos por intermédio de seus profetas, só é Palavra de Deus quando Deus se revela por meio dela
dos autores bíblicos, do próprio Cristo, dos apóstolos e ao homem. Se Deus não se revela, o texto não é Palavra de
pessoas ligadas aos apóstolos. Não temos apenas história. Deus. É por isso que os neo-ortodoxos argumentam que a
Temos as histórias para revelar a grandeza de Deus e o Bíblia não é a Palavra de Deus, mas que contém Palavra de
seu poder em seus atos no mundo. Deus se revela através Deus. Dessa forma, a Bíblia não seria Palavra de Deus por
da história bíblica. Devemos considerá-la importante, mas alguma qualidade que lhe é inerente, porque quando Deus se
não tudo o que existe. A Escritura não é só história, ela retira, não há Palavra naquele documento.
também é doutrina e verdade sobre o Deus vivo. Ela não é
só a descrição de percepções de um povo a respeito de seus Outra posição acerca dessa relação entre revelação especial
acontecimentos divinos, mas é o próprio Deus falando e se e a história é aquela que acredita que os atributos de Deus
revelando mediante sua interpretação dos atos históricos. podem ser concretamente observados em seus atos na
história e não apenas deduzidos a partir dela. Essa linha
Os adeptos da neo-ortodoxia seguem de perto a perspectiva supõe que toda a história é revelação de Deus e não apenas
de Wright quando entendem que os eventos históricos são os acontecimentos registrados na Escritura. Ela propõe que
apenas meios pelos quais aconteceu a revelação divina. É os eventos históricos não apenas contêm, prometem ou se
uma apresentação que Deus faz de si mesmo. Para eles, a tornam revelação, mas, de fato, são revelação.
revelação não é encarada como uma ocorrência histórica,
mas como Deus se encontrando diretamente com alguém
por meio de um evento. Sem essa manifestação direta de

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6. REVELAÇÃO ESPECIAL:
MODO DISCURSIVO E ENCARNACIONAL

A
revelação especial também pode ser encarada como o discurso divino. Dizendo de outra forma, a revelação é o próprio
discurso de Deus. Repetidamente, lemos “a Palavra do Senhor veio a mim” em várias passagens da Escritura. Esse
discurso divino pode assumir formas variadas, como, por exemplo, a de um discurso audível. Pode também ser uma
experiência interior em que se escuta e se sente de forma inaudível a mensagem de Deus. Talvez fosse por meio desse processo
que os profetas ouviam Deus falar aos seus corações. Eles ouviam, mas ninguém mais no recinto ouvia.

19
Existe também a ideia de uma revelação concursiva – já está a profecia. A profecia como um ato presente, isto é,
falamos sobre concursos no modo sobre teontologia –, uma ocorrendo ainda hoje ou não, será abordada no módulo sobre
fusão entre revelação e inspiração. Conforme os autores pneumatologia – a doutrina do Espírito Santo. A profecia
bíblicos escreviam suas cartas, Deus inspirava aqueles como um ato histórico e a profecia como algo registrado
textos para que fosse dito exatamente o que Deus queria que na Escritura faz parte do processo revelacional de Deus
fosse dito. Isto é, conforme os autores bíblicos escreviam, e representa a comunicação dos pensamentos de Deus
Deus colocava em suas cabeças os pensamentos e dava- à mente humana. Esses pensamentos de Deus revelados
lhes a oportunidade de usar exatamente as palavras que por meio de profecia podem se referir ao passado – coisas
Deus desejava que fossem proferidas. O autor poderia ter que já aconteceram –, ao presente – coisas que estão
ou não consciência do que estava acontecendo, podendo acontecendo – e ao futuro – fenômeno conhecido como
simplesmente achar que as ideias lhe ocorriam enquanto videntismo. Os profetas também eram videntes no sentido de
escreviam. Paulo é muitas vezes categórico e deixa claro que prever e interpretar elementos futuros a partir dos momentos
quem estava dizendo o que ele dizia era o próprio Senhor, estipulados por Deus.
por meio da mensagem que transmitia em suas cartas. Em
outros momentos, como na epístola a Filemom, Paulo tinha Lemos na Escritura que Deus fala de forma audível e de
plena consciência de que sua escrita era guiada pelo próprio forma humana. Deus utilizou outras formas de revelação
Deus. profética, como tirar sortes, o urim e o tumim – pedras que
os sacerdotes usavam descobrir a vontade de Deus (Jz
Não só o evento da revelação, mas também a interpretação 1.1; 20.18; 1 Sm 5.23; 1 Cr 24.14). Ainda que a Escritura
da revelação é guiada pelo próprio Deus. Quando os aborde a futilidade dos sonhos (Sl 73.20; Jó 20.8; Is 29.7)
autores interpretavam eventos ou mesmo a palavra de Deus e a atribuição de certos sonhos a falsos profetas (Jr 23.25;
revelada no Antigo Testamento, Deus não permitia que as 29.8; Mq 3.6; Zc 10.2), Deus, muitas vezes, usava sonhos
interpretações fossem mero pensamento direto de suas para tornar sua vontade conhecida (Nm 12.6; Dt 13.1-6; 1
mentes, mas o próprio Deus se comunicava por meio desse Sm 28.6; Jl 2.28). Eles também ocorriam a quem não era
processo. Assim, a revelação direta da vontade de Deus é israelita (Gn 20; 31; 40; 41; Jz 7; Dn 2; 4) e tinham a função
uma modalidade de revelação tão autêntica quanto os seus de transmitir uma mensagem de Deus (Gn 20.3; 31.9; Mt
atos na história. É justamente dentro dessa categoria que 1.20; 2.12, 19, 22; 27.19).

20
Deus também falava por visões (Gn 15.1; 11; 20.7; Nm 12.6). é o ápice dos atos de Deus. O próprio Cristo comparou
Elas são retratadas desde Gênesis até Apocalipse (Gn 15.1; sua mensagem com aquilo que estava na Escritura, tanto
46.2; Nm 12.6; 22.8-13; 24.3; 1 Rs 22.17-23; Is 6; 21.6; Jr expandindo quanto aprofundando sua compreensão.
1.11-14; 24.1; Ez 1-3; 8-11; 40; Dn 1.17; 2.19; 7; 8; 10; Am
7-9; Zc 1-6; Mt 2.13, 19; Lc 1.22; 24.23; At 7.55; 9.3; 10.3, 10; Quando os profetas falavam, eram portadores de uma
16.9; 22.17; 1 Co 12-14; 2 Co 12.1; Ap 1.10). Muitos profetas mensagem que tinha tanto conteúdo divino quanto origem
recebiam revelações em estado de êxtase (Nm 24.3; 2 Rs divina. Quando Jesus falava, o próprio Deus falava. Sua
9.11; Jr 29.26; Ez 1.28; 3.23; 43.3; Dn 10.8-10; At 9.4; Ap mensagem era divina, de uma forma direta e exclusiva. Jesus
1.17; 11.16; 22.8). “No entanto, esses estados nunca eram é a união da revelação como ato e como Palavra. É tanto
um ambiente em que a consciência era suprimida ou perdida” história da revelação quanto discurso divino na revelação. Ele
(BAVINCK, 2012, p. 333). Eles tinham plena consciência da fala as palavras do Pai e mostra os seus atributos divinos.
revelação que estavam recebendo. Por isso, Jesus é a mais completa revelação de Deus.

Uma terceira modalidade de revelação seria a encarnacional.


Ela é a modalidade mais completa de revelação que
encontramos em Cristo Jesus. Lemos acerca disso em
Hebreus 1.1, em que se lê que Deus falara por profetas
muitas vezes, de muitas maneiras, mas que hoje ele se
revela de uma vez por todas por meio de Cristo Jesus. Ele é
o ápice da revelação de Deus. É a imagem do Deus invisível
e aquele no qual vemos o próprio Deus-Pai no máximo de
sua revelação. Ao encarnar, Deus mostrou-se ao mundo
na sumidade daquilo que poderia ser revelado aos homens
criados. Isso significa que a vida e as palavras de Jesus
são uma revelação muito especial da parte de Deus. Jesus

21
A
palavra “inspiração” vem de dois vocábulos gregos:

7. INSPIRAÇÃO theo, “Deus” e pneustos, “sopro”. Dessa forma,


inspiração significaria “aquilo que é dado pelo
sopro de Deus”. Uma definição preliminar de inspiração,
segundo Erickson, é “a influência sobrenatural do Espírito
Santo, exercida sobre os autores da Bíblia, que fez com que
seus textos fossem um registro preciso da revelação ou
resultassem, de fato, na Palavra de Deus” (2015, p. 189).
Ou seja, é a “ação sobrenatural do Espírito Santo sobre os
escritores sagrados, que os levou a produzir, de maneira
inerrante, infalível, única e sobrenatural, a Palavra de Deus —
a Bíblia Sagrada” (ANDRADE, 1998). É a partir da inspiração
que inferimos a autoridade da Bíblia. “A autoridade das
Escrituras significa que todas as palavras nas Escrituras
são palavras de Deus, de modo que não crer em alguma
palavra da Bíblia ou desobedecer a ela é não crer em Deus
ou desobedecer a ele” (GRUDEM, 1999, p. 44). “Enquanto
a revelação é a comunicação da verdade de Deus aos
seres humanos, a inspiração está mais relacionada com a
retransmissão da verdade do(s) primeiro(s) destinatário(s) a
outras pessoas, seja na mesma época, seja posteriormente”
(ERICKSON, 2015, p. 190).

Os profetas sabiam que estavam sendo chamados por Deus


(Êx 3; 1 Sm 3; Jr 1; Ez 1-3; Am 3.7, 8; 7.15). Em Israel, havia
uma convicção de que os profetas eram enviados por Deus
(Jr 26.5; 27.15; 29.15; Dt 18.15; Nm 11.29; 2 Cr 36.15). Os

22
profetas estavam conscientes que Deus havia falado com (e.g., Moisés – Mt 8.4; 19.8; Mc 7.10; Jo 5.45; 7.22; Isaías
eles. YHWH diz o que eles têm que dizer (Êx 4.12; Dt 18.18), – Mt 15.7; Mc 7.6; Davi – Mt 22.46, 45; Daniel – Mt 24.15)
colocando as palavras em sua boca (Nm 22.38; 23.5; Dt e usa a fórmula “está escrito” (Mt 4.4ss; 11.10; Lc 10.26; Jo
18.18), falando com eles (Os 1.2; Hc 2.1; Zc 1.9, 13; 2.2, 8; 6.45; 8.47) ou “diz a Escritura” (Mt 21.42; Lc 4.21; Jo 7.38;
4.1, 4, 13, 14; 5.5, 10; 6.4; Nm 12.2; 1 Rs 22.28). As fórmulas 10.35). Os evangelistas geralmente utilizam a expressão
“Assim diz o Senhor” e “veio a mim a palavra do Senhor” “que falou pela boca do profeta” (cf. Mr 1.22; 2.15, 17, 23, 3.3
são muito utilizadas pelos profetas. Os profetas possuem etc), ou “pelo Senhor”, ou “pelo Espírito Santo” (Mt 1.22; Lc
uma consciência firme do lugar e momento em que Deus 1.70; At 1.16; 4.25). João costuma citar o material pelo nome
falou com eles e daqueles em que não falou (Is 16.13, 14; Jr do autor secundário (1.23; 12.38) e Paulo fala da Escritura
3.6; 13.3; 26.1; 27.1; 28.1; 33.1; 34.1; 35.1;49.34; Ez 3.16; (Rm 4.3; 9.17; 10.11; 11.2; Gl 4.30; 1 Tm 5.18). Jesus e os
8.1; 12.8; Zc 1.1) . Eles se distinguem de YHWH, porque ele apóstolos afirmavam e ensinavam a autoridade divina do
fala com eles (Is 8.1; 51.16; 59.21; Jr 1.9; 3.6; 5.14; Ez 3.26) AT (Mt 5.17; Lc 16.17, 29; Jo 10.35; Rm 15.4; 1 Pe 1.10-12;
e eles ouvem e veem (Is 5.9; 6.8; 21.3, 10; 22.14; 28.22; 2 Pe 1.19, 21; 2 Tm 3.16). Jesus e os apóstolos aceitaram
Ez 2.8; 3.10, 17; 33.7; 40.4; Hc 3.2). Os profetas faziam o AT por completo, tanto nos pronunciamentos religiosos,
distinção entre o que Deus havia revelado e o que surgia quanto nos componentes históricos. Jesus atribui Isaías 6
em seu coração (Nm 16.28; 1 Rs 12.33; Ne 6.8; Sl 41.6-7), a Isaías (Mt 13.14), Salmo 110 a Davi (Mt 22.34), a profecia
diferindo assim dos falsos profetas que faziam aquilo que de Mt 24.15 a Daniel e lei a Moisés (Jo 5.46). As narrativas
estava dentro de seus corações (Ez 13.2,3; Jr 14.14; 23.16) do AT são citadas várias vezes no NT (dilúvio- Mt 24.37-39;
sem serem chamados (Jr 29.9; Ez 13.6). Os profetas, por fim, história dos patriarcas – Mt 22.32; destruição de Sodoma –
tinham a consciência de não proclamar a própria palavra, Mt 11.23; Lc 17.28-33; sarça ardente – Lc 20.37; histórias
mas a do Senhor. Eles tinham que falar (Jr 20.7; Am 3.8; Jn de Elias e Naamã – Lc 4.25-27, Jonas – Mt 12.39-41 etc.).
1.2) e não falavam para obter estima humana (Is 56.10; Mq Jesus e os apóstolos justificam sua conduta utilizando o AT
3.5,11), mas apenas a aprovação do Senhor. (Mt 12.3; 22.32; Jo 10.34; Rm 4; 1 Co 15). Há também uma
diversidade de citações e alusões do AT no NT (Mt 4.4, 7, 10;
O Novo Testamento também testemunha a autoridade divina. Jo 10.34; At 15.16; Rm 1.17; 8.36; 1 Co 5.7; 2 Co 6.16 etc.).
Os escritores do NT estavam certos de que o AT era de
origem divina. Jesus cita um livro do AT pelo nome do autor

23
8. TEORIAS E ALCANCE DA INSPIRAÇÃO

E
xistem pelo menos cinco grandes teorias da inspiração
da Escritura. A primeira é a teoria da intuição. Ela
postula que a inspiração é uma perspicácia de alto grau,
o exercício de um dom privilegiado, como uma habilidade
artística. Nesse raciocínio, os autores foram “gênios
religiosos”. A Bíblia seria uma importante literatura religiosa
do povo hebreu que reflete suas experiências por meio das
penas de homens extremamente inteligentes. Essa, claro, é
uma visão muito naturalista da interpretação divina e não
considera a Bíblia como realmente um documento inspirado
de fato. Uma vez que a inspiração estaria disponível aos
mais variados tipos de atividade artística e cultural.

Em segundo lugar, há a teoria da iluminação. Essa teoria


considera que há uma influência do Espírito Santo
sobre os autores bíblicos, mas ela envolve apenas um
aperfeiçoamento de suas competências normais. Não há
comunicação especial de verdade nem de orientação para
o que é escrito, apenas uma sensibilidade maior para as
questões espirituais. A Bíblia seria fruto do aumento da
capacidade desses homens de perceber a verdade.

24
Em terceiro lugar, vem a teoria da inspiração dinâmica. Ela de Deus que dá ideias corretas aos autores e que guia
enfatiza a relação entre elementos divinos e humanos no exatamente as palavras que gostaria que fossem usadas.
processo de inspiração e redação do texto bíblico. O Espírito Uma evidência que demonstra que os autores bíblicos
de Deus atua dirigindo o autor aos pensamentos e conceitos, acreditavam em uma inspiração verbal está no livro de
mas permite que a personalidade do autor participe na Gálatas, quando Paulo fala a respeito do evangelho através
escolha de palavras e expressões. O autor, dessa forma, da figura de Abraão e de Isaque. Ele diz que a promessa
exprime pensamentos divinamente dirigidos de uma forma que Deus faz a Abraão é a promessa de um descendente
que lhe é particular. e diz que ali há um singular, não um plural (Gl 3.15-16).
Se houvesse um plural, haveria “descendentes”, mas a
Em quarto lugar, está a teoria da inspiração verbal. Nesse promessa é para um singular e, porque é para um singular, a
modelo, a influência do Espírito Santo se estende além da promessa é para um descendente específico reconhecido por
direção dos pensamentos do autor e abrange a seleção Paulo como a pessoa de Jesus. Paulo tinha a consciência
de palavras utilizadas para transmitir a mensagem. Cada de que o uso de um singular ou de um plural em um texto do
palavra é a palavra exata que Deus queria que fosse Antigo Testamento expressava verdade a respeito de Deus.
empregada naquele momento de expor a mensagem que Paulo se sentia seguro de fazer teologia com base em uma
Deus gostaria de expor. letra, ou duas letras, de um texto do hebraico, porque ele
sabia que se o autor escolhera um singular ao invés de um
Em quinto lugar, há a teoria do ditado. Essa teoria defende plural, aquilo carregava significado divino e ele entendia que
que Deus ditou exatamente aquilo que os autores bíblicos as palavras foram escolhidas por Deus até no modo como
deveriam escrever. As passagens em que os autores dizem elas foram postas.
que Deus disse o que eles deveriam revelar se aplicaria a
toda a Bíblia e cada trecho bíblico porque Deus falou as Se esses são os modelos de inspiração, então qual é o seu
palavras certas em seus ouvidos e eles as transmitiram para alcance? Em 2 Timóteo 3.16, Paulo declara que “toda a
o texto escrito. Escritura é inspirada por Deus”, mas há quem tente fugir
desse texto alegando que, no grego, não existe o verbo de
Os teólogos protestantes da atualidade geralmente seguem ligação “é” e que a melhor tradução seria “Toda a Escritura
a teoria de uma inspiração verbal, isto é, uma inspiração inspirada por Deus é útil para o ensino...”. A ideia seria que

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apenas as partes da Escritura que são inspiradas é que Isaías (cf. Is 28.11-12). Assim, fica evidente que “Lei e os
seriam úteis, mas isso não parece ser muito coerente com a profetas”, ou só “Lei” ou só “os profetas”, ou “Moisés”, eram
teologia de Paulo. Além disso, ele coloca que toda a Palavra termos usados para referenciar todo o AT. 2 Pedro 1.19-21 e
deve ser pregada, já que pregava “todo o conselho de Deus” João 10.34-35 são textos que declaram que toda a Escritura
(At 20.27). Quando ele ordena que Timóteo pregue, ele é inspirada por Deus.
menciona a utilidade e suficiência na Escritura. A ideia de
Paulo talvez seja afirmar justamente que toda a Escritura é É por isso que os reformados não falam apenas de Sola
inspirada pelo Senhor. Scriptura, mas também de Tota Scriptura. No Sola Scriptura,
a Escritura é suficiente e apenas ela, mas no Tota Scriputra
Em 2 Pedro 1.19-21 e em João 10.34-35, também lemos a Escritura é suficiente e inspirada por Deus. É interessante
declarações sobre a inspiração de toda a Escritura. Neles, que Pedro – em 2 Pedro 3.16 – se refere às cartas de Paulo
encontra-se a ideia de que a Escritura foi inspirada por Deus como textos da Escritura equiparando os escritos de Paulo a
em sua totalidade. Claro que alguns tentam fugir dessas escritos do AT como palavra do próprio Deus. Em 1 João 4.6,
passagens alegando que Pedro está se referindo apenas aos João também coloca em pé de igualdade o seu texto com os
profetas e que João está falando apenas da Lei. Todavia, textos inspirados do AT. Em Apocalipse 22.16, há punições
em vários locais da Escritura, o termo “Lei e os profetas” para aqueles que alterarem o que está escrito naquele livro,
aparece de forma intercambiável para referir-se diretamente muito próximo do que se ouve a respeito do AT como um
a toda a Palavra de Deus. O termo “Lei e os profetas” ou os livro inspirado que deveria ser tratado como autoridade,
termos “Lei” e “os profetas” aparecem na Escritura várias sem deturpações. Paulo diz que escreve sobre orientação
vezes como sinônimo do termo “Escritura”, tanto que, em do Espírito e que eles deveriam aceitá-lo porque ele escrevia
João 10.34, Jesus afirma citar Lei, mas cita um Salmo. O Palavra de Deus.
Salmo não está no livro da Lei, mas “Lei” era uma palavra que
servia de referência para de todo o Antigo Testamento. Em
João 15.25, novamente ele descreve uma oração do Salmo
35.19 como “a palavra escrita na lei deles”. Um salmo não é
um livro da Lei, mas Lei era um resumo de toda a Escritura.
Em 1 Coríntios 14.21, Paulo faz uso do termo “Lei” para citar

26
9. TEORIAS DE INERRÂNCIA

P
ressupor inerrância significa dizer que a Escritura
nunca erra. De forma um pouco mais estendida, é
afirmar que a Escritura sempre diz a verdade e que
sempre diz a verdade a respeito de todas as coisas das quais
ela trata. Isso não significa que a Bíblia nos comunica todos
os fatos que podem ser conhecidos, mas que tudo aquilo
que ela diz sobre determinado assunto é verdade (GRUDEM,
1999, p. 59). Como diz Erickson (2015, p. 209), “a inerrância
é o fechamento da doutrina das Escrituras, pois, se Deus nos
deu uma revelação especial de si mesmo e inspirou seus
servos a registrá-la, desejamos ter certeza de que a Bíblia é,
verdadeiramente, uma fonte confiável dessa revelação”.

Mesmo assim, alguns teólogos têm fornecido um modelo um


tanto quanto limitado de inspiração. Muitos acreditam que
essa ideia de inspiração apresenta uma revelação um tanto
estática, que ignora os aspectos humanos da revelação,
como o fato de que pessoas a escreveram. Muitos afirmam
que a inerrância retira a dinâmica da Escritura e faz com que
perca relevância concernente às questões mais atuais, já que
estaria presa a padrões de séculos passados. Esses teólogos
preferem deixar a Escritura para seus destinatários habituais,

27
ou seja, aquele primeiro público que recebeu a mensagem; O segundo modelo é o da inerrância limitada. Ele foi proposto
nós teríamos apenas um texto aberto a erros. Esses acabam por Daniel Fuller, Stephen Davis e William LaSor. Segundo
seguindo a ideia de que a Escritura contém a Palavra de eles, a Bíblia seria inerrante apenas nos seus ensinos
Deus, e não que ela é a Palavra de Deus. O texto que não doutrinários. Seria um tipo de inerrância kerigmática –
é Palavra seria passível de erro, mas quando a Palavra se kerygma se refere a pregação. Dessa forma, a inerrância
manifesta por meio do Espírito Santo, não teríamos erro seria exclusiva às suas doutrinas e mensagem de fé. Uma
na Escritura. A crença é que a mensagem de Deus seria vez que a Bíblia não foi concebida para ensinar ciência
comunicada até mesmo por meio de um livro falho como ou história, Deus não teria revelado questões históricas
a Escritura. Então, podemos considerar pelo menos quatro ou científicas aos seus escritores. Nessas áreas, a Bíblia
grandes modelos de inerrância. reflete as linguagens de seu tempo e poderia conter “erros” e
imprecisões.
O primeiro modelo é a inerrância plena. Ela foi proposta por
John Stott, J.I. Packer, Francis Schaeffer, Millard Erickson, Em terceiro lugar, existe a inerrância de propósito. Defendida
R.C. Sproul e pelo famoso Concílio Internacional sobre por Jame Orr, Jack Rogers, G.C. Berkouwer e Donald McKim.
inerrância bíblica. Esse modelo propõe que a Bíblia é plena e Segundo essa visão, a Bíblia seria isenta de erros no sentido
veraz em tudo aquilo que afirma e isso se estenderia tanto a de concretizar seu propósito primário, que seria justamente
áreas da história quanto da ciência. Isso não significa que a o de levar as pessoas a uma comunhão pessoal com Cristo.
Escritura tem o propósito de trazer informações exatas sobre Portanto, a Escritura seria verdadeiramente inerrante
história ou ciência. É por isso que ela faz uso de expressões somente à medida em que realiza seu propósito fundamental
populares, aproximações e linguagem fenomenológica e não por ela ser factual ou realmente precisa naquilo que ela
para se referir a certos elementos científicos ou históricos. assevera.
Esse fato não retira seu caráter de total inspiração nem a
veracidade do que é dito. Assim, as aparentes discrepâncias E, em último lugar, vem a posição da irrelevância da
entre questões históricas ou científicas que conhecemos inerrância. É um termo cunhado por Franklin Ferreira e Alan
hoje seriam facilmente explicadas por esse uso de Myatt para falar da posição de David Hubbard. A inerrância
linguagem. é considerada irrelevante por uma série de razões. Primeiro
porque seria um conceito negativo e a nossa concepção da

28
Escritura deveria ser positiva. Em segundo lugar, a inerrância erros naquilo que escreviam. Afirma que não se eximia em
não é um conceito bíblico. Em terceiro lugar, na Escritura, o pressupor, ao achar alguma coisa estranha no texto bíblico,
erro é uma questão moral ou espiritual, e não intelectual. Em que a culpa talvez fosse do manuscrito que ele estava
quarto lugar, a inerrância nos levaria a focar nos detalhes da lendo, que poderia ser ruim, ou que o tradutor não captou
Escritura e não em sua mensagem geral. Em quinto lugar, a bem o sentido do que foi lido que ele mesmo não conseguiu
inerrância impediria uma análise honesta da Escritura. E em compreender bem aquilo que estava escrito. Vale relembrar
sexto lugar, a inerrância produziria desunião na igreja, já que que o que é inerrante são os textos originais e não os
uns concordam com ela e outros não. manuscritos nem as traduções, mas o original revelado por
Deus na Escritura.
Qual seria então a relevância da inerrância? Primeiro,
a inerrância tem uma importância teológica. Se Deus é O próprio Martinho Lutero segue a mesma ideia quando
onisciente, ele conhece todas as coisas. Deus não pode afirma que a Palavra de Deus não pode mentir nem errar.
cometer erros nem pode desconhecer certos assuntos. Se Ele declara: “disso estou certo”. Ele cria plenamente na
Deus é onipotente, ele é capaz de influenciar a redenção dos inspiração da Escritura e na sua inerrância absoluta.
autores humanos no processo de redação do texto sagrado
e ele deve fazê-lo para que não haja erros. A inerrância é Existe também uma séria importância epistemológica –
justamente um corolário da inspiração plena da Escritura. Se epistemes vem de “conhecimento”, “mente”. A questão é
alguns textos bíblicos podem estar errados, nosso contato que, à medida em que nós, como cristãos que acreditam na
com a Escritura certamente sofre muito. autoridade da Escritura, começamos a abandonar a ideia
de que a Escritura é inerrante, precisaremos de algum outro
Também há uma séria importância histórica nisso. A ideia de fundamento para a nossa teologia. Se nosso fundamento é
inerrância bíblica não é recente. Até mesmo Agostinho, que de palha e possui erros, como poderemos acreditar que há
possuia uma visão um tanto quanto alegórica da Escritura segurança naquilo que declaramos a partir da Palavra de
e que fazia uso de muitas alegorias para vencer alguns Deus? Renunciar à inerrância significa nos permitir adotar
erros teológicos ou doutrinários na própria compreensão conceitos doutrinários que vão contra aquilo que está escrito
da fé, cria que a Escritura não possui erros. Ele afirma com na Escritura que, muitas vezes, podem ir em total oposição
plena certeza que os autores bíblicos estavam isentos de àquilo que está revelado. Considerando que um texto diz A,

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posso crer em não-A ou anti-A e considerar que o texto da Em terceiro lugar, as declarações bíblicas sempre são
Escritura não foi inspirado de fato. Se uma única afirmação verdadeiramente consideráveis quando são julgadas no
na Bíblia é falsa, todas as outras informações são incertas. propósito ao qual se compromete. Um dos grandes exemplos
Por isso que a inerrância garante e a assegura a veracidade disso está na contagem de pessoas ou na descrição de
da Escritura e a certeza das afirmações bíblicas. dimensões de elementos ou de extensões de terra. Quando
o contexto exige precisão, a coisa deve ser considerada
Primeiro, a inerrância tem relação com o que é afirmado como está escrita. Porém, se o contexto exige nada mais
ou defendido e não simplesmente com o que é relatado na que uma aproximação, também pode ser considerado como
Escritura. A Bíblia registra declarações falsas de homens verdadeiro. Isso também diz respeito a algumas ordens
ímpios, contudo a presença dessas declarações na Escritura cronológicas ou a genealogias que saltam gerações com um
não implica que sejam verdadeiras. A inerrância apenas propósito didático específico.
garante que elas estão verdadeiramente relatadas. Dessa
forma, quando o autor bíblico cita uma fonte extra-bíblica, Em quarto lugar, os relatos de eventos históricos de questões
isso também não garante à fonte um caráter canônico, científicas estão em uma linguagem que é própria dos
mas veracidade no uso que o autor faz daquele texto ou fenômenos e não em uma linguagem científica pelos moldes
expressão específica. Pessoas podem cometer atos errados contemporâneos, ou seja, os autores relatam os fatos como
e pecaminosos e isso está relatado na Escritura. Inerrância eles os veem e não como um texto técnico e acadêmico
não significa que isso está aprovado pela Escritura, mas que relataria.
está corretamente relatado por ela.
Em último lugar, as dificuldades para entender ou interpretar
Em segundo lugar, é preciso julgar a inerrância e a veracidade um texto bíblico não devem ser prejulgadas como um erro no
da Escritura no sentido em que propôs ao público original próprio texto. É possível que haja alguma limitação humana
que recebeu o texto, no sentido que possuía no ambiente na interpretação dos textos. Às vezes, pode ser uma omissão
que aquelas declarações foram feitas. Não devemos utilizar clara do próprio Deus, mas não um erro em si. Também pode
termos, considerações ou estruturas anacrônicas de um ser uma omissão do autor bíblico porque não era do seu
outro tempo para julgar as estruturas do tempo em que as interesse relatar um fato específico. Alguns dados nunca
coisas foram propostas. estarão ao nosso alcance.

30
10. NECESSIDADE DA ESCRITURA

N
ão podemos deixar de considerar que a Escritura é necessária. A ideia de necessidade da Escritura é um conceito
filosófico muito interessante e propõe que a Bíblia é necessária para que possamos conhecer o Evangelho, para
conservar a vida espiritual e para conhecermos a vontade de Deus. Ela não é necessária para sabermos que Deus existe
ou para conhecermos algo do caráter de Deus e de suas leis morais, mas ela é necessária para conhecermos de fato toda a sua
revelação e seu ápice, que é a pessoa de Jesus.

31
As Escrituras são a autoridade final que revelam a Palavra vida devocional, que ler a Escritura em um plano anual é uma
de Deus e a pessoa de Cristo. É por isso que Paulo declara: coisa importante. É por essa razão que olhar para a Escritura
“a fé vem pelo ouvir e o ouvir a Palavra de Deus” (Rm 10.17). com cuidado e com carinho, trazê-la para sua vida, pensar a
As Escrituras são autoridade final que nos revelam a fé e vida biblicamente e usar a Palavra de Deus para interpretar a
nos levam à pessoa de Deus. A Bíblia é necessária para realidade são coisas tão importantes.
nossa salvação. É por isso que, para ser salvo, o indivíduo
precisa ouvir a mensagem do Evangelho transmitida por A Bíblia revela a Palavra de Deus com o fim de que sejamos
uma leitura própria da Escritura ou mesmo pela mensagem íntegros e irrepreensíveis. O Salmo 1 diz que é bem-
da Palavra de Deus transmitida por alguém. Até mesmo os aventurado aquele que segue a Palavra de Deus e medita
crentes de linha judaica que creram e foram salvos no Antigo na Bíblia de dia e de noite. Jesus afirma que quem o ama
Testamento, na Antiga Aliança foram salvos devido à crença guarda os seus mandamentos. Para conhecermos esses
na Palavra de Deus e à fé no Messias que viria a ser Jesus. mandamentos, precisamos ler a Escritura. Davi declara que
Cremos que a Escritura é Palavra de Deus e o próprio Jesus os mandamentos do Senhor são o tema de sua canção. Ele
afirma que “nem só de pão viverá o homem, mas viverá de cantava a Deus sobre seus mandamentos. A Escritura é
toda palavra que sai da boca do nosso Senhor” (Mt 4.4). A necessária para que possamos conhecer a vontade de Deus e
Escritura é nosso alimento, nosso pão. Ela é o que nos nutre seguir a vontade do nosso Senhor.
e nos dá motivo para a vida. Ela é necessária para o cristão
quando Deus ordena que devemos segui-la enela meditar
de dia e de noite. A Bíblia é necessária para que possamos
viver espiritualmente. É a Escritura que nos dá crescimento
espiritual.

Dessa forma, a Bíblia é necessária tanto para nosso


crescimento quanto para o desenvolvimento da vida
espiritual. Nós crescemos na vida com Deus ao meditarmos
e aprendermos da sua Palavra. É por isso que falamos sobre

32
11. A AUTORIDADE DA ESCRITURA

A
autoridade da Escritura diz respeito ao caráter autoritativo da Escritura, isto é, ela possui uma força moral e imperativa
sobre aqueles que se propõem a segui-la. “A autoridade da Escritura sempre foi reconhecida na igreja cristã. Jesus e os
apóstolos criam no Antigo Testamento como a Palavra de Deus e atribuíam a ele autoridade divina. A igreja cristã nasceu

33
e floresceu sob a autoridade da Escritura” (BAVINCK, 2012, p. Já mencionamos essa questão quando falamos da
455). inspiração da Escritura. Porque a Palavra de Deus é
inspirada, ela é autoritativa. Essa autoridade de Deus é
A questão que surge é: como Deus exerce essa autoridade? É exercida por um ato direto de revelação, que é o encontro não
de forma direta ou indireta? Explicaremos isso. Se existe um mediado entre Deus e o seu povo em um exercício direto de
ser superior aos seres humanos, criador de tudo, que fala a autoridade. No Antigo Testamento, a fórmula “assim diz o
nós, ele tem o direito de determinar aquilo em que devemos Senhor” era enunciada com o fim de manifestar esse poder
crer e quem devemos seguir. Do ponto de vista cristão, absoluto de Deus em nos ordenar a sua vontade. Por isso,
Deus é essa autoridade suprema justamente por causa de ele falava por meio dos profetas e aquilo que ele falava por
quem ele é. Ele é o ser supremo. Ele é aquele que sempre meio dos profetas era o que ele mesmo queria falar ao seu
existiu, mesmo antes de qualquer ser ter sido formado. povo. Quando um profeta falava, era como se o próprio Deus
Ele é o único com poder de existir em si mesmo, portanto falasse. Desobedecer ao profeta era desobedecer ao próprio
não depende de algo nem depende de ninguém para poder Deus. O mesmo encontramos no Novo Testamento, quando
exercer autoridade sobre a sua igreja. É por isso que nós Paulo nos convida a seguir suas cartas como ordem de
tratamos de teontologia antes de bibliologia, porque Deus é Deus. Quando Jesus fala “em verdade, em verdade vos digo”,
aquele que tem autoridade para nos ordenar e comissionar coloca-se como autoridade e ápice da revelação de Deus
ao que ele desejar. Além do mais, ele é autoridade por causa aos homens. Temos que seguir tanto o Antigo quanto o Novo
daquilo que realizou. Ele nos criou, bem como tudo o que Testamento no modo como nos submetemos ao Senhor. Os
existe. Fez tudo que há no mundo e nos redimiu. Além disso, grupos mais espiritualistas acreditam que essa vontade de
é a autoridade legítima. Ele tem o direito de prescrever aquilo Deus é exercida de uma maneira bem direta, de forma que
em que devemos crer e como devemos agir. Por causa de alguns esperam alguma palavra ou orientação divina que
sua atividade em nossa vida, ele sustenta a criação, vivifica- seja parte da Escritura e que esse guiar direto de Deus se
nos, cuida de todos nós e supre as nossas necessidades. Por daria por meio de visões ou sentimentos no coração. Outros
meio da Escritura, Deus manifesta a sua autoridade. Dessa ainda acreditam que essa autoridade divina por meio da sua
forma, a autoridade das Escrituras implica que todas as suas Palavra foi delegada por intermédio de alguma pessoa ou
palavras são de Deus, de modo que não crer na Escritura é instituição, como é o caso, por exemplo, da Igreja Católica
não crer no próprio Deus que nos comissiona. Romana que acredita que foi a igreja que criou a Escritura

34
e que delegou autoridade de alguma forma à Escritura. Por segurança mais íntima de que há um Deus falando conosco.
mais que acreditem em alguma autoridade intrínseca ao É interessante perceber o milagre que é a Escritura ser um
texto, foi a Igreja que, no seu exercício de autoridade, tornou documento cheio de coerência interno, um documento
a Bíblia conhecida e reconhecida como ela é. O argumento historicamente preciso, com profecias que se cumpriram
é que foi a Igreja que nos deu a Bíblia porque a Igreja existia milhares de anos depois que foram feitas e que influenciou
antes da Bíblia e essa Igreja compilou a tradição oral que os rumos da história mais do que qualquer outro livro. A
foi preservada também pela própria Igreja e então nos deu o Escritura durou mais que civilizações, mais que países,
texto da palavra que agora ela reconhece, confirma, preserva, cidades, reinos e que impérios e vem mudando a vida de
explica e defende. Atrelada a isso, estaria a ideia de que é milhares de indivíduos ao longo da história. As pessoas têm
a Igreja quem fornece a interpretação oficial e autorizada encontrado salvação por meio dela. Elas têm encontrado, em
acerca do texto, em um tripé de autoridade no qual a seus ensinos, beleza majestosa e profundidade que nenhum
tradição, a Escritura e o magistério da igreja, juntos, formam outro livro pode oferecer. Portanto, as palavras da Escritura
aquilo que é a autoridade de Deus sobre os homens. são autocorroborantes. Elas não são comprovadas como
Palavra de Deus simplesmente por uma análise anterior a ela,
Para a teologia romana, a Igreja, a Escritura e a tradição em nível intelectual, racional ou apologético. Se analisarmos
estariam em pé de igualdade em autoridade sobre o povo a Escritura como um documento, certamente teremos de
de Deus, porque seria a Igreja quem fornece integridade, nos submeter à veracidade do que está escrito. Ela, contudo,
autoridade, inspiração e canonicidade ao texto. Algumas por si só, tem a autoridade de ser a Palavra do Senhor
características da autoridade da Bíblia são as seguintes: transmitida por Deus. A sua autoridade é grandiosa porque
somos convencidos a aceitar a autoridade da Bíblia como ela assim se define e, já que ela é o próprio Deus falando a
Palavra de Deus na medida em que nós a lemos. Uma coisa nós, a sua autoridade é intrínseca. Não precisaríamos de
é afirmar que Bíblia alega ser a Palavra de Deus, outra coisa provas externas a ela para prová-la, porque ela está acima
é ser convencido de que essas afirmações são verdadeiras. de qualquer coisa. Ela é o próprio Deus comunicando-se
A convicção real de que a Bíblia realmente é aquilo que alega conosco. Quando submetemos as Escrituras às provas,
ser vem quando o Espírito Santo nos toca por meio da nossa também saímos convencidos intelectualmente de que há, ali,
leitura das palavras do texto sagrado. Quando o Espírito a verdade de Deus.
Santo nos toca pelas palavras da Bíblia, encontramos uma

35
Alguns podem alegar que esse é um argumento circular precisamos, muitas vezes, buscar provas e ferramentas
(Como posso usar como prova que a Bíblia é verdade que nos confirmem que realmente a Escritura é real. Não é
o que a Bíblia diz a respeito de si mesma?). Porém, a errado fazer isso, mas a autoridade da Escritura vem disso.
verdade é que todos nós precisamos nos basear em algum Precisamos de provas por causa de nossas incapacidades,
argumento de autoridade. A pergunta é se esse ponto de mas a autoridade do texto não está nas provas que são
autoridade se sustenta ou se é falho. Se tentarmos provar dadas a ele. A sua autoridade é intrínseca, porque Deus fala
a ciência pela ciência, falharemos. É preciso pressupor que por meio da Escritura.
a ciência funciona para acreditar nela. Se tentamos provar
que a Filosofia é verdadeira, teremos de usar a Filosofia. Essa autoridade incide sobre nós principalmente por
Em algum momento, um argumento será necessário. A causa da atuação do Espírito Santo. É ele que faz com que
maneira de provar que a ciência é verdadeira é utilizando entendamos as Escrituras e que ela se aplique à nossa
argumentos científicos e mostrando resultados científicos. vida de forma eficaz, inteligente e útil, para que possamos
Isso também se configura como um argumento circular. existir de acordo com a Palavra de Deus. É o Espírito
Se tentamos defender a eficácia da linguagem, teremos Santo quem ilumina o nosso entendimento, produzindo
de utilizar a linguagem para isso. Sempre precisamos de compreensão para o sentido do texto e gerando certeza
alguns fundamentos de autoridade, de alguns pressupostos quanto à sua verdade e origem divina. Isso não significa
fundamentais. A grande questão é se esse pressuposto que o testemunho da Igreja não tem importância ou que
se sustenta depois de uma análise coerente e racional. explicações de teólogos e mestres devem ser descartadas,
A Escritura, com certeza, é um excelente pressuposto de mas sim que o Espírito Santo faz uso de vários instrumentos
análise para a vida. Se pensarmos corretamente na natureza e que ele é a causa efetiva da compreensão da palavra. Há
da realidade, certamente encontraríamos na Escritura uma algumas razões pelas quais o Espírito Santo é necessário
fonte de revelação para aceitar, seguir e amar. É por causa ao entendimento da Escritura. Em primeiro lugar, Deus e
do pecado que entrou no mundo que nossa mente tem os humanos são diferentes ontologicamente. Já falamos
dificuldade de entender que temos Deus falando conosco que Deus é transcendente e que está além de nossas
e nos ensinando. Geralmente, um filho não precisa de capacidades de compreensão. Ele nunca será totalmente
provas ou análises para saber que um som é a voz de seu compreendido dentro das capacidades do ser humano.
pai lhe dando alguma ordem. Mas, por causa do pecado, Ele pode, sim, ser compreendido, mas nunca de forma

36
total e isso diz respeito à própria capacidade natural do nosso entendimento para que possamos compreender a
ser humano e da própria natureza de Deus. Mesmo que o grandeza desses assuntos. Jesus diz em João 14 que é o
homem não tivesse caído no pecado e tivesse tido sua mente Espírito Santo que trará entendimento sobre todas as coisas.
afetada pela queda, ainda assim Deus seria completamente É ele quem nos ensina e nos faz lembrar da fé. É esse Espírito
transcendente a ele. Essa é uma limitação inerente e teremos que dá testemunho do Pai e nós testemunhamos do Pai
limitações inerentes da compreensão de Deus pelo simples se estamos juntos do Espírito. Ele convencerá o mundo do
fato de sermos humanos. pecado, da justiça e do juízo (16.8). E ele guia os crentes em
toda a verdade (16.14). Paulo diz que o evangelho chegou
Como se isso não bastasse, ainda há o pecado. É ele que por causa do Espírito. Ele também ora para que os crentes
faz com que as distinções entre homem e Deus sejam sejam fortalecidos no Espírito para compreender a verdade
ainda mais acentuadas. O pecado rompe o relacionamento do Evangelho (Ef 3.14-19).
e piora nossa capacidade de compreensão a respeito das
coisas espirituais. Paulo diz em Romanos 1 que a mente
do homem está obscurecida e que, por isso, ele é incapaz
de compreender corretamente a Deus. Nos evangelhos,
Jesus fala daqueles que ouvem, mas não entendem e isso
mostra que é necessário um ato espiritual que possa trazer
entendimento ao ser humano. É justamente o Espírito Santo
que nos dá certeza das questões divinas. A percepção da
Palavra de Deus como um texto inspirado e a voz do próprio
Senhor não são algo simplesmente natural, mas espiritual.
Vida e morte, destino eterno, redenção, fé, arrependimento,
obras de Cristo, todas essas coisas estão na Bíblia, mas
só podem ser compreendidas por meio do Espírito e não
simplesmente da razão. É o Espírito Santo quem abre o

37
12. FONTES E AUTORIDADES NA TEOLOGIA

Q
uais são as fontes de autoridade teológica?
Perguntando de outra forma, quais são os
instrumentos que usamos para criar nossas posições
e ideias a respeito de quem Deus é e do que ele espera de
nós? Muitas coisas que não são encontradas na Escritura,
por vezes, tornam-se parte do imaginário e das crenças que
guiam a própria comunidade cristã. Sempre há um “algo
mais” que, muitas vezes, guia os imaginários teológicos e
as práticas doutrinárias. Nesta aula, abordaremos alguns
modelos de autoridade teológica que guiam o imaginário
acerca da compreensão de fé das pessoas. Lidaremos
com Sola Scriptura, credos, confissões e afins. Talvez seja
sensato começarmos apresentando o quadrilátero de Wesley
e o trilátero luterano.

Por muitos anos, John Wesley foi visto apenas como um


grande pregador e não com um grande teólogo. Como
resultado disso, muitas pessoas demoraram para fazer
avaliações teológicas mais profundas acerca daquilo que ele
escreveu. A questão é que, apenas recentemente, o método
teológico de Wesley ganhou renome. Ele é chamado de
quadrilátero wesleyano, referência às quatro fontes às quais

38
Wesley apelou a fim de construir as fontes de autoridade diretamente à Igreja, sua principal via de comunicação
teológica. Essas fontes seriam: As Escrituras, a razão, a para conosco. A razão, em sequência, não seria uma fonte
tradição e a experiência. primária de conhecimento, mas um processador que recebe
e deriva as informações que vêm da Escritura. Isso, porém,
não abre espaço para uma confusão entre a teoria de Wesley
com as ideias iluministas de teologia natural. Ele as rejeitava
expressamente.

Depois disso, vem a tradição, que seria para Wesley a norma


normatizada, e não uma norma normatizadora. O que é isso?
A tradição é, sim, uma fonte de autoridade. Ela é uma norma,
uma regra para a igreja, mas é uma regra que é normatizada
por outra, que é a norma normatizadora: a Escritura. Ainda
que para Wesley a tradição ainda tivesse um poder de
autoridade, essa autoridade estava submissa à autoridade
da Escritura. A tradição nos diz alguma coisa e, por isso,
devemos ter um nível de submissão à tradição, contudo
apenas àquilo que está em conformidade com o texto
sagrado. Para Wesley, toda nova doutrina estava errada por
definição, simplesmente por ser nova e não tradicional. Para
Ao apelar para quatro fontes, Wesley interpretou o Sola ele, a velha religião era a única religião verdadeira.
Scriptura reformado em sua forma anglicana típica, fazendo
da Bíblia sua autoridade primária, submetendo as outras No último ponto do quadrilátero wesleyano está a
três, ainda que reconhecesse sua necessidade para a experiência. Wesley não usava a experiência como uma
compreensão da Escritura e sua aplicação à vida de fé. autoridade independente ou alheia à Escritura, mas sim como
Portanto, para o Wesley, a Escritura era a autoridade primária, um teste de viabilidade para as várias interpretações do texto
mas não a única autoridade. A Bíblia seria o falar de Deus bíblico. Uma interpretação do texto que não faz sentido na

39
experiência comum não pareceria ser uma interpretação não negarem a tradição, a razão ou a experiência ao declarar
válida. “Sola Scriptura”. A ideia é que Sola Scriptura não significa
Nuda Scriptura. Ou seja, afirmar que temos somente a Bíblia
Martinho Lutero, o reformador, seguia uma ideia levemente não significa ignorar outras autoridades que são sujeitas
parecida, conhecida como trilátero luterano. Nesse trilátero, à Bíblia. Uma liderança religiosa local é uma autoridade
estão a Escritura, a razão e a experiência, divididas em dois sobre aqueles que se congregam ao seu entorno, mas ainda
andares. No andar de cima vem a Escritura. No andar de assim é liderança que submissa à Escritura. Mesmo cristãos
baixo ficam a razão e a experiência. Assim, temos algo muito protestantes modernos que não acreditam na autoridade
parecido com o que Wesley propôs. Vemos a Escritura como do magistério da igreja ou de uma tradição apostólica
uma autoridade fundamental normatizadora acima de tudo e acreditam que as crenças históricas são valiosas e devem
autoridades secundárias, abaixo da autoridade da Escritura: ser respeitadas. A diferença é o nível de autoridade que a
a razão e a experiência. tradição e o magistério possuem em referência à Escritura
sagrada.

É por isso que, mesmo crendo no Sola Scriptura, protestantes


se apegam a credos históricos, a confissões de fé, mas
não porque acreditamos que temos qualquer outra fonte
de autoridade infalível, última e final sobre nós. A Escritura
é a maior fonte de autoridade, porque é a revelação
direta de Deus, contudo as confissões de fé como a de
Westminster, a Belga ou os grandes credos históricos da
igreja, como o credo niceno-constantinoplano, o niceno-
constatinonapolitano ou o credo dos apóstolos ou qualquer
Em um ambiente mais reformado, mais próximo das ideias uma em que sua igreja acredite, siga e se submeta são
de João Calvino, as coisas saíram um pouco diferentes. O documentos aos quais nos sujeitamos, porque acreditamos
termo Sola Scriptura ganha o seu auge justamente nesse que esses documentos são normatizados pela Escritura, que
tipo de tradição, mas é interessante o fato de os reformados é a única regra máxima de fé sobre todos.

40
13. CÂNON DA ESCRITURA

O
termo "cânon" significa “vara de medir” e foi usado
para descrever a lista de livros inspirados tanto
do Antigo quanto do Novo Testamento. Por que os
documentos que fazem parte da nossa Bíblia são esses e não
outros? Esse é um debate que diz respeito ao cânon, à lista
desses livros autorizados para fazerem parte da Escritura
Sagrada.

Quando falamos de cânon, falamos tanto do Antigo quanto


do Novo Testamento. A questão do cânon do Antigo
Testamento, que vem diretamente da mão do povo judeu
(como diz Paulo “a eles pertencem as Escrituras”), diz muito
sobre certos debates envolvendo católicos e protestantes ou
evangélicos, de forma geral. A Bíblia católica e a protestante
são diferentes por causa do cânon do Antigo Testamento.
Exatamente porque católicos e protestantes alegam usar
cânones diferentes do Antigo Testamento vindo diretamente
dos judeus. Protestantes acreditam em um tipo de cânon que
provém diretamente dos judeus. Os católicos alegam usar
um tipo de cânon que é cristão, uma interpretação melhor
acerca de como os judeus usavam o Antigo Testamento.

41
Católicos argumentam que não existia realmente um cânon no Antigo Testamento e que ele foi montado depois de Cristo com o
Sínodo de Jamnia, como um esforço para defender o judaísmo dos cristãos. Por isso, o cânon dos judeus é diferente do cânon
dos cristãos. Já os protestantes argumentam que era natural dos fariseus o cânon que provém do corpo judaico e que existia,
sim, um cânon fixo do Antigo Testamento e que ele deve ser usado hoje pela igreja cristã.

42
A diferença entre esses dois cânones é uma coleção de livros antiga reconhecia o Novo Testamento, teremos em datas
conhecidos como deuterocanônicos ou segundo cânon, aproximadas o seguinte: até 100 d.C, muitas partes do Novo
livros encontrados entre 400 e 1 a.C, na chamada literatura Testamento já haviam sido escritas, mas não haviam sido
do segundo templo. Eles são textos que os católicos coletadas, catalogadas e definidas como Escritura. Antigos
possuem em suas Bíblias, mas os cristãos evangélicos não. Escritores cristãos como Policarpo, por exemplo, citavam
O debate sobre o cânon que, geralmente, chama atenção a Escritura em pé de igualdade com textos escritos pelos
diz respeito ao cânon da igreja primitiva, o cânon do Novo apóstolos e pessoas ligadas aos apóstolos. Inácio citava
Testamento. Esse é um dos grandes problemas da igreja do Paulo, os evangelhos e outras fontes orais como sendo
primeiro século. Os apóstolos não receberam uma lista de Palavra de Deus. As epístolas de Paulo, por outro lado, já
livros inspirados do Novo Testamento para apresentar para tinham sido coletadas até o fim do primeiro século. Mateus,
igreja. A Bíblia não delimita sua própria dimensão. Os livros Marcos e Lucas só foram reunidos pela metade do século II,
que a compõem foram reconhecidos em um processo lento e por volta de 150 d.C. Por volta de 200 d.C, o cânon do Novo
gradual. Testamento começou a ser definido perto de Roma, com o
Cânon Muratoriano. Esse cânon era parecido com o nosso
Um bom exemplo disso é Pedro ao considerar que as cartas atual, mas a diferença principal era que possuía o Apocalipse
de Paulo eram também Escritura (2 Pe 3.15-16) e Paulo de Pedro e Sabedoria de Salomão como livros canônicos.
usar trechos de Lucas como parte da Escritura (1 Tm 5.7). Um livro chamado “O pastor de Hermas”, uma carta escrita
Os apóstolos consideravam seus escritos como textos naquela época, também era utilizado como parte do cânon,
sagrados, equiparáveis ao Antigo Testamento. Policarpo, mas para uso privado e não para uso público. Era um texto
Clemente e Justino de Roma, pais da igreja do século um pouco diferente.
seguinte, aceitavam os livros do Antigo e textos do Novo
Testamento como Escritura em pé de igualdade. Parecia ser Em 250 d.C, Orígenes defende também um tipo de cânon
uso comum nas igrejas textos do Novo Testamento, os textos um tanto diferente do Cânon Muratoriano. A Epístola aos
que hoje compõem o Novo Testamento, assim como textos Hebreus e a Epístola a Tiago eram cartas disputadas que
autoritativos que falavam à vida da Igreja. ainda não tinham sido confirmadas para compor cânon,
assim como 2 e 3 João, Judas, o pastor de Hermas, a
Se fizermos uma pequena cronologia de como a igreja epístola de Barnabé, o Didaquê, um texto que acreditava-se

43
ter sido escrito pelos apóstolos, e o evangelho aos hebreus. transmitir a mensagem do evangelho, como o fundamento da
Por volta de 300 d. C, surgiu o cânon definido por Eusébio. igreja, conforme o livro de Efésios.
Nesse cânon, o Apocalipse de João tinha sua autoria posta
em dúvida – se realmente fora João que o escreveu. Tiago, O segundo critério era o uso comum nas igrejas, o
2 Pedro, 2 e 3 João e Judas eram epístolas bem disputadas, reconhecimento por parte da igreja primitiva de que aquele
mas muito conhecidas na igreja. Foram excluídos do cânon: material não era algo escondido ou oculto, mas conhecido,
o Pastor de Hermas, a Epístola de Barnabé, o Evangelho reconhecido como enviado pelos apóstolos. Era necessário
aos Hebreus, o Apocalipse de Pedro, os Atos de Pedro e o ser de uso comum da igreja naquele tempo.
Didaquê.
Em terceiro lugar está a harmonia interna e externa. O livro
Só em 400 d.C houve um fechamento oficial e mais formal do teria de apresentar uma coerência interna. Seu conteúdo
cânon na vida da igreja, quando houve o Concílio de Cartago, não poderia ser aleatório, mas precisaria mostrar coerência
que definiu os livros permitidos para uso na vida da igreja. e harmonia com os outros textos que estavam sendo
reconhecidos. Essa tendência seguia a pressuposição de
Três critérios principais foram utilizados para a escolha que a inspiração e o corpo apostólico não viviam em conflito
dos livros que compunham o cânon do Novo Testamento. teológico. Essa autoridade apostólica dada àqueles que
O primeiro era a apostolicidade, a testificação de que um foram comissionados pelo próprio Jesus foi que possibilitou
livro possuía autoria apostólica. Alguns livros, realmente, o processo de formação do cânon do Novo Testamento.
quase foram incluídos no cânon bíblico, como o Didaquê,
o Pastor de Hermas e o Apocalipse de Pedro. Alguns livros
que hoje estão no cânon demoraram para ser inclusos, como
2 e 3 João, Judas e 2 Pedro. Porém, todo esse processo de
encontrar e definir esses livros resumiu-se a encontrar os
traços de apostolicidade. Eles foram escritos pelos apóstolos
ou por pessoas intimamente ligadas aos apóstolos. Não
poderia ser uma carta de alguém que não fosse um desses
homens inspirados por Deus, usados por Deus para

44
14. ENTENDENDO O QUE SÃO MANUSCRITOS
As primeiras cópias do NT eram feitas em papiros. Papiro
é uma espécie de junco que poderia atingir a altura de 2 a
4m, com a expessura de um braço. Esse tipo de vegetação
crescia ao redor de rios ou lagos, como o Lago Huleh, na
Fenícia, no vale do Jordão e principalmente junto ao Nilo,
onde foi usado desde 3000 a.C. A folha de papiro era feita da
medula do caule, que passava por um processo de preparo
até estar pronta para servir de material de escrita. O tamanho
das páginas variava de acordo com a finalidade e elas eram
enroladas. O texto era disposto em colunas e geralmente só
se escrevia de um lado do papiro, no interior do rolo. A tinta
era uma mistura de fuligem, goma e água e o instrumento de
escrita era uma pequena cana.
Ainda que o papiro tenha sido utilizado como material de
escrita até 641 d.C, quando os árabes conquistaram o Egito,

A
imprensa só foi inventada no século XVI e, até dificultando sua exportação, desde o século IV, não era
então, todas as cópias da Bíblia eram feitas à mão mais utilizado para o NT, mas apenas para literatura secular.
e esse processo demandava o trabalho de muitos Do que se tem notícia, existem cerca de 96 papiros do NT,
copistas. Ao longo da história, vários materiais e formas de sendo a maioria representado em códices, espécie de livros.
manuscritos foram utilizados para servirem de cópias para Identificamos a testemunha de um papiro pela representação
as Bíblias. Vejamos alguns deles. da letra P, com o número do papiro sobrescrito, como por
exemplo: P5, P50, P70 etc. Dos papiros conhecidos, apenas

45
P12, P13, P18, e P43 são apresentados em rolos. Os mais um texto com várias correções, mas é muito importante
importantes papiros são: por causa da sua antiguidade e conteúdo do evangelho.

- P45 (Papiro Chester Beatty I) – data do século III e contém - P72 (Papiros Bodmer VII e VIII) – um papiro do século III/
seções dos Evangelhos e de Atos. Foi achado em Dublin, IV que contém o mais antigo texto preservado de 1 e 2
Irlanda. Esse papiro consiste em 30 folhas de um códice Pedro e Judas.
com originalmente 220 folhas.
- P75 (Papiros Bodmer XIV e XV) – um manuscrito bastante
- P46 (Papiro Chester Beatty II) – datado do começo do importante, datado do começo do século III, que contém
século III. É um compêndio em códice de 86 folhas das secções de Lucas (3-18 e 22-24) e João (1-15). Esse
epístolas paulinas de um total de 104 folhas. papiro mostra o começo de João depois do término
de Lucas, um fator que corrobora a canonicidade dos
- P47 (Papiro Chester Beatty III) – datado do final do século evangelhos.
III, contém trechos de Apocalipse. Não é o melhor escrito,
mas é o mais antigo manuscrito de Apocalipse. Outro material de escrita era o pergaminho. Ele era mais
durável e melhor que o papiro. Ele é confeccionado a partir
- P52 (Papiro Rylands 457) – um pequeno fragmento que de pelo de carneiro ou ovelha submetidos a um processo
contém parte de João 18.31-33 de um lado e os versos de preparação. Por causa desses fatores, o pergaminho é
37 e 38 do outro lado. Ele pode ser datado no século II, mais caro que o papiro e só veio a superá-lo em adesão no
sendo, portanto, o mais antigo entre os manuscritos de século IV d.C. Ele foi predominante até o fim da Idade Média,
João. Sua importância está ligada ao testemunho da sua quando, enfim, foi suplantado pelo papel. A escrita era feita
datação mais do que ao texto. Ele prova que no século II com penas de bronze ou cobre ou remígio de ganso – as
já existiam cópias de João. grandes penas das asas de aves. A tinta era feita de uma
combinação de substâncias vegetais e minerais, podendo
- P66 (Papiro Bodmer II) – um importante papiro pelo fato ser de várias cores, como a dourada ou prateada, ainda
de conter todo o evangelho de João. Ele é datado do que as mais utilizadas fossem a preta e vermelha. Por ser
começo do século III ou do final do século II. Apresenta um material caro, muitas vezes o pergaminho, cuja obra

46
não tinha mais valor, tinha a tinta raspada para fins de parte do NT (faltando Hebreus 9.14-13.25; 1 e 2 Timóteo,
modificação do texto original. Quando submetido a esse Tito, Filemom e Apocalipse).
processo, o pergaminho era chamado de palimpsesto.
- C ou 04 (Códice Efraimita – é um palimpsesto datado
O nome dos manuscritos em pergaminho é conhecido como do século V. É o palimpsesto mais importante do
uncial. Eles foram utilizados do século IV ao XI. Os principais NT. Originalmente, continha toda a Bíblia, mas nem
unciais são: tudo foi preservado. Todo o NT, com exceção de 2
Tessalonicenses e 2 João, estão representados, porém de
- ‫ א‬ou 01 (Códice Sinaítico) – foi descoberto na metade do forma imperfeita. Ele é uma das principais testemunhas
século XIX por L. F. Constantin Tischendorf. O pergaminho para a segunda parte de Mateus 20.16: “porque muitos
de 347 folhas contém boa parte do AT e todo o NT. serão chamados, mas poucos escolhidos”.
Foi escrito por cerca de 8 escribas no Egito por volta
da primeira metade do século IV. Esse manuscrito é - D ou 05 (Códice Beza) – datado do final do século V, é o
importante, porque é o mais antigo que é completo e de mais antigo códice bilíngue do NT (grego-latim). Contém
boa qualidade textual. Esse manuscrito omite a doxologia os Evangelhos, Atos e Epístolas Gerais com algumas
do Senhor (Mt 6.13), o final longo de Marcos (Mc 16.9-20) faltas. Ele apresenta variações em relação aos grandes
e a narrativa da mulher adúltera (Jo 7.53 – 8.11). unciais anteriores. Uma de suas características é a livre
adição e umas poucas omissões de palavras, frases e até
- A ou 02 (Códice Alexandrino) – datado do século V, incidentes.
possui 773 folhas contendo praticamente todo o AT e o
NT (faltando Mateus 1.1-25.6; João 6.50-8.52; 2 Coríntios - D2 ou 06 (Códice Claromontano) – outro manuscrito
4.13-12.6). Aparentemente, cinco escribas trabalharam bilíngue (grego-latim), datado do século VI. O texto grego,
no seu texto e há várias correções posteriores. porém, é superior e o latim, inferior. Contém todas as
epístolas paulinas e Hebreus.
- B ou 03 (Códice Vaticano) – datado do início do século
IV, é um pergaminho de excelente qualidade. Contém 759 - E2 ou 06 (Códice Laudino) – um manuscrito de Atos do
páginas de 820 originais. Contém quase todo o AT e maior final século VI. Também é bilíngue (grego-latim).

47
Existem também os Minúsculos. Esse termo se refere aos Lei eram lidas. Eles liam porções dos Evangelhos, Atos e
manuscritos sem escrita minúscula desde o século IX até o Epístolas. Lecionários também são confeccionados a partir
século XVI, quando começaram a surgir os textos impressos. de pergaminhos. Eles são representados com um “l” mais o
A maior parte dos Minúsculos está em pergaminho e poucos número do Lecionário sobrescrito.
em papel. São algum deles:
Um quarto dos Lecionários são de Atos e das epístolas.
1
- f (Família 1 ou Lake) – parte de uma família de Cerca de 100 combina os Evangelhos, Atos e as epístolas. O
manuscritos que datam os séculos XII e XIV. Uma análise mais antigo fragmento de Lecionário data do século V (l1043),
do texto de Marcos mostrou que o texto preservado sendo provável que tenha surgido no século III ou IV.
coincide frequentemente com o Códice Korideto e parece
vir de um tipo de texto corrente nos séculos III e IV. Além dos materiais citados acima, também havia os
ostracos, fragmentos de jarros quebrados ou louça, e os
- f13 (Família 13 ou Ferrar) – família de manuscritos talismãs, que eram preparados de madeira, cerâmica, papiro
identificada por William H. Ferrar, todos copiados entre ou pergaminho, contendo pequenas porções das Escrituras.
os séculos XI e XIII. Uma importante característica dessa
família de manuscritos, que é o episódio da mulher Além disso, ainda que os mais importantes manuscritos
adúltera, não aparece em João 7.53 – 8.11, mas depois estejam em grego, há manuscritos na língua siríaca, que era
de Lucas 21.38. falada na Mesopotâmia, Síria e na Palestina com algumas
variações. Há também cópias em latim e copta, uma
- f33 (Família 33) – manuscrito que apresenta um excelente representação do último estágio da antiga língua egípcia.
texto com muitas afinidades com o Códice Vaticano.
Contém os Evangelhos, Atos e as epistolas. Ele é datado Além disso, há citações suficientes nos escritos patrísticos
do século IX. para remontar o NT. Justino Mártir citou o NT 387 vezes,
Irineu, 1819; Clemente de Alexandria, 2406 e Orígenes, 17922
Os Lecionários são os manuscritos gregos com porções vezes. Algumas dessas citações são inexatas, porque foram
destinadas à leitura nos serviços de culto. Esta é uma feitas de memória, mas ainda assim são um importante
prática herdada das sinagogas judaicas, onde porções da testemunho.

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15. PANORAMA DAS TRADUÇÕES BÍBLICAS

Q
uais as melhores traduções bíblicas para se ler as Escrituras? É necessário analisar os tipos de tradução. Há traduções
que buscam equivalência dinâmica e outras que buscam equivalência formal. O que isso quer dizer? Traduções em
equivalência dinâmica estão preocupadas em trazer o significado, o sentido interpretativo dos originais, mais do que se

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prender à estrutura formal do original, ao mesmo tempo em que traduções de equivalência formal estão preocupadas em trazer
aquilo que foi dito nos originais, não importando se o sentido se perde de alguma forma. Essas últimas estão mais preocupadas
em dar estrutura e forma mais aproximadas da intenção original do autor no fraseado do que em clarificar o sentido. Cada um
dos dois modelos possui suas vantagens e desvantagens. Uma tradução de equivalência formal, por exemplo, tem a ordem das
palavras mais próxima da dos originais e se prende a questões do original, por meio das quais se pode ter mais segurança para
acreditar que esses textos são o equivalente ao que foi escrito, de fato, pela pena do autor inspirado. Traduções de equivalência
dinâmica não ajudam muito, na exegese, a supor o que estava escrito no original, mas ajudam num viés mais interpretativo.
Diante disso, podemos concluir que cada tradução tem uma utilidade para um determinado tipo de leitor. Se você é uma pessoa

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que não tem treinamento nos originais e que não sabe Traduções mais intermediárias, que estão no caminho
fazer uma exegese bíblica, ou algo do tipo, ler um texto de entre equivalência dinâmica e formal, são certamente a
equivalência dinâmica talvez seja mais útil para sua vida. "Nova Versão Internacional" (NVI), a versão King James em
português e a Almeida do século XXI. Uma tradução muito
Talvez a Bíblia em equivalência dinâmica mais dinâmica que boa, também muito próxima da equivalência formal, a que
temos em português é a Bíblia "A Mensagem", do Eugene eu uso em minhas leituras, é a "Nova Almeida Atualizada"
Peterson, que é basicamente interpretação do texto. Muitos (NAA), a tradução feita por João Ferreira de Almeida que foi
nem afirmam que é uma tradução, mas uma interpretação atualizada por vários eruditos até chegar a nós.
de cada passagem, um jeito de estender o significado de
cada versículo. O próprio Eugene Peterson confirma essa Traduções de equivalência formal geralmente são as
afirmação sobre o seu livro. Ele escreveu esse texto como "Almeida Corrigida e Fiel" (ACF) e a "Almeida Corrigida",
uma alternativa mais simples da Bíblia para seus filhos com traduções bem difíceis e textos cheios de arcaísmos,
pequenos. Esse tipo de texto é muito útil para pessoas podendo, contudo, ser um auxílio para quem começa no
que têm dificuldades com leitura e que preferem ler o texto mundo do grego e deseja um texto com sua estrutura,
mais claro e diluído, mais simples, mas certamente útil e ajudando, assim, na exegese.
verdadeiro para a sua vida.

Traduções de equivalência dinâmica, que já podem ser


chamadas mesmo de tradução, são algumas Bíblias que
mais parafraseiam o texto. Paráfrase é, basicamente,
reescrever o significado para deixá-lo mais claro. As
melhores versões que fazem isso são a "Nova Tradução na
Linguagem de Hoje" (NTLH), a "Nova Versão Transformadora"
(NVT) e a "Bíblia Viva". Elas são ótimas traduções de entrada
para quem tem dificuldade com a leitura da Bíblia.

51
16. COSMOVISÃO CRISTÃ E TEOLOGIA PÚBLICA

A
Bíblia é um livro maravilhoso que mostra nossa
realidade. Ela não aborda temas relacionados
apenas a oração e jejum ou questões devocionais.
Ela também atinge nossa vida, nas suas esferas privada e
pública. Existe aquilo que chamamos de cosmovisão cristã
ou de teologia pública. O que são essas duas coisas? A
cosmovisão cristã é basicamente uma maneira de debater
a forma cristã de interpretar o mundo. É uma forma de
entender que a teologia não diz respeito apenas a temas
da vida comum da igreja local, mas toca áreas como
educação, pedagogia, economia, política, cuidado com o
meio ambiente, dentre muitos outros assuntos. A teologia
abrange as mais variadas áreas, o que é muito próximo da
ideia da teologia pública, a ideia de construir o pensamento
teológico aplicando-o à sociedade. Como nós construímos
uma teologia pública? Como construímos uma cosmovisão
cristã? É exatamente baseando nossa vida, nossa fé e nossas
compreensões das coisas na Escritura, olhando para a
Palavra de Deus e aplicando as verdades da Palavra de Deus
às mais variadas áreas da nossa vida.

Geralmente, não fazemos isso. Muitas vezes, como cristãos,

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preferimos partimentalizar a vida, fragmentar a existência. nossos pressupostos, o modo como tentamos construir
Damos atenção à Bíblia no domingo, o dia do Senhor, no Filosofia, pensamento social e o que quer que seja, tem de
local onde nos congregamos. Acompanhamos a leitura do ser fundamentado na Palavra de Deus. Quando pensamos
pregador e até concordamos com sua exposição. Contudo, em política, precisamos considerar o que a Bíblia fala sobre
na segunda-feira, deixamos de ser cristãos. Na semana política. Se estudamos psicologia, temos de nos tornar
que se inicia, nosso cristianismo torna-se uma matéria alguém que busca compreender o que a Palavra de Deus
privada, guardada dentro do seu coração. A Bíblia, então, tem a dizer sobre a mente humana, sobre responsabilidade
inicia um processo de acúmulo de poeira na estante de casa. pessoal, sobre questões do corpo, sobre antropologia e o
Agora não somos simplesmente psicólogos, professores, ser humano. Se intentamos, enquanto cristãos, construir
empresários e médicos, mas sim cristãos. Na nossa semana, um pensamento sobre qualquer tema em qualquer área
tornamo-nos alguém que guarda seu cristianismo e agora do conhecimento, precisamos entender que possuímos
tem de pensar o mundo com as lentes do pensamento compromissos teóricos diferentes. Não devemos trazer à
secular. leitura da Escritura nossas ideias preconcebidas acerca
de elementos específicos da vida. Devemos levar para a
Enquanto cristãos, acreditamos que os princípios da Palavra vida nossa leitura da Escritura. Muitas pessoas acreditam
de Deus afetam toda a nossa existência e moldam toda a que fazer teologia relevante no século XXI é trazer à leitura
nossa vida, de forma que podemos viver nossos princípios da Bíblia elementos da sociedade do século XXI. Isso é
de fé para formar um pensamento que contribui com a muito próximo, por exemplo, da teologia da libertação, um
sociedade. O ateu, o materialista, o homem que não tem movimento próximo da Igreja Católica Apostólica Romana. É
fé possuem seus pressupostos religiosos ou arreligiosos um amálgama entre catolicismo e socialismo e acredita que
ou antirreligiosos e os tornam públicos na sociedade. o modo adequado de leitura das Escrituras se dá por meio
Eles os carregam consigo em sua construção acadêmica, de mediações. Uma dessas mediações é a sociocultural,
transformam-nos em uma visão de mundo, aplicando-os ao que utiliza as ciências sociais como lente para interpretar
que quer que façam. Cristãos, geralmente, são constrangidos e estudar a Bíblia. Não se usa, aqui, a Escritura para ler
a não levar elementos da sua fé à vida pública. Contudo, a realidade social. O percurso seguido por essa linha é
ainda que, num debate comum, nossa linguagem não seja exatamente o inverso. Utiliza-se uma metodologia ateísta
uma linguagem religiosa, nosso modo de interpretar a vida, para estudar e interpretar a Palavra.

53
Muitas vezes, ser cristão no trabalho, no pensamento
Você já pode já ter ouvido de algumas pessoas dizendo: “Leio econômico, científico e profissional é começar a pensar
a Bíblia com as lentes da luta de classes” ou “leio a Bíblia as coisas com as lentes da fé. É ter um ateliê de roupas
como um liberal” ou “leio a Bíblia como um socialista”. A e imaginar como o cristianismo afeta o modo como você
questão é que deveríamos ler a luta de classes com Bíblia produz roupas. É, enquanto professor, buscar entender como
e não o contrário. Deveríamos ler as questões à nossa o cristianismo afeta o modo como você ministra suas aulas.
volta a partir da Escritura. Não devemos fazer uma leitura É o cristianismo afetar as escolhas éticas que um médico
psicanalítica da Bíblia. Devemos ler a psicanálise por meio tem de fazer diariamente, além da qualidade do serviço para
da Bíblia. Construir cosmovisão cristã e teologia pública é quem chega até o consultório. Isso só é alcançado por meio
usar a Escritura para analisar e entender a realidade à nossa da leitura da Escritura e de seu uso para interpretar o mundo.
volta. É nunca rebaixar a Escritura a um mero elemento
em subserviência às questões que estão à nossa volta, Muitas pessoas fizeram isso ao longo da história. Pensar
mas sempre submeter a nossa mente, nossos interesses, em pedagogia, política e economia a partir da Palavra
questões políticas, científicas, sociais e econômicas à de Deus tem feito com que muitas pessoas construam
Escritura. Isso não significa que devemos citar versículos um pensamento cristão da sociedade, teologia pública e
bíblicos em nossos TCCs ou que devemos pregar o cosmovisão cristã.
evangelho ao ministrar uma aula, por exemplo. Significa
montar toda a nossa estrutura de pensamento a partir da
Palavra de Deus.

Muitas vezes, achamos que ser cristão em nosso trabalho


significa trazer elementos religiosos ou devocionais para o
ambiente de trabalho. Ser cristão no trabalho não significa
exclusivamente parar na hora do almoço para orar ou
somente tocar músicas cristãs nos dispositivos eletrônicos.

54
A
tese de Bauer é uma das perspectivas de formação

17. A TESE BAUER do Novo Testamento. Temos que lidar com ela se
quisermos entender uma das questões mais atuais
a respeito desse tópico. Tradicionalmente, entende-se que
as heresias surgem depois das ortodoxias, ou seja, que
a deturpação da boa doutrina surge depois da criação da
boa doutrina. A chamada tese de Bauer, no entanto, afirma
o contrário. Ela alega que as heresias eram anteriores às
ortodoxias do cristianismo e que o que hoje chamamos de
ortodoxia é nada mais que a heresia vencedora. Segundo
o autor, havia várias heresias em competição e a heresia
dominante se tornou a ortodoxia para as igrejas que vieram
à frente. Ou seja, hoje, aquilo em que as igrejas acreditam
como ortodoxia não é diretamente aquilo que Jesus ensinou
ou o que os apóstolos ensinaram, mas um consenso
hierárquico que se deu entre as igrejas entre os séculos IV e
VI.

Walter Bauer nasceu na Prússia Oriental. Foi teólogo,


lexógrafo e um estudioso da história da igreja, além de ser
especialista em Patrística. As obras que o tornaram mais
famoso foram o Léxico do Novo Testamento e a obra que
realmente apresenta essa sua tese, cujo título traduzido é
“Ortodoxia e heresia do Cristianismo Primitivo”. A sua tese
é baseada no estudo um tanto meticuloso sobre os quatro
principais ambientes geográficos onde o cristianismo
floresceu: Ásia Menor, Egito, Edessa (atuais Turquia e

55
Síria) e Roma. Ele foi influenciado por outros teólogos que irrelevante. Arnold Ehrhardt, por sua vez, estudou os credos
apresentavam conflitos entre Paulo e Pedro na Escritura primitivos da igreja e interpretou que eles eram diferentes
e defendeu, a partir de Gálatas, um conflito constante no daquilo que se dizia no Novo Testamento. Utilizando a
contexto de igreja, principalmente esse que se dá em torno tese de Bauer, ele apontou uma diversidade primitiva no
de Gálatas 2 entre Paulo e Pedro, assim como as referências cristianismo. Hemult Koester e James M Robinson foram
às heresias nas epístolas gerais, além das cartas às igrejas alunos de Bultmann e propuseram, utilizando a tese de
do Apocalipse. Bauer observa que, no Egito, já havia cristãos Bauer, que as categorias teológicas do Novo Testamento
gnósticos antes da chegada de qualquer cristianismo eram obsoletas. Por isso, os termos “heresia”, “ortodoxa”
ortodoxo. Ele apontou que, em Edessa, o ensino do herege e até o termo “cânon” precisavam ser reavaliados. James
Marcião, que acreditava em algumas heresias sobre Jesus e Dunn, um dos grandes nomes da Nova Perspectiva em Paulo
o Antigo Testamento, já havia chegado havia muito tempo e (falaremos melhor sobre isso mais à frente), propôs uma
que a ortodoxia só chegou lá a partir do século V. Segundo diversidade de pontos de vistas acerca de Jesus ao longo
ele, a igreja de Roma, uma igreja muito vultuosa naquele da história do cristianismo e o fez usando a tese de Bauer
período, tentou impor a outras comunidades a sua visão da também.
ortodoxia. O próprio Clemente de Roma teria imposto aos
coríntios uma aceitação de suas doutrinas. No século IV, a Essa tese foi popularizada através de dois grandes nomes:
ortodoxia estava consolidada, mas seria falsa a afirmação de Elaine Pagels e Bart Ehrman. Pagels aplicou a tese de
que ela precedeu as heresias, porque não havia ortodoxia, de Bauer para tratar de alguns escritos gnósticos descobertos
fato, até o século IV. Por isso, também seria falsa a ideia de em 1945 e argumentou que esses eles contribuíram com
que o lado vencedor virou o lado da igreja. o cristianismo, que só veio se homogeneizar depois. Ela
também analisou o Evangelho de Tomé para reforçar a ideia
Várias pessoas usaram a tese de Bauer para dar fundamento de que os cristãos deveriam ser mais plurais, alegando que
às suas próprias heresias e propostas. Um dos mais os cristãos primitivos não eram tão monolíticos assim.
famosos a seguir essa tendência foi um teólogo chamado Segundo a autora, a visão que hoje é considerada ortodoxa
Rudolf Bultmann. Uma vez que Bultmann rejeitava o caráter foi nada mais que um sobrepujar de uma visão concorrente
histórico para o exercício da fé, ele aproveitou da tese contra a visão dos gnósticos. Já Bart Ehrman argumenta
de Bauer para propor que uma ortodoxia histórica seria que a consolidação da ortodoxia se deu pelo que chamou

56
de proto-ortodoxos, que seriam justamente aqueles que Jerry Flora foi um teólogo muito competente ao mostrar
triunfaram no debate de crenças. uma continuidade histórica entre uma ortodoxia primitiva
e a crença atual dos cristãos. Ele mostrou que havia um
Não obstante, várias críticas já foram feitas à tese de Bauer. conceito de ortodoxia já primitivamente estabelecido nas
Henry E. W. Turner, por exemplo, afirma que muitos teólogos primeiras comunidades de cristãos. Howard Marshall
têm subestimado a firmeza e a unidade doutrinária da percebeu que havia, sim, uma crença fundadora, clara e bem
igreja primitiva e que Bauer cometeu um erro ao a acreditar estabelecida no começo da igreja primitiva. Ele concorda
que havia abertura e flexibilidade naquele período. Turner que havia uma variedade de crenças naquele período, mas
comentou que, em primeiro lugar, o cristianismo primitivo mostra que havia uma mensagem oficial que partia de Jesus
cobrava uma série de requisitos e de crenças considerados e dos apóstolos contra as crenças consideradas falsas e
fundamentais, como, por exemplo, uma experiência realística deturpações daquilo que era ortodoxia. A existência de várias
com a Ceia, a chamada eucaristia, a crença em Deus como crenças naquele período não significava que uma delas não
um Pai criador, a crença em Jesus Cristo como redentor era verdadeira. Enquanto Bauer propunha uma ortodoxia da
histórico, uma crença na divindade de Jesus etc. Em segundo heresia, Andreas Kostenberger e Michael Kruger escrevam a
lugar, explicou que cristãos primitivos reconheciam a “Heresia da ortodoxia”, uma obra maravilhosa que refuta a
centralidade da revelação escriturística, essa revelação que tese de Bauer e que, certamente, é uma excelente leitura para
era bíblica. Em terceiro lugar, comentou que já havia resumos entendermos mais sobre cânon, inspiração da Escritura e
estilizados e regras de fé que eram usados na Escritura já sobre a existência de uma ortodoxia que cresceu e se tornou
no período primitivo. Eram declarações que manifestavam fundante para nós, hoje, no cristianismo.
uma crença comum da Igreja. Turner também reconhece que
havia elementos flexíveis nas crenças cristãs. Um desses
elementos, por exemplo, era a coerência entre escatologia e
metafísica, um ponto muito disputado no período primitivo.
Existiam também diferenças em perspectivas filosóficas e
coisas do tipo. Turner percebeu que o conceito de ortodoxia
de Bauer era exageradamente estreito.

57
18. CONTINUIDADE E USOS
DO ANTIGO TESTAMENTO
errado, feio, ruim, mentiroso, do qual Cristo viera para nos
livrar, até o judaísmo, que poderia ser considerado um
elemento de continuidade extrema, para o qual o AT se
mantém e se perpetua até hoje de forma absoluta. Entre o
antinomismo e o judaísmo, há uma escala de opiniões sobre
o relacionamento entre o AT e NT.

Dos mais descontínuos aos mais contínuos, há o


dispensacionalismo clássico, que divide a Escritura em
dispensações, ou seja, em períodos de administração de
Deus. Alguns dispensacionalistas clássicos argumentam
que no AT a salvação se dava por obras e, no NT, pela fé.
O pensamento dispensacionalista acabou evoluindo para

P
ara entendermos o papel do Antigo Testamento (AT) outros modelos, como o dispensacionalismo revisado, que
hoje, temos que considerar os padrões de continuidade é menos descontínuo, e o dispensacionalismo progressivo,
e de descontinuidade, ou seja, os níveis em que o AT que, por mais que observe descontinuidades entre Israel e
continua para nós hoje e os níveis em que o AT não continua a Igreja, entre Antiga Aliança e Nova Aliança, ainda enxerga
para nós hoje. Existe uma série de posições acerca desse certos padrões de continuidade que fazem com que a Lei
tema, desde o antinomismo, que é a posição mais radical seja tratada ainda, de alguma forma, como um elemento de
de descontinuidade, para a qual o AT é tratado como algo positiva consideração.

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Há também a teologia da nova aliança e, em seguida, o citavam o AT com base em um documento de citação de
aliancismo progressivo (ou convenant true theology, ou vários versos bíblicos que tinha o objetivo de fundamentar
mesmo kingdom true theology) como também é conhecido. alguma doutrina específica. A visão mais equilibrada
Depois vem o próprio aliancismo, uma visão menos concebe que essas listas de excertos realmente existiam,
focada em dispensações e mais focada na continuidade mas que os autores do NT também tinham conhecimento
das alianças. Há também aliancismos mais extremos, do todo da Escritura. Utiliza-se essa hipótese para justificar
como a teonomia, por exemplo, que acredita que as certos usos do AT no NT que não parecem respeitar muito
leis civis de Israel ainda devem existir hoje. Cada uma o contexto do texto no AT. Em terceiro lugar, está o debate
dessas perspectivas possui uma visão diferente acerca cristocêntrico. Alguns teólogos argumentam que o uso
do relacionamento entre o AT e o NT. Dependendo de cada que os autores do NT fazem do AT era sempre no esforço
um desses modelos interpretativos do AT e o NT, surgirão por trazer um significado cristológico que explicasse e
interpretações variadas do que concerne o papel da Lei, das aludisse à pessoa de Jesus de forma mais profunda. Por
alianças, das dispensações, da volta de Cristo, de Israel, da isso, ele saía um pouco do contexto original do texto,
Igreja e de vários outros fatores. com o objetivo de apresentar mais claramente a própria
pessoa do Senhor Jesus Cristo. Existe também, em quarto
E quanto ao uso do AT no NT? Esse é outro questionamento. lugar, o debate retórico. É a hipótese de que os autores do
Não é apenas sobre a validade do AT, mas sobre a maneira NT não estavam preocupados em citar os autores do AT,
como o usamos. Existem pelo menos cinco debates respeitando necessariamente cada detalhe da teologia
importantes de se ter em mente quando formos estudar a original, mas apenas com intuito de dar peso retórico àquilo
respeito desses dois assuntos. O primeiro deles diz respeito que era estabelecido. Por fim, vem o debate pós-moderno.
à influência da interpretação judaica sobre os autores do Ele consiste em uma linha bem mais recente de estudos
NT. A questão é: quanto da interpretação e exegese judaica bíblicos. Seus proponentes argumentam, por meio de visões
afetaram os autores do NT no seu esforço por compreender hermenêuticas bem esquisitas, que era impossível que os
os elementos da fé? Quanto do judaísmo influenciou o autores do NT tivessem entendido bem os autores do AT,
cristianismo no processo de interpretação do próprio porque é impossível chegar ao sentido original do autor. Por
judaísmo? Em segundo lugar, vem o debate sobre o livro isso, eles conferem sentido aos textos do AT na medida em
Testemunho. Esta é a hipótese de que os autores do NT que leem a respeito deles.

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possui seu cumprimento, ou o seu antítipo, no NT. Quando

19. TIPOLOGIA afirmamos que algo é um tipo de Cristo, por exemplo,


dizemos que, no AT, alguma figura, elemento ou história
tipifica a pessoa de Jesus, que é o antítipo daquele elemento.
Então, por exemplo, se falamos do sacrifício do animal que
sempre morria para tirar e expiar os pecados do povo no AT,
dizemos que o sacríficio dos animais era o tipo do sacrifício
de Cristo, que era o antítipo do sacrifício dos animais.

Uma questão importante na definição de tipo e tipologia é


saber se tipologia consiste essencialmente de uma analogia
entre o AT e o NT ou se possui um elemento prospectivo,
ou prenunciativo, que ,de alguma forma, prenuncia aquilo
que acontecerá. Ou seja, qual é o grande debate? Se alguma
coisa acontece no AT, quando posso afirmar que é um tipo
de Cristo? Seria quando o elemento específico profetiza
conscientemente a respeito de Cristo ou quando ele possui
alguma característica de analogia com o ministério e a obra
de Cristo? Por mais que se acredite na ideia pronunciativa,
de prospecção, ou de profecias – se falarmos de forma
mais simples – muitos argumentarão que o tipo geralmente
é percebido dessa forma pelos autores do NT, não pela
perspectiva dos autores do AT. Ou seja, entender algo como

E
tipo de Cristo é entender uma interpretação posterior à
xistem alguns debates acerca da definição do que é
revelação que se deu no NT e não uma percepção que os
uma tipologia, termo que vem diretamente da palavra
próprios autores do AT tinham acerca do que aconteceria.
τυπος [typós] e que tem como seu antônimo a palavra
“antítipo”. O tipo é uma representação, no AT, de algo que

60
Outros argumentam que, ainda que o autor do AT não tivesse profética e têm o seu sentido intensificado.
a intenção clara de demonstrar algo a respeito de Cristo, o
autor divino que escreveu por intermédio do autor humano. Dentro dessa definição, podemos perceber alguns pontos
Esse autor divino, Deus, tinha a intenção plena de comunicar essenciais que definem algo como um tipo. (1) Uma
dessa forma por intermédio da pena do autor do AT. Outros correspondência analógica, a identificação de uma analogia
argumentam que, na verdade, essa percepção do AT que ou de uma inter-relação entre as coisas – assim como Jesus
falam de Jesus, não seria uma intenção original do autor, morreu na cruz para tirar nosso pecado, os cordeiros eram
que não estaria no plano da inspiração do AT, mas que foi um sacrificados para tirar o pecado do povo. (2) Um aspecto
progresso de revelação dado por Deus no NT. São coisas que de historicidade. O fato tem que ter acontecido realmente
não poderiam ter sido percebidas na leitura simples AT, mas no passado, não sendo uma mera ideia da cabeça de
apenas quando Deus revela sua interpretação real no NT. alguém, mas um elemento histórico do AT. Se for apenas um
prenúncio profético, não há tipologia, mas profecia pura e
É por isso que alguns argumentam que uma interpretação simplesmente. (3) Tem que existir um caráter prenunciativo.
tipológica do AT não precisa, necessariamente, considerar É necessário que exista na analogia algo que prenuncie algo
o significado original do texto do AT. Outros intérpretes, a respeito da pessoa de Jesus ou de um elemento que há de
geralmente liberais ou aqueles que não acreditam na ser prenunciado. (4) Há um aspecto de intensificação. Isso
inspiração da Escritura, consideram que a interpretação significa que o antítipo, o cumprimento do tipo, intensifica
cristológica é sempre uma deturpação do significado original de alguma forma o próprio tipo. Se o tipo é uma sombra e
do texto sagrado. o antítipo é coisa em si, como diz Paulo aos Gálatas, então
aquilo que era o tipo tem que ser menor que o antítipo. A
G. K. Beale define tipologia como “um estudo das revelação de Deus no AT não pode ser um tipo para vestes
correspondências analógicas entre verdades reveladas clericais, ou algo parecido, mas o contrário. O ritual, o
acerca de pessoas, fatos, instituições e outros elementos símbolo, ou aquilo que é menor, tem que tipificar algo que é
no âmbito do plano histórico de Deus em sua revelação sempre maior. (5) Temos a retrospecção. Ou seja, é possível
especial” (2016, p. 36). Correspondências essas que, do olhar para trás e encontrar esses elementos que simbolizam
ponto de vista retrospectivo, ou seja, olhando de hoje para algo que acontece posteriormente fazendo sempre isso por
antes, do agora para o anterior, possuem uma natureza meio da atuação do Espírito Santo.

61
20. O QUE É HERMENÊUTICA E SEUS 6 ABISMOS

S
e a Bíblia é a palavra de Deus revelada ao homem,
como podemos conhecê-la e interpretá-la de modo
correto? A ciência da interpretação bíblica é conhecida
como hermenêutica. Ela deriva do nome do deus grego,
Hermes, o deus grego da comunicação. A hermenêutica
existe também como uma ciência secular de interpretação
de texto. A hermenêutica bíblica é um modo de olhar para a
Escritura com regras comuns a toda boa hermenêutica, mas
também regras específicas, com a tentativa de interpretar
um texto de origem divina. Uma boa hermenêutica nos dá
capacidade de interpretar as passagens mais simples da
Escritura, além de prover coerência e métodos claros para
interpretarmos as passagens um pouco mais difíceis e
polêmicas. Qualquer pessoa que siga regras de interpretação
de texto consegue interpretar bem a Escritura e entender bem
o que Deus quer dizer para o seu povo.

A palavra “hermenêutica” vem do grego hermeneuo, que


significa “entender”, “interpretar” ou, mais apropriadamente,
em alguns contextos, “traduzir”. Muitos definem
hermenêutica como a ciência e a arte de apurar o sentido
bíblico. Dessa forma, a hermenêutica é tanto uma ciência

62
quanto uma arte. Como ciência, investiga princípios, enuncia afirma que aquele que não é salvo é um cego espiritual. É
leis de pensamento, leis de linguagem e possui metodologias alguém que não aceita as coisas do Espírito, porque elas lhe
de classificação de fatos e resultados. Como arte, ensina a são loucura. Nós, salvos, temos a mente de Cristo e, por isso,
forma como esses princípios devem realmente ser aplicados podemos entender as coisas espirituais. Ou seja, ainda que
e comprova a sua própria validade, mostrando todo o valor um descrente entenda a frase “Deus salva pecadores”, ele só
prático da elucidação de passagens mais difíceis. É por isso assimilará o sentido pleno quando esse tornar um pecador
que a hermenêutica necessita tanto de um método exegético verdadeiramente salvo.
que seja válido.
Diante disso, existem pelo menos seis grandes desafios para
A palavra “exegese” pode ser interpretada como a a boa hermenêutica, que é o princípio para a boa exegese.
compreensão dos textos dentro de seus próprios contextos. O primeiro desafio é o abismo temporal. O Pentateuco, por
Se a hermenêutica é a receita de um prato de cozinha, a exemplo, os primeiros livros a serem escritos no Antigo
exegese é seu próprio modo de preparo. A exegese consiste Testamento, foram escritos, pelo menos, há 3400 anos.
em ir ao texto hebraico/grego para interpretar cada palavra Todo o NT foi escrito cerca de 2000 anos atrás. Existe um
em seu contexto, verificar o significado morfológico de cada abismo temporal enorme entre os textos sagrados público
palavra, o sentido pragmático (no uso) de cada uma dessas leitor atual. Ainda mais, não temos mais acesso aos autores
palavras, a sintaxe das frases e então entender o significado originais para questioná-los acerca do que queriam exprimir
daquilo que é dito pelo autor inspirado. em seus escritos. Temos acesso apenas aos textos que
deixaram e nós os analisamos considerando esse lapso
Claro que isso não exclui o papel do Espírito Santo. Uma temporal, suplantando-o com uma boa hermenêutica.
pessoa com boas regras de hermenêutica e muito capacitada
na exegese só poderá viver, de fato, as verdades em sua O segundo grande desafio da hermenêutica é o abismo
vida se o Espírito a guiar nisso. A mensagem somente geográfico. A Bíblia foi escrita na região que hoje
transformará uma pessoa, revelando-lhe o sentido pleno compreende territórios do Iraque ao Egito até Roma.
do texto, a partir do momento em que o Espírito o permita. Esse distanciamento geográfico é um empecilho para o
O conhecimento de Deus não é meramente teórico, mas entendimento de algumas coisas que são ditas na Palavra na
é concedido também pelo poder do Espírito Santo. Paulo medida em que leva os intérpretes a encontrarem supostas

63
contradições derivadas de uma pobre compreensão dos grego do NT. É muito natural também aplicarmos princípios
aspectos geográficos. Boas regras de hermenêutica nos gramaticais do português ao grego e ao hebraico na
ajudam a compreender bem textos que foram escritos em interpretação do texto bíblico. Uma boa hermenêutica nos
períodos muito diferentes dos nossos e em ambientes muito ajuda a suplantar essas dificuldades na exegese.
distantes.
O quinto grande desafio da hermenêutica é vencer o lapso
O terceiro grande desafio da hermenêutica é o lapso literário. Os estilos bíblicos de literatura são, às vezes, muito
cultural. Nos tempos de hoje, já existem imensas diferenças diferentes dos nossos. Salmos, parábolas, epístolas, livros de
culturais até mesmo dentro dos próprios Estados. Alguns profecia possuem estruturas com as quais, muitas vezes, não
costumes aqui do Ceará não são os mesmos de Curitiba, estamos acostumados. Só uma boa hermenêutica nos ajuda
por exemplo. Quanto maior é a diferença cultural entre os a entender quais são os significados de estruturas utilizadas
leitores contemporâneos e os autores do tempo bíblico, que dentro de cada estilo literário que existe na Escritura – e são
já se mostravam bem diferentes entre si. Entender bem esses muitos os que lá se encontram.
padrões culturais dos tempos antigos para poder suplantá-
los e compreender como a palavra se aplica hoje também é Por fim, o sexto lapso que a boa hermenêutica nos ajuda a
um grande desafio da hermenêutica. vencer é o lapso espiritual. Não podemos esquecer que a
Bíblia é um livro que possui um autor divino. Todos os lapsos
O quarto lapso é o linguístico. A Bíblia não foi escrita em anteriores podem ser encontrados em qualquer literatura
português, mas majoritariamente em hebraico (AT) – com humana antiga, mas o lapso espiritual é algo que nós só
um pouco de aramaico também – e grego (NT). Essas línguas encontramos na leitura da Palavra de Deus. O que torna
possuem particularidades que as tornam muito distintas do a leitura bíblica peculiar é justamente o fato de que ela é
português. Isso inclui sintaxe, morfologia, semântica, entre um livro inspirado pelo divino. De fato, Deus usou autores
outros. Temos que entender isso se quisermos entender o diferentes, em tempos diferentes, em geografias diferentes,
texto bíblico. É muito comum aplicarmos estruturas próprias com línguas diferentes, com estilos literários diferentes,
de uma língua a outras línguas, em vez de aplicarmos os manifestando uma espiritualidade diferente e tudo isso tem
princípios de uma língua a ela mesma. É comum muitas que ser levado em conta na nossa interpretação bíblica. Boa
pessoas aplicarem princípios gramaticais do hebraico ao hermenêutica nos leva a isso.

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21. HERMENÊUTICA NO JUDAÍSMO

A
o longo da história, houve vários casos de interpretação com visões diferentes acerca de como a Bíblia deveria ser lida,
aquilo que forma justamente o que chamamos de história da interpretação bíblica, ou seja, a história da hermenêutica.
As escolas mais antigas nos remetem às antigas escolas de interpretação judaicas. É provável que os judeus falassem

65
aramaico devido à miscigenação com os outros povos. Por Dessa forma, o que era mais difícil era interpretado dentro
isso, foi necessária uma tradução bíblica para o aramaico de um determinado grupo, para que a família interpretativa
quando Esdras leu a Lei para o povo. Isso é visto no livro ajudasse a interpretar passagens mais complicadas. Ele
de Neemias. Os levitas tinham de interpretar o texto para também tratava das relações entre genérico e específico,
que o povo pudesse entender o que estava sendo lido. Até deduções a partir do contexto e coisas do tipo.
a época de Cristo, eram justamente os escribas que, muitas
vezes, interpretavam, copiavam, preservavam e explicavam Shamai era outro rabino da mesma época de Hilel, mas
a Escritura. Sua reverência ao texto bíblico, no entanto, caiu tinha visões bem diferentes sobre a interpretação dos textos
no exagero. O famoso rabino Aquiba, por exemplo, ensinava bíblicos. Para Shamai, a personalidade do indivíduo é que
que até mesmo a forma da letra no hebraico tinha um afetava, de fato, a interpretação. Por exemplo, um indivíduo
significado, assim como cada fibra da perna de uma mosca violento interpretaria a Lei com muito mais rigor que o
tinha a sua importância. Eles, portanto, amavam a letra da pacífico. Depois da queda de Jerusalém, em 70 d.C, a escola
Lei literalmente. Eles interpretavam os textos, contavam de Hilel ganhou mais proeminência, tanto que dela temos
seus números, identificavam cada palavra, interpretavam e mais conhecimento do que da escola de Shamai, que foi
memorizavam, focando em aspectos muito distintos do de perdendo espaço entre as escolas judaicas.
procurar o significado dos escritos para suas vidas.
Os judeus eram muito conhecidos pela alegorização e pelo
Trataremos agora da discussão entre Hilel e Shamai dentro modo como utilizavam alegoria dentro de seus métodos
das escolas de interpretação rabínicas. O rabino Hilel foi um interpretativos. Alegorizar é buscar um sentido obscuro ou
importante rabino entre os judeus. Ele fundou uma escola oculto por trás daquilo que é a camada de interpretação
de interpretação que dividia em seis tópicos as famosas normal de um texto. Ou seja, o sentido literal de um texto
613 leis do judaísmo antigo. Ele também estabeleceu sete é um tipo de código que precisa ser desvendado para
regras de interpretação para o AT. Essas regras abordavam encontrarmos o sentido oculto e real do texto. O sentido
muitos tópicos, como o que era menos e mais importante literal de um texto é superficial, mas o sentido alegórico
na Lei, as inferências por analogia e a formação de famílias é que é o sentido de fato de uma passagem bíblica. Mais
de passagens, quando as passagens possuíam o mesmo modernamente, a alegorização judaica sofreu influência
significado, eram agrupadas em famílias de mesma natureza. da alegorização grega. Os gregos costumavam alegorizar

66
muito os seus textos para tentar fugir das cobranças que tentava evitar que as pessoas blasfemassem contra o AT,
as passagens traziam no seu sentido literal. Os judeus de não só os inimigos da fé, mas até mesmo pessoas de origem
Alexandria acabaram sendo muito influenciados por esse judaica. O nível de interpretação alegórica dele era muito
tipo de perspectiva e de hermenêutica. Então, para conseguir mais profundo. Ele, por exemplo, afirma que Sara e Hagar
aceitar o AT, eles passaram a alegorizá-lo. Essa era uma representavam virtude e cultura. Jacó e Esaú não eram
forma muito astuta de conseguir defender a relevância do personagens históricos, mas pessoas que representavam a
AT diante dos gregos sem ter de se submeter a padrões prudência e a insensatez. Ele, claro, não descartava o sentido
muitos esquisitos, às vezes, do próprio AT. Até mesmo os literal dos textos, mas, para ele, o sentido literal era um nível
antropomorfismos foram alegorizados. Então, na Septuaginta de interpretação imatura, enquanto a leitura alegórica era
(LXX), a tradução do AT do hebraico para o grego, eles uma leitura mais madura. As comunidades judaicas dos
traduziram “o Senhor é homem de guerra” (Êx 15.3) como essênios sofriam com esse mesmo tipo de interpretação
“o Senhor esmaga a guerra”, porque para eles o significado alegórica. Sabemos disso, porque eles copiavam a Escritura
alegórico poderia ser até mesmo oposto do significado e faziam comentários a alguns textos.
literal.

Filo de Alexandria e Aristobuto são dois nomes muito


importantes para essas escolas de interpretação. Aristobuto
acreditava que a filosofia grega estava baseada realmente
no AT. Por isso, esses entendimentos do AT tinham de ser
alegorizados para ser corretamente entendidos de acordo
com a filosofia grega. Filo de Alexandria é bem mais famoso
que Aristobuto. Temos mais acesso aos textos dele do que
do outro. Ele também foi profundamente influenciado pela
filosofia grega. Seu esforço pareceu até muito bonito. Ele

67
22. HERMENÊUTICA DA PATRÍSTICA
À IDADE MÉDIA
que continham alusões ao AT e que exaltavam a pessoa
de Cristo. Policarpo de Esmirna viveu de 70 d.C a 155 d.C
e escreveu a Epístola aos Filipenses também com muitas
citações ao AT. Percebemos que as pessoas da igreja
primitiva com muita vontade e frequência, citavam muitos
trechos e passagens do AT. O AT era muito respeitado
e amado pelos Pais da Igreja. Eles tinham métodos de
interpretação muito claros, hermenêuticas muito conscientes
acerca de suas leituras do AT.

Nós encontramos o mesmo na epístola de Barnabé, que


fazia muitas alusões ao AT, com muitas alegorias. Uma das
mais famosas é a que diz respeito à técnica da gematria, a

E
xistem também os métodos de hermenêuticos atribuição de números às letras. Com isso, ele interpretava
patrísticos, que são os métodos dos pais da igreja os 318 servos de Abraão como o nome de Jesus na cruz.
primitiva, os primeiros líderes religiosos dos séculos Justino Martir seguia o mesmo método alegórico. Viveu
primeiro e segundo. Clemente de Roma nasceu por volta entre 100 e 164 d. C e fez várias citações do AT na tentativa
de 35 d.C. Ele é famoso por fazer muitas citações do AT e de provar algum prenúncio da pessoa de Jesus. Em seus
NT naquilo que escrevia. Inácio de Antioquia viveu entre 35 textos, ele chegou a alegorizar Lia, Raquel e Jacó para
d.C e 107 d. C e escreveu sete cartas endereçadas a Roma afirmar que representavam Cristo, a igreja e os judeus. Na

68
sua época, ele se opôs ao herege Marcião, que acreditava Pateno, Clemente de Alexandria – não é o mesmo Clemente
que o AT não possuía mais nenhuma validade. Irineu de de Roma – e a figura famosa de Orígenes. Essa Escola de
Lion viveu num lugar conhecido como Lion entre 130 d.C. Alexandria era muito conhecida pela sua forte ênfase na
e 202 d.C. Ele escreveu uma obra muito famosa chamada alegoria. Clemente, por exemplo, acreditava que qualquer
Contra as Heresias, na qual ele se opõe à seita gnóstica. Ele passagem poderia ter pelo menos cinco significados: o
defendeu que a Bíblia deveria ser interpretada no seu sentido histórico, o doutrinário, o profético, o filosófico e o místico.
mais claro e óbvio, que seria exatamente o seu sentido Orígenes foi um nome importante porque deu muitas
mais verdadeiro. Ele acreditava que o único modo correto contribuições relevantes para a igreja, como a famosa
de interpretar a Escritura seria por meio do que a igreja Hexapla, uma compilação de várias versões gregas do NT,
preservou por tradição apostólica. Tertuliano de Cartago, que do texto hebraico do AT. Esse foi talvez o primeiro grande
morreu em 220 d.C., afirmava que a única solução contra a trabalho de crítica textual da história do mundo, mas seguia
heresia era a regra de fé, isto é, os ensinos ortodoxos que escolas extremamente alegóricas de interpretação. Ele
eram sustentados pela igreja. Ele defendia que as passagens acreditava que a Bíblia exigia que os fiéis fizessem esse tipo
bíblicas deveriam ser interpretadas no seu sentido original, de interpretação alegórica. Ele acreditava também que os
de acordo com seus contextos originais, porém, assim como textos tinham três significados: O literal, o moral e o sentido
Irineu, ele alegorizou textos bíblicos nas suas interpretações. espiritual, que era o sentido da alegoria mais profunda. Já a
Você deve perceber que algumas coisas não batem e que Escola de Antioquia defendia uma interpretação mais literal
pessoas têm visões diferentes mesmo no período patrístico. da Escritura. Ela contou com vários nomes conhecidos como
É muito comum que na história da Igreja muitos homens os de Doroteu, Teodoro, João Crisóstomo e Teodoreto.
discordem uns dos outros. A questão da hermenêutica no
período patrístico criou divergência entre duas escolas: A João Crisóstomo é conhecido por ter proferido mais de 600
Escola de Alexandria e a Escola de Antioquia homilias, que eram discursos cristãos de aplicação prática
da Lei. Suas obras possuem mais de 7 mil citações ao AT e
Essas duas escolas de interpretação floresceram duzentos mais de 11 mil do NT. Teodoreto escreveu comentários sobre
anos depois de Cristo. Cada uma apresentava uma a maior parte do AT. Essas duas escolas representam um
perspectiva diferente acerca da interpretação da Escritura. debate muito importante acerca da hermenêutica, do papel
A Escola de Alexandria contava com nomes como os de da interpretação literal e do papel da leitura alegórica da

69
Escritura. desse período, também seguiram uma visão alegórica de
interpretação Bíblica. Na Idade Média, o principal intérprete
Se avançarmos um pouco para a Patrística mais tardia, da Escritura foi um homem chamado Tomás de Aquino. Ele
por volta dos séculos V e VI veremos nomes como os nasceu em 1225 e morreu em 1274, e foi certamente um
de Jerônimo, Agostinho de Hipona, Cassiano e Adriano dos maiores nomes da história da Igreja. Ele acreditava que
de Antioquia. Jerônimo é conhecido por ter adotado a um sentido literal era fundamental, mas que outros tipos
alegorização de Orígenes no começo do seu ministério, de leitura também poderiam se apoiar no texto e na leitura
mesmo tendo assumido uma posição mais literal após literal. Acreditava também que o texto apresenta um lado
ser influenciado pela Escola de Antioquia. Ele, contudo, espiritual porque possui um autor divino que influencia o
continuou acreditando que um sentido mais profundo era autor humano. Dessa forma, o sentido literal seria o sentido
encontrado na alegorização. Foi o responsável pela tradução que o autor humano tentou transmitir no texto, mas o sentido
latina da Bíblia, conhecida como Vulgata, ou Vulgata Latina. espiritual configuraria-se como o sentido que Deus imprimiu
Agostinho, que inicialmente era um maniqueísta, seguidor àquilo que foi escrito e seria o que Deus, de fato, queria
da seita de Maniqueu, foi profundamente influenciado transmitir. Deus poderia expressar o que ele desejava por
por Ambrósio de Milão e acabou seguindo uma escola de meio das palavras dos homens, mas ele também intentava
interpretação bastante alegórica da Escritura. Segundo ele, trazer significados mais profundos por meio dos elementos
a regra de fé, que é a tradição da própria Igreja acerca da da linguagem. Ele também considerava o significado
Escritura, deveria ser usada para confirmar se uma passagem quádruplo dos textos: o histórico, alegórico, tropológico e o
possuía sentido alegórico ou não. Porém, ele acreditava que anagógico.
nenhum sentido alegórico conseguiria contradizer o sentido
literal do texto, o que é bem diferente de outras escolas de Outro nome importante nesse período é John Wycliff, que
alegoria. nasceu em 1330 e morreu em 1384. Ele foi o primeiro
tradutor da Bíblia para o inglês. É muito conhecido por
João Cassiano ensinava que Bíblia tinha um sentido ter contestado as interpretações da Igreja e proposto
quádruplo: histórico, alegórico, tropológico, que seria um suas próprias regras de interpretação bíblica, sua própria
sentido moral, e o anagógico, um sentido oculto. Adriano hermenêutica e foi um homem que enfatizou uma
de Antioquia, Euquério de Lião e Junilho, outros nomes hermenêutica literal e histórica.

70
23. HERMENÊUTICA DA REFORMA
À MODERNIDADE
sentido quádruplo da Escritura, exaltando o sentido literal.
O argumento dele é que as passagens mais obscuras
não deveriam ser interpretadas pela alegoria, mas pelas
passagens mais claras. Ou seja, um texto mais simples
lançaria luz sobre o texto mais difícil. Segundo ele, qualquer
cristão tinha a capacidade de chegar à Escritura e entender
o seu significado, o que era bem diferente do proposto pela
Igreja Católica Apostólica Romana.

Lutero seguia o que chamamos de hermenêutica


cristocêntrica. Ele sempre ia ao AT na tentativa de encontrar
afirmações e testemunhos a respeito de Jesus. Phillip
Melanchton era um amigo de Lutero que seguia um método

C
omo a Reforma Protestante influenciou a percepção histórico-gramatical de interpretação da Escritura. Apesar
sobre hermenêutica e interpretação bíblica? Os de algumas vezes cair também em alegoria, João Calvino
reformadores se basearam majoritariamente na Escola também rejeitou as interpretações alegóricas, frisando
de Antioquia e na interpretação literal da Escritura. Martinho que a interpretação do texto bíblico também interpretava
Lutero denunciou profundamente o método alegórico de a si mesma de acordo com seu próprio contexto. Ele fez
interpretação bíblica. Segundo ele, a alegoria era uma escória comentários e produziu longos textos sobre todos os livros
colocada sobre a Escritura Sagrada. Ele também rejeitou o da Bíblia, verso a verso, com exceção de alguns poucos do AT

71
e NT. Na sua grande obra, as Institutas, ele citou 1755 vezes como o famoso Jean Alfonse Turretin, como opositores,
o AT e 3098 vezes o NT. Ulrich Zwinglio, o grande reformador como o famoso Jacó Armínio. Nesse período, o misticismo
que encabeçou a reforma em Zurique, por sua vez, repudiava e um tipo muito radical de pietismo deixaram de lado a
o ato de tirar o texto de seu contexto e mostrou oposição interpretação bíblica e sua hermenêutica literal para dar
direta à Igreja Católica, acusando-a de praticar tal atitude. ênfase às coisas que o homem poderia sentir diretamente
com Deus sem a Escritura, ao usarem algum tipo místico de
Wylliam Tyndale é famoso por sua tradução bíblica do grego espiritualidade. Essa comunhão por experiência subjetiva do
para o inglês. Enquanto Wycllif traduziu a Bíblia do latim para pietismo tinha como objetivo se opor ao rigor doutrinário dos
o inglês, também defendia um método literal de interpretação teólogos e dos intérpretes bíblicos, enfatizando uma busca
da Escritura. Não entenda mal: por literal, não significa que bem privada por uma experiência com Deus.
não existem alegorias, analogias ou linguagem metafórica no
texto. Uma hermenêutica literal considera que o significado Mais à frente, homens como Thomas Hobbes e Baruc
primário de um texto que se propõe alegórico é o significado Espinosa empregaram o racionalismo como norteador para a
alegórico e que o significado de um texto que se propõe vida. Hobbes via a Bíblia como um mero livro de princípios e
metafórico é o significado metafórico. Por outro lado, textos regras. Espinosa afirmava que a razão estava desconectada
de sentido literal que não são analogia ou histórias, para da teologia. Por causa disso, por exemplo, eles contestaram
serem tratadas como metáforas, devem ser tratados no seu milagres bíblicos. Sua hermenêutica era muito liberal e
significado natural. bastante materialista.

Em resposta à Reforma Protestante, a Igreja Católica No século XIX, podemos destacar nomes como o de
organizou o chamado Concílio de Trento e deu início ao que Schleiermacher, Kiekergaard e de Wellhausen, três
foi conhecido como Contrarreforma, alegando que a verdade grandes nomes da teologia e hermenêutica. Friedrich
se encontrava em livros escritos e em tradições não escritas. Schleiermacher destacava o papel da percepção subjetiva
Essas tradições incluiriam os pais da igreja e o magistério da e individual da religião, desprezando a autoridade bíblica.
Igreja até hoje. Ele enfatizava o papel das emoções para o entendimento
do cristianismo. Soren Kiekergaard é conhecido como o
Depois da Reforma, surgiram tanto apoiadores de Calvino, pai do existencialismo moderno. Ele enfatizava que a fé era

72
uma experiência subjetiva, vivida quase exclusivamente rejeitava elementos que julgava míticos, como a ressurreição
em momentos de angústia. Julius Wellhausen desenvolveu e os milagres. Esses elementos talvez fossem importantes
a concepção da hipótese documental, afirmando que o nos tempos de Jesus, mas hoje não devem ser considerados
Pentateuco foi uma coleção de vários autores. Essa ideia literais. Por mais que possuíssem verdades espirituais, não
remete a um homem chamado Karl Graf. Ele acreditava que o eram realidades históricas.
Pentateuco havia surgido como uma evolução do politeísmo
para o animismo e para o monoteísmo. Foi nesse período O pensamento de Bultmann era muito influenciado por
que F.C. Baur começou a desenvolver sua teoria de oposição Martin Heidegger. Ele enfatizava uma perspectiva bastante
entre Pedro e Paulo. Nesse período, grandes teólogos existencialista do ser humano. Nomes como os de Hans-
conservadores opuseram-se a esse tipo de hermenêutica de Georg Gadamer e Ernest Fuchs foram muito influentes nesse
interpretação bíblica. Nomes conhecidos são Charles Hodge, movimento. Gadamer cria que o ser humano não podia mais
John Broadus, Carl Keil, dentre outros. ter acesso ao intentado pelo autor de um texto, justamente
por causa dos horizontes de interpretações, que eram
No século XX, o liberalismo tornou-se bastante forte. Nesse bastante diferentes. O que podemos concluir de tudo isso?
período, a Bíblia, certamente, foi encarada por muitos Observamos vários períodos na história da interpretação
teólogos como um livro meramente humano. Em oposição ao bíblica. Um brevíssimo panorama para o conhecimento
liberalismo, surgiu a neo-ortodoxia, com nomes como os de dos principais temas e polêmicas. Faz-se necessário
Karl Barth, Emil Brunnere Reihold Neibuhr. Porém, esses neo- percebermos como essas variadas correntes de interpretação
ortodoxos, por mais que se opusessem aos liberais, tentaram influenciaram o modo como o homem chegava à Escritura.
de alguma forma preservar a Escritura, caindo, contudo, no Isso afeta diretamente, ou, às vezes, indiretamente, o
negacionismo de sua infalibilidade como Palavra de Deus. resultado da exegese e da compreensão do texto bíblico. É
Eles negavam dois conceitos: Inerrância e infalibilidade. por causa disso que é importante estarmos firmados naquilo
Criação, Queda e Ressurreição eram tratadas como meros que a Bíblia realmente diz e, para isso, levar em conta ótimos
fatores mitológicos e alegóricos. Eram princípios que Deus métodos hermenêuticos, a fim de nos sairmos bem na leitura
nos deu para nos comunicar a fé num nível kerigmático, mas e compreensão da Escritura.
não num nível literal. Era mitologia e não história. Foi Rudolf
Bultmann que ensinou a demitização do evangelho. Ele

73
24. A SEPTUAGINTA (LXX)

S
eptuaginta (ou LXX) é o nome dado à versão da
Bíblia hebraica na língua grega. Isso vem de uma
lenda atribuída à versão grega da Lei que contava
que ela resultou do trabalho de 70 ou 72 anciãos de Israel,
trazidos de Alexandria para esse trabalho. Por causa desse
número, 70 ou 72, o nome foi atribuído primeiramente à Lei
e, com o tempo, expandido para todo o AT. Essa lenda revela
que todos os anciãos traduziram o Pentateuco de forma
concordante, sem nenhum contato um com outro, dentro
de 72 dias. O historiador Filo de Alexandria conta como
esses anciãos foram isolados em câmaras, mas escreveram
o mesmo texto palavra por palavra e produziram a versão
grega do Pentateuco e que foram os escritores cristãos que
estenderam a nomenclatura para que falasse também de
todo o restante do AT, até mesmo para os livros que nunca
fizeram parte da Bíblia hebraica.

À parte da lenda, o que sabemos é que em 331 a.C., ocorria


uma forte tendência de helenização – propagação da língua
grega – por causa da dominação de Alexandre, o Grande, e
a consequente fundação da cidade de Alexandria, situada
no Egito. Os judeus estavam espalhados em grande parte

74
do território que Alexandre dominou, inclusive na capital do tende também a traduzir documentos hebraicos importantes,
império, Alexandria. Com o passar do tempo, os judeus da além de listas de livros diferentes. A terceira divisão contém
cidade deixaram de falar hebraico e passaram a falar grego. Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos cânticos,
Isso significaria não poder ler as Escrituras nem recitar as Jó, Sabedoria e Eclesiástico. Esses dois últimos não se
orações se não houvesse uma tradução para a língua grega. encontram na bíblia hebraica. A quarta divisão corresponde
Por causa disso, a tradução das Escrituras para o grego foi aos profetas menores e aos profetas maiores. Nessa porção,
sendo propagada durante os séculos III e II a.C. Jeremias é seguido por Baruque e Daniel é ampliado com
duas histórias que não se encontram no texto hebraico
Além da necessidade do AT na língua grega, outras razões – a história de Susana e a de Bel e o dragão. Os livros de
possíveis alvo de debate são: a necessidade de educação Macabeus formam uma espécie de apêndice à LXX e não
dos mais jovens; necessidade de um documento jurídico e a pertencem a nenhuma das divisões principais. Essas obras
necessidade de uma herança cultural para a biblioteca real acrescentadas à LXX são chamadas de apócrifos.
que estava sendo montada em Alexandria. A nova edição
dos poemas homéricos produzida por Aristarco fez uso de É possível encontrar algumas diferenças entre a LXX e o texto
crítica textual para produzir um texto autoritativo e isso hebraico que serviu de base para tradução. Isso se dá devido
serviu de incentivo para preparação de um modelo de texto ao processo de tradução. Durante esse processo, a tradução
oficial grego da Bíblia para os judeus. Depois de Alexandria, pode ser estritamente literal, traduzindo-se palavra por
o uso da LXX ganhou força em outras comunidades judaicas palavra, e pode ser muito rígida, não respeitando o contexto
de fala grega. Com isso, os próprios cristãos produziram atual da língua receptora. Por outro lado, há traduções
manuscritos da LXX, ainda que em pequeno número. mais dinâmicas que visam alcançar o sentido da palavra ou
expressão. Mas, da mesma forma, essas traduções podem
A LXX é dividida em quatro partes. A primeira parte são os favorecer a língua receptora, deixando de transmitir um
livros da Lei, o Pentateuco. A segunda parte são os livros de significado particular, um jogo de palavras, ou característica
Josué, Juízes, Rute, Samuel, Reis, Crônicas, 1 Esdras (que é específica da língua original. Muitas das citações do NT
equivalente a 2 Cr 25.1 a Ne 8.13), 2 Esdras (equivalente a provêm da LXX ou de revisões dela (At 4.11 cf Sl 118.22; 2 Co
Esdras e Neemias), Ester, Judite e Tobias, apesar de Judite e 6.18a cf. 2 Sm 7.14). Já em outros momentos, os autores do
Tobias não estarem inclusos na bíblia hebraica, porque a LXX NT preferem citar a Bíblia hebraica e traduzir, eles mesmos,

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considerando que nem sempre a LXX representa a tradução mais antiga e pode nos aproximar mais do texto original.
ideal (1 Co 14.21 cf 28.11-12; Ef 4.30 cf. Is 63.10). Mateus Além disso, ela é completa, ao passo que os manuscritos
(Mt 1.23) usa a LXX para citar a profecia de Isaías (Is 7.14). do Mar Morto, não.
A versão grega de Amós forneceu a Tiago a autoridade para
falar da missão aos gentios (At 15.15-18 cf Am 9.11-12). - Ela fornece uma compreensão de textos hebraicos
Entretanto, Paulo e o autor de Hebreus constantemente difíceis, considerando que ela é uma tradução antiga
modificam a tradução da LXX. É interessante que, tanto em dos textos do AT. Logo, é uma forma de entender como
Romanos quanto em Hebreus, a LXX não é utilizada ao citar aqueles tradutores perceberam o sentido de certas
Deuteronômio 32.35 (Rm 12.19; Hb 10.30). Mateus também passagens.
muda a versão grega de Isaías (Mt 12.18-21; Is 42.1-4).
- Ela é uma testemunha muito importante para o período
Assim como hoje existem as variantes textuais, na época do Segundo Templo (c. 516 a.C. – 70 d.C.), do qual
de Jesus e dos apóstolos também havia as variantes da nem sempre temos material histórico o bastante para
LXX e da Bíblia hebraica. Esse fato, contudo, não desmerece conhecer sobre a cultura judaica da época, ainda
a doutrina da inspiração, já que a autoridade divina é mais considerando que a LXX traduz textos que não
constantemente confirmada. Os judeus propuseram uma eram necessariamente do AT, mas que narravam
série de revisões na LXX para conformá-la ainda mais ao acontecimentos daquele período, como os livros de
texto hebraico. As mais importantes foram a de Teodósio (50 macabeus.
a.C – 50 d.C.; literal), a de Áquila (c. 120 d.C; extremamente
literal) e a de Símaco (c. 180; dinâmica). - Ela foi adotada como Bíblia comum na Igreja, servindo
de citação para os apóstolos e para ser apresentada a
Portanto, podemos destacar algumas importâncias da LXX: pagãos que não tinham acesso à língua hebraica, mas
somente à grega. É possível dizer que a LXX influenciou
- Ela apresenta um testemunho para o texto original. a linguagem dos apóstolos, assim como João Ferreira
As versões hebraicas de manuscritos completos das de Almeida influenciou a linguagem cristã em língua
Escrituras datam de 1000 d.C. e os manuscritos do Mar portuguesa na atualidade.
Morto surgem por volta de 200 a.C. a 68 d.C. A LXX é

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