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Disciplina: Psicologia da educação de surdos

Autora: D.ra Débora Pereira Claudio

Revisão de Conteúdos: Esp. Lais Ribeiro Guebur

Designer Instrucional: Sérgio Antonio Zanvettor Júnior

Revisão Ortográfica: Esp. Juliano de Paula Neitzki

Ano: 2019

Copyright © - É expressamente proibida a reprodução do conteúdo deste material integral ou de suas


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Marketing da Faculdade São Braz (FSB). O não cumprimento destas solicitações poderá acarretar em
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1
Débora Pereira Claudio

Psicologia da educação de surdos


1ª Edição

2019

Curitiba, PR

Editora São Braz

2
Editora São Braz
Rua Cláudio Chatagnier, 112
Curitiba – Paraná – 82520-590
Fone: (41) 3123-9000

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Barros Dias / D.ra Rosi Terezinha Ferrarini Gevaerd / D.ra Wilma de Lara
Bueno / D.ra Yara Rodrigues de La Iglesia

Revisão de Conteúdos
Lais Ribeiro Guebur

Parecerista Técnico
Lais Ribeiro Guebur

Designer Instrucional
Sérgio Antonio Zanvettor Júnior

Revisão Ortográfica
Juliano de Paula Neitzki

Desenvolvimento Iconográfico
Juliana Emy Akiyoshi Eleutério

FICHA CATALOGRÁFICA

CLAUDIO, Débora Pereira.


Psicologia da educação de surdos / Débora Pereira Claudio. – Curitiba: Editora
São Braz, 2019.
35 p.
ISBN: 978-85-5475-489-1
1. Aquisição da Linguagem. 2. Libras. 3. Paradigmas e Abordagens.
Material didático da disciplina de Psicologia da educação de surdos – Faculdade
São Braz (FSB), 2019.

Natália Figueiredo Martins – CRB 9/1870

3
PALAVRA DA INSTITUIÇÃO

Caro(a) aluno(a),
Seja bem-vindo(a) à Faculdade São Braz!

Nossa faculdade está localizada em Curitiba, na Rua Cláudio Chatagnier,


nº 112, no Bairro Bacacheri, criada e credenciada pela Portaria nº 299 de 27 de
dezembro 2012, oferece cursos de Graduação, Pós-Graduação e Extensão
Universitária.
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comunidade de estar sempre sintonizada no objetivo de participar do
desenvolvimento do País e de formar não somente bons profissionais, mas
também brasileiros conscientes de sua cidadania.
Nossos cursos são desenvolvidos por uma equipe multidisciplinar
comprometida com a qualidade do conteúdo oferecido, assim como com as
ferramentas de aprendizagem: interatividades pedagógicas, avaliações, plantão
de dúvidas via telefone, atendimento via internet, emprego de redes sociais e
grupos de estudos, o que proporciona excelente integração entre professores e
estudantes.

Bons estudos e conte sempre conosco!


Faculdade São Braz

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Sumário
Prefácio ......................................................................................................... 06
Aula 1 – A família e a surdez .......................................................................... 07
Apresentação da Aula 1................................................................................. 07
1.1 - A descoberta da surdez no contexto familiar ................................... 08
Conclusão da Aula 1 ...................................................................................... 13
Aula 2 – Desenvolvimento cognitivo da criança surda ................................... 14
Apresentação da Aula 2 ................................................................................ 14
2.1 - Desenvolvimento cognitivo da criança surda .................................. 14
Conclusão da Aula 2 ...................................................................................... 19
Aula 3 – Paradigmas da surdez ..................................................................... 20
Apresentação da Aula 3 ................................................................................ 20
3.1 - Paradigma Clínico e Paradigma Socioantropológico .................... 20
Conclusão da Aula 3 ...................................................................................... 26
Aula 4 – A construção da identidade no sujeito surdo .................................... 26
Apresentação da Aula 4 ................................................................................ 26
4.1 - Identidade surda em contexto ......................................................... 27
Conclusão da Aula 4 ...................................................................................... 31
Índice Remissivo ........................................................................................... 33
Referências ................................................................................................... 34

5
Prefácio

Querido aluno! Seja bem-vindo à disciplina de Psicologia da Educação de


Surdos. Aqui, iremos estudar sobre o contexto familiar, ou seja, como as
características de uma família podem ter implicações no processo de descoberta
da surdez, no desenvolvimento da comunicação e na fase escolar. Também
veremos o desenvolvimento cognitivo da criança surda.
Seguiremos nossos estudos por dois vieses pelos quais podemos narrar
a surdez: Paradigma clínico (o impacto do olhar da deficiência para o sujeito
surdo) e o Paradigma Socioantropológico (identidade surda e suas
representações).
Finalizaremos a disciplina nos aprofundando no processo de identificação
e constituição do sujeito surdo (surdo filho de pais ouvintes, e surdo filho de pais
surdos), analisando a descoberta da diferença pelo surdo, a descoberta do eu e
do outro, e a constituição da personalidade.
Boas leituras, bons estudos e que esta disciplina contribua para o seu
encantamento e interesse pelo mundo visual da Libras e da surdez.

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Aula 1 – A família e a surdez

Apresentação da aula 1

Olá! Bem-vindo(a) à primeira aula da disciplina de Psicologia da Educação


de Surdos.
Tendo em vista que a comunicação é a base para a construção e
manutenção saudável de nossa personalidade, nesse processo é fundamental o
papel dos adultos, pais, avós tios e irmãos mais velhos no desenvolvimento da
criança, incentivando as participações desta em estruturações dialógicas
(pergunta/resposta) na língua de sinais, no caso dos surdos (ROJO, 1996).

Fonte: https://br.depositphotos.com/stock-photos/fam%C3%ADlia-e-a-surdez.html?filte
r=all&qview=289153504

Destaca-se que crianças surdas que nascem em famílias ouvintes que


não dominam a língua de sinais necessitam de uma rede de apoio tanto para si
quanto para seus parentes. Nesta aula, iremos abordar o contexto da família que
descobre que seu filho é surdo, ou seja, que se depara com a surdez e todas as
suas implicações, vieses e mudanças. Sabendo disso, podemos nos questionar:
Quais são os encadeamentos e caminhos que se podem tomar a partir disso?
Como se dá esse desenvolvimento comunicacional na família?

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Dessa forma, iremos abordar o processo desde a descoberta da surdez,
o desenvolvimento da comunicação familiar e a fase escolar.

1.1 A descoberta da surdez no contexto familiar

Quando se estuda a estrutura familiar, percebem-se peculiaridades


importantes a serem observadas, havendo diversos tipos de famílias que podem
ser compostas e estruturadas das mais diferentes formas, sendo organizadas de
maneiras distintas, não existindo uma padronização.
Pensando na perspectiva da surdez, há surdos em famílias nas quais
todos são ouvintes, mas também há surdos em famílias em que todos os
integrantes também o são. As variações são inúmeras se pensarmos também
na língua de sinais. A família conhece a Libras? Ela aceita que o surdo se
comunique por meio da língua de sinais? Se não conhece essa forma de
comunicação, quer aprender?
Uma criança que ouve e nasce em uma família de ouvintes tem contato
desde cedo com a língua oral, mas a criança surda na mesma situação acaba
por estar inserida em um contexto no qual as interações linguísticas que ocorrem
não são compreendidas em sua completude. Você sabia que 95% das crianças
surdas são filhas de pais ouvintes, os quais, em geral, desconhecem ou rejeitam
a língua de sinais? (SKLIAR, 1997). Há, comprovadamente, um atraso na
construção da narrativa em crianças surdas filhas de ouvintes com exposição
tardia ou insuficiente à Libras (LACERDA, 2004).
Para muitas pessoas, constituir uma família é um projeto de vida, um
sonho. Na atualidade, a surdez de nascença já costuma ser identificada na
maternidade via Teste da Orelhinha. Pensemos, inicialmente, em um ambiente
familiar em que todos são ouvintes, não conhecem a Libras e recebem a notícia
de que têm um filho surdo; a reação depende de quem recebe a informação, ou
seja, de que forma a família que recebe tal notícia reage. É um momento
complexo que envolve o histórico familiar, o médico ou fonoaudiólogo que passa
o diagnóstico e todo o processo de crescimento desse bebê surdo, a escolha da
escola e as perguntas: será que ele conseguirá ser independente? Será que
conseguirá trabalhar, ser feliz? Sabemos que vivemos em uma sociedade
preconceituosa, e é desafiador educar um filho surdo para ser ativamente

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participante socialmente. Partindo dessas reflexões, como você acha que pais
ouvintes que desconhecem a surdez e a Libras reagiriam com a notícia de que
irão ter um filho surdo? Alegria, surpresa, revolta, frustração, choque, vergonha,
culpa ou ansiedade?

Fonte: https://images.pexels.com/photos/1201758/pexels-photo-1201758.jpeg?auto=
compress&cs=tinysrgb&dpr=2&h=750&w=1260

Reflita
Seria a descoberta da surdez a configuração da perda de um filho perfeito?

Algumas famílias vão desejar que o filho surdo fale como os ouvintes.
Outros, aceitam a Libras só depois de perceberem que a criança não conseguirá
desenvolver a fala. Podemos ainda ter um terceiro caso, quando a família aceita
a língua de sinais e dá a ela a devida importância linguística. Françozo (2003)
pesquisou sobre o tema e aponta que o diagnóstico da surdez do filho pode
trazer uma tristeza igual quando ocorre a morte de alguém. A falta de
participação ou de envolvimento com o filho surdo pode significar a existência de
dificuldades na assimilação da surdez da criança e também a aceitação dessa
deficiência.
9
Saiba mais
O presente artigo é um recorte de uma pesquisa que investigou as vivências de
pais de filhos surdos. Disponível no link: http://www.scielo.br/scielo.php?script
=sci_arttext&pid=S1413-73722014000100003

Pode-se pensar que o fator família surda seja determinante para a


aceitação da Libras e que seja um padrão pais surdos quererem que seus filhos
sinalizem e usem a língua de sinais majoritariamente. Porém há casos em que
os pais eram surdos, usavam a Libras, mas não queriam que seu filho surdo
aprendesse a língua. Eles desejavam trabalhar apenas a oralidade com ele.
Um fator unânime, porém, é que quanto mais cedo for diagnosticada a
surdez, melhor! A identificação tardia pode levar a déficits comunicacionais, visto
que a criança não escuta e muitas vezes os familiares não sabem disso.

Fonte: https://images.pexels.com/photos/235554/pexels-photo-235554.jpeg?auto=
compress&cs=tinysrgb&dpr=2&h=750&w=1260

Salles, em uma importante citação, diz:

Os ouvintes são acometidos pela crença de que ser ouvinte é melhor


que ser surdo, pois, na ótica ouvinte, ser surdo é o resultado da perda
de uma habilidade 'disponível' para a maioria dos seres humanos. No
entanto, essa parece ser uma questão de mero ponto de vista (SALLES
et al, 2004, p.36).

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Ao estudar famílias de crianças surdas, os autores Calderon e Greenberg
(1999) apresentam que o suporte social emergiu como um importante preditor e
protetor do ajustamento materno frente a eventos estressantes, ou seja, além da
percepção da família sobre a deficiência do filho, há a pressão social sobre o
tema. Vejamos a tabela abaixo a partir das pesquisas desses autores:

FAMÍLIA OUVINTE QUE DESCONHECE A LÍNGUA DE SINAIS

Criança surda Criança ouvinte

Novos métodos de comunicação Língua oral

Diferentes tomadas de decisões sobre Tomadas de decisões sobre a educação


educação

Aumentar contato com diversos Contato com profissionais da educação


profissionais das mais diversas áreas e e da saúde
comprar e utilizar suportes técnicos

A criança que é "diferente", pois A criança é igual à família


comunica-se de maneira diferente
Fonte: elaborado pelo autor (2019), com base nas pesquisas de Calderon e Greenberg
(1999), adaptado pelo DI (2019).

A tabela acima nos apresentou as diferenças entre ter um filho surdo e


um ouvinte. A diferença da criança surda está na comunicação em outra língua.
Sendo assim, há uma série de decisões a serem tomadas pelos pais. Nesse
estudo de Calderon e Greenberg (1999), os autores pesquisaram 36 mães de
filhos surdos. Examinaram as questões emocionais e fatores envolvidos em ter
um filho surdo, desde o núcleo familiar até a relação educacional com a escola.
Para os teóricos, crianças surdas estão melhor adaptadas e se desenvolvendo
bem intelectualmente com um núcleo familiar em que os pais possuem
habilidades de resolução de problemas.
Além dos resultados apresentados na tabela, os estudos de Calderon e
Greenberg (1999) também demonstram que, em famílias com pais melhores
adaptados à surdez, o desempenho da criança surda no desenvolvimento da
escrita é melhor. Neste contexto, a expectativa dos pais, a aceitação e a
adaptação à surdez são fatores que fazem profunda diferença na vida da criança
surda. Vejamos na imagem abaixo como esta teia é composta:
11
Afeto Psicológico

Criança surda

Cognição
Educação

Social

Fonte: elaborado pelo autor (2019), adaptado pelo DI (2019).

A criança surda, localizada no centro de nossa figura, está diretamente


ligada a todos os pontos da imagem. A constituição da identidade, a construção
do ser surdo, dá-se em sociedade, por meio da língua de sinais. Com isso, há
uma base sólida e possível para o afeto, para a educação e para o
desenvolvimento cognitivo. Sabemos que as famílias não são homogêneas e
que cada uma ajusta-se de forma diferente frente à surdez.
Para Guarinello e Lacerda (2007):

Os profissionais da área da saúde e da educação, envolvidos no


trabalho com surdos, visam à otimização da comunicação e melhor
integração social desses sujeitos. Para isso, é necessário que a família
(primeiro grupo responsável pela criança) seja orientada e informada a
respeito do significado da surdez, de suas consequências para a
comunicação infantil e da aquisição fundamental da Língua Brasileira
de Sinais (Libras) como primeira língua, que será capaz de garantir o
desenvolvimento cognitivo e linguístico para a melhor inserção da
criança na sociedade (GUARINELLO; LACERDA, 2007, p. 1).

Goldfeld completa nossa reflexão trazendo que:

12
A história dos surdos comprova as ideias de Vygotsky e Bakhtin quanto
à importância da linguagem no desenvolvimento do pensamento e da
consciência, mostrando também que a sua aquisição pela criança deve
ocorrer por meio de diálogos, conversações, já que, sem uma língua
de fácil acesso, os surdos não conseguiriam participar ativamente da
sociedade (GOLDFELD, 1997, p.159).

A família é nossa base, nosso primeiro núcleo social. É nesse sistema


que aprendemos uma língua e as primeiras ferramentas para existir em
sociedade, entendendo que não estamos sozinhos no mundo. Isso acontece por
meio da linguagem, não qualquer uma, mas a linguagem em comum entre pais
e filhos e os membros que constituem essa família. Destaca-se que o surdo tem
as mesmas potencialidades que um ouvinte, desde que não lhe seja retirado o
direito de aprender uma língua.

Conclusão da aula 1

Chegamos ao final deste capítulo. Vimos a importância do papel familiar


e do meio social em que a criança surda nasce. Enfatizou-se que quanto mais
cedo for o diagnóstico, a descoberta da surdez, melhor a adaptação da família.
Também vimos a importância do desenvolvimento por meio da linguagem, que
influencia o desenvolvimento do pensar e, consequentemente, do intelecto da
criança.

Atividades de Aprendizagem

Como a família pode influenciar o desenvolvimento da criança surda?


Pesquise um artigo científico que fale sobre essa temática, reflita sobre o tema
e pense em um exemplo no qual a teoria se apresente na prática.

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Aula 2 – Desenvolvimento cognitivo da criança surda

Apresentação da aula 2

O curso da história influencia diversos campos da sociedade em tempo.


Com relação ao sujeito surdo, o movimento não é diferente. Você já observou
como nos últimos tempos profissionais de diversas áreas têm se debruçado em
estudos sobre o desenvolvimento cognitivo do surdo e seu processo de
aquisição da linguagem? Com base nisso, vamos aprofundar, neste capítulo, os
conhecimentos e reflexões sobre o desenvolvimento cognitivo da criança surda.
Bons estudos!

Fonte: https://images.pexels.com/photos/1257110/pexels-photo-1257110.jpeg?auto=
compress&cs=tinysrgb&dpr=2&h=750&w=1260

2.1 Desenvolvimento cognitivo da criança surda

No processo de formação do pensamento e do caráter humano, a


linguagem é um fator indispensável, pois origina as formas de aprender a pensar,
de se expressar ou interagir com as pessoas, com seu meio social. Para Sacks
(1990):

Se os sinais aparecem mais cedo do que a fala, é porque eles são mais
fáceis de fazer, pois consistem em movimentos relativamente simples

14
e lentos dos músculos, enquanto a fala necessita de coordenação
relâmpago de centenas de estruturas diferentes e só se torna possível
no segundo ano de vida. Entretanto, é intrigante o fato de uma criança
surda aos quatro meses poder fazer o sinal que representa leite,
enquanto uma criança ouvinte apenas consegue chorar ou olhar em
volta. (SACKS, 1990, p. 43-44).

O que vem à sua mente quando você pensa na palavra linguagem? Qual
é a importância da língua na sua vida? A linguagem pode ser definida como uma
capacidade, a habilidade que o indivíduo desenvolve para expressar seus
sentimentos, ideias e opiniões. Por conta disso, seria possível vivermos em
sociedade sem linguagem? E sem comunicação? Acredito que não, pois a
comunicação é intrínseca ao nosso ser social, visto que onde há comunicação
há linguagem, como menciona Dalgalarrondo (2008):

A linguagem, particularmente na sua forma verbal, é uma atividade


especificamente humana, talvez a mais característica de nossas
atividades mentais. É o principal instrumento de comunicação dos
seres humanos. Além disso, é fundamental na elaboração e na
expressão do pensamento (DALGALARRONDO, 2008, p. 234).

Fonte: https://images.pexels.com/photos/698878/pexels-photo-698878.jpeg?auto=
compress&cs=tinysrgb&dpr=2&h=750&w=1260

A Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi oficializada em 2002, no Brasil,


mas as pesquisas e estudos sobre essa língua se iniciaram há muito mais tempo.
Para o sujeito surdo, a língua de sinais é de forte representatividade na
construção cognitiva do indivíduo. É por meio da língua que a criança desenvolve

15
a sua interação com o outro, troca ideias e constrói seus pensamentos sobre o
mundo físico e simbólico.
Em torno das línguas de sinais, percebe-se que são complexas, mas
ainda há muito a ser investigado e elucidado no campo da cognição. O que já se
sabe é que a linguagem de sinais compartilha propriedades da língua oral. Um
ouvinte utiliza a língua para realizar tarefas das mais simples até as mais
complexas, como pedir um café ou aprender a fazer um café. Já o surdo, para
fazer isso, faz uso da língua de sinais ao invés da oralidade do ouvinte. Podemos
pensar da seguinte forma: a língua de sinais, para os surdos, tem a mesma
relevância que a língua oral para os ouvintes.
Um ponto extremamente interessante é que pesquisadores descobriram
que a língua de sinais se organiza no cérebro da mesma forma que as línguas
orais, isso porque sua organização interna e sua estrutura são as mesmas
(QUADROS, 1977).

Saiba mais
O trabalho disponível no link a seguir tem como objetivo discutir sobre o processo
de desenvolvimento cognitivo, psíquico e social da pessoa com surdez, no
período de aquisição da linguagem na língua de sinais (Libras). Diante da
pesquisa realizada, compreende-se que todo ser humano nasce dotado de uma
capacidade inata para a linguagem, mas, para que esta se desenvolva, é
necessário que seja propiciada uma abundância e riqueza do input linguístico,
que estará contido nas interações desse sujeito com o meio ambiente. Para ler
o conteúdo na íntegra, acesse:
http://www.revistahumanidades.com.br/arquivos_up/artigos/a38.pdf

A Libras, assim como a linguagem oral, é estudada, por pesquisadores,


em seu processo de aquisição por crianças surdas e também ouvintes filhos de
pais surdos. A partir dos estágios de aquisição da linguagem, pesquisados por
Ronice Quadros (2011), pode-se ver na tabela abaixo alguns pontos
fundamentais sobre o desenvolvimento cognitivo da criança surda. A autora traz
6 estágios separados por idade e por características de desenvolvimento
linguístico:

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Período/estágio Idade Características
Período pré- 0 a 12 meses Balbucio gestual: não demonstra nenhuma
linguístico de idade organização interna.
Usam constantemente o apontar para indicar
coisas ou objetos no espaço presente.
Estágio do 12 meses a 02 A criança começa a apresentar algumas
primeiro sinal anos configurações de mãos e movimentos
imperfeitos, que a permitem imitar os sinais
produzidos por adultos.
Estágio das 02 a 03 anos A ordem das palavras é utilizada para
primeiras de idade estabelecimento das relações gramaticais.
combinações O uso da língua já começa ser percebido de
maneira mais consciente pela criança, assim
como as regras gramaticais.
Estágio das A partir dos 03 Explosão de vocabulários.
múltiplas anos de idade Aumento significativo na compreensão de sua
combinações língua.
Começa a produzir muitos sinais e utilizá-los
em frases curtas.
Estágio de A partir dos 06 Aquisição do sistema pronominal.
domínio da língua anos de idade Uso de concordâncias verbais.
Domínio completo dos recursos morfológicos
da língua.
Dá início às primeiras produções de histórias.
Após os 7 anos Maturação para a aquisição da Libras.
de idade Passa a utilizar a linguagem para influenciar o
pensamento das pessoas, com suas opiniões
e atitudes.
Fonte: elaborado pelo autor (2019), com base na pesquisa de Ronice Quadros (2011),
adaptado pelo DI (2019).

A aquisição de uma linguagem é um processo complexo que influencia


uma série de questões nos indivíduos, sejam eles surdos ou ouvintes. Podemos
dizer que a língua, quando adquirida nos primeiros anos de vida, proporciona
condições para um pleno o desenvolvimento do indivíduo. Isso vale tanto para
ouvintes quanto para surdos. É preciso haver a linguagem para que se construa
o raciocínio, a identidade e o ser no mundo social.
O surdo, privado do contato com a língua, é extremamente prejudicado
em seu desenvolvimento. A aquisição tardia da linguagem traz consequências
cerebrais e psíquicas, visto que as estruturas neuropsíquicas se sedimentam
com o passar do tempo devido à falta de atividades cerebrais na região da
linguagem (DALGALARRONDO, 2008).

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Importante
Várias pesquisas foram realizadas ao longo dos anos, em busca de compreender
os fatores que estão relacionados com o desenvolvimento cognitivo das pessoas
surdas.

Góes (1996) menciona que:

Os problemas tradicionalmente apontados como característicos da


pessoa surda são produzidos por condições sociais. Não há limitações
cognitivas ou afetivas inerentes à surdez, tudo dependendo das
possibilidades oferecidas pelo grupo social para seu desenvolvimento,
em especial para a consolidação da linguagem (GÓES, 1996, p.38).

O ser humano, habitualmente, nasce e cresce em sociedade. Calderon e


Greenberg (1999) apontam que uma socialização com privação linguística pode
desencadear:

➢ Desencorajamento da independência e responsabilidade;


➢ Falta de aprendizagem incidental;
➢ Limitadas explicações sobre os seus sentimentos e papéis;
➢ Adolescentes mais imaturos, individualistas e com menor
capacidade social devido aos anos de déficits linguísticos e sociais.

Assim como o português possibilita ao ouvinte construir sua identidade,


expressar seus sentimentos, como angústias, medos e desejos, a língua de
sinais torna isso tudo possível ao surdo. A ausência dela, assim como a falta da
comunicação para o ouvinte, gera angústia, raiva e revolta. Não ser ouvido, não
ser compreendido, é intenso para o psiquismo humano.
Pontuamos, por fim, um aspecto de extrema relevância no estudo da
cognição do surdo e seu desenvolvimento social e escolar: dificuldades de
aprendizagem de sujeitos surdos. Elas podem ser resultado da privação de
experiencias linguísticas que costumam ocorrer, em sua grande maioria, em
famílias de ouvintes que podem não conhecer a língua de sinais. Essas
situações não estão relacionadas a deficiências intelectuais, mas a não
exposição e contato com a língua, gerando déficits em seu desenvolvimento.

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No Brasil, o português e a Libras são línguas oficiais, dentre outras faladas
em nosso território, podendo-se dizer que a proficiência em Libras aumenta a
proficiência em português tanto na leitura quanto na escrita alfabética.

Saiba mais
Uma melhor abordagem sobre o desenvolvimento de cognição foi feita pelo
Jornal Estadão, com a matéria O surdo deve ser educado no idioma materno e
por meio dele. Entrevista com Fernando Capovilla, Psicólogo, disponível no link:
https://www.estadao.com.br/noticias/geral,o-surdo-deve-ser-educado-no-idioma
-materno-e-por-meio-dele-imp-,737415

Fonte: https://images.pexels.com/photos/2701585/pexels-photo-2701585.jpeg?auto=
compress&cs=tinysrgb&dpr=2&h=750&w=1260

Conclusão da aula 2

Chegamos ao final de nossa segunda aula e refletimos sobre o


desenvolvimento cognitivo do sujeito surdo e sobre a importância do contato com
a língua logo nos primeiros meses de vida. Entendemos que as consequências
do isolamento linguístico podem ser graves e de reversão lenta e trabalhosa.
Seguindo nossos estudos, veremos na próxima aula as Perspectivas da Surdez:
como a surdez pode ser estudada e compreendida.

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Atividades de Aprendizagem

Leia a afirmativa: “A proficiência em Libras aumenta a proficiência em


português (leitura e escrita alfabéticas) que, por sua vez, aumenta a
probabilidade de desenvolvimento da habilidade de leitura orofacial. Crianças
surdas privadas de ensino-aprendizagem em Libras na educação infantil e no
ensino fundamental aprendem a ler e escrever mais tardiamente e menos
proficientemente, e têm mais dificuldade em fazer leitura orofacial.”
(CAPOVILLA, 2011).
A afirmativa está correta? Como ela se relaciona com os conteúdos
estudados? Discorra sobre o tema.

Aula 3 – Paradigmas da surdez

Apresentação da aula 3

Bem-vindo à aula três, na qual iremos abordar a surdez e seus


paradigmas: clínico e socioantropológico. Como você imagina que eles
influenciam a sociedade? Será que influenciam o surdo? Influenciam a sua forma
de trabalhar com surdos?
Essas e outras perguntas buscaremos responder e levantar novos
questionamentos a partir de agora.

3.1 Paradigma clínico e paradigma socioantropologico

Ao longo da história, estereótipos foram construídos sobre a surdez e os


surdos. A comunidade surda vem lutando a fim de combatê-los e criar novas
formas de ver o surdo. Vamos ver alguns exemplos:

➢ Estereótipo físico: o surdo é um deficiente físico por não ouvir e por


não falar;
➢ Estereótipo psicológico: o surdo é um deficiente intelectual, pois a
língua de sinais é muito simples e não produz discursos complexos;

20
➢ Estereótipo social: o surdo não tem competência de interagir
socialmente, seja para lazer ou para trabalho. É visto como um
deficiente social.

Esses estereótipos podem parecer exagerados ou distantes, mas eles


ainda existem e são resultado da chamada Perspectiva Clínica da Surdez.
O modelo médico-clínico é fortemente ancorado na perspectiva oralista,
que busca uma forma de aproximar o deficiente auditivo da normalidade dos
ouvintes ou não deficientes. Pergunte-se: seria a surdez a causa original de
todas as problemáticas educacionais e psíquicas do sujeito surdo?

Fonte: https://images.pexels.com/photos/1919236/pexels-photo-1919236.jpeg?auto=
compress&cs=tinysrgb&dpr=2&h=750&w=1260

Existem os mais diferentes perfis de alunos nas escolas. Para que haja
uma interação com a educação de surdos, Skliar (1997, p.6) considera que “se
o critério para afirmar a singularidade educativa desses sujeitos é o de uma
caracterização excludente a partir de suas deficiências, então não se está
falando de educação, mas de uma intervenção terapêutica”.
Há diversas formas de perceber e estudar a surdez. No modelo médico-
clínico, uma forte característica é a descontextualização do sujeito e o enfoque
na deficiência de forma isolada. O ser surdo é encarado como uma doença, uma
falta, a ausência do ouvir. O objetivo da educação, nesta perspectiva, é suprir
essa falta e curá-la, se possível, por meio do ensino da fala, da oralidade. Nesse

21
processo, envolvem-se fonoaudiólogos, médicos, equipamentos de amplificação
sonora, estimulação auditiva, treinamento da audição e também da fala. O
investimento é feito no sentido de atenuar o déficit auditivo.

Fonte: https://images.pexels.com/photos/568024/pexels-photo-568024.jpeg?auto=com
press&cs=tinysrgb&dpr=2&h=750&w=1260

O ser humano pode ser estudo a partir de diversas perspectivas.


Conforme Skliar (1997) aponta, para a Perspectiva Clínica, o aproveitamento dos
restos auditivos conduziria a uma fala melhor e afastaria o surdo do grupo dos
deficientes. Essa visão gera uma forma de agir que pode ser chamada de círculo
vicioso.
Skliar (1997) apresenta da seguinte forma:

➢ Para o educador: os alunos têm uma limitação para a


aprendizagem;
➢ Para o professor: acaba por preparar materiais aquém da
competência desses alunos;
➢ Os resultados: acabam por ser frustrantes e atribui-se o fracasso
ao aluno.

E como é construída a identidade de um sujeito inserido nesse círculo


vicioso que o autor apresenta? O aluno irá elaborar sua identidade tendo os
ouvintes como uma referência que jamais será alcançada, por conta disso terá

22
uma identidade deficitária com relação aos ouvintes e isso trará consequências
em seu desenvolvimento como um todo.

Fonte: https://br.depositphotos.com/stock-photos/fam%C3%ADlia-e-a-surdez.html?filte
r=all&qview=241268668

Historicamente o surdo foi concebido como um ser inferior, anormal, fora


do padrão, uma pessoa dependente de outra e incapaz de prover-se. Em
contrapartida à perspectiva médico-clínica, a perspectiva socioantropológica traz
que o surdo é tido como um sujeito social e cultural que cresceu nas diferenças
e foi marcado em sua história por isso. A perspectiva socioantropológica é um
movimento, uma forma de olhar o social que valoriza e respeita as diferenças.
A palavra “surdo”, para essa perspectiva, faz referência às pessoas que
não escutam. O foco não é a quantidade de som que a pessoa não ouve. Os
surdos são vistos, sim, como diferentes dos ouvintes, mas não são considerados
inferiores por serem assim. A diferença é decorrente, principalmente, da maneira
visual com que os surdos têm acesso ao mundo. (SILVA, PEREIRA, ZANOLLI,
2007).
Na antiguidade, o surdo era visto como um incapaz e defeituoso. Ao longo
dos anos, essa visão foi mudando. Para a perspectiva socioantropologica, a
língua de sinais é a voz do surdo. Ela é um elemento identificatório que os
aproxima, os reúne em comunidade e possibilita que compartilhem, conheçam e
construam esta língua (SKLIAR, 2001). Assim, a comunicação por meio de sinais

23
é um veículo para o desenvolvimento de habilidades linguísticas para o surdo e
também para seu desenvolvimento social e cognitivo.

Fonte: https://images.pexels.com/photos/2442370/pexels-photo-2442370.jpeg?auto=
compress&cs=tinysrgb&dpr=2&h=750&w=1260

O surdo e a temática da surdez são estudados por médicos


aproximadamente desde o século XVII. Para a perspectiva socioantropológica,
a surdez não é concebida como um déficit nem como uma deficiência que torna
o surdo menos hábil, mas, sim, como uma diferença cultural e linguística para
desenvolver competências como as dos ouvintes. O aluno surdo não é visto
pelas lentes de suas possíveis restrições e limitações, mas como um ser humano
que percebe o mundo e o conhece por conta do fator visual, sendo assim o
acesso às informações é diferente.
Vamos sistematizar as diferenças entre os paradigmas a partir da tabela
seguinte:

Clínico Socioantropológico

Deficiente. Surdo.

Fator biológico. Fator sociocultural.

A fala é a única manifestação da Não é preciso oralizar como o ouvinte


linguagem. para se comunicar;

24
Valorização da língua de sinais.

Dependência e ligação direta entre o A língua de sinais desenvolve a cognição


desenvolvimento cognitivo e a linguagem e a linguagem tanto quanto a língua oral.
oral.

Deve aprender a língua oral para se Língua natural, reconhecida por Lei
aproximar do não deficiente, ouvinte. (10.436 de 24 de Abril de 2002).

Educação por modelos corretivos. Educação por modelos educativos.

A linguagem oral é vista como A língua de sinais possibilita o


imprescindível para o desenvolvimento desenvolvimento cognitivo, social,
cognitivo, social, afetivo-emocional e afetivo-emocional e linguístico.
linguístico.

A educação se converte em terapêutica O papel da escola, da educação dos


(reparadora e corretiva) e o objetivo do surdos, não é terapêutico. A fala não é o
currículo escolar passa a ser dar ao objetivo e não é por meio dela que se
sujeito o que lhe falta, a audição, e sua mede o desenvolvimento cognitivo do
consequência mais visível, a fala. aluno. O aluno surdo é tão competente
quanto o aluno ouvinte, a diferença é que
um usa a língua visual e outro a língua
oral.
Fonte: elaborado pelo autor (2019), adaptado pelo DI (2019).

Assim, ver o sujeito surdo a partir da perspectiva sociocultural é respeitá-


lo enquanto indivíduo autônomo e capaz. O apreço ao indivíduo não para nele,
ele segue e se amplia para toda uma concepção maior. Valorizar o surdo
também é valorizar suas escolhas, respeitá-las, reconhecer o movimento surdo
e sua busca por visibilidade e valoração, é uma caminhada que está apenas
começando. Para exemplificar a teoria que estudamos e vinculá-la com a prática,
segue a sugestão de uma reportagem que aborda exatamente as perspectivas
da surdez:

Saiba mais
Segundo o Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005, em seu artigo 2º:
“Considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva, compreende e
interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua
cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras)." Leia
mais sobre a reportagem acessando o link: https://www.gazetadopovo.com.
br/vozes/educacao-e-midia/um-olhar-sobre-o-surdo-clinico-ou-social/

25
Conclusão da aula 3

Chegamos ao final da aula número três da disciplina de Psicologia da


Educação de surdos. Aqui você conheceu duas perspectivas possíveis para se
abordar a surdez e compreender o sujeito surdo: a Perspectiva Clínica e a
Perspectiva Socioantropológica.
Na Perspectiva Clínica, a surdez é tida como patologia, deficiência. Na
Perspectiva Socioantropológica, a surdez não é déficit, mas traz ao surdo uma
característica importante: sua percepção visual do mundo e do conhecimento.
Essas perspectivas englobam a percepção que temos do surdo e também
influenciam o entendimento que ele mesmo terá dele, ou seja, a construção de
sua identidade e personalidade.

Atividade de Aprendizagem

Um aluno surdo, de 6 anos, chega à sua sala de aula. Ele não sabe língua de
sinais e também não oraliza o português. Como seria a sua visão desse aluno
em relação à perspectiva clínica e à perspectiva socioantropológica?
Exemplifique.

Aula 4 – A construção da identidade no sujeito surdo

Apresentação da aula 4

Olá! Bem-vindo à nossa última aula. Este capítulo de estudo irá trazer
novos conteúdos e também fazer um fechamento do que foi estudado até aqui.
Veremos sobre o processo de identificação e constituição do sujeito surdo, e
responderemos estas perguntas: como isso acontece? Há diferença entre
famílias que sabem língua de sinais e aquelas que não usam esta língua?

26
4.1 Identidade surda em contexto

Para mergulharmos nesta temática, iniciemos com a leitura desta bela


citação:

Quero entender o que dizem. Estou enjoada de ser prisioneira desse


silêncio que eles não procuram romper. Esforço-me o tempo todo, eles
não muito. Os ouvintes não se esforçam. Queria que se esforçassem
(LABOURIT, 1994, p. 39).

A história da surdez traz fortes marcas de estigmas aos surdos, que


considerados, frequentemente, como indivíduos de menor valor social, foram e
são balizados pelo fato de não ouvir. A voz, historicamente, foi sinônimo de
conhecimento e de desenvolvimento cognitivo. Quem falava tinha linguagem,
mas quem não falava/oralizava?
Os surdos eram vistos como humanamente inferiores em suas funções
cognitivas. A língua de sinais não era reconhecida e era considerada um
aglomerado de gestos e mímicas. Estamos recapitulando esta história, pois essa
exclusão linguística refletia no campo social, na exclusão profissional, que ainda
hoje podemos observar na comunidade surda.
Atualmente a comunidade surda (surdos, profissionais da surdez,
familiares, entre outros) é resultado também das diversas lutas enfrentadas para
legitimar a língua de sinais. Pesquisadores afirmam que é só de posse desta,
considerada natural, que esse indivíduo constituirá uma identidade surda e
completa (PERLIN, 1998; MOURA, 2000).

Curiosidade
A comunidade surda inclui aqueles que se identificam com sua cultura, membros
da família, intérpretes de língua de sinais e pessoas que trabalham ou interagem
socialmente com pessoas surdas. Conceito de comunidade é um sistema social
geral, no qual pessoas vivem juntas, compartilham metas comuns e partilham
certas responsabilidades umas com as outras [...] Uma comunidade é um grupo
de pessoas que mora em uma localização particular, compartilha as metas
comuns de seus membros e, de vários modos, trabalha para alcançar estas
metas. (PADDEN, 1989).

27
Isso é relevante para nós, neste capítulo em específico, pois a maioria
dos estudos sobre a identidade dos surdos toma como base a questão do uso
da língua. Além disso, o modo como a sociedade concebe a surdez ao longo dos
anos influencia a construção da identidade do surdo.

Fonte: https://images.pexels.com/photos/813616/pexels-photo-813616.jpeg?auto=com
press&cs=tinysrgb&dpr=2&h=750&w=1260

A identidade, seja do surdo ou do ouvinte, é fruto de práticas discursivas,


interações dialógicas que vivenciamos desde o nosso nascimento e vão nos
constituindo. Compreendemos, então, que o surdo não pode ser compreendido
dentro de um vácuo social, certo? E como você imagina ser a participação da
família neste processo de construção identidária?
A família é nosso primeiro núcleo social, é nela que interagimos,
crescemos e trocamos nossas primeiras experiências sociais. Filho e Oliveira
(2010) apresentam que:

A principal satisfação dos filhos é ter uma boa relação entre os


membros da família, pois essa relação exerce importante papel para o
desempenho psíquico e consequentemente nas demais fases da vida.
No processo de relação familiar, a comunicação favorece a
compreensão das dúvidas, a demonstração de carinho e amor [...] uma
vez que para adquirir essas informações é necessário estabelecer-se
uma mesma linguagem (QUADROS, 2002 apud FILHO e OLIVEIRA,
2010, p. 2).

Você se imagina nascendo em uma família com a qual não consegue se


comunicar? Suponha que seus pais não falassem a mesma língua que você. A

28
família é um núcleo social no qual todos os surdos, ou a maior parte deles, vivem
experiências que envolvem comunicação e afeto. A interação com familiares
pouco proficientes na língua de sinais limita o acesso do surdo às vivências neste
núcleo social, privando-o de adquirir conceitos fundamentais para o seu
desenvolvimento e formação da identidade.
A linguagem é parte integrante no desenvolvimento do ser humano.
Negrelli e Marcon (2006, p. 103) alegam que:

A participação da família na comunicação do surdo, por meio dos


sinais, possibilitará a esse indivíduo a interação com o mundo e
tornará o convívio mais agradável e feliz. Igualmente essa língua, na
educação e nas escolas, vai proporcionar a vivência de uma
realidade bilíngue das relações culturais, institucionais e sociais.

Fonte: https://images.pexels.com/photos/2253879/pexels-photo-2253879.jpeg?auto=
compress&cs=tinysrgb&dpr=2&h=750&w=1260

Crescer e se desenvolver saudavelmente é um processo que envolve


diversos aspectos da vida. Os surdos que recebem uma base sólida da família
tendem a acreditar no seu potencial, crescendo seguros e confiantes, com uma
língua que os permite interagir e ser em sociedade. Na visão de Esser (1995):

Os surdos que recebem uma base sólida da família, fato este que leva
o surdo acreditar no seu próprio potencial, que é completado na escola
especial regular, quando leva dentro de si imagem positiva dos
estímulos adequados recebidos ao longo do tempo, tem elementos que
podem modificar conceitos negativos existentes na sociedade pela
falta de reconhecimento, da sociedade em geral, do aspecto
psicológico com relação ao mesmo. (ESSER, 1995 apud PEREIRA,
2008, p. 38).

29
Todas essas concepções e discursos sociais constituem, pouco a pouco,
a identidade do sujeito surdo, sendo ela uma construção que não é padronizada
nem homogênea, visto que existem múltiplas possibilidades de identidade. A
autora Gladis Perlin, pesquisadora surda, em 1997, sistematizou algumas delas.
Vamos ver na tabela a seguir como elas se caracterizam:

IDENTIDADE CARACTERÍSTICAS

Identidade Flutuante O surdo se espelha na representação hegemônica


do ouvinte, vivendo e se manifestando de acordo
com o mundo apresentado e percebido pelos
ouvintes.
Identidade Inconformada O surdo não consegue captar a representação da
identidade ouvinte, hegemônica e se sente em uma
identidade subalterna.
Identidade de Transição: O contato dos surdos com a comunidade surda é
tardio.
Passagem tardia da comunicação visual-oral (na
maioria das vezes não efetiva) para a comunicação
visual sinalizada.
O surdo pode passar por um conflito cultural.
Identidade Híbrida: Surdos que nasceram ouvintes e se ensurdeceram.
Têm presentes as duas línguas em uma
dependência dos sinais e do pensamento na língua
oral.
Identidade Surda: Ser surdo é estar no mundo visual e desenvolver
suas vivências na Língua de Sinais.
Os surdos que desenvolvem a identidade surda são
representados por discursos que os veem capazes.
Formação de identidade que só ocorre entre
espaços culturais surdos.
Fonte: elaborado pelo autor (2019), adaptado pelo DI (2019).

As diferentes identidades apresentadas são de extrema complexidade.


Não é algo de simples análise ou de fácil constituição para o surdo. Diversas
tramas sociais e discursivas se cruzam nesse processo.
Muitas variáveis estão envolvidas, por exemplo:

➢ Surdos com pais surdos;


➢ Surdos que não têm contato com outros surdos;
➢ Surdos que nasceram na cidade ou que tiveram contato com língua
de sinais desde a infância;
➢ Surdos filhos de pais ouvintes fluentes em Libras;

30
➢ Surdos com pais ouvintes e irmãos surdos, entre outros.

O que é de fundamental importância frisar é que uma identidade não pode


ser fixa, imóvel e homogênea, não podemos colocar os surdos todos dentro de
uma mesma categoria, pois as identidades fluem e se mesclam com a história
de vida de cada surdo.

Fonte: https://images.pexels.com/photos/264109/pexels-photo-264109.jpeg?auto=
compress&cs=tinysrgb&dpr=2&h=750&w=1260

Conclusão da aula 4

Chegamos ao final de nossa última aula e também ao final de nossa


disciplina. Vimos as diferentes identidades surdas e como elas se mesclam e se
formam, e que são constituídas por meio dos diferentes papéis sociais que nos
deparamos, dos discursos que nos transpassam, da família em que nascemos,
discursos religiosos, políticos, estéticos, de gênero, do correto e do padrão.
Dessa forma, não podemos falar de uma única identidade surda. Não é o
fato de o sujeito utilizar a língua de sinais que fará dele um indivíduo identificado
com a cultura visual. É todo um processo, não determinista, de construção
pessoal e social.

31
Atividade de Aprendizagem

Um bebê surdo nasce em uma família de ouvintes, sendo que todos os


familiares passam a aprender Libras para se comunicar e estimular essa
criança. Ao crescer, o surdo se interessa por fazer fonoaudiologia e aprender
a falar. Quer ser fluente no português e na Libras. Como você identifica a
identidade desse surdo?

32
Índice Remissivo
A construção da identidade no sujeito surdo .................................................. 26
(Constituição; diferenças; identificação)

A descoberta da surdez no contexto familiar ................................................. 08


(Assombro; Libras; surpresa)

A família e a surdez ....................................................................................... 07


(Comunicação; desenvolvimento da criança; língua de sinais)

Desenvolvimento cognitivo da criança surda ................................................. 14


(Aquisição da linguagem; desenvolvimento cognitivo; influência histórica)

Identidade surda em contexto ....................................................................... 27


(Complexidade; comunidade; possibilidades)

Paradigma Clínico e Paradigma Socioantropológico ..................................... 20


(Ausência do ouvir; estereótipos; perspectiva social)

Paradigmas da surdez ................................................................................... 20


(Abordagens e paradigmas; influência; sociedade)

33
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