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A peste negra em Florença

Digo, pois, que já havíamos chegado ao ano profícuo da Encarnação do


Filho de Deus, de 1348, quando na egrégia cidade de Florença, mais bela do
que qualquer outra cidade itálica, sobreveio a mortífera pestilência. Por iniciativa
dos corpos superiores, ou em consequência das nossas ações iníquas, esta
pestilência, lançada sobre os mortais por justa ira de Deus e para nossa
expiação, começara nas plagas orientais, alguns anos antes. Essa pestilência
privara aquelas plagas de inumerável quantidade de pessoas vivas. Sem
tréguas, passara de um lugar a outro, e expandira-se miseravelmente para o
Ocidente.

Naquela cidade de Florença, cuidado algum valeu, nem importou qualquer


providência humana. A praga, quase no início da primavera do ano referido,
começou, a despeito de tudo, a mostrar, horrivelmente, e de modo miraculoso,
os seus efeitos. De muita imundície a cidade se purificou, por obra de
funcionários para tal fim admitidos. Proibiu-se a entrada, nela, de qualquer
enfermo. Muitos conselhos se distribuíram, para a conservação do bom estado
sanitário. De nada valeram as súplicas humildes, feitas em grande número, ora
por pessoas devotas isoladas, ora por procissões humanas alinhadas, e ora por
outras formas dirigidas a Deus.

A peste não se comportou, em Florença, como se comportara no Oriente.


No Oriente, a saída do sangue, pelo nariz, fosse lá de quem fosse, constituía
sinal manifesto de morte inevitável. Em Florença, no começo, apareciam, tanto
nos homens como nas mulheres, seja na virilha, seja na axila, determinadas
inchações. Destas, algumas cresciam como maçãs; outras, como ovo; umas
cresciam mais; outras menos; o vulgo dava-lhes a denominação de bubões. Das
duas partes mencionadas do corpo, dentro em breve o citado tumor mortífero
passava a repontar e a surgir por toda parte. [...]

No condado, os trabalhadores míseros e pobres morriam. Caíam sem


vida, pelas vilas esparsas e pelos campos, juntamente com suas famílias, sem
qualquer auxilio de médicos, nem ajuda de servidor; morriam, não como homens
e sim como animais, pelas ruas, plantações, casas, de dia e de noite. Em
consequência os operários do campo, perturbados nos seus costumes, e como
que transformados em habitantes lascivos da cidade, não se preocupavam com
coisa alguma. Todos, como se esperassem o dia em que se veriam levados pela
morte, se esforçavam, com o máximo de diligência, a consumir os frutos que se
achavam presentes. Aconteceu, assim, que os bois, muares, as ovelhas, as
cabras, os porcos, as galinhas, e até os cães, passaram a vagar pelos campos
pelo seu bel-prazer, por se verem expulsos das casas dos respectivos donos.
Nos campos, as ferragens abandonadas não só não haviam sido recolhidas, mas
também nem sequer haviam sido ceifadas. [...]

Que mais se poderá a não ser que a crueldade do céu foi tanta que, entre
março e julho, mais de cem mil criaturas humanas se tem por certo que foram
tolhidas da vida, dentro dos muros da cidade de Florença? Nesse total se
incluem tanto os indivíduos levados pela força da pestífera enfermidade, como
os que, enfermos, foram mal-atendidos, ou que se viram abandonados às suas
contingências, por causa do medo que os sãos nutriam.

Antes da ocorrência do episódio mortífero, ninguém teria dito que tanta


gente houvesse dentro da cidade.

Giovanni Boccaccio. Decamerão. São Paulo:


Livraria Martins Editora. Pp. 35-6 e 41.

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