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A

RODA
De
OSHEIM
Também de Mark Lawrence

O Império Destruído
Prince of Thorns
King of Thorns
Emperor of Thorns

A Guerra da Rainha Vermelha


Prince of Fools
The Liar’s Key
A
RODA
DE
OSHEIM
Livro Três da Guerra da Rainha Vermelha

Mark Lawrence

Tradução
Dalton Caldas
Agradecimentos

Muito obrigado ao pessoal da HarperVoyager que fez tudo isso


acontecer e levou o livro até as mãos de vocês.
Agradeço especialmente a Jane Johnson por seu apoio
constante em tudo e sua edição valiosíssima.
Agnes Meszaros também foi de grande ajuda para levar este
livro aos fãs de Jalan e Snorri. Estou em dívida com ela pelas
gentilezas como leitura beta, revisão, vinho e chocolate.
Por fim, mais uma salva de aplausos para meu agente, Ian
Drury, e para a equipe da Sheil Land por todo seu trabalho
primoroso.
Nota do Autor

Para vocês que tiveram de esperar muito tempo por este livro, aqui
estão algumas recapitulações para o Livro 3, para vocês
refrescarem suas memórias. Assim, evito a estranheza de fazer os
personagens dizerem uns aos outros coisas que eles já sabem.
Aqui relembro apenas o que tem importância para a história a
seguir.

1. Jalan Kendeth, neto da Rainha vermelha, tem poucas


ambições. Ele quer voltar à capital de sua avó, ser rico e ficar
fora de perigo. Também adoraria assenhorear-se à frente de
seus irmãos mais velhos, Martus e Darin.

2. A vida ficou um pouco mais complicada ultimamente. Jalan


ainda deseja seu antigo amor, Lisa DeVeer, mas agora ela está
casada com seu melhor amigo. Além disso, ele tem uma dívida
gigantesca com o assassino e senhor do crime Maeres Allus, e
é procurado pelos grandes bancos de Florença por fraude.
Também jurou vingança a Edris Dean, o homem que matou sua
mãe e irmã. Sua irmã ainda estava no ventre de sua mãe, e a
espada necromante que Edris usou (que agora está em posse
de Jalan) a aprisionou no Inferno, pronta para retornar como
desnascida e servir ao Rei Morto. A irmã de Jalan tinha
potencial para ser uma feiticeira poderosa e será uma
desnascida muito perigosa – um desnascido com tamanha
potência requer a morte de um parente próximo para voltar ao
mundo dos vivos.

3. Jalan viajou do norte congelado até as colinas ardentes de


Florença. Ele começou sua viagem com os nórdicos Snorri e
Tuttugu dos Undoreth, e no caminho juntou-se a uma bruxa
nórdica chamada Kara e a Hennan, um menino de Osheim.
4. Jalan e Snorri estavam ligados a espíritos de trevas e de luz,
respectivamente: Aslaug e Baraqel. Durante a viagem, esses
vínculos se romperam.

5. Jalan possui a chave de Loki, um artefato que pode abrir


qualquer porta. Muitas pessoas desejam tê-la, principalmente o
Rei Morto, que poderia usá-la para surgir do Inferno.

6. Neste livro, uso tanto Inferno quanto Hel para descrever a parte
do além na qual nossos heróis se aventuram. Hel é como os
nórdicos a chamam. Inferno é seu nome na cristandade.

7. Tuttugu morreu em uma cadeia de Umbertide, torturado e


assassinado por Edris Dean.

8. Vimos Jalan, Snorri, Kara e Hennan pela última vez nas


profundezas da mina de sal onde vivia Kelem, o mago das
portas.

9. Kelem foi levado para o mundo das trevas por Aslaug.

10. Snorri atravessou a porta de Hel para salvar sua família. Jalan
disse que iria com ele, e deu a chave de Loki para Kara, para
que não caísse nas mãos do Rei Morto. A coragem de Jalan
enfraqueceu e ele não foi com Snorri. Ele roubou a chave de
Kara e no instante seguinte alguém do lado de Hel abriu a porta
e o puxou para dentro.

11. Mais considerações gerais: a avó de Jalan, Alica Kendeth, a


Rainha Vermelha, vem travando uma guerra secreta com a
Dama Azul e seus aliados há muitos anos. A Dama Azul é a
mão por trás do Rei Morto, e o necromante Edris Dean é um de
seus agentes.

12. Auxiliando a Rainha Vermelha estão seus irmãos gêmeos mais


velhos, a Irmã Silenciosa – que vê o futuro, mas nunca fala – e
seu irmão deficiente Garyus, que comanda seu próprio império
comercial.

13. A Guerra da Rainha Vermelha é sobre a mudança que os


Construtores fizeram na realidade mil anos antes – a mudança
que introduziu a magia no mundo, pouco antes da sociedade
anterior (nós, daqui a uns cinquenta anos) ser destruída em
uma guerra nuclear.

14. A mudança que os Construtores fizeram vem se acelerando


conforme as pessoas usam mais magia – por sua vez
permitindo que mais magia seja usada – um círculo vicioso que
está destruindo a realidade e levando ao fim de todas as coisas.

15. A Rainha Vermelha crê que o desastre pode ser evitado – ou


que pelo menos ela deva tentar. A Dama Azul quer acelerar o
fim, acreditando que ela e alguns poucos escolhidos possam
sobreviver e se tornar deuses no mundo que vier em seguida.

16. Dr. Raiz-Mestra parecia ser um dono de circo cuidando de seu


negócio, mas Jalan o viu nas memórias de sua avó sessenta
anos atrás, atuando como chefe de segurança do avô dela, e
praticamente com a mesma idade que tem agora...

17. A Roda de Osheim é uma região ao norte onde a realidade se


quebra e todos os horrores da imaginação de uma pessoa
tomam forma. Os estudos de Kara indicam que havia uma
grande máquina no centro dela, obra dos Construtores,
mecanismos misteriosos escondidos em um túnel circular
subterrâneo de muitos quilômetros de diâmetro. O papel exato
que ela desempenha no desastre que virá não está claro...
Dedicado a meu pai, Patrick.
Prólogo

Nas profundezas do deserto, entre dunas maiores que qualquer


torre de oração, os homens tornam-se minúsculos, menores que
formigas. Lá o sol arde, o vento sussurra, tudo está em movimento,
lento demais para os olhos, mas mais certo que a visão. O profeta
disse que a areia não é nem bondosa nem cruel, mas, naquela
fornalha do Sahar, é difícil não pensar que ela odeia você.
As costas de Tahnoon doíam e sua língua roçou seca no céu da
boca. Ele prosseguiu, curvado, balançando-se no ritmo de seu
camelo, com os olhos apertados contra a claridade, mesmo por trás
do tecido fino de seu turbante. Ele afastou o desconforto. Sua
coluna, sua sede, a dor da sela, nada disso importava. A caravana
atrás dele dependia dos olhos de Tahnoon, apenas disso. Se Alá,
abençoado seja seu nome, permitisse que ele visse com clareza,
então seu propósito foi cumprido.
E então Tahnoon seguiu em frente, observou e contemplou a
infinidade de areia e o imenso vazio daquilo, quilômetro após
quilômetro escaldante. Atrás dele vinha a caravana, serpenteando
nas profundezas das dunas onde as primeiras sombras se
formariam quando chegasse a noite. Ao redor da caravana, os
outros Ha’tari cavalgavam pelas dunas, direcionando sua vigilância
para fora, protegendo os delicados al’Effem com sua fé maculada.
Só os Ha’tari cumpriam os mandamentos em espírito, tanto quanto
em palavra. No deserto, esse rígido cumprimento era tudo que
mantinha um homem vivo. Outros podiam atravessar e sobreviver,
mas só o povo de Tahnoon vivia no Sahar, sempre a um poço seco
de distância da morte. Sempre por um triz em tudo. Puros. Os
escolhidos de Alá.
Tahnoon inclinou seu camelo encosta acima. Os al’Effem às
vezes davam nomes às suas feras. Outra fraqueza de tribos que
não nasceram no deserto. Além disso, eles pulavam a segunda e a
quarta oração todos os dias, negando a Alá seu devido valor.
O vento aumentou, quente e seco, fazendo a areia chiar ao
removê-la da crista esculpida da duna. Chegando ao topo do aclive,
Tahnoon olhou para baixo, para mais um vale vazio e castigado pelo
sol. Ele balançou a cabeça e seus pensamentos voltaram por seu
rastro até a caravana. Ele olhou para trás, para o ressalto curvo da
próxima duna. Atrás dela, seus encarregados se esforçavam pelo
caminho que ele havia lhes deixado. Esses al’Effem específicos
estavam em seus cuidados já fazia vinte dias. Em mais dois ele os
levaria à cidade. Mais dois dias para aguentar o sheik e sua família
até eles pararem de enchê-lo com seus modos decadentes e
ímpios. As filhas eram as piores. Caminhando atrás dos camelos de
seu pai, elas não usavam a kandura de doze metros dos Ha’tari,
mas sim uma abominação de nove metros, enrolada tão justa que
suas dobras mal escondiam a mulher por baixo.
A curva da duna chamou sua atenção e por um segundo ele
imaginou um quadril feminino. Ele afastou a visão da cabeça e teria
cuspido, se sua boca não estivesse tão seca.
“Deus, perdoe-me pelo meu pecado.”
Dois dias mais. Dois longos dias.
O vento passou de gemido a uivo de supetão, quase
derrubando Tahnoon de sua sela. Seu camelo resmungou de
reprovação, tentando virar a cabeça contra as pinicadas da areia.
Tahnoon não virou a cabeça. Apenas vinte metros à sua frente e um
metro e oitenta acima da duna, o ar brilhava como se fosse uma
miragem, mas diferente de todas as que Tahnoon já tinha visto em
quarenta anos de secura. O espaço vazio ondulou como se fosse
prata líquida e em seguida se abriu, apresentando vislumbres de
algum lugar do outro lado, um templo de pedra iluminado por uma
luz alaranjada e morta que despertava todas as dores que os Ha’tari
vinham ignorando, transformando cada uma delas em um
sofrimento latejante. Os lábios de Tahnoon recuaram, como se um
gosto azedo lhe enchesse a boca. Ele lutou para controlar sua
montaria, pois o animal sentiu aquele mesmo medo.
“Quê?” Um sussurro para si mesmo, perdido embaixo dos
resmungos do camelo.
Revelada em tiras esfarrapadas, através de fendas no tecido do
mundo, Tahnoon viu uma mulher nua, o corpo esculpido por todos
os desejos que um homem poderia ter, cada curva contornada pela
sombra e acariciada por aquela mesma luz morta. A voluptuosidade
da mulher prendeu os olhos de Tahnoon por dez longos batimentos
cardíacos, antes de seu olhar finalmente vagar até o rosto dela e o
choque lhe derrubar. Mesmo ao cair no chão, a cimitarra continuou
em sua mão. O demônio fixara os olhos sobre ele, vermelhos como
sangue, a boca aberta, exibindo presas como as de uma dúzia de
najas gigantes.
Tahnoon correu de volta para o topo da duna. Sua montaria
apavorada havia ido embora, com os sons das patas diminuindo
atrás dele enquanto fugia. Ele chegou à crista em tempo de ver o
véu rasgado entre ele e o templo bem aberto, como se um invasor
tivesse cortado a lateral de uma tenda. O súcubo estava totalmente
à mostra e, diante dela, agora saindo daquele lugar e atravessando
o ar partido, estava um homem, seminu. O homem bateu com força
na areia, deu um salto para cima em um instante e esticou-se para
cima. O súcubo foi atrás dele, tateando até a fresta por onde ele
entrara de cabeça. Ao esticar os braços na direção dele, com garras
feito agulhas que saíam das pontas dos dedos, o homem deu um
soco para cima, com alguma coisa preta presa a seu punho. Com
um estalo, tudo desapareceu. O buraco aberto para outro mundo –
desapareceu. O demônio de olhos escarlate e seios perfeitos –
desapareceu. O templo antigo desapareceu, e a luz morta daquele
lugar terrível novamente se fechou por trás da coisa tênue que nos
separa do pesadelo.
“Caralho! Caralho! Caralho!” O homem começou a saltar,
descalço, de um pé para o outro. “Quente! Quente! Quente!” Um
infiel, alto, muito branco, com os cabelos dourados do norte distante,
do outro lado do mar. “Caralho. Quente. Caralho. Quente.”
Colocando uma bota que deve ter caído consigo, ele caiu,
queimando as costas nuas na areia escaldante e saltando de pé
outra vez. “Caralho! Caralho! Caralho!” O homem conseguiu puxar
sua outra bota antes de cair novamente e desaparecer rolando do
outro lado da duna gritando obscenidades.
Tahnoon se levantou lentamente, enfiando sua cimitarra de
volta na bainha curva. Os xingamentos do homem diminuíram ao
longe. Homem? Ou demônio? Havia escapado do inferno, portanto,
demônio. Mas suas palavras eram na língua do velho império, com
o sotaque forte dos nórdicos, colocando ângulos desconfortáveis em
cada sílaba.
O Ha’tari piscou e ali, gravado de verde sobre vermelho no
interior das pálpebras, o súcubo se esticou em sua direção. Piscou
novamente, uma, duas, três vezes. A imagem dela permaneceu,
sedutora e mortal. Com um suspiro, Tahnoon começou a descer
atrás do infiel barulhento, prometendo a si mesmo nunca mais se
preocupar com as kanduras escandalosas de nove metros das
al’Effem.
1

Tudo que eu precisava fazer era caminhar pela extensão do templo


e não ser seduzido para sair do trajeto. Isso levaria duzentos
passos, no máximo, e eu poderia sair do Inferno pelo portão dos
juízes e estar em qualquer lugar maldito que bem quisesse. E o
lugar que eu desejaria ir seria o palácio de Vermelhão.
“Merda.” Apoiei as mãos para me levantar da areia ardente. Ela
cobria meus lábios, enchia meus olhos com mil grãozinhos ásperos
e até parecia escorrer de meus ouvidos quando inclinava a cabeça.
Eu me agachei, cuspindo, apertando os olhos contra a claridade do
dia. O sol ardia com uma fúria tão despropositada que quase dava
para sentir minha pele murchando. “Bosta.”
Ela realmente era linda, no entanto. A parte de minha mente
que sabia que aquilo era uma armadilha só agora conseguiu sair
debaixo das outras partes, mais lascivas, e começou a gritar “eu
avisei!”.
“Droga.” Fiquei de pé. Uma enorme duna de areia curvava-se
bem íngreme à minha frente, mais alta do que parecia razoável e
quentíssima. “Um maldito deserto. Ótimo, maravilha.”
Na verdade, depois das terras mortas, nem um deserto parecia
tão ruim. Claro que era quente demais, ávido para queimar toda
pele que tocasse a areia e propenso a me matar dentro de uma
hora, se eu não encontrasse água. Mas, tirando tudo isso, ele
estava vivo. Sim, não havia nenhum vestígio de vida aqui, mas esse
lugar não foi feito com malícia e desespero, o chão não lhe sugava a
vida, a alegria e a esperança, como um mata-borrão absorve a tinta.
Olhei para o azul inacreditável do céu. Na realidade era um azul
desbotado que parecia ter ficado tempo demais no sol, mas após o
céu morto e imutável, com sua luz laranja e monótona, todas as
cores pareciam boas aos meus olhos: vivas, vibrantes, intensas.
Estiquei os braços. “Caramba, como é bom estar vivo!”
“Demônio.” Uma voz atrás de mim.
Eu me virei lentamente, mantendo os braços abertos, as mãos
vazias e abertas, a chave enfiada no cinto desamarrado que mal
segurava minhas calças.
Um homem de alguma tribo estava ali, de túnica preta e espada
curva apontada para mim, com os rastros de sua passagem duna
abaixo gravados na ladeira atrás dele. Não consegui ver o rosto dele
por trás desses véus que eles usam, mas ele não parecia feliz em
me ver.
“As-salamu alaikum”, disse a ele. Isso é tudo do idioma pagão
que aprendi durante o ano que passei na cidade desértica de
Hamada. É a versão local de “olá”.
“Você.” Ele fez um gesto brusco para cima com sua espada.
“Do céu!”
Eu virei as palmas das mãos para cima e dei de ombros. O que
eu poderia lhe dizer? Além do mais, qualquer mentira boa seria
desperdiçada com aquele homem, se ele entendesse a língua do
Império tão mal quanto falava.
Ele me olhou de cima a baixo, e de alguma maneira seu véu
não foi uma barreira para demonstrar sua reprovação.
“Ha’tari?” perguntei. Em Hamada, os moradores dependiam de
mercenários nascidos no deserto para transportarem-nos por ali.
Tinha quase certeza de que se chamavam Ha’tari.
O homem não disse nada, apenas me observou, com a lâmina
a postos. Por fim ele fez um gesto com a espada para cima da duna
de onde havia descido. “Vá.”
Assenti e comecei a trilhar de volta o rastro deixado por ele,
agradecido por ele ter decidido não me furar ali mesmo e me deixar
sangrando. A verdade é que ele obviamente não precisava da
espada para me matar. Só me deixar para trás já seria uma
sentença de morte.

Dunas de areia são muito mais difíceis de escalar do que qualquer


morro com o dobro do tamanho. Elas sugam seus pés para baixo,
roubando a energia de cada passo, de modo que você já está
ofegante antes de escalar o equivalente à sua própria altura. Após
dez passos eu estava com sede; na metade do caminho, ressecado
e tonto. Mantive a cabeça baixa e me esforcei para subir, tentando
não pensar no estrago que o sol devia estar fazendo nas minhas
costas.
Eu tinha escapado do súcubo por sorte, não por discernimento.
Foi preciso enterrar meu juízo bem fundo para me permitir ser
conduzido por ela, de qualquer modo. É verdade, ela foi a primeira
coisa que vi em todas as terras mortas que parecia viva – mais que
isso, ela era um sonho de carne e osso, prometendo satisfazer
todos os desejos de um homem. Lisa DeVeer. Um truque sujo.
Mesmo assim, não posso dizer que não tenha sido alertado.
Quando ela me puxou em seus braços e seu sorriso se abriu em
uma boca mais larga que a de uma hiena, cheia de presas, eu só
fiquei meio surpreso.
De alguma maneira consegui me desvencilhar, perdendo minha
camisa nesse processo, mas ela teria vindo para cima de mim
rapidamente, se eu não tivesse visto as paredes ondularem. Então
eu soube que os véus eram muito finos ali, muito finos mesmo. A
chave os abrira para mim e com um salto eu os atravessei. Não
sabia o que estava à minha espera, certamente nada de bom, mas
provavelmente teria menos dentes que minha nova amiga.
Snorri tinha me dito que os véus ficavam mais finos onde o
maior número de pessoas estivesse morrendo. Guerras, pragas,
execuções em massa... qualquer lugar onde almas estavam sendo
separadas de corpos em grande quantidade e precisavam passar
para as terras mortas. Portanto, ver que estava em um deserto
vazio, onde ninguém estava propenso a morrer, além de mim, foi
uma surpresa.
Cada parte do mundo corresponde a alguma parte das terras
mortas – onde quer que aconteça um desastre, a barreira entre os
dois lugares desvanece. Dizem que no Dia dos Mil Sóis tanta gente
morreu, em tantos lugares ao mesmo tempo, que o véu entre a vida
e a morte se rompeu e nunca mais se restabeleceu
adequadamente. Os necromantes exploram essa fraqueza desde
então.
“Lá!” A voz do tribal me trouxe de volta a mim e percebi que
havíamos chegado ao topo da duna. Acompanhando a linha de sua
espada vi, no vale lá embaixo, entre a nossa crista e a próxima, a
primeira dúzia de camelos do que eu esperava ser uma grande
caravana.
“Alá seja louvado!” Dei ao pagão meu sorriso mais largo. Afinal,
era melhor não contrariar.

Outros Ha’tari chegaram até nós antes de alcançarmos a caravana,


todos de túnica preta, um deles levando um camelo perdido. Meu
captor, ou salvador, montou no bicho e um de seus companheiros
lhe entregou as rédeas. Tive de deslizar duna abaixo a pé.
Quando chegamos à caravana, dava para vê-la por inteiro, com
pelo menos cem camelos, a maioria carregada de mercadorias,
fardos enrolados em pano e em pilhas altas em volta das corcovas
dos animais, grandes frascos de armazenamento pendurados de
cada lado, com as bases cônicas quase batendo na areia. Mais ou
menos vinte camelos tinham homens montados, de túnicas de cores
variadas, branca, azul claro ou xadrez escuro, e mais uma dúzia de
pagãos seguiam a pé, envoltos em montes de panos pretos e
supostamente sufocando. Um punhado de ovelhas magrelas se
arrastava atrás, o que era uma extravagância, considerando-se
quanto devia custar para mantê-las hidratadas.
Fiquei de pé, queimando debaixo do sol, enquanto dois Ha’tari
interceptavam o trio de cameleiros vindos da caravana. Outro do
bando deles me desarmou, pegando a faca e a espada. Após um
minuto ou dois gesticulando e fazendo ameaças de morte, ou
possivelmente argumentando racionalmente – as duas coisas
tendem a soar iguais no idioma do deserto – os cinco retornaram,
com um de túnica branca no meio, um de túnica xadrez de cada
lado e os Ha’tari flanqueando.
Os três novatos tinham o rosto à mostra, escurecidos pelo sol,
nariz adunco, olhos como pedras pretas. Supus que eram parentes,
talvez um pai e seus filhos.
“Tahnoon me disse que você é um demônio, e que devemos
matá-lo à moda antiga, para evitar um desastre,” disse o pai, com
lábios finos e cruéis dentro de uma barba curta e branca.
“Príncipe Jalan Kendeth de Marcha Vermelha ao seu dispor!”
Eu me curvei até a cintura. Gentileza não custa nada, o que faz dela
o presente perfeito quando se é tão pão-duro quanto eu. “E na
verdade sou um anjo da salvação. Deve me levar com o senhor.”
Testei meu sorriso com ele. Não estava funcionando recentemente,
mas era praticamente tudo que eu tinha.
“Um príncipe?” O homem sorriu de volta. “Maravilha.” De
alguma maneira, um movimento de seus lábios o transformou. As
pedras pretas de seus olhos brilharam e se tornaram quase
bondosas. Até os rapazes de cada lado pararam de fazer cara feia.
“Venha, jantará conosco!” Ele bateu as mãos e gritou alguma coisa
para o filho mais velho, com a voz tão má que eu acreditaria que
acabara de mandar estripar a si mesmo. O filho saiu montado com
pressa. “Sou o sheik Malik al’Hameed. Meus meninos, Jahmeen,”
ele acenou para o filho ao lado dele, “e Mahood,” apontou para o
homem que se afastava.
“Encantado.” Curvei-me novamente. “Meu pai é...”
“Tahnoon disse que caiu do céu, perseguido por um demônio-
puta!” O sheik sorriu para o filho. “Quando um Ha’tari cai de seu
camelo, há sempre um demônio ou um djinn embaixo – um povo
orgulhoso. Muito orgulhoso.”
Eu ri com ele, principalmente de alívio: estava prestes a me
declarar filho de um cardeal. Talvez eu já estivesse com insolação.
Mahood voltou com um camelo para mim. Não posso dizer que
goste desses bichos, mas montar talvez seja meu único talento
verdadeiro, e já havia passado tempo suficiente me equilibrando nas
costas de camelos para dominar o básico. Subi na sela com
bastante facilidade e fiz a criatura sair atrás do sheik Malik, que foi
na frente. Supus que as palavras que ele murmurou aos filhos
fossem de aprovação.
“Vamos acampar.” O sheik ergueu o braço quando nos
juntamos aos primeiros do bando. Ele puxou fôlego para gritar a
ordem.
“Ai, Jesus!” O pânico fez as palavras saírem mais alto do que o
pretendido. Prossegui, esperando que o “Jesus” passasse
despercebido. A chave para fazer um homem mudar de ideia é fazer
isso antes que ele anuncie seu plano. “Meu senhor al’Hameed,
precisamos seguir em frente. Algo terrível vai acontecer aqui, muito
em breve!” Se os véus não haviam enfraquecido por causa de
algum massacre em andamento, isso só podia significar uma coisa.
Algo muito pior iria acontecer e as paredes que dividem a vida e a
morte estavam desabando por antecipação...
O sheik se virou na minha direção, novamente com os olhos de
pedra, e seus filhos se retesaram como se eu tivesse feito uma
ofensa grave ao interrompê-lo.
“Meu senhor, seu homem Tahnoon acertou metade da história.
Não sou nenhum demônio, mas realmente caí do céu. Algo terrível
irá acontecer aqui em breve e precisamos nos afastar o máximo
possível. Juro pela minha honra que isso é verdade. Talvez eu tenha
sido enviado para cá para salvá-lo, e o senhor tenha sido enviado
para cá para me salvar. Sem o outro, com certeza nenhum de nós
sobreviveria.”
Sheik Malik estreitou os olhos para mim, exibindo pés-de-
galinha profundos, pois o sol não deixa lugar para a idade se
esconder. “Os Ha’tari são um povo simples, príncipe Jalan, e
supersticioso. Meu reino fica ao norte e chega até o litoral. Estudei
na Mathema e não devo obediência a ninguém em toda Liba, a não
ser ao califa. Não me tome por um tolo.”
O medo que estava me agarrando pelas bolas apertou ainda
mais. Eu já tinha visto a morte em todas as suas formas horríveis e
escapado com muito custo para estar aqui. Não queria me ver de
volta às terras mortas dentro de uma hora, desta vez como apenas
mais uma alma desprendida do corpo e indefesa contra os terrores
que existem lá. “Olhe para mim, senhor al’Hameed.” Abri os braços
e olhei para minha barriga avermelhada. “Estamos no meio do
deserto. Passei menos de quinze minutos aqui e minha pele está
queimando. Em mais uma hora, criará bolhas e irá descascar. Não
tenho túnicas, nem camelo, nem água. Como é que eu poderia ter
chegado aqui? Eu juro, meu senhor, pela honra de minha casa, se
não partirmos imediatamente, o mais rápido possível, iremos todos
morrer.”
O sheik olhou para mim como se me visse pela primeira vez.
Um longo minuto de silêncio se passou, interrompido apenas pelo
chiado da areia e os roncos dos camelos. Os homens à nossa volta
observaram, preparados para agir. “Arrume uma túnica para o
príncipe, Mahood.” Ele ergueu o braço novamente e gritou uma
ordem. “Seguiremos!”

A fuga prometida se mostrou bem mais vagarosa do que eu


gostaria. O sheik discutiu assuntos com o chefe dos Ha’tari e nós
subimos uma duna, aparentemente em um trajeto perpendicular ao
original. O ponto alto da primeira hora foi beber água. Um prazer
indescritível. Água é vida, e nas terras áridas dos mortos eu já havia
começado a me sentir quase morto. Derramar aquela vida
maravilhosa e molhada em minha boca foi um renascimento,
provavelmente tão barulhento e difícil quanto o primeiro,
considerando quantos homens foram precisos para me arrancar o
jarro de água.
Mais uma hora passou. Foi preciso todo o autocontrole que eu
tinha para não meter os calcanhares no bicho e sair fugindo em
disparada. Eu tinha participado de corridas de camelo durante
minha temporada em Hamada. Não era o melhor, mas tinha boas
probabilidades, sendo estrangeiro. Estar em um camelo galopante é
bastante semelhante a sexo energético com uma mulher
incrivelmente forte e muito feia. Agora era tudo que eu queria, mas o
deserto é uma maratona, não corrida de velocidade. Os camelos
fortemente carregados ficariam exaustos em menos de um
quilômetro, menos ainda se tivessem de carregar os andadores, e
embora o sheik tivesse sido instigado a agir pela minha história, ele
claramente achava que a possibilidade de eu ser louco era maior
que a vantagem que ganharia ao deixar suas mercadorias para trás
nas dunas.
“Para onde estão indo, senhor al’Hameed?” Eu estava montado
ao lado dele, perto da frente da coluna, precedido por seus dois
filhos mais velhos. Três outros herdeiros vinham mais para trás.
“Estávamos indo para Hamada e ainda chegaremos lá, embora
este não seja o caminho direto. Pretendia passar esta noite no
Oásis de Palmeiras e Anjos. As tribos estão se reunindo lá, um
encontro de sheiks antes de nossas delegações se apresentarem ao
califa. Nós chegamos a um acordo no deserto antes de entrar na
cidade. Ibn Fayed recebe seus vassalos uma vez por ano, e é
melhor falar ao trono com uma só voz, para que nossos pedidos
sejam ouvidos com mais clareza.”
“E ainda estamos indo para o oásis?”
O sheik fungou catarro, um costume que os locais parecem ter
aprendido com os camelos. “Às vezes Alá nos manda mensagens.
Às vezes estão escritas na areia, e precisa ser rápido para lê-las. Às
vezes está no voo dos pássaros, ou nos pingos de sangue de uma
ovelha, e é preciso ser inteligente para compreendê-las. Às vezes
um infiel cai em cima de você no deserto, e precisaria ser um tolo
para não lhe dar ouvidos.” Ele olhou em minha direção, com os
lábios apertados em uma linha implacável. “O oásis fica cinco
quilômetros a oeste do ponto onde o encontramos. Hamada fica
dois dias ao sul.”
Muitos homens teriam escolhido levar meu alerta até o oásis.
Senti um momento de grande alívio por Malik al’Hameed não ser um
deles, senão neste momento, em vez de estar me afastando
diretamente de onde havia saído, eu estaria a cinco quilômetros de
distância, tentando convencer uma dúzia de sheiks a abandonarem
seu oásis.
“E se todos eles morrerem?”
“Ibn Fayed ainda ouvirá uma única voz.” O sheik pressionou
seu camelo adiante. “A minha.”

Um quilômetro e meio depois eu me dei conta que, apesar de


Hamada ficar dois dias ao sul, nós na verdade estávamos rumando
para o leste. Eu me aproximei novamente do sheik, afastando um
dos filhos.
“Não vamos mais para Hamada?”
“Tahnoon me disse que há um rio ao leste que irá nos levar em
segurança.”
Virei-me na sela e olhei fixamente para o sheik. “Um rio?”
Ele deu de ombros. “Um lugar onde o tempo flui de maneira
diferente. O mundo está maluco, meu amigo.” Ele levantou a mão
em direção ao sol. “Homens caem do céu. Os mortos estão
inquietos. E no deserto há fraturas onde o tempo foge de você, ou
com você.” Uma encolhida de ombros. “A brecha entre nós e o que
quer que seja esse perigo seu irá crescer mais rapidamente se
rastejarmos por aqui do que se corrermos em qualquer outra
direção.”

Eu já tinha ouvido falar nessas coisas antes, embora nunca as


tivesse visto. Nas encostas Bremmer, em Ost Reich, há bolhas de
lentidão temporal que podem prender uma pessoa e soltá-la após
uma semana, um ano ou um século em um mundo envelhecido,
enquanto ele simplesmente piscou. Existem outros lugares onde
alguém pode envelhecer e descobrir que, no resto da cristandade,
apenas um dia se passou.

Seguimos em frente e talvez tenhamos encontrado esse suposto rio


do tempo, mas não havia muito para mostrar. Nossos pés não
correram, nossos passos não devoraram sete metros de cada vez.
Tudo o que posso dizer é que entardeceu muito mais rápido do que
o esperado e a noite caiu como uma pedra.
Devo ter me virado na sela umas cem vezes. Se eu fosse a
mulher de Ló, a estátua de sal ficaria na porta de Sodoma. Eu não
sabia o que estava procurando, demônios fervilhando nas dunas,
uma praga de escaravelhos carnívoros... Lembrei dos Vikings
Vermelhos nos perseguindo até Osheim, no que parecia uma
eternidade atrás, e quase esperei que eles apontassem no alto de
uma duna, com machados em riste. Mas não importa o que o medo
pintasse ali, o horizonte permaneceu teimosamente livre de
ameaças. Tudo o que via era a retaguarda dos Ha’tari, reforçada a
pedido do sheik.
O sheik nos manteve em movimento noite adentro, até que
finalmente o ronco dos bichos o convenceu a fazer uma parada. Eu
me recostei, bebendo água de um odre, enquanto o pessoal do
sheik montava acampamento de maneira econômica e prática.
Grandes tendas foram desenroladas dos lombos dos camelos,
linhas amarradas a estacas chatas e compridas o suficiente para se
firmarem na areia e fogueiras feitas com estrume de camelo, que
era coletado e transportado na viagem. Lampiões foram acesos e
posicionados debaixo dos toldos das tendas, lampiões de prata para
a tenda do sheik, queimando óleo de pedra. Caldeirões foram
descarregados, frascos abertos, até um pequeno forno de ferro
montado sobre seus próprios queimadores de óleo. Aromas de
temperos encheram o ar, de certa maneira ainda mais estranhos do
que as dunas e as estrelas esquisitas acima de nós.
“Estão abatendo as ovelhas.” Mahood chegou atrás de mim,
fazendo eu me assustar. “Papai as trouxe por todo esse caminho
para impressionar o sheik Kahleed e os outros no encontro. Mande
antes, eu falei, mande entregar de Hamada. Mas não, ele queria
banquetear Kahleed com carne de Hameed, disse que ele
perceberia qualquer enganação. Carneiro curtido pelo deserto é
fibroso, duro, mas tem um sabor único.” Ele observou os Ha’tari
enquanto falava. Eles estavam patrulhando a pé agora, nas areias
enluaradas, chamando uns aos outros de vez em quando com gritos
suaves e melodiosos. “Papai vai querer lhe perguntar de onde veio e
quem lhe deu essa mensagem de desgraça, mas esta é uma
conversa para depois da refeição, entende?”
“Entendo.” Pelo menos aquilo me dava tempo de inventar
mentiras apropriadas. Se dissesse a verdade sobre os lugares onde
havia estado e as coisas que havia visto... bem, isso lhes reviraria
os estômagos e eles iriam se arrepender de ter comido.
Mahood e outro filho se sentaram ao meu lado e começaram a
fumar, repartindo um único cachimbo longo, lindamente esculpido
em espuma-do-mar, no qual pareciam estar queimando lixo, a julgar
pelo fedor. Eu o afastei com um aceno quando me ofereceram. Após
meia hora relaxei e me deitei, ouvindo os Ha’tari ao longe e olhando
para o brilho das estrelas. Não é preciso passar muito tempo no
Inferno para sua definição de “boa companhia” se reduzir a “não
morto”. Pela primeira vez em muito tempo eu me senti confortável.
Com o tempo, o bando em volta das panelas diminuiu e uma fila
de carregadores levou os produtos de todo aquele trabalho para a
tenda maior. Um gongo soou e os irmãos se levantaram ao meu
redor. “Amanhã veremos Hamada. Hoje nos regalamos.” Mahood,
magro e melancólico, esvaziou seu cachimbo na areia. “Deixei de
ver muitos amigos antigos no encontro do oásis esta noite, príncipe
Jalan. Meu irmão Jahmeen iria conhecer sua prometida hoje.
Apesar de achar que ele esteja bem contente de atrasar esse
encontro, pelo menos por um ou dois dias. Vamos esperar, para o
seu bem, que seu aviso prove ter fundamento, senão meu pai vai
perder prestígio. Vamos esperar, para o bem de nossos irmãos na
areia, que você esteja errado.” Com isso, ele saiu e eu fui atrás, até
a tenda iluminada.
Puxei as abas para entrar, que ainda balançavam após Mahood
passar, e fiquei parado, ainda curvado e momentaneamente cego
pela luz de uns vinte lampiões cobertos. Um tapete amplo e
suntuoso de seda trançada, em padronagem brilhante vermelha e
verde, cobria a areia, com tapetes menores onde ficariam a mesa e
as cadeiras. A família de Sheik al’Hameed e seus serventes se
sentavam em volta de um tapete central cheio de bandejas de prata,
todos com montes de comida: arrozes aromáticos amarelo, branco e
verde; damascos e azeitonas em tigelas; tiras de carne de camelo
marinada, seca e doce, assadas em fogo aberto e polvilhada com
pólen de rosa-do-deserto; e mais uma dúzia de outros pratos que
apresentavam mistérios culinários.
“Sente-se, príncipe, sente-se!” O sheik apontou para o meu
lugar.
Levei um susto quando me dei conta pela primeira vez que
metade das pessoas sentadas em volta do banquete eram
mulheres. Jovens e lindas mulheres, aliás, vestidas com
quantidades imodestas de seda. Impressionante também era a
quantidade de ouro que enchia os pulsos elegantes em pulseiras
cintilantes, e brincos elaborados caíam em cascatas de pétalas até
os ombros expostos ou atrás das clavículas.
“Sheik... eu não sabia que tinha...” Filhas? Esposas? Fechei
bem minha boca ignorante e me sentei de pernas cruzadas onde ele
havia indicado, tentando não encostar os cotovelos nas beldades de
cabelos escuros nos meus dois lados, cada uma delas tão tentadora
e potencialmente tão fatal quanto o súcubo.
“Não viu minhas irmãs andando atrás de nós?” disse um dos
irmãos mais novos, cujo nome eu não guardara, claramente se
divertindo.
Meu queixo caiu. Aquelas eram mulheres? Elas podiam ter
quatro braços e chifres debaixo de todos aqueles panos dobrados, e
eu continuaria sem saber. Sensato, não deixei palavras escaparem
de minha boca aberta.
“Nós nos cobrimos e caminhamos para satisfazer os Ha’tari”
disse a garota à minha esquerda, alta, magra, elegante e que não
devia ter mais de dezoito anos. “Eles se chocam com facilidade,
esses homens do deserto. Se fossem ao litoral eles ficariam cegos,
sem saber onde repousar os olhos... pobrezinhos. Até Hamada seria
demais para eles.”
“Lutadores destemidos, no entanto,” disse a mulher à minha
esquerda, talvez da minha idade. “Sem eles, cruzar as areias seria
uma grande provação. Até no deserto há perigos.”
Em frente a nós, duas outras irmãs fizeram alguma observação,
olhando na minha direção. A mais velha das duas riu a plenos
pulmões. Olhei desesperadamente para seus olhos escurecidos
com kajal, lutando para não baixar o olhar para o balanço de seus
seios fartos debaixo da gaze de seda bordada com lantejoulas. Eu
sabia que a realeza libana, quer fossem os príncipes onipresentes,
os sheiks mais raros ou o único califa, tinha a reputação de proteger
as mulheres de sua família com um zelo mitológico e de alimentar
rixas durante séculos por causa de um mero olhar cobiçoso. O que
seriam capazes de fazer por uma donzela deflorada cabia aos
horrores da imaginação.
Eu me perguntei se o sheik me via como uma oportunidade de
casamento, por ter me sentado no meio de suas filhas. “Estou muito
agradecido por ter sido encontrado pelos Ha’tari,” falei, fixando o
olhar na comida.
“Minhas filhas Lila, Mina, Tarelle e Danelle.” O sheik sorriu
indulgente, apontando para cada uma delas.
“Prazer.” Imaginei de que maneiras elas me dariam prazer.
Como se lesse minha mente, o sheik ergueu seu cálice. “Não
somos tão rígidos em nossa fé quanto os Ha’tari, mas as leis que
seguimos são à risca. Você é um convidado bem-vindo, príncipe.
Mas, a menos que fique noivo de uma de minhas filhas, não encoste
nelas nenhum dedo que queira manter.”
Enrubesci e comecei a vociferar. “Senhor! Um príncipe de
Marcha Vermelha jamais...”
“Toque mais que um dedo nela e eu a presentearei com seus
testículos, banhados a ouro, para usar como brincos.” Ele sorriu
como se estivéssemos falando sobre o tempo. “Hora de comer!”
Comida! Pelo menos havia a comida. Eu comeria a ponto de
ficar cheio demais até para o menor dos pensamentos lascivos. E
ficaria feliz. Nas terras mortas você passa fome. Do primeiro
instante em que entra naquela luz morta até o momento em sai dela,
você passa fome.
O sheik conduziu as orações pagãs, ditas na língua do deserto.
Demorou tempo para caramba, com minha barriga roncando o
tempo todo e a boca salivando para o banquete à minha frente. Por
fim, todos se uniram por uma ou duas frases e terminaram. Todas as
cabeças se voltaram para as abas da tenda, com expectativa.
Dois criados mais velhos entraram com o prato principal em
bandejas de prata, quadradas, ao estilo araby. Sentado no chão, eu
só conseguia ver o monte de comida acima dos pratos, com certeza
carneiro assado, considerando o abate mais cedo. Obrigado, Deus!
Minha barriga rugiu feito um leão, atraindo acenos de aprovação de
Sheik Malik e seu filho mais velho.
O criado pôs o prato à minha frente e seguiu adiante. A cabeça
esfolada de uma ovelha olhava para mim, fumegando de leve, os
olhos fervidos com uma expressão divertida, ou talvez fosse apenas
o sorriso naquela boca sem lábios. Uma língua escura se enrolava
embaixo de uma fileira de dentes surpreendentemente retos.
“Ah.” Fechei minha própria boca com um estalo e olhei para
Tarelle à minha esquerda, que havia acabado de receber sua
própria cabeça decapitada.
Ela me deu um sorriso doce. “Maravilhoso, não é, príncipe
Jalan? Um banquete como este no deserto. Um gostinho de casa,
após tantos quilômetros árduos.”
Ouvi dizer que os libanos podiam ficar quase tão furiosos se
você não tocasse na comida deles quanto se tocasse suas
mulheres. Voltei o olhar à cabeça fumegante, o caldo escorrendo em
volta, e pensei na distância que estava de Hamada e os poucos
metros que conseguiria percorrer sem água.
Peguei o arroz mais próximo e comecei a encher meu prato.
Talvez pudesse dar àquela pobre criatura um enterro decente sem
ninguém perceber. Infelizmente, eu era a curiosidade deste
banquete de família e a maioria dos olhos estavam voltados para
mim. Até as doze ovelhas pareciam interessadas.
“Está com fome, príncipe!” disse Danelle à direita, com o joelho
roçando no meu cada vez que ela se esticava para pegar um
damasco ou uma azeitona para pôr em seu prato.
“Muito,” disse com seriedade, jogando arroz por cima da minha
monstruosidade. Aquele troço tinha tão pouca carne que era
praticamente um crânio sorridente. A presença de uma colher
claramente curva entre os talheres chatos sugeria que se esperava
uma bela escavação. Pensei se não era questão de etiqueta usar a
mesma colher para os olhos que se usaria para o cérebro...
“Papai disse que os Ha’tari acham que caiu do céu,” disse Lila
do outro lado.
“Com uma mulher-demônio vindo atrás!” riu Mina. A mais jovem
delas, silenciada por um olhar sério do irmão mais velho Mahood.
“Bem,” falei. “Eu...”
Alguma coisa se mexeu debaixo de minha pilha de arroz.
“Sim?” disse Tarelle ao meu lado, o joelho tocando o meu, nua
por baixo das sedas finas.
“Eu certamente...”
Diacho! Lá estava outra vez, alguma coisa se contorcendo
como uma serpente na lama. “Eu... o sheik disse que seu soldado
caiu do camelo.”
Mina era uma coisinha delicada, mas desmedidamente linda,
talvez ainda nem tivesse dezesseis anos. “Os Ha’tari não são
nossos. Nós somos deles, agora que estão com o dinheiro de Papai.
Deles até sermos entregues em Hamada.”
“Mas é verdade,” disse Danelle, com a voz sedutoramente
rouca ao meu ouvido. “Os Ha’tari prefeririam dizer que a lua se
balançou baixo demais e os derrubou do que admitir que caíram.”
Risos gerais. A língua roxa do carneiro apareceu através do
meu enterro, enrolando-se no meio do arroz aromático amarelo.
Espetei-a com meu garfo, prendendo-a ao prato.
O movimento repentino chamou a atenção. “A língua é minha
parte favorita,” disse Mina.
“O cérebro é divino,” declarou Sheik al’Hameed da cabeceira.
“Minhas meninas fazem um purê com damascos, salsinha e
pimenta, e depois colocam de volta no crânio.” Ele beijou as pontas
dos dedos.
Enquanto ele tinha a atenção dos filhos, rapidamente cortei a
língua e, serrando freneticamente, a reduzi a seis pedaços ou mais.
“Boas habilidades culinárias são um ótimo bônus em uma
esposa, não são, príncipe Jalan? Mesmo que ela jamais precise
cozinhar, é bom conhecer o bastante para instruir os funcionários.”
O sheik trouxe o foco de volta a mim.
“Sim.” Misturei os pedaços de língua no arroz e coloquei mais
por cima. “Com certeza.”
O sheik pareceu satisfeito com aquilo. “Deixem o pobre homem
comer! O deserto lhe abriu o apetite.”
Por alguns minutos comemos quase em silêncio, e cada
viajante dedicou-se à sua refeição, após semanas de alimentação
pobre. Eu comi o arroz em volta do enterro, sem querer colocar o
carneiro contaminado nem perto de minha boca. Ao meu lado, a
deliciosa Tarelle inverteu a cabeça de seu carneiro e começou a
meter colheradas de cérebro na boca, que de repente ficou bem
menos desejável. A colher fazia barulhos desagradáveis, raspando
dentro do crânio.
Eu sabia o que tinha acontecido. Enquanto estava nas terras
mortas, a chave de Loki ficou invisível ao Rei Morto. Talvez fosse
uma brincadeira de Loki, fazer a coisa se tornar aparente apenas
quando estivesse fora do alcance. Não importa o motivo,
conseguimos viajar pelas terras mortas com menos perigo oferecido
pelo Rei Morto do que durante o ano anterior no mundo dos vivos. É
claro que tínhamos mais perigos de todas as outras malditas coisas,
mas isso era outro assunto. Agora que a chave estava de volta entre
os vivos, qualquer coisa morta podia caçá-la para o Rei Morto.
Eu tinha quase certeza de que os carneiros de Tarelle e Danelle
viraram aqueles olhos esbugalhados para mim, e não tive coragem
de tirar o arroz dos olhos do meu, por medo de encontrar aquela
coisa me encarando. Consegui comer uma enorme quantidade de
comida, experimentando os pratos no centro, ao mesmo tempo em
que aumentei o monte no meu prato. Após meses nas terras mortas,
seria preciso mais do que uma cabeça decapitada em meu prato
para me fazer perder o apetite. Bebi pelo menos um galão,
constantemente enchendo meu cálice com um jarro próximo.
Infelizmente era só água, mas as terras mortas haviam me dado
uma sede que só um pequeno rio mataria, e o deserto só a fez
aumentar.
“Esse perigo sobre o qual você alega ter vindo para nos alertar.”
Mahood empurrou seu prato. “O que é?” Ele apoiou as duas mãos
na barriga. Tão magro quanto seu pai, ele era mais alto, de feições
afiladas, bexigoso, e rapidamente mudava de amistoso a sinistro
com o mínimo movimento do rosto.
“É ruim.” Aproveitei a oportunidade para empurrar meu próprio
prato. Não conseguir esvaziar seu prato é um elogio à generosidade
de um anfitrião libano. O meu era simplesmente um elogio maior
que de costume. “Não sei que forma ele irá tomar. Só rezo para
estarmos bem longe em segurança.”
“E Deus enviou um infiel para entregar este aviso?”
“Uma mensagem divina é sagrada, não importa onde esteja
escrita.” Agradeço ao bispo James por essa pérola. Ele me fez
aprender essa frase – mas não o sentimento – à força depois que
decorei a parede da privada com aquela passagem da bíblia sobre
quem estava se unindo a quem. “E é claro que nunca se deve culpar
o mensageiro! Essa é mais velha que a civilização.” Suspirei aliviado
quando meu prato foi retirado sem comentários.
“E agora a sobremesa!” O sheik bateu as mãos. “Uma
verdadeira sobremesa do deserto!”
Olhei para cima com expectativa, enquanto os criados voltaram
com bandejas quadradas menores empilhadas nos braços, quase
esperando receber um prato de areia. Eu teria preferido um prato de
areia.
“É um escorpião,” disse.
“Tem o olho afiado, príncipe Jalan.” Mahood me lançou um
olhar sombrio por cima do cálice de água.
“Escorpião cristalizado, príncipe Jalan! Como pode ter passado
um tempo em Liba sem experimentar isso?” O sheik pareceu
surpreso.
“É uma iguaria deliciosa.” O joelho de Tarelle bateu no meu.
“Tenho certeza de que vou amar.” Forcei as palavras
entredentes. Dentes que não tinham a menor intenção de se abrir
para aquele troço entrar. Olhei para o escorpião, um monstro de
mais de vinte centímetros de comprimento, da curva da cauda
arqueada sobre as costas até as duas garras enormes. O aracnídeo
tinha uma tonalidade levemente translúcida, com a carapaça laranja
brilhando pela cobertura açucarada. Se fosse maior, poderia ser
confundido com uma lagosta.
“Comer o escorpião é uma arte delicada, príncipe Jalan,” disse
o sheik, exigindo nossa atenção. “Primeiro, não fique tentado a
comer o ferrão. Para o resto, os costumes variam, mas em minha
terra nós começamos pela parte de baixo das pinças, assim.” Ele
segurou a parte superior e pôs a faca entre as duas metades. “Uma
torcidinha de leve para quebrar...”
Pelo canto do olho, vi o escorpião do meu prato se agitar na
minha direção, com as pernas duras, seis patas glaceadas tentando
se apoiar na prata. Bati meu cálice naquela coisa, esmagando suas
costas, partindo as pernas, partes voando em todas as direções, um
xarope turvo escorrendo de seu corpo quebrado.
Todos os nove al’Hammed me olharam espantados e
boquiabertos.
“Ah... é...” Tentei inventar algum tipo de explicação. “É assim
que fazemos, de onde eu venho!”
Um silêncio se espalhou, rapidamente passando de
embaraçoso a desconfortável, até que, com uma risada gutural,
Sheik Malik bateu o cálice em seu escorpião. “Não é sutil, mas é
eficaz. Gostei!” Duas filhas e um filho fizeram o mesmo. Mahood e
Jahmeen ficaram me observando de olhos estreitos, e começaram a
desmembrar sua sobremesa parte por parte, seguindo à risca a
tradição.
Olhei para a meleca de fragmentos em meu prato. Só as garras
e o ferrão haviam sobrevivido. Eu ainda não queria comer nenhuma
parte. À minha frente, Mina botou um pedaço gosmento de
escorpião em sua bela boca, sorrindo o tempo todo.
Peguei um pedaço, afiado e pingando gosma, esperando por
alguma distração para poder jogar o troço longe. Era uma pena os
pagãos serem contra cachorros. Um cão em um banquete é sempre
uma mão na roda para se livrar de comida indesejada. Com um
suspiro, levei o fragmento em direção à boca.
Quando a distração veio eu estava quase distraído demais para
aproveitar a oportunidade. Em um instante nós estávamos
iluminados pela luz bruxuleante de uma dúzia de lampiões a gás, no
outro o mundo lá fora se acendeu mais claro que o sol do meio-dia,
atravessando até as paredes da tenda. Dava para ver as cordas
esticadas através do material, o contorno de um criado passando. A
intensidade do clarão passou de inacreditável a impossível, e lá fora
os gritos começaram. Uma onda de calor me atingiu como se eu
tivesse passado da sombra para o sol. Mal tive tempo de me
levantar quando o brilho desapareceu, tão rápido quanto surgira. A
tenda de repente pareceu escura. Eu tropecei em cima de Tarelle,
sem conseguir enxergar ao redor.
Saímos em uma confusão desordenada para olhar a enorme
coluna de fogo surgindo ao longe. Uma coluna de fogo tão grande
que subiu bem alto, bateu no teto do céu e voltou-se sobre si em
uma nuvem de fogo em formato de cogumelo.
Durante muito tempo observamos em silêncio, ignorando os
gritos dos criados com a mão no rosto, o pânico dos animais, e o
cheiro de queimado que saía das tendas, que aparentemente
estavam quase a ponto de pegar fogo.
Mesmo naquele caos, tive tempo de refletir que as coisas
pareciam estar indo bastante bem. Eu não só tinha escapado das
terras mortas e voltado à vida, como agora havia claramente
salvado a vida de um homem rico e de suas lindas filhas. Quem
sabe eu teria uma recompensa grande? Ou linda!
Ouviu-se um barulho distante por baixo dos gritos das pessoas
e dos animais.
“Alá!” Sheik Malik estava ao meu lado, da altura do meu ombro.
Ele parecia mais alto em seu camelo.
A velha sorte de Jalan estava começando a fazer efeito. Tudo
estava ficando uma beleza.
“É onde o encontramos,” disse Mahood.
O barulho se tornou um estrondo. Precisei levantar a voz,
concordando, tentando parecer sério. “Ainda bem que me deu
ouvidos, Sheik Mal...”
Jahmeen me interrompeu. “Não pode ser. Aquilo foi a trinta
quilômetros daqui. Nenhum fogo pode ser visto de tão...”
As dunas à nossa frente explodiram, primeiro as mais distantes,
depois a próxima, a próxima, a próxima, tão rápido quanto se pode
tocar um tambor. Em seguida o mundo se elevou à nossa volta e foi
só tendas voando, areia e escuridão.
2

Devo ter perdido a consciência só por um instante, pois recuperei os


sentidos a tempo de ver mais de dez camelos vindo direto na minha
direção, enlouquecidos de pavor, revirando os olhos. Saltei de pé,
cuspindo areia, e me atirei para o lado. Se eu tivesse uma fração de
segundo para pensar no movimento, teria ido para o outro lado. O
que aconteceu foi que eu quase imediatamente bati em alguém
ainda cambaleando por ali, enquanto os estrondos das explosões
diminuíam. Nós dois percorremos meu trajeto planejado, mas
paramos antes do ponto aonde eu teria chegado desimpedido. Fiz o
possível para tirar aquela pessoa aos berros de baixo de mim e usá-
la de escudo, mas acabei só com as duas mãos cheias de seda e
uma pata de camelo pisoteando minha bunda ao passar com tudo.
Gemendo e apertando o traseiro, rolei de lado e descobri que
parecia que eu havia despido e possivelmente matado uma das
filhas do sheik. O luar escondia poucos detalhes, mas com os
cabelos em desalinho não dava para saber qual das quatro. Vultos
se aproximaram de mim pelos dois lados, e a areia começou a
baixar. Em algum lugar alguém continuava gritando, mas o som
chegava abafado, como se a intensidade das detonações tivesse
reduzido todos os outros barulhos à insignificância.
Os filhos mais velhos do sheik me puseram de pé, segurando
meu braço bem firme, mesmo depois de já ter me levantado. Um
criado grisalho, com o nariz sangrando e o lado esquerdo do rosto
cheio de bolhas, cobriu a filha morta com sua túnica, ficando nu da
cintura para cima, o peito fundo e coberto com as pelancas dos
velhos. Os filhos estavam gritando perguntas ou acusações para
mim, mas nenhuma delas conseguiu penetrar o zumbido em meus
ouvidos.
A areia baixou do ar em mais ou menos um minuto, e a lua
banhou as ruínas de nosso acampamento. Fiquei parado, meio
atordoado, com a faca de Jahmeen em meu pescoço, enquanto
Mahood gritava acusações para mim, principalmente sobre sua
irmã, como se a destruição do acampamento não fosse nada,
comparada à exposição dos seios. Por mais belos que fossem.
Estranho que não fiquei com medo. A explosão tinha me deixado de
certo modo desconectado, como se flutuasse fora de mim, um
observador despreocupado, olhando para os arredores assim como
eu olhava para a fúria de Mahood ou a mão de Jahmeen segurando
o cabo da faca em meu pescoço.
Parecia que um furacão tinha passado por ali, sem deixar
nenhuma tenda de pé. Quem estava do lado de dentro quando a
noite se acendeu ficou em grande parte ileso. Os que estavam do
lado de fora tinham queimaduras em toda a pele que estava virada
para a explosão. Os Ha’tari da patrulha tinham se saído melhor,
embora um deles parecesse estar cego. Mas os membros da tribo
que estavam sentados em volta do mastro de oração, expostos na
escuridão, ficaram tão queimados quanto os criados.
Os camelos haviam fugido, mas muitos integrantes da caravana
se reuniram perto da base da duna mais próxima, onde os feridos
estavam recebendo tratamento, deixando-me com os dois irmãos e
três criados nas areias mais expostas. Fazia um frio abominável na
noite do deserto e eu me peguei tremendo. Os irmãos devem ter
pensado que era de medo, e Jahmeen me deu um sorriso sórdido,
mas certos cataclismos são tão apavorantes que meu medo habitual
simplesmente sai correndo, e agora mesmo meu medo ainda estava
perdido em algum lugar pela noite.
Foi só quando Sheik Malik veio das dunas com dois Ha’tari,
trazendo meia dúzia de camelos, que eu de repente voltei a mim e
comecei a entrar em pânico, lembrando daquela conversa animada
de banhar em ouro as bolas de qualquer homem que pusesse as
mãos em suas filhas.
“Eu nunca encostei nela! Eu juro!”
“Encostou em quem?” O sheik deixou os camelos para os
Ha’tari e entrou no meio do pequeno grupo ao meu redor.
Jahmeen baixou a faca e os dois irmãos me viraram para
encarar o pai deles. Lá atrás, a coluna de fogo continuava a arder
pela noite, amarela, laranja, com manchas escuras, espalhando-se
pelo céu, imensa, apesar do fato de que levaria um dia inteiro para
caminhar até o ponto onde estava.
“Isso foi um Sol dos Construtores.” O sheik acenou para o fogo
atrás dele.
Minha mente nem tinha começado a pensar nos quês e nos
porquês ainda, mas quando o sheik falou, soube que ele estava
certo. A noite se iluminou mais clara que o dia. Se estivéssemos
poucos quilômetros mais perto, as tendas teriam entrado em
combustão e as pessoas lá fora virado estátuas em chamas. Quem
teria tanto poder, senão os antigos? Tentei imaginar o Dia dos Mil
Sóis, quando os Construtores queimaram o mundo e libertaram a
morte.
“O infiel deflorou Tarelle!” gritou Mahood, apontando para a
pessoa estatelada debaixo da túnica.
“E a matou!” disse Jahmeen, balançando a faca, como se
quisesse compensar por aquilo ser um adendo.
O rosto do sheik ficou petrificado. Ele abaixou ao lado da garota
e puxou a túnica para exibir sua cabeça. Tarelle escolheu aquele
momento para espirrar e abriu os olhos, olhando para seu pai de
maneira desfocada.
“Minha criança!” Sheik Malik puxou sua filha para perto,
expondo o suficiente de seu pescoço e ombro para deixar um Ha’tari
apoplético. Ele me lançou um olhar frio.
“Os camelos!” Tarelle puxou o braço de seu pai. “Eles... ele me
salvou, pai! Príncipe Jalan... ele pulou no caminho por onde eles
estavam correndo e me afastou.”
“É verdade!” menti. “Eu a cobri com meu corpo para impedir
que fosse esmagada.” Afastei as mãos dos irmãos rispidamente.
“Acabei pisado pelo camelo que teria pisoteado sua filha.” De
maneira totalmente indignada agora, endireitei minha túnica,
desejando que fosse uma camisa e casaco da cavalaria. “E não
gosto que uma faca seja colocada em meu pescoço pelos irmãos da
mulher que eu protegi, com grande risco à minha pessoa. Irmãos,
deve-se dizer, que neste momento estariam pegando fogo no Oásis
de Palmeiras e Anjos, se eu não tivesse sido enviado para salvar a
vida de todos vocês!”
“Tirem as mãos dele!” O sheik olhou sérios para os dois filhos,
nenhum dos quais estava mais com a mão em mim, e os mandou se
afastarem com um aceno. “Vão com Tahnoon e recuperem nossos
animais! E vocês!” Ele se virou para os três criados, ignorando seus
ferimentos. “Ponham esse acampamento em ordem novamente!”
Voltando sua atenção a mim, o sheik se curvou até a cintura.
“Mil perdões, príncipe Jalan. Se me fizer a honra de proteger minhas
filhas enquanto recupero nossas mercadorias, eu ficaria em dívida
com você!”
“A honra é toda minha, Sheik Malik.” E me curvei de volta,
permitindo assim esconder o sorriso que não conseguia tirar do
rosto.

Uma hora depois, eu me vi do lado de fora da segunda melhor tenda


do sheik, protegendo todas as suas quatro filhas reunidas lá dentro,
novamente enroladas em uma quantidade absurda de panos. As
meninas tinham três criadas mais velhas para atender às suas
necessidades e proteger suas virtudes, mas o trio não se saiu muito
bem quando o Sol dos Construtores iluminou a noite. Duas tinham
queimaduras e a terceira parecia ter quebrado uma perna ao ser
jogada pela explosão. Elas estavam recebendo cuidados a uma
curta distância dali, do lado de fora da tenda dos homens
machucados.
O mais importante sobre os feridos é que nenhum deles parecia
fatalmente ferido. As areias são assustadoramente vazias: o Rei
Morto podia até estar de olho em mim, mas sem cadáveres com os
quais trabalhar, ele não representava uma grande ameaça.
Ouvi meu nome ser mencionado mais de uma vez, enquanto as
irmãs discutiam a calamidade em voz baixa atrás de mim, com
Tarelle espalhando a história de minha coragem perante a
debandada de camelos, e Lila lembrando às irmãs que meu aviso
salvara a todos ali. Se eu não estivesse preso lá fora, com uma
túnica de tribo que fedia a camelo e fazia minhas queimaduras do
sol coçarem desgraçadamente, teria me sentido bem contente
comigo mesmo.
O sheik, junto com seus filhos e guardas, saiu pelas dunas para
procurar sua preciosa carga e os bichos aos quais ela estava
amarrada. Eu nem imaginava como eles conseguiriam rastrear os
camelos de noite, ou como esperavam encontrar o caminho de volta
com ou sem eles, mas isso parecia ser estritamente um problema
do sheik, não meu.
Eu me levantei, inclinando-me no vento, os olhos apertados
contra a areia fina que ele trazia. Durante todo o dia de viagem uma
leve brisa tinha soprado do oeste sobre nós, mas agora o vento
havia se virado na direção da explosão, como se respondesse a um
chamado, e tomou uma força que podia facilmente se transformar
em uma tempestade de areia. O fogo ao sul havia desaparecido,
deixando apenas escuridão e dúvidas.
Após meia hora, desisti de montar guarda em pé e decidi me
sentar, abrindo um buraco na areia para ficar mais confortável para
minha bunda machucada. Vi os criados mais capazes do sheik
recuperando outras tendas e voltando a armá-las da melhor maneira
que podiam. E fiquei escutando as filhas, de vez em quando girando
um pedaço de mastro quebrado que eu peguei, como se fosse uma
espada. Até comecei a cantarolar: é preciso mais do que um Sol dos
Construtores para tirar o brilho da primeira noite de um homem no
mundo dos vivos, após o que parecia ser uma eternidade no Inferno.
Eu tinha terminado as duas primeiras estrofes de O Ataque da
Lança de Ferro, quando um silêncio inexplicável me fez sentar mais
ereto e olhar em volta. Fazendo esforço no meio da penumbra,
consegui detectar os homens mais próximos, parados sem se mexer
em volta de uma tenda armada pela metade. Eu me perguntei por
que eles haviam parado de trabalhar. A verdadeira pergunta me
ocorreu alguns momentos depois. Por que eu mal conseguia
enxergá-los? Tinha ficado mais escuro – muito mais escuro – no
intervalo de poucos minutos. Olhei para cima. Nenhuma estrela.
Sem lua. O que só podia significar nuvens. E isso simplesmente não
acontecia no Sahar. Pelo menos não durante o ano que passei em
Hamada.
O primeiro pingo de chuva me atingiu bem no meio dos olhos.
O segundo bateu no meu olho direito. O terceiro entrou na minha
garganta, quando abri a boca para reclamar. No intervalo de dez
segundos, as três gotas se transformaram em um dilúvio que me fez
recuar para o toldo da tenda para me abrigar. Mãos finas pegaram
meus ombros e me puxaram para dentro das abas.
“Chuva!” disse Tarelle, com o rosto na sombra, e a luz de um
único lampião insinuando a curva de sua maçã do rosto, sua testa e
o contorno de seu nariz.
“Como pode estar chovendo?” perguntou Mina, com medo e
excitada.
“Eu...” Eu não sabia. “O Sol dos Construtores deve ter feito
isso.” Será que o fogo podia provocar chuva? Um fogo daquele
tamanho talvez pudesse mudar o tempo... com certeza as chamas
subiram alto o bastante para lamber o teto do céu.
“Ouvi dizer que depois do Dia dos Mil Sóis houve cem anos de
inverno. O inverno do norte, onde a água vira pedra e cai do céu em
flocos,” disse Danelle, com o rosto em meu ombro e a voz
melodiosa causando arrepios em minha coluna.
“Estou com medo.” Lila se aproximou quando a chuva começou
a martelar o teto da tenda acima de nós. Duvidei que ficássemos
secos por muito tempo – as tendas de Liba têm o objetivo de manter
o sol e o vento do lado de fora, raramente precisam lidar com a
chuva.
O estalo de um trovão aconteceu absurdamente perto, e de
repente príncipe Jal virou o recheio de um sanduíche de quatro
garotas. O estrondo me deixou paralisado de pavor por um
momento e deixou meus ouvidos zumbindo, então demorou um
pouco para eu dar valor à minha posição. Nem mesmo trinta e seis
metros de túnica podiam disfarçar completamente os charmes das
irmãs àquela distância. Instantes depois, porém, um novo medo
surgiu para espantar qualquer pensamento de me aproveitar.
“Seu pai fez ameaças bem específicas, senhoritas, a respeito
de sua virtude e eu realmente...”
“Ah, não precisa se preocupar com isso.” Uma voz rouca tão
perto de meu ouvido que me fez tremer.
“Papai diz um monte de coisas.” Dito em voz baixa por uma
menina com a cabeça em meu peito. “E ninguém vai se mexer até a
chuva parar.”
“Não consigo me lembrar de um momento em que não
estávamos sendo vigiadas por papai, nossos irmãos ou os soldados
deles.” Outra se pressionou de leve em meu ombro.
“E nós precisamos mesmo de proteção...” atrás de mim. Mina?
Danelle? Quem quer que fosse, suas mãos estavam se mexendo
em meus quadris de uma maneira muito pouco casta.
“Mas o sheik...”
“Banhar em ouro?” Uma risada tilintante, ao mesmo tempo em
que a quarta irmã começou a me empurrar para baixo. “Você
realmente acreditou naquilo?”
Pelo menos duas meninas começaram a desamarrar suas
túnicas, com as mãos ágeis e experientes. No meio das sombras de
tantos corpos dava para ver muito pouco, mas do pouco que dava
eu gostei. Muito.
Todas as quatro me empurraram para baixo agora, um
emaranhado de braços lisos, cabelos compridos, mãos passando.
“Ouro é tão caro,” disse Tarelle, subindo em cima de mim, ainda
semivestida.
“Isso seria tolice,” falou Danelle, pressionando-se ao meu lado,
deliciosamente macia, com a língua fazendo coisas maravilhosas à
minha orelha. “Ele sempre usa prata...”
Tentei me levantar nessa hora, mas havia muitas delas, e as
coisas tinham saído do controle – exceto pelas coisas que agora
estavam sendo controladas... e, caramba, eu passei muito tempo no
Inferno, era hora de um pouquinho de paraíso.

Há um ditado em Liba: o último metro da túnica é o melhor.


...ou se não há, deveria haver!

“Arrrrgh!”
Descobri que há poucas coisas mais eficazes para fazer o ardor
de um homem murchar do que água fria. Quando o teto da tenda,
enfraquecido pelos traumas anteriores, cedeu de supetão e jogou
vários litros de água gelada da chuva nas minhas costas, eu dei um
pulo abrupto, espalhando as mulheres al’Hameen e sem dúvida
ensinando a elas um monte de xingamentos estrangeiros.
Uma coisa que ficou clara, enquanto a água escorria de mim,
era que poucos novos pingos estavam caindo para substituir os
anteriores.
“Shhh!” levantei a voz sobre os últimos gritos das mulheres.
Elas gostaram daquele banho tanto quanto eu. “Parou de chover!”
“‫ ھل أﻧت ﺧﺧﯾر؟‬،‫ ”ﻋﺷﯾﻘﺔ‬matraqueou um homem do lado de fora da
tenda, na língua pagã, com outros unindo-se a ele. Deviam ter
escutado os gritos. Não dava para saber por quanto tempo o medo
do que o sheik faria com eles, se invadissem o local de suas filhas,
superaria o medo do que sheik faria se eles deixassem de protegê-
las.
“Cubram-se!” gritei, correndo para defender a entrada.
Ouvi risinhos atrás de mim, mas elas se mexeram,
presumivelmente sem esperar saírem ilesas se seu pai soubesse
daquelas “brincadeiras”.
Lá fora, alguém segurou a aba da tenda. Eu nem a havia
amarrado! Com um grito me atirei no chão para pegar a parte de
baixo. “Rápido, pelo amor de Deus! E apaguem o lampião!”
Aquilo as fez rir novamente. Segurei o lampião e preveni
qualquer tentativa de entrar saindo, fazendo o primeiro criado do
sheik cair de bunda na areia molhada.
“Elas estão bem!” Eu me empertiguei e acenei com o braço
para a tenda atrás. “O telhado cedeu debaixo da chuva... água por
toda a parte.” Fiz a melhor mímica para representar a última parte,
caso nenhum deles falasse o idioma do império. Acho que os idiotas
não entenderam, porque ficaram parados ali me olhando como se
eu tivesse feito uma charada. Afastei-me da tenda caminhando
decidido, chamando os três homens para virem comigo. “Olhem!
Está mais claro aqui.” Eu sinceramente esperava que aquelas
túnicas fossem colocadas com a mesma rapidez que foram tiradas.
Dois homens do sheik estavam trazendo uma das empregadas das
irmãs, apressando-a, apesar de seus ferimentos.
“O que é aquilo ali?” disse, principalmente para distrair as
pessoas. Quando olhei na direção em que estava apontando, no
entanto... havia alguma coisa. “Ali!” gesticulei com mais veemência.
O luar tinha começado a atravessar as nuvens que se dissipavam
no alto, e alguma coisa parecia estar saindo da duna que escolhi a
esmo. Não estava subindo a duna, nem saindo de sua sombra, mas
esforçando-se para atravessar a crosta úmida de areia.
Outros começaram a ver, e suas vozes se elevaram, confusos.
Da areia partida surgiu uma coisa, um vulto, impossivelmente
magro, pálido feito um osso.
“Maldição...” Eu havia escapado do Inferno e agora o Inferno
parecia estar me seguindo. A duna expeliu um esqueleto, com os
ossos ligados apenas pela lembrança de sua associação prévia.
Outro esqueleto parecia estar lutando para sair pela areia molhada
ao lado do primeiro, construindo a si mesmo com pedaços variados
ao surgir.
À minha volta, as pessoas começaram a gritar alarmadas,
praguejando, chamando por Alá, ou simplesmente berrando. Elas
começaram a retroceder. Recuei com elas. Não faz muito tempo,
aquela visão teria feito eu sair correndo na direção que melhor me
levasse para longe dos dois horrores diante de nós, mas já estava
cansado de ver mortos, tanto dentro e fora do Inferno, e mantive o
pânico um pouco abaixo do ponto de ebulição.
“De onde eles vinham? Qual a chance de termos acampado
logo onde uma dupla de viajantes tinha morrido?” Não parecia nem
um pouco justo.
“Mais de uma dupla.” Uma voz tímida atrás de mim. Eu me virei
e vi os vultos de quatro mulheres vestidas do lado de fora da tenda.
“Lá!” A locutora, a mais baixa, portanto provavelmente Mina, que era
a mais nova, apontou para a minha esquerda. A areia na lateral da
duna havia começado a se mexer e mãos ossudas brotaram como
ervas-daninhas de um pesadelo.
“Havia uma cidade aqui no passado.” A mais alta... Danelle? “O
deserto a engoliu duzentos anos atrás. O deserto já cobriu muitas
assim.” Ela parecia calma: provavelmente em choque.
Os criados do sheik começaram a se afastar em um novo
sentido, recuando das duas ameaças. Os dois esqueletos originais
agora pareciam nos olhar com as órbitas vazias e começaram a
correr para cima de nós, em silêncio, com um ritmo mortal,
diminuído apenas pela areia fofa. Isso fez meu pânico ebulir. Antes
que pudesse dar no pé, contudo, um Ha’tari solitário passou
correndo por mim, saindo do acampamento. O sheik devia ter
deixado um para patrulhar entre as dunas.
“Sem espada!” Levantei as mãos vazias como desculpa e deixei
minha retirada me levar até as quatro filhas. Ficamos parados juntos
e vimos o Ha’tari interceptar o primeiro esqueleto. Ele atacou o
pescoço dele com a lâmina curva. Felizmente, o osso se estilhaçou
com o golpe, a cabeça voou longe e o resto do esqueleto se chocou
com ele, caindo em uma pilha desmontada na areia.
O segundo esqueleto veio correndo para cima do guerreiro, que
atravessou sua espada nele.
“Idiota!” gritei, talvez sem razão, porque ele tinha agido por
instinto e seus reflexos eram bem aguçados.
Infelizmente, meter uma espada no peito de um esqueleto é
uma inconveniência menor para ele do que seria na época em que
seus ossos estavam cobertos de carne e envolviam um pulmão. O
esqueleto continuou correndo e arranhou o rosto do guerreiro com
os dedos de ossos. O homem caiu para trás aos berros, deixando a
espada presa entre as costelas da coisa.
Agora que os últimos fragmentos de nuvem se desfizeram e a
lua iluminou a cena, dava para ver que o esqueleto não era tão
desconectado quanto eu pensava. A luz prateada mostrou uma
substância cinza turva que envolvia cada osso e o unia, embora de
maneira insubstancial, ao próximo, como se o fantasma de seu
antigo dono ainda estivesse ligado aos ossos e quisesse mantê-los
unidos. Onde o primeiro agressor havia caído e se espalhado, a
névoa, ou fumaça, manchou o chão e, à medida que a mancha era
absorvida, as areias se contorciam, exibindo rostos assustadores,
com as bocas abertas em gritos silenciosos, até perderem a forma e
desaparecerem.
O guerreiro Ha’tari continuou a se afastar, curvado, com as
duas mãos segurando o rosto. O esqueleto girou o crânio na nossa
direção e começou a correr outra vez, com a espada presa nas
costelas fazendo barulho pelo caminho.
“Por aqui!” Eu me virei para começar minha própria corrida,
apenas para ver que esqueletos estavam se aproximando do
acampamento por todos os lados, brancos e brilhantes ao luar.
“Inferno!”
Os homens do sheik não tinham nada melhor para se defender
do que adagas, e eu nem tinha surrupiado uma faca do jantar.
“Ali!” Danelle segurou meu ombro e apontou para o mais
próximo de vários pedestais de lampião que tinham sido colocados
entre as tendas, cada um com uma haste de mogno de um metro e
oitenta, apoiado em uma base afunilada e o lampião de latão no
alto.
“Isso não serve de nada!” Eu o peguei mesmo assim, deixando
o lampião cair e levantando o suporte com um grunhido.
Sem ter para onde correr, esperei o nosso primeiro agressor e
sincronizei meu golpe com a chegada dele. O suporte de lampião
atravessou o tórax do esqueleto, estraçalhando-o e quebrando a
espinha dorsal em um monte de vértebras soltas. O troço morto caiu
em cem pedaços, e o fantasma que o envolvia desabou lentamente
na direção dos fragmentos, como uma bruma cinzenta descendo.
O impulso de meu golpe me fez dar meia-volta, e as filhas
tiveram de ser rápidas para não levarem uma pancada. Fiquei de
costas para meu primeiro inimigo e de frente para outros dois, sem
tempo de balançar o suporte outra vez. Enfiei a base no esterno do
esqueleto mais à frente. Por não ter carne, ele tinha pouco peso e o
impacto deteve sua investida, quebrando ossos e tirando-o do chão.
O próximo esqueleto me alcançou um instante depois, mas eu
consegui enfiar a haste do suporte em seu pescoço como se fosse
um varapau e o derrubei na areia, onde meu peso separou sua
cabeça do corpo antes que aquelas garras ossudas pudessem me
pegar.
Isso me deixou de quatro em meio aos destroços de meu último
inimigo, mas com mais meia dúzia correndo em minha direção, o
mais próximo a apenas alguns metros. Outros ainda estavam indo
para cima do pessoal do sheik, tanto os feridos quanto os
saudáveis.
Fiquei de joelhos, com as mãos vazias, e me vi de frente para
um esqueleto prestes a saltar para cima de mim. O grito nem
chegou a sair da minha boca quando uma espada curva brilhou
acima da minha cabeça, estraçalhando o crânio prestes a atingir
meu rosto. O restante do monstro bateu em mim e caiu em pedaços,
deixando uma bruma fria e cinzenta pairando no ar. Levantei-me
rapidamente, sacudindo as mãos quando o fantasma tentou se
infiltrar na minha pele.
“Aqui!” Tarelle foi quem balançou a espada, e agora a colocou
em minha mão. A arma do Ha’tari. Ela deve tê-la pegado nos
escombros do primeiro esqueleto que derrubei.
“Merda!” Eu me desviei do próximo agressor e arranquei a
cabeça do que estava atrás.
Mais cinco ou seis estavam atacando em um bando bem
apertado. Brevemente considerei me render ou cavar um buraco,
mas nenhuma trazia muita esperança. Antes que eu tivesse tempo
de cogitar outras opções, um enorme vulto atravessou os
desnascidos como um barril, estilhaçando os ossos com facilidade.
Um Ha’tari montado em um camelo passou por mim, balançando
sua cimitarra, com outros vindo em seu encalço.
Em instantes o sheik e seus filhos estavam desmontando à
nossa volta, gritando ordens e brandindo espadas.
“Saiam das tendas!” gritou Sheik Malik. “Por aqui!” E apontou
para o vale que serpenteava entre as dunas ao nosso redor.
Em pouco tempo, uma coluna de homens e mulheres saiu
mancando atrás do sheik montado, flanqueada por seus filhos e
seus próprios homens armados, enquanto os Ha’tari lutavam na
retaguarda contra a horda de ossos que ainda estava sendo
vomitada pela areia úmida.
Uns oitocentos metros depois nós nos unimos ao restante dos
viajantes do sheik, montando guarda em volta dos camelos
carregados que eles recuperaram do deserto ao redor.
“Vamos seguir noite afora.” O sheik ficou de pé nos estribos de
seu camelo branco feito um fantasma para se dirigir a nós. “Nada de
parar. Quem ficar para trás será largado.”
Olhei para Jahmeen, observando seu pai com uma intensidade
tensa.
“Os Ha’tari vão dar conta dos mortos, não vão?” Eu não
conseguia achar que esqueletos úmidos representassem um perigo
muito grande para guerreiros montados.
Jahmeen olhou na minha direção. “Quando os ossos ficam
inquietos isso significa que os djinns estão chegando – dos lugares
vazios.”
“Djinns? São gênios, certo?” Histórias de lâmpadas mágicas,
uns camaradas alegres de calças de seda e a realização de três
desejos me vieram à mente. “Eles são tão ruins quanto os mortos
tentando nos comer?”
“Piores.” Jahmeen desviou o olhar, parecendo-se menos com
um jovem raivoso e mais com um menino assustado. “Muito, mas
muito piores.”
3

“Então, sobre esses gênios...” Não tínhamos viajado nem quatro


quilômetros e de alguma maneira já era dia entre as dunas, um calor
escaldante, ofuscante, horrível como sempre. Ao deixarmos o rio do
tempo, em vez de nos apressarmos para o dia seguinte, parecia que
tínhamos voltado àquele do qual escapáramos. O sol na verdade
nasceu no oeste, em uma inversão do pôr do sol que vimos muitas
horas antes. A sensação era decididamente perturbadora e,
considerando minhas experiências recentes, “perturbadora” não é
uma palavra suave! “Conte mais.” Eu realmente não queria saber
mais sobre os djinns, mas se o Rei Morto estava mandando mais
criados atrás da chave, eu deveria pelo menos conhecer do que
estava fugindo.
“Criaturas do fogo ardente invisível,” disse Mahood à minha
direita.
“Eles se atraem ao Sol dos Construtores,” disse Jahmeen à
minha esquerda. Eles me ladearam a viagem inteira, aparentemente
para me impedir de conversar com suas irmãs.
“Deus fez três criaturas com o poder do pensamento,” gritou
Sheik Malik para nós. “Os anjos, as pessoas e os djinns. O maior de
todos os djinns, Shaytan, desafiou Alá e foi rebaixado.” O sheik
desacelerou seu camelo para chegar mais perto. “Há muitos djinns
que dançam no deserto, mas esses são do tipo inferior. Nesta parte
do Sahar só há um grande djinn. É ele que devemos temer.”
“Está me dizendo que Satanás está vindo atrás de nós?” Olhei
para o alto das dunas.
“Não.” Sheik Malik exibiu uma fileira de dentes brancos. “Ele
mora no Sahar profundo, onde homens não resistem.”
Afundei em minha sela ao ouvir aquilo.
“É só um primo dele.” E com isso o sheik pressionou o camelo
na direção onde estavam os Ha’tari.
A caravana irregular seguiu em frente, serpenteando entre as
dunas, limitada ao passo dos feridos que estavam a pé, queimados
de várias maneiras pela luz do Sol dos Construtores, quebrados
pela explosão que nos atingiu minutos depois e dilacerados pelos
ossos de homens que surgiram das areias, mortos há muito tempo.
Curvei-me sobre minha montaria malcheirosa, balançando com
o movimento, suando em minha túnica e desejando que os
quilômetros entre nós e a segurança das muralhas de Hamada
desaparecessem. De alguma maneira eu sabia que não
conseguiríamos chegar. Talvez o simples fato de falar sobre os
djinns havia selado nosso destino. Por falar no diabo, como se diz.
O Sol dos Construtores deixava um fogo invisível – todo mundo
sabia disso. Havia lugares, até mesmo em Marcha Vermelha, ainda
marcados pela sombra dos Mil Sóis. Lugares onde um homem podia
passar e ver sua pele criando bolhas sem nenhum motivo, fazendo-
o ter uma morte horrível nos próximos dias. Chamavam esses
lugares de Terras Prometidas. Um dia elas seriam nossas outra vez,
mas não logo.
Quase esperei que os gênios aparecessem desse jeito, como a
luz do Sol dos Construtores, mas invisíveis, transformando o
primeiro homem, depois o seguinte, em colunas de fogo, com a
gordura derretida escorrendo. Vi coisas ruins no Inferno e minha
imaginação tinha muito material com que trabalhar.
Na verdade, os djinns queimam os homens por dentro.
Começou com escritos na areia. À medida que passamos entre
as dunas, suas laterais ofuscantemente brancas ficaram marcadas
com a escrita curva dos pagãos. A princípio, eram vistos apenas
quando o sol incidia na encosta a um ângulo raso o bastante para
as letras em relevo formarem sombra.
Ninguém sabia, antes de Tarelle perceber as marcações, por
quanto tempo estávamos viajando entre encostas marcadas com as
descrições de nossos destinos.
“O que diz aí?” Eu não queria realmente saber, mas é uma
daquelas perguntas que se faz automaticamente.
“Nem queira saber.” Mahood parecia enjoado, como se tivesse
comido muitos olhos de carneiro.
Das duas, uma: ou a caravana inteira sabia ler ou a ansiedade
era contagiosa, porque minutos após a descoberta de Tarelle, todos
os viajantes pareciam montar ou caminhar em sua própria bolha de
desespero. Orações foram feitas com vozes trêmulas, os Ha’tari se
aproximaram e o deserto inteiro pressionou-se contra nós, vasto e
vazio.
Mahood estava certo, eu não queria saber o que os escritos
diziam, mas mesmo assim parte de mim estava se doendo para que
me contassem. As linhas das palavras, elevadas nas dunas lisas,
chamavam minha atenção, enlouquecedoras e apavorantes ao
mesmo tempo. Eu queria sair e apagar as mensagens, mas o medo
me fez ficar no meio dos outros. A coisa mais importante quando o
perigo ataca é ser discreto. Não chame atenção para si mesmo –
não seja o para-raios.
“Quanto falta ainda?” Já tinha feito essa pergunta algumas
vezes, primeiro irritado e depois desesperado. Estávamos perto. Em
quinze quilômetros, talvez vinte, as dunas se abririam e revelariam
Hamada, mais uma cidade esperando sua vez de ser engolida pelo
deserto. “Quanto falta?” perguntei, como se a repetição fosse
encurtar a distância de maneira mais eficaz que os passos dos
camelos.
Ao ver que havia sido ignorado por Mahood, virei-me para
Jahmeen e descobri que eu já era o centro de sua atenção. Alguma
coisa na maneira como estava rígido, a estranheza com que
montava seu camelo me fez parar e a pergunta ficou entalada em
minha garganta.
Olhei em seus olhos. Ele me lançou o mesmo olhar implacável
que seu pai tinha – mas foi aí que eu vi o brilho de uma chama
tremendo na pupila de cada olho dele.
“O que... o que está escrito na areia?” Uma nova pergunta saiu
gaguejante.
Jahmeen abriu os lábios e eu achei que ele iria falar, mas sua
boca se abriu tão grande que sua mandíbula rangeu, e tudo que
saiu dali foi um chiado, como a areia que era retirada das dunas. Ele
se inclinou para frente, agarrando meu pulso, e embaixo da palma
da mão dele um fogo se acendeu, tentando me devorar, tentando
invadir. Meu mundo passou a ser aquele toque ardente – nada mais,
nem visão, nem audição, nem respiração, só a dor. Dor e
lembranças... as piores lembranças de todas... lembranças do
Inferno. E enquanto eu sofria e me perdia nela, quanto tempo levaria
para o djinn sair de Jahmeen e escavar minha pele, levando minha
alma desnutrida para o Inferno para sempre? Eu vi Snorri, parado ali
na minha lembrança, parado ali no começo de uma história que eu
não tinha a menor vontade de acompanhar, com aquele sorriso dele,
aquele sorriso despreocupado, idiota, corajoso e contagiante... Tudo
que eu precisava fazer era me ater ao presente. Eu tinha que ficar
ali, no presente, com meu corpo e com a dor. Eu só precisava...

A mão de Snorri está agarrada ao meu pulso, a outra em meu


ombro, impedindo-me de cair. Estou olhando para cima e ele está
emoldurado pelo céu morto, de onde sai uma luz alaranjada
monótona. Todas as partes do meu corpo doem.
“A porta escapou de você, hein?” Ele me põe de pé. “Eu mesmo
não consegui segurá-la – tive de puxar você rápido, antes que se
fechasse de novo.”
Eu engulo o grito de puro pavor, antes que ele me sufoque na
tentativa de se libertar. “Ah.”
A porta está bem na minha frente, um retângulo prateado
gravado na lateral cinzenta e sem graça de uma enorme pedra. Ela
está sumindo diante de meus olhos. Toda a vida, todo o meu futuro,
tudo que eu conheço está do outro lado daquela porta. Kara e
Hennan estão parados lá, a apenas dois metros, provavelmente
ainda olhando para ela, confusos.
“Espere um minuto para Kara trancá-la. Depois sairemos,” diz
Snorri, aparecendo do meu lado.
Em pouco tempo, a confusão de Kara irá se transformar em
raiva, quando perceber que roubei a chave de Loki do bolso dela.
Aquela coisa pareceu pular na minha mão e grudar em meus dedos,
como se quisesse ser roubada.
Olhei rapidamente ao meu redor. O além parece ser
incrivelmente chato. As histórias infantis contam que os
Construtores fizeram navios que voavam, e que alguns subiam
acima das nuvens e saíam pela escuridão entre as estrelas. Dizem
que o rei mais rico uma vez faliu todos os nobres de tantos
impostos, e construiu um navio tão grande e rápido, debaixo de uma
vela de mil acres, que levou os homens até Marte, que, assim como
a Lua, é um mundo totalmente diferente. Eles viajaram toda aquela
distância incalculável, milhares de quilômetros, e voltaram com
imagens de um lugar cheio de pedras vermelhas monótonas, terra
vermelha monótona e um vento seco que soprava constantemente...
e os homens nunca mais se deram ao trabalho de voltar lá. As
terras mortas são bem parecidas com isso... só um pouco menos
vermelha.
A secura pinica minha pele como se o próprio ar estivesse com
sede, e cada parte de mim está dolorida como um hematoma. À
meia-luz, as sombras do rosto de Snorri têm um aspecto sinistro,
como se sua própria pele fosse uma sombra em cima do osso por
baixo, e que a qualquer momento poderia sumir, deixando apenas o
crânio exposto olhando para mim.
“Que diabos é aquilo?” apontei um dedo acusador por cima do
ombro dele. Eu tentei fazer isso quando nos conhecemos, e ele
sequer piscou. Agora, movido pela confiança, ele se vira.
Rapidamente tiro a chave de Loki do bolso e a meto na direção da
porta desvanecida. Uma fechadura aparece, a chave entra, eu giro,
giro de volta e tiro. Mais rápido que um instante. Trancada.
“Não estou vendo nada.” Snorri ainda está olhando para as
pedras amontoadas quando me viro para trás. É um troço útil,
confiança. Eu guardo a chave. Ela valeu sessenta e quatro coroas
de ouro para Kelem. Para mim, vale uma rápida estadia nas terras
mortas. Abrirei a porta de novo quando tiver certeza de que Kara
não vai estar do outro lado esperando. Aí irei embora para casa.
“Deve ter sido uma sombra.” Examino o horizonte. Não é
inspirador. Colinas baixas, permeadas por ravinas profundas,
estendem-se pela névoa sombria. A enorme pedra ao nosso lado é
uma das muitas que enchem a ampla planície de rocha
fragmentada, pedaços escuros e irregulares de basalto enterrados
na terra avermelhada e monótona. “Estou com sede.”
“Vamos.” Snorri repousa o cabo de seu machado no ombro e
sai, saltando de uma pedra pontuda para a próxima.
“Para onde?” Eu o sigo, concentrando-me nos saltos, sentindo
os ângulos desconfortáveis atravessando as solas de minhas botas.
“Para o rio.”
“E você sabe que fica nesta direção... como?” É difícil manter o
ritmo. Não está quente nem frio, só seco. Está ventando, não o
bastante para levantar a poeira, mas ele sopra através de mim, não
em volta, mas atravessando, como uma dor no interior dos ossos.
“Estas são as terras mortas, Jal. Todo mundo está perdido.
Qualquer direção o levará aonde estiver indo. Você só precisa ter
esperança de que é lá que quer estar.”
Eu nem comento. Os bárbaros são imunes à lógica. Apenas
olho de volta para a pedra onde ficava a porta, tentando guardá-la
na memória. Ela está torta para o lado direito, quase como a letra
“r”. Tenho a habilidade de abrir uma porta em qualquer lugar que
escolha, mas não estou com muita vontade de pôr isso à prova. Foi
preciso um mago como Kelem para nos mostrar uma porta, e é
provável que ele esteja nas terras mortas agora. Prefiro não ter de
lhe pedir para me mostrar a saída.
Seguimos adiante, pulando de pedra em pedra com os pés
doloridos e atravessando a terra quando as pedras ficam escassas.
Não há nenhum som além de nós. Nada cresce. Apenas uma
vastidão seca e interminável. Eu esperava gritos, corpos
despedaçados, tortura e demônios.
“É isso que você esperava?” Alargo os passos para me
aproximar de Snorri novamente.
“Sim.”
“Sempre achei que o Inferno fosse ser mais... animado.
Tridentes, almas lamentosas, lagos de fogo.”
“As völvas dizem que a deusa cria um Hel para cada pessoa.”
“Deusa?” Bato o dedão em uma pedra escondida na terra e
prossigo cambaleando e xingando.
“Você passou um inverno em Trond, Jal! Não aprendeu nada?”
“Caralho.” Continuo mancando. A dor em meu pé quase me
debilita. É como se eu tivesse pisado no ácido e ele começasse a
corroer minha perna. Se só bater o dedão nas terras mortas dói
desse jeito, estou morrendo de medo de ter qualquer ferimento
significativo. “Aprendi muita coisa.” Só não sobre as malditas sagas
deles. A maior parte delas parecia ser sobre Thor batendo nas
coisas com aquele martelo. Verdade que eram mais interessantes
que as histórias que Roma tentava nos empurrar, mas não eram um
manual de como viver.
Snorri para e eu continuo mancando por mais dois passos
antes de perceber. Ele abre os braços quando me viro. “Hel é quem
manda aqui. Ela observa os mort...”
“Não, espera. Eu me lembro dessa.” Kara havia me contado.
Hel, coração gelado, aberta do nariz até a virilha por uma linha que
dividia o lado esquerdo de azeviche do lado direito de alabastro.
“Ela observa a alma das pessoas, o olho claro vê o que há de bom
nelas, o olho escuro vê o que há de mal, e ela não liga para nenhum
dos dois... acertei?” Pulo de um pé só, massageando meu dedão.
Snorri encolhe os ombros. “Quase isso. Ela vê a coragem das
pessoas. Ragnarok está chegando. Não é os Mil Sóis dos
Construtores, mas o final verdadeiro, em que o mundo se parte, se
queima e os gigantes surgem. Coragem é tudo o que importará
nesse momento.”
Olho para as pedras em volta, a terra, as colinas áridas. “Então
cadê o meu? Se este é o seu inferno, onde está o meu?” Não quero
ver o meu. Mesmo. Mas mesmo assim, ficar vagando pelo inferno
de um bárbaro parece... errado. Ou talvez um elemento importante
do meu inferno pessoal seja que ninguém reconhece a precedência
da nobreza sobre os plebeus.
“Você não acredita nele,” diz Snorri. “Por que Hel o construiria
para você se não acredita nele?”
“Acredito sim!” Protestar minha crença em todas as coisas é um
reflexo meu.
“Seu pai é padre, certo?”
“Cardeal! Ele é cardeal, não um padreco de um vilarejo
qualquer.”
Snorri dá de ombros, como se aquelas fossem apenas
palavras. “Filhos de padres raramente acreditam. Homem nenhum é
um profeta em sua própria terra.”
“Esse tipo de bobagem pagã pode...”
“É da bíblia.” Snorri para novamente.
“Ah.” Eu paro também. Ele está certo, acho. A religião nunca
teve muita utilidade para mim, a não ser quando se trata de xingar
ou pedir clemência. “Por que paramos?”
Snorri não diz nada, então olho para onde ele está olhando. À
nossa frente, o ar está se estilhaçando, e pelas rachaduras vejo
vestígios de um céu que já parece impossivelmente azul, cheio
demais de energia vital para ter lugar nas terras áridas da morte. Os
rasgos ficam maiores – vejo o arco de uma espada – um esguicho
de carmim e um homem aparece do nada, com as rachaduras se
fechando atrás dele. Digo um homem, mas na realidade é uma
lembrança dele, esboçada em linhas fracas, ocupando o espaço
onde ele deveria estar. Ele se levanta, sem perturbar um grão de
terra sequer, e eu vejo o ferimento sem sangue que o matou, um
talho sobre a testa que desce até sua clavícula quebrada,
atravessando-a até a carne.
Enquanto o homem se levanta, o processo se repete à direita e
à esquerda dele, e outra vez vinte metros atrás desses. Outros
homens atravessam, caídos do campo de batalha onde estão
morrendo. Eles nos ignoram, parados de cabeça baixa, alguns com
restos de armaduras, todos sem armas. Estou prestes a gritar para
o primeiro, quando ele se vira e sai andando, fazendo um caminho
parecido com o nosso, mas desviando um pouquinho para a
esquerda.
“Almas.” Minha intenção era dizer em voz alta, mas apenas um
sussurro sai.
Snorri levantou os ombros. “Mortos.” Ele começa a caminhar
também. “Vamos segui-los.”
Começo a avançar, mas o ar se parte à minha frente. Eu vejo o
mundo, posso sentir seu cheiro, sentir a brisa, o gosto do ar. E de
repente compreendo o desejo nos olhos dos homens mortos. Estou
nas terras áridas há menos de uma hora e o desejo que só esse
vislumbre de vida me causa é avassalador. Há uma batalha
acontecendo que faz a Passagem Aral parecer uma briguinha:
homens cortando os outros com aço brilhante e gritos selvagens, os
urros das tropas, os gritos dos feridos, os grunhidos dos
agonizantes. Mesmo assim, estou indo em frente, tão desesperado
pelo mundo dos vivos que até mesmo alguns poucos momentos
antes de alguém me espetar parecem valer a pena.
É a alma que me impede. A alma daquele que abriu esse
buraco para a morte. Eu o encaro de frente, surgindo, nascendo
para a morte. Não existe nada nele, apenas as linhas tênues que o
relembram – isso e o uivo de fúria, medo e dor de seus últimos
segundos. É o suficiente para me deter, no entanto. Ele passa por
cima de minha pele como uma queimadura, penetra nela e eu caio
para trás, gritando, tomado por suas memórias, afogando-me em
seu sofrimento. Martell é o nome dele. Martell Harris. Parece mais
importante que meu próprio nome. Tento dizer meu nome, seja ele
qual for, e percebo que meus lábios se esqueceram como formá-los.
“Levante-se, Jal!”
Estou no chão, com poeira levantando ao meu redor. Snorri
está ajoelhado ao meu lado, com os cabelos escuros em volta do
rosto. Estou perdendo-o. Afundando. A poeira levantando, mais
grossa a cada instante. Sou Martell Harris. A espada entrou em mim
como o gelo, mas estou bem, só preciso voltar para a batalha.
Martell mexe meus braços, esforça-se para levantar. Jalan
desapareceu, afundando-se na poeira.
“Fique comigo, Jal!” Posso sentir as mãos de Snorri sobre mim.
Nada mais, apenas aquelas mãos de ferro. “Não deixe ele afastar
você. Você é Jalan. Príncipe Jalan Kendeth.”
O fato de Snorri dizer meu nome correto – com título e tudo –
me sacode do abraço macio da poeira.
“Jalan Kendeth!” As mãos se apertam. Dói muito. “Diga! DIGA!”
“Jalan Kendeth!” As palavras saíram de mim em um grande
grito.

*****

Eu me vi cara a cara com a coisa que um dia foi o filho de Sheik


Malik, Jahmeen, antes de o djinn queimá-lo até ficar oco. De alguma
maneira, a lembrança daquela alma infernal se empurrando para
dentro de mim, roubando meu corpo, levou-me de volta àquele
momento, lutando com o djinn por controle, usando todos as
artimanhas que havia aprendido nas terras áridas.
O aperto em meu pulso é como ferro, ancorando-me. E que dor!
Com a volta dos meus sentidos, descobri que meu braço inteiro
estava pegando fogo. Desesperado para escapar antes que o djinn
pudesse sair de Jahmeen e me possuir no lugar dele, dei-lhe uma
cabeçada bem na cara e soltei meu braço com um puxão. Um
segundo depois, meti os dois calcanhares com fúria nas laterais de
meu camelo. Com um solavanco e berro de protesto, o bicho
começou a galopar, comigo balançando em cima, segurando-me
com todos os membros à minha disposição.
Nem olhei para trás. Donzelas em perigo que se danassem.
Antes de me livrar daquele aperto, eu havia sentido uma sensação
familiar. À medida que o djinn tentava entrar em mim, eu saía de
mim. Eu sabia exatamente como o Inferno era, e era exatamente
para lá que o djinn estava tentando mandar as partes de mim de
que não precisava.

Cerca de um quilômetro e meio depois, ainda seguindo o canal


entre as duas grandes dunas que nos cercavam, meu camelo parou.
Enquanto os cavalos frequentemente ultrapassam os limites de sua
resistência quando recebem estímulo suficiente, os camelos são
animais de temperamento muito diferentes. O meu simplesmente
decidiu que já tivera o bastante e parou abruptamente, usando a
areia para deter seu avanço. Um viajante experiente normalmente
capta os sinais de alerta e se prepara. Um viajante inexperiente,
assustado, precisa contar com a areia para parar também. Isto é
alcançado ao permitir que o impulso do viajante o lance por cima da
cabeça do camelo. O resto se resolve sozinho.
Rapidamente me levantei, cuspindo areia. Se tiver medo ou
constrangimento suficiente, um homem fica imune a tudo, exceto à
pior dor. Lá atrás, pela rota sinuosa que tracei entre as dunas, uma
tempestade de areia havia se formado. Quatro coisas me
preocupavam a respeito disso. Primeiramente, ao contrário da
poeira, a areia precisa de um vento do caramba para voar pelos
ares. Segundamente, em vez da tradicional parede tempestuosa
que avança, essa tempestade parecia estar localizada no vale entre
as duas dunas, com menos de duzentos metros de distância entre
elas. Terceiramente, o vento mal estava soprando. E finalmente, o
pouco vento que havia estava soprando na direção da tempestade,
e no entanto ela parecia estar vindo para cima de mim a uma
velocidade e tanto!
“Merda. Merda. Merda.” Saltei na direção do camelo e subi
rapidamente pela lateral dele. De algum modo, meu pânico
contagiou o camelo e o bicho maldito saiu correndo antes que eu
me sentasse na sela. Fiquei deitado, estatelado em cima de sua
corcova por vinte metros, segurando-me desesperadamente, mas já
é bem difícil ficar em cima de um camelo galopante quando se está
no lugar certo, e às vezes, infelizmente, o desespero não é um
aderente suficiente. Meu camelo e eu nos separamos, deixando-me
com um punhado de pelo de camelo na mão, um cobertor fedido, e
uma queda de dois metros até o chão.
As extremidades da tempestade de areia chegaram até mim
antes que eu conseguisse recuperar o ar que o impacto havia
retirado de meus pulmões. Dava para sentir o djinn ali, mais difuso
do que quando estava confinado dentro de Jahmeen, mas ainda
assim estava ali, arranhando os dedos arenosos em meu rosto,
queimando em todo grão que o vento levava.
Desta vez a invasão veio indiretamente. O djinn já tinha tentado
me dominar e chutar minha alma para o Inferno, mas, por algum
motivo, talvez porque acabara de voltar de lá, ou talvez pela magia
que corre nas veias dos Kendeth, eu consegui resistir. Agora, ela
tirou minha visão e minha audição, e enquanto eu estava lá curvado,
tentando respirar algum ar que não me queimasse os pulmões,
esperando não ser queimado vivo, o djinn alfinetava o fundo de
minha mente, procurando uma entrada. Mais uma vez, as
lembranças da viagem ao Inferno vieram à tona, com Snorri me
agarrando, tentando me ajudar a expulsar a alma daquele estranho,
tentando me ajudar a manter meu corpo.
“Sem chance.” As palavras saíram entre dentes cerrados e
lábios apertados. O djinn não me enganaria duas vezes. “Sou Jalan
Kendeth e conheço seus tru...”
Mas a areia agora é poeira, uma poeira sufocante, e estou
sendo carregado através dela por uma grande mão, com os dedos
enrolados em minha camisa.
“Sou Jalan Kendeth!” grito, e caio tossindo. A poeira misturada
à minha saliva parece sangue em minhas mãos – exatamente igual
a sangue. “...alan” cof “Kendeth!”
“Muito bem!” Snorri me põe de pé, dando tapas para tirar a
poeira de mim. “Um dos mortos trombou com você – quase
arrancou seu corpo fora!”
Senti que estava em outro lugar, algum lugar arenoso, fazendo
alguma coisa importante. Havia algo de que eu precisava me
lembrar, algo vital... mas o que era, exatamente, não consigo me
lembrar nem fazendo força.
“Arrancar meu corpo? Eles... eles podem fazer isso?” Mais
tosses. Meu peito dói. Limpo as mãos na minha calça, que já viu
dias melhores. “Os mortos podem tomar seu corpo?”
Snorri dá de ombros. “Melhor não ficar no caminho deles.” Ele
espera eu me recuperar, impaciente para seguir as almas que
vimos.
“Poeira e pedras.” Ainda não estou pronto. Inspiro o ar áspero.
“É esse o além mais assustador dos contadores de histórias
nórdicos?”
Novamente a encolhida de ombros. “Não somos como vocês,
seguidores do Cristo Branco, Jal. Não há paraíso em vista, nem
vagar em campos verdes para os abençoados, nem tomento eterno
para os perversos. Há apenas Ragnarok. A batalha final. Não existe
promessa de salvação nem final feliz, apenas que tudo terminará
em sangue e guerra, e os homens terão uma última chance de
erguer seus machados e gritar sua resistência ao fim dos tempos.
Os padres dizem que a morte é só um lugar para esperar.”
“Maravilha.” Eu me endireito. Estendendo a mão quando ele
tenta sair, digo: “Se é um lugar para esperar, para que tanta
pressa?”
Snorri ignora. Ele simplesmente estende o punho fechando,
abrindo-o e revelando a palma cheia. “Além do mais, não é poeira. É
sangue seco. O sangue de todas as pessoas que já viveram.”
“Posso fazê-lo ver o medo em um punhado de poeira.” As
palavras me escapam sem querer.
Snorri sorri ao ouvir aquilo.
“Elliot John,” digo. Uma vez passei um dia decorando citações
da literatura clássica para impressionar uma mulher de cultura
considerável – além de uma fortuna considerável e curvas como
uma ampulheta cheia de sexo. Não consigo me lembrar das
citações agora, mas de vez em quando uma delas vem à tona
aleatoriamente. “Um grande bardo da época dos Construtores. Ele
também escreveu algumas das músicas que vocês vikings estão
sempre assassinando em suas cervejarias!” Começo a me limpar.
“São só palavras bonitas, contudo. Poeira é poeira. Não me importa
de onde veio.”
Snorri deixa a poeira escorrer entre os dedos, levada pelo
vento. Por um instante é apenas poeira. Só depois é que eu vejo. O
medo. Como se a poeira se tornasse uma coisa viva, torcendo-se à
medida que cai, insinuando um rosto, de um bebê, de uma criança,
confuso demais para distinguir, podia ser qualquer um... eu... de
repente sou eu... ele envelhece, abatido, oco, um crânio, some.
Tudo que fica é o terror, como se eu visse minha vida passando em
um instante, poeira no vento, levada de maneira tão rápida quanto
sem sentido.
“Vamos.” Preciso sair, estar em movimento, sem pensar.
Snorri vai na frente, indo na direção que as almas tomaram,
embora não haja nem sinal delas agora.

Caminhamos por uma eternidade. Não há dias e noites. Estou com


fome e com sede, com mais fome e sede do que jamais estive, mas
isso não piora e eu não morro. Talvez comer, beber e morrer sejam
coisas que não aconteçam aqui, apenas esperar e sofrer. Esse lugar
começa a corroer você. Estou seco demais para reclamar. Só existe
a poeira, as pedras, os morros distantes que nunca se aproximam, e
as costas de Snorri sempre seguindo em frente.
“Imagino o que Aslaug pensaria deste lugar.” Talvez a
assustasse também, sem escuridão, com uma luz morta que não
traz calor nem forma sombras.
“Baraqel teria sido o melhor aliado para trazer para cá,” diz
Snorri.
Eu franzo os lábios. “Aquela velho chato? Ele certamente
encontraria muito material para seus sermões sobre moralidade.”
“Ele era um guerreiro da luz. Gostava dele,” diz Snorri.
“Estamos falando do mesmo anjo irritante, sim?”
“Talvez não.” Snorri deu de ombros. “Nós lhe demos voz. Ele se
construiu a partir de nossas imaginações. Talvez para você ele fosse
diferente. Mas nós dois o vimos na porta do mago do mal. Aquele
Baraqel seria útil.”
Tive de concordar com aquilo. Com metros de altura, asas
douradas e uma espada de prata. Baraqel podia ser um saco, mas
seu coração estava no lugar certo. Agora mesmo eu ficaria feliz em
tê-lo em minha cabeça me dizendo que eu era um pecador, se isso
significasse que ele apareceria quando o perigo se aproximasse.
“Acho que posso ter julgado mal...”
“Quê?” Snorri para, esticando o braço para me parar também.
Bem à nossa frente está uma pedra velha, cinzenta e
desgastada. Ela tem as runas romanas do algarismo seis e sangue
fresco brilhando em um dos lados. Olho em volta. Não há nada
mais, apenas este marco na poeira. Ao longe, muito atrás de nós,
consigo ver, entre as formas das enormes pedras espalhadas pela
planície, outro marco que parece tombado para a direita, quase
como a letra “r”.
Snorri se ajoelha para analisar o sangue. “Fresco.”
“Não deviam estar aqui.” Há sangue correndo em filetes pelo
rosto do menino que está falando, uma criança pequena, um pouco
mais alta que o marco de pedra. Ele não estava ali um segundo
atrás. Deve ter no máximo seis ou sete anos. Seu crânio está
afundado, seu cabelo loiro está escarlate de um lado. O sangue
escorre em linhas paralelas no lado esquerdo de seu rosto,
enchendo seu olho, dividindo-o como a própria Hel.
“Estamos de passagem,” diz Snorri.
Há um rosnado atrás de nós. Lentamente me viro e vejo um
cão-lobo se aproximando. Já vi um lobo Fenris, então já vi maiores,
mas este cachorro é enorme, a cabeça da altura das minhas
costelas. Ele tem aqueles olhos que dizem o quanto irá gostar de
comer você.
“Não queremos causar problemas.” Ponho a mão na minha
espada. A espada de Edris Dean. A mão de Snorri cobre a minha
antes que possa sacá-la.
“Não tenham medo, Justiça não irá machucá-los, ele só veio me
proteger,” diz o menino.
Eu me viro e fico com um lado voltado para cada um deles.
“Não estava com medo,” minto.
“O medo pode ser um amigo útil – mas nunca é um bom
professor.” O menino olha para mim, com o sangue pingando na
poeira. Ele não soa como um menino. Pergunto-me se ele decorou
aquilo do mesmo livro que usei.
“Por que está aqui?” pergunta-lhe Snorri, ajoelhando-se para
ficar no mesmo nível, apesar de manter distância. “Os mortos
precisam cruzar o rio.”
O cachorro dá a volta e para ao lado do marco de pedra, e o
menino levanta a mão para lhe fazer carinho nas costas. “Eu me
deixei aqui. Uma vez que se cruza o rio é preciso ser forte. Eu só
tomei o que precisava.” Ele sorri para nós. É um menino de boa
aparência... tirando todo o sangue.
“Olhe,” digo. Eu me aproximo dele, passando por Snorri. “Você
não deveria estar aqui sozi...”
De repente o cachorro é maior do que qualquer lobo Fenris, e
está em chamas. As chamas envolvem a fera, da cabeça às garras,
brilhando em seus olhos. Sua bocarra está a trinta centímetros do
meu rosto, e quando ele a abre para uivar, um inferno explode,
atravessando seus dentes.

“Não!” gritei e me vi cara a cara com o djinn, no centro da


tempestade de areia. De alguma maneira eu conseguira resistir às
suas tentativas de me expulsar de meu corpo outra vez. Talvez o
cachorro infernal daquela criança o tenha assustado. Certamente
me assustou para cacete, e bem rápido!
Eu só vi o djinn porque cada grão de areia que atravessava seu
corpo invisível se aquecia a ponto de incandescência, revelando o
espírito formado pelo brilho, deixando um rastro de areia ardente do
lado oposto de onde o vento passava. Ali, diante de mim, estava um
demônio como eu sempre imaginei, saído da imaginação fértil dos
religiosos, com chifres, presas e olhos ardentes.
“Caralho.” Minha próxima descoberta foi que estar enterrado até
o peito na areia dificulta a fuga. E a descoberta seguinte foi pior.
Através da tempestade, dava para ver um corpo, esparramado na
duna atrás do djinn. Uma calmaria momentânea possibilitou uma
visão melhor... e de alguma forma era eu deitado ali, de boca aberta
e cego. O que significava que era eu quem estava observando...
uma alma ejetada sendo sugada para o Inferno!
O djinn manteve sua posição, bem à minha frente, ilustrado
pela areia brilhante atravessando seu corpo. Ficou parado ali, entre
mim e o meu corpo, ao alcance da mão. Ele nem precisava me
empurrar, a duna parecia ávida por me engolir. Morrendo de medo,
enfiei meus braços para baixo e tentei sacar minha espada, mas a
areia me derrotou e minha mão voltou vazia. Tirei a chave do meu
peito, sem saber como ela iria ajudar... nem se aquela realmente era
a chave, já que aparentemente havia uma idêntica pendurada no
pescoço de meu corpo, quando me olhei durante a calmaria. Apertei
a chave com a maior força que pude. “Vamos lá! Me dê alguma
coisa que eu possa usar!”
No instante da minha reclamação, a areia à minha volta
desabou, revelando um alçapão incongruentemente inserido na
duna, e eu com dois terços do corpo dentro dele. À medida que a
areia caiu pelo buraco, eu caí também. Consegui colocar os dois
braços para fora e me segurar ali, pendurado sobre uma planície
árida familiar iluminada pela mesma luz morta. “Ah, essa não!”
Encontrando pouco apoio na duna, e ainda escorregando para
dentro do buraco, centímetro a centímetro, agarrei a única outra
coisa ali. Parte de mim esperava que minhas mãos ardessem, mas,
apesar do efeito que tinha na areia, eu não tinha sentido calor
nenhum no djinn, apenas a explosão silenciosa de sua fúria e ódio.
Embaixo dos dedos da minha alma, o djinn era
borbulhantemente quente, mas não tanto que eu quisesse me soltar
e cair no Inferno, deixando meu corpo de brinquedo para ele.
“Desgraçado!” Eu me arrastei para cima do djinn, agarrando chifres,
esporões, pneuzinhos, o que estivesse à mão. Com uma força
nascida do medo, eu estava dois terços para fora do alçapão antes
que o djinn sequer percebesse o que havia acontecido. A surpresa
desequilibrou o gênio e, embora minha alma não pesasse tanto na
balança quanto algumas, foi o suficiente para puxar o djinn para
frente e para baixo enquanto eu subia.
Em instantes, nós dois estávamos entrelaçados, cada um
tentando jogar o outro dentro do alçapão, os dois metade dentro,
metade fora. Meus principais problemas eram que o djinn era mais
forte que eu, mais pesado que eu – o que parecia totalmente injusto,
considerando que o vento soprava através dele – e abençoado com
os já mencionados chifres e esporões, além de um conjunto de
dentes triangulares que pareciam capazes de cortar ossos.
O fato é que, quando é sua alma que está lutando, chifres
afiados e bordas pontudas são menos importantes do que a sua
vontade de ganhar – ou, no meu caso, de me libertar. O pânico pode
não ser muito útil na maioria das situações, mas o pavor bem focado
pode ser uma bênção. Enfiei a chave de Loki no olho do djinn,
agarrei os dois lóbulos das orelhas, e me puxei por cima dele,
metendo o pé na sua nuca e jogando-o mais para dentro do
alçapão... onde seu peso o deixou entalado. Precisei pular em cima
dele várias vezes, com os dois pés esmagando seus ombros, até
que, como uma rolha estourando de uma ânfora, ele atravessou
com tudo. Quase caí junto dele, mas com um salto, uma corrida e
uma boa dose de pânico, eu me vi deitado na duna, com os ventos
diminuindo e a areia se assentando ao meu redor.
Rapidamente fechei o alçapão e o tranquei com a chave de
Loki, percebendo naquele instante que a porta havia desaparecido,
e eu estava enfiando a chave na areia. Dei de ombros e me
aproximei com cuidado para inspecionar meu corpo. Reabitar seu
próprio corpo é incrivelmente fácil, o que é bom, porque imaginei o
sheik e seus homens aparecendo e me encontrando ali, e meu eu-
alma teria que ir atrás deles a pé, enquanto me jogavam sobre um
camelo e me sujeitavam a indignidades pagãs. Ou pior ainda, eles
poderiam passar por mim sem me ver, debaixo de minha capa de
areia, e me deixado olhando meu corpo se ressecando, a pele seca
descascando no vento, até eu ficar sentado sozinho, vendo o
deserto engolir meus ossos... Então foi uma sorte que, assim que eu
pus o dedo de minha alma em meu corpo, fui sugado para dentro e
acordei tossindo.
Eu me sentei e imediatamente pus a mão na chave em volta do
pescoço. Eu não fazia ideia do quanto daquilo que havia visto era
real ou se era apenas a forma como minha mente interpretou a luta
com o djinn. Até desconfiei que a própria chave tinha criado aquelas
cenas para mim, baseadas no senso de humor distorcido de Loki.

Os batedores da caravana me encontraram cerca de meia hora


depois, agachado na duna escaldante, a cabeça coberta com o
cobertor fedido que arrancara de meu camelo. Os Ha’tari me
escoltaram de volta até Sheik Malik, empurrando-me à frente deles
como um prisioneiro fugido.
O sheik veio com seu camelo em nossa direção enquanto nos
aproximávamos, com dois guardas flanqueando-o no trajeto. Atrás
dele, na frente da caravana, eu vi Jahmeen, caído em cima de sua
sela, com seus dois irmãos mais novos vindo de cada lado e
mantendo-o no lugar. Imaginei que o sheik não estaria com o melhor
dos humores.
“Meu amigo!” Levantei a mão e lhe dei um sorriso largo. “Que
bom ver que não há mais djinns. Estava com medo que aquele que
afugentei pudesse não ser o único agressor!”
“Afugentou?” A confusão desfez a dureza em torno dos os
olhos do sheik.
“Eu vi que o monstro tinha pegado Jahmeen, então o empurrei
para longe e saí correndo imediatamente, sabendo que ele viria
atrás de mim para se vingar. Se eu ficasse, ele teria procurado um
alvo mais fácil para habitar e usar contra mim.” Balancei a cabeça
com um ar sábio. É sempre bom ter alguém que concorde com você
numa discussão dessas, mesmo que seja só você mesmo.
“Você empurrou o djinn para longe...”
“Como está Jahmeen?” Acho que consegui fazer com que a
preocupação soasse verdadeira. “Espero que ele se recupere logo...
Deve ter sido uma coisa terrível.”
“Bem.” O sheik olhou para seu filho lá atrás, imóvel sobre o
camelo parado. “Vamos orar para que seja logo.”
Eu tinha sérias dúvidas. Pelo que tinha visto e sentido, achei
que Jahmeen havia sido queimado por dentro, com o corpo quente,
mas praticamente morto, com a alma nas terras mortas,
aproveitando o que sua fé lhe dizia ser o destino de um homem de
sua estirpe. Ou talvez padecendo disso.
“Em alguns dias, espero!” Continuei sorrindo. Dentro de meio
dia nós estaríamos em Hamada e eu me livraria do sheik, de seus
camelos e seus filhos para sempre. Infelizmente me livraria também
de suas filhas, mas era um preço que estava disposto a pagar.
4

Hamada é uma cidade imponente, e põe no chinelo a maioria da


outras do Império Destruído, mas não gostamos de falar sobre isso
lá na cristandade. Só é possível chegar lá através do deserto, então
ela é sempre bem-vinda aos olhos. Não há grandes muralhas, pois
só serviriam para juntar areia, formando uma rampa para os
inimigos. Ela simplesmente se eleva lentamente do chão, onde as
águas subterrâneas delimitaram as dunas com uma grama alta.
Primeiro são cúpulas de barro, que ficam branquíssimas depois da
caiação, meio enterradas, com os interiores escuros imperscrutáveis
aos olhos ofuscados pelo sol. As construções crescem em estatura
e o solo se abaixa na direção daquela água prometida, revelando
torres, minaretes e edifícios palacianos de mármore branco e arenito
claro.
Ver a cidade crescer diante de nós, saindo do deserto, fez todos
ficarem em silêncio, interrompendo até a conversa sobre o Sol dos
Construtores, os intermináveis porquês, as discussões circulares
sobre o que aquilo tudo significou. Existe alguma coisa mágica em
ver Hamada após uma eternidade no Sahar – e acredite em mim,
dois dias é uma eternidade num lugar daqueles. Fiquei duplamente
agradecido pela distração, já que tinha sido tolo o bastante para
dizer que a maior parte de Gelleth fora devastada por uma das
armas dos Construtores e que eu havia visto as margens da
destruição. O sheik – que obviamente prestou bem mais atenção às
aulas de história do que eu – notou que nenhum Sol dos
Construtores havia explodido em mais de oitocentos anos, o que
tornavam extremamente remotas as chances de um homem
testemunhar dois acontecimentos desses. Apenas a visão de
Hamada o deteve de continuar com aquela observação e chegar à
conclusão de que eu estava de alguma forma envolvido nas
explosões.
“Vou ficar feliz de descer deste camelo.” Rompi o silêncio. Eu
estava com a espada que havia tomado de Edris Dean e a adaga
que trouxera de Hell comigo, ambas devolvidas a pedido meu após
o incidente com o djinn. Em Hamada, trocaria minha túnica por algo
mais adequado. Com um cavalo debaixo de mim, eu me sentiria
como nos velhos tempos rapidinho!
Há um portão a oeste de Hamada, com cinquenta metros de
muro isolado de cada lado, uma passagem arqueada alta o
suficiente para elefantes com assentos altos e emplumados nas
costas. O Portão da Paz, como o chamam, e os sheiks sempre
entram na cidade por ele. Portanto, com a civilização
tentadoramente perto, nossa caravana se virou e percorreu o
perímetro da cidade para que pudéssemos manter a tradição.
Fiquei perto da frente da coluna, mantendo uma distância
cautelosa de Jahmeen, sem confiar totalmente que o djinn não fosse
encontrar uma maneira de voltar para dentro dele e fugir das terras
mortas. A única coisa boa daquele último quilômetro da viagem foi
que o resto de nossa água foi compartilhado entre as pessoas, uma
verdadeira abundância. Os Ha’tari a derramaram goela abaixo, nas
mãos, sobre o peito. Eu simplesmente bebi até minha barriga inchar
e não aguentar mais. Mesmo assim, a sede que as terras mortas me
causaram ainda estava ali, ressecando minha boca enquanto eu
tomava o último gole.
“O que vai fazer, príncipe Jalan?” O sheik nenhuma vez
perguntou como eu fui parar no deserto, talvez confiando que fosse
a vontade de Deus, provada por minha profecia verdadeira e além
da compreensão. Apesar de não ter interesse em meu passado, ele
parecia interessado em meu futuro. “Ficará em Liba? Venha ao
litoral comigo e lhe mostrarei meus jardins. Temos mais do que areia
no norte! Talvez possa ficar?”
“Ah. Talvez. Mas primeiro quero aparecer na Mathema e
procurar um velho amigo.” Tudo que eu queria era chegar em casa
inteiro, com a chave. Era bem difícil que os três florins duplos e
algumas moedas menores em meu bolso me levassem até lá. Se
pudesse tirar partido da boa vontade de Sheik Malik até o litoral,
seria ótimo – mas me perguntei se a benevolência dele duraria a
viagem toda. Na minha experiência, nunca demora muito para que
qualquer má sorte seja atribuída ao forasteiro. Quantas semanas de
viagem levariam até que a falta de recuperação de seu filho
amargurasse o sheik e ele começasse a encarar os acontecimentos
de outra maneira? Quanto tempo passaria até meu papel como a
pessoa que o alertou do perigo se distorcesse e me pintasse como
aquele que trouxe o perigo?
“Meus negócios me prenderão em Hamada por um mês...” O
sheik se interrompeu enquanto nos aproximamos do Portão da Paz.
Um corpo retorcido estava amarrado acima do arco – o cadáver
mais estranho que tinha visto em um bom tempo. Retalhos de pano
preto voavam em torno do corpo: embaixo deles, a pele da vítima
estava mais branca que a de um viking, exceto pelos muitos lugares
onde estava rasgada e escurecida com sangue velho. O verdadeiro
choque veio de onde os membros pendiam, quebrados, e a carne,
aberta por golpes de espada, deveria revelar os ossos. Em vez
disso, era metal que brilhava em meio ao monte fervilhante de
moscas. Uma gralha-preta as fez sair zumbindo, e pela nuvem preta
eu vi aço prata, articulado nas juntas.
“Isso é obra dos Mecanistas,” falei, protegendo os olhos para
enxergar melhor quando nos aproximamos. “O homem parece
quase um moderno de Umbertide, mas por dentro ele é...”
“Mecânico.” Sheik Malik parou pouco antes de passar por baixo
do arco. A coluna atrás de nós começou a se amontoar.
“Eu juraria que era um banqueiro.” Pensei no querido Marco
Onstantos Evenaline da Casa Ouro, Derivados Mercantis do Sul. O
homem havia me ensinado o comércio de perspectivas. Durante um
tempo eu gostei de participar da especulação louca que governava
o fluxo de ouro pelos doze maiores bancos florentinos. Bancos que
às vezes pareciam dominar o mundo. Imaginei se aquele poderia
ser ele – se fosse, ele não governou suas próprias perspectivas
muito bem. “Pode até ser um que tenha conhecido.”
“Isso seria difícil de saber.” Sheik Malik impulsionou seu camelo
para frente.
“Verdade.” Umas doze ou mais flechas de balestra pareciam ter
cruzado a cabeça do banqueiro, deixando muito pouco de seu rosto
e arruinando o crânio de aço prata por trás. Mesmo assim, pensei
em Marco, que vi pela última vez com o necromante Edris Dean.
Marco, com sua quietude inumana e seus projetos de unir carne
morta a engrenagens mecânicas. Quando seu superior, Davario, o
chamou pela primeira vez, eu achei que fosse para me mostrar um
soldado mecânico com uma mão de cadáver. Talvez a piada tenha
sido que o próprio homem trazendo o soldado fosse um morto em
volta da estrutura alterada de uma criação dos Mecanistas.

Os Ha’tari permaneceram ao portão, cantando suas orações para


nossas almas, ou pela nossa justa condenação, enquanto a comitiva
do sheik passava. Deixamos a multidão de pivetes maltrapilhos que
nos seguiam desde os arredores ali também, e em questão de
metros ela foi substituída por uma turba de hamadianos de todas as
posições, desde vendedores de rua a príncipes trajando seda, todos
clamando por novidades. O sheik começou a discursar para eles na
língua do deserto, um idioma rápido e afiado como uma faca. Deu
para ver, pelos rostos deles, que sabiam que não seriam notícias
boas, mas poucos conseguiriam compreender ainda quão ruins elas
seriam. Nenhuma pessoa da reunião no Oásis de Palmeiras e Anjos
jamais passaria por aquele portão novamente.
Aproveitei a oportunidade para descer de meu camelo e
atravessar a multidão. Ninguém me viu sair, compenetrados como
estavam pelos relatos de Sheik Malik.
A cidade parecia quase vazia. Sempre parece. Ninguém quer
ficar no forno das ruas quando há interiores mais frescos, com
sombra. Passei pelos prédios imponentes, construídos pela riqueza
de califas do passado para o povo de Hamada. Para um lugar que
não tinha nada além de areia e água, Hamada havia acumulado
uma quantidade impressionante de ouro ao longo dos séculos.
Ao andar pelas ruas cobertas de areia, com minha sombra
escura em torno dos pés, eu podia imaginá-la uma cidade fantasma,
assombrada pelos djinns e esperando que a maré das dunas a
engolisse.
O declive repentino que revela o lago é sempre uma surpresa.
Ali à minha frente estava uma ampla extensão de água que pegava
o azul cansativo do céu e o transformava em algo anil e gracioso. O
palácio do califa ficava do outro lado do lago, uma grande cúpula
central rodeada por minaretes e vários prédios interligados, brancos
e brilhantes, cheios de galerias e frescos.
Contornei o lago, passando pelos degraus e colunas de um
antigo anfiteatro construído pelos homens de Roma, antes da época
em que Cristo os encontrou. A Torre da Mathema ficava recuada da
água, mas com uma vista indevassada, subindo até os céus e
diminuindo todas as outras torres de Hamada, até mesmo a do
próprio califa. Aproximar-me dela me trouxe lembranças incômodas
da Torre das Fraudes de Umbertide, embora a da Mathema tenha
metade da largura e o triplo da altura.
“Bem-vindo.” Um dos estudantes de túnica preta descansando
à sombra da torre se levantou para me interceptar. Os outros, talvez
uns doze no total, mal levantaram os olhos de suas pranchetas,
ocupados rabiscando seus cálculos.
“Wa-alaikum salaam,” cumprimentei de volta. Você acharia que
depois de toda a areia que engoli eu saberia mais da língua do
deserto, mas não.
O diálogo pareceu esgotar tanto o vocabulário dele do Império
quanto o meu de araby, e um silêncio constrangedor se estendeu
entre nós. “Isso é novidade.” Acenei para a entrada aberta. Havia
uma porta de cristal preto ali que só se abria resolvendo um enigma
de padrões, diferente toda vez. Quando era estudante, nunca levei
menos que duas horas para abri-la. Em uma ocasião, demorei dois
dias. A total inexistência de uma porta agora era uma mudança
agradável, apesar de inesperada, embora eu estivesse bem ansioso
para enfiar a chave de Loki na desgraçada e vê-la se abrir para mim
imediatamente.
O estudante, um jovem de feições estreitas da Araby longínqua,
os cabelos pretos lambidos, franziu o rosto para mim como se se
lembrasse de alguma calamidade. “Jorg.”
“Com certeza,” assenti, fingindo que entendi. “Agora vou subir
para ver Qalasadi.” Passei por ele e segui o pequeno corredor até a
escada que leva ao interior da muralha externa. Ver as equações
gravadas na parede e subindo em espiral com as escadas por
muitos metros só me fez lembrar da tortura que foi meu ano em
Hamada. Não era o nível de tortura de vagar pelas terras mortas,
mas a matemática chega bem perto quando se está de ressaca em
um dia quente. As equações me seguiram à medida que subi. Um
exímio matemágico pode calcular o futuro, enxergando tanto entre
as somas rabiscadas e integrações complexas em suas lousas
quanto a Irmã Silenciosa enxerga com seu olho cego, ou as völvas
extrapolam ao jogarem suas runas. As pessoas são apenas
variáveis para os matemágicos de Liba, e a extensão do que eles
veem e que objetivos têm são segredos conhecidos apenas pela
ordem deles.
Cheguei à metade do nível Ômega no alto da torre, quando
parei para recuperar o fôlego, suando à beça. Os quatro grão-
mestres da ordem se revezam na presidência ao longo do ano, e eu
esperava que o encarregado atual se lembrasse de mim e de
minhas ligações com o trono de Marcha Vermelha. Qalasadi era a
melhor opção, já que foi ele que planejou meu ensino durante minha
estadia. Com um pouco de sorte, os matemágicos organizariam
minha travessia para casa em segurança, talvez até calculando um
caminho livre de riscos.
“Jalan Kendeth.” Não foi uma pergunta.
Eu me virei e Yusuf Malendra preencheu a escadaria atrás de
mim, com as túnicas brancas rodopiando, um sorriso brilhante e
preto naquele rosto cor de café moca. Havia visto-o pela última vez
em Umbertide, aguardando no saguão da Casa Ouro.
“Dizem que não há coincidências para os matemágicos,” disse,
enxugando minha testa. “Você calculou o local e o momento de
nosso encontro? Ou foi apenas o término de seus negócios em
Florença que o trouxe de volta para cá?”
“Esta última, meu príncipe.” Ele parecia genuinamente contente
em me ver. “É claro que temos coincidências, e esta é uma muito
feliz.” Atrás dele apareceu um aluno ofegante subindo as escadas.
Um pensamento me ocorreu de repente, a imagem de um corpo
branco, vestido de preto, destruído e pendurado no Portão da Paz
sob o sol do deserto. “Marco... aquele era Marco, não era?”
“Eu...”
“Jalan? Jalan Kendeth? Não acredito!” Uma cabeça surgiu atrás
do ombro de Yusuf, larga, escura, com um sorriso tão largo que
parecia ir de orelha a orelha.
“Omar!” Assim que pus os olhos no rosto sorridente de Omar
Fayed, sétimo filho do califa, eu soube que minha provação havia
terminado. Omar estava entre meus companheiros mais fiéis lá de
Vermelhão, sempre disposto a cair na gandaia. Não era um grande
bebedor, mas tinha um amor pelo jogo que superava até o meu, e
os bolsos mais cheios de todos os jovens que já conhecera. “Agora
me diz que isso foi coincidência!” provoquei Yusuf.
O matemágico abriu as mãos. “Não sabia que príncipe Omar
tinha voltado a Hamada e a seus estudos na Mathema?”
“Bem...” Tive de admitir que sabia.
“Disseram que você tinha morrido!” Omar se espremeu ao
passar por Yusuf e pôs a mão em meu ombro. Por ser baixo, ele
precisou levantar a mão, o que era uma mudança, depois de tanto
tempo vivendo à sombra de Snorri. “Aquele incêndio... Eu nunca
acreditei neles. Vinha tentando fazer os cálculos para provar isso,
mas, bem, são complicados.”
“Fico feliz por poupá-lo do esforço.” Eu me peguei respondendo
ao sorriso dele. Era uma sensação boa estar de volta com gente
que me conhecia. Um amigo que se importava o bastante para
tentar descobrir o que tinha acontecido comigo. Depois de... sabe-se
lá quanto tempo caminhando no Inferno, tudo parecia um pouco
avassalador.
“Venha.” Yusuf me poupou do constrangimento de cair no choro
na frente deles ali na escada e mostrou o caminho, descendo meia
dúzia de degraus até a porta do nível Lambda e nos levando para
uma pequena sala do corredor principal.
Nós nos sentamos em volta de uma mesa lustrosa, na sala
abarrotada de pergaminhos e volumes grossos encadernados com
couro. Yusuf serviu três copinhos de café bem forte de um jarro de
prata apoiado na janela.
“Preciso ir para casa,” disse, fazendo uma careta ao virar o café
de uma vez só. Não fazia sentido ficar enrolando.
“Por onde você andou?” perguntou Omar, ainda com um sorriso
lhe dividindo o rosto. “Veio para o sul após escapar do incêndio? Por
que o sul? Para que fingir que estava morto?”
“Fui para o norte, na verdade, às pressas, mas a questão é que
estive... incomunicável... por alguns... hum... Hoje é quando?”
“Como?” Omar franziu o rosto, confuso.
“Estamos no 98º ano interregno, no décimo mês,” disse Yusuf,
observando-me com atenção.
“Por... hum...” Admito que fiquei com um pouco de vergonha por
ter dificuldade com subtração na frente de um mestre matemágico
da Mathema. “Cerca de, bem, caramba! Meses, quase meio ano!”
Não fazia meio ano, fazia? Por um lado, a sensação era de duas
vidas inteiras, mas por outro, se eu considerasse as coisas que
aconteceram de fato, parecia que dava para encaixá-las em uma
semana.
“Kelem!” Soltei aquele nome antes de decidir se aquilo era algo
inteligente a se fazer ou não. “Fale sobre Kelem e os clãs de
banqueiros.”
“O controle de Kelem sobre os clãs está fragilizado.” As mãos
de Yusuf passaram para cima da mesa, mexendo os dedos como se
fosse difícil para ele não anotar os termos e equilibrar as equações
com novas informações. “Os cálculos indicam que ele perdeu sua
forma material.”
“O que isso significa?” perguntei.
“Você não sabe?” A sobrancelha esquerda de Yusuf insinuou
que ele não acreditava em mim.
Pensei em Aslaug e Baraqel, relembrando como a filha de Loki
enfureceu-se com Kelem quando a libertei, e a expressão de mágoa
em seus olhos pretos quando deixei Kara atirá-la de volta na
escuridão. “Os Construtores foram para o mundo dos espíritos...”
“Alguns deles sim,” disse Yusuf. “Um número pequeno. Eles
usaram as mudanças que causaram no mundo quando giraram a
Roda. Eles escaparam para outras formas quando seus corpos lhes
traíram. Outros foram copiados para as máquinas dos Construtores
e hoje existem lá, como ecos dos homens e mulheres mortos há
tanto tempo. Os Construtores que deixaram seus corpos foram
como deuses por um período, mas, quando as pessoas voltaram às
terras do oeste, suas expectativas se tornaram uma armadilha sutil.
Os espíritos Construtores se viram enredados por mitos, e cada
história cresceu em torno deles, reforçada por eles, tramando-os em
uma teia de crenças que tanto os moldava quanto os aprisionava,
até que eles nem se lembravam mais da época em que eram algo
além do que as pessoas acreditavam que fossem.”
“E Kelem?” Era ele que me preocupava. “Ele pode voltar? Será
que vai se lembrar... hum, do que aconteceu?”
“Vai levar um tempo para ele se recuperar. Kelem era jurado
pela rocha. Se ele não morreu de maneira adequada, com o tempo
ele irá para dentro da terra. E sim, ele irá se lembrar. Levará muito
tempo para ele se enredar na história. Talvez nunca, já que está
ciente do perigo.”
Olhei fixamente para as paredes de pedra à nossa volta.
“Preciso...”
Yusuf ergueu a mão. “Os jurados pela rocha agem lentamente.
Vai levar um tempo até Kelem mostrar o rosto ao mundo
novamente, e tempo é o que ele não tem, o que nenhum de nós
tem. O mundo está se partindo, príncipe Jalan. A Roda que os
Construtores giraram para mudar o mundo não parou de girar e, à
medida que ela corre solta, essas mudanças irão aumentar de
tamanho e velocidade até que não reste nada do que conhecemos.
Somos uma geração de homens cegos andando em direção a um
penhasco. Kelem não é a sua preocupação.
“A Dama Azul... o Rei Morto.” Eu não queria dizer o nome
deles. Estava conseguindo manter os dois longe dos meus
pensamentos desde que escapei do Inferno. Na verdade, se aquele
maldito djinn não tivesse despertado minhas memórias, talvez eu
conseguisse nunca mais pensar em toda aquela jornada e no pobre
Snorri. “É com esses dois que preciso me preocupar?”
“Dá na mesma,” assentiu Yusuf.
Omar só ficou ainda mais confuso e balbuciou “quem?” para
mim do outro lado da mesa.
“Bem.” Eu me recostei na cadeira. “Tudo isso está além do meu
alcance. Eu só quero chegar em casa.”
“É uma guerra importante para sua avó.” Yusuf disse as
palavras de maneira suave, mas elas tinham um peso
desconfortável.
“A Rainha Vermelha tem a guerra dela e pode ficar com ela,”
disse. “Não é o tipo de coisa que homens como eu podem mudar,
de uma maneira ou de outra. Não quero ter nenhuma parte nisso.
Só quero ir para casa e... relaxar.”
“Você diz isso, e no entanto vem mudando as coisas em um
ritmo espantoso, príncipe Jalan. Derrotar desnascidos nos desertos
do norte, destronar Kelem em suas minas, perseguir o Rei Morto até
o Inferno... e está com a chave, não está?”
Lancei um olhar de raiva para Yusuf. Ele sabia demais. “Estou
com uma chave, sim. E não pode ficar com ela. É minha.” Eu
guardaria a chave de Loki com todas as minhas forças até chegar
em casa. Daí a entregaria à velha no mesmo instante e esperaria
me afogar em elogios, ouro e títulos.
Yusuf sorriu para mim e encolheu os ombros. “Se não quer
participar na formação do futuro, então tudo bem. Vou lhe arranjar
uma passagem de volta a Marcha Vermelha. Vai levar alguns dias.
Relaxe aqui. Aproveite a cidade. Tenho certeza de que conhece a
região.”

Quando alguém libera você fácil demais, há sempre a desconfiança


de que eles sabem alguma coisa que você não sabe. É uma coisa
irritante, como uma queimadura de sol, mas conheço uma maneira
tiro-e-queda de melhorá-la.
“Vamos beber alguma coisa!”
“Vamos ganhar um pouco de ouro.” Omar inclinou a cabeça na
direção da biblioteca principal: quatrocentos metros depois dela, a
maior pista de corrida de Hamada estaria lotada de libanos gritando
para os camelos.
“Uma bebida primeiro,” disse eu.
Omar estava sempre disposto a entrar em acordo, embora
respeitasse a proibição ao álcool de sua religião. “Uma
pequenininha.” Ele apalpou sua forma redonda e, por baixo das
túnicas, moedas tilintaram umas contra as outras me deixando mais
tranquilo. “Eu pago.”
“Uma pequeninha,” menti. Nunca beba pouco quando é à custa
dos outros. E além do mais, eu não tinha a menor intenção de ir até
as pistas. Nos últimos dois dias já havia visto camelos mais que
suficientes.

A cidade de Hamada é oficialmente seca, o que é uma ironia, já que


é o único lugar onde se encontra água em centenas de quilômetros
quadrados de dunas áridas. Não se pode comprar nem beber álcool
de qualquer tipo em nenhum lugar do reino de Liba. O que é uma
pena, considerando o quanto aquele lugar é quente. No entanto, a
Mathema atrai estudantes ricos de todo o Império Destruído e dos
interiores mais longínquos do continente da Afrique, e eles trazem
consigo uma sede maior do que apenas de água ou de
conhecimentos. Dessa maneira, para aqueles que sabem onde
procurar, existem bebedouros de outro tipo em Hamada, para os
quais os imames e a guarda municipal fazem vista grossa.
“Mathema,” chiou Omar pelas barras de ferro que protegiam a
minúscula janela. A porta pesada que continha a janela ficava em
uma parede caiada, em um beco estreito no lado leste da cidade. A
porta de madeira por si só já dava bandeira, pois madeira custa caro
no deserto. A maioria das casas nessa região tinha uma tela de
contas para espantar as moscas e contavam com a ameaça de ser
empalado publicamente para dissuadir qualquer ladrão. Embora eu
nunca tenha entendido o horror que “publicamente” possa
acrescentar a “empalado”.
Seguimos o porteiro, um homem magro, de pele de ébano e
idade indefinida vestindo apenas uma tanga, por um corredor escuro
e abafado, passando pela entrada do porão onde um alambique
borbulhava sozinho perigosamente, cozinhando álcool de cereais do
tipo mais grosseiro, e subindo três lances de escada até o telhado.
Ali, um toldo de tecido estampado, flutuando entre vários suportes,
cobria todo o espaço do telhado, trazendo uma sombra abençoada.
“Dois whiskies,” disse ao homem, enquanto Omar e eu
desabamos sobre pilhas de almofadas.
“Para mim, não.” Omar balançou o dedo. “Água de coco com
noz moscada.”
“Dois whiskies e isso aí que ele falou.” Mandei o homem
embora com um aceno e me afundei ainda mais nas almofadas,
sem me preocupar com o que as deixara manchadas. “Nossa, como
eu preciso de um drinque.”
“O que aconteceu na ópera?” indagou Omar.
Não respondi. Não disse nenhuma palavra nem mexi nenhum
músculo, até que cinco minutos se passaram e um garoto de camisa
branca trouxe nossas bebidas. Eu peguei meu primeiro “whisky”.
Virei. Fiz aquele barulho ofegante e peguei o próximo. “Que.
Delícia.” Tomei o segundo em dois goles. “Mais três whiskies!” gritei
na direção das escadas – o garoto ainda não teria chegado lá
embaixo. Então rolei de volta. Aí eu contei minha história.

“E foi isso.” O sol havia se posto e o garoto voltou para acender


meia dúzia de lampiões, até que a corrida pelos destaques de minha
jornada havia passado do fatídico teatro de ópera até o Portão da
Paz em Hamada. “E ele viveu feliz para sempre.” Tentei me levantar
e me vi de quatro, consideravelmente mais bêbado do que imaginei
que estivesse.
“Incrível!” disse Omar, inclinando-se para frente com os dois
punhos sob o queixo. Ele podia estar falando sobre meu método de
finalmente encontrar o equilíbrio, mas acho que foi minha história
que o impressionou. Mesmo sem mencionar nada que me
aconteceu no Inferno e com a parte dos desnascidos e do Rei Morto
reduzida ao mínimo, era realmente uma história incrível. Se fosse
outra pessoa, eu acharia que ele estava gozando da minha cara,
mas Omar sempre acreditava em tudo que eu dizia – o que era uma
tolice e uma péssima característica para um jogador crônico, mas
fazer o quê?
Por um instante longo e agradavelmente silencioso eu me
recostei e saboreei meu drinque. Uma lembrança desagradável me
tirou abruptamente de meu devaneio. Bati meu whisky com força no
chão.
“O que diabos aconteceu no deserto, então?” Por mais que eu
goste de falar sobre mim, percebi que, na pressa de evitar me tornar
parte dos cálculos de Yusuf para salvar o mundo, eu havia
esquecido de perguntar por que motivo, somente pela segunda vez
em oito séculos, aparentemente, um Sol dos Construtores havia se
acendido, e por que tão perto de Hamada a ponto de sacudir a areia
das barbas deles?
“Meu pai fechou os olhos dos Construtores em Hamada. Acho
que talvez eles não gostem disso.” Omar pôs a palma da mão na
boca de seu copo e a deslizou pela borda.
“Quê?” Eu não estava me sentindo bêbado até tentar entender
o que ele disse. “Os Construtores já viraram pó.”
“Mestre Yusuf acabou de lhe dizer que eles ainda ecoam em
suas máquinas. Cópias de pessoas, ou pelo menos foram cópias há
muito tempo... Eles nos observam. Meu pai diz que eles nos
pastoreiam, nos guiam como cabras e ovelhas. Então ele foi atrás
dos olhos deles e os apagou.”
“Levou mil anos para alguém fazer isso?” Estendi a mão para
pegar meu copo, quase derrubando-o.
“Demorou muito tempo para a Mathema descobrir todos os
olhos dos Construtores.” Omar encolheu os ombros. “E mais ainda
para decidir a hora certa de compartilhar essa informação com o
califa.”
“Por que agora?”
“Porque nossas equações indicam que os Construtores podem
ter acabado o pastoreio e a orientação...”
Eu não queria saber o que vinha depois, então dei um gole em
meu whisky.
“...talvez seja a hora do abate,” disse Omar.
“Por quê, pelo amor de Deus?” O que eu realmente queria dizer
era por que eu? Se fizessem isso daqui a cem anos eu não ligaria a
mínima.
“A magia está destruindo o mundo. Quanto mais ela é usada,
mais fácil fica de usá-la e maiores ficam as rachaduras. Se nos
matarem, o talvez o problema desapareça.” Ele me observou com
os olhos escuros e solenes.
“Mas destruir Hamada dificilmente vai... ah.”
Omar assentiu. “Todo mundo. Em todos os lugares. E eles
podem fazer isso.”
Passos na escada, um vulto escuro correndo para o lado de
Omar, um diálogo sussurrado rapidamente. Observei, tentando me
concentrar, virando meu copo e descobrindo que estava vazio.
“Quem é seu amigo?”
Omar ficou de pé e eu me levantei também, e a firmeza dele me
fez perceber o quanto eu estava tonteando. “Está indo embora?” As
corridas terminaram horas atrás.
“Meu pai chamou todos nós ao palácio. Essa sua explosão
mudou as coisas – talvez tenha transformado a teoria em fato.
Todos nós vimos, e depois sentimos. Eu fui derrubado no chão.
Talvez meu pai irá dizer como e por que fomos poupados. Espero
que ele tenha um plano para impedir que isso aconteça novamente!”
Omar acompanhou o mensageiro do califa na direção das escadas,
acenando. “Muito bom ver você vivo, meu amigo.”
Eu meio que me sentei, meio que desabei de volta nas
almofadas. Embora ele nunca tenha usado isso contra mim, sempre
considerei que o fato de o pai de Omar ser o califa de Liba,
enquanto o meu era apenas um cardeal, era uma mancha negra em
seu nome. Até o sétimo filho parece uma coisa boa, para um
homem que é o décimo da linha de sucessão. Ainda assim, quando
o califa chama, você vai. Eu não podia usar isso contra Omar,
apesar de ele ter me deixado afogando as mágoas sozinho. Além de
ter contribuído para esses problemas com aquela conversa de
Construtores mortos há muito tempo e escondidos em máquina
antigas nos desejando mal. Mesmo bêbado eu não ia acreditar
nessa bobagem, mas definitivamente alguma coisa ruim estava
acontecendo.
Olhei para as estrelas lá em cima através de uma fresta no
toldo. “Que horas são, aliás?”
“Falta uma hora para meia-noite.”
Levantei a cabeça e olhei em volta. Era uma pergunta retórica.
Achei que estivesse sozinho ali em cima.
“Quem disse isso?” Eu não consegui identificar nenhuma forma
humana, apenas montinhos baixos de almofadas. “Mostre-se. Não
me faça beber sozinho!”
Um vulto escuro saiu do canto mais distante, perto da beirada
do telhado e da queda de quinze metros até a rua lá embaixo. Por
um momento meu coração saltou quando pensei em Aslaug, mas a
voz era de um homem. Uma figura magra, mas musculosa, se
estabeleceu, alta, mas não da minha altura, o rosto coberto pela
sombra e cabelos longos e escuros. Ele caminhava com o cuidado
exagerado dos muito bêbados, segurando um frasco de barro em
uma das mãos, e desabou com tudo nas almofadas desocupadas
por Omar.
O luar o revelou em uma nesga ondulada, entrando pela fresta
entre um toldo e outro. A luz prateada o pintou, partindo de uma
queimadura medonha que cobria sua bochecha esquerda, descendo
por uma camisa branca lisa até o cabo de uma espada. Um olho
escuro me olhou, cintilando em meio à queimadura, e o outro
perdido por trás dos cabelos. Ele ergueu seu cantil para mim e em
seguida tomou um gole. “Agora não está bebendo sozinho.”
“Isso é bom.” Tomei um gole de meu copo de estanho. “Não faz
nada bem um homem beber sozinho. Principalmente depois do que
eu passei.” Estava me sentindo bem sentimental, como é de praxe
para um homem embriagado sem música animada e boa
companhia.
“Estou muito longe de casa,” disse, de repente me sentindo tão
infeliz e com tanta saudade de casa quanto nunca.
“Eu também.”
“Marcha Vermelha fica mil e seiscentos quilômetros ao sul de
nós.”
“As Terras Altas de Renar ficam ainda mais longe.”
Por algum motivo que só os bêbados que me irritavam
conheciam, disse: “Passei por momentos difíceis.”
“São tempos difíceis.”
“Não só hoje.” Bebi novamente. “Sou príncipe, sabe?” Não
sabia exatamente como eu conseguiria compaixão com isso.
“Liba está transbordando de príncipes. Eu também nasci
príncipe.”
“Não que eu vá chegar a rei algum dia...” Mantive meu
raciocínio.
“Ah,” disse o estranho. “Meu caminho para a herança também
não está muito claro.”
“Meu pai...” De alguma maneira minha linha de raciocínio se
perdeu. “Ele nunca me amou. Um homem frio.”
“O meu também tem essa reputação. Nossas desavenças
foram... intensas.” O homem bebeu de seu cantil. A luz o captou
novamente e pude ver que era jovem. Ainda mais jovem que eu.
Talvez fosse o alívio de estar seguro e bêbado, em vez de
perseguido por monstros, que tenha causado isso, mas de alguma
maneira toda a mágoa e a injustiça de minha situação, para as quais
não houve tempo até agora, foram postas para fora.
“Eu era apenas um menino... eu o vi fazendo aquilo... matando
as duas. Minha mãe e minha...” Engasguei e não consegui falar.
“Uma irmã?” perguntou ele.
Fiz que sim e bebi.
“Eu vi minha mãe e meu irmão serem mortos,” disse ele. “Eu
também era pequeno.”
Eu não sabia se ele estava zombando de mim, aumentando
cada declaração minha com sua própria variação.
“Ainda tenho as cicatrizes daquele dia!” Levantei minha camisa
para mostrar a linha clara onde a espada de Edris Dean perfurou
meu peito.
“Eu também.” Ele puxou as mangas e mexeu o braço para que
o luar refletisse incontáveis marcas prateadas pontilhando sua pele.
“Jesus!”
“Ele não estava lá.” O estranho voltou para a sombra. “Só a
roseira-brava. E isso foi o suficiente.”
Fiz uma careta. Roseira-brava é um troço nojento. Meu novo
amigo parecia ter mergulhado de cabeça em uma. Ergui meu copo.
“Beber para esquecer.”
“Tenho maneiras melhores.” Ele abriu a mão esquerda,
relevando uma pequena caixa de cobre. O luar iluminou um
desenho de espinho que contornava a tampa. Ele até podia ter
maneiras melhores que o álcool, mas bebia bastante de seu cantil.
Fiquei olhando para a caixa, fascinado pela familiaridade dela,
mas familiar ou não, nenhuma parte de mim queria encostar nela.
Continha algo ruim.
Como meu novo amigo, bebi também, apesar de eu também ter
maneiras melhores de enterrar uma lembrança. Deixei o whisky
novo descer pela garganta, quase sem sentir o sabor a essa altura,
quase sem sentir o ardor.
“Beba para aliviar a dor, meu irmão!” Sou um bêbado amigável.
Se tiver tempo suficiente, eu sempre chego ao ponto em que todo
mundo é meu irmão. Mais alguns copos e declaro meu amor eterno
a todos eles. “Acho que não tem nenhuma parte de mim que não
esteja machucada.” Levantei minha camisa outra vez, tentando ver
os hematomas em minhas costelas. No escuro elas pareciam
menos impressionantes do que eu me lembrava. “Posso lhe mostrar
a marca de uma pata de camelo, mas...” Espantei a ideia com um
aceno.
“Também tenho alguns machucados.” Ele levantou a camisa e a
luz da lua mostrou os músculos rígidos de sua barriga. As cicatrizes
dos espinhos também o decoravam ali, mas foi seu peito que me
chamou a atenção. No ponto exato onde tenho uma cicatriz fina
registrando a entrada da espada de Edris Dean, meu companheiro
de bebida também tinha a marca da passagem de uma lâmina em
sua carne, apesar de a cicatriz ser preta, e dela saíam ramificações
escuras, espalhando-se como raízes por seu peito. Aqueles eram
ferimentos antigos, no entanto, curados há muito tempo. Ele tinha
ferimentos mais recentes – uma luz melhor as mostrariam raivosas
e vermelhas, a marca de uma lâmina na lateral, acima do rim, outros
cortes, perfurações, uma tapeçaria de ferimentos.
“Cacete. Que diabos...”
“Cachorros.”
“Cachorros raivosos do caramba!”
“Muito.”
Engoli a palavra “desgraçado” e tentei procurar alguma coisa,
alguma história que o desgraçado não superasse instantaneamente.
“Essa irmã que mencionei, morta quando vi minha mãe ser
assassinada...”
Ele olhou para mim, novamente apenas com um olho cintilando
sobre a queimadura, o outro oculto. “Sim?”
“Bem, ela não está propriamente morta. Está no Inferno
tramando seu retorno e planejando vingança.”
“Contra quem?”
“Mim, você.” Eu dei de ombros. “Contra os vivos.
Principalmente contra mim, acho.”
“Ah.” Ele se recostou novamente nas almofadas. “Bem, nessa
você ganhou.”
“Que bom.” Bebi novamente. “Estava começando a achar que
éramos a mesma pessoa.”
O garoto voltou com a jarra, encheu meu copo e colocou os
lampiões mais perto de nós para iluminar nossa conversa. O homem
disse alguma coisa para ele na língua do deserto, mas eu não
entendi. Bêbado demais. Além disso, não sei mais que as cinco
palavras que aprendi no ano em que morei na cidade.
Com a luz do lampião mostrando o rosto do camarada, de
repente tive uma sensação de déjà vu. Eu já o vira antes – talvez
recentemente – ou alguém que ele me lembrava muito. Pedaços do
quebra-cabeça começaram a se encaixar em meu torpor alcoólico.
“Príncipe, você disse?” Todo homem rico em Liba parecia ser
príncipe, mas no norte, de onde nós dois claramente viéramos,
“príncipe” era uma moeda mais valorizada. “De onde mesmo?” Eu
me lembrava, mas esperava estar errado.
“Renar.”
“Não de... Ancrath?”
“Talvez... uma vez.”
“Minha nossa! Você é ele!”
“Eu com certeza sou alguém.” Ele ergueu seu cantil bem alto,
secando-o.
“Jorg Ancrath.” Eu o conhecia, embora só o tivesse visto
daquela vez, há mais de um ano na taberna da cidade de Crath, e
ele não tinha a queimadura naquela época.
“Eu diria ‘ao seu dispor’, mas não estou. E você é um príncipe
de Marcha Vermelha, né? Então é do bando da Rainha Vermelha?
Ele foi apoiar seu cantil e errou o chão, mais bêbado do que
parecia.”
“Tenho essa honra,” disse, com os lábios dormentes e mal
formando as palavras. “Sou um das muitas experiências
reprodutoras dela – embora não uma das que mais lhe agrade.”
“Somos todos uma decepção para alguém.” Ele bebeu
novamente, afundando-se ainda mais em suas almofadas. “É
melhor decepcionar seus inimigos, no entanto.”
“Aqueles malditos matemágicos nos puseram juntos.” Eu sabia
que Yusuf tinha me deixado ir fácil demais.
Jorg não deu sinal de ter me ouvido. Imaginei se ele tinha
apagado. Uma longa pausa transformou-se em meia-noite, como
frequentemente acontece quando se está muito bêbado. O sino
distante o despertou para falar. “Já fiz muitos videntes engolirem
suas previsões.”
“Mas erraram em seus cálculos, desta vez – não tenho utilidade
nenhuma para você. Deveria ter sido minha irmã. Era ela que seria
a feiticeira. Para ficar ao seu lado. Levá-lo ao trono.” Vi meu rosto
molhado. Eu não queria pensar em nada disso.
Jorg murmurou alguma coisa, mas tudo que captei foi um
nome. Katherine.
“Talvez... ela nunca teve nome. Nunca chegou a ver o mundo.”
Eu parei, com a garganta sufocada com a tolice que bebida demais
provoca em um homem. Esvaziei meu copo. Há um escriba que
mora atrás dos nossos olhos, anotando um relato dos
acontecimentos para podermos ler mais tarde. Se você continuar
bebendo, em algum ponto ele enrola o pergaminho, guarda as
penas, e tira a noite de folga. O que permaneceu em meu copo foi o
suficiente para mandá-lo embora. Tenho certeza de que
continuamos a resmungar embriagadamente um para o outro, Rei
Jorg de Renar e eu. Suponho que fizemos algumas declarações
altas e apaixonadas antes de apagarmos. Provavelmente batemos
nossos copos no telhado e declaramos todos os homens nossos
irmãos ou inimigos, dependendo do tipo de bêbados que éramos,
mas não tenho nenhuma lembrança disso.
Recordo que confidenciei meus problemas com Maeres Allus
para o bom rei, e ele gentilmente me ofereceu um conselho sábio.
Lembro que a solução era ao mesmo tempo elegante e inteligente, e
que eu jurei adotá-la. Infelizmente, nem uma única palavra desse
conselho permaneceu comigo no dia seguinte.
Minha última memória é uma imagem. Jorg deitado
esparramado, morto para o mundo, parecendo bem mais jovem
dormindo do que eu jamais o imaginara. Eu puxando um tapete para
cima dele para proteger do frio da noite do deserto, e depois
cambaleando perigosamente na direção das escadas. Imagino
quantas vidas teriam sido salvas se eu tivesse apenas o empurrado
pela beira do telhado...

Muitas pessoas bebem para esquecer. O álcool leva embora o


finalzinho da noite, apagando conselhos úteis e incidentes
vexatórios ocasionais, ao mesmo tempo em que tenta traçar o
caminho de casa. Infelizmente, se você já desenvolveu um talento
para suprimir lembranças antigas, acumuladas enquanto se está
depressivamente sóbrio, o álcool muitas vezes derruba essas
barreiras. Quando isso acontece, em vez de dormir no
esquecimento abençoado dos profundamente inebriados, você na
verdade sofre o pesadelo de reviver os piores momentos que já
conheceu. Um rio de whisky me levou de volta às memórias do
Inferno.

“Jesus Cristo! O que foi aquela coisa?” digo ofegante entre


respirações longas, curvado ao meio, com as mãos nas coxas.
Olhando para trás eu vejo a poeira levantada que marca nossa fuga
apressada do garotinho e de seu cachorro ridiculamente grande.
“Você queria ver monstros, Jal,” disse Snorri, recostando-se em
outra pedra enorme que pontuam a planície.
“Um cachorro dos infernos...” Eu me endireito e balanço a
cabeça. “Bom, agora já vi o suficiente. Cadê essa porra de rio?”
“Vamos.” Snorri sai na frente, com o machado sobre o ombro,
as lâminas encontrando alguma coisa sangrenta naquela luz morta
e refletindo-a de volta para o Inferno.
Prosseguimos por mais um quilômetro, ou dez, na poeira. Estou
começando a ver vultos ao longe, almas mourejando pela planície
ou amontoadas em grupos, ou simplesmente paradas de pé.
“Estamos nos aproximando.” Snorri balança seu machado na
direção da sombra de um homem a algumas centenas de metros,
estaqueado entre as pedras. “É preciso coragem para cruzar o Slidr.
Muita gente pensa duas vezes.”
“Parece que há mais que falta de coragem segurando aquele
ali!” As estacas atravessam as mãos e os pés da alma.
Snorri balança a cabeça, seguindo em frente. “A mente cria
suas próprias amarras aqui.”
“Então todas essas pessoas estão condenadas a vagar aqui
para sempre? Elas nunca cruzarão para o outro lado?”
“As pessoas deixam ecos de si mesmas...” Ele faz uma pausa,
como se tentasse se lembrar das palavras. “Ecos espalhados pela
geometria da morte. Estas são peles soltas. Os mortos têm de
deixar tudo que não podem carregar sobre o rio.”
“De onde está tirando isso?”
“Kara. Eu não ia passar meses viajando até a porta da morte
com uma völva sem lhe fazer perguntas sobre o que esperar!”
Deixei aquela passar. Foi o que eu fiz, mas eu nunca tive a
menor intenção de ir parar ali.
Subimos duramente uma colina baixa, e atrás dela a terra
acaba. Lá embaixo de nós está o rio, uma fita prateada brilhante em
um vale que serpenteia às distâncias cinzentas, a única coisa em
todo aquele lugar horrível com algum vestígio de vida. Começo a
avançar, mas imediatamente o chão desaba em um penhasco um
pouco mais alto que eu, e em sua base uma ampla extensão de
roseiras-bravas, pretas e retorcidas, como se vê na floresta após as
primeiras geadas.
“Vamos ter de ir e...” Eu me interrompo. Há movimentos na
beira do espinheiro. Mudo de posição para ver melhor. É o menino
da pedra, saltando entre os espinhos, deixando-os brilhando. “Ei!”
“Deixe-o, Jal. É assim que é. Foi assim por uma eternidade
antes de chegarmos e vai ser assim após sairmos.”
Se sairmos!
“Mas...”
Snorri sai para encontrar um caminho mais fácil para descer.
Mas eu não consigo partir. É quase como se o espinheiro também
tivesse me prendido. “Ei! Espere! Se ficar parado, posso tirar você
daí.” Olho em volta, procurando uma maneira de descer sem me
jogar no meio dos espinhos.
“Não estou tentando sair.” O menino interrompe seus pulos e
olha para mim. Mesmo à distância, o rosto dele é um pesadelo,
esfolado pela roseira, com a pele rasgada, cravejada com espinhos
quebrados e enterrados até os ossos.
“O que...” Dou um passo para trás quando o chão se esfarela
embaixo dos meus pés e o solo arenoso cai do alto. “O que diabos
você está fazendo, então?”
“Procurando meu irmão.” Sangue escorre de seus lábios
rasgados. “Ele está aqui em algum lugar.”
Ele se joga de volta nos espinhos, que são tão longos quanto
os dedos dele e com um pequeno gancho atrás de cada ponta que
se aloja na pele.
“Pare! Pelo amor de Deus!”
Tento descer por onde o penhasco termina, mas a terra se solta
e eu corro de volta.
“Ele não pararia se fosse eu.” As palavras soam irregulares,
como se suas bochechas estivessem rasgadas. Eu mal posso vê-lo
no meio do espinheiro agora.
“Pare...” A mão de Snorri segura meu ombro e ele me puxa dali
no meio de meu protesto.
“Você não pode se prender a isso. Tudo aqui é uma armadilha.”
Ele me leva embora.
“Eu? Esse lugar não está com as garras em cima de você
desde que pegou aquela chave pela primeira vez?” São apenas
palavras, porém, sem exaltação. Não estou pensando em Snorri.
Estou pensando na minha irmã, morta antes de nascer. Estou
pensando no menino e em seu irmão, e no que eu seria capaz de
fazer para salvar minha própria irmã. Menos que aquilo, digo a mim
mesmo. Menos que aquilo.

Acordei, ainda bêbado, e com tantos demônios martelando dentro


de minha cabeça que levei uma eternidade para entender que
estava em uma cela de prisão. Fiquei deitado ali no calor, com os
olhos apertados de dor e a luz lancinante entrando por uma
pequena janela alta, sofrendo demais para gritar ou exigir minha
soltura. Omar me encontrou ali por fim. Não sei quanto tempo
depois. Tempo suficiente para deixar o conteúdo de um jarro de
água atravessar meu corpo e deixar o lugar fedendo um pouquinho
mais do que o encontrei.
“Vamos, velho amigo.” Ele me ajudou a levantar, encrespando o
nariz, ainda sorrindo. Os guardas observaram com reprovação atrás
dele. “Por que vocês do norte fazem isso a si próprios? Mesmo se
Deus não proibisse, beber é uma péssima escolha.”
Saí cambaleando pelo corredor até a sala dos guardas, fazendo
careta e vendo o mundo com os olhos apertados. “Nunca mais vou
fazer isso, então não vamos mais falar a respeito. Ok?”
“Você sequer se lembra do que lhe aconteceu ontem à noite?”
Omar me segurou quando tropecei para a rua, e com um resmungo
de esforço me manteve de pé.
“Alguma coisa com um camelo?” Eu me lembrava de alguma
discussão com um camelo nas altas horas da madrugada. Será que
ele me olhou da maneira errada? Com certeza eu decidi que ele era
responsável pela marca de pata no meu traseiro e todas as outras
afrontas que já havia sofrido com aquela espécie. “Jorg!” lembrei. “O
puto do Jorg Ancrath! Ele estava lá, Omar! Naquele telhado. Precisa
alertar o califa!”
Eu sabia que havia animosidade entre os reinos da Costa
Equina e Liba, ataques marítimos e coisas do tipo, e que os Ancrath
tinham alianças com os Morrow, o que tornava Liba uma inimiga. O
que eu achava que um único homem poderia fazer ao califa de Liba,
principalmente se sua cabeça estivesse como a minha esta manhã,
isso eu não sabia. Este, porém, era Jorg Ancrath, que destruíra o
duque Gellethar junto com seu exército, o castelo e a montanha
onde estavam. Nós retornamos por Gelleth, meses após a explosão,
e o céu ainda estava... “Jesus! A explosão. No deserto! Foi ele, não
foi?”
“Foi.” Omar fez sinal para a proteção de Alá. “Ele se encontrou
com meu pai e agora são amigos.”
Parei no meio da rua e pensei naquilo por um instante. “Está
começando a construir o império dele jovem, não é?” Eu estava
impressionado, contudo. Minha avó tinha alianças em Liba – ela ia
longe em sua procura por bons casamentos – mas seu objetivo era
procurar sangue que, misturado ao de seus filhos, produzisse um
herdeiro digno, alguém que preenchesse as lacunas das visões do
futuro feitas pela Irmã Silenciosa... minha irmã. Jorg de Ancrath
tinha outros planos, e eu pensei em quanto tempo ele levaria para ir
até Vyene apresentar seu caso ao Congresso e exigir o trono do
Império. “Até onde isso o levará, eu me pergunto...”
“O que acha dele?” Omar voltou para me buscar, o filho de um
califa esperando por mim na rua empoeirada. Ele parecia
estranhamente interessado em minha resposta. Foi aí que percebi
que nunca o vira tão claramente quanto ali naquela manhã,
preocupado com a minha dor auto-infligida. O doce e rechonchudo
Omar, o mau jogador, rico demais, amistoso demais para seu
próprio bem. Mas, quando ele me observou com uma intensidade
que guardava para as roletas, entendi que a Mathema via um
homem diferente – um homem que não só incluiria minha resposta
em uma equação de complexidade absurda, mas que também
pudesse resolvê-la. “Ele pode corresponder à ambição que tem?”
“Quê?” Segurei a cabeça. Nem precisei fingir. “Jorg? Não sei.
Não estou nem aí. Só quero ir para casa.”
5

Omar e Yusuf vieram até os arredores de Hamada para se despedir


de mim, Omar com a túnica preta dos estudantes e Yusuf com a de
padronagem fractal cinza e branca dos mestres e aquele sorriso
preto brilhante. Eles calcularam uma passagem segura até o litoral
para mim, com uma caravana de sal. Viajar com Sheik Malik, eles
disseram, não acabaria bem. Se minha derrocada seria causada por
instigação do sheik, por um djinn ou por homem morto, ou talvez por
indecência com suas filhas adoráveis, isso eles não disseram.
“Um presente, meu amigo!” Omar balançou a cabeça na
direção dos três camelos que seu empregado estava trazendo atrás
deles.
“Ah, seu desgraçado.”
“Vai acabar gostando deles, Jalan! Pense nos olhares que
atrairá em Vermelhão, chegando de camelo!”
Revirei os olhos e fiz sinal para o homem se aproximar e
adicionar meu trio ao rebanho carregado que pastava na grama um
pouco atrás de mim. Em pouco tempo aqueles oitenta bichos
estariam percorrendo as dunas, apenas comigo e doze
comerciantes de sal para manter a ordem.
“E mande à Rainha Vermelha lembranças de meu pai,” disse
Omar. “E de minha mãe também.”
Da mãe de Omar eu gostava. A segunda esposa mais velha,
das seis do califa, uma nubana alta do interior, escura como ébano e
atraente de dar água na boca. Engraçada também. Supus que o
senso de humor de Omar vinha de seu pai. Dar três camelos a um
homem após ter sido preso por bater em um é malvadeza, e nem
um pouco divertido.
Virei-me para Yusuf. “Então, mestre Yusuf, talvez tenha alguma
previsão para mim, algo que eu possa usar.” Por tradição, ninguém
de certa importância deixa Hamada sem alguma numerologia para
guiar o caminho. A maioria vem de estudantes fracassados que
oferecem seus serviços de qualquer maneira que podem, seja como
contadores, apostadores ou místicos vendendo previsões na rua.
Um príncipe, no entanto, pode esperar por uma auditoria de suas
possibilidades e probabilidades feita pela própria Mathema. E, já
que eu conhecia Yusuf desde minha época em Umbertide, parecia
não haver mal em tentar arrancar uma de um mestre.
O sorriso de Yusuf se enrijeceu por um instante. “É claro, meu
príncipe. Receio que nossos salões de cálculos estejam ocupados
com... notáveis. Mas posso fazer uma avaliação rápida.”
Fiquei parado ali, tentando não deixar transparecer minha
ofensa, enquanto Yusuf rabiscava com uma velocidade assustadora
em uma prancheta retirada de sua túnica. “Um, dois, treze.” Ele
levantou a cabeça.
Premi os lábios. “O que significa?”
“Ah.” Yusuf olhou novamente para a prancheta, como se
buscasse inspiração. “Primeira parada, segunda irmã, décimo
terceiro... alguma coisa.”
“Por que essas coisas nunca são do tipo, no terceiro dia da
primavera, dê ao quinto homem que vir quatro moedas de cobre
para evitar um desastre? Está vendo, isso é simples e útil. A sua
pode significar qualquer coisa. Primeira parada... a caminho de
casa? Um oásis? Um porto? E segunda irmã? Minha irmã? A Irmã
Silenciosa? Me ajude aqui!”
“O cálculo é feito baseado em dizer o que eu lhe disse – se
quisesse lhe dizer mais, teria de fazer o cálculo novamente e a
resposta seria diferente, um propósito diferente. Se eu lhe dissesse
mais agora, isso perturbaria o resultado e os números não seriam
mais verdadeiros. Além do mais, não sei as respostas, é aí que a
magia entra e é difícil de mensurar. Compreende?”
“Então faça de novo. Só lhe custou um instantinho.”
Yusuf me mostrou seu sorriso preto. “Ah, meu amigo, você me
pegou. Tenho processado suas variáveis desde a primeira vez que
nos vimos naquele banco de Florença. Posso ter lhe dado uma falsa
impressão quando insinuei que você não tinha importância nos
acontecimentos que estão por vir. Achei que talvez fosse mais fácil
para você se não soubesse.”
“Bem... é, assim está melhor.” Eu não tinha certeza se estava.
Ficaria mais feliz com a indignação de não ser um fator
suficientemente importante do que em saber que meus atos tinham
significância. “Eu, hum, preciso ir. Que Alá esteja com vocês e tudo
mais...” Levantei a mão para dar tchau, mas Omar foi mais rápido e
se atirou em um abraço que, verdade seja dita, foi praticamente um
chamego.
“Boa sorte, meu amigo.”
“Não preciso de sorte, Omar! E tenho os números para provar...
um dois, três...”
“Treze.”
“Um dois, treze. Isso deve me manter seguro. Venha nos visitar
em Marcha Vermelha quando estiver de saco cheio de balancear
equações.”
“Eu vou,” disse ele, mas, por experiência própria, sei que é
preciso prática para mentir quando se está abraçadinho a alguém, e
Omar não havia praticado.
Eu me desvencilhei e saí para a frente da caravana.
“Não esqueça seus camelos, Jalan!”
“Certo.” E, com relutância, virei para os últimos do bando sendo
enfileirados, já me preparando para desviar do primeiro bombardeio
de cuspe de camelo.

O deserto é quente e entediante. Sinto muito, mas ele se resume a


praticamente só isso. Também é arenoso, mas pedras são
essencialmente coisas enfadonhas, e quebrá-las em pedacinhos
minúsculos não melhora as coisas. Algumas pessoas dizem que o
deserto muda de temperamento dia após dia, que o vento o esculpe
incessantemente em espaços amplos e vazios que não são feitos
para o homem. Elas falam liricamente sobre os grãos e os tons da
areia, a grandiosidade da pedra exposta que se eleva, montanhosa,
esculpida pela brisa carregada de areia em formas exóticas que
remetem à água e à correnteza... mas, para mim, arenoso, quente e
chato engloba tudo.
O fator mais importante, já que a água e o sal estão garantidos,
é o tédio. Alguns homens adoram, mas eu tento evitar ficar a sós
com minha própria imaginação. O lance, se alguém quiser evitar
remoer lembranças desagradáveis ou verdades inconvenientes, é
se manter ocupado. Esse fato, por si só, explica muito da minha
juventude. Em todo caso, no silêncio do deserto, sem ninguém além
de camelos e pagãos para conversar, nenhum deles com muito
domínio da língua do Império, um homem fica indefeso, vítima de
pensamentos sombrios.
Eu me segurei até chegarmos ao litoral, mas aquele último
trecho, pela faixa estreita de areia entre a imensidão do mar e a
ampla extensão de dunas, acabou comigo. Uma noite fria nós
acampamos ao lado do esqueleto de algum grande navio que havia
encalhado, tão perto do porto que a ironia era mais amarga que a
água do mar. Caminhei por entre os mastros expostos e cobertos de
sal que surgiam pela praia e, ao colocar a mão na madeira antiga,
podia jurar ter ouvido os gritos dos marinheiros se afogando.
Naquela noite foi impossível encontrar o sono. Em vez disso,
sob as estrelas brilhantes e frias, meus fantasmas vieram visitar e
me arrastaram de volta ao Inferno.

*****

“Não devia haver uma ponte?” pergunto, olhando para as águas


velozes do rio Slidr. É a primeira água que vejo no Inferno. O rio tem
pelo menos trinta metros de largura, e a margem oposta é uma praia
de areia preta que forma um conjunto de penhascos pretos em
ruínas. Os penhascos saltam em direção ao céu de luz morta em
uma série de degraus, e acima deles as nuvens estão se juntando,
escuras como fumaça.
“É o rio Gjöll que tem ponte, não o Slidr. Gjallarbrú é o nome da
ponte. Dê graças por não termos de cruzá-la, Módgud fica de
guarda.”
“Módgud?” Eu realmente não quero saber.
“Uma giganta. A margem oposta daquele rio é cadáver em cima
de cadáver. É lá que constroem o Nagelfar, o navio de unhas que
Loki conduzirá ao Ragnarok. E atrás dessa ponte ficam os portões
de Hel, guardados pelo cão acorrentado, Garm.”
“Mas a gente não precisa...”
“Nós já passamos pelos portões, Jal. A chave, a porta, tudo isso
nos levou até Hel.”
“Só que na parte errada?”
“Precisamos cruzar o rio.”
A sede, e não a falta de cautela, é que me impulsiona para
frente, fazendo eu avançar para baixo daqueles últimos metros da
margem.
Vou até as águas rasas. “É. Não vai rolar.” O leito do rio
rapidamente se afunda e, apesar de a água de fluxo rápido ser
estranhamente límpida, ela logo se perde na escuridão. Cruzar um
rio como este seria um problema em qualquer circunstância, mas
quando me ajoelho para beber eu avisto o verdadeiro obstáculo.
Desafiando toda a razão, há adagas, lanças e até espadas sendo
levadas pela correnteza, todas prateadas e limpas, brilhando
afiadas. Algumas estão resolutamente apontadas na direção que a
correnteza as leva, outras seguem rodopiando, segando as águas
ao redor.
Snorri chega ao meu lado. “Chamam de Rio das Espadas. Eu
não beberia dele.”
Fico de pé. Mais à frente, as lâminas parecem peixes formando
cardumes. Peixes longos, afiados e de aço.
“O que fazemos, então?” Olho para o rio acima, depois abaixo.
Nada além de quilômetros de margens erodidas que levavam a
terrenos baldios dos dois lados.
“Nadamos.” Snorri passa por mim.
“Espere!” Estendo um braço para impedi-lo. “Quê?”
“São apenas espadas, Jal.”
“Siiiimmm. Foi isso que pensei também.” Eu olho para ele.
“Você vai mergulhar no meio de um monte de espadas?”
“Não é isso que fazemos na batalha?” Snorri pisa na água. “Ah,
que frio!”
“Foda-se o frio, estou preocupado é com as pontas afiadas.” Eu
não faço o menor movimento para ir atrás dele.
“Cruzar o Slidr não tem nada a ver com pontes ou truques. É
uma batalha. Lute com o rio. Coragem e ânimo o farão chegar do
outro lado – e, se não fizerem, Valhalla o acolherá, pois terá caído
em combate.”
“Coragem?” Só aí eu já sei que afundei antes de começar. A
não ser que simplesmente chafurdar configure coragem... em vez de
pura estupidez.
“É isso ou ficar aqui para sempre.” Snorri dá outro passo e de
repente ele está nadando, a água se revirando esbranquiçada atrás
dele, com seus braços enormes subindo e descendo.
“Porcaria.” Eu ponho um pé na água. O frio entra pela minha
bota como se ela nem estivesse ali e vai até os ossos de minha
perna. “Jesus.” Tiro o pé de novo, rapidamente. “Snorri!” Mas ele já
era, a um terço do caminho, lutando com as águas.
Aproveito a oportunidade para pendurar novamente a chave em
volta do pescoço. Percebo que ela está quente em minha mão, sem
refletir nada, nem mesmo o céu. Será que se eu invocar Loki o
verdadeiro Deus vai ver e me afogar pela traição? Decido me
garantir chamando qualquer divindade que possa estar escutando.
“Socorro!”
Na minha opinião, Deus deve ser bastante ocupado com as
pessoas apelando para ele o tempo todo, então provavelmente
agradece quando as orações vão direto ao ponto.
Faço uma pausa para pensar na injustiça de um Inferno que
não contém nenhum lago que afoga os heróis e deixa os covardes
flutuarem. Em vez disso, ele faz teste atrás de teste nos quais só as
pessoas sem nenhuma recomendação, exceto um braço forte,
podem triunfar. Em seguida, sem maiores considerações, corro três
passos e mergulho.
Nadar nunca foi meu ponto forte. Nadar com uma espada no
quadril sempre resultou em um progresso mais rápido, mas
infelizmente só em direção ao fundo do corpo d’água no qual eu
esteja me afogando. O Slidr, no entanto, é excepcionalmente
flutuável no que diz respeito ao aço afiado, e a espada de Edris
Dean, em vez de me arrastar para baixo, me segura para cima.
Eu me debato loucamente, com os pulmões paralisados demais
pelo frio para sequer começar a puxar o fôlego que me escapou
quando entrei no rio. A gelidez da água é invasiva, penetrando o
sangue e os ossos, enchendo minha cabeça. Perco contato com
meus membros, mas não é o afogamento que me preocupa – é me
manter aquecido. Nas profundezas de minha cabeça, nos recantos
escuros aonde vamos para nos esconder, estou acocorado,
esperando para morrer, esperando o gelo me atingir, e tudo que
tenho para queimar são memórias.
Procuro a memória mais quente que tenho. Não é o calor
ofuscante do Sahar, nem o abraço crepitante da floresta Gowfaugh
engolida pelas chamas. A Passagem Aral aparece, me arrastando
de volta para aquele desfiladeiro ensanguentado, cheio de homens
em guerra, homens gritando, homens cortando e estocando,
homens caídos com seus ferimentos, o tempo escorrendo vermelho
de suas veias, homens morrendo, sussurrando em meio à
cacofonia, falando com seus entes amados e perdidos, chamando
suas mães, as últimas palavras estremecidas nos lábios roxos,
pactos com o Diabo, promessas a Deus. Vejo mais um homem se
deslizar em minha espada, deixando-a preta de sangue. A essa
altura ela já está cega demais para cortar, mas um metro de aço
ainda é mortal, não importa o fio que tenha.
A Passagem Aral me carrega por um terço da travessia no Slidr.
Encontro meu foco e percebo que a carga afiada do rio ainda não
me abriu um corte, mas ainda há muita distância a percorrer, e a
margem oposta está passando rápido demais. Ao longe ouço um
rugido. Um rugido grave, constante, molhado. Uma longa lança de
prata passa embaixo de mim, próxima demais. Começo a nadar
novamente, socando grosseiramente a água, e desta vez é o
derramamento de sangue do Forte Negro que me faz prosseguir. Eu
me lembro do som doentio quando a ponta de minha espada perfura
um olho, esmagando a órbita de osso e entrando no cérebro do
viking. Em um instante a chama dele se apaga, uma marionete de
carne com todas as suas linhas cortadas. Um machado lasca o ar
na frente do meu rosto ao me inclinar para trás. Uma mesa alta me
pega nas costas e eu caio em cima dela, contorcendo-me, atirando
minhas pernas na rotação. Uma espada larga martela as tábuas
onde minha cabeça estava e eu salto sobre a mesa, com os dois
pés, balançando e cortando o braço que segurava a espada.
A loucura da batalha do Forte Negro finalmente me deixa,
ofegante entre os cadáveres empilhados. Percorri dois terços da
travessia pelo Slidr, ainda naquela clareza agitada e rápida do rio.
Rio abaixo, ao longe, o vale está sufocado de névoa. O rugido ficou
mais alto, preenchendo o mundo, tremendo no fundo dos meus
ossos.
Ataco em direção à margem, desesperado agora. Alguma coisa
ruim está à minha espera naquela névoa, mas minhas forças e meu
tempo já estão acabando. A frieza me leva e tudo que tenho para
queimar é meu duelo com conde Isen, o choque agudo e afiado de
lâmina com lâmina enquanto ele tenta me matar e eu me defendo
de desespero. Não é suficiente. Ainda estou a dez metros da
margem e afundando. Há uma dor aguda em minha perna que
chega até mim, mesmo ela estando congelada e dormente. Fui
atingido. As águas se fecham sobre mim. Eu subo à superfície mais
uma vez e vejo que, antes de chegar à névoa ascendente, o Slidr
inteiro desaparece, como se ele próprio fosse cortado por uma
enorme espada. O estrondo é mais alto que o pensamento. Estou
sendo arrastado para as quedas. Volto a submergir e nada disso
importa: um cardume de facas está me empurrando para baixo e eu
não tenho ar para gritar.
De alguma maneira, contrariando qualquer sentido, minha
espada está na minha mão. Uma bela maneira de se afogar. Mas aí
eu me lembro que não é minha espada, e o calor que estava em
meu sangue no momento em que a peguei me preenche
novamente. Edris Dean brandiu aquela espada contra mim,
querendo tirar minha vida assim como tirou a de minha mãe e a de
minha irmã, quente no útero. Lutei com ele diante do corpo de
Tuttugu. O corpo de meu amigo, um covarde que teve a morte de
um herói. Eu me lembro da sensação de enterrar minha espada
entre as costelas de Edris Dean, enfiá-la na carne dele, senti-la
afundada em sua pele e arrancá-la para fora novamente, raspando
sobre os ossos. Abro minha boca e dou um urro, sem me importar
com o rio, e ali eu me levanto, pingando no raso, de espada em
punho, e acima de mim a névoa de uma cachoeira infinita se eleva
em nuvens que desafiam o céu. O Slidr despenca sobre uma beira
rochosa a apenas a dez metros dali. Espadas saltam de suas águas
límpidas quando a gravidade pega o rio e o leva embora
rapidamente.
Dou um passo para frente com as pernas trêmulas, fraco em
todos os membros, mais três passos, mais dois, e estou na areia
molhada. Não tenho ferimentos que consiga enxergar.
Um vulto está correndo em minha direção, Snorri, diminuindo o
ritmo ao se aproximar, ofegante. “ Eu...” ele levanta a mão, puxa um
fôlego enorme “...achei que tivesse perdido você ali.”
Olho para a espada em minha mão, os escritos gravados em
sua lâmina, a água ainda pingando dela, os diamantes com cor de
ferrugem sob a luz morta. “Não. Ainda não. Não hoje.”

Subimos a margem do rio em silêncio, os dois envoltos em


memórias. À medida que o Slidr se seca de meu corpo, sinto que de
alguma maneira suas águas me deixaram mais... conectado. Eu me
lembro da batalha na Passagem Aral. Lembro da luta dentro do
Forte Negro. Pela primeira vez, Jalan, o berserker, encontrou o
Jalan comum e chegamos a uma espécie de acordo. Ainda não sei
direito o que é, exatamente... mas alguma coisa mudou.
O Inferno do outro lado do Slidr é mais íngreme que antes.
Morros de rocha preta substituem a terra, morros onde tudo é afiado
e não há nenhuma chance de o viajante descansar. Em toda a
parte, a pedra parece uma sopa fervilhante que foi congelada
instantaneamente, com bolhas saindo dela, deixando uma miríade
de pontas, todas afiadas. Só de tocar o chão meus dedos saem
sangrando. Quanto tempo as solas de couro de minhas botas irão
durar e o que será de meus pés depois disso, eu não sei.
Vemos mais almas aqui, grupos cinzentos delas, flutuando
como água suja pelos vales secos, homens, mulheres e crianças, de
cabeça baixa, sem falar, atraídos para frente por algum chamado
que não consigo ouvir.
Nós vamos atrás, retorcendo e revirando pelas colinas pretas,
os vales ficando mais profundos, mais largos, mais cheios de almas.
O Slidr é menos que uma lembrança agora, o Inferno me deixou
sedento outra vez. Sinto minha pele se ressecando, morrendo,
descascando.
“Espere.” Sem nenhum motivo, um desfiladeiro à nossa
esquerda me chama a atenção, bem acima de nós, saindo pela
lateral do vale.
“Este é o caminho.” Snorri faz sinal para as almas se afastando
à nossa frente, e outras à deriva. Seus olhos estão vermelhos de
vasos estourados, como um homem que se esqueceu como dormir.
Eu me sinto pior do que a aparência dele.
“Lá em cima.” Aponto para o local. “Tem alguma coisa lá em
cima.”
“Este é o caminho,” repete Snorri, começando a sair atrás das
almas, com a cabeça baixa novamente.
“Não.” E começo a escalar pedras, com uma dúzia de cortes
finíssimos na palma da mão onde encosto para me apoiar. “É lá em
cima.”
“Não sinto isso.” Snorri se vira para mim, exausto, com as
almas parecendo pequenas flutuando em volta dele.
“É aqui.” Continuo a escalar, sacando minha espada para me
equilibrar, para me dar um pouco de apoio que não exija tocar nas
pedras.
É uma luta chegar ao desfiladeiro e minha mão arde como se
vinagre tivesse sido derramado em cada corte. Eu avanço pelo
caminho estreito que leva até as paredes do desfiladeiro, como um
penhasco, com Snorri logo atrás de mim, praguejando.
Faz silêncio aqui, fora do vento, pelo menos depois que Snorri
para de reclamar. Um silêncio penetrante, antigo e profundo. Nossos
passos parecem um sacrilégio. Se foi a água que esculpiu esses
vales, ela desapareceu muito antes dos homens caminharem por
aqui. Em um inferno construído pela solidão, este lugar parece ser o
mais deserto e o mais perdido por onde os malditos possam
caminhar.
“Não há nada aqui, Jal, eu fal...”
As paredes estreitas se afastam logo à nossa frente. Há um
pequeno vale, talvez um lago profundo onde um antigo rio extinto
caía. Uma única árvore está ali, preta, retorcida, os dedos expostos
de seus galhos contra o céu de luz morta. Seu tronco é manchado,
um branco doentio em contraste com o preto, surgindo da base
larga em direção à parte alta, onde os primeiros galhos se dividem.
Ao avançar, percebo que a árvore está mais longe e é mais
imensa do que eu tinha imaginado. “Me ajude a subir.” Há um
degrau no desfiladeiro, mais alto que eu. Snorri me impulsiona ao
topo. Corto a perna através da calça. Mais cortes ácidos da rocha
cheia de bolhas. Estendo a mão para Snorri e o ajudo a subir.
Chegando mais perto, vemos que a árvore, embora sem folhas,
está repleta de frutos estranhos. Mais perto ainda, o tronco doente
revela seu segredo. Corpos estão pregados a ele. Centenas deles.
Se essa árvore fosse do tamanho que as árvores devem ter,
nós seríamos formigas. Deve ser alguma cria de Yggdrasil, a árvore
colossal que fica no centro de tudo, e da qual o mundo depende. Os
galhos que dão frutas pendem como os do salgueiro, pendurados
quase até o chão. Alguns são tão baixos que eu quase poderia me
esticar e tocá-los, mas não tenho vontade de fazê-lo. As frutas são
escuras e enrugadas, algumas com sessenta centímetros de
comprimento, algumas do tamanho da cabeça de um homem, todas
grotescas e perturbadoras de uma maneira que não consigo definir.
Os gemidos baixos das vítimas da árvore agora chegam até
nós. Homens e mulheres estão pregados a seu tronco, jovens e
velhos, tão apertados que seus braços e pernas se sobrepõem, e
suas formas se encaixam como dedos entrelaçados ou as peças de
um quebra-cabeça.
Chegamos ao emaranhado grosso e espalhado das raízes da
árvore até o tronco, tão largo quanto a Torre da Mathema e ainda
mais alto. Um trecho branco me salta aos olhos, mais claro que os
outros e mais perto do chão.
“Olá, Marco.” Eu me aproximo, embainhando minha espada e
olhando para ele. Lá está ele, pregado entre as centenas, mãos e
pés presos por pontas de ferro. Muitas cabeças se viram em minha
direção, lentamente, como se isso exigisse grande esforço, mas
apenas Marco fala.
“Príncipe Jalan Kendeth.” Ele levanta os olhos. “E o bárbaro.”
“Que bom que se lembra de mim.”
“Há poucas maldições piores do que ter seu nome dito no
Inferno,” diz ele.
Aquilo me tira o ar. “B-bem.” Engulo e tento falar sem gaguejar.
“Prefiro ter meu nome dito no Inferno a estar pregado a uma árvore
no Inferno por toda a eternidade.”
Marco não tem resposta para aquilo.
“Eu me lembro de você,” diz Snorri. “O homem dos papéis.
Mandou torturar Tuttugu. Por que está nesta árvore?”
“Talvez seja para onde os torturadores vão,” digo.
“Seria preciso uma floresta para abrigá-los,” diz Snorri. “Esta
árvore não seria suficiente.”
“Então algum crime mais específico...” Eu franzo o rosto. Este
lugar me dá medo. O Inferno todo me dá medo, mas este lugar é
pior.
“Um crime pior.” Os olhos de Snorri percorrem os corpos, todos
nus, todos perfurados por pregos, pendurados no cabideiro da
gravidade.
“Ponha-me no chão e contarei,” diz Marco, sempre o banqueiro.
Dá para ver o desespero em seus olhos, no entanto.
“Foi você que se pôs aí.” Snorri se vira para examinar as frutas
penduradas mais perto. Ele estende a mão para tocá-la. “Ah!” E
puxa a mão de volta como se levasse uma picada. Um jato de cor
se espalha sobre a casca enrugada, uma cor de carne rosada.
Observamos, com Snorri ainda esfregando os dedos. A fruta se
incha, como um peito inflado por uma respiração funda. A
verdadeira forma da coisa se revela. Vemos membros, enrolados
bem apertados, e tons de pele manchando o preto morto anterior. A
transformação dura o tempo do fôlego que Snorri tomou, e com sua
exalação a “fruta” se enruga novamente para sua casca seca e
escura.
“Era... era...”
“Parecia um bebê,” sussurro. Só que pequeno demais, a
cabeça muito grande, braços minúsculos, dedos palmados.
“Um desnascido.” Snorri se vira novamente para Marco. “É esse
o fruto desta árvore? Seus crimes?”
Eu não estou escutando: meus olhos encontraram mais um
fruto da árvore. Só um entre centenas, talvez milhares, mas ele me
atrai. Não consigo parar de olhar. Todas as outras coisas viram um
borrão, e começo a andar na direção dele.
“Jal?” Snorri me chama de algum lugar distante.
Estico os dois braços e com as duas mãos aperto o caule
dessecado. A dor não está em meus dedos, está em minhas veias,
na medula de cada osso enquanto alguma coisa é retirada de mim.
Braços grossos me arrancam dali e fico no chão olhando para o
desnascido acima, rosa e minúsculo... úmido e cheio de vida.
“O que está fazendo?” Snorri me põe de pé. “Você
enlouqueceu?”
“Eu...” Olho para aquela coisa rosa, aquela quase criança. Saco
a espada de Edris Dean e as gravações ao longo da lâmina estão
vermelhas, como se os próprios símbolos estivessem sangrando.
“Esta é minha irmã.”
Embora alguma magia tenha me atraído a ela, nossa ligação
termina aí. Nunca a conheci – ela nunca cresceu – e tive dois
irmãos para me ensinar que não há nada de sagrado em laços de
sangue. Se estivesse com meu irmão mais velho, Martus, e um
estranho qualquer, os dois pendurados em um precipício e eu só
tivesse tempo de salvar um, seria o dia de fazer um novo amigo.
Principalmente se o estranho fosse jovem e mulher. Tudo que me
liga a essa... criatura... é a lembrança de ver minha mãe morrer.
Apenas a tristeza nos une, e agora ela foi corrompida. Esta criança
sem nome foi transformada em um terror, um terror que precisa me
matar para escapar ao mundo dos vivos e manter seu lugar ali...
Seguro minha espada sangrando e observo a coisa diante de
mim, rosa, feia, molhada e em carne viva. Snorri fica ao meu lado e
não diz nada. Um grito sai de mim, um barulho desagradável, tão
curto e afiado quanto o arco que minha espada faz. O aço corta. A
desnascida cai, e no ponto onde ela bate no chão há apenas poeira
e pequenos ossos secos.
“Jal.” Snorri pega meu ombro. Eu o afasto.
Acima da poeira, alguma coisa intangível está subindo,
fantasmagórica, mutante, crescente, passando rapidamente por
muitas formas. Todas eram ela. Minha irmã. Um bebê dormindo,
uma pequena criança cambaleando, como fazem quando dão os
primeiros passos, uma menina jovem, de cabelos longos, bonita,
uma mulher alta, esbelta e linda, parecida com Mamãe, os cabelos
escuros ondulados na altura dos ombros. As imagens mudam mais
rápido – uma mãe segurando mãozinhas minúsculas, uma mulher,
de rosto duro, um poder por trás dos olhos, uma velha em um trono
alto. Sumiu.
Fico parado ali, com um formigamento nos braços, sobre as
bochechas, a respiração forte e curta, uma dor no peito. Por que
isso me dói? Desilusões acontecem a cada segundo de cada dia. O
que poderia ter sido, planos que não dão em nada, sonhos
impossíveis, eles desaguam em nada, mais rápido que o Slidr
saltando de seu penhasco. Fico olhando para os minúsculos ossos
escurecendo e virando poeira. Não o que poderia ter sido: o que
deveria ter sido.
Marco ri de mim. Um som horrível, apertado e cheio de dor,
mas ainda assim um riso, e vindo de um homem que nem uma
única vez eu vi sorrir no mundo dos vivos. “Não acabou, príncipe.
Não acabou.” Ele geme, esforçando-se para se mexer, mas preso
pelas extremidades. “A árvore carrega o que os lichkin deixam para
trás.”
“Lichkin?” Ouvi falar deles, monstros das terras mortas, coisas
que o Rei Morto trouxe ao mundo para servir ao seu propósito.
“O que você acha que transporta as crianças arrancadas do
ventre? O que molda o potencial delas e usa esse poder? É uma
troca justa.” Ele me olha com os olhos mortos. Ele poderia estar
falando das transações feitas nas bolsas de Umbertide, pela
emoção que demonstra. “Onde está o crime? A criança que não
teria vivido passa a viver, e o lichkin que nunca viveu se aviva e
caminha pelo mundo dos homens, onde pode saciar sua fome.”
Olho para a distância acima de nós, para o tronco manchado de
carne, coberto por inúmeros galhos como os do salgueiro, cada um
balançando sua vida roubada. Será que Marco é o pior homem
preso ali? Parece improvável. Eu deveria odiá-lo com mais afinco.
Deveria correr para cima dele e cortá-lo fora. Mas esse lugar esgota
a emoção que a gente sente. Em lugar de raiva, eu me sinto oco,
triste. Viro e me afasto.
“Espere! Me tire daqui!”
“Tirar você daí?” Eu me viro novamente, com a chama da raiva
acesa em algum lugar lá no fundo. “Por quê?”
“Eu lhe contei. Dei informação. Você me deve.” Marco faz força
para cada palavra sair, com o peito comprimido por seu próprio
peso.
“Essa árvore não vai ficar de pé tempo suficiente para eu dever
a você, banqueiro. Nem se ela durar dez mil anos e você salvar
minha vida todos os dias.”
Ele tosse, com sangue preto nos lábios. “Eles irão caçá-lo
agora – o lichkin e as partes de sua irmã que ele pegou. A morte de
um irmão abriria uma porta para eles e os permitiria emergir juntos,
desnascidos, um novo mal no mundo. Sua morte os estabeleceria
nas terras acima.”
A ideia de ser perseguido pelo Inferno por algum monstro ligado
à alma de minha irmã faz eu me borrar de medo, mas de jeito
nenhum vou deixar Marco perceber. “Se essa...coisa... me procurar,
simplesmente terei que acabar com ela. Com o aço frio!” Saco
minha espada só para constar – afinal, ela foi encantada para
acabar com coisas mortas de maneira tão eficaz quanto as vivas.
“Posso lhe dizer como salvá-la.” Ele prende minha atenção,
com os olhos escuros e brilhantes.
“Minha irmã?” Salvá-la não estava na minha lista – esse é o
forte de Snorri. Eu quero me afastar, mas alguma coisa não me
deixa. “Como?”
“Isso pode ser feito, agora que libertou os futuros dela da
árvore.” A dor dele, pela primeira vez, está clara em seu rosto, seu
desespero. “Vai me descer daqui? Prometa.”
“Pela minha honra.”
“Quando encontrá-los no mundo dos vivos, sua irmã e o lichkin
que estiver usando a pele dela, qualquer coisa suficientemente
sagrada irá separá-los.”
“E minha irmã irá... viver?”
Marco faz aquele som horrível outra vez, sua risada. “Ela
morrerá. Mas adequadamente. De maneira limpa.”
“Suficientemente sagrada?” Snorri resmunga as palavras ao
meu lado.
“Algo que tenha importância. É a fé de todos os que creem que
fará funcionar. Um foco. Não uma cruz de igreja. Nem água benta
de uma fonte da catedral. Algum símbolo real, um...”
“O sinete de um cardeal?” pergunto.
Marco faz que sim, com o rosto marcado pela dor e pelo
esforço daquilo. “Sim. Provavelmente.”
Eu me viro para sair outra vez.
“Espere!” Ouço Marco ofegar ao tentar me pegar.
“O quê?” Olho para trás.
“Solte-me! Fizemos um pacto.”
“Está com a papelada, Marco Onstantos Evenaline da Casa
Ouro? Os formulários corretos? Estão assinados? Testemunhados?
Estão com os carimbos adequados?”
“Você prometeu! Pela sua honra, príncipe Jalan. Sua honra.”
“Ah.” Dou as costas novamente. “Isso.” E começo a caminhar.
“Se encontrá-la, me avise.”
6

No porto libano de Al-Aran, embarquei em um barco de pesca


chamado Santa Maria, a mesma embarcação que levava a maior
parte do sal que meus companheiros passaram quase um mês
carregando ao norte de Hamada. Eles também encontraram espaço
para meus três camelos no porão, e admito que tive certa satisfação
com a desgraça dos bichos, depois de passar tanto tempo
aguentando minha própria desgraça em uma corcova de camelo.
“Estou avisando, capitão, Deus fez essas criaturas somente
para três coisas. Soltar vento pelos fundos, soltar vento pela frente e
cuspir. Eles cospem ácido do estômago, então avise a seus
homens, e não deixe ninguém se aventurar no porão com uma
chama descoberta, senão poderá virar o chefe de uma maravilhosa
coleção de estilhaços boiando. Além de todo mundo se afogar.
Capitão Malturk bufou no bigode espesso e fez sinal para eu
sair, virando-se para os mastros e começando a gritar baboseiras
náuticas para os homens.
Viajar pelo mar é um negócio miserável que não se deve
comentar quando se está em companhia educada, e nada de
interessante aconteceu nos primeiros quatro dias. Claro, havia
ondas, o vento soprou, refeições foram feitas, mas até a costa de
Cag Liar aparecer no horizonte, de maneira geral a viagem se
distinguiu de todas as minhas outras viagens marítimas apenas pela
temperatura, a língua na qual os marinheiros xingavam e o sabor da
comida que vomitava.
Além disso, nunca leve um camelo ao mar. Simplesmente não
faça isso. Principalmente três daqueles desgraçados.
Porto Francês em Cag Liar, a mais meridional das Ilhas
Corsárias, é a primeira parada de muitos navios que saem da costa
da Afrique. Há duas maneiras de navegar o Mar Médio e sobreviver
à experiência. A primeira é armado até os dentes, e a segunda
armado com um direito de passagem adquirido com os piratas
soberanos. Essas coisas podem ser obtidas com agentes em muitos
portos, mas é bom o navio parar em Porto Francês ou um dos
outros centros principais das Corsárias. As bandeiras dos códigos
mudam constantemente, e não dá para navegar com bandeiras
desatualizadas. Além disso, para um comerciante, após concluir as
dolorosas transações de “impostos”, há poucos lugares no mundo
que oferecem uma quantidade tão grande de mercadorias e
serviços quanto os portos corsários. Eles negociam gente também,
tanto do tipo para compra e venda quanto para contratar. Escravos
geralmente vão do oeste para o leste, e alguns do norte para o sul.
O Império Destruído nunca teve uma grande demanda por escravos.
Temos camponeses. É quase a mesma coisa, só que eles acham
que são livres, então nunca fogem.
Foi uma sensação boa chegar ao porto e finalmente ver o
mundo que eu conhecia melhor, os promontórios cheios de
pinheiros, faias e carvalhos no lugar das palmeiras espalhadas do
norte de Liba. E estações também! A floresta estava enferrujada
com os primeiros toques do outono, embora em um dia quente
como esse fosse difícil imaginar o verão em declínio terminal. No
lugar dos telhados planos de Liba, as casas das encostas acima do
porto ostentavam telhas de terracota inclinadas, um reconhecimento
tácito de que a chuva realmente acontece.
“Dois dias! Dois dias!” disse o imediato de Malturk, um barril
humano chamado Bartoli que parecia incapaz de usar camisa. “Dois
dias!” Um barítono estrondoso.
“Quantos?”
“Dois d...”
“Entendi, obrigado.” Chacoalhei o dedo em meu ouvido quase
surdo e desci a prancha de desembarque.
Os cais de Porto Francês são diferentes de todos que já vi. É
como se o conteúdo de todos os bordéis, casas de ópio, salões de
apostas e buracos de luta fossem vomitados sobre o porto
ensolarado, espalhando-se pelos cais de tal modo que os
estivadores tinham de costurar um caminho no meio dessa multidão
animada e variada só para amarrar uma espia.
Imediatamente, eu me vi coberto por donzelas de todos os tons,
da retinta passando pela morena até a bronzeada, além de homens
tentando me conduzir a estabelecimentos onde qualquer vício pode
se satisfazer, contanto que deixe seu dinheiro. Os mais diretos de
todos, e talvez os mais honestos, eram os pivetes que se desviavam
entre as pernas dos adultos e tentavam roubar minha bolsa antes
que eu desse dez passos.
“Dois dias!” gritou Bartoli do parapeito, observando sua
tripulação e seus passageiros se dispersarem. O Santa Maria
partiria com ou sem nós, após seus negócios serem concluídos e as
bandeiras de códigos penduradas.
Depois do Inferno, do deserto, e do mar, Porto Francês parecia
o mais próximo do paraíso do que qualquer coisa. Perambulei entre
a multidão em um estado de graça, sem prestar nenhuma atenção
específica às pessoas tentando me seduzir para aqui ou para ali,
não importava quão persistentes. Em um dado momento, parei para
chutar um pequeno trombadinha, especialmente irritante, ao mar, e
depois finalmente saí do cais e subi pelo labirinto de ruas que
levavam até a serra, onde todas as construções mais bacanas
pareciam se concentrar.
Nada paralisa um homem tanto quanto as escolhas. Com um
banquete à disposição após tanto tempo no deserto, a decisão foi
difícil. Escolhi uma mesa do lado de fora de uma taberna, em uma
rua íngreme e calçada, na metade do caminho até o alto da serra.
Pedi vinho e ele veio em uma ânfora embalada em um invólucro de
ráfia para segurá-la em um pedaço só. Fiquei observando o mundo
passar, bebendo de meu copo de barro.
Eles as chamam de Ilhas Corsárias, e é verdade que a pirataria
as define, mas há milhões de hectares no interior, onde não se
consegue avistar o mar nem de um morro, e nesses vales eles
plantam uvas boas para caramba. Por mais barato que fosse o
recipiente, o vinho era bom.
Minha túnica manchada da viagem e o bronzeado do Sahar me
deixavam mais para um homem de Araby do que de Marcha
Vermelha. Apenas meus cabelos dourados, clareados pelo sol,
revelavam a verdade. Certamente ninguém me confundiria com um
príncipe, o que tem suas vantagens em uma cidade lotada de
assaltantes, ladrões, piratas e cafetões. Anônimo com meus trajes
do deserto, aproveitei o momento para relaxar. Aproveitei vários
momentos, depois duas horas, depois mais três, e fiquei curtindo a
agitação da vida em lugares apertados enquanto o sol deslizava
pelo céu.
Pensei em meu retorno a Vermelhão, meu destino, meu futuro,
mas acima de tudo pensei em Yusuf Malendra e seus cálculos. Não
só em Yusuf, porém, não só na Mathema onde cem matemágicos
rabiscavam suas álgebras, mas em todos que viam, diziam ou
mentiam sobre o futuro. As völvas do norte, os mágicos da Afrique,
a Irmã Silenciosa com seu olho cego, a Dama Azul no meio de seus
espelhos procurando por reflexos do amanhã. Eram aranhas, todos
eles, jogando suas teias. E o que isso fazia de homens como eu e
Jorg Ancrath? Moscas, bem amarradas e prestes a ter nossa seiva
vital sugada para alimentar o apetite deles por conhecimento?
Jorg estava pior que eu, claro. Aquele garoto príncipe com as
cicatrizes de espinho. Ele havia escapado de seu emaranhado de
espinhos, mas será que sabia que estava preso a um ainda maior
agora, com pontas longas o bastante para eviscerar um homem?
Será que sabia que minha avó cochichou o nome dele para a Irmã
Silenciosa? Que muitos conspiravam para ajudá-lo ou destruí-lo?
Imperador ou tolo – como ele seria lembrado, eu não sei, mas
estava a caminho de ser um dos dois, com certeza. Talvez ambos.
Eu me lembrei de seus olhos, naquela primeira noite em que o vi na
cidade de Crath. Como se, mesmo naquele momento, ele olhasse
através do mundo e visse que tudo isso viria em sua direção. E não
ligasse a mínima.
Virei meu copo e tentei encher mais um. A ânfora pingou e
secou. “Estou bem fora dessa.” Eu cobri o garoto de Ancrath com
um cobertor e o deixei lá naquele telhado em Hamada. Devia ter
feito a gentileza de empurrá-lo dali de cima. Ainda assim, eu tinha
escapado, e isso, como sempre, era o importante. Uma profecia
precisa se levantar muito cedo se quiser pegar o velho Jalan!
“Rollas?” Levantando a cabeça da inspeção cuidadosa do
interior da ânfora, à procura de vinho escondido, vi um homem virar
da rua principal para um beco lateral. Alguma coisa no formato
quadrado de seus ombros, embaixo daquela nuca pontuda e
eriçada, fez eu me lembrar do camarada de meu amigo Barras Jon,
Rollas. Levantei-me, cambaleando um pouco e me apoiando no
ombro de um homem sentado à mesa do lado. “Perdão.” As
palavras se embolaram nos lábios dormentes. “Estou me
acostumando à terra firme.” E saí pela rua. Ele não só me lembrava
do acompanhante de Barras. Era ele. Tinha seguido atrás daquela
nuca até o palácio tantas vezes, depois de tantas noites
embriagadas em Vermelhão, que a reconheceria em qualquer lugar.
Foi mais força do hábito do que qualquer coisa que me fez sair atrás
dele desta vez.
Caminhei com cuidado, sem querer pisar em nada
desagradável, e precisei negociar a passagem em volta de um
mendigo fedorento, ainda mais bêbado que eu. Saí do beco para
outra rua que levava das docas até os morros, certo de que teria
perdido meu perseguido, mas o vi bem na hora que entrou em um
bordel. Sempre dá para reconhecer esses lugares: são mais
apresentáveis que os botecos, mais conspícuos que os antros de
jogatina e, se o movimento estiver fraco, as garotas ficam apoiadas
nas janelas do primeiro andar. Além do mais, este tinha “Bord El”
pintado em grandes letras vermelhas em uma placa de uma ponta a
outra do beiral.
Fui até lá e deixei a prostituta da rua me fisgar.
“Um homem bonitão como você não deveria estar sozinho
numa tarde gostosa como esta.” A meretriz, uma mulher chamativa
de cabelos pretos, na casa dos quarenta, pegou meu braço e me
levou em direção à porta do prostíbulo.
“E você gostaria de me fazer companhia, não é?” olhei
maliciosamente, mas de maneira educada.
Ela sorriu, profissional o suficiente para não fazer cara feia para
o meu bafo de vinho. “Bem, sou um pouco velha para um jovem
como você, mas há meninas lindas lá dentro morrendo de vontade
de conhecê-lo. Samantha tem a m...”
“Conhece o homem que entrou logo antes de mim?” Eu me
segurei contra a puxada do braço dela, pouco antes da entrada e do
porteiro grandalhão na sombra da varanda.
Ela me soltou e levantou os olhos, apagando o sorriso. “Somos
um estabelecimento muito discreto. Não fazemos fofoca.”
Segurei uma barra libana entre o polegar e o indicador e deixei
a moeda retangular refletir a luz da tarde. Eu tinha pegado dez
barras emprestadas com Omar na noite antes de partir, cada uma
era feita com um pouco mais de ouro do que um ducado do Império.
“Nunca o vi antes. Eu me lembraria. Cara bonito.”
“O que ele queria?”
Ela revirou os olhos ao ouvir aquilo. “Uma puta.”
“Ele veio direto para cá. Não estava vagando. Não hesitou... ele
veio ver uma menina em particular?”
“Que moeda bonita? Pesa muito?” Ela estendeu a mão, com a
palma para cima.
“Sim. Pressionei-a na mão dela. Parecia demais gastar no que
provavelmente era uma confusão de identidade – e eu não sabia
direito por que simplesmente não tinha gritado para Rollas. Cogitei ir
embora, mas Barras era meu amigo, embora um amigo traiçoeiro e
fura-olho que tinha se casado com a menina por quem eu sonhava
no norte gelado... pelo menos quando não havia nenhuma outra
menina para me aquecer. E se fosse Rollas que eu havia visto,
então alguma coisa estava muito errada. Não conseguia pensar em
nenhum bom motivo para o homem que Grand Jon contratou para
proteger seu filho entrar apressado em um bordel de Porto Francês.
“Vou gastar o troco todo lá dentro, então quanto melhor a história,
menos trabalho essa sua Samantha terá de fazer.”
A mulher mordeu o lábio, analisando as probabilidades. Ela
seria uma péssima jogadora de pôquer. Olhou para o porteiro, para
mim, e seus olhos finalmente se repousaram na barra libana em sua
mão. “Ele disse que queria dar uma olhada nas meninas. Queria
saber se usávamos apenas trabalhadoras livres ou se comprávamos
carne acorrentada. Perguntou se havia meninas novas. Brancas. Da
minha altura, cabelo escuro. Falei que não, mas ele quis olhar assim
mesmo.”
“Ele mencionou algum nome?”
“Não é uma boa fazer perguntas desse tipo nas Ilhas. É uma
maneira fácil de ter a garganta cortada.”
Captei a mensagem dela. Mesmo bêbado, eu sabia que não era
conversa fiada. Mesmo assim. “Ele mencionou algum nome?”
“Lisa?”
“DeVeer?”
“As meninas novas só ganham um nome. Se fizerem um bom
trabalho, talvez consigam outro em alguns anos. Mas DeVeer? Isso
não vai atrair ninguém. DeLiciosa, talvez. O meu era NosQuatro.
Serra NosQuatro.”
Lisa? Uma prisioneira corsária? Eu precisava pensar a respeito.
Afastei-me, quase batendo em um homem carregando várias sacas
na cabeça. “Perdão.” De alguma maneira eu havia me reduzido a
pedir desculpas a trabalhadores plebeus. “Eu...” Virei e comecei a
descer a rua.
“Não vai querer usar seu crédito?” gritou Serra para mim.
“Talvez mais tarde...” Parei de me virar, mas minha cabeça
continuava a rodar, e não era só pelo excesso de vinho à tarde. Lisa
DeVeer, uma escrava em Porto Francês? Como?
“Ainda está se perguntando qual é o quarto buraco, não é?”
gritou ela às minhas costas.
Não respondi, mas, verdade seja dita, mesmo com os
pensamentos de Lisa rodopiando em minha cabeça... eu estava.

O sol estava se pondo quando subi de volta a rampa de embarque


para o Santa Maria. Os cais estavam mais calmos, apesar de bem
longe da calmaria. Há um silêncio que cai quando o mar fica
avermelhado e as sombras se alongam. As sombras dos mastros
estendem-se dos barcos parados, chegando cada vez mais longe,
cruzando as docas, subindo as paredes dos galpões, misturando-se
e fundindo-se até apenas a serra mais alta estar iluminada, com os
últimos raios de sol iluminando as mansões onde os senhores
piratas e suas damas brincam de nobreza.
“Voltou para dar água para essas porras de bichos?” Bartoli
chegou atrás de mim quando estava no parapeito olhando para o
mar. Foi-se a época em que um homem se arriscava a me
interromper no pôr do sol, mas Aslaug sequer sussurrava mais.
“São camelos, cacete. Camelos não bebem. Todo mundo sabe
disso.” Pus a mão na frente do rosto dele para impedir qualquer
resposta. “Corsários vendem gente – mas não roubam... roubam?”
Fazer perguntas em Porto Francês podia fazer Rollas ter a garganta
cortada. Já eu preferia fazer minhas perguntas no Santa Maria. Bem
mais seguro.
“Está querendo comprar? Não consegue nem cuidar de
camelos!”
“De onde eles obtêm os escravos?” Mantive minha pergunta.
“Os traficantes os trazem, obviamente.” Bartoli esfregou a barba
preta e cuspiu ruidosamente sobre o parapeito. “Corsários vendem
prisioneiros saídos de um navio, mas não roubam dos portos nem
atacam em terra firme. Até os piratas precisam de amigos. Não
cague onde você come. Taí uma lição para todo mundo... exceto a
porra dos seus camelos, aparentemente.”
“Então... onde alguém compraria um escravo?”
“Em um mercado de escravos.” Bartoli me lançou o mesmo
olhar que me dava havia dias, aquele olhar de ‘você é um idiota’.
“E onde...”
“Só escolher. Deve haver uma dúzia deles. O primeiro fica logo
ali, o mercado geral, atrás do galpão Marujos Tortos, aquele grande
com as telhas em cima, de tabaco e coisas do tipo. O segundo é um
mercado de crianças, logo depois da taberna Coração de Rei,
embaixo da Principal.”
“Uma dúzia?” Parecia muito para investigar só por um palpite e
a nuca de um homem.
Bartoli enrugou a testa e olhou para os dedos. “Treze.”
Senti um arrepio me atravessar quando os planetas se
alinharam. “Treze?”
“Treze.”
Primeira parada, segunda irmã, décimo terceiro... “Onde fica o
décimo terceiro?”
“Bem lá em cima, passando pelas casas dos lordes, lá nos
morros.” Ele balançou o braço grosso na direção da cidade. “O
nome de verdade dele é Treze. Foi assim que calculei que são
treze. Mas não acontecem muitas vendas lá. É mais uma... como se
diz? Escola? Para treinar mulheres de qualidade. Mas não é para o
nosso bico. São vendidas para homens ricos em Marroc e no
interior.”
E foi assim que, na manhã seguinte, um palpite, a nuca de um
homem, a lembrança dos muitos encantos de Lisa DeVeer e dois
matemágicos tortuosos fizeram eu me arrastar pelas ruas de Porto
Francês curtindo uma ressaca. Estava ensopado de suor, apesar
das nuvens que pairavam sobre as colinas de Cag Liar. Tempestade
à vista. Não precisava ser marinheiro nem fazendeiro para saber
isso.
Yusuf tinha armado para cima de mim. Eu sabia. Desde quando
traçou meu trajeto para casa até me entregar aqueles três números,
que com certeza ele sabia que eu perguntaria. Decidi acertar as
contas com Omar e seu mestre quando fosse o momento. Por ora,
continuei a caminhar, resistindo bravamente às várias tabernas
abertas para a rua, o barulho das roletas dos porões e os chamados
de moças de espírito empreendedor das janelas arqueadas.
Eu tinha dormido no Santa Maria na noite anterior. Minha
bebedeira da tarde acabou me alcançando e me ajeitei em um
grande rolo de corda perto dos degraus do castelo de proa, só para
descansar os olhos. Quando dei por mim, gaivotas estavam
cagando em mim e uma manhã injustificadamente clara estava em
progresso, com marinheiros gritando alto demais e os vendedores
mais animados já montando suas barraquinhas ao lado do cais.
Após empurrar um café da manhã reforçado goela abaixo,
decidi fazer a coisa honrada e ver se conseguia encontrar Lisa.
Cogitei procurar por Rollas – se é que era Rollas – mas pelo menos
eu sabia que Lisa não estaria vagando por aí. Além do mais, era
provável que Rollas já tivesse feito perguntas bastantes para levar
uma facada e ser jogado nas docas. Ou, conhecendo Rollas, para
ter esfaqueado seus agressores primeiro e depois ser obrigado a
fugir.

Porto Francês vai desaparecendo em propriedades de comerciantes


e vinhedos espalhados, à medida que você sobe os morros que vão
dar no interior. É bonito à sua maneira, mas preferia ver da sela. Ou
nem isso. Principalmente não a pé, atingido por um vento
borrascoso que não se decidia em que direção soprar. Estreitei os
olhos contra a areia e a poeira e segui as instruções conflituosas de
vários habitantes locais, percorrendo o caminho do meio. Em pouco
tempo me vi perdido, andando por trilhas secas que serpenteavam
entre morros ainda mais secos. Passei por um caipira de boca mole
que me disse mais um monte de mentiras a respeito do caminho
para o Treze, e seu sotaque era tão forte que mal dava para
distinguir dos roncos de seus porcos. Depois disso só encontrei
cabras e um burrico surpreso.
“Droga.”
Eu não conseguia mais ver o mar nem a cidade, só colinas
marrons, cheias de arbustos espinhentos e pedras. Tirando as
cabras, um lagarto tomando sol e um urubu circulando no alto,
provavelmente esperando eu morrer, eu parecia estar
completamente sozinho.
Aí começou a chover.
Uma hora depois, ensopado, enlameado de várias quedas e já
tendo abandonado minha busca – meu objetivo agora era encontrar
Porto Francês novamente – subi uma ladeira e ali, no alto da
próxima elevação, estava o Treze.
O lugar tinha a aparência de uma velha fortaleza, um complexo
de muros altos com torres de observação em cada canto, de frente
para o mar cinzento. De meu ponto elevado, dava para identificar
uma gama de prédios dentro do complexo: quartéis, estábulos,
aposentos dos oficiais – a única parte do edifício que parecia
vagamente hospitaleira – um poço e três pátios de exercícios
separados. Portões enormes de madeira e ferro estavam fechados
para o mundo de fora. Guardas vigiavam as torres, ao lado de
campainhas que aguardavam serem tocadas em caso de alarme.
Outros guardas caminhavam pela muralha, alguns apoiados ao
parapeito para curtirem um cachimbo ou observar as nuvens.
Parecia injustificadamente bem defendido, até entender que a
preocupação não era os escravos fugirem, mas sim que fossem
roubados. Afinal, eram mercadorias valiosas, e esta era uma ilha
dominada por criminosos.
Pude ver pequenos grupos de mulheres, vestidas com sacos,
sendo levadas de um prédio a outro. Daquela distância não dava
para identificar as portas dos blocos das escravas, mas sem dúvida
seriam resistentes e bem trancadas.
“Hummm.” Tirei os cabelos molhados dos olhos e fiquei
contemplando aquele lugar. A chuva havia diminuído e havia a
promessa de céus mais claros no leste.
Nunca aleguei ser um herói, mas sabia que uma mulher com
quem eu rapidamente tive intenção de me casar podia estar
encarcerada, destinada a uma vida de escravidão, muito
provavelmente como concubina em algum harém ao sul distante.
Tirei a chave de Loki de minha túnica enlameada. Ela brilhava na luz
cinzenta. Quase pude sentir aquela coisa rindo da minha cara
enquanto a segurava.
Meu olhar passou do pretume devorador da chave para o
conjunto escuro da fortaleza que chamavam de Treze, ameaçadora
ali no próximo morro. Uma vez invadi uma fortaleza para resgatar
um amigo. A chave de contorceu em minha mão, como se já
imaginasse as fechaduras que se renderiam a ela.
Eu não queria fazer aquilo. Queria voltar para o Santa Maria e
navegar nele até em casa. Mas eu era um príncipe de Marcha
Vermelha, e esta era Lisa, Lisa DeVeer, a minha Lisa, caramba. Eu
sabia o que tinha de fazer.

“Seu desgraçado!”
“Quê?” Recuei rapidamente para me desviar do alcance dos
punhos dela.
“Camelos?” gritou Lisa, e veio em minha direção, impedida pela
corda que ainda amarravam suas pernas. “Você me trocou por três
camelos? Três?”
“Bem...” Eu não tinha imaginado essa reação quando tirei o
capuz de escrava dela. Só estávamos a cem metros das portas do
Treze. Os homens nas torres estavam assistindo e provavelmente
dando uma boa risada às minhas custas. “Eram ótimos camelos,
Lisa!”
“Três!” Ela me golpeou outra vez e eu saltei para trás.
Desequilibrada, ela caiu na lama, praguejando.
Não tinha nada de provavelmente. Ouvi os guardas dando
risada.
“Lisa! Meu anjo! Eu resgatei você!” Achei prudente não
mencionar que na verdade foram só dois camelos. Troquei o outro
por cinco coroas de prata e um justilho bem estiloso, de couro com
placas de ferro costuradas no peitoral e nas laterais, finamente
decoradas. O feitor admitiu, após o negócio fechado, que Lisa
estava dando dor de cabeça para ser treinada nos serviços de uma
garota de harém, e que provavelmente teria de ser chicoteada além
do ponto físico aceitável para o papel. “Eu te salvei!”
“Meu marido é quem devia ter feito isso!” O grito dela fez meus
ouvidos zumbirem.
“Tenho certeza de que Barras está...” Interrompi a frase e decidi
não dar desculpas para o desgraçado traiçoeiro. “Bom, ele não fez,
não é mesmo? Então tem sorte de eu ter encontrado você.” Saquei
minha faca. “Agora, se parar de tentar me bater, vou soltar suas
pernas.”
Lisa baixou os braços e me deixou ajoelhar para cortar a corda.
No instante em que as últimas fibras se partiram, ela fugiu.
Correndo direto de volta para as portas, gritando ameaças
sangrentas e promessas terríveis, com as duas mãos levantadas
fazendo gestos obscenos. Felizmente, a circulação ainda não havia
voltado às pernas dela por completo, e eu a peguei antes que
percorresse um terço do caminho de volta, colocando os braços por
trás dela e girando seu corpo.
“Pelo amor de Deus, mulher! Vão tirar você de mim e rasgar a
nota da venda. Esses caras não são legais. Com essa boca, vai
acabar com o nariz cortado, fazendo truques em uma casa do terror
só para comer!” Eu estava tão preocupado com ela quanto comigo.
Estávamos muito longe da cidade, e essas eram as Ilhas Corsárias:
eles podiam fazer praticamente qualquer coisa e se safarem.
Comecei a arrastá-la. Na verdade, foi um pouco mais fácil do
que arrastar meus três camelos do cais até lá em cima. Consegui
fazê-la voltar aonde havíamos começado, quando ela soltou o braço
e me estapeou.
“Ai! Jesus!” Segurei o rosto. “Para que isso?”
“Disseram que você tinha morrido!” disse com raiva, como se a
culpa fosse minha.
“Disseram que você tinha se casado!” Minha vez de ficar com
raiva, e por outros motivos além do tapa, embora eu não soubesse
direito por quê. A ingratidão dela, provavelmente. Gostava daqueles
camelos. Segurei o braço dela e comecei a puxar. “Precisamos sair
daqui. Se eles perceberam que eu a conheço, vão querer mais
dinheiro ou simplesmente me matar, para que isso nunca mais volte
até eles. Saí, com Lisa cambaleando e se sacudindo atrás de mim.
“Quanto tempo vai levar até um dos homens na muralha relatar tudo
isso a alguém importante lá embaixo? Eu deveria ter deixado o
capuz em você até estarmos fora da vista do...”
Parei de falar quando Lisa desatou a chorar, puxando grandes
quantidades de ar e estremecendo-se para soltá-lo enquanto
caminhava. Em outras circunstâncias, eu diria ou pelo menos
pensaria alguma coisa paternalista sobre o “sexo frágil”, mas
francamente eu conhecia bem aquela sensação – em muitas fugas
minhas eu também teria soluçado de alivio, se não tivesse que
manter as aparências perante as companhias com quem estava.
Continuei olhando para Lisa atrás de mim, enquanto fui na
frente descendo as colinas. Seu vestido feito de saco tinha ficado
quase tão enlameado quanto minha túnica quando lutei com ela no
chão, seus cabelos apontados em ângulos estranhos ou
pendurados em tufos sujos – poderíamos chamar de cabelo de
escravidão – e seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar.
Lá no Treze, eu havia dito que queria a beldade menos cara
que tivessem, e Lisa estava na fileira de oito que trouxeram da
cabana da disciplina. Nenhuma delas tinha ficado apresentável, e
para algumas era preciso olhar com muito esforço para enxergar
alguma beleza por baixo da sujeira e dos hematomas. Lisa, no
entanto, tirou meu fôlego. Alguma coisa em seus olhos, ou no
formato de sua boca, ou... não sei dizer. Talvez fosse apenas porque
aquela boca, aqueles olhos e a curva de seu pescoço significassem
algo para mim, e cada parte dela era tão cheia de lembranças que
era difícil ver o que estava à minha frente sem nossa história para
atrapalhar. Não gostei nem um pouco daquela sensação,
desconfortabilíssima, e a atribuí ao choque de minha viagem ao
Inferno e por estar tanto tempo em regiões pagãs. Isso me deu mais
motivos para agradecer pelo véu do deserto que estava usando. É
claro que o coloquei para impedir que ela me reconhecesse e
revelasse o fato de que estava lá por ela. Na melhor das hipóteses,
só isso teria aumentado o preço dela dez vezes. Na pior, eu teria
sido morto.
“O quê?” perguntou ela, constrangida pela primeira vez. “Estou
com alguma coisa no rosto?” Ela pôs a mão na bochecha, agindo
inconscientemente e esfregando mais sujeira ali.
“Nada.” Desviei o olhar, conseguindo tropeçar em uma pedra ao
mesmo tempo. Ela estava deslumbrante. Deslumbrante demais para
Barras Jon.
Chegamos aos arredores de Porto Francês quando Lisa se
recompôs o suficiente para perguntar: “Você trouxe um navio, não
é?”
“Bem. Um navio me trouxe, isso certamente é verdade.”
Lisa se estremeceu. “Nunca mais quero navegar. Fiquei
enjoada a viagem inteira até Vyene!”
“Ah. Bem, estamos em uma ilha, portanto...” Retrocedi para
ficar ao lado dela, me aproximei e pus o braço em volta de seus
ombros. “Não se preocupe. Sei que muita gente não se dá bem com
barcos. Sou um grande marinheiro e até eu fiquei um pouco mal
durante minha primeira tempestade, mas imediatamente fiz aquele
lance com as cordas e tudo mais. Ensinei àqueles vikings uma
coisinha ou outra...”
“Vikings?” Ela olhou para mim e franziu o rosto.
“É uma longa história.”
“E por que está vestido como um pastor de presépio? É algum
tipo de disfarce?”
“Mais ou men...”
“E por que” ela empurrou meu braço com força “está tão
enlameado?” Ela cutucou um pedaço especialmente imundo de
minha túnica beduína. Não queria dizer que aquilo não era lama.
Camelos são bichos nojentos, uma semana no mar não os faz
melhorar em nada, e nunca vi nada parecido em matéria de jatos de
merda.
Em vez de explicar meus trajes eu a distraí com uma pergunta.
“Por que estava em Vyene?” Não conseguia imaginar que negócios
ela teria na capital do Império – ou pelo menos a antiga capital do
antigo império.
“Barras estava me levando para conhecer sua família e nos
estabelecer em uma das propriedades deles.”
“E Barras, ele está...”
“Está bem.” A raiva fez sua testa vincar. “Ficou ocupado com os
negócios do pai em Vermelhão – Grand Jon foi antes de nós para
Vyene – então não veio comigo como planejado, simplesmente me
mandou com as empregadas na frente com mais alguns objetos
pessoais dos salões do palácio... Pelo menos acho que está bem.”
Lisa pôs a mão em meu braço. “Ele deve estar me procurando, Jal.
Alguma coisa ruim pode ter acontecido com ele – você disse que os
piratas...”
“Tenho certeza de que ele está em boa saúde.” Posso ter dito
isso de maneira ríspida. Minha preocupação momentânea com
Barras desapareceu assim que ouvi que ele não viajou com ela.
Pensei em quantos homens ele tinha mandado à procura da esposa
– suponho que Rollas tenha chegado mais perto do ponto – um
homem de muitos talentos. “Venha.” Apertei o passo. “Precisamos
chegar ao nosso navio.”
Lisa levantou o vestido de saco e correu atrás de mim.

O Santa Maria estava onde eu o deixara, esperando pela maré, e


embarcamos sem incidentes. Bartoli também permaneceu onde o
deixei, apoiado no parapeito do navio, coçando sua barriga peluda.
Ele me extorquiu duas coroas de prata antes de permitir o transporte
de minha convidada até o porto de Marsail, um preço que paguei
sem reclamar, pois não quis parecer mão-de-vaca na frente de Lisa.
Antes de zarparmos, conseguimos um vestido para Lisa,
negociando com os malandros do cais sobre a lateral do navio.
Após um rápido leva-e-traz com a loja de um alfaiate escondida
atrás dos galpões, trouxeram um vestido, na verdade pouco mais do
que um saco bordado, mas melhor do que o saco de fato que ela
usava quando a comprei.
Montei guarda do lado de fora do minúsculo armário que servia
de cabine para mim, defendendo a honra de Lisa contra os
marinheiros, em sua maioria desinteressados, enquanto ela trocava
de roupa. Ela saiu puxando as mangas, mas sem reclamar. Parecia
enjoada até naquela escuridão debaixo dos deques.
“Está se sentindo bem?”
Ela pôs a mão na porta para se apoiar. “É só esse balanço.”
“Ainda estamos ancorados e amarrados ao cais.”
Em vez de responder, Lisa cobriu a boca e saiu correndo para
as escadas.
Quando zarpamos duas horas depois, na maré da tarde, Lisa
estava debruçada sobre o parapeito da popa, gemendo. Fiquei ao
lado dela, observando Porto Francês se distanciar com alegria.
Posso ter exagerado ao alegar ser um bom marinheiro, mas, com
tempo bom no Mar Médio, consigo manter o equilíbrio e faço uma
imitação razoável de estar curtindo todo aquele lance náutico. Lisa,
por outro lado, mostrou-se uma marinheira que me fazia parecer
ótimo até no meu pior dia. Achei que jamais teria companheiros de
bordo mais bagunceiros, mais barulhentos ou mais reclamões do
que os três camelos que Omar me impingiu, mas Lisa superou o
trio. Assim como os camelos, a mais irrisória ondulação a esvaziava
por cima e por baixo. Só a minha forte objeção impediu que Capitão
Malturk a colocasse nas antigas acomodações deles.
Descobri, no segundo dia de viagem, que a reação violenta de
Lisa a viagens marítimas pelo menos a tornara pouco atrativa para
os corsários que capturaram o barco dela, e assim permaneceu sem
ser molestada durante a longa travessia de volta às Ilhas. Suas
empregadas não tiveram tanta “sorte” e foram vendidas para um
mercado diferente, no primeiro porto de escala dos corsários. A fuga
de Lisa não foi de graça, no entanto, já que ela havia chegado a
Porto Francês tão perto da morte que o senhor dos escravos ficou a
um passo de jogá-la na água, em vez de investir em sua
recuperação. No mar mais uma vez, ela entrou em declínio rápido e
passou os três dias de viagem isolada em minha minúscula cabine
com dois baldes. Eu fiquei no convés e nos vimos pouco, até que o
grito abençoado de “terra à vista!” vindo de algum lugar do alto
finalmente a convenceu a sair.
Ela ficou parada, esverdeada e pálida, tremendo, enquanto eu
aguentei bravamente seu fedor e apontei para a costa ainda
invisível como se pudesse vê-la. “O porto de Marsail! Vamos
comprar lugar em um dos barcos que sobe o Seleen e chegar em
Vermelhão dentro de dois dias no máximo!”
Casa! Eu não podia vê-la, mas com certeza podia sentir seu
sabor, e desta vez eu não arredaria o pé.
7

Em Marsail, Lisa e eu passamos dois dias e uma noite nos


recuperando anonimamente. Pegamos dois quartos – por insistência
dela – em uma bela pousada na Prada Royal, que passa embaixo
dos vários palácios dos antigos reis de Marsail. Gastei mais dinheiro
de Omar para nos deixar vestidos decentemente: um belo casaco
para mim, com brocados suficientes só para insinuar uma ligação
militar sem ser vulgar, calças cinzas e neutras, botas pretas e altas,
engraxadas de maneira tão brilhante que dava para ver o rosto de
alguém refletido nela. Lisa abandonou o vestido sujo e escolheu
roupas de viagem recatadas, que nem a envergonhariam nem
chamariam muita atenção.
Uma passada na casa de banho, no barbeiro, uma bela refeição
em um dos restaurantes melhores ao lado do porto, e começamos a
nos sentir um pouco mais humanos. A conversa entre nós ainda
fluía de maneira irregular e em rompantes esquisitos, evitando falar
do casamento dela, mas ainda assim falando diversas vezes sobre
as preocupações dela com Barras e os apuros que poderia
encontrar em sua busca por ela. Mesmo assim, vi lampejos da
antiga Lisa, esboçando alguns sorrisos e rubores quando falei dos
velhos tempos, cuidadosamente evitando mencionar seu irmão e pai
mortos.
No fim, o pavor de Lisa de mais uma viagem de barco, mesmo
que por um rio, acabou nos fazendo viajar a Vermelhão por
carruagem expressa, chacoalhando pelas várias estradas que
seguem o percurso do Seleen em direção à capital ao leste.
Passamos vários dias lado a lado, em frente a um padre velho e um
comerciante de cabelo escuro de algum porto distante da Araby. De
noite, sacolejamos sonolentos, um apoiado no outro, enquanto a
carruagem prosseguia, mudando de cavalos em vários pontos de
parada pelo caminho. Fiquei feliz ao descobrir que, dormindo com a
cabeça em meu ombro, Lisa cheirava tão bem quanto eu me
lembrava. Quase tão bem para apagar a memória do fedor que
exalava quando saiu cambaleando do Santa Maria em Marsail.
Durante uma dessas longas noites, quando a cabeça de Lisa
escorregou do meu ombro para o colo, ocorreu-me que, embora
todas as três irmãs DeVeer tivessem se casado com uma pressa
indecente após minha suposta morte, Micha com meu irmão Darin,
Sharal com o assassino conde Isen, e Lisa com meu amigo desleal
Barras Jon – a quem eu jamais trairia – na verdade era só a perda
de Lisa que eu lamentava.
Tudo ficaria bem. Casa. Paz. Segurança. A chave estaria a
salvo no palácio. O Rei Morto podia ser uma ameaça para pequenos
grupos de viajantes nas profundezas do deserto ou na selvageria
das montanhas, mas dificilmente poderia fazer um exército marchar
por Marcha Vermelha e sitiar a capital da Rainha Vermelha. E
quanto a tentativas mais sorrateiras, certamente as magias da Irmã
Silenciosa não permitiriam que a necromancia funcionasse nos
salões onde ela e seus irmãos viviam.
Quilômetros e quilômetros desapareceram debaixo de nossas
rodas, e quando as terras de minha avó passaram por nós,
hipnotizantes com aquela familiaridade desenhada de verde,
pensamentos passaram por minha mente. As coisas que havia visto,
pessoas, conversas, tudo passou tranquilamente pela minha
cabeça. Vez ou outra, levantava a cortininha e colocava a cabeça
para fora da janela para apreciar a brisa. Foi só depois que senti
uma ponta de preocupação. A estrada estendendo-se para frente,
as sebes paralelas, uma de cada lado, apontando ao longe,
chegando cada vez mais perto e nunca se encontrando, perdidas no
futuro. Só quando eu olhava para frente daquele jeito é que meus
medos me perseguiam, vindo atrás da carruagem. Maeres Allus
estava esperando por mim lá, no meio de minha cidade.
Contei meu problema a Jorg Ancrath naquela noite embriagada
em um telhado de Hamada. Ele me deu alguns conselhos, aquele
assassino marcado por espinhos, e ali, naquela escuridão quente do
deserto, parecia uma solução sensata. Afinal, ele não era o rei de
Renar? Mas também era apenas um garoto... Além disso, o que
quer que tenha me dito foi apagado por um rio de whisky, e tudo que
conseguia me lembrar era da expressão nos olhos dele enquanto
me contava, e em como acreditei totalmente que ele tinha razão.
*****

A carruagem balançou e sacolejou, quilômetros foram percorridos


sob nossas rodas e estávamos cada vez mais perto de casa.
Ultrapassamos três longas colunas de soldados marchando na
direção da capital. Em diversos momentos, a estrada ficou tão
lotada que tivemos de nos espremer ao lado de comboios de
bagagem parados, carroceiros discutindo, soldados gritando
comandos para as fileiras. E, de alguma maneira, em meio a todo
aquele estardalhaço, ao calor, ao barulho, à expectativa... peguei no
sono.
Sonhei com João Cortador, que havia ficado enorme e satânico,
como se a realidade já não fosse ruim o bastante. Eu o vi tentando
me pegar com o braço remanescente, pálido e com os troféus
macabros de seu ofício pendurados, os lábios que havia arrancado
para Maeres Allus e usava como pulseiras. Tentei fugir, mas me vi
amarrado à mesa outra vez, de volta aos salões de papoula de
Allus. Aqueles dedos brancos enormes procuraram por mim,
chegando mais perto... mais perto... e eu gritando o tempo todo. Ao
gritar, as paredes e o chão sumiram, virando pó no vento seco e
revelando um céu de luz morta, da cor da desgraça. A mão de
Cortador se encolheu e, naquele momento, sabendo que estava
novamente no Inferno, gritei para que ele me segurasse e me
erguesse de volta, sem ligar para o destino que me esperava – pois
a melhor definição do Inferno talvez seja que não existe nenhum
lugar e nenhum tempo para o qual você não correria para poder
fugir dele.

“Algo está errado.”


Levanto a cabeça e vejo que Snorri parou na minha frente,
olhando para as cordilheiras à nossa volta. “Tudo está errado.
Estamos no Inferno!” As palavras não definem bem, mas mesmo
que você esteja apenas caminhando por uma ravina árida seguindo
o fluxo das almas, o Inferno é pior do que tudo que você conhece.
Você sente dor, o bastante para fazê-lo chorar, sente sede, uma
fome que chega a doer, o sofrimento pesa sobre você como se
fosse uma corrente em volta do pescoço, e apenas ficar parado ali é
como observar tudo que já amou na vida morrer miseravelmente
diante de você.
“Ali!” Ele aponta para uma coleção de pedras irregulares na
colina à nossa esquerda.
“Pedras?” Não vejo mais nada.
“Alguma coisa.” Snorri franze a testa. “Alguma coisa rápida.”
Continuamos a caminhar, cansados até os ossos. Em alguns
pontos a terra está rachada, fissurada. Longas labaredas saem dali,
em direção ao céu, e o ar está podre de enxofre, ardendo meus
olhos e pulmões. A ravina se alarga em um vale árido, repleto de
pedras. O vento as esculpiu em formatos estranhos, e muitas se
parecem perturbadoramente com rostos. Começo a escutar
cochichos, a princípio indistintos, tornando-se mais claros quando
me esforço para entender as palavras.
“Trapaceiro, mentiroso, covarde, adúltero, blasfemo, ladrão,
trapaceiro, mentiroso, covarde, adúltero...”
“Está ouvindo isso, Snorri?”
Ele para e me deixa alcançar. “Sim.” Ele olha em volta, ainda
espantado. “Vozes. Ficam me chamando de assassino. Sem parar.”
“Só isso?”
“...blasfemo, ladrão, trapaceiro, mentiroso, covarde, adúltero...”
“Não está ouvindo ‘trapaceiro’ nem ‘ladrão’?”
Snorri franze o rosto para mim. “Só ‘assassino’.”
Eu ponho a mão atrás da orelha. “Ah, sim, está mais claro
agora. Estou ouvindo ‘assassino’ também.”
“...covarde, adúltero, blasfemo...”
“Blasfemo? Eu? Eu?” Olho em volta para os rostos petrificados
apontados na minha direção. Cada pedra durante uns cinquenta
metros parece ter um conjunto de feições grotescas que não
destoariam das estátuas que decoram a torre de meu tio-avô.
“Ira: você cometeu o pecado da ira...” vindo de umas vinte
bocas.
“Não estou irado, cacete!” grito de volta, sem saber por que
estou respondendo, mas levado pela maré de acusações.
“Luxúria: você cometeu o pecado da luxúria...”
“Bem... tecnicamente...”
“Jal?” A mão de Snorri repousa em meu ombro.
“Avareza: você cometeu o pecado da avareza...”
“Ah, espere aí! Todo mundo comete esse! Quer dizer, me
mostre uma pessoa...”
“Jal!” Snorri me sacode e me vira para encará-lo.
“Sim. Quê?” Olho para ele, piscando.
“Luxúria: você cometeu o...”
“Está bem! Está bem!” grito por cima das vozes. “Eu me
entreguei à luxúria. Mais de uma vez. Levanto a mão para todos os
sete, apenas cale a boca.”
“Jal!” Um tapa, e minha atenção se volta firmemente ao nórdico.
“Essas não são coisas com que os deuses se importam. Este é o
seu credo. Estas são as bobagens que os religiosos proclamam.”
Faz sentido. “E daí?”
“As terras mortas são moldadas pela expectativa, mas somos
dois e nossas fés discordam.” Ele me solta. “Estamos no domínio de
Hel, onde ela reina sobre tudo que está morto. Mas...”
“Mas?”
“Agora acho que entramos no seu Inferno.”
“Ai, meu Deus.”
“...não usará o nome de Deus em vão...” disse a voz do bispo
James, embora o subordinado de meu pai nunca tivesse soado
tanto como se quisesse me arrancar o couro.
Hel, a deusa duas-caras de Snorri, domina um submundo que é
um lugar bem horrendo, mas tenho a impressão de que o meu
Inferno de fogo e enxofre, cheio de pecadores e com diabos para
assá-los, pode superá-lo na sordidez.
“Vamos voltar.” Dou meia-volta e começo a retraçar nossos
passos. “Como foi que acabamos aqui? Você que é o crente.”
“...descrente, descrente, queime o descrente...”
“Quis dizer que você é quem tem a fé mais forte.”
“...infiel, infiel, atormente o infiel...”
“Não que a minha fé não seja bem forte também, louvado seja
Jesus!” Faço o sinal da cruz, Pai, Filho e Espírito Santo, e nem foi
aquele aceno meia-bomba que Papai faz, mas sim a ação
deliberada e precisa que o bispo James utiliza.
“Pode não ser você, Jal.” A mão de Snorri em meu ombro
novamente, contendo meu movimento. Olho para trás e ele acena
para frente com a cabeça.
Alguma coisa passa rapidamente na fresta entre duas pedras
maiores espalhadas pelo chão do vale. Tenho apenas o vislumbre
de alguma coisa – alguma coisa magra e pálida – alguma coisa
ruim.
“Este é o Inferno do nosso inimigo. Ele o trouxe consigo na
caçada.” Snorri está com o machado na mão agora.
“Mas ninguém sabe que estamos aqui...” Ponho a mão na
chave, ali debaixo de meu justilho, logo acima do coração. De
repente ela parece pesada. Pesada e mais fria que gelo. “O Rei
Morto?”
“Pode ser.” Snorri revira os ombros, com os olhos azuis quase
pretos na luz morta e fixados na pedra onde a criatura despareceu.
“Se de alguma maneira foi alertado de nossa presença, ele pode
simplesmente querer vingança por mantermos a chave longe dele.”
“A propósito...”
A criatura rouba qualquer conversa adicional, surgindo das
sombras ao pé da pedra e começando a correr em nossa direção
com uma velocidade espantosa. Ela se impulsiona para frente com
pernas finas feito ossos, e a força de cada investida a inclina para
um lado e é corrigida pelo próximo, traçando um caminho errático
pelo campo de pedras, costurando-se entre elas e deixando os
rostos de pedra gritando de horror em seu rastro. Aquela coisa me
faz lembrar dos filamentos brancos que se vê no músculo de um
homem quando é aberto por um golpe de espada. Nervos, como
chamou um dos meus tutores, apontando para os desenhos
pavorosos em algum livro antigo de anatomia. Aquilo se parece com
um nervo: branco, fino, longo, dividindo-se em membros que por sua
vez se dividem em três dedos que parecem raízes. A cabeça é uma
cunha sem olhos, aguda o suficiente para se enterrar em uma
pessoa.
“Lichkin.” Snorri diz o nome da fera e dá três passos em sua
direção, medindo o tempo de seu golpe. Ele urra quando a cabeça
de seu machado rasga o ar, os músculos se contraindo ao
impulsioná-lo para frente. O lichkin se obscurece debaixo do ataque
e ressurge pegando Snorri pelo pescoço, a outra mão em sua
barriga, levantando-o do chão e atirando-o para baixo com um
barulho chocante. A poeira se levanta em torno do impacto e não
consigo ver como ele aterrissou, mas, com tantas pedras, é
improvável que tenha sido bem.
“Merda.” Finalmente me lembro de sacar minha espada. Ela sai
cantando da bainha, com a luz morta refletindo-se nas runas
gravadas em sua extensão. Minha mão está tremendo.
O machado de Snorri se ergue, instável no meio da poeira
levantada, e o lichkin o pega, continua o movimento para dar a volta
e baixá-lo, em um círculo que enterra a lâmina aproximadamente
onde espero que a cabeça de Snorri esteja. O impacto é abafado e
final. Só consigo ver o cabo do machado apontado para cima,
quando o lichkin o abandona e vem na minha direção, com a poeira
ainda subindo em volta como fumaça. Aquela coisa emana um
pavor como o calor de uma fogueira.
“Ai, droga.” Enfio a mão pela gola do justilho e puxo a chave de
Loki para fora. “Olhe, pode ficar com ela, só me deixe...”
O lichkin avança, e é tão rápido que acho que eu devo ter
ficado paralisado onde estava. Em um momento ele está ali ao lado
da nuvem de poeira, e no outro está com uma mão em volta do meu
pescoço e a outra no punho do braço que seguro a espada. O toque
daquela coisa é mais abominável do que se pode imaginar. Sua pele
branca se une à minha, parecendo se fundir. Parece que inúmeras
raízes estão se afundando em mim, entocando-se entre as veias,
cada uma queimando com uma dor ácida que não deixa nem
espaço para gritar.
Estou preso, inútil e imóvel enquanto aquele rosto branco e
pontudo me examina, e tudo que consigo fazer é implorar para
morrer, mas incapaz de dizer as palavras, com a mandíbula tão
tensa que estou esperando meus dentes se quebrarem a qualquer
momento, simplesmente todos estraçalhados ao mesmo tempo.
A cabeça do lichkin se abaixa na direção da chave de Loki,
presa entre nós, apontada para frente, com meu braço rígido e
paralisado.
Avisto um objeto grande e fumegante, atrás da cabeça do
lichkin, correndo na nossa direção. No último instante eu percebo
que é Snorri, com a poeira se levantando dele a cada passo pesado.
Ele está de mãos vazias, como se estivesse pensando em rasgar a
criatura em pedaços apenas com a força. O lichkin se vira, mais
rápido que o pensamento, e o pega pelos ombros. Apesar de sua
magreza, o lichkin fica grudado ao chão e absorve todo o ímpeto do
ataque do viking, precisando apenas de um único passo brusco para
trás.
Eu fico ali, ainda paralisado naquele momento. A espada de
Edris Dean caiu da mão que o lichkin soltou, mas ainda não atingiu
o chão. Meus olhos acompanham seu progresso e veem que, ao
pisar para trás, o lichkin se colocou contra a haste preta da chave de
Loki, cuja ponta entrou dois centímetros naquela carne branca.
Todo que posso fazer é girá-la.
Ao girar, o negrume dela invade o alabastro do lichkin,
disparando filetes de ébano por seu corpo, cada um se bifurcando e
ramificando, manchando, corrompendo. A gravidade me alcança e
estou caindo, soltando a chave com um puxão, mas mesmo comigo
batendo no chão e levantando poeira, vejo que o lichkin começa a
se desfazer, como se fosse mil fios, mil tubos brancos, agora
cinzentos e putrefatos, cada um se separando do próximo, a coisa
toda se abrindo, se espalhando, caindo.

“Vermelhão!” Uma batida no teto da carruagem, com a voz rouca do


bronco que naquele momento estivesse nas rédeas. Sentei-me com
um solavanco, ensopado de suor.
“Ai, graças a Deus!” Calafrios correram por meu corpo. Olhei
para meu pulso, esperando ver a marca de queimado da mão do
lichkin ainda ali. Lisa fez um resmungo sonolento, com o rosto
escondido pelos cabelos e a cabeça em meu colo. O velho, Padre
Agor, estreitou os olhos claros para mim com reprovação.
“Ele disse Vermelhão?” Levantei a cortininha e olhei para fora,
apertando os olhos contra a claridade. Passávamos pelos subúrbios
de Vermelhão. “Finalmente!”
“Chegamos?” disse Lisa, piscando, com o rosto vincado onde
estava deitada e fios de cabelo presos no canto da boca.
“Chegamos!” falei, com um sorriso tão largo que meu rosto
doeu.
Lisa segurou minha mão e sorriu de volta, e de repente tudo
estava certo no mundo. Pelo menos até eu me lembrar de Maeres
Allus.
Minutos depois, Lisa e eu desembarcamos no palácio de justiça
na Praça Golloth e ficamos duros, espreguiçando-nos, olhando em
volta sem acreditar. Padre Agor jogou uma moeda para um
carregador, que pegou sua bagagem em cima da carruagem e saiu
atrás dele, com uma mala embaixo de cada braço. Nosso
comerciante silencioso partiu, com um garoto e uma mula
carregando seu baú, deixando Lisa e eu sozinhos em uma rua
movimentada, e a carruagem saiu sacolejando até algum estábulo
que a recebesse.
Em minha viagem ao sul com Snorri, eu passava boa parte do
dia planejando e esperando meu retorno a Vermelhão. Viajando com
Lisa, eu mal disse uma palavra sobre o assunto – talvez com medo
de dar errado ou sem acreditar que, após tudo que havia aguentado,
nosso lar estaria mais uma vez esperando para nos acolher, como
se nada tivesse mudado. Mas ali estava ela, cheia, quente,
envolvida em suas próprias preocupações e indiferente à nossa
chegada. Um grande número de tropas estava reunido na Praça
Adam, com seus suprimentos empilhados ao lado da academia de
guerra.
“Pode me levar para casa, Jal?” Lisa virou-se da rua e olhou
para mim.
“Melhor não. Conheci seu irmão mais velho, e ele não gosta de
mim.” Lorde Gregori teria me fatiado pessoalmente, se eu não
tivesse me escondido atrás de minha posição e feito ele incentivar
conde Isen a fazer o serviço em seu lugar.
“Moro no palácio agora, Jal.” Ela olhou para os pés, de cabeça
baixa.
“Ah.” Eu tinha me esquecido. Ela quis dizer nos quartos do
apartamento de Grand Jon na ala de hóspedes. Aqueles que dividia
com seu marido. “Não posso. Tenho uma coisa muito importante
que preciso fazer imediatamente.”
Ela levantou os olhos, decepcionada.
“Olhe.” Eu balancei as mãos como se houve alguma coisa nelas
que pudesse explicar. “É melhor que eu não esteja lá. Não quando
se encontrar com Barras. E dificilmente irá lhe acontecer alguma
coisa daqui até os portões do palácio.” Ela manteve aqueles olhos
grandes em mim, sem dizer nada.
“Eu teria me casado com você, sabe disso!” As palavras me
pegaram de surpresa, mas agora já tinham saído e palavras não
podem ser desditas. Elas ficam pairando ali entre vocês, esquisitas
e desconfortáveis.
“Você não é do tipo para casar, Jal.” A cabeça inclinada, com
um toque de surpresa no rosto dela.
“Eu poderia ser!” Talvez eu pudesse. “Você era... especial...
Lisa. Nós tínhamos uma coisa boa.”
Ela sorriu, fazendo eu desejá-la ainda mais. “A minha varanda
não era a única que você escalava, Jal. Nem mesmo no terreno de
meu pai.” Ela pegou minhas mãos. “Mulheres também gostam de se
divertir, sabia? Principalmente mulheres nascidas em famílias como
a minha, que sabem que vão se casar para a conveniência de seu
pai, em vez de por escolha própria.”
“Seu pai teria agarrado a oportunidade de ter um príncipe para
uma de suas filhas!”
Lisa apertou minhas mãos. “Nosso irmão agarrou a
oportunidade.”
“Darin.” Seu nome tinha o gosto azedo. O irmão mais velho. O
que não era visto saindo trôpego de bêbado dos bordéis ao
amanhecer, ou apostando o dinheiro de outros homens. O que não
estava afogado em dívidas com criminosos do submundo.
De repente eu não consegui aguentar a bondade dela nem
mais um minuto. “Olhe. Tenho uma coisa para fazer. Não pode
esperar. Realmente preciso fazer isso. E...” vasculhei o bolso interno
de meu casaco. “Preciso de sua ajuda.” Tirei a chave de Loki,
enrolada em um pano de veludo grosso bem amarrado com um
cordão. “Guarde isto para mim. Não abra. Pelo amor de Deus, não
toque nisso. Não mostre para ninguém.” Fechei as mãos dela em
volta do pacote. “Se eu não voltar ao palácio dentro de um dia, leve
isso até a Rainha Vermelha e diga que veio de mim. Pode fazer
isso? É importante.” Ela fez que sim e eu soltei suas mãos. E, de
alguma maneira, embora a chave fosse de longe a coisa mais
valiosa no reino de Marcha Vermelha, pela qual lutei, sangrei e
literalmente atravessei o Inferno para manter, não senti nenhuma
angústia ao deixar Lisa DeVeer levá-la. Apenas uma sensação de
paz.
“Está me assustando, Jal.”
“Preciso sair e encontrar Maeres Allus. Devo muito dinheiro a
ele.”
“Maeres Allus?” franziu a testa.
Lembrei que, para a maior parte de meu círculo, Allus era um
comerciante, certamente rico, mas nada além, e quem tem tempo
para se lembrar dos nomes de comerciantes? “Um homem
perigoso.”
“Bem... deve lhe pagar.” Ela pegou minha mão nas dela. “E
tome cuidado.”
A velha Lisa teria rido e me dito para dizer a esse sujeito
Maeres que esperasse – e se ele tivesse a audácia de encostar a
mão em mim, que eu sacasse minha espada e fosse para cima dele.
A nova Lisa estava muito mais familiarizada com a realidade de
espadas encontrando o corpo. A nova Lisa queria que eu engolisse
meu orgulho e pagasse ao homem. Houve no passado um Jalan
que teria aconselhado a brandir a espada também – mas aquele
Jalan tinha oito anos de idade, e fazia muito tempo que não nos
reconhecíamos.

Fui primeiro até a Guilda do Comércio, uma grande cúpula que pode
ser adentrada por muitos arcos em volta de sua circunferência.
Embaixo da cúpula, em um amplo chão de mosaico, comerciantes
de certo nível de riqueza se reúnem para fechar negócios e fazer as
fofocas que lubrificam as engrenagens da indústria. Uma galeria
passa em volta da cúpula, vários andares acima das negociações,
com portas que dão para escritórios com vista para a cidade ao
redor.
Peguei dinheiro emprestado no pregão primeiro. Pedi em nome
de minha família, deixando a espada de Edris Dean como garantia
adicional – não importa que mal a maculasse, ninguém podia negar
a qualidade do aço, coisa antiga derretida das ruínas dos
Construtores: nenhum ferreiro hoje tem a habilidade de se equiparar
à sua força. Não perguntei se notícias de minha prisão por dívida
em Umbertide haviam chegado a Vermelhão ainda, mas parecia
improvável, já que saí da Guilda com cinquenta coroas de ouro.
Com esse dinheiro e o restante das barras libanas de Omar,
comprei roupas de qualidade suficiente para corresponder à minha
posição, além de uma corrente de ouro contrabandeado, um anel de
rubi e um brinco de diamante. Os trajes tiveram de ser ajustados ao
meu corpo rapidamente, adaptados das dimensões de seus
destinatários pretendidos, mas paguei generosamente e perdoei
quaisquer falhas no corte.
Para pegar muito dinheiro emprestado é preciso ter aparência
correspondente. Um rei esfarrapado não vai ganhar nenhum crédito,
não importa que garantias possa ter.
Sem um tostão novamente, subi as escadarias da galeria, onde
os prestamistas mais ricos de Vermelhão ofereciam seus serviços.
Maeres Allus jamais teria permissão de ter uma sala neste círculo,
embora tivesse grana para figurar entre eles. O que mandava ali era
dinheiro antigo, dinastias mercantes de boa reputação e longos
laços com a coroa. Escolhi me aproximar de Silas Marn, um príncipe
comerciante sobre quem meu tio-avô Garyus tinha uma boa opinião
ao longo dos anos.
Os homens na porta levaram minha petição para dentro e Silas
teve a delicadeza de não me deixar esperando. Ele me recebeu
pessoalmente em sua sala de entrevistas, um aposento abobadado,
todo de mármore, com bustos de vários Marn mortos nos espiando
das alcovas.
O homem, tão velho que praticamente rangia, levantou-se de
sua cadeira quando entrei, sobrecarregado por seus trajes de
veludo. Gesticulei para que se sentasse, e ele desistiu da tentativa
antes que conseguisse se levantar por completo.
“Obrigado por me receber em tão pouco tempo.” Sentei onde
ele acenou e ficamos frente a frente com uma mesa de mogno
brilhante no meio.
“Jamais mandaria embora um príncipe do reino, príncipe Jalan.”
Silas Marn me olhou com os olhos castanhos turvos, quase perdidos
nas várias dobras de seu rosto, a pele coriácea e manchada pela
idade. Dei-lhe um sorriso largo e ele devolveu um mais cauteloso.
Orelhas grandes e um nariz semelhante a um bico dominavam sua
cabeça pequena, embora isso pareça ser o destino de todo homem
que vive tempo demais. “Como posso ajudá-lo?”
Empurrei a documentação relevante sobre a mesa. O papel
amassado não parecia estar em melhor estado que Silas, tão
manchado e vincado quanto ele, as palavras quase ilegíveis, o selo
de cera rachado.
“Parece que atravessou o inferno.” Silas não se moveu para
pegá-lo. “O que é?”
“Escrituras de treze ações, de um total de vinte e quatro, nas
minas de sal de Crptipa.”
“Estou ciente de seus... contratempos em Umbertide, príncipe
Jalan. Foram feitas acusações contra você de natureza seríssima.
Um assassino de crianças teria mais facilidade de conseguir crédito
do que um falido acusado de várias fraudes. Tenho certeza de que
essas acusações não têm fundamento, é claro, mas o simples fato
de existirem é um impedimento terrível para...”
“Não estou procurando crédito. Quero vender. As minas de
Crptipa têm amplas reservas de sal, imediatamente adjacentes a
alguns dos maiores mercados de portos do Império Destruído. Estão
com a infraestrutura montada para aumentar a produção, agora que
a saída de Kelem abriu áreas de exploração que ficaram proibidas
durante séculos. A produção da mina pode ser mais barata que o
fornecimento importado, mas ainda gerando lucros consideráveis
em cada tonelada. Como devedor, estou livre para conduzir
negócios de modo a gerar fundos para arcar com minhas
obrigações.”
Silas pôs a mão enrugada sobre a escritura de venda. “Estou
vendo que o sangue de seu tio-avô não está totalmente ausente de
suas veias, príncipe Jalan.”
Senti uma pontada de culpa nesse momento. “Ele está bem?
Quer dizer... três navios...”
Aqueles olhos velhos se estreitaram de reprovação, os lábios
secos formando uma linha fina. O comerciante me observou por um
momento e depois relaxou em um sorriso mínimo. “Seria preciso
mais que três navios para fazer um buraco nos negócios de seu tio.
Mesmo assim – e com o maior respeito – não foi bom perdê-los.”
“Quanto vai me dar?” batuquei na mesa.
“Direto.” O sorriso de Silas se alargou. “Talvez ache que um
homem da minha idade não tem tempo para perder com rodeios?”
“Faça uma oferta. O lugar vale cem mil.”
“Estou ciente de seu valor. As minas têm sido objeto de uma
especulação considerável. As legalidades de sua alegação, no
entanto, exigiriam esclarecimentos consideráveis e correm o risco
de nesse meio tempo o duque de Umbertide decretar o confisco de
seus bens, devido à sua saída sem autorização. Vou lhe dar dez mil.
Considere um favor à sua família.”
“Dê cinco mil, mas me deixe comprá-la de volta por dez mil
dentro de um mês.”
O velho inclinou a cabeça, como se escutasse os conselhos de
algum assessor invisível. “Fechado.”
“E preciso sair daqui com o ouro dentro de uma hora.”
Aquilo fez as sobrancelhas brancas se levantarem uma
distância considerável. “Será que é possível um homem carregar
cinco mil em ouro?”
“Já fiz isso antes. Os braços doem no dia seguinte.”

E foi assim que, uma hora depois, saí carregando uma pequena
caixa, porém extremamente pesada, apertada contra o peito. Foi
preciso meia dúzia de subalternos idosos correndo sob da cúpula da
Guilda do Comércio, pedindo favores a torto e a direito, mas Silas
reuniu as moedas necessárias, e eu entreguei o controle acionário
da mina de sal mais valiosa do Império Destruído.
Caminhei pelas ruas principais desejando ter aceitado a oferta
de Silas de levar um carregador, enquanto ao mesmo tempo ainda
concordava com meu próprio argumento de que ninguém deveria
perder a oportunidade de carregar tanto ouro. Minha passagem
atraiu alguns olhares, mas ninguém seria tolo o suficiente de pensar
que eu carregaria tanta riqueza desprotegido, e, mesmo que
soubessem, poucos seriam tolos o suficiente de tentar me roubar
nas largas avenidas do centro da cidade. De qualquer modo, minha
roupa nova vinha com uma pequena faca em um bolso interno, logo
acima do punho, pronta para se soltar rapidamente e furar as mãos
dos ladrões.
Quando cheguei ao grande abatedouro, a quinhentos metros da
sede da Guilda do Comércio, meus braços pareciam ser duas vezes
mais compridos e feitos de gelatina. Olhei para o edifício
impressionante acima. Parecia que uma eternidade tinha se
passado desde que estive ali dentro pela última vez. Pouco mais de
um ano, de acordo com o calendário. Mais de três mil e duzentos
quilômetros, a pé. No passado um abatedouro de gado, carne para
as mesas da realeza, e agora um lugar onde homens cortavam
carne humana, os Buracos Sangrentos eram um dos lugares
favoritos de Maeres Allus.
Os brutamontes na porta me deixaram entrar sem pestanejar.
Homens ricos vinham todos os dias para ver pobres morrendo e
apostar nos resultados. O irmão mais velho dos Terrif, Deckmon,
com certeza me reconheceu, levantando os olhos de sua mesa de
apostas. Ele pôs o dedo na pele sob o olho esquerdo e puxou para
baixo, avisando que minha entrada havia sido marcada.
As pessoas de sempre circulavam em torno dos quatro grandes
fossos, e os homens dos números ficavam às margens, com as
probabilidades escritas a giz acima de seus postos. Tirei um
momento para absorver aquilo, a cor, o barulho, os aristocratas
perseguidos por seus bajuladores, como um círculo de parasitas, e
passando para lá e para cá havia vendedores de vinho, de papoula,
e damas de afeto negociável.
O cheiro de sangue permeava tudo, constante. Eu não tinha
notado, em todos aqueles anos que passei ali, apostando na
carnificina. O cheiro me trouxe lembranças, não dos Buracos
Sangrentos, mas da Passagem Aral e do Forte Negro. Por um
instante, senti as águas geladas do Slidr me envolverem e o calor
berserker subindo ao encontro delas.
Cruzei o caminho até Will Comprido, um técnico e caça-
talentos, um fiapo de homem, coroado por cabelos grisalhos
espetados. “Maeres está aí?”
Will Comprido apontou com a cabeça na direção do Ocre. Dos
quatro grandes fossos, era o que ficava mais longe das portas
principais. Passei no meio da multidão, suando, e não só pelo
esforço de carregar meu tesouro. Só de pensar em Maeres Allus eu
já ficava arrepiado, e minhas pernas ficavam tão fracas quanto
meus braços trêmulos – embora com esse medo tivesse vindo
também uma raiva, um calor crescente que estava ali, por baixo do
pavor, fazendo-me companhia durante toda a viagem longa e
sacolejante de Marsail.
Uma menina bonita passou os dedos pelo meu cabelo, um
vendedor de vinho me empurrou um cálice de estanho. Olhei de
maneira incisiva para o cofre que ocupava minhas duas mãos.
“Príncipe Jalan?” Alguém me reconhecendo, sem certeza.
“É Jalan?” Um barão gordo do sul. “Não pode ser.”
Subalternos se afastaram diante de mim quando me aproximei
do grupo reunido à beira do Ocre. Mais de um ano. Milhares de
quilômetros. Dos desertos de gelo às areias escaldantes. Caminhei
pelo Inferno... e ali estava eu novamente, de volta ao ponto de
partida. Catorze meses depois, mal me reconheciam naquele lugar
onde eu passava tanto tempo, gastava tanto dinheiro e
desperdiçava tanto sangue de outros homens.
Um burburinho cresceu ao meu redor: mesmo que a multidão
não tivesse certeza do meu nome, ela reconhecia um homem
determinado caminhando para o centro das coisas. As últimas
camadas se afastaram, homens que eu conhecia de vista e de
nome, os associados de Maeres, comerciantes controlados por ele,
lordes inferiores procurando empréstimos ou sendo procurados para
levar vantagem em alguma coisa. O negócio dos negócios,
enquanto sete metros abaixo dois homens lutavam, cada um
fazendo seu melhor para bater no outro até a morte com os punhos.
Dois slovianos de rosto estreito se afastaram e lá, revelado
entre eles, estava Maeres Allus, pequeno, moreno, de túnica
modesta – olhando para ele ninguém diria que era dono do local e
de muito mais. Ele não demonstrou nem surpresa nem interesse por
minha aparição.
“Príncipe Jalan, esteve longe por muito tempo.” Um urro de
triunfo surgiu do fosso atrás dele, mas ninguém mais parecia
interessado. Imaginei o lutador vitorioso olhando para cima,
esperando rostos comemorando, e vendo apenas o parapeito de
madeira e uma ou outra nuca.
Jorg Ancrath, aquele prodígio sobre o qual muitas profecias
pareciam circular, aquele jovem feroz e vitorioso em torno de quem
os planos de minha avó pareciam girar, o jovem rei que acendeu um
Sol dos Construtores em Gelleth e outro na porta de entrada de
Hamada... havia me dado um conselho sobre como lidar com
Maeres Allus. Ele disse as palavras na escuridão quente e ébria de
uma noite hamadiana, e agora, com Allus finalmente à minha frente,
aquelas palavras esquecidas começaram a borbulhar das
profundezas escuras de minha memória. “Vim acertar nossas
contas, Maeres. Talvez possamos ir a algum lugar com privacidade.”
Apontei com os olhos para as alcovas cortinadas onde se
conduziam todos os tipos de negociações dos Buracos Sangrentos,
das carnais às comerciais, não que a primeira não fosse igual à
segunda.
Os olhos escuros de Maeres repousaram sobre o cofre em
meus braços. “Acho que talvez nossos negócios tenham acontecido
demais atrás de portas fechadas, príncipe Jalan. Vamos resolver
nossas pendências aqui.”
“Maeres, é pouco adequado...”
“Aqui.” Foi um comando. Ele queria me humilhar diante de
testemunhas.
“Eu realmente não...”
“Aqui!” Desta vez um brado. Não me lembro de Mares Allus
levantar a voz antes disso. Ele olhou sobre o ombro para o fosso
abaixo. “Uma pobreza de luta. Ponha o urso lá dentro.”
Se havia alguém nos Buracos Sangrentos tão envolvido em
seus próprios assuntos e que não estava olhando na minha direção,
a menção ao urso logo mudou isso. Uma onda se agitou pela
multidão, e ao mesmo tempo todos começaram a seguir na direção
do Ocre, atraídos pelos gritos de misericórdia do lutador e pela
possibilidade de vê-lo não ser atendido.
Maeres não se virou para assistir ao espetáculo, mantendo os
olhos em mim em vez disso. Ficamos parados ali daquele jeito, com
a turba à nossa volta berrando por sangue, as vozes competindo
inicialmente com os gritos do homem, e depois com o barulho
macabro do urso despedaçando sua refeição.
“Tinha assuntos a tratar, príncipe Jalan?” Maeres levantou a
cabeça, convidando minha resposta. Dois de seus capangas
estavam ao meu lado agora, homens durões que sobreviveram aos
fossos e foram alçados à sua posição atual.
“Vim aqui quitar minhas dívidas, Maeres. Pedi emprestado de
boa fé e dei minha palavra que pagaria na íntegra. Meu pai é filho
da Rainha Vermelha e não faço promessas à toa.” Peguei pesado
na fanfarra. Se era para gastar milhares em ouro, pelo menos que
eu aproveitasse o momento. “Lembre-me de quanto é o débito.”
Maeres estendeu a mão e um sujeito pesadão de preto pôs
uma lousa na palma dele. Eu sabia que o cara era contador de
Maeres, mas com aqueles dedos grandes como salsichas ele
parecia mais adequado para lutar com trolls do que para lidar com
números. “A dívida está em três mil e onze coroas de ouro.” Um
forte sobressalto correu pelos espectadores, talvez até o próprio
prédio tenha sugado suas paredes ao ouvir aquela quantia. Muitos
ali teriam dificuldade de imaginar uma soma tão alta, e ninguém da
pequena nobreza era tão rico que a perda de três mil não faria falta.
Três mil excedia o que eu pegara com Maeres por uma margem
considerável. Mesmo com meses de juros. Desconfiei que estava
sendo cobrado pelos serviços dos homens que mandou atrás de
mim, Alber Marks, João Cortador e os irmãos slovianos que foram
incumbidos de me devolver à cidade para uma morte secreta e
horrível. Com um grunhido de esforço, apoiei a caixa em um braço
dolorido e abri a tampa com a outra mão. “Se quiser mandar seu
homem contar a quantia necessária.” Dei um passo à frente, de
modo que o cofre quase chegou até Maeres, na altura da sua
cabeça, com o brilho das moedas iluminando seu rosto.
Demorou um pouco, mas cada cavada que o contador dava
com aquelas mãos de pá aliviava meu peso. Ele pesou as moedas
em suas balanças, dizendo os valores em voz alta e depois jogando
o monte reluzente em um saco de couro. Ele rapidamente pediu
outros dois ao perceber que o que tinha era pequeno demais para
receber meu pagamento.
“Mil.”
Enquanto o contador cavava e pesava, pesava e cavava,
Maeres continuou olhando para mim, com os olhos escuros e
indecifráveis. A loucura que havia visto neles, naquele dia nos
salões de papoula, agora estava escondida.
“O pagamento de um empréstimo é sempre bem-vindo, mas me
diga, o que ocasionou essa mudança de comportamento, de um
homem tão ávido para pegar emprestado para um homem tão
disposto a pagar?”
“Dois mil.” O contador amarrou um segundo saco.
Encarei de volta. Será que Maeres estava me convidando a
anunciar seus métodos? Me provocando? Esse assassino de gostos
depravados, matando dentro das muralhas de Vermelhão, jantando
tão perto do palácio que as sombras das torres seriam capazes de
tocar sua mansão, mais rico que muitos lordes, criando suas
próprias leis e executando sua própria justiça. “Conheci um rei e
pedi seus conselhos.”
“E ele lhe aconselhou a me pagar?”
Pensei em meu encontro com Jorg Ancrath. Quando falei de
meu problema, ele ficou quieto no início, depois sério, como se nem
uma gota tivesse passado em seus lábios a noite toda. “Ele me
disse para dar a você o que deseja.” Pus o cofre no chão entre nós
e esfreguei os braços.
“Um rei realmente sábio.”
“Três mil.” O contador amarrou o último saco, depois se curvou
sobre o cofre mais uma vez e começou a contar as últimas onze
moedas.
“Parece um homem mudado, príncipe Jalan. Espero que suas
viagens no que resta de nosso antigo grande império não o tenham
amargurado.”
“Seis... sete... oito.” O contador pôs as moedas em um bolso de
seu avental de couro.
“Atravessei o Inferno, Maeres.”
“As estradas podem mesmo ser perigosas,” assentiu. “Ainda
assim, tenho certeza de que veremos o retorno do antigo príncipe,
um rapaz tão alegre, tão certo de suas opiniões, tão disposto a
gastar.”
“Nove... dez...”
“Também espero, mas por ora o príncipe que está vendo à sua
frente terá de servir.” Lembrei da sensação de estar amarrado à
mesa dele, da expressão em seu rosto quando me passou para
João Cortador, de como gritei e implorei. Snorri confundiu aquilo
com bravura.
“Onze.” O contador se endireitou, parecendo relutante em
deixar o cofre ainda com ouro no fundo. “A dívida está quitada.”
“Muito bem.” O sorriso de Mares me disse que sabia que,
apesar das correntes da dívida serem retiradas, ele agora realmente
me possuía muito mais do que antes. Senti um calafrio, o desafio
gelado do Slidr, e o calor vermelho que me fizera atravessar o rio
mais afiado do Inferno agora surgiu para afastar aquele frio.
Lembrei-me de todas as palavras do menino-rei.
“Jorg Ancrath me disse: ‘Dê a ele o que deseja’.” Dei um passo
para frente, abaixando para pegar meu cofre.
“Mais uma coisa, príncipe Jalan,” disse a voz de Maeres, me
fazendo parar quando estava me curvando. Uma mão fria se fechou
em torno de meu coração e eu soube que o único caminho aberto
para mim era o de Jorg.
“Ele falou que você diria isso.” Eu me lembrei de tudo. Lembrei
da escuridão, do calor, da previsão de Jorg Ancrath: “Depois que
você pagar, ele vai pedir mais. Só mais uma coisa, ele vai dizer.” E
me lembrei da expressão nos olhos do menino-rei.
“Ele disse: dê a ele o que deseja.” Eu me endireitei, rápida e
tranquilamente, sem encostar na caixa. “Então tome o que deseja.”
Com um movimento do meu pulso, arrastei as costas da mão pelo
pescoço de Maeres. A pequena faca triangular, antes oculta em
minha manga e agora com a lâmina saindo entre meus dedos,
cortou o pescoço dele. Eu quase nem senti.
Peguei-o pela nuca e o segurei bem perto, soltando jatos
vermelhos e tentando falar. Terminei o serviço antes de todos os
homens dele sequer perceberem o que havia acontecido.
“Sou neto da Rainha Vermelha.” Urrei as palavras no meio do
silêncio. “Maeres Allus está morto. Sua vida acabou nas minhas
mãos. Não há mais nada a proteger aqui.” Sangue quente ensopava
meu peito enquanto eu segurava Allus contra mim, levantando o
queixo quando um dos braços dele se ergueu, fraco, tentando
arranhar meu rosto. “Não me importa como seus bens serão
divididos, mas se levantarem uma mão para mim eu juro por Deus
que irão perdê-la.”
A multidão se afastou de nós, horrorizada, como se a violência
a que assistiam todos os dias, sete metros abaixo do nível de seus
sapatos, fosse algo diferente, uma farsa talvez, mas um homem de
túnica bem-feita sangrando entre eles era real demais e os deixou
pálidos com uma expressão de repulsa.
Os guardas de Allus também recuaram. Seu chefe estava
morto, e o coração dele perceberia isso em breve. Eles não tinham
nada a ganhar ficando contra mim agora. Tudo havia terminado para
eles no instante em que cortei a garganta de seu mandachuva.
Empurrei Allus para longe. Ele cambaleou para trás, com
sangue pulsando de seu corte no pescoço, tentando se apoiar no
parapeito de madeira. Fui atrás e o empurrei, metendo as duas
mãos com força em seu peito. Ele virou de pernas para o ar e caiu
para trás por cima da barreira. Olhei para ele de cima. “O urso é
grande o bastante para você?” gritei em um volume para toda a
multidão ouvir, embora o próprio Maeres já não escutasse mais.
Eu me virei e peguei meu cofre. Pude ver alguns aduladores de
Allus saindo por várias saídas. O contador estava apertando uma
ferida na lateral e os três sacos haviam desaparecido. Brigas
começaram mais para trás da multidão. Meia dúzia dos guardas dos
irmãos Terrif estavam me cercando.
“Ele está morto!” gritei para eles. “Sou um príncipe do reino,
porra. Vão encostar em mim?” Passei pelo primeiro deles, sem lhe
dar atenção. “Ah, bom!” Continuei caminhando, deixando os
espectadores saírem da minha frente.
Longo antes da entrada eu virei para trás. Várias lutas
sangrentas estavam acontecendo e os elementos mais ricos
começaram a fugir do local.
Utilizei meu grito majestoso para ser ouvido. “As tropas de
minha avó irão queimar as papoulas ao anoitecer. Mandados de
morte serão expedidos para os capitães de Allus. Espero ver a
cabeça de Alber Marks em um espeto pela manhã. A de João
Cortador também, e haverá leniência a qualquer pessoa que ajude a
colocá-las lá.”
Virei e fui embora, saindo pelas portas principais, com alguns
lordes que tinham se perguntado sobre a minha identidade agora
correndo pela rua à minha frente, e muitos outros se aglomerando
atrás de mim. Foi aí que ouvi o murmúrio pela primeira vez.
“Príncipe Vermelho.” Abaixando a cabeça e olhando para mim,
saindo à luz do dia, vi que poucas partes de mim não estavam
vermelhas com o sangue de Maeres Allus.
Andei vinte passos e me apoiei em um dos grandes pilares que
sustentam as paredes do abatedouro, com a testa na pedra fria por
causa da sombra. Vi minha faca cortar a garganta de Allus,
repetidamente. Na terceira vez, vomitei até ficar vazio. Por fim, fui
embora, fraco e trêmulo, limpando a boca.
“Dê a ele o que deseja,” Jorg havia dito. “Depois tome o que
você deseja. Ninguém fica mais vulnerável do que em seu momento
de vitória, e você sabe que, não importa o que faça, esse homem
jamais deixará você em paz enquanto estiver vivo.”
Fui embora, com o cofre pesado em meus braços, ainda um
covarde. Não era nem o velho Jalan, nem aquele que saiu de
Vermelhão um ano atrás. Talvez um pouco de ambos – ainda
covarde, mas, quando você olha para sua antiga vida com olhos que
viram o Inferno, uma nova perspectiva é descoberta e você percebe
que só aguenta ser pressionado até certo ponto.
8

Andei até o palácio. Guardas da cidade me pararam três vezes,


preocupados com o sangue pingando de minha vestimenta.
“Sou o príncipe Jalan. Um homem tentou me roubar. Não vai
mais tentar fazer isso.” Disse a mesma coisa as três vezes e segui
em frente.
Encontrei mais soldados do que guardas, unidades que se
movimentavam rapidamente e não me deram mais que olhadas
curiosas. Finalmente cheguei ao Portão Errik, através do qual os
heróis entram no palácio, mas em vez dele usei a entrada da
poterna, assim como fiz quando voltei do norte. O sub-capitão de
plantão me reconheceu e me deixou entrar sem alarde, uma vez
que estabeleceu que o sangue não era meu.
Do outro lado da muralha o palácio estava à espera, inalterado,
assando naquele fim de verão de Vermelhão. “O que está
acontecendo na cidade?” perguntei ao sub-capitão quando entrei.
“Soldados por toda a parte.” Havia ficado daquele jeito antes de nos
mudarmos para a fronteira de Scorron. Aquilo era guerra para valer,
e não havia tantas tropas nas ruas.
“É uma campanha contra a Slóvia, meu príncipe.”
“Por quê?” Eu me importava bem pouco com política, mas tinha
bastante certeza de que a Slóvia nunca fizera sequer uma
insinuação de agressão contra Marcha Vermelha em toda a minha
vida. Lembrei-me vagamente de que metade da família real deles foi
convidada de honra de Marcha, reféns do bom comportamento do
regime atual – embora eu não soubesse quanto a atual realeza
sloviana se importaria com gente que não via fazia décadas. “O que
eles fizeram?”
O homem enrugou a testa, como se aquilo pudesse produzir
uma resposta. “Eles são o inimigo, majestade.”
“Por definição, se estivermos atacando. Mas por que são o
inimigo?”
Novamente as rugas, mas desta vez elas relaxaram em um
sorriso quando ele se lembrou do fato que estava buscando. “Por
protegerem uma pessoa importante.”
“Quem?”
“Não sei, príncipe Jalan.”
“Está dispensado, sub-capitão.”
“Mas príncipe. Nós devemos escoltar...”
“Cheguei aqui dos desertos da Afrique, sub-capitão. Acho que
consigo dar conta dos próximos trezentos metros em minha própria
casa sem contratempos.”
Os primeiros duzentos e noventa e nove metros foram bem. Foi
quando cheguei aos degraus da frente do Salão Roma que
encontrei dificuldades.
“Jalan? Minha nossa!” Um berro raivoso atrás de mim. “É você
mesmo! Onde diabos se meteu, seu malandrinho falido?”
Eu parei. Meu irmão mais velho Martus. Um homem que não
precisei aguentar desde aquela reunião na sala do trono, no dia que
pus os olhos em Snorri pela primeira vez. Virei-me lentamente e me
vi à sombra de Martus, que era maior que eu.
“Matando pessoas, irmão.” Olhei diretamente nos olhos dele.
Levou um momento para as palavras serem absorvidas, outro
para ele entender meu estado ensanguentado e mais um para juntar
as duas coisas e dar um passo brusco para trás. “Jesus amado...”
“Minhas dívidas foram totalmente quitadas.” Virei e subi os
degraus para entrar em casa.
Não era rigorosamente verdade, mas com aquele peso me
doendo os braços, do ouro que restava no cofre à minha frente, eu
pagaria os diversos comerciantes de vinho, alfaiates, e casas de
devassidão que ainda tinham notas de crédito minhas. Seria bom
ficar livre desse fardo.

Não vou dizer que o Salão Roma parecia pequeno, porque,


comparado aos lugares onde vinha descansando a cabeça
ultimamente, era enorme – mas de alguma maneira parecia menor
do que minhas lembranças dele. Gordo Ned e o jovem Dobro
estavam de guarda na porta da frente, o primeiro empalidecendo ao
ver eu me aproximar, e tremendo tanto que suas pelancas
balançavam em volta dos ossos.
“É o príncipe Jalan, Ned.” Dobro cotovelou o velho, com os
olhos escuros enxergando mais do que só o sangue secando em
cima de mim. Ele se curvou e as mechas pretas de seus cabelos
caíram sobre o rosto, com os olhos ainda me examinando por trás
desse véu.
Fiz um pequeno aceno para eles e segui em frente, com Gordo
Ned ainda boquiaberto comigo.
Alguns criados no saguão de entrada saíram correndo aos
berros, mas Ballessa se manteve firme, com uma expressão de
reprovação e preocupação ao mesmo tempo.
“Sem meninos errantes para cuidar desta vez, Ballessa.
Roupas limpas serão suficientes.”
Uma franzida de rosto pela lembrança da breve estadia de
Hennan. Em seguida, Ballessa fez um aceno, girou seu corpanzil
matronal e saiu pelo corredor para mandar que preparassem um
banho e pegassem um conjunto de trajes apropriados em meus
armários.

Lavei o sangue e deixei a água rosa, com os últimos resquícios de


Maeres Allus rodopiando, diluídos, descendo pelo ralo, e por baixo
daquilo estava Jalan Kendeth, limpo e sem manchas. Matei um
homem intencionalmente e fiz isso a sangue frio, pelo menos o mais
frio que o sangue de qualquer humano pode ficar em um momento
desses. Um filho da puta do mal, fato, mas a sensação não era boa,
não era certa. Nenhuma parte de mim se sentiu um herói. Gritei
para pedir mais água e me lavei novamente – embora a água só tire
as manchas que dá para ver.
As roupas que Ballessa trouxe ainda me serviam. Elas me
envolveram, confortáveis, familiares, opulentas, uma segunda pele
que completava meu disfarce – fiquei diante do espelho e o príncipe
Jalan me olhou de volta, surpreso. Minha aparência correspondia a
meu papel, cada centímetro de mim, e cada centímetro se sentia um
impostor. Cada passo de minha jornada havia me levado mais para
longe de casa, não importava a direção que tomasse, e agora,
parado ali na casa de meu pai, eu estava mais distante do que
nunca.
Fui me virar e no último momento vi um lampejo azul que atraiu
meu olhar de volta ao espelho, olhando para o quarto atrás de mim,
a entrada, as janelas, as sombras. Houve uma centelha de
movimento. Tinha certeza disso. Quis me virar e verificar que não
havia ninguém atrás de mim. Mas só fiquei parado ali, sem me
mexer, examinando o quarto refletido, caçando, procurando aquele
azul.
Por fim, virei o espelho para a parede e fiz o mesmo com os
três outros pendurados em meus aposentos. Eu não havia me
esquecido da Dama Azul, e por mais que eu quisesse que ela me
esquecesse, isso era improvável de acontecer. Ela e vovó ainda
estavam em guerra – e quando a Rainha Vermelha esmagasse
aquela bruxa o aplauso mais alto viria de mim. Ela tinha o sangue
de meu bisavô nas mãos, um crime que talvez eu pudesse deixar
passar, mas o sangue de minha irmã ainda por nascer e o sangue
de meu amigo Tuttugu, isso não dava para lavar. Parte de mim, e
não era uma parte pequena, ainda ardia com a lembrança de ter
tirado a vida corrompida de Maeres Allus e queria ser a parte que
enfiaria a faca na Dama Azul e giraria.

Uma hora depois, saí do Salão Roma, fresco e limpo, usando


minhas roupas antigas e meu sorriso antigo. Pouca coisa me
diferenciaria do Jalan que saiu sorrateiro da mansão dos DeVeer de
manhã, no dia da ópera, embora aquilo parecesse meio século
atrás.
Ao sair de minha antiga casa, senti a sensação estranha de
estar sendo observado. Não era a adoração ou a curiosidade que
um herói regressando pudesse esperar, mas uma sensação
rastejante na nuca, como se eu fosse o objeto de uma análise fria,
bem de perto. Sentindo-me decididamente desconfortável, apertei o
passo e cruzei o pátio num ritmo acelerado.
Fui até o palácio. Não às portas principais de vovó, mas até a
ala de hóspedes e subi as escadas para a suíte de Grand Jon. Os
guardas do térreo me informaram que Barras ainda estava
ocupando os aposentos, agora supostamente transformados na
central de busca por sua esposa desaparecida.
Ao bater à porta, senti meu coração batendo mais forte do que
nos Buracos Sangrentos, no momento em que percebi que tinha um
assassinato em mente.
“Boa tarde, senhor.” Um porteiro baixo, impecavelmente
arrumado, fez uma mesura. “Quem devo anunciar?”
“Jalan?” A voz de Lisa me chamando de algum lugar fora do
hall da recepção. Ela veio correndo, segurando as saias nos quadris
para não tropeçar. Barras quase tão rápido atrás dela, pálido, com
olheiras debaixo dos dois olhos.
“Jalan...” Lisa se conteve antes de se atirar em meus braços,
colocando as mãos no rosto como se eu ainda estivesse com todo o
sangue de quando cheguei ao palácio. “Você está...” Ela examinou
meu rosto, fazendo-me pensar que talvez eu tivesse mudado bem
mais do que suspeitava.
“Jal!” Barras não demonstrou a menor hesitação e se atirou em
meus braços sem pretensão de dar um abraço másculo. “Jal!
Obrigado, Jal! Obrigado!”
“Calminha!” Esperei ele afrouxar um pouco o abraço e me
desvencilhei. “A notícia ruim é que me deve dois camelos...” Percebi
o olhar ultrajado de Lisa. “Três! Três camelos. Dos bons!”
“O mesmo Jal de sempre!” riu Barras, batendo em meu ombro.
“Não, sério. Não estou brin...”
“Obrigado!” E voltou a abraçar.
Quando finalmente me soltei, parecia que o momento de pedir
compensação pelos camelos havia passado. Barras estava de pé,
passando as mãos para trás de seus cabelos castanhos e curtos,
olhando com uma felicidade espantada para mim e para Lisa.
“Precisamos celebrar... Um banquete!”
“Estive na estrada muito tempo para recusar um banquete.”
Levantei a mão para interrompê-lo. “Mas agora tenho uma reunião
urgente com nossa monarca.” Olhei para Lisa, linda com suas
maquiagens e joias agora, embora eu gostasse da aparência dela
do mesmo jeito ao natural. “Está com o pacote que lhe dei para
guardar?”
Barras parecia confuso e aumentou o ritmo das olhadelas
Jalan-Lisa-Jalan. Lisa fez que sim e tirou a chave enrolada em
veludo de um bolso habilmente escondido em sua saia. Ela a
entregou sem sequer uma ponta de hesitação, o que foi importante
para mim. Acho que não é uma chave que se possa dar a alguém
que não seja seu amigo sem pelo menos um pouco de
arrependimento.
“Obrigado.” E falei sério. “Guardem o banquete quentinho para
mim.” Bati a mão no ombro de Barras, achando difícil continuar
odiando-o. “Passo aqui mais tarde, se eu ainda conseguir andar
depois que a Rainha Vermelha terminar comigo.”
“O que você fez?”
Mas eu já estava indo embora. “Depois!”

A corte de vovó não estava reunida quando cheguei às grandes


portas de seu palácio. Dois lordes, Grast e Gren, estavam
aguardando nos degraus, ao lado de um cavaleiro robusto de
cabelos escuros e um bigode vistoso – Sir Roger, pensei. Todos os
três me lançaram olhares sombrios. Acho que não me
reconheceram, mas eu tinha uma rixa com o irmão mais velho de
lorde Grast, o duque, então ignorei o trio e continuei subindo sem
dizer uma palavra.
Diante das portas da rainha, o mesmo gigante emplumado que
me deixou entrar quando voltei do norte – ou talvez um primo dele –
inclinou a cabeça para mim e disse que levaria meu pedido de
audiência até minha avó.
Fiquei sentado na sombra de uma das grandes colunas do
pórtico e esperei, observando os guardas de elite suarem em suas
armaduras nos degraus ensolarados. O pátio à nossa frente estava
vazio e enorme, tão em branco quanto meu futuro. Eu nem sabia ao
certo o que a noite traria. Será que realmente aguentaria assistir à
reunião de Barras e Lisa? Cogitei rapidamente fazer uma vista a
meu pai, mas Ballessa me informou que o cardeal ficou de cama na
semana anterior. Doente, ela disse. Doente de vinho, desconfiei...
A porta atrás de mim se fechou e, quando me virei, vi tio Hertet
empurrando o guarda de lado, embora o homem já tivesse saído
rapidamente de seu caminho. Lorde Grast e lorde Gren vinham
rapidamente ao lado dele, enquanto o herdeiro aparente ou, como
era mais conhecido, herdeiro não aparente, veio furioso para os
degraus.
“Se ela não fosse minha mãe...” Hertet bateu o punho na palma.
Teria parecido ameaçador, se ele não fosse um homem bastante
barrigudo de porte mediano e na casa dos cinquenta, já grisalho. Eu
tinha certeza que a mãe dele ainda conseguia colocá-lo sobre os
joelhos e lhe dar umas belas palmadas. Para não dizer derrubá-lo
com um soco que lhe deixaria poucos dentes para a velhice. “Esta
cidade precisa de um rei, não de um maldito comissário. E precisa
de um rei que fique aqui e cumpra com suas obrigações aqui, e não
se pavoneando em alguma expedição maluca. Estes são tempos
conturbados, meninos, tempos conturbados. Uma rainha que deixa
seu trono vazio em tempos conturbados está praticamente
abdicando...” Meu tio me avistou descansando à sombra. “Você! Um
dos garotos de Reymond?” Ele apontou o dedo do anel para mim
como se ser filho de seu irmão fosse uma acusação.
“Eu...”
“Martus? Darin? Até parece que sei distinguir vocês. Todos
vocês são iguais, e nenhum é igual ao pai.” Hertet passou por mim,
flanqueado pelos dois lordes e com Sir Roger atrás. “Ainda assim, o
que Reymond esperava arando um terreno estrangeiro como
aquele? O arado dele não era o único, isso é certo.” Sua voz ecoou
pelo pátio à medida que se afastou, sumindo com a distância. “Elas
não conseguem evitar, aquelas meninas indus...”
Eu me vi de pé, chegando àquela posição rapidamente e sem
uma decisão consciente. Minha mão encontrou o cabo de minha
faca. A onda de palavras raivosas surgindo para defender a honra
de minha mãe ainda não havia saído da minha boca, apenas porque
ainda estavam lutando para formarem uma frase coerente.
“Príncipe Jalan.”
Olhei para cima. O guarda exageradamente grande assomou
ao meu lado.
“A rainha o receberá agora.”
Lancei uma carranca para as costas de Hertet e seus asseclas
– um olhar que, em um mundo justo, os acenderia como tochas – e
me ajeitei. Não se deixa a Rainha Vermelha esperando.
Quatro guardas me escoltaram para a sala do trono vazia,
escura, apesar do dia escaldante entrando pelas janelas altas,
estriado pelas grades. Lampiões estavam acesos em volta da
plataforma e vovó estava instalada na cadeira mais alta de Marcha
Vermelha. Dois assessores estavam mais atrás nas sombras, Marth,
largo e robusto, e Willow, magro como uma vara e azedo. Da Irmã
Silenciosa, nem sinal.
“Está mudado, neto.” O olhar de vovó era capaz de grudar um
homem ao chão. Senti o peso dele se estabelecer sobre mim.
Mesmo assim, fiquei surpreso pelo reconhecimento de nossa
relação. “O garoto que saiu daqui não voltou. Onde o perdeu?”
“Alguma taberna pelo caminho, alteza.” No Inferno era a
resposta verdadeira, mas não queria nem de longe falar sobre isso.
“E tem algo a relatar, Jalan? Tenho certeza de que não pediu
uma audiência diante do trono sem uma boa causa. Seus amigos
nortistas escaparam de meus soldados. Talvez tenha se encontrado
com eles novamente em suas viagens?”
Olhei para um lado e para o outro, procurando a Irmã
Silenciosa. Será que vovó já sabia exatamente o que eu tinha feito
desde o instante que deixei a cidade? Será que o silêncio de minha
tia-avó revelou aquilo como uma profecia, antes que a marcha dos
dias a transformasse em minha história particular?
“Eu os encontrei. Recuperei a chave. Trouxe-a para
Vermelhão.”
A Rainha Vermelha saiu de sua cadeira com uma velocidade
impressionante para uma velha. De pé na plataforma, com as
pontas de sua gola abertas acima da cabeça, ela ficava muito maior
que eu. Mesmo pé com pé e de meias ela seria mais alta que eu, e
poucos homens podem dizer o mesmo.
“Você fez bem, Jalan.” Ela não dava sorrisos, mas mostrou os
dentes em uma aproximação razoável. Desceu e ficou à minha
frente com três passos. “Muito bem mesmo.”
Percebi a mão dela no espaço entre nós, estendida, com a
palma para cima. A mesma mão que havia visto em volta de uma
espada carmim, em meus sonhos com Ameroth. “Eu... hum... não
estou com ela agora.” Dei um passo rápido para trás, com suor
escorrendo em meu pescoço de repente.
“Quê?” Uma palavra tão curta e fria como jamais ouvira.
“Eu... ela não está...”
“Você a deixou em algum lugar?” Suas sobrancelhas se
ergueram a uma distância considerável. “Não existe lugar seguro...”
Ela olhou em volta e acenou para os guardas em volta das paredes,
todos com as mãos nas armas. “Rápido, todos vocês. Vão até o
Salão Roma e escoltem príncipe Jalan de volta com a...”
“Eu dei para tio Garyus,” falei. “Alteza.”
Vovó levantou os dois braços, um de cada lado, com as palmas
para fora, e todos os homens da sala do trono pararam de se mexer,
os guardas na metade do caminho até mim agora paralisados.
“Quê?” Juro que ela poderia esfaquear alguém até a morte com
aquela palavra.
Cerrei os dentes e reuni minha coragem. “Dei para meu tio-
avô.”
“Por que faria isso?” Ela segurou meu casaco, enchendo as
duas mãos de tecido, cada uma logo abaixo de um ombro. Ela me
puxou para perto. Perto demais. “Comigo?”
Estávamos olho no olho agora. Estranhamente –
preocupantemente – aquela mesma onda quente que brotou em
mim quando estava diante de Maeres Allus nos Buracos Sangrentos
surgiu em mim agora, curvando meu lábio em um quase rosnado.
“Perdi os navios dele. Em apostas.” Falei alto demais. Sem alteza.
Sem desculpas. “Devia isso a ele.”
Eu tinha saído de Lisa e Barras até a torre leste acima do
Palácio Pobre e subi a longa escadaria. Contei ao velho sobre meu
fracasso e fiquei sentado de cabeça baixa esperando seu
julgamento. Em vez de dar um ataque, ele se esforçou para ficar um
pouco mais ereto em seus travesseiros e disse: “Fiquei sabendo que
tem uma mina de sal.”
“Tenho a opção de comprar a mina Crptipa de Silas Marn por
dez mil coroas de ouro. Estou livre de dívidas e tenho dois mil em
meu nome.”
“Então um homem que lhe oferecesse mais oito mil poderia
pedir um preço alto?”
“Sim.”
Saí do quarto da torre com uma nota de oito mil e um acordo de
que Garyus teria dois terços da mina. Ao sair, deixei um pacote de
veludo preto ao pé da cama.
“É a chave de Loki, tio Garyus. Não toque nela. É feita de
mentiras.”
Em seguida, saí, embora ele tenha me chamado para voltar.
Corri pelas escadas abaixo mais rápido que qualquer pessoa
sensata faria, sentindo uma coisa nova, ou pelo menos algo que não
havia sentido em muito tempo. Sentindo-me bem.
“Estou pagando o preço pelos seus fracassos!” A Rainha
Vermelha me empurrou com força e eu cambaleei para trás
conforme ela avançava. “Sua obrigação é com o trono! Suas dívidas
não me dizem respeito.” Aos berros agora, com a raiva solta.
Minha própria raiva saltou pela garganta antes que pudesse
aprisioná-la. “Eu estava pagando as suas dívidas, vovó!” Parei de
recuar. “Dei a chave para Garyus. Você tomou o trono dele. E você.”
Apontei sem olhar para o lugar onde estava a Irmã Silenciosa.
Agora eu podia pressenti-la, como uma agulha na pele. “E você
tomou a força dele. Dei a ele algo que nenhuma de vocês pode tirar.
Podem pedir, e ele pode deixar, porque ama esta terra e sua gente,
mas não podem tomar. Quando se põe um aleijado em uma torre
alta, a mensagem é bem clara. Cento e sete degraus dificilmente
contam como um convite ao homem para se integrar ao mundo! Eu
o coloquei no centro dele.” Soltei a respiração e meus ombros
caíram, a raiva foi embora, mais rápido do que veio.
A Rainha Vermelha elevou-se diante de mim, tomando fôlego
para berrar de novo. Mas o berro não veio. Alguma coisa em sua
expressão se suavizou, uma coisa ínfima. “Saia,” disse ela.
“Falaremos sobre isso outra hora.” Ela me dispensou com um aceno
de mão e eu me virei para a porta, fazendo força para não correr.
Vi a Irmã Silenciosa, parada onde eu havia apontado. Farrapos,
pele e olhos brilhantes. O que ela pensava sobre o assunto não
dava para saber. Ela continuava tão indecifrável quanto álgebra.
9

Voltei ao Salão Roma e encontrei meu irmão Martus de péssimo


humor, prestes a atacar. “Aí está ele. Para onde você sumiu,
inferno?” Ele saiu de uma antessala do saguão de entrada.
“Tinha negócios com...”
“Bem, não importa. Que bom que se limpou. Teve sorte de não
levar um tiro, confundido com um ghoul.”
“Um ghoul?”
“Sim, um maldito ghoul. Não sabe o que está acontecendo?
Onde diabos você se meteu? Debaixo de uma pedra?”
“Bem, sim, durante um tempo. Mas mais recentemente, Marsail,
as Ilhas Corsárias, o deserto libano e o Inferno. Então, o que está
acontecendo?”
“Problemas! É isso. Vovó está marchando o Exército do Sul
para a Slóvia em uma campanha mal concebida. Ela nem se
importa com a Slóvia, está atrás é de uma maldita bruxa. Diz ela
que os duques da Slóvia estão protegendo a mulher. Um exército
inteiro! Por causa de uma mulher... e o pior de tudo é que o meu
comando vai ficar aqui.”
“Sim, é a pior parte.” Eu fiz que ia embora. Estava de estômago
vazio e tive um desejo repentino de enchê-lo com alguma coisa
deliciosa.
“Aquele maldito Gregori DeVeer.” Martus estendeu a mão e
segurou meu ombro, impedido minha fuga. “Aquele exército de
peões dele está se formando como a vanguarda. Ele vai voltar como
um maldito herói. Eu já sei. Vai ficar remoendo essa campanha
durante os jantares no refeitório dos oficiais durante anos,
enfileirando as uvas: ‘a tropa sloviana estava defendendo a serra’,
empurrando as cerejas: ‘nossa coluna de infantaria de Marcha
Vermelha atacou pelo oeste...’. Caramba. E aquela velha vai me
deixar aqui de babá da cidade.”
“Bem. Seria bom se pudesse mantê-la em uma parte só.” Cocei
a barriga. “Mas será que é realmente preciso... quantos vocês são?”
“Dois mil homens.”
“Dois mil homens!” Tirei a mão dele do meu ombro. “Do que
está esperando nos proteger? Estamos em Vermelhão! Ninguém vai
nos atacar.”
“Acabei de lhe dizer, idiota!”
“Você não disse... Espere, ghouls?”
“Ghouls, trapoeiros, homens-cadáveres. Têm sido vistos por
toda a cidade nos últimos dois meses. Nada que a guarda não
consiga administrar, mas as pessoas estão ficando assustadas. Elas
já estão com medo suficiente só com o Exército do Sul lotando as
ruas.”
“Bem... melhor prevenir do que remediar, acho. Vou dormir
melhor na cama de outra pessoa sabendo que está patrulhando as
muralhas, irmão.” E com isso eu me virei e saí rapidamente, para
escapar de alguma mão controladora que pudesse vir em minha
direção.

Por mais que eu quisesse deixar os assuntos de estado para as


pessoas que importavam, não consegui me esquecer das
reclamações de Martus. Não que eu me importasse com suas
chances perdidas de glória – mas fiquei preocupado com ideia de
que vovó estava mandando o exército para uma guerra que parecia
bastante arbitrária, bem na hora que Vermelhão estava começando
a ver evidências reais dos perigos sobre os quais ela nos alertara
durante anos. As perguntas sem respostas me fizeram voltar às
escadarias de Garyus. Duvidei que a Rainha Vermelha fosse ser
especialmente receptiva, principalmente depois de nossa última
reunião, e francamente eu não conhecia mais ninguém em Marcha
Vermelha que, além de ter a informação que eu procurava, tivesse a
disposição de dividi-la comigo.
O velho estava onde eu o deixara, curvado sobre um livro.
“Livros!” disse ao entrar. “Ninguém põe nada de bom em um
livro.”
“Sobrinho-neto.” Garyus pôs o objeto ofensivo de lado.
“Explique esse negócio sloviano para mim.” Parecia não haver
sentido em fazer rodeios. Queria tranquilizar minha cabeça para
poder sair e ficar bêbado em boa companhia. “Ela está começando
uma guerra... para quê? Por que agora?”
Garyus sorriu, um troço torto. “Não sou o guardião de minha
irmã.”
“Mas você sabe.”
Ele deu de ombros. “Algumas partes.”
“Há ghouls na cidade. Outras... coisas também. O Rei Morto
voltou suas atenções para cá. Por que ela sairia para lutar com
estrangeiros a centenas de quilômetros daqui?”
“O que fez a atenção do Rei Morto se voltar para cá?”
perguntou Garyus.
Sem querer dizer a culpa era minha, eu não disse nada.
Embora, para ser justo, o relato de Martus tenha indicado que os
mortos vinham se agitando dentro de nossas muralhas fazia algum
tempo, e eu tinha acabado de voltar.
“A Dama Azul comanda o Rei Morto,” Garyus respondeu por
mim.
“E por quê...”
“Alica diz que nosso tempo está se esgotando, e rápido. Que os
problemas aqui em Vermelhão são para distraí-la, para mantê-la
aqui. O verdadeiro perigo não está em deter a Dama Azul. A Roda
de Osheim ainda está girando... quanto tempo nos resta, não se
sabe, mas se a Dama Azul não for controlada e continuar a
empurrá-la, nossos últimos dias escorrerão por entre os dedos com
tanta rapidez que até os velhos como eu ficarão preocupados.”
“Então realmente é um exército inteiro, uma guerra inteira, só
para matar uma mulher?”
“Às vezes é o necessário...”

Cheguei aos aposentos de meu pai também sem saber por quê.
Descobrir mais sobre a guerra da mãe dele foi a desculpa que me
levou até lá, mas a Rainha Vermelha preferiria contar seus planos
ao bobo da corte – se tivesse um – do que a Reymond Kendeth.
Bati na porta do quarto dele e uma empregada abriu. Não
percebi qual empregada. O vulto na cama prendeu minha atenção,
curvado sobre si mesmo na penumbra, com os contornos
delineados apenas em alguns pontos, onde a luz do dia encontrava
uma fresta nas venezianas.
A empregada fechou a porta atrás de si ao sair.
Fiquei parado ali, sentindo-me como uma criança novamente,
sem palavras. O lugar cheirava a vinho azedo, mofo abandonado,
doença e tristeza. “Pai.”
Ele levantou a cabeça. Parecia velho. Careca, grisalho, a carne
afundada nos ossos, com um brilho doentio nos olhos. “Meu filho.”
O cardeal chamava todo mundo de “meu filho”. Centenas de
sermões empoeirados me vieram à mente – todas as vezes em que
quis um pai e não um clérigo, todas as vezes, desde que mamãe
morreu, que eu desejei ver o homem que ela via nele, pois,
arranjado ou não, ela não se entregaria a um homem por quem não
sentisse respeito ou desse valor.
“Meu filho?” repetiu ele, com a voz rouca. Bêbado outra vez.
O motivo pelo qual eu viera me escapou e me virei para sair.
“Jalan.”
Virei-me outra vez. “Então está me reconhecendo.”
Ele sorriu. Uma coisa fraca, quase uma careta. “Estou. Mas
você mudou, menino. Cresceu. Primeiro pensei que fosse seu
irmão... mas não saberia dizer qual dos dois. Você tem coisas de
ambos.”
“Bom, se for apenas me insultar...” Na verdade, eu sabia que
era um elogio, pelo menos a parte de Darin. A parte de Martus,
talvez. Pelo menos Martus era corajoso, e praticamente nada mais.
“Nós...” Ele tossiu e apertou o peito. “Tenho sido um péssimo...”
“Pai?”
“Eu ia dizer cardeal. Mas fui um péssimo pai também. Não
tenho desculpa, Jalan. Foi uma traição de sua mãe. Minha
fraqueza... o mundo passa tão rápido, e os caminhos mais fáceis
são... mais fáceis.” Ele se abateu.
“Você está bêbado.” Embora esse fosse um julgamento que eu
não podia usar contra ninguém. Nós nunca conversamos daquela
maneira, nunca. Muito bêbado. “Deveria dormir.” Eu não queria
aquelas desculpas esfarrapadas, esquecidas no dia seguinte. Não
conseguia olhar para ele sem repulsa, apesar de não saber se
aquilo era apenas medo de estar olhando para um espelho e vendo
a mim mesmo velho. Eu queria... Queria que as coisas tivessem
sido diferentes... Eu o via pelo outro lado da morte de mamãe agora.
Snorri havia feito isso por mim, me mostrado que a dor de um
marido pode arrasar até o maior dos homens. Queria que ele não
tivesse me mostrado – era mais fácil odiar papai, compreendê-lo só
me deixava triste.
“Devíamos... passar um tempo juntos, conversar, fazer o que
quer que...” Outra tosse. “O que quer que devemos fazer. Minha
mãe... bem, você a conhece, ela não foi tão boa nessa parte das
coisas. Eu sempre disse que me sairia melhor. Mas quando Nia
morreu...”
“Você está bêbado,” disse-lhe, percebendo minha garganta
apertada. Fui até a porta e a abri. De alguma maneira, não consegui
apenas sair – as palavras não queriam ir embora comigo, precisava
deixá-las no quarto. “Quando estiver melhor. Então conversaremos.
Ficaremos bêbados juntos, como deve ser. Cardeal e filho.”

Dois dias depois, a Rainha Vermelha conduziu o Exército do Sul a


sair de Vermelhão, as colunas de dez mil soldados marchando pelas
largas avenidas do Piatzo até o Portão da Vitória. Vovó estava
montada em um enorme garanhão vermelho, com sua armadura de
metal gótica e esmaltada de carmim como se tivesse acabado de
mergulhar em sangue. Eu havia testemunhado a Rainha Vermelha
ganhando seu apelido e tinha poucas dúvidas de que logo ela
estaria usando uma armadura mais prática e mesmo assim estaria
preparada para mergulhar pessoalmente em sangue de verdade,
caso fosse necessário. Ela não deu a menor atenção à multidão,
com o olhar fixo nos amanhãs que viriam. Seus cabelos, de
ferrugem e ferro, puxados para trás sob um círculo de ouro. Estava
para ver uma velha mais assustadora – e já tinha visto várias.
Atrás da rainha vinham os remanescentes de nossa cavalaria,
antigamente orgulhosa, soltando uma quantidade considerável de
bosta para a infantaria atravessar. É o que eu digo: comece como
quer continuar.
Fiquei ao lado de Martus e do meu outro lado estava Darin, que
voltou do seu ninho de amor no interior. Ele trouxe Micha de volta
com ele ao Salão Roma, aparentemente com um bebê, embora eu
só tivesse visto uma cesta com correntes prateadas penduradas e
cheia de lacinhos. Darin ficou ameaçando me apresentar para
minha nova sobrinha, mas até agora eu havia evitado o encontro.
Não me dou muito com bebês. Costumam vomitar em mim ou então
desafogar o outro lado.
— Viva... um desfile... — O sol do outono nos castigava
enquanto aplaudíamos e acenávamos do camarote real. A multidão
de espectadores recebeu bandeiras com as cores do sul, e muitos
balançavam bandeiras de Marcha Vermelha, divididas na diagonal,
vermelho em cima pelo sangue derramado na marcha, preto
embaixo pelos corações de nossos inimigos. Martus lamentou o
estado da cavalaria e o fato de ter sido deixado para trás. Darin
observou que o inverno na Slóvia podia ser rigoroso, e esperava
que as tropas estivessem equipadas para isso.
“Eles vão voltar em um mês, seu tonto.” Martus deu a nós dois
um olhar de escárnio como se eu tivesse alguma coisa a ver com
aquela insinuação.
“A experiência nos ensina que os exércitos geralmente atolam –
não importa quão seco seja o clima,” disse Darin.
“Experiência? Que experiência você tem, irmãozinho?” Um
deboche completo de Martus agora.
“História,” disse Darin. “Pode encontrá-la nos livros.”
“Bah. Tudo que a história nos ensina é que não aprendemos
nada com ela.”
Deixei a discussão deles de lado e assisti à marcha da
infantaria, com lanças sobre os ombros e escudos nos braços.
Veteranos ou não, poucos deles pareciam mais velhos que Martus e
alguns mais novos que eu.
Dez mil homens parecia uma força pequena para desafiar a
potência de Slóvia, mas na verdade um exército de soldados bem
treinados e equipados como os do sul pode fazer cinco vezes mais
recrutas camponeses saírem correndo pelos campos.
Considerando-se o objetivo de vovó, dez mil parecia suficiente. Era
o bastante para um ataque, bastante para atingir a área desejada, e
bastante, quando a Dama Azul fosse arruinada, para lutar em
retirada até as fronteiras defensáveis.
Desejei a eles alegria no que estavam fazendo. Minha maior
prioridade permanecia a mesma. A busca do lazer – por definição
uma perseguição meio lânguida. Eu queria relaxar em Vermelhão,
com minha liberdade financeira recém-adquirida, livre das ameaças
de Maeres Allus e de todas aquelas dívidas cansativas.
“Príncipe Jalan.” Um dos guardas de elite de vovó estava ao
meu lado, surgindo de maneira irritante. “O comissário deseja sua
presença.”
“O comissário?” Olhei para Martus e Darin, que encolheram os
ombros de modo exagerado, tão interessados quanto eu na
resposta.
O guarda respondeu apontando para o Portão da Vitória e
levantando o dedo. Lá na muralha, logo acima do portão, estava um
palanquim, enfeitado e cortinado, com dois grupos de quatro
homens nas barras de transporte de cada lado e guardas ladeando-
os. Guardas de vovó.
“Quem...”
Mas o guarda já havia saído. Engoli minha curiosidade e me
apressei atrás dele. Trilhamos um caminho por trás da multidão até
uma das escadarias que levavam ao interior da muralha da cidade.
Após subirmos ao parapeito, fomos até o palanquim, onde os
homens me conduziram por uma faixa perigosamente estreita da
passarela que não estava ocupada pela caixa do comissário. Ao
chegar às cortinas, abaixei-me para entrar, sem esperar um convite.
Entrei, bastante curvado para não arrastar a cabeça e me enfiei
no banco oposto. Garyus não conseguia se sentar no assento, e
apenas se recostou em uma rampa de almofadas empilhadas ali. “O
que diabos é isso? Vovó pôs você de regente?”
Ele encrespou o rosto em um sorriso. “Acha que não sou capaz
de dar conta, sobrinho-neto?”
“Não, bem, quer dizer, sim, claro...”
“Um voto retumbante de confiança!” riu-se ele. “Aparentemente
ela ‘roubou meu trono’, então vou tê-lo de volta por alguns meses.”
“Bom, eu nunca disse... Bem, talvez tenha dito, mas não quis
dizer... na verdade eu quis...” O calor naquela caixa apertada era
opressivo, e o suor saía de mim com tal rapidez que achei que fosse
murchar e morrer. “O trono era seu.”
“Traição, Jalan. Tire essas palavras da sua boca.” Garyus sorriu
novamente. “É verdade que, como éramos grudados, fui eu quem
viu a luz primeiro. Mas me reconciliei com a nova ordem das coisas
há muito tempo. Quando era garoto, admito que me magoou. Temos
sonhos grandes e é difícil abrir mão deles. Queria dar orgulho a meu
pai – fazê-lo ver além...” ele ergueu o braço retorcido “...disso.” Ele
se estremeceu e abaixou o braço. “Mas minha irmãzinha tem sido
uma grande rainha. A história se lembrará do nome dela. Nestes
tempos, ela tem sido exatamente o que nossa nação precisa. Um rei
comerciante teria melhor serventia na paz – mas paz não foi o que
recebemos.” Ele abriu a cortina um pouquinho. Lá embaixo o
orgulho marcial de Marcha Vermelha passava, fileiras e mais fileiras,
reluzentes, gloriosas, com galhardetes agitando-se na brisa acima.
“O que me traz ao motivo de meu convite.” Ele pôs a mão em uma
cesta ao seu lado e procurou alguma coisa. Ela caiu no chão
quando a retirou.
Eu me abaixei para pegar. “Uma mensagem?” Peguei um estojo
de pergaminho, de ébano com desenhos de prata e adornado com
os selos reais.
“Uma mensagem.” Garyus inclinou a cabeça. “Você é o
Marechal de Vemelhão.”
“Não fode!” Minha vez de deixar o estojo cair, como se
estivesse quente. “...comissário.”
“‘Alteza’ é a forma correta de se dirigir quando o comissário tem
nascimento nobre... se estivermos sendo formais, Jalan.”
“Não fode, alteza.” Eu me recostei e soltei a respiração, e em
seguida limpei o suor de minha testa. “Olhe, sei que a intenção é
boa e tudo mais. Foi bacana você querer fazer algo por mim como
forma de agradecimento pela chave, mas sério, o que eu sei sobre
defender cidades? Estamos falando de tropas – deve haver dezenas
de pessoas mais qualificadas...”
“Centenas, imagino.” Garyus disse aquilo de maneira
entusiástica demais para o meu gosto. “Mas desde quando uma
monarquia tem a ver com recompensar méritos individuais?
Promover dentro de casa é o nosso mantra.”
Fazia sentido. O reinado contínuo dos Kendeth dependia da
mentira cuidadosamente arquitetada de que éramos naturalmente
melhores naquilo do que quaisquer outros candidatos, e também da
noção de que aquilo era a vontade de Deus.
“É um belo gesto, tio-avô, mas realmente prefiro que não.” Ser
marechal soava como se pudesse envolver muito mais trabalho do
que eu tinha interesse em fazer – que era nenhum. Meus planos
envolviam principalmente vinho, mulheres e música. Na verdade,
esqueça a música. “Não sou adequado.”
Garyus deu aquele sorriso torto e olhou para a fenda clara do
mundo lá fora, visível entre as cortinas. “E eu não sou adequado a
ser comissário, não é mesmo? Governar Vermelhão – Marcha
Vermelha toda, na verdade – porém escondido, para não
desmoralizar nossas tropas com minhas imperfeições físicas. Mas
aqui estou, por ordem de sua avó. Que, aliás, é de quem veio sua
nomeação. Eu não sou tão cruel para separar você de seus vícios,
Jalan.”
“Vovó? Ela me tornou marechal?” Da última vez que a vi ela
parecia estar tão próxima de pedir minha execução que o algoz
provavelmente já tinha pegado sua pedra de amolar.
“Foi ela.” Garyus balançou sua cabeça pensativa. “Sabe que
tem um uniforme, não é? E estará no comando de seu irmão
Martus.”
“Estou dentro!”
10

O uniforme era um bastão de comando e uma faixa envelhecida de


seda amarela com uma série de manchas preocupantemente
parecidas com sangue. Ao longo dos próximos dias, passei a
entender a crueldade da vingança de vovó. Após minha alegria
inicial de informar a Martus que agora ele era meu subordinado, veio
uma rodada interminável de deveres oficiais. Tive de inspecionar a
guarda da muralha, lidar com engenheiros e suas opiniões
cansativas sobre o que precisava consertar ou derrubar, e oficiar
disputas entre a guarda municipal residente e a infantaria recém-
chegada de meu irmão.
Eu teria dito para todos se ferrarem, mas meu assistente,
Capitão Renprow, mostrou-se irritantemente persistente, um
exemplo da classe dos tipos malnascidos e energéticos, ‘criados por
mérito’, que o sistema precisa para poder funcionar, mas que
precisam ser vigiados de perto. Além disso, relatos constantes de
trapoeiros e ghouls no bairro pobre atuavam como um incentivo
extra. Se existe uma coisa que me põe para fazer metade do
trabalho honesto de um dia é a convicção de que isso me deixará
mais seguro.
“O que são trapoeiros, Renprow?” Recostei-me na cadeira, com
os pés naquelas botas lustrosas sobre minha mesa lustrosa de
marechal.
Renprow, um homem baixo e escuro de cabelos curtos e
escuros, franziu o rosto, lançando-me um olhar desconfortável que
me fez lembrar de Snorri. “O senhor não sabe? Passei dezenas de
relatórios... o senhor estava na reunião de estratégia ontem, e...”
“É claro que eu sei. Só queria a sua opinião sobre o assunto,
Renprow. Vamos lá.”
“Bem.” Ele apertou os lábios. “Uma espécie de fantasma
maligno. As pessoas os descrevem como mini-redemoinhos,
levantando trapos e poeira. Redemoinhos tão cheios de pontas
afiadas que podem esfolar uma pessoa. Quando o vento baixa, a
vítima está possuída e sai em um rompante assassino até ser
abatida.” Ele estufou a bochecha e bateu dois dedos nela. “Acho
que isso resume tudo.”
“E esses incidentes são exclusivos de Vermelhão?”
“Tivemos relatos em vários lugares, mas parece que há uma
incidência maior na cidade. Talvez apenas porque a população é
bem maior.” Ele fez uma pausa. “O povo de meu pai também os
conhece. Mas os chamam de demônios do vento, e são muito
raros.” Renprow tinha ascendência que começava bem ao sul de
Liba, por isso tinha conhecimento de muitos fatos estranhos.
“Bem.” Tirei minhas botas de cima da mesa e olhei em volta da
sala. A residência do marechal era um prédio espaçoso, mas tinha
ficado desocupado por tanto tempo que a maioria dos móveis havia
sumido. “Isso conclui nossos assuntos do dia?” O sol havia passado
de seu auge e eu tinha uma beldade de cabelos de fogo para visitar,
uma doce garota chamada Lola, ou Lulu, ou algo do tipo.
A boca de Renprow se contorceu em um sorriso breve, como se
eu tivesse tentado fazer uma piada. “Seu próximo compromisso é
com os menonitas no subúrbio de Appan. Eles estão se mostrando
resistentes à ideia de exumar seus cemitérios. Depois disso...”
“Nós ainda temos mortos enterrados?” Eu me levantei tão
rápido que a cadeira caiu. “Mande a guarda desenterrar no lugar
deles!” Já tinha visto o que acontecia quando os mortos voltavam de
onde haviam sido colocados. “Melhor ainda, mande os soldados de
Martus fazerem isso. Quero todos os cadáveres queimados.
Imediatamente! E se eles precisarem fazer mais cadáveres para
isso... tudo bem. Contanto que queimem esses também.” Eu me
arrepiei com as lembranças que vinha tentando enterrar. Como os
mortos de Vermelhão, elas não estavam enterradas fundo o
bastante.
Renprow pegou um pesado livro de registro na prateleira perto
da porta e o segurou sobre o peito como um escudo. “Os menonitas
são rebeldes, para dizer o mínimo, e numerosos. A religião deles
venera os ancestrais até a nona geração. Seria melhor se
pudéssemos negociar.”
E lá se foi minha tarde, assim como as outras três anteriores.
Sorrindo e representando para uma plateia camponesa, um bando
de ingratos que deveria estar implorando para obedecer aos meus
comandos. Suspirei e me levantei. Melhor persuadir os vivos do que
ter que brigar com os mortos mais tarde. Os vivos podiam cheirar
mal e ter opiniões irritantes, mas os mortos fedem ainda mais e são
da opinião que nós somos comida. “Tudo bem. Mas se eles não me
ouvirem vou mandar entrar os soldados.” Eu me peguei ainda tendo
calafrios, apesar do calor do dia, com visões dos mortos se
aglomerando, pacientes, silenciosos, esperando... até o Rei Morto
despertar a fome deles.
“Jalan!” A porta se abriu sem uma batida e lá estava Darin,
pálido e sério.
“Meu querido irmão. E como foi que decidiu iluminar meu dia?
Talvez alguns bueiros entupidos precisando de minha atenção?”
“Papai morreu.”
“Ah, seu mentiroso.” Papai não estava morto. Ele não fazia
esse tipo de coisa. Peguei minha capa no cabide. O dia lá fora
parecia cinzento e pouco inspirador.
“Jalan.” Darin deu um passo na minha direção, estendendo a
mão até meu ombro.
“Bobagem.” Afastei o braço dele. “Tenho menonitas para
visitar.” Um frio se instalou em meu estômago e meus olhos
arderam. Não fazia sentido. Primeiramente ele não estava morto, e
segundamente eu nem gostava dele. Passei por Darin, indo em
direção à porta.
“Ele morreu, Jalan.” A mão de meu irmão se apoiou em meu
ombro quando passei por ele e eu parei, quase na porta, de costas
para ele. Por um momento, visões de uma época diferente
substituíram a praça lá fora e os telhados do outro lado. Vi meu pai
jovem, parado ao lado de mamãe, curvado com um sorriso no rosto,
os braços abertos para me receber enquanto eu corria até eles.
“Não.” Por motivos totalmente sem explicação a palavra ficou
entalada em minha garganta, minha boca tremeu e lágrimas
encheram meus olhos.
“Sim.” Darin me virou e pôs os braços em volta de mim. Apenas
por um instante, mas longo o bastante para eu empurrar aquela
bobagem de volta para onde veio. Ele me soltou e, com um braço
em torno do meu ombro, conduziu-me para o dia lá fora.

O cardeal morreu em seu quarto, sozinho. Parecia pequeno naquela


cama enorme, afundado, envelhecido antes da hora. Se ele havia
bebido, as empregadas retiraram as provas e o arrumaram.
Ele entrou em declínio após sua viagem a Roma. A bronca da
Papa por si só já era uma coisa que merecia atenção, e,
acompanhando Reymond Kendeth de volta a Vermelhão, além de
uma pesada carga de vergonha, estava o arcebispo Larrin, enviado
pela própria Papa e cuja única função parecia ser forçar meu pai a
fazer o trabalho dele. Alguns homens prosperam na velhice, outros
sentem o mundo se estreitar à sua volta e não veem sentido no
caminho pela frente. A primeira experiência de um homem com a
papoula lhe dá algo glorioso e maravilhoso, algo que tenta
recapturar cada vez que volta à resina, mas no fim ele precisa fumar
apenas para se sentir humano. A vida é igual para muitos de nós –
alguns poucos anos de juventude dourada, quando tudo é doce e
cada experiência é nova e cheia de significado. Depois, uma longa e
lenta queda até a cova, tentando sem sucesso recapturar aquela
sensação de quando você tinha dezessete anos e tinha o mundo
pela frente.
O velório aconteceu três dias depois, com o corpo de papai sob
guarda até então, enquanto os mais devotos da fé passavam
enfileirados para prestar homenagens ao posto, senão ao homem.
Nós nos reunimos no Pátio Negro, um retângulo bastante grande
entre o Palácio Pobre e a torre de Marsail, geralmente utilizado para
treinar cavalos, mas tradicionalmente reservado para reunir-se com
o caixão antes da procissão até o cemitério, ou até a igreja,
dependendo da posição do morto em vida. Hoje, sob um céu
emburrado e ventoso, haveria uma cremação. Troncos cortados de
pau-rosa e magnólia, escolhidos pela fragrância, estavam
empilhados em uma pira mais alta que um homem montado. O
caixão de papai ficou empoleirado no alto da montanha de madeira,
polido, brilhante, com debruns prateados e uma pesada cruz de
prata posicionada sobre a tampa.
O palácio inteiro compareceu. Este era o filho mais novo da
Rainha Vermelha, o clérigo mais elevado da região. Nos assentos
enfileirados da realeza, o palanquim de Garyus ficava no topo, com
Martus, Darin e eu na fileira de baixo e nossos primos espalhados
uma fileira abaixo. O irmão mais velho de papai, tio Parrus,
continuou com seus afazeres no oriente. A mensagem sequer teve
tempo de chegar até ele, muito menos de permitir que retornasse.
De qualquer modo, com o avanço de vovó à Slóvia, não seria a hora
de o maior lorde do oriente abandonar seu castelo na fronteira.
Eu tinha relatos exigindo minha atenção – perturbações nos
arredores da cidade naquela manhã – mas não podia deixar de
cumprir meu dever com papai. De alguma maneira, após a morte de
mamãe nós nunca tivemos nada a dizer um ao outro. Eu devia ter
consertado isso. A gente sempre acha que vai ter tempo. Adia as
coisas. E aí de repente não tem mais tempo nenhum.
“Lá vem ele,” disse Darin à minha esquerda, acenando para o
pátio. Um grupo da aristocracia apareceu do Arco de Adão,
conversando animadamente apesar de suas roupas sisudas pretas
e cinza.
“Vovó só saiu há dez dias e ele já acha que é dono do lugar.”
Martus, do outro lado de Darin.
Consegui identificar o irmão mais velho de papai, meu tio
Hertet, no centro do grupo, não por causa de sua altura – que era
modesta – mas pela camisa de seda brilhosa verde e amarela
aparecendo pela grande fenda de seu manto de luto, tudo esticado
para conter sua enorme barriga. Seu séquito vinha na frente, o
bando de falsos que ele mantinha como prática para quando o trono
supostamente fosse seu. Olhando para ele, dava para imaginar que
ele achava que sua mãe se fora para sempre, não só em uma
campanha, mas sim para a cova.
Os filhos de Hertet, Johnath e Roland, afastaram-se até a fileira
mais baixa e se sentaram com nossos outros primos, além de lordes
e barões. O pai deles, suando naqueles trajes, apesar da brisa
fresca, subiu os degraus de madeira até a fileira mais alta, onde se
enfiou ao lado do palanquim de Garyus. O herdeiro não aparente
sequer insinuou uma mesura nem reconheceu a presença de seu tio
de nenhuma outra maneira, exceto pelo fato de ter de se espremer
ao lado da caixa cortinada.
“Andem logo.” Hertet levantou a voz atrás de nós. Eu me virei e
o vi passando a mão pelos fios úmidos de seus cabelos grisalhos,
grudando-os sobre a testa. Com papadas caídas e olhos vermelhos,
ele parecia um candidato bem mais provável para a foice da morte
do que meu pai jamais fora. “Raymond já me deixou esperando
tempo demais na vida com aquelas malditas missas dele. Não
vamos deixar que nos faça perder mais tempo.”
Ao ver o braço agitado de Hertet, o arcebispo lá na praça
começou a ler em voz alta a enorme bíblia segurada para ele por
dois meninos coristas.
“Uma bobagem danada esse negócio de pira.” Hertet continuou
a resmungar atrás de mim. “Tenho coisas melhores a fazer com
minha manhã do que ficar sentado e sentindo o cheiro de Reymond
queimando. Deviam botá-lo na cripta com o resto dos Kendeth.”
Já que nosso sobrenome era passado pelo monarca, todos nós
éramos Kendeth, apesar de os três filhos de vovó terem pais
diferentes. Eu sempre tive orgulho do nome, embora dividi-lo com
Hertet azedava um pouco aquele orgulho, ali naquelas
arquibancadas. Eu só esperava que suas opiniões sobre cremar os
mortos não saíssem do palácio. Já estava sendo difícil o suficiente
convencer Vermelhão a exumar e queimar os mortos da maneira
que estava, sem Hertet Kendeth declarando ser uma tolice.
Finalmente terminaram com o latim e as mentiras. O arcebispo
Larrin fechou a enorme bíblia com um baque que ecoou pelo Pátio
Negro, e a certeza daquele fim fez um calafrio me atravessar. A
insígnia de papai estava pendurada em seu pescoço, refletindo a
luz. Um clérigo subordinado entregou a Larrin uma tocha acesa e
ele habilmente a atirou nos gravetos empilhados na base da pira. As
chamas se acenderam, cresceram, começaram a urrar e a devorar
os troncos acima. Ainda bem que a brisa soprava do sul e levou a
fumaça para longe de nós, subindo em nuvens cinzentas sobre a
torre de Marsail, acima das muralhas do palácio e saindo pela
cidade.
“Ballessa disse uma coisa estranha.” Darin manteve os olhos
nas chamas, e eu podia imaginar que ele não havia dito nada. “Ela
disse que passou pelos aposentos de papai na tarde em que
morreu, e que o ouviu gritando alguma coisa sobre o demônio... e a
filha dele.”
“Papai não tem filha,” disse Martus, com o tipo de firmeza que
indicava que, se alguma criança bastarda fosse descoberta, ela
deveria ser esquecida novamente bem rápido.
“Filha?” Eu observei as chamas também. Ballessa não era
chegada a histórias fantasiosas. Seria preciso procurar muito para
encontrar uma mulher de pés mais firmes no chão do que a
governanta do Salão Roma. “Ele só estava bêbado e gritando
besteiras. Estava de porre quando eu o vi alguns dias atrás.”
Darin olhou para mim franzindo o rosto. “Papai não bebia fazia
semanas, irmão, desde que voltou de Roma. As empregadas me
disseram que era verdade. Não dá para esconder nada das pessoas
que limpam o que você faz.”
“Eu...” Eu não sabia o que dizer. Papai havia dito por mim. Ele
queria ter feito melhor o papel de pai. Agora eu queria ter sido um
filho melhor.
“Jula estava com ele no fim,” disse Darin.
“Ele morreu sozinho! Foi isso que me disseram!” Olhei para
meu irmão, mas ele manteve os olhos para frente.
“Um cardeal não deveria morrer sozinho com uma cozinheira,
Jal,” bufou Martus.
“Mesmo assim, ela estava lá,” disse Darin. “Ela levou a canja
dele pessoalmente. Foi cozinheira dele por mais tempo que nós
fomos filhos.”
“E Jula disse o quê?”
“Que ele morreu calmamente e ela achou que ele tinha pegado
no sono. Depois, vendo como ele estava pálido e parado, achou que
tinha morrido. Mas ele a surpreendeu. No fim ele ficou violento,
esforçando-se para levantar – formando palavras com a boca, mas
sem fazer som.” Darin desviou o olhar da pira em chamas, olhando
para cima, além da fumaça, até o céu azul. “Ela disse que ele
parecia possuído. Como se fosse outra pessoa. Falou que os olhos
dele encontraram os dela e que naquele momento ele foi pegar o
sinete ao lado da cama e, ao tocá-lo, desabou novamente nos
travesseiros. Morto.”
Nem Martus nem eu tínhamos resposta para aquilo. Ficamos
em silêncio, ouvindo o crepitar das chamas. A brisa ondulou-se
através da fumaça e por um momento vi formas ali, uma entrando
dentro da outra, quase como uma mão segurando, quase um rosto,
quase um crânio... todos perturbadores.
Demorou quase meia hora para o caixão cair lá dentro com um
estrondo abafado, os troncos em brasa se espalhando e um
turbilhão de faíscas subindo aos céus. O calor nos alcançou, mesmo
nas arquibancadas de cima, corando nossos rostos. O arcebispo
deu o sinal e a bandeira do palácio foi abaixada, indicando o início
do luto e que poderíamos ir embora.
“Bem, é isso.” E Hertet se levantou e desceu pisando forte até o
pátio. Outros aproveitaram a deixa e foram atrás. Alguns ficaram.
Minha prima Serah se virou para dar a meus irmãos e eu seus
pêsames por tio Reymond. Rotus apertou nossas mãos. Micha
DeVeer esperou por seu Darin às margens do pátio de vestido preto,
com uma ama de leite do lado segurando minha sobrinha, rosadinha
e rechonchuda em sua roupa de luto. Barras e Lisa disseram suas
palavras gentis, mas eu nem dei atenção. E finalmente ficaram só
os três irmãos e aquela caixa, possivelmente vazia, na
arquibancada atrás de nós.
“Vou tomar um porre esta noite.” Darin se levantou. “Nunca
vimos o melhor daquele homem. Talvez nossos filhos nunca vejam o
melhor de nós. Rezarei por ele, e depois vou beber.”
“Vou com você.” Martus ficou de pé. “Beberei para tio Hertet
encontrar o descanso eterno antes de a Rainha Vermelha
abandonar o trono. Juro, preferia que prima Serah tomasse a coroa
antes daquele velho desgraçado.” Ele bateu as mãos nos braços.
“Você virá conosco, Jalan. Pelo menos de bebida você entende.” E,
com isso, ele começou a descer os degraus.
“Comissário.” Darin curvou-se para o palanquim, pôs a mão em
meu ombro e depois seguiu Martus.
“Como estão nossas defesas?” A voz de Garyus surgiu por detrás
das cortinas.
“A muralha oeste está desmoronando. Trechos precisam de
sustentação. Os subúrbios precisam ser queimados e aniquilados.
Os soldados de Martus estão entediados e arrumando briga com a
guarda. Estamos com déficit de cem balestras e metade de nossos
escorpiões precisam de manutenção, se quiserem atirar mais que
duas vezes antes de quebrarem. As provisões de grãos estão um
terço do que deveríamos ter. Fora isso, estamos bem. Por quê?”
“Analisou os números?”
“Alguns deles, certamente.”
“Quantos ghouls foram avistados dentro das muralhas da
cidade nos últimos quatro dias?”
Ele escolheu um relatório que eu de fato havia notado quando
Renprow o empurrou em minha mesa. “Humm, três, depois sete,
doze ontem, e outra dúzia, mais ou menos, apareceu hoje antes de
eu ir embora depois do almoço.”
“Eles estão nos observando,” disse Garyus.
“Quê?” Inclinei-me para frente e puxei a cortina de lado. Ele
parecia um monstro naquela toca escura, um monstro doente, pálido
e coberto de suor. “Eles são carniceiros, mortos-vivos comedores de
cadáveres seguindo as margens dos rios. Existem mortos flutuando
corrente abaixo há semanas – algum exército de Orlanth jogando
lixo no Rhone.” Pensei se vovó não estaria poluindo rios com
slovianos mortos antes do mês terminar.
“Você mapeou as capturas e os avistamentos?” perguntou
Garyus.
“Bem, não, mas não existe um padrão. Há mais perto do rio do
que em outros lugares. Mas estão por toda a parte.” Tentei visualizar
aquilo na minha cabeça. Alguma coisa na imagem que eu criei me
preocupou.
“Toda a parte. Nunca duas vezes na mesma região?” Garyus
estava sério.
“Bem, ocasionalmente. Mas não é frequente, não. Depois que a
guarda os põe para fora eles não voltam. Isso é bom... não é?”
“É isso que os sentinelas fazem. Verificam fraquezas, colhem
informações para poder planejar.”
“Preciso ir,” disse. “Tive relatos de ataques a cadáveres nos
arredores da cidade.” Eram os ataques dentro da proteção das
muralhas da cidade que me preocupavam mais, mas as mensagens
recentes falavam de uma série de ataques muito repentinos.
Comecei a me virar, mas alguma coisa brilhando no chão do
palanquim me chamou a atenção. “O que é isso?” Inclinei-me para
frente e respondi à minha própria pergunta. “Pedaços de espelho.”
Garyus inclinou a cabeça. “A Dama está tentando abrir novos
olhos em Vermelhão. Ela sabe que minhas irmãs estão indo atrás
dela – talvez esteja desesperada. Espero que sim. Em todo caso,
aconselho a não usar nenhum espelho. Um sujeito bonito como
você não deveria ter necessidade de conferir seu reflexo – isso é um
passatempo nosso, dos feios, caso nos esqueçamos de nossa
aparência e comecemos a pensar que o mundo nos verá com bons
olhos.”
“Desisti de espelhos um tempo atrás.” Um calafrio me
atravessou: muitos lampejos de movimentos que não deveriam estar
ali, muitas fagulhas que poderiam ser azuis. “Suas irmãs nos
deixaram para encontrar a maldita, mas o que a impede de sair do
espelho de alguém e matar a todos nós enquanto elas estiverem
fora? Sem contar que o problema dos ghouls não desapareceu.
Vovó disse que isso era uma distração para mantê-la aqui. Bom,
agora ela já foi... mas ainda estamos encontrando corpos
desparecidos – mortos e vivos. Não estou gostando disso. De nada
disso.”
Garyus apertou os lábios. “Também não estou gostando,
marechal, mas é o que temos. Tenho certeza de que minha gêmea
deixou feitiços aqui para fechar a cidade contra a Dama Azul – pelo
menos contra uma intrusão física. Essa lição ela aprendeu bem
cedo. O resto é para nós tomarmos conta.”
Suspirei. Preferia ter ouvido uma mentira tranquilizadora do que
a verdade aterrorizante. “O dever chama.” Olhei para o Pátio Negro
lá embaixo e me preparei para sair. O Pátio agora estava livre,
exceto por alguns enlutados, os clérigos encarregados de vigiar a
pira queimando e, claro, a guarda de Garyus. O ar acima das brasas
tremia, fazendo eu me lembrar de como o Inferno tremia quando
muita gente morria ao mesmo tempo e suas almas chegavam como
uma enxurrada. Fiquei olhando para aquele monte quente e
alaranjado, e, através do brilho do calor, avistei um vulto se
aproximando. Observei, sem saber o que era, até ele rodear o fogo
e eu enxergar com clareza.
“Minha nossa! Guardas! Guardas!” Apontei a mão tremendo
para a coisa caminhando calmamente em direção às
arquibancadas. “É um... um...” Eu não fazia ideia.
Os seis homens na base da arquibancada olharam para mim e,
acompanhando a direção do meu dedo, pareceram ver o homem
esfolado pela primeira vez. Eles recuaram de pavor, mas apenas por
um momento, aqueles homens treinados, duros, a elite de vovó. Ao
mesmo tempo, pegaram as espadas... em seguida, ao mesmo
tempo, deixaram os braços caírem e desviaram o olhar. Um instante
depois, estavam parados como antes, como se não houvesse um
homem sem pelos e sem pele, de capa preta, caminhando
calmamente na direção deles.
“O quê?” Olhei para Garyus em seu palanquim ali atrás. “Que
diabos? Garyus! Diga a eles! Está possuído! Um trapoeiro o
possuiu!”
Dois guardas olharam para mim lá de baixo, franzindo o rosto
como se tivessem se ofendido pelo meu tom de voz.
“Pode deixar, Jalan. Luntar é um amigo.”
Passei rapidamente para o lado da caixa de Garyus e saquei
minha espada. Eu teria me escondido atrás daquela coisa, mas
estava encostada na parede do prédio onde as arquibancadas se
apoiavam. “Aquele troço é um amigo? Ele foi esfolado, porra!” Olhei
para a guarda do palácio, que estava examinando o pátio,
procurando qualquer ameaça ao comissário. “E o que diabos há de
errado com seus guarda-costas?”
“Queimado. Não esfolado.” O homem da capa preta sorriu para
mim ao subir os últimos degraus, deixando pegadas molhadas atrás
de si. “E os guardas simplesmente se esqueceram do que viram. A
memória é essencial a qualquer pessoa. É tudo o que somos.”
Mantive a espada em riste enquanto ele percorreu os últimos
metros. Já tinha visto homens queimados antes e queria muito não
ter visto. Nosso visitante parecia-se como se papai tivesse decidido
sair de seu caixão depois que as chamas tivessem queimado para
valer.
“Luntar.” Garyus torceu uma mão para cima para cumprimentá-
lo. “Que bom vê-lo, velho amigo.”
“Satisfação, Gholloth. E este deve ser seu sobrinho-neto, Jalan.
Um homem raro.”
Abaixei minha espada mais do que eu queria e menos do que o
decoro exigia. “Você me conhece?”
Luntar sorriu novamente. Para um homem que deveria estar
gritando com uma dor terrível, ele parecia admiravelmente alegre. A
pele queimada se rachava e exsudava à medida que ele falava.
“Conheço bem menos de você do que de quase todas as pessoas.
O que o torna uma raridade. Seu futuro é muito misturado ao de
Edris Dean para ser visto com clareza.”
Franzi o rosto. Os jurados pelo futuro não me enxergam – foi
isso que Edris Dean havia dito sobre si. O fato de ele aparecer em
meu futuro, além de meu passado, não me fez sentir nem um pouco
melhor. Eu podia querer vê-lo morto, mas não queria ser a pessoa
encarregada do serviço.
“Meus pêsames pela perda de seu pai, príncipe Jalan,” disse
Luntar no silêncio onde minha resposta deveria estar. “Eu o conheci
uma vez. Um bom homem. A perda de sua mãe o modificou.”
“Eu...” Eu engoli e tossi. “Obrigado.”
“A que devemos a honra, Luntar?” perguntou Garyus.
“Você me conhece, Gholloth. Sempre atrás de probabilidades e
possibilidades. Ou elas atrás de mim.”
Luntar olhou sobre os telhados para o céu claro. A pele
chamuscada reluzia em seu crânio e eu dei um passo para trás, ou
teria dado se já não estivesse colado na parede, batendo a cabeça.
“Problemas estão por vir.” Dito para o céu.
“Não precisamos de um jurado pelo futuro para perceber isso.”
Esfreguei a parte de trás da cabeça. “Problemas estão sempre
vindo.”
“Haverá um ataque? Aqui?” indagou Garyus.
“Sim.” Luntar nos encarou novamente. “Mas a coisa é muito
mais profunda que isso. Suas irmãs foram deter Mora Shival, mas
não será suficiente. O mundo está partido, não só este império, não
só estas terras, mas o mundo em si, desde o pé da montanha ao
céu e além. Os exércitos dos mortos são apenas o começo disso.”
Fiquei intrigado com ‘Mora Shival’, mas depois me lembrei que,
nas memórias de vovó, foi Lady Shival com a cabeça de safiras que
veio matar o velho Gholloth. Depois disso ela se tornou a Dama
Azul.
“Quanto tempo temos?” Garyus novamente.
“Meses.”
“Meses?” perguntei. “Até o ataque?” Vovó já estaria de volta a
essa altura, e aí seria problema dela.
“O ataque será muito em breve. Talvez já tenha começado.
Levará meses até o final.”
“De quê?” Abri as mãos em dúvida.
Luntar repetiu meu gesto e depois abriu os braços para
englobar o palácio e o céu. “Tudo.”
Eu ri.
Ele olhou para mim.
Tentei rir novamente. Vovó tinha dito que sua guerra com a
Dama Azul era sobre o fim do mundo. Não achei que fosse
literalmente. Quer dizer, eu tinha entendido as palavras, mas não
absorvido. Sim, os Construtores racharam o mundo quando giraram
sua roda. Sim, magos como Kelem, Sageous e o resto racharam
ainda mais, cada vez que faziam suas magias... mas o fim? Eu
sabia que as ambições da Dama Azul estavam no que viria depois
da ruína de tudo que tínhamos, mas isso sempre esteve a anos de
distância, era um problema para depois. Mesmo com a partida de
vovó para Slóvia, eu não achava realmente que tudo estivesse em
jogo. Não o mundo todo. Marcha Vermelha, talvez, ou as terras em
torno de Osheim. Mas sempre imaginei que haveria algum lugar
para onde fugir, algum lugar para se esconder.
Pelo menos agora eu entendi a urgência... ou o desespero...
que tirou a Rainha Vermelha de seu trono, deixando sua querida
cidade em perigo para guerrear em uma terra distante, em uma
idade que muitas avós estão grisalhas e enrugadas, tricotando
calmamente em um canto e contando seus últimos dias.
“Meses!” Falei a palavra novamente para ver se ela soava
melhor. Não soou. Posso ter dito uma vez que seis meses eram
uma eternidade, mas agora isso parecia decididamente menos que
o bastante. Por algum motivo, o bebê de Darin surgiu em minha
mente, embora eu só tivesse visto aquelas pernas rosadas e roliças
se balançando e os braços rosados e roliços esticando-se para os
seios cheios de leite de Micha. E francamente eu não estava
olhando para o bebê. Seis meses não a levariam muito longe.
“Para vocês, menos de uma semana, se suas muralhas não
aguentarem.” Luntar pôs a mão em sua capa e minha espada se
ergueu entre nós. “Meses para o mundo.”
“Uma semana!” gani. “Menos de uma semana?” Que distância
eu conseguiria percorrer em um cavalo rápido em menos de uma
semana? “Isso não está certo! Um ataque aqui? Um exército está
vindo? É o Rei Morto? Alguém precisa fazer alguma coisa! Nós
precisamos...”
“Um presente, Gholloth.” Luntar ignorou meu pânico e retirou
uma caixa branca, um cubo de uns quinze centímetros. Uma vez
você me deu uma caixa de cobre que possuía e ela se mostrou
muito útil. Agora, retribuo o favor. “Tirando as manchas de rosa
claro, onde suas queimaduras tocavam a superfície, a caixa não
tinha desenhos nem ornamentos, um cubo com cantos
arredondados, feito de osso branco. Marfim, talvez... ou...”
“É plastik?” perguntei. “Coisa dos Construtores?” Tentei manter
minha voz calma, mas as palavras ‘menos de uma semana’
continuavam repetindo em minha mente, junto com imagens de meu
novo cavalo, Murder, esperando por mim nos estábulos.
“É plastik, sim.” Luntar pôs a caixa ao lado de Garyus.
“O que tem dentro?” perguntei antes que meu tio-avô pudesse
fazer as palavras saírem de sua boca retorcida.
“Fantasmas.”
11

Corremos até a sala do trono para interrogar Luntar dentro da


proteção dos vigias mais fortes da Rainha Vermelha. Durante todo o
trajeto, precisei ficar parando para apressar os carregadores de
Garyus, enquanto atravessavam com o palanquim pelo palácio.
Consegui me convencer, pelo menos quando não olhava para
Luntar, de que não deveria levar tão a sério as previsões de um
vidente qualquer. Ao olhar para aquele horror esfolado, era difícil
imaginá-lo um charlatão. Mesmo assim, como um homem se
afogando se agarra a palhas flutuando, eu me agarrei à ideia de que
ele poderia estar errado, ou pelo menos mentindo.
A sala do trono nunca foi um local de multidões e agitos. Nos
dias seguintes à partida da Rainha Vermelha, as coisas mudaram.
Com o palanquim de Garyus posto diante da cadeira alta de vovó, a
sala parecia ter adquirido vida nova. Além de suas enfermeiras, o
velho tinha turnos de músicos entrando e saindo, enchendo o
ambiente de música e de sons de uma dezena de países, enquanto
ele lidava as petições de seus súditos. Ele conversava
principalmente com comerciantes, importantes ou não, e tinha a
tese de que as nações dependiam do comércio e da produção, e
tudo mais era secundário.
Ele me falou: “Dizem que dinheiro é a raiz de todos os males,
Jalan, e talvez seja. Mas também é a raiz de muitas coisas que são
boas. Vista seu povo, encha suas barrigas e poderá ter paz. A
necessidade é que gera guerra.”
Aquela atmosfera relaxada desapareceu com nossa chegada
apressada e os cortesãos se espalharam, pressentindo que o
velório de um príncipe não era o pior que este dia tinha a oferecer.
Os cuidadores de Garyus o colocaram em um sofá com muitas
almofadas, apoiando-o em uma posição que parecia ser a menos
desconfortável. Fiquei de pé ao lado dele, batendo
involuntariamente o pé enquanto observamos a guarda do palácio
enxotar da sala os últimos suplicantes do dia. Os músicos do dia,
um grupo de ciganos da ilha distante de Umber, guardaram suas
flautas e suas partituras rapidamente.
“Quais são as notícias da cidade externa?” perguntou Garyus.
Menos de uma semana. De Repente os relatórios perimetrais
pareciam bem menos importantes.
“Problemas,” falei. “Algumas covas que ainda não havíamos
alcançado foram esvaziadas. Ocupantes desaparecidos. Uma dúzia
de ataques a cadáveres relatados. Duas famílias... desaparecidas.”
Estremeci. A guarda tinha me levado até uma casa perto da Estrada
do Norte. Sangue no chão, nas paredes, móveis quebrados. Moscas
por toda a parte. Sem ocupantes. Exceto um bebê em seu berço.
Ou melhor, os restos dele. “Os vizinhos não viram nada.” Isso foi
difícil de imaginar, com as casas coladas umas nas outras. Mandei a
guarda bater nas portas e corri de volta ao palácio para me
encontrar com Luntar. Garyus queria a privacidade da sala do trono
para concluir nossa discussão e Luntar tinha outras pessoas para
ver antes de partir. Ele mencionou Dr. Raiz-Mestra como sendo um
desses, embora não tivesse ouvido dizer que o circo estava na
cidade. “Preciso voltar e supervisionar uma série de inspeções.” Eu
me virei de frente para a sala do trono e parei, com uma surpresa
momentânea.
“Não vou prendê-lo por muito tempo.” Luntar estava diante de
nós, e nós éramos suas duas únicas testemunhas. Ele escapava da
memória de todas as outras pessoas, mesmo enquanto elas o viam.
Uma espécie de invisibilidade. Se havia alguma coisa no sangue
dos Kendeth que era imune ao truque ou se ele simplesmente
permitia que nos lembrássemos dele, isso ele não disse, apesar de,
no mesmo minuto em que virei as costas para Luntar para reportar
ao comissário, eu me esquecer da sua presença.
“Se todos vocês puderem fazer a gentileza de dar a mim e meu
sobrinho-neto um pouco de privacidade.” Garyus levantou a voz
para ser ouvido. Os remanescentes de sua corte começaram a se
dirigir às portas. “Até você, Mary.” Isso para a mais antiga
enfermeira dele, uma matrona robusta que parecia se achar
indispensável. “E cavalheiros, por favor.” Ele acenou para os
guardas que o flanqueavam. “Todos os meus guardas.”
“O capitão se aproximou, com as botas pesadas no chão
polido.” Comissário, é nosso dever protegê-lo.
“Se eu morrer na sua ausência o príncipe Jalan deverá ser
rebaixado a plebeu. Pronto, será que agora estou seguro o
suficiente?”
O capitão da guarda franziu o rosto, com a palavra ‘mas’
fazendo força para escapar de seus lábios.
“E realmente, eu insisto,” disse Garyus.
Cinco minutos depois, após a guarda verificar novamente cada
recanto escuro, ficamos a sós.
“Eu esperava encontrar a Rainha Vermelha aqui,” disse Luntar.
“Agora parece que terei de segui-la até a Slóvia.”
Resisti à brincadeira óbvia de que ele deveria ter previsto essa
circunstância. Sem dúvida ele havia interferido no destino de vovó
no passado e se negou a ter mais visões do futuro dela. Ou isso ou
a Irmã Silenciosa a protegeu dessas vidências.
“Quando precisa partir?” O dia anterior à chegada dele seria
ótimo, por mim. Eu ainda achava Luntar altamente perturbador, e
aquelas queimaduras em carne viva exigiam uma reação que, já
que não partia dele, certamente causava algo muito próximo da dor
em mim. A Irmã Silenciosa olhou tão longe em nosso futuro
brilhante que isso a cegou de um olho. Luntar enxergou ainda mais
além e se queimou da cabeça aos pés com o que viu. Da maneira
que Garyus falava, em algum lugar não muito distante o brilho
impossível de mil Sóis dos Construtores consumiria todos os nossos
futuros.
“Partirei imediatamente após concluirmos nossa discussão
aqui,” disse Luntar. “É uma longa caminhada, e nenhum cavalo me
carrega.”
“Diga-me...” Olhei para Garyus, mas ele fez sinal para eu
continuar. “Diga-me, esse futuro que o queimou, que você diz que
está chegando, é este o fim que a Rainha Vermelha teme? A
destruição que os Construtores nos armaram quando fizeram suas
ciências e mudaram o mundo?” Tentei fazer aquilo não soar como
uma acusação, mas era. Luntar e sua laia vinham rompendo a
realidade durante gerações, levando-nos ao limite, enquanto
passavam cada vez mais magia pelas estruturas do mundo.
Ao meu lado, Garyus assentiu com a cabeça pesada. Seu olhar
repousou-se sobre o cubo de plastik branco em seu colo – a caixa
de fantasmas que Luntar lhe dera.
“Não há nada que possamos fazer?” perguntei. Só algum lugar
seguro para correr já seria bom.
Luntar pôs as duas mãos no rosto e as deslizou em direção à
testa, como se afastasse o cansaço. “Em alguns futuros, é a
rachadura do mundo que acaba conosco, escuridão e luz, os
elementos assumindo formas monstruosas, desfazendo a própria
substância da qual somos feitos... Em outros futuros, é a luz das
armas dos Construtores que nos queima.”
“Merda.” Eu havia visto aquela luz. Tentei tirar o gemido de
minha voz e soar mais como Snorri. “Duas vezes no período de um
ano Sóis dos Construtores se acenderam. Ouvi falar de um em
Gelleth, em minha viagem ao norte, e depois em Liba vi um com
meus próprios olhos, queimando o deserto. Quem está usando as
armas desses homens mortos contra nós, e por quê?”
“A morte não é o que era.” Luntar estendeu seu braço sem pele
e o examinou.
“Os Construtores estão mortos. Viraram pó mil anos atrás.” Mas
ao dizer aquilo eu me lembrei das palavras de Kara. A völva me
disse em seu barco que Baraqel e Aslaug foram humanos no
passado, Construtores que escaparam como espíritos quando o
mundo queimou. Ela alegou que outros se copiaram em suas
máquinas antes do fim. Seja lá o que isso signifique. “Não pode ser
os Construtores. Mesmo que não estivessem mortos, por que nos
desejariam mal?”
“Você se lembra de como os Construtores trouxeram a magia
para o mundo inicialmente, príncipe Jalan?”
“Giraram uma roda... Acho que foi assim que vovó descreveu.
Eles fizeram isso para que a vontade de uma pessoa pudesse
mudar o que é real. Mas aí veio o Dia dos Mil Sóis e a roda
continuou girando sem ninguém para contê-la, e a magia foi ficando
mais forte.”
“É mais ou menos isso,” disse Luntar. “Mas essa roda não é só
uma maneira de falar. Não são só palavras para descrever uma
imagem que possamos entender. Existe uma roda. Em...”
“Osheim.” A palavra escapou de meus lábios, apesar de
instruções rigorosas para não sair.
“Sim.”
“Essas explosões em Gelleth e em Liba, porém...”
“Pergunte aos fantasmas,” disse Luntar. “É o trabalho deles.” E
com isso ele desapareceu.
“Como?” Dei um passo para frente, balançando o braço no
espaço que o homem queimado havia ocupado muito recentemente.
“Da mesma maneira que todos os outros homens partem,”
disse Garyus. “Ele simplesmente nos fez esquecer.”
“Mas que droga! Por que ele não podia ficar e responder à
minha maldita pergunta? Por que diabos precisa ser tão misterioso
em tudo?”
Com esforço, Garyus levantou a cabeça e sorriu para mim.
“Sempre achei que aquelas histórias que Vó Willow contava para
vocês seriam bem mais curtas se fossem francas. Mas talvez você
saiba a resposta.”
“Malditos jurados pelo futuro!” Eu quase cuspi no chão, mas a
presença de vovó ainda assombrava demais a sala do trono para
isso. Luntar previu um futuro que poderia ser melhor do que aqueles
que o queimaram, mas se nos conduzisse nessa direção, ele
começaria a se afastar. Se respondesse às nossas perguntas, toda
aquela possibilidade poderia evaporar como a névoa da manhã. O
próprio fato de nos dar a caixa o deixaria cego para nossos
caminhos agora, tornando sua visão menos clara. Não faça nada e
veja tudo que acontecerá com uma clareza perfeita e impotente – ou
tente mudar as coisas e, como a mão que toca a água, destrua o
reflexo do amanhã. A frustração disso me levaria à loucura.
“Abrimos a caixa?” Garyus pôs a caixa em questão na mesinha
que eu carregara até ali. Coloquei um lampião ao lado: a tarde
estava caindo em direção à noite e as sombras se multiplicavam em
cada canto. “Abrimos a caixa...” Ele bateu os dedos na superfície
polida.
“Sabe-se que isso já deu errado no passado,” falei.
Garyus ergueu uma sobrancelha. “Pandora?”
“Todos os males do mundo,” concordei. “Além do mais, ele
disse que está cheia de fantasmas. Já seria o caso de a
enterrarmos imediatamente.”
“Ele também disse que deveríamos fazer nossas perguntas a
ela.”
Olhei para a caixa e percebi que minha curiosidade havia se
esgotado.
“Está com medo, Jalan?” Garyus olhou para mim, com a luz e a
sombra conspirando para torná-lo um monstro. Sua deformidade
tinha essa característica – em um momento ele parecia inocente,
até mesmo digno de pena, e no outro sinistro, maligno. Nessas
horas eu não tinha dúvidas de que ele era gêmeo da Irmã
Silenciosa.
“Medo não é bem a palavra.” O plastik parecia-se mais com
osso à luz do lampião. Visões do Inferno borbulharam no fundo de
minha mente e eu me perguntei quanto daquele lugar a habilidade
dos Construtores conseguiria enfiar em uma pequena caixa.
“Petrificado.”
“Faz você se sentir vivo, não é?” E Garyus abriu a caixa.
“Vazia!” Uma gargalhada brotou de mim, de certa forma
pequena e oca no vazio daquele salão.
“Ela realmente parece estar...” Garyus retraiu a mão com um
xingamento. Uma impressão digital vermelha permaneceu onde ele
tinha tocado a tampa.
“Sangue?” indaguei, inclinando a cabeça para analisar a marca.
Garyus fez que sim, com o dedo na boca. “Esse troço me
mordeu!”
Enquanto observamos, a marca carmim sumiu, e o sangue foi
absorvido no material de plastik sem deixar mancha. Alguma coisa
piscou no ar acima da caixa aberta. Um vulto, que apareceu e
depois sumiu, nebuloso, como se tivesse se formado e se perdido
em uma respiração fria. Mais outro surgiu, piscando na forma de um
homem, talvez de uns cinquenta centímetros de altura, e sumiu.
“Kendeth.” A palavra veio da caixa, uma voz atemporal, calma e
límpida.
Uma série de vultos agora, homens, mulheres, jovens, velhos,
cada um retorcendo-se no outro.
“Pare...” Garyus ergueu a mão na direção da caixa e, ao fazer
isso, os movimentos piscantes cessaram, apenas um vulto ali agora,
um fantasma pálido, com as linhas da mesa visíveis através de seu
corpo.
“James Alan Kendeth,” disse o fantasma, sem olhar para
nenhum de nós, mas para algum ponto distante no meio.
“Você é o fantasma de meu ancestral?” perguntou Garyus.
O fantasma franziu o rosto, cintilou e replicou. “Sou um registro
de biblioteca para os dados gravados de James Alan Kendeth.
Posso responder perguntas. Para acessar a simulação completa, é
necessário o acesso a um terminal de rede.”
“O que ele está dizendo?” perguntei. Algumas palavras faziam
sentido, as outras podiam muito bem ser outra língua.
Garyus me mandou ficar quieto. “Você é um fantasma?”
O fantasma franziu o rosto e depois sorriu. “Não. Sou uma
cópia de James Alan Kendeth. Uma representação dele baseada
em observações detalhadas.”
“E o James?”
“Morreu mais de mil anos atrás.”
“Como ele morreu?”
“Um dispositivo termonuclear detonado acima da cidade onde
ele vivia.” Um momento de tristeza no rosto pálido do fantasma.
“Um o quê?”
“Uma explosão.”
“Um Sol dos Construtores?”
“Um dispositivo de fusão... então é como o sol, sim.”
“Por que os Construtores se destruíram?” Garyus olhou para o
pequeno fantasma flutuando acima da caixa vazia, com sua enorme
testa amontoada sobre a intensidade de seus olhos.
O fantasma piscou e, por uma fração de segundo, vi sua pele
borbulhar como se se lembrasse do calor. “Nenhum motivo que
importe. Um agravamento retórico. Um dominó caindo contra o outro
e em poucas horas tudo virou cinza.”
“Por que eles fariam isso outra vez agora?” indagou Garyus.
“Por que nos destruir?”
“Para sobreviver.” Nosso ancestral distante olhou de Garyus
para mim e novamente para Garyus, como se nos visse como
pessoas pela primeira vez, e não só como vozes com perguntas. “O
uso continuado da vontade causa um desequilíbrio...” Ele parou,
com o olhar em alguma coisa distante em outro lugar. “...a equação
Rechenberg – é assim que eles chamam – governa a mudança, o
que vocês chamam de ‘magia’. Nós também chamávamos de
magia, para dizer a verdade. Talvez uma em cada dez mil pessoas
compreendesse. O restante de nós apenas sabia que os cientistas
haviam mudado a maneira como o mundo funcionava e pou, a
magia se tornou possível, superpoderes! Não era como é hoje,
porém – era mais difícil de usar – tínhamos treinamentos e...”
“Nossas magias estão desbalanceando sua equação,” Garyus o
interrompeu. “Para que nos matar?”
“Se todos morrerem, não se usará mais magia. A equação pode
se balancear. A mudança pode parar. O mundo poderia sobreviver e
os ecos de dados armazenados na deepnet seriam preservados.”
“Vocês nos sacrificariam por ecos? Mas... vocês não são reais.
Não estão vivos,” falei. “Vocês são memórias em máquinas.”
“Eu me sinto real.” O James fantasma pôs as mãos fantasmas
em seu peito transparente. “Eu me sinto vivo. Quero continuar. De
qualquer maneira, se não os destruirmos, vocês só destruirão a si
mesmos e nós iremos junto.”
Nisso ele tinha razão, mas eu não simpatizava nem um pouco
com qualquer razão que acabaria me empalando. “Então por que
ainda estamos aqui? Por que só duas explosões?”
“Há um desacordo. Não é a maioria que é a favor da solução
nuclear. Ainda. Gelleth foi um acidente. Hamada foi um teste que
deu errado.”
“Por que está nos contando tudo isso?” Eu não teria sido tão
franco no lugar dele.
“Sou um registro de biblioteca. Responder é o meu propósito.”
“Mas em algum lugar... nas máquinas... existe uma cópia
completa de James Alan Kendeth? Com opiniões e desejos?”
O fantasma assentiu. “Mesmo assim.”
“A Roda pode ser girada para trás?” perguntou Garyus com
uma urgência repentina.
Uma pausa. “Está se referindo à instalação IKOL em Leipzig?”
James parecia que estava lendo de um livro.
“A Roda de Osheim.”
James Alan Kendeth fez que sim. Outra pausa. “É um
acelerador de partículas, um túnel circular de mais de trezentos
quilômetros de comprimento. O conceito de uma roda direcionadora
do universo é uma maneira simplificada de compreender a mudança
que a instalação IKOL efetuou e continua a exercer. Os motores da
IKOL giram uma roda hipotética, um sintonizador, por assim dizer,
mudando as configurações padrão da realidade. As máquinas na
câmara de colisão fariam suas catedrais parecerem pequenas. Em
suma é uma máquina, não uma roda que pode ser girada.”
“É uma máquina!” Eu me ative à ideia. “Você é uma máquina.
Desligue-a!”
“O sistema é isolado para prevenir interferência. Aproximar-se
dela fisicamente seria... difícil. O campo Rechenberg oscila
descontroladamente quando alguém se aproxima.”
“Paciência.” Estendi a mão para a caixa, querendo fechá-la.
Toda história ruim sempre começava com Osheim, e eu sabia muito
bem como as coisas ficavam ruins ao se aproximar dela. Eu
esperaria que vovó nos salvasse. “Então não há nada que se possa
fazer.” Minha mão ficou gelada antes que meus dedos sequer
alcançassem a caixa, como se eu a tivesse mergulhado em água
fria.
“Emaranhamento detectado.” A voz original da caixa, nem
masculina, nem feminina, nem humana. O fantasma de nosso
ancestral desapareceu com um brilho e foi substituído por um
homem idoso de rosto estreito. Ele ficou diante de nós por um
momento e depois desvaneceu-se em uma mulher jovem de
cabelos curtos e olhos rodeados por olheiras, sem beleza, mas
notável. O homem voltou, e em seguida a mulher. De alguma
maneira ambos pareciam familiares.
“Pare,” eu disse, e a mulher ficou.
“Asha Lauglin,” disse a voz atemporal e depois ficou em
silêncio. A mulher levantou a cabeça e me olhou nos olhos.
“C... como você morreu?” Retirei a mão. Alguma coisa em seu
olhar me assustava.
“Eu não morri,” disse ela.
“Você é apenas um eco, uma história em uma máquina,
sabemos disso. Como foi que a Asha real morreu?”
“Ela não morreu.” Asha olhou para Garyus e depois voltou seu
olhar para mim.
“O que aconteceu com ela no Dia dos Mil Sóis?”
“Ela se transmutou por força de vontade. Sua identidade foi
mapeada em estados de energia negativos, na energia sombria do
universo.”
“Quê?”
“Ela se tornou incorpórea.”
“Quê?”
“Um espírito.”
“Um espírito sombrio.” Fiquei olhando para a mulher. “Aslaug?”
“Ela ficou aprisionada na mitologia dos humanos que
repovoaram as regiões do norte, sim. A crença de muitas mentes
destreinadas se mostraram mais fortes que a determinação dela.
Pensei em Aslaug, filha de Loki, nascida de uma mentira, com
sua sombra aracnídea e sua forma monstruosa naquele dia em que
atravessou a porta dos magos do mal em Osheim. “Sinto muito.”
O fantasma dos Construtores deu de ombros. “Não é um
destino raro. Quantos de nós ficamos aprisionados nas histórias
contadas sobre nós, ou por nós?” Ela me lançou um olhar duro e
debochado que me fez lembrar ainda mais de Aslaug.
Não gostei muito da insinuação e comecei a vociferar. “Bem, eu
não estou...”
“Há uma história sobre um príncipe charmoso tentando armar
uma cilada para você neste exato momento, Jalan. Há outra história
que conta para si mesmo que pode levá-lo em um caminho bastante
diferente.”
“Você fala demais para um registro de biblioteca.” Mais uma vez
eu me movimentei para fechar a caixa.
“Nunca gostei de seguir as regras, Jalan.” Ela deu aquele
sorriso sombrio que eu conhecia tão bem.
Uma batida nas grandes portas da sala do trono abafou
qualquer resposta que eu pudesse ter e o chefe da guarda do
palácio entrou sem esperar resposta.
“Comissário, marechal, a cidade está sob ataque! Os mortos
estão no rio!”
12

O ataque veio pelas duas margens do Seleen, anunciado pela


chegada de uma balsa de cadáveres flutuando na correnteza. Os
corpos, mais de uma centena, pelo resquício de cor que tinham,
pareciam ter morrido na guerra, com o ataque de Orlanth a Rhone.
Quando as equipes saíram de barco para interceptá-la, logo ficou
claro que monstros do lodo haviam se insinuado no meio da massa,
segurando-se às beiradas, apenas com as cabeças escuras acima
da água, ou então deitados por cima dos corpos emaranhados, com
as zarabatanas a postos.

“Mandem o Casco de Ferro nos encontrar na ponte Morano!” gritei


as ordens enquanto cavalguei em direção ao Portão dos Cavalos
para sair do palácio. Após me tornar marechal, consegui um belo
cavalo de batalha chamado Murder, um bicho enorme e fogoso.
Muito difícil de controlar, no entanto, e a ponto de sair galopando a
qualquer momento. “Diga a príncipe Martus para manter o Sétimo
nos portões do palácio até sabermos a situ... Uou!” Puxei a cabeça
de Murder para trás e me inclinei para frente quando ele tentou
empinar. “Diga a ele para mandar mensageiros a todas as torres da
muralha.”
“Sim, marechal!” O capitão da guarda do palácio havia me
seguido da sala do trono com mais cinco homens, recebendo e
supostamente guardando as ordens que dei enquanto pegava
Murder nos estábulos. Agora, com o capitão Renprow e dez
mensageiros da guarda regular do palácio à minha volta, acenei
para que os portões fossem abertos. Iríamos até a ponte Morano, o
melhor ponto para ver uma grande extensão das margens do
Seleen, tanto a leste e a oeste, acima e abaixo do rio. Os relatos
que recebi já tinham meia hora: onde a luta estava agora e qual
situação encontraríamos, eu não sabia. O Casco de Ferro
atualmente não era nada além de um clube de bebidas dos filhos
mais ricos da aristocracia, mas todos eles foram oficiais da cavalaria
antes de vovó dissolvê-la e, apesar de lanceiros terem pouca
utilidade na cidade, pelo menos conseguiriam chegar aonde
estavam indo rapidamente.
Avistei um dos guardas da casa, Dobro, saindo para fazer
alguma incumbência e o mandei de volta ao Salão Roma com
ordens de proteger o local. Ele era o mais jovem da guarda da casa
de papai, e provavelmente o único ainda capaz de se defender em
uma briga. “Não deixe ninguém que não conheça entrar, vivo ou
morto! Especialmente morto. Mesmo que o conheça!”
Dobro saiu correndo de volta ao salão e eu dei uma última
olhada em volta. As sombras da Casa Milano se estendiam em
direção ao Palácio Interno, como se Hertet estivesse se esticando
na direção do trono de sua mãe. O sol brilhava fraco nas paredes,
sem calor. O dia estava morrendo. “Vamos!”
Em instantes, estávamos passando embaixo do arco do portão
e correndo pela Via dos Reis, com os cascos soltando faíscas nos
paralelepípedos. Durante os próximos minutos, a atividade de
cavalgar rapidamente por vias de vários tipos, cheias, estreitas,
sinuosas ou tudo isso ao mesmo tempo, ocupou nossas atenções.
Atropelar um ou dois camponeses tudo bem, mas, se estiver com
pressa de chegar a algum lugar, isso pode atrasá-lo. Além disso, em
Vermelhão os camponeses são poucos, e é capaz de você acabar
com o pai do ferido, a guilda, ou seja lá o que for acampado na porta
do palácio no dia seguinte querendo compensação. Ou, pior ainda,
justiça.
Fui na frente, galopando ao longo da margem oeste em direção
à ponte Morano. Eu não queria liderar, mas todo mundo se submetia
a mim por ser marechal, e Murder relutava em deixar qualquer outro
cavalo ir na frente, mesmo quando eu tentava desacelerá-lo. A via
ao longo da margem oeste é larga em trechos e até pavimentada
em alguns, mas perto da ponte era uma faixa de terreno difícil,
alternando entre pés de taboa que vão até a água e um
emaranhado de espinheiros que subiam até as paredes das casas
dos comerciantes ribeirinhos. Vi vultos à frente e gritei para eles
liberarem o caminho.
“Marechal!” Capitão Renprow gritando atrás de mim. Houve
outras coisas que se perderam no estrondo dos cascos.
As pessoas à frente se mostraram lentas demais, e
considerando as opções de parar, desviar à esquerda para a
margem pantanosa, à direita para os espinheiros, ou simplesmente
passar por cima de camponeses lamacentos, optei pela solução
principesca e segui em frente. Meu desprezo pela segurança pública
mostrou-se prudente quando se viu que os vultos eram cadáveres
inchados e cobertos de lodo que queriam me puxar da sela.
Uma dúzia de homens do Casco de Ferro nos alcançou quando
viramos para a ponte, pegando um caminho alternativo. Metade
deles parecia que havia vindo direto do almoço. O filho de lorde
Nester ainda estava com o guardanapo enfiado na gola, embora o
jovem Sorren tivesse pensado em colocar o peitoral.
“Casco de Ferro, ho!” Liderei o grupo para cima da ponte
Morano, uma ambição de criança, e chegamos até o meio dela.
“Os inimigos parecem não precisar de pontes.” Darin chegou ao
meu lado, pois havia se unido ao bando despercebido quando
deixamos o palácio. “Eles estão felizes o bastante em se molhar.”
“Sou eu que preciso da ponte.” Levantei-me nos estribos,
esperando que pelo menos agora Murder ficasse quieto. Nunca
prestei muita atenção às nossas aulas de estratégia e tática, mas
uma lição que pareceu ter sido martelada suficientemente fundo era
que um comandante precisava ver seu campo de batalha. Quando
seu campo de batalha era uma cidade inteira, na qual enxergar de
uma ponta a outra da estrada podia ser difícil, essa lição vinha
assombrá-lo bem depressa. Tudo o que eu tinha para prosseguir
eram relatos curtos que agora já eram quase de uma hora atrás.
Qualquer novo conhecimento que não fosse visto por meus próprios
olhos teria de seguir uma cadeia cada vez mais longa de instruções
para chegar até mim.
Olhei para cidade de Vermelhão. Inúmeros telhados, pináculos
aqui e acolá, mansões nas encostas que davam para o rio,
estorninhos girando no alto, o grande céu azul acima, pontilhado por
nuvens, e o ar fresco daquele jeito quando as folhas estão se
colorindo e criando coragem para o outono. Em algum lugar no meio
disso tudo, o inimigo já estava trabalhando. Os mortos do rio podiam
ser facilmente descobertos ao final de uma série de pegadas
molhadas, mas os necromantes eram mais difíceis de encontrar.
Algum operário da morte das Ilhas Afogadas podia ter alugado um
quarto em uma taberna ao lado do rio e estar nos observando agora
mesmo através das venezianas.
“Ali!” disse Darin, com seu corcel perigosamente perto da
balaustrada da ponte, e apontou rio abaixo, na direção da margem
leste.
“O quê?”
“Ainda é outono e nem está frio,” disse ele.
“E daí?” Eu o odiava às vezes.
“As pessoas parecem estar acendendo as fogueiras cedo...”
Era verdade. O que eu achara que era fumaça saindo de várias
chaminés agora parecia mais sinistro.
“Todo aquele tempo gasto supervisionando nossas muralhas e
os subúrbios teria sido melhor aproveitado aqui,” disse Darin. “O rio
é a nossa fronteira mais fraca.”
“Marechal.” Capitão Renprow apontou rio acima para a margem
oeste, salvando-me de ter de responder. Um emaranhado de vultos,
minúsculos ao longe, lutando em um ancoradouro, com unidades da
guarda municipal avançando pelo caminho do rio.
Ao olhar para a margem oposta, vi mais vultos, alguns fugindo,
alguns perseguindo. Onde o sol ainda batia no telhado de duas
águas da Santa Maria do Seleen, vi formas em movimento, a
apenas trezentos metros de distância: as formas pretas e
araneiformes dos monstros do lodo subindo pela beira do telhado.
“Eles estão por toda a parte.” Os cadáveres deviam estar
escondidos debaixo d’água onde a correnteza era fraca, ou
afogados na lama do rio, esperando o sinal de atacar. Não dava
para saber quantos eram – não parecia um exército enorme, mas
estavam se dispersando para o coração de minha cidade, à caça de
presas, e se o Rei Morto estava com a atenção totalmente voltada
para nós, cada morte seria um acréscimo ao número deles. “Mande
avisar às guarnições de guarda em Taggio, Saint Annes, Doux e
LeCrosse. Todas as guardas da cidade devem avançar para o
Seleen em grupos de pelo menos vinte, evacuando as ruas pelo
caminho. Todos os besteiros devem estar a postos, prestando
atenção aos ghouls nos telhados.”
“Majestade!” disse um cavaleiro do Casco de Ferro ao meu
lado, o filho mais novo de lorde Borron. Ele acenou para a ponta
oposta da ponte. Mais ou menos uma dúzia de vultos começaram a
se aproximar.
“Que diabos?” A princípio eu não consegui entender. Homens
do rio inchados, cobertos de lodo, cambaleando na nossa direção
com passos desajeitados; mas guardas da cidade também, exibindo
o vermelho escuro de seus tabardos, o sol reluzindo nos
capacetes... aquele que ainda os tinham.
“Estão todos mortos,” disse Darin ao meu lado. Ele tinha razão:
eles não estavam lutando uns com os outros, estavam avançando
sobre nós.
“Bem, o que estão esperando?” perguntei. “Passem por cima
deles. São lanceiros ou amas de leite?” Para ser justo, nenhum
cavaleiro do Casco de Ferro tinha lança, mas ainda tinham a
vantagem de estarem montados em cavalos criados para a guerra.
“Só estava esperando ser liderado, marechal Jalan.” Darin deu
um sorriso e fez um gesto de ‘vá na frente’.
“Ah.” As probabilidades estavam a nosso favor, mas havia um
bocado daqueles desgraçados, e na guerra eu gosto das
probabilidades tão grandes a meu favor que o único perigo seja ser
esmagado por eles caso caiam. “Veja bem...”
Capitão Renprow veio ao meu auxílio. “O marechal é
responsável pela defesa da cidade inteira, príncipe Darin. Não pode
se dar ao luxo de entrar em combate real. Seria um desastre se ele
ficasse incapacitado.”
“É isso aí. É exatamente isso.” Eu me contive para não ir até lá
e abraçar Renprow. “Muito me dói não poder entrar lá no meio
deles, balançar minha espada e tudo mais, mas o dever fala mais
alto.”
Darin revirou os olhos. “Chamem Martus aqui com seus
homens. É uma loucura deixá-los no palácio.” Com isso, ergueu sua
espada acima da cabeça e berrou: “Pela Rainha Vermelha!” Em
seguida, batendo os calcanhares: “Vermelhão!” E saiu, com os
outros indo atrás. Um barulho ensurdecedor de cascos e cerca de
dez toneladas de bichos ferozes se lançaram em direção às
criaturas do Rei Morto.
Consegui impedir um dos guardas do palácio de se unir ao
ataque, segurando seu ombro e exigindo que ficasse. Naquele
momento de distração, Murder quase me escapou e saiu atrás de
Darin, mas se existe uma coisa que eu faço bem é lidar com
cavalos, e consegui virá-lo.
“Certo,” falei. “Precisamos de algum plano.”
O homem que segurei deu um tapa em seu pescoço. “Jesus!”
“Não um plano,” disse. “O que nós...” Parei de falar quando ele
retirou a mão e revelou um pequeno dardo preto fincado na pele,
logo abaixo do pomo-de-adão. “Jesus.” Olhei em volta desesperado
e avistei o mostro do lodo responsável, agora subindo sobre a
balaustrada, com a zarabatana em uma das mãos.
“Eu mantive você aqui exatamente para esse tipo de coisa,”
disse ao guarda. “Mate-o rápido! Não se preocupe com o dardo, é
só veneno.”
O homem me lançou um olhar muito sombrio por debaixo da
aba de seu capacete.
“Quero dizer, só deixa você fraco – se se apressar, pode matar
o ghoul antes...”
“Marechal... não estou enxergando.” Ele estendeu uma mão na
frente do rosto, como se precisasse da confirmação. Seus olhos
realmente haviam ficado escuros, e a parte branca ficou cinza.
“Fique calmo, só dura algumas horas.” Tomei as rédeas dele.
Snorri havia se recuperado da fraqueza. “Renprow.” Acenei para o
ghoul que agora estava com os dois pés no pavimento da ponte e
enfiando outro dardo no tubo.
“Marechal.” Renprow sacou sua espada e foi a meio-galope até
o ghoul, dez metros mais próximo da margem.
“Estou cego, porra.” O guarda tocou os olhos, esquecendo-se
de príncipes, marechais e tudo mais agora. Suas palavras saíram
enroladas.
“Você precisa ficar calmo,” falei. “Vai melhorar.”
Nisso, o guarda escorregou de sua sela com a elegância de um
saco de aveia. Ele caiu sobre a cabeça e o ombro com um estalo
bastante repugnante, e ficou ali estatelado, com o pescoço em um
ângulo nada natural e um pé ainda nos estribos.
“Talvez não melhore,” admiti. Olhei para a ponte acima, em
direção à refrega onde Darin e seus companheiros estavam
distribuindo socos entre eles, após terem pisoteado metade dos
inimigos com seu ataque. Dei mais uma olhada para meu
companheiro caído e meti a bota no cavalo dele, com a máxima
força. Os olhos do morto se abriram pouco antes de o cavalo entrar
em movimento e o arrastar em direção a meu irmão, com a cabeça
batendo em cada calombo da estrada.
Um baque e o som de uma luta devolveram minha atenção a
Renprow e o ghoul. De alguma maneira, o monstro o puxara de sua
sela, ganhando um talho na lateral, mas agora lutando com o
capitão no solo. Ambos estavam com facas, a do capitão era uma
peça longa e limpa de aço, a do ghoul uma lâmina curva e cruel,
com manchas tão escuras quanto as de seu couro.
“Vamos lá, capitão!” ofereci apoio moral do lombo de Murder.
Apesar de sua magreza, o ghoul parecia possuir uma força
espantosa, e sua faca se movia inexoravelmente na direção do
pescoço de Renprow, apesar de seus melhores esforços para detê-
la. “Ah, inferno.” Desci da sela e saquei a espada de Edris Dean.
Uma oportunidade se apresentou, então corri para frente e golpeei
na nuca do ghoul – pouco mais do que uma abaixada de braço, na
verdade – com uma lâmina afiada e pesada daquelas eu supus que
qualquer coisa a mais seria capaz de decapitar o monstro e
atravessar até o homem por baixo.
Na verdade, descobri que pescoços são resistentes para
caramba. Minha lâmina entrou pouco mais de um centímetro e se
alojou no osso da espinha do ghoul. Mesmo assim, comigo tentando
soltar a espada e Renprow aproveitando a oportunidade para
golpear a criatura várias vezes no fígado, conseguimos triunfar. O
capitão rolou de quatro e depois ficou de pé, coberto de sangue
imundo, enquanto eu olhei sobre a balaustrada e rapidamente puxei
a cabeça de volta.
“Vá buscar pedras da margem do rio. Grandonas!”
“Quê?” Renprow levantou a cabeça depois de inspecionar sua
túnica salpicada de sangue.
“Grandonas! Corra!”
Arrisquei outra olhadela boba pela lateral e um dardo ghoul
quase me repartiu os cabelos. O suporte da ponte estava coberto
deles. Quatro, cinco, meia dúzia? Era difícil dizer, pois subiam uns
sobre os outros, pingando, quase nus, mas sem a menor dificuldade
em conseguirem se segurar.
Fiquei no meio do espaço, sabendo que os ghouls poderiam
subir pelos dois lados igualmente bem. Os sons do combate ainda
saíam do lado oposto. Eu não podia arriscar olhar para ver como
Darin e os outros estavam se saindo.
O primeiro vislumbre da zarabatana do ghoul parecia uma haste
preta saindo entre os pilares de pedra da balaustrada. Eu corri, me
atirei, deslizei e acabei com minha espada enterrada no olho do
ghoul quando ele levantou a cabeça para soprar seu dardo. A
criatura caiu sem fazer som e quase levou minha espada junto.
Quando consegui chegar ao outro lado, Renprow estava se
aproximando, mostrando um ritmo decente para um homem
carregado com quatro ou cinco pedras de bom tamanho.
“Fique do outro lado.” Larguei minha espada e peguei a pedra
de cima com respeito renovado pela força daquele pequeno homem
– aquela coisa pesava uma tonelada.
“Marechal.” Renprow ofegou, deixando mais uma pedra cair
antes de arrastar as outras para onde eu tinha matado o último
ghoul.
O veneno com que as criaturas revestiam seus dardos se
mostrou impressionantemente resistente à água, mas, vindo dos
pântanos de Brettan, isso não parecia tão surpreendente. Apenas
deprimente. Ao avançar sobre a balaustrada, eu não tinha muitas
ilusões sobre meu destino se um daqueles dardos me atingisse.
Teria saído correndo, não fosse o fato de que minhas melhores
chances estavam em acertá-los enquanto estavam subindo, em vez
de tentar desviar de seus mísseis enquanto corria pela ponte.
“Acho que não.” Dei um último passo largo e consegui colocar o
pé em cima da próxima zarabatana que apareceu.
Com um grunhido de esforço, ergui a pedra por cima da beira e,
sem olhar, a deixei cair sobre o ghoul cujo tubo eu acabara de
prender. Com um pouquinho de sorte, ela arrancaria várias outras
criaturas do suporte da ponte na descida. O mais rápido que pude,
peguei a segunda pedra e repeti o processo um pouco mais à
direita. Não houve gemidos gratificantes de desespero nem
guinchos de dor, mas as pancadas fortes e o barulho da batida na
água pareciam promissores.
“Peguei eles, marechal!” gritou Renprow.
Outros homens estavam se aproximando da ponte pela Via
Morano, o caminho que os cavaleiros do Casco de Ferro haviam
tomado. Soldados, do tipo definitivamente vivo, em vez dos mortos-
vivos, enchiam a estrada de um lado a outro, marchando
enfileirados, todos na sombra, pois agora o sol só brilhava nos
telhados.
“Verifique o meu lado.” Acenei distraidamente para Renprow do
outro lado da ponte e comecei a caminhar na direção das tropas que
avançavam. Quando cheguei ao final da ponte, avistei Martus,
quatro fileiras atrás sobre seu cavalo, resplandecente com seu
peitoral, capacete cônico com visor e um almofar de malha de aço
que caía sobre os ombros.
A visão de Martus e seu exército pelo menos encheu os
cidadãos de confiança suficiente. Alguns abriram suas janelas e se
debruçaram para aplaudir, enquanto os homens marchavam abaixo.
De minha parte, senti apenas uma sensação de desconforto
irritante, que flutuou sobre um mar de medo primitivo. Eu nem queria
a faixa de marechal, para início de conversa, e ela estava
começando a se parecer cada vez mais com uma armadilha.
Martus parou a cinquenta metros da ponte, com seus soldados
saindo pelos dois lados e indo nos dois sentidos ao longo das
margens.
“Dei ordens para você ficar no palácio!” gritei, avançando sobre
ele.
“Que bom que o ignorei!” Ele levantou seu visor para conseguir
berrar com total eficácia. “Temos mais de uma dúzia de incursões
nas duas margens. É preciso pisotear esses troços antes que eles
tomem conta. São como uma praga, esses mortos-vivos. Um
transforma o outro e por aí vai...”
“Eu sou o marechal, porra, e você obedece minhas ordens!” Eu
me senti levemente idiota gritando para ele montado em seu
garanhão, mas não iria perder a autoridade para ele, mesmo que
nossa plateia fosse de soldados comuns de infantaria.
Capitão Renprow chegou montado atrás de mim, trazendo
Murder. Darin finalmente o alcançou, trazendo uma boa quantidade
dos homens, machucados, sujos de sangue, mas na maioria
inteiros.
“Tem que seguir minhas ordens, Martus,” disse, sem gritar, mas
alto o bastante para que todos ouvissem. “Senão mando enforcá-lo.”
“Enforcar é improvável.” Darin passou montado entre Martus e
eu, interrompendo a resposta de nosso irmão. “Uma semana na
masmorra, por outro lado...” Ele olhou significativamente para
Martus, depois olhou adiante e franziu o rosto. “O que é aquilo?”
“Fumaça vermelha.” Acompanhei o olhar dele. “Merda. As
muralhas.” Fumaça vermelha era a instigação minha de que mais
me orgulhava. Cada torre da muralha agora tinha um estoque de pó-
de-fogo embrulhado em papel que soltava uma abundância de
fumaça vermelha quando aceso. A ideia era que qualquer
emergência pudesse ser sinalizada rapidamente por Vermelhão
desta maneira, mais rápida que mensageiros e com alcance maior
do que sinos no meio da cacofonia da cidade. Como bônus, os sais
raros usados na fabricação do pó-de-fogo eram caros e retirados
das minas de Crptipa, resultando em um belo lucro que voltava
diretamente para o meu bolso. Agora, porém, vendo aquela coluna
com sete pontas de fumaça vermelha subindo das torres do leste,
eu abriria mão com prazer de toda e qualquer renda proveniente da
necessidade de reabastecimento do pó-de-fogo.
“Não está fazendo o menor sentido... marechal.” Martus se
virou e olhou para a fumaça acima da cabeça de sua tropa.
“Estamos com metade da guarda da cidade e dois mil soldados
atrás de menos de duzentos mortos pelar margens do rio. Enquanto
isso, na muralha da cidade, sete capitães das torres viram alguma
coisa que os assustaram o suficiente para acenderem o sinal de
emergência...” Cada torre tinha dezoito metros de altura, com
ameias como uma fortaleza e guarnecida com vinte e cinco homens,
com espaço para cem. Eu realmente não queria saber o que
motivou sete deles a gritarem por socorro ao mesmo tempo. “Isto
aqui não é o ataque, é a distração!”
13

“Peço a Deus que vovó tenha nomeado você marechal por um bom
motivo.” Darin se uniu a mim no alto da torre esquerda, entre as
duas que flanqueavam o Portão Appan, com a voz espantada. “A
maioria dos nossos primos achou que fosse piada.”
“A maioria?”
“Os outros acharam que foi castigo.”
Olhamos para os arredores de Vermelhão, a parte estendida da
cidade que se espalhava por quase um quilômetro depois das
muralhas e ainda mais seguindo a Via Appan, como se estivesse
desesperada para arrancar mais algumas moedas de qualquer
viajante que fosse tolo o bastante para ir embora. Pessoas mortas
lotavam o espaço diante dos portões – homens, mulheres, crianças
– os mortos cinzentos e descamados nos restos imundos de suas
roupas da cova; os mortos recentes, com as feridas ainda
escarlates, uma turba silenciosa que se estendia em volta das
muralhas, ao longo da estrada principal, apertada nos becos entre
as casas.
Mesmo a dezoito metros de altura e com uma brisa leve, o
fedor era invasivo e arranhava minha garganta, ardia meus olhos.
Várias refeições foram despejadas muralha abaixo. A visão e o
cheiro de seus primeiros mortos-vivos faz isso com você.
“Dei ordens expressas para não usarem arcos,” disse a
Renprow, agora com o sangue secando nele após nossa partida da
ponte às pressas. Uma boa quantidade dos mortos mais perto do
Portão Appan tinha duas, três, às vezes cinco flechas fincadas nos
braços e peitos – uma velha tinha uma no olho. “É um desperdício.”
“Mandarei a ordem novamente, marechal. Para os homens é
difícil não atirar quando o inimigo avança sobre as posições deles.”
Mandei Renprow embora com um aceno. Soldados da guarda
da muralha lotavam o topo da torre, na maioria homens de meia-
idade, muitos barrigudos e grisalhos, achando que passariam os
últimos anos caminhando pacificamente nas muralhas da capital. A
tarefa principal de um guarda da muralha de Vermelhão é avistar
incêndios. Fora isso, eles são basicamente uma reserva móvel da
guarda municipal, e a única agitação que veem é quando são
chamados à cidade para apoiarem seus escassos irmãos da farda
vermelha municipal.
“Saiam!” Atrás de mim, Martus abriu caminho no meio da
guarda, gritando para qualquer um que não se mexesse rápido o
bastante. “Saiam do meu caminho! Sou um príncipe, caramba.
Vou... Minha nossa...” Martus parou no meio da ameaça, estreitando
os olhos contra o sol poente e olhando para a horda de mortos.
“Minha nossa.” Ele ficou pálido. “Nunca vi nada parecido com...
isso.”
“Eu já.” Inclinei-me para fora, com as mãos nas ameias para me
apoiar. “Já vi pior.” E naquele momento percebi que, embora o medo
me atravessasse da cabeça aos pés, não era aquele pavor
debilitante que havia sentido em tantas outras ocasiões. Então
pensei que talvez soubesse o motivo de vovó ter me escolhido. “Já
vi o Inferno.” Levantei a voz. “Vi o Inferno e não é isso aí. Somos os
homens da Rainha Vermelha e temos toda Vermelhão nos
apoiando. Não é um bando de cadáveres emaranhados que irá tirá-
la de nós!”
Aplausos surgiram e me pegaram de surpresa. Para dizer a
verdade, foi Renprow que puxou, mas o fato é que os homens à
minha volta haviam perdido a coragem e algumas palavras fortes de
um homem assustado lhes devolvera um pouco dela.
“Em nome de Deus, como foi que...” Martus olhou para a
multidão novamente, “...um exército de três mil mortos chegou às
nossas muralhas sem qualquer alarme?”
Darin coçou a barba em seu queixo. “Como se não desse para
sentir o cheiro deles a um quilômetro de distância! Você não
mandou nenhum patrulheiro, Jal?”
Olhei para meus irmãos. Algumas pessoas os chamavam de
gêmeos, embora Martus tivesse porte mais pesado e Darin feições
mais afiladas. Ninguém jamais nos chamou de trigêmeos, mas na
verdade, se eu fosse cinco centímetros mais alto, talvez achassem
isso, com a luz fraca. Por mais que eu declarasse não gostar deles,
era bom ter a família me apoiando – ter gente comigo na torre que
genuinamente não esperava que eu resolvesse seus problemas ou
que fosse acertar.
“Tenho mais de cem homens em patrulha e nenhum exército
poderia atravessar por Marcha Vermelha sem notícias vindas das
cidades e vilarejos. Isso...” apontei para nosso inimigo, “...foi feito
aqui. A maioria deles provavelmente foi morta em suas casas nas
últimas horas, enquanto estávamos caçando ghouls pelo rio.” Eu me
perguntei quantos necromantes poderiam estar no meio daqueles
becos ou trabalhando em praças arborizadas, passando por fileiras
do meu povo, recém-mortos e estirados nos paralelepípedos lado a
lado, uma família de cada vez.
“O que vamos fazer?” perguntou Darin. O Darin de antigamente
que eu conhecia estaria me dizendo o que deveríamos fazer,
explicando tudo com uma confiança jovial. Estreitei os olhos para
ele, imaginando que bicho o mordera, até me lembrar dos três quilos
de carne nova e rosada que chegara recentemente. Misha pusera o
bebê nas minhas mãos quando ela e Darin finalmente me
prenderam no Salão Roma algumas noites atrás. Uma coisinha
minúscula.
“Demos o nome de Nia,” disse Misha. Olhei para a criança de
nome em homenagem à minha mãe e senti meus olhos arderem.
“Melhor pegar a ferinha de volta, antes que molhe minha
camisa,” falei, empurrando minha sobrinha de volta para a mãe, mas
era tarde demais. Aquela velha mágica que bebês fazem tão bem
havia me pegado, contaminando mais rápido que mijo, vômito, ou
qualquer outro fluido corporal que os recém-nascidos gostam tanto
de compartilhar. Até mesmo uma vida inteira fugindo de todas as
obrigações impostas a mim se mostrou insuficiente para me
desvencilhar daquela ali como das outras. Imagina para o pai como
não devia ser?
Darin pegou Nia e a levantou. “Se a minha garota quiser sujar
as penas de pavão do tio, será um atestado de seu bom gosto.” Mas
ele não ficou ofendido. Ele viu alguma coisa tomando conta de mim
no momento em que a segurei, apesar de eu ter tentado esconder, e
me deu um sorriso esperto e muito irritante.
“Quais são suas ordens, marechal?” perguntou capitão
Renprow, trazendo-me de volta ao horror do alto da torre e do
exército do Rei Morto.
“Minhas ordens?” olhei novamente para os mortos lá embaixo.
“Eles parecem não ser uma grande ameaça para a cidade principal.
Não têm máquinas de cerco, nem cordas, nem arcos. Será que
estão planejando nos matar de tédio?” Não fazia muito sentido. Eu
ouvia gritos fracos, trazidos pelo vento e vindos da cidade externa.
“Minha esposa está lá fora,” disse um homem com o uniforme
cinza da guarda da muralha, um soldado comum. Ele apontou para
uma pequena elevação com uma igreja em cima e casas
circundando-a como ondas. Um músculo se contorceu em sua
mandíbula. “Meus filhos e os filhos deles ficam na via Pendrast.”
Balançou o braço para indicar outra região, com fumaça subindo
acima dos telhados. “E mais...”
“Segure a língua, soldado!” disse um sargento pesadão, de
rosto vermelho.
“Vinte e três mil pessoas vivendo além das muralhas da cidade
de acordo com o último censo, marechal.” Renprow relatou o
número com a voz penetrante.
“Espero que estejam fugindo.” Esperei pelo bem deles e pelo
nosso. Se a horda de mortos fosse inflada por mais de vinte mil
novos recrutas, eles poderiam rodear a cidade de maneira tão eficaz
que ficaríamos sitiados.
“Será que não podemos...” Darin não terminou a pergunta, pois
sabia que a resposta era não. Não podíamos ir até lá.
“Não temos gente suficiente.”
Atrás de nós, uma equipe de homens lutava para posicionar o
escorpião, um enorme dispositivo de ferro, madeira e cordas, capaz
de atirar uma lança pesada a quatrocentos metros. De perto, ele
podia fazer essa lança atravessar a porta da frente de uma casa,
abrir um buraco em três homens atrás dela e sair pela porta de trás.
“Não podemos ficar aqui olhando para eles o dia todo,” falei.
“Temos mortos nas ruas e monstros do lodo. Eles precisam ser
pisoteados, e com força.”
Três dos quatro capitães da guarda da cidade haviam se unido
a nós no topo lotado da torre e agora estavam se aproximando. O
comandante deles, lorde Ollenson, iria supervisionar a operação no
rio – era isso ou participar de sua própria decapitação pública
amanhã – mas o alarme da muralha havia trazido os capitães
Danaka, Folerni e Fredrico para o meu lado.
“Danaka, quero você com três esquadrões na vigia norte.” Duas
torres davam para o ponto onde o Seleen entrava na cidade, cada
uma com os pés na água, terminando a muralha. “Fredrico, três
esquadrões para a vigia sul.” As fortificações que davam para a
saída do rio eram menos formidáveis. Qualquer barco que tentasse
entrar em Vermelhão por ali teria que lutar contra a correnteza,
tornando-o lento e pesado.
Virei-me para Folerni, um homem magricelo, com o olho
esquerdo leitoso, a sobrancelha acima e a bochecha abaixo dele
divididas por uma cicatriz. Seu visual me lembrava a Irmã Silenciosa
e eu fiz uma pausa. Antes que pudesse encontrar as palavras, um
uivo terrível se sobrepôs a qualquer coisa que eu teria dito. O tipo
de som que faria estátuas correrem no sentido oposto. Girei
lentamente na direção das muralhas, embora o som tivesse me
abatido e eu não quisesse olhar.
Meus olhos se fixaram em uma agitação depois dos mortos que
lotavam o Portão Appan. Algumas centenas de metros atrás, ao
longo da estrada principal, algo havia mudado nos cadáveres que
bamboleavam na direção da muralha. Parecia quase uma onda
passando pelas fileiras deles. Suas cabeças se estalaram para
cima, eles ficaram terrivelmente alertas e suas bocas se abriram
bastante para emitir aquele grito horrível. Talvez apenas os mortos
recentes pudessem gritar, mas parecia que o barulho vinha de
pulmões corroídos por muito tempo, a voz dos túmulos, a própria
morte falando de maneira nada suave. O uivo ondulante vinha
ameaçador, prometendo os piores tipos de dor.
A cada lugar por onde a mudança passava, os mortos se
moviam mais rápido, com uma energia desenfreada, subindo em
prédios e despedaçando telhados, procurando qualquer um que
pudesse ter sido deixado lá dentro, derrubando portas ou correndo
na nossa direção com um entusiasmo que subitamente transformou
as muralhas da cidade em um pequeno consolo. Ouvi arcos
rangerem ao meu lado.
“Não atirem.”
A onda de ‘despertamentos’ moveu-se continuamente na
direção dos portões, um bando denso dos mortos reanimados
avançando para frente. Mas eu percebi uma coisa. Antes de minha
temporada no Inferno, meus olhos teriam ficados fascinados demais
pelo horror daquele espetáculo para perceberem detalhes, mas o
tempo que passei lá me modificou. No fundo da onda, vi os mortos
voltarem a seu bamboleio, novamente mais próximos de
sonâmbulos do que de carcajus.
“Estão virando!” gritou Martus sob os gritos dos mortos.
A princípio, parecia que ele estava certo, mas eles não estavam
virando, era o efeito que estava virando. A área onde os mortos se
reavivaram desviou-se para a esquerda a cem metros dos portões.
Aqueles que estavam uivando por nosso sangue ficaram calados e
sombrios novamente, e outros mortos, homens, suas esposas e
filhos, de repente começaram a gritar nas ruas à esquerda da Via
Appan.
“É como se...” Falei as palavras apenas para mim. Era como se
eles sentissem algum calor terrível que os deixava violentos, e a
coisa que irradiava esse calor... estivesse em movimento. Tentei ver
onde o foco desse efeito estava... e vi um ponto se deslocando,
quase como se o mundo se dobrasse sobre si mesmo para ocultar
algo que os olhos não deveriam enxergar. “Ali!” Levantei a voz,
agora apontando. “Ali! Estão vendo?”
“Vendo o quê?” Martus se empurrou para o muro ao meu lado.
“Há... alguma coisa,” disse Darin do meu outro lado, apertando
os olhos. “Alguma coisa... errada.”
“Não estou vendo coisa nenhuma! Onde?” disse Martus,
protegendo os olhos contra os últimos raios de sol.
Fiquei olhando, rastreando o ponto, perdendo-o atrás de casas,
encontrando-o novamente. Um espaço onde a luz parecia se
desdobrar. Um ponto cego da visão. E então, apenas por um
momento, eu realmente vi. Talvez fosse o sol se pondo que me
emprestou um pouco da velha visão sombria que Aslaug costumava
trazer, ou talvez o Inferno tivesse treinado meus olhos para ver o
que as pessoas não deveriam ver. Um lampejo de movimento, um
corpo impossivelmente fino, branco como um nervo, coberto por um
manto oscilante cinzento: talvez substância de almas, fantasmas de
pessoas que assombravam o corpo do lichkin como uma roupa.
“Merda.”
“O quê? O que é?” disse Darin, ainda olhando.
“Um lichkin,” falei. Um lichkin, um dos parasitas que Edris e sua
laia botavam para transportar as crianças desnascidas que
matavam. Foi um troço desses que prendeu minha irmã e queria
apenas usar seu corpo para entrar no mundo dos vivos. Mas aqui
tínhamos um lichkin nu, que invadira o mundo sabe lá Deus por qual
fresta, e tão perigoso quanto um desnascido, pelo que havia visto no
Inferno.
“Aonde ele está indo?” perguntou Martus. O som dos gritos
ficou mais distante conforme o lichkin se afastou.
“Caçar,” disse, e senti o olhar de vovó sobre mim com tanta
certeza quanto se estivesse diante de seu trono, com aqueles olhos
duríssimos, sem o menor pingo de transigência. Finalmente me
lembrei de quando abri o estojo de pergaminho que Garyus me
dera, vi o selo da Rainha Vermelha e o rompi para ler as palavras de
seu próprio punho. Marechal de Vermelhão. E um bilhete: “Você diz
ter visto a defesa de Ameroth. Reze para ter aprendido essa lição e
reze com mais afinco ainda para jamais precisar demonstrar que a
aprendeu.”
Cem homens estavam atrás de mim e uma cidade atrás deles,
para eu manejar, para eu proteger. Em todas as minhas aventuras
pela face do Império Destruído, nunca quis tanto estar em outro
lugar quanto naquele momento. Olhei sobre os telhados lá fora,
todos à sombra agora, o céu ardendo, vermelho e fervilhante acima
do sol que se pôs. “Queimem tudo.”
Os uivos passaram, quase inaudíveis, e os mortos abaixo de
nós estavam em silêncio. Ninguém disse nada. Ouvi o agito das
bandeiras, o sussurro do vento e bem longe, dentro das muralhas, o
grito de um vendedor ambulante anunciando seus produtos.
Virei e andei em direção ao escorpião. Os homens abriram
caminho. “Queimem tudo.” Bati a mão na pesada lança carregada
na máquina. “Panos e óleo. Atirem nos telhados. Mandem avisar
todas as torres.”
Martus me agarrou e me virou. “Isso é loucura! Que diabos há
de errado com você?”
“Não podemos defender a cidade externa. De manhã já estarão
todos mortos, aumentando o exército em nossos portões.”
“É insano! Não está certo.” Martus me sacudiu, levantando a
voz, com murmúrios de todos os lados somando-se ao seu protesto.
“Você levaria o Sétimo lá fora?” Inclinei a cabeça na direção das
ruas escurecidas da cidade externa. Dava para ouvir gritos
distantes, mais uma casa invadida.
“Bem... eu...” Martus contorceu o rosto, prenunciando um de
seus rompantes furiosos. “Seria loucura.”
“Eu não deixaria.” Desvencilhei-me dele e procurei o guarda
que tinha apontado para sua casa, perto da igreja no morro. “Você.
Seu nome.”
“Daccio, alteza.” Ele estava com uma expressão de derrota,
sem raiva, embora ela agora aparecesse nos rostos de seus
companheiros.
“Daccio. Sinto muito mas sua esposa está morta, seus filhos
também. Ou estão escondidos em suas casas esperando ser
salvos.” Olhei em volta para a guarda da muralha, enfileirada de
cinza. “Você vai salvá-los? A guarda da muralha vai descer estes
muros pela última vez e se aventurar por onde o Sétimo Exército
tem medo de pisar? Ou será que os lichkin vão descobri-los? Se
não fizermos nada, ao amanhecer veremos sua família
ensanguentada diante de nossos portões.” Peguei um pano na base
do escorpião, um troço oleoso usado nos braços dos arcos para não
enferrujarem.” O fogo é limpo. Melhor queimar do que deixar
aquelas criaturas te pegarem. E que chance melhor nosso povo terá
de fugir do que na fumaça e confusão de uma grande
conflagração?” Coloquei o pano na mão de Daccio. “Faça isso.”
E ele fez.
14

O lichkin voltou antes que as chamas tomassem conta por completo.


Fiquei na torre, precisando enxergar, embora não quisesse. Darin
permaneceu do meu lado. Martus saiu para orientar o Sétimo,
despachando-o para as seções mais vulneráveis da muralha às
centenas, cada esquadrão liderado por um capitão. Por ordem
minha, quinhentos homens do Sétimo ficariam com Martus de
reserva no palácio. Disse a Martus para insistir que a guarda do
palácio – uns quatrocentos homens, na maioria veteranos – fosse
enviada para unir-se ao meu comando.
Os mortos inicialmente se agruparam no Portão Appan e a
multidão ali crescia constantemente, mesmo depois que dei a ordem
e o barulho dos escorpiões começou a soar por toda a muralha. O
fogo tomou conta: um telhado aqui, uma carroça coberta ali,
labaredas alaranjadas subindo, ávidas por novos sabores, e uma
nuvem de fumaça flutuou sobre os mortos.
“Jamais seremos perdoados por isto.” Darin olhou para o fogo
com os olhos descrentes.
“É a mim que não irão perdoar,” falei. “E sem isso não restará
ninguém para exercer o perdão.”
“Nunca pensei que tivesse essa capacidade, Jal.” Barras Jon
havia me procurado, decidido a fazer sua parte na defesa. Ele
parecia pronto para as listas de torneio com sua armadura
vyenense, seguindo a última moda lamelar, e cada placa de ferro
tinha o relevo do símbolo de rosa de sua família. “Parece o Inferno
lá embaixo.”
“Está chegando perto disso.”
A noite estava escura e sem lua, mas os incêndios que
causamos iluminavam a cena com tons inegavelmente infernais.
Barras enxugou o rosto, esfregando uma cinza em sua bochecha
pálida. Parecia loucura, nós dois ali, olhando para um exército de
mortos iluminado pelo inferno cada vez maior de Vermelhão. Eu
esperava ver o rosto dele por cima de um cálice de vinho, ou
iluminado pela animação das corridas, não emoldurado por um
capacete de ferro, com os olhos arregalados de medo. Ele abaixou
seu visor perfurado e se tornou ainda mais desconhecido.
Através da fumaça e das chamas, vimos algumas de minhas
previsões tornando-se realidade, as pessoas impulsionadas pelo
medo da conflagração saindo da segurança de suas casas e
correndo pelos campos abertos. Tinham uma chance muito melhor,
nesse êxodo em massa involuntário, do que esperando pela invasão
dos mortos. Quando o lichkin chegasse perto, os mortos reanimados
arrombariam suas portas e não haveria escapatória. Agora, embora
elas enfrentassem hordas de cadáveres ambulantes, pelo menos
eram do tipo bamboleante, em vez dos velozes.
Ademais, a simples quantidade de cidadãos em fuga, além do
fogo alto e da fumaça espessa, confundiu tanto aquele cenário que
parecia que muitos súditos de vovó realmente conseguiriam se
libertar e assistir aos acontecimentos da noite de algum milharal
solitário ou de um trecho distante de floresta. Mesmo assim,
enquanto os via correr, eu sabia que haveria outros que ficariam
paralisados demais pelos horrores lá fora para saírem, mesmo
quando a fumaça passasse por baixo de suas portas e as chamas
começassem a destruir seus telhados. Se eu tivesse comido mais
recentemente, talvez tivesse dado minha própria contribuição aos
muros manchados de vômito.
“Não consigo entender como eles podem nos fazer algum mal,”
disse Darin ao meu lado, como se quisesse uma afirmação. “Eles
não têm armas. Não conseguem atravessar paredes nem empurrar
os portões. Não conseguem escalar... esses aí só ficam
bamboleando, e mesmo quando ficarem com raiva não irão escalar
muros. Eles não têm cordas, escadas, nada...”
Eu não tinha resposta para ele. Mesmo assim, o fato de não
saber me deixava com medo, em vez de confiante.
“Jesus, o que é aquilo?” Barras Jon se virou, fazendo barulho,
quase empalando um guarda com sua espada.
“Você enxergaria melhor se tirasse esse negócio.” Darin bateu
os nós dos dedos no enorme capacete de Barras. Qualquer outra
piada morreu ali, pois ele também ouviu o som do grito de morte.
“O lichkin está voltando.” O urro distante, mas ainda ameaçador
o suficiente para dilacerar um homem, aproximava-se do oeste. Os
mortos abaixo de nós haviam triplicado em número desde que ele
partira, e chegavam mais a cada minuto. Eles tinham um medo
rudimentar de fogo, suficiente para fazê-los se afastarem, mas, com
tão pouco espaço disponível, os que estavam mais próximos dos
prédios em chamas começaram a soltar fumaça. Vi uma moça de
vestido azul – filha de um comerciante, talvez – e sem marcas
visíveis de violência no corpo se acender como uma tocha ao lado
de uma taberna em chamas. Uma vez eu tomei cerveja ali, mas não
conseguia me lembrar do nome do lugar. Seu cabelo se acendeu
em um halo de fogo e ela começou a subir nas costas de outros
cadáveres para escapar do calor.
Conseguir uma contagem dos mortos à nossa frente ficou difícil,
com a fumaça e a densidade dos prédios escondendo muitas ruas
da vista, mas ninguém que estava ali comigo discordava que
houvesse menos de dez mil mortos diante dos portões de
Vermelhão. O barulho chegou mais perto, e a velocidade de sua
aproximação era aterrorizante.
“Lá vem! Às armas! Sua cidade está com vocês!” Gritei as
palavras acima do uivo crescente, enquanto em algum lugar no
escuro, em meio ao inferno cada vez maior, o lichkin corria em
nossa direção.
O lichkin atravessou aqueles milhares tão rápido quanto um
cavalo galopante, indo em direção aos portões. Inclinei-me para fora
o máximo que tive coragem para acompanhar seu progresso, mas
ele desapareceu da minha vista embaixo da guarita, no espaço
imediatamente em frente às portas de Vermelhão.
Quando ele alcançou os portões, os mortos ali enlouqueceram,
batendo e berrando para as tábuas. Imaginei punhos batendo na
madeira com tanta força que seus ossos se estilhaçavam. As
batidas diminuíram e os gritos enlouquecedores se intensificaram
quando a grande massa de cadáveres atrás deles pressionou-se
para frente, aumentando lentamente a pressão. Os portões
começaram a ranger, a princípio como uma casa se ajeitando à
noite, e depois mais alto, com uma série de respostas agudas das
tábuas lutando umas contra as outras. Por baixo disso, um grunhido
grave das barras de bloqueio aguentando o esforço, três grandes
núcleos de ferro no centro de carvalhos milenares. Um barulho
agudo em algum lugar, quando um rebite saltou de seu local.
“Mandem homens lá para baixo! Empurrem de volta.” Minha fé
absoluta na força dos portões durou menos de um minuto. “Rápido,
caramba! Quero trezentos homens lá embaixo agora!” Eu mesmo
queria estar lá embaixo, metendo os ombros nos portões, mas
precisava ver.
Inclinei-me sobre as ameias para olhar para o alto da guarita,
pouco abaixo de nós. Os soldados lá tinham dois grandes caldeirões
de óleo colocados sobre carvões acesos para ferver.
Barras chegou ao meu lado. “Acha que mortos vão sequer
perceber óleo fervente?” Uma mistura de pessimismo e esperança
na voz dele. Eu a conhecia bem das longas noites na mesa de
dados, onde ele perdeu uma fortuna, e na mesa de cartas, onde ele
a recuperou... principalmente de mim.
“Pode incomodá-los... um pouco.” Encolhi os ombros. “O
importante é que os homens tenham algo para fazer.” Em momentos
assim, é melhor ter algo para fazer do que deixar o medo enfiar as
garras em você.
“Óleo em chamas, isso sim seria alguma coisa!” disse Barras.
“Isso eles perceberiam!”
“Só um idiota começa um incêndio aos pés de seus portões,
Barras,” disse Darin, unindo-se a nós.
É raro eu apoiar um irmão acima de um amigo, mas ele estava
certo. “Esse óleo não queima, é um óleo mineral de Attar. Dá para
apagar uma fogueira com ele. Custa caríssimo, mas é melhor
despejar dinheiro no inimigo do que algo com que eles possam
incendiar seus portões!”
Darin ergueu uma sobrancelha. “Está sabendo das coisas,
irmãozi...”
“Eu sou a porra do marechal, Darin.”
“Está sabendo das coisas, marechalzinho.” Ele sorriu.
“Sou um bom aluno quando se trata de segurança.” Darin
nunca acreditou na história do herói da Passagem Aral e eu não
sentia necessidade de fingir para o bem dele.
Os homens ao lado dos caldeirões agora estavam olhando para
mim, ao perceberem que tinham plateia.
“Derramem!” gritei. Não tinha visto sinal de necromantes, mas
sempre havia uma chance de estarem misturados aos mortos,
escondidos à vista de todos. Edris Dean me ensinara que não eram
homens comuns, mas mesmo assim, um banho de óleo fervente
certamente estragaria com o dia deles.
Ao meu comando, os homens começaram a destapar as
troneiras e preparar os suportes que virariam os caldeirões.
O óleo desceu as troneiras com um chiado gratificante, mas
não houve sequer uma mudança de tom nos gritos lá de baixo.
“Droga.” Um pouco desanimado, voltei para observar da frente
da torre.
Durante dez minutos, os mortos uivantes atiraram seu peso
contra o Portão Appan, e cada estalo e gemido da madeira revirava
minhas entranhas geladas. O lichkin mexia-se para frente e para
trás, entrando e saindo da guarita, mandando ondas de fúria
crescente de encontro às portas. Ouvi um estilhaço e mordi o lábio
para não adicionar minha própria nota de desespero ao conjunto.
“O fogo está realmente tomando conta.” Darin se engasgou
com a fumaça, como se quisesse provar que tinha razão. Eu estava
com o olhar fixo nas costas dos mortos se empurrando, mas agora,
olhando novamente para a cidade externa, vi que Darin estava
certo. A parte de cima de várias casas próximas à muralha havia
desabado, fazendo enormes colunas de fogo subir acima dos
muros, jogando fagulhas e cinzas pelos ares. Por toda a cidade
externa, o fogo saltava de telhado em telhado, perseguindo cercas,
lambendo portas. Em toda a parte, os mortos estavam
chamuscados e com bolhas, alguns com os cabelos e as roupas
queimados. Dava para ver os restos de outros, curvados no meio
das chamas que se alastravam. Por um momento pensei em papai
em sua pira.
Tossi e pressionei as mãos nos olhos ardendo. “Estão se
movendo!”
O lichkin atravessou as fileiras de cadáveres, abandonando o
ataque aos portões. O fogo havia retirado o luxo do tempo de nosso
inimigo. Um general talvez tivesse batido em retirada para as
fazendas ao redor e esperado nos olivais até retornar no dia
seguinte, mas supus que mortos e espíritos eram mais elementares
do que estratégicos. O que eu sabia do Rei Morto em si, e era bem
pouco, o retratava não como um planejador, mas como uma força
destruidora involuntariamente conduzida pelas maquinações da
Dama Azul.
Os mortos não se retiraram e o lichkin não tentou escapar das
chamas – apenas se afastou de nós e foi ao redor das muralhas,
como se procurasse uma fraqueza.
Duzentos metros ao leste, os mortos, que antes estavam de
vigília diante da muralha, agora se avivaram e começaram a
arranhar a base de uma torre que ficava tão próxima que um
homem no alto dela poderia atirar uma lança nos vigias e ter uma
boa chance de acertar um deles.
Eu havia visitado a mesma estrutura dias antes – uma torre de
água que abastecia as casas bem equipadas de vários
comerciantes que tinham condições de morar dentro dos limites da
cidade, porém em mansões consideravelmente menos imponentes.
A torre também fornecia água para uma próspera ferraria que
atendia às necessidades de vários fabricantes de rodas, de carroças
e prestadores de serviços com pontos na Via Appan, assim que ela
saía dos portões.
Estranhei o fato de vovó ter permitido a torre tão perto de suas
muralhas, apesar de suas repetidas ameaças de arrasar os
subúrbios à menor insinuação de guerra. Acabou que a licença foi
concedida baseada no fato de que a estrutura foi concebida para
cair. Fortes pilares de madeira sustentavam a parede da torre e,
sem eles, o troço desabaria. Em vez de oferecer uma plataforma da
qual arqueiros pudessem esvaziar nossas muralhas, a torre era uma
armadilha mortal. Mirar nos pilares com flechas de ferro, atiradas de
um escorpião, derrubaria a torre, matando todos os inimigos nela e
se possível vários outros por perto.
“Que diabos...” A torre desabou antes que eu pudesse terminar.
Mais de vinte mortos foram estraçalhados pela avalanche de
alvenaria e madeira.
Outros mortos avivados se aproximaram dos escombros, agora
envoltos em poeira, além de fumaça. Em instantes eles estavam se
mexendo, transportando as pedras quebradas até a muralha,
homens mortos carregando vigas grossas e estilhaçadas, crianças
mortas levando pedaços menores. Outros vieram correndo de ruas
próximas empurrando carrinhos, carroças, portas arrancadas das
casas, jogando tudo em uma pilha desordenada diante da muralha.
“Estão construindo uma rampa!” Darin se agarrou às ameias.
“Precisamos ir até lá.”
O parapeito daquele trecho, como todos os outros, estava bem
vigiado, embora pelos velhos da guarda da muralha, e outros mais
estavam chegando àquele ponto pelos dois lados. “Precisamos
detê-los, isso sim, e não ficar esperando que eles façam isso.”
Comecei a sair em direção aos degraus da torre, mas acabei me
virando para as ameias que davam para os portões. Os caldeirões
vazios estavam ao lado das troneiras, fumegando de leve.
“Encham estes com óleo de fogo!” Acenei para os homens do
escorpião, que havia sido manobrado para a frente de nossa torre.
“Levem-no até eles.” Eles tinham pequenos barris do material e
tinas de alcatrão, tudo usado para detonar os subúrbios. “Vocês!
Todos vocês.” Apontei para a guarda da muralha ao fundo. “Corram
para as outras torres e peguem o óleo de fogo e alcatrão deles.”
“Estão jogando pedras neles, Jal!” gritou Barras do outro lado
da torre, olhando para mim, com o visor levantado e o rosto corado.
“Isso deve resolver!”
Corri até lá para ver. Os guardas estavam jogando pedras de
cima da muralha, algumas do tamanho da cabeça de um homem, a
maioria bem maior. Homens com carrinhos se apressavam com
mais munição das reservas ao longo do parapeito. Lá embaixo, a
carnificina reinava, as cabeças dos mortos se estraçalhando,
molhadas, conforme as pedras os atingiam. Outros, envolvidos na
atividade de colocar seus pedaços de alvenaria na pilha, caíam
despedaçados quando as pedras batiam em suas costas.
“Está dando certo!” disse capitão Renprow ao meu lado.
“Sim, mas não para nós,” falei, estreitando os olhos para a
pilha, tentando atravessar a névoa de poeira e fumaça. Nenhum dos
homens à minha volta compreendia os mortos e seu rei como eu.
Virei-me para Renprow. “Detenha-os! O mais rápido possível. Só
estão ajudando a construir a rampa deles.” Aquela chuva de pedras
e os corpos esmagados criados por ela estavam se amontoando na
base da muralha. Novos mortos simplesmente substituíam os
antigos, descarregando a alvenaria e a madeira em cima dos restos
que ainda se mexiam a seus pés. “Precisamos reforçar aquela área.
Mandem os soldados de Martus para lá.” Não falei em voz alta, mas
não levava muita fé na guarda da muralha. A idade pode deixar um
homem um pouco mais sábio, mas deixa o braço da espada bem
mais lento. Nunca pareceu provável que Vermelhão fosse atacada,
certamente não sem avisos consideráveis. Transformar a guarda da
muralha em um plano de aposentadoria para velhos soldados
parecia uma ideia sensata na época. Agora nem tanto.
As mensagens levaram uma eternidade para serem enviadas. A
primeira carga de óleo de fogo só foi despejada no primeiro
caldeirão após vários minutos. Com os mortos uivando e a rampa
crescendo, pareceu uma eternidade. Só para fazer a guarda da
muralha parar de atirar pedras nos adversários levou minutos,
quando segundos já seriam demais.
“Eles jamais chegarão ao topo,” disse Darin. Fazia sentido. A
muralha parecia baixa, do alto de uma torre de dezoito metros, mas
ainda ficava nove metros acima da cidade externa, e a rampa dos
mortos mal chegava a três metros, talvez com o dobro de largura. O
que acontece em uma pilha é que, quanto mais alta, mais
lentamente ela cresce, porque se espalha e precisa de dez vezes
mais esforço e materiais para duplicar em altura. “Jamais.” Mesmo
assim, a afirmação de Darin parecia mais uma oração.
Durante dez minutos nós ficamos observando-os construir,
enquanto o fogo fora da rampa aumentou até o barulho das chamas
ficar mais alto que a fúria dos mortos. Talvez os necromantes nos
observassem pela noite, de alguma maneira enfrentando o incêndio,
mas eu não vi nada além de cadáveres e mais cadáveres, todos
concentrados na direção da muralha e do monte de pedras e corpos
quebrados. Avistei o lichkin de tempo em tempo, e me arrependi até
mesmo de procurar por ele. Uma vez ele virou aquela cabeça
estreita e sem olhos para a nossa torre, e o horror frio de seu olhar
se abateu sobre mim como um grande bloco de gelo. Recuei
rapidamente, depois me agachei, quase me atirei e saí da vista,
abaixo do nível do muro da torre.
“Marechal?” Renprow veio atrás, abaixando para me pegar.
“Vamos lá, Jal,” disse Barras, agarrando meu braço para me
colocar de pé. “Não podemos deixar nosso glorioso líder desmaiar.
É ruim para o moral.”
“Deixei cair uma coisa.” Fingi enfiar alguma coisa escondida na
mão em um bolso debaixo da cota de malha que estava usando.
Não houve tempo de pegar minha armadura no palácio, e assim o
Marechal de Vermelhão estava com uma malha dos estoques da
guarita que mal lhe servia. “Onde está o maldito óleo? Os caldeirões
ainda não estão cheios?”
“Alguma coisa está chegando!” disse um arqueiro à frente da
torre.
“Alguma coisa grande!” disse o homem ao lado dele, segurando
sua lança como se fosse a única coisa que o mantivesse de pé.
Renprow soltou meu braço e se meteu no meio para ver.
“Muitos deles!” Um homem grande e barbudo, recuando do
muro de uma maneira que se assemelhava muito a uma retirada.
“Marechal!” chamou Renprow.
O medo quase me empurrou de volta ao chão, mas caminhei
para frente e me juntei a ele, apertando os olhos contra a fumaça
ardida. Os vultos que se aproximavam, escuros em contraste com
as chamas dos dois lados da Via Appan, eram do tipo que davam
pesadelos. Tinham alguma coisa de aranha, mas também
lembravam uma mão, ou talvez um cachorro mutilado, oco e
andando com os cotocos das patas. Dava para identificar figuras de
homens atrás deles, e naquele momento percebi que cada um dos
seis monstros era maior do que dois cavalos de carga juntos.
“Mandem aquele escorpião para frente outra vez!” Eu me virei.
“Agora, porra! E deem sinal para as outras torres abrirem fogo.
Arqueiros nos homens atrás! Cada homem com um arco.” Rezei
para que aqueles finalmente fossem os necromantes, e que enchê-
los de flechas fosse derrubá-los. “E, pelo amor de Deus, levem os
caldeirões até a rampa. Não quero nem saber se estão cheios!”
Os homens ao meu redor começaram a atirar flechas para o
céu. Se estavam acertando ou não, não dava para saber, até que
finalmente um dos homens mais ao fundo da coluna caiu,
segurando o rosto.
“Mirem nos homens! Mirem nos homens! São necromantes!”
O primeiro tiro do escorpião passou longe. Empalou três
mortos-vivos cambaleando bem na frente da primeira
monstruosidade, atravessando e saindo pela estrada atrás deles. Os
três se viraram preguiçosamente, girando uma vez, duas, e caindo.
Todos já tinham se levantado quando o próximo tiro foi disparado.
Os monstros avançaram e a fumaça soprou de lado por um instante,
deixando o brilho do fogo revelá-los. Cada um deles tinha desenho
semelhante, como uma mão sem os dois dedos do meio, andando
com três pernas, que pareciam feitas com os fêmures de seis
homens, brilhando com resquícios de músculos e unidos por metros
de tendões. Várias hastes de flecha saltavam dos membros e costas
do primeiro, sem lhe causar nenhuma inconveniência óbvia. A carne
vermelha envolvia o corpo como heras grossas, e uma massa
branca e glutinosa de gordura obscurecia o vértice onde os três
membros se encontravam.
“Jesus.” Barras ainda estava com a espada para fora por algum
motivo, mas agora com o braço prostrado do lado.
Eu sabia que necromantes atacavam túmulos, praticando as
artes que faziam os mortos se levantarem, cheios de violência e
fome. Este era um horror novo. Aqui eles tinham se tornado artistas
do corpo, esculpindo cadáveres em formas novas e grotescas.
Aquilo me lembrou os desnascidos, tomando formas horrendas de
qualquer carniça que estivesse ao alcance. O único pequeno
consolo estava no fato de que, enquanto as criações dos
desnascidos tinham velocidade e coordenação mortais, as coisas
que os necromantes construíram se moviam lentamente e sem
elegância. Eram tão esquisitos, na verdade, que era difícil perceber
como poderiam ser uma ameaça. O primeiro deles parecia que teria
de ser separado por três homens com grandes espadas, antes de
conseguir formar um ataque. Eu me virei. “Atirem neles.”
Arqueiros inclinaram seus arcos e soltaram mais flechas.
Quatro homens trabalhavam enrolando a corda do escorpião,
puxando o grande braço da besta para trás, enquanto outro
esperava com a lança a postos para carregá-la. Os uivos da rampa
chegaram a novos patamares e agora os mortos se atiravam para
frente freneticamente, trançando os braços, enfiando os dentes uns
nos outros, segurando firme enquanto novos cadáveres subiam em
cima deles. Já havia visto algo parecido antes, quando formigas
formam uma ponte sobre um minúsculo riacho, construindo aquela
extensão com seus próprios corpos, centenas delas bem juntas,
enquanto outras atravessam.
“Cadê o óleo de fogo?” gritou Darin, olhando para fora da parte
de trás da torre.
Corri até ele, e assim redescobri o quanto era difícil correr para
qualquer lugar de cota de malha. Dois times de soldados haviam
chegado aos degraus da muralha, cada um carregando um
caldeirão pendurado em uma haste resistente de madeira. “Andem
logo!” gritei, embora dificilmente eles poderiam ouvir qualquer coisa
além dos gritos dos mortos e da voz do fogo.
Ao retornar para a frente da torre, vi que os homens que
impulsionavam os monstros haviam desaparecido, embora mais um
corpo estivesse caído na estrada, pisoteado por outros mortos que
chegaram. Os próprios monstros haviam se desviado na direção da
rampa e se moviam com mais velocidade, sacudindo e balançando
pelo caminho.
Os mortos na rampa agora chegavam a dois metros do topo do
muro, e a guarda lá havia voltado a atirar pedras neles. Quase nada
os prendia à muralha – aqui e ali dedos mortos se enfiavam em
frestas entre as pedras, onde o cimento havia se soltado,
despedaçado por alguma geada forte no inverno e que ficara sem
manutenção. Havia partes da muralha em pior estado, por onde
seria mais fácil subir, mas os mortos se reuniram ali por causa do
ataque ao portão e, com a cidade externa em chamas, qualquer
reorganização do ataque provavelmente cozinharia metade deles.
Eu tinha mandado homens trabalharem em partes da muralha à
nossa volta na semana anterior. Se tivessem feito um trabalho
melhor, as tentativas de escalar o muro estariam acontecendo bem
mais lentamente. Por outro lado, se não tivesse lhes incumbido
dessa tarefa, já teríamos sido invadidos a esta altura.
“Não vamos aguentar!” Barras apontou para onde outros
cadáveres subiam pela torre de corpos. Um guarda da muralha se
debruçou para meter sua lança para baixo. Ele deu uma estocada
em seu alvo, uma velha de vestido sujo de fuligem, os cabelos
brancos e desgrenhados, com o braço esquerdo chamuscado pelo
fogo. A lança a atingiu no pescoço e ela a agarrou, caindo para trás.
O guarda caiu com ela, surpreso demais para soltar sua arma.
“É uma corrida,” cochichou Darin ao meu lado. Os homens dos
caldeirões haviam chegado ao parapeito e precisavam navegar por
cinquenta metros no topo lotado da muralha. Os monstros estavam
se aproximando da rampa, talvez faltando o dobro dessa distância,
movendo-se mais rápido e com mais confiança, agora que se
aproximaram da órbita do lichkin e também se avivaram por sua
presença.
Vários escorpiões dispararam em sucessão rápida. O monstro
da frente, já furado por uma lança, agora recebeu mais duas, uma
atravessando uma perna e estilhaçando ossos. Ele caiu, debatendo-
se, mandando mortos-vivos pelos ares com os chutes
descontrolados de suas pernas. Sem conseguir se levantar,
começou a se arrastar em direção à rampa. Outro monstro perdeu o
equilíbrio quando foi atingido por uma flecha de escorpião e saiu
descontrolado, chocando-se em um estábulo em chamas e
derrubando a estrutura enfraquecida ao redor.
Examinei aquela cena, tentando extrair algum significado
daquele caos. Alguma coisa me chamou a atenção. Não era um
monstro, nem um lichkin, nem as chamas rugindo entre as vigas.
Um único vulto entre os milhares. Às vezes não é a maneira como
uma pessoa se mexe que a revela, e sim como fica imóvel. A única
coisa que atraiu meu olhar foi a corrente dos mortos passando em
volta do ponto onde ele estava. Fora isso, nada o destacava.
Fumaça e cinzas o manchavam como tantos outros, colorindo sua
túnica e calça de um cinza sujo. Sangue antigo cobria metade de
seu rosto e descia por seu pescoço em filetes escuros. Ambas as
mãos estavam vermelhas até os cotovelos. Ele segurava o pescoço
em um ângulo estranho, com uma cicatriz escura por cima. A
princípio pensei que a cicatriz pudesse ser do golpe que o matou, e
que a faixa escura sobre a cabeça grisalha fosse apenas cinzas da
madeira queimada. Em seguida ele levantou os olhos para a torre,
para mim, e eu o reconheci.
“Edris Dean!” gritei, embora ninguém à minha volta soubesse
seu nome. “Atirem nele! Atirem naquele desgraçado, bem ali!”
Apontei, peguei um arco do homem atrás de mim e pedi uma flecha,
para que pudesse obedecer à minha própria ordem. “Necromante!”
gritei, e isso os fez se mexerem.
Onde minha flecha caiu, eu não fazia ideia. Duvido muito que
tivesse emulado a façanha de minha avó em Ameroth, mas ela
estava mirando em sua irmã e nós, os Kendeth, nos saíamos bem
melhor em circunstâncias assim. Das mais de uma dúzia de flechas
atiradas em Edris, duas o atingiram e algumas outras pegaram em
cadáveres andando por ali, mal fazendo-os diminuir o passo. Uma
das duas que o atingiu o pegou no ombro; a outra, e vou levar o
crédito por ela, haja o que houver, fincou em seu peito. Por ter visto
Edris Dean escapar da Torre das Fraudes em Umbertide, apesar de
ter cortes tão profundos que só os ossos do pescoço impediam sua
decapitação, em vez de comemorar eu comecei a ordenar uma
segunda saraivada. Antes de terminar de gritar o comando, Edris se
estilhaçou, como se fosse um reflexo em um painel de vidro. Seus
pedaços sumiram de vista, perdidos na maré de cadáveres
ambulantes.
“Inferno.” Empurrei o arco que roubara de volta ao dono.
“O que... foi aquilo?” perguntou Barras.
“Um necromante,” falei.
“Nós o matamos?” Darin usou o ‘nós’ da realeza: ele não tinha
arco, mas provavelmente teria chegado mais perto do alvo que eu,
se tivesse tentado.
“Eu não apostaria nisso.” Já tinha visto muita mágica de
espelho para achar que estava destruído. Apenas imaginei quantos
outros reflexos ele poderia ter espalhado entre nossos inimigos e
pensei em como poderia evitar encontrar qualquer um deles. A mão
do Rei Morto podia estar por trás desse exército de cadáveres, e ele
podia ter angariado necromantes em sua causa, mas pelo menos
um tinha uma mão azul em seu ombro. O Rei Morto estava
gastando seu poder aqui, caçando a chave de Loki para poder
entrar no mundo, mas a Dama Azul sem dúvida tinha objetivos mais
prementes – com vovó e sua Irmã Silenciosa indo atrás do reduto da
Dama Azul na Slóvia, talvez ela quisesse desviar Alica Kendeth de
seu caminho com um ataque direto ao centro de seu reino. Se esse
fosse o caso, então ela claramente não conhecia minha avó muito
bem. A Rainha Vermelha sacrificaria a todos nós para ganhar essa
guerra, à noite se deitaria na cama e dormiria tranquilamente.
“Carreguem mais rápido! Carreguem mais rápido!” Os
comandos apavorados do capitão Renprow me tiraram de meus
próprios pensamentos apavorados. Ele direcionou o escorpião para
a base da rampa, agora invisível sob o peso dos cidadãos mortos
aglomerados nela.
Dava para ver o pavor nos rostos dos soldados em cima da
muralha, lutando para conseguir colocar os dois caldeirões pesados
no lugar. Nenhum homem sozinho seria capaz de levantá-los e, com
muitos galões de óleo de fogo e alcatrão dentro, os quatro homens
que cabiam em volta de cada caldeirão tinham dificuldade de
posicioná-los.
Logo abaixo dos guardas que lutavam com o peso dos
caldeirões, um mar de mortos-vivos se agitava, gritando, sendo
levado até a rampa de pedra quebrada, madeira quebrada, corpos
quebrados. O andaime de cadáveres chegou a um metro do topo da
muralha, com centenas na construção e dezenas de outros subindo,
berrando sua fome terrível. E atrás daquele andaime, atravessando
a horda de mortos, esmagando alguns, derrubando outros, vinham
os monstros, os trípodes, brutos, ensanguentados, correndo como
aranhas. E no entanto a guarda da muralha se manteve firme.
Aqueles velhos de quem eu duvidara ficaram em suas posições,
respeitando seu juramento e sua obrigação, enquanto eu teria
fugido.
“Isso aí!” gritaram Darin, Barras e todos os homens à minha
volta quando duas tochas foram colocadas nas bocas dos
caldeirões e eles começaram a se inclinar.
Dois jatos de fogo começaram a descer pela pirâmide de
mortos achatada contra a muralha. Todos os guardas
comemoraram. No entanto, os mortos abaixo se mantiveram firmes,
mesmo em chamas, com a pele murchando no calor, os cabelos e
as roupas queimando, a pele chiando.
A primeira monstruosidade de três pernas começou a escalada,
ancorando as pernas na torre de cadáveres em chamas e subindo
na direção do muro. Uma onda de óleo ardente passou por cima
dele, mas ainda assim o monstro seguiu em frente, com outros
mortos subindo atrás. Os escorpiões da torre não podiam mais atirar
nele, por estar tão perto dos guardas, e, com um último impulso, ele
enganchou duas pernas sobre a beira da muralha. Mortos em
chamas subiram em suas costas, uivando, e se atiraram nas
equipes dos caldeirões, que recuaram em pânico. O resto do óleo
de fogo se derramou dos caldeirões soltos, ateando fogo ao
parapeito.
“Mandem mais homens lá para baixo! Agora!” Balancei minha
espada desnecessariamente. “Anunciem a invasão!”
Trompetes gritaram, um alarme que nenhuma pessoa viva de
Vermelhão jamais ouvira, exceto em treinamento. A cidade havia
sido invadida.
15

Durante meia hora, parecia que conseguiríamos segurar as forças


do Rei Morto em cima da muralha e talvez até fazê-las recuar,
depois que os soldados do Sétimo chegassem ao combate e
socorressem os velhos soldados da guarda. No parapeito estreito,
os mortos só podiam avançar na guarda da muralha dois ou três por
vez. Eles se atiravam para frente com uma velocidade espantosa,
aceitando as estocadas das espadas e lanças para se aproximarem
de seus adversários e apertar as mãos nos pescoços dos homens.
“Esses mortos sempre querem estrangular. Qual o sentido
disso?” Na minha opinião, não era uma maneira muito eficiente de
matar alguém, principalmente no meio de uma batalha intensa.
“Que outras opções eles têm?” perguntou Darin.
“Dedos nos olhos? Cabeça esmagada na parede?” Eu havia
passado tempo demais com Snorri.
“E tem aquilo também!” Barras apontou para outra dupla
lutando. A agressora era uma moça queimada de óleo de fogo e
ainda fumegando, agora com uma lança atravessada na barriga. Ela
agarrou o guarda que a lanceara e os dois despencaram da
passarela, uma queda de oito metros, de cabeça nos
paralelepípedos abaixo.
Observamos da torre enquanto a luta avançava. Considerando
a estreiteza da frente de batalha, não havia muito mais a fazer.
Naqueles primeiros momentos, a invasão parecia um desastre total,
mas dez minutos depois os mortos já tinham empurrado a guarda da
muralha talvez uns vinte metros de cada lado, pela perda de vários
do bando deles.
“Eles os estrangulam porque é mais fácil fazer um cadáver
intacto se levantar novamente,” disse Darin. Nisso, lá no parapeito,
duas mãos enluvadas esticaram-se sobre o muro e um guarda se
levantou, com o pescoço pálido e o grito mortal irrompendo de seus
pulmões.
“Eles não têm inteligência nenhuma, no entanto,” disse Barras.
“Olhem. Metade deles simplesmente cai direto do outro lado, logo
após subirem na muralha. Deve estar uma bagunça dos infernos lá
embaixo.”
Observei por um momento. Ele estava certo. O fluxo de
cadáveres, após escalar aquele andaime escurecido e fumegante
de mortos, atirava-se sobre a muralha como se esperassem
imediatamente encontrar alguém com quem lutar. Pelo menos
metade deles não conseguia se segurar nas pedras oleosas,
acabava chegando à beira do parapeito e caindo para sua desgraça.
“Merda!” Meu sangue gelou. “Sigam-me!” Teria demorado
demais para explicar ou emitir ordens. Peguei uma das tochas de
óleo ao lado do escorpião e desci correndo a escada espiral que
atravessava a torre. “Sigam, malditos!”
Centenas de cidadãos assistiam das ruas detrás dos portões, a
mais ou menos cinquenta metros dali, aglomerados em grupos
nervosos. Rapazes, na maioria, portando lanças, facas de
açougueiro, uma ou outra espada, qualquer coisa com que
pudessem se armar, mas havia homens mais velhos também,
meninos e até moças e mães grisalhas, todos atraídos pela ideia do
espetáculo. Dizem que as pessoas estão morrendo de vontade de
serem entretidas, e ali estava uma plateia que parecia pronta para
fazer exatamente isso. Vendedores ambulantes passavam entre
eles, levando lanternas para exibir seus produtos, salgados e
salsichas, doces e maçãs ácidas. Duvido que tivessem muitos
fregueses, com aquele fedor de morte, a fumaça que pairava e os
uivos mortais de revirar o estômago. O fato de as pessoas ainda
estarem ali era a confirmação da fé que tinham em nossas
muralhas, mas se algum deles realmente soubesse o que
aguardava do outro lado, eles estariam correndo para casa e
gritando pela misericórdia de Deus.
“Que foi?” Darin me alcançou na base da torre.
Olhei para trás para conferir se não estávamos sozinhos.
Renprow, Barras e agora um grande fluxo de guardas surgiram atrás
de nós, com mais dois trazendo tochas. “Todos aqueles mortos
caindo...” falei. “Está ouvindo-os aterrissar?” Abri caminho pela
completa escuridão ao longo da base da muralha e depois diminuí o
ritmo para os guardas nos ultrapassarem. Não tinha a menor
intenção de ficar na fileira da frente. “Renprow! Mande mais homens
aqui para baixo. E mande buscar os reforços de Martus.” Eu tinha
certeza de já ter mandado que se apresentassem na muralha. “E
onde está a guarda do palácio, cacete?”
“Mas por que estamos aqui embaixo?” repetiu Darin.
“Os mortos da muralha. Consegue ouvi-los batendo no chão?”
perguntei, com os olhos rondando a escuridão, desejando que
Aslaug estivesse ali para me ajudar.
“Não consigo ouvir nada além de você gritando,” disse Barras,
fazendo barulho com sua armadura luxuosa de torneio.
Estava lá, porém, por baixo do barulho dos homens lutando e
morrendo, por baixo dos urros mortais, um baque seco, sem ritmo,
como os primeiros pingos pesados de chuva pressagiando a
tempestade.
“Por que está assustado?” Darin segurou sua enorme espada à
frente, refletindo a luz da tocha. “É uma queda de quase dez metros
no chão duro. Isso é mais que tornozelos quebrados, são canelas
quebradas, joelhos, quadris, tudo. Não me importo que não morram,
mas eles não vão perseguir ninguém.” Ele pisou lentamente, apesar
de suas palavras, como se não acreditasse que o calçamento não
fosse morder.
“Eram dez metros para a primeira dúzia. Já vimos mais de cem
cair. A essa altura eles estão caindo sobre uma pilha macia de
corpos quebrados.”
Agora dava para ouvir com clareza, uma batida rápida e
irregular, de corpo se chocando contra corpo, um batimento errático
na escuridão atrás da muralha.
A luz da tocha mostrou vultos à frente. Muitos vultos, parados
ali na escuridão total, sem falar. Mais alguns passos para perto e as
sombras mostraram outros mais. Eles levantaram as cabeças ao
mesmo tempo, os olhos refletindo as chamas e devolvendo-as.
Então atacaram. E começaram os gritos.

De perto, a ferocidade dos mortos reanimados era uma coisa


chocante. Sua completa fúria e falta de preocupação com pontas
afiadas fazia a defesa parecer uma futilidade, um atraso
momentâneo do inevitável. A primeira fileira de guardas caiu em
instantes, levados ao chão, com mãos mortas fechando-se em seus
pescoços. A segunda fileira desabou em pouco tempo, com outros
mortos surgindo pelas laterais de meu bando de uns trinta homens,
o que me deixou cercado e atacado por um gordo esfarrapado que
parecia ter passado duas semanas no túmulo, antes de ser
ressuscitado para se unir às festividades do dia. Nem tive tempo de
reclamar que o enterro dele era uma contravenção direta das ordens
da Rainha Vermelha, para não dizer das minhas como marechal. Eu
mal tive tempo de gritar.
O negócio de mortos-vivos que não podem morrer novamente,
e que precisam ser desmembrados se quiser detê-los, é que tudo é
ótimo enquanto você relembra essa informação. Mas quando um
desses desgraçados pula em você gritando com uma fúria terrível...
você quer atravessá-los com uma arma. É instinto. Deviam colocar
isso na minha lápide. ‘Morto por instinto.’
Desafiando a razão, contudo, aquele apetite deixou os olhos do
homem-cadáver no momento em que o cabo de minha espada
encontrou seu peito, acima daquele coração corrompido e parado. O
peso dele me atirou para os guardas atrás, mas com a ajuda deles
eu me mantive de pé e consegui puxar minha lâmina de volta,
enquanto meu inimigo – agora um simples cadáver, do tipo que fica
parado e espera virar esqueleto – caiu de lado. A próxima coisa
morta veio para cima de mim no mesmo instante. Repetindo meu
erro, cortei o pescoço dele, e, repetindo o milagre, ele caiu
apertando o sangue frio que brotou do corte em sua garganta. A
espada de Edris Dean parecia vibrar na minha mão como se
estivesse viva. Arrisquei uma olhadela para a lâmina quando a enfiei
pela boca aberta da próxima morta-viva da fila que queria me matar,
uma jovem de porte delicado que talvez tivesse sido bonita, debaixo
de toda aquela fuligem, sangue e apetite assassino. Por toda a
extensão de minha espada, o sangue de pessoas mortas se
agarrava aos escritos gravados no aço. A arma de um necromante –
a ferramenta de seu ofício – aparentemente tão hábil em cortar as
cordas que animam um cadáver quanto as que fazem uma pessoa
viva atravessar a dança dos dias.
“Cuidado!”
Não tive tempo de contemplar minha descoberta. Um homem
que havia morrido no auge atlético de sua vida se atirou para cima
de mim, prendendo minha espada, e me derrubou ao chão. Nunca
fui atacado por um cachorro, mas imagino que a experiência seja
igualmente apavorante. O som dos urros daquela coisa preencheu
meu mundo. Sua força superava totalmente a minha e, se eu não
estivesse com a cota de malha, ele estaria arrancando a carne de
meus ossos. Outras mãos me agarraram e me senti sendo
arrastado pelo chão, embora tivesse perdido o rumo e não soubesse
em que direção. Eu quase esperei que fosse para a massa dos
mortos, onde pelo menos poderia esperar uma morte rápida.
No instante seguinte, descobri qual é a sensação de estar na
mesa do açougueiro. Espadas subiam e desciam acima de mim.
Ouvi e senti o impacto das lâminas na carne. Lutei enquanto o
sangue frio jorrava em cima de mim, e, após o que pareceu uma
eternidade, mãos fortes me puseram de pé.
“Marechal!” disse Renprow, segurando minha cabeça e me
examinando à procura de ferimentos, enquanto meu agressor, agora
desmembrado, contorcia-se no chão diante de nós. Os sons da
batalha rugiam ali perto, não o choque de aço no aço ou a vibração
das cordas dos arcos, apenas os gritos, tanto dos vivos quanto dos
mortos, e o barulho maçante de carne sendo cortada. “Marechal?
Está meu ouvindo?”
“Que foi?” Olhei em volta. Homens da guarda se amontoavam
por todos os lados, com reservas trazidas pela longa estrada circular
que o parapeito da muralha formava. Acima de nós, a guerra de
exaustão ainda estava sendo travada, com os mortos avançando
lentamente do ponto onde subiam na muralha, mas a verdadeira
batalha estava à minha frente. Mais mortos continuavam a ser
despejados da muralha em uma chuva constante, aterrissando em
cima daqueles que estavam feridos demais pela queda para
seguirem em frente. A queda provavelmente ainda seria capaz de
matar uma pessoa, mas não quebrava ossos suficientes para deter
o exército do Rei Morto, e agora os guardas recém-esganados
estavam enfrentando seus antigos colegas. “Onde estão nossas
reservas? Cacete! Precisamos do Sétimo! Precisamos da guarda do
palácio!”
Deixei Renprow me conduzir de volta entre as fileiras. Nossa
presença havia atraído os mortos, mas não tínhamos homens
suficientes para contê-los. Um necromante poderia dar ordens para
que eles se espalhassem pela cidade. Talvez a única coisa que os
mantivesse ali fosse o desejo de seus mestres de verem os oficiais
e comandantes da defesa de Vermelhão mortos.
“Darin? Cadê Darin?” Eu me soltei de Renprow. “Cadê Barras?”
Renprow levantou os olhos para encarar os meus, sendo
empurrado quando outros guardas passaram correndo para entrar
na briga. Ele me prendeu com a intensidade sombria de seu olhar.
“Marechal, a única coisa que separa esta cidade do desastre é o
seu comando. É preciso se concentrar no que é mais importante...”
Segurei-o pelo pescoço no mesmo instante. “Onde está
meu irmão?” gritei na cara dele.
“Príncipe Darin caiu.” O capitão engasgou as palavras.
“Enquanto estava ajudando a arrastar você para longe.”
Deixei Renprow cair e me curvei para frente, dobrado pelo soco
no estômago – embora nada tivesse me atingido, além da verdade.
“Não.”
Existe uma fúria vermelha que corre bem no fundo de mim, tão
fundo que você não perceberia sequer uma insinuação, mesmo
estando em minha companhia mês após mês. Mesmo assim, ela
está lá. Edris Dean a deflagrou no dia que atravessou a espada na
barriga de minha mãe. Ele pegou a bravura daquele menino, sua
raiva, seu desespero, e com um golpe separou aquilo de mim,
amarrou bem apertado em algo novo, algo mais sombrio, mais
amargo, e mais letal. E, durante os anos de minha vida, vivi em uma
superfície, abaixo da qual essa fúria carmesim corria desconhecida
e insuspeita, roubada de mim, deixando para trás um homem
diferente.
“Não!” Essa velha fúria surgiu nesse momento, de suas
profundezas até a superfície, e eu a acolhi. Ao correr de volta pelas
fileiras de meus soldados, urrei boas-vindas a ela de uma maneira
que Snorri se orgulharia, como se saudasse uma velha amiga.
A espada de Edris Dean, a mesma lâmina que moldou minha
vida, mandava os mortos de volta ao túmulo com a mesma
facilidade que mandava os vivos em sua primeira visita. Havia uma
diferença crucial, porém: os mortos não tinham medo de homens
com espadas. Isso facilitava que eu os matasse. Corri entre eles,
golpeando com cada gota de habilidade que meus antigos mestres
espadachins enfiaram em mim por insistência de vovó, e cada lição
que as experiências indesejadas me ensinaram desde então. Os
homens de Vermelhão seguiram em formação estreita atrás de mim,
e a cada corte, a cada talho, eu berrava o nome de meu irmão.
Chutei cadáveres para longe de suas vítimas, fatiei os braços
presos aos pescoços dos homens, furei e matei até minha lâmina
começar a pesar como chumbo e meus braços me traírem, sem
forças.
Uma morta-viva me agarrou nas pernas, outra agarrou meu
braço esquerdo, tentando enterrar os dentes na dobra de meu
cotovelo. A cota de malha repeliu a mordida, e um lanceiro enterrou
sua arma na cabeça da mulher, embora sua força não tivesse
diminuído. Braços fortes me envolveram por trás e me puxaram de
volta entre meus soldados. Sem poder lutar com eles, desabei
naquele abraço. Por um momento, o mundo escureceu, a luz da
tocha e do lampião diminuiu e o estrondo de meu coração encheu
meus ouvidos.
“Darin?” Fiz a pergunta ofegante, entre grandes tomadas de
fôlego e com a garganta dolorida. “Barras?”
Pisquei e clareei a visão. Os homens ao meu redor eram do
Sétimo. Renprow estava de pé olhando para mim, fazendo eu
perceber que estava deitado. Eu havia desmaiado, mas não fazia
ideia de quanto tempo ficara inconsciente. Pisquei novamente.
Prima Serah estava ao lado do capitão Renprow, com o rosto sujo
de fuligem e emoldurado por um capuz justo de cota de malha. Seu
irmão Rotus estava atrás dela, com o corpo esguio de armadura e
sua expressão azeda de costume.
“Cadê meu irmão?” perguntei, me sentando e sentindo a dor
das costelas machucadas.
O capitão inclinou a cabeça, com o rosto dividido em três rugas
paralelas sobre a bochecha. Acompanhei o gesto e vi Darin,
sentado contra o Portão Appan, mais pálido do que jamais o vira.
“Barras?” indaguei ao me levantar.
“Quem?” Serah estendendo a mão para me ajudar.
Eu a afastei.
“Barras Jon, filho do embaixador de Vyene. Casado com Lisa
DeVeer,” disse Rotus, sempre cheio de fatos – mesmo no meio da
batalha.
“Minha espada!” gritei, até que a encontrei na bainha. “E onde
está Barras, cacete?”
Capitão Renprow sacudiu a cabeça. “Eu não o vi.”
Cheguei ao lado do meu irmão e me ajoelhei em frente ao
médico que o examinava.
“Como...” Minha voz se embargou, então tossi e tentei
novamente. “Como você está, irmão?”
Darin levantou a mão, como se fosse a coisa mais pesada, e a
colocou no pescoço, dilacerado pelas unhas dos mortos, a carne
esfolada cheia de sangue tanto acima quanto abaixo da pele.
“Estive... melhor.” Um sussurro doído.
Olhei para o médico, um profissional do campo de batalha,
grisalho, de armadura de couro com rebites, ostentando as lanças
cruzados do Sétimo. Ele balançou a cabeça.
“Como assim, ‘não’?” Eu o encarei, ultrajado. “Dá um jeito nele!
É um príncipe, caramba. O irmão mais velho dele é o responsável
pelo seu exército inteiro... e eu sou o marechal, caralho!”
O homem me ignorou, tão acostumado à histeria da batalha
quanto aos ferimentos da batalha, e tocou o peito de Darin, acima
das costelas. “Rompeu um vaso na traqueia. Seus pulmões estão se
enchendo de sangue.” Ele pôs os dedos no pescoço de meu irmão
para medir seu pulso.
“Dane-se isso!” Eu fui agarrar aquele suposto curandeiro. “Por
que você não...” A mão de Darin no meu pulso me fez parar no meio
do movimento, apesar de não haver força naquela pegada.
“Você... voltou... por mim.” Tão fraco que tive de me aproximar
para ouvir. Foi aí que ouvi as borbulhas do sangue nos pulmões.
“Agora me arrependi!” gritei para ele, com fumaça ardendo
tanto em meus olhos que mal conseguia enxergar. “Se está
planejando só ficar deitado aí e morrer.” Alguma coisa se prendeu
em minha garganta, talvez mais fumaça, e eu engasguei. Quando
falei novamente, foi baixinho, só para ele. “Levante-se, Darin,
levante-se.” Minha voz saiu com o gemido de uma criança.
“Nia.” Achei por um instante que ele estava falando de mamãe
– só por um instante, depois me lembrei de sua nova filha, pequena
e macia nos braços de Micha. Ela jamais o conheceria.
“Eu a protegerei. Juro.”
A cabeça de Darin pendeu de lado e meu coração pareceu
parar dentro de mim, embora eu nunca tivesse declarado amor por
meus irmãos, nem mesmo pelo meu favorito. Mas ele levantou as
sobrancelhas e seu segui a direção de seu olhar até seus dedos,
brilhando com algum líquido transparente.
“Óleo,” disse Darin.
Era verdade, estávamos agachados no óleo, que felizmente
estava frio agora: deve ter vazado por baixo do portão, após ser
despejado pelas troneiras. Darin esfregou os dedos escorregadios
em cima da minha mão.
“Parou... eles.”
Fiquei intrigado com aquilo por um instante. O óleo não os
parou. Enfiei os dedos nele e os deslizei sobre o calçamento. “É
mesmo!” Compreendi, passando da confusão à clareza em um
instante. Os mortos abaixo da guarita do portão não conseguiam
empurrar, não tinham tração no solo. Tudo que eles podiam ser era
um tampão de carne para transmitir os empurrões do lado de fora.
As portas estavam apenas segurando. O óleo os salvara. Um
momento de triunfo me iluminou. “Eu sabia que se...” Mas Darin
havia partido.
O médico manteve os dedos no pescoço de Darin por mais um
momento, sentindo o batimento. Ele balançou a cabeça. Assim,
cego pelas lágrimas que nunca foram causadas pela fumaça, saquei
minha espada.
Alguma coisa se mexeu debaixo da pele de meu irmão. Grande
o bastante para conseguir enxergar até com meus olhos marejados.
Como uma pequena mão deslizando para cima de seu pescoço.
Seu corpo se contorceu como se um golpe tivesse sido desferido
dentro de seu peito.
“Em nome de Deus, o que é isso?” O médico saltou para trás
estupefato, claramente sem conhecer totalmente a natureza de
nosso inimigo.
Os lábios de Darin se retorceram. Xingando, deslizei minha
espada através do esterno de meu irmão até o coração, e sem fazer
barulho ele relaxou na verdadeira morte.
“Não é suficiente,” disse Serah atrás de mim. “Você precisa
amarrá-lo...”
“Com esta espada é suficiente.” Puxei a lâmina para trás,
vermelha com o sangue de meu irmão, e me levantei para encarar
meus primos.
“Isso foi diferente dos outros – o que aconteceu com ele...”
Rotus aproximou-se, espiando.
“Não.” Os mortos sempre despertavam em um instante, com
fome nos olhos, prontos para matar. Darin foi diferente. Como se...
como se alguma coisa estivesse tentando sair de dentro dele. Ou
através dele. “Eu...” Foi aí que percebi. “Os gritos dos mortos...
pararam.” Eu me dei conta de que, desde que havia recuperado os
sentidos depois daquele ataque insano, os mortos estavam em
silêncio. Os gritos e berros que ouvia agora vinham das gargantas
vivas, algumas cheias de raiva, outras de pavor ou de dor, mas
aquele grito horripilante e interminável dos mortos atacando havia...
terminado.
“Os mortos estão mais lentos,” relatou Renprow, olhando para
mim como se eu pudesse desmaiar outra vez, ou me atirar de volta
à luta. “Mas mal conseguimos contê-los, e eles continuam vindo –
devem ter uma rampa utilizável para o alto da muralha a essa
altura.”
“Volte para a torre, capitão. Precisamos ficar de olho nisso.” Do
outro lado da muralha, o barulho do fogo parecia um rio
completamente tumultuoso.
Prima Serah se aproximou, erguendo a mão até meu braço. Um
toque suave. “Sinto muito sobre Darin, Jalan. Era um bom homem.”
Eu já até me esquecera dele. Simples assim, meu próprio
irmão, caído morto no chão atrás de mim, sangrando do corte que
eu lhe fizera. De repente, precisava me ocupar com alguma outra
coisa. Naquele momento, estava até agradecido pelo ataque. Passei
por Serah. “Esses não podem ser o Sétimo todo! Onde está
Martus?” Havia menos de cem homens com os uniformes do Sétimo
em volta de nós, e a linha de batalha contra os mortos estava a
apenas vinte metros de distância. Os cidadãos que apareceram
para o espetáculo já tinham fugido fazia tempo, de preferência
espalhando o pânico necessário cidade afora. “Onde diabos está a
guarda do palácio? Talvez possamos contê-los com todas as nossas
forças aqui.”
Serah se pôs à minha frente mais uma vez. “Vim do Portão da
Vitória. Vimos os incêndios começando e trouxemos estes homens
para ajudar.” Ela olhou sobre o ombro para a batalha, pálida, mas
com a boca séria e demonstrando determinação.
“Vim do palácio,” disse Rotus, surgindo atrás de sua irmãzinha.
“Tio Hertet comandou que Martus mantivesse o Sétimo próximo das
paredes....”
“Por que ele não está aqui então, caralho?”
“As paredes do palácio,” disse Serah. Ela realmente parecia ter
dezessete anos.
“Ele ordenou que a guarda do palácio permanecesse em seu
posto e o defendesse a todo custo,” disse Rotus.
“Que desgraçado.” Embainhei minha espada, ainda vermelha
com o sangue de meu irmão. “O que diabos Garyus está fazendo,
deixando Hertet dar ordens?” Vou voltar. Vocês vão ter de aguentar
aqui. Vou buscar os reforços.
“Aguentaremos.” Esperei que Rotus fizesse a promessa, mas
foi Serah quem falou. Ela prendeu meu olhar por um momento e vi
algo familiar. Algo que vi pela última vez nos olhos de sua avó, nas
muralhas de Ameroth.
“Eu sei que sim.” E comecei a abrir caminho entre as tropas, na
direção da rua principal que saía do Portão Appan, iluminada
apenas por alguns lampiões caídos.
16

“Marechal!” disse Renprow ao meu lado. “Não pode ir sozinho!”


“Precisamos de todos os homens aqui.” Eu realmente não
queria ir sozinho, mas realmente precisávamos de todos os homens
na ruptura.
“Também vou. Só me deixe reunir um esquadrão.” Ele segurou
meu braço.
“Um esquadrão que saiba montar? E que tenha cavalos?” Meu
garanhão e as montarias dos homens que saíram da ponte Morano
estavam estabulados em uma taberna a cem metros da rua Appan.
Levaria uma eternidade para reunir aqueles cavaleiros, se é que
estavam vivos, e muitos cavalos não eram do tipo que aceita um
novo cavaleiro com facilidade.
“Eu vou.” Ele esticou o braço e pegou dois soldados pelo
ombro. “E estes homens podem cavalgar conosco. Há cavalos de
mensageiros nos estábulos.”
“Você sabe mais sobre as defesas desta cidade do que
qualquer um, capitão. Você é necessário aqui. Esses dois eu levo.”
Ao chegar ao limite do grupo de soldados e guardas da
muralha, de repente me vi relutante em sair. Caminhar além dos
corpos amontoados, pela escuridão, parecia uma ideia
verdadeiramente péssima. Os homens estavam grudados como
ovelhas no curral, tão juntos que tive que abrir caminho entre eles à
força. O medo nos aproximava, como animais de rebanho diante do
predador, embora parecesse que só eu realmente entendia a
natureza da ameaça que assombrava a noite. Os mortos haviam
ficado em silêncio. Isso significava que o lichkin tinha saído. Eu
gostaria de pensar que ele tinha recuado novamente para fora da
muralha, para fazer alguma diabrura lá no meio da tempestade de
fogo. Mas, olhando para a escuridão, eu sabia. O lichkin estava na
minha cidade agora. Ali pelas ruas. À solta entre os inocentes, e
acredite em mim quando digo que, perante a malícia antiga dos
lichkin, somos todos inocentes.
Sair do abrigo dos homens exigiu todas as minhas parcas
reservas de coragem. Depois que saí, com o par de guardas me
seguindo, o orgulho me fez prosseguir. O orgulho sempre foi minha
falha de caráter mais letal. Pior até do que ser amaldiçoado pelo
sangue de minha avó com a tendência a raros ataques berserker, se
levado ao limite. O orgulho espeta um homem com a ponta das
expectativas das outras pessoas. Quantas vezes eu havia entrado
na fogueira proverbial – e às vezes literal – com Snorri assistindo,
pois meu instinto justificável de fugir na direção oposta fora
esmagado sob o peso da sua confiança em mim?
Peguei um lampião pendurado em uma banca de salgados,
abandonada quando a multidão entrou em pânico, e fui na frente em
direção aos estábulos, com a luz tremendo na minha mão.
Atravessei com pressa a rua Appan no escuro, com os dois
soldados atrás de mim.
A rua Appan estava sinistramente quieta, sem nenhum som
além dos gritos distantes da luta na muralha. Feixes bandeirosos de
luz em janelas altas, e uma ou outra sombra se mexendo por trás de
janelas fechadas revelavam o fato de que a cidade não havia sido
abandonada.
“Calma agora.” Ergui a mão para deter os soldados e saquei
minha espada. A porta dos estábulos estava entreaberta. Ouvi os
passos e os relinchos dos cavalos lá dentro. “Alguma coisa os
assustou.” Sabe-se lá quantos mortos poderiam ter se afastado da
batalha perto dos portões – um deles podia estar à espreita na
escuridão atrás da porta, ensanguentado e em silêncio. Ergui meu
lampião. “Você vai na frente,” acenei para o maior dos dois
soldados, um sujeito robusto, embora, em comparação comigo,
ainda lhe faltassem alguns centímetros e quilos.
“Senhor.” Ele me lançou um olhar de ‘por que eu?’, mas já que
não era verdadeiramente possível encontrar dois soldados em
Vermelhão cujos postos militares fossem mais distantes do que o
meu e o dele, deu um passo à frente. Entreguei-lhe o lampião e ele
abriu a porta cutucando com sua espada. Entrou, tão relutante
quanto um homem enfiando a mão em uma jarra cheia de aranhas.
“Tudo limpo, marechal.”
“Tem certeza?”
“Só cavalos. Deve ter sido a fumaça que os assustou.”
Entrei atrás dele. Não seria seguro para ele conduzir Murder até
o lado de fora, senão eu teria ficado na rua.
Em dois minutos, estávamos com Murder e dois cavalos de
mensageiros na rua. Subi na sela, sentindo-me ligeiramente melhor,
como sempre acontece com quatro patas debaixo de mim.
Provavelmente era uma coisa boa para minha honra a cidade estar
sitiada por todos os lados, porque, se soubesse de algum portão
aberto, talvez eu fosse tomado pela tentação de sair galopando
através dele e cavalgar até encontrar algum lugar seguro.
“Ao palácio!” Apontei minha espada na direção adequada,
segurei as rédeas com a mão do lampião e saí galopando.

Mesmo em situação difícil, há uma certa alegria em cavalgar pelas


ruas vazias de uma cidade que nunca está vazia. Na minha vida
inteira, não importa o horário, eu nunca tinha conseguido deixar um
cavalo ir à toda pela Via do Anoitecer ou pela Estrela do Oeste.
Nunca tinha visto a Via do Anoitecer sem pelo menos uma dúzia de
bêbados, um ou dois vigias municipais, talvez um jovem lorde à
procura de uma moça que não era nenhuma dama... e durante o dia
nunca havia espaço suficiente para passar sem arrastar os
cotovelos em meia Vermelhão. O estrondo dos cascos de Murder
ecoou nas paredes à medida que passamos.
Na Esquina da Agulha, o grito de uma mulher chamou minha
atenção. Levantei a cabeça e a vi em uma janela alta, no último
andar do Melican, um alfaiate fino onde já havia deixado uma
fortuna no mínimo modesta.
“Príncipe Jalan!”
Puxei as rédeas. Eu já estava à frente das duas lesmas que o
capitão Renprow havia escolhido para me acompanhar, e ter sido
chamado me dava uma desculpa para deixá-los me alcançar. Após
uma rápida olhada em volta, procurando mortos-vivos ou monstros
do lodo rastejando pelos telhados, gritei de volta: “Sim?” Esperava
ter mais a dizer, mas ‘sim’ parecia suficiente.
“Está... está indo para o palácio? Me leve com você...” Ela
parecia me conhecer. E era vagamente familiar – pelo menos era
jovem e bonita.
“Estou com pressa... moça.” Meus lábios queriam dizer ‘Mary’,
mas acabei optando por ‘moça’, em vez de tentar adivinhar. Espero
que seja assim que os marechais falem.
Meus acompanhantes chegaram, conduzindo seus corcéis com
uma evidente falta de prática.
“Espere por mim!” A moça saiu da janela e depois, como se se
lembrasse, pôs novamente o rosto branco para fora. “Está
acontecendo um horror nos Matadouros. Estão matando gente e
fazendo os corpos dançarem.” Com isso ela se retirou,
supostamente em direção às escadas.
“Sigam!” Meti os calcanhares nas costelas de Murder e ele deu
um salto para frente. Nem me senti mal por isso. Eu estava
encarregado de salvar uma cidade, não cada cidadão
individualmente. E além do mais, Mary – eu me lembrei vagamente
de me enfiar em um provador com a garota e de achá-la bem
prestativa – provavelmente estaria bem mais segura escondida em
cima de um alfaiate qualquer do que no palácio.
Prosseguimos por ruas escuras, de vez em quando chegando a
praças onde a lua, agora surgindo acima dos telhados, banhava os
paralelepípedos de prata. Na praça Reymond, a menos de meio
quilômetro dos portões de ferro de vovó, um forte vento soprou de
repente à nossa volta, levantando poeira e jogando areia no ar.
Folhas secas rodopiaram no meio daquele redemoinho, panos
velhos também, farrapos cinzentos erguidos pelo vento.
“Trapoeiros!” disse o homem atrás de mim.
“Vamos!”
Alguma coisa cortou minha bochecha. Baixei a cabeça e
galopei, ouvindo o grito de um de meus soldados e o baque quando
ele caiu no chão. Mais gritos, um grasnado rápido e terrível, ficando
mais fraco à medida que nos afastamos. Atroando em direção à
abertura da rua oposta, vi um homem caminhar pela rua e se virar
para nós, de braços abertos. O que restava de sua pele estava
pendurado em farrapos nos braços molhados e gotejantes.
Percorrendo os últimos metros, vi um leve contorno do que o
conduzia – um troço esquelético, algum demônio sorridente e
horroroso que tinha algo de inseto. O homem abriu a boca para
falar, sorrindo em um reflexo da alegria do demônio, mas eu o
atropelei antes da primeira palavra.
Um calafrio me atravessou de cima a baixo enquanto Murder
me levava embora. O espírito daquele redemoinho estava sendo
transportado por sua vítima, assim como um lichkin precisa ser
transportado por seu hospedeiro, embora o lichkin atinja uma união
bem mais íntima, entocando-se no corpo do desnascido para liberar
seu potencial de novas e terríveis maneiras. Apertei os calcanhares
e atingimos uma velocidade absurda, com os cascos quase
escorregando no chão ao chegarmos na próxima esquina. Eu queria
me afastar daquela coisa o mais rápido possível.
Um minuto depois, virei uma curva e vi os muros do palácio. A
lua agora estava montada no ombro da torre Genoa, uma lua de
sangue, avermelhada pela fumaça de dez mil lares em chamas.
Segui em galope brando, com meu soldado remanescente muito
atrás. Os muros do palácio, meu eterno santuário, nunca foram uma
visão agradável. Infelizmente, também nunca pareceram tão baixos.
Pela primeira vez, compreendi a decepção de minha avó pelo fato
de a história ter dado à monarquia de Marcha Vermelha um trono
luxuoso, calcado em artes e cultura, em vez de uma fortaleza
austera que ameaçasse a cidade ao redor.
Quase imediatamente eu avistei Martus. Seu pavilhão de
comando, erigido poucos metros antes do muro, estava meio torto,
pois havia poucos lugares para enfiar os paus da barraca entre as
pedras do calçamento. Uma força de cerca de cem soldados estava
reunida na rua, de olhos abertos vasculhando a noite, como se
soubessem exatamente o quanto ela estava assombrada. Uma
dupla de cavalariços estava com o cavalo de Martus perto do
pavilhão, junto de dois mensageiros em suas selas e um trio de
tamboreiros curvados pelo peso de seus instrumentos. Dois oficiais
menores estavam na entrada do pavilhão.
“Martus!” Urrei ao atravessar as fileiras da infantaria. “Martus!”
“O general...”
“O quê?” Martus interrompeu seu ajudante ao sair abaixado da
tenda, com o capacete debaixo do braço e sangue velho secando
em sua couraça. Ele me viu ao se endireitar, a beligerância lutando
com a culpa – o que era incomum para Martus: geralmente havia só
a beligerância.
Desci das costas de Murder e avancei para confrontá-lo,
imediatamente me arrependendo de ter perdido a vantagem da
altura. “Que diabos está fazendo aqui? Não recebeu as
mensagens? Dá para ver a porra da fumaça!” Apontei, só para o
caso de ele não ter percebido, subindo acima do clarão do fogo ao
longe. “Há uma batalha acontecendo a todo vapor nos portões... e
estamos perdendo!” Olhei em volta. “E, pelo amor de Deus, onde
está o restante de seus homens? Mande-os se mexerem até o
Portão Appan – agora!”
Martus se empertigou como fizera tantas vezes antes,
normalmente como um prelúdio para acabar comigo se eu não fosse
rápido o suficiente para escapar. “Hertet ordenou que ficássemos,”
disse, raivoso, mas com o tom de quem foi pego fazendo algo que
não devia. “Meu comando é patrulhar as ruas em torno do palácio,
em oito esquadrões de cinquenta.”
“Quem liga a mínima para o que tio Hertet tem a dizer?” Uma
raiva brotou em mim, como eu não sentia fazia muitos anos... talvez
desde que eu tinha sete anos e Martus me deu uma cabeçada para
me tirar da última batalha em que me mantive firme. “Sou o
Marechal de Vermelhão – eu tenho o comando das forças armadas
e você, general, responde a mim!”
Martus me surpreendeu nesse momento. Ele deixou o ar que
inflava seu peito sair em um suspiro, primeiro explodindo por trás
dos dentes cerrados de raiva, e em seguida se transformando em
uma exalação longa e lenta. “Dizem que a Rainha Vermelha foi
derrubada. Algum relato sobre o exército na Slóvia ser cercado...
uma flecha... Hertet se declarou rei.”
Quando os ombros de Martus caíram eu me lembrei de Darin,
caído pálido no Portão Appan. Eles quase podiam ser gêmeos: da
mesma altura, Martus um pouco mais largo e de feições menos
finas. Eu vi Darin morrer e seu nome fez força para sair de meus
lábios apertados. Vi, talvez pela primeira vez, Martus como homem
e como garoto, não um rival, não um irmão briguento, mas um filho
como eu, competindo pelo afeto de um pai que não tinha mais nada
para dar. Quando mamãe morreu, foi como se tivessem tirado o
tampão de meu pai, e tudo que ela tinha visto nele se escoou, toda
a energia, a paixão, aquele interesse vital no mundo que nos torna
vivos, deixando-o vazio.
“Reúna seus homens, Martus, e vá para o Portão Appan. Se
perdermos lá, perdemos em toda a parte. Se não conseguirmos
defender as muralhas da cidade, os muros do palácio não irão
aguentar. Se ele for mesmo rei, então é melhor um rei com raiva do
que um morto.”
Martus assentiu. “Mandarei mensageiros.”
“Mande meu soldado.” Apontei para o sobrevivente que viera
comigo do Portão Appan. “Ele pode cavalgar tão rápido quanto seus
soldados podem correr. Quase.”
Martus concordou distraidamente, olhando pela escuridão da
Via dos Reis, praticamente sem nenhum feixe de luz de nenhuma
janela. “Mas rei ou não, idiota ou não, não acho que nosso tio esteja
totalmente errado – existe alguma coisa lá fora, vindo para cá...
posso sentir. E está perto. Não é a sua batalha nos portões...”
“Talvez.” Eu também sentia. “Mas não podemos deixar a cidade
desabar.” Saí andando em direção aos portões principais.
“Precisamos da guarda do palácio também!”
“Ele nunca vai deixar você usá-la!” gritou Martus às minhas
costas.
“Preciso tentar!” Acenei para ele e segui em frente para me
encontrar com o novo rei de Vermelhão.
17

Eu me aproximei do grande portão levadiço. Junto com a guarita


sobre ele, talvez fosse o único elemento militar do palácio. O muro
principal mal chegava a seis metros de altura e era da espessura de
uma espada no comprimento. Mais afastado da guarita, caía para
quatro metros e meio em alguns pontos.
Martus havia dito que Hertet jamais liberaria a guarda.
“Conheço covardes! Vou encontrar um jeito!” disse para mim
mesmo, com meu irmão agora já fora do alcance da audição.
Eu não tinha falado de Darin. Talvez não tivesse coragem
suficiente. As palavras não queriam sair e, mesmo que quisessem,
eu não confiaria em mim para dizê-las. Talvez nenhum de nós
sobrevivesse àquela noite. Se sobrevivêssemos, haveria tempo para
chorar durante o dia.
Ao me aproximar do portão principal, não vi guardas nas
muralhas, nenhum nas cabines dos sentinelas dos dois lados dos
portões e nenhum sinal de atividade nas seteiras e troneiras. Saquei
minha espada e bati o cabo no relevo de metal onde duas tábuas do
portão levadiço se cruzavam.
“Abram o portão!”
Nada durante um bom tempo. Depois um contorno surgiu na
sombra profunda do outro lado do túnel de entrada e caminhou para
me encarar através da grade de carvalho e ferro, destampando um
lampião no caminho. Um sujeito franzino com o uniforme cinza e
verde da torre de Marsail, trazendo uma lança sobre o ombro e na
cabeça um capacete de ferro que parecia mais velho que a Rainha
Vermelha.
“Abra o maldito portão.” Bati novamente.
“Não sei direito como, excelência.” Ele não parecia muito
incomodado com o fato, e considerando que seu posto apropriado
deveria ser longe da vista, vigiando prisioneiros nas celas de
Marsail, provavelmente estava dizendo a verdade.
“Seu nome, guarda.” Uma ordem, não uma pergunta.
“Ronolo Dahl, se lhe convém.” Ele juntou os calcanhares,
embora sem um estalo de verdade.
“Não me convém muito não. Agora, guarda Dahl. Abra. O.
Portão.” Esses sujeitos raramente tinham contato com a realeza e
tinham pouca noção de como se comportar. Como Ronolo foi parar
na guarda do portão principal do palácio da rainha Vermelha,
aparentemente sozinho, eu não fazia ideia, mas não era um bom
sinal.
“Não posso, excelência. Ordens do rei. Ninguém entra, ninguém
sai.”
“Como é que é?” Enconchei a mão na orelha e cheguei bem
perto das tábuas pesadas.
Ronolo me imitou, aproximando-se e levantando a voz:
“Ninguém entra! Ninguém sai!”
Enfiei o braço pelo pequeno buraco quadrado, entre as barras
verticais e horizontais, peguei-o pela nuca e o levantei contra o
portão. Com a outra mão, girei a espada e pus a ponta no pescoço
dele.
“Sou o marechal das forças armadas desta cidade. Sou um
príncipe de Marcha Vermelha, neto da Rainha Vermelha, e moro
neste palácio há mais de vinte anos. Acredite em mim, Ronolo,
quando digo que já atravessei os caminhos do Inferno, e as coisas
que eu farei com você se não me obedecer vão fazer os demônios
de Satanás chorarem.” Eu o soltei. “Agora abra o portão.”
O medo pode ser um excelente tutor, e embora Ronolo não
tivesse um motivo real para me temer, já que estava fora do alcance
da minha espada, correu para se familiarizar com as complexidades
da engrenagem de içamento. Os dois minutos que se passaram até
os portões começarem a levantar foram muito longos, e nesse meio-
tempo eu cogitei a grande probabilidade de Ronolo simplesmente
sair correndo. Olhando para a escuridão atrás dos portões, eu me vi
assombrado pelas visões de um bebê, macio e rosado em seu
berço, dormindo profundamente enquanto um monstro do lodo
entrava lentamente pela janela mais próxima. Bobagem, claro. A
pequena Nia de Darin estaria segura nos braços de Micha com a
guarda domiciliar à sua volta no Salão Roma. Pensei em Lisa
também. Andando para lá e para cá em seus aposentos da ala de
hóspedes de vovó, esperando Barras voltar. Será que se eu a visse,
pensei, teria coragem de lhe contar sobre o destino dele? Conheço
covardes. Eu sabia que não contaria.
O portão levadiço entrou em movimento, fazendo eu me
assustar. Subiu uns dois centímetros e parou. Depois mais dois. Eu
imaginei Ronolo fazendo força na grande manivela sozinho. Mais
dois centímetros. Embainhei minha espada. Andar com a lâmina
exposta no complexo do palácio seria no mínimo uma tolice. Dito
isso, eu me senti instantaneamente vulnerável no momento em que
o cabo chegou ao fundo, tocando o couro da bainha.
Rolei por baixo do portão assim que a abertura permitiu que eu
passasse. Minha armadura conspirou com a gravidade, tornando
bem difícil ficar de pé. Isso me lembrou o quanto uma cota de malha
pesa e, sem as quatro patas ágeis de Murder debaixo de mim,
decidi perder o peso extra. Puxei a malha sobre a cabeça e meti
uma faca nas alças, em vez de lutar com as fivelas no escuro.
Deixei a cota de malha cair no chão, fazendo um barulho metálico e
escorregadio.
Sem esperar pelo reaparecimento de Ronolo, apressei-me pelo
complexo adentro. Vários lampiões que deveriam iluminar os arcos
que saíam do grande pátio estavam apagados, e aquelas
passagens bocejavam como bocas escuras. Meus pés faziam um
barulho alto demais nas pedras do chão. Senti-me como um intruso
em um mausoléu, em vez de um príncipe voltando para sua casa.
Quantas noites eu havia cambaleado por esse complexo enquanto o
palácio dormia, quase bêbado demais para ficar de pé, mas hoje a
casa da Rainha Vermelha tinha uma característica diferente.
“Que se foda.” Saquei minha espada e me abaixei ao entrar na
passagem escura que levava à Praça da Vitória. Tomei fôlego
novamente depois que saí. Por toda a extensão da praça, lampiões
queimavam em seus postes até os degraus da casa de meu pai.
Luzes estavam acesas em várias janelas superiores e eu pensei em
Micha com sua filha. Apertei o passo, esperando que ela tivesse
trancado as portas.
À minha esquerda, passei pelo Quartel de Adão, que abrigava a
guarda terrestre, com o prédio apagado e em silêncio. À direita, os
estábulos da guarda, parecendo igualmente desertos, embora eu
pudesse ouvir os relinchos nervosos dos bichos lá dentro, os corcéis
pisoteando como se sentissem a tensão da noite. Dava para sentir o
cheiro da fumaça da cidade externa até daqui. A lua estava mais
alta, ainda avermelhada pelo fogo. Minhas botas faziam barulho
demais no calçamento.
As alas leste e oeste do Salão Roma estavam quietas e
apagadas, com os aposentos dos criados e cozinhas de um lado, e
a igreja do palácio, Santa Inês, do outro. Eu me concentrei naqueles
lampiões, no foco de luz em volta das portas de minha casa. Eu
poderia reunir alguns guardas lá e ter um panorama maior dos
acontecimentos. Comecei a correr.
Os mortos-vivos saíram da igreja. As grandes portas de
carvalho se abriram com tudo sobre as dobradiças de ferro preto, e
surgindo do interior escuro saíram os cadáveres de dois padres e
três jovens noviços atrás deles. Ágeis como os mortos avivados das
muralhas da cidade, eles me viram de imediato e começaram a
correr. Olhei para a espada em minha mão, com a imagem da filha
de Darin em minha mente, e por um instante me mantive firme.
A coisa que veio no rastro dos clérigos havia sido um homem
no passado, um homem enorme. Um necromante devia estar
trabalhando naquilo havia horas, talvez escondido nas criptas
debaixo da igreja. Quanto tempo os jurados pela morte estavam
esperando dentro dos muros de vovó? Uma semana, um mês,
anos? Escondidos à vista de todos, sem dúvida. Talvez até como
um dos criados ou guardas de papai, talvez a empregada que trazia
água quente para o meu banho...
Enfiando a espada na bainha outra vez, dei meia-volta e corri à
toda. O homem devia ser mais alto que Snorri em vida e quase da
mesma largura. Agora ele tinha músculos adicionais, amontados em
cima dos seus, a carne de outros homens de alguma maneira
amarrada à sua carne e osso. As placas reluzentes e vermelhas
sobre seus braços pareciam os músculos da coxa de um homem
adulto.
Todos eles correram rápida e silenciosamente, os únicos
gemidos saíram de mim quando passei em disparada pelo Quartel
de Adão, passando longe das portas por medo do que podia sair
delas.
Minha maior regra de corrida, depois de ‘não pare’ e ‘vá mais
rápido’, é ‘vá para o alto ou para a terra’. Esconder-se é sempre
bom, a não ser que exista algum lugar aonde realmente precise
chegar, mas se não pude se esconder, suba. Algumas vezes já
encontrei um corredor cuja velocidade superasse a minha, mas
estou para conhecer um cuja vontade de me pegar supere a minha
de escapar. Depois que eu chego aos telhados, inevitavelmente
encontro um salto que meus perseguidores não estão preparados
para dar, ou uma beirada pela qual não estão preparados para
correr. Como sempre, conhecer seu terreno ajuda, e felizmente o
palácio foi meu playground durante anos.
Contornei os fundos da quadra do quartel, saltando na
extremidade da curva, e avistei uma carroça de barris de água perto
do muro externo. Fui direto para lá. O som dos pés batendo atrás de
mim me dizia que meus perseguidores eram tão rápidos quanto eu
temia.
Os apoios da carroça formavam uma rampa e no topo dela eu
saltei sobre a pilha alta de barris. A passarela em volta da muralha
externa é apoiada em intervalos regulares por vigas quadradas que
saem do chão, em vez de se apoiarem mais abaixo da muralha,
como seria o caso se ela fosse mais alta. No meio de cada viga
ficam dois ganchos para tocha ou lampião, um de cada lado. Saltei
na direção da viga mais próxima, mirando um chute nela, e meu pé
bateu logo acima do gancho. Dando um pontapé quando comecei a
escorregar, eu me impulsionei para cima e pulei com tudo até a
beira da passarela, alcançando-a com as pontas dos dedos, e fiquei
pendurado, ofegando e balançando. Considerando que a passarela
fica a menos de cinco metros do chão, meus pés estavam a uma
altura tentadora para qualquer morto-vivo lá embaixo querer pular e
agarrar meus tornozelos.
‘Felizmente’ os cadáveres atrás de mim seguiram meu trajeto.
O primeiro padre se atirou de cima dos barris, com o rosto retorcido
de fúria terrível e silenciosa. Tentei me balançar para sair do
caminho dele. Unhas arranharam minha lateral quando ele passou
voando por mim, com sua túnica de padre esvoaçante como as asas
de um grande corvo. Eu me puxei para cima quando o segundo
padre saltou. Não é nada fácil subir por uma borda segurando
apenas pelas pontas dos dedos, mas o pavor me deu forças.
Cheguei na altura do queixo e joguei um pé sobre o parapeito. De
alguma maneira o medo impulsionou o restante de mim sobre a
beirada. O segundo padre raspou na sola da minha bota ao passar
em sua curta viagem até o pátio pavimentado.
Saí à toda velocidade, preparando para me congratular, quando
olhei para trás – raramente aconselhável quando se está correndo
por uma passarela estreita e iluminada apenas pela luz da lua – e vi
a figura de um noviço de túnica branca subindo na passarela,
impulsionando-se para cima com os dois braços.
“Como...” E então eu vi. Revelado pela curva da muralha, pude
identificar o enorme vulto do gigante, equilibrado na carroça e já
levantando um segundo noviço até o parapeito. Os mortos mais
espertos que já havia encontrado!
Corri no sentido anti-horário, passando por cima da guarita
deserta. Um escorpião antigo estava virado para a guarita da frente
e por um momento cogitei virá-lo e espetar meus perseguidores. A
sanidade prevaleceu – levaria cinco minutos para quatro homens
fazerem o serviço, e de qualquer modo uma lança atravessada no
peito podia não fazer uma diferença perceptível para os cadáveres
me perseguindo. Simplesmente continuei correndo e saí pelo outro
lado.
O urro de um grande vento ou fogo virou minha cabeça
enquanto corria. Por cima da muralha, dava para ver as ruas que
saíam do palácio e, apesar da minha situação extrema, alguma
coisa me chamou a atenção. Um redemoinho de poeira e trapos
varria o espaço amplo e vazio diante do palácio. Como o trapoeiro
que havia visto no trajeto do Portão Appan, este aqui tinha vítimas
ocas e atormentadas em suas margens, mas aquele era pouco
maior que um homem e só tinha dois possuídos submetidos a ele.
Este redemoinho era mais alto que a guarita do portão, com a luz da
lua brilhando no vidro quebrado entremeado naquele formato
cônico, e pencas de cidadãos, rasgados e esfolados, ao seu redor,
de olhos arregalados, com seus condutores levemente visíveis em
formas fantasmagóricas nas costas de cada um, diabólicos e
horríveis.
Uns vinte soldados do Sétimo surgiram da cobertura da
muralha, com Martus à frente deles. Para onde os restantes tinham
ido em tão pouco tempo, eu não saberia dizer. Martus estava de
espada em punho e parecia prestes a liderar o ataque.
Olhei para trás e, ao ver o mais rápido dos noviços ainda uns
cem metros atrás, parei. Não dá para ferir trapoeiros. Você sai do
caminho e deixa eles pararem de soprar. Os pequenos duram mais
ou menos uma hora. Soube de relatos de um de três metros que
soprou por meio dia...
Tomei fôlego. “Corra, seu idiota!”
Martus olhou para trás e me achou na muralha. Mesmo à
distância, seu rosto contava a história que eu sabia que contaria. Ele
era o general Martus Kendeth, chefe da casa, agora que papai
virara cinzas. Ele estava diante das muralhas do palácio da Rainha
Vermelha e, embora o medo pudesse lhe dar um nó gelado nas
entranhas, não correria em direção nenhuma que não fosse para
cima do inimigo.
“Não consegue feri-lo, seu estúpido desgraçado!” O noviço
havia passado pela guarita e agora corria em minha direção, sem se
importar com a queda ao seu lado. Mais dois corriam atrás dele, e
em seguida o próprio gigante.
“Merda.” Sem me deixar pensar, puxei a espada de Edris Dean
e, com um xingamento, a atirei por cima da muralha. “Use isso! Ela
destrói os mortos!” E saí correndo. Eu me arrependi do gesto antes
de dar o segundo passo – não que tivesse qualquer intenção de
parar e lutar. Eu nem gostava de Martus, mas nós dois amávamos
nossa mãe e há um vínculo aí... alguma coisa... eu não iria perder
dois irmãos na mesma noite. Além do mais, dá para correr mais
rápido sem o estorvo de uma espada longa.
Cerca de trezentos metros depois da guarita, a muralha faz uma
curva perto de um prédio onde penduravam-se presuntos curados e
outras carnes defumadas para a cozinha. Sei disso porque uma vez
tive a oportunidade de atravessar o depósito principal, após cair do
telhado. É um salto e tanto da muralha, mas se conseguir uma
velocidade boa e convertê-la na direção necessária, é possível
chegar lá.
Um elemento importante de aterrissar em telhados é saber
onde passam as vigas, para que absorvam o impacto da sua
chegada. Caí estatelado e imediatamente comecei a escorregar.
Alguns chutes frenéticos enquanto tentava puxar um pouco de ar
para meus pulmões esvaziados me fizeram ganhar tração, ao
mesmo tempo que despejava telhas de terracota lá embaixo. Eu
estava com a mão no cume do telhado quando o primeiro noviço
aterrissou atrás de mim. Puxei meu corpo para cima enquanto ele
escorregou e caiu sem gritar, levando mais telhas consigo. O
segundo noviço atravessou direto o telhado quando fiquei de pé no
topo e comecei a avançar ao longo dele, de braços abertos, o mais
rápido que ousei e mais rápido do que o recomendável. O terceiro
noviço bateu no telhado acima de uma viga e conseguiu não
escorregar.
O prédio em que eu estava era anexo a outro prédio mais alto
cujo conteúdo, em virtude de um telhado mais forte, era um mistério
para mim. Pulei, agarrei o topo do próximo telhado e me puxei para
cima dele, perdendo todos os botões e consideravelmente mais pele
do que podia dispensar. O noviço na liderança quase pegou meu pé
pendurado. Tive a satisfação de ouvir seu ataque infrutífero fazê-lo
bater de cara na parede. Uma olhada rápida revelou o gigante na
metade do caminho do primeiro telhado, demonstrando um nível de
equilíbrio exagerado para uma coisa tão grande e grosseira. Um
padre vinha no encalço dele, com o braço esquerdo em um ângulo
quebrado. Eu conhecia o homem, um dos assistentes mais
constantes de papai, mas seu nome me fugia à memória –
escapando melhor do que eu.
Embora fugir seja uma grande estratégia, um bom covarde
sempre aproveita as vantagens injustas. Recuei pelo cume mais
alto, abaixado, e me virei sacando minha adaga, já que estava sem
a espada de Edris. Duas mãos pálidas seguraram as bordas do
telhado dos dois lados das telhas cumeeiras. Abaixei a adaga nos
quatro dedos à direita, segurando o cabo com as duas mãos e
botando meu peso. Um instante depois o rosto agressivo do noviço
apareceu sobre o cume, com os olhos desprovidos de qualquer
intenção santa e cheio daquele apetite desumano que impulsiona os
mortos. Deixei de lado a tentativa de aparar os dedos dele e meti o
punho fechado naquele rosto. Ele caiu e eu comecei a correr outra
vez.
Qualquer homem tolo o bastante para correr até o final do
segundo prédio encontra um grande abismo e a possiblidade de
saltar sobre ele até o amplo telhado inclinado dos estábulos reais.
Prevenido, acelerei e deixei o telhado com um grito poderoso, as
pernas ainda chutando, os braços girando feito um cata-vento. Atingi
o telhado dos estábulos com o barulho de telhas rachando e
possivelmente ossos rachando, batendo o rosto e, pela sensação,
quebrando meu nariz mais uma vez. Demorou um tempo até eu
recuperar a consciência suficiente para perceber que estava
rolando. Abri os braços e pernas como uma estrela-do-mar e
consegui parar a alguns centímetros da calha.
Cinquenta metros atrás, vi o gigante subindo no cume do
telhado de onde eu me atirara. O padre do braço quebrado estava
na frente agora, e o noviço dos dedos fatiados atrás, ambos
supostamente levantados pelo cadáver turbinado. Subi pela lateral
do telhado do estábulo, com sangue saindo de meu nariz em um
fluxo constante de gotas grossas.
A fuga precisa ser um objetivo puro e solitário. Imagens de
Micha e sua criança continuavam a complicar a perseguição atual, e
quando cheguei ao cume do telhado eu me dei conta de que, em
momentos de dificuldade, as irmãs DeVeer procuravam umas às
outras. Será que Lisa se unira a Micha no Salão Roma? Porque, se
sim, então o açougueiro que havia criado aquela coisa me
perseguindo sem dúvida estava sob o mesmo teto que as duas
mulheres. Lentamente, minha rota de ‘fuga’ estava fazendo uma
curva sobre si mesma, voltando à direção do Salão Roma e me
levando a uma série de saltos desafiadores da morte que os mortos
pareciam estar desafiando melhor que eu.
Fiquei ofegando por um momento, exausto. O padre se chocou
no telhado alguns metros abaixo da minha posição, atirado pelo
gigante. De alguma maneira ele se segurou com uma mão e olhou
para mim, iluminado pela lua. Rosnou com uma quantidade
deprimente de energia para um clérigo idoso que, pelo que me
lembrava, andava com o auxílio de uma bengala grossa ou um
corista magrelo. De perto, seu nome finalmente me veio à mente.
Padre Daniel.
O noviço aterrissou ao lado dele, não conseguiu se segurar
com a mão ensanguentada e caiu para o chão distante. Minha deixa
para correr novamente.
Faltando dez metros para o fim do telhado do estábulo, desviei
para a esquerda, descendo a inclinação na diagonal. A cinco metros
do canto mais baixo do telhado, apertei os freios, entrando em uma
derrapagem prolongada. Quando cheguei ao canto, eu havia
diminuído a velocidade e caí com um gemido que era meio oração e
cheio de esperança.
O truque para bater no chão é rolar. Bem, o principal é não
quebrar. Mas rolar ajuda. Minhas pernas desmoronaram debaixo de
mim, resistindo ao meu impulso o máximo que puderam e me
jogando para frente, já rolando quando caí. Bati nas pedras do
calçamento com muito mais força do que se deve e dei uma
cambalhota, parando vários metros depois aos gemidos.
Padre Daniel aterrissou a uma curta distância de mim,
estraçalhando os dois tornozelos. Ele continuou rastejando atrás de
mim, despertando lembranças de vários pesadelos antigos, mas
agora reduzido a um passo ainda mais lento do que ele tinha em
vida.
Eu me levantei e saí mancando. O baque atrás de mim quando
o gigante aterrissou quase fez meu coração parar. Com um gemido,
aumentei o ritmo de minha mancada, praguejando meu joelho
direito, que parecia estar cheio de vidro quebrado. Quando cheguei
à lateral do Palácio Pobre, gritando ofegante por ajuda, ainda não
havia visto uma única pessoa além de Ronolo que não estivesse
morta e tentando me matar.
Segui a rota da minha infância até o telhado do Palácio Pobre,
da soleira ao arco da janela, duas cabeças de gárgula – com as
bocas abertas e prontas para vomitar água imunda das latrinas lá
dentro – outra soleira, outro arco, e a questão delicada de subir na
beira do telhado por baixo. Isso era bem mais fácil quando eu
pesava um quarto do que peso agora e ainda não havia percebido
que não rebateria de volta se caísse.
Eu não entendia como o gigante estava me seguindo. Parecia
que ele estava formando alças com as paredes de arenito. Cheguei
à inclinação de ardósia escura do telhado com aquela coisa morta
tentando pegar meus calcanhares.
Correr para cima de uma ladeira de quarenta e cinco graus é
como escalar um penhasco na melhor das hipóteses. Depois da
perseguição pela qual havia passado, o melhor que consegui foi um
rastejo constante. Atrás de mim, parecia que o monstro estava
atravessando os beirais do telhado, em vez de tentar circunavegá-
los. Encontrei uma telha solta e me virei para atirá-la na cabeça do
homem morto. Ela passou de raspão em sua orelha e saiu pela
noite afora.
Cheguei à base do coruchéu oeste quando o gigante se puxou
para cima do telhado, com o rosto esfolado reluzindo à luz da lua
crescente. Meu cérebro não tinha nenhum conselho a oferecer a
não ser ‘subir’, e eu o segui. Chega um ponto onde a exaustão se
instala de maneira tão profunda que não deixa espaço para novas
ideias. Escalei por instinto, as mãos encontrando os apoios
familiares que me fizeram subir e descer por aqueles coruchéus por
mais de uma década. É uma escalada fácil e que trazia pouca
esperança de derrotar meu perseguidor, mas já havia esgotado os
lugares aonde ir. Agarrei a primeira gárgula e me puxei para cima.
Tecnicamente, são quimeras, já que não jorram água, mas grandes
monstros horríveis de pedra sempre serão gárgulas para mim. Além
do mais, não vou ligar para as sutilezas da arquitetura quando estou
sendo caçado por um horror esfolado. Nem quando não estiver.
Subi e o monstro subiu atrás de mim.
Na verdade, embora eu já tivesse descido esta torre específica,
nunca havia subido nela. Eu me baseei no fato de ela ser gêmea do
coruchéu leste que ficava do outro lado do grande pórtico, o qual eu
havia escalado muitas vezes para visitar meu tio-avô Garyus. A
janela diretamente acima de mim na verdade era, de todas as
muitas janelas do palácio, a última pela qual eu escolheria
atravessar. Só a certeza de que a Irmã Silenciosa estava na Slóvia,
aliada à presença de um enorme e gosmento cadáver me seguindo
parede acima, me deu o ímpeto de seguir em frente.
Coloquei uma mão na soleira da janela, um pé atrás da cabeça
da última gárgula, um momento em que achei que fosse conseguir,
e então os dedos do monstro se fecharam no calcanhar da perna
que estava pendurada.
“Ah, essa não!” Parecia tão injusto.
Apoiei minha perna na gárgula e puxei com todas as minhas
forças para me soltar. Eu não tinha a menor chance, mas tentaria
qualquer coisa no desespero.
A gárgula cedeu com um estalo chocantemente alto. O gigante
morto aguentou por uma fração de segundo, mesmo depois que a
estátua do tamanho de um homem o atingiu bem na cara. No
próximo segundo, os dois estavam caindo. Uma segunda gárgula
interrompeu a queda até o telhado da entrada principal lá embaixo.
A coisa morta ficou momentaneamente empalada nos chifres de
pedra, até que o peso da primeira estátua a arrancou e os dois
abriram um buraco no telhado plano do pórtico e, desabando nos
degraus da entrada, criaram um sanduíche de pedra-carne morta-
pedra.
Fiquei pendurado ali, arquejando, por quase ter caído junto dos
dois. O tempo passou e finalmente os estrondos do meu coração
pararam de encher o mundo. Fiquei olhando para a pedra exposta
da parede onde a gárgula havia se soltado. Ela estava esperando
para cair desde antes de eu nascer. Às vezes a diferença entre
salvar e tirar uma vida é apenas uma questão de tempo – o
momento certo e o errado.
Com a boca seca, entrei com dificuldade pela janela da Irmã
Silenciosa, tremendo no corpo inteiro.
Não enxerguei nada até dar um passo para o lado e deixar o
luar entrar atrás de mim. Uma pequena antessala vazia. Os degraus
escuros que desciam em espiral até o saguão lá embaixo. A porta
do quarto da irmã Silenciosa estava fechada, com uma cadeira de
encosto alto ao lado dela. Uma segunda cadeira, idêntica à primeira,
havia sido levada ao meio da antessala, na metade de caminho
entre a porta e a passagem para a escada. Em cima dela havia um
cálice, prateado e banhado pela lua, uma faixa de linho e uma bota.
“Que diabos?” Cambaleei para frente, com a perna esquerda
doendo incontrolavelmente e meu pé direito gelado no piso de
pedra. Olhei para baixo. O gigante não tinha soltado a mão de mim
– a sola de minha bota descolou na mão dele. O sangue corria
livremente pela minha perna esquerda, de um talho acima do joelho
– um dos chifres da gárgula deve ter me cortado quando se soltou.
Peguei o linho e amarrei a perna. A bota se parecia
suspeitosamente com uma versão nova da que eu estava usando.
Após me livrar dos restos da antiga bota, calcei a nova. Um encaixe
perfeito. O cálice tinha três quartos de água. Parte devia ter
evaporado nas duas semanas desde que minha tia-avó a colocara
ali. Uma mosca preta flutuava nela.
“Não estou com tanta sede assim!” Um sussurro rouco e seco.
Peguei o cálice e joguei longe o cadáver da mosca. Eu nem estava
me enganando, e sou bem bom nisso. Esvaziei o copo e enxuguei a
boca, pensando se a velha bruxa não tinha enfraquecido o encaixe
que pendia a gárgula à parede. Eu me senti fraco e tonto, suado de
esforço e medo.
O quanto ela havia visto? “Você nunca erra, velha?” Dei uma
curta risada quando me perguntei se havia outros cenários
montados para eventos previstos que nunca aconteceram. Se eu
nunca tivesse escalado a torre, não saberia que ela tinha errado...
Nisso, outra onda de tontura tomou conta de mim e minhas
pernas cederam. Desabei na cadeira, colocada exatamente na
posição certa para me receber.
“Exibida.”
18

Voltei a mim com um susto, atordoado por um segundo, e depois


culpado, esperando ter apenas descansado na cadeira por alguns
momentos. Levantei a apalpei a bainha vazia em meu quadril. O
quarto não tinha uma espada substituta.
“Nisso eu surpreendi você, sua bruxa velha!” Não consegui dar
um sorriso pela vitória. Aquilo tinha sido um momento de loucura, do
qual me arrependi quase imediatamente. Ainda assim, esperava que
Martus tivesse sobrevivido. De que outro jeito eu poderia levar o
crédito por isso, em cada oportunidade, pelo resto de nossas vidas?
“Lisa!” Eu quis dizer Micha e Nia também, mas foi o nome de
Lisa que brotou de mim quando de repente me dei conta e saí
correndo. Se Hertet havia reunido todos os guardas do complexo ao
seu lado, então o Palácio Interno seria o lugar para ficar em
segurança. As irmãs DeVeer estariam lá, abrigadas debaixo da asa
do novo rei com a filha de Darin.
Ninguém no saguão escuro da entrada Palácio Pobre, nenhum
guarda na porta. Subi os degraus da frente em um passo só. A
aterrissagem me lembrou do quanto meu joelho doía. Uma corrida
manca me levou para o outro lado do pátio, através de uma
passagem, e após outro pátio me levou até o Palácio Interno. Virei
para a ala de hóspedes.
“Pare!” Uma voz estrondosa. “Pare bem aí!”
Parei a dez metros da entrada da ala de hóspedes, virei-me e vi
um guarda alto do palácio se aproximando, com um esquadrão de
doze guardas da muralha atrás e lanças nos ombros.
“Preciso ver...”
“Ninguém pode desrespeitar o toque de recolher.” A voz do
homem era muito grave, do tipo que parece que dói. “Por ordem do
rei!”
Eu o olhei. Jovem, musculoso, um peitoral reluzente, o rosto
daquele tipo de beleza que declara abertamente uma falta de
imaginação. “Seu nome, guarda?” Tentei parecer no comando.
Tecnicamente, eu estava.
“Sub-capitão Paraito.”
“Olhe, sub-capitão, sou o príncipe Jalan.” Não estava com
energia para dar meu grito real. “Preciso dar uma conferida na
minha família e depois vou ver Hertet, então...”
“Ponha-o nas celas com os outros dissidentes.” Paraito fez sinal
para os homens se aproximarem. Quatro guardas da muralha, de
armadura de malha de metal, vieram à frente. Tentei pegar minha
espada ausente, o que estava se tornando ao mesmo tempo um
hábito e uma deficiência.
“Olhem!” Encontrei meu urro quando os quatro homens
tentaram me pegar. “Sou o marechal da porra dessa cidade toda,
nomeado pela Rainha Vermelha em si e, caso não tenham
percebido, Vermelhão está sob ataque. Metade dela está em
chamas e há coisas mortas à espreita neste exato palácio.” Dei um
tapa para afastar a mão mais próxima. “Então, se estão pensando
em sobreviver para ver o dia nascer, aconselho fortemente a me
levar até meu tio. Agora!”
O sub-capitão olhou para mim quando dois de seus
subordinados pegaram meus braços. A ruga em sua testa bonita
sugeria que de repente eu tinha colocado uma pulga atrás de sua
orelha. “Vamos levá-lo à corte e deixar o rei decidir se quer vê-lo.”
Ele se virou e saiu.
“Espere!” Pressionei os calcanhares no chão, mas comecei a
andar quando ficou claro que eles me arrastariam. “Espere! Aonde
estamos indo?” O homem do palácio saiu de volta para cruzar o
pátio, na direção oposta do Palácio Interno.
“O rei estabeleceu a corte na Casa Milano.”
“Mas... isso é loucura.” Será que o palácio estava
comprometido e Hertet se estabelecera como rei em sua antiga
casa? O Palácio Interno fora o trono dos reis durante gerações.
Feitiços e proteções deixavam camadas mais grossas naquele lugar
do que qualquer tapete ou tapeçaria: era um lugar seguro contra
magias negras. Até onde eu sabia, qualquer coisa morta que
cruzasse sua entrada queimaria ou viraria pó... ou simplesmente se
tornaria o tipo mais tradicional de cadáver, livre dos controles dos
necromantes. Eu tinha sérias dúvidas se a Casa Milano oferecia as
mesmas proteções. Ainda assim, tio Hertet vinha praticando para
ser rei debaixo daquele teto por mais tempo que eu tinha de vida.
Talvez se sentisse mais seguro lá. Talvez o trono da Rainha
Vermelha lhe metesse medo. Eu teria. Principalmente se me
arrogasse prematuramente...
Ao passar pela Travessa dos Escribas, vi a forma delgada de
um monstro do lodo, em contraste com a lua, só por um instante
quando ele chegou ao cume do telhado.
“Ali!” Girei para soltar um braço e fracassei. “Lá em cima, um
ghoul!”
“Não estou vendo.” O sub-capitão Paraito olhou para cima sem
diminuir o passo.
“Não vai nem mandar homens para investigar?” Consegui me
desvencilhar de um dos guardas. “Me solte, seu estúpido, meu tio é
exatamente quem eu quero ver. Não preciso ser arrastado até lá!”
“O rei ordenou que todos os homens de armas defendessem a
Casa Milano. Nossas patrulhas são para recolher traidores e
prevenir qualquer ataque. Não devemos sair perseguindo sombras.”
Balancei a cabeça e continuei caminhando. Para dizer a
verdade, as sombras provavelmente devorariam Paraito e seu
esquadrão, se eles se aventurassem até lá.
Não tentei me libertar novamente até passarmos à vista do
Salão Roma. Em um dos aposentos superiores, uma luz fraca
escapava pelas venezianas. Eu me soltei e dei um passo. Mais um
passo e eu teria ficado livre, mas um dos guardas da muralha, ou
por acidente ou de propósito, colocou a haste de sua lança entre as
minhas pernas e eu caí, com dois homens se amontoando em cima
de mim.
Eles me puseram de pé, cuspindo sujeira do chão.
“Amarrem o prisioneiro!” O sub-capitão Paraito fez um sinal
para um dos guardas.
“Eu não estava tentando fugir, seu idiota!” Uma pitada da fúria
berserker passou por mim e outros guardas chegaram para ajudar a
segurar meus braços. “A esposa e a filha de príncipe Darin estão
sozinhas na Casa Roma com um necromante.” Respirei fundo
quando eles amarraram a corda nas minhas mãos. “Vou lembrá-los
mais uma vez. Sou um príncipe e o marechal dessa maldita cidade
inteira! Se deixarem minha cunhada morrer... Esperem! O
necromante! Ele é uma ameaça a Hertet – ao rei, quero dizer. É seu
dever v...”
“É meu dever incluir essa informação no meu relatório.” O sub-
capitão fez sinal para seus homens seguirem, e lá foram eles, me
arrastando enquanto eu lutava com minhas amarras.
Ao nos aproximarmos da Casa Milano, vi um monte de homens
de armadura reunidos em volta dos muros, com tochas queimando
com tal profusão que iluminavam o pátio inteiro. Vi membros da
guarda do palácio, da elite da sala do trono, da guarda da muralha,
da guarda terrestre, os remanescentes aristocráticos das cavalarias
da Lança Vermelha, da Lança Longa e do Casco de Ferro, guardas
das prisões da torre de Marsail e até mesmo guardas domésticos
das casas nobres.
“Alphons!” Avistei um dos soldados de papai no grupo reunido
diante dos degraus da frente. “Alphons! Lady Micha está segura?
Lady Lisa?”
Ele gritou alguma coisa, mas eu só entendi a palavra ‘dobro’
antes de meus captores me forçarem a subir os degraus e passar
por um corredor estreito de cavaleiros de armadura. As grandes
portas de bronze se abriram uns sessenta centímetros, relutantes,
permitindo que entrássemos em fila no hall de entrada lotado.
“Segurem-no bem firme.” E Paraito nos deixou, supostamente
para arquivar seu relatório.
Fiquei ali, suado, machucado e, acima de tudo, furioso. Todas
as pessoas amontoadas no saguão de entrada pareciam estar
falando ao mesmo tempo, e a onda do falatório diminuiu apenas um
pouco quando me trouxeram. A antessala continha uma dúzia de
grupos de lordes, uma ou outra dama, alguns barões, um duque, até
comerciantes empetecados com suas roupas mais caras, todos
falando uns com os outros, alguns alegres, outros preocupados,
alguns esquentados. Vi a duquesa Sansera aparentando a idade ali,
com todos os seus diamantes, lorde Gren, meu antigo adversário
quando se tratava de apostar em cavalos ou homens, parecendo
mais nervoso do que jamais esteve nos fossos, e mais um monte de
bem-nascidos que talvez esperassem falar por mim. Alguns olharam
na minha direção, mas as cordas nos meus pulsos os
desencorajaram de vir na minha direção.
“Não podemos ficar parados aqui!” Olhei em volta para os
quatro homens especificados para me vigiarem, uma presença
visivelmente deselegante no meio das sedas e ouros dos nobres e
poderosos. “Vocês viram o que está acontecendo lá fora... Vocês...”
“Primo Jalan!” O segundo filho mais velho de Hertet, Roland,
entrou pelas portas principais, avistando-me imediatamente. Martus
o chamava de ‘o Prodígio Sem Queixo’. A bem da verdade, deixar
crescer uma espécie de barba para esconder esse fato e gerar o
primeiro bisneto da Rainha Vermelha eram os maiores de seus
poucos feitos notáveis. “Papai vai querer vê-lo!”
Olhei naqueles olhos azuis aguados, e ele parecia alheio ao
fato de que eu estava sob guarda. Consegui dar um sorriso e fiz um
aceno com a cabeça. “Vá na frente.” E, com um rodopio de sua
capa esmeralda, bordada com os trevos que tio Hertet havia
adotado para a sua parte da família Kendeth, primo Roland mostrou
o caminho.
“Um momento, primo!” Parei Roland quando nos aproximamos
das portas do grande salão. “Conhece as DeVeer? Todo mundo
conhece.” Não lhe dei tempo de responder. “Um necromante tomou
a Sta. Inês. Receio que Lisa e Micha DeVeer ainda possam estar na
casa principal com minha sobrinha pequena. Seria um grande favor
para mim se pudesse mandar um esquadrão de homens para
garantir que elas escaparam e trazê-las à segurança, caso seja
necessário.”
“Um necromante?” Roland enrolou a língua e deixou a boca
aberta de surpresa. “No palácio?”
“Na igreja. No Salão Roma. Um bebê em perigo!” Acenei e
deixei tudo bem simples. Esperei que a menção ao bebê fosse
comovê-lo, por ser pai. “Podia mandar alguns guardas.”
Roland piscou. “Com certeza.” Ele ergueu a mão e convocou:
“Sir Roger! Sir Roger!” Um cavaleiro baixo, com a armadura mais
brilhante que já vi na vida, andou barulhenta e desengonçadamente
na nossa direção. “Damas em apuros no Salão Roma, Sir Roger!”
Roland falava ‘Uoger’ em vez de ‘Roger’.
“Vou cuidar do assunto, príncipe Roland.” Roger, bexigoso e
ostentando um bigode grosso e preto, fez uma mesura curta, todo
eficiente e decidido.
“Leve doze homens, Sir Roger,” foi todo o conselho que eu
pude dar, enquanto Roland continuou em direção às portas. “Dos
bons!”
Primo Roland passou pelos guardas de elite na entrada da
corte de seu pai, quatro deles com a armadura de fogo da rainha e
suas plumas escarlates. Empurrou com as duas mãos os altíssimos
painéis de carvalho e entrou no grande salão.
Eu não entrava no grande salão da Casa Milano desde o
casamento de Roland, quando eu tinha treze anos. Papai e seu
irmão mais velho haviam brigado por causa de alguma questão
relacionada à disciplina do padre da casa. Não realmente sobre o
padre, claro, mas sim sobre quem mandava em quem, como é a
maioria das disputas entre irmãos. De qualquer modo, palavras
pesadas foram ditas de maneira leviana e papai levou seu rebanho
embora do salão altamente indignado, com Martus separando à
força um jovem príncipe Jalan, levemente embriagado, de uma bela
dama de honra de cujo nome me esqueci.
Na década seguinte, o salão mudou e ficou irreconhecível.
Dezenas de lampiões enfeitados se uniam para lançar uma luz
brilhante no que era sem dúvida o salão com a decoração mais
esplêndida em que já pusera os olhos. As tapeçarias atrás do trono
de mogno de Hertet tinham fios de ouro e prata, os tapetes de seda
dos indus, com cores tão vivas que chocavam os olhos. Armaduras
douradas estavam em volta do perímetro do salão, entremeadas
com a guarda de vovó, tão imóveis que era difícil dizer quais
armaduras estavam vazias e quais continham homens.
A sala do trono se mostrou menos lotada do que a câmara
antes dela, com mais ou menos trinta favoritos de meu tio reunidos
ali, cálices de vinho em punho, e criados pairando. Vi uma dúzia de
lordes familiares porém anônimos, Sir Grethem todo de armadura,
como se estivesse preparado para um dos torneios que fizeram sua
reputação, Lady Bellinda, de pé perto do centro, a mais recente e a
mais jovem da longa lista de amantes de Hertet. Ao lado dela, talvez
o defensor mais poderoso de Hertet, o duque de Grast, um sujeito
corpulento com uma espessa barba grisalha, um homem sobre o
qual eu talvez tenha espalhado alguns boatos maldosos ao longo
dos anos, após ele me pegar com sua irmã.
A cadeira escura de Hertet ficava em uma plataforma e subia
mais alta que ele, com o encosto espalhando-se de maneira
dramática, cada linha contornada por rubis encaixados, refletindo a
luz do lampião como se fossem gotas brilhantes de sangue.
Nada desse esplendor atraiu tanto o meu olhar quanto a coroa
na cabeça do novo rei. A coroa imperial de vovó, um troço pesado
de ferro, homenageando seus ancestrais mais sangrentos e os dias
de Marcha Vermelha em que éramos todos guerreiros. Os séculos
haviam suavizado o ornamento com uma profusão de diamantes e
um contorno de ouro vermelho, mas ainda assim lembravam o
poder vencido na espada e no arco.
Hertet parecia perdido no assento escuro de seu trono,
afundado em um manto volumoso dourado, todo trabalhado em
elaborados verticilos e espirais do tipo de Brettan. Fui atrás de
Roland, percebendo a palidez doentia de meu tio, suando debaixo
da coroa, mais abatido do que estivera no funeral de papai naquela
manhã.
“Papai!” O leve problema de fala de Roland dava um toque
cômico na maioria das palavras. Um pai mais gentil teria mudado o
nome de seu filho para John quando o problema com os ‘erres’ se
tornou aparente. Roland passou por mais alguns lordes e levantou
tanto a mão quanto a voz. “Pai! Encontrei príncipe Jalan, que veio
lhe prestar juramento!”
Roland deu um passo para o lado para me apresentar,
abaixando os olhos para meus pulsos atados pela primeira vez, um
pouco confuso, e depois olhando para as roupas rasgadas e
salpicadas de sangue.
“Sobrinho. Parabenizo-o por ser o primeiro dos meninos de
Reymond a dobrar o joelho... mas veio a mim com trapos e cordas?
Uma nova moda, talvez? He? He?”
Sua gargalhada espalhafatosa deflagrou ecos naqueles puxa-
sacos dos companheiros de corte, zombando do meu estado.
Hertet levantou as duas mãos, um pedido tolerante de silêncio.
“Então, onde estão esses irmãos seus? Martus deveria estar
oferecendo sua lealdade. Ele agora é o chefe de sua casa, não?
Pelo menos até o novo cardeal botar todos vocês na rua!” Mais
gargalhadas depois disso.
“Martus está lutando com o inimigo na frente dos muros do
palácio, por ordem sua... tio.” Não consegui chamá-lo de rei, não
ainda. “Da última vez que o vi ele estava prestes a atacar um
trapoeiro. Não sei se...”
“Um o quê?” perguntou Hertet.
O duque de Grast interrompeu antes que eu pudesse
responder, com os olhos gelados em mim. “Um trapoeiro,
majestade. É o nome dos camponeses para os redemoinhos que
sopram de vez em quando. Eles acham que são assombrados.”
“He! He! Esse menino! Sempre falei que ele brigaria com o
vento se não tivesse com quem mais lutar! Não falei isso, Roland?
Não falei?” Hertet tirou os fios grisalhos da testa quando a
gargalhada obrigatória veio em seguida.
“Não sei se Martus sobreviveu.” Levantei a voz. “E Darin está
morto, assassinado atrás da muralha da cidade por mortos-vivos
que invadiram o Portão Appan. A cidade externa está em chamas.
Temos que...”
“Sim. Sim.” A testa de Hertet se enrugou embaixo da coroa,
demonstrando irritação na voz. “Você não é o marechal, sobrinho?
Não deveria estar lá fora dando um fim nisso tudo? Ou não é páreo
para a tarefa?” Ele parecia tão nervoso quanto irritado, contorcendo-
se no trono.
Senti uma fraqueza nele. Eu jamais conseguiria a ajuda que
precisava no portão se os deixasse rir de mim na corte, então
ataquei. “Como foi que conseguiu a coroa, tio?” O brilho dos
diamantes refletiu em meu olho. “Estava trancada no tesouro real.”
Meu pai me contara sobre a caixa-forte de ferro. O primeiro Gholloth
gastou uma pequena fortuna para defender uma grande fortuna.
Mestres ferreiros turcos vieram do leste para construí-la no local.
Com tempo, a caixa-forte poderia ser violada, mas tão rápido? “A
Rainha Vermelha fica com a chave.”
Após os sobressaltos espalhados por conta de minha audácia
veio o silêncio. Hertet enfiou a mão na gola dourada de seu manto e
tirou a chave de Loki de dentro, rodando lentamente no fim de uma
corrente retorcida de prata. “Não foi preciso esforço algum para
arrancar isso daquele velho feio que ela mantém na torre. Está
muito mais segura comigo, e é tão boa para abrir portas! Você não
acredita nos segredos que descobri ou quanto ouro minha querida
mãe tem escondido...”
“Você a pegou?” É claro que sim. Garyus não a daria a um
sobrinho idiota, não enquanto fosse o comissário. “É uma péssima
ideia tomar essa chave de alguém. Ela precisa ser dada.”
“Bobagem.” Ele se contorceu, e depois forçou um sorriso. “Sou
o rei e pegarei o que quiser. É minha por direito. E não é da sua
conta. Tire essas suas cordas ridículas e dobre o joelho. Depois
pode voltar ao que deveria estar fazendo. Ou será que devo nomear
alguém mais competente?”
Todos os instintos tentaram me deixar de joelhos, mas uma
pergunta me manteve de pé. “Garyus está... vivo?”
Hertet franziu o rosto. “É claro que está. Não sou nenhum
monstro. Está trancado em segurança até começar a ver as coisas
do meu jeito. Algumas pessoas...” Ele lançou um olhar para a fila
cintilante de cortesãos mais próximos do trono. “Algumas pessoas
aconselharam uma solução repentina e brusca. Mas isso agora já
passou. Não sou minha mãe.”
Fiquei sobre um joelho assim que ouvi que Garyus estava vivo.
Nunca tive o menor problema em abandonar meu orgulho se ele
estiver no caminho da ambição, seja de escapar ou de cair na cama
de uma dama. Hertet podia ficar com minha lealdade, ela não valia
muito mesmo. “Meu rei, preciso da guarda do palácio no Portão
Appan, e todos os homens do Sétimo que puderem ser reunidos.
Uma batalha está comendo solta lá fora e não estamos vencendo.
Se o portão cair, o palácio irá cair. Ele não foi feito para defesa.
Nossos homens de armas irão servi-lo melhor na muralha da
cidade.”
Hertet guardou a chave de Loki e fez uma careta. “Quer deixar
seu rei desprotegido? À mercê de qualquer dissidente que consiga
reunir um grupo? Isso não é uma demonstração de lealdade à
coroa, marechal!”
Vozes de acordo se elevaram por todos os lados, não só dos
puxa-sacos, mas por interesse próprio. Mandar seus guardas para
longe enquanto a cidade queima e a batalha acontece nunca é uma
coisa fácil de convencer. Assim como jogar longe sua espada
enquanto se está sendo perseguido, parece uma coisa bem idiota a
se fazer.
Fiquei novamente de pé, desajeitado com as mãos ainda
amarradas. “Majestade, não está entendendo a dimensão da
ameaça. Milhares de mortos-vivos estão aglomerados na muralha
da cidade, talvez dez mil. Se conseguirem tomar o Portão Appan e
entrar à força, Vermelhão está perdida. O palácio, esta casa, tudo
ruiria dentro de uma hora. A muralha da cidade é nossa única
defesa, e é o único lugar onde nossas tropas importam. Os homens
do lado de fora da sua porta estão sendo desperdiçados. No portão,
ainda podem virar o jogo. Príncipe Rotus e princesa Serah estão
com nossas forças lá. Eles precisam de apoio.” Vi um pouco de
conflito no rosto de Hertet. Ele podia ser idiota, mas não totalmente
idiota. Eu desconfiava que a maioria de suas medidas atuais fossem
resultado de uma paranoia, da crença possivelmente válida de que
sua família ou a cidade, ou as duas coisas, rejeitaria sua
reivindicação ao trono e colocaria algum Kendeth mais jovem e mais
capaz no assento da Rainha Vermelha.
“Conte a papai sobre o necromante, Jalan!” disse Roland ao
meu lado, prestativamente confundindo ainda mais as coisas.
“Necromante?” Hertet sacudiu-se para frente, com as mãos nos
braços do trono.
“Há um sub-capitão no saguão alegando que há mortos
vagando pelos pátios e ghouls nos telhados!” disse um lorde recém-
chegado lá atrás nas portas principais.
Abri as mãos o máximo que as cordas permitiam. “É apenas
uma pequena parte do que está por vir se não defendermos o
Portão Appan. Estes são apenas observadores, e mesmo assim os
muros do palácio não significam nada para eles!”
“Necromantes e mortos-vivos nos meus degraus!” Hertet
levantou-se do trono, ficando vermelho, a voz elevando-se em um
grito. “E está tentando mandar minha guarda pessoal embora?”
“Vermelhão irá ruir! Você tem que...”
“Tenho?” Hertet jogou a cabeça para a esquerda e depois para
a direita, como se procurasse ecos de sua indignação. “Tenho? Sou
o rei de Marcha Vermelha, de mar a mar, não ‘tenho’ que fazer
nada!”
“Ouça o que estou dizendo!” gritei para ser ouvido.
“Ponham príncipe Jalan nas celas. Deixem-no esfriar a cabeça
e recuperar o juízo.” Hertet caiu novamente em sua cadeira, a raiva
indo embora com a mesma rapidez que surgiu. “Marechal Roland,
reúna cinquenta homens da guarda terrestre e cuida da situação no
Portão Appan. Quero um relatório pela manhã.”
“Isso é uma loucura!” Comecei a subir na plataforma, mas
braços fortes já tinham me pegado, me arrastando na direção da
saída. “Todos vocês vão morrer aqui se forem atrás desse idiota...”
Um punho pesado arrancou a traição da minha boca e o resto do
mundo caiu na escuridão no momento seguinte.
19

Em matéria de tirania, até que tio Hertet não era tão terrível. Eles
me arrastaram, atordoado e desorientado, até uma de suas grandes
salas de estar, onde as ‘celas’ eram uma coleção de poltronas
grandes e confortáveis, às quais uns oito ou nove homens bem
vestidos estavam levemente acorrentados. Eu parecia um mendigo
perto deles, e uma empregada correu para pegar uma capa de
proteção antes que os guardas me jogassem em minha própria
cadeira confortável.
“Hertet gosta de manter seus inimigos por perto,” falei,
recostando-me com um gemido. Poucas partes de mim não doíam.
“Príncipe Jalan?” Uma voz preocupada bem atrás de mim. “Está
ferido?”
“Estou bem. A pior dor está no meu... corpo.” Estiquei o
pescoço para ver quem estava se dirigindo a mim. Apertando os
olhos contra os resquícios de visão dupla, identifiquei um homem
magro e careca com a última moda de Rhone, botões amarelos em
uma jaqueta de veludo preto. As duas imagens se uniram e
revelaram suas feições pontiagudas, ostentando uma mancha da
cor de vinho do porto abaixo de um olho. “Bonarti Poe!” Em minha
lista de prováveis rebeldes, Bonarti Poe me faria companhia na
seção dos covardes, lá no fundo. “O que você fez? Foi para cima de
meu tio gritando ameaças de morte?”
Poe deu uma gargalhada aguda e afobada. “Não! Não, jamais!”
Ele tossiu em um lenço rendado. “O rei me considera um homem do
conde Isen e não confia em mim.” Mais uma tosse e ele levantou a
voz. “Mas não existe homem mais leal ao trono de Marcha Vermelha
do que Bonarti Poe!”
“Isen é contra meu tio?” Aquilo soava promissor. Conde Isen
era mais louco que um saco de furões, mas muito capaz e com seu
próprio exército permanente.
“Tenho certeza de que a lealdade do conde é irrepreensível,”
retrucou Poe. “Mas ele ainda não conseguiu expressar sua opinião
sobre o assunto. Mesmo com o mensageiro mais rápido saindo de
seu salão imediatamente, o conde não deve estar nem perto de
Vermelhão. Receio que o rei tenha simplesmente antevisto uma
oposição onde não há nenhuma, tenho certeza.”
Eu tinha bem menos certeza, mas a opinião do conde não
importava, de uma maneira ou de outra, se ele ainda estava em
suas terras no sul. “Então estamos condenados a passar o resto de
nossas vidas neste maldito calabouço terrível?” me afundei ainda
mais na poltrona e sorri para a criada de serviço entre dois guardas
na porta. Uma moça bonita com cachos ruivos.
“Eles nos levarão para as celas de Marsail pela manhã,” disse
um lorde velho e caquético que reconheci mas não me lembrava do
nome. “Aquele garoto bobão está com medo demais para dispensar
os homens agora.”
“Hummm.” Testei minha corrente. Descobri que correntes
pesadas são só para mostrar. Uma corrente leve é que prende um
homem. Eu tinha mais chance de quebrar a perna da cadeira onde a
outra ponta estava enrolada. Na verdade, se não fosse a meia dúzia
de guardas posicionados em volta das paredes, eu poderia
simplesmente virar a poltrona para baixo e soltar a corrente. Mas
sem minha espada, minha faca confiscada e o fato de que eu não
tinha a menor intenção de lutar com seis guardas treinados, com ou
sem espada, minhas opções eram limitadas.
“Eles parecem estar se divertindo.” Os sons da conversa da
corte de Hertet nos alcançaram, um murmúrio baixo e contínuo,
entremeado por gargalhadas ocasionais ou salvas de aplausos.
“Estão morrendo de medo, a maioria deles,” disse o barão de
Strombol, um homenzinho corpulento e feroz que governava um
território considerável nas montanhas ao norte. “Apavorados com o
que está em nossos portões, com medo de que a Rainha Vermelha
não volte para salvá-los, ou com medo de que ela volte.”
“Ela não está morta?” Eu nunca acreditei nisso de verdade.
Achava que ela não podia morrer. Não uma mulher dura daquele
jeito. E a Irmã Silenciosa sempre pareceu velha demais para a
morte se preocupar com ela.
O barão jogou as mãos para o alto, batendo as correntes. “Vai
saber! Hertet diz que está, mas não tive nenhuma notícia disso além
da dele. Pensamento positivo?”
Apertei os lábios. Talvez aquela fosse a melhor chance que o
herdeiro não-aparente teria na vida de usar a coroa. Talvez ele
tenha simplesmente decidido apostar. Nós dois tínhamos a mesma
fraqueza. De apostas eu entendia.
Ficamos sentados e o tempo passou. Peguei um cálice de
vinho e belisquei uma tigela de azeitonas. Sorri para a criada e ela
fez cara feia para mim. Algumas partes de mim até pararam de doer,
apesar de saber que eu estaria andando como um velho amanhã,
se é que ia conseguir ficar de pé. Teria sido bem agradável, não
fosse a insistência de um pensamento indesejado. Eu havia deixado
a esposa e a filha de Darin aos cuidados de um necromante e
mandado apenas doze homens sob o comando de um cavaleiro
reluzente para salvá-las. Além da consciência farpada, também
tinha o ‘pavor acachapante’ para estragar minha noite. A certeza de
que as forças do Portão Appan logo desmoronariam, se é que já
não tinham desmoronado, e a maré de cidadãos mortos que tomaria
o palácio e mataria todos nós.
Tive menos de uma hora de descanso incômodo até os gritos
começarem. Eu os reconheci imediatamente, apesar de o som
chegar bem fraco pelas janelas com cortinas. O grito da morte,
saindo das bocas dos cadáveres por todo o complexo do palácio.
“Mas o que...?” O barão mexeu seu corpanzil nos limites
estreitos de sua cadeira.
“O lichkin está aqui.” Minha intenção era ser um anúncio
resignado, mas saiu mais como um sussurro agudo.
“O quê?” Bonarti Poe parecia tão assustado quanto um homem
podia estar a respeito de uma coisa sobre a qual não sabia nada.
“Uma coisa ruim,” falei.
Pelos barulhos, o lichkin não tinha vindo na liderança de uma
invasão pelo portão. Os gritos da morte estavam espalhados demais
e baixos demais para isso. Mesmo assim, havia muitos mortos, e o
lichkin por si só já era algo a temer. No Inferno, um único lichkin
derrotou Snorri ver Snagason em instantes.
Minha cadeira de repente parecia menos confortável, mais
como uma âncora prendendo a ovelha para o abate. A iluminação
das velas e lampiões do novo rei parecia ficar mais escura a cada
momento, como se fosse um segundo pôr do sol, que não ligava a
mínima para o trabalho dos homens, apenas fazendo a luz morrer.
As sombras se alongaram e ficaram mais escuras, contorcendo-se
de possibilidades.
E então o lichkin se aproximou. Dava quase para senti-lo
através do muro externo da Casa Milano, espreitando pela noite. As
cores morreram de tom em tom, deixando o ambiente deprimido, e
uma grande tristeza abateu-se sobre nós, mais sombria que o pior
dia de cão – a certeza de que a alegria havia desaparecido e que
nada mais ficaria certo no mundo outra vez.
Aquilo durou uma eternidade, mas finalmente a sensação foi
passando pouco a pouco. Os choramingos de Poe se acalmaram
em um suspiro profundo. A opressão melhorou o bastante para eu
imaginar o quanto deve ter sido terrível para os homens lá fora, no
escuro, apenas com a iluminação fraca das tochas e da lua entre
eles e aquele horror. Foi terrível até mesmo na segurança da luz, do
conforto e da proteção da casa.
Um grito mortal bem abaixo da janela respondeu à minha
pergunta e me fez dar um salto tão grande na cadeira que ela quase
virou. Homens morreram lá fora de puro medo, e agora estavam
dilacerando seus colegas vivos, espalhando horror e pânico.
Olhando em volta, vi que as cortinas tinham desenvolvido áreas
escuras onde o material apodreceu. As maçanetas de latão das
portas tinham um aspecto embaçado. Todos nós, prisioneiros e
guardas, parecíamos envelhecidos, como se tivéssemos passado
uma semana sem dormir.
“Precisamos sair daqui. Precisamos sair daqui. Precisamos...”
Um lorde magrelo de bigode fino ficou de pé num pulo, puxando a
corrente que o amarrava. Ele já tinha derrubado a cadeira e
conseguido tirar a corrente da perna quando os guardas o
derrubaram.
“Quieto! Quietinho!” Um dos guardas da confusão ficou de pé,
com a mão dolorida de socar o queixo do lorde magrelo. Ele parecia
mais assustado do que o prisioneiro caído, os olhos fundos naquela
cara de porco com uma expressão de ter visto o açougueiro vindo
lhe tirar o bacon.
Os sons de luta e de pânico chegaram a nós lá de fora. Gritos,
tanto dos mortos famintos quanto dos vivos aterrorizados, ecoaram
na frente da casa. Ouvimos venezianas se estilhaçando no
aposento ao lado do nosso.
“As janelas! Bloqueiem as janelas!” Fiquei de pé, levantei minha
cadeira, soltando a corrente da perna, e andei com ela na direção
das cortinas. Nenhum dos guardas se mexeu para me impedir,
apenas olharam em volta procurando qualquer coisa que pudesse
ajudar na tarefa.
Fui ajudar dois guardas que estavam fazendo força com uma
estante pesada, derrubando a valiosa cerâmica das muitas
prateleiras. Ninguém comentou o fato de a corrente em meu punho
estar pendurada, sem me amarrar a meu assento. Ajudei com uma
armadura e seu pedestal, e depois saí para pegar mais alguma
coisa para usar... e continuei assim.
Os sons da luta lá fora eram apavorantemente familiares. Se eu
fechasse os olhos, poderia estar de volta ao Portão Appan. Novos
sons próximos, de vidro quebrando e madeira estilhaçando, deram
um pouco mais de ritmo à minha fuga. Eu não tinha certeza da
distância que havia sido arrastado após ser levado da sala do trono,
nem em que direção seguir para sair do prédio. Nem tinha certeza
absoluta se queria ir lá para fora. Abri uma porta que dava para uma
biblioteca, que não era enorme, mas estava forrada de livros do
chão ao teto. As janelas não tinham cortinas – meia dúzia de arcos
altos e estreitos, cada uma contendo doze placas de vidro ligadas
com chumbo. Quando fui puxar a porta para fechá-la, sangue
espirrou nas janelas todas, exceto nos painéis mais altos. Como
uma onda de sangue quebrando no prédio. O desespero tomou
conta de mim e depois diminuiu quando o lichkin se afastou
novamente, perseguindo mais vítimas do lado de fora da casa.
Bati a porta, me virei e vi Hertet correndo pelo corredor na
minha direção, com a coroa torta na cabeça. Um grupo de
cavaleiros vinha atrás dele. Seu olhar passou por mim sem me
registrar, com o rosto pálido como a morte. Percebi que seu manto
dourado tinha um esguicho escarlate no meio, como se alguém
tivesse sido estripado na frente dele. Eu me espremi contra a porta
para deixá-los passar.
“Ele quer a chave!” gritei quando ele passou por mim. Não sei
ao certo por que disse isso.
Hertet parou e me viu pela primeira vez. “Jalan. Filho de
Reymond.” Ele estendeu a mão e tocou a minha. “Você sempre foi
um bom menino.” Sua outra mão tirou a chave debaixo da gola. Ele
a puxou e ela se soltou, embora a corrente parecesse forte demais
para se quebrar daquele jeito. “Aqui. Fique com ela. Você vai saber
o que fazer.” Ele dobrou minha mão em volta da chave de Loki e
seguiu em frente sem parar nem olhar para trás. “Podemos ir para
os porões e...” Não ouvi mais a voz dele debaixo dos passos das
armaduras dos cavaleiros que passaram por mim.
Fiquei parado por um instante no corredor, com sons caóticos
vindos da direção da sala do trono, gritos e urros ecoando de
tempos em tempos de sentidos aleatórios. O pretume da chave, fria
e pesada em minha mão, prendeu meu olhar. Consegui tirar a
atenção do presente de Loki e conferir os dois sentidos ao longo do
corredor, percebendo distraidamente uma longa mancha de sangue
pelo painel da parede oposta e um quadro, derrubado da parede,
com a moldura partida: o jovem Hertet olhando para mim com uma
expressão heroica e pegadas sobre o rosto. Na outra ponta do
corredor, três mulheres passaram correndo de roupa finas de seda,
uma velha, duas jovens. Num segundo elas estavam ali, no outro
sumiram.
Os gritos da sala do trono ficaram mais desesperados. Alguma
coisa bateu nas portas que saíam de lá com tanta força que os ecos
tremeram em meu peito.
A chave. A chave havia dado fim a um lichkin no Inferno. Mas
aquilo foi puro acaso. Sorte. Meu olhar se voltou ao negrume dela,
desvendando as lembranças daquela vitória, e num instante elas me
sugaram.
Snorri está diante de mim, um gigante de uma cor só, coberto pelo
sangue em pó do Inferno. Uma fissura atrás dele lança labaredas
carmim, e o ar se enche do cheiro de enxofre. Estou segurando a
chave de Loki à frente, na altura da cintura, e o lichkin sumiu,
ficando apenas uma mancha preta onde seus restos corrompidos
caíram ao chão. A chave o desfez. O lichkin deu um passo para trás
ao bloquear o ataque de Snorri e se empalou, só dois centímetros,
mas foi o suficiente. Eu girei a chave e o lichkin se desfez.
O olhar de Snorri está em minha mão. Ele achava que a chave
estava a salvo com Kara, lá no mundo dos vivos.
“Ora, vejam só,” digo, abrindo os dedos e revelando a chave
por completo. “O negócio é...” Eu tenho dificuldades de inventar uma
explicação. “O que é importante lembrar é que... sem isto, nós dois
estaríamos mortos.” Levanto minha outra mão para detê-lo. “E não
estou falando do tipo bom de morto. Do tipo muito, muito nojento.”
Eu me estremeço, lembrando-me da dor quando o lichkin me
segurou. Nunca havia sentido nada parecido, e nunca quero sentir
de novo.
“Você trouxe essa chave para Hel?” Snorri parece não ter
ouvido nenhuma palavra que eu cuidadosamente disse em minha
defesa. “Para Hel?”
“Ouviu a parte sobre salvar nossas vidas?”
Snorri parece assustado. É uma das coisas mais preocupantes
que já vi, em uma vida que é praticamente uma preocupação atrás
da outra. “Precisamos tirá-la daqui. Você tem que levá-la de volta,
Jal. Agora!”
Olho em volta. Um vale amplo e empoeirado iluminado por um
céu de uma cor triste e antiga. Aberturas de fogo, pedras de
formatos perturbadores espalhadas. “Como?” Não que vá discutir
sobre ir embora. Eu estava fazendo o possível para nem vir, para
início de conversa.
Snorri franze o rosto, concentrando-se, mas incapaz de segurar
seus pensamentos. “O que estava pensando? Esse tempo todo
você estava carregando...” Ele parece tão decepcionado comigo que
eu quase entendo o lado dele.
“Os gregos antigos tinham um salão de julgamento...” digo,
mais para distraí-lo.
“Os gregos? O que os gregos têm a ver com isso?”
“Bem...” Muitas vezes eu bolo meus melhores planos abrindo a
boca e escutando as palavras que saem. Desta vez, parece não
estar funcionando. “Bem... estávamos atravessando o seu
submundo, o domínio de Hel. E agora estamos no meu Inferno, ou o
Inferno do Rei Morto...”
“Mas a mitologia grega nós dois conhecemos desde sempre!
Então nós dois podemos dar forma a ela. Brilhante!”
A verdade era que eu tinha aprendido a antiga mitologia grega
na marra, durante o enorme desinteresse da adolescência, com um
professor que eu detestava, chamado Soros, que usava um cajado
pontudo e um sarcasmo afiado. Ainda não faço a menor ideia por
que aquilo era considerado necessário, mesmo que algumas
pessoas naquelas regiões tenham voltado a praticar o culto. Eu, no
entanto, a aprendi suficientemente bem para evitar o cajado, se não
o sarcasmo.
“Enfim. Os gregos tinham um salão de julgamento com três
juízes para direcionar as almas dos mortos a suas várias
recompensas e punições.” Começo a caminhar de novo. O lichkin
podia ser apenas uma mancha no chão, mas é uma mancha ao lado
da qual eu não quero ficar mais tempo que o necessário. Cuspo
para tirar o gosto de enxofre da boca. Não dá certo.
“Está pensando em sair das terras mortas dessa maneira?”
indaga Snorri. “Porque depois do salão de julgamento há um
enorme cachorro chamado Cérbero, e se você não for comido por
ele, depois vêm o rio Aqueronte e o rio Estige, que são os rios do
infortúnio e do ódio. O barqueiro supostamente é um...
“Não importa,” digo. “Não estou morto. Não deveria estar aqui.
Assim que eu chegar aos juízes, eles verão que estou no lugar
errado e vão me mandar de volta para casa. É isso que eles fazem,
mandam as pessoas para o lugar delas.”
“Você acha isso?” Snorri parece duvidar, que é o oposto do que
eu preciso.
“Acredito nisso,” digo. “E é isso que importa.” Parece-me que,
neste Inferno, um homem de determinação suficiente, um homem
disposto a sacrificar qualquer coisa talvez consiga dobrar o mundo
em torno de seu desejo e criar sozinho tudo aquilo que desejar.
Também me parece que eu não sou esse homem.
O longo passo de Snorri o traz para perto de mim. “Então tudo
que precisamos fazer é levar você ao salão dos juízes.”
“Esta é uma das partes mais fracas da ideia,” admito,
diminuindo o ritmo para procurar por pistas em volta, mas é claro
que não há nenhuma. Só poeira e pedras.
Snorri continua andando. “Você não entendeu esse lugar
ainda,” diz ele sobre o ombro. “A direção não importa. É como nos
sonhos. As coisas que você quer vêm até você. As coisas que não
quer também.”
Eu corro para alcançar. “Vamos simplesmente andar nesta
direção?”
“Sim.”
“Até encontrarmos?”
“Sim.”
“Kara disse que a porta estaria em toda a parte,” digo, sempre
querendo evitar uma longa caminhada.
“Se você a vir antes de chegarmos lá me avise.” Snorri ri.
“Como você acha que esse salão deve ser? Quais são os nomes
dos juízes?”
Caminhamos por um vale que lentamente se torna plano, sob
um céu que escurece aos poucos, lançando sombras sobre nós.
Durante todo o tempo, conversamos sobre o submundo de Hades,
os deuses do Olimpo e as lendas que os antigos criaram sobre tudo.
Depois dos Mil Sóis, muitos perderam a fé no Deus de Roma e
voltaram-se para deuses mais antigos, cujos fracassos estavam
muito distantes para relembrar. Enquanto lembramos da forma e da
história de Hades, nós nos vemos entrando nela, ou melhor, na
parte das terras mortas moldada pela fé daqueles que acreditam
nessas histórias.
“Qual é o lance dos infernos pagãos com cachorros?” pergunto.
“E rios?”
“Como assim?” Um tom defensivo aparece na voz de Snorri.
“Os gregos têm o rio Estige, cruzado por um barqueiro que
deixa você em uma margem guardada por um enorme cão chamado
Cérbero. Os nórdicos têm o rio Gjöll, cruzado por uma ponte que
leva você a uma margem guardada por um enorme cão chamado
Garm.”
“Não estou entendendo.”
“É como se vocês tivessem copiado item por item, só mudando
um ou outro detalhe e usando seus próprios nomes.”
A discussão que se seguiu me distraiu do sofrimento inclemente
que é andar nas terras mortas. Inferno é inferno, não importa em
que mitologia você o enfeite. Todas as partes de mim estão secas.
Todas as partes doem. A fome e a sede fizeram de mim sua
morada, no fundo dos ossos. À medida que escurece, qualquer
esperança que havia em mim murcha e minha língua perde o
interesse em conversar... a não ser discutir, atormentar o nórdico,
isso ainda tem apelo suficiente para me impedir de deitar na poeira
e esperar minha vez de soprar no vento.
Jalan.
É só a brisa, dizendo meu nome em uma pausa na conversa.
Jalan.
Mas quando o vento diz seu nome na escuridão do Inferno,
existe um arrepio que vem junto.
Com o tempo, até o prazer de irritar Snorri diminui e eu prossigo
cambaleando, carregando um fardo insuportável de dor e exaustão.
Meus arredores podiam ser só escuridão, poeira e um vento
contrário baixo, porém constante, mas na minha cabeça eu voltei ao
inferno singular que foi nossa viagem pelo Gelo Implacável. Estou lá
mais uma vez, com os nórdicos morrendo ao meu lado a cada
passo, Ein, Arne e Tuttugu, todos nós nos arrastando por aquele
deserto branco sem nada para nos impulsionar para frente, além
das costas largas de Snorri ver Snagason sempre em movimento.
“Para cima!”
Descubro que caí de joelhos, de cabeça baixa, sem me mexer.
“Peguei você.” A mão de Snorri se fecha em meu braço e ele
me põe de pé.
“Desculpe.” Sigo em frente.
“Este lugar derruba qualquer um,” diz ele.
“Desculpe.” Estou exausto demais para explicar, mas lamento
por tudo. Lamento que tive de ser arrastado por aquela porta antes
que pudesse cumprir minha promessa, lamento por deixar Snorri
sozinho no Inferno, lamento pela família dele, lamento por não
acreditar em sua busca, lamento por saber que irá fracassar.
“Desculpe por...”
“Eu sei,” diz ele, e me pega antes que eu caia novamente. “E
nenhum homem que atravessa o Inferno por um amigo tem que
pedir desculpas por alguma coisa.”
“Eu...” Um som ao longe, fraco, me poupa de mais besteiras, e
logo some. “O que é isso?”
“Também ouvi.”
Depois de ouvir apenas o vento por tanto tempo, o grito
estranho parecia pressagioso.
Ele surge novamente, um pouco mais alto.
Jalan.
Mais alto que minha imaginação desta vez. Uma voz, dizendo
meu nome, ou pelo menos fazendo o som dele, tornando-o algo
estranho.
“Corremos?” Descubro que tenho mais energia do que
pensava. Não suficiente para correr, isso é só o medo falando, mas
o suficiente para sair cambaleando em um ritmo decente.
“Vamos continuar seguindo.” Snorri vai na frente.
“Mas o que é isso?”
“O que você acha que é?” pergunta ele.
Jalan. É quase a maneira que minha mãe costumava dizer meu
nome. A maneira que uma criança tem dificuldade de reproduzir as
duas sílabas. Não quero dizer, como se identificar meu medo o
tornasse real, mas de alguma forma eu sei o que está por vir, o que
está nos caçando. No Inferno, com sua falta de direção peculiar,
todos os seus medos encontram você mais cedo ou mais tarde. É
minha irmã e o lichkin que se vinculou a ela para corromper sua
alma. Se me matarem aqui, minha morte abrirá um buraco pelo qual
eles poderão passar para o mundo dos vivos. A rainha desnascida,
o condutor e a conduzida, nascidos em um corpo morto tantos anos
após a concepção. Todo o potencial de minha irmã solto pelo mundo
nas mãos de um lichkin... Para ser sincero, todas essas outras
coisas são apenas a cobertura de um bolo altamente intragável – eu
parei de me importar depois da parte de “me matarem aqui”. “Aquilo
ali é uma luz?” apontei.
“Sim.” Snorri confirma que não estou alucinando de puro pavor.
JALAN! O berro vem de trás de nós, distante, mas não distante
o bastante. JALAN! Logo se vê que eu consigo correr.
Snorri corre ao meu lado e, com uma lentidão agoniante, a luz
passa de uma para muitas, contornando o telhado e muitas colunas
de apoio de um prédio alto, todo esculpido em pedra branca,
exatamente como descrevemos um para o outro.
Almas se aglomeram na escuridão perto do tribunal. De tempos
em tempos, uma nova alma desce correndo os degraus, uma
lembrança translúcida de um homem ou uma mulher, sem manter
uma única forma, mas passando por memórias de suas vidas,
principalmente momentos de terror. Nenhum fica onde a luz incide,
eles correm até a escuridão os abrigar, como se a luz dos juízes os
queimasse. Eles se afastam de Snorri e de mim também. Talvez doa
olhar a vida que ainda persiste em nós, com olhos nos quais não
resta nenhuma.
Paramos a cem metros do salão com muitos pilares. Paredes
brancas e largas se erguem atrás dos pilares, cada centímetro
esculpido com cenas lendárias. Uma porta está aberta, permitindo
às almas julgadas fugir da culpa. Nossos rostos são jogados em um
relevo acentuado pela iluminação inclinada. Mesmo de longe,
aquela luz promete água corrente, ar quente e coisas verdes
crescendo.
O ar parece frágil aqui, cheio de possibilidades. Tenho essa
mesma sensação quando as almas dos mortos atravessam do
mundo dos vivos e avisto o céu azul pelos buracos que eles fazem.
Este é um lugar de portas. Posso sentir a chave em meu peito, fria e
depois quente, vibrando em algum tom inaudível. Quando Kara
disse que a porta entre a vida e a morte estava em toda parte, era
só papo. Era tão impossível avistar aquela porta do meio do Inferno
quanto da praça da feira de Vermelhão em um dia quente. Mas
aqui... aqui parece que minha casa está logo ali. Aqui parece que a
porta que preciso pode surgir do nada e aparecer na minha frente. O
mundo dos vivos está tentadoramente próximo, só é preciso... que
alguma pequena coisa aconteça, como uma palavra perdida
finalmente saindo da ponta da minha língua, para eu poder ver a
porta...
Meu nome soa novamente, um uivo, agora alto, ecoando pelas
paredes, um barulho ondulante e vazio em um instante e violento no
outro, cheio de apetite e malícia. Dou mais um passo para a luz.
“Deveria vir comigo, Snorri.” As palavras são difíceis de dizer. “Você
já viu este lugar. Nada de bom pode ser tirado daqui.”
Espero pela raiva, mas não há nenhuma raiva nele. Ele abaixa
a cabeça, recusando-se a olhar para o brilho perante nós. “Arran
Vale.”
“Quê?” Eu quero ir, mas fico.
“Você se lembra de Arran Vale?” pergunta ele.
“Hum.” Eu deveria estar correndo, mas a coragem de Snorri
não me deixa. A imagem que ele tem de mim me prende aqui. Eu
deveria estar em disparada até o salão, mas em vez disso fico
parado e tento responder a ele. Arran Vale? Minha mente percorre
nomes, rostos e lugares, dezenas, centenas, todos conhecidos em
nossas longas viagens. “Talvez... um vale em Rhone? Perto daquela
cidadezinha com uma igreja e três bordéis, onde...”
“O avô de Hennan, neto de Lotar Vale.”
“Quem poderia se esquecer de Lotar Vale? O herói em quem
você nunca tinha ouvido falar até o momento em que o velho disse
esse nome!”
“Não importa.” Snorri levantou a cabeça para me olhar
fixamente com aqueles olhos azuis. “O que importa é que Arran Vale
tinha uma história, raízes, um motivo para viver, um motivo que valia
pena defender.”
“Só me lembro que você e Tuttugu estavam prestes a jogar a
vida de vocês fora ao lado de um velho fazendeiro qualquer que
tinham acabado de conhecer, tudo isso para defender seu casebre e
objetos sem valor de vikings que provavelmente nem se dariam ao
trabalho de roubá-los.” O chão está tremendo agora, a poeira
começando a dançar. Minha irmã está perto e se aproximando
rápido.
“Uma vida bem vivida é aquela que você não está preparado
para fazer concessões só para prolongá-la por mais um dia.”
“Bem...” Ler a lista de coisas que eu faria para viver mais um
dia consumiria todo o dia extra em questão.
“A questão é que existem coisas pelas quais estou preparado
para morrer. Momentos em que o certo é tomar uma posição, seja lá
quais forem as chances. E se Tuttugu e eu fizemos o que fizemos
pelo avô de Hennan, um velho que, como você bem disse, nem
conhecíamos, então o que acha que sou capaz de fazer pelos meus
filhos? Por minha esposa? Se é ou não é possível ganhar não faz
diferença.”
Já tivemos essa conversa antes. Eu não esperava que ele
tivesse mudado, mas às vezes é preciso tentar.
“Boa sorte!” Bati a mão no ombro de Snorri e saí. A escuridão
atrás dele parece mais forte, como se uma tempestade estivesse se
aproximando de nós. Ela está no centro dela, aquela cuja boca sabe
meu nome: minha irmã sem nome e o lichkin que está usando sua
alma.
Estou a cinco metros de distância quando ele diz: “Mostre-me a
chave.”
Estendo as mãos, uma na direção de Snorri e a outra para a
porta do salão dos juízes. “Tenho que ir!” A noite infernal está
fervendo a escuridão atrás dele, e o grito surge novamente, tão alto
que abafa minhas objeções. Todos os pelos do meu corpo tentam se
eriçar.
Mesmo assim, puxo a chave de dentro de minha camisa, no
cordão em volta do pescoço, e corro de volta até ele. Snorri tira a
faca do cinto e encosta a lâmina na palma da mão.
“Jesus, não!” Eu balanço a mão no que espero ser um sinal
negativo. “Que mania é essa que vocês nórdicos têm de se cortar?
Eu me lembro do que aconteceu da última vez que você
experimentou essa merda viking comigo. Que tal um simples aperto
de mão?”
Snorri sorri. “A chave será nosso elo. Você de volta no mundo.
Eu aqui. O sangue nos unirá.” Ele corta a palma e eu me estremeço
só de ver o sangue brotando onde a ponta da faca passou.
“Como é que você sabe disso?” Eu ainda espero que haja uma
maneira de sair dessa sem ter de abrir um corte em mim. Uma
névoa escura está surgindo agora, afastando a luz. As almas se
espalham. Elas sabem que algo ruim está chegando. De repente me
vejo preparado para cortar a mão fora, se isso significar que posso ir
embora. Mesmo assim eu fico, com a amizade de Snorri me
prendendo da mesma maneira que quase me puxou pela porta do
Inferno. “O sangue nos unirá? Você está inventando isso agora, não
está?”
Snorri olha nos meus olhos, os ombros levemente encolhidos.
“Se aprendi alguma coisa com Kara é que na magia o que conta é a
determinação. As palavras, os feitiços, pergaminhos, ingredientes...
é tudo para mostrar, ou talvez seja melhor dizer que são como as
armas do guerreiro, mas é a força do braço do guerreiro que
realmente importa. Ele pode matá-lo com as mãos, com ou sem
arma.” Ele estende a mão e a fecha sobre a chave. “Este será nosso
elo. Quando você abrir a porta, irá me encontrar.”
A escuridão ficou carregada à nossa volta, e fria. É como se
Snorri não visse, no entanto: ele não tem medo. Já eu tenho o
bastante para nós dois. Um uivo surge com a meia-noite, do tipo
que mil lobos fariam... se ateasse fogo a eles. Perto agora. Perto e
se aproximando rápido.
“Como é que eu vou achar a porta? Como vou saber que está
pronto para voltar? Minha nossa, olhe, eu preciso ir...”
“Você precisa desejar para que isso aconteça.” Snorri puxa a
mão para trás. Não há sangue na chave, embora seu punho
fechado esteja pingando vermelho. “Vai funcionar – ou não vai. Era
para Kara abrir caminho para meu retorno. Kara ou Skilfar, se ela
tivesse levado a chave de volta para sua avó como lhe prometera.
Agora tudo que tenho é você, Jal. Então guarde a chave em
segurança e escute meu chamado.”
Guardo a chave. “Vou escutar.” Nem é tanto uma mentira. Eu
nem sei o que ‘escutar’ significa. No meu peito, a chave esquenta
como se a mentira a agradasse. Tento pensar em algumas últimas
palavras para Snorri. ‘Adeus’ parece pomposo. ‘Fique bem’
obviamente não vai acontecer.
“Infernize-os.”
O uivo está tão alto e próximo que parece um soco. Estou
correndo, correndo em direção à luz, aquela luz maravilhosa, viva,
de olho na entrada.
“Tenha cuidado!” grita Snorri atrás de mim. “Eles irão testar
você.”
Não gostei nada de ouvir isso, mas com ou sem teste, estou
indo para casa.
Eu me aproximo da porta e passo correndo pela alma de uma
moça que está acabando de sair. Posso ver o pavor em seus
contornos fracos. Ela corre, abaixada, como se uma grande águia
pudesse arrebatá-la a qualquer momento. Eu faço praticamente a
mesma coisa, só que na direção contrária.
A escuridão vem atrás de mim como uma onda correndo para a
praia, me ultrapassando dos dois lados, congelando meus
calcanhares. Eu voo pela porta, conseguindo tropeçar no degrau e
caindo estatelado no corredor lá dentro. Ao olhar para trás com
medo, vejo a escuridão bater no prédio e a entrada virar um
retângulo preto, um tremor atravessar o chão, mas nem uma gota
da escuridão entra na passagem onde estou caído, e não se vê
nada do horror lá fora. Se ela está uivando lá, não dá para ouvir.
Eu me levanto, sacudindo a poeira, ainda olhando
nervosamente para a escuridão lá fora. Preparando-me, arrisco
desviar o olhar para o salão dos juízes. Não é o que eu esperava.
Não há tribunais, nem almas enfileiradas esperando o veredito de
suas vidas, nem o trio dos bastardos de Zeus sentados em
julgamento. Não existe nada além de um longo corredor, longo
demais para caber no prédio, embora a estrutura seja imensa. Do
outro lado, alguma coisa ardendo, brilhante – um azul, um verde,
uma promessa. Tudo que preciso fazer é andar para frente e estarei
em casa. Sinto isso bem fundo. Nem preciso da chave do mentiroso.
Este é um caminho verdadeiro, por onde podem passar os justos.
Dou um passo à frente e portas aparecem ao longo das duas
paredes. Uma porta simples de madeira a cada dez metros, muitas
delas. Dou mais um passo e cada uma delas se abre, primeiro as
mais próximas, depois as seguintes no próximo instante, e assim
por diante, criando uma onda na direção da promessa azul-verde ao
longe.
É fácil passar pelas salas atrás das primeiras portas. A primeira
à esquerda está vazia, a não ser por uma bolsa jogada no meio do
chão. A da direita também está vazia, exceto por moedas de prata
espalhadas. As duas seguintes estão vazias, exceto por uma
espada jogada e um pequeno caixão fechado.
“Está tentando me provocar?” A risada vem fácil e eu aperto o
passo, sem nem olhar para as salas ao passar.
Cem portas depois, paro como se tivesse batido em um poste.
O cheiro mais delicioso da história dos aromas entrou em meu nariz
e virou minha cabeça sem pedir permissão. Uma mesa foi posta na
sala à minha esquerda. Uma mesa simples, sem toalha ou prataria,
e nela há um prato de madeira onde meia galinha assada está
fumegando. Minha boca se enche de água instantaneamente, e meu
estômago dá um nó apertado e exigente. Toda parte de meu corpo
grita de desejo por aquela carne assada e quentinha. Vivi com fome
no Inferno por tanto tempo que meu corpo literalmente grita em
resposta ao chamado de uma boa refeição.
Soluçando, eu me afasto, só para ver na sala oposta um
simples cálice de vidro transparente, cheio de água. No momento
em que ponho os olhos nele, sei que aquela é a mais pura das
águas de nascente, brotando de baixo de pedras antigas, e que
deixá-la fluir por minha garganta seca e tocada pela morte levará a
sede embora num instante. A qualquer pessoa que não conhece o
ressecamento das terras mortas, a noção de que um homem possa
se sacrificar apenas por um copo d’água pode parecer loucura. Mas
é algo que precisa ser vivido para se compreender. Já estive seco
no deserto de Sahar. É coisa pouca, comparada à sede que um dia
no Inferno dá a um homem.
Mesmo assim, eu me afasto e continuo cambaleando, com o
corpo dolorido pela vida despertada nele de maneira tão repentina
pela proximidade do mundo, após tanto tempo caminhando nas
terras mortas.
Outros cheiros me atacam, cada um mais delicioso que o outro.
Maçãs, caramelos, pão assado na hora... cerveja. Cerveja nova,
cheirando a lúpulo, o som dela saindo da torneira... isso quase me
fez virar. Dou uma olhada nas salas: uma é um prado ensolarado,
outra um cavalo pronto para ser montado, um animal magnífico, os
músculos amontoados sob o pelo escuro, pronto para galopar o dia
todo. Há salas onde tesouros jazem aos montes, ouro suficiente
para comprar reinos inteiros. Concentro minha visão naquele
retângulo distante de grama verde e céu azul, mais perto a cada
passo. Minha determinação é de ferro. Eu compreendo o teste e não
virarei.
Estou a vinte metros da porta final. Consigo ver o céu azul, o
verde do jardim e um muro atrás. Parece o jardim real de ervas
atrás dos estábulos dos mensageiros. Começo a correr.
“Volte para a cama, Jal.”
Uma olhada de soslaio e eu paro, viro e dou três passos para
trás. Reconheço o ambiente, um quarto. A luz entra na diagonal
pelas venezianas, dividindo a cama em linhas paralelas de luz e
sombra. Cada linha clara passa sobre ela, descrevendo seus
contornos, a pele morena e macia naquele corpo quente. Ela está
deitada nua, exatamente como a deixei, os lençóis de seda indo até
a metade de suas costas e acompanhando suas curvas tão
fielmente quanto a luz.
“Lisa?”
Ela não fala, apenas dá aquela espreguiçada lânguida que só é
possível nos momentos entre acordar e dormir.
Esta é uma porta para o passado. O próprio ar cintila com
aberturas, rachaduras para o mundo, cada uma levando a novas
possibilidades, novas versões da minha vida. Se eu tivesse ficado
com ela naquela manhã, se tivesse virado na porta quando ela me
chamou, ainda meio sonhando, se tivesse me deitado ao lado dela
mais uma vez... nada disso teria acontecido. Eu teria perdido a
reunião de vovó. Eu nunca teria visto Snorri. Ele teria seguido seu
próprio caminho para casa. Eu teria vivido como sempre vivi. Talvez
teria pedido Lisa em casamento e gastado seu dote pagando
Maeres Allus, e os dias ociosos, fáceis e suaves da minha vida
teriam continuado.
Esse pensamento me avassala. Volte. Volte atrás. Faça de
novo. Esse pensamento e aquela vivacidade gloriosa dela, após
tanto tempo nas terras mortas. Lisa DeVeer, alta, magra, bonita,
quente, macia, vital. Percorra o corredor e retorne ao presente, ao
palácio de Vermelhão, onde ela está casada e o mundo está contra
mim... ou vire aqui no último momento e volte para aquela primeira
manhã onde tudo deu errado e poderia ter sido evitado com tanta
facilidade.
Um passo é o bastante. O resto eu nem me lembro. Ponho a
mão no quadril dela e me sento ao seu lado. Começo a tirar as
botas. Lisa estende a mão para me puxar até ela, virando
lentamente, os cabelos escuros caindo sobre os ombros.
Ela não tem rosto, apenas uma cabeça afunilada de onde saem
muitas presas de cobra, afiadas, pingando veneno. Eu caio da cama
com um grito de pavor, rasgando a camisa, com a maior parte
ficando nas garras dela. Pego a chave e sairia correndo para a
porta, mas não há porta nenhuma. Engatinho para trás no chão do
quarto enquanto aquela coisa que não é Lisa se levanta da cama.
Encurralado em um canto, estico a mão para abrir a veneziana, mas
tudo que ela mostra é o céu morto do Inferno – a condenação
espera por mim lá fora. À luz morta, os brilhos onde os mundos se
esbarram aparecem com mais clareza, e a Não-Lisa se parece mais
com alguma coisa feita, em vez de nascida, carne impura sobre
ossos antigos. Ela sai da cama, desajeitada, os membros se
contorcendo, e vem em minha direção.
No desespero, enfio a chave no lugar mais próximo onde a luz
se fratura. Não é uma porta, mas quase poderia ser. É uma quase
chance, e eu a aproveito. Sinto a chave de Loki se enganchar,
prendendo os dentes em alguma coisa... e eu a viro.
Um instante depois estou caindo no forno do Sahar, areia
escaldante, calor ofuscante, um lugar que devora a esperança e
enterra os ossos... e a sensação é ótima.
“Marechal?” Alguém balançou meu braço, com força. “Marechal!”
É Bonarti Poe, pálido e tremendo. Tirei os olhos da chave e me
vi sentado no corredor, exatamente onde estava quando Hertet a
pressionou em minhas mãos.
“Quanto tempo eu...”
“Acho que todos estão mortos!” Poe olhou para a passagem
atrás. Um grito horrível ecoou para contradizê-lo – o tipo de grito
que ouvimos em câmaras de tortura.
“Precisamos ir.” Fiquei de pé usando a parede para me escorar.
Estava escuro, apenas um lampião gotejando em um nicho entre
nós e a porta da sala do trono, com o óleo já quase no fim.
“D-disseram que você sabe a respeito... dessa coisa que está
nos atacando?” Bonarti ainda não havia soltado meu braço.
“Já vi um no Inferno.”
“Ai meu Deus.” O aperto dele começou a doer, então eu o
afastei. “Mas você sabe como derrotá-lo, certo?”
A porta no fim do corredor se estilhaçou em pedaços,
poupando-me de uma resposta. O lichkin estava lá, como uma
ferida em meu olho, ali porém invisível, avistado no momento
seguinte, não como aquele nervo branco e exposto, mas envolto em
fantasmas, usando as almas cinzentas das pessoas como uma pele.
O ar entre nós se ondulou, com falhas e fraturas vistas em um
instante e depois sumindo, algumas brilhantes, algumas escuras.
Foi sobre essa destruição que Luntar nos alertara. Não o lichkin
causando mortes às pencas, aos milhares, mas a quebra da
criação. Eu tinha visto as mesmas fraturas quando o salão dos
juízes ficou no limiar entre mundos, e aqui a criatura do Rei Morto
fez dois mundos se chocarem, levando os habitantes do Inferno de
volta a seus corpos e para a terra dos vivos. É da natureza de
qualquer rachadura se expandir e, com o giro lento da Roda
impulsionando-as, as fraturas se alastrariam cada vez mais rápido e
mais longe. A Roda de Osheim podia estar a incontáveis
quilômetros de distância, mas sua influência chegava ao coração de
todos os lugares, levada pelo imenso e incansável maquinário dos
Construtores, ainda pulsando com a energia deles, apesar de
estarem mortos há mil anos.
O lichkin se aproximou lentamente, como se nos desafiasse a
correr. Eu sabia como aquele troço podia ser rápido e não fiz
nenhum movimento que o pusesse em ação. Apenas me ative
àqueles últimos momentos de vida que me restavam. Bonarti, que
não tinha esse conhecimento, saiu correndo. Deu dois passos até o
lichkin acertá-lo nas costas. Ele fluiu para dentro dele como um
tendão sendo sugado por uma boca faminta. Avistei um brilho
branco como um nervo quando a última parte de seu corpo delgado
desapareceu sob a pele para envolver a coluna dele. O manto de
fantasmas do lichkin se afastou quando ele encontrou um corpo,
enrolando-se como fumaça em torno do homem paralisado.
O grito de Bonarti felizmente foi curto, mas sua dor não
terminou com ele. Um instante depois, uma centena de cortes de
navalha se abriram por todo seu corpo, apenas na profundidade da
pele. Com o lichkin ancorado no corpo de Bonarti eu teria corrido,
mas ele bloqueou meu caminho para longe da sala do trono, e na
entrada dela cadáveres se aglomeravam, ávidos, contidos apenas
pelo desejo do lichkin de brincar com sua comida. Eu não tinha para
onde ir nem onde me esconder.
Bonarti se virou para mim com os olhos arregalados e a boca
retorcida em um sorriso que não era dele. Sua pele começou a
descascar, uma dúzia de faixas largas esfolando-se lentamente
entre os cortes paralelos. Chega um ponto em que você fica com
tanto medo que realmente não importa para onde está correndo,
contanto que esteja correndo. Eu sabia que todas as semiaberturas
e chances partidas que estavam por trás das fraturas à minha volta
levavam direto ao Inferno, mas, para ser franco, o Inferno já tinha
vindo visitar e, por mais terríveis que todas as partes dele fossem,
eu preferia estar correndo para alguma parte que não tivesse um
lichkin. A criatura tentou me pegar com a mão vermelha e em carne
viva de Bonarti, com a pele esfolada pendurada. Com o mesmo grito
que um homem dá ao se preparar para alguma tarefa terrível, como
cortar fora um membro para escapar de um incêndio, enterrei a
chave de Loki na fratura mais próxima. A falha mais próxima cintilou
na parede ao meu lado e havia quase sumido quando minha mão a
alcançou. A chave encontrou seu encaixe e ficou ali, ancorando a
fratura. Os dedos úmidos de Bonarti encontraram meu pescoço e,
ainda gritando, girei a chave.
Naquele momento pareceu que o mundo se quebrou. Em vez
de atravessar o buraco que abri, eu voei para trás quando alguma
coisa grande saiu dele me jogando para o lado. Alguma coisa
grande, dura e veloz.
Snorri golpeou por cima da cabeça e seu machado atravessou
a clavícula de Bonarti Poe e entrou fundo em seu peito. A bota
pesada, esmigalhando as costelas, deu o apoio para puxar de volta
a lâmina de Hel. O próximo golpe do nórdico veio de lado, antes do
corpo de Bonarti bater no chão, arrancando seu braço na altura do
cotovelo e entrando na direção da espinha.
Snorri acompanhou o corpo, rugindo, com poeira avermelhada
saindo de seus cabelos e roupas. Atrás dele, a janela aberta para o
Inferno começou a se fechar, e a realidade ainda foi capaz de se
curar. Por pouco.
O lichkin forçou o corpo de Bonarti a rastejar sob a saraivada de
golpes de machado. Os fantasmas surgiram para cegar e arranhar
Snorri, mas ele mal notou, cortando fundo a carne do homem
debaixo dele. Filetes brancos se esticaram, procurando outros
corpos, carne morta para habitar, mas o nórdico os atingiu com
agilidade e eficiência. Adequadamente atrelado a um hospedeiro,
como os lichkin fazem com os desnascidos, aquele monstro poderia
ter sugado os mortos e os vivos de maneira mais eficaz para se
restaurar, mas este lichkin desgarrado havia se tornado imprudente,
querendo brincar com a comida e, ao se enrolar tão fortemente em
volta de Bonarti, acabou ficando vulnerável.
A carnificina continuou comendo solta. Snorri sabia que seu
inimigo estava enterrado no fundo do corpo à sua frente. Eu avistei
a brancura do lichkin quando o machado de Snorri estraçalhou a
espinha de Bonarti. Um segundo depois, a criatura começou a se
desenrolar dos destroços do cadáver. Mas, assim como eu, Snorri
parecia conseguir enxergá-lo, com o tempo que passou nas terras
mortas contribuindo algo para sua visão. Seu machado virou um
borrão, cortando o lichkin, de alguma maneira tornando-o sólido
naquele momento em que tentou se livrar do corpo. Talvez ter
passado tanto tempo no Inferno havia dado ao machado de Snorri a
capacidade de encontrar até mesmo o lichkin, ou molhar o machado
com o sangue de demônios havia encantado a lâmina. De uma
maneira ou de outra, cortava.
Em Trond, realizam-se competições para espantar o tédio do
inverno. Em uma delas, um nórdico precisa meter o machado no
tronco de um abeto, da grossura de um homem, e o primeiro a
atravessar totalmente o tronco é o campeão. O ataque de Snorri ao
lichkin era bem parecido àquela competição e, antes que aquele
troço escapasse dos destroços de Bonarti, ele chegou bem perto de
ser atravessado. No instante que o último filete branco se retirou dos
restos sangrentos à nossa frente, o lichkin dobrou o mundo em volta
de si e caiu para as terras mortas. Com um urro animal, Snorri se
atirou atrás dele. Se não fosse minha perna estrategicamente
posicionada, ele teria desaparecido de volta no Inferno em busca de
sua presa. Assim, ele se estatelou de cara no suntuoso, apesar de
imundo, tapete de Hertet. O ar se ondulou onde o lichkin abrira o
buraco no mundo, depois ficou imóvel, e o portal sumiu.
Olhei de volta para os mortos-vivos observando da entrada da
sala do trono. Talvez, se não tivesse olhado, eles continuariam
parados ali assistindo por mais cinco minutos. Minha olhada
pareceu animá-los, e eles avançaram ao mesmo tempo.
“Levante-se!” Dei um pulo até Snorri e tentei levantá-lo. Só de
encostar nele minhas mãos sentiram novamente aquela sensação
de secura da morte, transformando minha pele em papel, sugando a
vitalidade de meu corpo. “Levante-se!” Eu teria mais sorte
levantando um cavalo.
Snorri pôs os braços embaixo do corpo e se levantou assim que
os mortos nos alcançaram. Eles haviam perdido sua agilidade,
agora que o lichkin tinha fugido, mas ainda eram em grande
número.
A quantidade parecia não importar. Snorri os atravessou como
uma foice. Aquilo me fez lembrar de minha vitória gloriosa contra os
garotos do balde lá no teatro de ópera. Snorri atravessou os mortos
como um príncipe de Marcha Vermelha atravessa moleques de rua
apavorados. O machado é realmente a arma certa para esse tipo de
trabalho. A espada é uma língua: ela fala e dá voz eloquente à
violência, procurando os órgãos vitais do inimigo e dando fim a ele.
O machado apenas urra. Os ferimentos que ele causa são
destruidores e, nas mãos de Snorri, praticamente todos os golpes
parecem arrancar uma cabeça ou um membro.
Dois minutos depois, o nórdico estava no meio do massacre
que criou, talvez vinte cadáveres agora divididos a tal ponto que a
necromancia não poderia usá-los de maneira perigosa. Eu o segui
até a sala do trono, lançando olhares nervosos sobre o ombro, na
possibilidade de novos inimigos avançarem pelo corredor. Muitos
mortos tinham espadas, ainda embainhadas nos quadris. Peguei
uma que parecia ter sido forjada para usar e não para mostrar.
“Você... você está bem?” Olhei em volta do salão. Snorri estava
de pé, cabeça baixa, coberta com o sangue de outros homens,
respirando ofegantemente. Segurava o machado na altura do
quadril, com uma mão logo abaixo da cabeça e a outra na ponta do
cabo. Ele não parecia bem. Nem a sala, com todas as superfícies
sujas, o trono derrubado, as tapeçarias pisoteadas, o local todo
fedendo a morte e destruição. “Snorri?” Ele parecia quase um
estranho.
Ele ergueu a cabeça, olhando para mim por baixo do véu preto
de seus cabelos, indecifrável, capaz de qualquer coisa. “Eu...” A
primeira palavra que me disse desde que nos separamos no Inferno.
Meses haviam se passado para mim. Isso seria a sensação de
quantas eternidades naquele lugar?
Do canto mais escuro da sala, um morto-vivo surgiu de baixo de
uma tapeçaria, alguma vitória retratada em linha prateada, agora
manchada de sangue e sujeira. Ele avançou na direção das costas
de Snorri, trazendo o tecido bordado como uma bandeira. Snorri
atacou para o lado, quase sem olhar, o machado como uma
extensão de seu braço. A cabeça do homem voou longe, seu corpo
cambaleou e despencou.
“Estou em paz,” disse Snorri, e se aproximou para me dar um
abraço de guerreiro.
20

“Lisa!” Afastei-me de Snorri, quase tropeçando em um dos


cadáveres esquartejados espalhados pelo grande salão de Hertet.
“Lisa!”
“A garota com quem queria se casar?” Snorri recuou,
observando seus arredores pela primeira vez.
“Precisamos ir!” Comecei a sair em direção às portas principais.
“Tenho parentes em apuros.”
Snorri pôs o machado no ombro e veio atrás, passando por
cima de pedaços jogados de armadura e de um ou outro corpo se
contorcendo.
As grandes portas da sala do trono de Hertet se cruzavam em
ângulos bêbados, cada uma presa à moldura por uma única
dobradiça. Chutei a da esquerda e ela voou para trás. A antessala
era um ossário bem decorado.
“Jesus.” Alguém tinha lutado ali – provavelmente a elite de
vovó. Corpos desmembrados enchiam o chão coberto de sangue,
com mais de uma dúzia de monstros do lodo no meio, muitos dos
mortos inchados e ainda sujos da lama fedorenta do rio.
“Em que país estamos?” indagou Snorri ao meu lado.
“Este é o palácio de Vermelhão. Meu tio teve a oportunidade de
brincar de rei. Não deu muito certo.”
As portas da frente da Casa Milano estavam aos pedaços, a
madeira cinza de podridão ressecada, corrompida pelo toque do
lichkin. Descemos os degraus, com Snorri segurando um escudo
que pegou de um guarda caído.
“Não faz seu estilo?” Olhei para trás, levantando a sobrancelha.
“Dardos de ghouls fazem ainda menos meu estilo.” Ele me
seguiu pelos degraus.
Várias tochas continuaram acesas quando foram largadas,
rodeando a casa em um halo irregular de luz fraca. A história aqui
era parecida com a do lado de dentro. Corpos quebrados, sangue
espalhado, meia dúzia de mortos à vista, vagando sem destino, pelo
menos até o primeiro deles nos avistar.
“Corra!” gritei, e dei no pé.
Parei dez metros depois, percebendo que Snorri não estava me
seguindo e que estava escuro aonde eu estava indo. Virei para ele.
“Corra?”
Snorri me deu aquele sorriso que mostra todos os dentes
brancos no meio da barba preta. “Não passei esse tempo todo em
Hel...” ele fez uma pausa para decapitar o primeiro morto-vivo a
alcançá-lo, um golpe selvagem e no tempo perfeito, “para fugir
desses restos lamentáveis.” O próximo morto ele não decapitou
totalmente, mas atravessou o machado pela cabeça. Depois, dois
foram juntos para cima dele. Não tive tempo de ver como ele lidou
com esses porque uma servente de vestido rasgado me escolheu.
Ela veio de uma maneira desajeitada, urgente, os cabelos grisalhos
armados em desalinho, hematomas roxos em volta do pescoço
onde as mãos mortas lhe esganaram a vida. Enfiei minha espada
em sua boca até sair pela nuca. Um troço sinistro. Ainda estava
tentando puxar minha lâmina quando Snorri passou por mim. Até
com a cabeça em ruínas ela ainda tentava me pegar cegamente.
Tive que dar um salto para trás e deixá-la se debatendo no chão.
“Então vamos,” gritou ele por cima do ombro. Ele estava com
um par de tochas baixas de cana em uma das mãos, com o braço
esticado para iluminar o caminho, as chamas queimando as últimas
gotas de piche.
Fui na frente, esperando algum horror saltar para cima de nós
da escuridão – quanto mais longe andávamos sem ser atacados,
maior era a sensação de expectativa – mas finalmente chegamos
diante do Salão Roma sem sermos desafiados por ninguém, vivo ou
morto.
“Quem está aí dentro?” indagou Snorri. “Só Lisa?”
“Não sei direito, Lisa, sua irmã Micha e minha sobrinha.” Como
marechal da cidade, eu deveria estar reunindo homens e indo para
a muralha. Lisa estaria tão morta quanto o restante de nós se a
força principal lá fora entrasse na cidade. Não importava a lógica, eu
precisava saber que ela estava bem, que todas elas estavam. Ou
pelo menos ver o fim delas e saber que nada agora poderia salvá-
las.
As portas da frente estavam entreabertas, e o salão atrás
escuro. Ao subir na frente os degraus, vi sangue, só uma mancha,
onde alguém talvez tivesse caído e batido a cabeça.
Abri a porta da esquerda usando a ponta da espada. A luz da
tocha moribunda de Snorri insinuou o longo corredor à frente, com
as estatuetas e vasos indus de papai em seus nichos intercalados.
A cabeça de Gordo Ned estava caída a alguns metros dali, olhando
para o teto com uma leve expressão de surpresa, talvez por ter
morrido em serviço de guarda e tido um fim rápido e violento, após
uma lenta batalha contra o que o corroía por dentro. Prova de que
nenhum de nós realmente sabe o que nos espera. Procurei em volta
sua carcaça óssea, mas não vi nenhum sinal dela.
Neste ponto me lembrei do pequeno cone de oricalco enterrado
nas profundezas de meu bolso mais fundo. Cogitei procurá-lo. Snorri
apareceu atrás de mim levantando a tocha e, quando passei para o
lado, ele continuou andando. Não carregar nenhuma fonte de
iluminação foi uma desculpa tão boa para mandar o nórdico ir na
frente que deixei o oricalco guardadinho onde estava.
“Lisa!” troou Snorri. “Lisa!”
“Shhhh!” Fiz movimentos frenéticos para baixo com a mão.
“Quê?”
“Vão saber que estamos aqui!”
“A ideia é essa. LISA!”
Acho que era a ideia, mas o conceito de chamar o inimigo vinha
de encontro a muitos instintos profundamente arraigados, e metade
de mim ainda queria tapar a boca de Snorri com a mão.
Snorri foi na frente descendo o hall de entrada. O local não
estava com cheiro de casa, tinha um odor azedo, um fedor de morte
velha, em vez de fresca. Devia haver homens na porta, mas eu tinha
visto Alphons lá fora da Casa Milano, recrutado para a guarda de
Hertet, e Dobro também pode ter sido selecionado.
“Lisa!” Outro anúncio estrondoso. Snorri olhou para mim atrás
dele. “Que grande!”
“Até parece que não lhe contei esse tempo todo que sou
príncipe.” Fiz sinal para ele continuar. “Vire à esquerda depois das
próximas portas. E tente não matar nenhum criado.” Se
encontrássemos Ballessa enquanto carregávamos uma tocha
fumacenta, seria Snorri que estaria em perigo. Sujar o teto do
cardeal não era permitido. Nesse instante eu me lembrei que
tínhamos transformado meu pai em fumaça naquela manhã, e uma
tristeza inesperada se abateu sobre mim – uma coisa só minha, e
não um presente de um lichkin.
É uma coisa estranha ficar triste pela morte de alguém de quem
você nunca realmente gostou em vida, e é uma coisa que decide o
próprio momento de aparecer – geralmente bastante inconveniente
– mas é isso... talvez nós lamentemos as oportunidades perdidas,
as conversas que teriam soltado todas as palavras que nunca foram
ditas, o jeito que as coisas deveriam ter sido.
“Para onde agora?”
Eu parei. Era mesmo um lugar grande. “Lá em cima. Vamos
checar os antigos aposentos de Darin.”
Ao subirmos a escadaria, ouvi o som distante de batidas,
alguma coisa socando uma porta? O lugar parecia silencioso,
tirando aquelas pancadas, embora o silêncio seja o costume dos
cadáveres e da necromancia – até o momento em que saltam para
cima de você no escuro.
“À esquerda no topo.”
A tocha de Snorri gotejou e as sombras dançaram, com a
escuridão intocada cheia de horror. “Perigo.” Ele usou uma palavra
pequena para minimizar um grande desastre. Havia sangue
congelado em cachoeiras grudentas descendo os quatro ou cinco
degraus do topo. O patamar estava cheio de partes do corpo
espalhadas, manchas escuras de sangue nas paredes, chegando
mais alto do que parecia razoável.
“Guardas do palácio.” Algumas partes tinham pedaços grandes
o suficiente de uniforme para identificá-los. Os homens devem ter
sido mortos, depois reanimados, e finalmente desmembrados.
Às margens da luz da tocha, um vulto escuro estava agachado
sobre outro de armadura. Snorri empurrou a tocha para minha mão.
Movendo-se lentamente, ele deixou seu machado escorregar até
segurá-lo bem abaixo da cabeça, e fez a última coisa que eu
recomendaria. Ele o pôs no chão.
“Como assim?” Vi a figura escura fazer uma pausa no que
estava fazendo e olhar em nossa direção, com uma tensão como se
estivesse se preparando ou para atacar ou para fugir.
Snorri me ignorou e apenas segurou a borda de seu escudo
redondo, tirando o outro braço das alças. Duas coisas aconteceram
ao mesmo tempo. O vulto nas sombras saiu correndo e Snorri atirou
seu escudo como um disco. A borda de ferro atingiu a criatura na
nuca e a derrubou.
Corremos para frente e Snorri pegou seu machado. Um
monstro do lodo estava estatelado ao lado de um tronco
ensanguentado com armadura muito brilhante. Não dava para ver
quem era – o rosto havia sido devorado. Snorri desvirou o ghoul
com o pé. Um bigode escuro e eriçado estava preso nos dentes do
monstro, além de vários pedacinhos desagradáveis de carne.
“Sir Uoger,” falei, enfim compreendendo quem habitava a
armadura brilhosa. “Meu primo o mandou com estes homens para
recuperar as irmãs DeVeer.”
O ghoul abriu um olho. Snorri enfiou o machado em seu peito.
As batidas soaram mais altas, ao alcance da mão. Snorri meteu
a bota no pescoço do ghoul e arrancou sua arma de volta com um
barulho úmido.
“Lisa?” Prossegui, com a espada à frente, a tocha de lado. Um
padre estava diante da porta da suíte de Darin, com os punhos em
carne viva de tanto bater na madeira. Ele se virou para me encarar.
Bispo James, pensei... O roxo estrangulado de seu rosto tornava
difícil saber. Robusto, envelhecido e sisudo, bispo James passara
muitas horas em vão tentando me ensinar os erros de minha
conduta quando criança, tanto com a vara quanto com a bíblia,
ambas empunhadas como uma arma. Nunca gostei dele, mas não
lhe desejaria este fim.
Bispo James correu para cima de mim com a imprudência dos
mortos. Eu sabia que não devia deixá-lo se empalar e prender
minha lâmina, então eu a balancei, arrancando uma de suas mãos
em algum ponto entre o punho e o cotovelo. Depois me abaixei,
descendo os ombros, e deixei ele cair por cima de mim. Uma
pancada molhada atrás indicou um encontro nada suave com o
machado de Snorri.
“Lisa?” Bati na porta. “Micha?”
“Barras? É você?” A voz abafada de uma mulher.
“Darin? Graças a Deus!” Uma segunda mulher.
“É Jal,” falei.
Um momento de silêncio. “Quantos homens estão com você?”
“Suficientes.” Eu me senti levemente insultado. “Abram a porta.
Precisamos sair, rápido.”
“Nós a bloqueamos. Vai demorar um pouco para tirar essas
coisas todas.” A voz de Lisa, bem fraca.
“Deixe-a fechada.” Snorri apareceu do meu lado. “Precisamos
vasculhar o local primeiro.”
“Deixem a barricada!” gritei mais alto, tentando fazer a ideia
soar como se fosse minha. “Vamos conferir se é seguro primeiro.”
“É Dobro, Jal!” gritou Micha por detrás da porta. Ouvi um choro
de reclamação da pequena Nia.
“Quê?” gritei de volta. Ou eu não tinha entendido ou ela não
estava fazendo sentido.
“Dobro!”
Virei para olhar para Snorri e dei de ombros. “Dobro?”
“Ela está falando de mim.” A voz veio do patamar atrás de nós.
Ao me virar, vi uma coisa construída com partes do corpo. Não
um homem, como o gigante que tinha me perseguido pelos
telhados, mas algo mais próximo das monstruosidades que haviam
se juntado para formar o andaime que os mortos utilizaram para
pular a muralha da cidade. A meu ver, era uma aranha sangrenta,
feita com os membros amputados dos homens que Sir Roger levou
à morte. Braços e pernas fundidos uns com os outros, criando patas
de aranhas grosseiras e desengonçadas, com a metade superior do
tronco no ápice onde essas seis ou sete patas convergiam.
“Um trabalho apressado e grosseiro, peço desculpas.” Eu me
concentrei no homem atrás dela, segurando um lampião no alto.
“Dobro?” Ele estava usando o uniforme da casa, embora os
braços estivessem cheios de sangue até acima dos cotovelos.
“Não é meu nome de verdade, claro, mas você me chama
assim há mais de um ano, então por que não deixar desse jeito pela
última noite da sua vida?”
“Mas... você...” Quando pensei a respeito, Dobro parecia um
nome improvável. Eu o conhecera escoltando Snorri até a torre de
Marsail no dia em que vovó mandou libertá-lo, depois que ele
contou sua história na sala do trono.
“Eu ficaria para bater papo, mas tenho coisas a fazer na igreja.
Só vim ver o que era esse barulho.” Dobro levantou seu lampião um
pouco mais alto. “E trouxe o nórdico de volta, pelo que estou vendo.
Onde ele estava? Estou vendo a morte nele todo.”
“A sua,” disse Snorri, e saiu na direção da aranha humana
fazendo uma careta, como se aquela forma repugnante o
preocupasse mais do que o combate em si.
Dobro estendeu a mão para Snorri, esticando os dedos em
volta do objeto preto arredondado que estava segurando. Snorri
parou, transformando a aversão em surpresa.
“Quê?” Snorri tentou se mover, mas parecia que seu corpo
havia se congelado em um bloco sólido. Até mesmo fazer a
pergunta sair por seus lábios exigiu esforço.
“Isto é realmente impressionante.” Dobro mostrou um sorriso
completamente diferente de minha lembrança de seu rosto sem
graça e amistoso. “Você está claramente vivo, no entanto a morte se
infiltrou em você quase até os ossos. Nós realmente precisamos ter
uma conversa antes de eu matar você.”
E aquilo me deixou sozinho protegendo a porta de Lisa contra
um necromante traiçoeiro e seu horror de estimação.
“Foi você que revirou meu quarto quando voltei do norte!” O
principal para não lutar com alguém é não deixar a luta começar. Em
alguns círculos isso é conhecido como enrolar.
“Não adianta tentar me enrolar, príncipe Jalan.” Dobro se
concentrou em sua criação e ela se aproximou mais ou menos um
metro. “Mas sim. Fui eu. Se você tivesse tido a decência de deixar a
chave de Loki com seus outros pertences, todos esses
aborrecimentos teriam sido adiados.” Ele voltou sua atenção à
aranha de carne e ela correu mais um metro para frente, com a
cabeça no meio daquilo tudo me observando com a mesma atenção
ávida que um gavião reserva ao camundongo.
“O que é esse negócio?” Apontei para o objeto na mão que
Dobro estava estendendo para Snorri.
“Ah, por favor.” Dobro avançou sua criatura mais alguns passos.
“Não, é sério, parece familiar.” A princípio achei que sua mão
estivesse segurando alguma coisa preta necromântica, mas era algo
sólido e real, e eu já tinha visto aquilo em algum lugar antes.
“Isto?” Dobro inverteu a palma, de modo que o objeto ficou
repousado sobre ela. “Uma moça jogou para mim enquanto estava
organizando as coisas na igreja.”
“Uma pedra sagrada!” A pedra sagrada de papai, para ser
exato.
“Sim. Uma das irmãs DeVeer a jogou. Vou devolver a ela em
breve.” Novamente aquele sorriso estranho. “Suponho que ela
achou que um dos símbolos do cardeal tivesse algum poder sobre
mim? Como é aquele ditado? Aquela que não tiver pecado que atire
a primeira pedra? Mas as irmãs DeVeer dificilmente são inocentes,
não é mesmo? E seu pai nunca foi um grande cardeal...”
“Por que não dá para mim?” Eu precisava do sinete de papai
para me defender de minha irmã, se ela atravessasse – quando ela
atravessasse. A morte de Darin quase lhe dera a passagem de que
precisava, e, com tantas mortes na cidade, as coisas só poderiam
estar ficando cada vez mais fáceis para ela. Eu precisava do sinete
de um cardeal, pelo que Marco havia dito, mas os outros símbolos
de seu ofício eram quase tão sagrados quanto, e talvez fossem
suficientes.
“Isto?” Dobro pôs seu lampião em um dos postes de apoio do
corrimão que passava em volta do patamar. Ele passou a pedra
sagrada de uma mão para a outra, como o lichkin curtindo seu
momento de poder. Acho que ele estava irritado por ter servido à
casa de meu pai em uma posição tão baixa, enquanto esse tempo
todo escondia seus talentos. “Acha que não sei por que quer isso
aqui?” Ele a segurou pela alça escura de metal que contornava a
curva da pedra de ferro preto. “Irmã,” disse ele. “Irmã...,” alongando
a palavra em uma provocação. “O sinete de seu pai teria melhor
serventia contra ela, mas o arcebispo Larrin fugiu com ele. O único
que escapou. Se eu o tivesse pegado, teria conseguido o grupo
todo, do corista ao arcebispo.”
Pelo canto do olho, Snorri lutava contra as amarras que o
seguravam. Ele tinha passado tempo demais no Inferno,
mergulhado na secura das terras mortas, e a necromancia teria
domínio sobre ele até o mundo dos vivos o aceitar totalmente de
volta. A monstruosidade de Dobro começou a avançar novamente.
“Espere!” gritei. Você se surpreenderia com a frequência que
isso funciona.
A aranha de carne parou e Dobro ergueu as sobrancelhas,
convidando-me a elaborar.
“Se puder soltar a pedra sagrada de papai. Não quero danificá-
la quando matar você.” Levantei minha espada. A bravata é uma
tática tão boa para protelar quanto implorar. Eu só precisava ganhar
alguns minutos para Snorri se desvencilhar do feitiço necromante.
“Talvez eu demore um tempo com você, príncipe Jalan.” Dobro
examinou a pedra sagrada. “Você não faz ideia do quanto é
maçante servir à sua família. Como é difícil concordar e se curvar
perante um grupo de idiotas pomposos e equivocadamente
convencidos de sua própria importância...” Ele bateu a pedra com
força no corrimão, examinou-a com uma careta e depois fez sinal
para sua criatura acabar comigo.
“Pensando bem, fique com a pedra. Acho que não é possível
danificá-la.” Embora realmente quisesse o objeto, eu preferia passar
o próximo minuto observando-o bater nos corrimões do que lutar
corpo a corpos com aquele monstro feio.
Dobro mordeu a isca. Não esperava que fosse. Ainda assim, eu
entrei no jogo, gritando um ‘não!’ sofrido enquanto ele batia o troço
na parede. Deve-se sempre evitar os valentões, mas muitas vezes a
crueldade deles faz com que possam ser manipulados. “Não!” gritei,
como se ele estivesse batendo meu filho nos batentes das portas.
Quando ele finalmente conseguiu quebrar algum pedaço menor,
uma espécie de pino de metal, ninguém ficou mais surpreso que eu
ao ver o fecho lateral todo sair na mão dele. Sempre pensei que a
pedra sagrada fosse um abacaxi de ferro, imune a qualquer dano.
“Pronto!” sorriu ele. “Duvido que agora ela continue sendo
sagrada. Não está nem inteira. O que acha disso, príncipe Jalan?”
Não me lembro de ter dado nenhuma resposta. Na verdade, a
próxima coisa de que me lembro é de me encontrar na horizontal,
em uma cama, em um quarto com teto de painéis de carvalho.
“Quê?” Nunca fui muito criativo com a primeiras falas depois de
recuperar a consciência.
O rosto de Lisa DeVeer entrou em foco acima de mim. Eu me
sacudi até ficar sentado, quase quebrando o nariz dela com minha
testa. Micha estava parada ao pé da cama, segurando Nia contra o
peito. Snorri ocupava a entrada, de costas para nós.
“Dobro!” Apalpei meu quadril, esperando encontrar o cabo da
espada. “Cadê Dobro?”
Lisa apontou para a esquerda e levemente para cima, Micha
para a direita e para baixo. As duas pareciam estar falando ao
mesmo tempo, mas eu não conseguia escutar nada com o zumbido
em meus ouvidos. Saltei da cama, encontrei minha espada na
penteadeira ali perto e empurrei Snorri para o lado.
Uma fumaça acre pairava sobre o patamar lá fora. Dez metros
do corrimão haviam desaparecido, com tocos estilhaçados das
grades pontuando a abertura. A aranha de carne parecia ter
retornado a uma coleção espalhada de membros mal combinados, e
pude constatar que tecnicamente as duas irmãs estavam certas a
respeito da localização de Dobro. Alguns pedaços dele estavam
grudados nas paredes dos dois lados da porta.
Snorri disse alguma coisa, mas a única palavra que eu captei
foi ‘explodiu’.
“Cacete!” Virei novamente para o quarto. “Vamos sair daqui!”
“Para onde?” Dava para ver que Snorri estava gritando, embora
eu precisasse me esforçar para entender suas palavras.
“O Palácio Interno. É o lugar mais seguro. Garyus talvez esteja
lá também.” Eu mal conseguia ouvir minha própria voz com o
zumbido em meus ouvidos. Peguei um dos lampiões da lareira e
tirei Lisa e Micha de seu santuário. “Rápido. Em silêncio.” E fui na
frente, saindo de um lugar no qual eu imaginava que jamais
pudesse me sentir em casa novamente. Caminhamos entre os
destroços espalhados, uma lição sangrenta de como a igreja
recompensa a abundância de curiosidade de seus clérigos. Ficou
claro que desmantelar sua pedra sagrada, contrariando ordens
estritas, faz com que você seja reduzido a várias centenas de
pedacinhos ensanguentados.
21

“Quantos homens você tem?” Garyus estava sentado no trono de


vovó, apoiado por almofadas e flanqueado por dois guardas de elite
com suas armaduras de bronze-fogo. Ele tinha mais dez homens
desses espalhados pelo salão, alguns ensanguentados do trabalho
noturno.
“Uns sessenta.” Eu estava diante da plataforma com Snorri ao
meu lado. “Há mais dezenas deles espalhados pelo palácio. Mandei
oficiais os reunirem perto dos portões.”
Garyus me olhou com um olho escuro. O outro havia sido
fechado pelo punho de Hertet. Tio Hertet tinha ido ao quarto de
Garyus na torre após escurecer. Na semana anterior, eu perguntara
a meu tio-avô por que ele não transferia seus aposentos para o
Palácio Interno, agora que era comissário, mas ele balançou a
cabeça e me disse que pensava melhor em um lugar alto. “Além do
mais, as pessoas só o importunam se for importante. Cem degraus
dão uma perspectiva diferente ao que importa e ao que é só perda
de tempo.”
“E Hertet?” perguntei. “Foi encontrado?” Ele estaria entre os
mortos. A carnificina na Casa Milano havia sido completa.
“Ainda não.” Garyus tocou o inchaço em torno de seu olho.
“Houve incêndios na casa, e parte da parede dos fundos ruiu. Talvez
até mesmo contar os mortos esteja além do nosso alcance. Mas não
tive nenhuma notícia de que ele tenha escapado.” Ele balançou a
cabeça, e seu pesar parecia genuíno. “Garoto tonto.” Talvez ele se
lembrasse da criança, e não do homem que tomou seu lugar.
“Preciso pegar os homens que temos e voltar ao Portão
Appan.” A frase não se parecia com algo que eu diria, mas se os
mortos invadissem em quantidade nenhum de nós veria o próximo
pôr do sol.
“Tenho uma tarefa mais importante para vocês dois,” disse
Garyus.
Levantei a sobrancelha ao ouvir aquilo e me perguntei se o
soco de Hertet também não tinha confundido as ideias do tio dele.
“O que poderia ser mais importante? Por Cristo! Eles estavam
pulando a muralha horas atrás. É bem capaz de já terem tomado o
portão a essa altura. Precisamos...”
Garyus levantou a mão. “Tenho relatos mais recentes. Marechal
Serah está...”
“Marechal Serah? Quantos marechais esta cidade vai ter em
uma noite? E Serah é uma criança, caramba!” Embora, para ser
sincero, ela estava fazendo um trabalho eficiente organizando a
defesa quando eu saí.
Garyus esperou, franzindo os lábios para ver se eu tinha mais
alguma reclamação. Segurei a língua. “Há relatos de que a invasão
foi contida. Os mortos que ficaram fora das muralhas se tornaram
menos... vitais... e não conseguiram seguir os outros para cima da
rampa e do andaime. Reforços chegaram: uma força mercenária a
meu serviço, junto de cidadãos armados, incluindo vários que antes
ganhavam a vida nos Buracos Sangrentos e outros antros de luta
ilegais...” Aqui o olho dele vagou na direção de Snorri, deixando
claro que a história do nórdico e do urso havia chegado aos seus
ouvidos. “E esses reforços garantiram a destruição dos mortos que
entraram na cidade.”
“Eles vão atacar em outro lugar! A muralha perto da Praça do
Curtume mal está de pé da maneira que está. Eu...”
“O fogo na cidade externa cremou um grande número de
cadáveres amotinados contra nós, e diminuiu fortemente a
habilidade dos que restaram de se mover em torno da muralha.
Meus relatos indicam que falta ao grupo dos mortos liderança ou
direção.”
“Mas havia necromantes... Eu mesmo vi Edris Dean! Eles
devem estar planejando alguma coisa... Os bueiros!”
“Você mesmo cuidou dessa fraqueza, Jalan, e não há nenhum
indício de ataque. Parece que o Rei Morto perdeu o interesse nessa
investida.”
“Mas... por quê? Porque mandamos o lichkin dele de volta ao
Inferno?” Não fazia sentido. Ele estava quase vencendo. Por que
desistir?
“Um comerciante perguntaria que lucro nosso adversário estava
querendo ganhar.” Garyus se recostou, fazendo uma careta. “Por
que ele usou sua força aqui, contra esta cidade?”
“Porque a Rainha Vermelha nos deixou. Que ocasião melhor
para atacar Vermelhão?”
“Você está pensando nas coisas a que nós damos valor, Jalan,
não no que o Rei Morto dá valor. Por que ele se importa com
Vermelhão? Ou com toda a Marcha Vermelha? Há muitas cidades,
muitos lugares onde os vivos podem ser convertidos em mortos com
muito mais facilidade do que no coração de Marcha Vermelha, não
importa onde a Rainha Vermelha esteja.”
“Tudo isso pela chave? Tudo isso?” Não parecia possível,
embora no instante em que eu falei a chave ficou gelada em meu
peito.
“Que outra coisa lhe traria mais vantagens?”
“Mas...” Pus a mão sobre a chave. “Ele não a pegou. Por que
desistir agora?”
“Não sei, Jalan. O que eu sei é que o poder dele não é infinito,
e a possibilidade de vitória, do tipo que ele precisaria para conseguir
a chave, tornou-se pequena quando o lichkin foi embora e nossas
defesas se mostraram mais formidáveis do que talvez ele
esperasse.”
“Ou ele encontrou algum outro tesouro,” troou Snorri ao meu
lado.
“Talvez.” Garyus não demonstrou irritação pela interrupção de
um bárbaro. “Considerei essa possibilidade. Mas que outra
compensação poderia satisfazê-lo?”
Um pensamento horrível se desenrolou e, por mais que eu
tentasse dobrá-lo de volta em um pequeno pontinho de
possibilidade, ele não quis ir embora. “Por que eles vieram aqui,
para começo de conversa?”
“Quem?” Garyus transferiu o olhar de Snorri para mim.
“Os desnascidos.” Tantos quilômetros haviam passado debaixo
de meus pés e ainda assim me vi de volta ao começo de tudo. Eu e
Snorri juntos na sala do trono da Rainha Vermelha novamente,
falando sobre os mortos mais uma vez. E. na noite daquele mesmo
dia, cruzei com o Príncipe Desnascido na ópera, um lugar onde
nada de bom jamais aconteceu. “Por que os desnascidos vieram
para cá, primeiramente?”
“Vieram trazer ao mundo outro desnascido. Um poderoso.”
Garyus me olhou com uma intensidade peculiar. “Devia ser
poderoso, para arriscar os dois maiores servos do Rei Morto dentro
dos limites de Vermelhão com a Rainha Vermelha na cidade.”
“Minha irmã.”
“Você não tem uma irmã, Jalan...”
“Edris Dean a matou no ventre de mamãe na noite em que
esteve no palácio. Eu vi minha mãe testar a barriga com o seu
oricalco pouco antes do ataque. A luz... era como se o sol tivesse
vindo para a Terra...” A mão de Snorri apertou meu ombro, em um
momento de empatia, e depois se afastou. “Minha irmã me
perseguiu até eu sair do Inferno. Se ela tivesse me pegado, eu teria
sido o portal dela para o mundo. Acho que ela tentou atravessar por
papai quando ele morreu. E novamente quando Darin caiu na
muralha. Alguma coisa tentou atravessá-lo.”
“Mas não teve êxito?” Garyus franziu o rosto. “Então por que o
Rei Morto retirou suas forças...”
“Martus!” Uma certeza fria se apertou em meu peito. “Mande
buscar notícias de meu irmão!”
Garyus abaixou a cabeça. Com esforço, levantou a mão e fez
sinal, com dois dedos esticados. Um soldado ensanguentado saiu
do lado de um dos guardas reais, com o homem menor sendo
escondido pelo maior até agora. Ele parou a cinco metros do trono.
O uniforme rasgado o proclamava um oficial do Sétimo. Vários
cortes finos em suas mãos e rosto sugeriam um encontro recente
com um trapoeiro.
“Capitão Davio iria dar seu relato quando nossos assuntos
fossem concluídos,” disse Garyus. “Diga o que sabe, capitão.”
Garyus fez sinal para o homem se aproximar.
“General Martus...” O capitão engasgou e segurou sua
mandíbula como se quisesse conter a emoção em sua voz.
“Príncipe Martus, alteza... ele...” Davio retirou a mão, deixando as
duas bochechas manchadas de sangue. “Ele liderou o ataque. Não
havia medo nenhum nele. Correu direto para aquela ventania do
mal. Eu o vi cortar dois fantasmas pela metade e o vento foi para
cima dele. Nós estávamos lutando com os possuídos, mas general
Martus foi direto para o centro. Eu o perdi de vista... e depois
acabou. O vento morreu. Trapos, vidros e pedras caindo do céu... e
os possuídos enlouquecidos, sem nada mais que os organizasse.”
“E meu irmão?” Eu sabia a resposta.
“Nós o encontramos no meio daquilo, senhor, alteza. Cortado e
dilacerado. Medi o pulso, mas dava para ver que estava morto,
senhor. Chamei homens para carregá-lo até o palácio, e vi a espada
dele ali perto. Aconteceu quando eu estava pegando a espada no
chão.” Ele ficou em silêncio, olhando para alguma lembrança, e
pensei que Garyus fosse ter de perguntar, mas assim que
chegamos ao ponto em que algum de nós teria de falar, o capitão
sacudiu a cabeça na direção de Garyus e continuou. “Os olhos dele
se abriram. Os olhos do general Martus se abriram e eu achei que
ele fosse se levantar como os outros que tínhamos perdido, maluco
e morto, precisando ser esquartejado. Os caras todos levantaram
suas espadas e machados... nós tínhamos deixado de lado nossas
lanças e pegado qualquer coisa que cortasse. Os que não tinham
espadas ficaram com machados de lenhador, facas de açougueiro,
tudo que conseguimos encontrar... Ninguém queria ser o primeiro a
acertá-lo. Por ele ser um príncipe, e nosso general.”
“Mas ele não se levantou com um salto. O corpo dele... se
mexeu... mas era como se alguma coisa o estivesse corroendo por
dentro. Seus ossos... nós os ouvimos estalando, e ele parecia estar
cheio de serpentes, se contorcendo. O corpo dele inteiro se
afundou... só os olhos que não mudaram.” Davio conteve o choro.
“Eles continuaram olhando para nós. E aí... e aí...”
“Apenas nos conte os fatos, capitão,” disse Garyus, mas de
maneira nada ríspida. “Eles deixarão menos cicatrizes quanto mais
rápido os disser.”
“Sim, senhor comissário.” Ele tomou fôlego. “E aí a coisa saiu
dele. Foi uma bagunça sangrenta e vermelha, como um cachorro
esfolado, só que com os olhos dele, os olhos do general Martus.
Aquilo saiu com tudo de dentro dele como se ele fosse um saco
onde o puseram para se afogar, e saiu correndo, muito rápido.
Batran Deens tentou impedi-lo. Mãos rápidas, daquele homem. Ele
se atirou para cima daquilo quando passou. Pôs os dois braços em
volta dele. Mas a coisa escorregou por ele e o deixou gritando. Em
todo lugar onde ele o tocara, a carne estava derretida, totalmente...
Eu vi os ossos dos braços dele.” O capitão abaixou a cabeça,
olhando para o chão.
“Eis aí a compensação do Rei Morto,” falei. Minha irmã
finalmente estava no mundo. Eu não senti nada – apenas um vazio.
Ficamos em silêncio por um momento, contemplando o
tamanho da merda em que estávamos metidos. Eu havia queimado
meu pai, queimado metade da cidade onde morava, perdido dois
irmãos e ganhado uma irmã desnascida homicida, tudo no mesmo
dia. Duvidei que fosse possível encaixar mais desgraça entre um
nascer do sol e outro.
Garyus falou primeiro. “Você precisa levar a chave para o
norte.”
“Isso é loucura. O Rei Morto vai nos alcançar e pegá-la!” Eu já
não me sentia mais seguro atrás da muralha de Vermelhão, mas
ainda assim era bem mais seguro do que fora dela.
“O Rei Morto não o alcançou durante todo o tempo que passou
viajando de Trond a Umbertide. Você passou meses nessa viagem.”
Garyus olhou para Snorri como se quisesse confirmação. “É quando
a chave está parada que ele a encontra. Enquanto ela estiver aqui,
a cidade inteira correrá perigo.”
“Para onde a levaríamos? Quer que a gente simplesmente saia
correndo até despencarmos dos confins do mundo?”
“Os mortos fora de nossas muralhas não são a maior ameaça
que enfrentamos, Jalan.” Garyus examinou a palma de sua mão. A
Rainha Vermelha tinha a mesma mania quando estava pensando.
“Existe uma ameaça maior?” Senti, sem ver, Snorri se virar para
olhar para mim. A pergunta dele parecia arder na minha nuca, sem
ser dita.
Levantei as mãos. “Admito que o fim iminente do mundo seja
um problema maior. E...” Virei bruscamente para olhar para Snorri.
“Não quero ouvir um pio sobre Ragnarok. Não tem nada a ver com
isso. É aquela sua maldita roda, ela vai partir o mundo em dois. Ou
melhor, está deixando que nós façamos isso. Ou melhor, está
deixando gente como a Dama Azul, Kelem e o Rei Morto fazerem
isso. Então sim, todos nós iremos morrer. E talvez nem tenhamos a
chance de destruir o mundo porque as máquinas que os
Construtores deixaram para trás provavelmente vão acender mais
um monte de sóis e nos queimar da face terrestre para impedir que
isso aconteça... De um jeito ou de outro, coisa boa não é.”
Snorri me olhou com uma intensidade que geralmente
reservava aos homens em quem estava prestes a atirar seu
machado. “Iremos até Osheim e faremos a Roda parar de girar.”
“Isso é só papo de viking.” Eu me virei para Garyus. “O que
devemos fazer de verdade?”
“Vocês precisam levar a chave até a Roda de Osheim,” disse
Garyus.
“Levar...” E eu duvidava ser possível enfiar mais desgraça em
um mesmo dia. Eu estava errado. “Quê? Por quê?” Eu pretendia
simplesmente dizer não, mas quando abri a boca as perguntas
saíram.
“A chave precisa ser levada ao centro. Ninguém jamais
escapou daquele lugar. É um dos poucos lugares que devem ser
seguros. Se o Rei Morto, seus servos ou qualquer um for atrás dela,
eles não voltarão.”
Pigarreei. “Acho que está se esquecendo de um ponto
importante aqui. Ninguém jamais escapou daquele lugar.”
“O ponto é exatamente esse, Jalan. Não me esqueci.”
“Eu...” Eu havia me enfiado no Inferno por não ter a coragem de
admitir minha covardia. Decidi não entrar numa situação parecida
outra vez. “Olhem. Vou dizer logo. Não sou a favor de nenhum plano
que não preveja meu retorno, e ponto final. Tenho certeza de que há
voluntários bem mais capazes de fazer... essa coisa.”
“Eu vou,” disse Snorri. Nós dois o ignoramos.
Garyus manteve os olhos em mim. “O resto da questão é que
você não irá até lá simplesmente para colocar a chave em um lugar
seguro. Irá até lá para usá-la. A Roda é a origem de nossos
problemas e a chave é a única coisa que pode pará-la. Você irá até
lá para girar a Roda para trás. Se fracassar, a chave estará em um
lugar perigoso de alcançar e impossível de escapar, mas se tiver
sucesso o mundo não se partirá, você conseguirá retornar e todos
viveremos as vidas que estavam estabelecidas para nós.”
Suspirei aliviado. O velho estava louco. Alguém precisava
substituí-lo como comissário e então poderíamos todos ficar
sentados até a Rainha Vermelha voltar para nos salvar. Se é que
ainda estava viva.
“Sim.” Snorri parecia que não precisava ser convencido de
nada. “Devemos partir hoje.” Nós dois o ignoramos.
“Tio-avô.” Tentei fazer uma voz compreensiva. “A Roda de
Osheim... não é uma roda de verdade, sabe? É um túnel
subterrâneo bem profundo que forma um círculo de quilômetros de
largura. Ela não pode ser ‘girada’.”
“É uma máquina. Foi isso que Kara me contou,” disse Snorri. “É
uma máquina que mudou o mundo mil anos atrás e ainda está
mudando. Ela foi inicializada, portanto pode ser parada.”
“Interessante,” falei, e com isso eu quis dizer ‘feche a porra da
boca’. Por que Snorri estava com tanta vontade de sair correndo
para Osheim, eu não fazia ideia. Acariciei o queixo como se
considerasse as palavras dele e tentei não soar irritado demais.
“Túnel, máquina, tanto faz, é enorme e não dá para girar para trás.”
“Mas dá para desligar,” disse Garyus. “Se tiver a chave certa.”
22

E assim eu me vi lá nas docas do rio, prestes a fugir de Vermelhão


de barco com um viking outra vez. Mesmo viking, outro barco.
Argumentei diversas vezes que deveria pelo menos levar um
esquadrão de elite, e com isso eu queria dizer um pequeno
exército... ou, se dependesse de mim, um grande. Garyus salientou
que qualquer infantaria só me atrasaria, e eles eram necessários na
muralha. A horda de mortos-vivos vagando pelas cinzas da cidade
externa ainda representava uma ameaça substancial e não havia
como ter certeza de que o Rei Morto não voltaria sua atenção a eles
ou mandaria outro lichkin ou desnascido para concentrarem seus
esforços.
“Um cavalo rápido lhe servirá melhor do que duzentos homens,
e a rainha levou a pouca cavalaria que nos resta à Slóvia. Todos os
cavaleiros que ficaram em Vermelhão são necessários como
reservas ágeis para reagir a possíveis incursões.”
Garyus orientou que começássemos nossa jornada seguindo a
linha de avanço de vovó até a Slóvia. O rastro de destruição
possibilitaria uma passagem relativamente livre de impedimentos.
Ele não tinha notícias de sua irmã, e os relatos de sua morte
pareciam ser apenas um desejo por parte de tio Hertet. Com um
pouco de sorte, vovó já teria arrasado a fortaleza da Dama Azul e
matado aquela bruxa com as próprias mãos.
É claro que isso me levou a sugerir então que eu entregasse a
chave nas mãos da Rainha Vermelha e deixasse que cuidasse do
futuro dela, fosse na Roda de Osheim ou para guardar no pescoço.
Caso fosse na Roda, ela certamente faria um trabalho melhor do
que eu.
Garyus me contradisse novamente. “Você tem qualidades que
ela não tem, Jalan. Qualidades necessárias. Você vai fugir. Você vai
mentir e trapacear. Minha irmã é mais capaz de lutar e morrer. A
única maneira certa de fazer esta chave chegar a Osheim é nas
mãos de alguém tão flexível e engenhoso como você.”
A conversa de Garyus sobre sua irmã voltou meus
pensamentos à minha. No Inferno, Marco havia revelado que o mais
sagrado dos itens poderia separar a alma da criança desnascida do
lichkin que a controlava. Mas o sinete de papai se foi, sua pedra
sagrada também, e uma busca pelo Palácio Interno não encontrou
nada mais sagrado que uma cruz de ouro benzida pelo cardeal.
Peguei-a assim mesmo. Era feita de ouro! Mas, verdade seja dita,
eu desconfiava que ser benzida por meu pai provavelmente a
tornava menos sagrada, não mais.
Tudo isso me deixou parado em uma margem de rio fria e
nebulosa, pensando que, se eu realmente fosse flexível e
engenhoso, teria encontrado uma maneira de sair dessa. E também
me deixou segurando a lateral do rosto.
“Acho que ela soltou um dos meus dentes.” Cutuquei com a
língua.
“Parece bem para mim,” disse Snorri, olhando para a água.
Mandei um guarda trazer Micha até mim em uma das salas de
espera do palácio. Ela veio com Nia berrando nos braços, com a
expressão arrasada da maternidade recente sobreposta ao longo
horror da noite.
“Jalan?” Ela parecia surpresa em me ver.
“Sente-se, Micha.” Acenei para o sofá em frente, um estofado
feito por algum mestre florentino.
“O que é? É Darin! Diga!” Ela se levantou e ficou parada no
lugar, e até os berros de Nia diminuíram para enfatizar o momento.
As palavras secaram em minha boca e eu quis
desesperadamente poder brincar de surdo outra vez. “Ele foi muito
corajoso,” falei. Havia muito mais que eu pretendia dizer. Eu sabia
como iria declamar tudo, as palavras sobre o heroísmo de meu
irmão, palavras de consolo, palavras de incentivo para o futuro. Mas
quando chegou a hora de dizê-las a ela, só saíram aquelas quatro.
Foi aí que ela desabou, curvada e caída no chão, com Nia
ainda em segurança e silêncio em seus braços. Eu esperava raiva,
perguntas, negação, mas a dor simplesmente veio e levou a voz
dela embora.
Mandei Alphons, da guarda de meu pai, levá-la até o salão de
baile, onde vários soldados cuidavam de um grupo cada vez maior
de sobreviventes dos arredores do palácio. Em seguida, pedi para
buscarem Lisa. Ela entrou pálida, com o olhar frio, orgulhosa, como
se eu fosse o invasor e ela minha prisioneira.
Tentei defleti-la para o sofá, mas ela continuou se aproximando
até estarmos quase nariz com nariz. Meu instinto sempre foi dar
más notícias de longe e estar preparado para correr.

“Dois dentes, acho.”


“Quê?”
Tirei os dedos da boca e repeti com mais clareza. “Dois dentes,
acho.” Eu deveria ter seguido meus instintos. Ser sincero e
compassivo só faz você levar um tapa com tanta força que seus
dentes balançam. Eu nem disse que Barras estava morto, apenas
que o perdemos de vista na batalha e que não era um bom sinal...
“Lá está o barco.” Snorri apontou para um trecho mais escuro
da neblina.
O borrão ficou mais nítido ao se aproximar da margem. Um
barco de fundo plano, do tipo utilizado para transportar animais e
mercadorias pelo Seleen ou então pequenas distâncias a montante
ou a jusante. Agora ele estava com meu garanhão, Murder, e três
outros cavalos escolhidos pela resistência. O par que não seria
montado estava carregado de mantimentos e uma barraca.
Dois barqueiros saltaram na margem e puxaram a embarcação
para o baixio, para que Snorri e eu pudéssemos entrar. O plano era
nos levar rio abaixo, fora de qualquer perigo dos sitiantes da cidade,
e nos colocar em algum trecho seguro à margem do rio, para que
pudéssemos seguir o caminho de minha avó até a Slóvia. De lá,
nossa rota nos levaria por Zagre, ao norte até o reino da Charlândia,
e finalmente de volta a Osheim.
Estranhamente, apesar de todo o pavor e da falta de esperança
de nossa viagem, a parte de estar em movimento era bem boa.
Senti falta de Snorri. Não que eu fosse chegar ao ponto de
demonstrar. E agora que ele estava de volta e o mundo estava
novamente passando por nós, pensei em Kara e no menino de
novo. Havíamos passado tanto tempo viajando os quatro juntos, que
ser uma dupla novamente parecia tornar a ausência deles mais
palpável. Como se o certo fosse a mão da völva no leme e Hennan
mexendo nas cordas.
Eu me juntei a Snorri na proa enquanto os barqueiros nos
empurraram de volta para a correnteza com varas grandes. “Eu falei
que a Roda no fim atrai todo mundo de volta.” Era isso que Vó
Willow dizia. A Roda puxaria você até ela. Podia ser rápido ou lento,
mas no fim você iria, achando que a ideia fosse sua, cheio de bons
motivos para isso. E ali estávamos nós, a centenas de quilômetros
de distância, cheios de bons motivos, com destino à Roda.
“Pode ser,” concordou Snorri. “Algumas coisas não podem ser
evitadas.”
Ele falou de maneira leve, mas senti um peso por trás daquilo.
Talvez uma lição aprendida no Inferno.
“Osheim está com as garras em você, Snorri. Fundas. Foi só o
velho tocar no assunto e você já estava fazendo as malas. Se ela
tem tanto poder sobre você a centenas e centenas de quilômetros...
que utilidade você terá quando realmente estivermos lá?”
“Farei o que precisa ser feito.”
Ele parecia tão sério, tão determinado, que deixei o assunto
morrer. Talvez ele soubesse de alguma coisa que eu não sabia. Não
perguntei. Snorri podia ficar com seus segredos, eu não tinha o
menor apetite para histórias das terras mortas, mas talvez elas
aguardassem por mim de qualquer maneira nos dias que viriam.
Talvez, como a Roda, elas estivessem em meu caminho e não
pudessem ser evitadas.
Snorri ainda estava com aquela estranheza, aquela mistura de
morte e de lenda que trouxera consigo quando voltou do outro lado
da morte. Ficamos os dois parados, observando as águas escuras
do Seleen escapando da neblina e desparecendo debaixo da proa,
sem dizer nada.
Os acontecimentos do dia anterior se desenrolaram sobre a
página em branco fornecida pela bruma do rio. A brancura a
princípio era a fumaça da pira de papai, retorcendo-se e subindo,
depois as nuvens quentes se formando sobre o Portão Appan,
repletas de gritos dos mortos e dos moribundos em meio a um
incêndio provocado por mim. Vi o rosto de Darin, formado no meio
da bruma. Barras também apareceu e percebi que não me lembrava
da última vez que o vi. Será que estava comigo quando liderei o
ataque para salvar Darin? Eu não sabia. Tinha uma imagem dele,
de olhos arregalados, balançando sua espada sangrenta em meio a
uma multidão de mortos, mas quando e de onde ela vinha eu não
sabia, nem o que aconteceu depois. Lisa me disse que deixei Barras
morrer, que o abandonei à própria sorte porque ele se casara com
ela. Eu vi Martus ali também, com o rosto levantado para mim, como
estava quando lhe atirei minha espada. Ele não foi o melhor dos
irmãos, e nem o melhor dos homens, mas caramba, ele era meu
irmão, filho de minha mãe, e saber que ele se foi me deixou vazio. A
espada estava novamente pendurada ao meu lado, o último ponto
de contato entre nós.
O que Snorri viu na neblina eu não poderia dizer, mas nenhum
de nós falou até o sol de outono desfazer a neblina branca das
margens do rio. Àquela altura, a correnteza já tinha nos levado
dezesseis quilômetros e não vimos nem vestígio do exército do Rei
Morto em nenhum ponto.

Murder, cavalo sensato que era, mostrou-se apavorado com barcos,


e o processo de botá-lo em terra firme sem ninguém ser coiceado
até a morte foi complicado. Não estava longe do meio-dia quando
todos os quatro cavalos haviam sido desembarcados e nossos
equipamentos verificados. Garyus havia me impingido a ‘caixa de
fantasmas’ de Luntar, dizendo que poderia ser útil em Osheim.
Desconfio que ele simplesmente não queria ficar com uma caixa de
fantasmas, assim como eu.
“O que é isso?” perguntou Snorri quando a peguei.
“Isso,” disse “contém os fantasmas de um milhão de
Construtores. Aslaug está aí dentro também.”
“Achei que a tivesse trancado de volta no lugar escuro.” Ele não
pareceu tão preocupado quanto deveria.
“Bem, não é Aslaug, é a mulher que se tornou Aslaug. O
fantasma dela. É complicado.”
“Aslaug foi humana? E Baraqel? Ele está aí dentro também?”
“Provavelmente. Não sei. Não importa. Esse troço me dá
arrepios. Nenhum deles tem nada de útil a dizer, de qualquer forma.”
Enfiei a caixa bem fundo em um alforje de minha montaria
sobressalente, uma égua acastanhada com o exagerado nome de
Escudeira, e fiz o possível para me esquecer dela.
Meia hora depois, estávamos cavalgando em ritmo moderado
pela estrada de Verona, dois cavalheiros tratando de seus afazeres
no dia mais agradável que o outono tem a oferecer. Os campos
estavam vazios, com a riqueza da colheita reunida, e todas as
fazendas estavam tranquilas, em silêncio na estabilidade da terra, e
o povo honesto de Marcha Vermelha cuidando de suas obrigações.
Passamos por um pátio de carvão, com uma carroça no portão
sendo carregada com sacos e um cachorro amarelo no degrau da
cabana do dono, preguiçoso demais para nos perseguir. Parecia
incrível que a vida seguisse tão tranquila aqui, sem ser perturbada
pelos horrores de Vermelhão. Ao olhar para trás, nem dava para ver
a fumaça da cidade externa.
“Eu poderia quase me sentir seguro aqui.” A estrada passou
sinuosa por um pequeno bosque, as árvores todas ardendo com o
fogo do outono. Apenas os carvalhos guardavam o verde,
contrariando a ameaça distante do inverno, e até eles tinham toques
dourados. “Quase seguro. Pelo menos com um bom cavalo debaixo
de mim.” Bati no pescoço de Murder. O terror da noite mordiscava
as beiradas da minha imaginação, mas o som e o campo aberto me
ajudaram a fazer o que faço de melhor – guardar todas as coisas
ruins e esquecê-las por enquanto. “Há uma boa estalagem neste
trecho da estrada. Tenho certeza. Devíamos parar e almoçar. Porco
assado e cerveja cairiam bem.” Ter perdido uma noite de sono
começou a pesar sobre mim, junto com o calor do dia e a ideia de
uma boa refeição, me deixando sonolento. Lutei para manter os
olhos abertos, bocejando tanto que poderia estalar a mandíbula.
A próxima curva da estrada trouxe uma visão tão inesperada
que cada gota de sono foi embora, junto com qualquer resquício da
sensação de segurança que vinha me rodeando.
“Um homem muito pequeno em um cavalo muito grande, com
uma espada grande demais para ele.” Snorri constatou o óbvio.
“E muitos amigos.” Eu já tinha virado Murder quase totalmente.
Por que conde Isen estava no nosso caminho, à frente de uma
coluna de várias centenas de homens, eu não sabia. O importante é
que eu realmente não queria saber. Nosso duelo podia ter ficado no
passado, mas eu tinha extensos conhecimentos carnais de sua
esposa, a mais velha das irmãs DeVeer: sem dúvida o baixinho
desgraçado iria encontrar alguma nova maneira de virar esse fato
contra mim.
Snorri inclinou-se em sua sela e pegou minhas rédeas. “Este é
o seu país, Jal. Esses homens são estão sob seu comando?”
“Ele é um conde,” falei. “A lealdade dele é à rainha.” Puxei os
arreios de Murder, tentando nos livrar da mão do nórdico. “Ele
também é um louco que me odeia. Então estou planejando
circundá-lo com a ajuda de algumas vias locais – pelos campos, se
for preciso – acredite em mim, do contrário isso não vai acabar bem.
Se nos apresentarmos seremos no mínimo atrasados, o mais
provável é que mate nós dois.”
Snorri deixou para lá encolhendo os ombros. “Quando você fala
desse jeito...” Ele começou a se virar, e depois parou. “Kara?”
Olhei para trás por cima do ombro. Havia uma mulher loira
parada na frente da primeira fileira de soldados de infantaria, com
Isen de um lado e quatro cavaleiros montados do outro. Não podia
ser Kara, no entanto. “Não é ela.” Comecei a voltar por onde
viemos, com Escudeira vindo obedientemente em sua corda.
“Príncipe Jalan!” A voz de conde Isen se projetou bem no ar
parado. “Estou com dois nórdicos aqui que alegam conhecê-lo.”
“Hennan?” gritou Snorri.
“Ai, inferno.” Eu viro Murder novamente. Sair desembestado
ainda parecia a melhor ideia, mas sabia que Snorri não viria comigo,
e eu tinha um longo e perigoso caminho pela frente. “O que quer,
Isen?”
“Talvez possa me conceder a honra de me aproximar, para não
termos de ficar gritando pela estrada como camponeses.”
Eu tinha uma sensação ruim sobre a coisa toda, mas avancei
relutantemente, chegando a cinco metros de distância dele. A
infantaria enfileirada na estrada atrás do conde e seus cavaleiros
estava usando o libré de Isen sobre uma cota de malha leve, e suas
lanças formavam um mar acima das centenas de capacetes de
ferro. Kara e Hennan estavam à sombra dos cavalos, ambos sujos
da viagem, mas em melhor estado do que os deixei. É difícil parecer
satisfeito e preocupado ao mesmo tempo, mas a völva e o menino
estavam se saindo muito bem nisso.
Kara abriu a boca, mas Isen falou antes que ela dissesse uma
palavra. “Estive no leste, protegendo as rotas de abastecimento da
rainha até a Slóvia.” O condezinho manteve aquelas contas
inclementes que tinha no lugar dos olhos apontadas firmemente na
minha direção. “Mas recebi notícias de que a cidade está sitiada.
Até mesmo em chamas. Teria chamado os cavaleiros de
mentirosos, mas eu mesmo pude ver o brilho ontem à noite,
conforme nos aproximamos.” Um sorrisinho passou rapidamente
nos lábios de Isen. “Mas eu devo ter me enganado. Um príncipe de
Marcha Vermelha não estaria se afastando da cidade em uma hora
de perigo!”
“O comissário nos enviou em uma missão urgente.” Apontei
para Snorri, já que visivelmente Isen o havia ignorado. Talvez ele
achasse que a mera existência de um homem tão grande fosse um
insulto à estatura concedida a ele, apesar de sua alta posição. “E
você foi corretamente informado – Vermelhão está sitiada e a cidade
externa foi incendiada.”
“Meu Deus!” Conde Isen se levantou nos estribos como se a
notícia fosse atormentadora demais para receber sentado. “Quem
diabos ousaria? Rhonenses descendo os rios? Não! Uma revolta
adorana! Eu disse a Rainha Alica dez vezes para ficar de olho.
Qualquer aventura ao leste pede uma traição no oeste. E como, em
nome de Deus, eles chegaram à capital tão rápido? Nossa guarda
de fronteira é jogada de lado com tanta facilidade?”
“É o Rei Morto que está nos atacando,” disse. “As tropas não
cruzaram nossas fronteiras – são os mortos de Vermelhão,
levantados de suas sepulturas, ou de onde foram trucidados ontem.”
Isen abriu a boca, e sua expressão me disse que seria para
contestar o que também teria me parecido loucura um ano antes. Eu
o detive levantando a mão. “Apenas acredite, Isen, estou realmente
cansado demais para discutir. Ou se não quiser acreditar, reserve
seu julgamento até chegar lá – de um jeito ou de outro, você mesmo
já viu o fogo, então acredite que sua ajuda é necessária e leve
esses homens até lá o mais rápido possível.” Respirei fundo e
mudei de assunto apontando para Kara e Hennan. “Então me diga:
por que um homem tão elevado está em tão baixa companhia?”
“Desça de seu cavalo, príncipe Jalan, e discutiremos o
assunto.”
“Talvez eu não tenha enfatizado a urgência da...”
Isen começou a desmontar como se eu estivesse apenas
mexendo a boca para passar o tempo.
“...urgência da minha missão. Eu não deixei uma cidade no
meio de um ataque, uma cidade, devo acrescentar, da qual por
acaso sou marechal, para poder passar o dia com cada
conhecido...”
“Desça do cavalo, príncipe Jalan, isso não vai demorar.” Conde
Isen chamou Hennan à frente. Ao ver que o menino estava
relutante, foi até ele e pôs a mão em seu ombro. Hennan parecia ter
crescido uns trinta centímetros desde que pus os olhos nele da
última vez, e agora estava uns cinco centímetros mais alto que o
conde. “Este jovem parece ter uma ótima opinião a seu respeito,
meu príncipe. Não vai querer decepcioná-lo, vai?” Isen virou aqueles
olhos loucos e pretos, como os de um inseto, na minha direção. Ao
contrário de seus homens, ele andava desarmado, com uma capa
forrada de pelo, quente demais para o clima. Manoplas de couro
estavam jogadas sobre o pito da sela.
Com um suspiro, desmontei. Murder certamente poderia
desbancar os cavaleiros de Isen, mas há alguma coisa em ser
encarado por gente que espera mais de você... é como se fosse
uma âncora, uma âncora bem inconveniente. Ignorando Isen,
caminhei até Kara, que parecia bem em um vestido simples de
linho, os cabelos em tranças, como estavam quando nos
conhecemos. O sol havia finalmente escurecido sua pele e isso lhe
caiu bem. “Kara.” Eu lhe dei meu melhor sorriso.
“Ladrão!” Seu tapa me pegou desprevenido.
“Ai! Cacete, Kara!” Cambaleei para trás, apertando o rosto.
Dava para sentir a marca da mão ardendo ali, vermelha, ainda bem
que foi do lado oposto ao que Lisa tinha escolhido. “Jesus!” Isen me
bateu no ‘lado da Lisa’ do rosto, balançando uma de suas pesadas
manoplas – ele precisou se esticar para alcançar, mas pôs força
suficiente que fez minha cabeça girar, lançando um jato de cuspe e
surpresa. “Ah, espere aí!” berrei, cambaleando para longe, com as
mãos para cima em defesa. “Por que diabos fez isso?”
Como resposta, Isen levantou o polegar e o indicador
apertados, como se estivesse mostrando algo para eu inspecionar.
Por entre as lágrimas em meus olhos, pude ver algo minúsculo e
dourado.
“O que é isso?” enxuguei a boca e vi sangue em meus dedos.
“Um motivo,” disse Isen.
“Um motivo pequeno para caralho!” gritei.
“Parece um pedacinho afiado de ouro,” concedeu Snorri. Eu
preferia que ele simplesmente dividisse Isen em dois pedacinhos
ainda menores.
“É uma farpa,” disse Isen, falando entredentes. “Mandei folhear
a ouro. Quer adivinhar onde a encontrei?”
“Acho que foi... quando enfiaram aquele bastão no seu rabo.” A
dor no meu rosto me fez esquecer temporariamente que ele tinha
várias centenas de homens enfileirados ali atrás – embora tenha
ficado satisfeito ao ver vários deles fazendo força para prender o
sorriso.
“Eu o descobri debaixo do meu couro cabeludo, um mês após
você me bater por trás com um galho de árvore. Encontrá-lo me
devolveu a memória do incidente. E agora, senhor, iremos concluir a
questão que deveria ter sido resolvida na beira da estrada muitos
meses atrás.” Ele sacou sua longa espada reluzente. Vê-lo ali, com
aquele mesmo brilho louco nos olhos, os lábios apertados em uma
linha fina e sanguinária debaixo de seu bigode grisalho, me fez
lembrar do quanto ele era rápido com a espada e do quanto eu não
queria enfrentá-lo novamente.
Eu me endireitei para ficar da minha altura, mantendo a mão
bem longe do cabo de minha espada, e tentei uma dignidade altiva.
“Admito que alguma pancada tenha embaralhado seu juízo, Isen,
mas não foi minha. Não tenho tempo para seus jogos nem a menor
intenção de ser distraído de meus negócios urgentes.”
“Discurse o quanto quiser, príncipe Jalan, mas juro por Deus
que não irá sair deste local até eu obter minha satisfação.”
Com isso o lunático claramente queria dizer: morto e jogado
sobre um cavalo. Fiquei quebrando a cabeça enquanto andava para
trás.
“Se ele tentar fugir, atropele-o, Sir Thant!” O condezinho me
conhecia bem demais.
Mesmo que Snorri abatesse um cavaleiro, não conseguiria
derrubar todos. Além do mais ele esperava que eu lutasse com Isen.
Provavelmente achava que minha relutância era por causa da
estatura do homem.
“Já que fui desafiado, eu escolho as armas.” Um conhecimento
extenso de duelos ainda poderia me salvar.
“Espadas!” respondeu Isen, com as duas sobrancelhas
levantadas a uma altura impressionante. “O que mais seria?
Nenhum cavalheiro lutaria com outro com armas de camponeses,
como machados e foices!”
Snorri rosnou, mas não se mexeu. Esfreguei meu queixo
dolorido por um momento. Isen recusaria qualquer arma aquém de
sua posição e estaria no direito dele. Senti a marca da manopla dele
em minha bochecha, e isso me deu uma ideia. “Socos!” falei,
fechando as duas mãos e erguendo-as.
“Quê?” Isen inclinou-se para frente, esticando o pescoço como
se tivesse entendido mal.
“Socos! O esporte dos reis,” falei. “Sem dedo no olho, sem
morder, sem golpes abaixo do cinto.” Eu sabia por experiência
própria e dolorosa que ensinavam a arte aos jovens príncipes, e
imaginei que os jovens condes também não fossem dispensados
dos rigores dessa educação.
“Não vou brigar na estrada de Sua Majestade como um plebeu
comum...”
“Tenha cuidado, Isen. Minha avó incentiva a arte pugilística nos
círculos mais elevados – creio que não irá criticar o julgamento dela,
assim como não negará à parte desafiada o antiquíssimo direito de
escolher suas armas.” Brandi os dois punhos. “E aqui estão elas!”
Não que eu de fato gostasse daquela possibilidade, mas já havia
batido em alguns adversários na vida, e Isen preenchia um dos
meus requisitos, ter a altura média de um menino de doze anos.
Isen fechou a cara. “Se tiver que bater em você até a morte
com as próprias mãos, príncipe Jalan, então é exatamente isso que
irei fazer.” Ele passou a espada para Sir Thant, do qual dava para
ver pouco, apenas uma barba eriçada embaixo de seu elmo e olhos
ferozes brilhando nas sombras atrás do visor.
“Muito bem.” Ele tinha colhões, isso eu admito. Esperava que
ele fizesse um escândalo e cancelasse a coisa toda.
Passei minha espada dentro da bainha para Snorri. “Sua adaga
também.” Snorri fez sinal com os olhos para o outro lado do quadril.
“Já vi homens se apunhalarem em brigas sem querer – depois que o
sangue ferve, os instintos tomam conta.”
Apertei os dentes e consegui lhe agradecer enquanto entreguei
a faca.
Os cavaleiros entraram em posição para demarcar os quatro
cantos de um campo de luta, e as primeiras fileiras do comando de
Isen ficaram em volta para assistir, completando a praça. Snorri
ficou em um dos lados, com o rosto franzido.
“Bom... tudo certo então,” falei, ficando de frente para meu
adversário e me sentindo ligeiramente constrangido. Em algum lugar
naquele mar de rostos, Kara e o menino estavam assistindo. Não
tinha certeza se arrasar um anão maluco iria elevar o juízo que
faziam de mim.
Isen veio para cima de mim, punhos em riste, abaixando-se e
balançando-se como uma galinha enfurecida. Um pouco
constrangido por nós dois, eu o golpeei, sabendo que eu tinha pelo
menos trinta centímetros a mais de vantagem, sem contar trinta
quilos a mais e duas ou três décadas a menos. O pequeno maníaco
se abaixou debaixo do meu braço e se levantou soltando uma
rajada de golpes em minha barriga e costelas. A sensação foi de ser
atingido por pequenas marretas de ferro. Marretas de ferro,
pequenas ou grandes, são incrivelmente dolorosas. Ganindo, eu me
afastei com um salto, e ele veio caindo em cima de mim
imediatamente.
“Calminha... eu não quero machucá-lo.” O murro que lancei na
direção dele reuniu todas as minhas forças. Isen bloqueou o soco
com os dois punhos, bem na frente do rosto, e depois me bateu no
pulso com um terrível uppercut antes que eu pudesse puxar o braço
para trás. Doeu para caralho e deixou meu pulso dolorido.
Olhei para Snorri para me inspirar. Ele fez um soco por mímica,
eu virei para trás e vi Isen fazendo exatamente aquilo. Quase
totalmente esticado, ele me atingiu no queixo. A sensação era de
que minha cabeça tinha explodido: vi luzes piscarem, o mundo girar,
e um encontro com o chão, de chacoalhar os ossos, permitiu-me
deduzir que uma queda também estava envolvida. Ao levantar a
cabeça e estreitar os olhos, pude ver dois vultos pequenos se
aproximando de mim. Será que iria terminar minha ilustre carreira
sendo espancado até a morte por anões?
Ao sacudir a cabeça, as duas imagens do conde Isen se
juntaram conforme ele se aproximava de mim. Todas as partes de
meu corpo doíam e fiquei deitado enquanto ele me rodeava.
“Confesse seus crimes, príncipe Jalan,” bradou ele. “Você jogou
seus galanteios indesejados e degenerados na minha querida
Sharal!”
Fiquei olhando para o céu, esperando que aquele teatro dele
me deixasse encher os pulmões com o ar tão necessário. Com a
visão periférica, pude ver que Isen continuava a me rondar como se
eu fosse algum troféu, um veado enorme que tivesse trazido de
alguma caçada, talvez.
“Confesse seus crimes! Você se forçou em minha inocente...”
Estiquei o braço e derrubei Isen. Ele caiu para trás, aterrissando
pesadamente enquanto me sentei.
“Eu a comi!” Fiquei de pé enquanto Isen rolou de bruços. “Mas
ela não era nenhuma inocente.” Eu me abaixei e peguei a traseira
do cinto de Isen com uma mão e a parte de trás da gola com a
outra. “E ela gostou!” Essa última parte eu falei com um urro
enquanto o levantei acima da cabeça, segurando-o firme, apesar do
seu esforço.
Isen se debatia como um peixe no convés, mas eu o segurei.
“Dê-se por vencido!”
“É até a morte, seu idiota!”
Ele podia ser um sujeito pequeno, mas já estava parecendo que
eu estava segurando um homem totalmente crescido acima da
cabeça.
“A morte é um resultado permitido, mas uma das partes ainda
pode aceitar se a outra se der por vencida,” citei de meus extensos
conhecimentos dos regulamentos de duelos.
“Bem, eu não me rendo!” gritou Isen. Deu para imaginar a
espuma em volta do bigode.
“Posso soltar você em cima do meu joelho e quebrar suas
costas. Percebe isso?”
“Faça o seu pior, espoliador!”
Eu tinha certeza de que alguém devia ter trocado Isen por
Snorri: era a única maneira de explicar como ele tinha se tornado
tão pesado. Precisei apoiar um pouco do peso dele na minha
cabeça, para aliviar os braços. “Duas irmãs DeVeer enviuvaram
desde o último pôr do sol,” falei, com os dentes cerrados de esforço.
“Não quero enviuvar a terceira.” Depois, bem baixinho para a
multidão não ouvir, chiei: “E, se não se entregar, vou colocar você
no colo e lhe dar umas palmadas na frente de suas tropas.”
Um silêncio mortal se seguiu, durante o qual eu mal consegui
mantê-lo suspenso. Se tivesse se debatido, ele teria se libertado e
eu estaria fraco demais para me defender dele – mas no fim foi a
ameaça à sua dignidade, e não à sua vida, que o assustou.
“Eu me rendo.”
Fiz o possível para não o soltar, mas no fim o resultado foi
praticamente o mesmo. “Isen se rende!” gritei alto o bastante para
que todos ouvissem e me afastei rapidamente, enquanto dois
capitães correram para ajudá-lo a se levantar. Eu teria levantado os
braços em vitória, mas naquele momento até levantar a mão para
coçar o nariz teria sido uma tarefa hercúlea.
Isen afastou-se de seus cavaleiros e veio andando na minha
direção. Tentei não recuar nem lhe implorar para não me bater de
novo. Simplesmente fiz o papel do Jalan ousado, corajoso e blefista,
esperando que uma performance suficientemente convincente
apagaria a lembrança de ter sido derrubado por um único soco e
ficar caído à mercê do conde.
“A honra já foi estabelecida, Isen, e pelo menos uma das irmãs
DeVeer ainda tem marido. Agradeça suas bênçãos, e lembre-se de
que Sharal é a maior delas.”
A boca de conde Isen se retorceu com todas as palavras duras
que ele queria desferir em minha direção, mas, como a antiga
nobreza, ele se conteve e seguiu o protocolo. “Estabelecida.”
Abaixei minha voz apenas para os ouvidos dele. “Faça sua
obrigação. Vermelhão precisa de você. Se jogar as cartas certas,
pode sair dessa como um herói. Talvez você encontre mortos
vagando perto da cidade – em número pequenos, é uma chance de
deixar seus homens se acostumarem à ideia e de desenvolver suas
táticas. Lanças não são as melhores armas.”
“Os mortos realmente se levantaram?” Isen mordeu o lábio,
olhando ao longe por cima das cabeças de seus soldados.
“Você precisa mandar mensageiros à cidade para se coordenar
com o novo marechal. Mande-os pelo rio – cuidado com monstros
do lodo, eles nadam e usam dardos envenenados. Seus homens
serão mais úteis do lado de dentro da muralha, então conseguir
entrar com eles será a primeira tarefa...”
Isen me lançou um olhar duro, talvez me reavaliando, se bem
que pela expressão dele isso poderia ser bom ou ruim. Ele levantou
a mão e gritou: “Saiam!” Andou rapidamente até a beira da estrada
e os homens saíram do caminho dele. Da beira, chamou os nórdicos
até lá e depois fez sinal para seus cavaleiros seguirem. Snorri, Kara
e Hennan vieram ficar do nosso lado e os lanceiros começaram a
passar marchando. Sir Thant trouxe a montaria do conde e Murder
imediatamente bufou uma provocação ao cavalo maior.
“Deixarei esses estrangeiros aos seus cuidados, príncipe Jalan.
Meus agentes os encontraram na estrada de Roma rumando para o
norte, e já que eles eram o único elo que eu tinha para encontrá-lo
depois do seu número impressionante de desaparecimento...” Ele
me lançou um olhar sombrio. “...ofereci a eles a hospitalidade de
minha casa. A mulher balbucia um monte de bobagens pagãs.” Ele
acenou para Kara como se ela fosse incapaz de entender a língua
do Império. “Alegou que você e o outro haviam descido até o
submundo!” Isen conseguiu juntar repulsa e graça em uma única
bufada. “Mas ela sabe alguns truques e disse que conseguiria
encontrá-lo quando estivesse mais perto... e conseguiu! Em todo
caso, eles são responsabilidade sua agora. Solte-os, mantenha-os
encarcerados como espiões, ou entregue-os à inquisição – o que
decidir.”
Isen se virou e montou em seu cavalo monstruoso, uma
façanha que exigia vários passos a mais que o tradicional. Ele se
virou em sua sela e olhou para todos nós lá de cima. “Não falaremos
sobre isso novamente.”
Com uma sacudida das rédeas o conde nos deixou, e Sir Thant
trotou atrás dele em direção à frente da coluna. Nós o observamos
saindo, em silêncio por um bom tempo.
“Então.” Eu me virei para Kara e Hennan. “Sentiram saudades
de mim?”
23

Oitocentos metros depois, encontramos a estalagem de que me


lembrava, O Marchador Alegre, um prédio comprido em enxaimel
com estábulos e dependências, oferecendo alimentação,
acomodação e, se necessário, consertos a qualquer viajante com
dinheiro suficiente no bolso.
Escolhemos uma mesa do lado de fora. Vale a pena aproveitar
os últimos dias quentes do ano, quando e onde eles aparecem. E
dias de outono, quando o sol está brilhando, foram feitos para jantar
ao ar livre. Depois que algumas frentes frias passaram a foice nos
muitos insetos que normalmente tentam se acrescentar à sua
refeição, o prazer de comer a céu aberto aumenta
imensuravelmente. E é claro que a coisa que realmente é a melhor
de estar ao ar livre... é que praticamente qualquer direção que sair
correndo é uma rota de fuga.
“Então você levou conde Isen direto para cima de mim?” Lancei
um olhar acusatório para Kara e esfreguei o queixo, possivelmente
no lado em que ela me bateu – meu rosto havia sido tão maltratado
ultimamente que eu nem sabia mais.
“E por que não levaria?” Kara rebateu meu olhar acusatório
com o seu próprio. Ela era melhor naquilo. “Você nunca mencionou
o homem perto de mim, e ele é um nobre que jura lealdade à sua
avó. Além do mais, estava nos mantendo presos e pretendia
continuar até encontrar você.”
“Bem...” Dei um gole do vinho para ganhar tempo de pensar em
uma réplica. “É... desleal! Não é o tipo de coisa que amigos devem
fazer.”
“Mas roubar deles, tudo bem?” Kara partiu um pedaço do pão
de casca grossa, usando a mesma violência com a qual alguém
poderia esganar uma galinha.
“Que lindo isso, vindo de uma mulher que passou três meses
tentando roubar a chave de Loki de Snorri!”
“Eu estava tentando impedir que a chave fosse para Hel. Acha
que o que aconteceu com a sua cidade foi ruim? Se o Rei Morto
conseguisse aquela chave, poderia fazer o mesmo com cem
cidades em um ano!”
“E como foi que o levou até mim?” desviei a conversa para uma
direção menos condenatória.
“A chave de Loki leva todo tipo de gente até ela.” Kara desviou
o olhar raivoso de mim para seu pão e sopa. “Principalmente depois
que ela para em algum lugar.”
A velocidade com que ela desviou o olhar chamou minha
atenção. Um mentiroso experiente percebe bem os defeitos
daqueles com menos prática. Olhei para Snorri e depois novamente
para Kara. “Snorri pôs o sangue dele na chave para vinculá-la a ele.
Foi por isso que, quando a usei para abrir a porta, lá estava ele do
outro lado.” Apoiei o queixo na mão, percebendo o quanto já estava
espetado. Um dia na companhia de Snorri e eu já estava ficando
barbado. “Mas originalmente era você que deveria ajudá-lo a voltar,
foi você que amarrou aquele pedaço de barbante no dedo do pé
dele... ou seja lá o que as bruxas fazem quando querem encontrar
alguma coisa. E eu estive em Vermelhão quase um mês inteiro...”
Apontei o dedo para ela. “ Foi só Snorri aparecer que você fez o
velho Isen abandonar seu posto, não foi?”
Ela levantou a cabeça, de cara fechada e sem resposta, mas a
cor em suas bochechas disse o suficiente. Olhei novamente para
Snorri, mas ele estava concentrado em sua comida e não consegui
ver que expressão ele tinha. “Bem.” Fiz uma pausa para terminar
meu vinho e acenar para o menino trazer mais. “Foi ótimo. E foi bom
vê-lo outra vez, jovem Hennan. Mas Snorri e eu estamos em uma
missão muito perigosa, onde a rapidez é essencial, portanto
teremos de partir.” Arranquei uma coxa da galinha assada fria que
estava no meio de nossa mesa. “Depois que terminarmos nossa
refeição.” Deixei o ajudante encher meu cálice. O tinto da casa se
mostrou altamente palatável. “Então devemos dizer adieu e deixar
vocês seguirem seus próprios caminhos.”
“Aonde estão indo?” perguntou Hennan. Fazia menos de um
ano, mas ele havia espichado como uma erva daninha, e seu rosto
assumiu a forma mais longa e angulosa que teria enquanto adulto,
se é que o mundo não iria se despedaçar antes. “Podemos ir
também.”
“De maneira alguma,” disse. “Não vou levar uma criança até um
perigo mortal.”
“Mas para onde estão indo?” Kara repetiu o menino com a
mesma falta de decoro.
“Isso, lamento dizer, é segredo de estado.” Dei meu melhor
sorriso principesco.
“Osheim,” disse Snorri.
“É para lá que eu estava levando Hennan,” respondeu Kara,
sem perder tempo. “Ele tem parentes não muito longe da Roda.” Ela
acenou para onde eu havia amarrado Murder e Escudeira. “Vocês
têm quatro cavalos.”
“Vocês não sabem montar.” Parecia mais fácil do que dizer não.
“Passamos um verão bastante tedioso como prisioneiros de
conde Isen. Embora ele insistisse em se referir a nós como
hóspedes e nos desse algumas liberdades. Sir Thant ensinou nós
dois a montar.”
Olhei para Snorri, sem esperar nenhum apoio após a
divulgação rápida e traiçoeira de nosso destino. “Está vendo? É a
Roda. Ela atinge até as völvas no fim. Ela ainda acha que é ideia
dela...” Virei novamente para Kara. “Não. Vocês nos atrasariam.
Além do mais, podemos ser caçados. Vocês ficariam bem mais
seguros sozinhos.”
A mandíbula de Kara assumiu um formato determinado e
familiar. “Você não acha que terá mais chances conosco? Acha que
somos inúteis?”
“Hennan é apenas um garoto!” Abri os braços. “Acho que não
está entendendo direito o que está em jogo...”
“Hennan passou a vida toda a um dia de caminhada do centro
da Roda. A família dele viveu naquele vale por pelo menos quatro
gerações, provavelmente quarenta. Todos os filhos dessa linhagem
que sentiram o poder da Roda chegaram um século atrás. O que
poderia ser mais valioso do que alguém que consiga resistir aos
encantos de lá, quando você estiver perdendo a razão?
“Devemos levar o garoto para casa, Jal,” disse Snorri naquele
tom de voz que indicava que o assunto já havia sido decidido. Junto
com o uso da lógica ardilosa de Kara, e o fato de que eu estava
exausto, machucado, empanturrado, bêbado e, de maneira geral,
traumatizado demais para querer discutir, deixei o nórdico ganhar.

Pelos próximos cinco dias, rumamos ao leste. O outono continuava


a fazer uma imitação bem boa do verão, com as manhãs frescas e
os pores do sol quentes e dourados. Marcha Vermelha desvendou
suas belezas, vestidas com as cores tradicionais da estação e,
embora mantivéssemos um ritmo acentuado, a oportunidade de
dormir em boas estalagens e jantar em casas abertas pela beira da
estrada aliviava muito a função. Na verdade, há poucas maneiras
melhores de passar o dia do que cavalgando por Marcha em um
belo dia de outono.
Nós quatro nos reaproximamos com níveis variados de
hesitação. Hennan se mostrou tímido a princípio, ficando de boca
fechada e ouvidos abertos, mas quando finalmente chegou ao ponto
de fazer perguntas, elas vieram em enxurrada.
Kara se manteve reservada por mais tempo, claramente não
me perdoando por ter roubado a chave e lhe negado um retorno
triunfante a Skilfar. Cheguei a dizer que conde Isen provavelmente a
tomaria dela com consequências potencialmente desastrosas, mas
essa lógica não pareceu apaziguar a völva.
Snorri, fiel à sua palavra lá no palácio, parecia estar em paz,
curtindo nossa companhia, embora não desse sinais de querer falar
sobre o que lhe acontecera. Fiquei aterrorizado em todos os
momentos que passei no Inferno: ser deixado lá sozinho estava
além da minha imaginação. Ainda bem.
Não demorou muito para que as perguntas de Hennan se
voltassem ao que acontecera com Snorri e eu quando passamos
pela porta na caverna de Kelem. Eu logo entendi o desejo de Snorri
de deixar as coisas quietas.
“O que vocês viram?”
“Eu...” Eu realmente não queria pensar naquilo. E certamente
não queria botar aquilo em palavras. De alguma maneira, dizê-las
em voz alta faria aquilo parar de ser um pesadelo, algo irreal e que
pertencesse só àquele outro lugar. Falar sobre aquilo à luz do dia o
traria ao campo das experiências, uma coisa real e concreta com a
qual teria de lidar. Eu teria de começar a pensar no significado de
tudo: a ideia de que, após um curto tempo na Terra, uma eternidade
em um lugar daqueles pudesse estar à nossa espera era
profundamente deprimente. Está tudo muito bem quando a morte é
um mistério sobre o qual os religiosos desperdiçam boa parte do
domingo. Vê-la com seus próprios olhos, de perto, é um horror
profundo e não é algo que eu gostaria de infligir a uma criança ou a
mim mesmo. “Está um dia bonito demais, Hennan. Pergunte outra
coisa.”

Por mais que eu tentasse enterrar as lembranças de Vermelhão,


meu antigo talento se mostrou inadequado para a tarefa, e elas me
acompanharam pela estrada, assombrando cada arbusto, prontas
para saltar a qualquer momento tranquilo, ou para se pintar em
qualquer tela em branco, seja no céu ou nas sombras.
Minha mente ficava voltando à morte de Darin, ao lichkin na
Casa Milano, à minha última visão de Martus. Cada coisa dessas
era um trampolim para o fato frio e cruel de que minha irmã tinha
finalmente adentrado o mundo que por tanto tempo lhe fora negado.
Minha irmã, desnascida, conduzida por um lichkin, e que ansiava
por minha morte para ancorá-la ainda mais contra a atração
incessante do Inferno.
Procurei a sabedoria de Kara sobre o assunto, esperando que a
völva tivesse feito algum estudo sobre nosso inimigo no tempo em
que estivemos separados.
“Um homem no Inferno me disse que era preciso alguma coisa
sagrada para destruir um desnascido,” falei, levando Murder perto
da égua de Kara.
Ela deu de ombros. “É possível. Teria de ser alguma coisa
muito especial. Alguma relíquia, talvez. Talvez nas mãos de um
padre. Às vezes a fé move mais a montanha do que a magia.”
“A chave de Loki não seria a melhor coisa para separar uma
coisa da outra? Minha irmã do monstro que a controla? Ela é
sagrada, foi feita por um deus!”
Kara me deu um sorriso fraco. “Loki é um deus, mas quem é
que tem fé nele?”
“Mas a chave funciona! Ela poderia desfazer...”
“Os lichkin são monstros de muitas partes. Não nascem, não
são feitos, são acúmulos das piores partes das pessoas, a imundície
que sai das almas purgadas em Hel.” Apesar de o dia estar lindo à
nossa volta, ele pareceu mais frio e frágil quando Kara falou dessas
coisas. “Quando antigos ódios descem às ranhuras mais profundas
do submundo, às vezes elas se encaixam e se entremeiam.
Perversões dos piores tipos, separadas de seus donos, ficam
vagando até se emaranharem, e lentamente, ao longo de gerações,
uma coisa terrível é criada. Mas o que está emaranhado pode se
desenrolar. Se usar a chave o lichkin será desfeito, mas sua irmã
será dilacerada, picada, ainda presa aos pedaços de seus crimes.
Você precisa de uma coisa menos destrutiva – algo que vá
persuadir o lichkin a soltá-la e deixá-la ir embora.”
Lembrei de como o lichkin que eu havia apunhalado sem querer
com a chave, no Inferno, havia se desmanchado. Kara estava certa.
Além do mais, as chances de eu enterrar a chave de propósito em
um desnascido eram remotas demais para sequer cogitar. Eu
precisava de algo sagrado e não tinha nada. O sinete de papai havia
sido recuperado por Roma e sua pedra sagrada havia se consumido
na violência que destruiu Dobro e suas necromancias.
Kara não me ajudou em nada e meus medos continuaram a me
perseguir até a fronteira.

No quinto dia, cruzamos a fronteira da Slóvia. Nenhuma batalha


havia sido travada aqui, embora a passagem de tantos homens de
Marcha tivesse deixado uma espécie diferente de cicatriz. A
chegada dos dez mil soldados de vovó dever ter pegado o pequeno
forte de Ecan de surpresa – certamente o lugar não apresentava
sinais de conflito, e a pequena guarnição de Marcha Vermelha que
ficou para trás para vigiá-lo parecia mais entediada do que
preocupada.
Rei Lujan provavelmente soube da incursão um ou dois dias
depois. Não gostaria de estar no mesmo lugar que ele quando isso
aconteceu. Nunca o conheci, mas as histórias o retratavam como
alguém que tinha a disposição de um glutão com dor de barriga e a
tendência de, quando irritado, atacar quem estivesse ao alcance
com qualquer coisa que lhe estivesse à mão, seja o prato do jantar
ou um porrete com tachões.
A falta de preparo dos slovianos poderia ser perdoada, até certo
ponto. Uma invasão geralmente é precedida por meses de
animosidade e pelo agito cada vez mais alto dos sabres. Os
exércitos primeiro se reúnem nas fronteiras e as defesas são
reforçadas para o contra-ataque. Às vezes um campo de batalha é
até combinado, para impedir que dois exércitos grandes não se
percam e fiquem marchando em círculos por dias ou meses.
O ataque de vovó, direcionado a um único alvo – a cidade
fortificada de Blujen – e mais especificamente à torre que abrigava a
Dama Azul, na parte leste da cidade, não seguiu nenhuma das
regras de guerra. Não houve nenhuma ameaça, nenhum
descontentamento, nenhum incidente nas fronteiras. Seu exército foi
reunido no meio de Marcha Vermelha, atraindo forças das regiões
ocidentais, e depois rumaram ao leste sem delongas. Um golpe
repentino e direto de um disfarce profundo, inesperado e fatal.
Talvez se tivesse atingido a cidade de Julana, a Rainha Vermelha
teria tomado a capital da Slóvia e já teria a cabeça do rei em um
espeto. Mas que valor existe em pintar mais um reino de vermelho
no mapa da sala de guerra, se o mapa inteiro está prestes a
queimar?

Qualquer exército arruína a terra por onde passa. O exército de


vovó deixou suas marcas nas fronteiras da Slóvia, não por malícia
nem conflito, mas pelo simples tamanho. Nos lugares onde a
estrada não os comportava, as tropas marcharam por campos. Para
sorte dos fazendeiros, as safras já não estavam mais lá para serem
pisoteadas. Com menos sorte, no entanto, qualquer força de
milhares de integrantes faz uma limpa pelos campos ao passar, e
uma safra recém-colhida simplesmente torna mais conveniente
pegar e sair.
“As pessoas vão morrer de fome quando chegar o inverno. Até
nessas terras verdes.” Kara parecia enojada comigo, balançando o
braço para os camponeses de olhos fundos que nos observavam
passar.
“Eles têm sorte de ter casas que ainda estão de pé,” falei. “Ora,
eles têm sorte de estarem vivos.” Snorri e eu havíamos passado
pela região da fronteira onde Rhone e Scorron encontram Gelleth –
cidades lá tinham sido reduzidas a campos de cinzas quentes,
outras foram deixadas aos fantasmas e aos ratos, abandonadas
pelas pessoas. Mas Kara não pareceu apaziguada, e continuou me
olhando como se eu tivesse pessoalmente liderado a invasão.
“A fome é mais cruel do que qualquer espada, Jal.” Snorri
observou a estrada com a boca apertada.
“Acho que estamos nos esquecendo do principal aqui.”
Crianças esfarrapadas nos olhando de uma árvore na beira da
estrada não ajudaram a me colocar em uma posição agradável. “Se
a Dama Azul não for detida, e se não formos bem-sucedidos em
Osheim, ninguém terá tempo de morrer de fome: não vai haver
inverno, e ficar com fome deixará de ser uma opção.”
Nenhum deles teve resposta para aquilo e seguimos em frente
em silêncio, e eu ainda fiquei me sentindo culpado, apesar de minha
lógica perfeita. Depois me dei conta de que devia ter acrescentado a
maneira como aqueles dois faziam eu me sentir culpado por todas
as coisas que normalmente não ligaria a mínima aos motivos para
não trazer Kara e Hennan conosco.

A próxima manhã veio com tudo, gelada, deixando as sebes


pesadas de orvalho e nós com a certeza de que o inverno estava
afiando suas garras.
Cavalgamos com mais cautela agora, examinando a mata e as
sebes por sinais de emboscada. Um exército invasor deixa um
terreno perigoso em seu rastro. Acrescente ao desespero da
população sobrevivente a eliminação do jugo de seu soberano e
terá a situação perfeita para bandos armados de saqueadores e
invasores.
Felizmente o plano de vovó previa uma saída rápida, depois
que seu objetivo fosse alcançado, e isso exigia que ela mantivesse
livres as estradas de volta a Marcha Vermelha. Passamos por meia-
dúzia de postos de controle até o sol se pôr em nosso primeiro dia
na Slóvia, e em cada um deles eu tive de contar minha história. O
volume e a confiança com que eu falava pareciam ser mais
importantes para nos fazer passar do que o documento de
autorização rebuscado elaborado por Garyus.
Em Trevi, vimos os primeiros sinais verdadeiros de batalha.
Primeiro senti o cheiro amargo da fumaça permeando a bruma da
noite ao passarmos pela Via Julana, cansado e sentindo o peso da
distância. O cheiro de Vermelhão queimando ainda assombrava
minhas narinas, mas aquele foi um incêndio de nuvens quentes que
extinguiu até as estrelas. Este fedor era de fogo antigo escondido
entre as ruínas, queimando baixo, consumindo lentamente o último
combustível por baixo das grossas camadas de cinzas.
O sol caiu em direção às colinas do oeste, lançando nossas
sombras para frente e tingindo a neblina de carmim, antes de
avistarmos o forte arruinado. O monte onde ele ficava era pequeno
e isolado demais para ser um contraforte convincente e grande
demais para acreditar que os homens haviam amontoado tanta
terra. Uma pequena cidade havia crescido ao pé do monte para
atender às necessidades do forte. Poucas dessas casas restavam: a
maioria virou cinzas; aqui e ali havia uma viga de pé. O forte em si
havia perdido grande parte de sua guarita em alguma explosão
devastadora, com alvenaria espalhada pela encosta, descendo até
as faixas escurecidas dos prédios mais próximos. Não dava para
adivinhar que magias ou alquimias a Rainha Vermelha havia
utilizado, mas ela obviamente não tinha a intenção de montar um
cerco longo ou de deixar a guarnição protegida para ameaçar sua
linha de abastecimento.
“Impressionante.” Snorri estava esticado em sua sela, com os
olhos no cenário à nossa frente.
“Hummm.” Eu ficaria feliz quando tudo isso estivesse no
passado. A estrada levava a uma floresta emaranhada a uns
quatrocentos metros depois do forte. Parecia o tipo de lugar onde
sobreviventes pudessem se reunir e tramar vingança. “Vamos ficar
bem longe daqui. Fiquem alertas. Não gosto deste lugar.”
As palavras mal saíram da minha boca quando Escudeira
começou a fazer um barulho agudo. Não era algo que ela tivesse
feito antes. Não se parecia com nenhum som que um cavalo
pudesse produzir, aliás nenhum humano ou instrumento. Ele tinha
uma característica que não era natural, preciso demais, limpo
demais. Hennan olhou em volta surpreso, tentando localizar a fonte.
Até onde eu sabia, ele estava sentado na origem do som.
“Está vindo dos alforjes,” disse Kara, aproximando sua montaria
da do menino.
“Ah.” Nesse momento, adivinhei o que estava fazendo os bipes
e de repente o dia pareceu mais frio do que estava no momento
anterior. “Inferno.”
Snorri me lançou aquele olhar de duas partes dele, a primeira
parte era conte-me o que sabe, e a segunda parte senão lhe quebro
os braços. Desmontei e comecei a desamarrar o alforje esquerdo de
Escudeira. Foi preciso revirar um pouco para conseguir retirar o
pacote, e depois uma luta com os barbantes e panos para
desenrolá-lo. Os bipes vinha a cada quatro segundos, mais ou
menos, e o intervalo era longo o bastante para imaginar que o último
era realmente o último. Alguns instantes depois, tirei o resto do
embrulho e segurei a caixa de fantasmas de Luntar nas mãos. À luz
do dia ela parecia tão estranha quanto fora lá na sala do trono. Era
como se fosse um pedaço do inverno visto através de um buraco
em formato de caixa, e pesava muito pouco para o que eu sabia que
continha. Ela bipou novamente e eu quase a deixei cair.
“O que é?” Kara e Hennan, quase em uníssono, com o menino
uma fração na frente.
“Uma urna funerária,” falei. “Com as cinzas de dez milhões de
Construtores mortos. Abri a tampa. Um feixe de luz se espalhou
acima da boca aberta e coalesceu em uma figura humana pálida.
Um homem magro. Percebi duas coisas simultaneamente. Primeiro,
que reconhecia o homem. Segundo, que o choque da primeira coisa
me fez derrubar a caixa.
Hennan se mexeu com a maior rapidez que já vira um ser
humano reagir. Ele já tinha os pés ágeis quando tentei pegá-lo da
primeira vez que nos vimos em Osheim, mas meio ano o deixara
ainda mais rápido. Ele mergulhou para frente e, totalmente esticado,
pegou a caixa a dois centímetros do chão. O ar saiu de seus
pulmões com um ‘uuuuf’ agudo.
“Obrigado.” Peguei a caixa de suas mãos esticadas e a
coloquei sobre um marco miliário ao lado da estrada. Snorri se
abaixou para ajudar o garoto a levantar. Eu me agachei para olhar
para o fantasma de vinte e cinco centímetros parado no ar acima da
caixa. O fantasma usava uma longa túnica branca, abotoada na
frente e que descia abaixo dos joelhos, um homem magro, talvez
até franzino, de mais ou menos a minha idade, um rosto estreito
como o de uma coruja debaixo de cabelos claros e desgrenhados.
Ele tinha uma armação, enganchada nas orelhas, que segurava
duas lentes de vidro, uma na frente de cada olho. Parecia jovem
demais, mas eu o conhecia.
“Raiz-Mestra?”
“Elias Raiz-Mestra, PhD, ao seu dispor.” A figura fez uma
mesura.
“Você me conhece, Raiz-Mestra?”
“Dados locais sugerem que seja o príncipe Jalan Kendeth.”
“E ele?” Segurei a caixa de modo que ele pudesse ver bem
Snorri, agora parado na estrada, com as mãos apoiadas nos ombros
de Hennan à sua frente, ambos olhando em nossa direção.
“Sujeito grande. Nome desconhecido.” Dr. Raiz-Mestra franziu o
rosto, levantando a mão para esfregar o queixo, com os dedos
deslizando para um cavanhaque ausente.
“Não se lembra de Snorri?” perguntei.
“Sou apenas um registro de biblioteca, querido rapaz. Esta
unidade não é conectada à deepnet em... nossa, quase mil anos.”
“Por que você se parece com o Dr. Raiz-Mestra?”
“Com quem mais me pareceria? Sou o eco dos dados de Elias
Raiz-Mestra.”
Franzi o rosto e cogitei sacudir a caixa para ver se ela daria
respostas mais inteligíveis.
“Por que você apareceu, de todos os fantasmas nesta caixa?
E...” *bipe* “e por que ela está bipando?”
Raiz-Mestra franziu a testa por um instante, flexionando a mão
rapidamente no espaço entre nós como se quisesse arrancar uma
reposta. “Uma banda estreita de sinal de emergência, transmitida
usando potência residual de satélite, ativou todos os dispositivos
nesta área imediata.”
“Fale isso de novo com palavras que tenham significado, senão
vou fechar esta caixa, cavar um buraco e deixá-la aqui debaixo de
cinco palmos de terra.” E eu estava falando sério, exceto pela parte
de cavar.
Os olhos de Raiz-Mestra se arregalaram com aquilo. “Esta é
uma transmissão sancionada de emergência de nível 5. Você não
pode simplesmente se afastar – isso infringe uma série de
regulamentos. Você não ousaria!”
“Observe-me!” Eu me afastei.
“Espere!” Aquele troço fazia direitinho a voz de Raiz-Mestra,
isso eu preciso admitir. Ele tinha aquela mesma mistura de ofensa e
nervosismo de quando me repreendeu por trazer um desnascido a
seu circo. “Espere! Você queria saber por que eu fui projetado em
vez de qualquer outro registro?”
Olhei para trás. “E aí?”
“Sou eu que estou em apuros. Meu corpo. Em algum lugar aqui
perto. O sistema de localização está corrompido, órbitas
decaíram...” Ele percebeu meu rosto se enrugando e corrigiu sua
linguagem. “A caixa bipa mais rápido à medida que chegar mais
perto, mas é apenas um guia aproximado.”
Estendi a mão e fechei a caixa com um estalo. Não gosto de
fantasmas. “Então, vamos.” Eu a peguei, me endireitei e me virei
para Murder. “Enquanto ainda temos a luz.”
“Ele disse que Dr. Raiz-Mestra está em perigo.” Eu sabia sem
olhar que Snorri não estava se movendo.
“O homem do circo?” intrometeu-se Hennan. Devo ter lhe
contado histórias em algum momento.
“Talvez haja outras maravilhas com ele...” Kara parecia uma
mulher faminta descrevendo uma carne assada com molho. Olhei
para ela, mas a caixa em minhas mãos retinha sua atenção. Ela
bipou novamente. “Aquela era realmente a aparência dele?”
Dei de ombros. “Como ele, só que trinta anos mais novo.” Nas
lembranças de infância de vovó, Raiz-Mestra estava lá no palácio,
um homem de seus quarenta anos, chefe de segurança de Gholloth
I. O que diabos ele era, ou o que faz um homem desses correr
perigo, eu não tinha o menor interesse em descobrir.
“Em qual direção devemos tentar?” indagou Snorri.
Suspirei e apontei morro acima sem olhar para lá. “É bem
óbvio. Onde mais seria? Uma fortaleza cheia de cadáveres, com os
resquícios de alguma magia horrenda ou arma dos Construtores...
tem de ser lá, não tem?”
Ninguém se deu ao trabalho de contestar.
24

O sol se pôs, fazendo-nos escalar até o forte no arrebol da tarde.


Subimos as encostas antes da neblina e, ao olhar para trás, não
dava para ver nada da vila queimada, apenas um mar branco,
rodopiante, fluindo para as matas, enrolando-se em volta de cada
tronco antes de subir e submergir as árvores.
No oeste o céu brilhava avermelhado; no leste a escuridão
ameaçava, e em algum lugar uma coruja soltou a voz para saudar a
noite. Que ótimo.
*bipe* “Podíamos esperar até de manhã, sabe.” *bipe* Enrolei a
caixa em minha capa, tentando abafá-la. Aquele troço já era irritante
desde o início, e a irritação aumentou com o ritmo acelerado dos
bipes. “Ou eu podia ficar aqui com a caixa. Não queremos que nos
descubram.”
“Precisamos da caixa para encontrar Raiz-Mestra,” disse Snorri.
“E eu nunca pensei em sua Rainha Vermelha como o tipo que deixa
sobreviventes. Ainda mais armados e perigosos.”
Grandes blocos de alvenaria enchiam a parte alta da encosta, e
alguns pedaços eram tão grandes que tivemos de contorná-los.
Hennan saltou de um para o outro, claramente alheio à crescente
sensação de pavor que qualquer pessoa sensata deveria sentir
nessas circunstâncias. Logo acima de nós a brecha na muralha era
bem ampla, ainda com os resultados da violência que obliterou a
guarita.
“Aquilo ali é... fumaça?” Apontei para uma nuvem branca que
pairava em frente à brecha.
“A lembrança da fumaça.” Kara esticou a mão para o alto para
pegar alguma coisa no ar. Ao abrir a palma ela revelou uma
pequena semente presa debaixo de um pedaço de penugem. “Erva-
do-fogo. Sempre é o primeiro verde no meio do preto.”
Ao chegarmos mais alto, vi que ela estava certa. Entre as
muralhas tombadas e enegrecidas, as ervas cresciam até a altura
dos joelhos, e as sementes saíam flutuando em uma profusão
branca. Mesmo assim, alguma coisa parecia errada.
“Não parece estranho para vocês?” perguntei.
À minha frente Snorri parou e olhou para trás. “O quê?”
“Está parado demais,” disse Hennan, chegando atrás de mim.
Não era isso que eu estava pensando, mas ele tinha razão. As
sementes estavam vagando ao nosso redor mais abaixo da encosta,
mas acima da erva-do-fogo elas pairavam em uma grande nuvem
imóvel, como se o ar estivesse completamente parado.
“Vovó passou por aqui... o quê, duas semanas atrás, no
máximo?”
Snorri deu de ombros. “Você que sabe. Você a viu partir. Eu
estava em... outro lugar.”
Kara franziu o rosto. “Duas semanas não é tempo suficiente
para erva-do-fogo crescer e espalhar sementes. Nem mesmo se
tivesse crescido no instante em que o fogo se apagou.” Ela manteve
os olhos na fumaça falsa e imóvel. “Talvez sua avó não tenha feito
isto.”
“Foi ela.” Passei andando por eles, indo na direção do outro
lado da brecha, onde a única erva que crescia ainda estava perto do
chão, sem sinal de flor ou de semente. No fundo de minha mente,
passou mais um sonho de sangue da Rainha Vermelha, não aquele
de Raiz-Mestra no palácio, quarenta anos antes de eu nascer, mas
o da torre de Ameroth... outra fortaleza que havia explodido e onde
o tempo havia corrido em padrões estranhos.
Muita gente deve ter sido morta, mas não vimos nenhum corpo
ao cruzarmos o pátio, passando por cima dos escombros. Seria
possível interpretar isso como uma notícia boa – vovó ordenou a
cremação deles, significando que o Rei Morto não teria nenhum
cadáver à mão para botar atrás de mim e pegar a chave, ou como
uma notícia ruim, querendo dizer que o Rei Morto já tinha reunido
todos em uma única força, talvez escondida entre as paredes
quebradas dos estábulos, apenas esperando o ataque...
“Jal!” A voz de Snorri me despertou de meus devaneios. Dei um
pulo, girando, com a espada quase desembainhada.
“Quê?” Raiva e medo misturados em minha voz. Sombras
preenchiam o interior da fortaleza de muro a muro. Dava para
identificar os nórdicos, mas o resto era uma confusão de formas
cinzentas.
“Os bipes. Estão diminuindo. Estavam mais rápidos ali.” Ele
apontou o dedo grosso para um grupo de prédios anexos.
Assenti e comecei a voltar. Na verdade, eu já havia me
desligado do barulho da caixa, focado demais em meus medos para
ouvi-la, apenas percebendo-o agora que Snorri chamou minha
atenção. Provavelmente há uma meia dúzia de lições nisso, para
uma pessoa sábia.
Ao me aproximar do primeiro anexo, os bipes da caixa ficaram
tão rápidos que se juntaram em um único tom que então, felizmente,
parou. “Talvez ele tenha morrido,” falei. “Devemos voltar para os
cavalos agora.”
“Não precisamos de um lampião, Jal.”
Eu não estava planejando voltar para pegar um lampião – não
estava planejando voltar. Mas realmente precisávamos de luz se
quiséssemos nos aventurar na estrutura diante de nós, e Snorri
estava certo, não precisávamos de um lampião para isso. “Está
bem.” Peguei o cone de oricalco no meu bolso e sacudi sua bolsinha
de couro na mão estendida de Snorri. A luz fria que saiu quando o
oricalco encostou na pele revelou que a neblina havia nos
alcançado outra vez, enrolando-se em volta de nossos tornozelos. O
que eu achava que eram pedregulhos no chão na verdade eram
grãos, e o prédio à nossa frente era um celeiro. Snorri foi até a
entrada destruída e levantou a mão. A luz também mostrou uma
profusão de sacas, destroços e que quem tinha recolhido os corpos
– as tropas de vovó ou o Rei Morto – não havia sido muito
meticuloso. O corpo de uma mulher robusta de meia-idade estava
preso debaixo de uma das vigas caídas. O fedor repugnante que
saía do recinto sugeria que ela estava caída ali tempo suficiente
para dar à luz várias gerações de moscas. Tentei não olhar muito de
perto para onde a carne dela estava exposta, pois não queria vê-la
cheia de bichos.
“Nós vamos entrar, então?” perguntei quando Snorri entrou,
com Hennan e Kara se amontoando atrás dele.
“Este chão é de pedra dos Construtores.” Kara se ajoelhou para
pôr a mão nele, limpando os grãos das sacas abertas.
“Ele vai continuar debaixo de nós,” disse Snorri. “O tempo
enterra as coisas que quer preservar.”
“O tempo pode estar jogando outros jogos por aqui,” falei. A
erva-do-fogo havia apresentado o crescimento de um mês em
menos de duas semanas, e depois se paralisou em um único
instante. O que quer que tenha acontecido aqui rompeu alguma
coisa importante, e o próprio tempo, esse fogo invisível no qual nós
ardemos, tornou-se fragmentado.
“Acho que tem um alçapão aqui,” Kara gritou para nós, ao lado
de uma pilha de escombros e vigas caídas. “Tragam a luz.”
“Como é que pode dizer que tem um alçapão?” Estreitei os
olhos através de uma fresta nas vigas cruzadas do teto. Mesmo com
Snorri segurando a luz, não dava para ver nada além de poeira,
grãos de trigo e telhas quebradas. “Mal dá para ver o chão.”
Kara se virou para ouvir minha pergunta, e seus olhos estavam
com aquele aspecto desfocado ‘de bruxa’.
“Ah,” disse.
Hennan pegou uma viga e começou a empurrar. Uma formiga
teria mais sorte se tentasse arrastar uma árvore. Snorri se curvou
para ajudá-lo.
“Será que isso é uma boa ideia?” E, com isso, é claro que quis
dizer que era uma péssima ideia. “Fora a coisa ruim que pode estar
à espreita lá embaixo, este lugar parece estar pronto para terminar
de desabar a qualquer momento.” Pelo que dava para ver, várias
dúzias de sacas de grãos formavam o suporte estrutural principal,
em lugar da pedra e da madeira agora empilhadas no chão.
Aparentemente os soldados de vovó concordavam comigo e tinham
decidido deixar as sacas no lugar. “Eu disse,” repeti mais alto, “que
tudo isto pode desabar a qualquer momento.”
“Mais um motivo para agir rápido e manter a voz baixa, então.”
Snorri me lançou um olhar. Ele se curvou e, cerrando os dentes, pôs
aqueles braços enormes em volta de uma viga caída do teto,
fazendo força para movê-la. Por um momento, a coisa se manteve
firme, e Snorri passou de vermelho a vários tons de escarlate. Veias
pulsaram ao longo dos músculos saltados de seus braços – depois
eu descrevi isso para uma moça que parecia bastante interessada
no nórdico como minhocas feias acasalando – suas pernas
tremeram e se esticaram, e em uma nuvem de poeira a viga desistiu
de lutar.
Tentei manter uma função logística, explicando que tais
trabalhos perigosos exigiam coordenação e supervisão, mas no fim
os selvagens ignorantes me fizeram entrar no esforço. Coloquei a
caixa de fantasmas num canto e arregacei as duas mangas.
Demorou uma eternidade, talvez uma hora, mas por fim eu estava
suado, sujo, com as mãos doloridas e machucadas, olhando para
seis metros quadrados de chão vazio.
“Não tem alçapão nenhum.” Precisava ser dito. Não é culpa
minha se eu tive certo prazer em dizê-lo.
Kara se ajoelhou no espaço desobstruído e começou a bater no
chão com um pedaço de telha quebrada. Ela se movimentou
metodicamente, verificando toda a área, e depois voltou a um trecho
à esquerda. “Aí, estão ouvindo?”
“Estou ouvindo você fazer uma algazarra,” falei.
“Parece oco aqui.”
“Parece igual aos outros duzentos lugares onde bateu.”
Ela balançou a cabeça. “Está aqui... mas não consigo ver o
alçapão.”
“Aí?” perguntou Snorri.
Kara fez que sim. O viking lhe entregou o oricalco e saiu pela
porta estilhaçada noite afora.
Hennan o observou sair. “Aonde ele está...”
Snorri voltou quase imediatamente, com um pedaço de pedra
nas mãos que claramente pesava bem mais que eu. Parecia que
podia ter saído da explosão da muralha principal. Eu me lembrei de
alguns escombros do lado do celeiro.
Kara não precisou de aviso para sair do caminho. Snorri se
aproximou do local, dando os passos lentos e deliberados de um
homem quase no limite de sua força. Com um grunhido ele levantou
a pedra quase até a altura do peito e a soltou. Ela bateu no chão e
continuou. Quando a poeira baixou, dava para ver um buraco escuro
e perfeitamente redondo onde Kara estava batendo com a telha.
“Espero que Dr. Raiz-Mestra não estivesse debaixo do alçapão
esperando para ser resgatado...” Fiz um gesto para Kara dar uma
olhada.
“É muito fundo.” Ela se ajoelhou para ver mais de perto. “Há
alças embutidas na parede do buraco.” Sem discutir, ela jogou as
pernas dentro do túnel e começou a descer.
Snorri foi atrás, depois Hennan, que olhou para mim. Ele
provavelmente não podia ver muita coisa, já que nossa única luz
estava desparecendo buraco abaixo.
“Vá em frente.” Fiz sinal para ele continuar. “Vou na retaguarda.
Só não quero nenhum de vocês caindo em cima de mim.”
Meu plano era encontrar uma saca de grãos confortável e ficar
de fora dessa. O problema do fedor de corpos em decomposição, no
entanto, é que você nunca se acostuma realmente a ele. Eu havia
bloqueado os bipes da caixa quase imediatamente, mas ao respirar
fundo de alívio, quando Hennan despareceu no buraco, fui lembrado
de que não estava tão sozinho quanto esperava. O ruído apressado
era quase certamente de um rato: o lugar devia estar cheio deles.
Cadáver e grãos – um banquete de rato! Mesmo assim, a
possibilidade de ser uma mão morta repentinamente se mexendo foi
o suficiente para me transformar em um homem de palavra, e seis
segundos depois eu estava descendo atrás do garoto.
A descida me lembrou de nossa visita a Kelem em suas minas,
outra descida equivocada para o escuro desconhecido. As alças na
parede de pedra moldada pareciam ter sido feitas quando o poço
estava sendo forrado, moldadas na pedra em vez de entalhadas, e
se mostraram consideravelmente mais confiáveis que as escadas
bambas de Kelem. E felizmente o fundo levou menos tempo para
chegar. Estimei que havíamos descido trinta metros, certamente não
mais que cinquenta.
Juntei-me aos outros em uma câmara quadrada de pedra
moldada. Uma fraca luz vermelha pulsava intermitentemente em
uma placa circular no teto, fazendo nossas sombras aumentarem e
diminuírem. Fez eu me lembrar do Inferno.
“Encantador.” Saquei minha espada.
Na parede em frente, uma porta circular de aço prata de uns
quinze centímetros de espessura estava entreaberta, sobre
dobradiças pesadas e reluzentes. Se um ferreiro algum dia
descobrisse um fogo quente o bastante para derreter aquilo, ali
estava a riqueza de uma nação, esperando ser forjada nas melhores
espadas que o dinheiro poderia se dar ao luxo de comprar.
Corredores saíam para a direita e para a esquerda, o da
esquerda bloqueado por um desabamento antigo, o da direita por
um mais recente, com marcas de queimado decorando a pedra. Eu
me mexi para espiar depois de Snorri e por cima da cabeça de
Hennan, pela fresta aberta da porta. Havia um único recinto
pequeno do outro lado, também iluminado por uma luz vermelha
pulsante no teto. Havia quatro cubículos de vidro, dois contra uma
parede e dois na parede em frente. Quatro cúpulas de aço prata
ficavam no teto, uma acima de cada cubículo. Dava para imaginar
que cada uma era uma grande esfera de aço prata, e que nove
décimos dela estavam escondidos na pedra acima, mostrando
apenas uma fração. O cubículo mais próximo da direita e o mais
afastado da esquerda estavam escuros, com o vidro quebrado em
padrões estranhos. Um homem morto estava no cubículo mais
próximo da esquerda, iluminado por alguma fonte de luz invisível, a
pele com todas as cores da podridão, algumas partes penduradas
nos ossos, outras que se soltaram, mas no entanto pairavam no
meio do caminho até o chão salpicado de podridão. Uma espécie de
arreio o prendia à parede. O último cubículo continha Dr. Raiz-
Mestra, tão imóvel quanto o cadáver, com o rosto estreito cheio de
preocupação, as mãos enganchadas, com os dedos longos
entrelaçados no meio da ação. Ele estava bem parecido da última
vez que o vi pessoalmente, com marcas de poeira no casaco preto
de mestre do circo, uma camisa branca sobre o peito magro com
botões de madrepérola.
“O que há de errado com ele?” indagou Snorri.
“Está parado no tempo,” falei. “Congelado em um momento.”
“E este aqui?” Hennan retorceu o rosto para o corpo em
decomposição.
“Suponho que ele não estava preso muito firme e o tempo
esteja passando muito lentamente para ele, ou então que a máquina
foi ligada e o pegou desse jeito.”
“Máquina?” perguntou Kara.
Fiz sinal para as cúpulas de prata. “Essas, eu acho.”
Snorri foi até o cubículo de Raiz-Mestra e abriu a porta, parando
para admirar aquele pedaço de vidro tão grande, plano e
transparente. Esticou a mão para Raiz-Mestra e fiquei feliz de ver
certa hesitação no movimento. Eu achava mais fácil gostar de Snorri
quando ele demonstrava pelo menos algum sinal de ter nervos. Ele
franziu o rosto quando seus dedos encontraram alguma resistência.
Ele empurrou e sua mão pareceu escorregar em uma segunda
placa de vidro, esta aqui curvada e sem refletir a luz.
“Não consigo tocar nele.”
“Pode quebrar o vidro?” perguntei.
Snorri franziu o rosto. “Não sei se há vidro nenhum aqui... não
se parece com... nada. Eu simplesmente não consigo encostar
nele.”
Kara foi até Snorri, parecendo minúscula ao lado dele, como a
maioria das pessoas. “Se ele está paralisado no tempo, e o tempo
está fluindo onde estamos... então deve haver alguma divisão entre
essas duas regiões, uma barreira através da qual nada pode passar,
porque não há tempo para que isso aconteça. Seria inútil tentar
quebrar uma barreira dessas, não haveria sentido na palavra
‘quebrar’.” Ela enrugou a testa e apertou os lábios em uma linha
fina. “Nem mesmo a luz dele deveria chegar a nós... talvez a
máquina projete a última imagem dele para o benefício dos que
estão do lado de fora.”
“Bem, estamos aqui para resgatá-lo, não é? Então devemos
seguir em frente e fazer isso, senão vamos embora.” Eu não
gostava nem um pouco daquele buraco dos Construtores com sua
luz vermelha pulsante, seu cadáver congelado e uma única saída,
facilmente bloqueável. Na verdade, após minha experiência nas
minas Crptipa, ficaria bem feliz em nunca mais me aventurar no
subterrâneo de novo, até chegar o dia de ser enterrado em meu
caixão. “Bata com seu machado, Snorri. À maneira do norte!”
“Tem que haver alguma maneira soltá-lo...” Kara começou a
caminhar pelos lados do cubículo, como se o vidro fosse liberar
mais informações inspecionando mais de perto.
Deixei-a fazendo aquilo e olhei para o cadáver paralisado para
ter certeza de que não havia se mexido. Andei até a entrada. Se
alguma coisa que a völva tocasse fizesse o grande disco de metal
se movimentar nas dobradiças, eu seria o primeiro a cair fora antes
que a abertura se fechasse. Fiquei ao lado da parede, bocejei, cocei
ali embaixo, e olhei para o cadáver novamente. Ainda na mesma
posição...
Kara recorreu a encantamentos, esgotou-se deles, e estava
praguejando baixinho em nórdico antigo quando eu avistei os
pequenos botões prateados na superfície interna da porta da caixa-
forte, uma placa com nove deles, perto do meio. Esperei um pouco.
Ela pôs as palmas das mãos na superfície invisível que rodeava
Raiz-Mestra, fechou os olhos e começou a se concentrar, com os
olhos bem apertados. Após dois minutos, vi o suor na testa dela,
pulsando na luz vermelha como gotas de sangue. Mais um minuto e
ela estava tremendo de esforço.
“Hruga uskit’r!” Kara jogou as mãos para o alto. “Me dê o
maldito machado.” Ela foi pegar Hel e Snorri o tirou do seu alcance.
“Ou podemos simplesmente apertar esses botões,” falei. E
estiquei o braço para apertar três ao mesmo tempo.
“Não!” O grito de Kara começou, com o de Snorri passando
sobre o dela.
Tarde demais para me impedir, contudo. As luzes se apagaram,
deixando-nos na escuridão total. Um momento depois, um barulho
que só podia ser a porta se fechando soou ao meu lado, um baque
pesado e abafado, com o mesmo caráter definitivo da sentença de
morte de um juiz.
“Aimeudeusvamosmesmomorreraqui!” As palavras saíram num
folego só.
“Jal!” Uma repreensão aguda de Kara, defendendo seu jovem
protegido.
“Você não está com a chave?” perguntou Snorri com a voz
calma. “Sem a chave eu concordo, é bem possível que todos
morramos aqui.”
“A chave!” Fui pegar a pequena bênção preta de Loki,
apalpando o peito para senti-la debaixo de meu justilho. Meu
momento de alívio durou pouco. Nada! “Está em algum lugar. Eu a
pus em algum lugar!” Os dedos embotados pelo medo começaram
uma busca desvairada.
“Espere!” ralhou Kara. “Estou com o oricalco. Deixe-me pegá-lo
e poderemos enxergar...”
“Achei!” Encontrei a chave. Tinha escorregado na correia e
estava quase debaixo do meu sovaco. Puxei-a, passei a correia por
cima da cabeça e segurei bem a superfície vítrea da chave. Quando
minha mão a apertou, uma gargalhada distante, talvez imaginada,
pareceu me zombar no escuro. “Ande logo com essa luz!” Segurei a
chave para frente como uma arma, preparado para repelir qualquer
horror invisível, e dei um passo à frente, balançando-a. De alguma
maneira eu havia conseguido perder o senso de direção e a porta
de vinte toneladas estava difícil de encontrar.
Alguma coisa na minha frente fez um baque baixo no chão.
Gelei. Silêncio, a não ser pelas pragas de Kara, murmuradas mais
uma vez em nórdico antigo, enquanto ela vasculhava as saias
procurando o oricalco.
“Que fedor é esse?” farejou Snorri. “Parece o cheiro do porão
de um dracar no alto verão.”
Eu também senti. Precisei me apalpar para ter certeza de que
não foi alguma coisa que saiu de mim naqueles momentos de puro
pavor – mas este cheiro era algo ainda menos agradável do que
esgoto. Lembrava os calabouços dos fundos da prisão de
devedores em Umbertide. O fedor da morte.
“Ah!” A luz brotou da mão de Kara, revelando a câmara mais
uma vez.
A porta reluzente estava atrás de mim. Diretamente à minha
frente estavam os restos do cadáver do Construtor, agora em uma
pilha espalhada no chão. Engasguei e dei um passo abrupto para
trás.
“Como foi...”
“Você o destravou!” Hennan apontou para a chave em minha
mão.
“Tente com Raiz-Mestra.” Snorri acenou para o doutor ainda
congelado em seu próprio momento.
Olhei para a porta lá atrás, querendo garantir nossa saída
primeiro, mas Snorri fez sinal para eu ir. Dei de ombros e fui até
Raiz-Mestra. Kara e Hennan se afastaram para me dar acesso.
“Faça o que fez ali,” disse ela.
Enfiei a chave em Raiz-Mestra, esperando bater em alguma
coisa, mas sentindo só o ar vazio. “Bem, funcionou com o morto...”
Kara franziu o rosto e esticou o braço para o homem imóvel à
nossa frente. Suas sobrancelhas se ergueram quando sua mão não
encontrou barreira. “Não estou entendendo.”
“Ele piscou!” Um grito de Hennan ao meu lado. “Eu vi.”
Kara deu um passo para frente, esticando o braço e encostando
os dedos no braço de Raiz-Mestra.
“Querida moça!” Raiz-Mestra puxou o braço para trás e fez uma
mesura que por pouco não bateu nela, pois havia recuado
rapidamente. “Encantado em conhecê-la. Príncipe Jalan Kendeth!
Snorri ver Snagason! Que prazer inesperado. E quem é este rapaz?
Parece promissor, certamente.” Ele pisou agilmente no espaço
deixado por Kara e saiu da cabine. “Essa, sim, é uma chave
interessante, príncipe Jalan!”
“Que diabos está fazendo aqui embaixo, Raiz-Mestra?” Acenei
o braço para nossos arredores, no caso de ele não ter percebido.
“Ah.” Ele franziu o rosto e olhou para nós novamente.
“Aprisionado por uma bruxa. Estava cuidando da minha vida em um
instante e fui enfeitiçado no outro. Acontece nas melhores famílias.”
Passando por mim com os movimentos fluidos de uma enguia, Dr.
Raiz-Mestra foi em direção à porta.
“Temos uma caixa com sua imagem dentro,” interveio Kara.
“Essa imagem nos trouxe até aqui...”
“Isso mesmo!” Elevei a voz acima da dela, tendo dificuldade
para reaver o controle da conversa. “Você pequeno e falante. Mais
jovem e falando um monte de bobagem, mas ele disse que você
estava em perigo e falou para virmos aqui.”
“Sério?” Raiz-Mestra se virou para me olhar como se eu
estivesse pirando. “Eu pequenininho? Parece mais bruxaria. Mas eu
estava aprisionado, então vocês foram de enorme ajuda. Agora, se
pudermos só sair daqui...”
“Você estava na caixa dos Construtores, Raiz-Mestra?”
transformei em uma pergunta.
“Sim, sim.” De alguma maneira ele deslizou entre mim e Kara e
chegou à porta.
“Você é um Construtor,” disse Hennan. As palavras
conseguiram deter Raiz-Mestra, enquanto a obstrução física
fracassara. Ele paralisou, com uma mão na metade do caminho até
a placa de botões no centro da porta.
“As crianças não têm as ideias mais estranhas?” Raiz-Mestra
deu meia-volta e encarou todos nós, com um sorriso largo em seu
rosto estreito.
“Você estava na corte de Gholloth quando minha avó era mais
nova que Hennan, e mal mudou de lá para cá,” disse.
“Tenho um tipo comum de rosto. As pessoas estão sempre me
confundindo com...” Raiz-Mestra se curvou, com a animação
desparecendo no meio da frase. “Bom, você me pegou.
Conhecimento é poder. O que pretende fazer com seu poder,
príncipe Jalan?”
Abri a boca, mas as palavras não vieram. Achei que eu é quem
estava fazendo as perguntas difíceis.
“Você dormiu anos aqui?” Kara apontou para o cubículo
envidraçado de onde Raiz-Mestra tinha saído.
“Décadas, madame. Uma vez passei um século em estase.
Mas eu gosto de sair por aí na maioria das gerações, mesmo que
seja apenas por uma ou duas semanas. Em épocas mais
interessantes, passo alguns anos lá em cima, e às vezes até arrumo
um emprego.
“Com que finalidade?” As primeiras palavras de Snorri desde
que Raiz-mestra voltou à vida.
“Ah, mestre Snagason, boa pergunta.”
“E por quê,” interrompi. “você não diz mais ‘observe-me’?”
“Uma pergunta não tão boa, príncipe Jalan, mais ainda assim
válida. Observe-me!” Um sorriso apareceu em seu rosto. “Uma
afetação. As pessoas se lembram dessas coisas mesmo muito
tempo depois de esquecerem um rosto. É bom adotar alguma coisa
espirituosa para cada uma de minhas incursões ao tempo principal.
Se eu topar com algum indivíduo longevo que me conheceu em
algum aparecimento prévio, ele será mais facilmente convencido de
que as semelhanças são meramente coincidentes se a mania tiver
desaparecido, substituída por algo diferente.” Novamente o sorriso.
“Eu realmente acho que exagero às vezes. Quando fui empregado
de seu tataravô, eu era um puxador de orelhas. Observe-me!” A
mão dele foi rapidamente até a orelha e puxou lentamente o lóbulo
entre o polegar e o indicador.
“Com que finalidade você nos visita?” repetiu Snorri.
“Persistente! É persistente, ele! Observe-me!” Raiz-Mestra se
virou para olhar para o nórdico. “Eu observo. Eu guio. Faço o pouco
que posso para ajudar. Não fui escolhido para essa tarefa – o
dedinho instável do destino recaiu sobre mim no Dia dos Mil Sóis e
eu sobrevivi. Faço o que posso aqui e ali...”
“E no entanto, quando o desastre ameaça, cá está você de
volta ao seu esconderijo,” disse Kara. “Você pensou em dormir por
mais cem anos e escapar do segundo Ragnarok?”
As mãos de Raiz-Mestra começaram a responder antes da
boca, sinalizando a discórdia no ar entre eles. “Madame, não haverá
lugar para se esconder se a Roda passar de ômega. O tempo em si
irá se consumir.” Ele limpou alguma coisa invisível no peito de sua
camisa de gola larga. “Vim aqui para conversar com a deepnet. É
primitivo, eu sei, mas atualmente a montanha precisa ir a Maomé.
Quanto tentei sair, a porta de cima estava emperrada e os sensores
externos não funcionavam. A transmissão por satélite indicava
algum tipo de explosão. Eu não tinha trazido nenhuma comida aqui
para baixo, então não tive muita escolha além de mandar um
chamado de socorro, entrar em estase e esperar para ver se a ajuda
viria.” Ele abriu os braços. “E ei-los aqui!”
“Entendi aproximadamente metade disso,” menti. “Mas o
principal parece ser que você é um Construtor e irá salvar o mundo,
então não preciso ir a Osheim. Certo?”
“Quem dera fosse assim, príncipe Jalan.” Os olhos de Raiz-
Mestra pareciam atraídos pela chave em minha mão. “Meu povo
não se mostrou especialmente hábil em salvar o mundo, no entanto,
não é mesmo?” O Projeto IKOL foi mal concebido e suas
ramificações não foram totalmente compreendidas. A tecnologia
necessária para chegar à sala de controle com segurança não está
mais disponível e, uma vez lá, desativar o projeto é essencialmente
uma tarefa impossível. Até mesmo na época, não teria sido uma
simples questão de apertar um botão de ‘desligar’. Com a transição
tão avançada, seria necessária toda uma nova ciência para realizá-
la. A equipe original talvez tivesse sucesso, se tivesse uma década
para pesquisar. Talvez nem assim. E foram as mesmas pessoas que
a projetaram, que entendiam a teoria melhor do que ninguém no
planeta.” Ele pareceu melancólico, como se a memória o
sobrecarregasse.
“Isto poderia resolver?” Levantei a chave, atraindo novamente
sua atenção. “Foi um deus quem fez.”
Raiz-Mestra esticou a cabeça, olhando para a chave de Loki.
Franziu o rosto e pegou no bolso uma lente presa a um aro de prata.
Segurando-a sobre o olho, ele se inclinou para examinar de perto.
“Quem fez isto aqui me deu meu primeiro emprego.” Ele se
endireitou sorrindo. “Um trabalho impressionante.” Olhou novamente
para nós em volta. “É inteligente. Muito inteligente... É possível. Não
provável. Mas possível. Como vão levá-la até lá?”
“Andando,” disse Snorri.
“A cavalo,” falei. Já havia andado o suficiente para o resto da
vida.
O rosto de Dr. Raiz-Mestra desabou. A mudança seria cômica
se não representasse um péssimo agouro para mim. “Não têm
nenhuma ajuda? Nenhum plano?”
“O plano parece ser andar até a Roda e desligar as
engrenagens que a movimentam,” disse, com a voz azeda. “Você
acha que seria mais um trabalho de um homem só, Raiz-Mestra?”
“De um, de mil, não faz muita diferença.” Suas mãos voltaram a
se enganchar, como estavam durante a estase. “Seus sonhos são o
que destruirá você. Todo homem é vítima de sua própria
imaginação: todos nós carregamos as sementes de nossa própria
destruição.” Ele batucou um dedo longo na testa. “Ela se alimenta
de seus medos.”
“Então precisamos de outro plano... Precisamos...”
“Não existe outro plano.” Snorri me interrompeu. “Raiz-Mestra já
viu mil anos se passarem. O povo dele construiu Osheim e fez isso
acontecer. As máquinas antigas lhe contam seus segredos. E ele
não conteve o avanço lento do mundo para o esquecimento.”
“É verdade.” Raiz-Mestra abraçou a si mesmo. “Vão para
Osheim. Talvez a chave...” Um tremor atravessou a câmara.
“Precisamos ir.”
Eu já estava na porta, com a chave Loki pressionada ao painel
dos botões. “Abra!”
A válvula pesada deslizou-se para trás sem um chiado.
“Bem, isso é animador,” disse Raiz-Mestra ao meu lado. “Esta
não é uma simples fechadura.”
Demos um passo para o lado para deixar Kara e Hennan
passarem. Eu alegaria cavalheirismo, mas a verdade é que ela
estava com a luz. Dei uma última olhada na sala enquanto as
sombras a retomaram. O horror decomposto da cabeça do
Construtor morto nos observou sair.
“Eu poderia jurar...” Que ela estava virada para o outro lado
quando caiu. Fui com tudo no encalço de Snorri, mandando-o se
apressar. Depois de passarmos, pressionei a chave ao painel de
botões do lado de fora e comandei que a porta se fechasse.
Kara e Hennan já estavam subindo, com uma ilha de luz acima
de nós. “Vá na frente.” Bati no ombro de Snorri. “Se o garoto cair,
você o pega.”
Aproveitei a oportunidade para argumentar meu caso sozinho
com Raiz-Mestra no fundo da descida, no escuro. “Olhe, não posso
ir a Osheim. Você disse que ela se alimenta de medos. Caramba, eu
sou só medo. Medo e ossos. É tudo que tenho. Sou a pior pessoa
para enviarem – a pior de todas. Você deveria ir com Snorri. Olhe,
eu simplesmente lhe darei a chave e...”
“Tenho outras coisas a fazer. Os ecos de dados na deepnet...”
“Quê?”
Ele suspirou. “Há fantasmas de Construtores em máquinas
debaixo da terra. Elas também serão destruídas se a Roda girar
longe demais. Elas não podem parar as engrenagens da Roda com
segurança, mas as engrenagens só giram a Roda porque nós
usamos o poder que ela nos dá. Elas não podem parar as
engrenagens, mas podem parar o que está impulsionando as
engrenagens.”
Aquilo soou depressivamente familiar. Vovó havia dito algo
parecido. “Nós?”
“Sim. Existe uma facção – uma facção que está ganhando força
– que quer usar o restante do arsenal nuclear para aniquilar a
humanidade. Sem as pessoas para exercer a... para usar a magia, a
Roda deve parar de girar.”
“O que você pode fazer?” O fantasma Kendeth que Garyus
havia retirado da caixa falou sobre isso. Eu esperava que ele
estivesse mentindo.
“Posso falar com eles. Reunir provas. Agir com prudência.
Postergar. Mas esse atraso só será útil se alguém agir em cima
disso.”
Estendi a mão e encontrei uma alça no escuro. “Só estou
dizendo que praticamente qualquer pessoa seria uma escolha
melhor que eu.” Comecei a subir.
“O medo é uma métrica necessária, sem a qual os modelos de
risco e consequência não teriam nenhum propósito.”
“Quê?” Ele voltou a falar coisas sem sentido.
“Nenhum homem é desprovido de medo, príncipe Jalan. A
chave foi feita para abrir coisas. Se ela reuniu vocês quatro, talvez
vocês sejam a melhor chance que temos de destravar Osheim.”
Fazia certo sentido. Ruminei aquilo ao subir. Ao chegar no topo,
eu já havia perdido o fio da meada e estava mais preocupado com a
dor em meus braços e em não cair.
25

Ficamos com Dr. Raiz-Mestra nos portões destruídos do forte, uma


ilha em meio a um mar de neblina, o céu acima preto como uma
bíblia e cravejado com diamantes.
“Tem que vir conosco!” falei. “Quem poderia nos ser mais útil
em parar a Roda do que um Construtor de verdade, vivinho da silva!
Foi o seu povo que construiu esse troço maldito!”
“E eu passei mil anos sem conseguir desligar as máquinas que
a movimentam,” replicou Raiz-Mestra. “A chave reuniu o que ela
precisa para fazer o serviço.” Ele abriu os braços na direção de nós
quatro. “Se eu fosse necessário para o seu sucesso, a chave não
me deixaria ir embora, ela encontraria alguma maneira de me
manter aqui. É assim que ela funciona. Loki é um danado. Então
continuem com seu plano. Vão a Osheim e testem a chave.”
“Esse é seu melhor conselho, Raiz-Mestra? Testá-la?” Snorri
não parecia nem um pouco impressionado.
“Você deve ter algo melhor que isso.” Tentei conter o tom de
reclamação em minha voz. “Cadê a sabedoria milenar? Estou lhe
perguntando! Quero dizer, você é mais velho que minha avó.
Cacete, você é mais velho que a avó de Kara.” Acenei na direção da
volva. Raiz-Mestra fazia os trezentos anos de Skilfar parecerem
joviais.
Raiz-Mestra sorriu se desculpando e fez sinal para o céu
noturno. “A luz do sol é recém-nascida, quente dos fogos do céu, e
diz verdades cruéis, como costumam os jovens. Mas a luz das
estrelas, a luz das estrelas é antiga e atravessa um vazio
inimaginável. Todos nós somos jovens sob as estrelas.
“Muito bonito,” falei. “Mas não ajuda muito.”
“Meu chefe tinha isso em um mostrador atrás de sua mesa.”
Raiz-Mestra encolheu os ombros.
“Loki?” troou Snorri, com o rosto indecifrável. “Trabalhou para
Loki?”
“Confie em mim, não lhe fará nenhum bem saber.” Raiz-Mestra
começou a seguir o caminho pelos escombros, na direção da
superfície ondulada da neblina que envolvia a encosta logo abaixo
de nós.
“Confiar em você?” gritei para ele. “Loki é o pai das mentiras!”
Pensei em Aslaug. Até ela me alertara contra Loki.
“Uma mentira pode ser feita com muitas verdades, e a verdade
construída de inúmeras falsidades empilhadas até os céus.” Raiz-
Mestra acenou para nós com aquela mão de dedos longos, por cima
do ombro. “Boa sorte em sua busca. Farei o que for possível para
ganhar tempo para vocês. Não o desperdicem.”
Ele estava até os joelhos na neblina, e as correntes lentas
subiram para envolvê-lo na brancura. Com mais três passos ele
desapareceu.

Encontrei a lente dele no bolso de minha calça no segundo dia.


Dedos procurando uma moeda descobriram a superfície lisa e fria
do vidro, e eu puxei o aro de prata para fora. O velho devia ter
botado ali, talvez quando estávamos no fundo do buraco. Segurei-a
contra o sol, deixando a luz brilhar através dela.
“O que é isso?” Hennan aproximou seu cavalo na minha
direção. A essa altura ele já era um cavaleiro decente.
“Só um brinquedo." Observe-me. Segurei-a no olho e olhei para
o garoto. Ele não pareceu diferente. Encolhendo os ombros,
coloquei-a novamente no bolso.

Durante mais dois dias, atravessamos o interior cada vez mais


devastado pela guerra. Chegamos à retaguarda do exército da
Rainha Vermelha e passamos para os arredores de Blujen.
Acampamos na chuva, com as estacas enterradas na lama
enegrecida pelas cinzas. O fogo queimava nas florestas, queimava
na serra ao oeste, nas ruínas antes das muralhas da cidade e
depois delas. As chamas ardiam nas janelas dos esqueletos vazios
de pedra que no passado foram casas de homens ricos.
Enfiamos quatro pessoas em uma tenda que seria confortável
apenas para mim e Snorri e, à luz do oricalco, assistimos à chuva
cair através do encerado. Vários grupos de escaramuçadores de
Milano estavam com acampamentos montados ao nosso redor. No
mastro da frente da barraca, hasteamos as lanças cruzadas de
Marcha Vermelha, para dissuadir as patrulhas de nos espetar
através do encerado e só depois nos questionar. Quando
amanhecesse, faríamos a viagem sobre os destroços dos portões
da cidade e entraríamos em Blujen para encontrar a Rainha
Vermelha. Uma viagem que era melhor fazer à luz do dia, caso
esperasse sobreviver a ela.
Ocasionalmente, um grito distante rompia a noite. As forças de
Marcha Vermelha ainda estavam fazendo brincadeiras mortais de
esconde-esconde com os defensores sobreviventes da Slóvia no
meio das ruínas em chamas. Eu esperava entrar e sair o mais
rápido possível, pois havia rumores de que dois exércitos slovianos
estavam a apenas um dia de distância, e que seus batedores já
estavam circulando pelos campos a menos de dois quilômetros da
muralha de Blujen.
O sono veio rápido, como acontece na maioria dos dias em que
se percorre cinquenta quilômetros. Fiquei deitado sem sonhar até
Kara me acordar, engatinhando por cima da minha coberta até a
saída, com os cabelos roçando nos meus lábios. Ela desapareceu
noite afora e o sono foi com ela, deixando-me na escuridão, sozinho
com meus pensamentos. Além de um viking que roncava e um
garoto que chutava dormindo. O tempo passa lento nessas
circunstâncias, mas mesmo levando isso em consideração, chega
um ponto em que você percebe que não vai voltar a dormir, que a
völva já está muito tempo fora para uma simples ida ao banheiro e
que, não importa como você se deite, uma pedra sempre estará se
enfiando em você.
Saí e descobri que a chuva havia parado e que Kara estava
sentada em um muro quebrado, observando o movimento lento das
estrelas acima das nuvens esfarrapadas.
“Veio conferir se estou bem?” perguntou ela quando me
aproximei, tropeçando no terreno desconhecido.
“Queria que as pessoas viessem me conferir com mais
frequência,” falei. “Muitas vezes a ajuda seria útil.”
“Sua avó e a irmã dela estão prendendo a Dama Azul lá.” Kara
acenou na direção do clarão acima dos telhados de Blujen.
“Ela merece o que terá.” Fiquei perto de Kara agora e apoiei o
quadril no muro onde ela estava sentada. “Ela merece tudo isso.”
“Será?” Kara apertou os lábios e voltou sua atenção às estrelas.
Abri a boca, mas demorou um pouco para as palavras saírem.
“É claro! Ela quer queimar o mundo inteiro, Kara! Não um celeiro ou
uma vila ou...” olhei em volta, “... uma cidade. O maldito mundo
inteiro. Só para poder ser a imperadora do fogo.”
Kara sugou o lábio. “A Roda está girando. Os sábios dizem que
ela não pode ser detida. Tudo que a Dama Azul está fazendo é
empurrando com um pouco mais de força. Escolhendo seu próprio
tempo para o fim. Um tempo em que alguns poucos possam
sobreviver. Se o fim está próximo, será que é tão terrível assim fazer
com que este fim chegue um pouco mais cedo?”
“Sim!” Abri os braços e lancei um olhar de incredulidade para
ela. “Hennan vai morrer um dia... então vamos esfaqueá-lo agora,
se houver alguma vantagem nisso? A Dama Azul merece tudo que
minha avó var dar a ela.”
“Suponho que sim, mas isso não é o mesmo que estar errado.
Já pensou no que estamos fazendo, Jalan?”
“Não tenho pensado em outra coisa. A última coisa que eu
queria fazer, menos que ir a Osheim, era caminhar até o Inferno.”
Ela olhou para a tenda nesse momento. “Você já conversou
com ele?”
“Sobre Osheim?”
Ela estreitou os olhos para mim. “Sobre Hel. Sobre o que
aconteceu com ele quando você o abandonou.”
“Eu não...” A careta dela me fez desistir de negar. “Ele diz que
está em paz. Não quer conversar.”
“Homens. Idiotas, todos vocês. Grandes ou pequenos. Jovens
ou velhos.” Ela balançou a cabeça. “Ele precisa conversar. Não vai
acabar até ele contar aos amigos o que aconteceu. Qualquer tolo
sabe disso. E você é tudo que restou a ele.”
“Hummm.” Eu colocaria ‘ter essa conversa com Snorri’ bem alto
na lista de coisas que eu jamais queria fazer. “O que exatamente
você quis dizer antes, sobre a Dama Azul não estar errada? A chave
pode nos salvar... certo? Não estamos fazendo isso totalmente em
vão, não é? Quero dizer... não me importo com chances remotas...”
Na verdade eu me importava, eu me importava muito. “Mas uma
missão suicida?”
“Skilfar diz que, mesmo que consigamos desligar a máquina
dos Construtores em Osheim, isso talvez só atrase as coisas. A
máquina está nos levando à destruição, mas quando você para de
empurrar uma coisa, muitas vezes ela continua rolando sozinha, e
se chegou a uma ladeira, pode continuar até chegar no fim.”
“Skilfar diz? Como é que ela sabe? E como você sabe que ela
sabe?”
Kara sorriu, fazendo eu me lembrar que já tive uma queda por
ela. “Pessoas como minha avó podem alcançar mentes treinadas a
qualquer distância, e quando ela escolhe falar comigo eu posso
responder.”
Aqueles sentimentos calorosos que estavam sendo atiçados
desapareceram no momento em que imaginei Skilfar me
observando através dos olhos de Kara. Por um instante, minha
imaginação desenhou rugas no rosto de Kara, esticou a pele dela
ali, afrouxou-a aqui, apontou isso, diminuiu aquilo e me mostrou a
própria bruxa do gelo, me avaliando com o olhar mais gelado.
Kara passou a mão pelo cabelo, como se procurasse pelas
runas que usava no passado. Aquilo desfez o encanto.
“Então devemos simplesmente desistir porque pode não dar
certo?” Eu era menos contrário à ideia do que minha pergunta
insinuou.
“A chave pode ser usada para facilitar a passagem do que vem
antes da conjunção para o que vem depois. Alguns diriam que seria
melhor usar a chave para herdar o futuro, em vez de correr um risco
desses para tentar salvar o passado.”
“Mas quando a Roda for longe demais, tudo irá queimar – é isso
que todo mundo fica me dizendo!”
“A Dama Azul diz que haverá um depois. Diferente de tudo que
conhecemos. E aqueles que passarem pela conjunção serão
deuses em um novo mundo. A Dama Azul não está destruindo este
mundo, são os Construtores e sua roda. Ela não pode pará-la. Sua
avó não pode pará-la. Skilfar não pode pará-la. Estamos todos indo
em direção às cataratas, e não importa o quanto rememos... todos
vamos cair. Tudo que a Dama Azul está fazendo é remar para
frente, pegando velocidade para fazer do salto algo novo. Ela não se
importa com o Rei Morto, ela não quer o que ele quer. Ele é apenas
a ferramenta que ela está usando para partir o mundo mais cedo,
em vez de mais tarde.”
“Você andou falando com ela!” Eu soube que era verdade assim
que disse as palavras.
“Eu a vi em meu espelho,” desdenhou Kara. “Ela não é o diabo,
e eu não sou nenhuma ovelha para ser influenciada pela opinião
dos outros. Eu presto atenção. Reflito. Eu me decido sozinha.”
“E?” Abri as mãos.
“Estou indecisa.” Ela se endireitou e desceu do muro. Pingos de
chuva começaram a cair à nossa volta.
“Mas ela é má! Eu a vi matar...”
“Você diz que ela é má porque uma das pessoas que a causa
dela precisava que morressem era sua mãe. Mas a causa da
Rainha Vermelha levou à morte de milhares, muitas delas mães.
Olhe ao seu redor.” Ela abriu o braço para as ruínas.
“Eu... eu suponho...” Tentei encontrar as palavras para explicar
por que ela estava errada. “A maioria deles provavelmente fugiu.”
“Seu povo é que é o invasor. Snorri me disse que viu o homem
de um braço só que torturou você aqui em Blujen, de tabardo de
Marcha Vermelha, caminhando com os soldados.”
“João Cortador?” Percebi que eu estava me abraçando e que a
noite parecia mais fria, mais cheia de terrores. “Achei que o
desgraçado já estaria morto a esta altura.”
“Homens que conseguem informações dos prisioneiros com
rapidez são um recurso valioso na guerra, Jal.”
“É um engano. Marcha Vermelha não tem uma inquisição. Nós
somos os mocinhos... Vou contar à rainha. Vou...”
“Olhe atrás do muro,” disse ela baixinho para a noite.
A chuva caía mais forte agora e eu não queria olhar atrás do
muro.
“Tome sua própria decisão, Jalan. Mas faça isso de olhos
abertos.” Ela passou por mim, saindo para a barraca.
A chuva começou a cair para valer e as nuvens haviam roubado
a luz da lua e das estrelas, mas uma labareda ainda ardia em uma
pilha de vigas pretas, dez metros depois do muro onde Kara estava
sentada. Xingando, curvei os ombros com o frio dos pingos e me
inclinei por cima do muro, na parte mais baixa.
O corpo de uma menina estava enrolado ao pé do muro. Ela
estava ali como estivera durante toda nossa conversa, como
estivera quando armamos a barraca e enquanto dormíamos, com os
olhos para o céu, cheios de água fria. Metade de seu rosto estava
preto de queimaduras, com a pele descascando em quadrados
escuros, mas dava para ver que ela era jovem, bonita até, de
cabelos longos e escuros como os de minha mãe. Eu quase me
afastei antes de perceber que o embrulho apertado contra seu peito
era um bebê. Queria ter feito isso.

*****

Chegamos a Blujen em uma manhã cinzenta debaixo de chuva fria.


Lágrimas para os mortos.
Um esquadrão de dez soldados da infantaria de Marcha
Vermelha nos escoltou pela rua alta da cidade. O fogo havia
apagado muitos sinais da luta, mas não precisei fazer força para vê-
los. Em um ponto, os corpos estavam empilhados, civis
uniformizados com lama, um monte silencioso. O Rei Morto os faria
me perseguir, se eu ficasse tempo suficiente para ele localizar a
chave. Vi soldados trazendo tábuas prontas para fazer uma pira, em
ritmo relaxado e reclamando do peso. Se estivessem na muralha de
Vermelhão uma semana antes, estariam correndo para construí-la.
Avistamos a torre antes de ver qualquer sinal da Rainha
Vermelha ou de suas forças. Digo que vimos a torre, mas na
verdade era apenas o reflexo reluzente do céu, e ao nos
aproximarmos nossos próprios reflexos se deformaram, junto com
as ruínas ao redor, na superfície de uma parede de espelho. Os
homens me disseram que a torre era como qualquer outra, alta, feita
de pedra, com um círculo de janelas estreitas debaixo de um
telhado cônico. Quando os primeiros soldados chegaram lá, a
parede espelhada brotou e ficou desde então, imune a ataques,
refletindo de volta toda a violência.
Os soldados que ocupavam as ruínas, sujos de cinza e lama,
alguns com ferimentos, olharam com dureza para nós. Eles deviam
me conhecer como o marechal que deixou Vermelhão queimar.
Alguns fizeram um aceno sério quando passamos. Talvez
soubessem como a Rainha Vermelha lidaria com esse fracasso e
sentissem pena de mim.
Eles nos levaram até o pavilhão real, um edifício escarlate
muito maior que as tendas dos generais e dos pavilhões dos lordes
atrás delas. Sir Robero, um dos soldados experientes de vovó que
participou dos conflitos de Scorron, levou os nórdicos sob sua
custódia enquanto uma dupla de guardas reais me conduziu.
Entreguei minha espada e adaga na entrada.
O pavilhão de vovó era melhor do que minha tenda: uma
camada externa de seda, esticada sobre o feltro encerado mais
resistente, parecia espantar o pior do outono sloviano, embora eu
tenha ficado satisfeito em ver uma tigela em um canto coletando o
pinga-pinga de uma emenda lá no alto.
Guardas e oficiais se afastaram, abrindo caminho até o trono de
madeira. O lugar cheirava a corpos molhados e suor velho. Uma
dúzia de lampiões não conseguia conter a escuridão e os tapetes
grossos debaixo de meus pés estavam cheios de faixas
enlameadas. Vovó estava sentada ereta, mas envelhecida, como se
dez anos tivessem se passado desde a última vez que nos vimos,
com fios grisalhos entremeando o vermelho escuro de seus cabelos.
“Conte-me sobre minha cidade.”
Quanto será que ela já sabia? Não consegui ver a Irmã
Silenciosa no meio das pessoas. Eu me endireitei perante a Rainha
Vermelha, agora encurvada em sua cadeira, e ali, à meia-luz, contei
a história de Vermelhão. E, no meio de toda aquela conversa sobre
queimar metade da cidade para salvar o que estava dentro da
muralha, sobre a traição de seu filho, e sobre a morte de meus
irmãos... acabei me esquecendo de mentir.
“E agora estamos indo para Osheim com a chave de Loki, por
instrução do comissário.” Um silêncio seguiu minhas últimas
palavras. Esperei o julgamento.
“É a vida.” Vovó soou cansada. Eu nunca a tinha visto cansada
antes.
“Ofereço-lhe a chave, alteza.” Fiquei sobre um joelho e levantei
a chave com as duas mãos. O velho desejo de ficar com ela havia
passado, já que se tornou aparente que a chave era minha
passagem direta para Osheim. “Tenho certeza de que ela lhe abriria
a torre da Dama Azul.”
“Quando eu mais queria isto... você a entregou a outra pessoa.”
Ela se inclinou para frente, estendendo a mão enrugada. “Você
parecia ter opiniões fortes acerca do direito de meu irmão de
determinar o destino desta chave.”
Fiquei de boca fechada, sabendo que ela só me cavaria um
buraco mais fundo. A chave parecia gelada em minhas mãos, como
se pudesse escorregar a qualquer momento.
Os dedos da rainha se esticaram para o presente de Loki,
escuro como a mentira e reluzente. “Não.” A mão se fechou.
“Garyus merece nossa confiança... minha fé. Você a levará a
Osheim e desfará a loucura dos Construtores.”
Um suspiro me escapou e, olhando para cima, fechei a mão em
volta da chave. “Envie alguém mais adequado à tarefa?”
Vovó me deu um raro sorriso, apesar de severo. “Foi você que
me lembrou do valor de meu irmão, Jalan. Eu não apoiaria o plano
dele para depois me opor à escolha de seu herói.”
“Herói?” Arregalei os olhos ao ouvir aquilo, sem conseguir
esconder totalmente o surto de orgulho bobo que começou a passar
por mim.
“Além do mais,” disse ela. “Você está com o nórdico. Ele parece
capaz.”

Implorei por uma escolta até o norte, claro, mas vovó insistiu que os
soldados de Marcha Vermelha atrairiam mais problemas do que
afastariam, enquanto viajássemos pelos fragmentos do império.
Contra-argumentei que poderiam viajar sem uniformes ou símbolos
que os marcassem, mas ela repetiu a bobagem de Garyus sobre
grupos pequenos passarem despercebidos, ao passo que grupos
maiores chamariam atenção. A surpresa maior foi quando ela
recusou minha oferta de desbloquear a torre da Dama Azul.
A Rainha Vermelha me conduziu à saída da tenda. “A parede
de Mora Shival não irá resistir à minha irmã por muito mais tempo.”
Demorei um pouco para ligar a Dama Azul ao seu nome – eu
preferia pensar nela como um título. Um nome a tornava humana
demais. Ela já havia sido jovem, como eu, como Kara. Pensar nela
dessa maneira me deixou desconfortável. O rio do tempo nos levaria
adiante, girando com cada redemoinho da correnteza... e o que
poderíamos nos tornar?
“Mas... é só girar a chave e...” Fiz o gesto da abertura dos
portões.
Ficamos sozinhos, com o vento chuvoso puxando nossas
capas, um grupo de guardas dez metros atrás, e à nossa frente o
dedo espelhado da torre da Dama Azul, apontado para o céu.
“Dizem que nenhum mago do mal jamais deixou a Roda.” A
Rainha Vermelha manteve os olhos na parede de vidro, como se
procurasse algum sentido na distorção ali. “Estão incorretos. Dois
deixaram. Mora Shival foi uma das duas pessoas que escaparam.
Ela tem um portão dentro de sua torre. Uma combinação de suas
artes com a ciência dos Construtores. Um vidro fractal. A maioria de
suas portas de espelho está quebrada agora, e as que sobrevivem
se quebrarão quando esta parede for quebrada. O vidro fractal, no
entanto, irá sobreviver, e ele leva a...”
“Osheim.”
Vovó inclinou a cabeça.
“Espere. Se ela pode correr para Osheim, por que ela não vai
para lá agora? Você mesma disse que os exércitos não servem de
nada lá. A Roda é uma defesa melhor do que essa parede dela.”
“O coração da Roda é difícil de aguentar, até mesmo para um
mago do mal. A dama está enfraquecida ultimamente. Perdeu
reflexos demais para esperar em Osheim sem grandes riscos. Ela
só correria para lá se nenhuma outra alternativa se apresentasse –
ou no fim das coisas, quando restar pouco tempo no mundo.”
“Enquanto batemos na parede dela, sua atenção se mantém
aqui, sua força é empregada para manter suas defesas. Você terá
de encontrar e destruir a saída dela em Osheim. Este será o
momento de romper as barreiras dela, quando não tiver mais para
onde fugir. Nenhum buraco para se esconder. É aí que iremos pegá-
la.” A mandíbula da Rainha Vermelha se apertou como se
imaginasse aquele momento. “Quando você fizer isso, minha irmã
saberá, e iremos agir.”
“Você não viu Osheim. É enorme. Como posso esperar
encontrar um espelho?” Como se desligar as engrenagens da Roda
não fosse impossível o suficiente, agora eu tinha uma agulha para
encontrar em um palheiro de oito quilômetros de largura.
“Ele estará no coração de tudo. Você o encontrará.”
Após fracassar em entregar a chave a vovó, fracassar em fazê-
la mandar outra pessoa, e fracassar em fazê-la enviar um exército
para me proteger, só me restava um lugar para correr. “E se ela
estiver certa?” perguntei, invocando os argumentos de Kara. “Se
estamos todos perdidos, de um jeito ou de outro, que diferença faz
se o mundo queimar hoje ou amanhã? Por que os mais fortes e os
mais espertos não devem se salvar, já que não podem salvar mais
ninguém? Já cogitou se unir a ela?” Eu deixei a parte ‘e me salvar’
sem dizer.
O tapa não foi uma grande surpresa. Nem mesmo a força dele,
que me levou ao chão segurando o rosto.
“Somos Kendeth, Jalan!” Ela se aproximou de mim. “Nós
lutamos. Lutamos quando as esperanças já se foram. Lutamos
enquanto ainda restar sangue em nós.” Ela me pôs de pé como se
eu fosse uma criança, em vez de um homem de mais de um metro e
oitenta. “Nós lutamos.” Os olhos dela se fixaram aos meus, duros
como pedra. “Aquela mulher matou meu avô. Derramou o sangue
dele na minha casa. Tentou me matar e, ao me defender, meus
irmãos foram transformados... e viraram o que são hoje.” Ela baixou
a voz, com a raiva diminuindo mas ainda me segurando firme.
“Aquela mulher já viveu tempo demais, e irá sacrificar os amanhãs
de um milhão para poder viver mais vidas. Sim, eu quero salvar
minha cidade, meu país, meu povo, e sim, isso vale a minha vida e
a sua, para dar a eles outro ano, mês ou dia. Mas de verdade? No
fundo do meu coração, Jalan? O que me impulsiona é que eu não
vou deixar aquela vaca ganhar. Ela levantou a mão para mim e para
os meus. Ela morrerá pelas minhas próprias mãos. Não vai haver
vida eterna para aquela lá. Nem mundo novo. Isso é uma guerra,
rapaz. A minha guerra. Eu sou a Rainha Vermelha, e eu não perco.”
Ela me soltou e fiquei novamente de pé. Eu sabia o que ela iria
dizer. E sabia que estava certa também. Ou pelo menos mais certa
que a Dama Azul. É difícil quebrar velhos hábitos, no entanto, e eu
tinha que pelo menos tentar cada rota de fuga.
“Se a vir em Osheim, a matarei com a espada que matou minha
mãe.” Eu tinha minha própria vingança para fazer, meu próprio fogo
e minha própria medida do sangue da Rainha Vermelha.
“Faça isso.” Um raro sorriso nos lábios de vovó.
Suspirei e apertei minha capa. “Que sorte que vou para Osheim
com a chave, então. Senão nada disso daria certo.”
Vovó virou a cabeça e olhou além de mim. Eu me virei também
e acompanhei seu olhar. A Irmã Silenciosa estava parada atrás de
mim, desconfortavelmente perto. Ela me olhou daquele jeito
estranho, um olho cego branco e cheio de mistérios, o outro tão
escuro quanto qualquer buraco. “Sorte? Vamos deixar a sorte para o
fim do jogo,” disse a Rainha Vermelha. “Você precisar de muita para
a Roda. Ninguém prevê esse futuro, nem uma olhadela.”
“Então... acho que vou indo.” Por pior que Osheim parecesse,
eu realmente não queria ficar ali entre aquelas duas velhas
assustadoras nem um momento a mais. “E se... se tudo der certo? E
aí?”
Vovó deu mais um de seus raros sorrisos, tão sombrio quanto o
primeiro. “O mundo continuará girando. Este fim terá sido evitado,
ou mais provavelmente atrasado. A Guarda Gilden chegará em um
mês para me levar ao Congresso e a Centena repetirá os mesmos
argumentos que são ditos desde os tempos de meu avô. Talvez
dessa vez nós realmente elejamos um novo imperador e
consertemos este nosso império destruído.”
Levei um tempo para perceber que o chiado seco ao meu lado
era a risada da Irmã Silenciosa. Supus que era minha deixa para ir
embora.

Snorri e Kara estavam me esperando com os cavalos perto do maior


depósito de suprimentos, entre vários. O garoto não estava em
nenhum lugar visível. Invejei sua liberdade de sair vagando.
“Vamos partir?” Snorri elevou a voz por cima do barulho à
nossa volta. Os soldados de Marcha Vermelha trabalhavam como
formigas sob a direção dos gritos dos mestres dos depósitos para
dividir e distribuir as pilhas de comida e equipamento.
Fiz que sim. “Encontrem-me na estrada principal, perto da igreja
grande. Só preciso de um instante.”
“Quê?” Snorri enconchou a mão à orelha, mas Kara já estava
empurrando-o para longe, com a mão no peito dele.
Ela olhou para mim por cima do ombro. “Não vai fugir, hein?”
Não respondi, mas fiquei pensando, e não foi a primeira vez, se
ela conseguia ler minha mente.
Vaguei pelas ruínas sem direção, mas ainda dentro do
perímetro de defesa. Não tinha a menor vontade de me explicar
para um bando de slovianos vingativos. Vovó tinha uma posição
forte com um grande número de tropas experientes, mas, para
defender este terreno até eu chegar à Roda de Osheim e bloquear a
última saída da Dama Azul, seria preciso uma tática genial, para não
dizer todo tipo de sorte. Sua única esperança real era que Rei Lujan
confundisse o objetivo dela e mantivesse suas forças em Julana,
achando que ela estava preparando um ataque à sua capital.
Entrei no esqueleto de uma construção sem teto para sair da
chuva fina que soprava no vento frio de outono, daquele jeito que
encharca o rosto e enche os olhos. Parado debaixo do arco da
entrada, ponderei minhas opções e percebi que eram limitadas. De
alguma maneira eu estava rumando ao norte outra vez, ainda preso
ao viking, e por correntes que compreendia tão mal quanto da
primeira vez. Eu havia sido praticamente arrastado ao Inferno pela
força singular da boa opinião que Snorri tinha de mim, embora a
força de seu braço tenha sido necessária para me levar lá, no fim
das contas. Agora, de algum jeito, as boas opiniões de muita gente
– desde a rainha de Marcha Vermelha até aquela criança pagã –
estavam me levando a um inferno na Terra. Como tanta gente havia
enterrado suas garras em minha armadura, eu não sabia. Só sabia
que não gostava disso nem um pouco. O Jalan que pulou da
varanda de Lisa DeVeer teria saído correndo e continuado a correr.
Será que um único ano havia acarretado tantas mudanças em mim?
Alguma coisa chamou minha atenção para o interior coberto de
fuligem da casa. Ela tinha sido grandiosa no passado. Comecei a
identificar os objetos escurecidos em meio à confusão. O busto
estilhaçado de algum santo ou antepassado da família, os cacos
irregulares de vasos quebrados. Observei mais de perto – uma
espada partida em pedaços, como se também fosse de cerâmica.
Mexi os fragmentos com a bota, percebendo as bordas brilhantes.
Ao me aproximar e me abaixar para ver melhor, vi que até os
pedaços de madeira que restavam, tábuas caídas do telhado,
enegrecidas pelas chamas e acres pela chuva, tinham pontas
irregulares como se também tivessem se estilhaçado, as rachaduras
ignorando os veios. Eu me levantei, virando lentamente. Tudo à
minha volta estava em pedaços de pontas afiadas por baixo da
camada preta, como se todo o ambiente tivesse se estilhaçado
como vidro em uma única explosão.
Um quadro emoldurado estava apoiado à parede da porta
arqueada por onde entrei. A única coisa inteira do lugar. Fui até ele,
estendendo o dedo para limpar um trecho. A fuligem caiu no
instante em que a ponta do meu dedo fez contato. Não só onde eu
encostei, mas inteira, caindo como um pedaço de seda preta
deslizando sobre uma mesa polida. E embaixo dela... o rosto de um
homem, mas não era um retrato, era eu, olhando de volta para mim
com surpresa na superfície lisa e limpa de um grande espelho.
“Olá, Jalan,” disse eu. Vi meus lábios se mexerem com as
palavras. Mas não era minha voz.
“Fique longe de mim!” Essas eram minhas palavras, mas a
boca de meu reflexo continuou fechada. Ele me olhou com olhos
que não eram meus. Tentei me virar, mas aquele olhar me prendeu.
“Não sou sua inimiga Jalan. Você quer escapar. Eu quero
ajudá-lo a escapar. Você é uma peça no tabuleiro da Rainha
Vermelha e ela fica botando você em perigo, não importa o que
faça. Posso ajudá-lo a jogar seu próprio jogo.”
“Você é minha inimiga,” falei, embora ela estivesse certa sobre
a parte de escapar. “Suas mãos estão vermelhas com o sangue de
minha família e meus amigos. Sangue demais para ser perdoada.”
Ela sorriu, com a boca mais dela do que minha agora,
curvando-se como eu lembrava da juventude de vovó. “Mostramos
mais nossas fraquezas quando olhamos para nós mesmos, Jalan.
Eu já vi você se olhando. Ouvi os segredos que contou ao seu
reflexo, as dúvidas, as verdades, cada confissão. Todos nós
sabíamos que você seria especial. Você ou sua irmã. E nós o
observamos, mas enquanto a Irmã Silenciosa estudou os caminhos
que podem levar vocês a todos os seus amanhãs, eu fiz um estudo
do homem, analisei-o. Um covarde pode se perdoar de qualquer
coisa se tiver a desculpa certa, Jalan. Acredite em mim quando digo
que a dor de qualquer traição, seja aos vivos ou aos seus mortos,
durará apenas um momento, comparada às alegrias que esperam
por você. A liberdade de fazer o que você quiser, sem se restringir
por moralidades problemáticas, livre daquela voz chata da
consciência que os outros impuseram a você, com a qual infectaram
você.”
“Mentira,” disse.
“A Roda está girando, Jalan. Ela não pode ser detida. A
mudança não pode ser detida. Tudo que conhecemos irá terminar. A
decisão não é como combatê-la, mas sim como sobreviver a ela. Eu
observei você, e você, Jalan Kendeth, é, acima de tudo, um
sobrevivente.”
“Mentira,” repeti, mas o pior de tudo não era que ela estava
provavelmente certa sobre a Roda ser imparável. O pior é que
estava certa sobre mim. Eu podia ir embora. Podia trair qualquer
confiança para salvar minha própria pele. Claro que isso magoaria,
e sim, eu iria me xingar e ficar triste... mas depois? Eu achava que
aquilo não iria acabar comigo – não da maneira que acabaria com
Snorri, se ele fosse capaz de fazer uma coisa dessas. Eu não tinha
tanta força assim. Eu não era igual a ele. Snorri era a verdade. Não
desistia nunca. Inflexível. Ou tudo ou nada, nada no meio. Já eu?
Príncipe Jalan era uma mentira que contava a mim mesmo, mutável,
adaptável, duradouro... um sobrevivente. “Como é que alguém pode
sobreviver ao fim de tudo?”
E lá estava. Praticamente uma traição. Eu havia pedido à Dama
Azul para plantar uma semente de esperança em mim. Meu reflexo
agora se parecia com nós dois – uma mistura – a idade dela nos
meus ossos, as palavras dela nos meus lábios.
“Há maneiras que os que têm poder conhecem. O verdadeiro
poder que existe na mente, em vez de títulos, terras ou o comando
de grandes exércitos. Levarei aqueles que me servem através da
conjunção das esferas, até um novo mundo. Mas eles precisam
estar próximos no momento final. Próximos o bastante para tocar.”
“Tudo que eu preciso fazer é atravessar sua parede e me juntar
a você naquela torre, não é?” Era no máximo uma pequena
esperança, mas eu não esperava que azedasse tão rápido.
“Existe outra maneira. Para um homem com a chave de Loki.”
“Estou ouvindo.” Minha mão encontrou a chave.
“O coração da Roda é o centro da tempestade. Quando os
mundos se estilhaçarem como espelhos e todos os pedaços
desabarem, quem estiver no coração da Roda passará ileso.” Meu
reflexo tinha pouco de mim agora, apenas meus olhos no rosto de
uma velha.
“Me disseram que não é um lugar onde ninguém escolheria
ficar esperando.”
“As engrenagens da Roda continuam mudando o mundo. A
Roda continua girando, mas essa nunca foi a intenção dos
Construtores. As engrenagens foram feitas para girar até certo
ponto, não mais, e mantê-la naquele ponto, para dar um pouco de
magia a cada Construtor e mudar o mundo deles de uma coisa
estabelecida para outra. O fato de a Roda ter continuado a girar,
sempre lentamente, foi um erro, um imprevisto. Somos nós que
giramos a Roda ao usarmos o poder que ela nos dá, e as
engrenagens de Osheim nos ajudam a girá-la consideravelmente
mais rápido do que conseguiríamos sozinhos.”
“A guerra deles acabou com o interesse no assunto, e mil anos
transformaram um pequeno erro que poderia ter sido corrigido em
um grande que não pode.” A Dama Azul me olhou do espelho, sem
o menor vestígio do meu rosto agora. Ela parecia velha, mas não
tanto quanto minha avó e a irmã dela. Seu rosto, no entanto, tinha
muito menos vitalidade – a pele bem repuxada sobre os ossos,
finíssima, os olhos nebulosos. “Algumas pessoas pensam que a
chave pode ser usada para desativar as engrenagens da Roda e
que fazer isso pode retardar a conjunção inevitável. É possível,
embora improvável, e um desperdício tão grande... a chave
destruída para ganhar um punhado de meses, alguns anos no
máximo. Muito melhor girá-la para o outro lado – colocar aquelas
engrenagens no máximo, girar a Roda como os Construtores
fizeram e provocar o fim em instantes. O homem que fizesse isso
garantiria uma vaga na nova ordem das coisas, e uma transição
limpa e brusca facilitaria as coisas para aqueles de nós habilitados a
sobreviver à mudança, trazendo não só alguns poucos seguidores,
mas dezenas, talvez centenas.”
“Você mandou Edris Dean matar minha mãe.” Eu me ative à
raiva, pelo menos isso parecia honesto e descomplicado.
“Não foi um ato de malícia, Jalan. Foi de sobrevivência. Você
sabe, lá no fundo, que quando se trata de se queimar no fogo ou
não, você escolheria salvar a si mesmo antes dos outros. Isso é
honestidade. Essa é a verdade, no fundo, do que nós somos. Você
precisa...”
Alguma coisa passou chiando pelo meu ouvido e o mundo
explodiu.
Abri os olhos depois de uma quantidade de tempo
indeterminada e descobri que o mundo explodiu menos do que
imaginei, embora estivesse com uma aparência estranha, como se a
casa inteira tivesse caído para o lado. Levei um tempo para
entender que eu é que tinha tombado.
Alguma coisa me puxando e grunhindo indicou que alguém
estava tentando me colocar de volta em posição de sentado, apesar
de estarem fazendo um péssimo trabalho.
“Estou bem.”
Eu me sentei, passei a mão sobre o rosto, e encontrei Hennan
franzindo a testa para mim. Ao olhar para a palma da minha mão, vi
que estava vermelha. “Merda! Não estou bem! Estou sangrando até
a morte!” Consegui ficar de pé. Cacos cintilantes de espelho
estavam por toda a parte, triturando-se sob minhas botas.
“Está com um corte abaixo do olho,” disse Hennan. “Um pedaço
deve ter pegado em você quando atirei a pedra.”
“Atirou?”
“O espelho estava fazendo alguma coisa com você. Estava todo
azul – como um céu errado. Atirei uma pedra nele.”
“Ah,” falei. “Bem.” Olhei em volta. Só eu e Hennan na estrutura
empretecida da casa de um comerciante. “Bom. Vamos embora.”
26

Deixei Snorri e Kara nos guiar pela saída dos jardins de Blujen e
seguindo para o norte da Slóvia. O instinto de Snorri ao ar livre
parecia tão aguçado entre os bosques e campos dos reinos centrais
quanto era nas pedras e no gelo de Norseheim. Kara também
mostrou seu valor, jogando as runas toda vez que a estrada nos
oferecia escolhas e selecionando o caminho de menor resistência.
A Slóvia, é claro, estava em um estado de alta ansiedade, com
boatos correndo soltos pelo interior, e qualquer cidade que tivesse
muralha estava preparando os nervos para a guerra. Havia fortes
suspeitas de que qualquer estranho pudesse ser um espião de
Marcha Vermelha, mas até a imaginação fértil dos slovianos teria
dificuldade de conceber a Rainha Vermelha recrutando vikings
gigantes, völvas loiras ou garotos ruivos do norte como agentes
secretos. Fiz o que pude para me esconder atrás de Snorri e dizer o
mínimo possível durante os encontros. A tática deu certo, tornando-
se mais fácil a cada quilômetro que deixávamos a zona de guerra
para trás, e dentro de poucos dias retornamos ao progresso
constante e às noites confortáveis das tabernas que aproveitávamos
pelo caminho.
Após consultar os mapas no quartel general de vovó e discutir o
assunto com um homem de aparência perigosa, que descrevia sua
ocupação apenas como ‘viajando a serviço do estado’,
pretendíamos deixar a Slóvia pela fronteira de Attar-Zagre e passar
rapidamente para Charlândia, cruzando o espaço daquela nação
desfavorecida antes de viajar por Osheim até a Roda.

Não sou um homem que gosta de viajar. Gosto de cavalgar, é


verdade, mas de maneira geral prefiro terminar o dia onde comecei,
isto é, em casa no palácio de Vermelhão. Não aprovo lugares
estrangeiros. Países vizinhos são no máximo um mal necessário
para reduzir a quantidade de litoral, já que a única coisa pior que
uma longa jornada por terra é uma viagem de qualquer distância
pela água. Em suma, mesmo com estradas decentes, estalagens
quentes e comida razoável, esse negócio de ir de A até B é
superestimado.
Eu poderia dar uma lista praticamente interminável de
pequenas cidades percorridas, camponeses preguiçosos
encontrados, mantimentos comprados, ferraduras colocadas,
cerveja bebida, geadas matinais, as cores fogosas do outono, pores
do sol vagarosos no oeste... mas a verdade é que, quando nos
deparamos com o desastre, uns cento e cinquenta quilômetros
haviam passado debaixo de nossos cascos sem acontecer
absolutamente nada.
Para um mundo supostamente no fim, as coisas pareciam em
grande parte tranquilas, pelo menos a julgar pelo que podia ser visto
do lombo de um cavalo no meio do Império Destruído. O céu
continuou variando entre azul ou cinza, sem demonstrar tendência a
rachar ou arder. A terra tinha os tons outonais de ocre molhado, sem
ravinas sulfurosas se abrindo no meio dos campos baixos nem
labaredas saindo de fissuras recém-formadas. Até o incêndio que
lambeu as muralhas de Vermelhão parecia um sonho distante
agora.
Tentei em algumas ocasiões abordar o assunto da viagem de
Snorri a Hel. Eu teria chegado lá no meu próprio tempo, sem Kara
me lançando olhares. Meu próprio tempo, contudo, seria quando
fôssemos velhinhos. Felizmente, ele apenas balançou a cabeça e
pegou sua cerveja. “O que passou, passou, Jal. As histórias se
revelam na hora certa. E para algumas histórias a hora nunca é
certa.”
Durante a primeira semana de nossa viagem, cada espaço
sombreado representava uma ameaça. Eu sabia que Edris Dean
estava em algum lugar após fugir do cerco quando as coisas
azedaram. Sabia que o Príncipe Desnascido estava percorrendo os
reinos, fazendo os trabalhos do Rei Morto. E pior que Dean, pior até
que o Príncipe Desnascido, sabia que minha irmã estava à minha
procura. Kelem havia me dito que minha irmã precisava da minha
morte para se firmar neste mundo. Marco confirmou isso quando o
encontramos pregado à arvore nas terras secas. Minha irmã havia
saído de seu longo exílio, passando para o nosso mundo através da
ferida deixada pela morte de um irmão. Desnascida do inferno e
vinculada a um lichkin, ela agora buscaria a morte de seu último
irmão para ancorá-la aqui. Eu precisava de alguma coisa mais
sagrada que a cruz benzida por meu pai para separar minha irmã do
lichkin. Fiquei de olhos abertos enquanto viajamos, mas relíquias de
igreja são raras na maioria dos lugares, então mantive os olhos
abertos principalmente para horrores despelados nos arbustos
tentando me atacar.
Tudo isso seria suficiente para deixar qualquer homem
prisioneiro de seus medos, considerando cada noite como um longo
horror em que seus inimigos poderiam aparecer sem avisar. Mas, de
alguma maneira, após tantos dias se passarem sem incidentes, a
normalidade da estrada encolheu aqueles medos que deveriam me
deixar tremendo e de olhos arregalados a algo quase abstrato.
Viajando com Snorri de um lado, Kara do outro, o sol inesperado do
outono nas costas, o garoto trotando na frente... não parecia
possível que o mundo tivesse pesadelos como aqueles.
“Acho que um pouco dos vikings está passando para mim.” Fiz
como se estivesse limpando a manga da camisa, quando Snorri
passou lentamente com seu cavalo por Murder. O garanhão havia
se acalmado um pouco na viagem e permitia que os outros se
revezassem na liderança, supostamente considerando-os como
arautos que vão na frente do rei para anunciar sua chegada
iminente. “Não estou achando essa viagem ao norte tão horrível
quanto a última.”
“Esta é a magia dos fiordes.” Snorri sorriu. “Eles te chamam de
volta. Ninguém viaja mais longe que os vikings, mas nós voltamos.
O norte nos chama para casa.”
“Bobagens sentimentais.” Kara nos alcançou, aproximando-se
do meu lado esquerdo. “Há mais vikings estabelecidos nas Ilhas
Afogadas e ao sul de Karlswater do que morando em todo o
Norseheim.”
Senti mais uma daquelas discussões intermináveis deles
chegando. Os dois podiam debater a menor questão durante horas
naquele bate-bola cantado que os nórdicos tinham. Eles acabavam
esmiuçando algum ponto absurdamente maçante da história viking.
De repente o mundo dependia de saber se Olaaf Thorgulson, o
quarto filho de Thorgul Olaafson, partiu de Haagenfast no vigésimo
oitavo ano dos Jarls de Ferro ou no vigésimo sétimo...
Olhei rapidamente em volta procurando alguma coisa para
distrai-los antes que começassem.
“Puta que pariu! É a Papa,” falei, sem acreditar muito, pois
encontrar sua santidade em uma estradinha da fronteira de Zagre-
Attar parecia uma possibilidade tão pouco real quanto um
desnascido saindo dos arbustos.
“Isso parece improvável.” Snorri se levantou em seus estribos
para ver melhor. À nossa frente, a estrada seguia reta dividindo a
terra, subindo e descendo com cada ondulação. Saindo do declive
oculto do próximo vale, uma longa caravana havia começado a
despontar no alto da elevação seguinte. Até a um quilômetro e meio
de distância eu reconheci a bandeira papal sem dificuldade, uma
cruz roxa se agitando horizontalmente na flâmula branca. Uns doze
homens ou mais carregavam uma grande liteira, em cujo teto havia
uma cruz dourada que gritava ‘roubem-me’ à distância, e dois
esquadrões de alabardeiros, uns vinte na frente e atrás, protegiam a
coisa, carregando pontas de aço suficientes para fazer até o pior
dos bandidos desistir.
“Bom, se não for a Papa é alguém importante para cacete.”
Papai nunca teve uma escolta dessas, apesar de ser cardeal.
“Devemos ficar longe deles,” disse Snorri.
“Não se preocupe, a igreja deixou de queimar pagãos há anos.”
Estendi a mão para lhe dar um tapinha condescendente no ombro.
“Você vai ficar bem. Hoje em dia eles só perseguem bruxas... ah.”
Olhei para Kara atrás. “Talvez seja melhor mesmo ficar longe deles.
Uma caravana tão grande assim com certeza vai ter pelo menos um
inquisidor.”
É claro que, quando as pessoas que você quer evitar estão na
sua frente, na melhor estrada de uma região desconhecida, e indo
na mesma direção que você, só que mais devagar... isso significa
que precisa reduzir sua própria velocidade e segui-los.
Cavalgamos atrás em velocidade de caminhada, mantendo uns
bons oitocentos metros entre nós. De vez em quando o comboio
papal aparecia novamente, subindo um dos morros da paisagem
ondulada. Começou a chover.
“Podíamos simplesmente ultrapassá-los,” disse Hennan.
“O menino tem razão,” disse Snorri. “A meio-galope levaríamos
dez segundos da traseira até a dianteira.”
“Eles estão enchendo a estrada. Teriam de chegar para o lado
para passarmos,” falei. “Podem questionar nossas atividades e, se
houver um inquisidor com eles, logo descobririam.” Meus dedos
encontraram o calombo que a chave de Loki formava debaixo de
meu casaco. Inquisidores tinham um faro para essas coisas, mas
acusá-los de usar encantos seria o mesmo que se amarrar ao poste
e pedir uma tocha. Explicar a chave a um agente da Inquisição de
Roma não era algo que eu queria ter de fazer. Pessoas tiveram as
línguas arrancadas só por mencionar os nomes de deuses falsos.
A chuva engrossou à medida que a luz diminuiu, e mesmo
assim os clérigos e seus guardas não deram o menor sinal de que
iriam sair da estrada e procurar abrigo durante a noite.
“Vamos acabar seguindo-os até Osheim,” disse, cuspindo a
água da chuva. A escuridão crescente dava uma sensação
opressiva, com todas aquelas ameaças que eu passara a esquecer
com tanta habilidade ultimamente. Espontaneamente, uma imagem
de Darin me veio à mente, meu irmão caído morto ao lado do Portão
Appan... um instante depois, vi a mão de minha irmã desnascida se
mexer debaixo da pele dele, procurando uma saída. Dei paz a Darin
com a espada em meu quadril, mas minha irmã encontrou a
passagem de que precisava horas depois, abrindo o caminho para
este mundo através do corpo ainda quente de Martus. Será que ela
estava ali fora agora? Uma criatura do Inferno, ainda fresca de seu
nascimento falso e ávida pela minha vida?”
“Jal?” Uma mão no meu ombro. A mão de Kara.
Levei um susto e quase dei um ataque. “Quê?” A palavra saiu
meio ríspida.
“Alguém está vindo,” disse ela.
O barulhos dos cascos se aproximou e nos afastamos para a
esquerda. Um único cavalo, sendo cavalgado com força.
O homem saiu da escuridão e da chuva e já havia quase
sumido de vista novamente quando parou, com o cavalo empinando
e relinchando uma reclamação.
“A escolta do cardeal passou por vocês?” Ele tirou o capuz.
Cabelos pretos grudados na testa, o rosto para lá de magro, os
dentes expostos por exaustão ou por medo.
“Não,” disse. “Que cardeal? O que eles estão fazendo neste
lugar?”
O homem me ignorou, colocando o capuz e botando o cavalo
de volta na estrada. Talvez o ‘neste lugar’ o tenha ofendido. Sempre
me esqueço que as pessoas que não são de Marcha Vermelha
tendem a achar que seu país é o centro do império.
“Que cardeal?” gritei.
“Hemmalung,” um grito sobre o ombro, quase perdido no meio
da chuva e das batidas dos cascos.
“Que diferença faz o nome dele?” perguntou Hennan.
“Dela,” falei. Uma ideia começou a se formar, uma ideia tão
grande que só uma ponta conseguiu penetrar meu crânio até o
momento. “Hemmalung é a segunda cidade da Charlândia.” A
verdade é que eu não sabia o nome da primeira cidade nem de
qualquer outra, ou nenhum fato sobre o reino – mas sabia que
Hemmalung era uma cidade porque conhecia a cardeal de lá.
“E qual o nome dela?” Snorri inclinou-se para ouvir, passando a
mão pelo pequeno matagal preto de sua barba, como se quisesse
espremer a chuva dela.
“Gertrude.” Eu me lembrei dela, uma mulher corpulenta,
chegando aos sessenta, lábios finos, olhos fundos, cachos
grisalhos. Ela visitou papai no Salão Roma em mais de uma
ocasião. “Vou cavalgar na frente e me reapresentar à boa cardeal.”
“Para quê?” Kara parecia tão ensopada e suja quanto seu
cavalo, com a chuva caindo do nariz dela e do dele. “Podemos
procurar uma estalagem. Um abrigo para a noite. É bem provável
que eles já tenham saído do caminho quando amanhecer.”
“Ela tem uma coisa que eu preciso. Snorri pode lhe dizer o que
é.”
“Não posso, não,” disse ele.
“Nos contaram a respeito em Hel...” Empinei a cabeça com
expectativa e, ao ver que Snorri ainda estava com a expressão
vazia e meu ouvido se enchendo de água, agitei a mão. “Por uma
alma sombria merecidamente pregada a uma árvore bem grande...”
“Marco?” Snorri jogou as mãos para o alto exasperado. “Você
não devia acreditar em nada que ele disse!” Ele se virou para Kara.
“Jal acha que o sinete de um cardeal irá separar sua irmã do lichkin
que a tirou de Hel.”
“E vai mesmo!” Eu tinha certeza disso. “Os mortos não
mentem.” Depois com menos certeza. “Mentem?”
“É besteira, de qualquer modo.” Snorri pôs seu cavalo em
movimento com um chute. “Se o sinete de um cardeal é tão
sagrado, então como você espera separar cardeal Gertrude do
dela?”
“Vou roubá-lo.” Olhei na direção de Hennan. “Sou tão temente a
Deus quanto qualquer príncipe, e escrupulosamente honesto, mas
tempos de desespero...”
“Você roubou a chave de Loki de Kara,” disse o garoto.
“Ah, bem... ela era minha, para início de conversa. Enfim, pare
de confundir a questão. Vou pegá-la.”
“Vai ‘pegá-la’?” Snorri ergueu a sobrancelha. Já passei horas
tentando aprender a manha de elevar uma única sobrancelha, mas
não tenho esse talento. Provavelmente é alguma coisa inata dos
nórdicos.
“Como?” perguntou Kara. “Não está fazendo o menor sentido.”
“Pós-coito.” Sentado em um cavalo molhado na chuva, aquilo
não parecia muito apetitoso. Lembrar da última vez também não
abriu meu apetite.
“Você dormiu com uma cardeal?” Snorri se aproximou, com
surpresa e deleite lutando pelo controle de suas feições.
“Bem, tecnicamente ninguém dormiu.” Tentei encontrar o tom
certo da indiferença contida. Não sei se consegui. “Mas nos
conhecemos no sentido bíblico, sim.”
“Seus cardeais não são... gente velha?” perguntou Hennan.
“Quanto tempo faz isso?” indagou Kara.
Fiz Murder ir mais rápido, tentando me desvencilhar dos
nórdicos curiosos me pressionando por todos os lados. “Muito
tempo atrás.”
“Quanto tempo?” alcançou Snorri. “Não faz muito tempo você
tinha doze anos. Você não tinha doze anos, tinha?”
“Claro que não. Bem mais velho que isso.”
“Ele está mentindo,” disse Kara, de volta à minha esquerda.
“Um pouco mais velho.” Dava para ouvir Snorri rindo baixo por
cima da chuva. “Se quiserem saber, Gertrude foi minha primeira. Ela
foi muito delicada...”
Risadas dos dois lados me interromperam.
“Danem-se vocês, pagãos!” Botei Murder a meio-galope.
“Voltarei com o sinete pela manhã. E se os guardas pegarem vocês
por perto vou recomendar que os queimem como bruxas.”

Deixei Murder tomar a frente. A chuva e a escuridão mantinham a


visibilidade em trinta metros ou menos, mas nunca tinha visto uma
estrada tão reta, e com a superfície tão bem conservada, na maior
parte de cascalho, mas em alguns trechos de pedra ou até mesmo
pavimentada. Existe alguma coisa em galopar um cavalo que nunca
vai me cansar. É uma espécie de união que põe você no controle de
uma força muito maior que a sua... controle é uma palavra forte
demais, se fosse controle, boa parte da alegria se perderia. Você é
um guia, um condutor. Acho que é o mais próximo de compreender
a bruxaria que já cheguei.
Dez minutos depois, ensopado até os ossos, mas
entusiasmado com o calor da corrida, eu sabia que devia estar perto
de alcançar a cardeal. Reduzi para um trote, sem querer pegá-los
de surpresa e me ver acidentalmente empalado em uma alabarda
antes de conseguir declarar minhas intenções... ou melhor, declarar
minhas mentiras, já que minhas verdadeiras intenções
provavelmente me fariam ser empalado de propósito.
Quase passei direto pelo cavalo, parado nas margens da
estrada em meio à chuva torrencial. Um único cavalo escuro, de
cabeça baixa, de costas para as margens de um pequeno bosque
não muito longe da estrada. Sempre tive olho bom para cavalos e
aquele ali me pareceu familiar. Ao olhar em volta, vi uma mancha no
cascalho que parecia mais escura que o restante... talvez uma
mancha de sangue. Cavalguei até o cavalo. Ele saiu trotando,
arisco, mas vi o suficiente para ter mais certeza de que era o bicho
que o mensageiro que passou por nós estava cavalgando.
“Um assassino?” falei as palavras em voz alta, embora não
houvesse ninguém para ouvir e a chuva as abafasse.
Virei Murder de volta para a estrada e continuei em ritmo mais
lento, perplexo.
Não demorou muito para chegar à retaguarda da coluna,
sombreada na chuva, com as alabardas sobre os ombros,
balançando no ritmo da marcha.
“Viajante passando!” Achei melhor manter meu anonimato o
máximo possível. A princípio, nenhum deles deu o menor sinal de
ter me ouvido. “Viajante passando!” gritei novamente, e ao mesmo
tempo todos eles pararam. Sem nenhuma cabeça virada na minha
direção, a retaguarda, umas duas dúzias de homens no total,
afastou-se para a lateral da estrada.
“Passando...” Passei a pé com Murder pelas fileiras, oito filas de
três, nenhum deles me olhando, todos com aquelas expressões
vazias que os soldados do serviço doméstico muitas vezes usam
para dar a ilusão de privacidade àqueles que protegem.
A liteira era larga, grande o bastante para levar seis pessoas
apertadas lado a lado. Lampiões pendiam de cada canto do teto
retangular, mas nenhum estava aceso. Cardeal Gertrude estaria
viajando com um secretário pessoal, um assistente e uns dois
padres, no mínimo. Esperei que não tivesse sobrado nenhum
espaço para a inquisição.
“Vou fazer um cumprimento à cardeal...” Falei alto o bastante
para ser ouvido por cima do barulho da chuva no teto preto
alcatroado da liteira fechada. Adequadamente, o capitão da guarda
deveria ter se apresentado a essa altura e exigido minhas
credenciais. Em vez disso, a coluna inteira simplesmente ficou
parada ali me ignorando. “Olhem aqui...” A ameaça sumiu de minha
voz quando nenhum rosto se virou para mim. A água gelada
escorria pelas minhas costas, junto com a certeza de que alguma
coisa estava muito errada ali.
Fiz Murder dar meia-volta, um movimento elegante no qual o
garanhão havia sido bem treinado. Com as duas pernas apertadas
às laterais dele, pude sentir os movimentos nervosos de seus
músculos – o cavalo estava assustado e, considerando que recebeu
o nome por sua reação normal a ameaças, aquilo me deixou com
medo também. Olhei para a porta preta e brilhante da liteira, com a
ordem papal blasonada ali, molhada, acima da coroa e foice de
Hemmalung. Os carregadores ficaram parados, de cabeça baixa,
pingando, e de repente eu não queria nem um pouco que aquela
porta se abrisse.
Enquanto olhava, parecia que a água escorrendo por baixo da
porta estava mais escura do que deveria estar, como se estivesse
manchada.
“Eu... é... esqueci uma coisa.” Bati os calcanhares nas costelas
de Murder. “Desculpem, foi mal.”
A porta da liteira começou a se abrir, lentamente, como se o
vento tivesse entrado e começado a puxá-la. Uma mão fria e etérea
afundou os dedos em meu peito, entrelaçando-os entre os ossos de
minhas costelas e apertando com força.
Uma rajada soprou e escancarou a porta, batendo contra a
parede da liteira. A luz que restava do dia se mostrou insuficiente
para desafiar a escuridão lá de dentro, revelando apenas uma coisa:
uma máscara branca laqueada, do tipo que um homem rico usaria
para um baile de máscaras. Os olhos por trás da fenda
permaneciam invisíveis, mas eram cortantes como vidro quebrado
mesmo assim. A máscara da Ópera de Vermelhão!
Bati os dois calcanhares nas laterais de Murder e ele saiu como
um dardo atirado de uma balestra. O Príncipe Desnascido saiu da
liteira da cardeal com tanta violência que estilhaços dela passaram
voando pela minha orelha quando me curvei para galopar. Ele veio
atrás de nós com ímpeto, como se fosse um vento forte
atravessando uma floresta. Um som molhado nos perseguiu estrada
abaixo. Os alabardeiros se viraram quando passamos por eles,
tentando botar suas armas em ação, mas se mostraram lentos e
estranhamente descoordenados, mesmo para guardas mais
cerimoniosos. Tive que me abaixar para evitar as lâminas das duas
últimas alabardas, e em seguida estávamos livres e desimpedidos,
Murder e eu, na escuridão e na chuva.
Olhar para trás raramente é aconselhável, especialmente ao
fugir com tudo do perigo. O que você vai fazer, correr mais rápido?
Não deu muito certo para a esposa de Ló e, apesar de ter aprendido
poucas lições da bíblia, eu devia ter aprendido essa. Pelo menos me
mantive em cima do cavalo, por um triz. Talvez a escuridão tenha
me salvado, ocultando detalhes suficientes para preservar minha
sanidade. Quando o Príncipe Desnascido voou pelos guardas,
agitando sua túnica de cardeal, cada homem se abriu em uma
carnificina vermelha de carne dilacerada e ossos brancos. O
conteúdo de seus corpos foi vomitado na direção do príncipe,
grudando onde encostava, fluindo, reorganizando-se, de maneira
que a cada passo ele crescia e mudava.
“Meu Deus!” Chutei Murder para se esforçar mais, mas ele já
estava dando tudo de si. Ele podia ser o garanhão mais feroz que já
havia percorrido os campos do império, mas neste instante o
mesmo pavor irracional transformou nós dois em covardes.
Seja lá o que o Príncipe Desnascido estava se tornando, uma
coisa era certa: não era lento. O barulho furioso, molhado e
esmagador da fera não parecia estar diminuindo com a distância,
conforme Murder esticava as pernas. Na verdade, estava ficando
mais alto, mais perto e mais furioso.
O baque dos pés pesados começou a abafar o estrondo dos
cascos de Murder. Sangue gelado espirrava nas minhas costas a
cada urro do monstro. Em instantes um movimento de suas
mandíbulas me arrancaria da sela. Na estrada à frente, vultos se
formaram na escuridão, com meus olhos cheios de chuva repelindo
os detalhes.
“Salvem-me!” Um grito que esvaziou meus pulmões de cima a
baixo.
Sem mais alternativas, virei para a direita, puxando as rédeas
de Murder e impulsionando-o em um enorme salto que nos levou
por cima da vala e da cerca viva de um metro e oitenta atrás dela.
No auge do salto, avistei meu perseguidor começando a me
ultrapassar, mas ainda na estrada, tentando acompanhar, pesado
demais para corresponder à nossa curva. A coisa que o desnascido
havia virado parecia um dragão de alguma lenda. Um dragão
enorme, esfolado, em carne viva, cuja boca úmida e nervosa
abrigava dentes que pareciam costelas.
A última coisa que vi do desnascido, antes da cerca ocultá-lo,
foi os pés sangrentos com garras de fêmur tentando se agarrar à
estrada de pedra enquanto virava, começando a virar de banda para
os três cavaleiros em seu caminho, que neste momento tentavam se
jogar de suas montarias para se livrar da colisão.
Aterrissamos com um choque e por pouco eu não bati meus
dentes da frente na nuca de Murder. O instinto me disse para
continuar em frente, cruzando o campo em linha reta. O bom-senso
só conseguiu dar um pequeno grito lá no fundo de minha mente,
para onde havia sido relegado, mas já que esse grito dizia respeito à
inevitabilidade de aleijar Murder, cruzando velozmente um terreno
irregular no escuro, e de eu acabar ficando sozinho, esperando o
dragão-cadáver me achar... eu escutei. Puxei com força para a
esquerda e o levei a uma parte mais baixa da cerca.
O monstro desnascido deve ter perdido o equilíbrio e batido de
lado nos cavalos. Dois estavam caídos de costas na beira da
estrada, debatendo as pernas. Os nórdicos pareciam ter se safado
sem serem esmagados. Snorri estava segurando Hennan, tirando-o
do alcance dos cascos enquanto a égua mais próxima tentava se
endireitar.
O terceiro cavalo caiu junto com o dragão-cadáver e agora
estava emaranhado com ele, diminuído pela fera, gritando em um
tom que teria esvaziado minha bexiga, se eu já não tivesse passado
desse ponto muitos metros atrás. Quando o desnascido conseguiu
ficar de pé, o animal, a égua castanha de Hennan, Escudeira, se
‘descascou’ e se tornou parte do monstro, com sua carne e seus
ossos sendo atraídos e redistribuídos sobre o corpo fabricado. O
lampião que um dos cavaleiros estava carregando estava caído em
uma poça de chamas dançantes, lançando um relevo medonho
sobre o desnascido.
Snorri, deixando Hennan aos cuidados de Kara, voltou a pé
para o meio da estrada.
“Nadei no Rio das Espadas. Afiei meu machado nos ossos dos
jötnar nos lugares frios do submundo. Sou Snorri ver Snagason e já
destruí seu tipo antes.” Ele ergueu o machado e de alguma maneira
o fio refletiu o brilho da noite. “Esta noite você retorna a Hel.”
O dragão-cadáver se sacudiu e a carne dilacerada se balançou
sobre o corpo musculoso, apoiado em quatro patas grossas. A
cabeça, cuja boca era grande o bastante para engolir um homem,
inclinou-se primeiro para um lado e depois para o outro, com os
ossos amontoados estalando por baixo da carne roubada que se
flexionava. A máscara de porcelana agora estava enterrada na testa
do bicho, como uma única escama branca no meio de toda aquela
carne exposta. Dois buracos de olhos olharam para o viking. Os
olhos que eu tinha visto muito tempo atrás na ópera de Vermelhão
observavam daquelas órbitas – eu não conseguia vê-los, mas senti
o ódio deles.
“Você.” Primeiro foi o som do sangue gorgolejando na garganta
mórbida, depois de alguma maneira aquilo virou linguagem. “Você
ousa se defender de mim?”
“Defender?” Snorri parecia muito só ali no meio da estrada
vazia, com a chuva pingando de todas as partes de seu corpo.
“Vikings não se defendem!” Com o machado elevado acima do
ombro, o pobre louco começou a atacar.
O desnascido parecia tão surpreso quanto eu e ficou
observando Snorri percorrer a distância entre eles. Quanto mais
perto ele chegava, mais o desnascido parecia enorme, e mais
injusta a disputa.
Quando Snorri atravessava os últimos metros, urrando seu grito
de guerra, o desnascido deu-lhe um golpe com a pata de carne viva
e garras de osso, cuja largura era a metade do tamanho de Snorri.
O nórdico se atirou por baixo do golpe, com os pés para frente,
deslizando sobre as pedras molhadas e de alguma maneira se
levantando e abaixando Hel em um arco violento que terminou no
centro da testa do desnascido, estraçalhando a máscara de
porcelana e enterrando a lâmina até o cabo.
O desnascido, vestido com seu corpo de muitos corpos,
balançou a cabeça dragônica, arrancando Hel das mãos de Snorri e
pegando-o de lado, do quadril até a axila. O ângulo era errado para
morder, mas a força do impacto levantou o nórdico do chão,
atirando-o pelo ar e lançando-o em uma trajetória que o tirou da
estrada, passando por cima da cerca até o campo, onde ele caiu na
lama um metro à minha frente com um baque abafado.
Na minha experiência limitada, qualquer golpe que tire um
homem do chão tende a ser um golpe que o mata. Uma vez, vi um
garanhão chutar um dos rapazes do estábulo do palácio. Os pés
dele saíram do chão e ele voou talvez um quinto da distância que
Snorri percorreu. Não sei se ele estava morto antes de aterrissar,
mas se não estava não deve ter demorado muito. Eles o viraram e
eu vi as fraturas pontudas de suas costelas, onde o casco o atingiu.
O restante dos ossos ficou enterrado em seus pulmões.
Comparado ao desnascido, os perigos de galopar pelo campo
no escuro não eram nada. Eu deveria ter saído do alcance da visão
e da audição antes de Snorri atingir o chão, mas acabei me
pegando ajoelhado na lama, virando-o para cima. A lateral inteira
dele estava suja de sangue.
“P-poderia... ter sido melhor.” Ele crocitou as palavras conforme
o ar voltava aos seus pulmões.
“Você está... machucado.” Não consegui pensar em nada
melhor para dizer. Do outro lado da cerca, o desnascido rugia e se
debatia. Ele não parecia estar se aproximando. Talvez estivesse
devorando Kara. Eu já tinha imaginado muitos fins tristes para mim,
mas nenhum deles envolvia ser assassinado na lama por um
monstro em um trecho solitário de estrada.
Snorri grunhiu e rolou para o lado ileso, segurando as costelas.
Sua mão saiu suja e meu estômago se revirou.
“Estou inteiro.” Ele conseguiu dar um sorriso com os dentes
vermelhos e eu percebi que o sangue havia saído do desnascido.
“Sangue de Odin!” Snorri ficou sentado, curvado como um homem
quebrado por dentro.
“Como é que sequer está vivo?” Eu me levantei, dando um
passo para trás. Parecia que a velocidade relativamente lenta e a
grande área do impacto conspiraram para lançar Snorri ao ar sem
reduzir seu corpo a polpa.
Abaixei para ajudá-lo a se levantar, mas antes que ele pudesse
ficar de pé a cerca se escancarou, com o desnascido abrindo
caminho à força.
“Merda!” Saquei minha espada: um palito de dentes teria a
mesma utilidade. “O que está fazendo?” Snorri ainda estava no
chão, lutando com alguma coisa brilhante no embrulho em seu
quadril. “Guarde isso!” A luz só o ajudaria a nos encontrar mais
rápido.
Tarde demais, a enorme cabeça daquele pesadelo se virou na
nossa direção e a maldade fria daqueles olhos ocultos me
penetraram. Fiquei parado, paralisado, a ponto de largar minha
espada e sair correndo, abandonando toda a honra pelo privilégio
de morrer cinquenta metros depois. A coisa deu um salto para frente
com um gorgolejo medonho, mas parecia não conseguir se soltar da
cerca. Ganchos pretos parecidos com raízes se enrolaram nos pés
dele.
“Kara!” A völva devia estar fazendo aquele feitiço do
emaranhamento, que teve um efeito tão maravilhoso contra os
Vikings Vermelhos perto da Roda de Osheim. A força voltou à minha
mão e meus dedos se apertaram no cabo da espada. Olhei para
Snorri ali embaixo. “Que diabos?” Ele estava com a caixa de
fantasmas, brilhando e fazendo silhuetas escuras das mãos dele
enquanto a abria, virada para o rosto.
“Precisamos de Baraqel!” gritou ele para a boca da caixa, onde
havia uma mistura caótica e fervilhante de luz e escuridão.
Na cerca, o desnascido rugiu e se atirou para frente, e as raízes
seculares rangeram e racharam com o esforço. Várias se partiram
com barulhos altos. Em outros lugares, a carne morta se abriu para
deixar as amarras escorregarem e se reagrupou depois.
Snorri se ajoelhou. “A chave, Jal, é a maneira de libertá-lo. Ele
mora aqui dentro.”
“Não funciona assim, seu grande... viking idiota.” Mas, ao
mesmo tempo que disse isso, peguei a chave de Loki e apontei a
lâmina trêmula na direção do desnascido, que agora estava
arrancando o último espinheiro que o ancorava.
“É assim, sim!” Snorri se levantou, com um braço segurando a
lateral, e o outro estendendo a caixa na minha direção. “É. Assim.
Sim.” Ele me olhou com tanta convicção que comecei a acreditar
naquilo também.
As garras de ossos se enterraram na lama e o desnascido
entrou em movimento. Larguei minha espada.
“Baraqel!” berrei, pegando a caixa de fantasmas e apontando a
abertura para o desnascido. Enfiei a chave na base da caixa e a
girei.
A luz que saiu eu já tinha visto uma vez antes, embora daquela
vez eu estivesse dentro de uma tenda que quase entrou em
chamas. Agora, como da outra vez, a luz do Sol dos Construtores
transformou a escuridão na brancura ofuscante das dunas debaixo
do sol mais quente. O desnascido gritou, com a carne borbulhando.
No momento seguinte, a claridade impossível daquela iluminação
anormal parou e no lugar dela estava Baraqel, exatamente como o
vimos no passado, diante do portão dos magos do mal, um anjo
brilhante com uma espada forjada pelo sol, de quase três metros de
comprimento e ardendo. No instante que ele apareceu eu o
reconheci. Ninguém mais conseguia fazer aquela expressão de
reprovação quando olhava para mim.
Um instante depois, o desnascido se chocou com Baraqel, cuja
espada desceu sobre ele. Nem um anjo de três metros e meio
conseguiu deter a criatura. O corpo de dragão que ele usava tinha
sido feito com cadáveres de cinquenta pessoas ou mais, e Baraqel
foi jogado para o lado. Mas asas de bronze e ouro se abriram para
absorver o impacto e sua espada brilhante arrancou a cabeça do
desnascido em um único golpe.
Sangue vermelho-escuro jorrou do pescoço do desnascido em
uma torrente grumosa, enquanto toda a extensão de seu corpo
sinuoso teve convulsões, agitando-se para frente e para trás. Um
momento depois, ele se contorceu e se partiu como uma massa,
com cabeças de cadáveres e olhos desencarnados aparecendo em
suas costas, novos membros se formando, terminando em garras de
costelas ou meia-dúzia de espinhas dorsais se debatendo como
tentáculos. Mais uma convulsão e aquela massa mutante envolveu
Baraqel em uma espiral, derrubando-o ao chão.
“Venha!” Snorri pegou minha espada e, mancando, correu para
o combate.
“Venha? Você acabou de pegar minha espada, cacete. Eu vou
usar o quê? Palavrões?”
Saquei minha adaga e fiquei observando. A luta confundia
minha vista: espirais rápidas e furiosas de carne morta, preta em
contraste com os membros brilhantes do anjo, asas claras batendo,
garras pretas arranhando, e de vez em quando um vislumbre
daquela espada ardente lançando sombras ágeis pelo campo.
Avistei Snorri em alguns pontos, como um camundongo atacando
uma píton dos indus, com a espada de Edris Dean cortando a
necromancia que dava suporte ao desnascido, mas certamente com
cortes pequenos demais para fazer diferença.
Olhei para os dez centímetros de ferro em meu punho, depois
para trás, procurando por Murder, e vi que ele havia sumido. Até sua
ferocidade virou pavor com a visão e os sons de uma batalha
daquelas. A fúria rubra quase esperada do berserker não conseguiu
brotar em mim, apenas uma amargura, uma raiva pelo fato desta
criatura feita com o pior ódio das pessoas, aquele que se embrenha
nas fendas mais profundas do Inferno, ter me assombrado por tanto
tempo. O desnascido foi o início de minha jornada, acabando com a
minha vida, e agora parecia que era o fim mesmo. Segurei a adaga
à minha frente. Morrer lutando ao lado de Snorri na luz ou sozinho
alguns minutos depois no escuro? Às vezes a escolha do covarde
se alinha à do herói.
Kara contou que eu estava gritando ‘Undoreth’ quando ataquei.
Não tenho nenhuma lembrança disso, mas tenho certeza de que
seria ‘Marcha Vermelha’.
27

“Vá embora, caramba, e diga a Ballessa que quero arenque para o


café da manhã.” Apertei bem os olhos contra a claridade do dia. “E
feche essas malditas cortinas!”
“Hora de levantar, majestade.” A empregada me soou
sarcástica, em vez de respeitosa.
Tentei me aconchegar debaixo das cobertas e vi que estavam
molhadas e frias. “Que diabos?” Abri os olhos, piscando com a luz
forte perto do meu rosto. Meu corpo inteiro doía. Pelo menos tinha
parado de chover.
“Como está se sentindo?” disse Kara, agachada ao meu lado,
com os cabelos molhados e suja de lama. Ela estava segurando o
oricalco entre nós.
“Estou morrendo.” Com uma mão eu mexi o queixo. “Acho que
quebrei tudo.”
“Ele está bem,” gritou ela sobre o ombro.
Snorri saiu da escuridão e ofereceu uma mão para me colocar
de pé. Hennan apareceu do nada, mais lama do que garoto, e se
enfiou debaixo do meu outro braço para me ajudar a levantar
enquanto Snorri puxava.
Respirei fundo e me arrependi. “Parece um enterro em uma
latrina.”
“Isso é apenas você.” Snorri botou o braço em volta dos meus
ombros e me guiou na direção das ruínas fétidas do desnascido.
Penas longas enchiam o chão esburacado, com a luz delas
diminuindo.
“Baraqel?” perguntei.
Snorri balançou a cabeça. “Destruíram um ao outro.”
A caixa de fantasmas estava enterrada na lama ali perto, com o
brilho me chamando a atenção. Gesticulei para ela. “Pegue aquilo,
Hennan.” Quando ele saiu correndo, acrescentei: “Não deixe
encostar na sua pele.”
Ele voltou, segurando-a cuidadosamente, com as mangas
cobrindo as mãos. Afastei o braço de Snorri e dei um passo à frente
para pegar a caixa. Antes que ela pudesse invocar algum parente
antigo, gritei para dentro dela: “Baraqel!”
Imediatamente aquela mesma luz difusa se acendeu nas
profundezas da caixa e, quando a afastei de mim, o fantasma de um
Construtor apareceu acima da abertura. Dava para ver alguma coisa
de Baraqel no homem à minha frente, o mesmo nariz pontudo, os
olhos um pouco rasos acima das maçãs do rosto proeminentes, a
testa larga, mas foi a maneira como aquele fantasma incandescia,
com luz muito mais forte que a de todos os vistos anteriormente,
que me convenceu de que aquele era Baraqel.
“Confusão detectada,” disse a voz da caixa. “Bareth Kell.”
O fantasma olhou nos meus olhos e disse com sua própria voz:
“Pode me chamar de Barry.”
“Eu...” Aqueles troços sempre me deixavam nervoso. “Você
está morto?”
“Sou apenas um registro de biblioteca, Jalan. Bareth Kell
morreu há muitos séculos, na terceira guerra.”
“Mas eu conheço você. Você é Baraqel.”
O fantasma brilhou ainda mais forte. Cobri os olhos. “Quando o
mundo ardeu, fui um dos poucos que puderam sair de seus corpos e
se moldar ao fluxo de energia. Eu me tornei uma aparição, um
espírito, se preferir. O Barry que viveu no corpo onde minha mente
nasceu... se queimou. Foi uma época triste.”
“Baraqel? É você, não é?” Inclinei a caixa e o fantasma se
inclinou junto. Havia algo mais naquele fantasma do que um mero
‘registro de biblioteca’, ele parecia vivo, cheio de energia e de
personalidade. Vi quando ele se inclinou com a caixa, aquela testa
franzida meio rabugenta, uma espécie de julgamento quando ele
apertou os lábios. “É você, sim!”
Baraqel deu um aceno e um sorriso relutante. “Sou eu. Ou pelo
menos um eco meu ressoando neste dispositivo. Não vou durar
muito tempo. Onde está o pagão? Traga-o à frente.”
Snorri entrou na luz. “Baraqel. Você lutou bem.”
“Você nos salvou.” Franzi o rosto para o anjo, agora apenas o
fantasma de um homem que morreu um milênio atrás, um homem
de seus cinquenta anos, ficando careca. Ele não chamaria atenção
na rua, no entanto deixou sua marca no universo por força de
vontade, tão profunda que carregou seu espírito por todos esses
anos desde que seu corpo virou cinzas. “Como... como foi que
passou disso...” inclinei-o de volta. Se pusesse uma túnica nele,
poderia ser criado do palácio. “Para aquilo?” Acenei na direção dos
restos mortais do desnascido e as grandes feridas fumegantes que
a espada de Baraqel deixara em seu corpo.
Baraqel sorriu, acenando com a mão na frente da cabeça,
autodepreciando-se. “No começo, era como se nós fôssemos
deuses, aqueles que escaparam para... os elementos, vamos
chamar assim... Tínhamos um alcance muito grande. O mundo é
como uma folha, e nós tínhamos acesso à árvore. Os anos
passaram despercebidos. Foi sutil no começo. As pessoas
retornaram, apenas alguns sobreviventes saindo dos bunkers após
gerações, ou espalhando-se a partir das profundezas de lugares tão
remotos que não sofreram nenhum dano direto. Eles nos atraíram
de volta. Achamos que a ideia era nossa – que havíamos voltado
para observar a humanidade ressurgir, para guiá-la. Mas a verdade
é foram as expectativas deles que nos atraíram, e em seguida as
histórias deles nos moldaram, pouco a pouco, tão lentamente que
não percebemos nem compreendemos o processo, e nos tornamos
as histórias que eles contavam sobre nós.”
Enquanto Baraqel falava, a luz de seu fantasma de dados
diminuiu. “Vivi tempo demais. Muitos anos, muitos
arrependimentos.” Ele ficou mais escuro. “Eu adorava ver o sol
nascer. Antes da mudança. Antes de o mundo parar de ser tão
simples. Costumava acordar só para vê-lo surgir sobre os Pireneus.”
A voz dele abaixou, enrolando-se nas palavras. “Eu não vi o sol
nascer naquele último dia. Eu queria... eu me arrependo disso.
Talvez... mais do que do resto.” Ele fez uma pausa, agora mais fraco
do que os fantasmas que a caixa normalmente produzia. A caixa
também escureceu com ele, e seu brilho diminuiu debaixo de meus
dedos. “Às vezes acho que, quando a bomba me pulverizou, o
verdadeiro Barry Kell morreu naquele dia, e tudo que sou é um eco,
uma variação na luz.” Ele me olhou, como uma aparição, as linhas
fracas insinuando o homem. “E o que... vocês estão vendo aqui é só
um eco desse eco, fazendo barulho em uma caixa de truques, o
velho Baraqel... O anjo sobreposto a uma simples IA para dizer suas
últimas palavras.”
“Obrigado,” disse Snorri ao meu lado. “Foi uma honra lutar ao
seu lado, Baraqel, uma honra conter a noite.”
“Posso vê-lo.” As palavras tão fracas agora que poderiam ter
sido imaginadas.
“O que você pode ver, Baraqel?” Eu zombava dele e o achava
um pé no meu saco real quando estávamos vinculados, mas agora
minha garganta se fechou em volta das palavras e tive de cerrar os
dentes para dizê-las sem falhar.
“O sol nascendo... não... não estão... vendo?”
“Eu estou vendo,” disse Snorri.
“É... lindo.”
“Sim.”
A caixa ficou escura em minhas mãos. Em silêncio.

É estranho ver a morte de um espírito com o qual compartilhou sua


mente. Nem Snorri nem eu falamos ao caminharmos de volta para a
estrada.
Mais estranho ainda descobrir que no passado ele foi um
homem, com sonhos e esperanças como você, e todas as bobagens
que os homens carregam consigo. Pensei no que Baraqel disse
naqueles minutos finais, sobre como ele escapou do corpo e se
sentiu como um deus, com potenciais ilimitados, apenas para se ver
atraído às histórias que as pessoas contavam sobre ele, restringido
pelas expectativas delas e por fim moldado por aquelas histórias,
transformado em algo novo.
“Sinto pena dele,” disse, cruzando a vala, olhando para trás e
vendo os outros atravessarem aos chutes o que restara da cerca.
“Nunca chegou a ser o homem que queria... ou o espírito... ou seja
lá o que for.”
Kara olhou para mim ao passar, com um leve sorriso nos lábios.
“Você acha que é tão diferente, príncipe Jalan?”
Franzi o rosto e estava prestes a contradizê-la, mas a bruxa
estava certa. As expectativas das pessoas me levaram ao norte,
contra todos os instintos que possuía, um vínculo tão forte quanto a
magia da Irmã. A palavra ‘príncipe’, o nome ‘Kendeth’, a história da
Passagem Aral, tudo eram laços que me prendiam. Certamente eu
tentei usá-los, escapá-los, retorcê-los... mas ao me retorcer eu me
transformava em algo novo. Assim como Baraqel. E igualmente
desavisado.

Os cavalos sobreviventes foram fáceis de reunir. Talvez estivessem


com tanto medo de ficarem sozinhos ali no meio do mato quanto eu
estava, mas todos os três rondaram de volta à estrada pouco depois
de nos reunirmos lá. Cavalgamos pela estrada escura, apenas para
nos afastar dos restos do desnascido. Ninguém gostava da ideia de
dormir com aquilo caído ali, mesmo que não fosse visto, mas
próximo.
“Venha.” Puxei Hennan para cima de Murder, atrás de mim,
percebendo o quanto o garoto estava mais pesado. Botei o
garanhão para andar, afastando-o da montaria de Kara. “Calminho.
E nada de morder, senão vou mudar seu nome para Desertor.”
Alguns minutos depois, chegamos à ruína da procissão do
cardeal. A estrada parecia o chão de um ossário, com pedaços
espalhados de homens que o desnascido não teve tempo de
incorporar decorando um trecho de cem metros da via. Snorri
fechou o punho em volta do oricalco e ocultou de nós a pior parte
daquilo.
“Esperem.” Parei ao chegarmos aos restos estilhaçados da
liteira da cardeal Gertrude. “Preciso de um instante.” Desci da sela e
lembrei que meu corpo inteiro doía. Pisando cuidadosamente,
cheguei aos destroços sem pisar em nada que havia sido humano.
Revirei vários pedaços maiores, pegando várias farpas até
encontrar o que estava procurando. Limpei o sangue dos cadáveres
das minhas mãos e passei a bagagem da cardeal para os outros.
“Ainda está esperando encontrar o sinete?” perguntou Kara.
“Era a isca. O príncipe teria ficado com ele para usar
novamente, se essa estratégia não tivesse dado certo. Mas não o
guardaria consigo nem com nenhum de seus mortos.”
“Ele matou todos eles só para fazer uma armadilha para você?”
perguntou Hennan, que parecia esquisito montado nos flancos de
Murder.
“Provavelmente gostou de fazer isso. E também foi um bom
disfarce para rumar ao norte, ressuscitar os mortos e caminhar pela
estrada. Quem é que vai parar um cardeal? E os desnascidos
sabem que eu preciso de algo como... isto!” Puxei o sinete de um
saco bem embrulhado de vestimentas roxas. “Se quiser sobreviver a
um encontro com minha irmã.” Virei-o sobre a mão, uma polegada
cúbica de prata rebuscadamente decorada em quatro lados,
formando um anel no quinto e com um selo entalhado no sexto lado.
Pressionado a uma gota de cera quente, um selo assim poderia
autorizar a queima de um herege, fundar um monastério ou
recomendar um pecador para a santidade. Eu o experimentei em
cada dedo e consegui chegar até o fim do dedo anelar da mão
esquerda. Felizmente a cardeal Gertrude era uma mulher de certa
circunferência e dedos roliços. “E é claro que a cereja do bolo deste
pequeno plano era que a ameaça de um Inquisidor Papal, com suas
opiniões notoriamente negativas de pagãos, provavelmente faria
com que eu me apresentasse sozinho.”
Levantei e joguei o saco fora, sem encontrar nenhum outro
símbolo do ofício da cardeal. Eu poderia ter saqueado os crucifixos
dourados se estivesse sozinho, ou talvez até diante de uma plateia
de descrentes, mas, seguindo para Osheim, não parecia um bom
momento para irritar o Altíssimo.
“Este belo companheiro me salvou,” bati no pescoço de Murder.
“Bem, e você também, Snorri, e Baraqel.”
Kara tossiu sobre a mão.
“E Kara. Hennan também, provavelmente. E os outros cavalos.”
Olhei para ela para ver se estava satisfeita. “Enfim. Se Murder não
fosse tão bom em fugir, o herói da Passagem Aral talvez tivesse
encontrado um fim pegajoso bem aqui.”
28

A Charlândia me lembrava os Thurtans. O que nunca é boa coisa.


Os camponeses eram mais enlameados e brutos do que os
encontrados em climas mais civilizados do sul, mas pelo menos
ainda não estávamos tão ao norte a ponto de sair da cristandade.
Em geral, os plebeus cristãos sabem seu lugar melhor que os
pagãos, e são mais propensos a bater continência e respeitar a
autoridade divina de um nobre. No norte, poucos jarls têm mais de
duas gerações separando-os dos ladrões sanguinários que
esculpiram aqueles montes de pedras tristes que eles atualmente
alegam dominar.
Felizmente, fora o fato de ser úmida e abarrotada de córregos,
lagos, lagoas, rios, brejos, pântanos, charcos e lamaçais, a
Charlândia foi abençoada com dez anos de paz ininterrupta. Isso
significa que, com dinheiro no bolso, dava para cruzar grandes
distâncias em pouco tempo, em estradas bem cuidadas, e encontrar
acomodações razoáveis toda noite.
A proximidade que havia crescido entre Snorri e Kara e entre
Snorri e o garoto, em nossa viagem ao sul, começou a crescer
novamente. Há um magnetismo naquele viking que atrai as
pessoas, e uma necessidade do homem de ser pai. Algumas
mulheres sentem vontade de ter um neném para amamentar; talvez
alguns homens precisem de um filho para criar. Eu no máximo
servia a Hennan no papel de tio de má reputação, mas Snorri
assumiu uma responsabilidade maior, ensinando tudo ao garoto
sem jamais parecer um professor, desde amarrar nós a atirar facas,
de ler a disposição do terreno até ler as runas do norte rabiscadas
na terra.
Observando os três, admito algumas pontadas de ciúmes, mas
misturadas com cautela. De certas maneiras, era como invejar um
homem na beira de um penhasco alto olhando a vista, ao mesmo
tempo em que agradecia por não ter o desejo de levar meus
próprios pés a nenhum precipício assim. Snorri amava fácil demais:
aquela capacidade de amar, de se doar generosamente, atraía as
pessoas a ele, mas ao mesmo tempo o expunha à possibilidade de
se magoar gravemente. De machado em punho, Snorri havia se
mostrado praticamente imbatível, sem precisar temer nada. E no
entanto ali estava ele, dando ao mundo uma vara para bater nele.
Em Osheim, uma pessoa já tem dificuldade suficiente de ficar na
própria pele. Levar uma criança era ruim. Levar um filho era como
segurar uma faca no próprio pescoço e pedir ao mundo para te
cortar.
Só depois que a fronteira de Osheim se aproximou é que o ar
de prosperidade e animação começou a decair. As vilas diminuíram
em quantidade e ficaram mais espaçadas, havia menos gente nas
estradas, os campos pareciam malcuidados e trechos de florestas
cresciam descontroladamente, com o interior escuro e preocupante.
Centenas de quilômetros atrás de nós, em território hostil,
minha avó e a nata do exército de Marcha Vermelha estariam
travando uma batalha desesperada para permanecer em Blujen e
manter o cerco à torre da Dama Azul. Pouco tempo lhes restava,
assim como para todas as outras pessoas, de acordo com as
profecias tão repetidas do fim. Mesmo assim, a cada quilômetro que
passava debaixo dos cascos de Murder, eu queria diminuir a
velocidade, prolongar a jornada, fazer qualquer coisa menos entrar
mais uma vez em Osheim e deixar a Roda me arrastar para os
horrores em seu centro.
“O mundo está mudando.” Kara cavalgou ao meu lado
enquanto vadeamos um riacho que cruzava nossa trilha pela
Floresta Clara, de nome equivocado. Ela usou aquele tom que fazia
quando queria ser profunda, acho que copiou de Skilfar.
“Está?” Eu realmente queria que não estivesse. Aí poderíamos
ir para casa.
“Não está sentindo?” Ela acenou para a linha clara onde as
árvores não se encontravam no meio do nosso caminho. O céu
tinha alguma coisa de frágil. Como se um barulho suficientemente
alto pudesse estilhaçá-lo e fazer os pedaços desmoronarem. “Tudo
está ficando mais fino. A magia está escorrendo pelas frestas.”
“Aquele seu feitiço, de prender o desnascido na cerca,
funcionou bem.”
“Melhor do que deveria. Melhor do que já vi fora da Roda.”

Naquela noite, acampamos na floresta. Uma noite fria, preta, na


qual a floresta inteira parecia se mover do lado de fora da barraca
de paredes finas.
Em algum ponto ao longo do dia seguinte, percorrendo antigas
trilhas madeireiras abandonadas em uma floresta sem nome,
passamos para o reino de Osheim, próximo ao ponto onde encontra
a Charlândia e Maladon. Já estávamos ao norte da Cidade de Os,
onde o Rei Halaric se acovardava na fronteira de seu próprio
domínio, como se tivesse medo de se aventurar mais para dentro.
Após mais um dia, as árvores também pareceram perder
coragem, e o avanço delas deu lugar a uma charneca triste e
arruinada, onde as únicas coisas que diminuíam o vento eram
tempestades fortes e frequentes, às vezes misturadas à neve
molhada.
À distância, uma sombra se assomou, um hematoma no céu,
dizendo-nos que a Roda aguardava, dizendo a Hennan que ele
estava chegando em casa. Naquela noite senti a atração da Roda
pela primeira vez em quase um ano, apesar de parecer que sempre
esteve ali, desde a primeira vez em que fincou suas garras
enquanto fugíamos dos Vikings Vermelhos. Tive um sono agitado,
com uma refeição pobre de carne seca e bolacha se revirando em
meu estômago, e em cada momento eu sabia que a Roda estava lá
fora ao longe, sabia exatamente em que direção e sabia que minhas
pernas, inquietas com a necessidade de me levar até lá, não me
deixariam dormir por muito tempo.
O sol já nos encontrou de pé e nos aprontando para viajar.
“Está mais forte desta vez.” Snorri se agachou em frente a uma
fogueirinha, esquentando aveia e água em um pequeno caldeirão
escurecido.
Ao leste, o sol se escondia atrás de uma pesada camada de
nuvens, espalhando raios rosados sobre o céu perolado. Ao norte, a
Roda aguardava, puxando-nos para ela.
“Muito mais forte,” disse Kara. “Está girando mais rápido,
aproximando-se do ponto de ruptura.” Ela tinha uma beleza etérea à
luz do amanhecer, os olhos com aquela estranha opacidade que
tinham quando faziam bruxarias, fios de cabelos soltando-se das
tranças como se estivéssemos no meio de uma tempestade elétrica.
O poder da Roda ecoava nela.

“Quanto falta agora?” O terreno havia passado às colinas baixas e


vales ondulantes da terra natal de Hennan, o céu acima de nós
exibia um roxo amarelado e rodava em uma grande espiral em volta
de um ponto central diretamente à nossa frente.
“Cerca de quatro quilômetros menos que da última vez que
você perguntou, Jal.” Snorri ia na frente, balançando com a marcha
de seu cavalo, sem me deixar ver nada além dos ombros largos por
baixo da capa de couro e os cabelos pretos e grossos caindo abaixo
da nuca.
“Trinta e cinco quilômetros, talvez.” Kara sentiu pena de mim.
Hennan veio comigo em Murder, montado em vários cobertores
presos à minha sela. Suas palavras haviam se esgotado quando
chegamos às margens das terras da Roda, onde seu avô no
passado cuidava de cabras. Chegando pelo sul, desta vez, não
vimos nenhum sinal de vida, nem animal nem humana, a não ser
um par de corvos voando para o oeste.
Os campos ainda não tinham adquirido aquele aspecto
distorcido e estranho que se encontrava mais adiante, mas tudo ali
parecia errado – a grama com um tom de verde que não convencia,
o vento sussurrante e fazendo padrões estranhos nas rajadas que
ficaram mais fortes em volta dos charcos do vale.
“Estão vendo?” perguntou Snorri.
“Não.” Eu esperava que fossem frutos da minha imaginação. “O
que são?”
“Frutos da sua imaginação,” disse Kara atrás de mim, com
dificuldade para conter o pânico de sua égua.
“Ah, bom.” Parecia que formas umbrosas estavam passando
por nós dos dois lados, bem longe, e elas desapareciam quando
olhava diretamente para elas ou recusavam-se a se definir,
permanecendo como borrões indistintos a meia distância, como uma
mancha na visão.
“É ruim. Muito ruim.” Kara olhou em volta. “A Roda está
chegando até aqui e começando a dar forma aos nossos medos. Eu
esperava algo parecido com isso, mas muito mais perto.”
“Inferno.” Várias semanas de boas intenções se derreteram
como uma bola de neve atirada para uma fornalha. “Isso nunca vai
dar certo. Não temos a menor chance.” Passei o tempo preocupado
com o que eu poderia fazer se realmente chegássemos ao coração
da Roda, e de alguma maneira ignorei o percurso até chegar lá.
Conforme olhei para as formas indistintas, algumas delas
começaram a parecer mais sólidas, com contornos mais definidos.
Uma em particular se escureceu e começou a despontar pernas
finas e longas... “Merda! Precisamos correr!” Puxei as rédeas de
Murder. Ele já havia me galopado para a segurança antes, poderia
fazê-lo de novo.
“Jalan!” A voz de Kara me apunhalou, tirando a força de meus
braços. “Você precisa se acalmar, esvaziar a mente.”
“Esvaziar a mente? Do que diabos você está falando?” Minha
mente era um caldeirão borbulhante, eu nunca consegui aquietar
suas vozes. Até tomando um cálice de vinho na varanda após um
rala-e-rola nos lençóis, meus pensamentos eram uma massa
fervilhante disso e daquilo, de talvez e de quando. “Não consigo!”
“Então se concentre em outra coisa, alguma lembrança boa,
algo tranquilo.”
“Eu... eu não consigo pensar em nada, caramba!” Toda imagem
que brotava em minha mente minha imaginação rapidamente
transformava em algum pesadelo aterrorizante, e lá na grama mais
uma sombra fraca se escureceu e começou a assumir a forma do
horror em minha cabeça. Pensei em Lisa DeVeer, mas no instante
em que a imaginei, deliciosamente listrada de luz e sombra, minha
imaginação traiçoeira começou a especular como a Roda poderia
me machucar com ela – a carne caiu em volta de sua boca,
revelando os dentes triangulares em volta do buraco devorador.
“Preciso ir! Vou acabar matando todos nós.”
Sacudi as rédeas de Murder, mas Snorri se inclinou e as tomou
com uma mão.
“Jal!” Ele estalou os dedos embaixo do meu nariz. “Você não
precisa esvaziar a mente nem enchê-la com alguma coisa boa, só
precisa prestar atenção.” Snorri guiou Murder de volta na direção da
Roda e conduziu seu cavalo adiante, lentamente. “Uma história
pode fazer um homem atravessar lugares sombrios. As histórias têm
direção. Uma boa história direciona os pensamentos de um homem
por um caminho, sem dar oportunidade para se desviar, sem espaço
para nada além da história que se desenrola à sua frente.”
“Que história você tem, Snorri?” perguntou Hennan. “É aquela
sobre o jötun que roubou o martelo de Thor?”
“Jesus, não vai contar uma das suas sagas de monstros!” Eu já
estava até vendo, gigantes de gelo saindo da bruma exatamente
como Snorri os descrevia.
“Ah, é mais sombria que isso.” Snorri se virou na sela para olhar
para nós. “Mas se eu contar de verdade, não vai sobrar espaço em
você para mais nada. Você não vai pensar em Hel saindo da Roda
por você, porque eu já vou ter feito isso.”
E assim, cavalgando para a Roda de Osheim, Snorri ver
Snagason falou pela primeira vez sobre sua jornada por Hel. Talvez
as narrativas de sempre tivessem sido um tipo de mágica, e estar
tão perto da Roda fez aquele leve feitiço se transformar em algo
ainda mais poderoso. Só sei que as palavras me rodearam e como
em um pesadelo eu estava de volta ao Inferno, vendo apenas o que
a história de Snorri me contava.

Snorri se vira do salão cheio de pilares dos juízes e olha para a


noite de Hel, intensa agora com o vento que anunciava sua
chegada.
Jalan! O ar seco grita. Jalan!
Lá está ela diante dele, uma criança da idade de sua própria e
doce Einmyria, pálida feito um fantasma, mas com um brilho interno.
Sumiu. Agora o redemoinho de vento a revela à direita, uma mulher
jovem e magra, de olhos rasos, vestida apenas com aquilo que a
transporta, a cabeça inclinada para o lado, analisando Snorri com
uma curiosidade estranha. O vento fala novamente com uma voz
que arde, repleto de sujeira e frio. Agora ela é um bebê, deitado
alguns metros à sua direita, pálido e silencioso, olhando-o com
olhos mais escuros que a noite de Hel. Ramos do lichkin a quem ela
está vinculada surgem à sua volta como serpentes translúcidas,
com uma luz desprovida de calor. A criança que nunca veio ao
mundo, e o lichkin ao qual ela foi dada, ambos entrelaçados,
esperando para desnascer na terra dos vivos.
Jalan!
“Não sou ele,” diz Snorri.
O desnascido chia, contorcendo-se em alguma coisa feia sem
permanência nem definição, e o lichkin vem à frente.
“Pode sentir, não é?” diz Snorri. “A destruição de um de vocês?
Ele veio para cima de mim em Hel e agora não é nada.” Snorri
ergueu seu machado. “Quer experimentar?”
O vento uiva e o desnascido fantasmagórico se desfaz,
rodopiando na direção do salão dos juízes. Snorri se estremece e
abaixa o machado, esperando ter ganhado tempo suficiente para Jal
se livrar.
À distância, onde o vento parou e a escuridão voltou ao chão de
onde saiu, o céu morto aparece. É da cor da tristeza e de
promessas quebradas. Snorri começa a caminhar mais uma vez,
com a dor, a sede e a fome de Hel tão impregnadas em seu corpo
que cada passo é uma batalha em si.
Ele espera que Jal consiga atravessar – o rapaz cresceu neste
tempo em que viajaram juntos. Menos de um ano, mas a moleza
dele desapareceu e revelou um pouco da mesma força tão evidente
na Rainha Vermelha, embora talvez Jal ainda não tenha percebido.
O além parece quieto demais sem as reclamações constantes do
príncipe. Snorri já sente falta dele. Um sorriso vinca seu rosto. Até
em Hel Jal consegue fazê-lo sorrir.
Snorri prossegue andando para os lugares ermos onde o
domínio de Hel faz fronteira com outros lugares, terras de gelo e
terras de fogo onde os jötun vivem e reúnem forças para Ragnarok.
Outros lugares também, lugares mais estranhos, todos amarrados
pelas raízes de Yggdrasil. A terra se eleva e se racha como se
estivesse congelada em suas agonias de morte, amontoada em
cumes comprimidos, marcada por fendas profundas, subindo a
alturas assustadoras.
Poucos vagam por aqui, apenas uma ou outra alma
determinada em seu propósito, e duas vezes um troll, encurvado e
se movendo rapidamente pelas pedras espalhadas. Em alguns
lugares há monólitos erguidos, torres de basalto preto, cada um
esculpido de forma a sugerir que a deusa está de olho até nas
margens de suas terras.
Com a partida de Jal, o Hel que Snorri cruza se torna cada vez
mais próximo das histórias que os skáld cantavam de madrugada
em volta da fogueira fraca do salão de hidromel. Snorri sabe que Hel
em si está sentada, entronada, no coração destas terras, dividida
como a noite e o dia, como se Baraqel e Aslaug fossem cortados da
cabeça até a virilha, e a metade de cada um unida em um único ser.
Snorri, apesar da força de sua convicção, não consegue deixar de
ficar feliz que seu caminho o levara às margens, e não à corte de
Hel. Ele pretende quebrar a lei de Hel, mas prefere tentar fazer isso
sem ela parada ao seu lado.
À distância, morros se elevam da poeira sangrenta, sombrios e
ameaçadores. A planície à frente deles está cheia de árvores mortas
e retorcidas, coisas antigas e atrofiadas pelo vento, sem uma única
folha nem qualquer vestígio de verde em toda a extensão da
floresta. Snorri se põe a caminhar.
“Cccráaaaa!”
Snorri gira na direção do grito repentino, de machado em
punho. Não vê nada. Poeira de sangue sobe em volta de seus pés,
chegando até os joelhos.
“Cráaa!” Um corvo, preto e brilhante, empoleirado em uma
árvore alguns metros atrás, as longas garras enroladas em um
graveto seco. “Que coisa estranha. Um homem vivo em Hel.” O
corvo inclina a cabeça primeiro para um lado, depois para o outro,
analisando Snorri.
“Mais estranho que um corvo que fala?”
“Talvez todos os corvos falem, mas a maioria escolhe não falar.”
“O que quer comigo, espírito?”
“Espírito nenhum, apenas um corvo, querendo o que todos nós
queremos: observar, aprender, voltar voando e sussurrar nossos
segredos ao Pai de Todos. E talvez uma minhoca suculenta.”
“Sério?” Snorri abaixa o machado, impressionado. “Você é
Muninn? ...ou Huginn?” Ele se lembra dos nomes dos dois corvos
de Odin das histórias dos padres. Apropriadamente ele se lembrou
de Muninn – memória – primeiro, e Huginn – pensamento – foi
preciso pensar mais um pouco.
O corvo crocita, sacode as penas e se acalma. “Mãe e pai de
todos nós. Todos nós voamos no rastro deles.”
“Ah.” A decepção de Snorri dá cor à palavra. “Então você não
fala com Odin?”
“Tudo que fala, fala com Odin, Snorri filho de Snaga, filho de
Olaaf.” O pássaro limpa o bico no galho ao seu lado. “Por que está
aqui? Por que está entrando na floresta?”
Snorri sabe seu destino – ele nem pensou em questionar seu
caminho. “Estou aqui por minha esposa e filhos. Foi errada a
maneira como foram tirados de mim.”
“Errada?”
“Eu falhei com eles.”
“Todos nós falhamos, Snorri. No fim todos nós falhamos. Muitas
vezes antes.”
Snorri encontra sua mão apertada ao rosto, o peso da memória
empurrando-o para baixo, a emoção sufocando-o. “O que eu deveria
fazer? Deixá-los? Eu não podia deixar isso passar. Ganhando ou
perdendo, minha luta é aqui. O que mais eu poderia fazer?”
O corvo se sacode novamente, e uma pena solta flutua entre os
galhos mortos. “Não me peça conselhos. Sou apenas um pássaro.
Apenas memória.”
Snorri funga, envergonhado pelas lágrimas que pensava não ter
mais, sentindo-se idiota e ferido. “Achei que eles teriam ido até a
deusa. Achei que ficariam perante Hel, que veria a bondade deles
com seu olho branco e não veria nenhum mal com seu olho preto.
Eles devem estar em Helgafell...” A montanha sagrada aguardava
os pequenos e aqueles que não foram mortos em combate...
embora os deuses saibam que Freja deve ter lutado para salvar
seus filhos. Mas Hel não a separaria de Emy e Egil... essa não podia
ser a recompensa por sua coragem, podia? A cabeça de Snorri gira
e parece que Hel gira em volta dele, de modo que ele e o corvo se
tornam o centro de todas as coisas, tudo girando sobre esta única
questão. “Por que eles estão aqui?”
Snorri passa o braço sobre os olhos e toma fôlego para repetir
a pergunta, mas a árvore está vazia, o galho vazio. Por um longo
momento ele se pergunta se o pássaro esteve mesmo ali. Depois
ele se ajoelha e pega uma única pena da poeira cor de ferrugem. De
pé, põe a pena em sua bolsa de moedas e continua a atravessar a
floresta morta na direção das colinas distantes.
O céu parece mais próximo aqui e, apesar de continuar
monótono, de alguma maneira traz a ameaça de uma tempestade. A
região inteira tem isso, como se prendesse a respiração, à espera.
O nórdico fixa o olhar a uma serra alta e, com os dentes cerrados,
começa a longa ascensão.
Snorri escala, subindo ladeiras irregulares, trepando em pedras
que machucam pelo simples fato de tocá-las, como se fossem feitas
com a própria dor. Visões de Oito Cais enchem sua mente conforme
ele se estica, agarra e se puxa para cima, e depois repete o
processo. Sua vila surgindo acima do Uulisk, acima dos cais que lhe
deram o nome, as cabanas espalhadas que ele conhece bem o
suficiente para contornar na noite cega, às vezes cego de tanto
beber. Ele vê sua casa, com Freja à porta, os cabelos dourados em
volta dos ombros, os olhos azuis sorrindo, com pequenas rugas nos
cantos, uma mão no ombro de Emy e a outra mexendo nos cabelos
ruivos de Egil. Chegando atrás dela, ficando com a cabeça e
ombros acima de sua madrasta, Karl, com os cabelos claríssimos
como os de sua mãe verdadeira e prometendo ser tão alto quanto o
pai. Até mesmo aos quinze anos ele já ultrapassa a maioria dos
homens.
Como será que Egil cresceria, aquela criança magrela e
energética, ávida para investigar tudo que o mundo tinha para
oferecer ou para esconder? Sempre aprontando alguma coisa. O
garoto idolatrava Snorri...
“Eu o deixei morrer.” Mais uma segurada. Um rosnado de
esforço. Mais alguns centímetros de altitude conquistada. “Deixei
todos eles morrerem.”
Snorri olha para cima, piscando para clarear a visão. Nenhuma
dor que sofreu em Hel chega perto da que se alojou em seu coração
no dia que encontrou Emy na neve, mutilada pelos ghouls que Sven
Quebra-Remo havia levado a Oito Cais. Aquela dor cresceu em
volta de seu coração, maior e mais apertada com cada uma de suas
mortes, e que não diminuía com o tempo, como uma armadura
contra o que mundo poderia oferecer, uma prisão também. Mas vai
acabar. Aqui em Hel, vai acabar.
Quanto tempo a escalada leva, Snorri não sabe. Sem dia nem
noite, sem comida nem água, sem nada vivo por perto cuja distância
pudesse ser medida em algo tão trivial quanto quilômetros, o tempo
percorre seus próprios e estranhos caminhos. Snorri não sabe
quanto tempo a escalada levou, mas sente, ao chegar no topo, que
envelheceu ao longo do caminho.
A serra oferece a vista de uma topografia ondulada, onde um
labirinto de vales secos, pequenos cânions e fissuras profundas se
estendem até o horizonte escuro. O céu está cheio de sombras,
como se fracas flâmulas de nuvens se espalhassem nele, presas no
fundo do mundo acima de Hel. Cada linha de sombra forma alguma
parte de um desenho, um grande redemoinho, de rotação muito
lenta para os olhos e centrado em algum vértice a quilômetros de
distância, acima do labirinto.
“Estou vendo.” Snorri abaixa seu machado por um momento,
respirando fundo. “Estou chegando para buscar você, Freja.” Ele
limpa o sangue das mãos. “Vou buscar todos vocês.” Ele tem um
objetivo. Freja estará lá com seus filhos. Nem Hel inteiro pode detê-
lo agora.

Murder tropeçou em uma pedra solta e por um momento aquilo me


despertou da história de Snorri. Já estávamos bem dentro da região
da Roda, e talvez tivéssemos chegado quase tão longe quanto em
nossa primeira incursão. Menires, cada um mais alto que um
homem, estavam dispostos em cinco linhas próximas e paralelas,
como um raio, passando perto de nós e seguindo em frente para
uma convergência no infinito. Urzes cresciam altas em moitas
doentias e retorcidas. Ouvi meu nome ser chamado em meio às
pedras... uma mão pálida e de dedos longos apareceu na lateral de
uma ali perto, cheia de líquen. Fechei os olhos e a história me
pegou outra vez, levando-me por um caminho diferente.

Uma mão pálida e de dedos longos surge em volta da pedra. O


movimento atrai a atenção de Snorri, que tira os olhos do chão
empoeirado do desfiladeiro para a lateral íngreme e rochosa. Ele já
adentrou vários quilômetros do labirinto, e lá no alto o redemoinho
de sombras está mais pronunciado do que quando o viu da primeira
vez. E, em todos aqueles quilômetros empoeirados, não viu uma
única alma perdida.
“Melhor sair e se mostrar,” grita ele, erguendo o machado.
Uma cabeça estreita espia por cima da saliência irregular, uns
trinta metros acima do chão do vale. A princípio, Snorri acha que é
um lichkin e seu sangue gela, mas aquele troço é um amarelo pálido
em vez de branco, e sua cabeça é mais parecida com a de um
pássaro, uma fusão doentia de bico e cabeça, em vez da cunha sem
olhos do lichkin. Ele se puxa para se mostrar, com um barulho
agudo como unhas na lousa, revelando pequenos dentes
triangulares em seu bico carnudo e um corpo esquelético e
desengonçado com uma crista de espinhos correndo em sua
coluna.
“Um demônio.” Snorri sorri. “Já era tempo. Vamos ver do que é
capaz.” Por trás do sorriso, ele sabe que essa coisa pode acabar
com ele. O lichkin foi avassalador. Ele lutou com trolls no mundo dos
vivos e sobreviveu por pouco, pois a força deles é muito maior que a
de um homem e a velocidade assustadora. Mesmo assim, a canção
sangrenta da guerra irrompe nele e a dor desaparece de seus
membros como se estivesse com medo.
A coisa levanta a cabeça e solta um grito que ecoa pelo
desfiladeiro, o som de um grito terminado por uma garganta cortada.
Ela desce pela parede semelhante a um penhasco, caindo alguns
metros aqui e ali, segurando-se com garras longas como dedos e
brancas de maldade, chacoalhando pedras soltas que chegaram ao
chão momentos antes de seus pés espalmados de três dedos.
À medida que o demônio se aproxima dele, cauteloso, pulando
de um lado para o outro como uma ave de rapina, Snorri ouve o
grito dele sendo respondido em várias vozes, distantes, mas não o
bastante.
Aquilo o precipita e seu machado golpeia para cima,
enterrando-se onde o pescoço encontra a cabeça, atravessando a
traqueia e subindo até o cérebro. O demônio cai, em convulsões, e
Snorri solta seu machado para se afastar daqueles braços se
debatendo. Momentos depois, ele vai para cima do cadáver pela
nuvem de poeira levantada pelos estertores da morte, pega o cabo
do machado, põe o pé sobre um lado do rosto do demônio e arranca
a lâmina. Sangue leitoso sai relutante da ferida, com o fedor da
decomposição.
Os primeiros demônios a responderem ao chamado de seu
colega vêm fervendo em uma curva acentuada no desfiladeiro, a
centenas de metros de distância. Os líderes, três deles, têm várias
semelhanças com aquele que Snorri abateu, mas nenhum é igual ao
outro. Outros podem ser vistos de leve na nuvem de poeira
levantada atrás dos mais ágeis. Muitos outros.
Na falta de um arco, Snorri se mexe apenas para ficar de
costas para uma pedra e depois observa a aproximação, sabendo
que a quantidade deles irá derrotá-lo. Os demônios uivam à medida
que se aproximam, um bando diverso variando em tons de cinza
chumbo até o branco de leite coalhado, alguns altos como trolls e
desengonçados, outros baixos e pesados, e outros ainda do
tamanho de crianças, com asas vestigiais.
Snorri revira os ombros e se prepara para encontrar todos. Ele
se entristece por morrer sozinho, nas mãos daqueles horrores tão
malformados, mas nunca esperou retornar de Hel, e talvez um fim
em batalha seja o melhor que pudesse esperar.
“Undoreth, nós. Nascidos na batalha. Ergam martelo, ergam
machado, com nosso grito de guerra tremem os demônios.”
Nos últimos momentos antes de o inimigo se aproximar, Snorri
tem um instante de paz. Nenhum pai deve viver mais que os filhos.
Nenhuma dor é maior do que perder filhos sabendo que, no fim,
você falhou com eles. Snorri morrerá lutando para salvá-los, e isto é
o mais próximo que pode chegar de reparar esse erro.
O primeiro demônio perde o braço levantado e um instante
depois perde a cabeça no mesmo golpe. O segundo demônio,
corpulento e semelhante a um lobo, detém a lâmina de Hel
enterrando-a em seu crânio e cérebro. Snorri acompanha a queda
do golpe se agachando, e o terceiro demônio, saltando para cima
dele, passa por cima de sua cabeça e se choca na pedra atrás. Em
seguida, eles avançam sobre ele às dúzias, aos montes.
Snorri deixa a proteção da pedra quase imediatamente. Com
agressores em massa, é importante não ficar encurralado em nada.
Um machado rodopiante é um bom impeditivo, mas se ficar preso
no corpo de um adversário, mesmo que por um momento, quem o
empunha pode acabar debaixo de uma enxurrada de agressores. O
viking gira para trás sobre o chão irregular do desfiladeiro, deixando
vários membros decepados de demônios se contorcendo na poeira.
O sangue deles fede a podridão, fazendo-o ter ânsia de vômito ao
recuar.
Snorri chega à parede íngreme e luta perto dela para manter
seus agressores de um lado só, mas ainda conseguindo golpear,
recuando todo o tempo. A nuvem de poeira o esconde da maior
parte de seus inimigos, apesar de permaneceram próximos,
procurando-o às cegas, enchendo o desfiladeiro com seus gritos e
uivos.
Alguma criatura enorme com braços desengonçados, pele
encaroçada e cabeça como uma pedra dá um golpe que abre sulcos
no peito de Snorri, por pouco não pegando as veias e tendões de
seu pescoço. Snorri o pega em um golpe para cima, cortando seu
peito em retribuição e decepando a parte inferior de sua mandíbula.
Ele salta para trás, batendo o cabo do machado no rosto cheio de
presas de outro demônio à sua direita. O maior desaba, tornando-se
uma sombra na nuvem de poeira.
Um punho fechado soca na direção do rosto de Snorri, cujo
dono é preto e musculoso, com placas duras e brilhantes no tronco
e nos membros. O viking se movimenta muito devagar e um golpe
de relance o faz cambalear para a parede de pedra, com a visão
dobrada e sangue escorrendo pelo pescoço. Outros vultos se
aglomeram na poeira, e o barulho e fedor deles é avassalador.
Um golpe estripador abre as barrigas de dois demônios. Um
terceiro, marrom e escabroso, salta para cima dele e suja o
machado quando ele tenta repeli-lo. Um demônio-criança coberto de
espinhos agarra as pernas dele e Snorri cai de costas nas pedras,
urrando de resistência. Ele perde o equilíbrio, com as pernas
cortadas pela criança-espinho, e cai de lado na pedra solta. Um
vulto escuro assoma-se sobre ele, uma criatura com proporções de
troll, com chamas gotejando do buraco vazio dos olhos e escorrendo
pela boca aberta. Ele levanta uma clava de madeira morta cravejada
com pedaços afiados de sílex. O demônio escabroso ainda luta com
o machado de Snorri e ele não tem força para arrancar a arma.
“Undoreth!” Um último grito quando o troll em chamas ergue
sua clava para acabar com ele.
Uma espada brilhante arranca a cabeça dele e o corpo começa
a cair, com chamas saindo do toco do pescoço. Um vulto de
armadura reluzente se movimenta ali perto, com a bota resistente
pisando na nuca do demônio espinhento e a espada descendo para
o peito do escabroso. Um instante depois, o vulto some, engolido
pela nuvem, mas, pelo tom diferente dos gritos e latidos
demoníacos, Snorri sabe que o recém-chegado está causando
estragos por ali.
Snorri consegue soltar seu machado e chuta o demônio
espinhento para longe, bem na hora de encontrar um novo inimigo
que apareceu. Durante segundos, ou horas, Snorri continua lutando.
Enfrentados por dois adversários, os demônios avançam em Snorri
com menos frequência e em grupos menores. Mesmo assim, eles
quase o derrubam em várias ocasiões. Ele continua recuando,
decepando cabeças e membros, girando o machado para frente
formando um oito, ágil e afiado. Ele está sangrando por uma dúzia
de feridas agora, e sua respiração está irregular, seus braços e
pernas cansados, com sangue e suor nos olhos.
Por duas vezes ele quase cai, uma tropeçando em uma pedra e
a outra em um crânio, de osso preto e presas protuberantes. Mais
alguns metros depois, ossos estão se quebrando debaixo de seus
pés a cada dois ou três passos para trás.
O terreno muda de característica lentamente, passo a passo,
tornando-se mais pedregoso e a nuvem de poeira diminuindo. Snorri
tem vislumbres do guerreiro que se uniu a ele. Um homem gigante,
um viking, de cabelos longos e brancos saindo por baixo do
capacete. Parece ter saído das sagas, com a armadura melhor do
que a de qualquer jarl, toda trabalhada com arabescos e runas. O
protetor de rosto do capacete de ferro dava medo só de olhar, e
cada uma das escamas de ferro de sua cota de malha era folheada
a prata.
Snorri corta uma dupla de demônios idênticos, os dois magros
como árvores velhas, com mãos rugosas e a pele feito uma casca.
Ele cospe sangue e respira ofegante. Agora dá para ver os
demônios remanescentes, uma horda sombreada, talvez uma dúzia
no total.
“Venham, frutos de Hel!” Ele quis gritar, mas saiu como um
suspiro. “Vamos lá!” Uma olhada para o ombro revelou uma ferida
profunda até a carne, jorrando sangue. Ele ergue o machado de seu
pai, preparando-se para atacar. “Eu disse vamos...” Mas de alguma
maneira suas pernas falham e Snorri se vê de joelhos.
Os demônios soltam uma cacofonia de urros, gritos, uivos e
latidos, avançando para matar. E o viking de armadura corre para
interceptá-los. Ele gira no meio deles, cortando o corpo de um,
decapitando outro, destruindo um rosto com uma cotovelada de
armadura, puxando o próximo em uma cabeçada devastadora. Em
seguida, de algum modo ele está livre, no espaço, balançando sua
lâmina novamente. Aquilo leva um minuto, e durante esse minuto
Snorri permanece de joelhos, de queixo caído, paralisado por
aquela visão. É uma dança, uma linda e violenta dança do aço, com
uma vida tirada a cada batida, e a vitória do guerreiro tão inevitável
quanto perfeita. Sessenta segundos matadores.
Por fim o guerreiro está de pé, todo sujo, manchado com o
sangue de seus inimigos, os cadáveres espalhados à sua volta, a
espada embainhada, e atrás dele a poeira se assenta. É como uma
coberta retirada da cama, revelando trezentos metros, com cada
passo do caminho cheio de mortos, dezenas, dúzias, e muitos mais.

“Que história fizemos aqui, irmão.” Snorri se levanta para encontrar


o guerreiro que está retornando. Aquilo exige toda sua força, mas de
jeito nenhum vai conhecer um homem desses de joelhos. “Quem é
você? Os deuses lhe enviaram?”
“Os deuses me proibiram de vir.” Uma voz grave, falando
nórdico antigo. Alguma coisa nela era familiar. Talvez o sotaque ou o
timbre.
Snorri abaixa a cabeça e olha para seu machado. O pai do pai
do pai dele lhe dera o nome de Hel. Talvez alguma völva tivesse
visto seu destino e sugerido o nome. Talvez tenha sido Skilfar, já
velha até naquela época. Ele olha para o guerreiro, um homem da
sua altura, possivelmente uns dois centímetros mais alto. O pai de
Snorri era da mesma altura e tinha os mesmos cabelos. “Você... não
pode ser...” Os pelos dos braços de Snorri se arrepiam e um calafrio
atravessa sua coluna. Sua boca está seca demais para dizer as
palavras. “Pai?” Lágrimas enchem seus olhos.
O homem levanta as duas mãos e tira o capacete, sacudindo o
cabelo do rosto. Não é o pai dele, embora tenha aparência
semelhante.
“Estão esperando você.” O guerreiro faz sinal para o
desfiladeiro. Ossos de demônios enchem o chão pedregoso até
onde a vista alcança, pilhas deles em alguns pontos, crânios rolados
até as paredes, estilhaçados, quebrados. “Venho mantendo-os a
salvo da melhor maneira possível. Eu sabia que viria.”
Snorri pisca, enxergando, mas sem compreender. O guerreiro
tira suas manoplas e as põe no cinto. Suas mãos são marcadas, os
dedos tortos de fraturas antigas. “Eles querem a chave,” diz ele.
“O quê?” O rosto de Snorri formiga, sua boca funciona, mas
nenhuma palavra sai.
“Eles querem a chave – as últimas palavras que disse a você.
Queria ter dito mais. Dizer que o amava. Agradecer a você por ter
me encontrado. Dizer adeus.”
“Karl!”
“Pai.”
Os dois homens se encontram em um abraço apertado.

Murder tropeça outra vez e, novamente despertado da história, olhei


em volta, mas não vi nenhum dos horrores de Osheim: meus olhos
estavam embaçados demais.

“Eu poderia vir com você, pai.”


“Não.” Snorri põe a mão no ombro de seu filho. “Seu lugar é em
Valhalla. Eles vão entender... isto.” Ele ergue machado para a
carnificina que se estende ao longo do desfiladeiro. “Mas além disso
seria demais. Nós dois sabemos disso.”
Karl inclina a cabeça.
“Estou orgulhoso de você, filho.” Não parece real estar com Karl
ali na sua frente e dizer adeus novamente. Snorri quer levar seu
garoto para casa, mas ali há um homem à sua frente. Um homem
com um lugar à sua espera em Asgard, uma cadeira na mesa do
salão do próprio Odin.
“Vamos nos sentar juntos um dia, pai.” Karl sorri, quase tímido.
“Vamos mesmo.”
Snorri pega seu menino nos braços uma última vez. Um abraço
de guerreiros. Ele o solta. Se ficasse mais, não conseguiria partir. A
criança que ele criou se tornara um homem. Mesmo antes de
morrer. O Karl que brincava no litoral do fiorde de Uulisk, que
perseguia coelhos, cuidava das cabras, brincava com espadas de
madeira, amava seu pai, ria e dançava, lutava e corria... aquele
menino teve seu tempo, e aquele tempo foi bom. Mesmo antes de
Sven Quebra-Remo arrasar o mundo deles, aquele menino estava a
salvo na memória, e agora um rapaz está em seu lugar.
Snorri se afasta, achando melhor não dizer mais nada, sem
olhar para trás, esquecendo as feridas, com a lembrança nos braços
de abraçar seu filho.
29

“Jal!” Um puxão no meu braço. “Jal!”


“Quê?” Afastei a visão de Snorri e Karl. Uma charneca desolada
nos rodeava, os cavalos seguindo em frente, o vento forte e
prometendo chuva. Logo à minha frente, Snorri cavalgava de
cabeça baixa, absorto em lembranças, ainda contando sua história.
Eu queria acompanhá-lo de volta a ela.
“Jal!” A voz de Hennan no meu ouvido.
Acima de nós o céu havia se tornado uma ferida roxa, um
redemoinho que chama a atenção. A paisagem lúgubre à nossa
volta estava cheia de possibilidades, todas elas ruins. Eu me virei na
sela. Hennan, imediatamente atrás de mim, puxou minha manga de
novo. “Quê?”
“Nós passamos a Roda!” Ele apontou para trás, para uma
pequena elevação no campo, como uma antiga fortificação saindo
para os dois lados em linha reta... mas à medida que a acompanhei
com os olhos uma leve curva se revelou.
“Você estava de olho?” Meu olhar se desviou para as formas
monstruosas que já estavam se formando a meia distância. Elas se
pareciam desconfortavelmente próximas dos demônios que Snorri
descrevera. “Como é que você não está...”
“Morto?” Hennan deu de ombros. “Este lugar não perturba
minha família como perturba as outras pessoas.”
“Bem, ele me mete o maior cagaço.” Fechei os olhos, tentando
voltar para a história de Snorri. “Estamos indo para o coração da
Roda. Me avise quando chegarmos lá.”
“O centro da Roda não é nada além do caos.” Uma urgência
deu o tom à voz de Hennan, e aquela nota de preocupação me fez
permanecer com ele, apesar da atração das palavras de Snorri. “O
coração da Roda está no anel, o lugar de onde a máquina é
controlada.”
Fiz uma careta. “Como é que você sabe de tudo isso?”
“Histórias que meu avô contav...”
“Histórias de um pastor de cabras?” soltei, com raiva do menino
por ter arriscado minha vida por isso. Minha imaginação já estava
conjurando demônios na escuridão atrás de minhas pálpebras e
muito em breve a Roda os tonaria reais.
“Você nunca me perguntou quem foi Lotar Vale!” gritando agora.
“Quem?”
Hennan me deu um soco no rim. Eu! Um príncipe de Marcha
Vermelha, apanhando de um camponês pagão qualquer! “O avô do
meu avô. Lotar Vale. Ele foi o mago do mal mais famoso de sua
época. Conseguiu voltar às margens e criar uma família lá. Ele
conhecia este lugar!”
“Merda! Snorri!” Eu virei Murder. “Snorri!”
Ao olhar para trás, vi Snorri levantando a cabeça como se
despertasse de um sonho, e Kara se sacudindo para se libertar.
À distância, cerca de quatrocentos metros seguindo a curva da
Roda, uma forma atarracada quebrou a monotonia da paisagem:
uma pequena construção de algum tipo. “Precisamos ir até lá!”
Apontei. “Segure firme.” Chutei Murder para galopar. Um pavor
gelado tomou conta de mim, e junto do medo vieram formas
cinzentas, subindo pelo campo como névoa e se materializando em
formas mais substanciais à medida que olhava. “Cavalgue!”
Formas demoníacas, mortos-vivos, diabos mecânicos com
facas em lugar dos dedos, bruxas, tentáculos pretos e gotejantes
saindo de poços de piche, homens-pinheiros, enormes cães-diabos,
lobos em chamas, djinns... os produtos de minha imaginação fértil
povoaram o campo tão densamente que mal havia espaço para
todos eles.
“Jal!” gritou Snorri lá de trás. “Jal! É tudo da sua cabeça!”
Ele estava certo. Não havia espaço suficiente na Roda para
todos os meus medos. Ninguém mais teria chance de conseguir
espaço para seus pesadelos.
“Limpe sua mente!” gritou Kara. O conselho mais inútil que já
tinha ouvido. Deviam tirar o caldeirão dela.
Os horrores convergiam de todos os lados, eliminando qualquer
caminho livre. Tentei atropelar um lobo Fenris malformado, mas ele,
apesar de nebuloso, mostrou-se sólido o bastante para empurrar
Murder para o lado e nós caímos gritando.
Cair de um cavalo é uma maneira rápida de ganhar um pescoço
quebrado. Se um cavalo cai embaixo de você, muitas vezes pode
acrescentar um fêmur quebrado aos seus ferimentos. Felizmente,
tenho um bocado de prática em cair de cavalos, e a urze
proporcionou uma aterrissagem quase macia e bastante elástica.
Acabei estatelado em um arbusto verde e espetado, gemendo, mais
de medo do que de dor.
“Jalan Kendeth.” Uma voz fria e sibilante.
Levantei a cabeça. João Cortador estava acima de mim, com o
alicate na mão e aquele mesmo sorriso de caveira que deu quando
Maeres Allus o mandou arrancar meus lábios.
Alguma coisa girou acima da minha cabeça, e sua passagem
terminou em uma pancada suculenta. O machado de Snorri estava
enterrado na diagonal no peito de João Cortador, com uma das duas
lâminas enfiada até o cabo.
João Cortador deu três passos para trás e depois parou. Ele
olhou para o machado, curioso, e, levantando o cotoco feio do braço
que Snorri decepou tanto tempo atrás, conseguiu derrubar a arma.
“Sem interrupções desta vez, Jalan.” João Cortador voltou aqueles
olhos enormes e claros para mim, com a ferida em seu peito sem
sangue.
Por todos os lados, os monstros dos recantos escuros de minha
mente estavam à espera, nebulosos, um atravessando o outro. Eles
isolaram Snorri e Kara. Não consegui ver Hennan no meio deles.
Não consegui nem ver Murder, apesar de ouvir seu pânico. De todos
eles, o único que parecia verdadeiramente sólido era João Cortador,
tão real quanto o chão que pisava.
Não tive força para me levantar. Eu tinha atravessado meio
mundo para ser cruelmente assassinado por meus próprios medos.
Tudo que eu tinha previsto se tornou realidade. A Roda me deu a
corda e ali estava eu, me enforcando.
“..você...” A voz de Kara, ficando cada vez mais distante, quase
abafada pelos relinchos de Murder, meio com medo, meio com
raiva.
João Cortador levantou o alicate em sua mão novamente e deu
um passo para o lado, revelando a mesa de madeira manchada à
qual eu havia sido amarrado no galpão de papoulas de Maeres
Allus.
“...defender...” Kara, estridente e penetrante, apesar da
distância.
Defender? Consegui ficar de pé, inebriado de pavor, e saquei
minha espada. João Cortador a derrubou no chão com um golpe de
revés. Eu precisaria de um exército para detê-lo! Por algum motivo,
uma imagem do exército de guardiães de plastik de Skilfar me veio
à mente. “Jesus! Me ajude!” Um grito desesperado, e que não
esperava resposta. Mas de repente lá estava ela, um manequim de
plastik, nua, rosa, de braços rígidos, entre mim e João Cortador.
“Patético.” Com uma balançada do braço dele, ela saiu voando,
o tronco se separando das pernas.
Eu me afastei, com os braços levantados para proteger a
cabeça. Precisava de mais. E, num instante, havia mais meia dúzia
de manequins entre nós, dispostos em uma variedade de poses
displicentes. “Mais!” Afastei-me velozmente, concentrando-me em
criar outros deles, lembrando-me de como era na caverna do trem,
onde todos os túneis se encontravam.
Em um instante, todos os horrores malformados
desapareceram e eu estava no centro do exército de plastik de
Hemrod, centenas deles saindo de onde eu estava; as únicas
perturbações naquela disposição eram Snorri e Kara em seus
cavalos cinquenta metros atrás, parecendo atônitos, Murder, que já
tinha derrubado uma dúzia das estátuas por irritação, e João
Cortador andando na minha direção, derrubando meus guardiães
inúteis para o lado.
“Defendam-me!” Busquei lá no fundo o que quer que tenha feito
a Roda responder ao meu chamado.
Ao mesmo tempo, o exército de plastik virou as cabeças na
direção de João Cortador e, sem uma palavra, os mais próximos do
torturador se atiraram sobre ele, agarrando seus braços e pernas,
arranhando seus olhos com os dedos duros de plastik. Ele caiu
debaixo deles com um grito animal, e cada vez mais meus
defensores nus se atiraram na pilha de corpos, enterrando-o
completamente.
Enquanto a maior parte do exército se dirigia à pilha crescente,
o campo se desobstruiu o suficiente para eu conseguir enxergar
Hennan de pé ali perto, olhando para meus guerreiros fiéis
passando por ele. Snorri e Kara se aproximaram nos cavalos,
acompanhando os manequins.
“Só você, Jal.” Snorri balançou a cabeça, tentando esconder o
sorriso.
“O quê?”
“O poder da Roda à sua disposição... e você cria quinhentas
mulheres peladas?”
“Você podia ter criado um dragão,” disse Kara. “Qualquer coisa
que conseguir pensar é possível.”
“Por que você não criou?” Posso ter soado um pouco zangado.
“Aqui, garoto!” Fui até Murder, fazendo aqueles estalinhos com a
boca que o acalmam.
Kara levou sua égua atrás de mim. “É muito mais fácil para
você lutar com suas próprias criações. É muito perigoso duas
pessoas soltarem suas imaginações uma contra a outra. É assim
que a maioria dos magos do mal morre.”
Olhei em volta me sentindo desmedidamente satisfeito comigo
mesmo. “Imagino que um drinque cairia bem.”
O manequim mais próximo que ainda me protegia se virou para
nos encarar, segurando um cálice dourado transbordando de vinho
escuro.
Um leve som de trituração saiu do monte de guerreiros
empilhados sobre João Cortador. Imaginei que estavam reduzindo
seus ossos a pó.
“Isto não parece certo.” Snorri desmontou ao meu lado, olhando
para a confusão de corpos que afundou João Cortador.
“Acho que preciso me sentar.” Virei e descobri uma poltrona
reclinável finamente estofada, bem parecida com uma em que eu
era proibido de me sentar no Salão Roma quando criança. Caí nela,
afundando no grosso veludo vermelho.
“Rá! Somos iguais a deuses aqui!” Eu podia ter qualquer coisa.
A manequim se aproximou com meu vinho. Ela ficava mais parecida
com Lisa a cada momento. Tinha longos cabelos pretos agora,
caindo sobre os ombros, e sua pele parecia mais macia e menos
como plastik. Peguei o cálice. “Venha aqui, Hennan! Tem bolo.” E
tinha, um troço enorme de cinco camadas prateadas, decoradas
com pasta de açúcar e amêndoas confeitadas. Peguei um punhado
e enfiei na boca.
Hennan se uniu a mim, devolvendo minha espada.
“Precisamos ir.” Snorri estendeu a mão para me levantar.
Eu escorreguei para o lado. “Calma aí. Você entendeu errado
este lugar.” Levantei as palmas das mãos, ambas sujas de bolo.
“Admito que também fiquei um pouco preocupado ali atrás. Mas
olhe.” Fiz uma pausa para engolir as delícias açucaradas e acenei
para a manequim que se aproximava com o machado dele. Eu a
modelei baseada em uma das dançarinas que conhecemos no circo
de Raiz-Mestra.
Um dos manequins da pilha voou para trás, girando duas vezes
no ar antes de aterrissar.
“Suba no seu maldito cavalo, Jal. Precisamos ir.” Kara
gesticulou irritada para Murder.
Bebi meu vinho e a observei. Eles tinham feito tanto alarde
sobre a Roda dar vida a seus medos que eu havia me esquecido da
parte boa da equação. Se aquilo era uma espécie de amostra de
como as coisas seriam depois que a Roda passasse do ponto de
ruptura, então eu era totalmente a favor.
O barulho de trituração da pilha tinha ficado mais alto, e precisei
levantar a voz por cima dele. “Desça aqui, Kara. Vamos aproveitar.
Não é sempre que o mundo faz o que você quer.”
Mais dois manequins foram arremessados da pilha, ambos se
partindo em vários pedaços. Um tronco caiu ali perto, aterrissando
no meio da urze. Dei um tapinha na poltrona e a Lisa-quim se
sentou ao meu lado. Talvez ela tivesse proporções mais generosas
que a original, mas não dá para controlar a imaginação.
Kara trouxe seu cavalo grande e fedorento bem perto de nós.
“Precisamos ir agora! As pessoas morrem aqui por causa das coisas
maravilhosas que imaginam, e as coisas ruins são sempre piores. A
nossa autodestruição sempre ganha no final.”
Um urro a interrompeu e a massa amontoada de meus
manequins se levantou e começou a perder corpos de plastik. Um
instante depois, João Cortador surgiu dali, com meia dúzia de
mulheres de plastik de formas perfeitas ainda grudadas a ele.
“Merda!” Imaginei um dragão, todo com escamas cintilantes e
cuspindo fogo, dando um rasante em meu inimigo. Um momento
depois, uma coluna de fogo alaranjado desceu ao ponto onde João
Cortado estava. O calor daquilo tomou conta de nós. Os cavalos
empinaram, relinchando de pânico, eu derramei o vinho no meu colo
e a poltrona virou para trás.
Rastejei de volta à poltrona, com os joelhos afundando no chão
molhado, e espiei por cima dela. João Cortador estava chamuscado
e escurecido, com filetes de plastik derretido escorrendo sobre ele e
meu enorme dragão cercando-o. Ele abriu a bocarra, grande o
bastante para caber um cavalo Shire, e o pegou. Dentes feito
espadas curtas e brilhantes como aço prata se fecharam. Em
instantes o desgraçado desapareceu, engolido pela garganta de
uma enorme serpente de escamas de bronze e ouro.
Eu deveria ter me sentido seguro, mas vi como aqueles dentes
tão finos e brilhantes não conseguiram partir João Cortador em
pedaços, e pouco antes de deslizar goela abaixo ele olhou para
mim, com os olhos claros sem medo e cheios de ameaças terríveis.
Olhando em volta, vi que Snorri e Kara tinham recuperado o
controle de seus corcéis e estavam indo na direção do prédio que
havia visto. Hennan estava correndo para o mesmo lugar e já tinha
percorrido cerca de um terço da distância. Apertei os lábios,
pensando que ele poderia ter demonstrado um pouco mais de fé no
Marechal de Vermelhão. Dirigi uma defesa bem-sucedida de uma
cidade inteira contra um exército de mortos... Atrás de mim, meu
dragão desabou, caindo de lado e arranhando as escamas
reluzentes de sua barriga, como se tivesse comido alguma coisa
que não lhe caiu bem. Na verdade, desconfio que dragões tenham a
tendência de comer qualquer um que não lhes caia bem... mas
quando esse pensamento surgiu na minha cabeça eu já estava
correndo.

Cheguei ao fortim instantes depois de Hennan, com meu estômago


revirando uma mistura de bolo e pavor absoluto. Kara havia pegado
as rédeas de Murder a caminho da construção e o levado consigo.
Snorri tinha desmontado e fazia força contra uma grande placa de
pedra dos Construtores que parecia estar escondendo uma entrada.
Se não estivesse, então o lugar não tinha entrada – até onde
sabíamos podia ser apenas um bloco sólido de pedra moldada,
colocado ali para desperdiçar o tempo das pessoas enquanto suas
próprias imaginações conspiravam para matá-las.
Olhei para trás. Uma figura familiar e indesejável estava
correndo na nossa direção. Atrás dele, a charneca ainda queimava
descontroladamente onde meu dragão lançara a chama. O bicho em
si estava caído de lado, com um buraco feio aberto na barriga.
“O que está fazendo?” gritei para Snorri.
Ele olhou para trás com o rosto vermelho de esforço e uma
expressão perigosa.
“Saia da frente,” falei e, sem esperar que ele saísse, balancei a
mão, desejando que a placa deslizasse. “A maldita Roda está
tentando nos matar, melhor fazê-la trabalhar a nosso favor também.”
Nada aconteceu. Com os dentes cerrados, tentei com mais força,
olhando fixamente para a porta, sentindo o sangue pulsar em minha
cabeça e formigar em meus olhos.
“Não está funcionando muito bem, não é?” rosnou Snorri.
“Se ela não fosse protegida contra os magos do mal, não teria
durado muito tempo, não é?” disse Kara. “Por que vocês dois não
tentam?”
Normalmente eu tento deixar os trabalhos braçais para as
classes da plebe, mas, com João Cortador vindo para cima de mim,
não precisei de um segundo convite. Hennan e eu nos unimos a
Snorri, jogando nosso peso contra a placa. Fiz força suficiente para
reorganizar vários órgãos internos. Mas o pânico dá força a um
homem, e alguma coisa cedeu com uma combinação desagradável
de estalo e esmagamento. Por um momento, tive certeza de que era
uma parte de mim que havia se quebrado, mas foi apenas a placa
se movendo. Depois que começou, ela se moveu com mais
facilidade, e instantes depois a placa estava um metro à esquerda,
no sulco lamacento que havia aberto no gramado. Atrás dela
revelou-se uma abertura retangular e escura.
Kara desceu com o oricalco na mão e entrou na construção. Dei
uma olhada para João Cortador lá atrás. Ele corria com certa
estranheza em virtude do braço encurtado, num ritmo constante,
sem pressa, como se quisesse extrair o máximo medo possível de
mim.
“Vamos ter de deixar os cavalos.” Odiei dizer isso, e não só
porque Murder era tão bom em fugir.
“Eu sei.” Snorri se abaixou na entrada, Hennan atrás dele.
Levantei as mãos, virando as palmas para cima em um misto
de indignação e perplexidade, mas não havia mais ninguém para
ver. Só eu e João Cortador a quinhentos metros de distância agora.
“Eles não são só vacas que vocês montam, porra!” gritei para as
costas dos nórdicos. Sem resposta. “Ah, que se foda!” Acenei com a
mão para os cavalos, piscando os olhos para focar. Uma águia
gritando surgiu do nada, mergulhando e fazendo os três saírem em
disparada. Fiz o pássaro dar outro rasante e virá-los, de modo que
corressem para longe da Roda. A outra mão eu ergui na direção de
João Cortador e abri os dedos. Um enorme fosso se abriu embaixo
dele, que desapareceu lá dentro. Fechei novamente a mão e as
paredes do fosso se fecharam. Aquilo não o deteria por muito
tempo. Com uma última olhada para os cavalos em fuga, eu me virei
e entrei no fortim.

“É um buraco,” falei, para que fosse interpretado de várias maneiras.


O blocausse era uma caixa vazia, com os cantos cheios de detritos
trazidos pelo vento, pedaços de gravetos, trapos cinzentos,
pequenos ossos. Um fedor de urina velha pairava no local.
Diretamente à nossa frente, um buraco irregular havia sido aberto
através de um metro de pedra dos Construtores reforçada com aço.
Através dele dava para ver o topo de um poço circular que descia.
“Magos do mal devem usar este lugar para alguma coisa, senão
o tempo já o teria coberto há muitos anos.” Kara foi até a beira do
buraco e olhou para baixo, segurando o oricalco. “Tem degraus.”
Kara desceu na frente e fiquei feliz por isso. Snorri foi atrás,
depois Hennan.
“Por que sou o último?”
“É a sua imaginação que está tentando nos matar,” disse Snorri
de dentro do buraco.
A iluminação de Kara passava pelos outros dois, lançando uma
confusão de luz e sombra no teto acima do buraco. Bati os pés e
esperei o menino sair do caminho para que eu pudesse entrar no
buraco com eles. “Por que isso?” gritei atrás deles. “Por que eu?”
Não consegui entender o que eles disseram, mas eu já sabia a
resposta. Minha imaginação vinha me atacando a vida inteira, só
que aqui ela tinha as armas necessárias. Uma enorme máquina
subterrânea, a glória dos Construtores, com todas aquelas
engrenagens muito abaixo de nós agora despertando de seu sono e
dedicando suas energias a fazer meus medos guerrearem com
minhas esperanças.
Com uma olhada rápida para a entrada, vi o chão começar a se
elevar no ponto onde havia enterrado João Cortador. Momentos
depois eu estava descendo aquela escada para o desconhecido,
com Hennan reclamando que eu estava pisando em seus dedos.

“Estamos seguros aqui?” Espiei em volta do túnel, desconfiando de


cada sombra.
Estávamos pouco mais de cem metros abaixo da superfície de
Osheim, em um túnel de talvez seis metros de diâmetro. Passando
pelo centro, acima de nossas cabeças, havia um tubo preto de
apenas um metro de largura, estendendo-se pela escuridão. Não vi
nenhuma forma de sustentação dele. Aros de aço prata rodeavam o
túnel em intervalos de poucos passos, cada um com quinze
centímetros de largura, como uma espécie de reforço. Um zumbido
que a princípio mal se ouvia preenchia todo o lugar, embora depois
de pouco tempo, mesmo não ficando mais alto, você o sentisse até
nos ossos.
Tossi para verificar que as pessoas não tinham ficado surdas. O
som ecoou pela escuridão. “Eu disse...”
Um som lá de cima me interrompeu. Alguém botando o pé no
lugar errado.
“Não,” respondeu Kara.
“Como é que ele está descendo? Ele só tem um braço, cacete!”
Não era justo. Eu havia escapado de João Cortador duas vezes,
contra todas as probabilidades, só para acabar me entregando de
bandeja a ele na terceira ocasião. Nem mesmo a ele, aos meus
piores medos relacionados a ele, empacotados e materializados
pelo poder que nossos ancestrais idiotas nos deixaram.
“Deixei Karl e subi o vale onde ele montava guarda,” disse
Snorri, afastando-se para as sombras. “Em alguns lugares os ossos
estavam empilhados até a altura do peito.”
Kara e Hennan foram atrás. Fiquei parado por um momento,
esforçando-me para ouvir a descida de João Cortador, mas ouvi
apenas a voz de Snorri e aquela velha magia dele me envolveu e
me atraiu. Andei atrás deles, com meus pés percorrendo a antiga
passagem que os Construtores nos deixaram, enquanto minha
mente seguiu o nórdico de volta a Hel, ocupada demais com a
história dele naquele momento para se preocupar em tramar sua
própria destruição.
30

Snorri sobe o desfiladeiro, passando pelos restos dos demônios que


seu primogênito matou em defesa de sua família.
Acima dele, o redemoinho no céu se aperta e se estreita. Logo,
Snorri sabe, ele estará embaixo de seu centro, no olho de um
furacão invisível.
O desfiladeiro se alarga em um vale, agora inclinado para
baixo, saindo das terras altas. Snorri segue mancando, com seus
ferimentos se enrijecendo, a ferida em seu ombro ainda bombeando
sangue e a dor atravessando seu corpo inteiro.
À frente, o vale chega a uma garganta e depois cai tão
vertiginosamente que não se pode mais vê-lo. Atrás desse ponto
estreito, abre-se uma vista que Snorri jamais imaginou ver em Hel.
Ele fica parado, com a visão preenchida pelo fiorde de Uulisk, com
sua bruma suave, suas encostas verdejantes na primavera, cabras
pretas e peludas pontuando o alto das colinas Niffr do outro lado,
onde o sol tinge a terra de dourado. Devia haver uma vila aqui,
casas espalhadas descendo até a beira da água, mas tudo que
Snorri vê são os oito cais, esticando os dedos finos pelo fiorde e,
cem metros acima da encosta, uma única casa. Familiar mesmo
àquela distância. Sua casa.
O gelo enche suas veias. O redemoinho no céu está centrado
acima daquela casa solitária. O grande turbilhão no céu, o labirinto
de pedra abaixo dele, tudo o trouxe até aqui, ao seu passado, seu
presente, um lugar sem futuro. Snorri endurece a mandíbula, segura
o machado bem perto do peito e segue andando, tão cheio de
emoções partidas que parece um homem em chamas, e no entanto
a mão perto de seu coração está mais fria que nunca.
À medida que caminha, Snorri vê a chacina que aconteceu ali
também, a carnificina espalhada por toda a parte. Um braço aqui na
sombra das pedras, uma cabeça acolá, órgãos espalhados por uma
ampla faixa de pedra. Não eram demônios disformes, e sim
homens, ou seres como eles, e não só homens, mulheres também,
donzelas escudeiras com armaduras ao estilo do norte, portando
machados, lanças e martelos. Cada uma daquelas pessoas, porém,
seja alta ou baixa, larga ou estreita, tem em comum uma
característica que denuncia sua origem. Cada pessoa caída ali tem
a metade direita branca, e a esquerda preta, e a mesma coisa com
a armadura, cada machado ou espada feitos de metal branco como
leite, e escudos tão pretos que podiam ser buracos abertos no
espaço.
“Servos da deusa.” Snorri se ajoelha, retraído, para analisar
uma escudeira. Um golpe de machado atravessou a lateral de seu
capacete. Hel deve tê-la enviado com os outros para reaver as
almas de Freja e das crianças. Quem matou aqueles ali não foi
gentil, mas aquilo não era obra da espada de Karl. Snorri examina o
olho branco da mulher, refletindo o redemoinho acima de seu
ombro, e o preto, como uma pedra preta polida. Seus lábios estão
retraídos com o rosnado que estava dando quando foi atingida, e os
dentes atrás serrilhados como uma serra. Não era humana, então.
Embora Hel não tenha sol, há um sol ali na memória do
Uuliskind, e ele está se pondo. À frente dele, na garganta do vale,
preto contra o sol, está um único guerreiro, largo, com armadura de
pedaços descombinados, os braços abertos, um broquel em uma
das mãos e um machado na outra, com a lâmina curva para perfurar
cota de malha.
“Sven Quebra-Remo?” Por um instante, Snorri conhece o
medo. O gigante é o único homem que o derrotou: sua força não é
humana. Fraco pela perda de sangue e prejudicado por seus
ferimentos, ele sabe que esta luta está acima de suas capacidades.
Ainda assim, de joelhos, o nórdico sussurra uma prece, a primeira
que passou por seus lábios em muito tempo. “Pai de todos, eu fiz o
meu melhor. Olhe por mim agora. Só peço que me dê a força que
me abandonou.” A prece de um homem que enfrentou seus desafios
com um machado e o coração valente. A prece de um homem que
sabe que isso não bastará. A prece de um homem que não viverá
para fazer outra.
Snorri se levanta com um rosnado, sem se preocupar com os
ferimentos, sabendo que os deuses estão olhando por ele. Ele fica
de pé, coberto com o sangue preto dos demônios e o escarlate do
seu próprio, quase impossível de distinguir das feras que ele abateu
em grandes quantidades.
“Estou pronto.” Se Hel pôs Sven Quebra-Remo entre ele e sua
família, então Sven Quebra-Remo irá morrer a segunda morte.
“Undoreth!” ruge ele, e como se seu grito fosse uma lança atirada
para o alto, o céu fica vermelho como sangue atrás dele. E então ele
ataca.

O guerreiro fica firme enquanto Snorri corre em sua direção. Ele


está usando uma grande proteção de ombro, de ferro preto com
pontas, e um elmo apenas com uma fenda para os olhos e
perfurações na boca. Faixas pretas de ferro em volta de seu peito e
cintura cingem uma camisa grossa de couro e camadas de
amortecimento. Placas de ferro costuradas à sua calça de couro
defendem as duas pernas. Cada parte de sua armadura traz sinais
de batalha, cortes brilhantes, respingos vermelhos desbotados,
metal amassado, couro rasgado.
Vinte metros restam entre eles. O guerreiro ergue seu machado
acima da cabeça. Dez. O guerreiro inclina a cabeça. “Snorri?” Cinco.
E deixa o machado cair.
Snorri, tomado pela fúria da batalha, golpeia seu machado em
um arco decapitador, o aço afiado impulsionado pela força dos dois
braços. No último momento, a mente suplanta o músculo e gritando
de esforço ele interrompe o golpe, conseguindo conter a maior parte
de sua força. A lâmina de Hel atinge o gorjal, tirando um som agudo
da gola de metal antes de se afastar.
“Snorri?” As mãos com manoplas se atrapalham no visor
articulado do elmo.
Snorri abaixa o machado e o utiliza para se apoiar, com a
respiração ofegante.
O visor se abre.
“Tutt?”
“Sabia que você viria.” Tuttugu sorri. Ele está sem barba, com o
queixo em carne viva onde ela foi arrancada. O corte vermelho que
a faca de Edris Dean fez ainda marca o pescoço de Tuttugu, e seu
rosto está pálido. Seus olhos, porém, brilham de alegria. “Sabia que
conseguiria.”
“Em nome de Hel. O quê... Tuttugu... como?”
“Ssshhh!” Tuttugu levanta a mão. “Não fale o nome dela... não
aqui. Ela vai mandar mais guardas, e eles são difíceis de derrotar.”
Snorri olha para o vale cheio de corpos espalhados ali atrás.
“Você fez tudo isso?”
Tuttugu sorri. “Eles não vieram todos ao mesmo tempo.”
“Mas mesmo assim...”
“Eu não podia deixar Freja e as crianças serem levadas,
Snorri.”
“Mas Karl...”
“Karl podia lutar com os demônios, são apenas bichos seguindo
seus instintos de caçar almas perdidas. Mas ir de encontro aos
servos de Hel que estão cumprindo ordens? Isso poderia fazer com
que ele fosse expulso de Valhalla. Não queríamos isso.”
“Mas você...”
“Eu ainda não peguei meu lugar, então eles não podem me
expulsar. Quando você está destinado aos salões, você guarda seu
corpo em Hel... ou uma cópia dele, acho... Enfim, eu saí à procura
de Freja em vez de ir para onde eu deveria.”
Snorri estende o braço e põe a mão no ombro de Tuttugu.
“Tutt.” Ele percebe que não tem palavras.
“Está tudo bem. Você faria o mesmo por mim, irmão.” Tuttugu
segura o pulso de Snorri e depois sai para mostrar o caminho.
Snorri olha mais uma vez para o desfiladeiro que Tuttugu
defendeu de todos que vieram, e depois segue seu amigo,
descendo a encosta até as águas paradas lá embaixo.

Um barco a remo está perto da margem, amarrado a uma pedra na


parte rasa. Logo depois da pedra, o leito do fiorde afunda
abruptamente e se perde na água límpida e escura. Snorri pisa na
água e pega a corda. A terrível sede que ele sente grita para ele
beber, mas ele não estava ali pela água.
Snorri sobe no barco e pega os remos. Tuttugu entra pela
lateral para se sentar na popa, e Snorri sai remando pelo lago. Não
há nenhum sinal de perseguição lá atrás, onde o vale se une ao
fiorde. O céu é o céu do mundo dos vivos, cheio de nuvens escuras,
como se retorcidas pelo dedo de um deus em uma grande espiral
acima deles. Obra de Thor, talvez. Será que o trovão irá troar antes
desta viagem terminar?
Uma névoa noturna paira perto das águas. O frescor do ar
lembra o começo do outono, trazendo toques de fumaça de lenha,
peixe e do mar distante. Cada mergulho do remo o leva mais perto.
No vale, o medo havia tomado conta dele – medo de que sua força
não fosse suficiente para vencer, e de que finalmente o caminho do
guerreiro não o levasse ao desejo de seu coração. Agora cresce um
novo medo nele, com uma voz mais alta a cada remada. O que ele
irá encontrar? O que ele dirá? Que futuro haverá para eles? Snorri
veio salvar seus filhos, mas se sente mais criança a cada momento
que passa – com medo de encarar a família com a qual fracassou,
medo de estar aquém de qualquer tarefa que seja exigida dele
agora.
O instinto diminui o ritmo das remadas. Ele levanta os remos,
pingando, e o barco bate de leve no Cais Comprido. Snorri enrola a
corda em um poste antigo e sobe na passarela, com seus
machucados transformando-o em um velho.
Às encostas à sua frente são aquelas onde ele nasceu, onde foi
criado do berço à idade adulta, onde criou seus próprios filhos.
Tuttugu e Snorri pescavam nos cais quando garotos, corriam
desembestados entre as cabanas quando os dracares velejavam na
primavera e perseguiam garotas. Uma em particular. Qual era o
nome dela? Um sorriso torce a boca de Snorri. Hedwig, a
namoradinha de Tuttugu quando eles tinham nove anos. Ela havia
escolhido Tutt em vez dele, talvez sua única vitória em todos esses
anos, e Snorri aceitou mal o fato.
Tuttugu está com Snorri ao pé da subida, esperando. Snorri se
vê protelando. Apenas sua casa está ali na encosta. Seu caminho
está livre. E mesmo assim ele está parado ali, em vez de se mover.
O vento o puxa. A grama se dobra no mesmo ritmo. Lá no alto, na
serra, cabras traçam seus caminhos lentos. Lá acima do fiorde uma
gaivota desliza no vento. Mas nada disso tem som, nem um único
barulho. E a casa está ali, à espera.
“Vou ficar olhando o lago,” diz Tuttugu.
A coragem vem de várias formas. Algumas são mais difíceis
para um homem do que para outro. Snorri busca bem fundo a
coragem necessária para fazer essa coisa que o prendeu por tanto
tempo, que o levou tão longe e por caminhos tão estranhos. Ele põe
um pé na frente do outro, repete, e anda pelo caminho batido que
trilhou tantas vezes antes.
À porta de sua casa, Snorri precisa buscar novamente. Imagens
da noite que Sven Quebra-Remo trouxe os mortos a Oito Cais
encheram sua visão. O som dos gritos deles o ensurdece, aqueles
gritos enquanto ele estava sem ação ao lado da cabana, enterrado
pela neve que caiu do telhado.
Cego, ele põe a mão na porta, mexe no trinco e empurra.
A lareira está fria, a cama embaixo das peles de cobrir e as
peles sob sombras, o canto da cozinha arrumado, a escada do
sótão no lugar apropriado. Eles estão de pé, os três, de costas para
ele. Freja entre as crianças, com uma mão no ombro de Egil e a
outra na cabeça de Emy. Todos os três em silêncio, imóveis, de
cabeça baixa.
Snorri tenta falar, mas a emoção aperta sua garganta com
muita força e ele não consegue formar palavras. O ar vem até ele
em respirações curtas e ofegantes, do tipo que um homem talvez
tenha quando uma lança o atravessa e ele procura dominar a dor.
Ele sente seu rosto se contorcer em uma careta, com as bochechas
se levantando como se pudessem de alguma forma conter as
lágrimas. Na entrada de sua casa, Snorri ver Snagason cai de
joelhos, pressionado ali por um peso maior do que a neve que o
segurou, com a força roubada de maneira mais eficaz que por
qualquer dardo envenenado. Tomado por um choro soluçado, ele
tenta dizer seus nomes, mas nenhum som sai de seus lábios.
Freja está de pé, os cabelos dourados descendo em ondas
pelas costas, a mulher que o salvou, que foi sua vida. Egil, o terror
de cabelos de fogo, atrevido, traquinas, um menino que adorava o
pai e acreditava que Snorri lutaria com trolls para mantê-lo a salvo.
E a doce Einmyria, morena como o pai, linda como a mãe, perspicaz
e inteligente, confiante e honesta, sábia demais para sua idade, um
tempo curto demais brincando perto do Uulisk.
“Apenas as tristezas deles estão aqui.” Tuttugu chega ao lado
de seu amigo, estendendo o braço e pondo a mão em seu ombro.
“Não precisavam mais delas. Eles não vão se virar. As tristezas
deles não podem ver você, porque você não faz parte delas.
Quando você for embora deste lugar, eles desaparecerão. Mas
enquanto estiver aqui, Freja e as crianças podem ouvi-lo. O que
disser aqui chegará até eles.”
Snorri enxuga o rosto. “Onde eles estão?”
Tuttugu suspira. “Uma völva me contou. Uma que você
conheceu. Ekatri. Ela veio aqui.”
“Ela está morta?”
“Não sei. Sim. Talvez. Não faz diferença. O que ela me disse é
que é importante, e é complicado, então não me interrompa, senão
vou esquecer algumas partes e falar errado.
“A magia que vemos no mundo – os necromantes, magos como
Kelem, tudo isso... vem da Roda. É o que os Construtores fizeram
conosco, com eles próprios. Isso tornou cada um de nós capaz de
fazer magia apenas concentrando nossa vontade. A Roda permite
que as vontades se tornem reais. Alguns de nós são melhores nisso
que outros, e, sem treinamento, nenhum de nós parece ser muito
bom.
“O negócio é que, mesmo que a maioria de nós não seja boa
em controlar a magia que a Roda nos deu, juntos podemos mover
montanhas. Quando alguém conta uma história, e essa história se
espalha e cresce, e as pessoas acreditam nela e desejam aquilo... a
Roda gira e torna isso real.
“Tudo isso.” Tuttugu abre o braço para o fiorde. “Tudo está aqui
porque nos disseram que estava aqui, nós queríamos que estivesse
aqui. Não estou falando só deste lugar. Estou falando de Hel inteiro.
Estou falando das almas, dos rios, de cada pedra e rocha, cada
demônio, a própria Hel, tudo isso. Não é real – é o que a Roda nos
deu porque as histórias que contamos a nós mesmos nos prendem
com tanta força que acreditamos nelas, as desejamos e agora nós
as temos.”
Snorri respira fundo, com a cabeça girando em grandes
círculos, tão lentos quanto o redemoinho acima da casa. “Onde está
minha família, Tutt?”
Tuttugu aperta o ombro dele. “Antes da Roda, existia uma
magia mais antiga, muito mais profunda, menos chamativa, mais
impressionante. Ainda existe. Ninguém a compreende. Mas
sentimos que ela está aí. Todo mundo tem suas próprias ideias a
respeito, sua própria história para contar. Nossos ancestrais
contavam uma história sobre Asgard e os deuses. Talvez seja
verdade. Mas isso aqui.” Ele acena novamente. “Não é. Isso é o
sonho das pessoas. Feito para nós.”
“Freja e as crianças estão aguardando ao lado de um portão
que não irá se abrir até a Roda de Osheim ser quebrada. Atrás do
portão está aquilo que sempre esperou por nós quando morremos.
O verdadeiro fim da viagem.
“Você já viu esse lugar. Você não teve a impressão de estar
errado? Será que é realmente isso que está à nossa espera por
toda a eternidade?” O viking gordo se curva. “Não sou nenhum
sábio, Snorri. Mal consigo pronunciar ‘filosofia’, muito menos
entendê-la. Mas é neste lugar que quer seus filhos até o fim dos
tempos? Mesmo se Hel mandá-los para a montanha sagrada...
Helgafell é um lugar que você pode visitar, igual a este aqui. Não
quer algo para eles que esteja além da sua imaginação, em vez de
uma cópia dela? É isso que Freja quer...”
“Quem...” Snorri pigarreia, com as palavras roucas. “Quem os
levou até esse portão?”
Tuttugu suspira novamente. “Ekatri. Ela disse que sabia que
você viria aqui e que, se encontrasse Freja e a trouxesse junto com
as crianças, seria uma coisa terrível para todos vocês, pior que a
morte. Não no começo, mas lentamente, aos poucos, vocês
começariam a se odiar, e no fim esse ódio consumiria todos vocês
por completo.
“E também você poderia quebrar o mundo ao fazer isso.”
Snorri abaixa a cabeça. Uma dor vazia o preenche, e perto dela
o incômodo dos cortes e da carne rasgada não é nada.
“Fale com eles, Snorri. Eles sabem que você está aqui.
Esperaram por você e irão ouvi-lo. Vá em frente,” diz Tuttugu, com a
voz suave. “Eles ficaram porque sabiam que você viria. Não porque
precisavam que viesse.” Ele se vira para sair, de machado em
punho.
Snorri olha da entrada para a descida até o lago. Três
guerreiros altos estão saindo de um barco, todos eles pretos do lado
esquerdo e brancos do direito.
“Fique, converse,” insta Tuttugu. “Eu lido com eles.”
Snorri se mexe para ficar ao lado de Tuttugu, pegando seu
próprio machado.
Tuttugu balança a cabeça e fecha seu visor. “Você não veio
aqui para isso.” Ele se vira. “Nenhum de nós consegue contar o
número de batalhas em que você já me salvou. Agora é a minha
vez. Vá.”
Snorri olha mais uma vez para seu amigo e faz que sim.
“Nos encontraremos novamente em Valhalla.” Tuttugu sorri.
“Não vou enfrentar o Ragnarok sem você do meu lado.”
“Obrigado.” Snorri inclina a cabeça, com os olhos cheios mais
uma vez.
Tuttugu aperta o ombro de Snorri uma última vez e sai da casa.

Conforme o silêncio longo prosseguia, comecei a enxergar o túnel,


com a luz do oricalco de Kara lançando nossas sombras na curva
da parede, sem som, nossos passos abafados pela poeira de mil
anos.
“Você falou com eles?” Minha voz saiu áspera e ecoou à frente,
seguindo o arco da Roda e desaparecendo na escuridão.
“Falei,” disse Snorri. “E isso me deu paz.” O viking andou cem
metros antes de voltar a falar e, enquanto ficou quieto, comecei a
ouvir sons distantes da perseguição atrás de nós.
Snorri pigarreou. “Quando saí da casa, Tuttugu estava à minha
espera. Ele disse que os protegeria enquanto pudesse. Eu disse a
ele que pararia as engrenagens da Roda e libertaria Freja e meus
filhos de Hel. Ou morreria tentando.”
“Para onde eles irão?” Eu não tinha entendido essa parte muito
bem, nem achava que Tuttugu era capaz de fazer um discurso
desses. Mas eu sempre subestimara aquele homem.
“Para aquilo que sempre nos esperou do outro lado da vida,”
disse Snorri. “Eles estarão livres da Roda. Libertados dos sonhos,
das histórias e das mentiras dos homens. Você já viu com seus
próprios olhos, Jal. É lá que deseja que as pessoas que você ama
passem a eternidade?”
Minha mãe estava seguramente no paraíso, mas por outro lado
meu pai, cardeal ou não, estava definitivamente no Inferno se as
regras que ocasionalmente pregava tivessem alguma verdade. O
mais importante, porém, é que lá não era onde eu gostaria de
passar a eternidade.
“O que é isso?” Hennan apontou para uma placa pregada à
parede, tão coberta de sujeira que quase havíamos passado direto.
“Não temos tempo!” Olhei para a escuridão lá atrás, com os
ouvidos aguçados procurando aqueles sons novamente. A qualquer
momento João Cortador podia aparecer correndo.
“Internacional...” Kara já estava limpando a poeira da placa com
a manga da roupa. “Kollaboração...”
“Parece ininteligível para mim, vamos!” As letras eram
estranhas, porém vagamente familiares.
“É uma versão antiga do idioma do Império, bastante
corrompida.” Ela limpou mais a poeira. A placa parecia ser de metal
esmaltado, e em vários lugares a corrosão havia partido a superfície
embaixo da sujeira. “Não consigo ler o resto. As primeiras letras são
maiores, no entanto. I.K.O.L. A última palavra talvez seja
‘Laboratório’.”
“O que é laboratório?” perguntou Hennan, olhando para mim,
por algum motivo.
“É uma coisa que te faz perder tempo enquanto monstros saem
da escuridão para te matar,” falei.
“Tem uma imagem aqui também.” Kara limpou com a manga
imunda. “Não pode ser...”
Apesar de meus medos, fui mais para perto dela. Embaixo do
grande título, que tomava mais de um metro do alto da placa, havia
três figuras, lado a lado, retratos de pessoas pintados com detalhes
primorosos. Um homem meio careca e grisalho com lentes de vidro
sobre os olhos; um homem sério de meia-idade de cabelos pretos,
com o rosto dividido por um nariz adunco; e um jovem de cabelos
castanhos e desgrenhados, feições estreitas e olhos grandes e
escuros.
“Professor Lawrence O’Kee,” li, confuso com as letras
retorcidas. “Dr. Dex... não, Fexler Brews e Dr. Elias Raiz-Mestra!”
“Raiz-Mestra era responsável pela Roda?” perguntou Snorri,
aproximando-se de nós enquanto Hennan se enfiou entre Kara e
mim para ver mais de perto.
“Importante o bastante para estar nesta placa,” disse Kara.
“Estou supondo que o responsável seja este aqui, porém.” Ela pôs o
dedo no mais velho dos três, o professor.
O barulho de corrida deu fim às perguntas, os pés batendo no
túnel empoeirado, aproximando-se rapidamente de nós. Comecei a
sair sem os outros, disparando para a escuridão, e dei cerca de
vinte passos até bater em alguma coisa muito sólida. Vi um leve
contorno só a tempo de levantar os braços. Mesmo assim, quando
dei por mim eu estava sendo levantado do chão por Snorri.
“Cadê ele?” Virei a cabeça para um lado e para o outro,
caçando João Cortador na escuridão.
“Os passos sumiram quando você bateu na grade.” Kara surgiu
atrás de mim com a luz.
“Grade?” Agora eu vi, barras reluzentes de aço prata, cada uma
da grossura do meu braço.
O som dos pés começou novamente atrás de nós, talvez
cinquenta metros atrás. Empurrei Snorri para longe e procurei a
chave. Ela escapou de meus dedos, traiçoeira como gelo, mas a
correia a prendeu e eu a peguei novamente. “Abra!” Encostei-a na
barra mais próxima e todas elas se deslizaram para seus buracos, a
metade superior para o teto e a inferior para o chão.
Pulei antes que elas afundassem totalmente e me virei
abruptamente, com os outros me acompanhando. As sombras
mostraram João Cortador vindo correndo à toda. “Feche!” Bati a
chave no círculo reluzente de uma barra, agora no nível do chão.
Fiquei parado, paralisado pela visão daquele monstro arregalado
correndo na minha direção. Snorri me puxou para trás, mas não
antes de eu ver João Cortador saltar pela fenda que se fechava... e
errar. Ele bateu com tanta força que eu juro que as barras chegaram
a reverberar.
“Vamos.” Snorri me puxou para frente.
“As barras irão segurá-lo,” falei. Eu quase acreditei.
Cinquenta metros depois, o túnel entrava em uma câmara do
tamanho da nova catedral de Remes. O tubo preto que passava
pelo centro do túnel continuava no meio do espaço aberto e
desaparecia na boca de um túnel do lado oposto. Seu caminho o
levava ao núcleo de uma enorme máquina no chão da câmara,
quinze metros abaixo de nós, e que se estendia mais quinze metros
acima de onde o tubo preto atravessava.
Luzes embutidas no teto, fortes demais para olhar, iluminavam
a câmara de cima a baixo como se fosse um dia de verão. O ar
cheirava a relâmpago e pulsava com os batimentos de enormes
motores.
Estávamos à beira de onde o túnel se abria e caía para o andar
lá embaixo. Se em algum momento houve algum parapeito ou
escadas, eles não tinham sido feitos com material tão durável
quanto as barras lá no meio do caminho ou a máquina titânica
diante de nós, e talvez agora fossem apenas as manchas
amarronzadas nas paredes e no chão.
“Tem alguém lá embaixo,” apontou Hennan.
Na base do enorme bloco de metal, havia uma alcova embutida
no corpo da máquina, uma alcova forrada com placas de vidro e
iluminada com símbolos e rabiscos. No meio dela, do nosso ângulo
apenas visível dos ombros para baixo, estava um homem de túnica
ou algum tipo de casaco branco, de costas para nós.
“Ele não está se mexendo,” disse Kara.
Ficamos olhando por um minuto inteiro, ou pelo menos eles
ficaram: eu ficava olhando para trás, no caso de João Cortador nos
alcançar e nos empurrar lá embaixo.
“Uma estátua?” supôs Hennan, chegando à beira da queda.
“Ou congelado no tempo, como Raiz-Mestra naquele cofre dos
Construtores.” Snorri puxou Hennan para trás.
Bem longe atrás de nós, um barulho abafado começou a soar.
“Precisamos descer lá e descobrir,” disse.
“Como?” Kara aproximou-se da borda com menos audácia que
Hennan, de quatro.
“Voando?” Bati os braços. “Afinal, agora somos magos do mal!”
Eu desejei sair do chão, levantando os ombros e ficando na ponta
dos pés. Nada aconteceu, além de eu ter sido forçado a dar um
passo para frente para não cair, e fiquei muito feliz de não ter
tentado mais perto da beira. “Por que não está funcionando?”
“As máquinas dos Construtores devem fazer contrafeitiços para
se protegerem. De que outra maneira ainda poderia estar
funcionando após tantos anos?” Kara inclinou a cabeça e o peito
para fora da borda. Snorri foi mais rápido que eu na tarefa de
segurar as pernas dela. “Há degraus presos na pedra da parede,
iguais aos do túnel que descemos.”
Ela se afastou, sacudiu as pernas para se soltar e depois girou
por cima da beirada, com os pés procurando os apoios. Com a forte
suspeita que os barulhos metálicos eram as barras do túnel
cedendo a João Cortador, deslizei por cima da borda logo atrás
dela.
Mais ou menos um minuto depois, nós quatro estávamos no
chão da câmara nos sentindo formigas, tanto em tamanho quanto
em significância. Snorri foi na frente até a alcova na base da
máquina. O mecanismo alto de aço prata, através do qual passava o
tubo preto da Roda, ocupava a maior parte da câmara, mas havia
uns bons vinte metros entre a parede da câmara e o revestimento
externo na máquina. A coisa era diferente de todas as engrenagens
que já havia visto. Não havia rodas nem correias, nenhuma peça
móvel, mas a estrutura parecia ser feita de várias seções e vários
tubos serpenteados sobre a superfície, encontrando-se e dividindo-
se em desenhos complexos. O edifício inteiro zumbia de energia –
não um zumbido confortante, mas um som indelicado que trazia
consigo harmonias atonais perturbadoras, e que não podiam ter
saído de nenhuma mente humana.
“É aquele homem da placa.” Hennan caminhou ao lado de
Snorri, com uma grande faca que o viking devia ter lhe dado a
postos em sua mão.
“Professor O’Kee,” disse Kara.
Ele estava parado, congelado como Raiz-Mestra tinha estado,
analisando um dos painéis de vidro e o desenho de luzes que
brilhava nele. Também na alcova, de certa maneira surpreendente,
havia uma pilha bagunçada de lençóis sujos, livros espalhados,
restos de comida em um prato e uma poltrona manchada. Logo à
frente dele, talvez derrubado pela mão apoiada na mesa
semicircular que ocupava a extensão da alcova, havia um pequeno
objeto, um cilindro fino, mais estreito e um pouco mais longo que
meu dedo, que fora capturado logo depois de cair da superfície
plana. Ele pairava no meio da queda, a cerca de noventa
centímetros do chão.
Saquei minha espada e fui à frente para cutucá-la na direção do
velho. Bati na parede invisível bem antes de onde eu esperava que
estivesse, quase esmagando meu rosto nela pouco depois de
começar a levantar minha espada.
“É grande!” falei, para disfarçar meu constrangimento.
“Raiz-Mestra chamava de estase,” disse Kara. “Um campo de
estase.”
Snorri pôs a mão no limiar liso entre o tempo e o não-tempo.
“Use a chave.”
“Ele não está congelado,” disse Hennan.
“Está, sim.” Eu me apalpei procurando a chave sempre arredia.
“Aquele... troço... caindo da mesa está mais baixo agora.”
Eu olhei. O cilindro realmente parecia um pouco mais próximo
do chão, mas podia muito bem ser ilusão de ótica. “Bobagem.”
“Ele está certo.”
Demorei um tempo para perceber que não reconhecia a voz
que endossava a opinião de Hennan. Virei e vi que Snorri já estava
com o machado desconfortavelmente próximo do pescoço do
recém-chegado. “Quem é você?” rosnou o viking.
“Não está me reconhecendo?” O homem estava usando o
mesmo casaco branco comprido e ajustado que O’Kee usava, de
calça preta e sapatos pretos e brilhantes por baixo. Estava na casa
dos vinte anos, talvez um pouco mais velho que eu, os cabelos
escuros em desalinho, com tufos para cima como se ele tivesse o
hábito de puxá-los, e mais ralos na parte de cima da cabeça. Seus
olhos arregalados brilhavam de divertimento, certamente mais do
que eu demonstraria com o machado de um bárbaro a apenas
centímetros do meu rosto. Alguma coisa nele realmente parecia
familiar.
“Não,” respondeu Snorri. “Por que o reconheceria?”
Kara olhou para o homem, com o rosto franzido. “Você é um
Construtor mágico.”
“Ah, vamos lá! Estou olhando para o seu rosto.” Ele balançou
os dedos debaixo do queixo e gesticulou a outra mão na direção da
alcova. “Viu?”
O’Kee estava de costas para nós, então não foi nem um pouco
óbvio, mas era de onde vinha a familiaridade. Ele se parecia um
pouco com o homem mais velho, ou pelo menos como eu me
lembrava dele pela imagem. “Você é filho dele? Irmão?”
“Filho. Por maneira de dizer.” Um sorriso largo. “Podem me
chamar de Larry. Em todo caso, o rapaz tem razão. Olhem, a caneta
chegou ao chão.”
Todos nós viramos, exceto Snorri, guerreiro demais para cair
em uma simples pegadinha. O cilindro realmente havia batido no
chão e talvez estivesse em processo de quicar.
“É a lentidão temporal,” disse Larry. “Um ano passado ali é um
século passado aqui fora.”
“Precisamos falar com o professor,” falei.
“Pode perguntar para mim?” Ele sorriu.
“É uma pergunta bem grande,” disse. “Realmente precisamos
falar com o responsável. Vamos desligá-la.”
“O que vocês vão desligar?” perguntou Larry.
“Isto.” Acenei para a máquina, que era tão grande quanto a
torre de um castelo. “Tudo isso.” Gesticulei para as bocas dos túneis
dos dois lados da câmara. “A Roda.”
“O professor pode fazer isso por nós.” A voz de Snorri não
deixava espaço para escolha. “É criação dele.”
Larry deu de ombros. “É a criação de centenas, senão milhares,
das mentes mais brilhantes da época dele, mas sim, ele
supervisionou o projeto. Ele vem trabalhando no desligamento de
tudo pelos últimos mil anos – dez anos no tempo dele – mas sem
sucesso. Há uma quantidade muito grande de processos que
precisam ser primorosamente balanceados para uma conclusão
bem-sucedida da operação. O menor erro nos cálculos pode fazer o
efeito se acelerar... ou pior.
“Mesmo assim, iremos falar com ele.” Snorri pôs a palma da
mão na superfície onde o tempo do professor encontrava o nosso.
“Fiquem à vontade.” Larry abriu as mãos na direção do
professor. “Mas vão precisar da chave. E se não tiverem isso, receio
que terei de acompanhá-los até a saída.”
Olhei para Snorri, com o rosto congelado em uma carranca,
depois novamente para Larry. A maioria das pessoas acha um
viking enorme intimidador. Larry de alguma maneira passava a
impressão de considerar todos nós crianças travessas.
“Eu tenho a chave.” Puxei-a e fui recompensado com uma
pequena hesitação de Larry antes de seu sorriso se alargar.
“Maravilha! Realmente, uma maravilha. Você não faz ideia de
quanto tempo eu estou esperando para vê-la outra vez.”
“Outra vez?” Balancei a cabeça para aquele absurdo e me virei
para o professor. “Abra!” Enfiei a chave na barreira... e não encontrei
nenhuma resistência.
A ‘caneta’ quicou mais uma vez e rolou para baixo da poltrona.
Professor O’Kee estalou a língua. Ele tocou a placa de vidro
que estava olhando – sobre a qual luzes, linhas e números estavam
se movendo em uma confusão clara e colorida – e se virou,
curvando-se para pegar a caneta caída e parando no meio da ação
ao ver três pagãos do norte selvagem e um príncipe de Marcha
Vermelha.
“Ah, graças a Deus!” disse ele. “Larry, ponha a chaleira no
fogo.”
“Estamos aqui para desligar a Roda,” disse Snorri. “A chaleira
vai ajudar com isso?”
“É claro que estão.” O professor nos deu um sorriso jovial e
acenou na direção da minha mão ainda esticada. “Você trouxe
minha chave de volta.”
“Sua chave? Esta é a chave de Loki. Foi feita em Asgard,”
encrencou Snorri.
“Tenho certeza de que sim.” O professor concordou e mancou
até sua poltrona. Ele não parecia bem. “Eu ofereceria que todos se
sentassem, mas receio que só tenha esta cadeira. Preferência dos
mais velhos, e tudo mais.”
Larry, que estava de pé em frente à mesa da alcova agora
voltou com uma xícara de líquido marrom fumegante. Ele a ofereceu
ao professor, que a pegou com a mão trêmula da velhice,
ameaçando derrubar o conteúdo primeiro de um lado, depois do
outro. Levou-a até os lábios sem incidentes e deu um gole
barulhento.
“Isso é chá!” disse. Os outros olharam para mim.
“Muito bem, garoto.” O professou deu mais um gole e fez um
‘ah’ de satisfação.
Fiz um curto aceno com a cabeça, aceitando o elogio. Minha
mãe trouxe as folhas da planta de chá dos Indus, secas e
prensadas, e costumava tomar uma infusão delas em água quente.
O velho olhou para Snorri. “Não tem chaleira, só uma máquina
de água quente e saquinhos de chá muito velhos. É uma expressão,
a linguagem se apega às coisas muito depois de já termos
esquecido o que elas eram.”
“Você diz que a chave é sua,” desafiou Kara.
“Uma maneira de dizer. Várias maneiras de dizer, na verdade.”
“Você é Loki?” perguntei, permitindo uma leve insinuação de
escárnio na pergunta.
O professor me lançou um olhar que tinha certa dureza e,
soprando seu chá, bebeu profundamente. “Acho que devemos
prosseguir logo. Não posso passar muito tempo fora da lentidão
temporal, senão os ratos vão me pegar.”
“Ratos?” Olhei em volta.
“Sim. Não os suporto.” Ele apoiou a xícara. “É o que a parte de
minha mente que quer me matar chama para fazer o serviço.”
“Mas não estamos protegidos aqui? Não podemos fazer a
magia funcionar como podíamos na superfície...” Olhei para a boca
do túnel lá no alto da parede, esperando ver João Cortador parado
ali com seu alicate a postos.
“Há um campo amortecedor, sim, mas os, hum, lamentáveis
efeitos colaterais do experimento ainda podem se manifestar, só
demoram um pouco mais. Dentro da bolha de lentidão temporal
estou completamente a salvo, mas depois de muito tempo na
câmara aqui fora os ratos começam a rastejar.”
“Larry estava aqui fora,” ressaltei.
“Sim.” O professor olhou para Larry. A semelhança familiar era
bastante impressionante agora que o jovem estava ao lado da
cadeira do professor. “Bem, Larry... Larry é...”
“Um homem mecânico maravilhoso,” disse Larry, e executou
uma mesura pontual.
O professor deu de ombros. “Construí Larry para transportar
meu eco de dados. Ele é, como falou, um autômato, que
armazena... bem, eu, ou pelo menos a cópia de mim que as
máquinas salvam. Temos uma brincadeirinha: eu sou o pai...”
“Eu sou o filho,” disse Larry.
“E Loki é o Espírito Santo,” terminou o professor.
“Não entendi,” disse Kara. Nenhum de nós entendeu, claro,
mas a völva dava mais valor ao conhecimento do que ao orgulho.
“Você conheceu Aslaug, sim?” O professor esforçou-se para
sair de sua cadeira, caindo de volta uma vez e dispensando a ajuda
de Larry na segunda tentativa. O autômato – uma espécie de
soldado mecânico, eu supus – lançou um olhar constrangido para
nós. “Muitos contemporâneos meus saíram de seus corpos quando
os ataques nucleares aconteceram, começando e terminando a
guerra em uma questão de poucas horas. Eles conseguiram, com a
ajuda das mudanças que nosso trabalho aqui acarretou na estrutura
das coisas, projetar seus intelectos em várias formas diferentes.
Aslaug era Asha Lauglin, uma física brilhante. Ela se projetou em
estados de energia negativa no campo de matéria escura. As
projeções todas acham que sobreviveram. É claro que não, Asha
Lauglin foi carbonizada em uma explosão nuclear. Ela morreu há mil
e cem anos. Aslaug é uma cópia, assim como Larry aqui, mas que
se tornou corrompida ao longo dos anos, presa no folclore das
pessoas que repovoaram. Remodelada pelas crenças e a vontade
coletiva dos crentes...”
“E Loki?” interrompeu Kara. Eu bem que gostei. Achei que o
professor devia dar palestras, além de suas outras obrigações:
poucas pessoas são tão apaixonadas pelo som da própria voz.
“Loki é a cópia de mim que projetei. Só que eu não morri. Essa
não é uma parte necessária da equação, mas o esforço envolvido e
a dor que ele causa são tamanhos que, sem a ameaça de morte
iminente para incentivá-los, poucas pessoas se submeteriam ao
processo.”
“Loki é você?” perguntei desnecessariamente. Meus lábios só
queriam alguma coisa para dizer.
“Não eu, uma cópia de mim. Eu não o controlo e nós nos...
distanciamos. Mas temos em comum o mesmo núcleo e muitos
objetivos iguais. Seu poder de influenciar os acontecimentos é ao
mesmo tempo aumentado e limitado pela armadilha na qual ele
caiu.”
“Armadilha?” Tornar-se um deus era uma armadilha na qual eu
cairia com gosto.
“O mito de Loki. Ele me precede por muito tempo, por mais
velho que eu possa lhe parecer, rapaz. Receio que meu... vamos
chamá-lo de meu ‘eco espiritual’ possa ter caído nessa armadilha
específica por causa de algo tão pueril quanto um trocadilho.”
“Não estou entendendo.”
“Meus contemporâneos me chamavam de Loki na escola.
Suponho que talvez eu fosse um gozador naquela época, mas na
realidade era apenas como meu nome aparecia nos registros.
Lawrence O’Kee. Percebe? L. O’Kee. Simples assim.”
“Então sua cópia espiritual acha que é Loki...” disse Kara.
“Sim.”
“Mas não é.”
“Não. Mas por estar aprisionado nas histórias que muitas
pessoas acreditam, ele tem acesso ao poder da crença delas, que
por sua vez é corroborado pelo que vocês chamam de Roda. As
mudanças que nossas máquinas aqui fizeram à realidade permitem
que a crença de todas essas pessoas dê a Loki poder de verdade.
Assim como imediatamente acima de nós essas mudanças
permitem a cada um de vocês provocar fogo, voar, ou realizar o que
quer que desejem realizar. Antes que suas imaginações criem
monstros para matá-los, claro.”
“E quanto à chave?” perguntei, erguendo-a.
O professor bateu o dedo nela. Por um instante ela se tornou
uma pequena chave prateada de desenho peculiar e de no máximo
dois centímetros e meio de comprimento. Eu quase a deixei cair.
Quando parei de me atrapalhar, a chave voltou a sua aparência
usual preta e vítrea, estendendo-se da palma de minha mão até a
ponta do meu dedo indicador.
“É a chave de autorização para o painel de controle manual do
complexo de processadores centrais. Eu a entreguei à minha
projeção – a Loki – como uma espécie de plano b, caso minhas
tentativas de finalizar o projeto IKOL não dessem certo no tempo
disponível. Para ser sincero, isso começou mais como uma
brincadeira do que uma tentativa série de resolver o problema.
Àquela altura eu achava que levaria seis meses para desativar o
anel acelerador. Não imaginava que passaria os próximos dez anos
da minha vida trabalhando nisso... e que ficaria sem tempo e a
maldita situação ficasse crítica.” O velho passou a mão pelos
cabelos brancos e ralos. O cansaço aparecia nas rugas nos cantos
dos olhos dele. “Agora a chave parece ser nossa única esperança.
Mandei a chave com Loki para que ela ganhasse crença. A ideia era
tramá-la nas histórias, torná-la parte da mitologia. Quanto mais ela
se enraizasse na consciência das pessoas, mais força ela poderia
tirar da vontade coletiva, da imaginação adormecida deles. Então,
como pode ver, a chave se tornou um símbolo que indiretamente se
alimenta do próprio poder da Roda. Se ela funcionar, a Roda irá
efetivamente se desligar.”
“Dê a chave a ele, Jal.” Snorri se aproximou, olhando para nós
dois. “O professor irá saber o que fazer com ela para desligar a
máquina.”
Minha mão se fechou por vontade própria, os dedos apertados
em volta da chave fria. Abrir mão da chave a essa altura parecia
como ter minhas escolhas retiradas de mim. Desligar os motores da
Roda agora supostamente daria à família de Snorri a chance de
passar para o desconhecido que aguardava as pessoas mortas no
tempo dos Construtores. Snorri queria isso... mas uma outra vida
nesta Montanha Sagrada não parecia tão ruim. E desligar o motor
não faria a Roda parar de girar, apenas a atrasaria. Sem os motores
de Osheim, a única coisa a girar a Roda e continuar a mudar a
maneira como a realidade funciona seríamos nós: cada vez que um
mago usava magia, isso abalava as estruturas do mundo. As
rachaduras se espalhariam, a Roda giraria, mais lentamente do que
antes, mas giraria mesmo assim, levando-nos todos na direção do
fim. O mundo ainda se partiria, só que em alguns anos, em vez de
algumas semanas. Se girasse a chave para o outro lado, essas
últimas semanas seriam comprimidas em alguns segundos e, de
acordo com a Dama Azul, eu enfrentaria o fim de todas as coisas no
lugar mais seguro de todos, garantiria uma passagem segura para o
novo mundo, destinado a reinar não como rei ou imperador, mas
como um novo deus. A Dama Azul podia ter mentido: eu não
confiava naquela vaca nem um pouco, mas ela havia feito deste
lugar seu último esconderijo por um motivo.
“Jal?” Snorri bateu no meu ombro.
“Desculpe, viajei aqui.” Abri os dedos, olhando para a chave.
“Bem...”
“O acesso ao complexo de processadores centrais é bastante
esquisito.” O professor pressionou as duas mãos ao peito como se
quisesse impedir a possibilidade de qualquer um colocar a chave na
sua mão. Talvez, quando ele a tocou, ela tivesse lhe dado uma
mordida. “O trabalho de verdade sempre foi feito remotamente na
sala de controle.” Ele acenou para algum lugar acima de nós. “Mas,
para o controle superexato que precisamos, é melhor estar lá onde
os processadores principais estão.”
Assenti como se aquilo fizesse qualquer sentido.
“Para chegar à câmara certa é necessário subir sete ou oito
escadas e vários lugares apertados. Se eu fosse um homem mais
jovem... Além do mais, não tenho certeza de que consigo durar
muito tempo fora da minha lentidão temporal para alcançá-la.” Seu
olhar se fixou em um ponto acima do meu ombro. “Na verdade,
receio que já tenha começado.”
Eu me virei, acompanhando o olhar do professor, e me peguei
olhando para um grande rato preto empoleirado em um ressalto do
lado do mecanismo, alguns metros acima de nós. Ele ficou nos
observando, imóvel, com os olhos brilhantes.
Uma pancada alta atrás de mim tirou minha atenção do rato.
“Merda.”
João Cortador se desenrolou da bola em que havia sido
compactado pela queda de quinze metros da beira do túnel. Recuei
para a alcova, puxando Hennan comigo pelo ombro. O professor se
mexeu para vir comigo. Larry deu alguns passos para frente e ficou
de guarda na frente da alcova. Kara sacou sua faca e deslizou para
um lado, enquanto Snorri deu um passo à frente para interceptar.
João Cortador correu direto para cima de mim com tudo.
O viking aguardou, perfeitamente imóvel, até na última fração
de segundo girar para o lado, formando um arco ascendente com
Hel para golpear o monstro embaixo do queixo.
O grito de triunfo morreu em minha garganta quando, em vez
de bater no chão em duas partes, João Cortador foi simplesmente
levantado pela force do golpe, pois a lâmina do machado não o
pegou. Ele caiu pesadamente, mas se levantou ao mesmo tempo
em que Snorri ergueu Hel acima da cabeça para um segundo
ataque.
“Larry é muito confiável, mas eu me sentiria mais seguro se...”
O professor esticou a mão para um painel próximo e tocou em um
quadrado aceso. “Pronto.”
Não tive tempo de dizer ‘pronto o quê?’. Imediatamente a cena
lá fora se acelerou a um ritmo que pareceria cômico, se o teor dela
não fosse tão perturbador. Com uma velocidade estonteante, João
Cortador defendeu uma rajada de golpes e desferiu um que jogou
Snorri estatelado e mole no chão. Em algum momento no meio
disso tudo, Kara deve ter aparecido por trás para tentar esfaquear
João Cortador. Eu a avistei caída atrás dele quando ele veio em
nossa direção como um borrão. A luta com Larry durou um pouco
mais, com socos voando, sem nenhum dos dois ceder um
centímetro. Por um segundo, que deve ter sido mais de um minuto
do lado de fora, os dois ficaram travados em um teste de força. De
repente, em uma explosão de faíscas, o braço de Larry saiu voando
pela câmara. João Cortador o jogou de revés a uma parede de
metal da máquina e lá estava ele, o torturador, com o rosto
pressionado à parede de nossa bolha de lentidão temporal.
Eu havia segurado Hennan para trás. Agora nem precisava. O
rosto de João Cortador tinha uma feiura que desanimaria qualquer
um.
“Nossa, isso é ruim,” disse o professor. “Muito ruim.”
“Não pode fazer alguma coisa?” gritou Hennan. “Precisamos
ajudá-los!”
Eu sentia a mesma coisa, embora estivesse pensando
principalmente em mim com relação à ajuda. Mas não consegui
falar. O medo tinha levado minha voz embora. E eu não conseguia
parar de olhar.
“Bem,” disse o professor atrás de mim. “Há sempre isso...”
“Uma bengala?” disse Hennan. “Como é que...”
Alguma coisa estalou perto da minha nuca. Eu vi dois pedaços
de bengala partida voando por mim, um de cada lado do meu rosto.
Depois disso, foi só uma queda.
31

“Ai!” Alguma coisa me bateu no rosto. Outra vez. “Cacete!” Levantei


a cabeça e mais um degrau de metal passou a um dedo do meu
nariz. “Onde diabos...” Eu parecia estar jogado em cima das costas
de alguém. “Me põe no chão!”
“Se quiser.” A voz de Snorri, bem perto do meu ouvido. “Mas
provavelmente é melhor esperar até chegarmos no topo. É uma
longa queda daqui e é capaz de você estragar alguma coisa
importante.”
Olhei em volta e imediatamente me arrependi de ter mexido a
cabeça. Quando os lampejos brancos de dor diminuíram, consegui
ver que estávamos em um tubo vertical de metal, fracamente
iluminado por uma faixa brilhante em toda sua extensão. Atrás de
mim, Kara e Hennan estavam subindo, e abaixo deles o tubo descia
talvez mais uns dez metros. Apertei os braços em volta do pescoço
de Snorri, apesar do fato de meus pulsos parecerem já estar
amarrados.
“Aquele velho desgraçado me bateu!”
“Ele falou que era a única maneira de se livrar do homem de um
braço só que você fica evocando. Bem, ele disse que matar você
também funcionaria.”
“Você nem o reconhece, não é?”
“Quem?”
“O homem de um braço só!”
“Deveria?”
“Bem, você é a razão de ele ter um braço só!”
Com um grunhido, Snorri se jogou por cima do alto da escada e
me largou no chão de uma pequena câmara. Eu fiquei gemendo
enquanto Kara e Hennan se uniram a nós. Telas e painéis de
acesso pontuavam as paredes, e o espaço remanescente era cheio
de tubos. Três túneis estreitos saíam dali, um deles verticalmente.
“Onde estamos?” O que eu realmente queria perguntar era
onde estava João Cortador.
“Dentro da máquina,” disse Kara. “O professor nos deu um
mapa do lugar onde podemos usar a chave.” Ela olhou para baixo
do túnel por onde viemos. “Ele falou que a proteção é mais forte
aqui, então seu amigo pode demorar um pouco mais a nos
encontrar.”
“Exceto onde não é,” acrescentou Hennan.
“Como?” Dei uma rápida espiada por cima da beira. Nada.
“A proteção é mais forte na maioria dos lugares. Mas há áreas
desprotegidas também,” disse Kara. “Elas estão marcadas com
placas amarelas.”
Fiquei de pé, usando a parede para me apoiar, e soltei as
amarras das minhas mãos. “Então vamos andar logo com isso.” Fiz
sinal para Kara ir na frente. Ela consultou o papel em sua mão e
saiu pela passagem à esquerda.
Caminhei na retaguarda, esfregando a nuca. Se ter uma
bengala quebrada no crânio não tivesse me deixado com dor de
cabeça, a pulsação da luz fraca e a vibração penetrante do
maquinário oculto teria. As condições apertadas por si só já eram
claustrofóbicas, mas aquilo conseguia ser muito pior que isso. O ar
tinha um fedor enjoativo e as paredes eram apertadas, como se a
qualquer momento o motor dos Construtores pudesse flexionar os
músculos e fechar os buracos já apertados ali dentro.
Lá na frente, a passagem se abria em uma câmara que só tinha
espaço suficiente para nós quatro ficarmos de pé juntos, e depois
seguia em frente. Enquanto eu me espremia para entrar, Kara pôs
os dedos em um painel de espelho de formato irregular embutido na
parede. O reflexo dele parecia embaçado nas bordas e vários
reflexos menores de Kara apareciam onde seus dedos faziam
contato. De repente, o rosto dela despareceu do espelho e foi
substituído pelo do professor.
“Ah, estou vendo que o jovem Jalan se recuperou! Deixem que
ele use a chave. Uma imaginação tão hiperativa quanto a dele tem...
desvantagens, como vimos, mas deve permitir um vínculo forte com
a chave e aumentar os efeitos da...”
“O que é esse negócio aqui?” interrompi.
“Que negócio?”
“Isto!” Passei por Kara e meti o dedo na imagem do professor.
“Era um espelho.”
“Bem.” O professor se inflou como um tutor prestes a distribuir
sabedoria. “Levaria muito tempo para listar todas as suas funções,
mas ele tem uma variedade de usos importantes na sala principal de
análise, talvez o menor deles seja a comunicação. Você verá muitos
painéis desses ao percorrer a rota até o processador central, mas
na verdade todos eles são o mesmo objeto. É muito difícil de
explicar... nós o chamamos de espelho fractal...”
“Quebre-o, Snorri! Rápido!”
Convencido pelo meu tom de voz, para variar Snorri fez o que
lhe disseram, e com um golpe violento meteu os chifres de seu
machado no rosto do professor.
“Não pode quebrá-lo!” O professor nos deu um sorriso
indulgente quando o machado deslizou sobre a imagem dele sem
deixar marca. “E por que faria isso?”
“A Dama Azul vai usar o espelho para vir para cá... se é que
não já está aqui. Ela pode ver através dos espelhos, e se nos vir,
bem, teremos um problema: ela não quer que a Roda seja parada.”
“Se quebrar o espelho, o confinamento magnético se tornará
instável. Todos os tipos de processos podem ir além de seus limites
designados...”
“Estamos aqui para desligar a máquina. Não importa se a
estragarmos um pouco antes.” A Dama Azul podia olhar na nossa
direção a qualquer momento. O espelho era sua última rota de fuga
da torre em Blujen: ela dificilmente a ignoraria. O pânico que vinha
borbulhando em mim até a altura do peito, desde que recuperei os
sentidos, agora começou a subir até meus olhos.
“Bem...” Professor O’Kee premiu os lábios. “Vocês teriam que
descer até o espelho original no Corredor E. Está marcado no mapa.
Mas se quebrarem a imagem primordial, talvez lhes restem apenas
alguns minutos.”
“Antes de quê?”
O professor apertou os dedos em um único punho. “Eu me
apressaria.”
“Kara?” Virei para a völva, suando frio.
Ela levantou a cabeça do mapa. “Sigam-me.”
Fiquei bem perto dela, sentindo a urgência atrás de mim. Três
corredores apertados, uma curva à esquerda, duas à direita, uma
escada subindo e uma descendo. Passamos por facetas do espelho
em três pontos, e em cada um o rosto nervoso do professor nos
observou passar. Toda vez, meu coração bateu o ritmo do pânico
em meu peito. Cada faceta era uma janela através da qual uma
série de horrores podia estar observando.
“Estamos perto,” disse Kara, agachando-se para passar por
baixo de mais uma faceta do espelho.
“Preciso ver,” falei.
“O quê?” A boca de Kara tornou-se uma linha fina.
Ser observado sem saber se está sendo analisado ou não é ser
uma presa. O predador persegue escondido. “Preciso ver,” repeti,
pegando a chave. Fui até o espelho. Por um momento, ele mostrou
imagens espalhadas do príncipe Jalan cintilando em volta do reflexo
principal, cada uma tão pálida de medo quanto a outra, diminuindo
até ficarem insignificantes. O rosto do professor reapareceu,
franzindo. Antes que ele pudesse falar, encostei a chave no espelho.
“Mostre-me.”
A cena mudou, da alcova na base da máquina e o chão de
pedra exposta atrás para uma sala luxuosa cheia de tapetes, forrada
com aparadores elegantes, e em um deles uma caixa marchetada
vomitando colares de pérolas e correntes de ouro sobre o topo
polido. E, em todas as paredes, espelhos, dezenas deles, de todos
os tamanhos, de todos os formatos, com molduras de prata, de ferro
retorcido, madeiras rebuscadamente esculpidas, douradas e
reluzentes, de pinho branqueado, lascados pelos maus tratos...
quase todos estilhaçados, os cacos pendurados como dentes
quebrados, espalhados pelo chão.
“Essa é a torre dela. Agora também podemos vê-la, se vier nos
espiar.” Eu me senti um pouco melhor. Não muito.
Kara segurou meu braço e me puxou para longe do espelho.
“Venha.”
Mais um corredor e uma rápida descida nos levaram a uma
porta trancada de aço prata. Bati nela com a chave. Nada
aconteceu.
“O que há de errado?” Snorri desceu o último degrau,
amontoando-se atrás de nós.
“Não sei.” Procurei uma fechadura. Normalmente a chave
criava a sua própria.
“Tente de novo,” chiou Hennan atrás de mim.
“Jura?”
“Sim.” É um desperdício usar sarcasmo com crianças.
Pressionei novamente a chave à porta, apertada de lado entre a
palma da minha mão e o aço. “Abra!”
O portal se estremeceu e um barulho como se fosse um gigante
rangendo os dentes começou abaixo de nós, vibrando através das
solas das minhas botas. “Abre, cacete! Em nome de Loki!”
Senti uma dor aguda entre os olhos e, em algum lugar naquela
parede grossa, alguma coisa inquebrável se quebrou. A porta se
arrastou para trás em um recesso na parede.
“As fechaduras dos Construtores foram feitas para durar,” disse
Kara, empurrando-me para frente.
A sala do outro lado se acendeu quando passei pela porta. Um
grande espelho dominava a parede oposta. Digo que era um
espelho, mas ele só mostrava a sala da Dama Azul, e nada naquele
lugar se mexia, então podia-se pensar que era uma pintura. Tinha
talvez três metros de altura e era da largura dos meus braços
abertos. As bordas se partiam em desenhos estranhos, quebrando-
se em filetes de espelhos e finalmente em uma estranha poeira ou
fumaça cintilante.
Dei mais um passo antes de parar, girando os braços para
tentar não dar outro, o que não foi fácil com os outros se
aglomerando atrás de mim. “Parem!”
“Por quê?” perguntou Kara atrás de mim.
Abri o braço como resposta, com os dedos indicadores
estendidos para apontar para a faixa hachurada pintada de amarelo
no chão, subindo pelas duas paredes e no teto. “Não tem proteção.”
“Não pode ser tão ruim.” Snorri agarrou meu ombro e me jogou
para frente.
Em um piscar de olhos, eu me vi cara a cara com João
Cortador, o rosto cortado por aquele sorriso de caveira que era
muito mais aterrorizante que a fúria. Os dedos duros como ferro se
fecharam em meu braço e na clavícula. Snorri me puxou para trás e
eu me libertei com um grito, com a pele rasgada e machucada onde
João Cortador quase tinha me pegado para valer.
Snorri e eu caímos para trás, com o viking batendo na parede e
conseguindo retardar minha descida ao chão. João Cortador se
atirou para frente... e se achatou contra os escudos invisíveis,
espalhando-se e dissipando-se como líquido no vidro.
“Ele sumiu,” disse Snorri, puxando-me para levantar.
“O que diabos estava fazendo?” gritei.
“Testando.”
“Então teste com você mesmo da próxima vez, cacete!”
Endireitei minha camisa, e depois tentei esfregar os arranhões que
os dedos de João Cortador deixaram em mim. Eles doíam. Fazendo
uma careta, levantei a cabeça e vi Snorri seguindo meu conselho,
dando um passo à frente, o cabo do machado segurado contra o
peito como uma barra para se proteger de ataques.
O vulto surgiu quase imediatamente, o chão se abrindo e
engolindo-se a si próprio para revelar uma fissura como a do fundo
da Caverna de Ruinárida em Harrowfjord, aquela que engoliu a
sombra de Kelem de volta ao Inferno.
Dali saiu Einmyria, enlameada e gritando, um som horrível que
me fez querer enfiar uma faca em cada ouvido para parar de ouvir.
Quando a filha de Snorri levantou o rosto esfolado para nós, moscas
surgiram ao seu redor, cuspidas do fosso aos milhares. Vi as mãos
dela, a ponta de cada dedo transformando-se em uma garra preta e
cruel. E depois não vi nada além de moscas zumbindo até Snorri se
atirar de volta por cima da faixa amarela e todo aquele pesadelo se
dissipar como uma fumaça subindo no ar parado.
Snorri, mais uma vez contra a parede, ficou encurvado, com o
rosto escondido atrás dos cabelos escuros. Por um longo minuto
ninguém disse nada. Observei o espelho, aquela calmaria falsa do
santuário de Mora Shival, rezando para que a Dama Azul não
voltasse de onde quer que estivesse em sua torre e nos visse como
nós a víamos.
“Desculpe,” disse Snorri por fim. “Foi errado eu ter empurrado
você para frente. É difícil compreender a profundidade do medo de
outra pessoa.”
“Podíamos jogar alguma coisa para quebrar o espelho...”
sugeriu Hennan.
“Não tenho nenhuma pedra,” falei. “E não gostaria de perder
minha espada. Além do mais, não há nenhuma garantia de que o
espelho irá se quebrar...” Olhei de soslaio para Snorri. “Um machado
é uma boa arma para atirar...”
Snorri fez uma careta e, afastando-se da parede, arrancou a
adaga da bainha em meu quadril e a atirou para o espelho. Ela
bateu exatamente no meio, com força suficiente para enterrá-la até
o cabo em uma pessoa... e quicou para trás, deslizando por cima da
fronteira pintada.
Kara enfiou-se entre nós enquanto eu pegava minha adaga.
“Se eu jogar isso no espelho,” Kara abriu a mão e revelou uma
runa de ferro do tamanho da unha do meu polegar, “e disser brjóta,
que significa ‘quebrar’ no idioma antigo, ele se quebrará.”
Gesticulei para o espelho. “Fique à vontade.”
Kara estreitou os olhos para mim e depois avançou para a
fronteira, com o braço estendido e um dedo esticado para frente. Ela
se moveu tão devagar que às vezes achei que estava imóvel.
Mesmo assim, o efeito se mostrou repentino. A escuridão brotou
onde a ponta de seu dedo raspou no limite da proteção,
espalhando-se como gotas de tinta na água. Em instantes a noite
havia engolido o espaço à frente e um silêncio penetrante nos
envolveu.
Nenhum som. Prendi a respiração. E depois um rangido
baixíssimo. Talvez uma tábua debaixo de um pé.
Kara puxou a mão para trás como se tivesse sido mordida.
“Não posso entrar aí,” sussurrou ela. Eu me arrepiei só de pensar
em uma escuridão que meteria medo em uma bruxa jurada pela
escuridão. O medo a fez parecer mais velha, como se alguma coisa
preciosa tivesse sido sugada dela. Ela respirou fundo enquanto a
escuridão evaporou.
“Eu vou.”
Eu me virei.
“Eu faço.” Uma voz pequena, porém firme. Hennan estendeu a
mão para Kara. “Me dê a runa.”
“Não pode.” Snorri sacudiu a cabeça. “Você viu como é ali
dentro. E não é com o que viu que deve se preocupar, é com o que
está dentro de você que vai sair. O efeito aqui embaixo é muito mais
forte do que era na superfície...”
Hennan ignorou Snorri, olhando fixamente para Kara. “Foi você
que disse a eles que eu deveria vir. Você disse: ‘O que poderia ser
mais valioso do que alguém cuja família resistiu à atração da Roda
por gerações?’.”
“Sim, mas...” Kara hesitou. “Isso é diferente. Você viu...”
“Qualquer um que chegue perto da Roda pode se considerar
um mago do mal,” disse Hennan, interrompendo-a. “Jal fez o chão
se abrir e engolir uma pessoa.” Ele fez a mímica com as mãos. “Mas
a maioria não é um mago do mal por muito tempo. A Roda os mata.”
“Certíssimo!” falei. “E não é uma morte boa, aliás. Você é louco
de querer entrar ali.” Percebi que não queria ver o garoto morrer.
“O avô do meu avô foi Lotar Vale. Ele fez suas magias mais
perto da Roda do que praticamente todo mundo antes ou depois
dele, e fez isso por dez anos, e ainda teve forças para ir embora! É
por isso que minha família não sente a atração. O sangue de Lotar
corre em nossas veias. Os horrores não vêm para cima de nós.”
Seria preciso um mentiroso experiente para detectar a hesitação,
mas pude perceber que ele estava apenas supondo.
“Você não sabe o que está dizendo,” disse Kara.
“Deixe-o tentar,” resmungou Snorri.
“Quê?” Kara pegou o braço do menino, como se ele pudesse se
atirar por cima da fronteira a qualquer momento.
“Ele já tem idade suficiente para saber o que quer. Em dois
anos será um homem. A não ser que fracassemos aqui, mas nesse
caso ninguém vai ser nada daqui a dois anos.” Snorri acenou para o
espelho. “Se não o quebrarmos e a Dama Azul nos vir, vocês acham
que ela vai pegá-lo para ser seu ajudante? Ou vai matá-lo
conosco?”
Kara não disse nada, mas estendeu a mão, com a pastilha de
ferro escura contrastando com a brancura de sua palma. Hennan a
pegou, passou a mão pelos cabelos ruivos desgrenhados, olhou
nervosamente para Snorri e para mim, e em seguida pôs o pé por
cima da fronteira. Deu mais um passo. Completamente dentro da
área desprotegida agora, ele olhou para trás, com os lábios
contorcendo-se em um sorriso.
“Rápido!” Kara acenou para ele prosseguir.
O ar começou a se agitar em volta de Hennan quando se virou
novamente para o espelho, com passos rápidos, as mãos na frente
do corpo como se estivesse atravessando teias de aranha. Formas
quase invisíveis moveram-se ao seu redor como figuras feitas de
vidro, vistas apenas como uma confusão de superfícies refletindo e
distorcendo a luz.
Ao se aproximar do espelho, uma das formas se escureceu e
ganhou cor. Alguma coisa como uma serpente enrolou-se em seu
pulso quando ele o estendeu com a runa.
“Não!” Hennan parecia estar mais com raiva do que com medo.
A cobra, ou o tentáculo, ou o cipó se tornou vitrificado quando ele
olhou para ele, e depois tornou-se insubstancial de novo, e Hennan
pressionou a pastilha contra a superfície do espelho.
“Brjóta.” Por um momento a palavra ficou suspensa no ar,
estremecendo-se através dos horrores semi-invisíveis enquanto a
Roda tentava lhes dar forma. No momento seguinte, o espelho se
rachou com um estrondo que deixou meus ouvidos zumbindo. Uma
teia de rachaduras o atravessou de cima a baixo. Imediatamente
uma buzina soou, estridente, e a luz passou daquele branco
constante a uma pulsação de vermelhos, em tons que iam de
carvão quente até escarlate.
Hennan deu meia-volta, afastando as mãos translúcidas,
passando por ou através de figuras que surgiam por todos os lados.
Ele correu para nós, com cada passo mais lento que o outro, como
se estivesse atravessando um pântano. O ar ficou enevoado à sua
volta, mas vermelho como o sangue, com os avisos luminosos.
“Não pare!” berrei.
Faltava um metro agora. Uma fina linha carmesim se abriu em
sua bochecha quando uma garra vitrificada o cortou. A névoa ficou
um tom mais escuro.
Nós três ficamos parados na fronteira, gritando para ele seguir
em frente.
Ele conseguiu dar mais um passo, movendo-se com uma
lentidão agoniante, até que outro corte se abriu, agora mais
profundo, passando por sua testa e escorrendo sangue.
Nós nos esticamos para pegá-lo, embora eu felizmente tenha
tido o bom-senso de fazer isso uma fração de segundo depois dos
outros dois. Kara foi a mais rápida, atirando-se até os ombros na
escuridão profunda que brotou no instante em que seus dedos
cruzaram o limiar. Escuro ou não, ela pegou o menino e o arrastou
de volta para nós. Eu a peguei quando caiu para trás. Seu braço
não aparentava marcas, mas ela ficou deitada em meu colo,
tremendo como se tivesse mergulhado no mar de Norseheim, sem
conseguir recuperar o fôlego, com os olhos arregalados e fixos.
“Está tudo bem.” Snorri a levantou de cima de mim.
Eu me levantei e puxei Hennan de pé. Com um pano do meu
bolso, enxuguei o sangue de seus olhos. Ficamos parados por um
minuto, esperando nossos corações pararem de tentar saltar de
nossos peitos. Kara se desvencilhou de Snorri e começou a tratar as
feridas de Hennan com uma pasta em um saquinho de couro, e a
garota assustada foi banida mais uma vez à parte da mente onde
Kara a guardava, e novamente conosco estava a völva, toda séria.
“Precisamos ir.” Comecei a recuar pela porta. Vovó disse que a
Irmã Silenciosa saberia quando o espelho se quebrasse. Elas
começariam agora seu ataque final à torre, e eu não estava a fim de
descobrir se a Dama Azul tinha mais algum truque guardado na
manga.
Hennan veio na retaguarda e, ao olhar para trás, vi o ar em
torno de seus ombros enevoar-se brevemente e depois sumir, como
se as proteções que antes se atinham à fronteira pintada pudessem
estar falhando, partidas de maneira tão profunda quanto o espelho.
Depois que os botei em movimento, deixei Kara ir na frente com
o mapa e passei para o meio de nosso pequeno grupo, logo atrás
de Hennan. “Bom trabalho ali, rapaz.” Dei um soquinho em seu
ombro da maneira que tinha visto Snorri fazer para demonstrar
aprovação. “Se eu ainda for marechal quando voltar para
Vermelhão, viu recomendá-lo para ganhar uma medalha.” Disse a
palavra ‘quando’ silenciosamente em minha boca. Ainda não sabia
ao certo o que faria quando a chave estivesse naquela fechadura
final. Eu podia ter impedido a Dama Azul de vir visitar através
daquele espelho fractal, mas suas palavras ainda me atingiam. Eu
podia ser um deus no novo mundo ou queimar com os camponeses
no antigo...
“Olhem!” Chegamos a uma das facetas do espelho fractal e o
encontramos coberto por uma teia de rachaduras, mas Kara estava
apontando para a sala depois dele, e não para o estrago.
“Não estou vendo...” E aí eu vi. A sala toda tinha um leve tremor
e nuvens finas de poeira branca de gesso começaram a cair sobre a
mobília polida. “Venham!” O tempo de todo mundo estava se
esgotando cada vez mais rápido. Agora o tempo da Dama Azul
havia se esgotado, e de alguma maneira eu achava que ela não iria
dar seu último adeus de maneira suave.
32

Kara nos conduziu pelo interior do gigante adormecido, a máquina


que havia desprendido aquela Roda que no passado guiava o barco
do universo em caminho reto pela noite infinita. A máquina que até
agora girava a Roda cada vez mais longe da posição correta,
ameaçando a qualquer momento nos levar a um precipício, a uma
queda que poderia destruir mundos.
A luz pulsante continuou a piscar por toda a estrutura, a sirene
penetrando cada canto, tornando quase impossível falar.
“Precisamos correr!” gritei as palavras atrás de Kara para poder
ser ouvido. “Não temos muito tempo.” Desde que quebramos o
espelho, eu vinha ouvindo várias partes das grandes engrenagens
ganharem vida, ou melhor, sentindo aquilo na sola das minhas
botas. Por baixo da sirene, os mecanismos resmungavam e
gemiam, em um tom nada saudável.
Kara se afastou da porta à sua frente e estreitou os olhos para
mim, por cima da cabeça de Hennan. “Talvez a pessoa com a chave
que abre tudo deva ir na frente?”
Eu podia entregar a chave, mas isso daria a sensação de
entregar minhas escolhas. Então me espremi entre eles e segurei a
chave contra a porta até as travas ocultas se abrirem e a placa de
metal sair do meu caminho.
Passamos por meia dúzia de facetas do espelho, posicionadas
como se fossem janelas para o interior das criações dos
Construtores, mas cada uma mostrando o sacrário da Dama Azul.
Outras duas vezes vi o recinto se estremecer, e, na segunda vez,
pedaços maiores caíram do teto, junto com várias molduras de
espelho e inúmeros cacos cintilantes dos espelhos quebrados cujos
dentes foram sacudidos.
“Para cima?” Olhei para o túnel estreito, pulsando vermelho.
“Para cima,” assentiu Kara.
“Será que Snorri vai conseguir? Ele é bem gordo.”
Snorri rosnou, com a luz brilhando nos músculos suados pela
temperatura que subia à nossa volta.
Respirei fundo e me arrependi. “Parece que o restante dos
Construtores veio aqui para morrer.”
O espaço apertado do túnel abafou a sirene, mas quando saí
para a pequena câmara no topo ela voltou com força total.
Cambaleei até a faceta espelhada embutida na parede e bati a
chave em uma das telas apagadas embaixo. “Faça isso parar!”
A palavra ‘parar’ ecoou pela sala em silêncio. Kara olhou para
mim ao sair do buraco.
“Muito bem.” Esfregando os ouvidos, ela recuou para ajudar
Hennan a sair.
“Graças aos deuses por isso.” Snorri saiu apertado do túnel,
flexionando os ombros.
“Estamos perto agora. A câmara central é depois da próxima.
Por aqui.” Kara apontou para uma abertura estranha, alta, estreita,
que levava ao que parecia ser um pequeno armário.
O som de uma porta se abrindo com tudo fez todos nós girar
para trás. A Dama Azul estava na entrada da sala atrás do espelho,
com os braços abertos como se estivesse prestes a fazer algum
feitiço pavoroso, os cabelos grisalhos desgrenhados, uma capa
azul-escuro girando ao seu redor. A velhice dela me chocou. Eu
sabia que ela tinha mais de cem anos nas costas, mas nunca a vira
daquele jeito, como algo que poderia estar empilhado no carrinho de
cadáveres do fundo da prisão de devedores: ossos cobertos por
pele velha que se enrugava em volta de cada junta. Pior que a idade
dela era a maneira como se mexia, possuída com uma vitalidade
desnatural, ávida, os olhos febris. Ela correu para a superfície entre
nós, percorrendo a distância em um momento. Seu rosto preencheu
o espelho, guinchando pragas para nós em uma língua que
felizmente eu não entendia.
Dei um passo para trás quando duas mãos enrugadas cobriram
a faceta espelhada e a coisa toda ficou escura. “O que ela está
fazendo?” Mora Shival podia parecer uma sombra de si mesma –
não uma sombra, era mais como se tivesse se desgastado demais
ao longo do dia – mas ainda me metia um puta medo. “O que ela
está fazendo?”
“Não sei,” disse Kara. “Mas devemos continuar seguindo.”
“Para onde?” perguntei.
Kara apontou para a abertura que havia indicado anteriormente.
“Mas é só um armário ou coisa parecida...”
“O mapa diz que é por aqui.” Ela olhou para o papel em sua
mão, franzindo a testa.
“Ok.” Passei por Snorri e enfiei a cabeça na abertura. “Só tem
espaço para uma pessoa de pé aqui, e nenhuma outra saída.”
“Talvez ela vá para cima,” disse Snorri.
Não gostei nem um pouco disso.
“Entre aí e experimente.” Pelo menos ele não me empurrou
desta vez.
“Isso deve dar.” Uma voz estranha atrás de mim.
Ao me virar, vi as mãos se afastarem do espelho facetado,
revelando novamente o rosto abatido e os olhos brilhantes da Dama
Azul. “Isso deve dar,” repetiu ela, com a voz rouca, sem um vestígio
da cultura e do humor de que eu me lembrava pelas memórias da
Rainha Vermelha.
“Dar o quê?” eu quis perguntar, mas minha língua emperrou
quando minha boca ficou seca. Pude ver algumas linhas finíssimas
da testa se fechando.
“O espelho está se regenerando.” Kara se afastou. “Ande!
Rápido!”
Feliz de me afastar agora, entrei no espaço depois da abertura,
cruzando os braços sobre o peito. Fiquei de pé em um tubo vertical
pouco mais alto que eu. Um painel prateado sem indicações estava
embutido na parede curva à minha frente. Na falta de outra ideia,
pressionei a chave a ele. “Abra.” A estrutura se estremeceu. “Abra!”
O painel ficou preto. “Abre, cacete!” Alguma coisa começou a se
mexer com o som de aço sendo torturado, um terrível barulho
arranhado que me fez cerrar os dentes.
“Jal!”
Virei a cabeça bem a tempo de ver Snorri desaparecer quando
o cilindro interno girou comigo dentro, fechando o buraco da
abertura. Mantive a chave pressionada ao painel e rezei com força a
qualquer deus que quisesse me aceitar. A luz gaguejou e se
apagou. Já tive semanas que passaram mais rápido que os trinta
segundos que se seguiram. Por fim uma linha vertical brilhante
apareceu, alargando-se com uma lentidão agoniante até uma fresta
grande o bastante para eu atravessar, à media que a abertura do
cilindro interno girou, alinhando-se à abertura que dava acesso à
sala seguinte.
“Ciclo de descontaminação completo,” disse uma voz sem vida
no cilindro quando saí.
A primeira coisa que me pegou foi o fedor, como se alguma
coisa tivesse se rastejado até ali para morrer. Felizmente, foi a única
coisa que me pegou. A câmara era maior do que eu esperava, com
paredes irregulares dando para passagens convolutas e estreitas
que seguiam além do alcance da luz vermelha pulsante. Uma
estrela temporal flutuava na altura da cabeça, no centro da câmara,
brilhando azul acima de um disco preto no chão de aço prata. Tentei
não ficar olhando para ela, sentindo que aquele troço podia fascinar
uma pessoa, fazendo-a passar o resto da vida olhando para aquilo.
Uma faceta do espelho fractal havia sido colocada em uma das
poucas seções planas da parede. A teia de fraturas continuou seu
lento processo de regeneração, e por um momento a Dama Azul
voltou suas atenções à porta de seu sacrário. Nas paredes em volta
dela, mais de uma dúzia de espelhos intactos agora estavam
pendurados nos locais onde os ocupantes originais haviam sido
derrubados. Todos eram iguais: um espelho simples em uma
moldura barata de pinho... O mesmo espelho que vi pendurado em
vários pontos da cela de Tuttugu enquanto ele jazia morto.
Na seção da parede diretamente oposta a mim havia uma
válvula igual à que eu acabara de atravessar, ao lado de um grande
painel retangular preto. Pressionei a chave à parte externa da
válvula que me deixou entrar. “Continue girando.” A coisa rodou com
uma preguiça agoniante, lutando a cada centímetro do processo.
No espelho, a porta da Dama Azul se estremeceu com um
grande golpe. Depois outro. Na terceira pancada ela se estilhaçou
como se fosse feita de vidro, com pedaços afiadíssimos voando em
todas as direções. A Irmã Silenciosa se revelou na entrada,
encurvada em seus trapos cinzentos como sempre, com aquele
vestígio de sorriso enigmático enfeitando os lábios finos, um olho
escuro e penetrante, e o olho cego brilhando como se sua cabeça
estivesse cheia de luz. Atrás dela, mais alta, mais larga e de
armadura carmesim estava a Rainha Vermelha, com fumaça
subindo do manto em seus ombros como se ela pudesse a qualquer
momento entrar em combustão.
“Alica.” A Dama Azul inclinou a cabeça para reconhecer suas
visitantes. “E sua irmã. Nunca guardei direito o nome dela.”
Atrás de mim, Kara saiu da válvula que continuou girando,
rodando a abertura novamente na direção de Snorri e Hennan. “Não
olhe para a estrela,” chiei, virando o rosto dela com uma mão.
“Talvez possa nos apresentar?” disse a Dama Azul.
Minha avó não respondeu. A Irmã Silenciosa entrou na sala e,
ao fazer isso, reflexos da Dama Azul saltaram dos espelhos novos
nas paredes, cada um correndo em direção à original, para dentro
dela, e de alguma forma unindo-se a ela. Cada união dessas
firmava mais a presença de Mora Shival no mundo, dando definição
a ela, fazendo o azul de sua túnica mais forte, mais intenso, mais
vibrante, tornando sua carne mais sólida em cima dos ossos.
“Não.” A Irmã Silenciosa disse apenas essa palavra e todos os
espelhos explodiram-se em fragmentos, com nuvens cintilantes
surgindo na frente de cada moldura. Até as rachaduras no espelho
fractal se espalharam por um momento, em vez de se regenerarem.
Não conseguiria descrever como era o som dela, só sei que a
palavra foi dita.
“Isso foi uma tolice.” A Dama Azul limpou a boca onde um caco
voador a cortara. “Gastar seu poder assim.”
“Você não vai fugir desta vez.” Minha avó apareceu ao lado de
sua irmã. Ela estava segurando uma espada longa e fina com runas
em sua extensão.
“Você não pode impedir isto, Alica.” A Dama Azul deu um passo
para trás, na direção do espelho fractal. “Este mundo está destruído.
A morte está destruída, junto com a escuridão e a luz. Há uma vida
melhor à espera daqueles de nós que têm a força mental para
resistir. O rebanho está perdido de uma maneira ou de outra, mas
os pastores podem sobreviver.” Ela encarou as mulheres velhas à
sua frente, mas eu sabia que suas palavras eram para mim.
“As pessoas podem ser salvas.” Vovó ergueu sua espada,
apontando-a para o coração de sua inimiga. “E eu lutarei para salvá-
las, por menor que seja a esperança de sucesso.”
Mora Shival balançou a cabeça. “Você fala das pessoas, garota,
mas foi tudo sempre para manter o poder nas suas duas mãos. É o
medo que a mantém lutando. Medo do que você pode ser sem a
história, sem o trono e a coroa para encher as gargantas dos seus
plebeus com vivas. Você nasceu para o poder. Chegou a ele
passando por cima dos corpos e mentes arruinados de seus irmãos.
Em algum lugar atrás desses olhos ferozes o sonho de ser a
Imperadora Vermelha ainda arde, não é, Alica? Você vem
planejando um caminho para o trono maior durante tantos anos que
não consegue abrir mão dele nem se tentar. Você arruinou o poder
do Czar Keljon no oriente, neutralizou Scorron, pôs o temor a Deus
nos Reinos Portuários às suas costas... e aqui está você,
avançando pela Slóvia com um pretexto, destinada a Vyene. Está
empilhando cadáveres mais rápido que o Rei Morto, então não me
venha com esse papo de ‘as pessoas’.
Snorri juntou-se a Hennan atrás de mim e gesticulou em
silêncio para a válvula do lado oposto.
“A última câmara,” cochichou Kara. “Você pode acabar com
tudo isso.”
Corri, abaixado e com medo, para o outro lado da câmara,
contornando a estrela azul ardendo no centro. A válvula se mostrou
idêntica à primeira. Pressionei a chave a ela, causando o mesmo
tremor quando aquilo que a segurava ali fez força para me negar, e
em seguida veio a mesma volta lenta e arrastada do cilindro interno.
Por cima do barulho arrastado, ouvi um último trecho do confronto
na torre de Mora Shival em Blujen.
“Como está aquele menino querido que você arruinou se
livrando de mim lá em Vermelhão? Ele não deveria ser o terceiro
Gholloth? Se existe alguém que tem direito a ser imperador, é ele. O
último imperador, retorcido e babando no trono maior enquanto
observa o mundo à sua volta morrer.”
Eu quis gritar que Garyus daria um ótimo imperador – melhor
que qualquer uma delas – mas a entrada se estreitou a um dedo de
largura e depois desapareceu, isolando o som e me jogando mais
uma vez na escuridão.
A estrutura inteira se estremeceu, um grunhido gutural
ressoando pela superestrutura de metal. Por toda a grande
máquina, em engrenagens que as melhores mentes entre os
Construtores conceberam e forjaram, um elemento lutava com o
outro, descontrolados agora que o espelho, que era ao mesmo
tempo único e múltiplo, estava rachado.
Girei com o cilindro e por fim a abertura reapareceu à minha
frente, primeiro uma nesga cinza-escuro, depois da largura de um
dedo apenas um tom mais claro que a escuridão ao meu redor, a
largura de uma mão, mais larga... atravessei.
Um único painel de luz no teto fez força para ganhar vida,
substituindo a escuridão quase impenetrável com uma meia-luz
vermelha e bruxuleante, perseguindo as sombras na direção dos
cantos, e depois recuando e deixando-as se reagruparem. Quatro
pilares grossos e quadrados ocupavam o meio da sala, cada lado
coberto com telas, todas escuras.
Imediatamente vi que a pouca quantidade de luz que havia visto
no recinto a princípio vinha da janela ao lado da válvula. Achei que
fosse um painel preto, mas na verdade era uma janela de vidro
grosso que dava vista para uma sala escura, e que agora mostrava
Snorri e os outros esperando do outro lado da válvula.
À minha esquerda, um pano cinza e sujo estava pendurado
sobre alguma coisa na parede. Puxei o troço e vi que era uma capa,
esfarrapada e manchada de tanto uso. Ela estava cobrindo a faceta
do espelho do recinto. A Dama Azul estava próxima ao espelho
agora, de costas para ele, com as mãos levantadas. Os lampiões de
seus aposentos lançaram sua sombra sobre mim, com o restante da
luz entrando na câmara. Vovó e sua irmã estavam diante da Dama,
com os rostos tensos de concentração. Eu já havia visto aquela
expressão antes, nas memórias de vovó, quando as duas lutaram
com seus reflexos na infância. Um brilho prateado, avistado entre os
dedos da Dama Azul, confirmou que em cada mão ela segurava um
pequeno espelho apontado para suas inimigas.
O esforço no rosto delas prendeu minha atenção. Manteve a
respiração presa em meu peito. Fez eu ficar em silêncio. Foi aí que
ouvi o passo atrás de mim.
“Ai meu Deus. É João Cortador.” A mão gelada do medo
entrelaçou os dedos nas minhas entranhas.
“Não importa quem seja esse seu bicho-papão, ele é criação
sua. Só pode machucá-lo de maneiras que consiga imaginar. Eu,
por outro lado, vou machucá-lo de maneiras piores. Maneiras que
não pode imaginar.”
Eu me virei com as pernas quase fracas demais para me
segurarem. Edris Dean estava ali, diabólico na luz vermelha
pulsante, com a crista escura de seus cabelos pretos como a noite
no meio das entradas em sua testa. A cicatriz clara e horizontal
embaixo de seu olho direito parecia sublinhar suas palavras. Uma
cicatriz mais escura, grossa e rugosa corria pela lateral de seu
pescoço, onde Kara quase arrancara a cabeça dos ombros dele.
Um movimento no canto do meu olho chamou minha atenção
para a janela por um momento. Mortos-vivos estavam surgindo
pelos corredores retorcidos que saíam para as profundezas da
máquina na câmara atrás de mim. Pude ver a boca de Snorri se
abrindo em um rugido, Kara berrando alguma coisa ou gritando,
mas nem vestígio do som chegou até mim.
“A Dama Azul me mandou pelo espelho na frente dela... com
alguns amigos... para proteger a Roda e assegurar que ninguém
tentaria fazer nenhuma bobagem, como desligá-la.” Edris sorriu. Ele
estava segurando uma espada curva de ferro preto, com a ponta
repousando preguiçosamente no chão entre nós. Ela me lembrava
as lâminas que os Ha’tari carregavam nas profundezas do Sahar.
Olhei para a janela mais uma vez. Havia muitos mortos-vivos.
Todos de armadura de couro com debruns azuis. Eles se moviam
com uma rapidez preocupante, os rostos cheios de fúria e escuros
com sangue antigo. O machado de Snorri abriu um caminho entre
dois deles, espirrando na janela.
“São os soldados da Dama Azul,” falei. “Você os matou.”
Edris inclinou a cabeça. “Mortos são melhores em obedecer
ordens.”
No espelho, a Dama Azul jogou as mãos na direção da Irmã
Silenciosa e da Rainha Vermelha. “Você foi tola em deixar seu
exército sangrar aqui por tantas semanas, Alica.” Ela chiou as
palavras como se estivesse forçando-as entredentes. Vovó caiu de
joelhos com um grito, com as mãos para frente, lutando com o
invisível. A Irmã ficou de joelhos lentamente, aos poucos, primeiro
sobre um, depois com os dois, como se um grande peso estivesse
sobre ela, aumentando a cada instante. “Você desperdiçou tantas
vidas e tanto de sua força... e para quê? Para morrer aos meus
pés.” A Dama Azul balançou a cabeça. “Não foi você que se tornou
mais forte com os anos.”
“Você deveria ter protegido o espelho,” disse a Edris, e pus a
mão no cabo da minha espada, a lâmina que havia tomado de Edris
lá na Torre das Fraudes em Umbertide. “Agora sua patroa está
trancada lá.”
“Achei que poderia chegar até aqui,” disse ele. “Você e o
nórdico.” Ele acenou para a janela salpicada de sangue. Não dava
para ver muita coisa através dela, a não ser o contorno das
pessoas, todos em movimentos violentos. “E a vadia.” Ele esfregou
distraidamente o pescoço e a cicatriz preta acima da clavícula.
“Achei que pudesse quebrá-lo para mim, então eu deixei. Sabe,
nunca gostei muito da Dama, e ela nunca confiou muito em mim,
pois eu me recusava a aparecer em qualquer futuro que os sábios
conseguem ler. Sou a favor do plano dela, e tudo mais. Só que
prefiro me ver na cabeceira da mesa quando os novos deuses se
reunirem no mundo que vier depois deste. Edris, o Senhor da
Criação. Soa bem, isso é verdade.” Ele ergueu sua espada maligna,
com a ponta a um palmo da minha barriga. “Se puder me passar
essa chave agora, farei as honras.” Ele fez sinal com a cabeça além
dos pilares. A luz do espelho revelou a parede dos fundos,
projetando suas próprias rachaduras sobre as muitas telas
embutidas ali, rachaduras que ainda estavam se fechando, talvez na
metade do caminho para uma recuperação completa. No meio da
parede dos fundos estava o painel prateado que o professor tinha
descrito, com a legenda ‘Acionamento Manual’ acima dele. Uma
linha escura no meio que devia ser a abertura da chave.
Olhei para a ponta afiada abaixo, no nível do meu umbigo, e
depois para vovó e a Irmã Silenciosa lá atrás, de joelhos, fazendo
força para se levantarem, mas sendo inexoravelmente pressionadas
para baixo, com sangue começando a escorrer pelos cantos dos
olhos. Pensei em Hennan na Torre das Fraudes, com a espada de
Edris Dean contra o pescoço. Eu havia dado a chave de Loki para o
menino entregar ao necromante e ele a atirara de volta para mim.
Recusando-se a me deixar comprar sua liberdade. Meus olhos se
voltaram para a ponta da espada à minha frente. No fim, as coisas
sempre se resumem à ponta da espada. Edris tinha me ameaçado
com horrores que eu não poderia imaginar. Eu não podia imaginar
direito aquele ferro preto entrando na minha barriga.
Um grito agudo de dor ecoou atrás de mim. Uma velha
machucada. Alguma coisa escura e sangrenta bateu na janela ao
meu lado, escorregando sem fazer barulho. Era um vulto franzino...
talvez Hennan...
Atirei a chave e, que Deus tenha misericórdia com minha alma
herege, rezei para Loki, mesmo sabendo que ele não era nada além
de uma gravação de um professor velho, registrado no mundo e
formado por lendas. Rezei e acompanhei a rotação da chave pelo ar
com uma única palavra, ‘desligar!’, escolhida pelo único motivo de
querer o oposto de qualquer coisa que Edris Dean quisesse. Nós
todos ainda estaríamos rumando para o Inferno em um carrinho de
mão se a máquina se desligasse: A Roda continuaria a girar,
embora mais lentamente, impulsionada pela incapacidade do
homem de não usar o poder para ganhos pessoais. Mas, mais que
tudo, eu queria que Edris Dean fosse para o Inferno primeiro.
É claro que não se pode esperar atirar uma chave para uma
fechadura pequena a dez metros de distância e esperar acertar,
quanto mais entrar e girar. Mas Loki é o deus dos truques.
Existe um benefício em fazer coisas muito idiotas. Elas
surpreendem as pessoas. Jogar a chave do outro lado da sala
surpreendeu Edris Dean o suficiente para eu sacar minha espada e
afastar o golpe atrasado dele da minha barriga, ao mesmo tempo
que saltava para trás. Uma sensação quente e úmida em meu
quadril me disse que eu não tinha escapado ileso, mas pelo menos
a espada de Edris não estava atravessada em mim.
Edris golpeou novamente e eu girei sua espada. Atrás dele,
todos os painéis da parede oposta se acenderam, com uma
enxurrada de números descendo sobre eles como se fosse um rio
de dígitos caindo por um penhasco. A chave, agora enfiada na
fechadura, começou a fumegar de leve, como se a obsidiana
estivesse soltando escuridão em vapor. Todos os barulhos, rangidos
e tremores anteriores pareciam ínfimos se comparados aos sons
torturados que agora atravessavam o chão de metal. Em algum
lugar bem fundo das máquinas de cálculo dos Construtores, uma
guerra criptológica de códigos e cifras estava sendo travada, pois a
chave buscava tanto controlar a segurança que protegia a função
principal da Roda quanto solucionar os problemas que derrotaram o
professor O’Kee durante tantos anos, fazendo os motores
diminuírem de tal modo que não nos lançassem para o precipício
que estávamos tentando evitar.
Edris atacou minha cabeça. Defendi o golpe, com o choque do
aço quase perdido na cacofonia à nossa volta. No fim das contas,
com tantas maneiras de morrer me rodeando, percebi que o medo
era menos importante para mim do que o fato de o homem que
matou minha mãe estar diante de mim. Defendi novamente e dei
uma estocada, furando sua túnica e deixando um arranhão
reluzente na cota de malha por baixo.
“Se me matar, não vai ter tempo de forçar a chave para o outro
lado!” gritei. “E se tentar fazer isso antes de me matar, corto sua
cabeça fora.”
Edris deu um golpe com força e saltou para trás. Ele limpou a
boca, ensanguentada pela língua mordida, e me olhou com a
respiração pesada.
Pela faceta do espelho na parede entre nós, avistei vovó e a
Irmã Silenciosa, ambas de quatro, os braços curvados sob o peso
invisível, e a Dama Azul indo em direção a elas, triunfante.
“Você veio salvar o mundo, Alica,” chiou ela. “Mas se esqueceu
de trazer alguém para salvar você.”
A Irmã conseguiu levantar a cabeça, o olho escuro como um
buraco à meia-noite, e o olho cego um buraco para o sol do meio-
dia. A deusa de Snorri, Hel, tinha olhos assim. A velha conseguiu
erguer uma mão, com os dedos em forma de garra, e por um
momento o avanço da Dama parou, mas só por instantes. A cabeça
da Irmã baixou outra vez, com o rosto escondido pelos fios
grisalhos.
Edris assistiu, tão fascinado pelo espetáculo quanto eu. As
mãos que nos manipularam em seu tabuleiro a vida inteira agora se
encontravam para um acerto de contas final.
“Elas não me trouxeram. Eu vim.” Um vulto na entrada da Dama
Azul, coberto de pó de alvenaria, cinza como um fantasma. A
princípio, não pareceu humano: grandalhão demais, muitos
membros em ângulos estranhos.
Um passo para frente e a nova figura desabou, agora fazendo
certo sentido. Um homem carregando outro. O homem de joelhos,
baixo, robusto, moreno por baixo da poeira, com cara de secretário
em vez de herói, apesar do uniforme e da espada em seu quadril.
Capitão Renprow, assistente do marechal de Vermelhão, minha mão
direita na organização da defesa.
“Não!” Se o espelho realmente fosse uma janela, eu teria me
atirado através dele. A figura menor, que caiu estatelada, rolando no
meio dos cacos de espelho, era retorcida de maneira tão cruel
quanto qualquer vítima na mesa de João Cortador. Um velho,
deformado, que mal conseguia se virar sozinho, e no entanto,
naquele momento em que levantou sua cabeça malformada, era
mais nobre que qualquer homem que já vi em um trono.
“Madame.” A voz de Garyus saiu rouca de sua garganta. A
viagem de Marcha Vermelha não devia ter sido fácil para ele, e a
viagem da base da torre menos ainda. “Você subestima o quanto
um filho de Kendeth está disposto a sacrificar por sua irmã.”
Uma mão retorcida se estendeu e os dedos velhos com juntas
exageradas envolveram o tornozelo da Irmã Silenciosa. Eu vi a dor
até mesmo daquela pequena ação no rosto dele – o frio sempre
perturbou as juntas de Garyus, e na Slóvia o inverno tem dentes.
A irmã Silenciosa flexionou os ombros e depois endireitou os
braços, com a cabeça ainda baixa. O som de estilhaçamento
preencheu o ar. Ela ficou de joelhos, tomando fôlego ruidosamente.
“Para baixo!” A Dama Azul juntou as duas mãos como se
estivesse esmagando alguma coisa entre elas.
A Irmã Silenciosa se levantou com um movimento lento,
deliberado, acompanhado a cada etapa pelo som de vidro se
quebrando, até não restar mais nada para quebrar. Nas mãos da
Dama Azul os dois últimos espelhos se partiram. A Dama abriu os
dedos assustada e cacos de espelho caíram em meio ao sangue
escorrendo, com as mãos cortadas pelos fragmentos.
Alica Kendeth, a Rainha Vermelha, ficou de pé com um rugido
furioso, balançando sua espada.
Com um grito, a Dama Azul se afastou da luta girando sobre o
pé, de alguma maneira rápida o bastante que a ponta da espada de
vovó abriu apenas um sulco em seu ombro, e se atirou para seu
último espelho, para direção de Osheim, para mim. Por uma fração
de segundo, sua imagem preencheu a faceta. Ela atingiu as
rachaduras remanescentes que a cortaram como arames
atravessando um queijo. E ela despareceu – sem restar nada no
espelho a não ser uma mancha carmesim, com o recinto do outro
lado visto fracamente através dele. Sangue escorria sobre a imagem
da Rainha Vermelha, com a espada estendida, a ponta contra o
espelho que sua inimiga havia atravessado. Tinha poucas dúvidas
de que uma visita ao espelho fractal muito abaixo de nós revelaria
um monte úmido de partes do corpo bem cortadas, os últimos
vestígios de uma mulher que teria sacrificado um mundo para ser
um deus em outro.
A lâmina de Edris piscou na minha direção. Eu quase não a
desviei de meu peito. Minha falta de atenção me presenteou com
um corte superficial no braço. Os painéis da parede distante agora
brilhavam vermelhos, e pensei ter visto uma figura se mexendo
atrás deles, como se cada um fosse uma janela na parede para
algum espaço do outro lado. O som havia parado de certa forma,
reduzido a grunhidos metálicos graves e o barulho lento de uma
engrenagem, com um dente após outro passando por ela.
Edris fingiu um ataque, e nossas lâminas rasparam as pontas.
“Não tenho tempo de matar você,” disse ele. “Felizmente, trouxe
alguém comigo que tem.” Ele se afastou e o desnascido se
desdobrou como uma aranha do teto escurecido, onde havia se
escondido nas sombras atrás dos pilares. Ele desceu no espaço que
Edris abriu entre nós, um horror feito com carne fresca rearranjada
sobre os ossos dos homens que a Dama Azul enviara com Edris.
Um tronco sobre pernas grossas, abaixado por cinco membros finos
e brutos saindo de seu peito aberto, cada um de dois metros ou
mais, com uma dúzia de articulações, e terminando em uma ponta
afiada de osso.
Edris virou de costas e caminhou até a parede distante e a
chave. “Com essa espada que você roubou de mim, talvez até
consiga mandá-la de volta ao Inferno. Mas ela ainda estará ligada
ao lichkin. Em todo caso, vou ganhar o tempo necessário e lidarei
com você depois, se for preciso.” Ele pôs a mão na chave e
suspirou quando as mentiras dela o envolveram. “Embora não vá
haver depois.” O pulso dele girou, forçando a chave para o outro
lado, e as grandes engrenagens uivaram uma nova nota. “É assim
que o mundo acaba. Sem explosões, sem choradeira, apenas o giro
de uma roda.”
No fim, há poucas coisas mais capazes de arrancar estupidez e
coragem de um homem em medidas iguais – se é que elas não são
a mesma coisa. A família faz isso, e também a visão de alguém que
você odeia muito prestes a conquistar seu momento de triunfo.
“Nunca subestime o que um filho de Kendeth está disposto a
sacrificar por sua irmã.” As palavras saíram de meus lábios sem
qualquer vestígio de medo.
Não foi um berserk que se apossou de mim. Acho que a fúria
que me envolveu naquele dia que cortei a garganta de Maeres Allus
nunca havia realmente me largado, nunca se aninhou de volta
naquele espaço minúsculo e esquecido onde eu a guardava, mas
sim se misturou ao meu sangue como acontece com qualquer outro
homem, às vezes quieta, às vezes estrondosa. A raiva que ergueu
minha mão era toda minha, comprada e quitada. Atirei a espada de
Edris girando pelo ar, assim como a chave havia feito. E assim como
a chave de Loki acertou o alvo, a lâmina ímpia de Edris também o
fez, acertando-o entre as escápulas.
O desnascido recuou entre nós, fechando os braços à minha
volta como os dedos de uma mão. De alguma maneira, Snorri havia
visto a essência de seu filho dentro daquele desnascido que nos
atacou dentro da abóbada do Forte Negro. Na época, eu não tinha
entendido como ele viu seu filho naquela caricatura podre de carne
de cadáver e chorou para dar fim a ela. Eu também não via agora,
mas sabia que minha mãe teria visto sua filha, e isso foi o suficiente.
Não foi minha faca que enfiei no coração aberto do desnascido, mas
o sinete do cardeal daquela estrada distante, passando pela
fronteira de Attar-Zagre. Não foi a minha fé que separou a criança
que nunca veio ao mundo do monstro forjado no Inferno. Foi a fé
dos milhões amontoados em suas igrejas, escondendo-se dos
sonhos inquietos em suas camas, intimidados por sinais e
presságios, agarrados ao seu deus à medida que o fim dos tempos
se aproximava. Aquela fé, aquela determinação, aquela crença,
fortalecida pela própria Roda, separou a criança do horror e deixou
a carne morta despedaçada no chão.
Eu não tinha sentido as pontas me perfurando. Não senti a dor
até rolar e, ao me ver no chão, tentar levantar. O sangue jorrava dos
ferimentos em meus ombros e lateral, escorrendo quente em
minhas costas. Virei de lado e fiquei deitado ali, observando. Edris
estava virado para mim agora, com o rosto contorcido de fúria, a
ponta de sua própria espada saindo logo abaixo das costelas.
Eu não me importava mais com Edris. Olhei em volta e vi os
dois, o lichkin e minha irmã sem nome. Ela estava de pé, um espírito
pálido, crescida como a mulher que havia visto quando a cortei da
árvore de Hel. Ela tinha tanto a minha mãe quanto a Rainha
Vermelha dentro de si, linda, forte, destemida. O lichkin, branco feito
um nervo e nu, escondendo-se no ponto cego dos meus olhos,
estendeu-se para se vestir com o fantasma de minha irmã. Ela
tomou os dedos dele nos seus e enrolou todo o corpo dele
rapidamente em uma bola, maior que uma cabeça, depois
comprimiu a bola até ela ficar menor, menor, do tamanho de um
punho, um olho, uma ervilha... sumiu.
A imagem dela ondulava como um reflexo na água, mudando,
esvanecendo, encolhendo, uma moça mais jovem, uma criança...
“Não vá.” Tentei levantar a mão para ela.
Edris apareceu ao lado dela, com sangue ensopando a camisa
cinza sobre o abdômen. “Não vá,” repetiu ele. “Tenho certeza de que
posso encontrar outro mestre para você.” Seus dedos se mexeram
para lançar runas no ar, tramando uma nova teia de necromancia
para prendê-la outra vez.
Minha irmã, uma criança pequena agora, fez a seu algoz uma
carranca que eu conhecia do rosto da Rainha Vermelha nas
muralhas de Ameroth. Ela bateu o pé, esmurrando com os dois
punhos, e num instante Edris foi arremessado para baixo, gemendo
ao meu lado na bagunça fétida de restos do desnascido. O gemido
se transformou em um rosnado e ele ficou de joelhos, encarando os
leves contornos que eram tudo que restava de minha irmã,
bloqueando-a da minha vista. Minha espada ainda estava enfiada
entre os ombros dele, com o cabo virado para mim, balançando um
pouco fora do alcance.
Eu não tinha forças para me mexer. Mas tinha o desejo, e me
movi mesmo assim. Com um último surto de energia, puxei a
espada para trás e arranquei a cabeça dele com um golpe violento,
mais por sorte do que por discernimento.
Edris ficou ajoelhado mais um momento, espirrando sangue,
depois tombou.
De minha irmã não havia nem sinal.
Levei uma eternidade para chegar à parede dos fundos,
rastejando, atravessando a imundície, enquanto à minha volta as
engrenagens dos Construtores gritavam pelo fim do mundo. De
alguma maneira minha mão se fechou em volta da chave e eu a
girei para a posição do meio, neutra.
E ali, no fim de todas as coisas, eu hesitei. Se deixasse a chave
de Loki concluir seu trabalho, eu garantiria uma passagem segura
para o novo mundo que a Dama Azul tanto desejou. Um deus. A
posição que sempre procurei, e muito mais, jogada no meu colo.
Nada mais daquele principezinho supérfluo vivendo às margens da
corte de minha avó. Se virasse a chave novamente para a
esquerda, os grandes motores se desligariam, a magia sairia deste
lugar e, sem nada para impulsioná-la para frente, a Roda que os
Construtores fizeram girar, mudando o equilíbrio entre o desejo e a
matéria sólida do mundo, diminuiria e acabaria parando. Talvez ela
até girasse para trás e nos levasse de volta à vida que as pessoas
conheciam durante todos esses longos anos desde que algum idiota
nos espalhou pela face da Terra.
Se escutasse os sábios, contudo, você saberia que eles
previram o adiamento da destruição, não o seu fim. A Irmã
Silenciosa viu aquela mesma Roda girar sob pressão da ganância
dos homens pelo poder e partir tudo, jogando a nós, mortais
inferiores, no fogo e na destruição. Eu podia me salvar agora e dar
fim a inúmeras nações... ou entregar a mim mesmo e todas aquelas
pessoas à fogueira em poucos anos. Embaixo da minha mão, a
chave fumegou e ao meu redor a máquina reclamou e rugiu. A
chave ainda batalhava com o fecho, lutando por controle, e a
máquina, sem o espelho fractal para moderar suas energias, ficou
descontrolada.
As muitas telas dos meus dois lados continuaram a mostrar
porções de uma cena maior, como se elas perfurassem a parede,
revelando o que estava acontecendo na mente da máquina do outro
lado.
“Preciso...”
“Os homens não sabem do que precisam.” Um vulto se virou,
interrompendo a primeira pessoa que falou, oculta. “Eles mal sabem
o que querem.” Ele parecia um homem baixo, embora não houvesse
nada para medi-lo por comparação e as telas o mostrassem em
tamanho maior que o real. Nem novo nem velho, os cabelos escuros
arrepiados como se estivessem em choque. Ele usava um casaco
de muitas cores. Mas, quando se virou, o casaco ficou dourado e
costurado com inúmeros bolsos. No momento seguinte, as roupas
pretas de um moderno florentino, arrematadas com um chapéu de
três andares. Não importa o que usasse, ele parecia familiar. “Eu?
Sou apenas o bobo na corte onde o mundo foi feito. Dou
cambalhotas, faço brincadeiras, danço a jiga. Tenho pouca
importância.”
“Professor...” Vi o rosto do velho ali, traços dele por trás da
confiança e da astúcia de Loki.
O deus continuou a se dirigir a seu alvo invisível. “Mas imagine
só... se fosse eu quem puxasse as cordas e fizesse os deuses
dançar. E se lá no fundo, se cavasse o bastante, você descobrisse
todas as verdades? E se no centro de tudo houvesse uma mentira,
como uma minhoca no centro da maçã, enrolada como Oroborus,
assim como o segredo da humanidade se esconde no centro de
cada parte de você, por mais finas que as corte?”
Segurei a chave com força e aquele gelo preto deslizou em
minha mão. As telas ficaram pretas.
“Essa não seria uma bela piada?” Loki estava ao meu lado.
“O-o que você quer?” Tentei me afastar sem soltar a chave.
“Eu?” Loki deu de ombros. “Eu estarei acabado quando quebrar
minha chave, e ela se quebrará quando fizer seu trabalho. Vire para
a esquerda, vire para a direita. Decida-se, Jalan.”
“Eu... eu não sei.” O suor escoria em mim, minha mão pálida
pela perda de sangue, trêmula. “A Dama Azul estava dizendo a
verdade quando ela...”
“Verdade?” Loki jogou as mãos para o alto, agitando os dedos.
“As mentiras são a nossa base: todos nós começamos com uma
mentira e construímos nossa vida sobre ela. As mentiras são mais
duradouras que a verdade, mais mutáveis, capazes de mudarem
para preencher os requisitos.”
“Preciso da verdade. Foi você que me botou nesse caminho da
verdade quando me mostrou a morte de minha mãe. A chave não
me jogou no deserto à toa... era tudo parte de um plano. Conhecer
Jorg Ancrath, encontrar o aço para matar Maeres Allus. Você estava
me preparando para esta tarefa, assim como fez a chave e a
mandou pelo mundo afora para ganhar força.”
“Talvez.” Loki deu de ombros. “Os fatos são os melhores
amigos de um mentiroso. Tantas verdades são descobertas na
procura por uma mentira plausível. Por que não trabalhar com
elas?” Ele se virou para acenar para a câmara, um salão de
maravilhas, cheio de morte. “Que teia emaranhada tecemos quando
começamos a prática de enganar. O Grande Escocês escreveu isso,
quando a lua ainda parecia mais nova.” Um suspiro. À medida que a
escuridão fumegava em volta da chave em minha mão, Loki parecia
diminuir, envelhecendo, a luz dentro dele se apagando. “Esta foi
minha primeira obra e, eu admito, é um emaranhado. Onde está o
covarde que não ousa lutar por esta terra? Mais uma frase do
Grande Escocês, e aqui está você, meu covarde. Você ousa?”
“Mas será que eu deveria...”
“Não me importa!” troou Loki à minha frente, agora encovado e
doente. “Apenas saiba que não precisa da verdade. A verdade não
libertou você. Era mentira. Você não viu sua mãe morrer. Você não
estava na sala. Você nem estava no Salão Roma naquele dia.”
“Quê?”
“Eu menti para você.”
“Como...”
“Ódio, coragem, medo... tudo mentira. Não procure motivos.
Faça o que sente. Não o que você sente que é certo, apenas o que
sente.”
“Eu tenho a cicatriz...” Minha mão se mexeu até o peito onde a
espada de Edris me pegou aquele dia.
“Você fez isso subindo em uma cerca.”
“Seu mentiroso desgraç...”
“Sim, eu sei. Agora dá para andar logo? Estou caindo aos
pedaços aqui.”
Olhei para trás, além do falso deus, uma coisa que se tornou
real pelos sonhos dos homens, e vi, parado na janela suja de
sangue da outra sala, o vulto grandalhão do meu amigo, apenas
com os olhos nitidamente visíveis onde a mão tinha limpado o vidro.
Virei a chave.
33

Garyus foi enterrado como rei na catedral de Nossa Senhora de


Vermelhão. O cortejo fúnebre saiu da Praça da Vitória no palácio e
percorreu a cidade, passando pela Via Corelli ao longo do rio e
descendo na direção do Portão Appan. Estava nevando, a primeira
neve a cair em Vermelhão em oito anos, como se a cidade tivesse
se vestido para a ocasião, cobrindo suas cicatrizes, manchas e
sujeiras só por um dia, para botar o velho para descansar.
Carreguei o caixão com meus primos, e o capitão Renprow
preencheu a sexta posição. A Rainha Vermelha o nomeou para a
honra por ter carregado Garyus para a torre da Dama Azul e
atravessado magias a que nenhum outro soldado havia sobrevivido,
e pelo heroísmo demonstrado em levar meu tio-avô a Blujen uma
semana antes, contra os fortes conselhos de Renprow, que fique
claro.
“Por isso, marechal Renprow, nós lhe agradecemos.
Agradecemos por carregar nosso irmão.”
“Foi ele quem me carregou, majestade.” Renprow se curvou. “E
a honra foi minha.”
“Ele carregou todos nós.” A Rainha Vermelha assentiu e curvou
a cabeça. “Por muitos anos.”

Pusemos o caixão dele em um sepulcro de mármore branco dentro


da catedral, protegido por magias que o defenderiam de qualquer
necromancia. Fui eu que disse as palavras sobre o lugar de
descanso dele. Acho que as falei com clareza e com sentimento.
“Fique em paz, meu irmão.” Vovó pôs a mão sobre a pedra fria
e, ao lado dela, vista por mais ninguém além de mim, a Irmã
Silenciosa pôs a mão pálida onde o nome de seu gêmeo estava
gravado, e de seu olho escuro caiu uma única lágrima, brilhante.

Vim ver Snorri partir das docas do rio. Eu tinha lhe comprado um
barco. Dos bons, esperava. Chamei-o de O Martus. Darin havia
deixado uma criança para dar continuidade à sua linhagem e uma
esposa que o amava. Martus precisava de alguma coisa, e um
barco para levar seu nome pelo mundo foi o melhor que pude
oferecer.
Snorri estava na muralha ao lado dos degraus de pedra por
onde uma vez descemos correndo, fugindo dos capangas de
Maeres Allus. O ferimento em seu rosto estava sarando, e seu braço
quebrado estava escondido debaixo de uma capa grossa de pele de
urso presa por uma pesada fivela dourada, presente da rainha.
“Temos neve aqui! Por que vai embora?” Abri os braços para
abranger a brancura irreal de Vermelhão. Estivadores tremiam à
nossa volta com seus casacos finos demais, enquanto carregavam
as últimas coisas dele.
“O norte me chama, meu amigo. E isso não é neve, isso é uma
geada. No norte, nós...”
“Dançamos pelados em dias assim. Eu sei! Eu já vi.” Bati a mão
no braço bom dele. “Vou permitir... mas volte, está ouvindo? Assim
que se encher de congelar e de comida ruim, volte e se esquente de
novo.”
“Pode deixar.” Um sorriso, dentes brancos na escuridão eriçada
daquela barba curta.
“De verdade. Estou falando sério. A vida vai ser chata demais
sem todas as suas bobagens.” Eu tinha mais coisas a dizer, mas
elas sumiram, junto com o ar em meus pulmões quando Hennan
disparou para cima dos degraus e saltou para cima de mim. “Ai!
Cuidado! Herói machucado aqui!” Pus o braço em volta dele e
baguncei seus cabelos ruivos daquele jeito que costumava me irritar
tanto quando meu pai fazia o mesmo comigo. “Kara! Me resgate!”
A völva saiu do barco em ritmo mais descansado, lançando um
olhar de divertimento para nós três. “O barco está pronto. O rio
também,” disse ela.
“Cuide desses idiotas por mim,” falei. “A única coisa que Snorri
conhece em Trond são as docas e o Três Machados. E Hennan
nunca teve a chance de apreciar o verdadeiro horror de uma cidade
de Norseheim.”
“Vou fazer com que cheguem lá em segurança,” disse ela.
“Depois disso, tenho coisas a fazer.”
Dei de ombros e sorri. Eu não sabia muito sobre barcos, mas o
que sabia era que muitas vezes as pessoas que descem deles no
fim de uma longa viagem não são as mesmas que embarcaram.
E foi isso. Snorri me esmagou e tirou minha respiração com um
abraço de um braço só e o Seleen os levou embora, correndo para
o oeste em direção ao mar.

As semanas seguintes viram a reconstrução da cidade externa, uma


obra que manteria as pessoas de Marcha Vermelha ocupadas pelos
próximos anos. Se é que teremos próximos anos. Mas quem é que
sabe quanto tempo tem? Paramos as engrenagens que nos
levavam à destruição. Agora, tudo que gira a Roda somos nós. Mais
devagar, sim, mas o destino é o mesmo. Ganhamos tempo e o
tempo é uma coisa maravilhosa. Quanto a mim, pretendo gastá-lo a
rodo, até chegar a hora de entrar em pânico de novo. E mesmo
assim, aí será a vez de outra pessoa consertar o problema. Meus
dias de aventura terminaram – um belo pacote de memórias
amarrado com um laço e enfiado em algum canto escuro do armário
para juntar poeira e nunca mais ver a luz do dia.
Semanas depois, quando a empregada chegou aos meus
aposentos para guardar minha roupa lavada, ela veio com as lentes
de Dr. Raiz-Mestra dispostas em cima, no aro prateado.
“Que sorte terem encontrado isto, alteza,” disse ela, radiante
por baixo dos cachos. “Uma coisa delicada dessas podia ter se
estragado fácil, fácil.”
Fiquei tentado a transformá-lo em poeira sob os pés ali mesmo.
Pontas soltas justificam ser pisoteadas, se forem do tipo que se
conectam a gente como Dr. Raiz-Mestra. No fim, acabei com medo
de criar problemas e decidi embrulhá-las e encontrar um armário
literal, em vez de metafórico, que raramente fosse usado e com
cantos bastante escuros para esconder aquele troço. Depois saí
para a cozinha para pedir um almoço enorme com muito vinho.
Vovó sacudiu o palácio. Hertet, que milagrosamente havia
sobrevivido à noite de horror na Casa Milano, ela mandou exilar
como embaixador permanente dos czares do oriente. Para coibir
qualquer manobra futura a respeito da sucessão, ela nomeou
oficialmente um herdeiro. Ela até me chamou para uma sessão
particular na corte para discutir o assunto. Apoiei a escolha dela.
Prima Serah havia demonstrado naquele cerco que o sangue de
vovó corria forte nela. Quando finalmente a Rainha Vermelha tivesse
seu fim, o povo gritaria: “A Rainha Vermelha está morta! Vida longa
à Rainha Vermelha!”

E aí resta só eu, aqui na ala de hóspedes do Palácio Interno,


observando de uma janela alta Barras Jon saindo mancando para
fazer uma ou outra tarefa. Eles o encontraram vivo na manhã que o
Rei Morto quebrou seu cerco. Estava preso no meio de uma pilha de
corpos quebrados na base da muralha da cidade onde havíamos
lutado juntos. Sua perna ficou quebrada demais para uma
recuperação completa, mas com a ajuda de uma bengala ele se
vira, supervisionando os negócios de seu pai em Vermelhão. De
fato, hoje em dia seus interesses comerciais fazem com que ele seja
chamado para lá e para cá, por toda a Marcha Vermelha. Ele diz
que eu o salvei aquele dia, e que se eu quiser qualquer coisa dele
só preciso pedir. Então na verdade meu único crime é ter me
esquecido de pedir...
“Venha para a cama, Jal. Eu falei que ele não vai subir.”
Eu me virei para minha companhia. Ela está sentada, vestindo
apenas lençóis de seda e um sorriso. Devolvo o sorriso e abro
minha túnica de veludo. Ela caiu formando uma pilha roxa atrás de
mim. Levanto a mão até a cabeça...
“Deixe o chapéu,” diz ela. “Gosto dele... cardeal Jalan.”
“Oh, minha filha,” digo, tirando a bota esquerda. “Você é uma
pecadora e tanto.” Chuto a outra bota e começo a desabotoar. “Hora
de ajoelhar. Vamos ser ecumênicos.” Eu entro na cama ao lado
dela. Venho aprendendo a linguagem do clero com os bispos que
tentam desesperadamente me treinar. Puxo Lisa DeVeer para mim.
“Ou até mesmo eclesiásticos.” Nem eu nem ela sabemos a definição
da palavra, mas sabemos o que significa.
E no fim nem as mentiras nem a verdade importa.
Só o que sentimos.

Sou mentiroso, trapaceiro e covarde, mas nunca, nunquinha,


raramente vou deixar um amigo na mão.

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