Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
The Wheel of Osheim - Mark Lawrence
The Wheel of Osheim - Mark Lawrence
RODA
De
OSHEIM
Também de Mark Lawrence
O Império Destruído
Prince of Thorns
King of Thorns
Emperor of Thorns
Mark Lawrence
Tradução
Dalton Caldas
Agradecimentos
Para vocês que tiveram de esperar muito tempo por este livro, aqui
estão algumas recapitulações para o Livro 3, para vocês
refrescarem suas memórias. Assim, evito a estranheza de fazer os
personagens dizerem uns aos outros coisas que eles já sabem.
Aqui relembro apenas o que tem importância para a história a
seguir.
6. Neste livro, uso tanto Inferno quanto Hel para descrever a parte
do além na qual nossos heróis se aventuram. Hel é como os
nórdicos a chamam. Inferno é seu nome na cristandade.
10. Snorri atravessou a porta de Hel para salvar sua família. Jalan
disse que iria com ele, e deu a chave de Loki para Kara, para
que não caísse nas mãos do Rei Morto. A coragem de Jalan
enfraqueceu e ele não foi com Snorri. Ele roubou a chave de
Kara e no instante seguinte alguém do lado de Hel abriu a porta
e o puxou para dentro.
“Arrrrgh!”
Descobri que há poucas coisas mais eficazes para fazer o ardor
de um homem murchar do que água fria. Quando o teto da tenda,
enfraquecido pelos traumas anteriores, cedeu de supetão e jogou
vários litros de água gelada da chuva nas minhas costas, eu dei um
pulo abrupto, espalhando as mulheres al’Hameen e sem dúvida
ensinando a elas um monte de xingamentos estrangeiros.
Uma coisa que ficou clara, enquanto a água escorria de mim,
era que poucos novos pingos estavam caindo para substituir os
anteriores.
“Shhh!” levantei a voz sobre os últimos gritos das mulheres.
Elas gostaram daquele banho tanto quanto eu. “Parou de chover!”
“ ھل أﻧت ﺧﺧﯾر؟، ”ﻋﺷﯾﻘﺔmatraqueou um homem do lado de fora da
tenda, na língua pagã, com outros unindo-se a ele. Deviam ter
escutado os gritos. Não dava para saber por quanto tempo o medo
do que o sheik faria com eles, se invadissem o local de suas filhas,
superaria o medo do que sheik faria se eles deixassem de protegê-
las.
“Cubram-se!” gritei, correndo para defender a entrada.
Ouvi risinhos atrás de mim, mas elas se mexeram,
presumivelmente sem esperar saírem ilesas se seu pai soubesse
daquelas “brincadeiras”.
Lá fora, alguém segurou a aba da tenda. Eu nem a havia
amarrado! Com um grito me atirei no chão para pegar a parte de
baixo. “Rápido, pelo amor de Deus! E apaguem o lampião!”
Aquilo as fez rir novamente. Segurei o lampião e preveni
qualquer tentativa de entrar saindo, fazendo o primeiro criado do
sheik cair de bunda na areia molhada.
“Elas estão bem!” Eu me empertiguei e acenei com o braço
para a tenda atrás. “O telhado cedeu debaixo da chuva... água por
toda a parte.” Fiz a melhor mímica para representar a última parte,
caso nenhum deles falasse o idioma do império. Acho que os idiotas
não entenderam, porque ficaram parados ali me olhando como se
eu tivesse feito uma charada. Afastei-me da tenda caminhando
decidido, chamando os três homens para virem comigo. “Olhem!
Está mais claro aqui.” Eu sinceramente esperava que aquelas
túnicas fossem colocadas com a mesma rapidez que foram tiradas.
Dois homens do sheik estavam trazendo uma das empregadas das
irmãs, apressando-a, apesar de seus ferimentos.
“O que é aquilo ali?” disse, principalmente para distrair as
pessoas. Quando olhei na direção em que estava apontando, no
entanto... havia alguma coisa. “Ali!” gesticulei com mais veemência.
O luar tinha começado a atravessar as nuvens que se dissipavam
no alto, e alguma coisa parecia estar saindo da duna que escolhi a
esmo. Não estava subindo a duna, nem saindo de sua sombra, mas
esforçando-se para atravessar a crosta úmida de areia.
Outros começaram a ver, e suas vozes se elevaram, confusos.
Da areia partida surgiu uma coisa, um vulto, impossivelmente
magro, pálido feito um osso.
“Maldição...” Eu havia escapado do Inferno e agora o Inferno
parecia estar me seguindo. A duna expeliu um esqueleto, com os
ossos ligados apenas pela lembrança de sua associação prévia.
Outro esqueleto parecia estar lutando para sair pela areia molhada
ao lado do primeiro, construindo a si mesmo com pedaços variados
ao surgir.
À minha volta, as pessoas começaram a gritar alarmadas,
praguejando, chamando por Alá, ou simplesmente berrando. Elas
começaram a retroceder. Recuei com elas. Não faz muito tempo,
aquela visão teria feito eu sair correndo na direção que melhor me
levasse para longe dos dois horrores diante de nós, mas já estava
cansado de ver mortos, tanto dentro e fora do Inferno, e mantive o
pânico um pouco abaixo do ponto de ebulição.
“De onde eles vinham? Qual a chance de termos acampado
logo onde uma dupla de viajantes tinha morrido?” Não parecia nem
um pouco justo.
“Mais de uma dupla.” Uma voz tímida atrás de mim. Eu me virei
e vi os vultos de quatro mulheres vestidas do lado de fora da tenda.
“Lá!” A locutora, a mais baixa, portanto provavelmente Mina, que era
a mais nova, apontou para a minha esquerda. A areia na lateral da
duna havia começado a se mexer e mãos ossudas brotaram como
ervas-daninhas de um pesadelo.
“Havia uma cidade aqui no passado.” A mais alta... Danelle? “O
deserto a engoliu duzentos anos atrás. O deserto já cobriu muitas
assim.” Ela parecia calma: provavelmente em choque.
Os criados do sheik começaram a se afastar em um novo
sentido, recuando das duas ameaças. Os dois esqueletos originais
agora pareciam nos olhar com as órbitas vazias e começaram a
correr para cima de nós, em silêncio, com um ritmo mortal,
diminuído apenas pela areia fofa. Isso fez meu pânico ebulir. Antes
que pudesse dar no pé, contudo, um Ha’tari solitário passou
correndo por mim, saindo do acampamento. O sheik devia ter
deixado um para patrulhar entre as dunas.
“Sem espada!” Levantei as mãos vazias como desculpa e deixei
minha retirada me levar até as quatro filhas. Ficamos parados juntos
e vimos o Ha’tari interceptar o primeiro esqueleto. Ele atacou o
pescoço dele com a lâmina curva. Felizmente, o osso se estilhaçou
com o golpe, a cabeça voou longe e o resto do esqueleto se chocou
com ele, caindo em uma pilha desmontada na areia.
O segundo esqueleto veio correndo para cima do guerreiro, que
atravessou sua espada nele.
“Idiota!” gritei, talvez sem razão, porque ele tinha agido por
instinto e seus reflexos eram bem aguçados.
Infelizmente, meter uma espada no peito de um esqueleto é
uma inconveniência menor para ele do que seria na época em que
seus ossos estavam cobertos de carne e envolviam um pulmão. O
esqueleto continuou correndo e arranhou o rosto do guerreiro com
os dedos de ossos. O homem caiu para trás aos berros, deixando a
espada presa entre as costelas da coisa.
Agora que os últimos fragmentos de nuvem se desfizeram e a
lua iluminou a cena, dava para ver que o esqueleto não era tão
desconectado quanto eu pensava. A luz prateada mostrou uma
substância cinza turva que envolvia cada osso e o unia, embora de
maneira insubstancial, ao próximo, como se o fantasma de seu
antigo dono ainda estivesse ligado aos ossos e quisesse mantê-los
unidos. Onde o primeiro agressor havia caído e se espalhado, a
névoa, ou fumaça, manchou o chão e, à medida que a mancha era
absorvida, as areias se contorciam, exibindo rostos assustadores,
com as bocas abertas em gritos silenciosos, até perderem a forma e
desaparecerem.
O guerreiro Ha’tari continuou a se afastar, curvado, com as
duas mãos segurando o rosto. O esqueleto girou o crânio na nossa
direção e começou a correr outra vez, com a espada presa nas
costelas fazendo barulho pelo caminho.
“Por aqui!” Eu me virei para começar minha própria corrida,
apenas para ver que esqueletos estavam se aproximando do
acampamento por todos os lados, brancos e brilhantes ao luar.
“Inferno!”
Os homens do sheik não tinham nada melhor para se defender
do que adagas, e eu nem tinha surrupiado uma faca do jantar.
“Ali!” Danelle segurou meu ombro e apontou para o mais
próximo de vários pedestais de lampião que tinham sido colocados
entre as tendas, cada um com uma haste de mogno de um metro e
oitenta, apoiado em uma base afunilada e o lampião de latão no
alto.
“Isso não serve de nada!” Eu o peguei mesmo assim, deixando
o lampião cair e levantando o suporte com um grunhido.
Sem ter para onde correr, esperei o nosso primeiro agressor e
sincronizei meu golpe com a chegada dele. O suporte de lampião
atravessou o tórax do esqueleto, estraçalhando-o e quebrando a
espinha dorsal em um monte de vértebras soltas. O troço morto caiu
em cem pedaços, e o fantasma que o envolvia desabou lentamente
na direção dos fragmentos, como uma bruma cinzenta descendo.
O impulso de meu golpe me fez dar meia-volta, e as filhas
tiveram de ser rápidas para não levarem uma pancada. Fiquei de
costas para meu primeiro inimigo e de frente para outros dois, sem
tempo de balançar o suporte outra vez. Enfiei a base no esterno do
esqueleto mais à frente. Por não ter carne, ele tinha pouco peso e o
impacto deteve sua investida, quebrando ossos e tirando-o do chão.
O próximo esqueleto me alcançou um instante depois, mas eu
consegui enfiar a haste do suporte em seu pescoço como se fosse
um varapau e o derrubei na areia, onde meu peso separou sua
cabeça do corpo antes que aquelas garras ossudas pudessem me
pegar.
Isso me deixou de quatro em meio aos destroços de meu último
inimigo, mas com mais meia dúzia correndo em minha direção, o
mais próximo a apenas alguns metros. Outros ainda estavam indo
para cima do pessoal do sheik, tanto os feridos quanto os
saudáveis.
Fiquei de joelhos, com as mãos vazias, e me vi de frente para
um esqueleto prestes a saltar para cima de mim. O grito nem
chegou a sair da minha boca quando uma espada curva brilhou
acima da minha cabeça, estraçalhando o crânio prestes a atingir
meu rosto. O restante do monstro bateu em mim e caiu em pedaços,
deixando uma bruma fria e cinzenta pairando no ar. Levantei-me
rapidamente, sacudindo as mãos quando o fantasma tentou se
infiltrar na minha pele.
“Aqui!” Tarelle foi quem balançou a espada, e agora a colocou
em minha mão. A arma do Ha’tari. Ela deve tê-la pegado nos
escombros do primeiro esqueleto que derrubei.
“Merda!” Eu me desviei do próximo agressor e arranquei a
cabeça do que estava atrás.
Mais cinco ou seis estavam atacando em um bando bem
apertado. Brevemente considerei me render ou cavar um buraco,
mas nenhuma trazia muita esperança. Antes que eu tivesse tempo
de cogitar outras opções, um enorme vulto atravessou os
desnascidos como um barril, estilhaçando os ossos com facilidade.
Um Ha’tari montado em um camelo passou por mim, balançando
sua cimitarra, com outros vindo em seu encalço.
Em instantes o sheik e seus filhos estavam desmontando à
nossa volta, gritando ordens e brandindo espadas.
“Saiam das tendas!” gritou Sheik Malik. “Por aqui!” E apontou
para o vale que serpenteava entre as dunas ao nosso redor.
Em pouco tempo, uma coluna de homens e mulheres saiu
mancando atrás do sheik montado, flanqueada por seus filhos e
seus próprios homens armados, enquanto os Ha’tari lutavam na
retaguarda contra a horda de ossos que ainda estava sendo
vomitada pela areia úmida.
Uns oitocentos metros depois nós nos unimos ao restante dos
viajantes do sheik, montando guarda em volta dos camelos
carregados que eles recuperaram do deserto ao redor.
“Vamos seguir noite afora.” O sheik ficou de pé nos estribos de
seu camelo branco feito um fantasma para se dirigir a nós. “Nada de
parar. Quem ficar para trás será largado.”
Olhei para Jahmeen, observando seu pai com uma intensidade
tensa.
“Os Ha’tari vão dar conta dos mortos, não vão?” Eu não
conseguia achar que esqueletos úmidos representassem um perigo
muito grande para guerreiros montados.
Jahmeen olhou na minha direção. “Quando os ossos ficam
inquietos isso significa que os djinns estão chegando – dos lugares
vazios.”
“Djinns? São gênios, certo?” Histórias de lâmpadas mágicas,
uns camaradas alegres de calças de seda e a realização de três
desejos me vieram à mente. “Eles são tão ruins quanto os mortos
tentando nos comer?”
“Piores.” Jahmeen desviou o olhar, parecendo-se menos com
um jovem raivoso e mais com um menino assustado. “Muito, mas
muito piores.”
3
*****
*****
“Seu desgraçado!”
“Quê?” Recuei rapidamente para me desviar do alcance dos
punhos dela.
“Camelos?” gritou Lisa, e veio em minha direção, impedida pela
corda que ainda amarravam suas pernas. “Você me trocou por três
camelos? Três?”
“Bem...” Eu não tinha imaginado essa reação quando tirei o
capuz de escrava dela. Só estávamos a cem metros das portas do
Treze. Os homens nas torres estavam assistindo e provavelmente
dando uma boa risada às minhas custas. “Eram ótimos camelos,
Lisa!”
“Três!” Ela me golpeou outra vez e eu saltei para trás.
Desequilibrada, ela caiu na lama, praguejando.
Não tinha nada de provavelmente. Ouvi os guardas dando
risada.
“Lisa! Meu anjo! Eu resgatei você!” Achei prudente não
mencionar que na verdade foram só dois camelos. Troquei o outro
por cinco coroas de prata e um justilho bem estiloso, de couro com
placas de ferro costuradas no peitoral e nas laterais, finamente
decoradas. O feitor admitiu, após o negócio fechado, que Lisa
estava dando dor de cabeça para ser treinada nos serviços de uma
garota de harém, e que provavelmente teria de ser chicoteada além
do ponto físico aceitável para o papel. “Eu te salvei!”
“Meu marido é quem devia ter feito isso!” O grito dela fez meus
ouvidos zumbirem.
“Tenho certeza de que Barras está...” Interrompi a frase e decidi
não dar desculpas para o desgraçado traiçoeiro. “Bom, ele não fez,
não é mesmo? Então tem sorte de eu ter encontrado você.” Saquei
minha faca. “Agora, se parar de tentar me bater, vou soltar suas
pernas.”
Lisa baixou os braços e me deixou ajoelhar para cortar a corda.
No instante em que as últimas fibras se partiram, ela fugiu.
Correndo direto de volta para as portas, gritando ameaças
sangrentas e promessas terríveis, com as duas mãos levantadas
fazendo gestos obscenos. Felizmente, a circulação ainda não havia
voltado às pernas dela por completo, e eu a peguei antes que
percorresse um terço do caminho de volta, colocando os braços por
trás dela e girando seu corpo.
“Pelo amor de Deus, mulher! Vão tirar você de mim e rasgar a
nota da venda. Esses caras não são legais. Com essa boca, vai
acabar com o nariz cortado, fazendo truques em uma casa do terror
só para comer!” Eu estava tão preocupado com ela quanto comigo.
Estávamos muito longe da cidade, e essas eram as Ilhas Corsárias:
eles podiam fazer praticamente qualquer coisa e se safarem.
Comecei a arrastá-la. Na verdade, foi um pouco mais fácil do
que arrastar meus três camelos do cais até lá em cima. Consegui
fazê-la voltar aonde havíamos começado, quando ela soltou o braço
e me estapeou.
“Ai! Jesus!” Segurei o rosto. “Para que isso?”
“Disseram que você tinha morrido!” disse com raiva, como se a
culpa fosse minha.
“Disseram que você tinha se casado!” Minha vez de ficar com
raiva, e por outros motivos além do tapa, embora eu não soubesse
direito por quê. A ingratidão dela, provavelmente. Gostava daqueles
camelos. Segurei o braço dela e comecei a puxar. “Precisamos sair
daqui. Se eles perceberam que eu a conheço, vão querer mais
dinheiro ou simplesmente me matar, para que isso nunca mais volte
até eles. Saí, com Lisa cambaleando e se sacudindo atrás de mim.
“Quanto tempo vai levar até um dos homens na muralha relatar tudo
isso a alguém importante lá embaixo? Eu deveria ter deixado o
capuz em você até estarmos fora da vista do...”
Parei de falar quando Lisa desatou a chorar, puxando grandes
quantidades de ar e estremecendo-se para soltá-lo enquanto
caminhava. Em outras circunstâncias, eu diria ou pelo menos
pensaria alguma coisa paternalista sobre o “sexo frágil”, mas
francamente eu conhecia bem aquela sensação – em muitas fugas
minhas eu também teria soluçado de alivio, se não tivesse que
manter as aparências perante as companhias com quem estava.
Continuei olhando para Lisa atrás de mim, enquanto fui na
frente descendo as colinas. Seu vestido feito de saco tinha ficado
quase tão enlameado quanto minha túnica quando lutei com ela no
chão, seus cabelos apontados em ângulos estranhos ou
pendurados em tufos sujos – poderíamos chamar de cabelo de
escravidão – e seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar.
Lá no Treze, eu havia dito que queria a beldade menos cara
que tivessem, e Lisa estava na fileira de oito que trouxeram da
cabana da disciplina. Nenhuma delas tinha ficado apresentável, e
para algumas era preciso olhar com muito esforço para enxergar
alguma beleza por baixo da sujeira e dos hematomas. Lisa, no
entanto, tirou meu fôlego. Alguma coisa em seus olhos, ou no
formato de sua boca, ou... não sei dizer. Talvez fosse apenas porque
aquela boca, aqueles olhos e a curva de seu pescoço significassem
algo para mim, e cada parte dela era tão cheia de lembranças que
era difícil ver o que estava à minha frente sem nossa história para
atrapalhar. Não gostei nem um pouco daquela sensação,
desconfortabilíssima, e a atribuí ao choque de minha viagem ao
Inferno e por estar tanto tempo em regiões pagãs. Isso me deu mais
motivos para agradecer pelo véu do deserto que estava usando. É
claro que o coloquei para impedir que ela me reconhecesse e
revelasse o fato de que estava lá por ela. Na melhor das hipóteses,
só isso teria aumentado o preço dela dez vezes. Na pior, eu teria
sido morto.
“O quê?” perguntou ela, constrangida pela primeira vez. “Estou
com alguma coisa no rosto?” Ela pôs a mão na bochecha, agindo
inconscientemente e esfregando mais sujeira ali.
“Nada.” Desviei o olhar, conseguindo tropeçar em uma pedra ao
mesmo tempo. Ela estava deslumbrante. Deslumbrante demais para
Barras Jon.
Chegamos aos arredores de Porto Francês quando Lisa se
recompôs o suficiente para perguntar: “Você trouxe um navio, não
é?”
“Bem. Um navio me trouxe, isso certamente é verdade.”
Lisa se estremeceu. “Nunca mais quero navegar. Fiquei
enjoada a viagem inteira até Vyene!”
“Ah. Bem, estamos em uma ilha, portanto...” Retrocedi para
ficar ao lado dela, me aproximei e pus o braço em volta de seus
ombros. “Não se preocupe. Sei que muita gente não se dá bem com
barcos. Sou um grande marinheiro e até eu fiquei um pouco mal
durante minha primeira tempestade, mas imediatamente fiz aquele
lance com as cordas e tudo mais. Ensinei àqueles vikings uma
coisinha ou outra...”
“Vikings?” Ela olhou para mim e franziu o rosto.
“É uma longa história.”
“E por que está vestido como um pastor de presépio? É algum
tipo de disfarce?”
“Mais ou men...”
“E por que” ela empurrou meu braço com força “está tão
enlameado?” Ela cutucou um pedaço especialmente imundo de
minha túnica beduína. Não queria dizer que aquilo não era lama.
Camelos são bichos nojentos, uma semana no mar não os faz
melhorar em nada, e nunca vi nada parecido em matéria de jatos de
merda.
Em vez de explicar meus trajes eu a distraí com uma pergunta.
“Por que estava em Vyene?” Não conseguia imaginar que negócios
ela teria na capital do Império – ou pelo menos a antiga capital do
antigo império.
“Barras estava me levando para conhecer sua família e nos
estabelecer em uma das propriedades deles.”
“E Barras, ele está...”
“Está bem.” A raiva fez sua testa vincar. “Ficou ocupado com os
negócios do pai em Vermelhão – Grand Jon foi antes de nós para
Vyene – então não veio comigo como planejado, simplesmente me
mandou com as empregadas na frente com mais alguns objetos
pessoais dos salões do palácio... Pelo menos acho que está bem.”
Lisa pôs a mão em meu braço. “Ele deve estar me procurando, Jal.
Alguma coisa ruim pode ter acontecido com ele – você disse que os
piratas...”
“Tenho certeza de que ele está em boa saúde.” Posso ter dito
isso de maneira ríspida. Minha preocupação momentânea com
Barras desapareceu assim que ouvi que ele não viajou com ela.
Pensei em quantos homens ele tinha mandado à procura da esposa
– suponho que Rollas tenha chegado mais perto do ponto – um
homem de muitos talentos. “Venha.” Apertei o passo. “Precisamos
chegar ao nosso navio.”
Lisa levantou o vestido de saco e correu atrás de mim.
Fui primeiro até a Guilda do Comércio, uma grande cúpula que pode
ser adentrada por muitos arcos em volta de sua circunferência.
Embaixo da cúpula, em um amplo chão de mosaico, comerciantes
de certo nível de riqueza se reúnem para fechar negócios e fazer as
fofocas que lubrificam as engrenagens da indústria. Uma galeria
passa em volta da cúpula, vários andares acima das negociações,
com portas que dão para escritórios com vista para a cidade ao
redor.
Peguei dinheiro emprestado no pregão primeiro. Pedi em nome
de minha família, deixando a espada de Edris Dean como garantia
adicional – não importa que mal a maculasse, ninguém podia negar
a qualidade do aço, coisa antiga derretida das ruínas dos
Construtores: nenhum ferreiro hoje tem a habilidade de se equiparar
à sua força. Não perguntei se notícias de minha prisão por dívida
em Umbertide haviam chegado a Vermelhão ainda, mas parecia
improvável, já que saí da Guilda com cinquenta coroas de ouro.
Com esse dinheiro e o restante das barras libanas de Omar,
comprei roupas de qualidade suficiente para corresponder à minha
posição, além de uma corrente de ouro contrabandeado, um anel de
rubi e um brinco de diamante. Os trajes tiveram de ser ajustados ao
meu corpo rapidamente, adaptados das dimensões de seus
destinatários pretendidos, mas paguei generosamente e perdoei
quaisquer falhas no corte.
Para pegar muito dinheiro emprestado é preciso ter aparência
correspondente. Um rei esfarrapado não vai ganhar nenhum crédito,
não importa que garantias possa ter.
Sem um tostão novamente, subi as escadarias da galeria, onde
os prestamistas mais ricos de Vermelhão ofereciam seus serviços.
Maeres Allus jamais teria permissão de ter uma sala neste círculo,
embora tivesse grana para figurar entre eles. O que mandava ali era
dinheiro antigo, dinastias mercantes de boa reputação e longos
laços com a coroa. Escolhi me aproximar de Silas Marn, um príncipe
comerciante sobre quem meu tio-avô Garyus tinha uma boa opinião
ao longo dos anos.
Os homens na porta levaram minha petição para dentro e Silas
teve a delicadeza de não me deixar esperando. Ele me recebeu
pessoalmente em sua sala de entrevistas, um aposento abobadado,
todo de mármore, com bustos de vários Marn mortos nos espiando
das alcovas.
O homem, tão velho que praticamente rangia, levantou-se de
sua cadeira quando entrei, sobrecarregado por seus trajes de
veludo. Gesticulei para que se sentasse, e ele desistiu da tentativa
antes que conseguisse se levantar por completo.
“Obrigado por me receber em tão pouco tempo.” Sentei onde
ele acenou e ficamos frente a frente com uma mesa de mogno
brilhante no meio.
“Jamais mandaria embora um príncipe do reino, príncipe Jalan.”
Silas Marn me olhou com os olhos castanhos turvos, quase perdidos
nas várias dobras de seu rosto, a pele coriácea e manchada pela
idade. Dei-lhe um sorriso largo e ele devolveu um mais cauteloso.
Orelhas grandes e um nariz semelhante a um bico dominavam sua
cabeça pequena, embora isso pareça ser o destino de todo homem
que vive tempo demais. “Como posso ajudá-lo?”
Empurrei a documentação relevante sobre a mesa. O papel
amassado não parecia estar em melhor estado que Silas, tão
manchado e vincado quanto ele, as palavras quase ilegíveis, o selo
de cera rachado.
“Parece que atravessou o inferno.” Silas não se moveu para
pegá-lo. “O que é?”
“Escrituras de treze ações, de um total de vinte e quatro, nas
minas de sal de Crptipa.”
“Estou ciente de seus... contratempos em Umbertide, príncipe
Jalan. Foram feitas acusações contra você de natureza seríssima.
Um assassino de crianças teria mais facilidade de conseguir crédito
do que um falido acusado de várias fraudes. Tenho certeza de que
essas acusações não têm fundamento, é claro, mas o simples fato
de existirem é um impedimento terrível para...”
“Não estou procurando crédito. Quero vender. As minas de
Crptipa têm amplas reservas de sal, imediatamente adjacentes a
alguns dos maiores mercados de portos do Império Destruído. Estão
com a infraestrutura montada para aumentar a produção, agora que
a saída de Kelem abriu áreas de exploração que ficaram proibidas
durante séculos. A produção da mina pode ser mais barata que o
fornecimento importado, mas ainda gerando lucros consideráveis
em cada tonelada. Como devedor, estou livre para conduzir
negócios de modo a gerar fundos para arcar com minhas
obrigações.”
Silas pôs a mão enrugada sobre a escritura de venda. “Estou
vendo que o sangue de seu tio-avô não está totalmente ausente de
suas veias, príncipe Jalan.”
Senti uma pontada de culpa nesse momento. “Ele está bem?
Quer dizer... três navios...”
Aqueles olhos velhos se estreitaram de reprovação, os lábios
secos formando uma linha fina. O comerciante me observou por um
momento e depois relaxou em um sorriso mínimo. “Seria preciso
mais que três navios para fazer um buraco nos negócios de seu tio.
Mesmo assim – e com o maior respeito – não foi bom perdê-los.”
“Quanto vai me dar?” batuquei na mesa.
“Direto.” O sorriso de Silas se alargou. “Talvez ache que um
homem da minha idade não tem tempo para perder com rodeios?”
“Faça uma oferta. O lugar vale cem mil.”
“Estou ciente de seu valor. As minas têm sido objeto de uma
especulação considerável. As legalidades de sua alegação, no
entanto, exigiriam esclarecimentos consideráveis e correm o risco
de nesse meio tempo o duque de Umbertide decretar o confisco de
seus bens, devido à sua saída sem autorização. Vou lhe dar dez mil.
Considere um favor à sua família.”
“Dê cinco mil, mas me deixe comprá-la de volta por dez mil
dentro de um mês.”
O velho inclinou a cabeça, como se escutasse os conselhos de
algum assessor invisível. “Fechado.”
“E preciso sair daqui com o ouro dentro de uma hora.”
Aquilo fez as sobrancelhas brancas se levantarem uma
distância considerável. “Será que é possível um homem carregar
cinco mil em ouro?”
“Já fiz isso antes. Os braços doem no dia seguinte.”
E foi assim que, uma hora depois, saí carregando uma pequena
caixa, porém extremamente pesada, apertada contra o peito. Foi
preciso meia dúzia de subalternos idosos correndo sob da cúpula da
Guilda do Comércio, pedindo favores a torto e a direito, mas Silas
reuniu as moedas necessárias, e eu entreguei o controle acionário
da mina de sal mais valiosa do Império Destruído.
Caminhei pelas ruas principais desejando ter aceitado a oferta
de Silas de levar um carregador, enquanto ao mesmo tempo ainda
concordava com meu próprio argumento de que ninguém deveria
perder a oportunidade de carregar tanto ouro. Minha passagem
atraiu alguns olhares, mas ninguém seria tolo o suficiente de pensar
que eu carregaria tanta riqueza desprotegido, e, mesmo que
soubessem, poucos seriam tolos o suficiente de tentar me roubar
nas largas avenidas do centro da cidade. De qualquer modo, minha
roupa nova vinha com uma pequena faca em um bolso interno, logo
acima do punho, pronta para se soltar rapidamente e furar as mãos
dos ladrões.
Quando cheguei ao grande abatedouro, a quinhentos metros da
sede da Guilda do Comércio, meus braços pareciam ser duas vezes
mais compridos e feitos de gelatina. Olhei para o edifício
impressionante acima. Parecia que uma eternidade tinha se
passado desde que estive ali dentro pela última vez. Pouco mais de
um ano, de acordo com o calendário. Mais de três mil e duzentos
quilômetros, a pé. No passado um abatedouro de gado, carne para
as mesas da realeza, e agora um lugar onde homens cortavam
carne humana, os Buracos Sangrentos eram um dos lugares
favoritos de Maeres Allus.
Os brutamontes na porta me deixaram entrar sem pestanejar.
Homens ricos vinham todos os dias para ver pobres morrendo e
apostar nos resultados. O irmão mais velho dos Terrif, Deckmon,
com certeza me reconheceu, levantando os olhos de sua mesa de
apostas. Ele pôs o dedo na pele sob o olho esquerdo e puxou para
baixo, avisando que minha entrada havia sido marcada.
As pessoas de sempre circulavam em torno dos quatro grandes
fossos, e os homens dos números ficavam às margens, com as
probabilidades escritas a giz acima de seus postos. Tirei um
momento para absorver aquilo, a cor, o barulho, os aristocratas
perseguidos por seus bajuladores, como um círculo de parasitas, e
passando para lá e para cá havia vendedores de vinho, de papoula,
e damas de afeto negociável.
O cheiro de sangue permeava tudo, constante. Eu não tinha
notado, em todos aqueles anos que passei ali, apostando na
carnificina. O cheiro me trouxe lembranças, não dos Buracos
Sangrentos, mas da Passagem Aral e do Forte Negro. Por um
instante, senti as águas geladas do Slidr me envolverem e o calor
berserker subindo ao encontro delas.
Cruzei o caminho até Will Comprido, um técnico e caça-
talentos, um fiapo de homem, coroado por cabelos grisalhos
espetados. “Maeres está aí?”
Will Comprido apontou com a cabeça na direção do Ocre. Dos
quatro grandes fossos, era o que ficava mais longe das portas
principais. Passei no meio da multidão, suando, e não só pelo
esforço de carregar meu tesouro. Só de pensar em Maeres Allus eu
já ficava arrepiado, e minhas pernas ficavam tão fracas quanto
meus braços trêmulos – embora com esse medo tivesse vindo
também uma raiva, um calor crescente que estava ali, por baixo do
pavor, fazendo-me companhia durante toda a viagem longa e
sacolejante de Marsail.
Uma menina bonita passou os dedos pelo meu cabelo, um
vendedor de vinho me empurrou um cálice de estanho. Olhei de
maneira incisiva para o cofre que ocupava minhas duas mãos.
“Príncipe Jalan?” Alguém me reconhecendo, sem certeza.
“É Jalan?” Um barão gordo do sul. “Não pode ser.”
Subalternos se afastaram diante de mim quando me aproximei
do grupo reunido à beira do Ocre. Mais de um ano. Milhares de
quilômetros. Dos desertos de gelo às areias escaldantes. Caminhei
pelo Inferno... e ali estava eu novamente, de volta ao ponto de
partida. Catorze meses depois, mal me reconheciam naquele lugar
onde eu passava tanto tempo, gastava tanto dinheiro e
desperdiçava tanto sangue de outros homens.
Um burburinho cresceu ao meu redor: mesmo que a multidão
não tivesse certeza do meu nome, ela reconhecia um homem
determinado caminhando para o centro das coisas. As últimas
camadas se afastaram, homens que eu conhecia de vista e de
nome, os associados de Maeres, comerciantes controlados por ele,
lordes inferiores procurando empréstimos ou sendo procurados para
levar vantagem em alguma coisa. O negócio dos negócios,
enquanto sete metros abaixo dois homens lutavam, cada um
fazendo seu melhor para bater no outro até a morte com os punhos.
Dois slovianos de rosto estreito se afastaram e lá, revelado
entre eles, estava Maeres Allus, pequeno, moreno, de túnica
modesta – olhando para ele ninguém diria que era dono do local e
de muito mais. Ele não demonstrou nem surpresa nem interesse por
minha aparição.
“Príncipe Jalan, esteve longe por muito tempo.” Um urro de
triunfo surgiu do fosso atrás dele, mas ninguém mais parecia
interessado. Imaginei o lutador vitorioso olhando para cima,
esperando rostos comemorando, e vendo apenas o parapeito de
madeira e uma ou outra nuca.
Jorg Ancrath, aquele prodígio sobre o qual muitas profecias
pareciam circular, aquele jovem feroz e vitorioso em torno de quem
os planos de minha avó pareciam girar, o jovem rei que acendeu um
Sol dos Construtores em Gelleth e outro na porta de entrada de
Hamada... havia me dado um conselho sobre como lidar com
Maeres Allus. Ele disse as palavras na escuridão quente e ébria de
uma noite hamadiana, e agora, com Allus finalmente à minha frente,
aquelas palavras esquecidas começaram a borbulhar das
profundezas escuras de minha memória. “Vim acertar nossas
contas, Maeres. Talvez possamos ir a algum lugar com privacidade.”
Apontei com os olhos para as alcovas cortinadas onde se
conduziam todos os tipos de negociações dos Buracos Sangrentos,
das carnais às comerciais, não que a primeira não fosse igual à
segunda.
Os olhos escuros de Maeres repousaram sobre o cofre em
meus braços. “Acho que talvez nossos negócios tenham acontecido
demais atrás de portas fechadas, príncipe Jalan. Vamos resolver
nossas pendências aqui.”
“Maeres, é pouco adequado...”
“Aqui.” Foi um comando. Ele queria me humilhar diante de
testemunhas.
“Eu realmente não...”
“Aqui!” Desta vez um brado. Não me lembro de Mares Allus
levantar a voz antes disso. Ele olhou sobre o ombro para o fosso
abaixo. “Uma pobreza de luta. Ponha o urso lá dentro.”
Se havia alguém nos Buracos Sangrentos tão envolvido em
seus próprios assuntos e que não estava olhando na minha direção,
a menção ao urso logo mudou isso. Uma onda se agitou pela
multidão, e ao mesmo tempo todos começaram a seguir na direção
do Ocre, atraídos pelos gritos de misericórdia do lutador e pela
possibilidade de vê-lo não ser atendido.
Maeres não se virou para assistir ao espetáculo, mantendo os
olhos em mim em vez disso. Ficamos parados ali daquele jeito, com
a turba à nossa volta berrando por sangue, as vozes competindo
inicialmente com os gritos do homem, e depois com o barulho
macabro do urso despedaçando sua refeição.
“Tinha assuntos a tratar, príncipe Jalan?” Maeres levantou a
cabeça, convidando minha resposta. Dois de seus capangas
estavam ao meu lado agora, homens durões que sobreviveram aos
fossos e foram alçados à sua posição atual.
“Vim aqui quitar minhas dívidas, Maeres. Pedi emprestado de
boa fé e dei minha palavra que pagaria na íntegra. Meu pai é filho
da Rainha Vermelha e não faço promessas à toa.” Peguei pesado
na fanfarra. Se era para gastar milhares em ouro, pelo menos que
eu aproveitasse o momento. “Lembre-me de quanto é o débito.”
Maeres estendeu a mão e um sujeito pesadão de preto pôs
uma lousa na palma dele. Eu sabia que o cara era contador de
Maeres, mas com aqueles dedos grandes como salsichas ele
parecia mais adequado para lutar com trolls do que para lidar com
números. “A dívida está em três mil e onze coroas de ouro.” Um
forte sobressalto correu pelos espectadores, talvez até o próprio
prédio tenha sugado suas paredes ao ouvir aquela quantia. Muitos
ali teriam dificuldade de imaginar uma soma tão alta, e ninguém da
pequena nobreza era tão rico que a perda de três mil não faria falta.
Três mil excedia o que eu pegara com Maeres por uma margem
considerável. Mesmo com meses de juros. Desconfiei que estava
sendo cobrado pelos serviços dos homens que mandou atrás de
mim, Alber Marks, João Cortador e os irmãos slovianos que foram
incumbidos de me devolver à cidade para uma morte secreta e
horrível. Com um grunhido de esforço, apoiei a caixa em um braço
dolorido e abri a tampa com a outra mão. “Se quiser mandar seu
homem contar a quantia necessária.” Dei um passo à frente, de
modo que o cofre quase chegou até Maeres, na altura da sua
cabeça, com o brilho das moedas iluminando seu rosto.
Demorou um pouco, mas cada cavada que o contador dava
com aquelas mãos de pá aliviava meu peso. Ele pesou as moedas
em suas balanças, dizendo os valores em voz alta e depois jogando
o monte reluzente em um saco de couro. Ele rapidamente pediu
outros dois ao perceber que o que tinha era pequeno demais para
receber meu pagamento.
“Mil.”
Enquanto o contador cavava e pesava, pesava e cavava,
Maeres continuou olhando para mim, com os olhos escuros e
indecifráveis. A loucura que havia visto neles, naquele dia nos
salões de papoula, agora estava escondida.
“O pagamento de um empréstimo é sempre bem-vindo, mas me
diga, o que ocasionou essa mudança de comportamento, de um
homem tão ávido para pegar emprestado para um homem tão
disposto a pagar?”
“Dois mil.” O contador amarrou um segundo saco.
Encarei de volta. Será que Maeres estava me convidando a
anunciar seus métodos? Me provocando? Esse assassino de gostos
depravados, matando dentro das muralhas de Vermelhão, jantando
tão perto do palácio que as sombras das torres seriam capazes de
tocar sua mansão, mais rico que muitos lordes, criando suas
próprias leis e executando sua própria justiça. “Conheci um rei e
pedi seus conselhos.”
“E ele lhe aconselhou a me pagar?”
Pensei em meu encontro com Jorg Ancrath. Quando falei de
meu problema, ele ficou quieto no início, depois sério, como se nem
uma gota tivesse passado em seus lábios a noite toda. “Ele me
disse para dar a você o que deseja.” Pus o cofre no chão entre nós
e esfreguei os braços.
“Um rei realmente sábio.”
“Três mil.” O contador amarrou o último saco, depois se curvou
sobre o cofre mais uma vez e começou a contar as últimas onze
moedas.
“Parece um homem mudado, príncipe Jalan. Espero que suas
viagens no que resta de nosso antigo grande império não o tenham
amargurado.”
“Seis... sete... oito.” O contador pôs as moedas em um bolso de
seu avental de couro.
“Atravessei o Inferno, Maeres.”
“As estradas podem mesmo ser perigosas,” assentiu. “Ainda
assim, tenho certeza de que veremos o retorno do antigo príncipe,
um rapaz tão alegre, tão certo de suas opiniões, tão disposto a
gastar.”
“Nove... dez...”
“Também espero, mas por ora o príncipe que está vendo à sua
frente terá de servir.” Lembrei da sensação de estar amarrado à
mesa dele, da expressão em seu rosto quando me passou para
João Cortador, de como gritei e implorei. Snorri confundiu aquilo
com bravura.
“Onze.” O contador se endireitou, parecendo relutante em
deixar o cofre ainda com ouro no fundo. “A dívida está quitada.”
“Muito bem.” O sorriso de Mares me disse que sabia que,
apesar das correntes da dívida serem retiradas, ele agora realmente
me possuía muito mais do que antes. Senti um calafrio, o desafio
gelado do Slidr, e o calor vermelho que me fizera atravessar o rio
mais afiado do Inferno agora surgiu para afastar aquele frio.
Lembrei-me de todas as palavras do menino-rei.
“Jorg Ancrath me disse: ‘Dê a ele o que deseja’.” Dei um passo
para frente, abaixando para pegar meu cofre.
“Mais uma coisa, príncipe Jalan,” disse a voz de Maeres, me
fazendo parar quando estava me curvando. Uma mão fria se fechou
em torno de meu coração e eu soube que o único caminho aberto
para mim era o de Jorg.
“Ele falou que você diria isso.” Eu me lembrei de tudo. Lembrei
da escuridão, do calor, da previsão de Jorg Ancrath: “Depois que
você pagar, ele vai pedir mais. Só mais uma coisa, ele vai dizer.” E
me lembrei da expressão nos olhos do menino-rei.
“Ele disse: dê a ele o que deseja.” Eu me endireitei, rápida e
tranquilamente, sem encostar na caixa. “Então tome o que deseja.”
Com um movimento do meu pulso, arrastei as costas da mão pelo
pescoço de Maeres. A pequena faca triangular, antes oculta em
minha manga e agora com a lâmina saindo entre meus dedos,
cortou o pescoço dele. Eu quase nem senti.
Peguei-o pela nuca e o segurei bem perto, soltando jatos
vermelhos e tentando falar. Terminei o serviço antes de todos os
homens dele sequer perceberem o que havia acontecido.
“Sou neto da Rainha Vermelha.” Urrei as palavras no meio do
silêncio. “Maeres Allus está morto. Sua vida acabou nas minhas
mãos. Não há mais nada a proteger aqui.” Sangue quente ensopava
meu peito enquanto eu segurava Allus contra mim, levantando o
queixo quando um dos braços dele se ergueu, fraco, tentando
arranhar meu rosto. “Não me importa como seus bens serão
divididos, mas se levantarem uma mão para mim eu juro por Deus
que irão perdê-la.”
A multidão se afastou de nós, horrorizada, como se a violência
a que assistiam todos os dias, sete metros abaixo do nível de seus
sapatos, fosse algo diferente, uma farsa talvez, mas um homem de
túnica bem-feita sangrando entre eles era real demais e os deixou
pálidos com uma expressão de repulsa.
Os guardas de Allus também recuaram. Seu chefe estava
morto, e o coração dele perceberia isso em breve. Eles não tinham
nada a ganhar ficando contra mim agora. Tudo havia terminado para
eles no instante em que cortei a garganta de seu mandachuva.
Empurrei Allus para longe. Ele cambaleou para trás, com
sangue pulsando de seu corte no pescoço, tentando se apoiar no
parapeito de madeira. Fui atrás e o empurrei, metendo as duas
mãos com força em seu peito. Ele virou de pernas para o ar e caiu
para trás por cima da barreira. Olhei para ele de cima. “O urso é
grande o bastante para você?” gritei em um volume para toda a
multidão ouvir, embora o próprio Maeres já não escutasse mais.
Eu me virei e peguei meu cofre. Pude ver alguns aduladores de
Allus saindo por várias saídas. O contador estava apertando uma
ferida na lateral e os três sacos haviam desaparecido. Brigas
começaram mais para trás da multidão. Meia dúzia dos guardas dos
irmãos Terrif estavam me cercando.
“Ele está morto!” gritei para eles. “Sou um príncipe do reino,
porra. Vão encostar em mim?” Passei pelo primeiro deles, sem lhe
dar atenção. “Ah, bom!” Continuei caminhando, deixando os
espectadores saírem da minha frente.
Longo antes da entrada eu virei para trás. Várias lutas
sangrentas estavam acontecendo e os elementos mais ricos
começaram a fugir do local.
Utilizei meu grito majestoso para ser ouvido. “As tropas de
minha avó irão queimar as papoulas ao anoitecer. Mandados de
morte serão expedidos para os capitães de Allus. Espero ver a
cabeça de Alber Marks em um espeto pela manhã. A de João
Cortador também, e haverá leniência a qualquer pessoa que ajude a
colocá-las lá.”
Virei e fui embora, saindo pelas portas principais, com alguns
lordes que tinham se perguntado sobre a minha identidade agora
correndo pela rua à minha frente, e muitos outros se aglomerando
atrás de mim. Foi aí que ouvi o murmúrio pela primeira vez.
“Príncipe Vermelho.” Abaixando a cabeça e olhando para mim,
saindo à luz do dia, vi que poucas partes de mim não estavam
vermelhas com o sangue de Maeres Allus.
Andei vinte passos e me apoiei em um dos grandes pilares que
sustentam as paredes do abatedouro, com a testa na pedra fria por
causa da sombra. Vi minha faca cortar a garganta de Allus,
repetidamente. Na terceira vez, vomitei até ficar vazio. Por fim, fui
embora, fraco e trêmulo, limpando a boca.
“Dê a ele o que deseja,” Jorg havia dito. “Depois tome o que
você deseja. Ninguém fica mais vulnerável do que em seu momento
de vitória, e você sabe que, não importa o que faça, esse homem
jamais deixará você em paz enquanto estiver vivo.”
Fui embora, com o cofre pesado em meus braços, ainda um
covarde. Não era nem o velho Jalan, nem aquele que saiu de
Vermelhão um ano atrás. Talvez um pouco de ambos – ainda
covarde, mas, quando você olha para sua antiga vida com olhos que
viram o Inferno, uma nova perspectiva é descoberta e você percebe
que só aguenta ser pressionado até certo ponto.
8
Cheguei aos aposentos de meu pai também sem saber por quê.
Descobrir mais sobre a guerra da mãe dele foi a desculpa que me
levou até lá, mas a Rainha Vermelha preferiria contar seus planos
ao bobo da corte – se tivesse um – do que a Reymond Kendeth.
Bati na porta do quarto dele e uma empregada abriu. Não
percebi qual empregada. O vulto na cama prendeu minha atenção,
curvado sobre si mesmo na penumbra, com os contornos
delineados apenas em alguns pontos, onde a luz do dia encontrava
uma fresta nas venezianas.
A empregada fechou a porta atrás de si ao sair.
Fiquei parado ali, sentindo-me como uma criança novamente,
sem palavras. O lugar cheirava a vinho azedo, mofo abandonado,
doença e tristeza. “Pai.”
Ele levantou a cabeça. Parecia velho. Careca, grisalho, a carne
afundada nos ossos, com um brilho doentio nos olhos. “Meu filho.”
O cardeal chamava todo mundo de “meu filho”. Centenas de
sermões empoeirados me vieram à mente – todas as vezes em que
quis um pai e não um clérigo, todas as vezes, desde que mamãe
morreu, que eu desejei ver o homem que ela via nele, pois,
arranjado ou não, ela não se entregaria a um homem por quem não
sentisse respeito ou desse valor.
“Meu filho?” repetiu ele, com a voz rouca. Bêbado outra vez.
O motivo pelo qual eu viera me escapou e me virei para sair.
“Jalan.”
Virei-me outra vez. “Então está me reconhecendo.”
Ele sorriu. Uma coisa fraca, quase uma careta. “Estou. Mas
você mudou, menino. Cresceu. Primeiro pensei que fosse seu
irmão... mas não saberia dizer qual dos dois. Você tem coisas de
ambos.”
“Bom, se for apenas me insultar...” Na verdade, eu sabia que
era um elogio, pelo menos a parte de Darin. A parte de Martus,
talvez. Pelo menos Martus era corajoso, e praticamente nada mais.
“Nós...” Ele tossiu e apertou o peito. “Tenho sido um péssimo...”
“Pai?”
“Eu ia dizer cardeal. Mas fui um péssimo pai também. Não
tenho desculpa, Jalan. Foi uma traição de sua mãe. Minha
fraqueza... o mundo passa tão rápido, e os caminhos mais fáceis
são... mais fáceis.” Ele se abateu.
“Você está bêbado.” Embora esse fosse um julgamento que eu
não podia usar contra ninguém. Nós nunca conversamos daquela
maneira, nunca. Muito bêbado. “Deveria dormir.” Eu não queria
aquelas desculpas esfarrapadas, esquecidas no dia seguinte. Não
conseguia olhar para ele sem repulsa, apesar de não saber se
aquilo era apenas medo de estar olhando para um espelho e vendo
a mim mesmo velho. Eu queria... Queria que as coisas tivessem
sido diferentes... Eu o via pelo outro lado da morte de mamãe agora.
Snorri havia feito isso por mim, me mostrado que a dor de um
marido pode arrasar até o maior dos homens. Queria que ele não
tivesse me mostrado – era mais fácil odiar papai, compreendê-lo só
me deixava triste.
“Devíamos... passar um tempo juntos, conversar, fazer o que
quer que...” Outra tosse. “O que quer que devemos fazer. Minha
mãe... bem, você a conhece, ela não foi tão boa nessa parte das
coisas. Eu sempre disse que me sairia melhor. Mas quando Nia
morreu...”
“Você está bêbado,” disse-lhe, percebendo minha garganta
apertada. Fui até a porta e a abri. De alguma maneira, não consegui
apenas sair – as palavras não queriam ir embora comigo, precisava
deixá-las no quarto. “Quando estiver melhor. Então conversaremos.
Ficaremos bêbados juntos, como deve ser. Cardeal e filho.”
“Peço a Deus que vovó tenha nomeado você marechal por um bom
motivo.” Darin se uniu a mim no alto da torre esquerda, entre as
duas que flanqueavam o Portão Appan, com a voz espantada. “A
maioria dos nossos primos achou que fosse piada.”
“A maioria?”
“Os outros acharam que foi castigo.”
Olhamos para os arredores de Vermelhão, a parte estendida da
cidade que se espalhava por quase um quilômetro depois das
muralhas e ainda mais seguindo a Via Appan, como se estivesse
desesperada para arrancar mais algumas moedas de qualquer
viajante que fosse tolo o bastante para ir embora. Pessoas mortas
lotavam o espaço diante dos portões – homens, mulheres, crianças
– os mortos cinzentos e descamados nos restos imundos de suas
roupas da cova; os mortos recentes, com as feridas ainda
escarlates, uma turba silenciosa que se estendia em volta das
muralhas, ao longo da estrada principal, apertada nos becos entre
as casas.
Mesmo a dezoito metros de altura e com uma brisa leve, o
fedor era invasivo e arranhava minha garganta, ardia meus olhos.
Várias refeições foram despejadas muralha abaixo. A visão e o
cheiro de seus primeiros mortos-vivos faz isso com você.
“Dei ordens expressas para não usarem arcos,” disse a
Renprow, agora com o sangue secando nele após nossa partida da
ponte às pressas. Uma boa quantidade dos mortos mais perto do
Portão Appan tinha duas, três, às vezes cinco flechas fincadas nos
braços e peitos – uma velha tinha uma no olho. “É um desperdício.”
“Mandarei a ordem novamente, marechal. Para os homens é
difícil não atirar quando o inimigo avança sobre as posições deles.”
Mandei Renprow embora com um aceno. Soldados da guarda
da muralha lotavam o topo da torre, na maioria homens de meia-
idade, muitos barrigudos e grisalhos, achando que passariam os
últimos anos caminhando pacificamente nas muralhas da capital. A
tarefa principal de um guarda da muralha de Vermelhão é avistar
incêndios. Fora isso, eles são basicamente uma reserva móvel da
guarda municipal, e a única agitação que veem é quando são
chamados à cidade para apoiarem seus escassos irmãos da farda
vermelha municipal.
“Saiam!” Atrás de mim, Martus abriu caminho no meio da
guarda, gritando para qualquer um que não se mexesse rápido o
bastante. “Saiam do meu caminho! Sou um príncipe, caramba.
Vou... Minha nossa...” Martus parou no meio da ameaça, estreitando
os olhos contra o sol poente e olhando para a horda de mortos.
“Minha nossa.” Ele ficou pálido. “Nunca vi nada parecido com...
isso.”
“Eu já.” Inclinei-me para fora, com as mãos nas ameias para me
apoiar. “Já vi pior.” E naquele momento percebi que, embora o medo
me atravessasse da cabeça aos pés, não era aquele pavor
debilitante que havia sentido em tantas outras ocasiões. Então
pensei que talvez soubesse o motivo de vovó ter me escolhido. “Já
vi o Inferno.” Levantei a voz. “Vi o Inferno e não é isso aí. Somos os
homens da Rainha Vermelha e temos toda Vermelhão nos
apoiando. Não é um bando de cadáveres emaranhados que irá tirá-
la de nós!”
Aplausos surgiram e me pegaram de surpresa. Para dizer a
verdade, foi Renprow que puxou, mas o fato é que os homens à
minha volta haviam perdido a coragem e algumas palavras fortes de
um homem assustado lhes devolvera um pouco dela.
“Em nome de Deus, como foi que...” Martus olhou para a
multidão novamente, “...um exército de três mil mortos chegou às
nossas muralhas sem qualquer alarme?”
Darin coçou a barba em seu queixo. “Como se não desse para
sentir o cheiro deles a um quilômetro de distância! Você não
mandou nenhum patrulheiro, Jal?”
Olhei para meus irmãos. Algumas pessoas os chamavam de
gêmeos, embora Martus tivesse porte mais pesado e Darin feições
mais afiladas. Ninguém jamais nos chamou de trigêmeos, mas na
verdade, se eu fosse cinco centímetros mais alto, talvez achassem
isso, com a luz fraca. Por mais que eu declarasse não gostar deles,
era bom ter a família me apoiando – ter gente comigo na torre que
genuinamente não esperava que eu resolvesse seus problemas ou
que fosse acertar.
“Tenho mais de cem homens em patrulha e nenhum exército
poderia atravessar por Marcha Vermelha sem notícias vindas das
cidades e vilarejos. Isso...” apontei para nosso inimigo, “...foi feito
aqui. A maioria deles provavelmente foi morta em suas casas nas
últimas horas, enquanto estávamos caçando ghouls pelo rio.” Eu me
perguntei quantos necromantes poderiam estar no meio daqueles
becos ou trabalhando em praças arborizadas, passando por fileiras
do meu povo, recém-mortos e estirados nos paralelepípedos lado a
lado, uma família de cada vez.
“O que vamos fazer?” perguntou Darin. O Darin de antigamente
que eu conhecia estaria me dizendo o que deveríamos fazer,
explicando tudo com uma confiança jovial. Estreitei os olhos para
ele, imaginando que bicho o mordera, até me lembrar dos três quilos
de carne nova e rosada que chegara recentemente. Misha pusera o
bebê nas minhas mãos quando ela e Darin finalmente me
prenderam no Salão Roma algumas noites atrás. Uma coisinha
minúscula.
“Demos o nome de Nia,” disse Misha. Olhei para a criança de
nome em homenagem à minha mãe e senti meus olhos arderem.
“Melhor pegar a ferinha de volta, antes que molhe minha
camisa,” falei, empurrando minha sobrinha de volta para a mãe, mas
era tarde demais. Aquela velha mágica que bebês fazem tão bem
havia me pegado, contaminando mais rápido que mijo, vômito, ou
qualquer outro fluido corporal que os recém-nascidos gostam tanto
de compartilhar. Até mesmo uma vida inteira fugindo de todas as
obrigações impostas a mim se mostrou insuficiente para me
desvencilhar daquela ali como das outras. Imagina para o pai como
não devia ser?
Darin pegou Nia e a levantou. “Se a minha garota quiser sujar
as penas de pavão do tio, será um atestado de seu bom gosto.” Mas
ele não ficou ofendido. Ele viu alguma coisa tomando conta de mim
no momento em que a segurei, apesar de eu ter tentado esconder, e
me deu um sorriso esperto e muito irritante.
“Quais são suas ordens, marechal?” perguntou capitão
Renprow, trazendo-me de volta ao horror do alto da torre e do
exército do Rei Morto.
“Minhas ordens?” olhei novamente para os mortos lá embaixo.
“Eles parecem não ser uma grande ameaça para a cidade principal.
Não têm máquinas de cerco, nem cordas, nem arcos. Será que
estão planejando nos matar de tédio?” Não fazia muito sentido. Eu
ouvia gritos fracos, trazidos pelo vento e vindos da cidade externa.
“Minha esposa está lá fora,” disse um homem com o uniforme
cinza da guarda da muralha, um soldado comum. Ele apontou para
uma pequena elevação com uma igreja em cima e casas
circundando-a como ondas. Um músculo se contorceu em sua
mandíbula. “Meus filhos e os filhos deles ficam na via Pendrast.”
Balançou o braço para indicar outra região, com fumaça subindo
acima dos telhados. “E mais...”
“Segure a língua, soldado!” disse um sargento pesadão, de
rosto vermelho.
“Vinte e três mil pessoas vivendo além das muralhas da cidade
de acordo com o último censo, marechal.” Renprow relatou o
número com a voz penetrante.
“Espero que estejam fugindo.” Esperei pelo bem deles e pelo
nosso. Se a horda de mortos fosse inflada por mais de vinte mil
novos recrutas, eles poderiam rodear a cidade de maneira tão eficaz
que ficaríamos sitiados.
“Será que não podemos...” Darin não terminou a pergunta, pois
sabia que a resposta era não. Não podíamos ir até lá.
“Não temos gente suficiente.”
Atrás de nós, uma equipe de homens lutava para posicionar o
escorpião, um enorme dispositivo de ferro, madeira e cordas, capaz
de atirar uma lança pesada a quatrocentos metros. De perto, ele
podia fazer essa lança atravessar a porta da frente de uma casa,
abrir um buraco em três homens atrás dela e sair pela porta de trás.
“Não podemos ficar aqui olhando para eles o dia todo,” falei.
“Temos mortos nas ruas e monstros do lodo. Eles precisam ser
pisoteados, e com força.”
Três dos quatro capitães da guarda da cidade haviam se unido
a nós no topo lotado da torre e agora estavam se aproximando. O
comandante deles, lorde Ollenson, iria supervisionar a operação no
rio – era isso ou participar de sua própria decapitação pública
amanhã – mas o alarme da muralha havia trazido os capitães
Danaka, Folerni e Fredrico para o meu lado.
“Danaka, quero você com três esquadrões na vigia norte.” Duas
torres davam para o ponto onde o Seleen entrava na cidade, cada
uma com os pés na água, terminando a muralha. “Fredrico, três
esquadrões para a vigia sul.” As fortificações que davam para a
saída do rio eram menos formidáveis. Qualquer barco que tentasse
entrar em Vermelhão por ali teria que lutar contra a correnteza,
tornando-o lento e pesado.
Virei-me para Folerni, um homem magricelo, com o olho
esquerdo leitoso, a sobrancelha acima e a bochecha abaixo dele
divididas por uma cicatriz. Seu visual me lembrava a Irmã Silenciosa
e eu fiz uma pausa. Antes que pudesse encontrar as palavras, um
uivo terrível se sobrepôs a qualquer coisa que eu teria dito. O tipo
de som que faria estátuas correrem no sentido oposto. Girei
lentamente na direção das muralhas, embora o som tivesse me
abatido e eu não quisesse olhar.
Meus olhos se fixaram em uma agitação depois dos mortos que
lotavam o Portão Appan. Algumas centenas de metros atrás, ao
longo da estrada principal, algo havia mudado nos cadáveres que
bamboleavam na direção da muralha. Parecia quase uma onda
passando pelas fileiras deles. Suas cabeças se estalaram para
cima, eles ficaram terrivelmente alertas e suas bocas se abriram
bastante para emitir aquele grito horrível. Talvez apenas os mortos
recentes pudessem gritar, mas parecia que o barulho vinha de
pulmões corroídos por muito tempo, a voz dos túmulos, a própria
morte falando de maneira nada suave. O uivo ondulante vinha
ameaçador, prometendo os piores tipos de dor.
A cada lugar por onde a mudança passava, os mortos se
moviam mais rápido, com uma energia desenfreada, subindo em
prédios e despedaçando telhados, procurando qualquer um que
pudesse ter sido deixado lá dentro, derrubando portas ou correndo
na nossa direção com um entusiasmo que subitamente transformou
as muralhas da cidade em um pequeno consolo. Ouvi arcos
rangerem ao meu lado.
“Não atirem.”
A onda de ‘despertamentos’ moveu-se continuamente na
direção dos portões, um bando denso dos mortos reanimados
avançando para frente. Mas eu percebi uma coisa. Antes de minha
temporada no Inferno, meus olhos teriam ficados fascinados demais
pelo horror daquele espetáculo para perceberem detalhes, mas o
tempo que passei lá me modificou. No fundo da onda, vi os mortos
voltarem a seu bamboleio, novamente mais próximos de
sonâmbulos do que de carcajus.
“Estão virando!” gritou Martus sob os gritos dos mortos.
A princípio, parecia que ele estava certo, mas eles não estavam
virando, era o efeito que estava virando. A área onde os mortos se
reavivaram desviou-se para a esquerda a cem metros dos portões.
Aqueles que estavam uivando por nosso sangue ficaram calados e
sombrios novamente, e outros mortos, homens, suas esposas e
filhos, de repente começaram a gritar nas ruas à esquerda da Via
Appan.
“É como se...” Falei as palavras apenas para mim. Era como se
eles sentissem algum calor terrível que os deixava violentos, e a
coisa que irradiava esse calor... estivesse em movimento. Tentei ver
onde o foco desse efeito estava... e vi um ponto se deslocando,
quase como se o mundo se dobrasse sobre si mesmo para ocultar
algo que os olhos não deveriam enxergar. “Ali!” Levantei a voz,
agora apontando. “Ali! Estão vendo?”
“Vendo o quê?” Martus se empurrou para o muro ao meu lado.
“Há... alguma coisa,” disse Darin do meu outro lado, apertando
os olhos. “Alguma coisa... errada.”
“Não estou vendo coisa nenhuma! Onde?” disse Martus,
protegendo os olhos contra os últimos raios de sol.
Fiquei olhando, rastreando o ponto, perdendo-o atrás de casas,
encontrando-o novamente. Um espaço onde a luz parecia se
desdobrar. Um ponto cego da visão. E então, apenas por um
momento, eu realmente vi. Talvez fosse o sol se pondo que me
emprestou um pouco da velha visão sombria que Aslaug costumava
trazer, ou talvez o Inferno tivesse treinado meus olhos para ver o
que as pessoas não deveriam ver. Um lampejo de movimento, um
corpo impossivelmente fino, branco como um nervo, coberto por um
manto oscilante cinzento: talvez substância de almas, fantasmas de
pessoas que assombravam o corpo do lichkin como uma roupa.
“Merda.”
“O quê? O que é?” disse Darin, ainda olhando.
“Um lichkin,” falei. Um lichkin, um dos parasitas que Edris e sua
laia botavam para transportar as crianças desnascidas que
matavam. Foi um troço desses que prendeu minha irmã e queria
apenas usar seu corpo para entrar no mundo dos vivos. Mas aqui
tínhamos um lichkin nu, que invadira o mundo sabe lá Deus por qual
fresta, e tão perigoso quanto um desnascido, pelo que havia visto no
Inferno.
“Aonde ele está indo?” perguntou Martus. O som dos gritos
ficou mais distante conforme o lichkin se afastou.
“Caçar,” disse, e senti o olhar de vovó sobre mim com tanta
certeza quanto se estivesse diante de seu trono, com aqueles olhos
duríssimos, sem o menor pingo de transigência. Finalmente me
lembrei de quando abri o estojo de pergaminho que Garyus me
dera, vi o selo da Rainha Vermelha e o rompi para ler as palavras de
seu próprio punho. Marechal de Vermelhão. E um bilhete: “Você diz
ter visto a defesa de Ameroth. Reze para ter aprendido essa lição e
reze com mais afinco ainda para jamais precisar demonstrar que a
aprendeu.”
Cem homens estavam atrás de mim e uma cidade atrás deles,
para eu manejar, para eu proteger. Em todas as minhas aventuras
pela face do Império Destruído, nunca quis tanto estar em outro
lugar quanto naquele momento. Olhei sobre os telhados lá fora,
todos à sombra agora, o céu ardendo, vermelho e fervilhante acima
do sol que se pôs. “Queimem tudo.”
Os uivos passaram, quase inaudíveis, e os mortos abaixo de
nós estavam em silêncio. Ninguém disse nada. Ouvi o agito das
bandeiras, o sussurro do vento e bem longe, dentro das muralhas, o
grito de um vendedor ambulante anunciando seus produtos.
Virei e andei em direção ao escorpião. Os homens abriram
caminho. “Queimem tudo.” Bati a mão na pesada lança carregada
na máquina. “Panos e óleo. Atirem nos telhados. Mandem avisar
todas as torres.”
Martus me agarrou e me virou. “Isso é loucura! Que diabos há
de errado com você?”
“Não podemos defender a cidade externa. De manhã já estarão
todos mortos, aumentando o exército em nossos portões.”
“É insano! Não está certo.” Martus me sacudiu, levantando a
voz, com murmúrios de todos os lados somando-se ao seu protesto.
“Você levaria o Sétimo lá fora?” Inclinei a cabeça na direção das
ruas escurecidas da cidade externa. Dava para ouvir gritos
distantes, mais uma casa invadida.
“Bem... eu...” Martus contorceu o rosto, prenunciando um de
seus rompantes furiosos. “Seria loucura.”
“Eu não deixaria.” Desvencilhei-me dele e procurei o guarda
que tinha apontado para sua casa, perto da igreja no morro. “Você.
Seu nome.”
“Daccio, alteza.” Ele estava com uma expressão de derrota,
sem raiva, embora ela agora aparecesse nos rostos de seus
companheiros.
“Daccio. Sinto muito mas sua esposa está morta, seus filhos
também. Ou estão escondidos em suas casas esperando ser
salvos.” Olhei em volta para a guarda da muralha, enfileirada de
cinza. “Você vai salvá-los? A guarda da muralha vai descer estes
muros pela última vez e se aventurar por onde o Sétimo Exército
tem medo de pisar? Ou será que os lichkin vão descobri-los? Se
não fizermos nada, ao amanhecer veremos sua família
ensanguentada diante de nossos portões.” Peguei um pano na base
do escorpião, um troço oleoso usado nos braços dos arcos para não
enferrujarem.” O fogo é limpo. Melhor queimar do que deixar
aquelas criaturas te pegarem. E que chance melhor nosso povo terá
de fugir do que na fumaça e confusão de uma grande
conflagração?” Coloquei o pano na mão de Daccio. “Faça isso.”
E ele fez.
14
Em matéria de tirania, até que tio Hertet não era tão terrível. Eles
me arrastaram, atordoado e desorientado, até uma de suas grandes
salas de estar, onde as ‘celas’ eram uma coleção de poltronas
grandes e confortáveis, às quais uns oito ou nove homens bem
vestidos estavam levemente acorrentados. Eu parecia um mendigo
perto deles, e uma empregada correu para pegar uma capa de
proteção antes que os guardas me jogassem em minha própria
cadeira confortável.
“Hertet gosta de manter seus inimigos por perto,” falei,
recostando-me com um gemido. Poucas partes de mim não doíam.
“Príncipe Jalan?” Uma voz preocupada bem atrás de mim. “Está
ferido?”
“Estou bem. A pior dor está no meu... corpo.” Estiquei o
pescoço para ver quem estava se dirigindo a mim. Apertando os
olhos contra os resquícios de visão dupla, identifiquei um homem
magro e careca com a última moda de Rhone, botões amarelos em
uma jaqueta de veludo preto. As duas imagens se uniram e
revelaram suas feições pontiagudas, ostentando uma mancha da
cor de vinho do porto abaixo de um olho. “Bonarti Poe!” Em minha
lista de prováveis rebeldes, Bonarti Poe me faria companhia na
seção dos covardes, lá no fundo. “O que você fez? Foi para cima de
meu tio gritando ameaças de morte?”
Poe deu uma gargalhada aguda e afobada. “Não! Não, jamais!”
Ele tossiu em um lenço rendado. “O rei me considera um homem do
conde Isen e não confia em mim.” Mais uma tosse e ele levantou a
voz. “Mas não existe homem mais leal ao trono de Marcha Vermelha
do que Bonarti Poe!”
“Isen é contra meu tio?” Aquilo soava promissor. Conde Isen
era mais louco que um saco de furões, mas muito capaz e com seu
próprio exército permanente.
“Tenho certeza de que a lealdade do conde é irrepreensível,”
retrucou Poe. “Mas ele ainda não conseguiu expressar sua opinião
sobre o assunto. Mesmo com o mensageiro mais rápido saindo de
seu salão imediatamente, o conde não deve estar nem perto de
Vermelhão. Receio que o rei tenha simplesmente antevisto uma
oposição onde não há nenhuma, tenho certeza.”
Eu tinha bem menos certeza, mas a opinião do conde não
importava, de uma maneira ou de outra, se ele ainda estava em
suas terras no sul. “Então estamos condenados a passar o resto de
nossas vidas neste maldito calabouço terrível?” me afundei ainda
mais na poltrona e sorri para a criada de serviço entre dois guardas
na porta. Uma moça bonita com cachos ruivos.
“Eles nos levarão para as celas de Marsail pela manhã,” disse
um lorde velho e caquético que reconheci mas não me lembrava do
nome. “Aquele garoto bobão está com medo demais para dispensar
os homens agora.”
“Hummm.” Testei minha corrente. Descobri que correntes
pesadas são só para mostrar. Uma corrente leve é que prende um
homem. Eu tinha mais chance de quebrar a perna da cadeira onde a
outra ponta estava enrolada. Na verdade, se não fosse a meia dúzia
de guardas posicionados em volta das paredes, eu poderia
simplesmente virar a poltrona para baixo e soltar a corrente. Mas
sem minha espada, minha faca confiscada e o fato de que eu não
tinha a menor intenção de lutar com seis guardas treinados, com ou
sem espada, minhas opções eram limitadas.
“Eles parecem estar se divertindo.” Os sons da conversa da
corte de Hertet nos alcançaram, um murmúrio baixo e contínuo,
entremeado por gargalhadas ocasionais ou salvas de aplausos.
“Estão morrendo de medo, a maioria deles,” disse o barão de
Strombol, um homenzinho corpulento e feroz que governava um
território considerável nas montanhas ao norte. “Apavorados com o
que está em nossos portões, com medo de que a Rainha Vermelha
não volte para salvá-los, ou com medo de que ela volte.”
“Ela não está morta?” Eu nunca acreditei nisso de verdade.
Achava que ela não podia morrer. Não uma mulher dura daquele
jeito. E a Irmã Silenciosa sempre pareceu velha demais para a
morte se preocupar com ela.
O barão jogou as mãos para o alto, batendo as correntes. “Vai
saber! Hertet diz que está, mas não tive nenhuma notícia disso além
da dele. Pensamento positivo?”
Apertei os lábios. Talvez aquela fosse a melhor chance que o
herdeiro não-aparente teria na vida de usar a coroa. Talvez ele
tenha simplesmente decidido apostar. Nós dois tínhamos a mesma
fraqueza. De apostas eu entendia.
Ficamos sentados e o tempo passou. Peguei um cálice de
vinho e belisquei uma tigela de azeitonas. Sorri para a criada e ela
fez cara feia para mim. Algumas partes de mim até pararam de doer,
apesar de saber que eu estaria andando como um velho amanhã,
se é que ia conseguir ficar de pé. Teria sido bem agradável, não
fosse a insistência de um pensamento indesejado. Eu havia deixado
a esposa e a filha de Darin aos cuidados de um necromante e
mandado apenas doze homens sob o comando de um cavaleiro
reluzente para salvá-las. Além da consciência farpada, também
tinha o ‘pavor acachapante’ para estragar minha noite. A certeza de
que as forças do Portão Appan logo desmoronariam, se é que já
não tinham desmoronado, e a maré de cidadãos mortos que tomaria
o palácio e mataria todos nós.
Tive menos de uma hora de descanso incômodo até os gritos
começarem. Eu os reconheci imediatamente, apesar de o som
chegar bem fraco pelas janelas com cortinas. O grito da morte,
saindo das bocas dos cadáveres por todo o complexo do palácio.
“Mas o que...?” O barão mexeu seu corpanzil nos limites
estreitos de sua cadeira.
“O lichkin está aqui.” Minha intenção era ser um anúncio
resignado, mas saiu mais como um sussurro agudo.
“O quê?” Bonarti Poe parecia tão assustado quanto um homem
podia estar a respeito de uma coisa sobre a qual não sabia nada.
“Uma coisa ruim,” falei.
Pelos barulhos, o lichkin não tinha vindo na liderança de uma
invasão pelo portão. Os gritos da morte estavam espalhados demais
e baixos demais para isso. Mesmo assim, havia muitos mortos, e o
lichkin por si só já era algo a temer. No Inferno, um único lichkin
derrotou Snorri ver Snagason em instantes.
Minha cadeira de repente parecia menos confortável, mais
como uma âncora prendendo a ovelha para o abate. A iluminação
das velas e lampiões do novo rei parecia ficar mais escura a cada
momento, como se fosse um segundo pôr do sol, que não ligava a
mínima para o trabalho dos homens, apenas fazendo a luz morrer.
As sombras se alongaram e ficaram mais escuras, contorcendo-se
de possibilidades.
E então o lichkin se aproximou. Dava quase para senti-lo
através do muro externo da Casa Milano, espreitando pela noite. As
cores morreram de tom em tom, deixando o ambiente deprimido, e
uma grande tristeza abateu-se sobre nós, mais sombria que o pior
dia de cão – a certeza de que a alegria havia desaparecido e que
nada mais ficaria certo no mundo outra vez.
Aquilo durou uma eternidade, mas finalmente a sensação foi
passando pouco a pouco. Os choramingos de Poe se acalmaram
em um suspiro profundo. A opressão melhorou o bastante para eu
imaginar o quanto deve ter sido terrível para os homens lá fora, no
escuro, apenas com a iluminação fraca das tochas e da lua entre
eles e aquele horror. Foi terrível até mesmo na segurança da luz, do
conforto e da proteção da casa.
Um grito mortal bem abaixo da janela respondeu à minha
pergunta e me fez dar um salto tão grande na cadeira que ela quase
virou. Homens morreram lá fora de puro medo, e agora estavam
dilacerando seus colegas vivos, espalhando horror e pânico.
Olhando em volta, vi que as cortinas tinham desenvolvido áreas
escuras onde o material apodreceu. As maçanetas de latão das
portas tinham um aspecto embaçado. Todos nós, prisioneiros e
guardas, parecíamos envelhecidos, como se tivéssemos passado
uma semana sem dormir.
“Precisamos sair daqui. Precisamos sair daqui. Precisamos...”
Um lorde magrelo de bigode fino ficou de pé num pulo, puxando a
corrente que o amarrava. Ele já tinha derrubado a cadeira e
conseguido tirar a corrente da perna quando os guardas o
derrubaram.
“Quieto! Quietinho!” Um dos guardas da confusão ficou de pé,
com a mão dolorida de socar o queixo do lorde magrelo. Ele parecia
mais assustado do que o prisioneiro caído, os olhos fundos naquela
cara de porco com uma expressão de ter visto o açougueiro vindo
lhe tirar o bacon.
Os sons de luta e de pânico chegaram a nós lá de fora. Gritos,
tanto dos mortos famintos quanto dos vivos aterrorizados, ecoaram
na frente da casa. Ouvimos venezianas se estilhaçando no
aposento ao lado do nosso.
“As janelas! Bloqueiem as janelas!” Fiquei de pé, levantei minha
cadeira, soltando a corrente da perna, e andei com ela na direção
das cortinas. Nenhum dos guardas se mexeu para me impedir,
apenas olharam em volta procurando qualquer coisa que pudesse
ajudar na tarefa.
Fui ajudar dois guardas que estavam fazendo força com uma
estante pesada, derrubando a valiosa cerâmica das muitas
prateleiras. Ninguém comentou o fato de a corrente em meu punho
estar pendurada, sem me amarrar a meu assento. Ajudei com uma
armadura e seu pedestal, e depois saí para pegar mais alguma
coisa para usar... e continuei assim.
Os sons da luta lá fora eram apavorantemente familiares. Se eu
fechasse os olhos, poderia estar de volta ao Portão Appan. Novos
sons próximos, de vidro quebrando e madeira estilhaçando, deram
um pouco mais de ritmo à minha fuga. Eu não tinha certeza da
distância que havia sido arrastado após ser levado da sala do trono,
nem em que direção seguir para sair do prédio. Nem tinha certeza
absoluta se queria ir lá para fora. Abri uma porta que dava para uma
biblioteca, que não era enorme, mas estava forrada de livros do
chão ao teto. As janelas não tinham cortinas – meia dúzia de arcos
altos e estreitos, cada uma contendo doze placas de vidro ligadas
com chumbo. Quando fui puxar a porta para fechá-la, sangue
espirrou nas janelas todas, exceto nos painéis mais altos. Como
uma onda de sangue quebrando no prédio. O desespero tomou
conta de mim e depois diminuiu quando o lichkin se afastou
novamente, perseguindo mais vítimas do lado de fora da casa.
Bati a porta, me virei e vi Hertet correndo pelo corredor na
minha direção, com a coroa torta na cabeça. Um grupo de
cavaleiros vinha atrás dele. Seu olhar passou por mim sem me
registrar, com o rosto pálido como a morte. Percebi que seu manto
dourado tinha um esguicho escarlate no meio, como se alguém
tivesse sido estripado na frente dele. Eu me espremi contra a porta
para deixá-los passar.
“Ele quer a chave!” gritei quando ele passou por mim. Não sei
ao certo por que disse isso.
Hertet parou e me viu pela primeira vez. “Jalan. Filho de
Reymond.” Ele estendeu a mão e tocou a minha. “Você sempre foi
um bom menino.” Sua outra mão tirou a chave debaixo da gola. Ele
a puxou e ela se soltou, embora a corrente parecesse forte demais
para se quebrar daquele jeito. “Aqui. Fique com ela. Você vai saber
o que fazer.” Ele dobrou minha mão em volta da chave de Loki e
seguiu em frente sem parar nem olhar para trás. “Podemos ir para
os porões e...” Não ouvi mais a voz dele debaixo dos passos das
armaduras dos cavaleiros que passaram por mim.
Fiquei parado por um instante no corredor, com sons caóticos
vindos da direção da sala do trono, gritos e urros ecoando de
tempos em tempos de sentidos aleatórios. O pretume da chave, fria
e pesada em minha mão, prendeu meu olhar. Consegui tirar a
atenção do presente de Loki e conferir os dois sentidos ao longo do
corredor, percebendo distraidamente uma longa mancha de sangue
pelo painel da parede oposta e um quadro, derrubado da parede,
com a moldura partida: o jovem Hertet olhando para mim com uma
expressão heroica e pegadas sobre o rosto. Na outra ponta do
corredor, três mulheres passaram correndo de roupa finas de seda,
uma velha, duas jovens. Num segundo elas estavam ali, no outro
sumiram.
Os gritos da sala do trono ficaram mais desesperados. Alguma
coisa bateu nas portas que saíam de lá com tanta força que os ecos
tremeram em meu peito.
A chave. A chave havia dado fim a um lichkin no Inferno. Mas
aquilo foi puro acaso. Sorte. Meu olhar se voltou ao negrume dela,
desvendando as lembranças daquela vitória, e num instante elas me
sugaram.
Snorri está diante de mim, um gigante de uma cor só, coberto pelo
sangue em pó do Inferno. Uma fissura atrás dele lança labaredas
carmim, e o ar se enche do cheiro de enxofre. Estou segurando a
chave de Loki à frente, na altura da cintura, e o lichkin sumiu,
ficando apenas uma mancha preta onde seus restos corrompidos
caíram ao chão. A chave o desfez. O lichkin deu um passo para trás
ao bloquear o ataque de Snorri e se empalou, só dois centímetros,
mas foi o suficiente. Eu girei a chave e o lichkin se desfez.
O olhar de Snorri está em minha mão. Ele achava que a chave
estava a salvo com Kara, lá no mundo dos vivos.
“Ora, vejam só,” digo, abrindo os dedos e revelando a chave
por completo. “O negócio é...” Eu tenho dificuldades de inventar uma
explicação. “O que é importante lembrar é que... sem isto, nós dois
estaríamos mortos.” Levanto minha outra mão para detê-lo. “E não
estou falando do tipo bom de morto. Do tipo muito, muito nojento.”
Eu me estremeço, lembrando-me da dor quando o lichkin me
segurou. Nunca havia sentido nada parecido, e nunca quero sentir
de novo.
“Você trouxe essa chave para Hel?” Snorri parece não ter
ouvido nenhuma palavra que eu cuidadosamente disse em minha
defesa. “Para Hel?”
“Ouviu a parte sobre salvar nossas vidas?”
Snorri parece assustado. É uma das coisas mais preocupantes
que já vi, em uma vida que é praticamente uma preocupação atrás
da outra. “Precisamos tirá-la daqui. Você tem que levá-la de volta,
Jal. Agora!”
Olho em volta. Um vale amplo e empoeirado iluminado por um
céu de uma cor triste e antiga. Aberturas de fogo, pedras de
formatos perturbadores espalhadas. “Como?” Não que vá discutir
sobre ir embora. Eu estava fazendo o possível para nem vir, para
início de conversa.
Snorri franze o rosto, concentrando-se, mas incapaz de segurar
seus pensamentos. “O que estava pensando? Esse tempo todo
você estava carregando...” Ele parece tão decepcionado comigo que
eu quase entendo o lado dele.
“Os gregos antigos tinham um salão de julgamento...” digo,
mais para distraí-lo.
“Os gregos? O que os gregos têm a ver com isso?”
“Bem...” Muitas vezes eu bolo meus melhores planos abrindo a
boca e escutando as palavras que saem. Desta vez, parece não
estar funcionando. “Bem... estávamos atravessando o seu
submundo, o domínio de Hel. E agora estamos no meu Inferno, ou o
Inferno do Rei Morto...”
“Mas a mitologia grega nós dois conhecemos desde sempre!
Então nós dois podemos dar forma a ela. Brilhante!”
A verdade era que eu tinha aprendido a antiga mitologia grega
na marra, durante o enorme desinteresse da adolescência, com um
professor que eu detestava, chamado Soros, que usava um cajado
pontudo e um sarcasmo afiado. Ainda não faço a menor ideia por
que aquilo era considerado necessário, mesmo que algumas
pessoas naquelas regiões tenham voltado a praticar o culto. Eu, no
entanto, a aprendi suficientemente bem para evitar o cajado, se não
o sarcasmo.
“Enfim. Os gregos tinham um salão de julgamento com três
juízes para direcionar as almas dos mortos a suas várias
recompensas e punições.” Começo a caminhar de novo. O lichkin
podia ser apenas uma mancha no chão, mas é uma mancha ao lado
da qual eu não quero ficar mais tempo que o necessário. Cuspo
para tirar o gosto de enxofre da boca. Não dá certo.
“Está pensando em sair das terras mortas dessa maneira?”
indaga Snorri. “Porque depois do salão de julgamento há um
enorme cachorro chamado Cérbero, e se você não for comido por
ele, depois vêm o rio Aqueronte e o rio Estige, que são os rios do
infortúnio e do ódio. O barqueiro supostamente é um...
“Não importa,” digo. “Não estou morto. Não deveria estar aqui.
Assim que eu chegar aos juízes, eles verão que estou no lugar
errado e vão me mandar de volta para casa. É isso que eles fazem,
mandam as pessoas para o lugar delas.”
“Você acha isso?” Snorri parece duvidar, que é o oposto do que
eu preciso.
“Acredito nisso,” digo. “E é isso que importa.” Parece-me que,
neste Inferno, um homem de determinação suficiente, um homem
disposto a sacrificar qualquer coisa talvez consiga dobrar o mundo
em torno de seu desejo e criar sozinho tudo aquilo que desejar.
Também me parece que eu não sou esse homem.
O longo passo de Snorri o traz para perto de mim. “Então tudo
que precisamos fazer é levar você ao salão dos juízes.”
“Esta é uma das partes mais fracas da ideia,” admito,
diminuindo o ritmo para procurar por pistas em volta, mas é claro
que não há nenhuma. Só poeira e pedras.
Snorri continua andando. “Você não entendeu esse lugar
ainda,” diz ele sobre o ombro. “A direção não importa. É como nos
sonhos. As coisas que você quer vêm até você. As coisas que não
quer também.”
Eu corro para alcançar. “Vamos simplesmente andar nesta
direção?”
“Sim.”
“Até encontrarmos?”
“Sim.”
“Kara disse que a porta estaria em toda a parte,” digo, sempre
querendo evitar uma longa caminhada.
“Se você a vir antes de chegarmos lá me avise.” Snorri ri.
“Como você acha que esse salão deve ser? Quais são os nomes
dos juízes?”
Caminhamos por um vale que lentamente se torna plano, sob
um céu que escurece aos poucos, lançando sombras sobre nós.
Durante todo o tempo, conversamos sobre o submundo de Hades,
os deuses do Olimpo e as lendas que os antigos criaram sobre tudo.
Depois dos Mil Sóis, muitos perderam a fé no Deus de Roma e
voltaram-se para deuses mais antigos, cujos fracassos estavam
muito distantes para relembrar. Enquanto lembramos da forma e da
história de Hades, nós nos vemos entrando nela, ou melhor, na
parte das terras mortas moldada pela fé daqueles que acreditam
nessas histórias.
“Qual é o lance dos infernos pagãos com cachorros?” pergunto.
“E rios?”
“Como assim?” Um tom defensivo aparece na voz de Snorri.
“Os gregos têm o rio Estige, cruzado por um barqueiro que
deixa você em uma margem guardada por um enorme cão chamado
Cérbero. Os nórdicos têm o rio Gjöll, cruzado por uma ponte que
leva você a uma margem guardada por um enorme cão chamado
Garm.”
“Não estou entendendo.”
“É como se vocês tivessem copiado item por item, só mudando
um ou outro detalhe e usando seus próprios nomes.”
A discussão que se seguiu me distraiu do sofrimento inclemente
que é andar nas terras mortas. Inferno é inferno, não importa em
que mitologia você o enfeite. Todas as partes de mim estão secas.
Todas as partes doem. A fome e a sede fizeram de mim sua
morada, no fundo dos ossos. À medida que escurece, qualquer
esperança que havia em mim murcha e minha língua perde o
interesse em conversar... a não ser discutir, atormentar o nórdico,
isso ainda tem apelo suficiente para me impedir de deitar na poeira
e esperar minha vez de soprar no vento.
Jalan.
É só a brisa, dizendo meu nome em uma pausa na conversa.
Jalan.
Mas quando o vento diz seu nome na escuridão do Inferno,
existe um arrepio que vem junto.
Com o tempo, até o prazer de irritar Snorri diminui e eu prossigo
cambaleando, carregando um fardo insuportável de dor e exaustão.
Meus arredores podiam ser só escuridão, poeira e um vento
contrário baixo, porém constante, mas na minha cabeça eu voltei ao
inferno singular que foi nossa viagem pelo Gelo Implacável. Estou lá
mais uma vez, com os nórdicos morrendo ao meu lado a cada
passo, Ein, Arne e Tuttugu, todos nós nos arrastando por aquele
deserto branco sem nada para nos impulsionar para frente, além
das costas largas de Snorri ver Snagason sempre em movimento.
“Para cima!”
Descubro que caí de joelhos, de cabeça baixa, sem me mexer.
“Peguei você.” A mão de Snorri se fecha em meu braço e ele
me põe de pé.
“Desculpe.” Sigo em frente.
“Este lugar derruba qualquer um,” diz ele.
“Desculpe.” Estou exausto demais para explicar, mas lamento
por tudo. Lamento que tive de ser arrastado por aquela porta antes
que pudesse cumprir minha promessa, lamento por deixar Snorri
sozinho no Inferno, lamento pela família dele, lamento por não
acreditar em sua busca, lamento por saber que irá fracassar.
“Desculpe por...”
“Eu sei,” diz ele, e me pega antes que eu caia novamente. “E
nenhum homem que atravessa o Inferno por um amigo tem que
pedir desculpas por alguma coisa.”
“Eu...” Um som ao longe, fraco, me poupa de mais besteiras, e
logo some. “O que é isso?”
“Também ouvi.”
Depois de ouvir apenas o vento por tanto tempo, o grito
estranho parecia pressagioso.
Ele surge novamente, um pouco mais alto.
Jalan.
Mais alto que minha imaginação desta vez. Uma voz, dizendo
meu nome, ou pelo menos fazendo o som dele, tornando-o algo
estranho.
“Corremos?” Descubro que tenho mais energia do que
pensava. Não suficiente para correr, isso é só o medo falando, mas
o suficiente para sair cambaleando em um ritmo decente.
“Vamos continuar seguindo.” Snorri vai na frente.
“Mas o que é isso?”
“O que você acha que é?” pergunta ele.
Jalan. É quase a maneira que minha mãe costumava dizer meu
nome. A maneira que uma criança tem dificuldade de reproduzir as
duas sílabas. Não quero dizer, como se identificar meu medo o
tornasse real, mas de alguma forma eu sei o que está por vir, o que
está nos caçando. No Inferno, com sua falta de direção peculiar,
todos os seus medos encontram você mais cedo ou mais tarde. É
minha irmã e o lichkin que se vinculou a ela para corromper sua
alma. Se me matarem aqui, minha morte abrirá um buraco pelo qual
eles poderão passar para o mundo dos vivos. A rainha desnascida,
o condutor e a conduzida, nascidos em um corpo morto tantos anos
após a concepção. Todo o potencial de minha irmã solto pelo mundo
nas mãos de um lichkin... Para ser sincero, todas essas outras
coisas são apenas a cobertura de um bolo altamente intragável – eu
parei de me importar depois da parte de “me matarem aqui”. “Aquilo
ali é uma luz?” apontei.
“Sim.” Snorri confirma que não estou alucinando de puro pavor.
JALAN! O berro vem de trás de nós, distante, mas não distante
o bastante. JALAN! Logo se vê que eu consigo correr.
Snorri corre ao meu lado e, com uma lentidão agoniante, a luz
passa de uma para muitas, contornando o telhado e muitas colunas
de apoio de um prédio alto, todo esculpido em pedra branca,
exatamente como descrevemos um para o outro.
Almas se aglomeram na escuridão perto do tribunal. De tempos
em tempos, uma nova alma desce correndo os degraus, uma
lembrança translúcida de um homem ou uma mulher, sem manter
uma única forma, mas passando por memórias de suas vidas,
principalmente momentos de terror. Nenhum fica onde a luz incide,
eles correm até a escuridão os abrigar, como se a luz dos juízes os
queimasse. Eles se afastam de Snorri e de mim também. Talvez doa
olhar a vida que ainda persiste em nós, com olhos nos quais não
resta nenhuma.
Paramos a cem metros do salão com muitos pilares. Paredes
brancas e largas se erguem atrás dos pilares, cada centímetro
esculpido com cenas lendárias. Uma porta está aberta, permitindo
às almas julgadas fugir da culpa. Nossos rostos são jogados em um
relevo acentuado pela iluminação inclinada. Mesmo de longe,
aquela luz promete água corrente, ar quente e coisas verdes
crescendo.
O ar parece frágil aqui, cheio de possibilidades. Tenho essa
mesma sensação quando as almas dos mortos atravessam do
mundo dos vivos e avisto o céu azul pelos buracos que eles fazem.
Este é um lugar de portas. Posso sentir a chave em meu peito, fria e
depois quente, vibrando em algum tom inaudível. Quando Kara
disse que a porta entre a vida e a morte estava em toda parte, era
só papo. Era tão impossível avistar aquela porta do meio do Inferno
quanto da praça da feira de Vermelhão em um dia quente. Mas
aqui... aqui parece que minha casa está logo ali. Aqui parece que a
porta que preciso pode surgir do nada e aparecer na minha frente. O
mundo dos vivos está tentadoramente próximo, só é preciso... que
alguma pequena coisa aconteça, como uma palavra perdida
finalmente saindo da ponta da minha língua, para eu poder ver a
porta...
Meu nome soa novamente, um uivo, agora alto, ecoando pelas
paredes, um barulho ondulante e vazio em um instante e violento no
outro, cheio de apetite e malícia. Dou mais um passo para a luz.
“Deveria vir comigo, Snorri.” As palavras são difíceis de dizer. “Você
já viu este lugar. Nada de bom pode ser tirado daqui.”
Espero pela raiva, mas não há nenhuma raiva nele. Ele abaixa
a cabeça, recusando-se a olhar para o brilho perante nós. “Arran
Vale.”
“Quê?” Eu quero ir, mas fico.
“Você se lembra de Arran Vale?” pergunta ele.
“Hum.” Eu deveria estar correndo, mas a coragem de Snorri
não me deixa. A imagem que ele tem de mim me prende aqui. Eu
deveria estar em disparada até o salão, mas em vez disso fico
parado e tento responder a ele. Arran Vale? Minha mente percorre
nomes, rostos e lugares, dezenas, centenas, todos conhecidos em
nossas longas viagens. “Talvez... um vale em Rhone? Perto daquela
cidadezinha com uma igreja e três bordéis, onde...”
“O avô de Hennan, neto de Lotar Vale.”
“Quem poderia se esquecer de Lotar Vale? O herói em quem
você nunca tinha ouvido falar até o momento em que o velho disse
esse nome!”
“Não importa.” Snorri levantou a cabeça para me olhar
fixamente com aqueles olhos azuis. “O que importa é que Arran Vale
tinha uma história, raízes, um motivo para viver, um motivo que valia
pena defender.”
“Só me lembro que você e Tuttugu estavam prestes a jogar a
vida de vocês fora ao lado de um velho fazendeiro qualquer que
tinham acabado de conhecer, tudo isso para defender seu casebre e
objetos sem valor de vikings que provavelmente nem se dariam ao
trabalho de roubá-los.” O chão está tremendo agora, a poeira
começando a dançar. Minha irmã está perto e se aproximando
rápido.
“Uma vida bem vivida é aquela que você não está preparado
para fazer concessões só para prolongá-la por mais um dia.”
“Bem...” Ler a lista de coisas que eu faria para viver mais um
dia consumiria todo o dia extra em questão.
“A questão é que existem coisas pelas quais estou preparado
para morrer. Momentos em que o certo é tomar uma posição, seja lá
quais forem as chances. E se Tuttugu e eu fizemos o que fizemos
pelo avô de Hennan, um velho que, como você bem disse, nem
conhecíamos, então o que acha que sou capaz de fazer pelos meus
filhos? Por minha esposa? Se é ou não é possível ganhar não faz
diferença.”
Já tivemos essa conversa antes. Eu não esperava que ele
tivesse mudado, mas às vezes é preciso tentar.
“Boa sorte!” Bati a mão no ombro de Snorri e saí. A escuridão
atrás dele parece mais forte, como se uma tempestade estivesse se
aproximando de nós. Ela está no centro dela, aquela cuja boca sabe
meu nome: minha irmã sem nome e o lichkin que está usando sua
alma.
Estou a cinco metros de distância quando ele diz: “Mostre-me a
chave.”
Estendo as mãos, uma na direção de Snorri e a outra para a
porta do salão dos juízes. “Tenho que ir!” A noite infernal está
fervendo a escuridão atrás dele, e o grito surge novamente, tão alto
que abafa minhas objeções. Todos os pelos do meu corpo tentam se
eriçar.
Mesmo assim, puxo a chave de dentro de minha camisa, no
cordão em volta do pescoço, e corro de volta até ele. Snorri tira a
faca do cinto e encosta a lâmina na palma da mão.
“Jesus, não!” Eu balanço a mão no que espero ser um sinal
negativo. “Que mania é essa que vocês nórdicos têm de se cortar?
Eu me lembro do que aconteceu da última vez que você
experimentou essa merda viking comigo. Que tal um simples aperto
de mão?”
Snorri sorri. “A chave será nosso elo. Você de volta no mundo.
Eu aqui. O sangue nos unirá.” Ele corta a palma e eu me estremeço
só de ver o sangue brotando onde a ponta da faca passou.
“Como é que você sabe disso?” Eu ainda espero que haja uma
maneira de sair dessa sem ter de abrir um corte em mim. Uma
névoa escura está surgindo agora, afastando a luz. As almas se
espalham. Elas sabem que algo ruim está chegando. De repente me
vejo preparado para cortar a mão fora, se isso significar que posso ir
embora. Mesmo assim eu fico, com a amizade de Snorri me
prendendo da mesma maneira que quase me puxou pela porta do
Inferno. “O sangue nos unirá? Você está inventando isso agora, não
está?”
Snorri olha nos meus olhos, os ombros levemente encolhidos.
“Se aprendi alguma coisa com Kara é que na magia o que conta é a
determinação. As palavras, os feitiços, pergaminhos, ingredientes...
é tudo para mostrar, ou talvez seja melhor dizer que são como as
armas do guerreiro, mas é a força do braço do guerreiro que
realmente importa. Ele pode matá-lo com as mãos, com ou sem
arma.” Ele estende a mão e a fecha sobre a chave. “Este será nosso
elo. Quando você abrir a porta, irá me encontrar.”
A escuridão ficou carregada à nossa volta, e fria. É como se
Snorri não visse, no entanto: ele não tem medo. Já eu tenho o
bastante para nós dois. Um uivo surge com a meia-noite, do tipo
que mil lobos fariam... se ateasse fogo a eles. Perto agora. Perto e
se aproximando rápido.
“Como é que eu vou achar a porta? Como vou saber que está
pronto para voltar? Minha nossa, olhe, eu preciso ir...”
“Você precisa desejar para que isso aconteça.” Snorri puxa a
mão para trás. Não há sangue na chave, embora seu punho
fechado esteja pingando vermelho. “Vai funcionar – ou não vai. Era
para Kara abrir caminho para meu retorno. Kara ou Skilfar, se ela
tivesse levado a chave de volta para sua avó como lhe prometera.
Agora tudo que tenho é você, Jal. Então guarde a chave em
segurança e escute meu chamado.”
Guardo a chave. “Vou escutar.” Nem é tanto uma mentira. Eu
nem sei o que ‘escutar’ significa. No meu peito, a chave esquenta
como se a mentira a agradasse. Tento pensar em algumas últimas
palavras para Snorri. ‘Adeus’ parece pomposo. ‘Fique bem’
obviamente não vai acontecer.
“Infernize-os.”
O uivo está tão alto e próximo que parece um soco. Estou
correndo, correndo em direção à luz, aquela luz maravilhosa, viva,
de olho na entrada.
“Tenha cuidado!” grita Snorri atrás de mim. “Eles irão testar
você.”
Não gostei nada de ouvir isso, mas com ou sem teste, estou
indo para casa.
Eu me aproximo da porta e passo correndo pela alma de uma
moça que está acabando de sair. Posso ver o pavor em seus
contornos fracos. Ela corre, abaixada, como se uma grande águia
pudesse arrebatá-la a qualquer momento. Eu faço praticamente a
mesma coisa, só que na direção contrária.
A escuridão vem atrás de mim como uma onda correndo para a
praia, me ultrapassando dos dois lados, congelando meus
calcanhares. Eu voo pela porta, conseguindo tropeçar no degrau e
caindo estatelado no corredor lá dentro. Ao olhar para trás com
medo, vejo a escuridão bater no prédio e a entrada virar um
retângulo preto, um tremor atravessar o chão, mas nem uma gota
da escuridão entra na passagem onde estou caído, e não se vê
nada do horror lá fora. Se ela está uivando lá, não dá para ouvir.
Eu me levanto, sacudindo a poeira, ainda olhando
nervosamente para a escuridão lá fora. Preparando-me, arrisco
desviar o olhar para o salão dos juízes. Não é o que eu esperava.
Não há tribunais, nem almas enfileiradas esperando o veredito de
suas vidas, nem o trio dos bastardos de Zeus sentados em
julgamento. Não existe nada além de um longo corredor, longo
demais para caber no prédio, embora a estrutura seja imensa. Do
outro lado, alguma coisa ardendo, brilhante – um azul, um verde,
uma promessa. Tudo que preciso fazer é andar para frente e estarei
em casa. Sinto isso bem fundo. Nem preciso da chave do mentiroso.
Este é um caminho verdadeiro, por onde podem passar os justos.
Dou um passo à frente e portas aparecem ao longo das duas
paredes. Uma porta simples de madeira a cada dez metros, muitas
delas. Dou mais um passo e cada uma delas se abre, primeiro as
mais próximas, depois as seguintes no próximo instante, e assim
por diante, criando uma onda na direção da promessa azul-verde ao
longe.
É fácil passar pelas salas atrás das primeiras portas. A primeira
à esquerda está vazia, a não ser por uma bolsa jogada no meio do
chão. A da direita também está vazia, exceto por moedas de prata
espalhadas. As duas seguintes estão vazias, exceto por uma
espada jogada e um pequeno caixão fechado.
“Está tentando me provocar?” A risada vem fácil e eu aperto o
passo, sem nem olhar para as salas ao passar.
Cem portas depois, paro como se tivesse batido em um poste.
O cheiro mais delicioso da história dos aromas entrou em meu nariz
e virou minha cabeça sem pedir permissão. Uma mesa foi posta na
sala à minha esquerda. Uma mesa simples, sem toalha ou prataria,
e nela há um prato de madeira onde meia galinha assada está
fumegando. Minha boca se enche de água instantaneamente, e meu
estômago dá um nó apertado e exigente. Toda parte de meu corpo
grita de desejo por aquela carne assada e quentinha. Vivi com fome
no Inferno por tanto tempo que meu corpo literalmente grita em
resposta ao chamado de uma boa refeição.
Soluçando, eu me afasto, só para ver na sala oposta um
simples cálice de vidro transparente, cheio de água. No momento
em que ponho os olhos nele, sei que aquela é a mais pura das
águas de nascente, brotando de baixo de pedras antigas, e que
deixá-la fluir por minha garganta seca e tocada pela morte levará a
sede embora num instante. A qualquer pessoa que não conhece o
ressecamento das terras mortas, a noção de que um homem possa
se sacrificar apenas por um copo d’água pode parecer loucura. Mas
é algo que precisa ser vivido para se compreender. Já estive seco
no deserto de Sahar. É coisa pouca, comparada à sede que um dia
no Inferno dá a um homem.
Mesmo assim, eu me afasto e continuo cambaleando, com o
corpo dolorido pela vida despertada nele de maneira tão repentina
pela proximidade do mundo, após tanto tempo caminhando nas
terras mortas.
Outros cheiros me atacam, cada um mais delicioso que o outro.
Maçãs, caramelos, pão assado na hora... cerveja. Cerveja nova,
cheirando a lúpulo, o som dela saindo da torneira... isso quase me
fez virar. Dou uma olhada nas salas: uma é um prado ensolarado,
outra um cavalo pronto para ser montado, um animal magnífico, os
músculos amontoados sob o pelo escuro, pronto para galopar o dia
todo. Há salas onde tesouros jazem aos montes, ouro suficiente
para comprar reinos inteiros. Concentro minha visão naquele
retângulo distante de grama verde e céu azul, mais perto a cada
passo. Minha determinação é de ferro. Eu compreendo o teste e não
virarei.
Estou a vinte metros da porta final. Consigo ver o céu azul, o
verde do jardim e um muro atrás. Parece o jardim real de ervas
atrás dos estábulos dos mensageiros. Começo a correr.
“Volte para a cama, Jal.”
Uma olhada de soslaio e eu paro, viro e dou três passos para
trás. Reconheço o ambiente, um quarto. A luz entra na diagonal
pelas venezianas, dividindo a cama em linhas paralelas de luz e
sombra. Cada linha clara passa sobre ela, descrevendo seus
contornos, a pele morena e macia naquele corpo quente. Ela está
deitada nua, exatamente como a deixei, os lençóis de seda indo até
a metade de suas costas e acompanhando suas curvas tão
fielmente quanto a luz.
“Lisa?”
Ela não fala, apenas dá aquela espreguiçada lânguida que só é
possível nos momentos entre acordar e dormir.
Esta é uma porta para o passado. O próprio ar cintila com
aberturas, rachaduras para o mundo, cada uma levando a novas
possibilidades, novas versões da minha vida. Se eu tivesse ficado
com ela naquela manhã, se tivesse virado na porta quando ela me
chamou, ainda meio sonhando, se tivesse me deitado ao lado dela
mais uma vez... nada disso teria acontecido. Eu teria perdido a
reunião de vovó. Eu nunca teria visto Snorri. Ele teria seguido seu
próprio caminho para casa. Eu teria vivido como sempre vivi. Talvez
teria pedido Lisa em casamento e gastado seu dote pagando
Maeres Allus, e os dias ociosos, fáceis e suaves da minha vida
teriam continuado.
Esse pensamento me avassala. Volte. Volte atrás. Faça de
novo. Esse pensamento e aquela vivacidade gloriosa dela, após
tanto tempo nas terras mortas. Lisa DeVeer, alta, magra, bonita,
quente, macia, vital. Percorra o corredor e retorne ao presente, ao
palácio de Vermelhão, onde ela está casada e o mundo está contra
mim... ou vire aqui no último momento e volte para aquela primeira
manhã onde tudo deu errado e poderia ter sido evitado com tanta
facilidade.
Um passo é o bastante. O resto eu nem me lembro. Ponho a
mão no quadril dela e me sento ao seu lado. Começo a tirar as
botas. Lisa estende a mão para me puxar até ela, virando
lentamente, os cabelos escuros caindo sobre os ombros.
Ela não tem rosto, apenas uma cabeça afunilada de onde saem
muitas presas de cobra, afiadas, pingando veneno. Eu caio da cama
com um grito de pavor, rasgando a camisa, com a maior parte
ficando nas garras dela. Pego a chave e sairia correndo para a
porta, mas não há porta nenhuma. Engatinho para trás no chão do
quarto enquanto aquela coisa que não é Lisa se levanta da cama.
Encurralado em um canto, estico a mão para abrir a veneziana, mas
tudo que ela mostra é o céu morto do Inferno – a condenação
espera por mim lá fora. À luz morta, os brilhos onde os mundos se
esbarram aparecem com mais clareza, e a Não-Lisa se parece mais
com alguma coisa feita, em vez de nascida, carne impura sobre
ossos antigos. Ela sai da cama, desajeitada, os membros se
contorcendo, e vem em minha direção.
No desespero, enfio a chave no lugar mais próximo onde a luz
se fratura. Não é uma porta, mas quase poderia ser. É uma quase
chance, e eu a aproveito. Sinto a chave de Loki se enganchar,
prendendo os dentes em alguma coisa... e eu a viro.
Um instante depois estou caindo no forno do Sahar, areia
escaldante, calor ofuscante, um lugar que devora a esperança e
enterra os ossos... e a sensação é ótima.
“Marechal?” Alguém balançou meu braço, com força. “Marechal!”
É Bonarti Poe, pálido e tremendo. Tirei os olhos da chave e me
vi sentado no corredor, exatamente onde estava quando Hertet a
pressionou em minhas mãos.
“Quanto tempo eu...”
“Acho que todos estão mortos!” Poe olhou para a passagem
atrás. Um grito horrível ecoou para contradizê-lo – o tipo de grito
que ouvimos em câmaras de tortura.
“Precisamos ir.” Fiquei de pé usando a parede para me escorar.
Estava escuro, apenas um lampião gotejando em um nicho entre
nós e a porta da sala do trono, com o óleo já quase no fim.
“D-disseram que você sabe a respeito... dessa coisa que está
nos atacando?” Bonarti ainda não havia soltado meu braço.
“Já vi um no Inferno.”
“Ai meu Deus.” O aperto dele começou a doer, então eu o
afastei. “Mas você sabe como derrotá-lo, certo?”
A porta no fim do corredor se estilhaçou em pedaços,
poupando-me de uma resposta. O lichkin estava lá, como uma
ferida em meu olho, ali porém invisível, avistado no momento
seguinte, não como aquele nervo branco e exposto, mas envolto em
fantasmas, usando as almas cinzentas das pessoas como uma pele.
O ar entre nós se ondulou, com falhas e fraturas vistas em um
instante e depois sumindo, algumas brilhantes, algumas escuras.
Foi sobre essa destruição que Luntar nos alertara. Não o lichkin
causando mortes às pencas, aos milhares, mas a quebra da
criação. Eu tinha visto as mesmas fraturas quando o salão dos
juízes ficou no limiar entre mundos, e aqui a criatura do Rei Morto
fez dois mundos se chocarem, levando os habitantes do Inferno de
volta a seus corpos e para a terra dos vivos. É da natureza de
qualquer rachadura se expandir e, com o giro lento da Roda
impulsionando-as, as fraturas se alastrariam cada vez mais rápido e
mais longe. A Roda de Osheim podia estar a incontáveis
quilômetros de distância, mas sua influência chegava ao coração de
todos os lugares, levada pelo imenso e incansável maquinário dos
Construtores, ainda pulsando com a energia deles, apesar de
estarem mortos há mil anos.
O lichkin se aproximou lentamente, como se nos desafiasse a
correr. Eu sabia como aquele troço podia ser rápido e não fiz
nenhum movimento que o pusesse em ação. Apenas me ative
àqueles últimos momentos de vida que me restavam. Bonarti, que
não tinha esse conhecimento, saiu correndo. Deu dois passos até o
lichkin acertá-lo nas costas. Ele fluiu para dentro dele como um
tendão sendo sugado por uma boca faminta. Avistei um brilho
branco como um nervo quando a última parte de seu corpo delgado
desapareceu sob a pele para envolver a coluna dele. O manto de
fantasmas do lichkin se afastou quando ele encontrou um corpo,
enrolando-se como fumaça em torno do homem paralisado.
O grito de Bonarti felizmente foi curto, mas sua dor não
terminou com ele. Um instante depois, uma centena de cortes de
navalha se abriram por todo seu corpo, apenas na profundidade da
pele. Com o lichkin ancorado no corpo de Bonarti eu teria corrido,
mas ele bloqueou meu caminho para longe da sala do trono, e na
entrada dela cadáveres se aglomeravam, ávidos, contidos apenas
pelo desejo do lichkin de brincar com sua comida. Eu não tinha para
onde ir nem onde me esconder.
Bonarti se virou para mim com os olhos arregalados e a boca
retorcida em um sorriso que não era dele. Sua pele começou a
descascar, uma dúzia de faixas largas esfolando-se lentamente
entre os cortes paralelos. Chega um ponto em que você fica com
tanto medo que realmente não importa para onde está correndo,
contanto que esteja correndo. Eu sabia que todas as semiaberturas
e chances partidas que estavam por trás das fraturas à minha volta
levavam direto ao Inferno, mas, para ser franco, o Inferno já tinha
vindo visitar e, por mais terríveis que todas as partes dele fossem,
eu preferia estar correndo para alguma parte que não tivesse um
lichkin. A criatura tentou me pegar com a mão vermelha e em carne
viva de Bonarti, com a pele esfolada pendurada. Com o mesmo grito
que um homem dá ao se preparar para alguma tarefa terrível, como
cortar fora um membro para escapar de um incêndio, enterrei a
chave de Loki na fratura mais próxima. A falha mais próxima cintilou
na parede ao meu lado e havia quase sumido quando minha mão a
alcançou. A chave encontrou seu encaixe e ficou ali, ancorando a
fratura. Os dedos úmidos de Bonarti encontraram meu pescoço e,
ainda gritando, girei a chave.
Naquele momento pareceu que o mundo se quebrou. Em vez
de atravessar o buraco que abri, eu voei para trás quando alguma
coisa grande saiu dele me jogando para o lado. Alguma coisa
grande, dura e veloz.
Snorri golpeou por cima da cabeça e seu machado atravessou
a clavícula de Bonarti Poe e entrou fundo em seu peito. A bota
pesada, esmigalhando as costelas, deu o apoio para puxar de volta
a lâmina de Hel. O próximo golpe do nórdico veio de lado, antes do
corpo de Bonarti bater no chão, arrancando seu braço na altura do
cotovelo e entrando na direção da espinha.
Snorri acompanhou o corpo, rugindo, com poeira avermelhada
saindo de seus cabelos e roupas. Atrás dele, a janela aberta para o
Inferno começou a se fechar, e a realidade ainda foi capaz de se
curar. Por pouco.
O lichkin forçou o corpo de Bonarti a rastejar sob a saraivada de
golpes de machado. Os fantasmas surgiram para cegar e arranhar
Snorri, mas ele mal notou, cortando fundo a carne do homem
debaixo dele. Filetes brancos se esticaram, procurando outros
corpos, carne morta para habitar, mas o nórdico os atingiu com
agilidade e eficiência. Adequadamente atrelado a um hospedeiro,
como os lichkin fazem com os desnascidos, aquele monstro poderia
ter sugado os mortos e os vivos de maneira mais eficaz para se
restaurar, mas este lichkin desgarrado havia se tornado imprudente,
querendo brincar com a comida e, ao se enrolar tão fortemente em
volta de Bonarti, acabou ficando vulnerável.
A carnificina continuou comendo solta. Snorri sabia que seu
inimigo estava enterrado no fundo do corpo à sua frente. Eu avistei
a brancura do lichkin quando o machado de Snorri estraçalhou a
espinha de Bonarti. Um segundo depois, a criatura começou a se
desenrolar dos destroços do cadáver. Mas, assim como eu, Snorri
parecia conseguir enxergá-lo, com o tempo que passou nas terras
mortas contribuindo algo para sua visão. Seu machado virou um
borrão, cortando o lichkin, de alguma maneira tornando-o sólido
naquele momento em que tentou se livrar do corpo. Talvez ter
passado tanto tempo no Inferno havia dado ao machado de Snorri a
capacidade de encontrar até mesmo o lichkin, ou molhar o machado
com o sangue de demônios havia encantado a lâmina. De uma
maneira ou de outra, cortava.
Em Trond, realizam-se competições para espantar o tédio do
inverno. Em uma delas, um nórdico precisa meter o machado no
tronco de um abeto, da grossura de um homem, e o primeiro a
atravessar totalmente o tronco é o campeão. O ataque de Snorri ao
lichkin era bem parecido àquela competição e, antes que aquele
troço escapasse dos destroços de Bonarti, ele chegou bem perto de
ser atravessado. No instante que o último filete branco se retirou dos
restos sangrentos à nossa frente, o lichkin dobrou o mundo em volta
de si e caiu para as terras mortas. Com um urro animal, Snorri se
atirou atrás dele. Se não fosse minha perna estrategicamente
posicionada, ele teria desaparecido de volta no Inferno em busca de
sua presa. Assim, ele se estatelou de cara no suntuoso, apesar de
imundo, tapete de Hertet. O ar se ondulou onde o lichkin abrira o
buraco no mundo, depois ficou imóvel, e o portal sumiu.
Olhei de volta para os mortos-vivos observando da entrada da
sala do trono. Talvez, se não tivesse olhado, eles continuariam
parados ali assistindo por mais cinco minutos. Minha olhada
pareceu animá-los, e eles avançaram ao mesmo tempo.
“Levante-se!” Dei um pulo até Snorri e tentei levantá-lo. Só de
encostar nele minhas mãos sentiram novamente aquela sensação
de secura da morte, transformando minha pele em papel, sugando a
vitalidade de meu corpo. “Levante-se!” Eu teria mais sorte
levantando um cavalo.
Snorri pôs os braços embaixo do corpo e se levantou assim que
os mortos nos alcançaram. Eles haviam perdido sua agilidade,
agora que o lichkin tinha fugido, mas ainda eram em grande
número.
A quantidade parecia não importar. Snorri os atravessou como
uma foice. Aquilo me fez lembrar de minha vitória gloriosa contra os
garotos do balde lá no teatro de ópera. Snorri atravessou os mortos
como um príncipe de Marcha Vermelha atravessa moleques de rua
apavorados. O machado é realmente a arma certa para esse tipo de
trabalho. A espada é uma língua: ela fala e dá voz eloquente à
violência, procurando os órgãos vitais do inimigo e dando fim a ele.
O machado apenas urra. Os ferimentos que ele causa são
destruidores e, nas mãos de Snorri, praticamente todos os golpes
parecem arrancar uma cabeça ou um membro.
Dois minutos depois, o nórdico estava no meio do massacre
que criou, talvez vinte cadáveres agora divididos a tal ponto que a
necromancia não poderia usá-los de maneira perigosa. Eu o segui
até a sala do trono, lançando olhares nervosos sobre o ombro, na
possibilidade de novos inimigos avançarem pelo corredor. Muitos
mortos tinham espadas, ainda embainhadas nos quadris. Peguei
uma que parecia ter sido forjada para usar e não para mostrar.
“Você... você está bem?” Olhei em volta do salão. Snorri estava
de pé, cabeça baixa, coberta com o sangue de outros homens,
respirando ofegantemente. Segurava o machado na altura do
quadril, com uma mão logo abaixo da cabeça e a outra na ponta do
cabo. Ele não parecia bem. Nem a sala, com todas as superfícies
sujas, o trono derrubado, as tapeçarias pisoteadas, o local todo
fedendo a morte e destruição. “Snorri?” Ele parecia quase um
estranho.
Ele ergueu a cabeça, olhando para mim por baixo do véu preto
de seus cabelos, indecifrável, capaz de qualquer coisa. “Eu...” A
primeira palavra que me disse desde que nos separamos no Inferno.
Meses haviam se passado para mim. Isso seria a sensação de
quantas eternidades naquele lugar?
Do canto mais escuro da sala, um morto-vivo surgiu de baixo de
uma tapeçaria, alguma vitória retratada em linha prateada, agora
manchada de sangue e sujeira. Ele avançou na direção das costas
de Snorri, trazendo o tecido bordado como uma bandeira. Snorri
atacou para o lado, quase sem olhar, o machado como uma
extensão de seu braço. A cabeça do homem voou longe, seu corpo
cambaleou e despencou.
“Estou em paz,” disse Snorri, e se aproximou para me dar um
abraço de guerreiro.
20
*****
Implorei por uma escolta até o norte, claro, mas vovó insistiu que os
soldados de Marcha Vermelha atrairiam mais problemas do que
afastariam, enquanto viajássemos pelos fragmentos do império.
Contra-argumentei que poderiam viajar sem uniformes ou símbolos
que os marcassem, mas ela repetiu a bobagem de Garyus sobre
grupos pequenos passarem despercebidos, ao passo que grupos
maiores chamariam atenção. A surpresa maior foi quando ela
recusou minha oferta de desbloquear a torre da Dama Azul.
A Rainha Vermelha me conduziu à saída da tenda. “A parede
de Mora Shival não irá resistir à minha irmã por muito mais tempo.”
Demorei um pouco para ligar a Dama Azul ao seu nome – eu
preferia pensar nela como um título. Um nome a tornava humana
demais. Ela já havia sido jovem, como eu, como Kara. Pensar nela
dessa maneira me deixou desconfortável. O rio do tempo nos levaria
adiante, girando com cada redemoinho da correnteza... e o que
poderíamos nos tornar?
“Mas... é só girar a chave e...” Fiz o gesto da abertura dos
portões.
Ficamos sozinhos, com o vento chuvoso puxando nossas
capas, um grupo de guardas dez metros atrás, e à nossa frente o
dedo espelhado da torre da Dama Azul, apontado para o céu.
“Dizem que nenhum mago do mal jamais deixou a Roda.” A
Rainha Vermelha manteve os olhos na parede de vidro, como se
procurasse algum sentido na distorção ali. “Estão incorretos. Dois
deixaram. Mora Shival foi uma das duas pessoas que escaparam.
Ela tem um portão dentro de sua torre. Uma combinação de suas
artes com a ciência dos Construtores. Um vidro fractal. A maioria de
suas portas de espelho está quebrada agora, e as que sobrevivem
se quebrarão quando esta parede for quebrada. O vidro fractal, no
entanto, irá sobreviver, e ele leva a...”
“Osheim.”
Vovó inclinou a cabeça.
“Espere. Se ela pode correr para Osheim, por que ela não vai
para lá agora? Você mesma disse que os exércitos não servem de
nada lá. A Roda é uma defesa melhor do que essa parede dela.”
“O coração da Roda é difícil de aguentar, até mesmo para um
mago do mal. A dama está enfraquecida ultimamente. Perdeu
reflexos demais para esperar em Osheim sem grandes riscos. Ela
só correria para lá se nenhuma outra alternativa se apresentasse –
ou no fim das coisas, quando restar pouco tempo no mundo.”
“Enquanto batemos na parede dela, sua atenção se mantém
aqui, sua força é empregada para manter suas defesas. Você terá
de encontrar e destruir a saída dela em Osheim. Este será o
momento de romper as barreiras dela, quando não tiver mais para
onde fugir. Nenhum buraco para se esconder. É aí que iremos pegá-
la.” A mandíbula da Rainha Vermelha se apertou como se
imaginasse aquele momento. “Quando você fizer isso, minha irmã
saberá, e iremos agir.”
“Você não viu Osheim. É enorme. Como posso esperar
encontrar um espelho?” Como se desligar as engrenagens da Roda
não fosse impossível o suficiente, agora eu tinha uma agulha para
encontrar em um palheiro de oito quilômetros de largura.
“Ele estará no coração de tudo. Você o encontrará.”
Após fracassar em entregar a chave a vovó, fracassar em fazê-
la mandar outra pessoa, e fracassar em fazê-la enviar um exército
para me proteger, só me restava um lugar para correr. “E se ela
estiver certa?” perguntei, invocando os argumentos de Kara. “Se
estamos todos perdidos, de um jeito ou de outro, que diferença faz
se o mundo queimar hoje ou amanhã? Por que os mais fortes e os
mais espertos não devem se salvar, já que não podem salvar mais
ninguém? Já cogitou se unir a ela?” Eu deixei a parte ‘e me salvar’
sem dizer.
O tapa não foi uma grande surpresa. Nem mesmo a força dele,
que me levou ao chão segurando o rosto.
“Somos Kendeth, Jalan!” Ela se aproximou de mim. “Nós
lutamos. Lutamos quando as esperanças já se foram. Lutamos
enquanto ainda restar sangue em nós.” Ela me pôs de pé como se
eu fosse uma criança, em vez de um homem de mais de um metro e
oitenta. “Nós lutamos.” Os olhos dela se fixaram aos meus, duros
como pedra. “Aquela mulher matou meu avô. Derramou o sangue
dele na minha casa. Tentou me matar e, ao me defender, meus
irmãos foram transformados... e viraram o que são hoje.” Ela baixou
a voz, com a raiva diminuindo mas ainda me segurando firme.
“Aquela mulher já viveu tempo demais, e irá sacrificar os amanhãs
de um milhão para poder viver mais vidas. Sim, eu quero salvar
minha cidade, meu país, meu povo, e sim, isso vale a minha vida e
a sua, para dar a eles outro ano, mês ou dia. Mas de verdade? No
fundo do meu coração, Jalan? O que me impulsiona é que eu não
vou deixar aquela vaca ganhar. Ela levantou a mão para mim e para
os meus. Ela morrerá pelas minhas próprias mãos. Não vai haver
vida eterna para aquela lá. Nem mundo novo. Isso é uma guerra,
rapaz. A minha guerra. Eu sou a Rainha Vermelha, e eu não perco.”
Ela me soltou e fiquei novamente de pé. Eu sabia o que ela iria
dizer. E sabia que estava certa também. Ou pelo menos mais certa
que a Dama Azul. É difícil quebrar velhos hábitos, no entanto, e eu
tinha que pelo menos tentar cada rota de fuga.
“Se a vir em Osheim, a matarei com a espada que matou minha
mãe.” Eu tinha minha própria vingança para fazer, meu próprio fogo
e minha própria medida do sangue da Rainha Vermelha.
“Faça isso.” Um raro sorriso nos lábios de vovó.
Suspirei e apertei minha capa. “Que sorte que vou para Osheim
com a chave, então. Senão nada disso daria certo.”
Vovó virou a cabeça e olhou além de mim. Eu me virei também
e acompanhei seu olhar. A Irmã Silenciosa estava parada atrás de
mim, desconfortavelmente perto. Ela me olhou daquele jeito
estranho, um olho cego branco e cheio de mistérios, o outro tão
escuro quanto qualquer buraco. “Sorte? Vamos deixar a sorte para o
fim do jogo,” disse a Rainha Vermelha. “Você precisar de muita para
a Roda. Ninguém prevê esse futuro, nem uma olhadela.”
“Então... acho que vou indo.” Por pior que Osheim parecesse,
eu realmente não queria ficar ali entre aquelas duas velhas
assustadoras nem um momento a mais. “E se... se tudo der certo? E
aí?”
Vovó deu mais um de seus raros sorrisos, tão sombrio quanto o
primeiro. “O mundo continuará girando. Este fim terá sido evitado,
ou mais provavelmente atrasado. A Guarda Gilden chegará em um
mês para me levar ao Congresso e a Centena repetirá os mesmos
argumentos que são ditos desde os tempos de meu avô. Talvez
dessa vez nós realmente elejamos um novo imperador e
consertemos este nosso império destruído.”
Levei um tempo para perceber que o chiado seco ao meu lado
era a risada da Irmã Silenciosa. Supus que era minha deixa para ir
embora.
Deixei Snorri e Kara nos guiar pela saída dos jardins de Blujen e
seguindo para o norte da Slóvia. O instinto de Snorri ao ar livre
parecia tão aguçado entre os bosques e campos dos reinos centrais
quanto era nas pedras e no gelo de Norseheim. Kara também
mostrou seu valor, jogando as runas toda vez que a estrada nos
oferecia escolhas e selecionando o caminho de menor resistência.
A Slóvia, é claro, estava em um estado de alta ansiedade, com
boatos correndo soltos pelo interior, e qualquer cidade que tivesse
muralha estava preparando os nervos para a guerra. Havia fortes
suspeitas de que qualquer estranho pudesse ser um espião de
Marcha Vermelha, mas até a imaginação fértil dos slovianos teria
dificuldade de conceber a Rainha Vermelha recrutando vikings
gigantes, völvas loiras ou garotos ruivos do norte como agentes
secretos. Fiz o que pude para me esconder atrás de Snorri e dizer o
mínimo possível durante os encontros. A tática deu certo, tornando-
se mais fácil a cada quilômetro que deixávamos a zona de guerra
para trás, e dentro de poucos dias retornamos ao progresso
constante e às noites confortáveis das tabernas que aproveitávamos
pelo caminho.
Após consultar os mapas no quartel general de vovó e discutir o
assunto com um homem de aparência perigosa, que descrevia sua
ocupação apenas como ‘viajando a serviço do estado’,
pretendíamos deixar a Slóvia pela fronteira de Attar-Zagre e passar
rapidamente para Charlândia, cruzando o espaço daquela nação
desfavorecida antes de viajar por Osheim até a Roda.
Vim ver Snorri partir das docas do rio. Eu tinha lhe comprado um
barco. Dos bons, esperava. Chamei-o de O Martus. Darin havia
deixado uma criança para dar continuidade à sua linhagem e uma
esposa que o amava. Martus precisava de alguma coisa, e um
barco para levar seu nome pelo mundo foi o melhor que pude
oferecer.
Snorri estava na muralha ao lado dos degraus de pedra por
onde uma vez descemos correndo, fugindo dos capangas de
Maeres Allus. O ferimento em seu rosto estava sarando, e seu braço
quebrado estava escondido debaixo de uma capa grossa de pele de
urso presa por uma pesada fivela dourada, presente da rainha.
“Temos neve aqui! Por que vai embora?” Abri os braços para
abranger a brancura irreal de Vermelhão. Estivadores tremiam à
nossa volta com seus casacos finos demais, enquanto carregavam
as últimas coisas dele.
“O norte me chama, meu amigo. E isso não é neve, isso é uma
geada. No norte, nós...”
“Dançamos pelados em dias assim. Eu sei! Eu já vi.” Bati a mão
no braço bom dele. “Vou permitir... mas volte, está ouvindo? Assim
que se encher de congelar e de comida ruim, volte e se esquente de
novo.”
“Pode deixar.” Um sorriso, dentes brancos na escuridão eriçada
daquela barba curta.
“De verdade. Estou falando sério. A vida vai ser chata demais
sem todas as suas bobagens.” Eu tinha mais coisas a dizer, mas
elas sumiram, junto com o ar em meus pulmões quando Hennan
disparou para cima dos degraus e saltou para cima de mim. “Ai!
Cuidado! Herói machucado aqui!” Pus o braço em volta dele e
baguncei seus cabelos ruivos daquele jeito que costumava me irritar
tanto quando meu pai fazia o mesmo comigo. “Kara! Me resgate!”
A völva saiu do barco em ritmo mais descansado, lançando um
olhar de divertimento para nós três. “O barco está pronto. O rio
também,” disse ela.
“Cuide desses idiotas por mim,” falei. “A única coisa que Snorri
conhece em Trond são as docas e o Três Machados. E Hennan
nunca teve a chance de apreciar o verdadeiro horror de uma cidade
de Norseheim.”
“Vou fazer com que cheguem lá em segurança,” disse ela.
“Depois disso, tenho coisas a fazer.”
Dei de ombros e sorri. Eu não sabia muito sobre barcos, mas o
que sabia era que muitas vezes as pessoas que descem deles no
fim de uma longa viagem não são as mesmas que embarcaram.
E foi isso. Snorri me esmagou e tirou minha respiração com um
abraço de um braço só e o Seleen os levou embora, correndo para
o oeste em direção ao mar.