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Brasília-2004
2
A meus pais.
A Marcela.
A Carolina.
3
Agradecimentos
Sérgio Penna, consultor geral legislativo do Senado Federal, pelo apoio não apenas à
realização da pesquisa, mas, sobretudo, ao propósito de transformá-la em livro;
Resumo
Primeira lei federal a instituir as diretrizes gerais da política urbana, o Estatuto da Cidade
(Lei nº 10.257, de 2001) objetiva regular o desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
propriedade urbana, de maneira a assegurar o direito de todos a cidades sustentáveis — proposta
política conhecida como reforma urbana. Apresentado, no Congresso Nacional, em 1989, o projeto da
nova lei sofreu forte reação contrária do setor imobiliário. No entanto, após doze anos de debates e
negociações, terminou aprovado por unanimidade. Nesse contexto, o presente trabalho pretende
responder a duas indagações complementares: (i) em que medida o texto aprovado corresponde de fato
ao ideário da reforma urbana?; (ii) que fatores teriam levado os representantes do empresariado a
superar uma atitude inicial de franca rejeição e, ao final, aprovar uma lei que, alegadamente, se destina
a confrontar seus interesses?
A análise da pesquisa realizada permite afirmar que o movimento social pela reforma urbana
obteve a inclusão da quase totalidade de suas proposições legislativas no ordenamento jurídico
brasileiro. De outra parte, a condição de fator determinante da mudança de posicionamento do
segmento empresarial pode ser atribuída à experimentação municipal, ocorrida paralelamente à
tramitação legislativa do Estatuto da Cidade. Essa prática mostrou que certos instrumentos legais, que
de início pareceram ameaças aos interesses do capital imobiliário, transformaram-se em oportunidades
de lucrativos negócios.
Em conclusão, deduz-se que o consenso obtido decorreu, em grande medida, de percepções
distintas de seu objeto. De um lado, para os defensores da reforma urbana, o Estatuto da Cidade
representa uma nova ordem jurídico-urbanística, vinculada a princípios éticos de justiça social; de
outro, para o capital imobiliário — historicamente hegemônico no processo de urbanização —, a lei
aprovada significa, essencialmente, a oportunidade de inovadores e criativos proveitos.
Abstract
First federal law to institute the basic guidelines for urban policy, the Statute of the City
(Estatuto da Cidade – Lei n 10.257, de 2001) regulates the development of the social function of the
city and of the urban property in order to ensure the right of everyone to sustainable cities – this
political proposition is known as urban reform. The project of the Statute was proposed to the
National Congress in 1989 and underwent strong opposition from the real estate sector. However, after
twelve years of debates and negotiation, the law was unanimously approved in Congress. In this
context, this work intends to answer two supplementary questions: (i) in what measure the approved
text actually corresponds to the ideas behind the concept of urban reform?; (ii) which factors would
have led the representatives of the entrepreneurial sector to move from an initial overt rejection to
approval of this law, which is allegedly meant to jeopardize their interests?
In analysing the results of the research that was carried through it is possible to assert that the
social movement for urban reform has obtained the inclusion of most of their law propositions in the
Brazilian legislation. Moreover, the change in the position of the entrepreneurial sector is mainly due
to the municipal experimentation that was carried along with the discussions of the Statute in
Congress. This experience showed that certain legal instruments, initially perceived as a threat to the
interests of real estate business, became oportunities of profitable transactions.
In conclusion, it is possible to deduce that the achieved consensus derived from distinct
perceptions of its object. In the one hand, the Statute of the City represents for the supporters of urban
reform a new legal urbanistic order, linked to the ethical principles of social justice; on the other hand,
for the real estate sector (historically hegemonic in the urbanization process), the Statute means,
essencially, a new oportunity for inovative and creative business.
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Sumário
INTRODUÇÃO 8
6.1 Comparação da legislação urbana com a Emenda Popular da Reforma Urbana 125
6.1.1 Elementos formais e quantitativos 125
6.1.2 Conteúdo crítico 129
6.2 Os dois lados da mesma moeda 131
6.2.1 O consenso aparente 131
6.2.2 O conflito latente 139
CONCLUSÃO 146
ANEXOS
1 - Seminário de Habitação e Reforma Urbana (IAB/IPASE) —
Proposta de lei (1963) 167
2 - Projeto de lei de “reforma urbana” (1964) 173
3 - Projeto de lei nº 775, de 1983. 177
4 - Emenda Popular da Reforma Urbana (1987) 185
5 - Projeto original do Estatuto da Cidade (1989) 189
6 - Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001. 200
7 - Medida Provisória n° 2.220, de 4 de setembro de 2001. 211
8
INTRODUÇÃO
Considerações iniciais
1
Grazia, 2002, p. 15.
10
dirigiu seus esforços no sentido da aprovação de um projeto de lei formulado com esse
propósito: o Estatuto da Cidade.
Apresentado em 1989 pelo senador Pompeu de Sousa (falecido dois anos depois),
mas aprovado somente em 2001, o Estatuto da Cidade oferece aos governos municipais e aos
movimentos sociais um conjunto expressivo de diretrizes e instrumentos que buscam
materializar os princípios constitucionais da função social da propriedade e da cidade. Seus
dispositivos se destinam, em síntese, a universalizar o “direito a cidades sustentáveis”,
definido na própria lei como “o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à
infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as
presentes e futuras gerações”.
De início, o projeto de lei foi muito mal recebido pelos representantes do capital
imobiliário, que nele viam uma ameaça ao direito de propriedade e até à ordem constitucional.
Entretanto, decorridos doze anos de tramitação, que envolveram intermitentes debates e
negociações, o texto foi aprovado por unanimidade. Quais foram as intercorrências técnicas e,
sobretudo, políticas nesse percurso? O consenso obtido, do ponto de vista da proposta da
reforma urbana, resultou em perda de substância? O que mudou: o projeto inicial, a posição
do empresariado ou ambos? Que fatores, ao longo desses doze anos, fizeram com que
posições inicialmente litigantes fossem aproximadas?
Indagações dessa natureza são a motivação do presente trabalho, que resultou numa
dissertação de mestrado, defendida e aprovada, no dia 14 de maio de 2004, na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB). Na dupla condição de
assessor do parlamentar que apresentou o projeto de lei do Estatuto da Cidade e de dirigente
de entidades como o Instituto de Arquitetos do Brasil e o Sindicato dos Arquitetos do Distrito
Federal, o autor teve a oportunidade de vivenciar muitos dos episódios e circunstâncias
analisados, testemunhar o processo constituinte, bem como participar da elaboração do
projeto original da nova lei e acompanhar sua tramitação legislativa.
Para o MNRU, o período da morosa tramitação congressual do Estatuto da Cidade
foi um processo ciclotímico. Ao entusiasmo inicial — que havia no contexto da
redemocratização política, da convocação da Constituinte e da efervescência da participação
popular —, sucederam períodos em que a perspectiva de aprovação dessa nova legislação
pareceu distante e improvável.
Neste começo de século, contudo, vários elementos se combinaram no sentido de
novamente trazer à tona as proposições da reforma urbana: a aprovação do Estatuto da
Cidade; a eleição para a Presidência da República de um candidato do Partido dos
11
Objeto e objetivos
Este trabalho, que tem por objeto o processo de elaboração legislativa do Estatuto da
Cidade, pretende relacionar seu conteúdo com o projeto político da reforma urbana. Tenta-se
aferir, fundamentalmente, em que medida o texto aprovado corresponde ao conjunto de
propostas construído no âmbito do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU). Em
paralelo, busca-se encontrar os fatores que teriam levado os segmentos representativos do
capital imobiliário no Congresso Nacional a superar uma atitude inicial de franca rejeição e,
ao final, aprovar, por unanimidade, uma lei considerada capaz de municiar a reforma urbana
em muitos de seus propósitos.
A pesquisa procura acrescer ao campo temático ainda pouco explorado do Estatuto
da Cidade:
a) as principais proposições que o antecederam, inclusive o inteiro teor do projeto
de reforma urbana do governo João Goulart, escassamente conhecido;
b) o detalhado registro analítico do debate/embate parlamentar (a configuração da
arena política constituída em relação ao tema da política urbana, durante e após
a Assembléia Nacional Constituinte, os projetos apresentados, as emendas
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normativas, sendo verificada se houve ou não a inclusão, integral ou parcial, de cada uma
delas. A partir desse estudo comparativo, foi possível mensurar o campo de acolhimento que
o ideário da reforma urbana já encontrou no ordenamento legal brasileiro.
Confirmada a grande receptividade da legislação urbana às reivindicações do
MNRU, foram analisadas as possíveis causas da aceitação dessas teses por parte dos
representantes do capital imobiliário, dado que, em notório contraste com a reação inicial, a
última votação do Estatuto da Cidade obteve unanimidade. Nesse ponto, as seguintes
hipóteses, possivelmente complementares, foram investigadas:
a) a de que os efeitos da experimentação municipal, anterior à aprovação do
Estatuto da Cidade, na aplicação de certos instrumentos da reforma urbana
(como a outorga onerosa do direito de construir e as operações urbanas ou
interligadas, por exemplo) podem ter sido amplamente benéficos aos
empreendedores privados, os quais, por essa razão, teriam passado a apoiá-los;
b) a de que a “perda de competitividade” das cidades brasileiras no âmbito da
economia globalizada, determinada pelas “deseconomias urbanas” e pela
degradação social e ambiental, possa ter incluído o tema da reforma urbana no
contexto das preocupações dos setores dominantes do capitalismo brasileiro;
c) a de que, por força dos compromissos assumidos pelo Brasil na Conferência
Habitat II, realizada pela ONU em 1996, cujos resultados foram cobrados no
encontro denominado Istambul+5, ocorrido em Nova York, em 2001, o governo
brasileiro tenha tomado interesse pela pronta aprovação da “lei de reforma
urbana”.
Organização da exposição
1 – REFERÊNCIAS CONCEITUAIS
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Mesmo sem tocar diretamente nos interesses da oligarquia rural, a Revolução de 1930 rompeu com o modelo
agrário-exportador ao criar estímulos para a economia urbano-industrial.
3
Mais adiante, em 1964 e 1966, ambas as políticas, regulação das relações de trabalho e investimentos em
programas habitacionais, se combinariam mais explicitamente. O governo militar cria o Sistema Federal e o
Banco Nacional de Habitação (BNH) por meio da Lei nº 4.380/64 e institui o Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço (FGTS) nos termos da Lei nº 5.107/66. “Sob o sistema anterior, o trabalhador tinha direito a receber uma
18
para a “produção dos bens salariais de consumo (vestuário, têxtil, alimentos etc.)” (Ribeiro, L.
C. Q., 2003, p. 20).
Após um período de convivência “pacífica” entre a oligarquia rural e a nascente
burguesia industrial, esta começa a predominar em relação àquela. As cidades que já estavam
voltadas para as atividades agro-exportadoras, nas quais havia concentração de serviços e
facilidades administrativas, propiciavam as condições mais adequadas à política de
industrialização por substituição de importações, que, ao valer-se dessas bases pré-existentes e
desenvolvê-las, promove a expansão não apenas da própria atividade industrial, mas também
dos setores de comércio e de serviços.
De outra parte, com a consolidação de um “mercado de âmbito nacional para a
indústria de transformação”, as unidades de produção que operavam em maior escala, ao
buscarem acesso “à parcela mais substancial” desse mercado, tenderam a localizar-se “nos
centros mais populosos do Sudeste”, destacadamente São Paulo, Rio de Janeiro e Belo
Horizonte (Barat e Geiger, 1973, apud Schmidt e Farret, 1983, p. 17).
A Segunda Guerra Mundial acelera a atividade industrial e, no pós-guerra, a
hegemonia do setor fabril enseja dois novos papéis para as cidades no processo de
desenvolvimento nacional: (i) absorver os crescentes contingentes populacionais que,
desempregados, ora pela recessão econômica, ora pela crescente capitalização da atividade
rural, passam a buscar trabalho nas áreas urbanas; e (ii) propiciar ao processo produtivo
industrial não apenas a infra-estrutura física para a sua expansão, mas as condições
necessárias à reprodução de sua força de trabalho, em especial, a implementação, para usar a
expressão hoje corrente, de um “marco regulatório” para as relações trabalhistas, expresso na
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943, ainda vigente.
Embora o Brasil se caracterize por um processo de urbanização de perfil territorial,
funcional e populacional mais disperso que o ocorrido na maior parte da América Latina4 e,
para alguns autores, haja um distanciamento entre os processos de urbanização e
indenização considerável ao ser despedido, e também à estabilidade depois de dez anos de emprego contínuo”
(Schmidt e Farret, 1983, p. 31). O FGTS, formado pelo depósito mensal de 8% da folha salarial, além de
desonerar os empregadores dos pesados custos e responsabilidades da regra anterior, criava condições de
financiamento do setor da construção civil e permitia o atendimento de parcela da demanda habitacional. Como
expressou a então secretária do governo de Carlos Lacerda no Estado do Rio de Janeiro e futura presidente do
BNH, Sandra Cavalcanti, em famosa carta dirigida ao primeiro presidente do regime militar, marechal Castello
Branco: “a Revolução necessita urgentemente agir em favor das massas urbanas”.
4
Com exceção do Brasil e da Colômbia, os sistemas urbanos na América Latina se caracterizam pela articulação
em torno de apenas uma grande cidade (região metropolitana), que acumula funções econômicas,
administrativas, políticas e simbólico-culturais, a par de concentrar até um terço de toda a população urbana
nacional.
19
5
Enquanto, na década de 1940, as áreas rurais e localidades com menos de vinte mil habitantes responderam por
58% do crescimento populacional do País e as cidades com mais de quinhentos mil habitantes por 28%, na
20
década de 1970, o campo e as localidades pequenas representaram apenas 10% do chamado “crescimento
intercensitário”, cabendo às cidades com mais de quinhentos mil habitantes a responsabilidade por nada menos
que 58% do crescimento demográfico nacional (Martine, 1995, p. 4).
6
Segundo L. C. de Queiroz Ribeiro (2003, p. 21), três aspectos marcantes “estão na raiz de nossos problemas
urbanos: (I) a industrialização com a formação concomitante de uma ‘massa marginal’ constituída por um
excessivo exército industrial de reserva; (II) o bloqueio da formação da moderna cidadania; e (III) a constituição
de poderosos interesses mercantis ligados à acumulação urbana (...)”. Para esse último aspecto, Ribeiro utiliza a
expressão ‘poder urbano corporativo’, na tentativa de definir um estrato socioeconômico que se tem valido do
poder estatal nas cidades para criar ‘amplas possibilidades de ganhos patrimoniais”.
7
A atividade de incorporação imobiliária foi regulamentada no Brasil por meio da Lei nº 4.591, de 16 de
dezembro de 1964.
21
8
Em decorrência das conflituosas divergências entre arquitetos “acadêmicos” e “modernos”, que, em 1927,
integravam o júri do concurso de projetos para a sede da Sociedade (ou Liga) das Nações (antecessora da ONU)
em Genebra, na Suíça, deflagrou-se em Paris um movimento, “destinado a afirmar um sólido ponto de vista”
sobre os problemas da arquitetura e do urbanismo, que culminou na fundação dos Congressos Internacionais de
Arquitetura Moderna (CIAM). Já no Manifesto do 1º CIAM, realizado em La Sarraz, Espanha, evidenciaram-se
os aspectos funcionais a que o urbanismo moderno deveria adequadamente atender: habitar, trabalhar e recrear-
se (mais adiante acrescentou-se a função de circular), bem como os seus objetos: a ocupação do solo, a
organização da circulação e a legislação. Nos Congressos seguintes, realizados respectivamente em Frankfurt,
Bruxelas, Atenas e Paris (5º CIAM, em 1937), essa doutrina se aprofundou. No 4º CIAM, ocorrido em 1933 num
navio de cruzeiro entre “três mares”: o Egeu, o Adriático e o Mediterrâneo, elaborou-se a Carta de Atenas como
“uma resposta ao atual caos das cidades. Posta em mãos das autoridades, detalhada, comentada, iluminada por
uma explicação suficiente, é o instrumento pelo qual será conduzido o destino das cidades”. A Carta de Atenas,
inicialmente publicada apenas nos “anais técnicos”, foi tornada pública em 1941, com comentários explicativos
de Le Corbusier e de Jeanne de Villeneuve, baronesa de Aubigny (CIAM, La Carta de Atenas, 1950. Livre
tradução das citações e grifos nossos).
9
Em sua última entrevista, concedida ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre, o arquiteto Demétrio Ribeiro,
respeitado professor declaradamente modernista, falecido em 2003, ao responder a uma pergunta sobre como
avaliava seu trabalho de planejador urbano declarou: “Acho que desempenhei um papel útil (...) no sentido de
avançar a noção civilizada do que é uma cidade, [de] que ela deve ter uma legislação”. Na mesma entrevista,
Demétrio Ribeiro identifica e critica uma “tendência recente”, sintetizada, segundo ele, “por uma senhora que foi
guru do urbanismo da Erundina na primeira gestão do PT em São Paulo: ‘Passou a época do planejamento,
estamos na época do gerenciamento; passou a época da legislação, estamos na época da negociação” (Ribeiro,
D., 2003).
10
Na já clássica definição de Lúcio Kowarick (1979, p. 59), a “espoliação urbana” se expressa, entre outras
manifestações, pelo “somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade dos serviços de
consumo coletivo que — conjuntamente com o acesso à terra e à habitação — se apresentam como socialmente
necessários à subsistência das classes trabalhadoras”.
22
11
Em outubro de 1988, em seguida à promulgação da nova Constituição e a partir da convocação do Seminário
Nacional pela Reforma Urbana, o Movimento organizou o primeiro Fórum Nacional de Reforma Urbana,
denominação que passou a caracterizar esse conjunto de entidades organizativas (Grazia, 2003, p. 54).
23
elementos: o primeiro deve ser a condenação das práticas econômicas que tornam a cidade
um objeto de lucro; (...) por outro lado, o acesso à cidade deve ser um direito: direito de ir e
vir à cidade, sem que seja necessário pagar um tributo àqueles que mercantilizam o solo
urbano (...). Os que não podem pagar tributo urbano (na forma de aluguel, preço da terra,
prestação do BNH, tarifas de transporte etc.) são obrigados a habitar simulacros de cidade,
verdadeiros guetos sociais (...).”
12
Precedidas das importantes publicações do filósofo francês Henri Lefebvre, como O direito à cidade e A
revolução urbana, nos anos 1970 foram publicadas “duas obras seminais” (Souza, 2003, p. 25), que marcaram
esse pensamento crítico de inspiração marxista: A questão urbana, de Manuel Castells, que já conta 22 edições
em 7 línguas, e A justiça social e a cidade, de David Harvey.
25
“o essencial dos problemas que se consideram urbanos estão, de fato, ligados aos processos
de ‘consumo coletivo’, ou ao que os marxistas chamam de organização dos meios coletivos
de reprodução da força de trabalho. Isto é, dos meios de consumo objetivamente
socializados e que, por razões históricas específicas, são essencialmente dependentes, por
sua produção, distribuição e gestão, da intervenção do Estado”.
13
Harvey, 1985, p. 175 e 176, apud Souza, 2002, p. 27 (livre tradução).
26
14
Nessa passagem, ao lado de trazer à tona a expectativa da “participação popular” como núcleo do ideário da
reforma urbana, Ana Amélia adota análise de Raquel Rolnik (em Planejamento, cidade e cidadania, 1990,
mimeo.) e, de maneira ainda mais explícita, espelha a comentada abordagem de Castells e Harvey.
15 Ver, a respeito, dissertação de mestrado de Diana Meirelles da Motta (1998), que se dedica a identificar as
“principais deficiências institucionais e legais [com vistas a melhorar] a eficácia do planejamento e da gestão do
uso do solo urbano”. Deve-se observar, contudo, que importantes trabalhos recentemente publicados pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no campo da pesquisa urbana, como a Série “Caracterização e
Tendências da Rede Urbana do Brasil”, que avaliam instrumentos de planejamento e gestão do uso do solo
urbano em nove aglomerações urbanas (Belém, Natal, Recife, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas,
Curitiba e Porto Alegre), ainda que conservem a abordagem de viés tecnocrático de que a “desarticulação entre
os instrumentos (...) contribui para a ineficiência de cada um deles e do conjunto”, passaram a admitir a hipótese
de que “a ação pública na regulação do parcelamento, uso e ocupação do solo urbano, restrita ao âmbito de uma
parcela minoritária da população (...), pode contribuir para a escassez de terra urbana acessível (...) para a
população pobre” (IPEA et al., 2002, p. 25, grifo nosso).
27
16
Citada por Celso Lafer na Introdução à 1a edição brasileira da obra A condição humana. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1981.
17
Ver, como exemplo de explicitação desse princípio, documento levado pelo IAB em 2003 à Conferência
Nacional das Cidades, em que se afirma: “É preciso lembrar o marco histórico, econômico e institucional onde
se situam tais propostas [de direito à Cidade Habitável, à Moradia e ao Crédito]: (...) a Nação pelo voto, e em
conseqüência o aparelho estatal brasileiro, pretendem viver um Governo Popular e Democrático com ampla
participação e discussão; vivemos num regime econômico capitalista; os direitos do consumidor, novos entre
nós, ainda não foram incorporados aos usuários e mutuários da moradia e da cidade” (grifos nossos).
28
distribuição mais eqüitativa dos bens e serviços produzidos coletivamente nas cidades, ainda
que nos marcos do regime de mercado.
Alguns partícipes da avaliação crítica do processo de urbanização nas sociedades
capitalistas — análise que fundamenta a proposta da reforma urbana — são céticos em
relação ao conteúdo propositivo do ideário “reformista”. Para esse segmento de opinião, “a
luta por uma nova cidade — igualitária — não pode ser dissociada da luta por uma sociedade
igualitária, livre da exploração de classe, das relações de produção e de propriedade e do
Estado capitalista” (Cariello Filho, 1999, p. 151). Para outros, contudo, a crítica ao
planejamento, ao contrário de conduzir à rejeição da idéia de uma ação política
transformadora nos limites da ordem econômica capitalista, deve ser traduzida por uma nova
atitude em relação a esse processo. Marcelo Lopes de Souza (2002, p. 28), por exemplo, ao
admitir “que a crítica marxista contra o planejamento usualmente conduzido nos marcos de
uma sociedade capitalista é, em si mesma, importante e reveladora”, questiona:
“Por que dever-se-ia presumir que toda atividade de planejamento precisa
enquadrar-se nos moldes descritos e condenados por essa crítica? Não se trata (...) apenas de
aventar a hipótese de uma eventual sociedade pós-revolucionária e pós-capitalista, na qual,
com a mais absoluta certeza, também existiria algum tipo de planejamento. Trata-se, antes,
partindo-se da premissa de que as sociedades capitalistas são contraditórias e não
monolíticas (negar isso equivaleria a abdicar do pensamento dialético e mesmo a negar a
possibilidade de uma mudança substancial a partir do interior da própria sociedade), de
indagar: por que dever-se-ia excluir, a priori, a possibilidade de um planejamento que,
mesmo operando nos marcos de uma sociedade injusta, contribua, material e político-
pedagogicamente, para a superação da injustiça social” (Souza, op. cit., p. 28-29).
Para compreender melhor essa assertiva, que contém relevante cunho pedagógico, é
preciso situar o direito de propriedade, ainda que sumariamente, em seu contexto histórico.
Segundo Darcy Bessone18, a propriedade é “um dos primeiros instintos do homem e
dos seres em geral que, num primeiro momento, levados por necessidades biológicas,
buscaram apropriar-se de coisas que lhes garantissem a subsistência”. Nesse sentido, ao
decorrer da necessidade social de suprimento de bens, o direito de propriedade “não é um
direito natural”.
18
Bessone, 1988, apud Mattos, 2003, p. 22.
30
No entanto, “na análise da linha evolutiva do conceito de propriedade, fica claro que
a tendência verificada foi a da passagem da propriedade coletiva para a individual, até se
chegar, hoje, a um redirecionamento para sua origem primitiva, no que diz respeito à
utilização voltada para o interesse da coletividade, em atendimento a uma função social”
(Mattos, 2003, p. 23).
Fustel de Coulanges ([1864] 2002, p. 65-67) afirma que, ao contrário das populações
da Grécia e da Itália, que “desde a mais remota antigüidade sempre reconheceram e
praticaram a propriedade privada”, muitos povos primitivos nunca admitiram a propriedade
individual e outros “só com o tempo e muito penosamente a admitiram”. Os tártaros e os
germanos, por exemplo, reconheciam a propriedade quanto aos rebanhos, mas nunca em
relação à terra. Já entre os gregos ocorria o oposto. Em algumas cidades da Grécia Antiga, os
frutos das colheitas eram de propriedade comum. Assim, “o indivíduo não era dono do trigo
por ele colhido, mas, por notável contradição, era proprietário absoluto do solo”.
Coulanges destaca ainda que, entre os gregos, a idéia de propriedade privada estava
implícita na religião. O lar devia assentar-se sobre a terra; “uma vez construído, nunca mais
deveria mudar de lugar”. O deus da família ali se instala enquanto “dela restar alguém que
conserve a chama do sacrifício”. Assim, a família fixa-se ao solo, “agrupada em volta de seu
altar”. Daí porque, segundo Coulanges, não foram as leis, mas a religião que primeiramente
garantiu o direito de propriedade, pois cada domínio estava sob a proteção das divindades
que, em cada lar, velavam por ele.
Na síntese de Liana Portilho Mattos (2003), podemos perceber como a noção do
direito de propriedade foi gradativamente se conformando desde a Roma Antiga; ao perpassar
o período feudal; no âmbito da Revolução Francesa; e, finalmente, como se configurou no
Estado socialista e no Estado democrático de direito.
Em Roma, embora a percepção do direito de propriedade tivesse percorrido distintas
conotações ao longo do tempo, quais sejam, a propriedade coletiva, a propriedade familial e a
propriedade individual, “essa última é que prevalecerá por mais tempo, tornando-se
paradigma da noção de direito de propriedade que por tanto tempo vigorou no Ocidente”
(Mattos, op. cit., p. 26).
Na concepção romana, a propriedade era o cerne do direito. Absoluta e
individualista, estava à disposição do proprietário, que a podia utilizar, ou não, em razão de
sua exclusiva conveniência. Daí decorrem os chamados “atributos do domínio”: o jus utendi,
direito de usar o bem para a satisfação de suas necessidades (como edificar uma casa ou
cultivar a terra); o jus fruendi, direito de usar a propriedade para dela extrair frutos e produtos
31
(como colheitas e rendas); e o jus abutenti, direito irrestrito de dispor das coisas, inclusive
para destruí-las!
Entretanto, à medida que a complexidade das relações sociais se ampliava, esse
caráter absoluto e individualista do direito de propriedade “foi sendo gradativamente
atenuado, na perspectiva da proteção dos danos, não à coletividade, mas a outro indivíduo —
geralmente, proprietário” (Mattos, op. cit., p. 27). Sem perder seu traço marcadamente
individualista, o direito de propriedade romano passou a sofrer pequenas limitações,
referentes, por exemplo, a normas de vizinhança e ao recuo para as edificações relativamente
às vias públicas, normas que, em grande medida, inspirariam o direito brasileiro.
No período feudal, quando os proprietários de terras, atemorizados diante do risco
crescente de invasões, causadas, por sua vez, por profunda desigualdade social, submeteram
seus domínios aos soberanos em troca de proteção, o direito de propriedade cindiu-se em dois.
“As terras passaram para o domínio do soberano — o que se chamou de domínio eminente —
e a sua utilização — domínio útil — foi garantida aos antes proprietários, que passaram a
feudatários” (Mattos, op. cit., p. 28).
O direito ocidental foi também amplamente influenciado por esse período. Institutos
como a enfiteuse (direito real fixado em contrato pelo qual o proprietário transfere a outrem o
domínio útil de um imóvel mediante pagamento de foro anual) ainda remanescem entre nós.19
Ainda na Idade Média, deve-se ressaltar a influência do cristianismo, sobretudo no
âmbito das doutrinas filosóficas de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, que, ao
retomarem a discussão dos temas filosóficos da Antigüidade, trataram do direito de
propriedade. Conforme Liana Mattos (op. cit., p. 29-30), “o cerne dessa visão cristã de
propriedade assentava-se na convicção de que a propriedade da terra era um meio injusto de
poder”. Para essa autora, São Tomás de Aquino, em sua Summa Theologica, condenava o
caráter individualista da propriedade, legado do Império Romano, e, embora não professasse a
noção de “coletivização” da propriedade, a doutrina tomista “defendia a idéia de uma
propriedade individual que atendesse aos interesses coletivos”, conceito embrionário do que,
séculos depois, consubstanciaria o princípio da função social da propriedade.
Ainda no século XVIII, mais de trinta anos antes da eclosão da Revolução Francesa,
Jean-Jacques Rousseau (1989, p. 84) definia a importância da terra como fator de injustiça
social:
19
Segundo Liana Mattos (2003), Clóvis Beviláqua, na obra O direito das coisas (Rio de Janeiro: Forense, 1956,
p. 104), considera as capitanias hereditárias no Brasil colonial como “categorias tipicamente dotadas de feição
feudal, por terem aproveitado em grande medida a forma de desdobramento do domínio”.
32
Não por acaso, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela
Assembléia Nacional em agosto de 1789, ainda nos primórdios da Revolução, a propriedade
foi considerada direito inviolável e sagrado, inscrito no rol dos direitos naturais e
imprescritíveis do homem:
“Proclamando, pois, a inviolabilidade do direito de propriedade, a Declaração
legitimava com esse fato a desigualdade dos bens e a exploração do não-possuidor pelo
possuidor e, conseqüentemente, do pobre pelo rico. Entretanto, no século do despotismo e
da extorsão feudais, o Artigo 17 não era somente dirigido contra os não-possuidores, mas
também contra os senhores feudais, isto é, pretendia defender a propriedade burguesa e
camponesa contra possíveis atentados da aristocracia.”21
20
O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens foi escrito por Rousseau
motivado pelo tema de concurso promovido, em 1753, pela Academia de Dijon: “qual é a origem da
desigualdade entre os homens e se ela é permitida pela lei da natureza”. Rousseau não obteve prêmio no
concurso, mas sua obra foi publicada em Amsterdam, por um livreiro seu amigo, em abril de 1755, e posta à
venda em Paris, em meados daquele ano. Sua abordagem do papel da terra como fator de desigualdade era de
imensa ousadia no contexto de uma sociedade de base feudal. Segundo Jean-François Braunstein, nos
comentários que fez à obra em 1981, “a observação de Voltaire, na margem de seu exemplar, mostra bem o
caráter revolucionário do pensamento de Rousseau: ‘eis a filosofia de um miserável que gostaria que os ricos
fossem roubados pelos pobres” (Rousseau, [1755] 1989, p. 7 e 84).
21
Manfred, 1966, p. 84, apud Cariello Filho, 1999, p. 68.
33
22
Mattos, op. cit., p. 32. Revisado após longo processo legislativo e posto em vigor em janeiro de 2003, o
Código Civil brasileiro atualizou-se em relação a práticas e costumes sociais e foi modificado também no tocante
a direitos patrimoniais. O Código Civil de 1916 sequer tratava da função social da propriedade. Já a Lei nº
10.406/2002 (novo Código Civil) estabeleceu que o direito de propriedade “deve ser exercido em consonância
com as suas finalidades econômicas e sociais” (art. 1.228, § 1º).
23
Pipes, 2001, p. 67, apud Mattos, op. cit., p. 33.
34
24
Pérez Luño, 1999, p. 223, apud Mattos, op. cit., p. 34.
25
Manifesto do Partido Comunista, de 1848, de Marx e Engels, p. 37 e 47, apud Cariello Filho, 1999, p. 21 e 22.
35
26
Citado por Liana Portilho Mattos (op. cit., p. 36).
36
Desse ponto de vista diverge José Diniz de Moraes (1999, p. 111), pelo menos no
tocante ao caráter jurídico da função social da propriedade:
“Se do aspecto formal concluímos que a função social da propriedade é princípio
jurídico e que como norma jurídica deve ser tratado, materialmente somos levados a
concluir (...) que a função social da propriedade não é senão o concreto modo de funcionar
da propriedade, seja como exercício de direito de propriedade ou não, exigido pelo
27
Gomes, 1986, p. 61, apud Queiroga, 2002, p. 79.
37
28
Celso Antonio Bandeira de Mello, em Novos aspectos da função social da propriedade no direito público,
Revista de Direito Público nº 85, p. 39, apud Assis, 2000, p. 183.
29
Deve-se observar, nesse aspecto, que a hipótese de desapropriação-sanção, prevista constitucionalmente como
penalidade para o proprietário que desatender à função social da propriedade, impõe-se diferentemente em
relação ao solo rural ou urbano. Para fins de reforma agrária, sendo a terra improdutiva, a Constituição é auto-
aplicável no sentido de permitir ao poder público expropriar o bem mediante o pagamento em títulos resgatáveis
em até vinte anos. No caso de reforma urbana, o mesmo procedimento passou a depender de uma lei federal
(Estatuto da Cidade), de uma lei municipal (plano diretor), bem como de duas etapas antecedentes à
desapropriação: decretação de edificação, parcelamento ou utilização compulsória e tributação progressiva no
38
Tanto é assim que, para Liana Mattos (op. cit., p. 117), as propriedades urbanas,
ainda que estejam situadas em localidades que não se enquadrem nas hipóteses legais de
exigência obrigatória do plano diretor, assim como na inexistência desses planos em
municípios que estejam obrigados a fazê-lo, “também estão sujeitas ao cumprimento de uma
função social que aproveite à coletividade e não só aos interesses do proprietário”.
Em síntese, expressamente limitado aos marcos do regime de mercado (tanto quanto
o próprio conteúdo da reforma urbana), o princípio constitucional da “função social da
propriedade urbana” objetiva, na verdade, não a transformação revolucionária das relações de
produção, mas a democratização do acesso aos bens e serviços produzidos nas cidades.
Edésio Fernandes (2002b, p. 37), que também vê juridicamente preenchido o
conceito de função social da propriedade, sintetizou, de maneira prospectiva, o significado do
novo ordenamento legal, no que respeita às transformações por que tem passado esse debate
no Brasil:
“Culminando um processo de reforma jurídica que começou na década de 1930, o
que a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade propõem é exatamente essa mudança de
‘olhar’, isto é, de paradigma conceitual de compreensão e interpretação, substituindo o
princípio individualista do Código Civil pelo princípio da função social da propriedade –
que, diga-se de passagem, encontra-se presente de maneira central nas ordens jurídicas de
muitos dos países capitalistas mais avançados.”
tempo. Ademais, o prazo para o resgate dos títulos é reduzido à metade: dez anos. Ou seja, o “Brasil rural”, tido
por muitos como arcaico e conservador, assimilou o princípio da função social da propriedade de maneira menos
manietada que o “Brasil urbano”, comumente associado à modernidade.
39
força (física ou econômica), (...) só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como
arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos ‘sistemas simbólicos’ em
forma de uma ‘illocutionary force’, mas se define numa relação determinada — e por meio
desta — entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos.”
A legislação comumente adotada nas áreas urbanas tem por objetivo uma
configuração idealizada de cidade, teoricamente capaz de ordenar os padrões de ocupação e as
modalidades de utilização desses espaços. No entanto, ao definir o que pode e o que não pode
ser erigido, ou que atividades são ou não admitidas nessa ou naquela zona urbana, a lei acaba
por constituir fronteiras, reais ou virtuais. Num dos campos dessas fronteiras, estão os que
atendem aos padrões fixados na lei e, em contrapartida, são protegidos pelo aparato
institucional que a legalidade representa. Noutro, se situam os que, por não disporem dos
meios (materiais ou político-sociais) para cumprir as normas urbanísticas (ou, de outro ponto
de vista, tê-las produzidas à sua feição), são esquecidos pelas instituições e mantidos à
distância das condições básicas da cidadania.
Essa dualidade, a cidade formal e legal em contraste com vastas extensões de
ocupação urbana informal e ilegal, é crescentemente visível nos grandes e médios municípios
brasileiros. No entanto, a par de desassistidos pelas políticas públicas, os setores urbanos
informais e ilegais são muito freqüentemente desconsiderados até pelos registros, mapas e
cadastros municipais30.
Mesmo em cidades de dinâmica complexa e amplamente dotadas de recursos e
instrumentos de administração, como o Rio de Janeiro, por exemplo, “até 1994, as favelas
figuravam como áreas vazias ou áreas verdes na cartografia oficial do município” (Smolka,
2003, p. 267). Nessa mesma metrópole, embora não se refiram diretamente à chamada
“cidade ilegal”, dados publicados pelo jornal O Dia, de 12 de agosto de 2001, dão a medida
do contraste entre a atenção do poder público então dirigida à Zona Sul (ocupada, na maior
parte, por estratos sociais de alta renda, em áreas formais) e à Zona Oeste (caracterizada, em
grande medida, por ocupações de padrão popular, com elevada concentração de
informalidade):
30
Dados recentemente divulgados pelo IBGE comprovam que: (i) 36,8 % dos municípios brasileiros têm
loteamentos irregulares/ilegais e 23% possuem favelas; (ii) todas as cidades com mais de 500 mil habitantes
possuem tanto favelas quanto loteamentos irregulares/ilegais (70% de todas as favelas estão nessas cidades); (iii)
nas Regiões Metropolitanas, 79% dos municípios têm favelas. Apesar da eloqüência desses números (que, aliás,
foram considerados subestimados por técnicos e autoridades da área, em entrevistas publicadas por ocasião da
divulgação da pesquisa, em novembro de 2003), somente 50% dos municípios que têm favelas possuem um
simples cadastro dessas ocupações (MUNIC/IBGE, 2003).
41
31
A reprodução radical dos mecanismos de segregação social em Brasília (cidade-modelo da aplicação dos
preceitos do racionalismo modernista), como efeito urbanístico de normas, leis, políticas e ações administrativas
de natureza público-estatal, pode ser compreendida por meio de análises como as de Gouvêa (1998) e Campos
(1998).
32
Como exemplo, pode ser citado texto do engenheiro Victor da Silva Freire, que foi diretor de obras da cidade
de São Paulo de 1899 a 1926, para quem os objetivos da legislação (referindo-se, no caso, aos códigos sanitários
e municipais) eram dois, nomeadamente: “Primeiro – positivo, de protecção e amparo – proporcionar à parte da
população que aspira viver n’um ambiente sadio e decente, e educar a sua prole em condições de dignidade,
disposições que facilitem realisar essa tão legítima ambição; Segundo – negativo, de repressão e policia –
impedir que a parte restante, a qual pouco se importa com tudo isso, ou é incapaz de tentar o esforço necessário
para o alcançar, possa crear situações que venham a constituir ameaça para os visinhos, para a communidade e
para a civilização” (Freire, 1918, p. 231, apud Rolnik, 1997, p. 43).
42
Nos inícios do século XX, no Rio de Janeiro, então sede do governo federal com
mais de 500 mil habitantes, “a existência de uma burguesia, que reivindica sob inspiração
européia condições mais confortáveis de vida” e um “processo de modernização que acontece
no país sob motivação do capital estrangeiro” (Rezende, 1982, p. 37) dão ensejo a um projeto
de remodelação e “embelezamento” da área central (também ocupada por cortiços e outras
formas de moradia popular), encomendado pelo presidente Rodrigues Alves ao prefeito
Pereira Passos33. A oligarquia rural — decadente, mas ainda poderosa — preocupa-se então
em manter seu já ameaçado poder político quando atende, ao mesmo tempo, reivindicações de
uma nascente e politicamente ativa burguesia e empreende obras de urbanização e de infra-
estrutura no interesse do capital externo, como a modernização do porto, por exemplo. “As
camadas populares, no entanto, não são consideradas no processo de planejamento (...). O
objetivo é resolver os conflitos com a burguesia e escamotear aqueles oriundos das camadas
médias e baixas, restaurando a ordem” (Rezende, op. cit., p. 40).
A idéia de “restaurar a ordem” pressupõe a interveniência de uma “desordem” e a
emergência de “crises”, que podem pretextar-se em questões de saúde pública, como era
freqüente nas primeiras décadas do século XX, ou em outros temas, sempre recorrentes, como
a escassez de moradias ou os entraves do trânsito e dos sistemas de transporte. O papel dos
planos e normas urbanísticas, nesse contexto, que em grande medida ainda perdura, passa a
ser o de orientar o restabelecimento de uma idealidade perdida ou, melhor dizendo, sempre
buscada e jamais realizada: a cidade pacífica e ordenada, fruto dos ditames de uma
racionalidade técnica que a tornaria própria ao desfrute coletivo.
Parece ser esse — a busca de um ideal de cidade que se tornaria possível por meio de
ditames técnicos, mas que resulta em apartação social — o ponto de contato entre as distintas
correntes do pensamento urbanístico que se aplicaram no Brasil do século XX. Para Sarah
Feldman, essas correntes seriam três: “o urbanismo higienista, que estabelece uma legislação
sanitária; o urbanismo americano dos anos 20, que reelabora o zoneamento alemão; e o
33
Segundo Luiz Alberto Gouvêa (1998, p. 77-78), “é deste período, inclusive, que se tem notícia das primeiras
favelas no Rio de Janeiro, pois a população expulsa da área onde foi construída a avenida Rio Branco [então
Avenida Central, obra-símbolo da reforma Pereira Passos] se alojou nas periferias mais próximas, na época, os
morros cariocas”. Considera-se, na verdade, a primeira favela carioca a ocupação do Morro da Providência,
depois denominado Morro da Favela, ocorrida em 1897, por ex-combatentes da Guerra de Canudos. “Cerca de
10 mil soldados foram para o Rio com a promessa do governo de ganhar casas na então capital federal. Como os
entraves políticos e burocráticos atrasaram a construção dos alojamentos, os ex-combatentes passaram a ocupar
provisoriamente as encostas do morro - e por lá acabaram ficando. (...) Favela era o nome de um morro que
ficava nas proximidades de Canudos e serviu de base e acampamento para os soldados republicanos. Faveleiro é
também o nome de um arbusto típico do sertão nordestino” (www.favelatemmemoria.com.br, consultado em
29/1/04).
43
34
Os modernistas viam a legislação higienista dos anos 1920 como entrave à aplicação dos pressupostos da
arquitetura moderna: plantas livres e flexíveis, espaço exterior amplo, verticalização, produção em série etc
(Feldman, 2001, p. 42).
35
Para reflexão: na concepção do marxista italiano Antonio Gramsci, desenvolvida nos Cadernos do cárcere
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 6 vol., 2002), escritos entre 1929 e 1935, a crise se instala quando o velho
(modelo) está morrendo e o novo ainda não nasceu, dando vazão, nesse ínterim, a manifestações de toda sorte.
Desse ponto de vista, as “crises urbanas” seriam invocadas - de modo não desinteressado - pelos que querem
enterrar o velho e, por meio dos planos, anunciar o novo.
36
Chauí, 1978, apud Rezende, 1982, p. 29 e 30.
37
Para uma síntese histórica do nascimento, esplendor e decadência do zoneamento “funcionalista” como
principal instrumento de planejamento urbano e, ainda, para uma abordagem propositiva de um “zoneamento
includente” do ponto de vista social, ver Souza, 2002, p. 250-274.
44
Decorre dessa percepção o argumento de que não é por falta de planos que as cidades
brasileiras crescem de modo social e ambientalmente predatório, mas, ao contrário, pelo
efeito, em grande medida, das próprias normas planificadoras. Para muitos pesquisadores, o
aparato legal que regula a produção do espaço urbano no Brasil (legislação exigente para o
parcelamento do solo, normas rígidas de zoneamento e minudentes códigos de obras, por
exemplo) tem cumprido um papel oposto aos seus aparentes objetivos ordenadores. Como
expressa, por exemplo, Ermínia Maricato,
“a exclusão social passa pela lógica da aplicação discriminatória da lei. A ineficácia dessa
legislação é, de fato, apenas aparente, pois constitui um instrumento fundamental para o
exercício arbitrário do poder (...). A ocupação ilegal da terra urbana é não só permitida como
parte do modelo de desenvolvimento urbano no Brasil (...). Ao lado da detalhada legislação
urbanística (flexibilizada pela pequena corrupção na cidade legal) é promovido um total
laissez-faire na cidade ilegal” (Maricato, 2000, p.147).
38
Com base em Cullinworth, 1993.
45
quem pode pagar. A lei, ao definir que num determinado espaço pode ocorrer somente um
certo padrão, opera o milagre de desenhar uma muralha invisível e, ao mesmo tempo, criar
uma mercadoria exclusiva no mercado de terras e imóveis” (Rolnik, 1997, p. 47).
De fato, não é possível compreender a segregação social no espaço como efeito tão-
só de normas urbanísticas estabelecidas por um estamento profissional dominado pelos
pressupostos da razão técnica e alheio às causas estruturais da desigualdade. O aparelho
estatal, onde se incluem os grupos técnico-profissionais incumbidos da proposição de normas
urbanísticas, mas também parlamentares e autoridades, detentores de efetivo poder
institucional, não é autônomo, como formalmente prescreve a Constituição. Ao contrário,
move-se em função de condicionantes.
Como ensinou Karl Marx, “as relações jurídicas — assim como as formas de Estado
— não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito
humano (...)” (1977, p. 24). Na verdade, essas relações expressam as estruturas sociais que
representam, bem como suas respectivas correlações de forças. É a chamada “pirâmide
invertida”, de que costumava falar Florestan Fernandes: as grandes massas populares contam
com escassos representantes nas instâncias efetivas do poder político, ao contrário dos poucos
ricos que, influentes, detêm expressivo número de defensores institucionais.
Nesse sentido, a segregação social no espaço passa a ser entendida, não como mera
decorrência, mas como fator necessário aos interesses do capital imobiliário, detentor de
parcelas hegemônicas de poder nas principais cidades brasileiras.
Para compreender como isso se dá, é necessário, antes, perceber o significado da
terra na dinâmica da economia. Segundo Mark Gottdiener, os economistas clássicos
consideram a terra como fator de produção. Tanto para Ricardo quanto para Marx, a terra era
um recurso agrícola e a renda fundiária, um produto da aplicação de trabalho e capital para a
produção de alimentos.
“A terra, desvinculada de qualquer forma de regulação estatal, era o terceiro
elemento da famosa fórmula da trindade de Marx: trabalho, capital e terra. Marx enfocou
esses fatores ancorado em três classes separadas — trabalhadores, capitalistas e
proprietários de terra — que batalhavam pela divisão da riqueza social. (...) Somente
Engels39 superou essa visão com a abordagem da questão imobiliária comercial quando
considerou a questão da habitação” (Gottdiener, 1996, p. 18).
39
Na obra A questão da moradia, Friedrich Engels (1820-1895) analisa a problemática habitacional com vistas a
demonstrar sua vinculação com a própria lógica do modo capitalista de produção. Para Luiz Cesar de Queiroz
Ribeiro (1982, p. 38), contudo, “Engels não consegue ser convincente quando tenta explicar porque, malgrado o
fato de as moradias alugadas aos operários apresentarem elevadas taxas de rentabilidade (...), o desenvolvimento
de um setor capitalista de produção da habitação [popular] encontra dificuldades”. Segundo ele, “não estava nos
horizontes de Engels” a percepção de que existem obstáculos para que esse setor do capital pudesse atuar. Os
principais obstáculos seriam a “inexistência de uma demanda solvável” (referindo-se à distância entre preço da
moradia e salários) e “a propriedade privada da terra”.
46
40
Henry George (1839-1897), pensador norte-americano que, “impressionado pelo fato de que a pobreza fosse
mais intensa e aflitiva em centros populosos e ricos como Nova York, que nos campos; mais nos países
adiantados que nos atrasados, se propôs a desvendar as causas da associação do progresso com a pobreza e o
remédio de tão tremendo mal” (Baldomero Argente, prólogo à 1ª ed. espanhola, em George, [1879] 2001, p. VII,
livre tradução). Em suas obras, Henry George sugeria que todos os impostos fossem substituídos por um único
tributo, incidente sobre o valor da terra.
47
Smolka. Para o primeiro, o capital, composto pela propriedade privada dos meios de
produção,
“(...) gera lucro na medida em que preside, orienta e domina o processo social de produção.
Mas o ‘capital’ imobiliário não entra neste processo, na medida em que o espaço é apenas
uma condição necessária à realização de qualquer atividade, portanto também da produção,
mas não constitui em si um meio de produção, entendido como emanação do trabalho que o
potencia” (Singer, 1979, p. 21, grifo nosso).
41
Rudolf von Ihering (1818–1892), um dos primeiros defensores da concepção do direito como produto social,
ocupa, ao lado de Friedrich Karl von Savigny (1779-1861), lugar de relevo na história do direito alemão, com
repercussão de sua obra em todo o mundo ocidental. Savigny, defensor da posse como condição para a
prevalência da propriedade, advogava a idéia de que, na essência, a posse é um fato, mas, considerada quanto às
suas conseqüências, também equivale a um direito.
48
Pois basta tão-somente esse “poder de direito sobre a coisa”, e não necessariamente o
proveito econômico e social que pode decorrer da utilização da propriedade, para que
proprietários de solo urbano aufiram rendas patrimoniais expressivas. Como o preço de um
terreno decorre de externalidades — a exemplo, entre outras, das possibilidades urbanísticas
para o seu uso, dos serviços públicos que lhe são postos à disposição e das atividades
realizadas em outros imóveis lindeiros —, o proprietário aufere passivamente uma renda que
deriva diretamente do direito contratual à propriedade e não da utilidade que confira ao seu
patrimônio.
Em outro pólo, nesse caso de modo ativo, a obtenção da renda fundiária pode se dar
pela ação deliberada e concertada entre os proprietários de terra no sentido de controlar a
escassez da oferta de terrenos, exigindo assim uma espécie de “tributo” a ser pago pelos
usuários de qualquer lote, independentemente das peculiaridades de cada um deles.
Segundo Smolka (op. cit., p. 43), com respeito a essa última circunstância, a de um
“tributo” imposto pelos proprietários aos usuários de solo urbano, dois componentes, “que
podem reforçar-se mutuamente”, devem ser considerados na formação dos preços do solo
urbano: a realização do valor potencial, “calcada na capacidade dos proprietários fundiários
em exercerem influência no uso que se dá à terra”, e a expectativa de valorização futura,
decorrente de novos investimentos, públicos ou privados, e da rentabilidade que deles pode
decorrer.
“Tudo isto sugere, em suma, que o preço do terreno é determinado, em larga
medida, pelas condições de produção do ambiente construído e, em especial, pelo preço dos
imóveis. Parafraseando a máxima ricardiana, dir-se-ia que os preços dos terrenos são altos
porque os preços dos imóveis são altos, e não o inverso, como ainda pretendem certos
analistas” (Smolka, op. cit., p. 46).
“a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que, embora não efetuando a construção,
compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de
tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção
sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais
transações, coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme
o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas”
(art. 29).
Não por acaso, mas certamente à vista da lucratividade obtida pela incorporação
imobiliária, alguns proprietários de terrenos e, especialmente, os construtores passaram a
desempenhar também o papel de incorporadores no processo de produção imobiliária, em
lugar de apenas fornecerem os “insumos produtivos” para um agente externo que, afinal,
obtinha a maior parcela da mais-valia gerada.
Essa tensão entre proprietários de terrenos e incorporadores (construtores ou não) é
explicada por Martim Smolka. Para esse autor, “ao tentar assumir o controle do processo pelo
qual rendas fundiárias são criadas e apropriadas”, o capital incorporador “depende de sua
capacidade em minar o poder dos proprietários” na aquisição dessas rendas, o que implica
“advogar medidas que favoreçam uma baixa nos preços de terrenos” (op. cit., p. 49)42.
42
Com esse mesmo propósito, o de minar o poder dos proprietários de terras, em Brasília (DF), onde
peculiarmente o mercado imobiliário é abastecido em licitações promovidas por uma loteadora pública (a Cia.
Imobiliária de Brasília/Terracap, dirigida pelo autor, de 1995 a 1998), os incorporadores, pela imprensa,
costumam atribuir os altos preços dos imóveis que vendem ao “custo do terreno” — formado, na verdade, por
eles próprios, nas ofertas que fazem nos leilões.
51
são, complacentes com as demandas do mercado imobiliário. Por meio desses mecanismos, “o
objeto da negociação que era, por assim dizer, o valor de uso do imóvel, passa a ser o seu
valor de troca, desviando, assim, a atenção sobre o nível do preço em favor da valorização
esperada para tal imóvel, quer dizer, a variação futura de seu preço. Isto é facilmente
depreendido do apelo da propaganda imobiliária” (Smolka, op. cit., p. 51).
Mais importante do que as exigências que restringem a atividade de incorporação a
fortes grupos empresariais, o aporte de recursos públicos para a realização de investimentos
que são capitalizados pelos empreendedores privados43 ou a permeabilidade das normas
edilícias aos artifícios do mercado imobiliário, talvez seja a colaboração que o aparelho estatal
tem oferecido à incorporação imobiliária no sentido de propiciar índices de aproveitamento
mais elevados e usos mais lucrativos que os prevalecentes no momento da aquisição original
do terreno.
O direito de construir mais e o de promover usos mais valorizados no mercado têm
sido comumente outorgados pelo poder público a proprietários e incorporadores sem nenhuma
contrapartida. Embora, desde 197144, a questão do “solo criado” esteja em debate também no
Brasil, tendo sido adotada em alguns países já na própria década de 1970, somente a partir dos
anos 1990 algumas municipalidades brasileiras, como Curitiba, a pioneira nesse aspecto, Rio
de Janeiro, Porto Alegre e Fortaleza, tentaram aplicar esse instituto.
Incluído no Estatuto da Cidade, o “solo criado” ainda suscita imensas reações em
face da tradicional disponibilidade do poder público municipal para elevar “gabaritos”, em
proveito de empreendedores que a transformam em renda fundiária. A esse respeito deve-se
lembrar que, juridicamente, “patrimônio não significa simplesmente riqueza, pois que pode
ser constituído por direitos, que não se mostrem de valor positivo, embora apreciáveis
economicamente, ou possam resultar num valor econômico positivo” (Silva, De P., 1998, p.
594).
Ora, se há uma categoria de patrimônio que, sendo tangível, a exemplo dos imóveis,
é facilmente perceptível como tal, há também outra, da qual faz parte o direito de construir,
que, ainda que seja intangível e de percepção mais sutil, não tem menor importância ou valor.
Portanto, se ao aparelho estatal não é dada, nem legal nem moralmente, a prerrogativa de
43
Além de promover externalidades benéficas aos empreendedores privados, como infra-estrutura e
equipamentos urbanos, não poucas vezes o poder público carreia recursos diretamente em proveito desse setor
do capital, como ocorreu no caso do Fundo Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), constituído por recursos do
trabalhador. Ver, por exemplo, Schvasberg, 1986, p. 139-166.
44
Quando um grupo de especialistas do Comitê Econômico Europeu, da Organização das Nações Unidas,
reunido em Roma, concluiu que o direito de construir pertence à comunidade e deve sempre ser objeto de
permissão pública (Lorenzetti e Araújo, 2002, p. 3).
53
transferir gratuitamente um bem público para o patrimônio particular, do mesmo modo lhe
deve ser vedada a possibilidade de ceder a particulares direitos que pertencem à coletividade e
integram o patrimônio público, no sentido de que podem ser aplicados economicamente.
Lamentavelmente, contudo, não é essa a noção prevalecente. Antes pelo contrário,
ainda é freqüente a prática estatal de beneficiar particulares, proprietários e incorporadores
imobiliários, com franquias edilícias que integram direitos patrimoniais de natureza pública.
45
Operado à época por um Estado de índole autoritária, em plena ditadura político-militar, esse aparato
institucional destinado a inibir a efervescência de manifestações populares também cumpria relevante papel no
sentido de estabelecer as bases da dualidade cidade legal/cidade ilegal. Não é de estranhar, portanto, que a
proposição da reforma urbana, construída a partir de então, tenha incorporado, como um de seus fundamentos, a
garantia e a ampliação dos direitos da cidadania. Nasce, assim, dessas restrições políticas, a luta pela gestão
democrática das cidades, que mais tarde viria a constituir um dos princípios do Estatuto da Cidade.
54
46
Para uma densa análise da “especificidade do fenômeno urbano nos países subdesenvolvidos” e em que esse
processo se diferencia do ocorrido nos centros capitalistas hegemônicos, ver Santos, M., 1982.
55
47
Ao tomar posse, em 1967, o segundo presidente do período militar, general Artur da Costa e Silva, afirmou em
discurso solene: “Queremos que os ricos se tornem mais ricos para que, com sua riqueza, possam tornar os
pobres menos pobres”.
56
48
Segundo Schmidt e Farret (op. cit, p. 34-35), “um projeto para este banco foi feito antes por Carlos Lacerda,
então governador do Estado da Guanabara e um dos principais líderes do movimento vitorioso de 1964; também
um forte candidato à sucessão de Castello Branco. Não se pode esquecer que estavam previstas eleições em
1965, para constitucionalizar o movimento de 1964”.
57
Habitação (SFH). Por meio dessa lei, também foram criados o Banco Nacional da Habitação
(BNH), as Sociedades de Crédito Imobiliário, as Letras Hipotecárias e, por fim, o Serviço
Federal de Habitação e Urbanismo (Serphau), que sucedeu a Fundação da Casa Popular,
existente desde 1946.
Entre as atribuições do Serphau, fixadas no art. 55, estava a de “estabelecer normas
técnicas para a elaboração de Planos Diretores, de acordo com as peculiaridades das diversas
regiões do país”, bem como “assistir aos municípios na elaboração ou adaptação de seus
Planos Diretores [a essas normas]”. De forma coercitiva, o § 1º do mencionado artigo
determinava que os municípios que não tivessem sua legislação urbanística ou seus “projetos
e planos habitacionais” adaptados às normas do Serphau estariam impedidos de “receber
recursos provenientes de entidades governamentais, destinados a programas de habitação e
urbanismo”49.
É curioso observar que, pelo menos desde 195350, documentos produzidos por
organizações de arquitetos, em especial o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), já
defendiam a institucionalização da questão urbana e habitacional no âmbito do poder público,
com base na idéia do planejamento da ação estatal. Reiterada em muitas ocasiões, essa
proposta culmina no Seminário de Habitação e Reforma Urbana51, iniciado no Hotel
Quitandinha, em Petrópolis, no Rio de Janeiro, e concluído em São Paulo, em julho de 1963.
O relatório final desse encontro, ao considerar que, no Brasil, “o fenômeno da
urbanização vem se processando de maneira vertiginosa e desordenada”, que o déficit
habitacional “é de suma gravidade” e que mesmo a população alojada “se debate com
problemas decorrentes da defasagem entre o crescimento demográfico das cidades e o
fornecimento dos mais rudimentares serviços públicos” (Serran, 1976, p. 55), incluiu a
49
Por força dessa exigência, que perdurou até 1975, quando o Serphau foi extinto, ficou conhecida a prática da
contratação de “planos diretores” com pouca ou mesmo nenhuma vinculação com as realidades e processos
políticos locais, mas “com o objetivo primordial de constituir documento para a solicitação dos recursos para
investimentos e implementação de programas setoriais nos municípios, recursos estes centralizados no Governo
Federal” (Mendonça, 2001, p. 151).
50
O documento conclusivo do IV Congresso Brasileiro de Arquitetos, realizado entre 17 e 24 de janeiro de 1954,
em São Paulo, defende a proposta da criação de “órgãos ministeriais especializados na matéria em questão”
(habitação e urbanismo), reportando-se ao III Congresso, ocorrido no ano anterior, em Belo Horizonte, que teria
aprovado “igualmente a mesma tese” (Serran, 1976, p. 29).
51
Promovido pelo IAB, o Seminário, sem prejuízo do caráter contestador e reivindicatório de seu documento
final, teve o patrocínio governamental do Ipase (Instituto de Previdência e Assistência Social dos Servidores de
Estado). O evento reuniu não apenas arquitetos, mas “cerca de 200 técnicos de diferentes especialidades
(arquitetos, sociólogos, engenheiros, economistas, advogados, assistentes sociais, médicos) para, juntamente com
líderes estudantis e sindicais, representantes de órgãos estaduais de planejamento e de grandes empresas
industriais de economia mista, estudar e debater os aspectos da crise brasileira de habitação” (Serran, op. cit., p.
11).
58
seguinte proposta: “Que o Poder Executivo envie projeto de lei ao Congresso Nacional
corporificando os princípios de Política Habitacional e de Reforma Urbana aprovados neste
seminário”.
O documento chegava a descrever, detalhadamente, o conteúdo da lei reclamada, que
incluía a criação de um “Órgão Executor da Política Habitacional e Urbana” com a atribuição,
entre outras, de “fixar as diretrizes da política habitacional e de planejamento territorial do
país, através da elaboração dos planos nacionais, territorial e de habitação, de duração
plurianual” (Serran, op. cit., p. 59, grifos nossos).
Para Maria Elaine Kohlsdorf, essas iniciativas, nascidas no âmbito corporativo, como
as do IAB, ou na esfera acadêmica, como “na Universidade de São Paulo, por exemplo, (...)
procuram colocar a questão urbana como processo e como objeto de várias disciplinas”.
Maria Elaine destaca a vinculação entre a concentração do poder político e a inclusão da
questão urbana na esfera administrativa pública, reivindicada nos meios acadêmicos e
profissionais: “É, entretanto, sob um sistema de poder mais fortalecido [referindo-se ao
regime militar] que se realiza a institucionalização dos problemas urbanos” (Kohlsdorf, 1985,
p. 68).
Conceitualmente, essas propostas derivavam da noção de que os planos diretores
pudessem pôr em prática um planejamento racionalizado, que pressupunha o conhecimento
completo do objeto de estudo (diagnóstico) e o enfrentamento das “disfunções” por meio da
previsão da expansão urbana e da definição de normas de uso e ocupação do solo. “O objetivo
é que o objeto seja totalmente reduzido a leis e teorias, para que não aconteçam surpresas”
(Rezende, 1982, p. 31).
Como expressa, novamente, Maria Elaine Kohlsdorf (op. cit., p. 68):
“Todos esses esforços dirigem-se para uma caracterização das situações como
problemas, para os quais se deveriam procurar soluções. É a ideologia do planning, fazendo
eco às correntes européias e norte-americanas (...). Por isso, costuma-se considerar como
marco institucional do planejamento urbano no Brasil a criação do Serphau, mesmo porque
este ato desencadeou uma série bastante significativa de experiências, (...) abrangendo um
grande número de cidades de pequeno e médio portes, e não apenas os centros mais
populosos.”
projetar uma imagem idealizada de cidade para um futuro medianamente distante, cerca de
dez a vinte anos, por meio de normas para a expansão, o uso e a ocupação urbana. “Trata-se
de uma redução menos ou mais acentuada do planejamento urbano a um planejamento da
organização espacial, preocupado essencialmente com o traçado urbanístico, com as
densidades de ocupação e com o uso do solo”52.
No contexto internacional, o planejamento regulatório (ou tecnocrático) foi
marcadamente dominante entre o fim da 2ª Guerra Mundial e os anos 1970. A partir de então,
esse tipo de planejamento passou a ser criticado “tanto pelos marxistas quanto pela ‘New
Right” (Souza, op. cit., p. 125). Os liberais criticavam um modelo que dependia da existência
de um Estado forte, capaz de intervir no processo produtivo, enquanto a esquerda53
denunciava a dominação desse aparelho estatal pelas forças hegemônicas do capital urbano-
industrial.
Essa combinação, Estado forte e hegemonia do capital privado, ganhou contornos
específicos no Brasil a partir da criação do tripé SFH/BNH/Serphau, em 1964. Embora todo
esse aparato estivesse legalmente voltado para a integração das políticas de habitação e
desenvolvimento urbano — o que só aconteceria em 1967, ainda assim tentativamente, a
partir da criação do Ministério do Interior e da operacionalização do Serphau —, a ação
estatal restringia-se à implementação de programas habitacionais.
Nos primeiros anos do novo regime, essa estratégia política, que pretendia superar a
insatisfação das massas urbanas, bem como atender às expectativas das classes médias e dos
setores empresariais que haviam apoiado o golpe militar, resultou (conforme Schmidt e
Farret, 1989, p. 33): (i) numa política de desmobilização popular, sustentada pela repressão
aos movimentos sociais e pela “manipulação dos mecanismos eleitorais”; (ii) na
implementação de uma política habitacional, cujo suporte financeiro destinou-se, na verdade,
a “acentuar a acumulação de capital em setores urbanos-chave”, a despeito do discurso oficial
que procurava conquistar a simpatia dos setores populares54.
52
Taylor, 1998, apud Souza, 2002, p. 123.
53
A construção teórica dessa crítica, de inspiração marxista, se deu, como vimos, no âmbito da mencionada
“nova sociologia urbana”, constituída a partir do final dos anos 1960, por autores como Henri Lefebvre, Manuel
Castells, Jean Lojkine, Christian Topalov e outros, que influenciaram fortemente a produção teórica latino-
americana sobre a problemática urbana, muito especialmente a formulada no Brasil. Para uma crítica à filiação
alegadamente marxista dessa corrente, ver Cariello Filho, 1999.
54
O SFH foi calcado na fórmula da correção monetária acrescida de juros, sem cogitar de subsídios, o que, na
prática, afastava os mais pobres do acesso à moradia.
60
Os dados demonstram essa afirmação. Até 1967, com apenas três anos de operações
do BNH, “o financiamento de habitação para grupos sociais com as mais altas rendas tomou
41% do total dos recursos, enquanto somente 35% foi para financiar habitações para as
classes mais empobrecidas” (Schmidt e Farret, op. cit., p. 40). Essa tendência não apenas se
confirmou, mas acentuou-se ao longo do tempo. Quando o BNH foi extinto, em 1985, o SFH
havia financiado aproximadamente seis milhões de moradias. No entanto, apenas 33,5%
dessas unidades foram destinadas à população de baixa renda, o que significa que, em termos
de volume de recursos, a concentração foi ainda maior: “Dado que o valor médio dos
financiamentos de interesse social é inferior ao valor médio dos financiamentos para as
classes de renda mais elevada, é lícito supor que uma parcela ainda menor do valor total dos
financiamentos foi direcionada para os primeiros” (Santos, C. H., 1999, p. 17).
A partir de 1973, quando são criadas as primeiras Regiões Metropolitanas e a
Comissão Nacional de Política Urbana e Regiões Metropolitanas (CNPU), o contexto urbano
passa a freqüentar mais ostensivamente a agenda política nacional. Os programas do BNH,
inicialmente restritos ao financiamento habitacional, passam a destinar-se também a serviços
(em especial os de saneamento) e equipamentos urbanos. Em 1976, é criada a Empresa
Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU). Enquanto a abrangência temática das políticas
públicas crescia, a instância municipal era substituída pela concentração da formulação de
programas (e mesmo da iniciativa das ações administrativas) na esfera federal.
Sintomaticamente o Serphau, nascido para subsidiar os municípios, é extinto.
Mudam os enfoques, mas não o principal beneficiário da ação do poder público: o
capital privado. Para Schmidt e Farret (op. cit., p. 43),
“as causas ostensivas dessas mudanças são múltiplas e provêm da exaustão de oportunidades
lucrativas para novos investimentos, bem como de pressões emanadas de uma estrutura
urbana profundamente desorganizada. O capital disponível tinha de encontrar novas
oportunidades, os problemas de circulação tinham de ser superados para permitir a expansão
do sistema produtivo e o Estado necessitava urgentemente deslanchar uma cadeia de
operações para favorecer o funcionamento de um aparato produtivo expandido”.
raízes remontam aos fundamentos da arquitetura moderna55, tentam “fazer crer que a cidade
seja um conjunto de construções e usos do solo que podem ser arranjados e rearranjados,
através de planejamento, sem levar em conta os determinantes políticos, sociais e
econômicos” (Rezende, 1982, p. 31).
55
A Carta de Atenas afirma a necessidade de que, “por meio de uma legislação implacável”, o bem-estar urbano
fosse tornado “acessível para todos”. Para tanto, a fé nas possibilidades da arquitetura e do urbanismo não tinha
medida: no livro Por uma arquitetura, de 1923 (São Paulo: Perspectiva, 1998), o próprio Le Corbusier chega a
afirmar que “O equilíbrio da sociedade é uma questão de construção. Concluímos com esse dilema defensável:
arquitetura ou revolução” (apud Souza, 2002, p. 129). Na mesma época, a formação de “massas revolucionárias”
não preocupava apenas os modernistas. É curioso observar que a Revolução de 1930, que ampliou os parcos
direitos democráticos admitidos na República Velha, foi antecedida por um famoso alerta de um de seus líderes,
o presidente (como era chamado o governador) Antonio Carlos, de Minas Gerais: “Façamos a revolução antes
que o povo a faça!”.
56
Ermínia Maricato adverte que “a crítica ao planejamento modernista carrega o risco de ajudar a mover o
moinho das idéias neoliberais de flexibilização e da desregulamentação” e, contra esse risco, alerta que é
necessário evitar “a importação de idéias desvinculadas da forma contraditória, desigual e predatória ao meio
ambiente, com que evoluem as cidades brasileiras” (Maricato, 2000, p. 172).
62
ocorrida no Canadá, em 1976, e a Habitat II, realizada na Turquia, em 1996, que ganharam
expressão no documento-referência denominado Agenda Habitat.
A partir dessa avaliação crítica, algumas importantes correntes de opinião adotam
uma perspectiva desregulamentadora e nitidamente propícia à ação empresarial privada, sob a
legenda do chamado “planejamento estratégico”.
Autores nesse campo do pensamento chegam a elevar esse conjunto de idéias,
construído “pela reflexão de estudiosos e pesquisadores e pela ação dos atores públicos,
empresariais e sociais que interagem nos espaços urbanos” (Fernandes, M., 1999, p. 76), à
condição de “novos paradigmas de desenvolvimento urbano”57, que seriam, resumidamente,
os seguintes:
“a) a adoção do conceito de desenvolvimento sustentável, ratificado pela Agenda 21, e
incorporado pela Agenda Habitat;
b) o protagonismo das cidades nos processos de desenvolvimento econômico nacional,
regional e mundial;
c) o governo local como agente de desenvolvimento e de fomento econômico;
d) a participação dos atores relevantes da sociedade no processo de gestão democrática da
cidade, demandada pela crescente presença das organizações da sociedade no cenário
urbano e na esfera pública” (Fernandes, M., op. cit., p. 76, grifo nosso).
57
A despeito de sua postura crítica em relação ao que considera “excessos da regulação estatal”, há
familiaridades entre essa abordagem do planejamento estratégico e o velho planejamento físico-territorial. A
expressão “novos paradigmas para o desenvolvimento urbano”, por exemplo, guarda notória semelhança com a
já mencionada concepção da Carta de Atenas como “o instrumento pelo qual será conduzido o destino das
cidades”.
58
Carlos Matus, economista chileno, foi ministro do governo comunista de Salvador Allende, deposto, no dia 11
de setembro de 1973, por um golpe militar. Em Matus, 1996b, examina o problema da efetivação das ações
políticas a partir de três estilos distintos: o do Chimpanzé, baseado no projeto individual e na luta pelo poder
pessoal; o de Maquiavel, que justifica os meios pela superioridade do projeto a ser implementado; e o de Gandhi,
fundado na força moral e no consenso, que objetiva converter o adversário e não destruí-lo. Com base nesse
último estilo, tenta demonstrar as possibilidades oferecidas pelo planejamento estratégico situacional.
63
59
Borja e Forn produzem textos e exercem consultoria em que difundem a experiência da transformação
urbanística promovida em Barcelona com vistas aos Jogos Olímpicos de 1992 (Vainer, 2000, p. 75).
60
A primeira em Borja e Forn, 1996, p. 33, e, a segunda, em Borja e Castells, 1997, p. 190, ambas apud Vainer,
2000, p. 78 e 84.
61
Harvey, 2000, p. 141, apud Souza, 2002, p. 137, (livre tradução).
64
62
Segundo Alessandra Queiroga, “a expressão desapropriação-sanção tem sido utilizada apenas no que se refere
à modalidade expropriatória prevista no artigo 182, § 4°, inciso III, da Constituição Federal”, no capítulo que
trata da política urbana. Entretanto, a autora entende ser pertinente a utilização desse termo para “toda e qualquer
65
O movimento social pela reforma agrária se sentiu frustrado com o texto aprovado, já
que pretendia estender a aplicação da desapropriação especial até as propriedades produtivas
que não cumprissem sua função social, possibilidade que, não sendo expressamente
autorizada, passou a depender de métodos jurídicos menos literais de interpretação das
normas constitucionais.
De fato, prevaleceu na Constituição uma redação redutora da perspectiva da reforma
agrária, “tamanha a vagueza do conceito de ‘produtividade’, podendo abranger boa parte dos
latifúndios existentes no País” (Spitzcovsky e Tura, 1993, p. 31). Derrotados pelo Centrão e
pela UDR, ainda que por pequena margem de votos64, os constituintes ligados ao chamado
setor democrático-popular atribuíram ao texto aprovado a responsabilidade pelas dificuldades
que poderiam advir na implementação da reforma agrária. João Gilberto Lucas Coelho e
Antonio Carlos Nantes de Oliveira, ao analisarem o tratamento desse tema no processo
constituinte — num documento redigido em 1989, cujo conteúdo premonitório poderia
também ser estendido à causa da reforma urbana —, afirmaram: “A Constituição não desatou
o nó da questão agrária. Tornou até mais difícil a sua solução. Grandes batalhas legislativas na
regulamentação e a luta prática e diária darão continuidade ao enfrentamento do problema de
parte dos movimentos populares” (Coelho e Oliveira, op. cit., p. 77).
Apesar desse prognóstico pessimista, em grande parte confirmado pelas efetivas
dificuldades para a implementação da reforma agrária (que, a bem da verdade, não se
resumem à expropriação da terra, mas dependem dela), a pré-existência do Estatuto da Terra,
Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964, permitiu que o poder público continuasse a
promover desapropriações de latifúndios improdutivos. Constatado o descumprimento da
função social da propriedade rural, o bem pode ser imediatamente expropriado mediante
indenização paga em títulos da dívida pública.
64
Na votação n° 531, a tentativa do Centrão e da UDR de remover do texto até então aprovado a possibilidade
de desapropriação-sanção da propriedade que, mesmo produtiva, descumprisse sua função social, resultou bem
sucedida, apesar de derrotada numericamente. A despeito de ter vencido por 267 votos contra 253, a proposta de
reforma agrária ampla não alcançou o quorum mínimo de 280 votos, exigido pelo Regimento (Coelho e Oliveira,
1989, p. 102).
67
Situação ainda mais difícil, do ponto de vista do interesse coletivo, foi reservada à
operacionalização da reforma urbana. Embora, analogamente, tenha prevalecido no processo
constituinte a idéia de que a terra urbana “improdutiva”, nesse caso denominada “ociosa”,
deva estar sujeita à desapropriação-sanção, a efetivação desse princípio foi posta diante de
múltiplos obstáculos.
Após um sinuoso processo que será comentado nos Capítulos 4 e 5, o texto final da
Constituição estabeleceu que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende
às exigências de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (art. 182, § 2°, da CF).
Assim, remeteu-se do texto constitucional para o território legislativo municipal a
prerrogativa de estabelecer os critérios e as condições a serem atendidas pelas propriedades
urbanas no cumprimento de sua função social. O plano diretor, cujo passado tecnocrático,
como vimos, o transformara num instrumento repudiado pelos defensores da reforma urbana,
não apenas surgia, por assim dizer, redivivo, como passava a ser o paradigma do cumprimento
da função social da propriedade65.
Na Emenda Popular apresentada perante a Assembléia Nacional Constituinte,
embora, ao contrário do que comumente se afirma66, de fato houvesse menção em dois artigos
a “planos de uso e ocupação do solo” (no primeiro, para assegurar “o amplo acesso da
população às informações” sobre esse planos e, no segundo, para exigir sua “aprovação pelo
legislativo e a participação da comunidade” na sua elaboração e implantação), não havia
textualmente a expressão “plano diretor”.
Na explicação de Ermínia Maricato, indicada pelas entidades signatárias para
defender a Emenda perante o Plenário da Constituinte: “A rejeição ao plano diretor significou
a rejeição ao seu caráter ideológico e dissimulador dos conflitos sociais urbanos. Além de
ignorar a proposta de plano diretor, a ‘iniciativa popular’ destacou a ‘gestão democrática das
cidades’, revelando o desejo de ver ações que fossem além dos planos” (Maricato, 2000, p.
175).
Com efeito, num longo processo que resultou em pelo menos dez versões
preliminares, desde o anteprojeto da Subcomissão de Questão Urbana e Transporte até a
65
Autores como Liana Portilho Mattos (2003, p. 104-114) demonstram que, não sendo o plano diretor o único
instrumento de política urbana, mas seu instrumento básico, a exigência do cumprimento da função social da
propriedade urbana se impõe universalmente, ainda que inexista, nesta ou naquela localidade, plano diretor.
66
Ver, p. ex., Grazia, 2002, p. 16, e Maricato, 2000, p. 174.
68
67
Todas as informações referentes aos textos produzidos no âmbito da Assembléia Nacional Constituinte estão
baseadas em informações disponíveis no Banco de Dados “APEM” (Anteprojetos, Projetos e Emendas da
Assembléia Nacional Constituinte), do Sistema de Informações do Congresso Nacional (SICON).
68
Essa lei federal vem a ser o Estatuto da Cidade, aprovado treze anos depois.
69
É inegável, nesse sentido, o avanço do chamado “arcabouço jurídico”, trazido pela Constituição de 1988. No
entanto, muitos “exemplos confirmam aquilo que diversos estudiosos da sociedade brasileira apontam como
distância tradicional entre o arcabouço jurídico e a realidade social” (Maricato, 2000, p. 152).
69
Autores como Marcelo Lopes de Souza, embora ressalvem que “talvez não seja
necessário anatematizar o instrumento, como sugerem alguns críticos mais afoitos”
(referindo-se ao GT/OI-RJ), reconhecem que as OI “têm sido aprovadas para alterar
parâmetros urbanísticos em bairros e setores urbanísticos nobres (...), sendo que as
contrapartidas exigidas dos beneficiários (promotores imobiliários e outros), efetivadas sob a
forma de doação de imóveis ou pagamento em dinheiro, não convencem quanto ao interesse
da transação para a coletividade” (Souza, 2002, p. 288).
Em São Paulo, as operações interligadas, cujas origens remontam ao governo Jânio
Quadros na Prefeitura de São Paulo, em 1986 — quando esse alcaide envia a seu secretário de
Planejamento um memorando nos seguintes termos: “Solicito providências imediatas para
estudar projeto que favoreça construções em determinadas áreas desde que o proprietário
ofereça residências operárias aos ocupantes dessas mesmas áreas”74 —, receberam, mais
tarde, tentativas de aperfeiçoamento, mas, pelo efeito das críticas ao seu funcionamento
duvidoso como instrumento de interesse público e de restrições a seus aspectos jurídico-
formais, sua utilização foi interrompida. Em seu lugar, passaram a ser implementadas as
chamadas operações urbanas (OU), num modelo mais aproximado da fórmula que seria
incorporada ao Estatuto da Cidade. Ao contrário das OI,
“nas quais as contrapartidas financeiras se traduzem em construção de HIS [habitações de
interesse social] fora do terreno em que são obtidos direitos de edificação superiores aos
estabelecidos pelo zoneamento, nas OU tais recursos são utilizados no interior do perímetro
que delimita a área onde se realizará a OU, na forma de investimentos em infra-estrutura,
redes viárias, residências para os setores médios e para as populações de baixa renda
etc.”(Sandroni, 2001, p. 62, livre tradução).
74
Processo da Prefeitura Municipal n° 10.001.934-86*39, 07/01/86, p. 1, apud Wilderode, 1997, p. 44. A título
de curiosidade, já no período em que exerceu a Presidência da República, de 1960 a 1961, quando renunciou
espetacularmente, Jânio Quadros desenvolveu o hábito de governar por meio de “bilhetinhos” enviados a seus
auxiliares. À época, diretor do jornal “Diário Carioca”, que fazia oposição a Jânio, Pompeu de Sousa (que, trinta
anos mais tarde, como senador, seria o autor do projeto do Estatuto da Cidade) fazia uma coluna diária,
denominada “Bilhetinhos a Jânio”, em que satirizava as decisões do presidente da República (Sousa, 1987).
72
as contrapartidas exigidas dos beneficiários, ofendem-se “os princípios éticos que norteiam as
idéias de justiça e legalidade” (GT/OI-RJ, 1997, p. 59).
Ao fazer proposições que, com base em sua grande experiência, poderiam melhorar o
desempenho social das OU, Paulo Sandroni observa que a Operação Urbana Faria Lima (Lei
Municipal n° 11.732, de 1995), em São Paulo, talvez o maior exemplo da comentada
deformação, ao invés de voltar-se para a obtenção de contrapartidas de interesse público,
destinou-se a prolongar uma avenida, cujos terrenos já ostentavam um dos mais elevados
preços do mercado imobiliário, no interesse quase exclusivo de empreendedores privados.
Assim, “ao contrário de representar uma captura de mais-valias pelo poder público, significou
um elevado gasto que pesa na dívida pública do município” (Sandroni, 2001, p. 70).
Circunstâncias dessa natureza, ou seja, a perspectiva da obtenção de vantagens
advindas dos novos instrumentos, parecem ter contribuído para quebrar resistências de
segmentos do capital imobiliário à aprovação do Estatuto da Cidade, que paralelamente
tramitava no Congresso Nacional, sendo acrescido ou modificado para absorver esses e outros
experimentos municipais. Os efeitos, em seus vários sentidos, da prática municipal na
implementação de dispositivos inovadores constituem, aliás, uma das principais hipóteses em
que se assenta este trabalho para explicar o consenso obtido na aprovação da nova lei.
Os analistas da aplicação das operações interligadas e urbanas, por exemplo,
confirmam essa evidência. Referindo-se à partição dos ônus e bônus entre poder público e
iniciativa privada, favorável a esta última, o GT/OI-RJ (op. cit., p. 60) afirma: “Por isso ele [o
instrumento da operação interligada] vem sendo utilizado sem enfrentar qualquer oposição do
setor imobiliário, pelo contrário, tendo o seu apoio quase irrestrito”.
É o que também pensa Marcelo Lopes de Souza, para quem esse instrumento, a
depender de sua regulamentação, “pode constituir-se em peça legitimatória de favorecimentos
abusivos de interesses capitalistas em detrimento da população. Esse tem sido, precisamente,
o caso do Rio de Janeiro” (Souza, 2002, p. 284).
Na ótica da crítica paulista, a opinião não é diferente. Ao examinar as primeiras
operações interligadas em São Paulo, Daniel Wilderode (1997, p. 54) conclui seu trabalho
constatando que a construção de moradias populares, embora em quantidades inexpressivas,
“é elogiada tanto pela imprensa em geral, quanto pelos diversos representantes do setor
imobiliário e da construção, deixando em segundo plano o superlucro obtido pelo
empreendimento interligado”.
Em que pesem esses comentários críticos, prevalece entre os militantes da causa da
reforma urbana a convicção de que é possível a utilização desse vasto instrumental urbanístico
73
75
Em vez de ser definido apenas pelas autoridades formalmente constituídas, o orçamento público passa a ser
elaborado democraticamente, em várias e sucessivas reuniões, nas quais as comunidades interessadas debatem as
possibilidades e prioridades do investimento público. As primeiras iniciativas de Orçamento Participativo, como
essa prática ficou mundialmente conhecida, datam de 1989, na cidade de Porto Alegre (RS).
76
Alguns chegam a ver o plano diretor, não sem certa dose de otimismo, como um “pacto social urbano” (na
expressão, entre outras análogas, de Linda Gondim apud Osório, 2001, p. 176).
74
restrições, a perspectiva que se delineava era outra. Como constata Marcelo Lopes de Souza,
“diante da crise do regulative planning e da ascensão das modalidades francamente
mercadófilas de planejamento, a cautela e a crítica parecem ceder mais e mais terreno à
apologia da parceria direta e explícita entre Estado e capital imobiliário” (Souza, 2002, p.
287).
Assim, a conquista desse novo e amplo instrumental jurídico pode ser traduzida de
muitas maneiras. Sua aplicação pode mesmo não ocorrer ou, a depender das circunstâncias, se
dar num ou noutro sentido. Como acuradamente observou Ermínia Maricato, ao citar pesquisa
do professor Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro que evidencia o “avanço legal” das leis orgânicas
e planos diretores municipais, após a Constituição de 1988: “na gestão das cidades, entretanto,
esse avanço não foi efetivado”. Certamente porque, ela mesma conclui, “estamos no terreno
da política e não da técnica” (Maricato, 2000, p. 181 e 185).
77
No livro Desordem e processo (Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1985), apud Sousa Jr., 1993, p. 6
(apresentação da 4a edição).
75
Construções teóricas dessa natureza dão a medida do esforço que os juristas mais
comprometidos com as causas da justiça social tiveram e ainda têm que empreender para
romper, ou neles encontrar frestas, os dogmas civilistas e patrimonialistas que, como vimos
anteriormente, têm oferecido suporte legal à segregação social característica das cidades
brasileiras.
Os textos citados, de autoria do professor Lyra Filho, foram escritos,
respectivamente, em 1982 e 1985, e são, portanto, anteriores ao processo de redemocratização
do País, que culminou na promulgação da Constituição de 1988. A despeito, contudo, dos
inegáveis avanços sociais que nossa ordem jurídica experimentou desde então, sendo o
capítulo constitucional sobre a política urbana e o Estatuto da Cidade testemunhos desse
aprimoramento, impressiona perceber a semelhança daqueles ensinamentos com a análise, já
posterior a esse novo ordenamento legal (e, na verdade, a propósito dele), feita com acuidade
por Edésio Fernandes:
“é preciso ‘arrancar’ o tratamento jurídico do direito de propriedade imobiliária do âmbito
individualista do Direito Civil para colocá-lo no âmbito social do Direito Urbanístico, de tal
forma que o direito coletivo ao planejamento das cidades, criado pela Constituição Federal
de 1988, seja materializado. Da mesma forma, é preciso ‘arrancar’ o tratamento jurídico da
gestão urbana do âmbito restritivo do Direito Administrativo para colocá-lo no âmbito mais
dinâmico do Direito Urbanístico, de tal forma que o direito coletivo à gestão participativa
das cidades, também criado pela Constituição Federal de 1988, seja efetivado” (Fernandes,
E., 2002b, p. 34).
Esse alerta se dá no contexto da consistente defesa que seu autor faz da tese de que o
direito urbanístico já constitui um ramo autônomo do direito, na medida em que detém
“objeto, princípios, institutos e leis próprias” (Fernandes, E., op. cit., p. 60). Para ele, esse
ramo autônomo não mais pode ser confundido, como tem sido, com preceitos do direito civil,
privatista e individualista, ou do direito administrativo, na órbita pública, mas limitado e
insuficiente para abranger o novo escopo normativo.
No entanto, a percepção das dificuldades, presente em ambas as análises a despeito
de distarem vinte anos uma da outra, sugerem que o papel das ruas não pode ser
negligenciado na luta pela efetivação dos direitos conquistados. Se houve um longo caminho,
cujos pressupostos jurídicos comentaremos a seguir, para que o direito à cidade — direito
achado na rua — fosse transformado em normas legais, é razoável supor que não será menos
penosa a tarefa para que esses direitos, agora formais, sejam transpostos para a realidade.
76
78
Conforme Edésio Fernandes (2002b, p. 60-62).
78
como o próprio Estatuto, a lei de parcelamento, várias leis federais e inúmeras leis estaduais e
municipais —, estariam atendidos os requisitos doutrinários de um objeto, que seria
fundamentalmente o de promover o controle jurídico do desenvolvimento urbano; de
princípios, tais como o da função social da propriedade e da cidade, o do urbanismo como
função pública e o da separação entre direito de construir e direito de propriedade; e de
institutos típicos, como o são o plano diretor, o parcelamento do solo para fins urbanos e o
zoneamento, entre muitos outros.
Porém, conquanto seja amplo e vário o arsenal de normas que já compõem essa nova
ordem jurídico-urbanística, as condições políticas e sociais que colocam em risco a sua
efetividade remanescem. Seja valendo-se de possíveis incoerências entre o Estatuto da Cidade
e o novo Código Civil79, em vigor desde janeiro de 2003, seja por meio da exploração
interessada de dispositivos da legislação ambiental para impedir a regularização fundiária de
favelas, mesmo em áreas há tempos consolidadas80, são muitos ainda os artefatos que a reação
ideológica, o dogmatismo patrimonialista e o legalismo conservador tendem a opor aos
princípios constitucionais da política urbana.
Afinal, como veremos mais detalhadamente no próximo capítulo, “o que sempre
esteve em jogo durante o longo processo de discussão sobre a nova lei — dentro e fora do
Congresso Nacional — era, e ainda é, a forte resistência dos grupos conservadores ligados ao
setor imobiliário à nova concepção (...) dada ao direito de propriedade” (Fernandes, E., op.
cit., p. 35).
79
Nesse ponto, há distintas opiniões, mesmo entre juristas que abraçam o ideário da reforma urbana. Enquanto,
por exemplo, Jacques Távora Alfonsin (2002, p. 11) entende que, nos termos do art. 1.228 do novo Código Civil,
“o direito de propriedade mudou o seu caráter jurídico” em cotejo com o anterior, Edésio Fernandes (2002b, p.
36), ao considerar que o novo Código “não é de todo coerente com a proposta do Estatuto da Cidade no que diz
respeito à noção do direito de propriedade imobiliária individual”, prevê que grupos conservadores explorarão
“controvérsias jurídicas”.
80
O Estatuto da Cidade, ao definir o princípio do direito a cidades sustentáveis, estabeleceu uma espécie de
hierarquia de direitos: o direito individual deve subordinar-se ao direito coletivo e, este, por sua vez, deve
regrar-se pelo interesse público. Se há risco, por exemplo, de comprometimento das condições de vida “para as
presentes e futuras gerações”, o assentamento da população, seja rica, seja pobre, deve evitá-lo. O que não
significa dar vezo ao reacionarismo das decisões administrativas e judiciais que são, o mais das vezes, rigorosas
com os pobres, sem que se lhes ofereçam alternativa digna, e complacentes com os ricos (quando, sendo o caso
de tratamento diferenciado, deveria prevalecer o exato contrário, em face do “estado de necessidade”). A
propósito, convém lembrar a inscrição em uma camiseta de um militante do movimento popular pela moradia,
que circulava pelos corredores da Cúpula das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Rio 92). Inconformado
com o conteúdo conservador de alguns discursos preservacionistas, que muitas vezes pareciam esquecer que a
espécie humana também integra a natureza, alertava, com ironia: “Gente também é bicho”!
79
81
O registro contextualizado do Seminário bem como a íntegra de seu documento final podem ser consultados
em Serran, 1976.
80
expunha princípios e fundamentos que décadas depois seriam, alguns, incorporados à ordem
jurídica nacional e, outros, mantidos nos discursos propositivos da reforma urbana.
São exemplos do caráter pioneiro e da constrangedora atualidade desse documento,
afirmações, entre muitas outras, como as seguintes:
1. “o problema habitacional na América latina (...) é o resultado de condições de
subdesenvolvimento provocadas por fatores diversos, inclusive processos
espoliativos (...)”;
2. “a situação habitacional do Brasil [caracteriza-se] pela desproporção cada vez
maior, nos centros urbanos, entre o salário ou a renda familiar e o preço de
locação ou de aquisição de moradia, [dado que] o significativo número de
habitações construídas tem se destinado quase exclusivamente às classes
economicamente mais favorecidas”;
3. “nos maiores centros urbanos do país, a população que vive em sub-habitações
(...) é grande e crescente, tanto em números absolutos como relativos”;
4. “concorre para agravar o déficit de habitação (...) a incapacidade já demonstrada
de obter-se, pela iniciativa privada, os recursos e investimentos necessários ao
aumento da oferta de moradias de interesse social (...)”;
5. “a ausência de uma política habitacional sistemática (...) vem ocasionando
efeitos maléficos ao desenvolvimento global do país, baixando de modo sensível
o rendimento econômico-social desse mesmo desenvolvimento”;
6. entre “os direitos fundamentais do homem e da família se inclui o da habitação”
e sua realização exige “limitações ao direito de propriedade e uso do solo” e se
consubstancia “numa reforma urbana, considerada como o conjunto de medidas
estatais visando à justa utilização do solo urbano, à ordenação e ao equipamento
das aglomerações urbanas e ao fornecimento de habitação condigna a todas as
famílias”;
7. “é de grande importância para a política habitacional a formação de uma
consciência popular do problema e a participação do povo em programas de
desenvolvimento de comunidades”;
8. “é imprescindível a adoção de medidas que cerceiem a especulação imobiliária,
sempre antisocial, disciplinando o investimento privado nesse setor”;
9. “para a efetivação da reforma urbana torna-se imprescindível a modificação do
parágrafo 16 do art. 141 da Constituição Federal, de maneira a permitir a
81
82
Ver anexo 1.
83
Conforme Jorge Wilheim (1965, p. 161).
84
Ver anexo 2. Observe-se que, desde 22/11/1963, tramitava na Câmara dos Deputados o PL 1329/1963, de
autoria do deputado Artur Lima, liderança da base governista (PTB), que criava a Superintendência da Política
Urbana (Supurb), de menor abrangência que a que se pretenderia, poucos meses depois, atribuir ao Copurb.
82
para, adiante, pretextar-se pela omissão governamental buscando apoio nos dois lados da
“guerra fria”85: “recordo que mesmo nos Estados Unidos da América, o país de mais elevada
renda do mundo, dezenas de milhões habitam em condições precárias. A União Soviética
ainda não conseguiu debelar o seu déficit habitacional, não obstante dois planos septenais de
construção intensiva”; e, por fim, compromissar-se: “devo submeter à aprovação do
Congresso Nacional, dentro em breve, o projeto de lei de reforma urbana, que constituirá o
primeiro passo para a formulação de soluções em novas bases para os problemas da habitação
e, particularmente, para a questão da moradia popular” (Revista Arquitetura n° 10, abril de
1963, apud Serran, 1976, p. 47-52, grifos nossos).
Abortado pelo golpe militar de 31 de março de 1964, o projeto não chegou a ser
apresentado ao Congresso Nacional. Embora a questão urbana já fosse importante naquele
ambiente político e o Seminário do Quitandinha, realizado em julho de 1963, tivesse, de fato,
influenciado as decisões políticas, “a repercussão do referido encontro não se comparou à
visibilidade conferida à mobilização que, na mesma época, agitava o Brasil rural, na esteira da
organização das ligas camponesas, clamando por reforma agrária” (Souza, 2002, p. 157).
Talvez por essa razão, frustradas as precursoras iniciativas de legislação urbana do
governo Goulart, os governos militares tenham logo aprovado uma lei para tratar da questão
agrário-rural, o Estatuto da Terra (até hoje considerada avançada, a despeito de sua ainda
restrita implementação), e, no que se refere à problemática urbana, feito regredir o debate,
circunscrevendo-o à política habitacional86.
A idéia de uma legislação que se voltasse abrangentemente para as cidades só
voltaria ao debate político no final dos anos 1970. À proporção que os problemas urbanos se
agravavam, as críticas à atuação do BNH, voltado para a abordagem financeira da produção
habitacional, se avolumavam. A avaliação negativa exposta, em maio de 1971, no Rio de
Janeiro, pelo então presidente do IAB, arq. Benito Sarno, no III Congresso Interamericano de
Habitação, do qual o próprio BNH era anfitrião, dão a medida da opinião que prevalecia entre
os profissionais do setor, que tentavam traduzir o sentimento popular:
“O BNH tem atuado há seis anos no Brasil. Tem tomado a moradia como se esta
pudesse ser algo isolado. Em muitos casos tem forçado uma ruptura das ligações naturais
85
Ficou conhecido como “guerra fria” o período, entre o fim da 2 ª Guerra Mundial, em 1945, e a queda do Muro
de Berlim, em 1989, no qual os principais blocos de nações, o capitalista e o comunista, liderados
respectivamente pelos Estados Unidos da América e pela União Soviética, se antagonizavam no domínio da
tecnologia nuclear, na conquista espacial, na corrida armamentista e em outras disputas político-econômicas,
sem, contudo, declararem uma guerra efetiva.
86
O “bálsamo” para as classes médias, de que falava a deputada Sandra Cavalcanti, primeira presidente do BNH,
na comentada carta ao presidente-marechal Castello Branco.
83
destas, com o indivíduo e a cidade.(...) É importante que o BNH tenha presente que está
criando uma nova semântica da moradia brasileira. (...) Temos medo de que, dentro em
breve, moradia para o brasileiro seja apenas um cálculo de Unidades Padrão de Capital 87, ou
a preocupação com a prestação mensal e conseqüente correção ou o pavor de ser levado
contra a vontade para um apartamento ou conjunto residencial” (Serran, 1976, p. 22).
87
Referência a uma das muitas “moedas” contratuais de que o SFH se valia, na tentativa de manter constantes,
num ambiente econômico inflacionário, os valores envolvidos nos financiamentos habitacionais.
88
Um dos nossos mais importantes líderes políticos, herdeiro da vertente trabalhista (getulista) da esquerda
brasileira, Leonel de Moura Brizola faleceu no dia 21 de junho de 2004.
84
89
Numa de suas passagens mais expressivas, o texto da CNBB vaticina: “a aceleração do processo de
urbanização está transferindo para a cidade uma carga conflitual que poderá assumir as dimensões de uma
confrontação entre os muitos que têm pouco a perder e os poucos que têm muito a perder” (Jornal do Brasil,
21/2/1982, Caderno Especial, apud Grazia, 2002, p. 21).
90
Segundo Adauto Cardoso (apud Grazia, 2002, p. 20), uma versão anterior do projeto havia sido publicada,
“sem a permissão governamental”, no jornal O Estado de S. Paulo, de 27/1/1982, o que teria ensejado reações a
essa possibilidade de regularização fundiária. É interessante notar que essa mesma polêmica ressurgiria na
Assembléia Nacional Constituinte e, quase duas décadas depois, por ocasião da sanção do Estatuto da Cidade.
91
Ver anexo 3.
85
Muitos de seus institutos constaram da Emenda Popular da Reforma Urbana 92, que
viria a ser apresentada quatro anos depois à Assembléia Nacional Constituinte de 1986, e
foram absorvidos, tanto pela Constituição de 1988 quanto pelo Estatuto da Cidade. Importa
lembrar que estava ainda em vigor a Constituição do regime militar, de 1967/69, que, além de
caracterizar-se pelo perfil autoritário do regime, ignorava a natureza já predominantemente
urbana do Brasil. Na verdade, a proposição legislativa baseava-se tão-somente no frágil
abrigo constitucional proporcionado pelo então ainda impreciso princípio da função social da
propriedade.
A apresentação do projeto foi, portanto, uma indiscutível ousadia. A reação dos
setores conservadores da sociedade foi imediata. O empresariado urbano mais atrasado
novamente tachava o projeto de “comunista”, como, aliás, costumava acontecer então com as
iniciativas de índole democrática. A revista Visão, de São Paulo, porta-voz do empresariado
conservador, que apoiava o governo, chegou a tratar o assunto em matéria de capa. Acusava o
projeto de acabar com o direito de propriedade no Brasil. O PL 775/83, nunca votado 93, parou
nos escaninhos do Congresso Nacional.
92
Ao examinar comparativamente o PL 775/83 (LDU) e a Emenda Popular da Reforma Urbana, Adauto Lúcio
Cardoso (2003, p. 31), embora ressalve a diferença entre a ênfase da LDU no planejamento urbano e a da
Emenda na participação popular, afirma que “a emenda popular se move no campo de discussões e segundo um
padrão de pensar a questão urbana que foi estabelecido pela LDU”.
93
Somente em 1995, o projeto deixou oficialmente de tramitar, regimentalmente retirado pelo autor, o Poder
Executivo.
86
94
Emenda à Constituição n° 26, de 27 de novembro de 1985.
95
Existia um estudo elaborado pouco tempo antes por uma Comissão de Assuntos Constitucionais, constituída
pelo presidente José Sarney e conhecida como “Comissão dos Notáveis”. Esse trabalho, contudo, não foi
oficialmente reconhecido nem, muito menos, tomado como referência pela Assembléia Nacional Constituinte.
87
96
Ver anexo 4.
88
97
O conteúdo da Emenda Popular da Reforma Urbana será retomado no Capítulo 6, com o objetivo de verificar-
se o grau de seu acolhimento pela Constituição e/ou pelo Estatuto da Cidade.
89
98
Ver Diário da Assembléia Nacional Constituinte, de 27 de janeiro de 1988, p. 402-403.
90
“retenção especulativa da terra contribui para essa situação”. De outra parte, argumentou que,
quanto aos subsídios, seria necessário saber “precisamente a quem eles irão beneficiar” e, no
tocante às desapropriações, reconhecer que o “alto custo da terra”, ao lado da exigência de
pagamento prévio, em dinheiro, inviabilizam as “políticas habitacionais para baixa renda”.
A transcrição desse debate se presta a exemplificar o ambiente conflituoso em que a
proposta da reforma urbana foi examinada pela Constituinte. Ao final, foi o seguinte o parecer
do relator, o deputado Bernardo Cabral, do PMDB do Amazonas:
“No que se refere à Questão Urbana, a Emenda apresenta dispositivos inovadores e
aperfeiçoadores do Projeto de Constituição, nos campos da função social da propriedade, da
participação popular, da desapropriação, das normas gerais de direito urbano, do usucapião
urbano e da ordenação do espaço urbano. Os dispositivos referentes a avaliação de imóveis,
locação e venda de habitações, apresentam conteúdo infra-constitucional. (...) O transporte
deve, necessariamente, ser um serviço público essencial, por ser um direito do cidadão e um
dever do Estado. Para tanto, a criação de um fundo de transportes urbanos, para subsidiar a
diferença entre o custo do transporte e o valor da tarifa paga pelo usuário, processaria a
perfeita ordenação destes transportes. Com mudanças de redação e supressão das
particularidades, somos pela aprovação parcial da Emenda, nos termos do Substitutivo”99
(grifo nosso).
99
Documento n° M9A000020743 da Base de Dados APEM do Sistema de Informações do Congresso Nacional
(SICON).
100
As emendas de autoria da deputada Myrian Portella (PDS-PI), apresentadas na Subcomissão da Questão
Urbana e Transportes e reiteradas, na fase seguinte, perante a Comissão de Economia, embora rejeitadas, foram
as primeiras a utilizar a expressão “plano diretor” no processo constituinte.
91
fazia vinculação, ainda tênue e indireta, da função social da propriedade com esses planos.
Seu texto, conquanto único, foi objeto de apresentação em paralelo por iniciativa de nada
menos que oito parlamentares, pertencentes a partidos de distintas orientações programáticas:
Roberto Freire (PCB-PE), Simão Sessim (PFL-RJ), Luiz Salomão (PDT-RJ), Antonio Britto
(PMDB-RS), Luiz Freire (PMDB-PE), Mattos Leão (PMDB-PR), Manoel Castro (PFL-BA) e
Raul Ferraz (PMDB-BA).
Era o seguinte, em resumo, o texto por todos igualmente proposto 101 como emenda
ao anteprojeto do relator da Subcomissão da Questão Urbana e Transporte, deputado José
Ulysses de Oliveira, do PMDB de Minas Gerais:
“Art. 1° É assegurado a todos, na forma da lei, o direito à propriedade imobiliária
urbana, condicionada pela sua função social.
§ 1° A propriedade e a utilização do solo urbano se submeterão às exigências de
ordenação urbana, expressas em plano urbanístico e de desenvolvimento urbano, bem como
em outras exigências específicas, tais como: habitação, transporte, saúde, lazer, trabalho e
cultura da população urbana.(...)” (grifos nossos).
Apesar do conteúdo uniforme, o que, aliás, permite supor ter sido proveniente de
uma mesma fonte, e da ampla representatividade que granjeou, a sugestão não foi acatada no
relatório final102 da Subcomissão. Na fase posterior, na Comissão da Ordem Econômica, o
Conselho Nacional do Desenvolvimento Urbano (CNDU), por meio de depoimento de seu
secretário-executivo, Gervásio Cardoso, ao plenário da Comissão, apresentou sugestão de três
artigos para a Constituição103. O primeiro deles era redigido nos seguintes termos:
“Art. 1°. A propriedade e a utilização do solo urbano obedecerão às exigências
fundamentais de ordenação urbana e ambiental expressas nos planos urbanísticos, bem como
às relativas à habitação, transportes, saúde, lazer, trabalho e cultura da população urbana”
(grifo nosso).
101
Conforme Base de Dados APEM/SICON.
102
Esse anteprojeto tratava a questão urbana pela ótica privatista do Código Civil.
103
Ver Diário da Assembléia Nacional Constituinte de 22 de julho de 1987, p. 32 e 33.
92
social da propriedade. Essa formulação, que acabou presente no texto constitucional, decorreu
de uma emenda ao primeiro Projeto de Constituição104, (Emenda n° 19063, de 13/8/1987), de
autoria do deputado Lúcio Alcântara, do PFL do Ceará105.
Seu texto estabelecia que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando
atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade, expressas em plano urbanístico,
aprovado por lei municipal (grifos nossos)”. A proposta, com essa exata redação, foi acolhida
pelo relator em todos os substitutivos subseqüentes. Na mesma emenda, igualmente acolhido
pelo relator, estava o dispositivo que impunha ao município aplicar, “sucessivamente”106,
penalidades ao proprietário de solo urbano ocioso.
A expressão “plano urbanístico” perdurou intacta até a votação, em primeiro turno,
do terceiro e último substitutivo do relator, quando uma emenda formulada pelo Centrão,
adotou em seu lugar o termo “plano diretor”, sem que as razões para tanto fossem explicitadas
(até porque o Regimento não fazia essa exigência)107. Mais adiante, como veremos, uma
emenda do Centrão condicionou essa vinculação entre plano urbanístico (na emenda,
denominado “diretor”) e função social da propriedade urbana aos termos de uma “lei federal”,
com evidente intuito procrastinatório.
Essa emenda, ligeiramente alterada por meio de acordo de lideranças que envolveu
todo o arco partidário representado na Assembléia108, resultou no texto finalmente aprovado,
104
Contemporânea, portanto, da Emenda Popular da Reforma Urbana.
105
O então deputado Lúcio Alcântara havia sido prefeito nomeado de Fortaleza (CE), pela ARENA, partido de
apoio ao regime militar, e elegera-se para seu primeiro mandato de deputado federal pelo PDS. Entretanto, na
avaliação do Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc), instituição ligada a sindicatos de trabalhadores e a
movimentos populares, “contrariando as expectativas, evoluiu, passando a adotar posições favoráveis às teses
progressistas” (Coelho e Oliveira, 1989, p. 164).
106
É importante registrar o esforço para suprimir a expressão “sucessivamente” e, assim, permitir que as
penalidades previstas pudessem ser aplicadas em função das circunstâncias com que se defrontassem os
municípios, promovido em vários momentos por muitos constituintes, entre eles, Dirceu Carneiro (PMDB-SC),
que insistiu em todas as oportunidades, mas também Itamar Franco (sem partido-MG), Myrian Portella (PDS-
PI), Irmã Passoni (PT-SP), Joaquim Bevilácqua (PTB-SP). Porém, todas as emendas nesse sentido foram
rejeitadas pelo relator, Bernardo Cabral (PMDB-AM).
107
A bancada do Centrão interessada na temática urbana era informalmente liderada pelo deputado Luís Roberto
Ponte (PMDB-RS).
108
Ao encaminhar a votação do que acabou por ser o capítulo constitucional da política urbana (houve, ainda,
duas alterações, nas últimas etapas do processo), o presidente da Assembléia, deputado Ulysses Guimarães, do
PMDB de São Paulo, tomou-se de entusiasmo: “Desejo dizer, meus amigos, que cumpro um dever, que estas
palmas anteciparam, de fazer justiça ao trabalho dos Srs. Líderes, de autores de destaque, que sexta-feira,
sábado, domingo, até de madrugada, fizeram um esforço de composição, de entendimento, não só para que o
texto fosse mais escorreito e abrangente, mas que realmente representasse, como esperamos na manifestação do
Plenário, o ponto de vista da sociedade através de uma grande maioria, de uma expressiva maioria, uma
consagradora maioria do Plenário da Assembléia Nacional Constituinte” (Diário da Assembléia Nacional
93
Ainda na sessão que aprovou o texto do acordo, foi incorporada uma emenda de
autoria da deputada Myrian Portella112, do PDS do Piauí. Essa proposta, originalmente
destinada a proteger a mulher nos casos de posse ou de usucapião, acabou assumindo
Constituinte de 3/5/1988, p. 61). Foram 322 votos a favor, um contrário e três abstenções. Votou contra o
senador Roberto Campos, do PDS de Mato Grosso.
109
Participaram do acordo, na condição de autores das emendas aglutinadas, os constituintes Dirceu Carneiro
(PMDB-SC), Roberto Freire (PCB-PE), Mendes Canale (PMDB-MS), Mauro Miranda (PMDB-GO), Raul
Ferraz (PMDB-BA), José Carlos Grecco (PMDB-SP), Felipe Mendes (PDS-PI), José Richa (PMDB-PR), Jorge
Leite (PMDB-RJ), José Lins (PFL-CE), Irmã Passoni (PT-SP), Edmilson Valentim (PC do B-RJ), Mário Covas
(PMDB-SP), Ricardo Izar (PFL-SP), Joaquim Sucena (PTB-MT), José Santana de Vasconcelos (PFL-MG) e
Eduardo Jorge (PT-SP).
110
É curioso observar que a emenda do Centrão trouxe para a Constituição a expressão “funções sociais da
cidade”, que, embora não constante da Emenda Popular da Reforma Urbana (voltada para a noção de “direito à
cidade”), foi mais tarde apropriada como um dos pilares do MNRU.
111
A aprovação de lei complementar exige maioria absoluta de votos, ou seja, metade mais um entre todos os
parlamentares, presentes ou não, enquanto que a de lei ordinária ocorre por maioria simples, isto é, pela
manifestação de metade mais um dos efetivamente votantes.
112
A atuação da deputada Myrian Portella, eleita pelo PDS, um dos pólos partidários do Centrão, foi, apesar
dessa condição, bem avaliada pelo Inesc: “(...) uma das mais gratas surpresas da Constituinte (...). Mulher
arrojada e de iniciativa, pretende propor a regulamentação da soberania popular, assegurando, de vez, a
participação popular no processo legislativo (...) e uma lei que defina as formas de repressão ao abuso do poder
econômico” (Coelho e Oliveira, 1989, p. 324).
94
destacada importância para os propósitos da reforma urbana ao servir de abrigo para o que
viria a ser a “concessão especial de uso para fins de moradia”. Seu texto foi literalmente
incorporado à Constituição: “O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao
homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil” (grifo nosso).
No final de agosto de 1988, ocorreriam as duas últimas alterações em relação ao
texto do acordo, uma delas especialmente importante, que levaram à redação do capítulo
finalmente promulgado113. A primeira, de iniciativa do deputado José Maurício, do PDT do
Rio de Janeiro, destinou-se tão-somente a especificar que o “imposto progressivo no tempo” a
que se referia o texto acordado era o “imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana
progressivo no tempo”.
A segunda teve maior relevância. O texto constitucional até então (estávamos a
pouco mais de um mês da promulgação da Constituição) não discriminava entre os de
domínio privado ou de domínio público os imóveis passíveis da aplicação do usucapião
especial. Emenda do deputado Francisco Carneiro114, do PMDB do Distrito Federal, propunha
a exclusão dos imóveis públicos dessa possibilidade, valendo-se do seguinte argumento:
“Permitindo-se o usucapião urbano ou rural sem excluir do instituto as áreas de
domínio público, significa (sic) o comprometimento irreparável de todos os planos urbanos
e de expansão urbana e, para Brasília, o total desvirtuamento do Plano Piloto, pois uma
ocupação irregular junto a qualquer local, como a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos
Ministérios, poderá ser objeto de usucapião urbano” (Diário da ANC, 30/8/1988, p. 13631).
A emenda foi aprovada. Desse modo, o artigo que tratava do usucapião especial para
fins de moradia, para Ermínia Maricato (1988), “o único da emenda popular constitucional de
reforma urbana a ser incluído no projeto de Constituição com redação próxima da intenção da
emenda”, era extensamente limitado, mas não apenas, como apressadamente se poderia
imaginar, com os votos dos chamados “setores conservadores”.
Nesse caso, pólos partidários opostos se encontraram, em ambos os campos da
votação. Votaram “não”, ou seja, pela manutenção da possibilidade de usucapião em imóveis
públicos, tanto o PT e o PSB, liderados respectivamente pela deputada Irma Passoni, de São
Paulo, e pelo deputado Ademir Andrade, do Pará, quanto o PDS, conduzido pelo deputado
Amaral Neto, do Rio de Janeiro. Por sua vez, aprovaram a emenda que restringiu a aplicação
113
Ver Diário da Assembléia Nacional Constituinte de agosto de 1988, p. 13622-13634.
114
Destacado empreendedor imobiliário, o deputado Francisco Carneiro, falecido em 1995, ligou-se ao Centrão
na Constituinte e exerceu seu mandado em defesa das propostas políticas do empresariado urbano.
95
115
Não por acaso, portanto, essa polêmica, ao lado de muitas outras, iria ressurgir durante a tramitação e no
período destinado à sanção do projeto de lei do Estatuto da Cidade.
116
Na história da comunicação social, Pompeu de Sousa é considerado o principal responsável pela adoção, no
Brasil, das técnicas do jornalismo moderno, baseado na objetividade do lide, que, adaptadas do jornalismo norte-
americano e implantadas por ele, em 1954, no Diário Carioca, ainda orientam a redação dos principais jornais.
Em 1961, tendo apoiado a proposta de mudança da sede do governo federal do Rio de Janeiro para Brasília,
transferiu-se para a nova capital e ajudou Darcy Ribeiro a fundar a Universidade de Brasília. Na vida pública,
participou de inúmeros movimentos de combate à ditadura militar e de luta pela liberdade de imprensa. Definia-
se como socialista e democrata. Presidiu a Associação Brasileira de Imprensa (ABI-DF), o Sindicato dos
Escritores do Distrito Federal e o Comitê Brasileiro da Anistia, entre muitas outras instituições e movimentos
políticos de que participou. Foi eleito para a Assembléia Nacional Constituinte pela chamada ala esquerda do
PMDB e, em 1989, tornou-se um dos fundadores do PSDB (Duarte, 1992).
117
Na época, vice-presidente do IAB-DF, membro do Conselho Superior do IAB e integrante da diretoria do
Sindicato dos Arquitetos do Distrito Federal (SADF).
96
moradores de favelas no Distrito Federal fossem assentados na cidade e não no seu entorno,
como pretendia o governo de então.
Foi assim que começou a surgir o atual Estatuto da Cidade, cujo texto foi elaborado
por Eliane Cruxên Maciel e Everaldo Macedo, integrantes da Consultoria Legislativa do
Senado Federal118, a partir de pesquisas pessoais e de sugestões e opiniões, formais e
informais, de professores, técnicos e representantes de entidades e instituições ligadas à
questão urbana119, todos sob a coordenação do próprio Pompeu de Sousa. O projeto foi
apresentado no dia 28 de junho de 1989 e recebeu a identificação oficial de “Projeto de Lei do
Senado (PLS) n° 181, de 1989 (Estatuto da Cidade)”. Com parecer favorável do relator,
senador Dirceu Carneiro120, do PSDB de Santa Catarina, foi aprovado no Senado exatamente
um ano depois e enviado à Câmara dos Deputados, onde permaneceria por onze anos.
Na Câmara, denominado PL 5.788/90, o projeto, por já ter sido votado, passou a
funcionar como uma espécie de “locomotiva”, à qual foram anexados dezessete “vagões”,
proposições (de menor ou maior abrangência) sobre o mesmo tema, com origem na própria
Câmara dos Deputados. Os autores desses projetos, com as respectivas datas de apresentação,
são os deputados Raul Ferraz (1989), Uldorico Pinto (1989), José Luiz Maia (1989), Lurdinha
Savignon (um em 1989 e outro, em co-autoria, em 1990), Ricardo Izar (um em 1989 e outro
em 1991), Antônio Brito (1989), Paulo Ramos (1989), Mário Assad (1989), Eduardo Jorge
(1990, em co-autoria), José Carlos Coutinho (1991), Magalhães Teixeira (1991), Benedita da
Silva (1993), Nilmário Miranda (1996), Augusto Carvalho (1997), Carlos Nelson (1997) e
Fernando Lopes (1997).
Dentre todos esses, devem ser destacados o do deputado Raul Ferraz, do PMDB da
Bahia, que, na verdade, “constitui-se do substitutivo apresentado pelo deputado ao PL 775/83
com suas adaptações à Constituição de 1988” (Motta, 1998, p. 211); os de Lurdinha Savignon
e Eduardo Jorge, do PT do Espírito Santo e de São Paulo, respectivamente, elaborados com a
participação do MNRU; e o do deputado Nilmário Miranda, do PT de Minas Gerais. Esse
último, como veremos adiante, espelhou o esforço de consenso que seria tentado, em 1993,
118
A Consultoria Legislativa (Conleg) é um órgão técnico, da estrutura permanente do Senado Federal, cuja
atuação se destina a subsidiar o trabalho parlamentar dos senadores e das comissões permanentes e provisórias.
O autor deste trabalho colaborou na elaboração texto e sugeriu a denominação “Estatuto da Cidade”, dada no
corpo da própria lei.
119
Muitas dessas reuniões ocorreram na sede do IAB-DF, que também abrigava o SADF, e tiveram a expressiva
participação da arquiteta Suely Franco Netto Gonzales, professora da Universidade de Brasília (UnB).
120
Arquiteto e parlamentar dos mais ligados à questão urbana, Dirceu Carneiro havia sido prefeito de Lages
(SC), onde, ainda na década de 1970, promoveu as primeiras experiências de gestão urbana de orientação
popular e participativa de que se tem notícia no Brasil (Alves, 1988).
97
por um grupo de trabalho formado por representantes indicados pelo deputado Luiz Roberto
Ponte, ligado ao empresariado, e pelo próprio Nilmário Miranda, vinculado ao movimento da
reforma urbana.
Minudente e ambicioso, o projeto original121 do Estatuto da Cidade, com 72 artigos,
dispostos em três títulos e dez capítulos, pretendia, de início (arts. 2°, 3°, 4° e 5°), conceituar
política urbana, direito à cidade, direito urbanístico e até urbanismo (“conjunto de ações
promotoras e corretoras da organização do espaço urbano de modo a permitir sua adequada
fruição pelo homem, preservando-o do processo de espoliação urbana”). Depois, fixava os
objetos da política urbana, entre eles “o processo de produção do espaço urbano”, e dedicava
um inteiro capítulo a fixar requisitos para o cumprimento da função social da propriedade,
bem como atitudes que configurassem “abuso de direito e da função social da propriedade”.
Entre esses casos, estava, por exemplo, o da “recusa de oferecer à locação, sob qualquer
pretexto, imóveis residenciais não necessários à habitação do proprietário ou seus
dependentes, salvo nos casos excepcionados no Plano Diretor” (art. 8°, II).
Tido por Ermínia Maricato como “um dos instrumentos mais importantes para os
programas de moradia social em áreas centrais”, esse dispositivo foi excluído do projeto
durante sua tramitação, desde os primeiros pareceres. “Considerando o nível exagerado de
imóveis vazios, passíveis de locação nas áreas urbanas centrais, essa possibilidade poderia
representar um impacto significativo” (Maricato, 2001, p. 108).
Adiante, o PLS n° 181, de 1989, estabelecia as diretrizes gerais que deveriam
orientar a implementação da política urbana — entre elas a gestão democrática, a participação
popular, o planejamento, a proteção ambiental e do patrimônio cultural, bem como a
recuperação de investimentos públicos de que resultasse valorização imobiliária — assim
como as políticas setoriais, inovadoras com relação à divisão tradicional entre habitação,
saneamento e transportes, que constituiriam a política urbana: ordenação do território;
controle do uso do solo; participação comunitária e contribuição social; e desfavelamento
(“erradicação das condições infra-humanas de habitação” e “combate aos processos
expulsivos provocados pela especulação imobiliária”)122.
“Para assegurar o direito à cidade e sua gestão democrática, bem como corrigir
distorções no consumo de bens comunais” (art. 16), o projeto propunha instrumentos fiscais,
121
Ver anexo 5.
122
Embora no projeto do Estatuto da Cidade tenha recebido conceituação exatamente oposta, a expressão
“desfavelamento” ficou marcada como a tentativa — posta comumente em prática nos anos 1960 e 1970, e
ressurgida, na década seguinte, nas operações interligadas do governo Jânio Quadros na prefeitura de São Paulo
— de remoção da população favelada para periferias distantes.
98
123
A adoção desse dispositivo pelos municípios nos procedimentos de desapropriação tende a instar os
proprietários a proporem a “correção” dos valores de lançamento de seus imóveis no cadastro fiscal, comumente
subavaliados, sob pena de receberem indenização igualmente reduzida. Suprimido nos primeiros pareceres das
99
No art. 46, § 1º, o PLS n° 181, de 1989, previa, embora sem denominá-la assim, a
concessão de uso especial, incidente em “áreas públicas ocupadas há mais de dois anos”, com
vistas à regularização fundiária de habitações ocupadas por população de baixa renda. No
entanto, reduzia a incidência do usucapião constitucional para fins de moradia, ao estabelecer
que o instituto seria inaplicável, não apenas nas áreas de domínio público, como impõe a
Constituição, mas também nas de preservação ambiental (o que acabou incluído no texto
aprovado) e “naquelas em que o plano diretor assim determinar” (art. 33), o que, a par de
parecer inconstitucional, poderia levar a uma grande limitação para a aplicação do
instrumento. Em compensação, o projeto Pompeu de Sousa ampliava as possibilidades de
aplicação do usucapião pró-moradia para os casos de ocupações coletivas de áreas superiores
ao limite constitucional de 250 m2, preceito que acabou incorporado à lei.
Ao lado de buscar dar concretude jurídica ao princípio da função social da
propriedade urbana — no que, registre-se, nem sempre foi bem acolhido124 —, o projeto
Pompeu de Sousa concentrava-se, em minúcias, nos dispositivos destinados a regular a
elaboração, o conteúdo e a implementação dos planos diretores. Na concepção do projeto, o
plano diretor incluiria três programas125: o de expansão urbana; o de uso do solo urbano; e o
de dotação urbana, bem como “instrumentos e suporte jurídico de ação do poder público”,
além de “sistema de acompanhamento e controle”.
O poder executivo municipal deveria institucionalizar o “planejamento urbano como
processo permanente”, assim como tornar disponíveis a qualquer cidadão todas as
informações pertinentes ao sistema de planejamento, podendo suspender, durante a
elaboração de “programas de uso do solo”, a concessão de licença ou autorização (arts. 36 e
37).
O plano diretor se destinaria a utilizar os instrumentos fixados na lei para “regular os
processos de produção, reprodução e uso do espaço urbano”. Eram fixadas as etapas de
elaboração do plano, bem como suas “diretrizes essenciais” (art. 41), que incluíam, ao lado de
procedimentos tradicionais como a definição de áreas de expansão urbana e de tipos de uso,
comissões da Câmara dos Deputados, foi reincorporado pelo deputado Inácio Arruda (PC do B-CE), relator do
projeto na Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior.
124
As restrições a esses dispositivos não provinham apenas dos setores ligados ao empresariado, mas igualmente
de alguns segmentos técnico-profissionais. Para Araújo e Ribeiro (2000, p. 7 e 8), por exemplo, “os casos de
abuso de direito e da função social da propriedade constantes do texto aprovado no Senado carregam forte
componente ideológico e são questionáveis do ponto de vista da viabilidade de sua aplicação”.
125
Chamaram-se “programas” as normas e ações derivadas do “plano diretor” porque, segundo ponderava
Everaldo Macedo, um dos elaboradores do texto, “um plano não origina outros planos (de uso do solo, por
exemplo), mas programas e projetos”.
100
percentual de ocupação e índice de aproveitamento dos terrenos, outras tarefas tão originais
quanto polêmicas. Dois exemplos:
“XV – estabelecer a qualificação dos agentes produtivos, encarregados das obras
e, no caso de imóveis para venda, os parâmetros de remuneração dos fatores, de modo a
permitir:
a) fixação do prazo de cada obra, para obter a maior economicidade;
b) observância dos cronogramas da construção e de seus objetivos;
c) justo preço;
XVI – fixar limites mínimos e máximos para a reserva, pelo poder público, de
áreas destinadas à ordenação do território, à implantação dos equipamentos urbanos e
comunitários, de acesso à moradia e nos projetos de incorporação de novas áreas à estrutura
urbana, imitindo-se o município em sua posse imediata”.
O projeto estabelecia ainda que o plano diretor poderia determinar áreas especiais de
urbanização preferencial, renovação urbana, urbanização restrita e regularização fundiária.
Fixava, por fim, o quorum qualificado de dois terços da câmara de vereadores para sua
aprovação ou modificação e assegurava a gestão democrática de todo o processo por meio da
representação tripartite, com igualdade de direito a voz e voto, da representação popular, do
empresariado urbano e do poder público (arts. 48 e 49). Previa-se igualmente a
responsabilização penal e civil dos prefeitos “pelas distorções na aplicação do plano diretor”
(art. 51)126.
O texto fixava também a obrigação de a União criar uma “agência social de
habitação” (art. 54), uma relação de diretrizes para que os municípios organizassem e
explorassem o serviço de transporte urbano (art. 55) e um conjunto de normas relativas à
constituição de Regiões Metropolitanas e Aglomerações Urbanas (arts. 56 a 63). Por fim, a
proposição autorizava o Poder Executivo a transformar o então Conselho Nacional de
Desenvolvimento Urbano em Conselho Nacional de Política Urbana, também com
composição tripartite entre representação popular, empresariado urbano e poder público, com
o objetivo de realizar estudos, propor diretrizes e instrumental de política urbana, além de
“emitir diretrizes gerais (...) com o objetivo de contrapor-se à especulação imobiliária e outras
formas de perversão das relações sociais de habitação” (arts. 64 a 69).
Na justificação de seu projeto, Pompeu de Sousa afirmava que pretendia conter a
“indevida e artificial valorização imobiliária, que dificulta o acesso dos menos abastados a
terrenos para habitação e onera duplamente o poder público, forçado a intervir em áreas cuja
126
Em contraste com o projeto original, a versão final do Estatuto da Cidade pouco trata do conteúdo do plano
diretor, fixando-se no processo (democrático) para sua elaboração e implementação. Não contribui, assim, para
reduzir o notável dissenso técnico e político sobre essa matéria. Para uma ampla abordagem do significado
jurídico desses planos, no Brasil e no mundo, bem como de sua vinculação com o direito de propriedade, ver
Pinto, 2001.
101
valorização resulta, na maioria das vezes, de investimentos públicos, custeados por todos em
benefício de poucos”.
Ao final, remetia “à colaboração prestimosa dos membros desta Casa e à própria
sociedade organizada a tarefa de enriquecer esta proposição com valiosas críticas e
contribuições”.
Não faltaram nem críticas nem contribuições.
127
Ver Araújo e Ribeiro, 2000.
102
128
Disponível no sítio www.tfp.org.br/secoes/arquivo/documentos da internet (consulta feita no dia 9/2/2004).
103
129
“A atual coordenação do FNRU é composta por: FASE, Instituto Pólis, Central dos Movimentos Populares,
União Nacional por Moradia Popular, Movimento Nacional de Luta por Moradia, Federação Nacional de
Arquitetos e Urbanistas, Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros, Federação Nacional de
Associações de Funcionários da Caixa Econômica Federal” (Grazia, 2003, p. 56).
104
reapresenta o projeto da deputada do Espírito Santo” (Grazia, 2003, p. 58)130. Esse, como
todos os demais, também foi apensado ao PL 5.788/90, o projeto Pompeu de Sousa.
Para o MNRU, segundo o jurista Nelson Saule Jr., “desde o início da década de 90, o
projeto de lei federal de desenvolvimento urbano denominado ‘Estatuto da Cidade’ [foi
considerado] o marco referencial para a instituição da lei que regulamenta o capítulo da
política urbana da Constituição brasileira” (Saule Jr., 2003, p. 1).
Estavam claras as posições. De um lado, o conjunto de entidades e movimentos que
haviam construído o ideário da reforma urbana apoiava o Estatuto da Cidade e cobrava sua
aprovação pelo Congresso Nacional; de outro, as entidades representativas do empresariado
urbano, encorpadas por instituições de defesa da propriedade privada como causa política, se
opunham ao projeto de lei.
A disputa parlamentar estava lançada.
130
Na verdade, o projeto do deputado Eduardo Jorge, apoiado pelo MNRU, foi apresentado em co-autoria com a
deputada Lurdinha Savignon, que terminava o seu mandato, no dia 14/12/1990, quando o projeto Pompeu de
Sousa, aprovado no Senado, já tramitava na Câmara havia três meses.
105
131
Ligado às causas sociais, o deputado Nilmário Miranda notabilizou-se pela defesa dos direitos humanos.
106
132
Tiveram destacada atuação as arquitetas Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo e Maria Sílvia Barros
Lorenzetti, consultoras legislativas da Câmara dos Deputados.
133
O texto substitutivo elaborado pelo grupo, diante da recusa do relator em acatá-lo, foi mais tarde
transformado em projeto de lei (PL 1.734/96) pelo deputado Nilmário Miranda.
134
Sobre a atuação que o deputado Paes Landim tivera na Constituinte, a avaliação do Inesc foi premonitória:
“Um dos mentores do Centrão (...), será um dos entraves às conquistas pretendidas no campo dos direitos social
e econômico” (Coelho e Oliveira, 1989, p. 325).
107
do Piauí, argumentou: “Quer o projeto acabar com a propriedade. Não haverá, pelo projeto,
propriedade individual”135. Ao combater a proposta de fixação de taxas e tarifas diferenciadas
como forma de reduzir desigualdades sociais, esse mesmo parlamentar afirmou: “Pretende o
projeto, inconformado com a realidade social que a todos nós constrange, criar, em
contraposição, cidadãos de primeira e de segunda categoria. Cidadãos de segunda categoria,
está claro, seriam aqueles que puderam não só ajudar a construir o país, mas também
acumular algum patrimônio”136.
135
Emenda n° 14/92, na CEIC (CD, s/d, p. 263).
136
Emenda n° 16/92, na CEIC (CD, s/d, p. 265).
137
Ainda sobre as dificuldades na tramitação legislativa do Estatuto da Cidade, é importante observar que a
ausência da lei federal poderia ter sido suprida, provisoriamente, pela legislação estadual. É o que diz o art. 24 da
Constituição. Essa possibilidade esteve à disposição das assembléias legislativas, mas não das câmaras de
vereadores, pois, em relação ao direito urbanístico, somente os Estados e o Distrito Federal poderiam ter
legislado enquanto perdurasse a omissão da legislação federal.
138
Em paralelo ao embate que acontecia entre o MNRU e os representantes do empresariado, o governo federal,
em decorrência das críticas técnicas que fazia ao Estatuto da Cidade, promoveu, entre 1995 e 1996, várias
reuniões com vistas a um amplo acordo que resultasse na elaboração de um texto legal complementar, a ser
enviado ao Congresso. No entanto, envoltas em diferenças de abordagem entre a então Secretaria de
Desenvolvimento Urbano (Sepurb) e a Casa Civil, “foram tentadas diferentes iniciativas, sendo que nenhuma
delas logrou sucesso” (Araújo e Ribeiro, 2000, p. 3).
139
O deputado Luís Roberto Ponte exercia seu mandato na condição de suplente. Alterações na bancada estadual
de seu partido, fizeram-no deixar a Câmara antes da votação de seu parecer. Designado novo relator, o deputado
Pauderney Avelino, do PFL do Amazonas, manteve quase integralmente o parecer deixado pelo deputado Ponte.
108
embora, nesse aspecto, todos os instrumentos originais tenham sido mantidos, a par de outros
acrescidos, como a transferência do direito de construir, a outorga onerosa do direito de
construir e as operações urbanas consorciadas.
Chama a atenção nesse caso, não a retirada, entre outras, da conceituação de função
social da propriedade e de abuso de direito, constantes do PL 5.788/90, pois o discurso
ideológico impossibilitara desde sempre a negociação parlamentar, mas a inclusão de certos
dispositivos que, defendidos pelo movimento da reforma urbana em muitos momentos, já
estavam em aplicação em algumas cidades.
Dessa experimentação municipal, como já vimos, muitos proveitos empresariais
foram obtidos. O próprio parecer do relator confirma essa evidência ao declarar, a respeito do
mencionado acréscimo, que “os instrumentos podem ser benéficos para as atividades
imobiliárias urbanas, ao inovar nas formas possíveis de parceria entre o Poder Público e as
empresas privadas” (CD, s/d, p. 377).
Ainda na CEIC, depois de apresentado o seu parecer, o relator acatou emenda do
deputado Fetter Júnior, do PPB do Rio Grande do Sul, que propunha retirar da relação de
instrumentos o direito de preempção. Mais uma vez as evidências de que as expectativas da
iniciativa privada estavam sendo atendidas se confirmam. Em seu voto, o relator afirmou
concordar com a retirada do instituto do direito de preempção para coadunar o projeto “com
as modernas tendências de redução da interferência governamental ao mínimo necessário”
(CD, op. cit., p. 411).
Talvez porque as intenções dos dois blocos de opinião estivessem taticamente
dissimuladas — o MNRU ao ceder em suas propostas intentando recuperar as perdas nas
fases seguintes e o empresariado por conseguir gradualmente incorporar instrumentos
“benéficos para as atividades imobiliárias” —, o projeto foi, para surpresa de muitos,
aprovado sem disputas.
Quando, em 29 de outubro de 1997, finalmente se deu a votação na CEIC, a primeira
ocorrida na Câmara dos Deputados, “para espanto de todos os presentes, não houve uma
objeção sequer ao relatório apresentado. Todas as manifestações foram favoráveis ao parecer,
que foi aprovado por unanimidade. Depois de tão longo tempo de obstrução, que parecia
denunciar fortes resistências ao teor da proposta de lei, assistiu-se a uma votação por
consenso, sem nenhuma ressalva” (Araújo e Ribeiro, 2000, p. 3).
Aprovado na CEIC, o projeto seguiu para a Comissão de Defesa do Consumidor,
Meio Ambiente e Minorias (CDCMAM), onde recebeu contribuições relativas à política
ambiental, em grande parte oriundas de propostas do Instituto Brasileiro de Administração
109
140
No capítulo 6, tenta-se explicar esse aparente paradoxo.
111
reais” (Grazia, 2003, p. 61), houve apenas duas alterações141. Uma, para retirar os dispositivos
referentes a regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, considerados inconstitucionais,
pois se trata de competência estadual. Outra, para atender reivindicações de setores da
construção e de parlamentares ligados a igrejas evangélicas, liderados pelo deputado Bispo
Rodrigues, do PL do Rio de Janeiro, resultou na supressão dos dispositivos que
determinavam, nos casos de Estudo de Impacto de Vizinhança, a “audiência da comunidade
afetada” e a nulidade das licenças expedidas sem a observância desse requisito.
Do ponto de vista do próprio MNRU, as concessões, que mantinham o conteúdo da
matéria, deixando sua aplicação à mercê da legislação municipal, foram aceitáveis, “pois
sabe-se que, de acordo com a correlação de forças existente em cada município, as diretrizes
fixadas na lei federal serão ou não absorvidas” (Grazia, op. cit., p. 62).
A deliberação da CCJR, contudo, consumiu todo o ano de 2000. Novamente foram
necessárias campanhas públicas, notas e manifestos do MNRU, inclusive no Fórum Social
Mundial realizado em janeiro daquele ano em Porto Alegre, para que a Comissão se
pronunciasse. Até um abaixo-assinado de advogados e juristas, defendendo a
constitucionalidade do projeto, foi encaminhado à Comissão. No dia 29 de novembro de
2000, o parecer favorável do deputado Inaldo Leitão, do PSDB da Paraíba, é finalmente
votado. Mais uma vez houve unanimidade na aprovação. O projeto deveria, então, retornar ao
Senado para que as alterações promovidas na Câmara fossem ratificadas.
Parecia que o consenso estava consolidado. No entanto, houve ainda uma recidiva de
parte da representação empresarial. De acordo com a Constituição de 1988, projetos
aprovados nas comissões da Câmara ou do Senado, caso do Estatuto da Cidade, não precisam
ser submetidos ao Plenário, salvo se houver recurso nesse sentido, subscrito por pelo menos
um décimo dos respectivos parlamentares. Com base nesse dispositivo, um grupo de
parlamentares — sob a liderança do deputado Márcio Fortes (PSDB-RJ), com o diligente
apoio do deputado Paulo Octávio (PFL-DF), ambos grandes empresários do setor imobiliário
— apresentou o Recurso nº 113, de 12 de dezembro 2000, na tentativa de fazer com que o
projeto fosse submetido ao Plenário da Câmara dos Deputados.
Em sentido contrário à aprovação do recurso passaram a atuar as entidades ligadas ao
MNRU, os partidos que à época faziam oposição ao governo e, ao lado desses, parlamentares
141
A proposta de instituição do Conselho Nacional de Política Urbana (CNPU) já havia sido suprimida do
projeto original porque a Constituição determina que a criação de órgão público somente pode decorrer de
projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo.
112
ligados ao próprio governo, como o deputado Ronaldo César Coelho142, do PSDB do Rio de
Janeiro, presidente da CCJR, cuja atuação foi julgada “importante” pelo movimento da
reforma urbana (Grazia, 2003, p. 62).
Em 20 de fevereiro de 2001, o recurso é derrotado e o Estatuto da Cidade volta para
o Senado Federal, de onde saíra havia quase onze anos.
142
Empresário, ex-banqueiro.
143
O senador Mauro Miranda foi o autor principal do projeto que resultou na inclusão do “direito à moradia”
entre os direitos sociais constitucionalmente assegurados (Emenda Constitucional n° 26, de 2000). Simpático às
reivindicações do MNRU, sua trajetória parlamentar também o credenciava perante os setores conservadores. A
atuação do então deputado Mauro Miranda na Constituinte já prenunciava essa amplitude política, que se
mostrou fundamental na aprovação do Estatuto da Cidade: “Filiado ao Centrão, nem sempre votou com o grupo”
(Coelho e Oliveira, 1989, p. 197).
144
Era essa a posição defendida pelo MNRU, como se afirma expressamente no documento “O Fórum Nacional
de Reforma Urbana conclama pela aprovação do Estatuto da Cidade – PL 5.788/90”, de 18/6/2001, dirigido a
todos os senadores: “somos totalmente favoráveis à aprovação do projeto de lei Estatuto da Cidade nos termos
deste substitutivo”.
145
Ver notas taquigráficas da sessão deliberativa de 18/6/2001. SF, Secretaria Geral da Mesa, Subsecretaria de
Taquigrafia, p. 244-249 e 277-319.
113
146
Assessor da Vice-Presidência de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do Secovi-SP, Vicente Amadei
representou o Secovi-SP e a CBIC durante a tramitação legislativa do Estatuto da Cidade.
147
Grazia de Grazia, assessora do Núcleo Cidadania, Políticas Públicas e Questões Urbanas da FASE, integrou a
coordenação do Fórum Nacional de Reforma Urbana durante os momentos mais importantes da tramitação do
Estatuto da Cidade.
148
Sociólogo respeitado, colega de profissão, amigo e assessor do presidente Fernando Henrique Cardoso desde
quando este era senador, Eduardo Graeff é filho do falecido professor Edgar Graeff, arquiteto e intelectual de
relevo, vinculado às causas sociais e democráticas de resistência ao regime militar.
114
alguma objeção, mas eu não sei se trouxe, era aquele deputado do Rio Grande do Sul, o Luís Roberto
Ponte, ligado à indústria da construção (...). Não teria nem razão, pois, do ponto de vista do setor da
construção, o projeto não é ruim” (Graeff, op. cit., p. 1).
149
Duas únicas restrições foram propostas pela CBIC nesse aspecto: (i) a supressão do parágrafo que se referia
aos patamares de progressão do IPTU, sob o argumento de que a alíquota máxima de 15% era “confiscatória”; e
(ii) a retirada da expressão “atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça
social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”, vinculada ao plano diretor na definição do conceito de
função social da propriedade urbana, por considerá-la desnecessária porque redundante em relação às diretrizes
gerais da política urbana, fixadas no art. 2°. As solicitações não foram acolhidas.
150
Esse dispositivo, que, como vimos, decorreu da aprovação na Constituinte de emenda destinada à proteção da
mulher, acrescentou ao texto constitucional, ao lado da expressão “título de domínio” (propriedade), a hipótese
da “concessão de uso” nos procedimentos de regularização fundiária.
115
151
Foram de fundamental importância, nessa elaboração interpretativa, trabalhos como os dos juristas Nelson
Saule Jr. (1997), Leda Pereira Mota e Celso Sptizcovsky (1999), entre vários outros.
152
Substantivo de dois gêneros (Houaiss, 2001, p. 2815), o vocábulo usucapião, aqui transcrito como feminino,
foi utilizado neste trabalho como masculino.
153
Vetos parciais à Lei n° 10.257/01, constantes da Mensagem n° 730, de 10 de julho de 2001, publicada no
DOU de 11/7/2001.
116
154
Ibid.
155
Por força da Emenda Constitucional n° 32, de 12 de setembro de 2001, as medidas provisórias publicadas até
então “continuam em vigor até que medida provisória as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do
Congresso Nacional”. Em termos práticos, a MP n° 2.220/01, editada oito dias antes da promulgação da referida
Emenda, deve ser vista como se lei fosse.
156
Esse trecho da ementa da MP n° 2.220, de 2001, opera no sentido de consolidar o argumento de que a
concessão de uso especial para fins de moradia, tanto quanto o usucapião para o mesmo fim, tem sede
constitucional.
157
Supõe-se que haja uma contradição jurídica na fixação de um limite temporal por norma infra-constitucional..
Tratando-se, como se trata (até porque, não fosse norma constitucional, o instituto não poderia estender-se, por
lei federal, aos bens estaduais e municipais), de um direito subjetivo constitucionalmente assegurado, a lei não
poderia limitá-lo no tempo se a Constituição não o fez. A questão deverá ser dirimida se e quando for levada ao
Poder Judiciário.
158
O inciso VI do art. 52, mantido pelo presidente da República, supre, em certa medida, o conteúdo do
dispositivo vetado.
117
159
Ver anexos 6 e 7.
118
160
Revisto e ampliado com base em Bassul, 2000, p. 140-142.
161
Observe-se que se trata aqui da progressividade “no tempo”, com o objetivo extra-fiscal de instar o
proprietário a dar finalidade social ao seu imóvel. O IPTU, por força da Emenda Constitucional n° 29, de 2000,
também pode ser progressivo “em razão do valor do imóvel”, bem como “ter alíquotas diferentes de acordo com
a localização e o uso” da propriedade.
119
162
Governos mais centralizadores e tecnocráticos são aqui considerados um ambiente político de potencial
menos “distributivo” que o de governos de perfil democrático e participativo.
122
163
A metáfora da “chave” como função do plano diretor, o autor ouviu de Raquel Rolnik.
164
Os exemplos de aplicação da contribuição de melhoria no Brasil, inclusive por força de dispositivos legais,
estão mais relacionados com a recuperação dos custos dos investimentos públicos para socorrer fragilidades
orçamentárias do que com a captura de valorizações fundiárias. Ver experiências realizadas no município do
Guarujá, no Estado de São Paulo (Paulics, 2000, p. 31), ou em cidades do Estado do Paraná (conforme estudo de
J. Goelzer e P. Saad apud Smolka e Amborski, 2001, p. 41).
123
165
Ver, entre outras publicações, Cymbalista e Rolnik, 1997; Maricato, 2000; Paulics, 2000; Rolnik, Saule Jr. et
al., 2002; e Alfonsin, Fernandes et al., 2002.
166
Até mesmo o simples lançamento genérico do IPTU encontra imensas resistências políticas, culturais e
patrimoniais para a sua aplicação. Ver, a esse respeito, Furtado, 1999.
167
Com efeitos urbanísticos e sociais aparentemente positivos (o que ainda carece de comprovação empírica),
algumas dessas experiências consideradas bem sucedidas foram interrompidas por governantes sucessores, como
ocorreu em São Paulo e Brasília, ou, como no caso de Porto Alegre, onde a continuidade é maior, sofrem
críticas, ora pelo viés menos ético e mais pragmático de “reforço orçamentário” que teriam (com escassos
resultados), ora por possíveis impactos negativos que estariam provocando no meio urbano.
168
Ver GT/OI-RJ, 1997, e Sandroni, 2001.
124
Entretanto, no que se refere aos instrumentos redistributivos, uma vez que “tocam na
correlação de forças que em cada cidade transforma em poder corporativo os interesses
constituídos em torno da acumulação urbana” (Ribeiro, op. cit., p. 15), as dificuldades para
sua aplicação parecem notoriamente maiores.
Talvez essas evidências ajudem a responder grande parte das indagações que
motivam este trabalho, ou seja, permitam encontrar as principais razões que ensejaram a
unanimidade parlamentar na aprovação do Estatuto da Cidade. É o que buscaremos fazer no
capítulo 6.
125
alguma outra norma legal, poderemos afirmar se, nesse aspecto, o MNRU terá sido vitorioso
em seus propósitos169.
Elaborado com base no texto levado pelo MNRU à Assembléia Nacional
Constituinte em 1987, o quadro a seguir, que inclui destacadamente todas as proposições
substantivas constantes da Emenda Popular, permite essa constatação:
169
O PL n° 2.710/91, que cria o Fundo Nacional de Moradia Popular, primeiro projeto de lei federal de iniciativa
popular a tramitar no Congresso Nacional, com o apoio do MNRU, ainda não foi transformado em lei e, por isso,
não foi incluído na avaliação.
127
pública do uso do solo, de modo que a prática privada e pública daquele direito não
prejudique o interesse coletivo.
Direito à cidade: este princípio almeja um modelo mais igualitário de vida urbana
dentro de uma visão de cidade como produto histórico e fruto do trabalho coletivo.
Pressupõe a adoção de uma política redistributiva que inverta prioridades relativas aos
investimentos públicos e se traduz na garantia de acesso de toda a população aos benefícios
da urbanização.
Gestão democrática da cidade: significando aqui a ampliação do direito de
cidadania através da institucionalização da participação direta da sociedade nos processos de
gestão, como forma complementar à democracia representativa. A concretização deste
princípio se traduziria na proposição de leis e nos processos de elaboração e implantação de
políticas urbanas, dando ênfase à representação das entidades comunitárias” (Cardoso, 2003,
p. 30).
170
Acrescido da Medida Provisória n° 2.220, de 2001.
132
“Acho que foram úteis, não só para o mercado como para a população, porque nas
operações interligadas, por exemplo, você paga um preço que é revertido em construção para
a população de baixa renda. Acho que é benéfico para a cidade, na medida em que você pode
usufruir daquela condição de fazer melhores edifícios em melhores locais e, ao mesmo
tempo, beneficia também a população mais carente com a utilização desses recursos pelas
prefeituras para essa finalidade” (Amadei, 2003).
Assim, o que em certo momento parecia uma ameaça ao setor empresarial passou a
ser gradativamente percebido, e aproveitado, como oportunidade de mercado.
Entretanto, o tempo decorrido entre a apresentação e a aprovação da lei modificou a
posição do empresariado não apenas pela percepção de oportunidades de negócios. Nesse
período, as transformações históricas por que tem passado o mundo refletiram-se com
algumas peculiaridades no Brasil e influenciaram a maneira pela qual nossas principais
cidades passaram a ser observadas e compreendidas. Como lembrou coloquialmente numa
entrevista o eminente professor Milton Santos171, “a cidade não é de responsabilidade
exclusiva da prefeitura. Cidades como São Paulo, Rio, Salvador ou Belo Horizonte têm
caráter nacional. A maneira como o país se organiza, se move e se relaciona com o mundo
tem reflexos em cada uma dessas cidades”.
Em nosso país, a década de 1980, que, não por acaso, testemunhou a derrocada do
regime militar que tomara o poder em 1964, ficou conhecida nos textos de economia como a
“década perdida”, em razão dos baixos índices de crescimento da economia nacional.
Passavam a ser mais intensamente sentidos aqui os efeitos mundialmente provocados pela
decadência do desenvolvimentismo industrial, o denominado fordismo, baseado em Estados
nacionais intervencionistas e em políticas públicas de estímulo e proteção do investimento
industrial privado, fortemente territorializado e marcado por desigualdades sociais, intrínsecas
ao modo de produção capitalista172.
A crise fiscal daí decorrente, aliada à reestruturação produtiva da economia, baseada
nos fluxos financeiros globais e na prestação especializada de serviços, reduziu o poder dos
governos centrais dos Estados nacionais e pôs abaixo jurisdições territoriais, mas agravou as
fronteiras sociais, agora marcadas não mais apenas pela desigualdade, mas pela completa
exclusão de vastos segmentos populacionais da nova ordem econômica.
171
Jornal do Brasil, 14/3/1999. Filósofo da geografia, como o qualificou seu colega Aziz Ab’Saber, o professor
Milton Santos publicou mais de quarenta livros, quase todos sobre a questão urbana, com destaque para o
clássico A urbanização desigual (Petrópolis: Vozes, 1979), e recebeu vinte títulos honoris causa, de vários
países. Faleceu, aos 75 anos, exatos dezesseis dias antes da sanção do Estatuto da Cidade.
172
Ver, entre muitos outros autores, Harvey, 2000, p. 121-134. A respeito da vasta bibliografia produzida sobre o
impacto da globalização na problemática urbana, Ermínia Maricato (2000, p. 130) sugere consulta às teses de
doutoramento de João Whitaker, na FAU/USP.
133
173
Para Ermínia Maricato (2000, p. 162), com base no conceito de Giovanni Arrighi (A ilusão do
desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997), nesses países, “a reestruturação produtiva impacta uma base
socioeconômica [já] excludente”.
174
A par de reduzida pela crise fiscal, a capacidade remanescente de investimentos públicos mantém-se
predominantemente voltada para a realização de obras viárias e de infra-estrutura, o que, embora considerado
insuficiente pelo capital privado (que considera sempre elevado o que costuma denominar “custo Brasil”),
agrava imensamente a carência de investimentos públicos em setores socialmente estratégicos, como habitação
popular, saneamento e educação.
175
Como, em outros termos, já ocorrera em nossa fase pré-industrial, de finais do século XIX a inícios do século
XX, quando grande parte da infra-estrutura nacional — portos e ferrovias, assim como os serviços urbanos (e até
loteamentos) necessários à expansão capitalista — foi implantada por meio de concessões à iniciativa privada,
promovidas por um Estado de escassa base fiscal (ver o exemplo de São Paulo em Rolnik, 1997, p. 147-149).
176
Essas parcerias podem ser promovidas não apenas entre Estado e empresas privadas, mas também entre o
poder público e o chamado “terceiro setor”, formado por organizações não governamentais nem empresariais, as
ONGs. Exemplos das primeiras são as concessões de serviços e obras públicas ou as operações urbanas
consorciadas; como exemplos das segundas, considerados processos de “gestão pública não estatal”, podem ser
citados os mutirões autogeridos para a produção de habitações populares em São Paulo (SP) e o premiado
trabalho da ONG Cearah Periferia, em Fortaleza (CE), entre muitos outros (com relação a programas de moradia
popular em parcerias público-privadas, ver Bonduki, 1996, p. 180-194 e 261-267).
134
177
O “Consenso de Washington” resultou de uma reunião ocorrida na capital norte-americana, em 1989, mesmo
ano da apresentação do projeto do Estatuto da Cidade, na qual representantes das organizações financeiras
internacionais e de países ditos “emergentes” acordaram uma receita de política econômica a ser indistintamente
adotada nesses países. Esse modelo baseava-se em princípios como disciplina fiscal, liberalização financeira,
comercial e cambial, desregulamentação da atividade econômica, estímulo ao investimento estrangeiro, proteção
da propriedade intelectual (softwares etc.).
178
Vários artigos da Constituição de 1988, sobre temas diversos, fazem menção a planos e programas de
natureza estatal.
179
Ver Maricato, 2001, p. 133.
180
Essa polarização entre a apropriação dos planos diretores como instrumento de reforma urbana, fundada na
participação popular e na efetividade da função social da propriedade, e sua contra-parte, a dos planos
estratégicos, centrados no empresariamento urbano, cujo conceito de participação é preenchido apenas pelos
“atores relevantes”, foi abordada no capítulo 2. Nesse último caso, em contradição com a própria expressão
“estratégico”, a idéia de um planejamento universalista, de amplo alcance social, passa a ser substituída pela
efetivação de “projetos”, de um urbanismo de resultados, quase sempre orientado pelo interesse de
empreendedores. Ver, a respeito, entre outras obras, Vainer, 2000.
135
processo democrático; o qual, aliás, poderia vantajosamente legitimar seus benefícios perante
a opinião pública, agora mais atenta e ressonante na democracia reconquistada.
Não é casual, portanto, nem deve causar estranheza, que o documento encaminhado
pelo Secovi-SP (1999) à Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior (CDUI) da Câmara
dos Deputados, por ocasião do debate ali promovido pelo relator do projeto ainda pendente de
votação, incluísse propostas como a do “orçamento participativo”, em relação ao qual o
empresariado afirmava que “não se admite mais, especialmente em assuntos que digam
respeito à sociedade como um todo, a exclusão da participação dos cidadãos”. O mesmo
documento defendia que as operações urbanas consorciadas fossem geridas de forma
compartilhada “com representação da sociedade civil”, pois essa participação “se faz
absolutamente necessária para garantir a observância adequada do plano de operação urbana
consorciada”. Ambas as propostas, que, por sinal, coincidiam com as proposições do MNRU,
foram incorporadas ao texto.
Ao observar que “essa troca de mãos das bandeiras democráticas é outra novidade
trazida pelos novos tempos”, Ermínia Maricato menciona como exemplos, não apenas o
conteúdo da Agenda Habitat, de 1996, cujo texto em defesa do direito universal à cidade e
contrário à exclusão social urbana foi assinado por todos os países presentes em Istambul, “os
que respeitam e os que não respeitam os direitos humanos”, mas também um documento
interno da Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que
congrega os 23 países mais ricos do mundo, no qual se afirma: “a participação, a
democratização, a boa gestão pública e o respeito aos direitos humanos favorecem um
desenvolvimento durável” (Maricato, 2000, p. 131-132).
Os mesmos argumentos, nesse caso mais expressamente vinculados à noção de
cidade como um produto a ser oferecido no ambiente da competição global, e considerando
ser essa a condição para o exercício de suas funções sociais, são utilizados pela gestora do
Programa de Desenvolvimento Urbano para a América Latina do Banco Mundial, Mila Freire:
“Num mundo cada vez mais competitivo e complexo, as cidades têm que, ao mesmo tempo,
atrair negócios, como uma maneira de gerar empregos e renda, oferecer um bom nível de vida
a seus habitantes e gerar recursos suficientes para financiar as necessidades sociais e de infra-
estrutura e cuidar de sua população carente” (Freire, M., 2001, p. 5).
Embora o nexo direto entre expansão econômica e combate à pobreza seja
convincentemente desmistificado por muitos críticos do neoliberalismo181, o fato é que a
181
Veja-se, por exemplo, recomendação que o senador Cristovam Buarque (PT-DF) faz a sua própria legenda
política: “É hora de nosso partido abandonar a crença antiga de que a redução na taxa de juros leva o mercado a
136
dinamizar a economia, esta dinâmica cria empregos e estes beneficiam os pobres. O que faz falta é um discurso
revolucionário na defesa de objetivos claros de políticas sociais diretamente dirigidas à abolição da pobreza no
Brasil” (Buarque, 2004).
182
Revista Veja, 10/3/2004, p. 72-73.
183
Vários estudos demonstram que a violência urbana está menos associada à circunstância de um país ser
menos ou mais pobre do que à desigualdade na distribuição da renda nacional (ver depoimentos à CDUI da
Câmara dos Deputados, reunidos pela Comissão em publicação avulsa). Ainda a esse respeito, em palestras e
publicações, o ex-presidente do IPEA (1999-2002), Roberto Borges Martins, ao comentar o fato de a distribuição
da renda no Brasil ser a 3ª mais concentrada do mundo, costumava afirmar e demonstrar que “o Brasil não é um
país pobre, mas um país que tem muitos pobres”.
184
“Preocupação dos alemães”, Correio Braziliense, 28/10/2003, p. 4.
137
Em São Paulo, você percebe que os empresários tomaram consciência de que o modelo não
deu certo e se vê uma certa abertura para se pensar em modelos alternativos”.
A síntese dessa posição conciliadora, pelo ponto de vista do empresariado, talvez
possa ser expressa pelas palavras com que o senador Romeu Tuma, do PFL de São Paulo,
saudou a aprovação da nova lei: “Mesmo defendendo uma visão liberal da atividade
econômica, não podemos desatrelá-la de uma perspectiva socialmente justa. Assim como
defendo a liberdade de empreender e de lucrar com o empreendimento, defendo que tal
liberdade não pode ser usufruída em detrimento da comunidade” (Tuma, 2001).
Deve-se reconhecer que formulações dessa natureza contêm preceitos distributivos e
universalistas, de ampla aceitação (embora também capazes de servir a múltiplos interesses).
Num aforismo falacioso, todos querem um mundo melhor para todos. Porém, os que estão
mais confortavelmente instalados tendem a ser menos tocados por princípios éticos de
combate às causas das desigualdades do que por motivações mais pragmáticas de mitigação
de seus efeitos.
Ao produzir uma reportagem sobre o apoio que a candidatura de Luiz Inácio Lula da
Silva, líder sindical ligado a causas esquerdistas, obteve na alta sociedade paulistana na
eleição de 2002 para presidente da República, o jornal Folha de São Paulo encontrou nessa
elite não o constrangimento ético para com a iniqüidade nacional, mas tão-somente o ânimo
de que o novo governo combatesse o desemprego e a violência urbana, no sentido de
reconquistarem, como alguns definiram, “o direito de ser rico”185.
Nesse ambiente, não é difícil compreender a convergência de opiniões, ainda que
fundadas em análises e propósitos diferenciados, entre o empresariado e o MNRU. A idéia de
um direito universal à cidade, que compreenda o acesso de todos a bens e serviços urbanos
essenciais à dignidade humana, deixa de ser apenas uma causa impregnada dos princípios
ideológicos ditos socializantes, ou até “comunistas”, como se apregoara nas décadas de 1970
e 80, para assumir, do ponto de vista oposto, a condição minimamente necessária à
reprodução do capital.
Nos primórdios da tramitação do Estatuto da Cidade, a reação conservadora, dentro e
fora do Congresso Nacional, conseguiu protelar as deliberações por nada menos que sete
anos. O somatório das forças sociais e políticas que representavam a proposta da reforma
urbana não parecia suficiente sequer para obter acordos considerados razoáveis.
185
“Golden Lula conquista high society: petista é visto como mediador entre Brasil que endinheirados conhecem
e país que eles temem”, Folha de São Paulo, 1°/12/2002, p. A18.
138
186
A despeito dessa noção de fragilidade que tem levado até ao encastelamento dos segmentos mais afluentes
nas cidades brasileiras, as maiores vítimas da violência urbana são as populações pobres. Contra aqueles,
incidem majoritariamente os crimes de natureza patrimonial; em relação a essas, predominam os crimes contra a
vida (ver, em Maricato, 2000, p. 164, referência a pesquisas realizadas no Núcleo de Estudos da Violência da
USP; ver também o Mapa da Violência, publicado periodicamente pela Unesco desde 1996).
187
Suspeita-se, sem que se possa, nesse caso, comprovar a hipótese, que a circunstância da impopularidade do
governo de então nos grandes centros urbanos e a proximidade da eleição presidencial de 2002 também
operaram no sentido de favorecer o acatamento da nova lei.
188
Graeff (2003, p. 2) destaca, na preparação do documento brasileiro, a participação da professora Regina
Meyer, da FAU/USP, que teria defendido a sanção do Estatuto do Cidade, inclusive em telefonema pessoal ao
presidente da República.
139
olhares diferenciados. E mais uma vez, em outro aparente (mas apenas aparente) paradoxo,
essas diferenças se expressam de modo similar. Com palavras semelhantes, os dois pólos
parecem pretender dizer coisas distintas.
Para Raquel Rolnik, uma das formuladoras do ideário da reforma urbana:
“É a partir das definições que forem adotadas pelos planos e leis locais que os instrumentos
disponibilizados pelo Estatuto ganharão concretude. Assim, o caráter excludente ou
includente da política urbana, o perfil mais ou menos redistributivo da renda e das
oportunidades urbanísticas dependerá da forma como as cidades utilizarem estes novos
instrumentos” (Rolnik, 2001).
189
Segundo Smolka (2003, p. 262), com base em estudos por ele citados, no Rio de Janeiro, 39,47% dos
domicílios seriam irregulares; em São Paulo, 66%; em Recife, 80%; em Salvador, 70%; e, em Curitiba, 50% da
população viveria em situações de violação dos códigos urbanísticos.
190
Ver consistente crítica de Edésio Fernandes (2001, p. 4-5) a esses argumentos.
140
Como a legislação até então vigente (Lei n° 6.766, de 1979, modificada pela Lei n°
9.785, de 1999) era incapaz de municiar adequadamente as propostas de regularização dessas
áreas, o Estatuto da Cidade incorporou vários mecanismos, como a possibilidade de aplicação
coletiva dos instrumentos legais e a prestação de assistência técnica e jurídica gratuita às
comunidades, que tendem a dar melhor curso a essas iniciativas.
Há também identidades entre os dois campos de opinião no tocante aos mecanismos
de controle da sociedade civil sobre as decisões do aparelho de Estado. Essa convergência
aproximou as posições e tem logrado a efetiva e crescente implementação desse aspecto da
reforma urbana. Tanto, por um dos lados, a expectativa de institucionalizar práticas
participativas, que já se vinham experimentando em algumas cidades administradas por
governos de perfil popular, quanto, pelo outro, as propostas de empresariamento urbano no
âmbito da economia globalizada, que impunham critérios de governança, “aqui entendida
como busca de eficiência, eqüidade, transparência e accountability no exercício do poder
público” (Fernandes, M., 1999, p. 80), foram atendidas pelos preceitos de gestão democrática
incorporados ao Estatuto da Cidade.
Embora tais preceitos sejam, também neste caso, distintamente apropriados pelas
divergentes correntes de opinião que os aprovaram, não se pode negar a multiplicação, que
ocorre Brasil afora, de debates, audiências públicas, conselhos, conferências e outros
instrumentos192 de natureza democrática.
Estão igualmente presentes, em ambos os pólos do debate, princípios de defesa da
sustentabilidade ambiental, adotada na nova lei como inerente ao próprio direito à cidade.
Assim como o segmento empresarial tem superado seu característico ranço crítico nesse
campo e crescentemente assimilado a responsabilidade ambiental em suas atividades193, o
movimento popular pela moradia também tem deixado gradativamente de ver a preservação
do meio ambiente como um discurso conservador e reacionário, necessariamente contrário
aos seus interesses. Exemplo disso é a própria Plataforma Nacional pelo Direito à Cidade, que
191
Ver banco de experiências no sítio da internet (www.cidades.gov.br) do Ministério das Cidades. A respeito
dos programas de regularização fundiária na América Latina, é importante o alerta de Martim Smolka para o
risco de realimentação da informalidade se não forem paralelamente enfrentados os fatores que levam à elevação
dos preços do solo urbano provido de infra-estrutura (Smolka, 2003, p. 255-291).
192
Plebiscitos e referendos sobre questões locais, embora comuns em vários países, especialmente os europeus,
ainda são raros no Brasil.
193
A iniciativa privada, em muitos casos, como costuma acontecer, transformou o “estorvo” do respeito ao meio
ambiente em “valor agregado” a seus produtos, transformado em preço. Apelos comerciais freqüentemente se
referem à preservação ambiental como um fator de diferenciação e qualificação de produtos tão diferentes
quanto cosméticos e loteamentos, por exemplo.
141
194
O documento Plataforma Nacional pelo Direito à Cidade: dez pontos para a “cidade que queremos” foi
elaborado pelo MNRU em 2002 (www.direitoacidade.org.br, consulta em 18/2/2003).
195
Ao lado do crescimento do desemprego (estrutural e circunstancial) observado nos últimos anos, chamam a
atenção números como os que demonstram a perda da massa salarial. Entre 1996 e 2003, anualmente, no mínimo
32,8% e até 57,7% dos acordos e convenções coletivas de trabalho resultaram em reajustes inferiores à taxa de
inflação do respectivo período (DIEESE, 2003). Em contraponto, para uma inflação acumulada de 2.950% entre
1993 e 2003, o ganho com a cobrança de tarifas bancárias, pela média dos quatro maiores bancos brasileiros,
cresceu 12.674% no mesmo período (O Globo, 21/3/2003, p. 33).
142
que estão paradas esperando valorização (...) é um ponto que acho positivo para o mercado
(...). Nosso setor é empreendedor, não é setor de especulação imobiliária” (Amadei, 2003, p.
1).
Mas as diferenças quanto à utilização compulsória da propriedade urbana acabam aí.
Tanto proprietários quanto empreendedores se opõem a que o conceito de não utilização (ou
de subutilização) seja interpretado de modo a alcançar imóveis construídos e desocupados:
“Em alguns municípios, há pessoas que entendem que a compulsoriedade atinge prédios já
existentes e desocupados. Na leitura da Lei, vê-se que não é nada disso, pois se trata da
utilização do solo, para a edificação do solo, para o parcelamento do solo, e não de imóveis já
construídos” (Amadei, op. cit., p. 3). Deve-se lembrar, a propósito, que a sugestão de que haja
penalidades para proprietários de moradias construídas que as retenham vazias já constava do
documento final do Seminário do Quitandinha, de 1963 (ver anexo 1).
Segundo o IBGE, há, no Brasil, 5 milhões de imóveis urbanos para moradia
desocupados196. Por outro lado, dados do próprio IBGE e da Fundação João Pinheiro (FJP)
quantificam o déficit habitacional brasileiro, nas cidades, em 5,3 milhões de moradias 197, o
que levaria à conclusão de que, parodiando o ex-presidente do IPEA, Roberto Martins, “no
Brasil não há déficit de moradias; há muitas pessoas sem teto”.
Mas como fazer as pessoas sem teto ocuparem os tetos sem pessoas? No Distrito
Federal, a Câmara Legislativa aprovou o projeto de lei n° 956/2003, de iniciativa do deputado
Chico Vigilante, do PT, instituindo o “IPTU progressivo para unidades imobiliárias
desocupadas”. Em uníssono, as entidades empresariais do setor imobiliário (Ademi-DF,
Sinduscon-DF e Secovi-DF), ao lado da representação dos corretores de imóveis, Creci-DF e
o respectivo sindicato, publicaram uma Carta Aberta solicitando que o governador Joaquim
Roriz vetasse a medida, sob um argumento ao menos sincero: “O projeto afasta os
investidores em imóveis”198. O governador vetou o projeto.
O argumento dos empresários confirma o que vimos no capítulo 2. A produção
habitacional no Brasil, em grande parte, não se destina a atender à demanda efetiva de
moradias, mas a produzir um ativo financeiro. E o mercado interessado na valorização desse
ativo não é obviamente formado apenas pelos seus produtores, mas igualmente pelos
196
Esse número se limita às cidades e já exclui os imóveis de “uso ocasional”, como casas de campo, de veraneio
e outras, considerando tão-somente as moradias vagas ou fechadas (IBGE, Sinopse Preliminar, 2000).
197
Na definição da Fundação João Pinheiro, o conceito de déficit habitacional abrange quatro situações:
precariedade física, co-habitação (mais de uma família), ônus excessivo de aluguel e deterioração pela ação do
tempo.
198
Ver “Carta Aberta ao Governador e à Sociedade”, Correio Braziliense, 21/2/2003, p. 36.
143
proposta do governo, o IPTU progressivo incidiria “sobre terrenos com mais de 2,6 mil
metros quadrados, sem construção e localizados em setores que já contam com infra-estrutura
urbana”202. Nem assim relativizada, na verdade, quase neutralizada, a tributação progressiva
do solo ocioso obteve apoio político.
Por essa mesma razão, qual seja a de um conflito dissimulado por um aparente
consenso, planos diretores democraticamente elaborados e amplamente participativos, como,
entre muitos outros, o de Angra dos Reis (RJ), realizado em 1991 e ainda hoje citado como
exemplo, não se transformam em ações efetivas203.
Nesse sentido, não é apenas o plano racionalista e regulatório do período modernista
que se transforma em “plano-discurso”, expressão cunhada por Flávio Villaça (1999, apud
Maricato, 2000) na tentativa de expressar o quanto os planos diretores tecnocráticos se
distanciavam da cidade real. Nas palavras de Ermínia Maricato (2000, p. 138): “Quando a
preocupação social surge no texto, o plano não é mais cumprido. Ele se transforma no plano-
discurso, no plano que esconde ao invés de mostrar. Esconde a direção tomada pelas obras e
pelos investimentos, que obedecem a um plano não explícito”.
Os planos participativos e democráticos, embora mostrem e não mais escondam,
também correm o risco de permanecerem no discurso. Ou, pior, terem os seus elementos,
politicamente úteis porquanto legitimadores, apropriados pelas mesmas forças que se têm
historicamente valido do aparelho estatal. Se no Estado tecnocrático a participação popular
era escassa e, assim, essa apropriação “por baixo dos panos” era facilitada, também é frágil a
garantia de que o mesmo processo, agora “por cima dos panos”, deixe de ocorrer na ordem
democrática.
Exemplos desse risco são as decisões de muitos governos e câmaras de vereadores,
que, de uma parte, resistem de forma clientelista204 à atualização de cadastros fiscais e à
cobrança de contrapartidas como a contribuição de melhoria (Lima, 1986, p. 169-188) e, de
outra, beneficiam com vergonhosa freqüência interesses privados com facilidades
urbanísticas. É o caso das comentadas aplicações, com sinal trocado, de alguns dos
202
Em “Acordo busca manter Plano Diretor na Câmara”, O Popular, Editoria de Política, 9/12/2003.
203
Sobre o papel dissimulador desempenhado por representantes do segmento imobiliário nos debates relativos
ao plano diretor de Angra do Reis, ver Guimarães e Abicalil, 1990. Esse plano diretor tem sido apresentado
como exemplo de gestão democrática por vários autores ligados ao MNRU. Ao lado das dificuldades próprias do
patrimonialismo ideológico, Marcelo Lopes de Souza identifica “a arrogância e o excesso de confiança das
forças comprometidas com a mudança social” como fatores de frustração de sua implementação (Souza, 2002, p.
483).
204
Ver Furtado, 1999.
145
CONCLUSÃO
205
Embora comecem a se avolumar, ainda são poucas as pesquisas e publicações específicas sobre a legislação
urbana no Brasil e, mais escassas ainda, as referentes à respectiva elaboração legislativa. Os elementos
147
contributivo de muitos fatores indiretos, que se somaram à pressão organizada que o MNRU
promoveu sobre o Congresso Nacional e à sua estratégia de construção de acordos com o
setor imobiliário. Dentre esses fatores, destacam-se, em confirmação das hipóteses
inicialmente levantadas:
1) a experimentação municipal com os novos instrumentos urbanísticos, após a
Constituição de 1988, pelos seus efeitos de quebra de resistências ideológicas
e, mais especificamente, pelas apropriações de interesse privado que dela
resultaram;
2) a percepção de risco empresarial que a iniciativa privada passou a ter em
relação às chamadas deseconomias urbanas (no sentido da degradação das
condições de moradia para os mais pobres e das carências e ineficiências dos
serviços públicos) e aos níveis crescentes de violência nas grandes cidades;
3) os compromissos internacionais do Brasil perante a ONU, relativamente ao
conteúdo da Agenda Habitat.
informativos desse processo no Congresso Nacional, conquanto disponíveis em eficiente base de dados
(APEM/SICON), não se encontram sistematizados por assunto, e, a partir dessa condição, tiveram que ser
correlacionados e analisados.
148
206
Smolka e Furtado (2001, p. XXXII e XXXIII) trazem fundados argumentos no sentido de demonstrar que se
trata de uma “resistencia más ideológica que lógica” aos instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias,
visto que, em muitos aspectos, como o fato de os ônus recaírem sobre os proprietários de terras (não promotores)
e os efeitos de neutralização de externalidades na formação dos preços, são aplicados princípios que deveriam
ser defendidos pelos empreendedores.
149
Considerações prospectivas
207
A adoção de instrumentos desse tipo tem se dado por meio de compensações decorrentes de franquias
urbanísticas, na forma de parcerias, que, muitas vezes — como há tempos percebera David Harvey (1996), um
dos pioneiros dessa corrente crítica —, aproveitam mais aos empreendedores que ao interesse público.
150
Emir Sader (2004), o Brasil teve, pelo menos, três esquerdas no campo político: a primeira,
herdeira da revolução russa, apoiada “no enfrentamento de classe contra classe”; a segunda,
getulista, “marcada pela irrupção do nacionalismo”, que no Brasil assumiu uma feição
antiimperialista, enquanto “a Europa enfrentava os nacionalismos como forças de extrema
direita”; e a terceira, “surgida de concepções aparentemente classistas”, que se formou “em
torno de conceitos como cidadania, sociedade civil, luta contra a exclusão social (...), tendo no
conceito liberal de democracia sua referência de sistema político”. Ao identificar o PT com a
terceira, Sader afirma, quando analisa os primeiros movimentos governistas, que “a influência
do pensamento liberal se aprofundou na adesão acrítica ao sistema político e foi, aos poucos,
se estendendo para o liberalismo econômico”.
De outra parte, as restrições críticas não provêm apenas da chamada intelectualidade.
No dia 18/3/2004, pouco mais de um ano e dois meses da posse do novo governo, cuja eleição
apoiara, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), em Olinda (PE), entrou em
conflito com a Polícia Militar quando promoveu uma manifestação por ocasião da visita do
presidente da República àquela cidade. O coordenador do MTST em Pernambuco, reverendo
Marcos Cosmos, declarou aos jornais208: “Queremos uma política habitacional coerente com
um governo que se diz popular. Os empresários e os banqueiros têm mais espaço do que nós
no governo Lula”.
O inconformismo, ou a impaciência, a depender do ponto de vista, tanto do
pensamento crítico quanto do movimento popular em relação à “impotência do poder”209,
põem em xeque não mais agora os preceitos éticos e o conteúdo programático da reforma
urbana, mas a sua eficácia como política pública.
Nem mesmo o fato de a Constituição reduzir o papel do governo federal no campo da
política urbana, em benefício da autonomia municipal, tende a amenizar as expectativas.
Ainda mais quando se sabe que essa circunstância importa pouco num país em que a noção de
dependência em relação ao poder central ainda é muito forte nas instâncias locais. E também
porque muitos dos argumentos utilizados por governos municipais de base popular para
explicar suas dificuldades na implementação de políticas urbanas de compromisso social
costumavam referir-se à inexistência de instrumentos legais e à falta de apoio do governo
federal. Ambos agora estão presentes.
208
O Globo, 18/3/2004, p. 4.
209
O autor ouviu a expressão de Pompeu de Sousa, frustrado com a percepção de que, se pode alguma coisa, o
poder político pode pouco no sentido de promover efetivas transformações sociais.
151
Pode-se afirmar que o MNRU foi notoriamente vitorioso numa das vertentes da
luta pela reforma urbana: a da constituição de um marco legislativo que incorporasse seus
preceitos ao ordenamento legal brasileiro. Parece claro, contudo, que a efetividade desse
novo instrumental jurídico dependerá de muitos fatores, como, entre muitos outros, a
capacidade do poder público e do movimento popular em obter acordos que resultem em
eqüidade; a superação da “representação ideológica da cidade”210; a disseminação dos novos
conceitos nos cursos de formação e na prática de planejadores urbanos e operadores do
direito; a assimilação pela opinião pública de modelos que lidam com a noção de patrimônio
e rendas que, embora de alto valor, são quase sempre “invisíveis”; e a superação de
preconceitos ideológicos no âmbito do próprio empresariado211, considerando que “o
princípio ético de que alguém somente pode ser recompensado pelo seu próprio esforço
implica o retorno à comunidade das mais-valias que resultem do trabalho coletivo”212.
Na prática, a outra vertente do MNRU, a das lutas concretas no território da cidade
pela materialização de direitos, um pouco adormecida pela prioridade conferida à conquista
de instrumentos legais, tende a ressurgir. Agora como meio de enfrentamento das forças
políticas que se opunham à efetividade do ordenamento legal recém-conquistado, no sentido
de que a propriedade no Brasil se transforme, como na formulação de Boaventura de Souza
Santos, numa “propriedade-objetivo”, a qual, em suas três formas, a individual, a
comunitária e a estatal, possa respeitar os direitos humanos e sociais, assim como os limites
da natureza (Santos, B. S., 2003, p. 336).
Nos tempos presentes, a luta pela reforma urbana poderá ver, ora como aliadas, ora
como adversárias, as políticas públicas postas em prática pelo governo central, eleito com
forte apoio do próprio MNRU. E, para tanto, deverá ser útil a experiência política em lidar
com ambigüidades dessa mesma natureza nas relações com governos municipais que
também já haviam sido eleitos com seu apoio. Afinal, como lembrou Ana Clara Torres
Ribeiro (2001) a propósito da aprovação do Estatuto da Cidade: “direitos sem instrumentos
210
Para Ermínia Maricato (2000, p.165), “a representação da ‘cidade’ é uma ardilosa construção ideológica que
torna a condição da cidadania um privilégio e não um direito universal”. A parcela da cidade ocupada pela elite
passa a representar a própria idéia de cidade, encobrindo grandes extensões territoriais e, sobretudo, sociais da
cidade real. Numa espécie de metonímia da gramática urbana, parte da cidade toma o lugar do todo.
211
Segundo Oscar Borrera Ochoa, ex-presidente da FEDELONJAS, entidade representativa do setor imobiliário
na Colômbia, os empreendedores colombianos, após terem também considerado “comunista” a legislação pró-
reforma urbana naquele país, “aproximaram-se das preocupações sociais e coletivas” e passaram a considerar
justa a captura de mais-valias pelo poder público por meio de instrumentos urbanísticos (Land Lines, LILP,
july/2003, p. 16, livre tradução).
212
Brown e Smolka, 1997, p. 19, livre tradução.
152
são direitos inexistentes, da mesma forma que instrumentos sem sujeitos sociais são folhas
ao vento”.
Outro grande adversário da materialização desses direitos, ainda que
paradoxalmente motivado pelo desejo sincero na sua efetiva implementação, tende a ser o
ceticismo com que alguns analistas e pesquisadores se contrapõem às possibilidades de
conquistas sociais no âmbito dos regimes capitalistas. Para esses, tais possibilidades, já
pequenas ante as relações de produção características desse regime econômico, seriam ainda
mais diminutas sob as forças da globalização econômico-financeira. Essas reduziriam ainda
mais a “margem de manobra para intervenções estatais, assim como para ações da sociedade
civil que não sejam conformes ou que se oponham à lógica e aos interesses do mercado”
(Souza, 2002, p. 520).
De fato, a condição da chamada pós-modernidade — em que se disseminam (não
só nos segmentos afluentes da sociedade) sentimentos de distanciamento e conformismo —
tende a exacerbar as desigualdades e transformá-las em “dessemelhanças” (Buarque, 2002,
p. 20), o que tem significados mais profundos e efeitos bem mais graves. No entanto, parece
claro que capitular perante esses obstáculos somente contribuiria para dar vezo ao
individualismo e à indiferença213, que medram por toda parte.
A esse respeito, vale registrar a inferência coincidente que fazem autores como
Marcelo Lopes de Souza e Ermínia Maricato, os quais, embora indistintamente comunguem
do ideário da reforma urbana, às vezes o fazem sob postulados acadêmicos e políticos
diferenciados.
Para ele:
“Duvidar de que avanços são possíveis não é uma postura apenas reacionária,
por convidar ao imobilismo e levar à paralisia, mas ignorante, por teimar em não enxergar
os avanços que, aqui e acolá, se têm concretizado no Brasil. Os perigos são reais e não
podem ser subestimados; nem por isso, contudo, se deve simplificar demais, adotando a
estética do pessimismo (...)” (Souza, p. 521).
Para ela:
“As reflexões críticas analíticas são fundamentais nesse processo. Elas ajudam a
demolir os simulacros das representações ideológicas. Não se aceita, entretanto, a cômoda
postura dos que decretam a morte do urbanismo democrático (e também dos urbanistas
democráticos) enquanto as relações capitalistas forem dominantes. As contradições são
muitas e suas brechas imensas, na sociedade brasileira, para adotar a postura da paralisia
213
Para o grande constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho: “O mundo pós-moderno será mesmo um
mundo plural (dos ‘discursos’, das ‘histórias’, das ‘idéias’, dos ‘progressos’), onde existe apenas um singular: o
indivíduo. Todavia, esse indivíduo assume-se como pós-sujeito: renuncia a ‘verdades universais’, e, em vez de
projectar mundos, encontra os ‘fenómenos’ e os ‘sistemas’. Neste sentido se diz que é um indivíduo topológico,
um ‘espectador de aconteceres’, soberanamente indiferente”. In: Direito constitucional, Coimbra: Almedina,
1991, p. 18-19, apud Queiroga, 2002 p. 23.
153
Comentários finais
que podem revelar surpresas214; (ii) propostas para a delimitação conceitual dos
instrumentos do Estatuto da Cidade, muito especialmente o plano diretor, além de outros,
inovadores ou não, destinados a promover a “recuperação de mais-valias fundiárias”215; ou,
ainda, (iii) o aprofundamento de conceitos jurídicos vinculados à noção de que os direitos
dependentes de autorizações do poder público, legislativas ou administrativas, necessárias
ao processo de urbanização, configuram patrimônio público e, nessa condição, não podem
ser graciosamente transferidos ao domínio privado.
Abrem-se, igualmente, fronteiras técnicas mais específicas, a exemplo da
atualização das normas de avaliação de imóveis para absorver o conteúdo do instrumental
urbanístico trazido pelo Estatuto da Cidade (inclusive como recurso para a análise empírica
dos efeitos de sua aplicação), ao lado de outras, de cunho pedagógico, como a maior
assimilação pelos currículos acadêmicos desse novo ambiente cognitivo.
Por fim, caberia lembrar que a distância entre intenção e gesto, ou, em outras
palavras, o risco de que o Estatuto da Cidade se transforme numa “lei-discurso”, será menor
quanto maior seja a compreensão de seus significados e o efetivo execício prático de suas
potencialidades; mas também será necessária a aceitação de seus limites.
O mérito de um planejamento crítico e de uma gestão democrática assim
promovidos não estará, portanto, em negar a revolução tecnológica e a reestruturação
produtiva que se encontram em marcha, mas em saber dirigi-las, sob preceitos éticos, para a
democratização dos seus benefícios.
E o que seriam as cidades, ante as condições culturais e materiais que reúnem,
senão o território dessa possibilidade e a arena dessa luta?
214
Como, por exemplo, a persistência de preços excessivamente elevados no mercado informal em decorrência
de diversos fatores, entre eles a negação empírica da premissa comumente aceita de que a “concorrência entre o
mercado imobiliário informal com o mercado formal reduziria preços do informal (...)” (Abramo, s/d, p. 1).
215
Para a conceituação do princípio da “recuperação de mais-valias fundiárias”, inclusive no âmbito do Estatuto
da Cidade, ver Furtado, 2003.
155
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167
ANEXO 1
(...)
propõe:
1ª proposta:
2ª proposta:
Que o Congresso Nacional reforme o parágrafo 16 do artigo 141 da Constituição Federal, suprimindo as
expressões “prévia” e “em dinheiro”, de modo a permitir ao governo a escolha da forma de indenização, de
acordo com o interesse social.
3ª proposta:
Que o Poder Executivo envie projeto de lei ao Congresso Nacional corporificando os princípios de Política
Habitacional e de Reforma Urbana aprovados neste seminário e contendo os seguintes pontos:
1) A fim de disciplinar e coordenar todos os esforços necessários à correção da carência habitacional e de seus
problemas de aproveitamento do território, o governo deve criar um Órgão Central Federal, com autonomia
financeira e com competência de jurisdição sobre todo o território nacional, incorporando-se a ele o
Conselho Federal de Habitação.
a) fixar as diretrizes da política habitacional e de planejamento territorial do país, através da elaboração dos
planos nacionais, territorial e de habitação, de duração plurianual, tomando todas as resoluções que lhe
parecerem necessárias para assegurar o seu pleno desenvolvimento, sendo que, sua execução, sempre que
possível, deve ser descentralizada;
b) encaminhar, por intermédio do Presidente da República, os planos nacionais, territorial e de habitação (tal
como são entendidos nos Capítulos IV e V da presente proposta) ao Congresso Nacional, para sua
apreciação e aprovação;
c) coordenar, assessorar e estimular a ação de todas as entidades governamentais, autárquicas, paraestatais e
privadas que exerçam atividade no setor habitacional, considerando os planos estaduais ou municipais
existentes;
d) centralizar e coordenar os recursos federais destinados à habitação;
e) coordenar, supervisionar e distribuir os recursos e a assistência técnica provenientes de países estrangeiros
ou agências internacionais, destinados a programas de habitação e de aproveitamento do território;
f) propor e executar medidas legais de desapropriação por interesse social, tanto para a habitação como para o
planejamento urbano e proporcionar aos órgãos responsáveis pela execução de planejamentos territoriais e
habitacionais, recursos que facilitem a desapropriação por interesse social, observado o enquadramento de
tais planejamentos aos planos regionais a que pertencerem;
g) propor, estabelecer e executar medidas legais ou administrativas, necessárias à execução da Política
Habitacional do governo;
h) firmar convênios com entidades oficiais ou privadas;
i) adotar providências necessárias para o incremento da indústria de materiais de construção e
desenvolvimento de processos tecnológicos, tendo em vista a padronização e estandardização desses
materiais, e a possibilidade de processos de pré-fabricação;
j) promover, estimular e divulgar estudos e pesquisas, especialmente visando à criação de uma consciência
pública do problema;
k) promover o entrosamento da Política Habitacional com a Política Agrária e com a de Desenvolvimento
Econômico.
169
3) O Órgão Central deve ter uma organização com as seguintes características e normas:
a) bens móveis, imóveis, direitos e ações sobre imóveis pertencentes à Fundação da Casa Popular e ao
Conselho Federal de Habitação;
b) imóveis que desaproprie e adquira a qualquer título, bem como os imóveis urbanos pertencentes à União e
por ela não utilizados.
5) Para o financiamento da Política Habitacional deve ser criado um Fundo Nacional de Habitação,
administrado pelo Órgão Central, com os seguintes recursos:
b) arrecadação do selo de habitação a ser aposto nos contratos e recibos de locação, substituindo o selo comum
federal;
170
c) arrecadação proveniente do tributo cobrado na conformidade dos artigos 92 a 95 do Decreto 51.900, de 10-
4-63;
d) arrecadação proveniente de operações imobiliárias realizadas por pessoas jurídicas;
e) renda líqüida da Loteria Federal;
f) dotações orçamentárias, nunca inferiores a 5% da receita bruta da União, cobrindo inclusive as despesas
com desapropriação;
g) rendas de bens e serviços eventuais;
h) contribuições de entidades oficiais ou particulares, nacionais ou estrangeiras, recebidas exclusivamente pelo
Órgão Central para sua aplicação de acordo com os planos nacionais, territorial e de habitação.
6) Com o Órgão Executor Financeiro devem passar à jurisdição do Órgão Central, as Caixas Econômicas
Federais, que funcionarão como Banco nacional de habitação, obedecendo às seguintes normas:
a) as disponibilidades das CEF somente poderão ser aplicadas nas finalidades do Órgão Central;
b) as agências e serviços das CEF serão aproveitados como órgãos regionais e locais do Órgão Central.
7) As verbas do Orçamento da União, destinadas ao Fundo Nacional de Habitação, deverão ser globais e
automaticamente registradas no Tribunal de Contas. As despesas com o pessoal administrativo do Órgão
Central não deverão ultrapassar de 10% (dez por cento) das dotações orçamentárias.
8) As verbas do Fundo Nacional de Habitação deverão ser aplicadas estritamente em conformidade com os
critérios de atendimento que forem estabelecidos para fins de elaboração dos planos nacionais, territorial e
de habitação.
1) Ficarão sujeitos à desapropriação por interesse social os bens considerados necessários à habitação, ao
equipamento dos centros urbanos e ao aproveitamento do território;
2) Poderá o Órgão Central promover a desapropriação do imóvel por interesse social, tomando como valor da
oferta inicial o declarado para fins tributários, eliminados os conflitos que possam existir em conseqüência
da futura Lei de Reforma Agrária;
3) Não havendo valor declarado pelo proprietário, o valor da oferta será fixado, na zona rural, por avaliação
conjunta do Órgão Central, SUPRA e município; e, na zona urbana, pelo Órgão Central e pelo município;
4) Os bens desapropriados pelo Órgão Central dentro dos seus objetivos poderão ser transferidos a particulares,
obedecidas as condições específicas nos planos nacionais, territorial e de habitação.
1) Na elaboração dos planos nacionais, territorial e de habitação, o Órgão Central levará em conta critério de
atendimento às áreas e populações a serem beneficiadas, os quais deverão possibilitar a fixação objetiva de
um escalão de prioridade;
2) Em relação à distribuição geográfica dos atendimentos, os planos nacionais, territorial e de habitação
deverão levar em conta, entre outros fatores:
a) a densidade e o ritmo de crescimento da população;
b) a intensidade da urbanização;
c) a densidade relativa em sub-habitação;
d) a disponibilidade de recursos e fatores produtivos ociosos;
e) a ocorrência de esforços locais ou regionais para o desenvolvimento econômico-social, quando se
enquadrem na política nacional de desenvolvimento;
f) a existência de planos de habitação, locais ou regionais.
3) No pertinente às camadas da população a serem atendidas, os planos nacionais, territorial e de habitação
devem considerar, primordialmente:
a) a incapacidade econômica para construção ou aquisição de moradia, nas condições vigentes do mercado
imobiliário;
b) a possibilidade de retribuição econômica pela moradia proporcionada através do Plano Nacional de
Habitação.
4) (...).
5) O Órgão Central fixará anualmente a lista dos municípios que deverão preparar, dentro do prazo
estabelecido, seus respectivos planos, de acordo com os planos regionais e atendendo ao objetivo de
atenuação das disparidades regionais do desenvolvimento do país.
171
6) O Órgão Central poderá financiar e dar assistência técnica aos municípios para elaboração de seus planos, e
aos órgãos regionais de planejamento.
7) Quaisquer planos elaborados pelos municípios deverão ser executados segundo as normas gerais do Órgão
Central, sob pena de suspensão dos pagamentos mencionados nos itens 4 e 6 anteriores.
1) O Órgão Central elaborará o Plano Nacional Territorial, no qual serão fixadas as diretrizes gerais do
Planejamento Territorial e distribuição demográfica, a interligação de diversos planos regionais, sua
vinculação aos planejamentos de caráter econômico e aos grandes empreendimentos de interesse nacional,
de forma a obter-se o desenvolvimento físico-territorial integrado e orgânico das diversas regiões do país.
2) O Plano Nacional Territorial dará especial atenção à distribuição demográfica, aos aspectos sociais
provenientes do desenvolvimento econômico, aos problemas de habitação, circulação e transporte, trabalho,
recreação, cultura, saúde, educação, produção e abastecimento, reservas para expansão urbana e de áreas
florestais, proteção de mananciais e regiões de valor turístico, aplicando os princípios de planejamento
territorial consagrados pelos congressos internacionais de arquitetura.
3) O Órgão Central, uma vez elaborado o Plano Territorial, fixará normas gerais que deverão obedecer ao
planejamento em todos os níveis.
1) O Plano Nacional de Habitação destina-se a corrigir o déficit de moradias e suprir a crescente demanda de
habitações, serviços e equipamentos urbanos.
2) Para elaboração desse plano, o Órgão Central terá livre acesso a todas as fontes de informações das diversas
repartições federais, estaduais, municipais, autárquicas e paraestatais, relativas ao seu campo de atuação.
3) Os imóveis adquiridos, construídos ou financiados para os fins do Plano Nacional de Habitação, não
poderão ser usados a título gratuito, nem doados a particulares.
4) A alienação ou a locação desses imóveis obedecerá a normas e critérios previamente estabelecidos, não
sendo permitido ao adquirente sua transferência pelo prazo de 10 (dez) anos, a contar da aquisição.
5) Os referidos imóveis só poderão ser alienados ou locados a pessoas que se enquadrem nos critérios de
atendimento do Plano Nacional de Habitação.
6) Os núcleos habitacionais enquadrados no Plano Nacional de Habitação deverão prever as instalações
necessárias aos serviços e equipamentos urbanos.
7) Quando as construções referidas no item anterior se destinarem à venda ou ao aluguel a pessoas com
suficiente capacidade econômica, será cobrado no valor da venda ou locação um acréscimo sobre o preço
fixado pelo Órgão Central.
8) Nenhuma construção para os fins do Plano Nacional de Habitação será realizada sem que as obras de
urbanização correspondentes estejam de acordo com o planejamento dos municípios onde for executada.
9) A alienação dos imóveis enquadrados no Plano Nacional de Habitação poderá ser feita com reserva de
propriedade do solo, caso em que o financiamento cobrirá apenas o valor da edificação. Os registros
imobiliários transcreverão o edifício em nome do adquirente, com as averbações cabíveis.
10) O Plano Nacional de Habitação deverá desde logo adotar medidas de emergência destinadas a melhorar as
condições de habitabilidade de agrupamentos de sub-habitações, tais como favelas, mocambos, malocas e
semelhantes.
11) As medidas de emergência serão consideradas uma etapa intermediária entre o estado atual dos
agrupamentos de sub-habitações e os objetivos do Plano Nacional de Habitação.
12) O Plano Nacional de Habitação deverá considerar o aproveitamento social das áreas recuperadas das sub-
habitações, para execução por seus proprietários, ou diretamente, mediante desapropriação.
1) Será assegurado ao locatário do imóvel à venda, preferência na compra, em igualdade de condições, pelo
prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da data da notificação, através do Cartório de Registro de Títulos, desde
que o imóvel e o locatário se enquadrem nos objetivos do Plano Nacional de Habitação, devendo a
notificação conter o preço e as condições de pagamento.
2) Será assegurado ao locatário o direito de adjudicação compulsória do imóvel vendido sem observância do
disposto no item anterior, satisfeitas as condições constantes da escritura.
172
4a Proposta:
Que o Poder Executivo envie mensagem ao Congresso Nacional propondo modificações na Lei do Imposto de
Renda, de modo a permitir isenção de tributação para as economias aplicadas na aquisição da casa própria
(terreno e edificação), por parte das pessoas cuja renda real não seja suficiente para a obtenção do primeiro
imóvel, dentro das leis que atualmente regulam o mercado imobiliário.
5ª Proposta:
Que a política de investimentos estatais na melhoria dos conjuntos de sub-habitação obedeça a normas no
sentido de:
a) organizar as comunidades, disciplinando e orientando tecnicamente as construções, com o aproveitamento
também dos próprios recursos dos grupos sociais;
b) coordenar as obras de responsabilidade do poder público;
c) tornar produtiva toda a mão-de-obra ociosa local, mediante seu aproveitamento em oficinas de artesanato e
pequenas indústrias locais.
6ª Proposta:
Que, para o estabelecimento de um Programa Habitacional, seja adotada metodologia tendo em conta o
dimensionamento qualitativo e quantitativo da atual escassez, num processo que se baseia na projeção do
número de “unidades familiares”, sendo cabível circunscrever a projeção da demanda futura com base nas
prioridades estabelecidas pela política habitacional.
7ª Proposta:
8ª Proposta:
Que os órgãos da Previdência Social, as Caixas Econômicas e outros da esfera governamental que realizam
programas habitacionais, mediante execução direta ou financiamento, procurem aplicar, desde já, os princípios e
normas estabelecidos neste seminário.
Nesse sentido, o seminário dirige-se de forma particular ao IPASE, cuja direção, ao co-patrocinar esta reunião,
demonstrou plena consciência de suas responsabilidades neste setor.
9ª Proposta:
Que o Congresso Nacional altere a legislação em vigor, de modo a que, nas áreas de grande concentração
urbana, constituídas territorialmente por municípios distintos, sejam criados órgãos de administração, que
consorciem as municipalidades, para a solução de seus problemas comuns, tendo em vista, particularmente, as
questões de organização do território e as habitacionais.
173
ANEXO 2
O Presidente da República, no uso das atribuições que lhe confere o artigo 81 da Constituição Federal:
Considerando o agravamento dos problemas urbanísticos, habitacionais, sanitários e dos serviços públicos em
geral, principalmente nos grandes aglomerados urbanos do País;
Considerando a urgência no encaminhamento e na solução de tais problemas;
Considerando, para tal fim, a necessidade de unificar as atividades dos órgãos públicos destinados ao
equacionamento e à execução de tarefa de alto significado social;
Considerando a necessidade de providências urgentes de ordenamento e incentivo às atividades privadas ligadas
a esse setor;
Considerando que tal providência tem de ser precedida de pesquisas, estudos e análises sobre os diversos
aspectos dessas questões, para que se possa traçar uma correta política urbana, suas diretrizes e prioridades,
DECRETA:
Art. 1º Fica instituído, junto à Presidência da República, o Conselho de Política Urbana (COPURB), sediado em
Brasília, com o objetivo de estudar os problemas urbanos do País e elaborar as diretrizes de uma política de
desenvolvimento urbano equilibrado, harmônico e estético, sincronizado com a expansão econômica e social do
País.
Art. 3º O COPURB poderá realizar, também, planos de ajuda mútua para fixação de população trabalhadora de
baixas rendas na base de financiamento a longo prazo para aquisição do terreno e dos materiais e equipamentos
essenciais à moradia higiênica e em conformidade com um planejamento físico integral.
Art. 4º Fica o COPURB com a incumbência de solicitar às Prefeituras das Capitais dos Estados da Federação o
levantamento de suas necessidades em serviços e obras básicas e a elaboração de um Plano Bienal de Obras e
Investimentos, definindo metas físicas, quantitativos financeiros e prioridades.
§ único. Para a execução do Plano Bienal de Obras e Investimentos, o COPURB, juntamente com outros órgãos
públicos federais, deverá realizar convênios com as Prefeituras Municipais das Capitais.
Art. 5º Nenhuma verba federal, orçamentária ou não, destinada a atividades previstas no presente decreto poderá
ser liberada sem que os planos de aplicação apresentados pelas entidades públicas e privadas beneficiárias sejam
aprovados pelo COPURB.
Art. 6º Nenhum empréstimo será concedido por estabelecimento oficial de crédito a companhias privadas
construtoras ou financiadoras de empreendimentos imobiliários cujos projetos não tenham sido aprovados pelo
COPURB.
Art. 7º Nenhum redesconto de títulos da rede bancária privada será procedido por estabelecimento oficial de
crédito, correspondentes a operações de companhias privadas construtoras ou financiadoras de empreendimentos
imobiliários cujos projetos não tenham sido aprovados pelo COPURB.
Art. 8º Todo o empréstimo estrangeiro que se destine a financiamentos de planos habitacionais ou urbanísticos
no País só poderá efetivar-se após parecer do COPURB.
III – sugerir a integração dos planos estaduais e municipais, urbanísticos e habitacionais, na orientação geral do
Planejamento Físico Nacional;
IV – propor ao Presidente da República, aos Ministros de Estado e aos dirigentes de órgãos ou entidades não
ministeriais subordinadas à Presidência da República a adoção de medidas tendentes a facilitar ou acelerar a
execução de programas, projetos e obras para solucionar problemas dos aglomerados urbanos do País, assim
como a fixação de normas para a sua elaboração e de prioridades para a sua execução.
§ único. O Conselho Consultivo poderá reunir-se em diferentes locais do País e na Capital da República,
deliberando por maioria de votos, sob a presidência de um de seus membros, escolhido na forma estabelecida no
Regimento Interno do COPURB.
Art. 12. Dentro das diretrizes gerais da política do desenvolvimento urbano do País e em articulação com o
DASP, a Secretaria Executiva proporá medidas, inclusive de natureza legislativa, objetivando:
I – a extinção de órgãos que perderem razão de ser, pela mudança de condições;
II – a transformação ou adaptação de órgãos que perderem funções, devam assumir ou assumam funções novas;
III – a criação de órgãos para o exercício de funções novas ou melhor exercício de funções atuais;
IV – as medidas necessárias à eliminação de duplicidade, concorrência ou oposição de funções.
Art. 13. Ao COPURB deverá ser prestada decisiva cooperação pelos Ministérios, autarquias, sociedades de
economia mista e outros órgãos de serviço público federal, inclusive sob a forma de trabalhos técnicos.
Art. 14. Dentro de 30 (trinta) dias, a Secretaria Executiva, ouvido o Conselho Consultivo, submeterá ao
Presidente da República, para a necessária aprovação, o Regimento Interno do COPURB, dispondo sobre as
normas de funcionamento de seus órgãos e grupos de trabalho.
Art. 15. Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
177
ANEXO 3
CAPÍTULO I
Dos Objetivos e Diretrizes do Desenvolvimento Urbano
Art. 1º O desenvolvimento urbano tem por objetivo a melhoria da qualidade de vida nas cidades, mediante:
I – adequada distribuição espacial da população e das atividades econômicas com vistas à estruturação do
sistema nacional de cidades;
II – integração e complementaridade das atividades urbanas e rurais;
III – disponibilidade de equipamentos urbanos e comunitários.
CAPÍTULO II
Da urbanização
§ 3º A autorização para instalação de equipamentos urbanos de grande porte de interesse supramunicipal, tais
como terminais aéreos, marítimos, rodoviários e ferroviários, autopistas e outros será expedida pela União ou
pelo Estado, observado o âmbito de competências específicas, ouvido previamente o Município interessado.
§ 4º Aplicar-se-á o disposto nos parágrafos 1º e 2º deste artigo às atividades industriais, comerciais, de serviço e
de lazer, mesmo quando localizadas em área rural.
§ 5º Para os fins desta lei, equiparam-se à construção a reforma e a demolição.
§ 6º Qualquer atividade de urbanização executada sem autorização ou licença fica sujeita a embargo ou
demolição mediante processo administrativo ou judicial.
Art. 5º O Município poderá condicionar a licença para construir à existência ou à programação de equipamentos
urbanos e comunitários necessários.
Parágrafo único. A licença poderá ser outorgada, em condições especiais, se o interessado se responsabilizar pela
implantação dos referidos equipamentos.
Art. 6º Lei municipal definirá o tipo de uso, a taxa de ocupação e o índice de aproveitamento do terreno.
§ 1º A lei prevista neste artigo deverá atender às diretrizes fixadas em plano de uso do solo, aprovado pelo
Município.
§ 2º Enquanto o Município não aprovar a lei prevista neste artigo, o índice de aproveitamento máximo será de
uma vez a área do terreno.
Art. 7º A construção será averbada no Registro de Imóveis, mediante documento de aprovação da Prefeitura
Municipal no qual conste a taxa de ocupação do terreno e o respectivo índice de aproveitamento ou área total de
construção, previsto na lei municipal, e efetivamente utilizados.
§ 1º Fica vedado o desmembramento do terreno desde que a parte a ser desmembrada esteja vincula a construção
existente.
§ 2º A parte do terreno não vinculada a construção existente pode ser desmembrada, desde que, por si só, ou
reunida a outra de terreno contíguo, venha a constituir lote autônomo, de acordo com a legislação urbanística
municipal.
Art. 8º Lei municipal definirá o prazo de validade da licença para construir e os requisitos que caracterizam o
início, reinício e conclusão da obra.
Parágrafo único. Caso não iniciada a obra no prazo de validade da licença, sua renovação sujeitar-se-á aos
termos da legislação em vigor.
Art. 9º São nulas de pleno direito as licenças e autorizações expedidas em desconformidade com esta Lei e a
legislação pertinente, sujeitando-se as obras a embargo e demolição, mediante processo administrativo ou
judicial.
Art. 10. Lei municipal poderá autorizar o proprietário de terreno, considerado pelo Poder Público como de
interesse do patrimônio histórico, artístico, arqueológico e paisagístico, a exercer em outro local, ou alienar,
mediante escritura pública, o direito de construir previsto na legislação de uso do solo do Município e ainda não
utilizado.
Parágrafo único. A mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário que doar ao Poder Público seu imóvel,
ou parte dele, para fins de implantação de equipamentos urbanos e comunitários.
Art. 11. A lei municipal referida no artigo anterior estabelecerá os locais e as condições em que será possível a
transferência dos direitos de construir.
§ 1º A Prefeitura fornecerá certidão na qual constará o montante das áreas construíveis que poderá ser transferido
a outro imóvel, por inteiro ou fracionadamente.
180
§ 2º A certidão referida no parágrafo anterior bem como a escritura de transferência dos direitos de construir do
imóvel para outro serão averbadas nas respectivas matrículas.
CAPÍTULO III
Da Promoção do Desenvolvimento Urbano
Art. 13. A promoção do desenvolvimento urbano compete, precipuamente, ao Poder Público, mediante ação
integrada da União, dos Estados e dos Municípios, observado o disposto nesta Lei.
CAPÍTULO IV
Do Regime Urbanístico
SEÇÃO I
Dos Instrumentos do Desenvolvimento Urbano
SEÇÃO II
Do Planejamento Urbano
Art. 18. Os planos municipais de desenvolvimento urbano serão aprovados por lei e deverão atender às diretrizes
federais e estaduais.
182
Art. 19. Os órgãos e entidades federais, estaduais e municipais com atuação nas Regiões Metropolitanas deverão
compatibilizar sua atuação com os planos, diretrizes e prioridades do planejamento metropolitano.
Parágrafo único. No exercício do planejamento, a autoridade metropolitana ouvirá os órgãos e entidades federais,
estaduais e municipais com atuação na respectiva Região Metropolitana.
Art. 20. Os órgãos e entidades federais e estaduais com atuação nos Municípios que disponham de planos de
desenvolvimento urbano deverão compatibilizar sua atuação às diretrizes e prioridades neles estabelecidas, para
a localização e execução de seus projetos e atividades.
SEÇÃO III
Do Direito de Superfície
Art. 21. O proprietário urbano pode conceder a outrem o direito de construir em seu terreno, por tempo
determinado ou indeterminado, mediante escritura pública devidamente inscrita no Registro de Imóveis.
Art. 22. A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa; se onerosa, estipularão as partes a
forma de pagamento.
Art. 23. O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel.
Art. 24. A superfície pode transferir-se a terceiro e, por morte do superficiário, se transmite a seus herdeiros.
Parágrafo único. Não poderá ser estipulado, a nenhum título, o pagamento de qualquer quantia pela transferência
da superfície.
Art. 25. Em caso de alienação do imóvel ou da superfície, o superficiário ou o proprietário tem direito de
preferência, em igualdade de condições.
Art. 26. Antes do advento do termo, resolver-se-á a superfície se o superficiário der ao terreno destinação
diversa daquela para a qual lhe foi concedida.
Art. 27. Extinta a superfície, o proprietário passará a ter o domínio pleno sobre o terreno, construção e
benfeitorias, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário.
Art. 28. O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se por esta lei, no
que não for diversamente disciplinado em lei especial.
SEÇÃO IV
Do Parcelamento, da Edificação ou Utilização Compulsórios
Art. 29. Lei municipal, baseada em plano de uso do solo, para assegurar o aproveitamento de equipamento
urbano existente, poderá determinar o parcelamento, a edificação ou utilização compulsórios de terreno vago,
fixando as áreas, condições e prazos para sua execução.
§ 1º O prazo para início do parcelamento, da edificação ou da utilização não poderá ser inferior a 2 (dois) anos, a
contar da notificação ao proprietário.
§ 2º O proprietário será notificado pela Prefeitura para o cumprimento da obrigação, devendo a notificação ser
averbada no Registro de Imóveis.
Art. 30. A alienação do imóvel, posterior à data da notificação, não interrompe o prazo fixado para o
parcelamento, a edificação ou a utilização.
SEÇÃO V
Do Direito de Preempção
Art. 32. O direito de preempção confere ao Município preferência para aquisição de terreno urbano objeto de
alienação onerosa entre particulares.
Parágrafo único. Lei municipal, baseada em plano de uso do solo, delimitará as áreas em que incidirá o direito de
preempção e fixará o prazo de vigência, que não será superior a 10 (dez) anos.
Art. 33. O direito de preempção será exercido para atender às seguintes finalidades:
I – realização de programas habitacionais;
II – criação de áreas públicas de lazer;
III – implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
IV – constituição de reserva fundiária;
V – ordenação e direcionamento da expansão urbana;
VI – constituição de áreas de preservação ecológica ou paisagística;
VII – outras finalidades de interesse social ou utilidade pública.
Art. 34. O proprietário deverá notificar sua intenção de alienar o terreno, mencionando o preço desejado para
que o Município manifeste sua opção de compra, no prazo de 30 (trinta) dias. Transcorrido esse prazo, sem
manifestação, entende-se estar o Município desinteressado da aquisição, podendo o proprietário realizar
livremente a alienação.
§ 1º Caso o Município discorde do preço constante da notificação, e não entre em composição amigável com o
alienante, poderá requerer o arbitramento judicial na forma da lei civil.
§ 2º Realizado o arbitramento judicial, a parte que não concordar com o preço poderá desistir do negócio,
responsabilizando-se o Município pelo pagamento das custas.
§ 3º Se a desistência for do proprietário, este somente poderá realizar a alienação de acordo com o preço
arbitrado judicialmente, monetariamente corrigido, no prazo de um ano.
Art. 35. No arbitramento do preço não será considerada a valorização decorrente de investimentos públicos na
área, após a data de publicação da lei a que se refere o parágrafo único do art. 32.
Art. 36. A alienação efetuada em desacordo com os preceitos deste capítulo é nula de pleno direito.
CAPÍTULO V
Da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Art. 37. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU é o órgão de decisão superior para propor,
implementar e acompanhar a execução da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano.
Art. 38. Para os fins do que dispõe o art. 37, compete ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano –
CNDU:
I – propor diretrizes, estratégias, prioridades e instrumentos da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano;
II – propor programas anuais e plurianuais de investimentos urbanos e a programação do apoio financeiro oficial
ao desenvolvimento urbano, bem como de outros recursos destinados ao mesmo fim, a serem despendidos
diretamente pela União ou transferidos aos Estados, Distrito Federal e Municípios, especialmente os relativos à
habitação, saneamento, áreas industriais, transportes urbanos e administração metropolitana e municipal;
III – articular e compatibilizar as ações concernentes ao desenvolvimento urbano exercidas por órgãos ou
entidades integrantes da administração Federal, Estadual e Municipal, direta ou indireta, bem como das
fundações instituídas pelos poderes públicos;
IV – propor a legislação básica e complementar e expedir normas e diretrizes relativas ao desenvolvimento
urbano.
Art. 39. Ao Ministério do Interior cabe promover o cumprimento das diretrizes, estratégias, prioridades e
programas da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano.
184
CAPÍTULO VI
Disposições Gerais
Art. 40. Fica incluída, entre os serviços comuns de interesse metropolitano, nos termos do art. 5 º, item VII, da
Lei Complementar n° 14, de 8 de junho de 1973, a habitação.
Art. 41. Considera-se aglomeração urbana o conjunto formado pela contigüidade das áreas urbanas de dois ou
mais Municípios que demandem tratamento integrado de sua urbanização.
Art. 43. Para os fins desta Lei, equipara-se ao proprietário o compromissário comprador com título irretratável e
registrado no Registro de Imóveis.
Art. 44. Aplicam-se, no que couber, ao Distrito Federal e aos Territórios, as disposições desta Lei referentes aos
Estados e Municípios.
Art. 45. O Município poderá manter a delimitação de área urbana feita em lei municipal anterior à publicação
desta Lei, mesmo em desconformidade com o disposto no artigo 4º, caso em que não poderá ser expandida até
que se enquadre na exigência do referido artigo.
Art. 46. Na elaboração de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, o Poder Público facultará a
participação da comunidade.
Art. 47. A associação comunitária, regularmente constituída, será considerada parte legítima para propor ação
visando ao cumprimento dos preceitos desta Lei e das normas estaduais e municipais pertinentes.
Art. 48. O vizinho é parte legítima para propor ação destinada a impedir a ocupação ou o uso de imóvel em
desacordo com as normas urbanísticas.
Art. 49. O Ministério Público é parte legítima para propor ação visando ao cumprimento dos preceitos desta Lei
e das demais normas urbanísticas pertinentes.
§ 1º Quando a ação prevista neste artigo tiver por objeto a impugnação de um ato e da sua execução puder
resultar a ineficácia da medida, será determinada a suspensão liminar do ato.
§ 2º Qualquer pessoa poderá representar ao Ministério Público para promover a ação referida neste artigo.
Art. 50. Não será permitida a urbanização que impeça o livre e franco acesso público às praias e ao mar.
Art. 51. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.
185
ANEXO 4
1. Inclui, onde couber, no Capítulo I (Dos Direitos Individuais) do Título II (Dos Direitos e
Liberdades Fundamentais), os seguintes dispositivos:
“Art. _ Todo cidadão tem direito a condições de vida urbana digna e justiça social, obrigando-se o Estado a
assegurar:
I - Acesso à moradia, transporte público, saneamento, energia elétrica, iluminação pública,
comunicações, educação, saúde, lazer e segurança, assim como preservação do patrimônio ambiental e cultural.
II - A gestão democrática da cidade.
Art. _ O direito a condições de vida urbana digna condiciona o exercício do direito de propriedade ao interesse
social no uso dos imóveis urbanos e o subordina ao princípio do estado de necessidade.
Parágrafo único. É assegurado o amplo acesso da população às informações sobre planos de uso e
ocupação do solo e transporte e na gestão dos serviços públicos.
Art. _ A desapropriação da casa própria somente poderá ser feita em caso de evidente utilidade
pública, reconhecida em juízo, e mediante plena, integral e prévia indenização em
dinheiro, de cujo depósito dependerá também a imissão provisória na posse do bem.
Art. _ O poder público, respeitado o disposto no art. 5 o, pode desapropriar imóveis urbanos para fins de
interesse social, mediante o pagamento de indenização, em títulos da dívida pública resgatável em 20 anos. Essa
indenização será fixada até o montante cadastral do imóvel para fins tributários, descontada a valorização
decorrente de investimentos públicos.
§ 1o A declaração de interesse social para fins da Reforma Urbana opera automaticamente a
imissão do poder público na posse do imóvel, permitindo o registro da propriedade.
§ 2o Por interesse social entende-se a necessidade do imóvel para programas de moradia popular, para a
instalação de infra-estrutura, de equipamentos sociais e de transportes coletivos.
Art. _ A desapropriação dos imóveis necessários à regularização fundiária de áreas ocupadas por comunidades
consolidadas será feita considerando o valor histórico de aquisição do imóvel através de ação judicial, sujeita ao
procedimento ordinário, e cuja sentença, depois do trânsito em julgado, valerá como título para fins de registro
imobiliário.
Art. _ No cálculo da indenização pelo valor histórico não serão considerados os negócios que, envolvendo os
imóveis desapropriados sejam realizados subseqüentemente à data das primeiras ocupações da área.
Art. _ A valorização de imóveis urbanos que não decorra de investimentos realizados no próprio imóvel, mas
que seja proveniente de investimentos do poder público ou de terceiros poderá ser apropriada por via tributária
ou outros meios.
Art. _ É assegurada a iniciativa popular de leis no âmbito municipal, relativas à vida urbana,
mediante proposta articulada e justificada de cidadãos eleitores em número equivalente a 0,5% do colégio
eleitoral.
Art. _ Na falta da lei, que trata da questão urbana, para tornar eficaz uma norma constitucional, o Ministério
Público ou qualquer interessado pode requerer ao Judiciário que determine a aplicação direta da norma, ou se for
o caso, a sua regulamentação pelo Poder Legislativo.
Parágrafo único. A decisão favorável do Judiciário tem força de coisa julgada, a partir de sua publicação.
Art. _ O descumprimento dos preceitos estabelecidos neste capítulo sujeitará a administração pública à ação
própria, e implicará a responsabilidade penal e civil da autoridade a quem se possa imputar a omissão.”
187
2. Insere, onde couber, no Título VIII (Da Ordem Econômica e Financeira), os seguintes dispositivos:
“Art. _ O Poder Público assegurará a prevalência dos direitos urbanos, através da utilização dos seguintes
instrumentos:
I - Imposto progressivo sobre imóveis;
II - Impostos sobre a valorização imobiliária;
III - Direito de preferência na aquisição de imóveis urbanos;
IV - Desapropriação por interesse social ou utilidade pública;
V - Discriminação de terras públicas;
VI - Tombamento de imóveis;
VII - Regime especial de proteção urbanística e preservação ambiental;
VIII - Concessão de direito real de uso;
IX - Parcelamento e edificação compulsórios.
Parágrafo único. O imposto progressivo, o imposto sobre a valorização imobiliária e a
edificação compulsória não poderão incidir sobre terreno até 300m2, destinado à moradia do proprietário.
Art. _ O direito de propriedade territorial urbana não pressupõe o direito de construir, que deverá ser autorizado
pelo poder público municipal.
Art. _ Cabe ao poder público municipal exigir que o proprietário do solo urbano ocioso ou
subutilizado promova seu adequado aproveitamento sob pena de submeter-se à tributação progressiva
em relação ao tempo e à extensão da propriedade, sujeitar-se à desapropriação por interesse social ou ao
parcelamento e edificação compulsórios.
Art. _ À União, aos Estados e aos Municípios, visando ao interesse social, cabem obrigatoriamente
adotar as medidas administrativas necessárias à identificação e recuperação de terras públicas e à
discriminação das terras devolutas, sendo garantida a participação das representações sindicais e associativas.
Art. _ No exercício dos direitos urbanos consagrados no primeiro artigo, todo cidadão que,
não sendo proprietário urbano, detiver a posse não contestada, por três anos, de terras públicas
ou privadas, cuja metragem será definida pelo Poder Municipal até o limite de 300m2, utilizando-a para sua
moradia e de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, independente de justo título e boa fé.
§ 1o. O direito de usucapião urbano não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 2o. Os terrenos contínuos ocupados por dois ou mais possuidores são suscetíveis de serem usucapidos
coletivamente através de entidade comunitária e obedecerá a procedimento sumaríssimo.
§ 3o. Ao ser proposta ação de usucapião urbano, ficarão suspensas e proibidas quaisquer ações
reivindicatórias ou possessórias sobre o imóvel usucapido.
Art. _ Para assegurar a todos os cidadãos o direito à moradia, fica o poder público obrigado a formular políticas
habitacionais que permitam:
I - regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas em regime de posse ou em condições de sub-
habitação;
II - acesso a programas públicos de habitação de aluguel ou a financiamento público para aquisição ou
construção de habitação própria;
II - regulação do mercado imobiliário urbano e proteção do inquilinato, com a fixação de limite máximo para o
valor inicial dos aluguéis residenciais;
IV - assessoria técnica à construção da casa própria.
Art. _ Compete ao poder público garantir a destinação de recursos orçamentários a fundo perdido
para a implantação de habitação de interesse social.
Parágrafo único. É proibida a aplicação de recursos públicos ou sob administração pública para financiar
investimentos privados assim como a intermediação financeira na obtenção e transferência de recursos
destinados a programa de habitação de interesse social.
Art. _ Lei Federal disporá sobre a criação e a manutenção de agência que coordenará as políticas gerais de
habitação.
§ 1o As políticas e projetos habitacionais serão implementadas pelo Município de forma
descentralizada, cabendo o controle direto da aplicação dos recursos à população, através de suas entidades
representativas.
188
§ 2o Nas aplicações para compra ou construção de habitação popular não haverá qualquer incidência de
encargos financeiros.
§ 3o Os contratos de compra, venda, cessão e aluguel de imóveis urbanos terão seu
pagamento e forma de reajuste fixados em moeda corrente, sendo vedado o uso de qualquer moeda fiscal ou
cambial.
§ 4o As prestações mensais referentes a empréstimos para a compra ou construção de habitação própria não
poderão comprometer mais de 20% dos rendimentos familiares.
Art. _ Os índices de reajuste do aluguel residencial e do pagamento das prestações e os débitos de financiamento
dos imóveis serão atualizados com periodicidade mínima de 12 (doze)
meses, tendo como limite máximo o índice de variação salarial.
Art. _ A prestação dos serviços públicos é monopólio do poder público e será realizada através da administração
direta e indireta.
Parágrafo único. Lei ordinária regulamentará o disposto neste artigo, ficando desde já vedado
todo e qualquer uso de recursos públicos para subsidiar serviços públicos operados pela iniciativa privada.
Art. _ As tarifas dos serviços de transportes coletivos urbanos serão fixadas de modo que a despesa dos usuários
não ultrapasse 6% do salário mínimo mensal.
§ 1o Lei ordinária disporá sobre a criação de um fundo de transportes, administrado pelos
municípios e Estado, para cobertura da diferença entre o custo do transporte e o valor da tarifa paga pelo usuário.
§ 2o No reajuste de tarifas de serviços públicos será observada a autorização legislativa
e garantida a ampla divulgação dos elementos inerentes ao cálculo tarifário.
ANEXO 5
TÍTULO I
Princípios e Objetivos
CAPÍTULO I
Definições
Art. 1º A política de desenvolvimento urbano de que trata o artigo 182 da Constituição Federal será orientada
pelas diretrizes e demais dispositivos constantes desta lei de Política Urbana.
Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta lei será denominada Estatuto da Cidade.
Art. 2º Entende-se por Política Urbana o conjunto de princípios e ações que tenham como objetivo assegurar a
todos o direito à cidade e a interação desta com o ambiente rural.
Art. 3º Entende-se como garantia do direito à cidade o conjunto de medidas que promovam a melhoria da
qualidade de vida, mediante a adequada ordenação do espaço urbano e a fruição dos bens, serviços e
equipamentos comunitários por todos os habitantes da cidade.
Art. 4º Entende-se por urbanismo o conjunto de ações promotoras e corretoras da organização do espaço urbano
de modo a permitir sua adequada fruição pelo homem, preservando-o do processo de espoliação urbana.
Art. 5º Entende-se por direito urbanístico o conjunto de preceitos que disciplinam ou limitam o uso da
propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos.
CAPÍTULO II
Função Social da Propriedade
Art. 7º A propriedade imobiliária urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais do
Plano Diretor, em especial:
I – democratização das oportunidades de acesso à propriedade urbana e à moradia;
II – justa distribuição dos benefícios e ônus do processo de urbanização;
III – ajustamento da valorização da propriedade urbana às exigências sociais;
IV – correção das distorções de valorização do solo urbano;
V – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda;
VI – adequação do direito de construir às normas urbanísticas, aos interesses sociais e aos padrões mínimos de
construção estabelecidos nesta lei.
IV – construção ou reconversão que impliquem a venda ou locação de habitações para população de baixa renda
com padrões inferiores aos estabelecidos no art. 41, XIV, desta Lei.
V – posse ou domínio de área urbana excedente ao máximo fixado em módulos pelo Plano Diretor.
Art. 9º O desrespeito à função social da propriedade, conforme definido no artigo anterior, será punido pelo
Poder Público Municipal mediante a aplicação sucessiva dos instrumentos enunciados nos arts. 20 a 22 desta lei.
TÍTULO II
Da Política Urbana
CAPÍTULO I
Diretrizes Gerais
Art. 10. A Política Urbana deverá ser orientada pelas seguintes diretrizes gerais:
I – gestão democrática e incentivo à participação popular na formulação e execução de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano, como forma reconhecida do exercício da cidadania;
II – participação dos agentes econômicos públicos e privados na urbanização, em atendimento ao interesse
social;
III – planejamento da ordenação e expansão dos núcleos urbanos e adequada distribuição espacial da população
e das atividades econômicas, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano;
IV – oferta de equipamentos urbanos e comunitários adequados às características sócio-econômicas locais e aos
interesses e necessidades da população;
V – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:
a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;
c) adensamentos inadequados à infra-estrutura urbana e aos equipamentos urbanos e comunitários, existentes ou
previstos;
d) a ociosidade do solo urbano edificável;
e) a deterioração das áreas urbanizadas;
f) a especulação imobiliária;
g) a ocorrência de desastres naturais.
VI – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais;
VII – adequação dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, notadamente quanto ao sistema
viário, transportes, habitação e saneamento, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar social
geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais;
VIII – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização dos imóveis
urbanos;
IX – adequação dos instrumentos de política fiscal e financeira aos objetivos do desenvolvimento urbano;
X – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído;
XI – proteção, preservação e recuperação do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;
XII – cumprimento da função social da propriedade imobiliária, prevalecente sobre o exercício do direito de
propriedade individual ou coletivo.
CAPÍTULO II
Políticas Setoriais
Art. 11. A Política Urbana no âmbito municipal constitui sistema integrado de políticas setoriais que
disciplinam:
I – a ordenação do território;
II – o controle do uso do solo;
III – a participação comunitária e a contribuição social;
IV – o desfavelamento.
Art. 12. A política de ordenação do território engloba o conjunto de ações públicas e privadas sobre:
I – os aspectos funcionais, morfológicos, construtivos, sanitários e ambientais da cidade;
II – a integração cidade/campo;
III – o zoneamento;
IV – a oferta de equipamentos urbanos e comunitários, inclusive os de habitação, saneamento e transportes;
V – a correção das distorções do crescimento urbano;
VI – a escolha de eixos naturais de expansão urbana;
192
Art. 14. A política de participação comunitária e de contribuição social tem por objetivo assegurar aos
moradores da cidade o controle sobre a gerência dos espaços urbanos e a justa repartição dos custos e benefícios
do processo de urbanização.
CAPÍTULO III
Instrumentos da Política de Desenvolvimento Urbano
Art. 16. Para assegurar o direito à cidade e sua gestão democrática, bem como corrigir distorções no consumo de
bens comunais, o Poder Público utilizará os seguintes instrumentos:
I – fiscais:
a) Imposto Predial e Territorial Urbano, progressivo e regressivo;
b) taxas e tarifas diferenciadas;
c) incentivos e benefícios fiscais;
II – financeiros e econômicos:
a) fundos especiais;
b) tarifas diversificadas de serviços públicos;
c) co-responsabilização dos agentes econômicos;
III – jurídicos:
a) edificação compulsória;
b) obrigação de parcelamento ou remembramento;
c) desapropriação;
d) servidão administrativa;
e) limitação administrativa;
f) tombamento;
g) direito real de concessão de uso;
h) direito de preempção;
i) direito de superfície;
j) usucapião especial.
IV – administrativos:
a) reserva de áreas para utilização pública;
b) regularização fundiária;
c) licença para construir, apoiada em código de obras e edificações;
d) autorização para parcelamento, desmembramento ou remembramento do solo para fins urbanos, em
observância ao Plano Diretor;
V – políticos:
193
Art. 17. O imposto predial e territorial urbano será progressivo e regressivo e não terá caráter expropriatório,
mas guardará proporcionalidade capaz de produzir o efeito de conversão social do direito de propriedade urbana.
Art. 18. Os tributos sobre imóveis urbanos poderão ter alíquotas menores em beneficio dos proprietários de
habitações em áreas de expansão urbana, de trabalhadores de baixa renda ou de proprietários de única moradia
com padrões mínimos de construção.
Art. 19. O município promoverá a recuperação dos investimentos públicos, diretamente dos proprietários de
imóveis urbanos, mediante contribuição de melhoria e outras cobranças que o Plano Diretor determinar.
Art. 20. Mediante lei, baseada no Plano Diretor, o Poder Público poderá determinar o parcelamento, a edificação
ou utilização compulsória do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as
condições e prazos para a sua execução.
§ 1º O prazo para parcelamento, edificação ou utilização não poderá ser superior a dois anos a partir da
notificação, salvo para obras de grande porte, sendo de um ano, em todos os casos, o prazo para início das obras.
§ 2º O proprietário será notificado pela Prefeitura para o cumprimento da obrigação, devendo a notificação ser
averbada no Registro de Imóveis.
Art. 21. A alienação do imóvel, posterior à data da notificação, transfere ao adquirente ou promissário
comprador as obrigações de parcelamento, edificação ou utilização previstas no art. 20.
Art. 22.O não cumprimento da obrigação de parcelar, edificar ou utilizar possibilitará ao município a aplicação
do imposto territorial urbano progressivo, cujo termo inicial será a data da notificação referida no § 2º do art. 20,
pelo prazo máximo de cinco anos.
Art. 23. Decorridos cinco anos de cobrança do imposto territorial progressivo sem que o proprietário tenha
cumprido as obrigações previstas no art. 20, o município determinará sua desapropriação, com pagamento em
títulos públicos de valor real.
§ 1º Os títulos da divida pública terão prévia aprovação pelo Senado Federal e serão resgatados no prazo de dez
anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas, e não terão poder liberatório para pagamento de tributos e tarifas
públicas;
§ 2º O valor real da indenização será sempre reconhecido pelo proprietário como base de cálculo do IPTU ou
ITR, conforme o caso.
Art. 24. O direito de preempção confere ao Poder Público Municipal preferência para aquisição de terreno
urbano objeto de alienação onerosa entre particulares.
Parágrafo único. Lei municipal, baseada no Plano Diretor, delimitará as áreas em que incidirá o direito de
preempção e fixará o prazo de vigência, que não será superior a dez anos.
Art. 25. O direito de preempção será exercido sempre que o Poder Público necessitar de áreas para:
I – execução de programas habitacionais;
II – criação de espaços públicos de lazer;
III – implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
IV – constituição de reserva fundiária;
V – ordenação e direcionamento da expansão urbana;
VI – criação de áreas de preservação ambiental ou paisagística;
VII – outras finalidades de interesse social ou de utilidade pública, definidas no Plano Diretor.
Art. 26. O proprietário deverá notificar sua intenção de alienar o terreno, indicando o preço desejado, para que o
município, no prazo de trinta dias, manifeste seu interesse em comprá-lo. Transcorrido esse prazo sem
manifestação, fica o proprietário tacitamente autorizado a realizar a alienação.
§ 1º Se o município discordar do preço constante da notificação, poderá requerer o arbitramento judicial, na
forma da lei civil;
194
§ 2º No arbitramento do preço será descontada a valorização decorrente de investimentos públicos na área, após
a data de publicação da lei a que se refere o parágrafo único do art. 24.
Art. 27. O proprietário urbano pode conceder a outro o direito de construir em seu terreno, por tempo
determinado ou indeterminado, mediante escritura pública devidamente inscrita no Registro de Imóveis.
Art. 29. O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel, proporcionais à
ocupação.
Art. 30. A superfície só pode ser transmitida a herdeiros, gratuitamente, por morte do superficiário.
Art. 32. Extingue-se a superfície, antes de seu prazo final, se o superficiário der ao imóvel destinação diversa da
pactuada.
Parágrafo único. Extinta a superfície, o proprietário passará a ter o domínio pleno sobre o imóvel, realizadas as
compensações que a lei prevê.
Art. 33. A usucapião especial de que trata o art. 183 da Constituição Federal não incidirá nas áreas de domínio
público, nas de preservação ambiental e naquelas em que o Plano Diretor assim determinar.
Art. 34. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por populações de
baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, podem ser usucapidas
coletivamente, desde que os posseiros não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Art. 35. A formação de estoque de terrenos edificáveis, de que trata o art. 16, inciso IV, letra a, far-se-á
mediante:
I – reserva de áreas, na forma do art. 41, inciso XVI;
II – preempção e desapropriações, inclusive a especial, previstas no art. 23;
III – doações em favor do Município, compras e outras formas admitidas em lei.
Art. 36. O Poder Executivo municipal instituirá estrutura administrativa para o sistema de planejamento urbano
local, com nível hierárquico capaz de assegurar a elaboração, implementação, fiscalização e avaliação do Plano
Diretor e a institucionalização do planejamento urbano como processo permanente.
§ 1º Compete ao sistema de planejamento urbano local, assegurada a participação das entidades legitimamente
representativas da população, definir e avaliar permanentemente as necessidades das comunidades locais em
relação aos equipamentos urbanos e comunitários.
§ 2º O Poder Executivo municipal manterá permanentemente disponíveis, a qualquer cidadão, todas as
informações pertinentes ao sistema de planejamento urbano local.
Art. 37. Durante o período de elaboração de programas de uso do solo ou de criação de área especial, o
Município poderá suspender a concessão de licença ou autorização, até três meses por decreto e até um ano
mediante lei.
CAPÍTULO IV
Plano Diretor
Art. 38. As cidades com mais de vinte mil habitantes terão obrigatoriamente Plano Diretor, instrumento básico
de aplicação local das diretrizes gerais da Política Urbana.
Art. 39. O Plano Diretor utilizará os instrumentos estatuídos nesta Lei para regular os processos de produção,
reprodução e uso do espaço urbano.
Art. 40. O processo de elaboração do Plano Diretor contemplará as seguintes etapas sucessivas:
I – definição dos problemas prioritários do desenvolvimento urbano local e dos objetivos e diretrizes para o seu
tratamento;
II – definição dos programas, normas e projetos a serem elaborados e implementados.
Parágrafo único. Aplica-se, para cada uma das etapas, o disposto no art. 48.
195
Art. 41. O Plano Diretor terá, devidamente adaptadas às peculiaridades locais, as seguintes diretrizes essenciais:
I – discriminar e delimitar as áreas urbanas e rurais;
II – definir as áreas urbanas e de expansão urbana, com vistas à localização da população e de suas atividades
num período subseqüente de dez anos;
III – vedar o parcelamento, para fins urbanos, nas áreas rurais;
IV – exigir que os projetos de conversão de áreas rurais em urbanas, na forma do Estatuto da Terra, sejam
previamente submetidos ao governo municipal e analisados à luz do Plano Diretor;
V – designar as unidades de conservação ambiental e outras áreas protegidas por lei, discriminando as de
preservação permanente, situadas na orla dos cursos d’água ou dos lagos, nas nascentes permanentes ou
temporárias, nas encostas, nas bordas de tabuleiros ou chapadas, e ainda nas áreas de drenagem das captações
utilizadas ou reservadas para fins de abastecimento de água potável e estabelecendo suas condições de utilização;
VI – exigir, para a aprovação de quaisquer projetos de mudança de uso do solo, alteração de índices de
aproveitamento, parcelamentos, remembramentos ou desmembramentos, prévia avaliação dos órgãos
competentes do Poder Público;
VII – exigir, para o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, a elaboração de estudo de
impacto ambiental e do respectivo relatório de impacto ambiental (Rima), bem como sua aprovação pelos órgãos
competentes do Poder Público, observada a legislação especifica;
VIII – regular a licença para construir, condicionando-a, no caso de grandes empreendimentos habitacionais,
industriais ou comerciais, à existência ou à programação de equipamentos urbanos e comunitários necessários
ou, ainda, ao compromisso de sua implantação pelos empresários interessados, no prazo máximo de dois anos;
IX – estabelecer a compensação ao proprietário de imóvel considerado pelo Poder Público como de interesse do
patrimônio natural, histórico, arqueológico, artístico ou paisagístico;
X – fixar os critérios para a efetivação de operações urbanas com vistas à permuta, pelo Poder Público com os
agentes privados, de usos ou índices de aproveitamento pela realização de obras públicas e execução de
equipamentos urbanos e comunitários,
XI – definir os critérios para autorização de parcelamento, desmembramento ou remembramento do solo para
fins urbanos;
XII – definir os critérios para autorização de implantação de equipamentos urbanos e comunitários e definir sua
forma de gestão;
XIII – definir tipo de uso, percentual de ocupação e índice de aproveitamento dos terrenos nas diversas áreas;
XIV –vedar a construção de moradias cujas áreas úteis não permitam o desenvolvimento condigno das atividades
familiares e que não sejam dotadas do equipamento sanitário mínimo para uma família de um casal e dois filhos,
bem como não sejam ligadas à rede de energia elétrica;
XV – estabelecer a qualificação dos agentes produtivos, encarregados das obras e, no caso de imóveis para
venda, os parâmetros de remuneração dos fatores, de modo a permitir:
a) fixação do prazo de cada obra, para obter a maior economicidade;
b) observância dos cronogramas da construção e de seus objetivos;
c) justo preço.
XVI – fixar limites mínimos e máximos para a reserva, pelo Poder Público, de áreas destinadas à ordenação do
território, à implantação dos equipamentos urbanos e comunitários, de acesso à moradia e nos projetos de
incorporação de novas áreas à estrutura urbana, imitindo-se o município em sua posse imediata;
XVII – vedar a construção de novas moradias em:
a) áreas de saturação urbana;
b) áreas de risco sanitário ou ambiental;
c) áreas reservadas para fins especiais;
d) áreas históricas ou naturais em deterioração ou impróprias para tal uso;
XVIII – implantar a unificação das bases cadastrais do município, de acordo com as normas estatísticas federais,
de modo a obter um referencial para fixação de tributos e ordenação do território.
Parágrafo único. Enquanto não for aprovado o Plano Diretor, o índice de aproveitamento máximo para
construção será de uma vez a área do terreno.
Art. 42. Para um melhor ordenamento da ocupação do território, o município poderá estabelecer, no Plano
Diretor, áreas especiais de:
I – urbanização preferencial;
II – renovação urbana;
III – urbanização restrita;
IV – regularização fundiária.
Art. 44. São áreas de renovação urbana as que se destinam à melhoria de condições urbanas deterioradas ou à
sua adequação às funções previstas no Plano Diretor.
Art. 45. São áreas de urbanização restrita as que apresentam uma, ou mais, das seguintes características:
I – vulnerabilidade a intempéries, calamidades e outras condições adversas, como deslocamentos geológicos e
movimentos aquáticos;
II – necessidade de preservação do patrimônio cultural, histórico, artístico, arqueológico e paisagístico;
III – necessidade de proteção aos mananciais, às praias e regiões lacustres e às margens de rios;
IV – necessidade de defesa do ambiente natural;
V – conveniência de conter os níveis de ocupação da área;
VI – implantação e operação de equipamentos de grande porte.
Art. 46. São áreas de regularização fundiária as habitadas por população de baixa renda e que devam, no
interesse social, ser objeto de ações visando à legalização da ocupação do solo e à regulamentação específica das
atividades urbanísticas, bem como da implantação prioritária de equipamentos urbanos e comunitários.
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§ 1º Áreas públicas ocupadas há mais de dois anos por moradores não-proprietários de terreno ou habitação na
área do município, serão a eles transferidas para construção de moradia, respeitadas as exigências ambientais e
outras do Plano Diretor, inclusive com cláusula de inalienabilidade.
§ 2o O Poder Público agilizará os processos de transmissão legal dos atuais imóveis ocupados irregularmente,
pertencentes a proprietários privados.
§ 3º Será dada preferência, em qualquer caso, à regularização por meio de projetos integrados de vivência
urbana.
Art. 47. O Plano Diretor e os planos municipais de desenvolvimento serão elaborados pelo Poder Executivo do
Município e submetidos à apreciação da Câmara dos Vereadores, que os aprovará pelo voto de 2/3 de seus
membros, só podendo modificá-los com o mesmo quorum.
Art. 48. Na elaboração do Plano Diretor e dos programas e projetos dele decorrentes, o Poder Público
assegurará, mediante, inclusive, audiência pública, a ampla participação da população, por meio de associações
comunitárias, entidades profissionais, diretórios de partidos políticos, sindicatos e outras representações locais.
Art. 49. Será assegurada a participação popular, também, na discussão de projetos de impacto urbano e
ambiental e nos conselhos que se instituírem para fiscalizar a atuação das entidades municipais gestoras de
serviços públicos e equipamentos urbanos e comunitários.
Art. 50. Até a aprovação do Plano Diretor dependerão de leis a serem aprovadas pelo voto de 2/3 dos membros
da Câmara de Vereadores:
I – alterações de uso de solo nas áreas já parceladas;
II – criação de novas áreas de expansão urbana;
III – incorporação de novas áreas urbanas;
IV – projetos que, por sua dimensão e natureza, acarretem alterações significativas no espaço urbano.
Parágrafo único. Os municípios terão prazo de dois anos, a partir da promulgação desta Lei, para aprovar o
respectivo Plano Diretor.
Art. 51. O Prefeito Municipal responderá, pessoalmente, pelas distorções na aplicação do Plano Diretor, na
forma das leis penal e civil, inclusive por crime de responsabilidade.
Art. 52. Cabe ação de reclamação de direito, no exercício da cidadania, a qualquer munícipe ou suas
organizações de base, que se sentirem prejudicados por procedimentos que considerem danosos aos interesses
sócio-comunitários.
CAPÍTULO V
Equipamentos Urbanos e Comunitários
Art. 53. Constituem equipamentos urbanos e comunitários, para os efeitos desta Lei, os bens e meios destinados
a habitação, saneamento, transporte urbano, circulação, educação, saúde, consumo coletivo, segurança e lazer.
Art. 54. A União criará uma agência social de habitação, para gerenciar a política habitacional, com as
atribuições específicas de:
I – administrar contribuições públicas e privadas, de qualquer natureza, para os programas habitacionais;
II – definir prioridades de alocação de recursos bem como normas para sua aplicação em programas regionais e
locais de construção de moradia e outros equipamentos urbanos;
III – realizar estudos e oferecer aporte técnico aos programas habitacionais, quanto a materiais de construção e
outros insumos e economias de produção, necessários a tornar mais acessíveis os bens urbanos;
IV – eleger, designar e articular os agentes operadores do sistema habitacional, assegurando prioridade, nesta
ordem, a:
a) instituições estaduais ou municipais de habitação, bem como fundações;
b) cooperativas habitacionais e associações de moradores;
c) outras formas coletivas de construção;
d) empresas privadas, sob forma de administração de serviço;
V – gerenciar o Programa Nacional de Habitação Popular.
Parágrafo único. A agência social de habitação fixará contribuição compulsória com base nos lucros das
empresas, relativa a seus empregados, não proprietários de imóvel, podendo aplicá-los, quando necessário, a
fundo perdido, no Programa Nacional de Habitação Popular.
198
Art. 55. O município organizará e explorará o serviço de transporte urbano, conforme estabelece o art. 30, V, da
Constituição Federal, devendo para tanto:
I – instituir gerenciamento do sistema;
II – contratar, se conveniente, empresas operadoras, mediante remuneração baseada na quilometragem rodada;
III – instituir mecanismos que assegurem a reposição periódica da frota;
IV – assegurar gestão democrática do sistema, mediante participação comunitária no planejamento e no controle;
V – exigir participação das empresas na cobertura dos custos de manutenção do sistema;
VI – isentar empresas que mantenham serviço próprio de transporte coletivo que atenda às necessidades de
deslocamentos de seus trabalhadores;
VII – promover a integração dos diferentes meios de transporte, definindo as prioridades, a seleção de vias e as
economias de operação.
CAPÍTULO VI
Regiões Metropolitanas e Aglomerações Urbanas
Art. 56. Os Estados, mediante lei complementar à respectiva Constituição, instituirão regiões metropolitanas e
aglomerações urbanas, no âmbito de seu território, com vistas à realização do planejamento integrado, disciplina
do uso do solo e execução de funções públicas de interesse comum.
Art. 57. As regiões metropolitanas serão constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, um dos quais
será designado como Município Metropolitano e coordenará as ações administrativas, o planejamento conjunto e
a canalização dos recursos para os programas de interesse comum.
Art. 58. A região metropolitana será dirigida pelo Prefeito do Município Metropolitano, apoiado em decisões de
um Conselho Deliberativo, composto por delegados eleitos pelos municípios componentes.
Parágrafo único. As decisões do Conselho Deliberativo terão força dispositiva às unidades agregadas, no âmbito
de ação das organizações supramunicipais.
Art. 59. Os municípios membros das regiões metropolitanas ratearão, entre si, os custos de manutenção de seus
escritórios, na base de orçamento trimestral, apresentado pelo Prefeito e aprovado pelo Conselho Deliberativo.
Art. 60. A lei estadual de que trata o art. 54 acima incluirá, entre as funções das regiões metropolitanas, as
seguintes:
I – organização e estrutura de operação do agrupamento;
II – planejamento das atividades de interesse comum, tais como:
a) construção e operação de usinas elétricas;
b) abastecimento d’água e tratamento de detritos;
c) estradas vicinais e ligações ao sistema viário de maior porte;
d) transporte de pessoal e de cargas, de interesse intra-regional;
e) equipamentos comunitários de uso intermunicipal;
f) lazer e outras criações culturais;
III – planejamento conjunto do destino de bens comuns aos municípios limítrofes, como:
a) rios e outros cursos d’água;
b) recursos naturais renováveis;
c) sistema escolar e de saúde que extravase as fronteiras de um município;
d) outras dotações físicas, econômicas e culturais que sirvam a mais de uma comunidade urbana;
IV – gestão administrativa e financeira do conglomerado, esquema participativo das unidades e compromisso
irretratável de ação conjunta;
V – sistema de alocação de recursos coletivos e de prestação de contas.
Art. 61. A adesão do município à região metropolitana será autorizada pela Câmara de Vereadores de cada
unidade e implica:
I – compromisso de execução de sua parcela no planejamento conjunto e observância das prioridades aprovadas
por maioria do Conselho;
II – cooperação na escolha de prioridades, considerado o interesse público comum como prevalente sobre o
local;
III – contribuição para cobertura dos gastos comuns com o planejamento e assistência técnica.
Parágrafo único. A adesão do município é irretratável, pelo prazo do consórcio, e só pode ser revogada pelo voto
da Câmara Municipal, observado o mesmo quorum que autorizou a participação.
199
Art. 62. Aplicam-se às aglomerações urbanas, no que couber, os dispositivos sobre regiões metropolitanas.
Art. 63. Haverá obrigatória e significativa participação popular nos organismos gestores das regiões
metropolitanas e aglomerações urbanas, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno
exercício da cidadania.
TÍTULO III
Disposições Gerais
CAPÍTULO I
Do Conselho Nacional de Política Urbana
Art. 64. Fica o Poder Executivo autorizado a transformar o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano em
novo organismo, denominado Conselho Nacional de Política Urbana, com o objetivo de propor diretrizes de
política urbana e gerir o sistema nacional de cidades.
Art. 65. Para os fins de que trata o art. 64 desta Lei, o CNPU deverá:
I – manter estudos permanentes sobre o processo de urbanização, inclusive migrações internas;
II – acompanhar e avaliar a execução dos programas setoriais da agência social de habitação e, no que couber,
dos programas de saneamento, transporte urbano e meio ambiente;
III – efetuar estudos de tipologia urbana;
IV – sugerir aos Estados e Municípios instrumental de Política Urbana, a ser aplicado no âmbito de sua
competência constitucional;
V – coordenar as ações dos Poderes Federal, Estaduais e Municipais, de âmbito supraregional ou local;
VI – rever, periodicamente, as diretrizes federais de Política Urbana e propor as reformulações necessárias;
VII – incentivar, promover e apoiar a pesquisa cientifica e tecnológica sobre os processos de desenvolvimento
urbano.
Parágrafo único. As atuais competências, atribuição e prerrogativas do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Urbano, ressalvadas as que contrariarem, no todo ou em parte, as disposições constitucionais vigentes, passarão à
órbita do Conselho de que trata o art. 64 acima.
Art. 66. Os recursos atualmente destinados ao CNDU passarão a integrar as dotações do CNPU.
Art. 67. É assegurada a participação popular no CNPU, por meio de delegados eleitos pelas associações
nacionais de representação de moradores e de entidades profissionais e de trabalhadores vinculadas à área, além
de representantes do empresariado urbano e do poder público, obedecidos aos seguintes critérios:
I – um terço dos membros constituirá a representação popular:
II – um terço dos membros representará o empresariado urbano;
III – um terço dos membros representará o Poder Público.
Parágrafo único. Todos os membros terão igualdade de voz e voto, e as decisões serão tomadas por maioria
qualificada.
Art. 68. O CNPU realizará estudos econômicos e sociológicos, referentes à remuneração dos fatores envolvidos
na indústria de construção civil, de modo a determinar parâmetros de renda imobiliária e de alienação de imóveis
urbanos.
Art. 69. Caberá igualmente ao CNPU emitir diretrizes gerais que orientem a fixação dos parâmetros de valores,
para fins tributários e a formação do preço de renovação das locações, com o objetivo de contrapor-se à
especulação imobiliária e outras formas de perversão das relações sociais de habitação.
CAPÍTULO II
Disposições Finais
Art. 70. Ficam revigorados no que não contrariarem os princípios da Constituição Federal e as diretrizes desta
Lei, os dispositivos referentes ao planejamento e gestão das atividades urbanas, notadamente a Lei nº 6.766, de
19 de dezembro de 1989 e a Lei nº 6.803, de 2 de julho de 1980.
ANEXO 6
Estatuto da Cidade
(Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001)
201
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
CAPÍTULO I
Diretrizes Gerais
Art. 1º Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o
previsto nesta Lei.
Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem
pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do
bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes
e futuras gerações;
II - gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários
segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de
desenvolvimento urbano;
III - cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de
urbanização, em atendimento ao interesse social;
IV - planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades
econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do
crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;
V - oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e
necessidades da população e às características locais;
VI - ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:
a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;
c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana;
d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a
previsão da infra-estrutura correspondente;
e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização;
f) a deterioração das áreas urbanizadas;
g) a poluição e a degradação ambiental;
VII - integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento
socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência;
VIII - adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os
limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência;
IX - justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;
X - adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos
do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos
bens pelos diferentes segmentos sociais;
XI - recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos;
XII - proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural,
histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;
XIII - audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de
empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou
construído, o conforto ou a segurança da população;
XIV - regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o
estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a
situação socioeconômica da população e as normas ambientais;
202
XV - simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a
permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais;
XVI - isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades
relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social.
CAPÍTULO II
Dos Instrumentos da Política Urbana
Seção I
Dos instrumentos em geral
Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:
I - planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;
II - planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões;
III - planejamento municipal, em especial:
a) plano diretor;
b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;
c) zoneamento ambiental;
d) plano plurianual;
e) diretrizes orçamentárias e orçamento anual;
f) gestão orçamentária participativa;
g) planos, programas e projetos setoriais;
h) planos de desenvolvimento econômico e social;
IV - institutos tributários e financeiros:
a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU;
b) contribuição de melhoria;
c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros;
V - institutos jurídicos e políticos:
a) desapropriação;
b) servidão administrativa;
c) limitações administrativas;
d) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano;
e) instituição de unidades de conservação;
f) instituição de zonas especiais de interesse social;
g) concessão de direito real de uso;
h) concessão de uso especial para fins de moradia;
i) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;
j) usucapião especial de imóvel urbano;
l) direito de superfície;
m) direito de preempção;
n) outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso;
o) transferência do direito de construir;
p) operações urbanas consorciadas;
q) regularização fundiária;
r) assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e grupos sociais menos favorecidos;
s) referendo popular e plebiscito;
VI - estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV).
203
§ 1º Os instrumentos mencionados neste artigo regem-se pela legislação que lhes é própria, observado o disposto
nesta Lei.
§ 2º Nos casos de programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos por órgãos ou entidades
da Administração Pública com atuação específica nessa área, a concessão de direito real de uso de imóveis
públicos poderá ser contratada coletivamente.
§ 3º Os instrumentos previstos neste artigo que demandam dispêndio de recursos por parte do Poder Público
municipal devem ser objeto de controle social, garantida a participação de comunidades, movimentos e entidades
da sociedade civil.
Seção II
Do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios
Art. 5º Lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá determinar o parcelamento, a
edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo
fixar as condições e os prazos para implementação da referida obrigação.
1° Considera-se subutilizado o imóvel:
I - cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente;
II - (VETADO)
§ 2º O proprietário será notificado pelo Poder Executivo municipal para o cumprimento da obrigação, devendo a
notificação ser averbada no cartório de registro de imóveis.
§ 3º A notificação far-se-á:
I - por funcionário do órgão competente do Poder Público municipal, ao proprietário do imóvel ou, no caso de
este ser pessoa jurídica, a quem tenha poderes de gerência geral ou administração;
II - por edital quando frustrada, por três vezes, a tentativa de notificação na forma prevista pelo inciso I.
§ 4º Os prazos a que se refere o caput não poderão ser inferiores a:
I - um ano, a partir da notificação, para que seja protocolado o projeto no órgão municipal competente;
II - dois anos, a partir da aprovação do projeto, para iniciar as obras do empreendimento.
§ 5º Em empreendimentos de grande porte, em caráter excepcional, a lei municipal específica a que se refere o
caput poderá prever a conclusão em etapas, assegurando-se que o projeto aprovado compreenda o
empreendimento como um todo.
Art. 6º A transmissão do imóvel, por ato inter vivos ou causa mortis, posterior à data da notificação, transfere as
obrigações de parcelamento, edificação ou utilização previstas no art. 5º desta Lei, sem interrupção de quaisquer
prazos.
Seção III
Do IPTU progressivo no tempo
Art. 7º Em caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma do caput do art. 5º desta Lei,
ou não sendo cumpridas as etapas previstas no § 5º do art. 5º desta Lei, o Município procederá à aplicação do
imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da
alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos.
§ 1º O valor da alíquota a ser aplicado a cada ano será fixado na lei específica a que se refere o caput do art. 5º
desta Lei e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de quinze
por cento.
§ 2º Caso a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar não esteja atendida em cinco anos, o Município manterá a
cobrança pela alíquota máxima, até que se cumpra a referida obrigação, garantida a prerrogativa prevista no art.
8º.
§ 3º É vedada a concessão de isenções ou de anistia relativas à tributação progressiva de que trata este artigo.
Seção IV
Da desapropriação com pagamento em títulos
Art. 8º Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a
obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel,
com pagamento em títulos da dívida pública.
§ 1º Os títulos da dívida pública terão prévia aprovação pelo Senado Federal e serão resgatados no prazo de até
dez anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais de
seis por cento ao ano.
§ 2º O valor real da indenização:
204
I - refletirá o valor da base de cálculo do IPTU, descontado o montante incorporado em função de obras
realizadas pelo Poder Público na área onde o mesmo se localiza após a notificação de que trata o § 2º do art. 5º
desta Lei;
II - não computará expectativas de ganhos, lucros cessantes e juros compensatórios.
§ 3º Os títulos de que trata este artigo não terão poder liberatório para pagamento de tributos.
§ 4º O Município procederá ao adequado aproveitamento do imóvel no prazo máximo de cinco anos, contado a
partir da sua incorporação ao patrimônio público.
§ 5º O aproveitamento do imóvel poderá ser efetivado diretamente pelo Poder Público ou por meio de alienação
ou concessão a terceiros, observando-se, nesses casos, o devido procedimento licitatório.
§ 6º Ficam mantidas para o adquirente de imóvel nos termos do § 5° as mesmas obrigações de parcelamento,
edificação ou utilização previstas no art. 5° desta Lei.
Seção V
Da usucapião especial de imóvel urbano
Art. 9º Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados,
por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á
o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde
que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.
Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentas e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa
renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os
terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os
possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu
antecessor contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2º A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá
de título para registro no cartório de registro de imóveis.
§ 3º Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão
do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações
ideais diferenciadas.
§ 4º O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável
tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à
constituição do condomínio.
§ 5º As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos
condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.
Art. 11. Na pendência da ação de usucapião especial urbana, ficarão sobrestadas quaisquer outras ações,
petitórias ou possessórias, que venham a ser propostas relativamente ao imóvel usucapiendo.
Art. 12. São partes legítimas para a propositura da ação de usucapião especial urbana:
I - o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente;
II - os possuidores, em estado de composse;
III - como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, com
personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representados.
§ 1º Na ação de usucapião especial urbana é obrigatória a intervenção do Ministério Público.
§ 2º O autor terá os benefícios da justiça e da assistência judiciária gratuita, inclusive perante o cartório de
registro de imóveis.
Art. 13. A usucapião especial de imóvel urbano poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença
que a reconhecer como título para registro no cartório de registro de imóveis.
Art. 14. Na ação judicial de usucapião especial de imóvel urbano, o rito processual a ser observado é o sumário.
Seção VI
Da concessão de uso especial para fins de moradia
Seção VII
Do direito de superfície
Art. 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo
determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis.
§ 1º O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno,
na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística.
§ 2º A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa.
§ 3° O superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos que incidirem sobre a propriedade
superficiária, arcando, ainda, proporcionalmente à sua parcela de ocupação efetiva, com os encargos e tributos
sobre a área objeto da concessão do direito de superfície, salvo disposição em contrário do contrato respectivo.
§ 4º O direito de superfície pode ser transferido a terceiros, obedecidos os termos do contrato respectivo.
§ 5º Por morte do superficiário, os seus direitos transmitem-se a seus herdeiros.
Art. 24. Extinto o direito de superfície, o proprietário recuperará o pleno domínio do terreno, bem como das
acessões e benfeitorias introduzidas no imóvel, independentemente de indenização, se as partes não houverem
estipulado o contrário no respectivo contrato.
§ 1º Antes do termo final do contrato, extinguir-se-á o direito de superfície se o superficiário der ao terreno
destinação diversa daquela para a qual for concedida.
§ 2º A extinção do direito de superfície será averbada no cartório de registro de imóveis.
Seção VIII
Do direito de preempção
Art. 25. O direito de preempção confere ao Poder Público municipal preferência para aquisição de imóvel
urbano objeto de alienação onerosa entre particulares.
§ 1º Lei municipal, baseada no plano diretor, delimitará as áreas em que incidirá o direito de preempção e fixará
prazo de vigência, não superior a cinco anos, renovável a partir de um ano após o decurso do prazo inicial de
vigência.
§ 2º O direito de preempção fica assegurado durante o prazo de vigência fixado na forma do § 1º,
independentemente do número de alienações referentes ao mesmo imóvel.
Art. 26. O direito de preempção será exercido sempre que o Poder Público necessitar de áreas para:
I - regularização fundiária;
II - execução de programas e projetos habitacionais de interesse social;
III - constituição de reserva fundiária;
IV - ordenamento e direcionamento da expansão urbana;
V - implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
VI - criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes;
VII - criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental;
VIII - proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico;
IX - (VETADO)
Parágrafo único. A lei municipal prevista no § 1º do art. 25 desta Lei deverá enquadrar cada área em que incidirá
o direito de preempção em uma ou mais das finalidades enumeradas por este artigo.
Art. 27. O proprietário deverá notificar sua intenção de alienar o imóvel, para que o Município, no prazo
máximo de trinta dias, manifeste por escrito seu interesse em comprá-lo.
206
§ 1º À notificação mencionada no caput será anexada proposta de compra assinada por terceiro interessado na
aquisição do imóvel, da qual constarão preço, condições de pagamento e prazo de validade.
§ 2º O Município fará publicar, em órgão oficial e em pelo menos um jornal local ou regional de grande
circulação, edital de aviso da notificação recebida nos termos do caput e da intenção de aquisição do imóvel nas
condições da proposta apresentada.
§ 3º Transcorrido o prazo mencionado no caput sem manifestação, fica o proprietário autorizado a realizar a
alienação para terceiros, nas condições da proposta apresentada.
§ 4º Concretizada a venda a terceiro, o proprietário fica obrigado a apresentar ao Município, no prazo de trinta
dias, cópia do instrumento público de alienação do imóvel.
§ 5º A alienação processada em condições diversas da proposta apresentada é nula de pleno direito.
§ 6º Ocorrida a hipótese prevista no § 5º o Município poderá adquirir o imóvel pelo valor da base de cálculo do
IPTU ou pelo valor indicado na proposta apresentada, se este for inferior àquele.
Seção IX
Da outorga onerosa do direito de construir
Art. 28. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido acima do
coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.
§ 1º Para os efeitos desta Lei, coeficiente de aproveitamento é a relação entre a área edificável e a área do
terreno.
§ 2º O plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único para toda a zona urbana ou
diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana.
§ 3º O plano diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de aproveitamento,
considerando a proporcionalidade entre a infra-estrutura existente e o aumento de densidade esperado em cada
área.
Art. 29. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais poderá ser permitida alteração de uso do solo, mediante
contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.
Art. 30. Lei municipal específica estabelecerá as condições a serem observadas para a outorga onerosa do direito
de construir e de alteração de uso, determinando:
I - a fórmula de cálculo para a cobrança;
II - os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga;
III - a contrapartida do beneficiário.
Art. 31. Os recursos auferidos com a adoção da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso
serão aplicados com as finalidades previstas nos incisos I a IX do art. 26 desta Lei.
Seção X
Das operações urbanas consorciadas
Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área para aplicação de operações
consorciadas.
§ 1º Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder
Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores
privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a
valorização ambiental.
§ 2º Poderão ser previstas nas operações urbanas consorciadas, entre outras medidas:
I - a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, bem como
alterações das normas edilícias, considerado o impacto ambiental delas decorrente;
II - a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação vigente.
Art. 33. Da lei específica que aprovar a operação urbana consorciada constará o plano de operação urbana
consorciada, contendo, no mínimo:
I - definição da área a ser atingida;
II - programa básico de ocupação da área;
III - programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação;
IV - finalidades da operação;
V - estudo prévio de impacto de vizinhança;
207
VI - contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados em função da
utilização dos benefícios previstos nos incisos I e II do § 2° do art. 32 desta Lei;
VII - forma de controle da operação, obrigatoriamente compartilhado com representação da sociedade civil.
§ 1º Os recursos obtidos pelo Poder Público municipal na forma do inciso VI deste artigo serão aplicados
exclusivamente na própria operação urbana consorciada.
§ 2º A partir da aprovação da lei específica de que trata o caput, são nulas as licenças e autorizações a cargo do
Poder Público municipal expedidas em desacordo com o plano de operação urbana consorciada.
Art. 34. A lei específica que aprovar a operação urbana consorciada poderá prever a emissão pelo Município de
quantidade determinada de certificados de potencial adicional de construção, que serão alienados em leilão ou
utilizados diretamente no pagamento das obras necessárias à própria operação.
§ 1º Os certificados de potencial adicional de construção serão livremente negociados, mas conversíveis em
direito de construir unicamente na área objeto da operação.
§ 2º Apresentado pedido de licença para construir, o certificado de potencial adicional será utilizado no
pagamento da área de construção que supere os padrões estabelecidos pela legislação de uso e ocupação do solo,
até o limite fixado pela lei específica que aprovar a operação urbana consorciada.
Seção XI
Da transferência do direito de construir
Art. 35. Lei municipal, baseada no plano diretor, poderá autorizar o proprietário de imóvel urbano, privado ou
público, a exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública, o direito de construir previsto no plano
diretor ou em legislação urbanística dele decorrente, quando o referido imóvel for considerado necessário para
fins de:
I - implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
II - preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou
cultural;
III - servir a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda
e habitação de interesse social.
§ 1º A mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário que doar ao Poder Público seu imóvel, ou parte
dele, para os fins previstos nos incisos I a III do caput.
§ 2º A lei municipal referida no caput estabelecerá as condições relativas à aplicação da transferência do direito
de construir.
Seção XII
Do estudo de impacto de vizinhança
Art. 36. Lei municipal definirá os empreendimentos e atividades privados ou públicos em área urbana que
dependerão de elaboração de estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou
autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal.
Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e negativos do empreendimento ou
atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e suas proximidades, incluindo a análise, no
mínimo, das seguintes questões:
I - adensamento populacional;
II - equipamentos urbanos e comunitários;
III - uso e ocupação do solo;
IV - valorização imobiliária;
V - geração de tráfego e demanda por transporte público;
VI - ventilação e iluminação;
VII - paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.
Parágrafo único. Dar-se-á publicidade aos documentos integrantes do EIV, que ficarão disponíveis para consulta,
no órgão competente do Poder Público municipal, por qualquer interessado.
Art. 38. A elaboração do EIV não substitui a elaboração e a aprovação de estudo prévio de impacto ambiental
(EIA), requeridas nos termos da legislação ambiental.
208
CAPÍTULO III
Do Plano Diretor
Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de
ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos
quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as
diretrizes previstas no art. 2º desta Lei.
Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e
expansão urbana.
§ 1º O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as
diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.
§ 2º O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo.
§ 3º A lei que instituir o plano diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada dez anos.
§ 4º No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo
e Executivo municipais garantirão:
I - a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade;
II - a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;
III - o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.
§ 5º (VETADO)
CAPÍTULO IV
Da Gestão Democrática da Cidade
Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros, os seguintes
instrumentos:
I - órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal;
II -debates, audiências e consultas públicas;
III - conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal;
IV - iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
V - (VETADO)
Art. 44. No âmbito municipal, a gestão orçamentária participativa de que trata a alínea f do inciso III do art. 4º
desta Lei incluirá a realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual,
da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para sua aprovação pela
Câmara Municipal.
209
Art. 45. Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e
significativa participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de
modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania.
CAPÍTULO V
Disposições Gerais
Art. 46. O Poder Público municipal poderá facultar ao proprietário de área atingida pela obrigação de que trata o
caput do art. 5º desta Lei, a requerimento deste, o estabelecimento de consórcio imobiliário como forma de
viabilização financeira do aproveitamento do imóvel.
§ 1º Considera-se consórcio imobiliário a forma de viabilização de planos de urbanização ou edificação por meio
da qual o proprietário transfere ao Poder Público municipal seu imóvel e, após a realização das obras, recebe,
como pagamento, unidades imobiliárias devidamente urbanizadas ou edificadas.
§ 2º O valor das unidades imobiliárias a serem entregues ao proprietário será correspondente ao valor do imóvel
antes da execução das obras, observado o disposto no § 2° do art. 8º desta Lei.
Art. 47. Os tributos sobre imóveis urbanos, assim como as tarifas relativas a serviços públicos urbanos, serão
diferenciados em função do interesse social.
Art. 48. Nos casos de programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos por órgãos ou
entidades da Administração Pública com atuação específica nessa área, os contratos de concessão de direito real
de uso de imóveis públicos:
I - terão, para todos os fins de direito, caráter de escritura pública, não se aplicando o disposto no inciso II do art.
134 do Código Civil;
II - constituirão título de aceitação obrigatória em garantia de contratos de financiamentos habitacionais.
Art. 49. Os Estados e Municípios terão o prazo de noventa dias, a partir da entrada em vigor desta Lei, para fixar
prazos, por lei, para a expedição de diretrizes de empreendimentos urbanísticos, aprovação de projetos de
parcelamento e de edificação, realização de vistorias e expedição de termo de verificação e conclusão de obras.
Parágrafo único. Não sendo cumprida a determinação do caput, fica estabelecido o prazo de sessenta dias para a
realização de cada um dos referidos atos administrativos, que valerá até que os Estados e Municípios disponham
em lei de forma diversa.
Art. 50. Os Municípios que estejam enquadrados na obrigação prevista nos incisos I e II do art. 41 desta Lei, que
não tenham plano diretor aprovado na data de entrada em vigor desta Lei, deverão aprová-lo no prazo de cinco
anos.
Art. 51. Para os efeitos desta Lei, aplicam-se ao Distrito Federal e ao Governador do Distrito Federal as
disposições relativas, respectivamente, a Município e a Prefeito.
Art. 52. Sem prejuízo da punição de outros agentes públicos envolvidos e da aplicação de outras sanções
cabíveis, o Prefeito incorre em improbidade administrativa, nos termos da Lei n° 8.429, de 2 de junho de 1992,
quando:
I - (VETADO)
II - deixar de proceder, no prazo de cinco anos, o adequado aproveitamento do imóvel incorporado ao patrimônio
público, conforme o disposto no § 4º do art. 8°desta Lei;
III - utilizar áreas obtidas por meio do direito de preempção em desacordo com o disposto no art. 26 desta Lei;
IV - aplicar os recursos auferidos com a outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso em
desacordo com o previsto no art. 31 desta Lei;
V - aplicar os recursos auferidos com operações consorciadas em desacordo com o previsto no § 1º do art. 33
desta Lei;
VI - impedir ou deixar de garantir os requisitos contidos nos incisos I a III do § 4º do art. 40 desta Lei;
VII - deixar de tomar as providências necessárias para garantir a observância do disposto no § 3º do art. 40 e no
art. 50 desta Lei;
VIII - adquirir imóvel objeto de direito de preempção, nos termos dos arts. 25 a 27 desta Lei, pelo valor da
proposta apresentada, se este for, comprovadamente, superior ao de mercado.
Art. 53. O art. 1º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a vigorar acrescido de novo inciso III,
renumerando o atual inciso III e os subseqüentes:
"Art. 1º
210
................................................................................
III - à ordem urbanística;
.................................................." (NR)
Art. 54. O art. 4º da Lei n° 7.347, de 1985, passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 4° Poderá ser ajuizada ação cautelar para os fins desta Lei, objetivando, inclusive, evitar o dano ao meio
ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística ou aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico,
turístico e paisagístico (VETADO)." (NR)
Art. 55. O art. 167, inciso I, item 28, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterado pela Lei n° 6.216, de
30 de junho de 1975, passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 167.
................................................................................
I-
................................................................................
.28) das sentenças declaratórias de usucapião, independente da regularidade do parcelamento do solo ou da
edificação;
.................................................." (NR)
Art. 56. O art. 167, inciso I, da Lei nº 6.015, de 1973, passa a vigorar acrescido dos seguintes itens 37, 38 e 39:
"Art. 167.
................................................................................
I-
................................................................................
37) dos termos administrativos ou das sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia,
independente da regularidade do parcelamento do solo ou da edificação;
38) (VETADO)
39) da constituição do direito de superfície de imóvel urbano;" (NR)
Art. 57. O art. 167, inciso II, da Lei n° 6.015, de 1973, passa a vigorar acrescido dos seguintes itens 18, 19 e 20:
"Art.167.
................................................................................
II -
................................................................................
18) da notificação para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios de imóvel urbano;
19) da extinção da concessão de uso especial para fins de moradia;
20) da extinção do direito de superfície do imóvel urbano." (NR)
Art. 58. Esta Lei entra em vigor após decorridos noventa dias de sua publicação.
211
ANEXO 7
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 62 da Constituição, adota a
seguinte Medida Provisória, com força de lei:
CAPÍTULO I
Da Concessão de Uso Especial
Art 1o. Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem
oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o
para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao
bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel
urbano ou rural.
§ 1o A concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma gratuita ao homem ou à mulher,
ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2o O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo concessionário mais de uma vez.
§ 3o Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, na posse de seu antecessor, desde
que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.
Art 2o. Nos imóveis de que trata o art. 1o, com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, que, até 30 de
junho de 2001, estavam ocupados por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos,
ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por possuidor, a
concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma coletiva, desde que os possuidores não
sejam proprietários ou concessionários, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu
antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2o Na concessão de uso especial de que trata este artigo, será atribuída igual fração ideal de terreno a cada
possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre
os ocupantes, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
§ 3o. A fração ideal atribuída a cada possuidor não poderá ser superior a duzentos e cinqüenta metros quadrados.
Art. 3o. Será garantida a opção de exercer os direitos de que tratam os arts. 1 o e 2o também aos ocupantes,
regularmente inscritos, de imóveis públicos, com até duzentos e cinqüenta metros quadrados, da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que estejam situados em área urbana, na forma do regulamento.
Art. 4o. No caso de a ocupação acarretar risco à vida ou à saúde dos ocupantes, o Poder Público garantirá ao
possuidor o exercício do direito de que tratam os arts. 1 o e 2o em outro local.
Art. 5o. É facultado ao Poder Público assegurar o exercício do direito de que tratam os arts. 1 o e 2o em outro
local na hipótese de ocupação de imóvel:
I - de uso comum do povo;
II - destinado a projeto de urbanização;
III - de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais;
IV - reservado à construção de represas e obras congêneres; ou
V - situado em via de comunicação.
Art 6o. O título de concessão de uso especial para fins de moradia será obtido pela via administrativa perante o
órgão competente da Administração Pública ou, em caso de recusa ou omissão deste, pela via judicial.
§ 1o A Administração Pública terá o prazo máximo de doze meses para decidir o pedido, contado da data de seu
protocolo.
§ 2o Na hipótese de bem imóvel da União ou dos Estados, o interessado deverá instruir o requerimento de
concessão de uso especial para fins de moradia com certidão expedida pelo Poder Público municipal, que ateste
a localização do imóvel em área urbana e a sua destinação para moradia do ocupante ou de sua família.
§ 3o Em caso de ação judicial, a concessão de uso especial para fins de moradia será declarada pelo juiz,
mediante sentença.
213
§ 4o O título conferido por via administrativa ou por sentença judicial servirá para efeito de registro no cartório
de registro de imóveis.
Art. 7o. O direito de concessão de uso especial para fins de moradia é transferível por ato inter vivos ou causa
mortis.
Art. 8o. O direito à concessão de uso especial para fins de moradia extingue-se no caso de:
I - o concessionário dar ao imóvel destinação diversa da moradia para si ou para sua família; ou
II - o concessionário adquirir a propriedade ou a concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural.
Parágrafo único. A extinção de que trata este artigo será averbada no cartório de registro de imóveis, por meio de
declaração do Poder Público concedente.
Art. 9o. É facultado ao Poder Público competente dar autorização de uso àquele que, até 30 de junho de 2001,
possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados
de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para fins comerciais.
§ 1o A autorização de uso de que trata este artigo será conferida de forma gratuita.
§ 2o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu
antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 3o Aplica-se à autorização de uso prevista no caput deste artigo, no que couber, o disposto nos arts. 4 o e 5o
desta Medida Provisória.
CAPÍTULO II
Do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano
Art. 10 Fica criado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano - CNDU, órgão deliberativo e consultivo,
integrante da estrutura da Presidência da República, com as seguintes competências:
I - propor diretrizes, instrumentos, normas e prioridades da política nacional de desenvolvimento urbano;
II - acompanhar e avaliar a implementação da política nacional de desenvolvimento urbano, em especial as
políticas de habitação, de saneamento básico e de transportes urbanos, e recomendar as providências necessárias
ao cumprimento de seus objetivos;
III - propor a edição de normas gerais de direito urbanístico e manifestar-se sobre propostas de alteração da
legislação pertinente ao desenvolvimento urbano;
IV - emitir orientações e recomendações sobre a aplicação da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, e dos
demais atos normativos relacionados ao desenvolvimento urbano;
V - promover a cooperação entre os governos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e a
sociedade civil na formulação e execução da política nacional de desenvolvimento urbano; e
VI - elaborar o regimento interno.
Art. 11 O CNDU é composto por seu Presidente, pelo Plenário e por uma Secretaria-Executiva, cujas atribuições
serão definidas em decreto.
Parágrafo único. O CNDU poderá instituir comitês técnicos de assessoramento, na forma do regimento interno.
Art. 12 O Presidente da República disporá sobre a estrutura do CNDU, a composição do seu Plenário e a
designação dos membros e suplentes do Conselho e dos seus comitês técnicos.
Art. 14 As funções de membro do CNDU e dos comitês técnicos serão consideradas prestação de relevante
interesse público e a ausência ao trabalho delas decorrente será abonada e computada como jornada efetiva de
trabalho, para todos os efeitos legais.
CAPÍTULO III
Das Disposições Finais
Art. 15 O inciso I do art. 167 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar com as seguintes
alterações:
"I –
..........................................................
28) das sentenças declaratórias de usucapião;
..........................................................
214
37) dos termos administrativos ou das sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia;
..........................................................
40) do contrato de concessão de direito real de uso de imóvel público." (NR)