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SUMÁRIO
Introdução......................................................................................................3
I. Gnose em sua História................................................................................7
II. O Encontro com os Neognósticos..........................................................21
III. O Mistério da Gnose Infinita................................................................36
INTRODUÇÃO
1 As referências essenciais a esses dois termos são como segue (damos os títulos em ordem alfabética, a
ordem cronológica não tendo sentido para as coleções póstumas, e de acordo com a paginação da edi-
ção citada):
1. Apercus sur l’Esotérisme Chrétien (Éditions Traditionnelles, 1954), página 50;
2. Comptes Rendus (Éditions Traditionnelles, 1973), páginas 119–121;
3. Les États Multiples de l’Être (Editora Vega, 1980), página 30;
4. Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage (Éditions Traditionnelles,
1964), Título 1, páginas 119, 181, 243, 349, Título 2, páginas 87, 170, 247–261;
5. Formes Traditionnelles et Cycles Cosmiques (Gallimard, 1987), páginas 77 e 83;
6. L’Homme et son Devenir selon le Vedānta (Éditions Traditionnelles, 1974), página 84;
7. Mélanges (Gallimard, 1976), páginas 18, 176–78;
8. Symboles Fondamentaux de la Science Sacrée (Gallimard, 1976), páginas 176–178.
Estas citações não são exaustivas, mas um pouco mais complexas do que aquelas dadas por
André Désilets em “René Guénon”. Assim, este trabalho será de grande serviço para qualquer leitor
de Guénon.
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não exclui toda a continuidade. Nós estimamos, com efeito, que, no que diz res-
peito à doutrina essencial, à metafísica pura, Guénon jamais variou, pela razão
de que uma tal variação é de todo impossível: o que o intelecto percebe é, em
sua essência mais radical, imutável evidência. Não é nem mesmo surpreendente
que uma tal percepção apareça naturalmente em um jovem; ao contrário, é coi-
sa normal: a alma jovem é aberta quase naturalmente às luzes que irradiam do
Espírito Santo3, enquanto com a idade quase sempre vem o endurecimento e o
esquecimento. Ainda, as formas em que se tenta expressar essas intuições pode
variar consideravelmente, porque toda linguagem é dependente de uma cultura,
e, assim, de uma história, isto é dizer, de uma dialética e de uma problemática,
possivelmente inadequada e sempre “complicadora”. A escolha de expressões é,
assim, um cálculo de oportunidade que é quase impossível vencer, e que ele
mesmo depende do próprio conhecimento desta cultura e história. Um tal co-
nhecimento, pertinente aos fatos, pode apenas ser progressivo e empírico; tam-
bém depende, e necessariamente, d’uma certa afinidade do sujeito conhecedor
com o objeto conhecido. D’aí que, à parte da ortodoxia religiosa que é garantida
pela autoridade da Tradição Magisterial, a significação de qualquer forma cultu-
ral não pode ser imutavelmente definida; ela muda com a exatidão de nossas in-
formações e nossas predisposições individuais, e pode mesmo ser definitivamen-
te suspensa quando a questão se torna, decididamente, nublada demais. E nós
sabemos que Guénon nunca tardou naquilo em que não parecia possível para
ele obter luz suficiente.4
As considerações precedentes ditam nosso plano. Primeiro de tudo, deve-
mos nos perguntar sobre a verdadeira natureza do fenômeno histórico que foi a
gnose e o Gnosticismo, porque, neste campo em particular, paixões partidárias
3 Especifiquemos, contudo, que a causa “ocasional” destas iluminações é sempre algo externo e objetivo
(fides ex auditu), da Revelação Divina ao encontro “fortuito” de um evento, de uma coisa, de uma pa-
lavra…
4 Este é o caso, por exemplo, do enigma de Luís XVII, a mensagem de Nossa Senhora de la Salette, as
origens do Cristianismo etc. Estas são, é claro, questões de importância bastante desigual. No que se
refere ao Cristianismo, não vemos como, mais do que em relação a qualquer outra religião, justificar-
se-ia falar de “uma quase impenetrável obscuridade que acerca tudo o que se relaciona às origens e aos
primeiros dias do Cristianismo, uma obscuridade tal que, refletindo bem sobre isso, parece não ser
apenas acidental, mas expressamente querida” (Aperçus sur l’Ésotérisme Chrétien, páginas 9–10). Ler
os Atos dos Apóstolos não passa uma tal impressão.
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possível a manifestação deste estado de gnose nas almas daqueles que acreditam
n’Ele não é menos indisputável para nós. Todo o Cristianismo é, em sua essên-
cia, uma mensagem de gnose: conhecer e adorar a Deus em “espírito e verdade”
(João 4:23), e não apenas através de formas sensíveis e rituais; ou, em vez, unir-
se a Jesus Cristo, que é Ele mesmo a Gnose do Pai, e que transcende tanto o
mundo criado quanto as obrigações religiosas. Certamente, a palavra é de ori-
gem bíblica helênica. Mas a coisa, o conhecimento interior e salvífico, o carisma
da gnose em que a fé atinge sua perfeição deificante, é simples e fundamental-
mente “cristão”. É este kérygma de amor e união transformativa com Deus que
Jesus veio revelar, e é suficiente ler o Evangelho para percebê-lo. Em face do ritu-
alismo dos fariseus, o Cristo, a Gnose Encarnada do Pai, vem reabrir a “porta es-
treita” da interioridade espiritual. E omo mais os apóstolos, São Paulo, e os pri-
meiros cristãos teriam vivido seu mais profundo compromisso “em Cristo”?21
É por isto que não há evidência documental da existência de uma assim
chamada “gnose” anterior ao Novo Testamento, e isto a despeito da pesquisa (e,
às vezes, asserções) de historiadores eminentes22. É verdade que nem todas as
vinte e nove ocorrências de “gnо̄ sis” no Novo Testamento designam um estado
espiritual. Todavia, cada vez que têm um significado religioso (exceto na Primei-
ra Epístola de São Pedro 3:7), e se o significado “gnóstico” é, acima de tudo,
paulino23, parece também a nós presente em São Lucas, quando o Cristo decla-
ra: “Ai de vós, doutores da Lei, que, depois de terdes arrogado a vós a chave da
gnо̄ sis, nem vós outros entrastes, nem deixastes entrar os que vinham para en-
trar” (Lucas 11:52), especialmente se admitimos que a verdadeira chave é a gno-
se mesma, que é, na realidade, identificada com o “Reino dos Céus”, como a
passagem paralela em São Mateus (16:17) o prova. Parece certo para nós, por
conseguinte, que, se houve uma (assim chamada) “gnose” cristã, ela foi, primei-
21 Retomamos aqui, com um embasamento histórico mais desenvolvido, a tese que propusemos em
Gnose Chrétienne et Gnose Anti-chrétienne (La Pensée Catholique nº 193).
22 Este é caso, particularmente, para Reitzenstein e Bultmann.
23 “Gnо̄ sis” é encontrado duas vezes em São Lucas, uma vez em São Pedro, e vinte e seis vezes em São
Paulo. Há uma certa evolução na terminologia de “gnose” de uma epístola à outra. São Paulo também
usa “epignо̄ sis”. Sobre isto, ver E. Prucker, Gnо̄ sis Théou. Untersuchungen zur Bedeutung eines Religiö-
sen Begriffs beim Apostel Paulus und bei seiner Umwelt , Cassiciacum, 4, Wurzburg, 1937, e u resumo
dado por Dom J. Dupont, Gnо̄ sis. La Connaissance Religieuse dans les Épitres de Saint Paul , Gabalda,
Paris, 1949, páginas 48–49).
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON
ro de tudo, cristã, e, mais ainda, “crística”. Ter-se-ia que estar cego ao “fenôme-
no” do Cristo para não perceber o efeito espiritual prodigioso que Ele deve ter
produzido sobre aqueles que O testemunharam em primeira mão (um efeito
que, dois mil anos depois, ainda não se exauriu). Como poderíamos duvidar,
por um único momento, que este Jesus Cristo, que foi “mais do que um profe-
ta”, comunicou àqueles que encontrou e aceitaram Sua palavra uma gnose, um
estado de conhecimento interior e deificante, que não tinha medida comum
com qualquer coisa que tinham experimentado antes? É este estado espiritual
que São Paulo designa pelo nome de “gnose”, e em que ele vê a perfeição da fé. 24
É isto que encontramos nos escritos de inspiração paulina, tais como a Epístola
de Barnabé — às vezes contada enter os textos do Novo Testamento — em que
o autor declara que, se ele escreve a seus interlocutores, que já abundam na fé, é
“para que, com a fé que possuís, tenhais uma gnose perfeita”. 25 É por isso que
São Paulo pôde dizer, com o intervalo de algumas linhas (1 Coríntios 8:1–7):
“todos temos gnо̄ sis” e “nem em todas [as pessoas] há gnо̄ sis”, de acordo com se
tratar de conhecimento teorético simples, que, como tal, é “ignorante” e cheio
de si, uma realização efetiva de sua natureza transcendente e divina, que protege
de todo ataque “externo” (douta ignorância).
Permanece a pergunta de por que São Paulo é, por assim dizer, o único
autor do Novo Testamento a falar de gnose, e porque São João ignora este ter-
mo26, embora ele possa ser considerado o mais “gnóstico” de todos os autores
do Novo Testamento. A resposta é que isto é prova da influência da Septuagin-
ta, que, como vimos, foi a primeira a dar a este termo uma conotação essencial-
mente religiosa. Um homem bem versado na ciência rabínica tal como Paulo
deve ter sido particularmente sensível a essa influência. Mais, certamente, do
24 Isto é provado por um número de passagens: Romanos 15:13–14; Efésios 1:15–18; 3:16–19 (comen-
tamos sobre este texto em La Charité Profanée, páginas 233–239); Colossenses 1:14; etc. Todos esses
textos dão preeminência à gnose sobre a fé. Mas outros textos também dão primeiro lugar à caridade.
Não há contradição, todavia: não há conhecimento sem amor, e não há amor que não seja, em sua es-
sência, conhecimento.
25 1:5. Cf. Les Écrits des Pères Apostoliques, Cerf, 1963, página 242.
26 Ademais, nos escritos joaninos, não há substantivo para designar “conhecimento”. Por outro lado, é
em seus escritos que encontramos as mais numerosas ocorrências de “ ginо̄ skо̄ ” e “oīda” (“eīdénaī” no
infinito). Recordemos que sempre podemos contar com os dados providos pela Concordance de la Bi-
ble. Nouveau Testament, Edições du Cerf e D. B. B., 1970.
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que um São João, cujo conhecimento se origina da visão direta da Gnose Encar-
nada, Jesus Cristo, e quem, para se expressar, essencialmente faz uso de grandes
símbolos tradicionais em vez de conceitos.27 Todavia, esta situação particular de
São Paulo não seria suficiente para explicar a quase ausência de “gnose” nos
Evangelhos. Acreditamos que outra razão, mais profunda e menos circunstanci-
al, deve ser adicionada. É que, entre as autoridades fundadoras da Revelação re-
conhecidas pelos dogmáticos cristãos, São Paulo ocupa um lugar bastante curio-
so. Ele é certamente uma autoridade maior, um dos “pilares da Igreja”, o depo-
sitário da mensagem autêntico, mas, ainda, ele nunca “conheceu Cristo em car-
ne e osso”! Todo cristão deve acreditar que a totalidade da Revelação foi dada a
Jesus Cristo e que os apóstolos são os depositários autorizados dela simplesmen-
te por a terem recebido. Dado o caráter sobrenatural desta Revelação, ela neces-
sariamente vem de fora: “fides ex auditu”, como São Paulo mesmo diz. Em com-
paração com esta Revelação direta (escrita ou oral) que sozinha é autoritativa, só
pode haver Revelações Privadas (sem autoridade de fé) ou comentários teológi-
cos que explicam o fato revelado. Que São Paulo, como qualquer outro cristão,
recebeu ensinamento dos apóstolos é inegável. Contudo, entre todos aqueles
que receberam um tal ensinamento, ele é o único cuja palavra tem valor de Re-
velação. E isto é porque ele, ademais, recebeu a Revelação do Evangelho direta-
mente do Senhor (1 Coríntios 11:23). O que confirma ou completa a Tradição
Apostólica, mas o modo de sua comunicação só pode ser interior.28 Os dog-
máticos cristãos, por conseguinte, admitem que pode haver pelo menos uma
Revelação que não vem do Cristo “histórico”, mas de um Filho interior a quem
Deus, como São Paulo nos diz, “revelou […] por mim, para que eu O pregasse
entre as gentes” (Gálatas 1:17). Em outras palavras, admitem que pode haver
uma “experiência espiritual” digna de uma Revelação, um modo de conheci-
27 Especifiquemos, para todos os intentos e propósitos, que aceitamos, aliás, a identificação tradicional
do autor do Quarto Evangelho com o Apóstolo São João. Os argumentos contrários dos críticos mo-
dernos são de tal indigência intelectual (tal qual: “Como poderia um pecador galileu produzir tão ele-
vada obra teológica?”) que só podem ser explicados pelo desejo por originalidade a todo custo. A prin-
cipal preocupação dos exegetas modernos não é comentar a Escritura, mas fazer um nome para si mes-
mos (Babel) a despeito da Escritura.
28 “Porque vos faço saber, irmãos, que o Evangelho que por mim vos tem sido pregado não é segundo o
homem”, Gálatas 1:11.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON
30 A palavra adquiriu seu significado presente apenas tarde (após o século XIII). Inicialmente, entre os
cristãos, designava um escrito sagrado (como São João), ou o puro contemplativo.
31 Hypotyposes, fragmento 13.
32 Strómata 7:57:3.
33 Strómata 5:66:1–5: “Pois a gnose da Essência Divina é comer e beber do Lógos Divino.”
34 Marguerite Harl, Origène et la Fonction Révélatrice du Verbe Incarné, Seuil, página 419.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON
Nissa. Assim, houve, sem dúvida, uma gnose autenticamente cristã35. E sem
dúvida foi um grande azar para o Ocidente que a língua latina não contivesse
nenhum termo equivalente para traduzir “gnо̄ sis”, porque nem “agnitio”, nem
“cognitio”, “scientia”, ou “doctrina” receberam de seu uso bíblico, e então pauli-
no, o significado sagrado do termo grego36. Esta inferioridade semântica, obvia-
mente, favoreceria a aparição e desenvolvimento de um racionalismo teológico
que necessariamente levou a reações anti-intelectuais da teologia existencial, e,
finalmente, à desaparição da doctrina sacra.
Mas, após o uso bíblico e paulino patrístico da palavra “gnо̄ sis”, devemos
chegar a seu uso herético, já que foi ele que deu à luz o que é chamado “Gnosti-
cismo”. Este nome já aparece em São Paulo, quando ele denuncia a “gnose com
um falso nome” (1 Timóteo 6:21). Similarmente, a insistência de João em defi-
nir o “conhecer” (ginо̄ skein) divino pode ser entendida como um aviso contra
uma alteração da gnose cristã. Todavia, no presente estado de nossa documenta-
ção, é impossível afirmar a existência de um Gnosticismo organizado e definido
na era do Novo Testamento. Como foi enfatizado muitas vezes 37, é uma ques-
tão de tendências, de germes gnosticizantes, não de uma heresia declarada e
constituída. Não tentemos fazer os textos dizerem o que eles não dizem. Além
disso, é autoevidente. O extraordinário poder gnóstico da manifestação da Pala-
vra em Jesus Cristo não poderia falhar em gerar excessos nas mentes daqueles
muito fracos para suportar a intoxicação. É assim que a complexidade carismáti-
ca da experiência gnóstica se desenvolveria, e como a recusa do “Cristo de acor-
do com a carne” (junto com aquela à criação corpórea) se cimentaria, visto que
a gnose se concebe como uma graça de conhecimento experimentada na interio-
ridade da alma. De fato, quem fala em conhecimento fala em graus de conheci-
mento; e quem fala em graça dada, fala em um doador: os graus da gnose reque-
35 Louis Bouyer, Gnо̄ sis. Le Sens Orthodoxe de l’Expression jusqu’aux Pères Alexandrins , publicado no
Journal of Theological Studies, N. S. 4, 1953, páginas 188–203.
36 Encontra-se, ademais, às vezes a pura e simples transposição do grego para o latim. Assim é na versão
latina de Adversus Hæreses de São Irineu 1:29:3, que, contudo, geralmente se traduz como “ agnitio”, e
mais raramente como “scientia”. Notemos que os tradutores latinos do poeta judeu neoplatônico ibn
Gabirol renderem o hebraico “yedīah” como “sapientia”, que acreditamos ser o mais apropriado, já
que expressa a unidade de conhecimento e sabedoria.
37 Simone Pétrement, Sur le Problème du Gnosticisme, Revue de Métaphysique et de Morale, nº 2, 1980,
página 152.
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dria, São Irineu de Lião, e Santo Hipólito de Roma. Vemos nele um fenômeno
de ressurreição de antigas e diversas doutrinas sob o estilhaçante e revelador efei-
to da manifestação crística, em que ouvirem um irresistível chamado à interiori-
dade espiritual; pois este é o significado mais central da mensagem de Jesus, a
Palavra Encarnada. Este chamado, que ressoa em cada ouvido com tão imperio-
sas e óbvias acentuações, entrou em consonância com muitas tradições esotéri-
ca, mais ou menos dormentes, ou decadentes, ou escleróticas. A Luz do Verbo
de repente as iluminou, fazendo-as emergir das trevas, e trouxeram de volta à
memória seu significado vivo que parecia irrecuperavelmente perdido. Assim,
recusando-se a se implantar no tronco da oliveira crística e serem carregados à
verdadeira raiz da gnose, quiseram o oposto, enxertar o ramo crístico no tronco
de velhas tradições, apenas para se beneficiar de sua vitalidade e revitalizar suas
velhas tradições39. Nossa explicação não pode arrogar perfeita certeza, mas tem o
mérito da plausibilidade. Também é consistente com o fato de que, por um la-
do, o Gnosticismo é uma heresia cristã, e, por outro lado, fragmentos doutrinais
de todas as origens, e, frequentemente, de proveniência pré-cristã, podem ser
encontradas nele. Finalmente, é baseado essencialmente na consideração do po-
deroso caráter gnóstico da manifestação crística, que, parece-nos, foi ignorado
até agora.40
Como podemos ver, os desafios desta questão formidável não são peque-
nos, e é por isso que tivemos que tratar de sua história. É altamente significativo
que a primeira heresia cristã tenha sido o Gnosticismo, e que, de certa maneira,
toda a história do Ocidente tenha sido mudada por este fato. Pois o Gnosticis-
mo herético, embora tenha desaparecido quase inteiramente no quinto ou sexto
século, pelo menos sucedeu em uma coisa: desacreditou definitivamente o ter-
mo “gnose” do Novo Testamento, e, em fazê-lo, quase obscureceu completa-
39 Comentamos livremente aqui Romanos 11:17–24. O paradoxo de São Paulo, que reverte o processo
normal de enxerto, foi enfatizado. Mas, em certo respeitos, a ordem sobrenatural é o oposto da ordem
natural. O Cristo é a verdadeira árvore, a verdadeira oliveira, em relação a qual todas as tradições anti-
gas, pagãs, ou mesmo judaicas, foram transplantadas. Podemos apenas nos transplantar a Ele. Por este
mesmo fato da aparição da tradição crística, todas as outras tradições, mesmo as mais antigas, são co-
mo que descentradas e desenraizadas. É isto que São Paulo quer dizer.
40 Apresentamos apenas um esboço aqui. Seria apropriado mostrar em detalhe como nossa tese conside-
ra a maioria das características que os historiadores reconhecem no Gnosticismo.
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41 Lehbuch der Dogmengeschichte, Tübingen, 1886, Título 1, página 162; H. C. Puech, ibidem, 143.
42 H. Lietzmann, Geschichte der alten Kirche, 1, Die Anfänge, 1932, página 317; H. C. Puech, ibidem,
página 144.
43 Reitzenstein-Schaeder, Studien zum Antiken Synkretismus aus Iran und Griechenand, 1926, página
141; H. C. Puech, ibidem, página 144.
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cada por um longo período, Bossuet tendo evidentemente proibido sua difu-
são44. Não obstante, Bossuet mesmo não toma ofensa com o uso do termo, e só
tenta trazer seu significado de volta ao nível da teologia comum: “Eu não vejo”,
ele diz, “ser necessário entender sob o nome de ‘gnose’ qualquer outra fineza ou
mistério do que o grande mistério do Cristianismo, bem sabido pela fé e bem
entendido pelos perfeitos devido ao dom da inteligência, sinceramente pratica-
do e tornado em um hábito”.45 Similarmente, Saint-Simon atesta a nós que o
termo “gnose” designava, na corte de Luís XIV, a doutrina de Fénelon46, todavia
o caráter “comprometedor” do termo parece a nós ter sido acentuado com o
tempo. As razões para isso não são difíceis de presumir.
O fracasso de Fénelon em seu esforço de reviver a gnose de São Clemente
de Alexandrina trazendo-a mais para perto da mística teresiana e sanjuaniana as-
sim como da doutrina do puro amor deixou apenas um significado para este ter-
mo, o condenado. De fato, os dicionários da época, aquele de Moreri, ou o fa-
moso Dictionnaire do Padre Bergier47, não contêm artigo sobre “gnose”, mas
apenas sobre os “gnósticos”, lidando primariamente com os gnósticos deste no-
me. O significado comum dificilmente é mencionado. Sem dúvidas o Catolicis-
mo oficial estava assim convencido de que tinha ganhado a batalha contra a
gnose, e que, ao banir o termo, tinha garantido uma vitória definitiva sobre a
coisa que designa. Mas este não é o caso. A condenação de toda gnose só teria si-
44 Publicado com uma introdução pelo Padre Paul Dudon, S. J, “ Études de Théologie Historique”, Beau-
chesne, 1930, 11, 299 páginas. O texto de Fénelon ocupa as páginas 163 a 256. É um caderno manus-
crito que permaneceu desconhecido até sua descoberta pelo Padre Dudon na biblioteca de St. Sulpice.
Nem Fénelon, nem Bossuet, em sua querela pública, fez a menor alusão a ele. Bossuet, todavia, citou-
o e o refutou em seu Tradition des Nouveaux Mystiques, mas sem nomear o autor. Fénelon tendo o
submetido, Bossuet recusou a publicação de seu trabalho, que não foi publicado até 1753. Seria neces-
sário esclarecer que não partilhamos de qualquer modo as conclusões negativas do apresentador com
relação à apresentação féneloniana da gnose clementina? Fénelon sabe de que fala.
45 Tradition des Nouveaux Mystiques 3:1, Dubon, ibidem, página 25.
46 Citado em “Litrré”. Não prova este texto de Saint-Simon que a designação de gnose como quietismo
era mais comum do que é usualmente pensado?
47 É apresentado na “parte teológica” da Encyclopédie de Diderot e d’Alembert. Mas, em verdade, toma
os artigos para retificá-los ou combatê-lo (1798). A Encyclopédie em si, no artigo “gnósticos”, reproduz
apenas o artigo do Dictionnaire de Trévoux, adicionando, contudo, uma significativa alusão ao quie-
tismo e ao pietismo. Dom Calvet, em sua Histoire de l’Ancien et du Nouveau Testament et des Juifs,
não dá citação adicional e não reporta nenhum uso ortodoxo do vocábulo “nose” (nova edição, Nis-
mes, 1781, Tìtulo 3, páginas 247–248).
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON
tãos a gnose disse: ‘Seu líder é uma inteligência da ordem mais alta, mas seus
apóstolos não entenderam o mestre, e, por sua vez, seus discípulos alteraram o
texto que foi deixado a eles’”.52
Tal é, aproximadamente, a ideia de “gnose” sustentada por aqueles que
chamamos “místicos anticlericais”, e com quem o jovem Guénon teve contato.
Eles falam dela com tanto mais autoridade quanto desdenham inquirir sobre ela
historicamente, convencidos de que são os únicos que realmente sabem de que
se trata. Muito embora quão universal sua concepção de gnose possa ser, eles
pretendem colocar a si mesmos na continuidade doutrinal do que começava a
ser chamado “Gnosticismo”, isto é, das escolas cristãs heréticas. Esta doutrina é
geralmente apresentada como uma reação emocional ao escândalo da existência
do mal. Isto é inegável, mas insuficiente. O mal objetivo presente na Criação,
que parece a eles irremediavelmente enraizado, é tão agudamente sentido como
injustificável apenas em correlação com o dramático excesso de ênfase na interi-
orização salvífica: estes dois excessos, um objetivo, o outro subjetivo, condicio-
nam um ao outro. O dever de interioridade repudia toda a Criação material co-
mo má, e a decadência da Criação não deixa outra Salvação que a fuga interior.
O resultado, como mostramos n’outro lugar53, é um angelismo anticriacionista
que é necessariamente acompanhado por um Docetismo cristológico: como po-
deria Deus ter se tornado verdadeiramente carne, se a carne é inteiramente má?
Consequentemente, o Criador bíblico é apenas um demiurgo, um deus mau,
que deve ser rejeitado junto a todo o Antigo Testamento e o rabinismo teológi-
co de São Paulo. Esses temas são bem conhecidos. Eles revelam, com relação à
doutrina metafísica como Guénon mesmo a ensinou, não apenas um pensa-
mentos mais bháktico do que jñânico, mas também um radical mal-entender do
mistério da Imanência Divina na exterioridade cósmica; pois, como o Qurʾān
ensina: “Ele é o primeiro e o último, o exterior e o interior, e Ele conhece todas
as coisas infinitamente” (58:3)54. Como podemos ver, de acordo com o Qurʾān,
a gnose infinita de Deus consiste precisamente em sua unidade radical e estrita
52 Pergunta-se, é claro, como é possível que “uma inteligência da ordem mais alta” poderia se enganar na
escolha de suas testemunhas.
53 Gnose Chrétienne et Gnose Anti-Chrétienne.
54 Ver, sobre este tema, La Croix ‘Temps-Espace’ dans l’Onomatologia Koranique, um dos maiores trata-
dos de Frithjof Schuon, em: Forme et Substance dans les Religions, Dervy, 1975, páginas 69–83.
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60 Um tal modo de comunicação de iniciação não é, de acordo com René Guénon, impossível; cf. Aper-
çus sur l’Initiation, Éditions Traditionnelles, 1953, páginas 69–70. Não é sem similaridade àquela que
iniciou a renovação da Ordem do Templo em 1908, e de que Guénon seria o líder.
61 M. F. James, em Esotérisme, Occultisme, Franc-Maçonnnerie au XIX et XX Siècle, Explorations Biblio-
graphique, Nouvelles Editions Latines, 1981, indica duas datas diferentes para esta consagração: 1892,
página 103, e 1889, páginas 114.
62 Esta conversão será seguida de um retorno ao Gnosticismo, e, porventura, de uma nova abjuração. Ele
morreu em 1902. Sobre Pouvourville se pode ler, Matgioï. Un Aventurier Taoïste de J. Laurant,
Dervy, 1982, 114 páginas. De acordo com a informação concedida por Robert Amadou (M. F. James,
Esotérisme, Occultisme, Franc-Maçonnerie au XIX et XX Siècle, Explorations Bibliographique, Nouvel-
les Editions Latines, 1981). J. Doinel, além de uma consagração em mode subtil, teria recebido, bem
regularmente, o selo episcopal de um bispo da Igreja de Utrecht. De acordo com J. P. Laurant, Le Sens
Caché dans l’Oeuvre de René Guénon, Editora l’Age d’Homme, 1975, página 91, teria sido o episcopa-
do de Antioquia. Esta consagração é canonicamente válida.
63 Ao mesmo tempo, como mencionamos na Nota nº 60, Guénon, que já era um maçom e afiliado com
o Martinismo Papusiano, recebeu do “além”, de Jacques de Molay, a missão de renovar a Ordem do
Templo e ser seu líder. Esta Ordem do Templo Renovada (O. T. R.) fez uso extensivo de meios medi-
únicos de comunicação. Ele realizou seu trabalho no meio de numerosas querelas e excomunhões (no-
tavelmente com os papusianos, que acusaram Guénon de manobras tenebrosas). No final de 1911,
“sob as ordens de seus mestres”, Guénon proclamou a dissolução da O. T. R. (M. F. James, Esotérisme
et Christianisme, página 99). J. Robin vê nesta O. T. R. uma possível solução para o problema das fon-
tes para a obra de Guénon (René Guénon. Témoin de la Tradition, 1978, página 50 e adiante).
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ção parou em fevereiro de 1912. estes são os fatos, tanto quanto fomos capazes
de reconstruí-los.
Quanto à doutrina da Igreja Gnóstica, está em todos os respeito em con-
formidade com as teses do Gnosticismo dos primeiros séculos: antijudaísmo e
antijeovismo, renovadas acusações contra os Padres da Igreja, que “distorceram
de milhares de maneiras os ensinamentos que receberam”, anticlericalismo
etc.64 Inquestionavelmente, estas teses estão em contradição com o ensinamento
posterior de Guénon. Como então, poderia ele fazê-las suas? As afiliações suces-
sivas ou simultâneas de Guénon com várias organizações pseudoesotéricas são
geralmente explicadas como uma investigação para verificar suas afirmações ini-
ciatórias65. Ademais, Guénon mesmo apresentou as coisas deste modo, falando
das “investigações que tivemos que fazer sobre este assunto”, isto é, sobre o as-
sunto da regularidade iniciatória.66 É verdade que em outro texto ele afirma
que: “Se tivemos que penetrar, em uma certa época, tais e tais círculos, é por ra-
zões que concernem a nós apenas”67, que não contradiz sua afirmação anterior,
mas é certamente menos explícito. Recordamos, além disso, a declaração que ele
fez a Maurice-Denis Boullet, de acordo com a qual entrou na Igreja Gnóstica
para destruí-la68. Como parece a nós impossível disputar a significância conver-
gente destas asserções, não somos forçados a admitir que Guénon estava since-
ramente investigando as afirmações esotéricas das organizações em questão, e es-
tava tentando, com esse propósito, penetrar cada uma de suas associações? Não
seria um exame crítico de suas doutrinas declaradas, que eram obviamente anti-
64 M. F. James, Esotérisme et Christianisme, página 82; J. P. Laurant, Le Sens Caché dans l’Oeuvre de Re-
né Guénon, página 45, página 135 etc.
65 P. Chacornac, La Vie Simple de René Guénon, Éditions Traditionnelles, 1958, página 33; Robin, René
Guénon. Témoin de la Tradition, 1978, página 45, página 135 etc.
66 Aperçus sur l’Initiation, página 41.
67 Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage (Éditions Traditionnelles, 1964), Título 1, pági-
na 197.
68 Para J. Robin, esta declaração não significa uma desautorização de Guénon com relação à regularidade
da Igreja Gnóstica, mas apenas a preocupação de prevenir essa organização, autêntica mas morrendo,
de cair, como um cadáver psíquico, nas mãos do satanista Bricaud, um dissidente da Igreja Gnóstica
que fundou uma igreja cismática sob o nome de “João II”.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON
tradicionais, suficiente? Sem dúvidas deve ser presumido que certas aparências
podem ser enganosas ou confusas a este respeito.69
Deve-se, por conseguinte, ser concluído que, ao contrário de nossa supo-
sição anterior, Guénon nunca fez suas as doutrinas em questão, e apenas pare-
ceu acomodá-las pelo tempo necessário para suas investigações. Esta conclusão
parece ser confirmada por certos textos de Palingénius, que, por exemplo, decla-
ra, em 1911: “Nós não somos neognósticos […] e, quanto àqueles (se ainda exis-
tam) que afirmam sustentar o único Gnosticismo Greco-Alexandrino, eles não
nos interessam de modo algum”70. É também certo que — como foi frequente-
mente apontado — em muitos dos artigos deste período encontramos elemen-
tos doutrinais idênticos àqueles formulados pelo Guénon maduro. Mais, Gué-
non mesmo declarou, em 1932, após o texto acima mencionado, sobre as razões
pessoais que teve para “penetrar tais e tais círculos”: “Quaisquer publicações em
que tenhamos publicados artigos, seja ‘àquela época’ ou não, sempre tivemos
exatamente as mesmas ideias, sobre as quais nunca variamos”.71
Ainda, é bastante difícil reconciliar certas afirmações do período de 1909
a 1913 com aquelas da obra posterior. Se acreditamos, como dissemos no come-
ço, que no essencial, isto é dizer, sobre a metafísica pura (ou gnose) Guénon
nunca variou, e por boas razões, somos, não obstante, obrigados a notar que seu
julgamento sobre o que chamaremos amplamente “formas tradicionais” mu-
dou.
Alguns anos atrás, em um artigo bastante judicioso, Jean Reyor sublin-
hou o quanto a publicação de certos textos anteriores a 1914 poderia confundir
69 Não é este o caso da Maçonaria, ou, pelo menos, de alguns de seus ramos, cuja ideologia ateística e
progressista, de acordo com os critérios de Guénon, deveria ser imediatamente condenada? Para falar a
verdade, as “vagâncias” iniciatórias de Guénon não nos surpreenderíamos demais se admitíssemos que
um destino humano pode conhecer contradições e reversões: uma vida não se desenrola como um teo-
rema matemático. Mas deve ser admitido que um certo Guénonismo quer conferir a certas discordân-
cias, inevitáveis à existência de um homem, o valor de um ensinamento infalível, ao custo de uma in-
genuidade hermenêutica realmente excessiva (vide Robin, René Guénon. Témoin de la Tradition,
1978, página 193, que tenta atenuar o significado bastante claro das afirmações de Guénon em Aper-
çus sur l’Ésoterisme Chrétien, página 150, nº 1: “Os neognósticos nunca receberam coisa alguma por
qualquer transmissão que seja”).
70 La France Anti-maçonnique, nº 26 de agosto de 1911, citada por J. Robin, René Guénon. Témoin de
la Tradition, página 19).
71 Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage, Título 2, páginas 266–267.
JEAN BORELLA
o leitor de Guénon, que “em sua idade madura não quis mais estar de acordo
com todas as posições tomadas em seus escritos de juventude”72. Quando afir-
ma, por exemplo, na revista La Gnose que “a tradição não é, de maneira alguma,
excludente da evolução e do progresso”, que o objetivo da Grande Obra é “a in-
tegral realização do progresso em todos os campos da atividade humana”, que
os maçons não têm que reconhecer “a existência de qualquer Deus”73, e, ade-
mais, que “o Deus das religiões […] não é apenas irracional, mas mesmo antirra-
cional”, e que “o Deus antropomórfico dos cristãos” não pode ser assimilado a
“Jeová […], o hierograma do Grande Arquiteto do Universo mesmo”, cujo no-
me pode ser substituído por aquele da humanidade74 e outras tais estranhezas,
temos os direito de nos perguntar, sem malícia, se essas afirmações são reconcili-
áveis com o que encontramos n’A Crise do Mundo Moderno ou n’O Reino da
Quantidade e os Sinais dos Tempos. É impossível responder que sim, mesmo qe
Guénon especifique que, por “humanidade”, por um lado, deve-se entender
“Homem Universal”, e que a razão pode ser considerada como “razão superi-
or”, de acodo com uma expressão de Santo Agostinho, que também é o caso pa-
ra a palavra “manas” em Śaṅkarā ou na Escola Sāṃkhya.75
Mas, para falar a verdade, estas divergências concernem mais um tom ge-
ral, revelador de uma atitude, em vez de pontos doutrinais em particular. O uso
de um vocabulário de racionalismo anticlerical prova, acima de tudo, que Gué-
non ainda não havia se libertado de certas influências e certos círculos cuja lín-
gua ele, em alguns respeitos, adotou. Isto é algo que ele não fará depois, a partir
de 1911–1912, quando ele definitivamente rompe com as organizações ociden-
tais às quais pertencia, ou procede com sua dissolução ele mesmo. Esta mudan-
ça de atitude não concerne apenas as noções de progresso, evolução, e racionalis-
mo, que se caracterizaria muito bem como “a ideologia do livre pensamento”.
Também concerne algo muito mais importante, isto é, a atitude de Guénon em
relação à religião em geral e ao Cristianismo em particular. Sem dúvidas, esta
atitude permanecerá bastante crítica. Mas se percebe no jovem Guénon uma in-
72 René Guénon et la Franc-Maçonnerie. A Propos d’un Livre Récent, publicado na revista Le Symbolis-
me, nº 368, janeiro / fevereiro de 1965, página 117.
73 Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage, Título 2, páginas 266–267.
74 Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage, Título 2, páginas 282–285.
75 Guénon o indica nas páginas 72 e 74 de l’Homme et son Devenir selon le Vedānta.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON
que era na realidade, e, em segundo lugar, porque, de qualquer maneira, sua forma grega é maxima-
mente repulsiva a nós” (Comptes-Rendus, página 119). Que a forma grega repele Guénon, vemos, mas
tal sentimento não pode constituir uma garantia de objetividade.
89 J. Robin, René Guénon. Témoin de la Tradition, página 69.
90 Les Actes du Colloque International de Cerisy-la-Salle (13–20 de julho de 1973): René Guénon et
l’Actualité de la Pensée Traditionnelle, Éditions du Baucens, 1977, contém testemunhos importantes a
este respeito, em particular aquele de Nadjmoud-Dine Bammate.
JEAN BORELLA
93 Elaboramos sobre estas questões em Les Fondementes Métaphysiques du Symbolisme Sacré, Título 1,
Capítulo 3, Artigo 1, Secção 2, § 4º.
JEAN BORELLA
conhecida.94 Vemos tudo o que separa uma tal concepção daquela de Platão. Pa-
ra Platão, saber é saber o que é. A verdade do conhecimento varia de acordo
com a realidade de seu objeto. Há, assim, essencialmente, graus de conhecimen-
to correspondendo de maneira rigorosa aos graus da realidade, tal que qualquer
grau inferior é ignorância com relação ao superior: não poder haver verdadeiro
conhecimento daquilo que não é verdadeiramente, isto é dizer, do vir-a-ser.
Apenas o conhecimento do Absoluto (o “Incondicionado”, “Anhypótheton”) é
absolutamente conhecimento. É aquele do Supremo Bem “além do Ser”
(“epekeīna tēs ousías, República 4:509b), mas que requer a atualização do inte-
lecto (noús) e o abandono do conhecimento discursivo (diánoia). Em outras pa-
lavras, porque todo conhecimento verdadeiro é um desejo de ser, o intelecto
não pode (verdadeiramente) conhecer qualquer coisa com que não pode se
identificar. Mas pode o homem se tornar uma pedra, uma árvore, ou um gato?
Não. Consequentemente, não há perfeito conhecimento da pedra, da árvore,
ou do gato (como seres sencientes e físicos).
Em contraste, é do Mundo Físico que Aristóteles quer obter uma certeza
científica. Podemos ver em que sentido devemos entender a fórmula do De ani-
ma que Guénon gostava tanto de citar: “A alma é tudo o que conhece” 95. Não
pode ter o significado de uma união entitativa da alma com seus objetos de co-
nhecimento. Nem se pode considerar uma revelação inconsciente de Aristóte-
les, significando mais do que objetivava expressar. De fato, a exata formulação
sempre contém o advérbio “pо̄ s”, “d’alguma maneira” (“quodamodo”)96. E se a
alma, no ato de conhecimento, pode ser, quodammodo, todas as coisas (pedra,
94 Aristóteles distingue a “primeira filosofia” (ou “teologia”) e a “segunda filosofia”. Mas, se o objeto de
uma (o Ser qua Ser) difere do objeto da outra (o ser físico), sua ciência é uma. Há, ele diz, a mesma re-
lação entre a metafísica e a física que há, na matemática, entre aritmética e geometria (Metafísica
4:2:1004–1005). Abstração ou é física, ou matemática, ou metafísica.
95 Por exemplo, Introduction Générale à l’Étude des Doctrines, página 145. Genericamente falando, Gué-
non favorece Aristóteles em detrimento de Platão, que obviamente o irrita. Em seu “Discurso contra
Discursos” (Études Traditionnelles, nº 428, página 247), ele chega a afirmar que a dialética de Platão é
apenas “divertimento vazio” e que “não poderia levar a qualquer conclusão profunda”, o que é um
tanto chocante. Entende-se, então, que ele possa declarar que a metafísica ocidental, com seu “caráter
incompleto”, “é reduzível à doutrina de Aristóteles e os escolásticos” (Introduction Générale à l’Étude
des Doctrines, página 116). Sem comentários!
96 Por exemplo: De anima (3:8:431b:21), “è psychē tá onta pо̄ s est panta”; “a alma é, de certa forma, todo
ser”.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON
mia a todo homem que vem a este mundo” (João 1:9), isto é, cada ser que atin-
ge o estado humano.
Mas isto não é tudo. Estudando a doutrina de Guénon cuidadosamente,
percebe-se que o conhecimento metafísico, além desta notável situação que de-
cisivamente o arranca do mundo profano e o restaura à sua ordem própria, é ca-
racterizado em si como uma efetiva consciência do Real, tanto que, para o ho-
mem, apenas aquilo de que ele se tornou efetivamente consciente é real, todo o
resto sendo definido como meramente possibilidade. O conhecimento é, assim,
“realização”, não no sentido idealista de que cria o real, mas no sentido de que
apenas através dele há, para o ser humano, o real. O real é rigorosamente correla-
tiva a ato pelo qual o sujeito se torna consciente dele. Não é postulado contradi-
toriamente em si por uma afirmação teorética que esquece que a autonomia e
independência do real que postula é exata e necessariamente dependente do ato
que o postula, como o crítico filosófico terá granze prazer em enfatizar. Em ou-
tras palavras, e para nos expressar menos abstratamente: qualquer afirmação do
Absoluto e Infinito Real parece pecar por excesso e por falta: por excesso por-
que, sendo relativa, diz mais do que tem direito; por defeito, já que o Absolut´e
nada mais do que afirmação.100 À segunda dificuldade, Guénon responde mos-
trando, de maneira bastante clássica, que não é o intelecto humano que afirma
o Absoluto Divino, mas o Absoluto em Si que a firma a Si mesmo em cada inte-
lecto: o Verbum Illuminans. À primeira dificuldade, a resposta é mais “origi-
nal,” ou, pelo mais, mais explícita do que o comum. E, de fato, não parece ter si-
do formulada desta maneira antes, mesmo que seja pressuposta por toda verda-
deira gnose, e, primeiro de tudo, pela jnāna de Śaṅkarā. Esta “nova” explicação
é, obviamente, requerida pela profunda obscuridade metafísica do presente fim
cíclico, durante o qual o desenvolvimento prodigioso da capacidade mental em-
botou progressivamente a intuição intelectiva das verdades implícitas. Estamos
na época em que é preciso “colocar os pingos nos ‘Is’ e colocar os traços nos
‘Ts’” — dizemos isso sem a menor ilusão.
100 Apenas aqueles que nunca se perguntaram sobre o significado de um kōan, ou sobre a “unicidade do
testemunho” (wahdat al-šuhūd), uma unicidade que o testemunhador al-Ḥallāj só pôde realizar por
sua própria extinção crucificante, acharão estes apontamentos ociosos ou sofísticos. A questão é: o
que é a Buddheidade? Ou, novamente: como “dizer ‘Deus’”, ou como ser “Théo lógos”?
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON
É n’Os Múltiplos Estados do Ser que Guénon dispõe esta resposta. Pri-
meiro tentemos a extrapolar. A obra começa com um capítulo devotado à fa-
mosa distinção entre o Infinito e a Possibilidade Universal, uma distinção que,
ademais, não tem realidade exceto do nosso ponto de vista, já que, do ponto de
vista do Princípio Supremo, a Possibilidade Universal é o próprio Infinito; to-
davia, tampouco é arbitrária, já que corresponde a dois “aspectos” do Supremo,
um aspecto analogamente “ativo” e um analogamente “passivo”. Este não é o
lugar para investigar a origem desta distinção101, que é mais tântrica do que
šaṅkárica102, mas devemos nos perguntar por que Guénon introduz o conceito
de Possibilidade Universal. Qual é seu objetivo? Qual é seu propósito? Não é o
conceito de Infinito suficiente? Guénon dá uma primeira resposta afirmando
que o ponto de vista da Possibilidade Universal constitui “o mínimo de deter-
minação que é requerida para tornar o Infinito de fato concebível”. Em resumo,
não podemos de fato concebe o Infinito em Si. Quando pensamos no Infinito,
podemos, em verdade, pensar na “Possibilidade Universal”, ou, em outras pala-
vras, “aquilo que pode ser absolutamente qualquer coisa”, “aquilo cuja realida-
de não pode ser limitada por absolutamente nada”, e esta é, basicamente, outra
maneira de falar da “absoluta não-contradição” da ideia de Infinito, já que o im-
possível é aquilo que implica contradição.103 Nós então descobrimos que esta
determinação mínima corresponde a um aspecto “objetivo” do Infinito, que
Guénon identifica com a perfeição passiva. De qualquer maneira, a Possibilida-
de Universal necessariamente inclui aquilo que excede o Ser, já que o Ser, ou de-
terminação principal, é inevitavelmente contraposto àquilo que não é, e assim
101 Que é nada outro que aquilo que a Escolástica chama de “distinção virtual”, isto é dizer, nem real,
nem apenas da razão.
102 Há pouca menção da Śakti de Brahmā na obra principal de Śaṅkarā, o Comentário sobre os Aforis-
mos do Vedānta: uma vez em 2:1:14, de acordo com o índice de G. Thibault (O Vedāntasūtra de Bā-
darāyaṇa com o Comentário de Śaṅkarā. Dover Publications Inc. 1962, dois volumes). É o Tantrismo,
em particular Abhinavagupta, que desenvolve plenamente a doutrina que Ānanda Kumāraswāmī cha-
mou “Biunidade Divina” (Études Traditionnelles, nº 212–213, 1937, páginas 289–301).
103 Para comentar estas páginas bastante densas, seria necessário sublinhar seu pano de fundo leibniziano,
em particular as páginas 14–16, onde Guénon, em conformidade com o desejo de Leibniz ( New Es-
says on Human Understanding 4:10, § 7º), mostra que a ideia do Infinito é possível (não-contraditó-
ria) e necessária.
JEAN BORELLA
contradito por isso.104 Assim o Ser não está “além” de toda contradição, não rea-
liza a absoluta não-contradição, que é outro nome para a Possibilidade Univer-
sal. Para o Supremo ser absolutamente não-contraditório, tal que nada possa
contradizê-Lo, é por conseguinte necessário que exceda a primeira de todas as
determinações, e abrace aquilo que está além do Ser. Este é o motivo pelo qual,
para Ele, “ser capaz de ser absolutamente tudo” significa também a habilidade
de ser Não-Ser. Tal é a lógica do Infinito. Parece, assim, que o ponto de vista da
Possibilidade Universal é dificilmente uma determinação, que só começa real-
mente com o Ser, mas que é, em vez, necessário considerá-La como a determina-
bilidade universal do Princípio, que, em Si, é não-determinado (ou supradeter-
minado) mesmo pela determinação principal do Ser.
Todavia, o conceito mesmo de possibilidade guada uma ambiguidade,
conquanto deriva seu significado de uma oposição àquele de realidade. O que é
possível é aquilo que “pode ser”, isto é dizer, aquilo que não contém nenhuma
contradição conceitual (como aquela de um círculo quadrado, de um bode ca-
bra, ou de uma vértebra gasosa), mas que não está atualmente realizada, ou que,
pelo menos, é considerada à parte de sua atual realização ou não-realização.105
Não há dúvidas de que a filosofia escolástica considera o possível como desig-
nando a essência das criaturas conquanto elas estão apenas em Deus, e, assim,
“anteriormente” a toda existenciação. Adotar este ponto de vista é afirmar que
há apenas possibilidades de criação (cuja existenciação depende da Vontade Di-
vina), por um lado, e, por outro lado, que as possibilidades têm significado ape-
nas com relação à sua realização. Por conseguinte, obviamente não se pode falar
da Realidade Suprema como Possibilidade Universal, que implicaria que não é
real, nem se pode falar de possibilidades de não-manifestação. É por isso que
Guénon afirma que a “distinção do possível e do real, sobre a qual muitos filó-
104 A maior contradição do Ser, em alguns aspectos, é a existência universal (a Criação), que procede do
ser, e assim difere d,’Ele, o que implica ser misturada com o nada, isto é, de “ser menor”.
105 Pode-se livremente fazer as próprias definições contanto que sejam bem fundamentadas. Guénon se
conforma ao uso escolástico, que distingue dois pares de opostos, o possível e o impossível, o necessá-
rio e o contingente; o primeiro par concerne a essência, o inteligível puro, o segundo a existência. É
possível ou impossível aquilo cuja definição (essência) implica ou não contradição. É necessário ou
contingente aquilo que pode não ser ou não.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON
sofos fortemente insistiram, não tem valor metafísico”106. Mas, então, para que
falar destas possibilidades? E especialmente de possibilidade de não-manifesta-
ção? Por que não falar de uma vez de realidades não-manifestadas? — Já que há,
de fato, uma identidade metafísica entre o possível e o real, e, lidando com o
imanifestado, estamos, certamente, no nível metafísico par excellence. O termo
de possibilidade manteria um significado no que diz respeito ao Metacosmo Di-
vino, em que toda as coisas estão em permanente atualidade? “Possibilidades de
manifestação” oferece um claro significado em relação à manifestação, para indi-
car a relação entre a Essência Eterna e Sua existenciação em um mundo determi-
nado. Mas como poderia haver existenciação no nível do imanifestado? A não
ser que se queira dizer apenas possibilidades que Deus não quer realizar. Mas
Guénon rejeita esta interpretação: as possibilidades de manifestação definem to-
das as coisas manifestáveis, sejam elas manifestadas ou não.
Como podemos ver, a dificuldade é óbvia, e deve ser admitido que a sim-
ples expressão “possibilidades de não-manifestação” é de fato estranha. Não é
menos surpreendente notar que nenhum guénoniano “de estrita observância”
— até onde sabemos — levantou esta dificuldade, nem chamou atenção à solu-
ção que Guénon propõe. Pois ele de fato propõe uma, mas de maneira um tan-
to discreta. A sétima nota de rodapé, na página 23, anuncia que a palavra “real”
receberá “um significado muito mais preciso mais tarde”. E isto é tudo. Temos
que esperar até a página 92 (quase o fim do livro) para ler a seguinte frase: “E es-
te é o lugar para especificar um pouco […] a maneira segundo a qual devemos
entender a identidade metafísica entre o posível e o real”. Não podemos comen-
tar na medida que seria apropriada sobre o texto que se segue e que constitui o
ensinamento essencial deste capítulo, significantemente chamado: Conheci-
mento e Consciência. Cabe a cada um de nós meditar nestas páginas, que con-
têm, de certa maneira, o que o Evangelho chama “chave da gnо̄ sis” (Lucas
11:52)”. Apenas destacaremos o que concerne nossa questão.
De primeira se pode pensar que esta é apenas uma questão de terminolo-
gia. De fato, Guénon propõe especificar o significado da palavra “real” como
significando aquilo de que um sujeito se tornou efetivamente consciente, aqui-
lo que se “realizou”, no sentido do inglês “to realize”. Mas nós imediatamente
106 Les États Multiples de l’Être, página 23.
JEAN BORELLA
entendemos que esta proposição vai muito além. Não apenas ela nos permite
considerar a realização através do conhecimento sob uma nova luz a consideran-
do inseparavelmente como uma realização do “objeto” tanto quanto do “sujei-
to”, mas também se baseia no que chamaremos uma metafísica do conhecimen-
to, que, em um certo sentido, suplanta uma metafísica do ser.
Concernindo o primeiro ponto, isto é, a correlativa “realização”, através
do conhecimento, do sujeito conhecedor e do objeto conhecido, diremos que
atualiza sua primordial e subjacente unidade. O real é correlativo à consciência
que se tem dele, e, consequentemente, o grau de realidade é correlativo ao grau
de consciência. Se, para nós, a realidade é primeira e imediatamente o Mundo
Corpóreo, é porque nossa consciência é primeiramente puramente sensorial, is-
to é dizer, absorvida no Mundo Sensível. Ela assim “realiza” a possibilidade cor-
pórea, não no sentido de que a faz existir, como se conferisse ser a ela, mas no
sentido de que não se poderia falar do Mundo Sensível independente de seu co-
nhecimento pelos sentidos. A sensação, diz Aristóteles, é o ato comum do sentir
e do sensível, e o sensível só é atualizado na sensação. Não há idealismo aqui,
muito pelo contrário, pois o idealismo sempre começa pela ideia (psicológica),
isto é dizer, do sujeito pensante postulado solitariamente em sua realidade inde-
pendente, conquanto aqui sujeito e objeto são considerados desde o princípio
na unidade de sua relação de fato.107 Nem é objetivismo, que, como dissemos,
contraditoriamente postula um objeto que não seria objeto para ninguém. Fi-
nalmente, nem é um monismo, porque a distinção entre sujeito e objeto não é
negada: é mesmo feita possível na unidade de seu ato comum. O que se segue
disto é que, se queremos dar um significado de fato ao real, devemos observá-lo
como o resultado do conhecimento, isto é, o ato comum do conhecedor e do
conhecido, do intelecto e do inteligível. Conhecimento é realização e realização
é conhecimento. O que não é atualmente conhecido não é, por conseguinte,
atualmente “real”, e deve portanto ser considerado como possível. Novamente,
isto não significa de modo algum que aquilo de que não estamos presentemente
conscientes é puramente não-existente, nem que requerer-nos-ia acessar o Ser,
mas apenas que, no sentido estrito do termo, falar da realidade de algo de que
não estamos atualmente conscientes necessariamente compreende uma quanti-
107 De fato, esta tese seria um tanto próxima do que é mais aceitável na fenomenologia de Husserl.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON
108 É também essa, pensamos, a questão que Platão pergunta n’O Sofista 248–249: “Se saber é agir, ne-
cessariamente se segue que o que é conhecido sofre. De acordo com este raciocínio, o Ser, sendo co-
nhecimento pelo conhecimento, e conquanto é conhecido, será movido nesta medida, já que é passi-
vo, porque sofrer não pode ocorrer àquilo que está em repouso”. Em outras palavras: se o Ser é imutá-
vel, como pode ser conhecido? Encontramos aqui a Possibilidade Universal, a perfeição passiva con-
quanto é a “cognoscibilidade do Supremo”.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON
Já vimos a dificuldade que falar sobre o Ser apresenta pelo lado do sujeito
humano. Mas a dificuldade não é menor pelo lado do objeto conhecido, isto é
dizer, do Ser em Si. O que significa, para Ele, ser conhecido, e que significância
tem o fato de que um ato de conhecimento pode ocorrer para aquele que não
pode passar por qualquer mudança? A questão pode nos surpreender, porque
espontaneamente imaginamos o conhecimento como ocorrendo com o Ser “de
fora”, de um “lugar nenhum” inconcebível. Mas se o conhecimento está “fora”
do Ser, então ele não existe. E se é parte do Ser, não pode ocorrer, pois o Ser é
imutável. Em um caso tanto quanto no outro, não pode ocorrer, é impossível. É
por isso que, aqui também, somos forçados a dar conta do ato de conhecimento
indo além do Ser, onde a identidade do “Eu” com o “Eu” não é mais de nature-
za imutável, mas transcende a oposição de mutável e imutável, contendo-os su-
pereminentemente, porque é absolutamente puro, livre de qualquer natureza
ou essência determinada. O conhecimento, considerado assim em sua possibili-
dade principial, é, então, como Guénon diz, um “aspecto do Infinito”.109 Cor-
responde bem precisamente ao que a Tradição Católica chama “Imaculada
Conceição”, já que é, em última análise, a imaculada conceição (livre de toda
determinação, mesmo essencial) que o Absoluto tem de SI mesmo. Esta analo-
gia é ainda mais forte porque há uma profunda semelhança, uma identidade
metafísica mesmo, entre a Possibilidade Universal, como a Śakti do Brahman
Supremo, e Maria, Esposa de Mãe de Deus, que declarou a Santa Bernadete:
“Eu sou a Imaculada Conceição”110. O evento do conhecimento é, assim, eter-
no. Tem lugar na permanente e universal atualidade do “Intelecto” Supremo (e
supraontológico), ou perfeição ativa, que contém em Si a inumerável relativida-
de das cognições particulares (prises de consciente), conquanto elas são com-
preendidas na perfeição passiva. Esta é a autorrevelação de Deus para Si mesmo,
o “tesouro oculto” que Deus era, e para cujo conhecimento Ele criou o mundo.
Pois Deus deseja ser conhecido, e as miríades de intelectos que se abrem a Seu
mistério são, na realidade, muitos inumeráveis modos nos quais Ele se torna co-
109 Les États Multiples de l’Être, página 91.
110 O Padre Laurentin, no excelente livro que devotou a Santa Bernadete e às aparições de Lourdes, apon-
ta que, quando falava, em Patois, do “ser” que se manifestou na gruta, a garotinha sempre usava o pro-
nome neutro, nunca o masculino ou feminino. Ademais, apontaremos que as iniciais de “Imaculada
Conceição” são idênticas às de “Jesus Cristo”.
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