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GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ


GUÉNON
JEAN BORELLA
JEAN BORELLA

SUMÁRIO
Introdução......................................................................................................3
I. Gnose em sua História................................................................................7
II. O Encontro com os Neognósticos..........................................................21
III. O Mistério da Gnose Infinita................................................................36

AUTOR: Jean Borella TRADUÇÃO (INLGÊS PARA O PORTUGUÊS):


TÍTULO ORIGINAL: Gnose et gnosticisme chez André Protóclito
René Guénon REVISÃO: San
TRADUÇÃO (FRANCÊS PARA O INGLÊS): DIAGRAMAÇÃO E CAPA: San
Sensus Catholicus
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

INTRODUÇÃO

P ode-se estimar que a questão da gnose e do Gnosticismo não ocupa, no


trabalho de René Guénon, senão que um lugar bem secundário. E isto é
bem exato, atendo-nos aos textos, pois que ele não consagrou expressão a essa
questão em artigo algum1. Por outro lado, se observamos que a gnose não desig-
na outra coisa que o conhecimento metafísico, ou ciência sagrada, é forçoso ad-
mitir que Guénon não trata, por assim dizer, de nada mais, e que ela representa
o eixo essencial de toda a sua obra. É da gnose pura e verdadeira, tal como Gué-
non tentou nos comunicar, que gostaríamos de falar aqui, porque cremos que
não há, no Ocidente, noção mais mal conhecida, ou mal compreendida, do que
esta, como nos convence um estudo atento da teologia e da filosofia europeia.
Uma das razões principais para esta incompreensão quase total é que, co-
mo já assinalamos, o termo “gnose” foi desacreditado destarte pelo uso desviado
que fizeram certas escolas filosóficas religiosas do século II d.C., que, por esta ra-
zão, receberam a denominação geral de “Gnosticismo”. Do ponto de vista da fé
cristã, as duas coisas parecem estar a tal ponto ligadas que não se pode conceber
uma sem outra, e se afirma que não há, na realidade, outra gnose do que aquela

1 As referências essenciais a esses dois termos são como segue (damos os títulos em ordem alfabética, a
ordem cronológica não tendo sentido para as coleções póstumas, e de acordo com a paginação da edi-
ção citada):
1. Apercus sur l’Esotérisme Chrétien (Éditions Traditionnelles, 1954), página 50;
2. Comptes Rendus (Éditions Traditionnelles, 1973), páginas 119–121;
3. Les États Multiples de l’Être (Editora Vega, 1980), página 30;
4. Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage (Éditions Traditionnelles,
1964), Título 1, páginas 119, 181, 243, 349, Título 2, páginas 87, 170, 247–261;
5. Formes Traditionnelles et Cycles Cosmiques (Gallimard, 1987), páginas 77 e 83;
6. L’Homme et son Devenir selon le Vedānta (Éditions Traditionnelles, 1974), página 84;
7. Mélanges (Gallimard, 1976), páginas 18, 176–78;
8. Symboles Fondamentaux de la Science Sacrée (Gallimard, 1976), páginas 176–178.
Estas citações não são exaustivas, mas um pouco mais complexas do que aquelas dadas por
André Désilets em “René Guénon”. Assim, este trabalho será de grande serviço para qualquer leitor
de Guénon.
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exemplificada pelo Gnosticismo de cem faces. Mas, como uma consequência


nem um pouco surpreendente, os adversários do Cristianismo adotam a mesma
atitude, e reivindicam que, no Gnosticismo, que identificam com a gnose verda-
deira, possuem uma tradição anterior e superior a todas as religiões reveladas.
Não são, ademais, somente o Cristianismo e o anticlericalismo que pro-
fessam a confusão entre gnose e Gnosticismo; Guénon mesmo, na primeira par-
te de sua vida adulta, não pretendeu reviver o Gnosticismo, pelo menos em sua
forma cátara, participando da constituição de uma “Igreja” Gnóstica, de que foi
(validamente ou não) um dos bispos? Ele que sempre pareceu querer distinguir
a pureza da gnose das impurezas do Gnosticismo, não foi mesmo um membro
de uma organização neognóstica, herdeira pretendida de uma antiga tradição,
animada por um anticatolicismo inequívoco?
Houve uma mudança na atitude de Guénon? Ou deveríamos admitir
que, como ele mesmo escreveu a Noëlle Maurice-Denis Boulet, “n’était entré
dans ce milieu de la Gnose que pour le détruire”2? Nós veremos que, atendo-nos
aos textos, houve de fato uma mudança, pelo menos em certos respeitos, o que
2 L’Ésoteriste René Guénon. Souvenirs et Jugements, publicado em La Pensée Catholique, nº 77, 1962,
página 23. Este estudo, publicado na edição nº 77, 78, 79, e 80, é não apenas uma fonte de preciosa in-
formação sobre a vida de Guénon, mas também representa o esforço mais atento de entendimento
que um filósofo tomista dedicou à sua doutrina. É uma pena, neste respeito, que o livro de Marie-Fra-
ne James (Esotérisme et Christianisme Autour de René Guénon, 1982), que quer ser tão rigoroso no ní-
vel da ciência histórica, e que certamente representa uma soma considerável de pesquisa, testemunha,
a despeito disso, uma quase total incompreensão das doutrinas metafísicas, em particular dos múlti-
plos estados do Ser, uma incompreensão que faz numerosas páginas deste livro completamente ininte-
ligíveis. Por exemplo (página 158), recordando que, para Guénon, o que é dito teologicamente de an-
jos e demônios pode ser dito metafisicamente dos estados mais superiores e inferiores do Ser, ela con-
clui que “assim [ele assimila o homem ao que é dito das ‘hierarquias celestiais’ em Orígenes, Clemente
de Alexandria, ou Dionísio Areopagita]”. Para M. F. James, “estas duas abordagens são intencionadas
a confirmar um terreno espiritual preternatural [psicológico, mágico] e mesmo propriamente espiritu-
al [teúrgico]”. Mas ela não vê, por um lado, que os estados superiores do Ser concernem algo outro
que a parapsicologia — que, conquanto tem um significado, não vai além do grau humano de existên-
cia — já que designam o Mundo Espiritual e mesmo o “Mundo Divino”, e, por outro lado, que o ob-
jetivo desta doutrina é precisamente explicar por que, embora realizando o Ser Total, o homem não
tem que se tornar um anjo no sentido próprio da palavra (Les États Multiples de l’Être, páginas 78–
79). A isto deve-se adicionar o desconforto que emerge de um livro que afirma denunciar em Guénon
um agente satânico (páginas 332–333, e especialmente a página 361), e, que, no curso de suas quatro-
centos e setenta e nove páginas, refere-se a ele meramente como “nosso amigo”. Para não mencionar
outras esquisitices.
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não exclui toda a continuidade. Nós estimamos, com efeito, que, no que diz res-
peito à doutrina essencial, à metafísica pura, Guénon jamais variou, pela razão
de que uma tal variação é de todo impossível: o que o intelecto percebe é, em
sua essência mais radical, imutável evidência. Não é nem mesmo surpreendente
que uma tal percepção apareça naturalmente em um jovem; ao contrário, é coi-
sa normal: a alma jovem é aberta quase naturalmente às luzes que irradiam do
Espírito Santo3, enquanto com a idade quase sempre vem o endurecimento e o
esquecimento. Ainda, as formas em que se tenta expressar essas intuições pode
variar consideravelmente, porque toda linguagem é dependente de uma cultura,
e, assim, de uma história, isto é dizer, de uma dialética e de uma problemática,
possivelmente inadequada e sempre “complicadora”. A escolha de expressões é,
assim, um cálculo de oportunidade que é quase impossível vencer, e que ele
mesmo depende do próprio conhecimento desta cultura e história. Um tal co-
nhecimento, pertinente aos fatos, pode apenas ser progressivo e empírico; tam-
bém depende, e necessariamente, d’uma certa afinidade do sujeito conhecedor
com o objeto conhecido. D’aí que, à parte da ortodoxia religiosa que é garantida
pela autoridade da Tradição Magisterial, a significação de qualquer forma cultu-
ral não pode ser imutavelmente definida; ela muda com a exatidão de nossas in-
formações e nossas predisposições individuais, e pode mesmo ser definitivamen-
te suspensa quando a questão se torna, decididamente, nublada demais. E nós
sabemos que Guénon nunca tardou naquilo em que não parecia possível para
ele obter luz suficiente.4
As considerações precedentes ditam nosso plano. Primeiro de tudo, deve-
mos nos perguntar sobre a verdadeira natureza do fenômeno histórico que foi a
gnose e o Gnosticismo, porque, neste campo em particular, paixões partidárias
3 Especifiquemos, contudo, que a causa “ocasional” destas iluminações é sempre algo externo e objetivo
(fides ex auditu), da Revelação Divina ao encontro “fortuito” de um evento, de uma coisa, de uma pa-
lavra…
4 Este é o caso, por exemplo, do enigma de Luís XVII, a mensagem de Nossa Senhora de la Salette, as
origens do Cristianismo etc. Estas são, é claro, questões de importância bastante desigual. No que se
refere ao Cristianismo, não vemos como, mais do que em relação a qualquer outra religião, justificar-
se-ia falar de “uma quase impenetrável obscuridade que acerca tudo o que se relaciona às origens e aos
primeiros dias do Cristianismo, uma obscuridade tal que, refletindo bem sobre isso, parece não ser
apenas acidental, mas expressamente querida” (Aperçus sur l’Ésotérisme Chrétien, páginas 9–10). Ler
os Atos dos Apóstolos não passa uma tal impressão.
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muito frequentemente competem com a ignorância. Seremos, então, capazes de


melhor apreciar o que o período “gnosticizante” de Guénon (entre 1909 e
1912) foi, que será nossa segunda preocupação. Finalmente, tentaremos mos-
trar por que a gnose “guénoniana” precisamente não é Gnosticismo, pois este é
o ponto essencial, e, porventura, até agora nunca foi suficientemente explicado.
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I. GNOSE EM SUA HISTÓRIA

N ão é nossa intenção lidar aqui com a história do Gnosticismo. O assunto


é tão vasto e complexo que requiriria um volume inteiro. Já há também
muitas boas apresentações sobre esta difícil questão.5 Meramente gostaríamos
de propor um ponto de vista sobre a gênese deste fenômeno religioso que nos
permitirá adquirir um entendimento sintético dele, que requer, primeiro, que
recordemos alguns dados históricos elementares. Quaisquer que sejam as reser-
vas que devem ser feitas com relação a algumas das conclusões que foram tiradas
dele, não obstante consideramos o conhecimento da história como sendo rigo-
rosamente indispensável nesta matéria, especialmente porque, como enfatiza-
mos em outro lugar6, a história do Gnosticismo é inseparável de sua historiogra-
fia (ou, às vezes, reduzida a ela). Esta historiografia é, ademais, bastante recente
— os estudos mais antigos não remetem a antes do século XVII7, — e apenas
tomaram forma realmente no século XIX, especialmente graças ao trabalho do
historiador alemão Hernok (1851–1930). Desde então, os estudiosos mais im-
portantes não cessaram de se fascinar por esta questão, que se tornou um dos
maiores problemas da história das religiões. Em 1945, este interesse se benefici-
ou de uma das mais extraordinárias descobertas da arqueologia cristã, aquela de
uma biblioteca em Nag Hammadi no Alto Egito8: quando um jarro enterrado
foi desenterrado “por acidente”, treze volumes sob a fórmula de códices (isto é,
5 A melhor, até onde sabemos, permanece aquela feita por H. C. Puech em 1934: Oú em est le Problème
du Gnosticisme? incluído em En Quete de la Gnose, Gallimard, 1978, Título 1, páginas 143–183.
Pode-se complementar com as apresentações que encontramos em várias histórias das religiões (“Plêia-
de”, Mircea Eliade etc.). De um ponto de vista mais especulativo, é necessário adicionar as páginas que
Simone Pétrement devotou aos “Problemas do Gnosticismo” em Le Dualisme chez Platon, les Gnosti-
ques et les Manichéens, 1974, Edições Gérard Montfort, 1982 (republicação), páginas 129–159, assim
como seu notável artigo Sur le Problème du Gnosticisme, no Revue de Métaphysique et de Morale, nº 2,
1980, páginas 145–147.
6 Gnose Chrétienne et Gnose Anti-Chrétienne, em La Pensée Catholique, nº 193, julho / agosto, 1981,
página 42.
7 Para dizer a verdade, mesmo uma leitura parcial das obras dos estudiosos antigos, como Mosheim ou
Dom Massuet, não dá a impressão de que são completamente ultrapassados: nosso conhecimento se
expandiu consideravelmente, mas o problema essencial permanece.
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cadernos reunidos, em vez de pergaminhos ou volumes9) foram descobertos,


“amontoando um total de cinquenta e três escritos, a maioria dos quais gnósti-
cos, de acordo com as mais recentes avaliações”10, pela primeira vez fazendo pos-
sível acesso direto a estes textos. Até então, de fato, tudo o que era conhecido so-
bre aqueles chamados “gnósticos” se reduzia a citações e resumos feitos pelos
heresiólogos (primariamente São Irineu e Santo Hipólito) ou a alguns fragmen-
tos cuja interpretação se provava difícil. Contudo, a despeito de tudo isso, a
questão do Gnosticismo está longe de ser definitivamente esclarecida ou funda-
mentalmente transformado.
COM O QUE NÓS ESTAMOS LIDANDO?
Em verdade, não é possível responder esta pergunta. Poderia ser que real-
mente tenha havido escolas de pensamento autodenominadas “gnósticas” e ca-
racterizadas por um corpo bem definido de doutrinas. Mas não é este o caso. O
termo “Gnosticismo” é de origem recente, e não parece predatar o começo do
século XIX. “Gnóstico” (gnostikós), um adjetivo grego, significando, em sentido
ordinário, “aquele que sabe”, o “savant”, é apenas raramente usado para carac-
teriza tecnicamente um movimento filosófico religioso: de todas as seitas gnósti-
cas, apenas a ofita foi referida desde modo11. É por isso que é possível concluir:
8 A outra descoberta, feita, curiosamente, por volta da mesma época, foi aquela dos Manuscritos do
Mar Morto: “Porque não há cousa alguma escondida que não venha a ser manifesta; nem cousa feita
em oculto que não venha a ser pública” (Marcos 4:22).
9 A substituição do códice pelo volume teve lugar na época de Augusto.
10 H. C. Pueth, En Quête de la Gnose, Gallimard, 1978, Título 1, página 11; uma verdadeira “maldição”,
de acordo com H. Jonas (La Religion Gnostique, traduzida do inglês por L. Evrad, Flammarion, 1978,
página 379), jaz sobre este achado: rivalidades, invejas, discordâncias entre especialistas etc. fizeram a
publicação destes textos difícil, a edição fac-símile completada apenas em 1976. Adicionemos um tra-
tado, a Pístis Sophía (em copta), que data provavelmente do século III, mas que já apresenta um esta-
do das doutrinas gnósticas (H. Jonas, La Religion Gnostique, página 62). a tradução francesa deste tex-
to por E. Amélineau, em 1894, foi reproduzida em 1975, em Arché, em Milão (introdução datada
que falsamente atribui este texto a Valentim).
11 Os ofitas (do grego “óphis” = “cobra”), que são identificados com os naassenos (em hebraico, “ nəḥaš”
= “cobra”), consideravam a Serpente do Gênesis como aquela que vem revelar a Adão o verdadeiro co-
nhecimento que o Criador malignamente quis proibir. Ademais, os nomes sob os quais as várias esco-
las de “Gnosticismo” são designadas são eles mesmo abertos a questionamento (cf. J. Doresse, La
Gnose em: Histoire des Religions, “Encyclopédie de la Pléiade”, Título 2, 1972, página 378). Os autores
cristãos sempre os nomeiam segundo seu (suposto) fundador: nicolaítas, marcionitas, valentinianos
etc.
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“Não há traço, no início do Cristianismo, de ‘Gnosticismo’ no sentido de uma


vasta categoria histórica, e o uso moderno de ‘gnóstico’ e ‘Gnosticismo’ para de-
signar um movimento que é tanto amplo quanto mal definido é totalmente
desconhecido entre os primeiros cristãos”.12 Certamente, quando os historiado-
res aplicam esta categoria religiosa a esta ou àquela doutrina, não é absoluta-
mente sem razão: aqui e ali encontramos elementos e temas religiosos comuns,
os dois mais constantes dos quais parecendo ser a condenação do Velho Testa-
mento e seu Deus, por um lado, e do mundo sensível por outro. Não obstante,
o uso que os historiadores fazem destas categorias é necessariamente dependen-
te das ideias que formaram sobre elas, isto é dizer, em última análise, de sua con-
cepção da gnose mesma e do que são capazes de entender a respeito dela. Con-
quanto a gnose também conota a ideia de um conhecimento misterioso e sal-
vífico, comunicado apenas a alguns e sob o véu de símbolos, trazendo à baila
uma cosmologia e antropologia extremamente complexa, e apenas se realizando
através de uma espécie de teocosmogonia dramática, o conceito de gnose tem
considerável extensão. Os historiadores, então, justificam-se em encontrá-lo em
áreas um tanto inesperados. No fim, é a religião mesma, qualquer que seja sua
forma, que será identificada com a gnose.
Não seria, contudo, possível encontrar um fixo e indisputável ponto de
referência? Não poderia a palavra “gnose” em si nos dar isso?
O termo, em grego, significa “conhecimento”. Mas é muito raramente
usado sozinho, e quase sempre requer um substantivo para complementá-lo (o
conhecimento de algo), enquanto “epistēmē” (ciência) pode ser usada absoluta-
mente. É por isso que, admitimos com R. Bultmann, que “gnо̄ sis” significa não
“conhecimento” como um resultado, mas, em vez, o ato de conhecer.13 Ao con-
trário do que algumas pessoas ignorantes afirmam, não é o único nome que a
linguagem possui para expressar a mesma ideia.14 Platão e Aristóteles também
usam, em sentidos relacionados, além de “epistēmē” (e os verbos “epitasthaī” ou
12 R. P. Casey, The Study of Gnosticism, em The Journal of Theological Studies, 36, 1935, página 55.
13 Artigo Ginо̄ skо̄ , em: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament, Heausgegeben von Gerhard Kit-
tel, Verlag W. Kolhammer, Stuggart, 1966, Título 1, páginas 688–715, página 689. Pode-se seguir
Vultmann em sua investigação filosófica quando ele estuda o “uso termibológico grego” (griechischer
Sprachgebrauch). Mas não é mais possível fazê-lo quando ele lida com as Sagradas Escrituras e conjec-
tura as mais delirantes hipóteses sobre tais e tais Epístolas de São Paulo, ou sobre o Evangelho de João.
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“eidenaī”), “diánoia”, “dianoesis” (e “dianoesthaī”), “gnomē”, “mathēma”,


“mathēsis” (e “manthanei”), “noēsis” e (“noeīn”), “noēma”, “noús”, “phronésis”,
“sophía”, “sunésis” etc. Além deste uso ordinário do termo, poder-se-ia falar, co-
mo faz Bultmann15, de um uso “gnóstico”, em que seria empregado absoluta-
mente, no sentido de “conhecimento par excellence”, isto é, o “conhecimento de
Deus”? Os exemplos providos pela literatura “pagã” são dificilmente conclusi-
vos. Não é mais o caso com a literatura sapiencial do Velho Testamento em sua
versão grega (a assim chamada “Septuaginta”). Aqui, pela primeira vez, e de
uma maneira inegável, o verbo “ginо̄ skо̄ ”, que traduz o “ydʾ” hebraico (também
traduzido, mais raramente, como “eidenaī” e “epistasthaī”), e o substantivo
“gnо̄ sis” adquirem “um sentido religioso e moral muito mais acentuado, no sen-
tido de um conhecimento revelado cujo autor é Deus, ou ‘Sophía’”.16 Assim a
Bíblia fala de Deus como “Deus [da ‘gnо̄ sis’]” (1 Samuel 2:3). Por que o Judaís-
mo Alexandrino escolheu este termo (e não, por exemplo, “epistēmē”) para ex-
pressar a ideia de um conhecimento sagrado e unitivo de que todo o ser partici-
pa? Deveríamos ver nisto a influência de um Helenismo místico (ou mistérico)
que já usava este termo neste sentido? Por razões de princípio — e não apenas
de fatos, que são sempre debatíveis — nós não acreditamos que seja o caso: é
inadmissível que uma região possa passar por uma tal alteração do que é essenci-
al para ela, isto é, a única e misteriosa relação que é estabelecida entre o ser hu-
mano e Deus em um ato incomparável, a que dá precisamente o nome de “co-
nhecimento”. É, em vez, o inverso verdadeiro, a tradição judaica dá ao termo
grego seu sentido religioso pleno17, e se o termo escolhido para expressar este ato
de “conhecimento” foi “gnо̄ sis”, é precisamente porque era de significado neu-
14 Este argumento foi, aliás, mesmo recentemente usado para “exonerar” os autores do Novo Testamen-
to e os Padres Gregos de o terem usado, porque, não tendo outro termo à sua disposição, são assim ab-
solvidas de uma suspeita incriminadora.
15 Artigo Ginо̄ skо̄ , em: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament, Heausgegeben von Gerhard Kit-
tel, Verlag W. Kolhammer, Stuggart, 1966, Título 1, páginas 692–693, que se referem, em particular, a
Platão, República 6:508e.
16 Artigo Ginо̄ skо̄ , em: Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament, Heausgegeben von Gerhard Kit-
tel, Verlag W. Kolhammer, Stuggart, 1966, Título 1, página 699.
17 Esta é a conclusão a que Dom Jacques Dupont chega, após uma longa análise dos textos e hipóteses,
em seu trabalho Gnо̄ sis. La Connaissance Religieuse dans les Épitres de Saint Paul , Gabalda, Paris,
1949, páginas 357–365.
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tro, enquanto um termo como “epistēmē”, que já tinha um significado filosófi-


co bastante preciso, não se prestaria a uma tal operação. Não negamos, de ma-
neira alguma, a existência de um Helenismo religioso ou de uma tradição
egípcia, essas sendo as duas fontes que os historiadores propuseram para a gnose
bíblica. Pelo contrário, a existência de tais fenômenos sagrados é óbvia para nós.
Mas, como apontamos em outro trabalho18, seria bom se os historiadores paras-
sem de pensar apenas na categoria de “influência” que inevitavelmente os leva
àquela de “fontes”. Parece não haver nenhum campo em que uma tal busca seja
mais fútil do que aquela da gnose e do Gnosticismo. Pode haver, de uma tradi-
ção para a outra, influência, empréstimos, transferências etc. no que diz respeito
a elementos periféricos, mas não no que há de essência para essas tradições, pelo
menos enquanto ainda estão vivas.
Todavia, se observarmos os textos (especialmente o Livro dos Provérbios,
em que “gnо̄ sis” é mais frequentemente usada), ainda não estamos lidando com
a gnose no sentido em que geralmente a entendemos, isto é dizer, no sentido de
um conhecimento puramente interior e deificante, que não é mais apenas um
ato, mas também um estado, e que Deus apenas pode conferir sobre o intelecto
pneumatizado19: o “carisma da gnose”, como poderíamos chamá-lo. Não que a
coisa não exista no Velho Testamento, mas o termo “gnose” não recebe um tal
significado lá20. Devemos, por conseguinte, esperar pelo Novo Testamento, e,
particularmente, pelas Primeira e Segunda Epístola aos Coríntios, a Epístola aos
Colossenses, e a Primeira Epístola a Timóteo, para ver a palavra “gnose” usada
pela primeira vez no sentido que definimos agora. Que a decisão de designar o
estado de conhecimento espiritual desta maneira se originou na versão da Sep-
tuaginta é óbvia, e não há necessidade de apelar à cultura helenística. Mas que o
ensinamento de Jesus Cristo e a Revelação do Lógos Divino n’Ele tenha feito
18 Fondements Métaphysiques du Symbolisme Sacré, Tomo 1, Capítulo 1, Artigo 1, Secção 2, § 3º.
19 Falamos sobre a doutrina cristã da pneumatização do intelecto em nosso livro La Charité Profanée,
Editions du Cèdre, 1979, páginas 131–163, 387, 398, e 401–405.
20 Seria esse também o caso para o Judaísmo Alexandrino pré-cristão? A questão requiriria um estudo
especial. Mas, de qualquer maneira, os textos que restaram a nós são quase sempre posteriores ao No-
vo Testamento, e Fílon de Alexandria, seu contemporâneo, faz pouco uso de “ gnо̄ sis”, e, como um
bom platonista, prefere “epistēmē” ou “theо̄ ria” (J. Dupont, Gnо̄ sis. La Connaissance Religieuse dans
les Épitres de Saint Paul, Gabalda, Paris, 1949, página 361).
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possível a manifestação deste estado de gnose nas almas daqueles que acreditam
n’Ele não é menos indisputável para nós. Todo o Cristianismo é, em sua essên-
cia, uma mensagem de gnose: conhecer e adorar a Deus em “espírito e verdade”
(João 4:23), e não apenas através de formas sensíveis e rituais; ou, em vez, unir-
se a Jesus Cristo, que é Ele mesmo a Gnose do Pai, e que transcende tanto o
mundo criado quanto as obrigações religiosas. Certamente, a palavra é de ori-
gem bíblica helênica. Mas a coisa, o conhecimento interior e salvífico, o carisma
da gnose em que a fé atinge sua perfeição deificante, é simples e fundamental-
mente “cristão”. É este kérygma de amor e união transformativa com Deus que
Jesus veio revelar, e é suficiente ler o Evangelho para percebê-lo. Em face do ritu-
alismo dos fariseus, o Cristo, a Gnose Encarnada do Pai, vem reabrir a “porta es-
treita” da interioridade espiritual. E omo mais os apóstolos, São Paulo, e os pri-
meiros cristãos teriam vivido seu mais profundo compromisso “em Cristo”?21
É por isto que não há evidência documental da existência de uma assim
chamada “gnose” anterior ao Novo Testamento, e isto a despeito da pesquisa (e,
às vezes, asserções) de historiadores eminentes22. É verdade que nem todas as
vinte e nove ocorrências de “gnо̄ sis” no Novo Testamento designam um estado
espiritual. Todavia, cada vez que têm um significado religioso (exceto na Primei-
ra Epístola de São Pedro 3:7), e se o significado “gnóstico” é, acima de tudo,
paulino23, parece também a nós presente em São Lucas, quando o Cristo decla-
ra: “Ai de vós, doutores da Lei, que, depois de terdes arrogado a vós a chave da
gnо̄ sis, nem vós outros entrastes, nem deixastes entrar os que vinham para en-
trar” (Lucas 11:52), especialmente se admitimos que a verdadeira chave é a gno-
se mesma, que é, na realidade, identificada com o “Reino dos Céus”, como a
passagem paralela em São Mateus (16:17) o prova. Parece certo para nós, por
conseguinte, que, se houve uma (assim chamada) “gnose” cristã, ela foi, primei-
21 Retomamos aqui, com um embasamento histórico mais desenvolvido, a tese que propusemos em
Gnose Chrétienne et Gnose Anti-chrétienne (La Pensée Catholique nº 193).
22 Este é caso, particularmente, para Reitzenstein e Bultmann.
23 “Gnо̄ sis” é encontrado duas vezes em São Lucas, uma vez em São Pedro, e vinte e seis vezes em São
Paulo. Há uma certa evolução na terminologia de “gnose” de uma epístola à outra. São Paulo também
usa “epignо̄ sis”. Sobre isto, ver E. Prucker, Gnо̄ sis Théou. Untersuchungen zur Bedeutung eines Religiö-
sen Begriffs beim Apostel Paulus und bei seiner Umwelt , Cassiciacum, 4, Wurzburg, 1937, e u resumo
dado por Dom J. Dupont, Gnо̄ sis. La Connaissance Religieuse dans les Épitres de Saint Paul , Gabalda,
Paris, 1949, páginas 48–49).
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ro de tudo, cristã, e, mais ainda, “crística”. Ter-se-ia que estar cego ao “fenôme-
no” do Cristo para não perceber o efeito espiritual prodigioso que Ele deve ter
produzido sobre aqueles que O testemunharam em primeira mão (um efeito
que, dois mil anos depois, ainda não se exauriu). Como poderíamos duvidar,
por um único momento, que este Jesus Cristo, que foi “mais do que um profe-
ta”, comunicou àqueles que encontrou e aceitaram Sua palavra uma gnose, um
estado de conhecimento interior e deificante, que não tinha medida comum
com qualquer coisa que tinham experimentado antes? É este estado espiritual
que São Paulo designa pelo nome de “gnose”, e em que ele vê a perfeição da fé. 24
É isto que encontramos nos escritos de inspiração paulina, tais como a Epístola
de Barnabé — às vezes contada enter os textos do Novo Testamento — em que
o autor declara que, se ele escreve a seus interlocutores, que já abundam na fé, é
“para que, com a fé que possuís, tenhais uma gnose perfeita”. 25 É por isso que
São Paulo pôde dizer, com o intervalo de algumas linhas (1 Coríntios 8:1–7):
“todos temos gnо̄ sis” e “nem em todas [as pessoas] há gnо̄ sis”, de acordo com se
tratar de conhecimento teorético simples, que, como tal, é “ignorante” e cheio
de si, uma realização efetiva de sua natureza transcendente e divina, que protege
de todo ataque “externo” (douta ignorância).
Permanece a pergunta de por que São Paulo é, por assim dizer, o único
autor do Novo Testamento a falar de gnose, e porque São João ignora este ter-
mo26, embora ele possa ser considerado o mais “gnóstico” de todos os autores
do Novo Testamento. A resposta é que isto é prova da influência da Septuagin-
ta, que, como vimos, foi a primeira a dar a este termo uma conotação essencial-
mente religiosa. Um homem bem versado na ciência rabínica tal como Paulo
deve ter sido particularmente sensível a essa influência. Mais, certamente, do
24 Isto é provado por um número de passagens: Romanos 15:13–14; Efésios 1:15–18; 3:16–19 (comen-
tamos sobre este texto em La Charité Profanée, páginas 233–239); Colossenses 1:14; etc. Todos esses
textos dão preeminência à gnose sobre a fé. Mas outros textos também dão primeiro lugar à caridade.
Não há contradição, todavia: não há conhecimento sem amor, e não há amor que não seja, em sua es-
sência, conhecimento.
25 1:5. Cf. Les Écrits des Pères Apostoliques, Cerf, 1963, página 242.
26 Ademais, nos escritos joaninos, não há substantivo para designar “conhecimento”. Por outro lado, é
em seus escritos que encontramos as mais numerosas ocorrências de “ ginо̄ skо̄ ” e “oīda” (“eīdénaī” no
infinito). Recordemos que sempre podemos contar com os dados providos pela Concordance de la Bi-
ble. Nouveau Testament, Edições du Cerf e D. B. B., 1970.
JEAN BORELLA

que um São João, cujo conhecimento se origina da visão direta da Gnose Encar-
nada, Jesus Cristo, e quem, para se expressar, essencialmente faz uso de grandes
símbolos tradicionais em vez de conceitos.27 Todavia, esta situação particular de
São Paulo não seria suficiente para explicar a quase ausência de “gnose” nos
Evangelhos. Acreditamos que outra razão, mais profunda e menos circunstanci-
al, deve ser adicionada. É que, entre as autoridades fundadoras da Revelação re-
conhecidas pelos dogmáticos cristãos, São Paulo ocupa um lugar bastante curio-
so. Ele é certamente uma autoridade maior, um dos “pilares da Igreja”, o depo-
sitário da mensagem autêntico, mas, ainda, ele nunca “conheceu Cristo em car-
ne e osso”! Todo cristão deve acreditar que a totalidade da Revelação foi dada a
Jesus Cristo e que os apóstolos são os depositários autorizados dela simplesmen-
te por a terem recebido. Dado o caráter sobrenatural desta Revelação, ela neces-
sariamente vem de fora: “fides ex auditu”, como São Paulo mesmo diz. Em com-
paração com esta Revelação direta (escrita ou oral) que sozinha é autoritativa, só
pode haver Revelações Privadas (sem autoridade de fé) ou comentários teológi-
cos que explicam o fato revelado. Que São Paulo, como qualquer outro cristão,
recebeu ensinamento dos apóstolos é inegável. Contudo, entre todos aqueles
que receberam um tal ensinamento, ele é o único cuja palavra tem valor de Re-
velação. E isto é porque ele, ademais, recebeu a Revelação do Evangelho direta-
mente do Senhor (1 Coríntios 11:23). O que confirma ou completa a Tradição
Apostólica, mas o modo de sua comunicação só pode ser interior.28 Os dog-
máticos cristãos, por conseguinte, admitem que pode haver pelo menos uma
Revelação que não vem do Cristo “histórico”, mas de um Filho interior a quem
Deus, como São Paulo nos diz, “revelou […] por mim, para que eu O pregasse
entre as gentes” (Gálatas 1:17). Em outras palavras, admitem que pode haver
uma “experiência espiritual” digna de uma Revelação, um modo de conheci-
27 Especifiquemos, para todos os intentos e propósitos, que aceitamos, aliás, a identificação tradicional
do autor do Quarto Evangelho com o Apóstolo São João. Os argumentos contrários dos críticos mo-
dernos são de tal indigência intelectual (tal qual: “Como poderia um pecador galileu produzir tão ele-
vada obra teológica?”) que só podem ser explicados pelo desejo por originalidade a todo custo. A prin-
cipal preocupação dos exegetas modernos não é comentar a Escritura, mas fazer um nome para si mes-
mos (Babel) a despeito da Escritura.
28 “Porque vos faço saber, irmãos, que o Evangelho que por mim vos tem sido pregado não é segundo o
homem”, Gálatas 1:11.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

mento pelo qual o intelecto pneumatizado participa do conhecimento que


Deus tem de Si mesmo em Sua Palavra. É verdade que, em São Paulo, esta expe-
riência tem um caráter excepcional; é querida por Deus como uma norma e re-
ferência doutrinal para a fé cristã, sem constituir uma “segunda Revelação”.
Não obstante, a existência mesma de um tal modo de conhecimento prova que
a religião cristã não rejeita o princípio a priori. Agora, este modo conhecimen-
to, que realiza a perfeição da fé (compatível com o estado humano), é um a que
São Paulo dá o nome de “gnose”. Obviamente, não se apresenta desta maneira
em todo “gnóstico”, nem alcança o grau da gnose pauliana, nem especialmente
seu caráter (extrínseco) como uma norma objetiva para a comunidade tradicio-
nal (o que faz São Paulo um “pilar da Igreja”), mas necessariamente se segue a
esta possibilidade em princípio é por isto que é importante que o Cristianismo
conte precisamente São Paulo entre os pilares da Igreja, Paulo, que “conheceu
Cristo em carne e osso”.29
Todavia, não devemos considerar a gnose em São Paulo apenas em seu as-
pecto carismático e interior. É certamente a mais profunda e decisiva dimensão,
mas não a única. Como o nome indica, a “gnose” de Paulo é também um co-
nhecimento no primeiro sentido do termo, que implica uma atividade propria-
mente intelectual, capaz de ser formulada e expressa de maneira clara e precisa.
Deste ponto de vista, São Paulo contrasta a glossolalia, o indistinto e inarticula-
do “falar em línguas”, com “falar na gnose”, o uso das articulações significantes
da língua para transmitir um conhecimento, uma doutrina, e, consequente-
mente, “edificar” a comunidade (1 Coríntios 14:6–19). A gnose é tanto inefável
quanto interior, um estado espiritual, assim como formulável e objetiva, isto é,
29 De acordo com um ensinamento de Frithjof Schuon, fenômenos religiosos se baseiam em dois princí-
pios: o princípio da “transmissão apostólica” e o princípio do “Mandato do Céu”. O primeiro se refe-
re à continuidade da tradição, o segundo à descontinuidade de intervenções “proféticas”. Assim, por
exemplo, é o Buddhismo Terra Pura no Japão. O Paulinismo, em sentido estrito, obviamente jaz sob o
aspecto de “Mandato do Céu”, d’aí uma certa oposição, ou divergência, com relação à “transmissão
apostólica”. Ademais, a gnose quase sempre tem algo de descontínuo e vertical sobre ela — o que de
maneira nenhuma exclui, por outro lado, que possa eventualmente ser o objeto de uma tradição. Cer-
tamente, o privilégio de receber a Revelação de “novas” verdades pela graça do Glorioso Cristo falan-
do diretamente ao intelecto pneumatizado não é único a São Paulo: todos os apóstolos se beneficia-
ram disso, pois que a Revelação não se fechou até a morte do último deles. Mas o fato permanece que
São Paulo não conheceu o Cristo “historicamente”.
JEAN BORELLA

um corpus doutrinal. Deste ponto de vista, é transmissível e pode ser objeto de


uma tradição. Vamos além. A especificidade da gnose jaz precisamente na con-
junção destes dois aspectos. A verdadeira gnose não é nem uma teoria abstrata,
uma vã conceitualidade que é ilusoriamente satisfeita com suas próprias formu-
lações, nem um misticismo confuso, facilmente entranhado no incomunicável.
Podemos entender a importância que este termo teve que tomar aos olhos dos
primeiros cristãos, e, mais tarde, dos primeiros Padres da Igreja. Nele foi formu-
lado algo insubstituível e infinitamente precioso: a afirmação de uma espécie de
“verificação interna” da doutrina externamente revelada e acreditada, a possibi-
lidade da “teologia”30 ser algo outro que um simples exercício racional, e chegar
a uma experiência intelectiva e saboreável da verdade dogmática — em resumo:
uma intelectualidade sagrada.
Tais são as razões que levaram os primeiros Padres a usar este termo, em-
bora eles tivessem outras palavras à sua disposição para expressar a ideia de co-
nhecimento. Este é o caso, primeiro de tudo, para São Clemente de Alexandria,
o maior doutor da gnose cristã (assim chamada), que a apresenta a nós ao mes-
mo tempo como uma tradição secreta ensinada pelo Cristo para alguns dos
apóstolos31, como consistindo na interpretação das Escrituras e no aprofunda-
mento dos dogmas32, e, finalmente, como a perfeição da vida espiritual e a reali-
zação da graça eucarística33. Este também é o caso com Orígenes, contudo, que,
em seu Contra Celso, também usa termos como “dogma”, “didaskália”,
“epistēmē”, “Lógos”, “Sophía”, “theología” etc., mas que mantém o uso de “gno-
se” e “gnóstico” mesmo estando combatendo um Gnosticismo herético, que o
leva à constatação de que “os cristãos não tiveram medo de usar o mesmo voca-
bulário que os gnósticos”34. Vemos a mesma atitude em São Irineu de Lião, cujo
Adversus Hæreses combate a “gnose com um falso nome” para estabelecer a “ver-
dadeira gnose”. E é o mesmo para São Dionísio Areopagita ou São Gregório de

30 A palavra adquiriu seu significado presente apenas tarde (após o século XIII). Inicialmente, entre os
cristãos, designava um escrito sagrado (como São João), ou o puro contemplativo.
31 Hypotyposes, fragmento 13.
32 Strómata 7:57:3.
33 Strómata 5:66:1–5: “Pois a gnose da Essência Divina é comer e beber do Lógos Divino.”
34 Marguerite Harl, Origène et la Fonction Révélatrice du Verbe Incarné, Seuil, página 419.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

Nissa. Assim, houve, sem dúvida, uma gnose autenticamente cristã35. E sem
dúvida foi um grande azar para o Ocidente que a língua latina não contivesse
nenhum termo equivalente para traduzir “gnо̄ sis”, porque nem “agnitio”, nem
“cognitio”, “scientia”, ou “doctrina” receberam de seu uso bíblico, e então pauli-
no, o significado sagrado do termo grego36. Esta inferioridade semântica, obvia-
mente, favoreceria a aparição e desenvolvimento de um racionalismo teológico
que necessariamente levou a reações anti-intelectuais da teologia existencial, e,
finalmente, à desaparição da doctrina sacra.
Mas, após o uso bíblico e paulino patrístico da palavra “gnо̄ sis”, devemos
chegar a seu uso herético, já que foi ele que deu à luz o que é chamado “Gnosti-
cismo”. Este nome já aparece em São Paulo, quando ele denuncia a “gnose com
um falso nome” (1 Timóteo 6:21). Similarmente, a insistência de João em defi-
nir o “conhecer” (ginо̄ skein) divino pode ser entendida como um aviso contra
uma alteração da gnose cristã. Todavia, no presente estado de nossa documenta-
ção, é impossível afirmar a existência de um Gnosticismo organizado e definido
na era do Novo Testamento. Como foi enfatizado muitas vezes 37, é uma ques-
tão de tendências, de germes gnosticizantes, não de uma heresia declarada e
constituída. Não tentemos fazer os textos dizerem o que eles não dizem. Além
disso, é autoevidente. O extraordinário poder gnóstico da manifestação da Pala-
vra em Jesus Cristo não poderia falhar em gerar excessos nas mentes daqueles
muito fracos para suportar a intoxicação. É assim que a complexidade carismáti-
ca da experiência gnóstica se desenvolveria, e como a recusa do “Cristo de acor-
do com a carne” (junto com aquela à criação corpórea) se cimentaria, visto que
a gnose se concebe como uma graça de conhecimento experimentada na interio-
ridade da alma. De fato, quem fala em conhecimento fala em graus de conheci-
mento; e quem fala em graça dada, fala em um doador: os graus da gnose reque-
35 Louis Bouyer, Gnо̄ sis. Le Sens Orthodoxe de l’Expression jusqu’aux Pères Alexandrins , publicado no
Journal of Theological Studies, N. S. 4, 1953, páginas 188–203.
36 Encontra-se, ademais, às vezes a pura e simples transposição do grego para o latim. Assim é na versão
latina de Adversus Hæreses de São Irineu 1:29:3, que, contudo, geralmente se traduz como “ agnitio”, e
mais raramente como “scientia”. Notemos que os tradutores latinos do poeta judeu neoplatônico ibn
Gabirol renderem o hebraico “yedīah” como “sapientia”, que acreditamos ser o mais apropriado, já
que expressa a unidade de conhecimento e sabedoria.
37 Simone Pétrement, Sur le Problème du Gnosticisme, Revue de Métaphysique et de Morale, nº 2, 1980,
página 152.
JEAN BORELLA

rem, por conseguinte, uma hierarquia de doadores, d’onde a multiplicação de


intermediários divinos e a indefinidade complicação de angelologia e cosmoteo-
logia. Ademais, o excesso de ênfase sobre a interioridade espiritual, destacada
pelo elitismo esotérico das seitas, levou à rejeição do Verbo feito carne, e, conse-
quentemente, a um “microcosmismo” e um desprezo do Criador como um
Deus mau, reduzido à Sua função demiúrgica.
Ainda, a gnose crística é precisamente caracterizada por sua unidade e
simplicidade. Os intermediários divinos são reduzidos à unicidade do Verbo fei-
to carne (São João), o mediador entre Deus e os homens (São Paulo). Em rela-
ção às doutrinas pré-cristãs de “gnose universal” — seja judaica, helenística,
egípcia, ou, possivelmente, oriental próxima — isto é uma grande novidade. O
Cristo mesmo é a Gnose Divina, e, tendo tomado um corpo humano, mani-
festa-se a todos os homens, assim alcançando um curto-circuito metafísico im-
pactante. Todos os graus de conhecimento, e, por conseguinte, realidades (a
multiplicidade de éons), são sinteticamente “recapitulados” no Cristo38, que as-
sim oferece um caminho direto à Gnose Divina. Ademais, embora a experiência
gnóstica necessariamente permaneça algo interior, e por conseguinte esotérico,
já que é obra do Espírito Santo, não obstante é imediatamente proposta a to-
dos. Por estas duas características, a gnose crística opera um tipo de restauração
antecipada da Era de Ouro e do estado edênico. Isto é precisamente o que os
gnósticos excessivos não podem aceitar. O que os atingiu e os converteu, em cer-
to sentido, foi a nova e irresistível força da manifestação crística: foram visivel-
mente movidos pelo poder do Espírito. Mas viveram esta novidade de acordo
com padrões antigos: quiseram colocar vinho novo em odres velhos. Esta nova
força à qual eles não podem permanecer insensíveis, por sua mensagem de pura
interioridade, desperta neles o eco de doutrinas antigas, ou porque as conhece-
ram diretamente, porque foram iniciados nelas e vieram delas, ou porque ape-
nas ouviram sobre elas, e sua conversão ao Cristianismo os levo a redescobri-las
e se tornarem mais e mais interessados nelas. Tal é, pensamos, a provável origem
do que hoje é propriamente chamado “Gnosticismo”, cuja existência histórica é
atestada a nós, por volta do século II, pelos escritos de São Clemente de Alexan-
38 Recapitulação = ana-kephalaīosís, cf. Efésios 1:10. O termo também significa: trazer de volta à cabeça,
ao Princípio, este é o verdadeiro sentido de “recapitulação” (“caput” = “cabeça”).
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

dria, São Irineu de Lião, e Santo Hipólito de Roma. Vemos nele um fenômeno
de ressurreição de antigas e diversas doutrinas sob o estilhaçante e revelador efei-
to da manifestação crística, em que ouvirem um irresistível chamado à interiori-
dade espiritual; pois este é o significado mais central da mensagem de Jesus, a
Palavra Encarnada. Este chamado, que ressoa em cada ouvido com tão imperio-
sas e óbvias acentuações, entrou em consonância com muitas tradições esotéri-
ca, mais ou menos dormentes, ou decadentes, ou escleróticas. A Luz do Verbo
de repente as iluminou, fazendo-as emergir das trevas, e trouxeram de volta à
memória seu significado vivo que parecia irrecuperavelmente perdido. Assim,
recusando-se a se implantar no tronco da oliveira crística e serem carregados à
verdadeira raiz da gnose, quiseram o oposto, enxertar o ramo crístico no tronco
de velhas tradições, apenas para se beneficiar de sua vitalidade e revitalizar suas
velhas tradições39. Nossa explicação não pode arrogar perfeita certeza, mas tem o
mérito da plausibilidade. Também é consistente com o fato de que, por um la-
do, o Gnosticismo é uma heresia cristã, e, por outro lado, fragmentos doutrinais
de todas as origens, e, frequentemente, de proveniência pré-cristã, podem ser
encontradas nele. Finalmente, é baseado essencialmente na consideração do po-
deroso caráter gnóstico da manifestação crística, que, parece-nos, foi ignorado
até agora.40
Como podemos ver, os desafios desta questão formidável não são peque-
nos, e é por isso que tivemos que tratar de sua história. É altamente significativo
que a primeira heresia cristã tenha sido o Gnosticismo, e que, de certa maneira,
toda a história do Ocidente tenha sido mudada por este fato. Pois o Gnosticis-
mo herético, embora tenha desaparecido quase inteiramente no quinto ou sexto
século, pelo menos sucedeu em uma coisa: desacreditou definitivamente o ter-
mo “gnose” do Novo Testamento, e, em fazê-lo, quase obscureceu completa-
39 Comentamos livremente aqui Romanos 11:17–24. O paradoxo de São Paulo, que reverte o processo
normal de enxerto, foi enfatizado. Mas, em certo respeitos, a ordem sobrenatural é o oposto da ordem
natural. O Cristo é a verdadeira árvore, a verdadeira oliveira, em relação a qual todas as tradições anti-
gas, pagãs, ou mesmo judaicas, foram transplantadas. Podemos apenas nos transplantar a Ele. Por este
mesmo fato da aparição da tradição crística, todas as outras tradições, mesmo as mais antigas, são co-
mo que descentradas e desenraizadas. É isto que São Paulo quer dizer.
40 Apresentamos apenas um esboço aqui. Seria apropriado mostrar em detalhe como nossa tese conside-
ra a maioria das características que os historiadores reconhecem no Gnosticismo.
JEAN BORELLA

mente a simples ideia de uma intelectualidade sagrada. E se acreditamos que, se


a obra de René Guénon tem um significado, não é apenas reabilitar a noção de
gnose, mas, mais profundamente, devolver-nos a viva e luminosa intuição dela.
Todavia, antes de mostrar qual a situação e função da verdadeira gnose na obra
de Guénon realmente é, devemos nos perguntar o que o levou a aderir ao mais
questionável Neognosticismo em primeiro lugar, e qual foi o significado deste
episódio um tanto confuso.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

II. O ENCONTRO COM OS NEOGNÓSTICOS

D eve ser notado que o começo do interesse de Guénon pelo Gnosticismo e


pela gnose parece corresponder bem precisamente com aquele de seu
tempo, isto é dizer, com a ideia disso que pareceu ser formada por uma certa
moda cultural entre 1880 e 1914. notemos que também nesse período a histori-
ografia científica do Gnosticismo foi estabelecida, com suas duas grandes ten-
dências, aquela de Harnack, por um lado, que vê no Gnosticismo “uma radical
e prematura helenização do Cristianismo”41, uma helenização que a Igreja Mai-
or atingiria com sucesso mais sábia e vagarosamente, e aquela de Bossuet e Reit-
zenstein, por outro lado, que, chocados pela semelhança entre o Gnosticismo
com manifestações religiosas egípcias, babilônicas, iranianas, e herméticas, falam
de uma gnose pré-cristã, e veem no Gnosticismo de Valentim, Basílides, ou
Marcião, um tipo de “regressão de um Cristianismo helenizado a suas origens
orientais”42, em resumo, uma “orientalização”43 não menos radical do que a he-
lenização de Harnack. Agora, este florescimento da historiografia gnóstica anda
de mãos dadas com uma certa moda de gnose, que já apareceu no século XVIII,
mas que definiu suas características essenciais especialmente na primeira parte
do século XIX. Foi nessa época que o significado mais ou menos “ocultista”
desse termo ficou mais claro, um significado que, a partir desse momento, man-
ter-se-ia no uso feito dele pela maioria dos círculos pseudoesotéricos. Não era
este o caso no século XVII. À essa época, Fénelon ainda podia tentar usar o per-
feitamente ortodoxo vocabulário de Clemente de Alexandria para identificar a
mística do puro amor com a gnose dos Padres da Igreja. Certamente, seu opús-
culo La Gnostique de Saint Clément d’Alexandrie, em que provê uma exposição
magistral da doutrina do grande alexandrino, haveria de permanecer não-publi-

41 Lehbuch der Dogmengeschichte, Tübingen, 1886, Título 1, página 162; H. C. Puech, ibidem, 143.
42 H. Lietzmann, Geschichte der alten Kirche, 1, Die Anfänge, 1932, página 317; H. C. Puech, ibidem,
página 144.
43 Reitzenstein-Schaeder, Studien zum Antiken Synkretismus aus Iran und Griechenand, 1926, página
141; H. C. Puech, ibidem, página 144.
JEAN BORELLA

cada por um longo período, Bossuet tendo evidentemente proibido sua difu-
são44. Não obstante, Bossuet mesmo não toma ofensa com o uso do termo, e só
tenta trazer seu significado de volta ao nível da teologia comum: “Eu não vejo”,
ele diz, “ser necessário entender sob o nome de ‘gnose’ qualquer outra fineza ou
mistério do que o grande mistério do Cristianismo, bem sabido pela fé e bem
entendido pelos perfeitos devido ao dom da inteligência, sinceramente pratica-
do e tornado em um hábito”.45 Similarmente, Saint-Simon atesta a nós que o
termo “gnose” designava, na corte de Luís XIV, a doutrina de Fénelon46, todavia
o caráter “comprometedor” do termo parece a nós ter sido acentuado com o
tempo. As razões para isso não são difíceis de presumir.
O fracasso de Fénelon em seu esforço de reviver a gnose de São Clemente
de Alexandrina trazendo-a mais para perto da mística teresiana e sanjuaniana as-
sim como da doutrina do puro amor deixou apenas um significado para este ter-
mo, o condenado. De fato, os dicionários da época, aquele de Moreri, ou o fa-
moso Dictionnaire do Padre Bergier47, não contêm artigo sobre “gnose”, mas
apenas sobre os “gnósticos”, lidando primariamente com os gnósticos deste no-
me. O significado comum dificilmente é mencionado. Sem dúvidas o Catolicis-
mo oficial estava assim convencido de que tinha ganhado a batalha contra a
gnose, e que, ao banir o termo, tinha garantido uma vitória definitiva sobre a
coisa que designa. Mas este não é o caso. A condenação de toda gnose só teria si-
44 Publicado com uma introdução pelo Padre Paul Dudon, S. J, “ Études de Théologie Historique”, Beau-
chesne, 1930, 11, 299 páginas. O texto de Fénelon ocupa as páginas 163 a 256. É um caderno manus-
crito que permaneceu desconhecido até sua descoberta pelo Padre Dudon na biblioteca de St. Sulpice.
Nem Fénelon, nem Bossuet, em sua querela pública, fez a menor alusão a ele. Bossuet, todavia, citou-
o e o refutou em seu Tradition des Nouveaux Mystiques, mas sem nomear o autor. Fénelon tendo o
submetido, Bossuet recusou a publicação de seu trabalho, que não foi publicado até 1753. Seria neces-
sário esclarecer que não partilhamos de qualquer modo as conclusões negativas do apresentador com
relação à apresentação féneloniana da gnose clementina? Fénelon sabe de que fala.
45 Tradition des Nouveaux Mystiques 3:1, Dubon, ibidem, página 25.
46 Citado em “Litrré”. Não prova este texto de Saint-Simon que a designação de gnose como quietismo
era mais comum do que é usualmente pensado?
47 É apresentado na “parte teológica” da Encyclopédie de Diderot e d’Alembert. Mas, em verdade, toma
os artigos para retificá-los ou combatê-lo (1798). A Encyclopédie em si, no artigo “gnósticos”, reproduz
apenas o artigo do Dictionnaire de Trévoux, adicionando, contudo, uma significativa alusão ao quie-
tismo e ao pietismo. Dom Calvet, em sua Histoire de l’Ancien et du Nouveau Testament et des Juifs,
não dá citação adicional e não reporta nenhum uso ortodoxo do vocábulo “nose” (nova edição, Nis-
mes, 1781, Tìtulo 3, páginas 247–248).
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

do efetiva se tivesse sido imposta sobre uma sociedade resolutamente cristã. Em


vez, tal implacabilidade — que não careceu de calúnias, particularmente com
relação à moral — só poderia servir para trazer esta heresia à atenção de liberti-
nos e pessoas maliciosas. E isto foi exatamente o que aconteceu. Pouco a pouco,
os heresiarcas se tornaram heróis do pensamento livre. Via-se neles ou filósofos
cristãos que já estavam tentando se livrar do jugo da disciplina dogmática e que
não conseguiam se satisfazer pela credulidade dos vulgares, ou filósofos pagãos
ansiosos a aplicar as demandas da razão às obscuras imagens da fé. Além, o elitis-
mo esotérico da gnose lisonjeia a vaidade do libertino. Quão mais profunda-
mente a sociedade do Ancien Régime era descristianizada, mais a religião era re-
duzida a uma simples fachada, ainda onipresente, mas cuja “cru decepção” era
menos e menos tolerada: boa para o simplório, como Voltaire afirma, que aos
domingos se diverte brincando de padre camponês em frente de seus plebeus,
seu poder é sem efeito sobre o espírito superior que se volta, com um sentimen-
to de conivência, aos hereges antigos, e mesmo, para além do Cristianismo, ao
paganismo antigo. Deste ponto de vista, todo esoterismo só pode ser heterodo-
xo e um veículo para as esperanças da raça humana em seu longo esforço rumo à
“luz”. Então veio a Revolução Francesa, cujo Satanismo desencadeado desferiu
sobre a Igreja Católica, a mais antiga instituição do Ocidente, os mais terríveis
golpes de sua história. Em um ano, entre 1793 e 1794, a instituição desapareceu
completamente do solo francês48, e nunca recuperaria seu antigo esplendor.
Com a fachada derrubada, no deserto espiritual de um tempo sinistro como ne-
nhum outro, e sem maneira de remendar as rachaduras criadas nele por uma re-
tórica extremamente insana, um certo neopaganismo místico pode encontrar al-
gumas entradas.
Um pouco depois, a corrente de Romantismo se desenvolveu na Alema-
nha, que, em certos respeitos, era a antípoda do ateísmo revolucionário, mas
que acabaria se combinando com ele para constituir um tipo de esoterismo que
seria, eventualmente, anticristão. Este Romantismo, ao descobrir Mestre Eck-
hart e Jakob Böhme, trouxe a ideia de um conhecimento espiritual puramente
interior de volta à honra, a que gratamente deu o nome de “gnose”. O melhor
48 R. Taveneaux, Le Catholicisme Post-tridentin, em Histoire des Religions, Pléiade, Título 2, páginas
1108–1112.
JEAN BORELLA

exemplo, a este respeito, é sem dúvidas aquele de F. X. Baader, que distingue


claramente entre uma pseudognose de origem diabólica e a verdadeira gnose
cristã: “É verdade que há uma pseudognose”, ele diz, “e o trabalho [de Saint
Martin] […] fala a nós claramente de uma tal escola de Satã se espalhando terri-
velmente entre nós; mas isto também significa que há, e sempre houve, uma ver-
dadeira gnose”49. Da mesma maneira, Hegel define a obra de Böhme como uma
gnose, que deve, todavia, ser aperfeiçoada e transformada em pura filosofia.50 É
concebível, então, que, na intensa circulação de ideias que teve lugar na Europa
durante a primeira metade do século XIX, a gnose gradualmente tenha vindo a
designar um conhecimento esotérico, superior àquele dos dogmáticos cristãos, e
que faz inútil toda a religião oficial, porque desfaz o mistério. Esta gnose, funda-
ção mística da ideologia anticlerical, está convencida de se reconectar com uma
tradição secreta, vítima exemplar do ódio eclesiástico, e a redescobrir a terra nu-
tritiva de nossas raízes mais autênticas, aquelas que o Judaísmo e o Cristianismo
não haviam envenenado, ou que o centralismo romano não havia sucedido em
extirpar. Um testemunho inconfundível desta concepção é o artigo que o
Grand Dictionnaire Universel de Pierre Larousse devota ao Gnosticismo (o ter-
mo já havia sido adotado): “Estaria enganado quem […] acreditasse que a gnose
é essencialmente um fenômeno cristão. Por sua origem, seu objetivo, e seus es-
forços, é muito mais ampla do que qualquer religião poderia ser; é o livre pensa-
mento buscando explicar ao mesmo tempo o mundo, a sociedade, as crenças, e
os costumes, tudo com a ajuda da tradição; o que demonstra que não seve con-
fundir aqui livre pensamento com racionalismo”. Então, após ter afirmado que
sua semelhança com o Buddhismo prova sua origem indiana51, ele declara: “A
gnose não era uma heresia, mas a filosofia do Cristianismo em si; […] aos cris-
49 Tagebuch, Weiern. 31 de janeiro de 1787; citado por E. Benz, Les Sources Mystiques de la Philosophie
Romantique Allemande, Vrin, 1968, páginas 108
50 Encyclopédie des Sciences Philosophiques em Abrégé, Gallimard, traduzido por Gandillac, página 63. Si-
milarmente, foi mostrado como o segundo Fausto deve à gnose de que Goethe se conscientizou atra-
vés da História da Igreja de Gottfried Arnold.
51 Este é, ademais, um tema que se encontra tão cedo quanto o século XVIII, particularmente com rela-
ção às possíveis similaridades entre o Buddhismo e o Brāhmaṇismo e o misticismo fenéloniano e
guyoniano do puro amor, que não parece a nós merecer as reprovações que Guénon o endereça. Re-
cordemos que a primeira menção, no Ocidente, do Buddha é encontrada em São Clemente de Ale-
xandria.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

tãos a gnose disse: ‘Seu líder é uma inteligência da ordem mais alta, mas seus
apóstolos não entenderam o mestre, e, por sua vez, seus discípulos alteraram o
texto que foi deixado a eles’”.52
Tal é, aproximadamente, a ideia de “gnose” sustentada por aqueles que
chamamos “místicos anticlericais”, e com quem o jovem Guénon teve contato.
Eles falam dela com tanto mais autoridade quanto desdenham inquirir sobre ela
historicamente, convencidos de que são os únicos que realmente sabem de que
se trata. Muito embora quão universal sua concepção de gnose possa ser, eles
pretendem colocar a si mesmos na continuidade doutrinal do que começava a
ser chamado “Gnosticismo”, isto é, das escolas cristãs heréticas. Esta doutrina é
geralmente apresentada como uma reação emocional ao escândalo da existência
do mal. Isto é inegável, mas insuficiente. O mal objetivo presente na Criação,
que parece a eles irremediavelmente enraizado, é tão agudamente sentido como
injustificável apenas em correlação com o dramático excesso de ênfase na interi-
orização salvífica: estes dois excessos, um objetivo, o outro subjetivo, condicio-
nam um ao outro. O dever de interioridade repudia toda a Criação material co-
mo má, e a decadência da Criação não deixa outra Salvação que a fuga interior.
O resultado, como mostramos n’outro lugar53, é um angelismo anticriacionista
que é necessariamente acompanhado por um Docetismo cristológico: como po-
deria Deus ter se tornado verdadeiramente carne, se a carne é inteiramente má?
Consequentemente, o Criador bíblico é apenas um demiurgo, um deus mau,
que deve ser rejeitado junto a todo o Antigo Testamento e o rabinismo teológi-
co de São Paulo. Esses temas são bem conhecidos. Eles revelam, com relação à
doutrina metafísica como Guénon mesmo a ensinou, não apenas um pensa-
mentos mais bháktico do que jñânico, mas também um radical mal-entender do
mistério da Imanência Divina na exterioridade cósmica; pois, como o Qurʾān
ensina: “Ele é o primeiro e o último, o exterior e o interior, e Ele conhece todas
as coisas infinitamente” (58:3)54. Como podemos ver, de acordo com o Qurʾān,
a gnose infinita de Deus consiste precisamente em sua unidade radical e estrita
52 Pergunta-se, é claro, como é possível que “uma inteligência da ordem mais alta” poderia se enganar na
escolha de suas testemunhas.
53 Gnose Chrétienne et Gnose Anti-Chrétienne.
54 Ver, sobre este tema, La Croix ‘Temps-Espace’ dans l’Onomatologia Koranique, um dos maiores trata-
dos de Frithjof Schuon, em: Forme et Substance dans les Religions, Dervy, 1975, páginas 69–83.
JEAN BORELLA

implicação de imanência e transcendência, externa e interna. Todavia, algumas


destas ideias são encontradas mesmo nos primeiros textos de Guénon Palin-
génius, e podemos ver por que ele foi capaz de sugerir um dia que não tinha na-
da em comum com aquele que as expressou.55
Não entraremos em detalhes sobre a história do Gnosticismo renovado
como ele emergiu na França ao final do século XIX. Esta história ainda está para
ser escrita. Ainda, seus principais elementos podem ser encontrados nas várias
obras devotadas a Guénon, e que explicam como Guénon foi levado a entrar
em contato com este Gnosticismo.56
Por volta de 1880, Lady Cathness, duquesa de Pomar e membro da Socie-
dade Teosófica e Esotérica Cristã57, organizou em sua mansão privada, na Rue
Brémontier em Paris, sessões espiritualistas em que se gostava de evocar o espíri-
tos dos grandes que partiram: Simão Mago, o pai do Gnosticismo, de acordo
com Santo Irineu, Valentim, Apolônio de Tiana etc. Estas sessões eram às vezes
frequentadas por u arquivista e homem de letras com um temperamento im-
pressionável e um tanto instável, chamado Jules Doinel. “Em uma noite do ou-
tono de 1888”58, o espírito de Guilhaberto de Castres, bispo cátaro de Toulou-
se59, manifestou-se e deu a J. Doinel a missão de restaurar a Igreja Gnóstica, e,

55 Voile d’Isis, fevereiro de 1933, republicado em Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage,


Éditions Traditionnelles, 1964, Título 1, página 215.
56 Citemos, primariamente: P. Chacornac, La Vie Simple de René Guénon, Éditions Traditionnelles,
1958; J. P. Laurant, Le Sens Caché dans l’Oeuvre de René Guénon, Editora l’Age d’Homme, 1975; J.
Robin, René Guénon. Témoin de la Tradition, 1978; Marie-France James, Esotérisme et Christianisme
Autour de René Guénon, Nouvelles Editions Latines, 1981; Marie-France James, Esotérisme, Occultis-
me, Franc-Maçonnerie au XIX et XX Siècle, Explorations Bibliographique, Nouvelles Editions Latines,
1981.
57 Guénon dedicou um capítulo em seu Théosophisme a esta pessoa curiosa (1973, páginas 183–191).
58 De acordo com M. F. James, Esotérisme, Occultisme, Franc-Maçonnerie au XIX et XX Siècle, Explora-
tions Bibliographique, Nouvelles Editions Latines, 1981, página 102. J. Robin dá 1889 (René Guénon.
Témoin de la Tradition, 1978, página 65) et J. P. Laurant 1890 (Le Sens Caché dans l’Oeuvre de René
Guénon, Editora l’Age d’Homme, 1975, página 46).
59 Guilhaberto de Castres, cuja existência é atestada tão cedo quanto 1193, é uma das mais eminentes fi-
guras do Catarismo, o “filho mais velho” — isto é dizer, o primeiro coadjutor — de Gaucelino, bispo
de Toulouse, que o sucedeu por volta de 1220, deixando Fanjeaux, onde residia, pela cidade episcopal.
Ele morreu em Monségur, por volta de 124; cf. Michel Roquebert, l’Epopée Cathare, Título 1. 1198–
1220: L’Invasion, Privat, 1970, 595 páginas.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

para esse propósito, investiu-o da função de patriarca60. Outras revelações e al-


gumas verificações convenceram J. Doinel da autenticidade de sua iniciação.
Instigado por um amigo, Fabre des Essarts, uma assembleia gnóstica foi celebra-
da em Paris, reconhecendo Doinel como patriarca sob o nome “Valentim II”.
Mais tarde, ele mesmo conferiu a dignidade episcopal a Fabre des Essarts (Sy-
nésisus)61, a Gérard d’Encausse (Papus), fundador do Martinismo, e a alguns
outros. Doinel, todavia, sempre parecer ansioso para aproximar a Igreja Gnósti-
ca da Igreja Católica. Em 1894, ele chegou ao ponto de abjurar e entregar seu
pálio episcopal ao bispo de Orleans.62 É por isso que, em 1895, Synésius o suce-
deu como patriarca da Igreja Gnóstica, e, por sua vez, conferiu consagração
episcopal a Léon Champrenaud, Albert de Pouvourville, Patrice Genty etc. Foi
durante o Congresso Espiritualista e Maçônico de 1908 que Guénon conheceu
Fabre des Essarts. Ele pediu para entrar nessa Igreja Gnóstica e, em 1909, foi
consagrado bispo de Alexandria sob o nome de “Palingénius”63. Synésius então
fundou a revista La Gnose, a direção da qual confiou a Guénon, e cuja publica-

60 Um tal modo de comunicação de iniciação não é, de acordo com René Guénon, impossível; cf. Aper-
çus sur l’Initiation, Éditions Traditionnelles, 1953, páginas 69–70. Não é sem similaridade àquela que
iniciou a renovação da Ordem do Templo em 1908, e de que Guénon seria o líder.
61 M. F. James, em Esotérisme, Occultisme, Franc-Maçonnnerie au XIX et XX Siècle, Explorations Biblio-
graphique, Nouvelles Editions Latines, 1981, indica duas datas diferentes para esta consagração: 1892,
página 103, e 1889, páginas 114.
62 Esta conversão será seguida de um retorno ao Gnosticismo, e, porventura, de uma nova abjuração. Ele
morreu em 1902. Sobre Pouvourville se pode ler, Matgioï. Un Aventurier Taoïste de J. Laurant,
Dervy, 1982, 114 páginas. De acordo com a informação concedida por Robert Amadou (M. F. James,
Esotérisme, Occultisme, Franc-Maçonnerie au XIX et XX Siècle, Explorations Bibliographique, Nouvel-
les Editions Latines, 1981). J. Doinel, além de uma consagração em mode subtil, teria recebido, bem
regularmente, o selo episcopal de um bispo da Igreja de Utrecht. De acordo com J. P. Laurant, Le Sens
Caché dans l’Oeuvre de René Guénon, Editora l’Age d’Homme, 1975, página 91, teria sido o episcopa-
do de Antioquia. Esta consagração é canonicamente válida.
63 Ao mesmo tempo, como mencionamos na Nota nº 60, Guénon, que já era um maçom e afiliado com
o Martinismo Papusiano, recebeu do “além”, de Jacques de Molay, a missão de renovar a Ordem do
Templo e ser seu líder. Esta Ordem do Templo Renovada (O. T. R.) fez uso extensivo de meios medi-
únicos de comunicação. Ele realizou seu trabalho no meio de numerosas querelas e excomunhões (no-
tavelmente com os papusianos, que acusaram Guénon de manobras tenebrosas). No final de 1911,
“sob as ordens de seus mestres”, Guénon proclamou a dissolução da O. T. R. (M. F. James, Esotérisme
et Christianisme, página 99). J. Robin vê nesta O. T. R. uma possível solução para o problema das fon-
tes para a obra de Guénon (René Guénon. Témoin de la Tradition, 1978, página 50 e adiante).
JEAN BORELLA

ção parou em fevereiro de 1912. estes são os fatos, tanto quanto fomos capazes
de reconstruí-los.
Quanto à doutrina da Igreja Gnóstica, está em todos os respeito em con-
formidade com as teses do Gnosticismo dos primeiros séculos: antijudaísmo e
antijeovismo, renovadas acusações contra os Padres da Igreja, que “distorceram
de milhares de maneiras os ensinamentos que receberam”, anticlericalismo
etc.64 Inquestionavelmente, estas teses estão em contradição com o ensinamento
posterior de Guénon. Como então, poderia ele fazê-las suas? As afiliações suces-
sivas ou simultâneas de Guénon com várias organizações pseudoesotéricas são
geralmente explicadas como uma investigação para verificar suas afirmações ini-
ciatórias65. Ademais, Guénon mesmo apresentou as coisas deste modo, falando
das “investigações que tivemos que fazer sobre este assunto”, isto é, sobre o as-
sunto da regularidade iniciatória.66 É verdade que em outro texto ele afirma
que: “Se tivemos que penetrar, em uma certa época, tais e tais círculos, é por ra-
zões que concernem a nós apenas”67, que não contradiz sua afirmação anterior,
mas é certamente menos explícito. Recordamos, além disso, a declaração que ele
fez a Maurice-Denis Boullet, de acordo com a qual entrou na Igreja Gnóstica
para destruí-la68. Como parece a nós impossível disputar a significância conver-
gente destas asserções, não somos forçados a admitir que Guénon estava since-
ramente investigando as afirmações esotéricas das organizações em questão, e es-
tava tentando, com esse propósito, penetrar cada uma de suas associações? Não
seria um exame crítico de suas doutrinas declaradas, que eram obviamente anti-

64 M. F. James, Esotérisme et Christianisme, página 82; J. P. Laurant, Le Sens Caché dans l’Oeuvre de Re-
né Guénon, página 45, página 135 etc.
65 P. Chacornac, La Vie Simple de René Guénon, Éditions Traditionnelles, 1958, página 33; Robin, René
Guénon. Témoin de la Tradition, 1978, página 45, página 135 etc.
66 Aperçus sur l’Initiation, página 41.
67 Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage (Éditions Traditionnelles, 1964), Título 1, pági-
na 197.
68 Para J. Robin, esta declaração não significa uma desautorização de Guénon com relação à regularidade
da Igreja Gnóstica, mas apenas a preocupação de prevenir essa organização, autêntica mas morrendo,
de cair, como um cadáver psíquico, nas mãos do satanista Bricaud, um dissidente da Igreja Gnóstica
que fundou uma igreja cismática sob o nome de “João II”.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

tradicionais, suficiente? Sem dúvidas deve ser presumido que certas aparências
podem ser enganosas ou confusas a este respeito.69
Deve-se, por conseguinte, ser concluído que, ao contrário de nossa supo-
sição anterior, Guénon nunca fez suas as doutrinas em questão, e apenas pare-
ceu acomodá-las pelo tempo necessário para suas investigações. Esta conclusão
parece ser confirmada por certos textos de Palingénius, que, por exemplo, decla-
ra, em 1911: “Nós não somos neognósticos […] e, quanto àqueles (se ainda exis-
tam) que afirmam sustentar o único Gnosticismo Greco-Alexandrino, eles não
nos interessam de modo algum”70. É também certo que — como foi frequente-
mente apontado — em muitos dos artigos deste período encontramos elemen-
tos doutrinais idênticos àqueles formulados pelo Guénon maduro. Mais, Gué-
non mesmo declarou, em 1932, após o texto acima mencionado, sobre as razões
pessoais que teve para “penetrar tais e tais círculos”: “Quaisquer publicações em
que tenhamos publicados artigos, seja ‘àquela época’ ou não, sempre tivemos
exatamente as mesmas ideias, sobre as quais nunca variamos”.71
Ainda, é bastante difícil reconciliar certas afirmações do período de 1909
a 1913 com aquelas da obra posterior. Se acreditamos, como dissemos no come-
ço, que no essencial, isto é dizer, sobre a metafísica pura (ou gnose) Guénon
nunca variou, e por boas razões, somos, não obstante, obrigados a notar que seu
julgamento sobre o que chamaremos amplamente “formas tradicionais” mu-
dou.
Alguns anos atrás, em um artigo bastante judicioso, Jean Reyor sublin-
hou o quanto a publicação de certos textos anteriores a 1914 poderia confundir
69 Não é este o caso da Maçonaria, ou, pelo menos, de alguns de seus ramos, cuja ideologia ateística e
progressista, de acordo com os critérios de Guénon, deveria ser imediatamente condenada? Para falar a
verdade, as “vagâncias” iniciatórias de Guénon não nos surpreenderíamos demais se admitíssemos que
um destino humano pode conhecer contradições e reversões: uma vida não se desenrola como um teo-
rema matemático. Mas deve ser admitido que um certo Guénonismo quer conferir a certas discordân-
cias, inevitáveis à existência de um homem, o valor de um ensinamento infalível, ao custo de uma in-
genuidade hermenêutica realmente excessiva (vide Robin, René Guénon. Témoin de la Tradition,
1978, página 193, que tenta atenuar o significado bastante claro das afirmações de Guénon em Aper-
çus sur l’Ésoterisme Chrétien, página 150, nº 1: “Os neognósticos nunca receberam coisa alguma por
qualquer transmissão que seja”).
70 La France Anti-maçonnique, nº 26 de agosto de 1911, citada por J. Robin, René Guénon. Témoin de
la Tradition, página 19).
71 Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage, Título 2, páginas 266–267.
JEAN BORELLA

o leitor de Guénon, que “em sua idade madura não quis mais estar de acordo
com todas as posições tomadas em seus escritos de juventude”72. Quando afir-
ma, por exemplo, na revista La Gnose que “a tradição não é, de maneira alguma,
excludente da evolução e do progresso”, que o objetivo da Grande Obra é “a in-
tegral realização do progresso em todos os campos da atividade humana”, que
os maçons não têm que reconhecer “a existência de qualquer Deus”73, e, ade-
mais, que “o Deus das religiões […] não é apenas irracional, mas mesmo antirra-
cional”, e que “o Deus antropomórfico dos cristãos” não pode ser assimilado a
“Jeová […], o hierograma do Grande Arquiteto do Universo mesmo”, cujo no-
me pode ser substituído por aquele da humanidade74 e outras tais estranhezas,
temos os direito de nos perguntar, sem malícia, se essas afirmações são reconcili-
áveis com o que encontramos n’A Crise do Mundo Moderno ou n’O Reino da
Quantidade e os Sinais dos Tempos. É impossível responder que sim, mesmo qe
Guénon especifique que, por “humanidade”, por um lado, deve-se entender
“Homem Universal”, e que a razão pode ser considerada como “razão superi-
or”, de acodo com uma expressão de Santo Agostinho, que também é o caso pa-
ra a palavra “manas” em Śaṅkarā ou na Escola Sāṃkhya.75
Mas, para falar a verdade, estas divergências concernem mais um tom ge-
ral, revelador de uma atitude, em vez de pontos doutrinais em particular. O uso
de um vocabulário de racionalismo anticlerical prova, acima de tudo, que Gué-
non ainda não havia se libertado de certas influências e certos círculos cuja lín-
gua ele, em alguns respeitos, adotou. Isto é algo que ele não fará depois, a partir
de 1911–1912, quando ele definitivamente rompe com as organizações ociden-
tais às quais pertencia, ou procede com sua dissolução ele mesmo. Esta mudan-
ça de atitude não concerne apenas as noções de progresso, evolução, e racionalis-
mo, que se caracterizaria muito bem como “a ideologia do livre pensamento”.
Também concerne algo muito mais importante, isto é, a atitude de Guénon em
relação à religião em geral e ao Cristianismo em particular. Sem dúvidas, esta
atitude permanecerá bastante crítica. Mas se percebe no jovem Guénon uma in-
72 René Guénon et la Franc-Maçonnerie. A Propos d’un Livre Récent, publicado na revista Le Symbolis-
me, nº 368, janeiro / fevereiro de 1965, página 117.
73 Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage, Título 2, páginas 266–267.
74 Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage, Título 2, páginas 282–285.
75 Guénon o indica nas páginas 72 e 74 de l’Homme et son Devenir selon le Vedānta.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

diferença — para não dizer um desprezo — em relação às religiões e seu Deus,


que parece a nós ausente das grandes obras de sua maturidade. Aquilo de que
Palingénius carece não é a noção, mas, porventura, o vivo e concreto senso de
Tradição, e, assim, o respeito pelas formas sagradas em que é expressa. Certa-
mente, o conteúdo doutrinal das grandes obras já está mais do que destacada
nos artigos de La Gnose, e é certo apontá-lo. Mas o clima de seu pensamento
mudou um tanto. Em 1911, Palingénius afirmou: “Nós não podemos conceber
a Verdade metafísica de qualquer outra maneira que axiomática em princípios e
teoremática em deduções, isto é, exatamente tão rigorosa quanto a verdade ma-
temática da qual é a extensão ilimitada”76. Em 1921, René Guénon escreveu: “A
lógica e a matemática são o que, no domínio científico, dá as mais reais corres-
pondências com a metafísica; mas, é claro, pelo mesmo fato que entram na defi-
nição geral de conhecimento científico […] elas ainda são muito profundamen-
te separadas da metafísica pura”77. Ao mesmo tempo, a transcendência da meta-
física sobre todas as outras disciplinas foi consideravelmente acentuada porque
sua natureza como uma tradição sagrada e sua origem primordial (já explicita-
mente afirmada) levaram Guénon, porventura como resultado de um certo
evento, a chegar a uma consciência mais distintamente hierárquica de sua pree-
minência principial.78
76 Introduction Générale à l’Étude des Doctrines, M. Rivière, página 129.
77 Em seu artigo La Gnose et les Écoles Spiritualistes (1909–1911), Guénon já afirma:
78 “A gnose pode, por conseguinte […] apenas se basear na Tradição Ortodoxa contida nos Livros Sagra-
dos de todos os povos, uma tradição que, na realidade, é a mesma em todos os lugares, a despeito das
formas diversas que assume”. Mas ele também a escreve: “A gnose em seu sentido mais amplo e eleva-
do é conhecimento; o verdadeiro Gnosticismo não pode, por conseguinte, ser uma escola ou um siste-
ma” (Mélanges, página 176 e 178). A primeira citação é puramente guénoniana, e rompe, de fato,
com o ocultismo gnóstico; a segunda usa o termo de “Gnosticismo” que Guénon rejeitará inteiramen-
te. Similarmente, no mesmo artigo, encontramos afirmações um tanto surpreendentes, mas bastante
reveladores. Respondendo a alguns de seus detratores (embora ele “formalmente proíba a si mesmo
qualquer polêmica”!), Guénon marca os pontos essenciais de divergência: primeiro, a rejeição do ne-
cessariamente antropomórfico Deus “Pessoal”, e mesmo da palavra; então ele continua: “Diremos o
mesmo sobre sua concepção do Cristo, isto é, de um Messias único que seria uma ‘encarnação’ da Di-
vindade; reconhecemos, pelo contrário, uma pluralidade (e mesmo uma indefinição) de ‘manifesta-
ções divinas’, mas que não são, de modo algum ‘encarnações’, porque é importante, acima de tudo,
manter a pureza do monoteísmo, que não pode concordar com uma tal teoria” (página 200). Vemos
que Guénon ocasionalmente é rápido para descartar os Livros Sagrados que ensinam que o “Verbo se
fez carne”.
JEAN BORELLA

Um exemplo final será suficiente para nos convencer desta mudança de


tom e dos distanciamento de seu pensamento do “Gnosticismo” de sua juven-
tude. É dado a nós pelo famoso artigo O Demiurgo, considerado como a pri-
meira obra doutrinal de Guénon, provando que, como é comumente afirmado,
em 1909 ele estava em plena posse de sua doutrina. Todavia, isto não é exata-
mente verdade, e, se lermos este texto cuidadosamente, podemos observar uma
divergência considerável dos textos posteriores, pelo menos em um ponto, que é
um tanto significativo.
Já apontaremos que o título mesmo de “Demiurgo” e uma evocação do
problema do mal no começo do artigo, a que este Demiurgo é encarregado de
prover uma solução, são típicos do Gnosticismo: o Demiurgo é o criador do
mundo mau. Aliás, quando observamos os detalhes da apresentação, vemos que
a ideia central, que é basicamente ortodoxa, poderia ser passada sem a lingua-
gem de que se reveste. O que o prova é a completa desaparição deste “caráter”
em suas obras posteriores.79 Enquanto, em 1909, ele identifica “o domínio deste
mesmo Demiurgo” com “o que é chamado ‘Criação’” se “todos os elementos da
Criação estão contidos no Demiurgo mesmo” e que pode, por conseguinte, ser
“considerado como o Criador”80, em 1921 a identificação do Demiurgo com o
Deus Criador é considerada uma “heresia teológica” e “bobagem metafísica”81.
Esta bobagem é ademais própria do Gnosticismo: não se deve, diz Guénon, “as-
similar [o Grande Arquiteto do Universo, que é ‘apenas um aspecto da Divin-
dade’] à concepção gnóstica do ‘Demiurgo’, que daria a Ele um caráter um tan-
to ‘maléfico’ […]”82. Entre o Criador e o Demiurgo “seria pelo menos necessário
escolher”83.
Mas o ponto que parece mais significa a nós concerne o que Guénon cha-
ma, n’O Demiurgo, o “Mundo Pneumático”, distinguido dos Mundos “Híli-
co” e “Psíquico”. Aproximando os nomes gnósticos (e paulinos) da doutrina do
Vedānta, ele escreve: “Aquele consciente dos dois mundos manifestados, isto é,
79 Mas ainda se encontra o adjetivo “demiúrgico”.
80 Mélanges, página 16.
81 Introduction Générale à l’Étude des Doctrines, página 123 (ou página 113 nas novas edições).
82 Études sur la Franc-Maçonnerie et le Compagnonnage (Éditions Traditionnelles, 1964), Título 2, pági-
na 142.
83 Formes Traditionnelles et Cycles Cosmiques, página 150.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

o Mundo Hílico, o conjunto das manifestações grosseiras e materiais, e o Mun-


do Psíquico, o conjunto das manifestações sutis, é duas vezes nascido, dvija;
mas aquele que está consciente do universo não-manifestado, ou mundo sem
forma, isto é, o Mundo Pneumático, e que atingiu a identificação de si mesmo
com o Ātmā Universal, ele apenas pode ser chamado um yogī, isto é, unido com
o Espírito Universal”84. E, algumas linhas adiante, ele estabelece a correspon-
dência desses três mundos com os três estados de despertar, sonhar, e dormir
profundamente. Em uma tal cosmologia, a manifestação assim compreende
apenas o Mundo Corpóreo e o Mundo Físico, o Mundo Pneumático sendo
imanifestado, e o “Pleroma, nem manifestado nem imanifestado”. Agora, como
sabemos, de acordo com O Homem e seu Devir, a manifestação universal com-
preende três mundos, o terceiro sendo constituído pelas realidades inteligíveis,
ou informais. Comparado à concepção gnóstico d’O Demiurgo, o universo ma-
nifestado é assim expandido por um grau adicional, aquele que a Índia chama
“mahat” ou “buddhi”. D’onde o estado de sono profundo (sushuptasthāna),
que é o estado do prājna (“aquele que sabe”), não mais corresponde ao grau
imanifesto do Puro Ser, mas também inclui a manifestação informal: “ Buddhi
deve, de uma certa maneira, estar incluído no estado de prājna” 85.
Todavia, o que deve ser notado, sobretudo, é que a adição de um degrau
de realidade à manifestação universal muda completamente seu significado: o
pessimismo cósmico do Gnosticismo é desafiado, pois, se a Criação contém o
pneumático ou inteligível, então há pelo menos um grau do universo que brilha
na beleza de sua perfeição criada, e em que sua bondade fundamental é revela-
da. Essências, como realidades informais, são “em última análise, nada outro
que a expressão mesma de Ātmā na manifestação”86, e, inversamente, podería-
mos dizer, a expressão da manifestação, se não em Ātmā, pelo menos em Sua
mais imediatada proximidade: a Criação Paradisíaca iluminada diretamente pe-
lo Sol Divino. 87
84 Mélanges, páginas 147–155 (edição de 1925).
85 L’Homme et son Devenir selon le Vedānta, páginas 147–155 (edição de 1925).
86 Esprit et Intellect, em Mélanges, página 35.
87 Lendo cuidadosamente o Mito da Caverna de Platão, vê-se que, na montanha, há, por um lado, fanto-
ches cujas sombras são projetadas na parede do fundo, e, por outro lado, homens e mulheres que car-
regam esses fantoches sobre seus ombros e são escondidos por uma parede. Se Platão identifica os fan-
JEAN BORELLA

Vê-se toda a importância, que é verdadeiramente decisiva, da afirmação do


Mundo Inteligível, que, sozinho, pode salvar o cosmos de sua indefinida disper-
são às trevas exteriores, enquanto, ao mesmo tempo, salvando o conhecimento
humano de sua desintegração na insignificância do Nominalismo. Aristóteles,
que nega a realidade própria das essências, é o verdadeiro pai de Ockham.
Já dissemos o suficiente sobre a relação de Guénon com o Gnosticismo.
Deste ponto em diante, sua atitude não variará e se tornará ainda mais pronun-
ciada. Poderíamos resumi-la nos seguintes dois pontos: primeiro, a condenação
e definitiva rejeição dos neognósticos, e, segundo, a prejudicial e invariável dis-
tinção entre gnose e Gnosticismo. E se a gnose é definida como conhecimento
metafísico par excellence, o Gnosticismo é, com algumas divergências depen-
dendo dos textos, definido de uma maneira um tanto pejorativa, como a totali-
dade das escolas heréticas que os historiadores designam com este nome. O tex-
to mais explícito que Guénon devotou a ele se encontra em Oriente e Ocidente.
Ele afirma, em particular: “É um tanto difícil saber, hoje, a natureza precisas das
doutrinas um tanto variadas que são classificadas sob este termo genérico de
‘Gnosticismo’, e entre as quais haveria, sem dúvidas, muitas distinções a serem
feitas; mas, no todo, parece que continham ideias orientais mais ou menos desfi-
guradas, provavelmente mal-entendidas pelos gregos, e vestidas com formas
imaginativas que são dificilmente compatíveis com a intelectualidade pura;
pode-se certamente encontrar, sem muita dificuldade, coisas mais dignas de in-
teresse, menos misturadas com elementos heterogêneos, de um valor muito me-
nos duvidoso, e uma significação muito mais garantida”88.
toches com as ideias (ou essências), ele não diz nada sobre os homens que os fazem se mover e falar.
Devemos, por conseguinte, distinguir entre as ideias essenciais (ou formas inteligíveis) manifestadas e
as ideias imanifestadas, que são identificadas com possibilidades divinas. As ideias manifestadas ainda
são parte do teatro cósmico (a māyā saṃsárica), e devem ser superadas em ordem a alcançar o Bem Su-
premo que está, como Platão diz, “Além-Ser” (ou da “Essência”, “Ousía”). É do ponto de vista do
Bem que apenas os carregadores dos fantoches podem ser vistos, o que significa que é apenas do pon-
to de vista do Além-Ser que a principal raiz da multiplicidade pode ser apreendida da unidade ontoló-
gica em si. Do ponto de vista do criado, mesmo a mais alta manifestação espiritual, o Ser “aparece” co-
mo a unidade exclusiva da multiplicidade criada. Do ponto de vista do Além-Ser, a “face interna” do
Ser aparece como a síntese determinativa da multiplicidade inumerável (não-quantitativa) das possibi-
lidades arquetípicas.
88 Éditions Didier, 1930, página 216. Em 1931, ele chega a afirmar: “Nunca sentimos mais do que um
interesse bastante medíocre pelo Gnosticismo, primeiro porque é bastante difícil saber exatamente o
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

Se agora nos perguntarmos sobre o evento a que aludimos anteriormente,


que desempenharia o papel de um catalisador na atitude de Guénon frente ao
pseudoesoterismo das formas religiosas, responderemos que é mais provavel-
mente constituído por sua ligação ao Ṣūfismo. Foi em 1912 que, de acordo com
as indicações dadas pela dedicação d’O Simbolismo da Cruz (uma data que é
também confirmada por uma carta), que Guénon recebeu a iniciação.89 Acredi-
tamos que este evento seja decisivo, não do ponto de vista doutrinal, mas do
ponto de visto espiritual, isto é, no que concerne o comprometimento de todo
o ser à Verdade. Como, de fato, poder-se-ia falhar em perceber que foi nesta da-
ta que Guénon rompeu definitivamente com as “margens” do esoterismo em
ordem a se juntar uma linhagem iniciática regular? É também esta iniciação que
dá a ele uma mais vívida e concreta consciência dos requerimentos do ponto de
vista tradicional, já que parece que, de acordo com o excelente título do livro de
Jean Robin, René Guénon nunca quis ser nada além de uma “testemunha da
Tradição”. Há, sem dúvidas, outros incidentes a serem notados, que não são
menos significativos (por exemplo, o abandono do pseudônimo “Palingénius”
em prol do de “Esfinge”). De qualquer maneira, este evento parece ser análogo
ao que ocorrerá em 1930, com sua partida para o Cairo, e que dará a ele a opor-
tunidade de se imergir — tanto quanto sua natureza permitiu — em uma at-
mosfera verdadeiramente tradicional. “Bem-aventurados os que não viram, e
creram” (João 20:29). Mas há coisas que se entende apenas depois de tê-las vis-
to…90

que era na realidade, e, em segundo lugar, porque, de qualquer maneira, sua forma grega é maxima-
mente repulsiva a nós” (Comptes-Rendus, página 119). Que a forma grega repele Guénon, vemos, mas
tal sentimento não pode constituir uma garantia de objetividade.
89 J. Robin, René Guénon. Témoin de la Tradition, página 69.
90 Les Actes du Colloque International de Cerisy-la-Salle (13–20 de julho de 1973): René Guénon et
l’Actualité de la Pensée Traditionnelle, Éditions du Baucens, 1977, contém testemunhos importantes a
este respeito, em particular aquele de Nadjmoud-Dine Bammate.
JEAN BORELLA

III. O MISTÉRIO DA GNOSE INFINITA

A distinção entre gnose e Gnosticismo, à qual Guénon doravante adere, tor-


nou-se a regra. Aliás, é conhecido que os participantes do International
Colloquium of Messina on the Origins of Gnosticism concordaram em definir es-
te termo como designando “um certo grupo de sistemas do século II d.C. que é
convencionalmente nomeado como tal”, enquanto “gnose” significa “o conhe-
cimento de mistérios divinos reservados a uma elite”.91 Esta distinção não é sufi-
ciente, contudo, para tornar clara a verdadeira natureza da gnose, ou para li-
bertá-la de sua corrupção gnosticista. Além do mais, se as considerações prece-
dentes apenas resultassem em confirmar a perspicácia do juízo de Guénon sobre
o assunto, elas seriam de pouco interesse. Na realidade, o que é muito mais im-
portante é a concepção mesma de gnose, isto é dizer, de conhecimento metafísi-
co (jnāna), que Guénon expôs e desenvolveu, mais ainda, que ele fez “existir”
diante de nossos mesmos olhos, e cujos significado ele consequentemente res-
taurou a nós.
Em ordem a mostrar o verdadeiro significado da gnose ortodoxa, tal qual
Guénon o formulou, assim como sua importância e função, seria de fato neces-
sário retraçar toda a história da filosofia ocidental92, desde sua origem grega às
suas mais curiosas formas contemporâneas. Apenas esta história, acreditamos,
que é também, em certos aspectos, aquela da teologia cristã, pelo menos desde o
fim da Idade Média, permitir-nos-ia apreender o que está em jogo nesta ques-
tão. Carecendo disso, meramente nos contentaremos com uma breve caracteri-
zação.
A ideia de gnose é aquela de um conhecimento sobrenatural e unificante
da Realidade Divina. E esses três elementos são de fato necessários para sua defi-
91 Le Origini dello Gnosticismo, Colloquio di Messina, Leiden, 1967, página 23.
92 Nós obviamente incluímos no conceito de filosofia muitas coisas que Guénon exclui. O uso deste ter-
mo, que significa literalmente “amor por Sophía”, e, por conseguinte, uma busca sapiencial e concen-
tração em Seu divino mistério, é imposto e garantido pela tradição platônica, que representa uma das
maiores expressões da metafísica universal. Falando em filosofia, Platão estava apenas usando um ter-
mo que Pitágoras mesmo inventou (de acordo com Cícero).
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

nição, isto é, primeiramente: a Realidade Divina, ou Realidade Infinita e Perfei-


ta, porque todo conhecimento é especificado por seu objeto, e aquele da gnose é
nenhum outro do que o objeto par excellence, o Real Absoluto. Em segundo lu-
gar: unificante ou identificante, porque, diferente de qualquer outro conheci-
mento, só há gnose se há uma transformação do sujeito conhecedor e uma uni-
ão com o objeto conhecido: enquanto o conhecimento, operando por abstra-
ção, geralmente deixa o ser mesmo do conhecedor fora de si, aqui ele tem lugar
precisamente apenas em uma participação deificante naquilo que conhece. Em
terceiro lugar: é sobrenatural, ou metafísica, ou suprarracional, ou conhecimen-
to sagrado, porque, apesar de ser conhecimento, como qualquer ato especulati-
vo, é radicalmente distinta dele por seu modo, que é aquele de um intelecto
pneumatizado (ou espiritual); de fato, é distinta dos outros modos conquanto,
nela, a perfeição de todos os objetivos cognitivos é realizada.
Esta concepção de uma intelectualidade sagrada é basicamente colocada
adiante por Platão e o Neoplatonismo: um conhecimento que é uma conversão,
e que engaja o ser todo, tal que os graus de conhecimento são, como os vários
estados do Ser, hierarquicamente ascendentes. Isto é o que o símbolo da caverna
nos ensina, assim como a doutrina plotiniana das hipóstases. E tal é, bem expli-
citamente, a definição que Platão dá de filosofia, um conceito que estava fadado
a encontrar dois tipos de objeções, umas em nome da intelectualidade, as outras
em nome do sagrado.
As objeções concernentes à ordem especulativa são levantadas por Aristó-
teles, que inaugura, na história do pensamento ocidental, o que pode ser cha-
mado “ciência profana”, isto é dizer, um funcionamento exclusivamente abstra-
to do conhecimento.93 Sem dúvidas, a ciência ainda está objetivamente ligada à
metafísica, pelo menos a alguns princípios de uma ordem ontológica. Mas o
que vem primeiro é o estudo de lógica (a analítica) de que Aristóteles é o inven-
tor. A metafísica, aqui, não tem nenhum outro interesse senão que o de fundar
a física. E, seja na física ou na metafísica, o conhecimento é uno e apenas dife-
renciado em função das várias modalidades segundo a qual abstrai a realidade

93 Elaboramos sobre estas questões em Les Fondementes Métaphysiques du Symbolisme Sacré, Título 1,
Capítulo 3, Artigo 1, Secção 2, § 4º.
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conhecida.94 Vemos tudo o que separa uma tal concepção daquela de Platão. Pa-
ra Platão, saber é saber o que é. A verdade do conhecimento varia de acordo
com a realidade de seu objeto. Há, assim, essencialmente, graus de conhecimen-
to correspondendo de maneira rigorosa aos graus da realidade, tal que qualquer
grau inferior é ignorância com relação ao superior: não poder haver verdadeiro
conhecimento daquilo que não é verdadeiramente, isto é dizer, do vir-a-ser.
Apenas o conhecimento do Absoluto (o “Incondicionado”, “Anhypótheton”) é
absolutamente conhecimento. É aquele do Supremo Bem “além do Ser”
(“epekeīna tēs ousías, República 4:509b), mas que requer a atualização do inte-
lecto (noús) e o abandono do conhecimento discursivo (diánoia). Em outras pa-
lavras, porque todo conhecimento verdadeiro é um desejo de ser, o intelecto
não pode (verdadeiramente) conhecer qualquer coisa com que não pode se
identificar. Mas pode o homem se tornar uma pedra, uma árvore, ou um gato?
Não. Consequentemente, não há perfeito conhecimento da pedra, da árvore,
ou do gato (como seres sencientes e físicos).
Em contraste, é do Mundo Físico que Aristóteles quer obter uma certeza
científica. Podemos ver em que sentido devemos entender a fórmula do De ani-
ma que Guénon gostava tanto de citar: “A alma é tudo o que conhece” 95. Não
pode ter o significado de uma união entitativa da alma com seus objetos de co-
nhecimento. Nem se pode considerar uma revelação inconsciente de Aristóte-
les, significando mais do que objetivava expressar. De fato, a exata formulação
sempre contém o advérbio “pо̄ s”, “d’alguma maneira” (“quodamodo”)96. E se a
alma, no ato de conhecimento, pode ser, quodammodo, todas as coisas (pedra,
94 Aristóteles distingue a “primeira filosofia” (ou “teologia”) e a “segunda filosofia”. Mas, se o objeto de
uma (o Ser qua Ser) difere do objeto da outra (o ser físico), sua ciência é uma. Há, ele diz, a mesma re-
lação entre a metafísica e a física que há, na matemática, entre aritmética e geometria (Metafísica
4:2:1004–1005). Abstração ou é física, ou matemática, ou metafísica.
95 Por exemplo, Introduction Générale à l’Étude des Doctrines, página 145. Genericamente falando, Gué-
non favorece Aristóteles em detrimento de Platão, que obviamente o irrita. Em seu “Discurso contra
Discursos” (Études Traditionnelles, nº 428, página 247), ele chega a afirmar que a dialética de Platão é
apenas “divertimento vazio” e que “não poderia levar a qualquer conclusão profunda”, o que é um
tanto chocante. Entende-se, então, que ele possa declarar que a metafísica ocidental, com seu “caráter
incompleto”, “é reduzível à doutrina de Aristóteles e os escolásticos” (Introduction Générale à l’Étude
des Doctrines, página 116). Sem comentários!
96 Por exemplo: De anima (3:8:431b:21), “è psychē tá onta pо̄ s est panta”; “a alma é, de certa forma, todo
ser”.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

árvore, ou gato), é precisamente porque o ato de conhecimento efetua uma se-


paração radical de ser e intelecto; em outras palavras, é porque ela não é nada
(entitativamente) do que conhece que ela pode (intencionalmente) se identifi-
car com todas as coisas conhecidas. O conhecimento, para Aristóteles, é atingi-
do através de um processo de abstração que “desexistencia” a forma inteligível e
a remove do ser concreto e real, assim permitindo que exista na alma a que é
unificada ao “informá-la”. A forma inteligível, então, não é nada senão aquilo
que chamamos “conceito”.97 Mas, se, no que diz respeito ao Mundo Sensível, a
análise aristotélica meramente expressa a pura e simples verdade, não é o mesmo
em relação ao conhecimento dos inteligíveis (cuja existência própria Aristóteles
nega) e especialmente da Suprema Inteligência que é Deus, que o filósofo reco-
nhece de certa maneira, sem, contudo, depreender todas as consequências disso.
A dificuldade do pensamento aristotélico é claramente mostrada no problema
clássico de saber se, para Aristóteles, há duas filosofias primárias, ontologia (ou
metafísica geral) e teologia (ou metafísica especial): é o “Ser qua Ser” o Ser em
geral ou Deus?
Como quer que seja, no Ocidente, é a filosofia aristotélica que provê a
concepção geral do que seria uma ciência, enquanto, ao mesmo tempo, é esta
ciência que provê o modelo de todo verdadeiro conhecimento. Conhecer é co-
nhecer um objeto, isto é, algo que, em seu próprio ser, é radicalmente outro do
que o ser do sujeito conhecedor. Todo conhecimento implica uma distinção on-
tológica, d’outro modo a objetividade da ciência é posta em questão. 98 E não pa-
rece que esta concepção concorde um tanto maravilhosamente com a Revelação
Cristã? Encontramos aqui o segundo tipo de objeções que anunciamos acima,
aquelas concernentes ao sagrado.
Não podemos nos demorar, presentemente, sobre as consideráveis mu-
danças que a irrupção do Cristianismo trouxe no campo cultural da Antiguida-
de, e cujo estudo ainda não está nem um pouco próximo de complexo. Diga-
mos, pelo menos, que esta irrupção teve o efeito de profundamente modificar a
97 Resumimos e simplificamos uma doutrina complexa, de acordo com o que parece a nós ser seu signifi-
cado geral, sem excluir que esta doutrina pode esconder virtualidades de gnose.
98 Exceto para Deus, em quem o sujeito conhecedor e o objeto conhecido são um: Deus é Intelecção de
Intelecção (Noésis Noésos).
JEAN BORELLA

noção mesma de sagrado e Salvação. Na medida mesma em que a Salvação (que


não é distinta aqui da Redenção) tem lugar através da fé no Cristo, que comuni-
ca Sua graça, assim elevando a natureza humana à sua perfeição deificante, o co-
nhecimento intelectivo simples é despido de sua dimensão salvífica. Este conhe-
cimento pode, por conseguinte, apenas concernir a inteligência, não o ser mes-
mo, a pessoa imortal, que é domínio exclusivo da religião. D’aí a desejabilidade
de uma doutrina que ontologicamente “neutralize” e “secularize” o conheci-
mento, deixando a existência humana inteiramente à religião. Desta maneira,
ciência e fé, filosofia e religião, natureza e sobrenatureza, razão e graça, são trazi-
das à concordância através da distribuição de suas respectivas competências.
No entanto, este equilibrium, que floresce exemplarmente nas obras de
Santo Tomás de Aquino, é frágil, e isto de dois pontos de vista quase antinômi-
cos, um que nega a real distinção entre ciência e fé, enquanto o outro a acentua
ao ponto de contradição; dois pontos de vistas que, ademais, condicionam um
ao outro. De qualquer maneira, não é nem mesmo uma questão de dois pontos
de vista que são possivelmente comparáveis; em vez, é um requerimento da na-
tureza das coisas no primeiro caso e um resultado de sua “cultura” no segundo.
De fato, o ponto de vista da não-distinção não resulta de uma decisão teorética,
mas se impõe necessariamente: a fé é conhecimento em sua essência mesma, e o
conhecimento inevitavelmente compreende uma dimensão da fé, conquanto é
uma aderência de um ser ao que ainda não vê. Nota-se, assim, na ciência como
na fé, a presença de um comum e irredutível núcleo de gnose. Nada pode dura-
velmente modificar este fato fundamental. Quanto ao segundo ponto de vista,
ele só desenvolve, em acordança com a história do pensamento ocidental mes-
mo, a separação metódica de ciência e fé ao radicalizá-la tanto quanto a natureza
das coisas o permite. Isso significa que a ciência é progressivamente definida co-
mo não-fé, e a fé como não-ciência.
Fé proclamada como não-fé, esta é a realização primária do Cartesianis-
mo, que, a despeito de algumas reservas, definitivamente marginaliza a teologia.
No entanto, não é até Kant que esta exclusão é filosoficamente integrada no ato
conceitual como tal, o que significa não apenas uma rejeição das preocupações
religiosas (isto havia sido adquirido há muito tempo), mas uma rejeição a priori
da dimensão ontológica do conhecimento, conquanto toda fé é uma aderência
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

a um ser desconhecido. Em outras palavras, o Kantianismo estabeleceu uma


neutralização ontológica de todo conhecimento como um princípio. O Ser, o
Real, por definição, é o que não pode ser conhecido.
As repercussões teológicas do Kantianismo, a despeito da — ou por causa
da — reação “pseudognóstica” de Hegel, levará à empreitada bultmaniana e às
pseudoteologias da morte de Deus: qualquer conceito é uma abstração alienan-
te, mesmo aquele de Deus (ou aquele de qualquer dogma, Trindade, ou Encar-
nação etc.); a fé é uma experiência pura que não tem outro fim que despertar a
existência humana à consciência de sua irremediável contingência.
Tal é a situação intelectual do Ocidente (Europa e América), à qual, como
acreditamos, a manifestação providencial da gnose guénoniana providenciou o
remédio. E é isto que gostaríamos de mostrar em conclusão.
Esta situação pode ser descrita como um divórcio gradual entre ser e co-
nhecimento, um divórcio que acaba sendo estabelecido como um princípio.
Que isto não é fácil de remediar é provado pelo fracasso da “gnose” hegeliana e
teilhardiana, a primeira propondo reconciliar conhecimento e ser, a segunda
ciência e fé (ou inversamente, de acordo com os pontos de vista). 99 Não é nem
mesmo suficiente afirmar a tese contrária para resolver todas as questões que a
crítica filosófica e teológica inevitavelmente levantará. Para a filosofia, não há co-
nhecimento que não postula seu objeto como uma realidade distinta, e o tema
de “co-naissance” tem para ela apenas interesse poético. Para o teólogo, unir ser e
conhecer, ou falar em uma Salvação pelo conhecimento, é descartar a Revelação
e a graça, ceder à gnose aborrida e cair, inevitavelmente, no panteísmo. Todavia,
o leitor de Guénon não tem este sentimento de modo algum. Ninguém enfati-
zou a ideia de Tradição mais do que Guénon, e atribuiu verdadeiro conheci-
mento à sua fonte divina. Nunca — exceto distorcendo seu pensamento — po-
deria Guénon ser colocado do lado de uma redução intelectualista da doutrina
metafísica. A metafísica é uma ciência intrinsecamente sagrada. Ela transcende
todas as formulações das a ela e todos os receptáculos humanos que podem re-
cebê-la. É precisamente a Palavra Divina em Si, como “a luz verdadeira, que alu-

99 Tentamos mostrar que o Hegelianismo é uma pseudognose em Les Fondements Métaphysiques du


Symbolisme Sacré, Título 1, Capítulo 4, Artigo 2, Secção 1.
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mia a todo homem que vem a este mundo” (João 1:9), isto é, cada ser que atin-
ge o estado humano.
Mas isto não é tudo. Estudando a doutrina de Guénon cuidadosamente,
percebe-se que o conhecimento metafísico, além desta notável situação que de-
cisivamente o arranca do mundo profano e o restaura à sua ordem própria, é ca-
racterizado em si como uma efetiva consciência do Real, tanto que, para o ho-
mem, apenas aquilo de que ele se tornou efetivamente consciente é real, todo o
resto sendo definido como meramente possibilidade. O conhecimento é, assim,
“realização”, não no sentido idealista de que cria o real, mas no sentido de que
apenas através dele há, para o ser humano, o real. O real é rigorosamente correla-
tiva a ato pelo qual o sujeito se torna consciente dele. Não é postulado contradi-
toriamente em si por uma afirmação teorética que esquece que a autonomia e
independência do real que postula é exata e necessariamente dependente do ato
que o postula, como o crítico filosófico terá granze prazer em enfatizar. Em ou-
tras palavras, e para nos expressar menos abstratamente: qualquer afirmação do
Absoluto e Infinito Real parece pecar por excesso e por falta: por excesso por-
que, sendo relativa, diz mais do que tem direito; por defeito, já que o Absolut´e
nada mais do que afirmação.100 À segunda dificuldade, Guénon responde mos-
trando, de maneira bastante clássica, que não é o intelecto humano que afirma
o Absoluto Divino, mas o Absoluto em Si que a firma a Si mesmo em cada inte-
lecto: o Verbum Illuminans. À primeira dificuldade, a resposta é mais “origi-
nal,” ou, pelo mais, mais explícita do que o comum. E, de fato, não parece ter si-
do formulada desta maneira antes, mesmo que seja pressuposta por toda verda-
deira gnose, e, primeiro de tudo, pela jnāna de Śaṅkarā. Esta “nova” explicação
é, obviamente, requerida pela profunda obscuridade metafísica do presente fim
cíclico, durante o qual o desenvolvimento prodigioso da capacidade mental em-
botou progressivamente a intuição intelectiva das verdades implícitas. Estamos
na época em que é preciso “colocar os pingos nos ‘Is’ e colocar os traços nos
‘Ts’” — dizemos isso sem a menor ilusão.
100 Apenas aqueles que nunca se perguntaram sobre o significado de um kōan, ou sobre a “unicidade do
testemunho” (wahdat al-šuhūd), uma unicidade que o testemunhador al-Ḥallāj só pôde realizar por
sua própria extinção crucificante, acharão estes apontamentos ociosos ou sofísticos. A questão é: o
que é a Buddheidade? Ou, novamente: como “dizer ‘Deus’”, ou como ser “Théo lógos”?
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

É n’Os Múltiplos Estados do Ser que Guénon dispõe esta resposta. Pri-
meiro tentemos a extrapolar. A obra começa com um capítulo devotado à fa-
mosa distinção entre o Infinito e a Possibilidade Universal, uma distinção que,
ademais, não tem realidade exceto do nosso ponto de vista, já que, do ponto de
vista do Princípio Supremo, a Possibilidade Universal é o próprio Infinito; to-
davia, tampouco é arbitrária, já que corresponde a dois “aspectos” do Supremo,
um aspecto analogamente “ativo” e um analogamente “passivo”. Este não é o
lugar para investigar a origem desta distinção101, que é mais tântrica do que
šaṅkárica102, mas devemos nos perguntar por que Guénon introduz o conceito
de Possibilidade Universal. Qual é seu objetivo? Qual é seu propósito? Não é o
conceito de Infinito suficiente? Guénon dá uma primeira resposta afirmando
que o ponto de vista da Possibilidade Universal constitui “o mínimo de deter-
minação que é requerida para tornar o Infinito de fato concebível”. Em resumo,
não podemos de fato concebe o Infinito em Si. Quando pensamos no Infinito,
podemos, em verdade, pensar na “Possibilidade Universal”, ou, em outras pala-
vras, “aquilo que pode ser absolutamente qualquer coisa”, “aquilo cuja realida-
de não pode ser limitada por absolutamente nada”, e esta é, basicamente, outra
maneira de falar da “absoluta não-contradição” da ideia de Infinito, já que o im-
possível é aquilo que implica contradição.103 Nós então descobrimos que esta
determinação mínima corresponde a um aspecto “objetivo” do Infinito, que
Guénon identifica com a perfeição passiva. De qualquer maneira, a Possibilida-
de Universal necessariamente inclui aquilo que excede o Ser, já que o Ser, ou de-
terminação principal, é inevitavelmente contraposto àquilo que não é, e assim

101 Que é nada outro que aquilo que a Escolástica chama de “distinção virtual”, isto é dizer, nem real,
nem apenas da razão.
102 Há pouca menção da Śakti de Brahmā na obra principal de Śaṅkarā, o Comentário sobre os Aforis-
mos do Vedānta: uma vez em 2:1:14, de acordo com o índice de G. Thibault (O Vedāntasūtra de Bā-
darāyaṇa com o Comentário de Śaṅkarā. Dover Publications Inc. 1962, dois volumes). É o Tantrismo,
em particular Abhinavagupta, que desenvolve plenamente a doutrina que Ānanda Kumāraswāmī cha-
mou “Biunidade Divina” (Études Traditionnelles, nº 212–213, 1937, páginas 289–301).
103 Para comentar estas páginas bastante densas, seria necessário sublinhar seu pano de fundo leibniziano,
em particular as páginas 14–16, onde Guénon, em conformidade com o desejo de Leibniz ( New Es-
says on Human Understanding 4:10, § 7º), mostra que a ideia do Infinito é possível (não-contraditó-
ria) e necessária.
JEAN BORELLA

contradito por isso.104 Assim o Ser não está “além” de toda contradição, não rea-
liza a absoluta não-contradição, que é outro nome para a Possibilidade Univer-
sal. Para o Supremo ser absolutamente não-contraditório, tal que nada possa
contradizê-Lo, é por conseguinte necessário que exceda a primeira de todas as
determinações, e abrace aquilo que está além do Ser. Este é o motivo pelo qual,
para Ele, “ser capaz de ser absolutamente tudo” significa também a habilidade
de ser Não-Ser. Tal é a lógica do Infinito. Parece, assim, que o ponto de vista da
Possibilidade Universal é dificilmente uma determinação, que só começa real-
mente com o Ser, mas que é, em vez, necessário considerá-La como a determina-
bilidade universal do Princípio, que, em Si, é não-determinado (ou supradeter-
minado) mesmo pela determinação principal do Ser.
Todavia, o conceito mesmo de possibilidade guada uma ambiguidade,
conquanto deriva seu significado de uma oposição àquele de realidade. O que é
possível é aquilo que “pode ser”, isto é dizer, aquilo que não contém nenhuma
contradição conceitual (como aquela de um círculo quadrado, de um bode ca-
bra, ou de uma vértebra gasosa), mas que não está atualmente realizada, ou que,
pelo menos, é considerada à parte de sua atual realização ou não-realização.105
Não há dúvidas de que a filosofia escolástica considera o possível como desig-
nando a essência das criaturas conquanto elas estão apenas em Deus, e, assim,
“anteriormente” a toda existenciação. Adotar este ponto de vista é afirmar que
há apenas possibilidades de criação (cuja existenciação depende da Vontade Di-
vina), por um lado, e, por outro lado, que as possibilidades têm significado ape-
nas com relação à sua realização. Por conseguinte, obviamente não se pode falar
da Realidade Suprema como Possibilidade Universal, que implicaria que não é
real, nem se pode falar de possibilidades de não-manifestação. É por isso que
Guénon afirma que a “distinção do possível e do real, sobre a qual muitos filó-

104 A maior contradição do Ser, em alguns aspectos, é a existência universal (a Criação), que procede do
ser, e assim difere d,’Ele, o que implica ser misturada com o nada, isto é, de “ser menor”.
105 Pode-se livremente fazer as próprias definições contanto que sejam bem fundamentadas. Guénon se
conforma ao uso escolástico, que distingue dois pares de opostos, o possível e o impossível, o necessá-
rio e o contingente; o primeiro par concerne a essência, o inteligível puro, o segundo a existência. É
possível ou impossível aquilo cuja definição (essência) implica ou não contradição. É necessário ou
contingente aquilo que pode não ser ou não.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

sofos fortemente insistiram, não tem valor metafísico”106. Mas, então, para que
falar destas possibilidades? E especialmente de possibilidade de não-manifesta-
ção? Por que não falar de uma vez de realidades não-manifestadas? — Já que há,
de fato, uma identidade metafísica entre o possível e o real, e, lidando com o
imanifestado, estamos, certamente, no nível metafísico par excellence. O termo
de possibilidade manteria um significado no que diz respeito ao Metacosmo Di-
vino, em que toda as coisas estão em permanente atualidade? “Possibilidades de
manifestação” oferece um claro significado em relação à manifestação, para indi-
car a relação entre a Essência Eterna e Sua existenciação em um mundo determi-
nado. Mas como poderia haver existenciação no nível do imanifestado? A não
ser que se queira dizer apenas possibilidades que Deus não quer realizar. Mas
Guénon rejeita esta interpretação: as possibilidades de manifestação definem to-
das as coisas manifestáveis, sejam elas manifestadas ou não.
Como podemos ver, a dificuldade é óbvia, e deve ser admitido que a sim-
ples expressão “possibilidades de não-manifestação” é de fato estranha. Não é
menos surpreendente notar que nenhum guénoniano “de estrita observância”
— até onde sabemos — levantou esta dificuldade, nem chamou atenção à solu-
ção que Guénon propõe. Pois ele de fato propõe uma, mas de maneira um tan-
to discreta. A sétima nota de rodapé, na página 23, anuncia que a palavra “real”
receberá “um significado muito mais preciso mais tarde”. E isto é tudo. Temos
que esperar até a página 92 (quase o fim do livro) para ler a seguinte frase: “E es-
te é o lugar para especificar um pouco […] a maneira segundo a qual devemos
entender a identidade metafísica entre o posível e o real”. Não podemos comen-
tar na medida que seria apropriada sobre o texto que se segue e que constitui o
ensinamento essencial deste capítulo, significantemente chamado: Conheci-
mento e Consciência. Cabe a cada um de nós meditar nestas páginas, que con-
têm, de certa maneira, o que o Evangelho chama “chave da gnо̄ sis” (Lucas
11:52)”. Apenas destacaremos o que concerne nossa questão.
De primeira se pode pensar que esta é apenas uma questão de terminolo-
gia. De fato, Guénon propõe especificar o significado da palavra “real” como
significando aquilo de que um sujeito se tornou efetivamente consciente, aqui-
lo que se “realizou”, no sentido do inglês “to realize”. Mas nós imediatamente
106 Les États Multiples de l’Être, página 23.
JEAN BORELLA

entendemos que esta proposição vai muito além. Não apenas ela nos permite
considerar a realização através do conhecimento sob uma nova luz a consideran-
do inseparavelmente como uma realização do “objeto” tanto quanto do “sujei-
to”, mas também se baseia no que chamaremos uma metafísica do conhecimen-
to, que, em um certo sentido, suplanta uma metafísica do ser.
Concernindo o primeiro ponto, isto é, a correlativa “realização”, através
do conhecimento, do sujeito conhecedor e do objeto conhecido, diremos que
atualiza sua primordial e subjacente unidade. O real é correlativo à consciência
que se tem dele, e, consequentemente, o grau de realidade é correlativo ao grau
de consciência. Se, para nós, a realidade é primeira e imediatamente o Mundo
Corpóreo, é porque nossa consciência é primeiramente puramente sensorial, is-
to é dizer, absorvida no Mundo Sensível. Ela assim “realiza” a possibilidade cor-
pórea, não no sentido de que a faz existir, como se conferisse ser a ela, mas no
sentido de que não se poderia falar do Mundo Sensível independente de seu co-
nhecimento pelos sentidos. A sensação, diz Aristóteles, é o ato comum do sentir
e do sensível, e o sensível só é atualizado na sensação. Não há idealismo aqui,
muito pelo contrário, pois o idealismo sempre começa pela ideia (psicológica),
isto é dizer, do sujeito pensante postulado solitariamente em sua realidade inde-
pendente, conquanto aqui sujeito e objeto são considerados desde o princípio
na unidade de sua relação de fato.107 Nem é objetivismo, que, como dissemos,
contraditoriamente postula um objeto que não seria objeto para ninguém. Fi-
nalmente, nem é um monismo, porque a distinção entre sujeito e objeto não é
negada: é mesmo feita possível na unidade de seu ato comum. O que se segue
disto é que, se queremos dar um significado de fato ao real, devemos observá-lo
como o resultado do conhecimento, isto é, o ato comum do conhecedor e do
conhecido, do intelecto e do inteligível. Conhecimento é realização e realização
é conhecimento. O que não é atualmente conhecido não é, por conseguinte,
atualmente “real”, e deve portanto ser considerado como possível. Novamente,
isto não significa de modo algum que aquilo de que não estamos presentemente
conscientes é puramente não-existente, nem que requerer-nos-ia acessar o Ser,
mas apenas que, no sentido estrito do termo, falar da realidade de algo de que
não estamos atualmente conscientes necessariamente compreende uma quanti-
107 De fato, esta tese seria um tanto próxima do que é mais aceitável na fenomenologia de Husserl.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

dade de ilusão; uma ilusão que é, indubitavelmente, inevitável, e a significância


da qual veremos em um momento, mas que remanesce, não obstante, uma ilu-
são: a ilusão de todo discurso ontológico, inconsciente de sua situação existenci-
al, que, por virtude de falar apenas do Único Real, esquece que também é preci-
so “realizá-Lo”.
É por isto que tudo que vai além do nível de nossa consciente presente
pode ser considerado, com relação ao conhecimento que teremos que atingir
disso, como uma possibilidade. Isto é especialmente verdadeiro em relação a tu-
do que vai além do mundo manifestado, já que, em seu estado ordinário, o ho-
mem caído não pode obter um conhecimento efetivo dele. É, por conseguinte,
em relação ao homem que tudo no Metacosmo Divino “aparece” como um
conjunto de possibilidades que ele terá que realizar através do conhecimento.
Falando do Imanifesto como a soma das possibilidades totais de não-manifesta-
ção, evita-se, tanto quanto é possível, o erro de um ontologismo “retificante”,
que, conquanto postula a Absoluta e Infinita Realidade como um objeto diante
de si, nega precisamente que é o Absoluto e o Infinito, já que é, então, necessari-
amente relativo a um sujeito que, sendo distinto d’Ele, limita-O por este fato
mesmo. E quem negará ter um dia caído na ilusão de pensar no Absoluto desta
maneira, todo pensamento sendo inevitavelmente objetificante? Não é uma
questão de duvidar a validade de um tal pensamento. Ele também é salvífico, à
sua maneira, e em seu nível, já que nos comunica o conhecimento do objeto
transcendente, isto é, do Ser que nos criou e que pode apenas Ele nos salvar.
Mas devemos agora tentar comunicar o conhecimento daquilo que está além do
Ser. Poderia o pensamento do Ser ainda ser o pensamento do Não-Ser? E seria
realmente no Não-Ser que pensamos se O pensamos da mesma maneira que o
Ser? É por isto que Guénon propõe pensar o Infinito como Possibilidade Uni-
versal, tornando claro que esta é a única maneira em que podemos concebê-Lo.
Não é apenas sobre o que pode ser uma realidade em si, é também, e insepara-
velmente, sobre o que é universalmente possível para nós. Quem quer que con-
sidere em sua mente, com a maior atenção, a noção mesma da Possibilidade
Universal, verá que não se pode dissociar n’Ela o que vem da abertura conceitu-
al ilimitada do sujeito pensante do que vem da infinita objetividade sob efeito
daquilo a que a inteligência se abre. Assim, parece haver dois significados inter-
JEAN BORELLA

seccionais de possibilidade: as possibilidades de manifestação, descendo de Deus


ao homem, que designam as criaturas em seu estado prototípico e causal, “an-
tes” de sua existenciação ou realização cósmica. E, ascendendo do Homem a
Deus em Sua tearquia superessencial, o Divino Metacosmo, que, do ponto de
vista de nossa consciência presente, “aparece” como Possibilidade Universal (“a
Deus tudo é possível”, cf. Mateus 19:26), conquanto nós temos que realizá-Lo
em virtude da natureza mesma de nosso intelecto. Deste ponto de vista, ade-
mais, há apenas possibilidades de não-manifestação, já que mesmo as possibili-
dades de manifestação são consideradas em seu estado não-manifestado.
Mas não devemos perder de vista a identidade metafísica entre o possível e
o real. É aqui que abordamos, em conclusão, o que chamamos uma metafísica
de conhecimento suplantando uma metafísica do ser. Esta identidade metafísi-
ca é outra maneira de designar a suprema identidade, já que, se apenas aquilo
que foi realizado através do conhecimento é real no sentido preciso do termo,
então se pode falar da identidade do possível como tal com o real apenas sob a
condição de que o conhecimento se tornou absolutamente total, ou, mais exata-
mente, que sempre foi assim, isto é dizer, que é realizado em atualidade perma-
nente. É apenas desta maneira que é legítimo falar no presente daquilo que
transcende nossa consciência individual, porque é a totalização de todo conhe-
cimento possível. O ponto de vista da “realização” é assim o “portador” de uma
metafísica tão ampla, se não mais, do que aquela da “doutrina”. Não obstante,
não é suficiente considerar os princípios metafísicos universais como a “realiza-
ção” (realizada de toda a eternidade) do conhecimento total, que, de fato, per-
mite-nos falar daquilo em relação a que ainda não atingimos um conhecimento
efetivo e imediato. Também é necessário considerar a possibilidade daquele
“evento” que é a realização de um ato de conhecimento. Se todas as coisas são
realizadas, por que há realizações?108

108 É também essa, pensamos, a questão que Platão pergunta n’O Sofista 248–249: “Se saber é agir, ne-
cessariamente se segue que o que é conhecido sofre. De acordo com este raciocínio, o Ser, sendo co-
nhecimento pelo conhecimento, e conquanto é conhecido, será movido nesta medida, já que é passi-
vo, porque sofrer não pode ocorrer àquilo que está em repouso”. Em outras palavras: se o Ser é imutá-
vel, como pode ser conhecido? Encontramos aqui a Possibilidade Universal, a perfeição passiva con-
quanto é a “cognoscibilidade do Supremo”.
GNOSE E GNOSTICISMO EM RENÉ GUÉNON

Já vimos a dificuldade que falar sobre o Ser apresenta pelo lado do sujeito
humano. Mas a dificuldade não é menor pelo lado do objeto conhecido, isto é
dizer, do Ser em Si. O que significa, para Ele, ser conhecido, e que significância
tem o fato de que um ato de conhecimento pode ocorrer para aquele que não
pode passar por qualquer mudança? A questão pode nos surpreender, porque
espontaneamente imaginamos o conhecimento como ocorrendo com o Ser “de
fora”, de um “lugar nenhum” inconcebível. Mas se o conhecimento está “fora”
do Ser, então ele não existe. E se é parte do Ser, não pode ocorrer, pois o Ser é
imutável. Em um caso tanto quanto no outro, não pode ocorrer, é impossível. É
por isso que, aqui também, somos forçados a dar conta do ato de conhecimento
indo além do Ser, onde a identidade do “Eu” com o “Eu” não é mais de nature-
za imutável, mas transcende a oposição de mutável e imutável, contendo-os su-
pereminentemente, porque é absolutamente puro, livre de qualquer natureza
ou essência determinada. O conhecimento, considerado assim em sua possibili-
dade principial, é, então, como Guénon diz, um “aspecto do Infinito”.109 Cor-
responde bem precisamente ao que a Tradição Católica chama “Imaculada
Conceição”, já que é, em última análise, a imaculada conceição (livre de toda
determinação, mesmo essencial) que o Absoluto tem de SI mesmo. Esta analo-
gia é ainda mais forte porque há uma profunda semelhança, uma identidade
metafísica mesmo, entre a Possibilidade Universal, como a Śakti do Brahman
Supremo, e Maria, Esposa de Mãe de Deus, que declarou a Santa Bernadete:
“Eu sou a Imaculada Conceição”110. O evento do conhecimento é, assim, eter-
no. Tem lugar na permanente e universal atualidade do “Intelecto” Supremo (e
supraontológico), ou perfeição ativa, que contém em Si a inumerável relativida-
de das cognições particulares (prises de consciente), conquanto elas são com-
preendidas na perfeição passiva. Esta é a autorrevelação de Deus para Si mesmo,
o “tesouro oculto” que Deus era, e para cujo conhecimento Ele criou o mundo.
Pois Deus deseja ser conhecido, e as miríades de intelectos que se abrem a Seu
mistério são, na realidade, muitos inumeráveis modos nos quais Ele se torna co-
109 Les États Multiples de l’Être, página 91.
110 O Padre Laurentin, no excelente livro que devotou a Santa Bernadete e às aparições de Lourdes, apon-
ta que, quando falava, em Patois, do “ser” que se manifestou na gruta, a garotinha sempre usava o pro-
nome neutro, nunca o masculino ou feminino. Ademais, apontaremos que as iniciais de “Imaculada
Conceição” são idênticas às de “Jesus Cristo”.
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nhecido para Si mesmo. Nestas inumeráveis participações dos intelectos criados


no conhecimento de Si (Atmābhoda), a infinita identidade entre perfeição ativa
e passiva é realizada, não para Ele, o Supremo, em quem esta identidade já está
eternamente realizada (e que é esta mesma identidade), mas para as miríades de
espelhos intelectivos em que finalmente se torna realidade. E é porque é eterna-
mente realizada que pode ser realizada a qualquer momento em toda inteligên-
cia que se abre à sua irradiação permanente. Nossos intelectos humanos são co-
mo esferas opacas que repentinamente se abrem ao Oceano de Luz em que sem-
pre estiveram imersas. De repente elas “se tornam” o que eram: esferas cristali-
nas, estrelas brilhantes, luz na Luz. Cada vez que uma inteligência estrelada é
concebida no Conhecimento Divino desta forma, cada vez que um “evento
gnóstico” ocorre, que é nada mais do que uma possibilidade do Infinito mes-
mo, a Suprema Tearquia realiza o mistério de Seu novo e eterno nascimento pa-
ra Si, e, cada vez, o Pai gera Seu único e amado Verbo e Filho na unidade de Seu
Espírito.

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