EDIÇÃO 3 EDITORIAL: A GERONTOPSICOMOTRICIDADE COMO PRÁXIS TERAPÊUTICA DE MEDIAÇÃO CORPORAL DEZEMBRO 2014
A pessoa idosa está sujeita a uma (angústia da queda, da separação, da
diminuição progressiva das capacidades gnoso- fragmentação, da liquefação, ... da morte). práxicas, da capacidade em reagir a situações As alterações corporais que vão emocionais ou físicas, e dos processos acontecendo ao longo do tempo, influenciam mnésicos ou atencionais. O desenvolvimento negativamente a organização da personalidade psicossomático que o ser humano adquire ao e as relações que o idoso estabelece com os longo dos primeiros anos de vida sofre uma outros e o mundo. No entanto, a consciência de involução com o avançar da idade. Desta forma, envelhecer aparece num curto espaço de o idoso pode expressar lentidão psicomotora, tempo, como que de um dia para o outro, perda de força, fadiga, aumento do tempo de através de um espelhamento que é precedido reação, problemas práxicos, problemas espaço- por um acontecimento traumático, como por temporais, problemas de marcha, fobia da exemplo vivenciar uma queda, um luto, ou uma queda, dificuldades de comunicação em grupo, doença. Desta forma, a pessoa reconhece-se abulia, problemas de regulação emocional, como idosa e assume essa identidade angústias, ou desvalorização da imagem exteriorizando comportamentos associados à corporal. dor, revolta, resignação, submissão, ou auto- Com o envelhecimento acontecem várias recriminação. Podemos então dizer que a vida metamorfoses sobre as quais os profissionais psíquica e a vida somática estão sujeitas a de saúde devem ter um olhar atento. Do ponto formas diferentes e particulares de de vista psicomotor esta escuta deve centrar-se (dis)funcionalidade, mas que existe uma sobre a forma como o idoso investe, sente, e interdependência funcional entre elas, o que vive o seu próprio corpo, tanto na dimensão real fundamenta a importância da prática como imaginária. O corpo de qualquer sujeito psicomotora para as pessoas idosas, ou seja da constitui um espaço corporal, que permite situar gerontopsicomotricidade. Se o termo o sujeito em relação ao envolvimento, e o (gerontopsico)motricidade envolve a envolvimento em relação ao sujeito. Esta importância do corpo e do movimento como dicotomia entre espaço interno e externo cuja mediadores da própria intervenção através de fronteira é a pele, torna-se fundamental na técnicas de estimulação sensorial e de estruturação da identidade corporal e do relaxação, do toque terapêutico, da expressão sentimento de si. No entanto, o idoso tem artística e emocional, ou dinâmicas de grupo afetada e comprometida a sua identidade, na que permitem trabalhar, para além das medida em que esta se operacionaliza a partir estruturas gnoso-práxicas, o envelope corporal de um corpo real fragilizado. Este corpo que que constitui os fundamentos da identidade e traduz um espaço vazio e o luto inerente às reconstrução egóica do sujeito idoso. O termo respetivas faltas no corpo, provoca insegurança (geronto)psico(motricidade) está associado ao e consequentemente reativa as angústias objetivo global da intervenção, que envolve (i) arcaicas associadas às perdas no corpo em termos reeducativos a melhoria do equilíbrio, EDITORIAL DEZEMBRO 2014
da regulação do movimento, da memória e seu envelope corporal, o seu continente
outras capacidades cognitivas; e (ii) em termos psíquico, e consequentemente (re)valoriza a sua terapêuticos objetiva a aquisição de processos imagem corporal. A estratégia inerente à que permite ao idoso renarcisar o seu corpo, consecução deste objetivo passa por não ajudando-o a ultrapassar o luto de uma considerarmos o corpo do sujeito como meio determina imagem de si próprio, e ter a privilegiado de intervenção, mas, e possibilidade de desenvolver uma nova fundamentalmente, considerarmos que existe identificação especular. O terapeuta, o um sujeito que possui um corpo em relação. psicomotricista deve permitir que o idoso A terceira característica está centrada na construa uma imagem corporal, que contrarie ou especificidade da relação psicomotricista/idoso, minimize a existência real de um corpo que envolve o estabelecimento de uma fragilizado que sofreu perdas sucessivas, de ressonância tónico-emocional empática, onde o forma a adquirir uma continuidade na razão da psicomotricista desempenha a função de sua existência. Desta forma substituirá o continente corporal de forma a colmatar as sofrimento, o medo ou a angústia pelo prazer fragilidades do Eu-pele do idoso. Coloca-se a em viver. tónica no encontro entre terapeuta e idoso, na No meu entender, a gerontopsicomotricidade utilização da linguagem corporal, no corpo a apresenta quatro características específicas que corpo, no infra-verbal e no verbal. É com base a delimita como práxis terapêutica de mediação nesta relação e respetivos processos corporal. A primeira é a grande diversidade de transferenciais que se vai construir toda a patologias em que o psicomotricista pode relação terapêutica. intervir como terapeuta. Estas podem envolver A quarta e última característica, de âmbito as (i) patologias somáticas que influenciam as mais conceptual, reflete a importância de funções relacionais associadas à entendermos que por detrás de um problema sensorialidade, locomoção e comunicação, os físico e dos seus sintomas pode esconder-se (ii) problemas psiquiátricos, como a deterioração um fenómeno psicológico. Por exemplo, as mental, a demência senil, a depressão, a alterações no equilíbrio ou na marcha são psicose, a neurose, ou (iii) os problemas muitas vezes a expressão de fenómenos neurológicos como a doença de Parkinson, a ansiosos, depressivos, ou neuróticos, cuja epilepsia, o acidente vascular cerebral. origem é sempre uma falha narcísica que altera A segunda característica centra-se num a imagem do corpo. Portanto, não devemos cair objetivo específico desta intervenção, que tem na tentação de centrarmos as causas dos como propósito aprimorar o corpo envelhecido, comportamentos observados apenas em de forma a ajudar a pessoa idosa a adquirir síndromes neurológicos ou disfunções novas percepções e representações do seu neuromotoras e, assim, realizarmos uma corpo real e imaginário. Desta forma o idoso intervenção motora por repetição funcional do vivencia e ressente a sua unidade corporal, o défice. EDITORIAL DEZEMBRO 2014
Para terminar, gostaria de referir que o
conjunto destas características e especificidades permitem diferenciar a gerontopsicomotricidade de qualquer outra intervenção que utilize o corpo e o movimento como mediadores. Gostaria também de reforçar que o foco de qualquer terapia de mediação corporal não está no corpo isolado ou na prática de exercício, mas no corpo em relação, numa motricidade em relação, e neste caso especifico no idoso que habita o seu corpo em relação. Quando falamos de relação estamos a referir- nos à empatia estabelecida entre o sujeito cuidador e o sujeito cuidado, entre o psicomotricista e o idoso. A transferência que o idoso projeta no psicomotricista, e a contratransferência e respetiva resposta realizada por este, acima denominada de ressonância tónico-emocional empática, é fundamental para se criarem as condições necessárias para a renarcisação e reestruturação egóica da pessoa idosa. Estas serão as características fundamentais que caracterizam a intervenção gerontopsicomotora como terapia de mediação corporal.
Jorge Fernandes
Professor Auxiliar no Departamento de Desporto
e Saúde da Universidade de Évora, Coordenador do Curso de Reabilitação Psicomotora