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ÍNDICE DE AULAS

Aula 1 – Da natureza dos sacramentos.....................................................................................................3

Aula 2 - Elementos da Confissão...............................................................................................................17

Aula 3 – Pecado Grave................................................................................................................................42

Aula 4 – Matéria Grave..............................................................................................................................52

Aula 5 – Quarto Mandamento...................................................................................................................89

Aula 7 – Quinto Mandamento I..............................................................................................................112

Aula 8 – Quinto Mandamento II.............................................................................................................129

Aula 9 – Natureza da Moral I..................................................................................................................152

Aula 10 – Sexto Mandamento I...............................................................................................................165

Aula 11 – Sexto Mandamento II..............................................................................................................187

Aula 12 – Sétimo Mandamento...............................................................................................................196

Aula 13 – Natureza da Moral II..............................................................................................................214

Aula 14 – Oitavo Mandamento...............................................................................................................224

Aula 15 – Nono e Décimo Mandamento................................................................................................235

Aula 16 – Três Primeiros Mandamentos................................................................................................236

Aula 17 – Terceiro Mandamento............................................................................................................253

Aula 18 – Segundo Mandamento............................................................................................................276

Aula 19 – Primeiro Mandamento I.........................................................................................................296

Aula 20 – Primeiro Mandamento II........................................................................................................317

Aula 21 – Primeiro Mandamento III.......................................................................................................339

Aula 22 – Mandamentos da Igreja I.......................................................................................................350

Aula 23 – Mandamentos da Igreja II......................................................................................................359

Aula 24 – Orientações Finais...................................................................................................................381

Aula 25 – Preceitos Gerais.......................................................................................................................395

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Aula 1 – DA NATUREZA DOS SACRAMENTOS

Índice
1. Introdução
A) Os sacramentos e a finalidade da vida cristã
B) Os sete sacramentos e o poder da Igreja
2. Noção geral dos sacramentos
3. Os sacramentos e a graça santificante
4. Os sacramentos e os seus efeitos
5. Os sacramentos no Evangelho
6. Os sacramentos e a vida espiritual
7. Avisos

1. Introdução

Estamos na primeira aula de uma orientação para a confissão. E a primeira coisa é que,
quando vamos nos confessar, estamos recebendo um Sacramento. Então, antes de
entendermos propriamente o que é a Confissão, nós temos que entender o que é um
sacramento; e antes de entendermos o que é um sacramento, temos que entender como o
sacramento se insere dentro da vida cristã, porque a finalidade da vida cristã não é confessar-
se.

A) Os sacramentos e a finalidade da vida cristã. — Mas qual é a finalidade da vida cristã?


A finalidade da vida cristã é uma coisa que todos anseiam, mas poucas pessoas sabem que
existe.

O ser humano, quando foi criado por Deus, não era esse ser humano que vemos hoje:
decaído, pecador, afastado de Deus, onde muitos duvidam até que Deus existe. E quando o
ser humano foi criado, o cristianismo diz que ele foi criado num estado de graça no paraíso
terrestre, e estava muito próximo de Deus. Deus conversava com ele intimamente, e ele era
muito inocente, tanto que Deus não precisou sequer dar mandamentos para ele. Ele mesmo,
na sua inocência, evitava o mal e buscava o bem, e era íntimo de Deus. Deus só teve que pedir
que ele se guardasse de comer dos frutos de uma árvore que tinha por ali; tirando esse detalhe,
Deus nem se preocupou de orientar o ser humano, porque ele era tão inocente e tão puro
que não precisava disto; precisava somente saber de um detalhe que não era para fazer.
Infelizmente ele acabou transgredindo.

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Então o que aconteceu é que nós hoje, por causa dessa queda, perdemos a intimidade com
Deus. Muitas pessoas duvidam que Deus existe. Aqueles que acreditam que Deus existe,
consideram-no como um ser muito distante com quem eles não têm intimidade nenhuma.
Eles não estão procurando a santidade, não estão procurando uma vida de comunhão com
Deus. Ao contrário, metem-se numa vida desregrada, cheia de coisas a que chamamos de
pecado, das quais a maioria das pessoas nem reconhece a natureza pecaminosa, que são coisas
que afastam de Deus mais ainda.

Pelo ser humano estar nessa situação — e é uma situação que vai piorando com o tempo,
porque, na medida em que fazemos o erro nós nos aprofundamos nele, o vício se desenvolve,
o afastamento de Deus se torna maior —, Deus resolveu chamar o homem de volta, de uma
maneira explícita. Ele mandou vários profetas: Moisés, Elias, Elizeu, Isaías, os profetas do
Velho Testamento, que procuraram ensinar o ser humano. Mas na verdade, todos estes
profetas que chamavam o ser humano de volta, estavam preparando a vinda do maior de
todos, que foi Jesus.

Jesus veio chamar-nos para uma vida de comunhão com Deus, de intimidade divina, em que
vivemos num nível muito mais alto do que essa vida que vivemos, onde nós não somente
somos, mas visivelmente somos filhos de Deus.

Isso está escrito com essas palavras no evangelho de São João (cf. 1, 12-13): Aqueles que
receberam a Cristo e creram nele, não nasceram do sangue nem da carne, mas de Deus, e Jesus
deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus. Filiação divina é, portanto, um outro nome
que podemos dar àquilo que na tradição cristã nós chamamos de santidade, e que o Velho
Testamento chama de os homens justos, os amigos de Deus.

O cristianismo quer, então, nos chamar primeiro a uma comunhão com Deus. Essa
comunhão com Deus implica necessariamente uma comunhão num nível mais alto com
todas as pessoas que também estão em comunhão com Deus: ela implica não só no amor a
Deus, mas no amor ao próximo, que também vai participar desta comunhão.

Uma vida de conhecimento profundo de Deus, de intimidade com Deus, de união com Deus
e de amor a Deus e ao próximo, sob a perspectiva de Deus, é a finalidade do Evangelho, é o
que o cristianismo quer. E uma das coisas que foram instituídas por Cristo para poder nos
aproximar desta comunhão com ele, são justamente os sacramentos.

B) Os sete sacramentos e o poder da Igreja. — Nós temos na Igreja sete sacramentos, e


agora queremos falar do sacramento da Penitência. Os sete sacramentos são o Batismo, a
Crisma, a Confissão (ou Penitência), a Eucaristia (que é o maior de todos), a Extrema Unção
(ou o que hoje se chama Unção dos Enfermos), o Matrimônio e o sacramento da Ordem.

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O Batismo é o primeiro de todos os sacramentos. Quando aceitamos o convite de Cristo para
que, através dele e da sua graça, dos seus méritos, possamos nos reaproximar da intimidade
divina, a primeira coisa que se faz é que o indivíduo seja batizado, é a porta de entrada. Sem
o sacramento do Batismo, os outros sacramentos não são válidos. Hoje em dia, a maioria das
pessoas que se convertem no Brasil já foram batizadas quando crianças e, portanto, não
precisam mais ser batizadas.

A Crisma é um sacramento que é recebido uma só vez na vida. O Matrimônio e a Ordem


também normalmente são recebidos uma só vez. O Matrimônio pode ser recebido mais de
uma vez se um dos cônjuges morrer e o outro quiser casar-se novamente. A Unção dos
Enfermos pode ser recebida mais de uma vez, mas só em caso de doenças graves – por conta
disso, geralmente as pessoas recebem a Unção dos Enfermos poucas vezes na vida, e
geralmente próximas do fim, mas não necessariamente próximas. Os sacramentos que
normalmente são recebidos muitas vezes são justamente a Eucaristia e a Penitência.

Os sacramentos são estes sete. Eles foram instituídos por Jesus Cristo e uma doutrina comum,
que é aceita na Igreja, é que a Igreja não tem autoridade de criar novos sacramentos nem de
abolir um dos que existem. Eles foram criados por Deus e, apesar de todo o poder que Cristo
deu à Igreja, quando diz no evangelho que “todo poder me foi dado’’ (cf. Mt 28, 18), tu és Pedro
e sobre esta pedra construirei minha Igreja (cf. Mt 16, 18), tudo que ligares na terra será ligado
no céu e o que desligares na terra será desligado no céu (cf. Mt 16, 19), esse poder de ligar e
desligar tem limites.

A Igreja não pode, por exemplo, criar um novo livro da bíblia. A bíblia é aquela que foi escrita
e a Igreja não tem autoridade de arrancar um livro da bíblia nem de escrever um outro. A
Igreja também não tem o poder de abolir um elemento da lei natural. E dentre outras coisas
que não pode fazer, ela não pode abolir um dos sete sacramentos nem criar um oitavo. Os
sacramentos então são sete, apenas sete e vão continuar sendo sete até o fim dos tempos.

2. Noção geral dos sacramentos

O que são os sacramentos? A resposta a essa pergunta pode ser encontrada na Suma
Teológica de Santo Tomás de Aquino muito bem explicada e, por derivação, também em
muitos outros lugares. Mas já antes também se falava disso, portanto não foi Santo Tomás de
Aquino que a inventou.

Os sacramentos são símbolos, eles simbolizam alguma coisa. Porém, diferente dos símbolos
comuns que usamos no dia a dia, eles não apenas simbolizam as coisas que significam, mas
também produzem a coisa que significam. Os símbolos humanos normalmente não
produzem o que significam, mas apenas significam alguma coisa.

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Um exemplo claro disso é quando alguém se forma numa faculdade de medicina, por
exemplo: ele recebe um diploma e aquela cerimônia de formatura é um símbolo, ela está
simbolizando o médico que o sujeito se tornou, mas a cerimônia por si não faz o médico. Se
alguém que não estudou medicina seis anos for receber o diploma, ele não se torna médico
por causa disso. Se ele disser: "tem um jeito fácil de me tornar médico. Eu entro de esperto na
cerimônia de formatura, recebo o diploma e aí já me torno médico", assim que fizer uma
cirurgia, ele mata o paciente. Logo, a cerimônia de formatura de medicina não produz o
médico, ela simplesmente simboliza diante da sociedade o médico que o sujeito já é de fato.

Todos os símbolos são assim. Por exemplo: quando alguém beija uma pessoa, aquilo é o
símbolo do carinho que ele tem por ela. Se ele não a ama, não é o beijo que vai produzir o
amor. Isso é evidente! Ao contrário de todos esses, os sacramentos são símbolos que
produzem realmente o que significam. E por que eles fazem isso? Nós já diremos.

Coloquemos um exemplo. O Batismo é um símbolo manifesto. Há várias maneiras de se


batizar uma pessoa. Hoje em dia a mais comum é derramar água na cabeça dela. Pega-se uma
criancinha ou mesmo um adulto, joga-se água na sua cabeça e se diz as palavras do Batismo:
Eu te batizo em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo.

Batizar significa lavar, em grego. Ao batizar uma pessoa, está-se dizendo: Eu estou te lavando
em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. E a cerimônia do Batismo é um ato de lavar,
pois se usa água. Antigamente (e ainda se pode fazer hoje, mas não se costuma fazer mais) as
pessoas eram batizadas mergulhando dentro da água mesmo, como se estivessem tomando
um banho.

O Batismo é, pois, um símbolo que significa um ato de lavar. O que o Batismo produz? Ele
produz aquilo que significa: a pessoa que é batizada é lavada dos seus pecados.

A Confissão simboliza um tribunal. Há um acusador ou um “promotor”, que no caso é o


próprio réu, que se acusa dos seus pecados. Há um juiz que está julgando e dará uma sentença.
Mas ao contrário da sentença dos tribunais, que geralmente é a condenação, se o réu provar
que é culpado, na Confissão a sentença é a absolvição: o réu que está se acusando, prova que
é culpado, reconhece a culpa e ao invés de receber uma condenação, recebe uma absolvição.

O sacramento da Confissão é um símbolo de um julgamento, porém este símbolo produz o


que significa: realmente ele apaga o pecado e introduz a graça santificante na pessoa que o
recebe dignamente.

Na Eucaristia se dá a mesma coisa. A Eucaristia é um banquete, é uma refeição. Há a parte


sólida da refeição que é o pão, e a parte líquida que é o vinho. Há um altar que ao mesmo
tempo é uma mesa: i) altar, porque a Eucaristia é sacrifício; ii) mesa, porque é também uma

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refeição. A Eucaristia é, pois, uma refeição [material] que se está recebendo, que é o símbolo
de uma refeição espiritual que ocorre realmente na alma humana, quando nós a recebemos.

Santo Tomás de Aquino diz que uma refeição serve para duas coisas: para produzir um
crescimento e para restaurar as forças perdidas. Portanto, ao simbolizar uma refeição, a
Eucaristia produz realmente o que significa: uma restauração das forças espirituais perdidas
e um crescimento na vida da graça, que se dá através do amor.

E, da mesma maneira, todos os sete sacramentos são símbolos que produzem espiritualmente
as realidades que significam. Não são ritos meramente simbólicos, mas produzem de fato
aquilo que significam.

3. Os sacramentos e a graça santificante

O que eles significam realmente? Todos os sacramentos produzem um aumento de graça em


quem os recebe, ou produzem a própria graça na alma humana quando a pessoa não a tem.

A graça, na tradição cristã, é uma qualidade sobrenatural, é uma luz divina criada por Deus
na pessoa que a recebe, a fim de que ela possa participar da vida divina, não sendo mais apenas
homem biologicamente, não sendo apenas da espécie humana, um animal racional, mas
também filho de Deus.

A graça é então uma qualidade infundida no ser humano pela qual ele participa realmente da
vida divina, e possui uma característica: ela cresce, desenvolve-se. A graça não é uma coisa
amorfa, mas constitui todo um organismo sobrenatural que é infundido sob esse nome de
graça com o qual nós o referimos.

É justamente o crescimento da graça que produz a santidade que nós vemos nos Santos da
história da Igreja e do Velho Testamento. É possível perceber que os Santos eram capazes de
atos virtuosos que são praticamente sobre-humanos; qualquer pessoa que tentasse imitá-los
não conseguiria, e se tentasse imitá-los realmente, ficaria exaurida, porque estão acima das
forças humanas, mas para essas pessoas era algo natural.

Isso acontece porque a conversão não é simplesmente uma mudança de opinião, como
quando entramos num partido, e então adotamos ideias diferentes e uma concepção
diferente de mundo. A conversão ao cristianismo realmente insere sobrenaturalmente no
indivíduo uma graça sobrenatural, de modo que, se permitirmos que ela se desenvolva, irá
desabrochar na filiação divina.

O modo de crescer na graça é múltiplo e os sacramentos são um dos meios, um dos recursos.
Os sacramentos, quando recebidos correta e convenientemente, verdadeiramente infundem

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a graça sobrenatural (quando ela não existe) ou a aumentam. São símbolos eficazes da graça,
pois realmente a produzem. São instrumentos que Deus usa.

Num certo sentido podemos comparar os sacramentos com uma oficina de carpinteiro. O
carpinteiro pode fazer certas coisas com as próprias mãos, como colocar algo para cima,
baixar, separar pedaços de coisas, juntar umas com as outras. Mas para outras coisas ele usa
instrumentos: um serrote, um martelo. No caso do carpinteiro ele usa a serra e outros
instrumentos na maior parte do tempo, porque, como ser humano, ele é muito limitado para
a carpintaria, por isso precisa dos instrumentos para praticamente tudo.

A oficina do carpinteiro, que estamos usando para a comparação, seria a oficina do próprio
Deus. Deus não tem a limitação do ser humano, ele pode fazer tudo como bem entende e
diretamente. Mas ele resolveu usar certos instrumentos para veicular a sua graça, que não
limitam a veiculação por outros meios. Deus pode infundir a graça de muitas outras
maneiras. Uma das maneiras de crescer na graça é através da oração.

O maior instrumento para a canalização da graça que já houve em todos os tempos é a própria
pessoa de Cristo. Em Cristo, Deus se encarnou e se fez homem, para usar a humanidade do
Cristo ressuscitado como instrumento da graça. E os sete sacramentos são instrumentos da
natureza humana do Cristo, isto é, o próprio Cristo em sua humanidade é instrumento da
graça divina.

Os sete sacramentos são alguns instrumentos a mais que Jesus Cristo tem para infundir a
graça. Por isso, quando os sacramentos infundem a graça, não são eles que a estão
infundindo; na verdade eles são instrumentos nas mãos de Jesus ressuscitado para infundir a
graça dentro de nós.

Verdadeiramente podemos dizer isso não só pela tradição cristã, mas pela experiência pessoal
que se pode alcançar na prática. Isso não é uma coisa teórica, pode ser percebida
experimentalmente, principalmente no caso da Confissão e da Eucaristia: é muito visível que
estes sacramentos são instrumentos de uma graça que é conferida. Não é nada imaginário,
mas uma coisa bem palpável, desde que nos aproximemos deles devidamente.

Os sacramentos são, pois, realmente instrumentos usados não só por Deus, mas pela
humanidade do Cristo ressuscitado. Jesus ressuscitou e subiu aos céus, porém não dissolveu
a natureza humana com quem tinha se unido. Ele continua vivo em sua natureza humana,
isto é, existe algum lugar físico em algum lugar do universo onde Jesus, de uma forma
gloriosa, está realmente ressuscitado em carne e osso, olhos, etc. A partir deste lugar onde ele
está, vê-nos a todos, e está unido a todos os que pertencem ao seu Corpo Místico e nos
canaliza essa graça, pela qual podemos crescer na santidade. Dentre as muitas maneiras que

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ele pode usar para transmitir a graça, existem “sete aparelhinhos”, sete instrumentos que ele
criou: os sete sacramentos.

4. Os sacramentos e os seus efeitos

A Igreja foi criada por Nosso Senhor Jesus Cristo para, dentre outras coisas, poder dispensar
esses sacramentos. Se não houvesse Igreja não haveria oficina onde pudéssemos acedê-los. Se
não houvesse Igreja nós teríamos que buscar a graça que vem do Cristo apenas através da
oração ou de outras maneiras. A Igreja e o bom conhecimento de como funcionam os sete
sacramentos são uma ajuda absolutamente tremenda e normalmente vital.

Mas se a graça vem através do Cristo, e pode vir através da oração ou espontaneamente —
como acontece frequentemente, pois Deus usa de sua benevolência para conosco, e então
pode infundir a Sua graça em nós, inclusive, sem que façamos uma oração, de modo que
somos transformados —, por que então há sete sacramentos, e não bastaria apenas um?

Uma das coisas importantes que temos de perceber é o seguinte: além da graça em geral, isto
é, da graça santificante que os sacramentos produzem, eles também produzem graças
especiais, pois têm uma maneira diferente de agir no ser humano, uma maneira específica.

Vemos, por exemplo, que o sacramento da Confissão, além de produzir a graça ou aumentá-
la, também fortalece de um modo especial o penitente contra a fraqueza do pecado. Isso é
muito nítido! Quando nos confessamos regularmente, percebemos claramente que vamos
ficando mais fortes contra o pecado. É uma coisa impressionante que descreveremos depois.

A Eucaristia é um sacramento de amor, ela existe para ensinar-nos a amar o Cristo. Quando
recebemos a Eucaristia, naquele “pãozinho” e naquele “vinho” estão realmente presentes o
Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aquilo inclusive é pão só
na aparência: tem aparência de pão, tem gosto de pão, mas na verdade não é pão, é o Corpo
de Cristo; o vinho tem aparência de vinho, mas é o Sangue de Cristo.

Quando nós comungamos, recebemos a presença real de Cristo na Eucaristia e essa presença
eucarística dura apenas o tempo que leva para a aparência de pão ser dissolvida pelo estômago;
quando a aparência de pão desaparece e se transforma em outra coisa, a presença do Cristo
desaparece, porque está contida no sacramento. Enquanto o sacramento permanece, a
realidade permanece; quando o sacramento se desfaz, a realidade se desfaz junto.

Quando comungamos, Cristo permanece eucaristicamente junto de nós por um tempo


muito curto, geralmente uns cinco ou dez minutos. Nesses poucos minutos, além de infundir
a graça, o efeito próprio da Eucaristia é que — se nos recolhemos para crer e amar o Cristo

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que está lá presente — Ele de fato nos ajuda a amar de uma maneira muito mais profunda do
que conseguiríamos se estivéssemos tentando amá-lo de outra maneira.

Existe uma força que vem da Eucaristia para nos levar ao amor. Essa força não é automática,
mas depende do grau de fé e amor com que a pessoa se aproxima.

Nesse caso, alguém poderia dizer: mas se a pessoa já se aproxima com fé e amor, então não é
a Eucaristia que produz o amor; a própria pessoa, pela sua fé e amor, acabou amando o Cristo
naqueles dez minutos. Entretanto, o fato é que com o tempo nós percebemos que aquele
amor recebido, que aquela experiência de comunhão obtida na Eucaristia, está além da
preparação que poderíamos ter.

Logo, o efeito próprio da Eucaristia é levar o amor ao ato, é produzir um ato de amor mais
profundo do que aquele que conseguiríamos mesmo com a ajuda da graça, mas sem a
Eucaristia. Isso obviamente faz com que a Eucaristia seja o maior de todos os sacramentos,
porque o maior de todos os mandamentos é amar a Deus de todo coração, de toda alma, com
todo entendimento. A Eucaristia produz exatamente isso!

A Eucaristia não é só uma “chance” de amar o Cristo. Quando comungamos com verdadeira
fé e devoção, a Eucaristia não só multiplica nossa capacidade de amar, mas também permite
que amemos de uma maneira totalmente distinta e nitidamente sobrenatural, apesar de
muito suave.

A pessoa pode perceber que se fizesse um retiro, lesse a bíblia, peregrinasse para Jerusalém,
para o Vaticano ou fizesse qualquer coisa, não conseguiria reproduzir a experiência que
realmente consegue na Eucaristia, sem necessidade de nenhuma santidade eminente. Há
alguma coisa de sobrenatural na Eucaristia, que age sobre nós e nos permite uma experiência
de amor e comunhão com o Cristo, que não é obtenível em nenhum outro lugar.

Isso é o que o próprio sacramento deveria estar produzindo e que não é então uma mera
teoria, mas algo bem concreto, pois os sacramentos são símbolos de uma realidade que eles
mesmos produzem. No caso da Eucaristia, ela produz uma refeição espiritual que leva o amor
ao ato.

Todos os sacramentos são assim, mas isso é particularmente muito nítido na Confissão e na
Eucaristia, pois são sacramentos que costumam ser recebidos mais frequentemente.

O sacramento da Confissão perdoa os pecados por ser infundida a graça, pois a Confissão
perdoa os pecados não de um ponto de vista contábil: não é que vamos nos confessar e há ali
um anjinho ouvindo tudo, que manda um telegrama para o céu, a fim de abrir o livro da

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contabilidade e então apagar o pecado que o penitente cometeu. Na verdade, a Confissão
não apaga diretamente o pecado; ela infunde a graça e, ao infundir a graça, apaga o pecado.

Além disso, um efeito característico da Confissão é também o de infundir a graça de tal


maneira, que nitidamente nos fortalece contra o pecado. E isso é algo facilmente perceptível.

Quando alguém vai se confessar, deve arrepender-se de seus pecados e propor-se a não pecar
mais; se não houver esta preparação, a confissão não é válida. Só pelo fato de fazer isso, o
sujeito já deveria ter se tornado mais forte contra o pecado. Mas o fato é que, normalmente,
depois que recebemos a absolvição sacramental, percebemos, contra aqueles pecados, uma
força maior do que a que se esperaria apenas pelo nosso propósito. Uma força a mais veio
com o sacramento, fortalecendo-nos contra o pecado. Isso não é subjetivo, é uma experiência
concreta de quem recebe os sacramentos habitualmente e de uma maneira digna.

Na Eucaristia dá-se o mesmo. A pessoa já deve aproximar-se dela como quem vai amar o
Cristo. Quando vai receber a comunhão já se pressupõe que ela ame o Cristo e esteja disposta
a amá-lO. Porém, normalmente saímos de lá com alguma coisa a mais, que percebemos não
ter sido colocada por nós. Uma força saiu de lá!

O mesmo acontece nos demais sacramentos, porém neles as coisas funcionam de uma
maneira diferente. Como geralmente somos batizados enquanto bebês, acabamos perdendo
a referência do que o Batismo produziu em nós. Outras pessoas que se batizam já adultas,
fazem-no quando sua vida espiritual está apenas começando e o efeito dos sacramentos no
início da vida espiritual normalmente é bem suave. Então, como a pessoa se batiza na idade
adulta de uma vez só, e sua vida espiritual está muito no início, geralmente ela não percebe
muita coisa. Mas para quem está acostumado a receber a Eucaristia e a Confissão, e tem um
pouquinho só de vida espiritual séria, é muito visível que os sacramentos funcionam
exatamente assim.

Eles são como instrumentos da carpintaria. O carpinteiro, que no caso não é diretamente o
próprio Deus, mas o Deus Encarnado, isto é, Jesus, faz algumas coisas por si mesmo, mas para
algumas outras coisas ele usa certos instrumentos: um martelo, uma bigorna, uma serra. Estes
instrumentos são os sete sacramentos, com que ele vai trabalhando a nossa alma para produzir
e incrementar a graça.

5. Os sacramentos no Evangelho

Tudo isso foi prefigurado de uma maneira muito clara nos Evangelhos, principalmente num
caso bastante claro, o episódio de uma mulher que padecia fluxo de sangue, uma mulher que
tinha hemorragia constante.

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Os Evangelhos nos dizem que Jesus só podia fazer milagres se houvesse a fé por parte das
pessoas que os receberiam. Assim, Jesus ia a certos lugares e não podia fazer milagre algum,
porque as pessoas não tinham fé. Ao lerem isso, alguns ficam meio confusos pensando que
não era o Cristo que fazia os milagres, mas a fé das pessoas, pois eles entendem que Cristo
não poderia fazer os milagres nem querendo, caso as pessoas não tivessem fé. Essa
interpretação, porém, não é correta, porque vemos exemplos de Santos na história da Igreja
que fizeram milagres mesmo quando as pessoas não tinham fé.

O caso mais emblemático aconteceu na Idade Média, com São Bernardo de Claraval, que
viveu um século antes de São Francisco de Assis — vale destacar que São Bernardo era amigo
de Hugo de São Vítor, de modo que os dois têm correspondência trocada; Hugo de São
Vítor, que era um bom teólogo, foi certa vez consultado por São Bernardo sobre uma questão
de doutrina, salvo engano sobre o Batismo, e as cartas estão guardadas até hoje na patrologia.

Nessa época, São Bernardo era um grande pregador e aconteceu um fato que elucida bem o
Evangelho. Um bispo chamou-o para pregar na sua cidade, porque as pessoas tinham caído
em heresia. Como o bispo não sabia mais o que fazer, pediu que São Bernardo fosse lá para
pregar, porque era um pregador famoso e esperava que ele convertesse todos. A situação era
muito ruim, porque São Bernardo foi, apresentou-se na Catedral e o povo todo foi ouví-lo,
visto que ele era famosíssimo — mais famoso do que o padre Marcelo hoje, que perto da fama
de São Bernardo seria um zero à esquerda. A fama que São Bernardo tinha era uma coisa
absolutamente descomunal!

Todos então foram ouvir São Bernardo na Catedral, querendo ou não querendo, pois não
iam perder essa oportunidade por nada neste mundo. E o que é impressionante é que, depois
de São Bernardo ter falado tudo, ninguém se converteu.

Então São Bernardo falou ao bispo: “É... a coisa está muito ruim, aqui é necessário um
remédio mais forte”. O Santo mandou vir muitos pãezinhos, abençoou-os antes de ir embora
e disse: “Para provar que o que estou falando é verdade, eu declaro a vocês, em nome de Jesus
Cristo, que todos os que estiverem doentes de qualquer coisa e comerem este pãozinho,
ficarão imediatamente curados”.

Todos ficaram espantados, até o bispo, que pediu a palavra e disse: “Gente, eu estou com um
pouco de receio destas palavras do irmão Bernardo. Ele disse que todos os que comerem deste
pão ficarão curados imediatamente de qualquer doença que tiverem, mas vocês têm que
entender: é claro que são as pessoas que têm fé, porque senão não vai acontecer nada”.

Aí São Bernardo pediu a palavra e disse: “Excelência, o senhor me desculpe, mas eu acho que
o senhor mesmo não entendeu o que eu falei, e foi muito bom porque eu posso explicar
melhor. Eu não estou exigindo fé para as pessoas comerem deste pão. Estou prometendo que

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qualquer pessoa que comer desse pão e tiver qualquer doença, acreditando ou não
acreditando, inclusive se o fizer por desprezo, somente para provar que não vai acontecer
nada, vai ficar curada”.

Quando o Santo falou isso foi uma corrida, cada um disputando o pão. E eles levaram para
as pessoas mais descrentes e doentes, que comeram o pão só para desprezá-lo. O curioso é que
ficaram todos curados, e quando o pessoal viu isso a conversão foi total, acabou a heresia!

É uma das coisas mais espantosas que vemos na história da Igreja! São Bernardo conseguiu
obter de Deus um milagre onde a regra era que bastava comer o pão. Não era preciso acreditar
em nada, inclusive podia-se comê-lo por desprezo, desde que o comessem. Poderia ser cego,
paralítico, ele só não garantiu ressuscitar um morto, porque o morto não ia comer o pão, mas
o resto era garantido. E aconteceu do jeito como ele disse.

Isso mostra que o poder de Deus para fazer um milagre não exige a fé das pessoas. Se desejar,
Deus pode fazer um milagre mesmo a pessoa não querendo, mesmo a pessoa desprezando o
próprio Deus. Ele pode ressuscitar um morto, pode curar um doente, pode fazer o que Ele
quiser.

Aplicado isso ao Evangelho, significa que Jesus, quando diz que não podia fazer um milagre
porque as pessoas não acreditavam, esse “não podia” não significava que ele não pudesse
absolutamente falando, mas que, no caso do Cristo, Ele não tinha permissão de Deus de fazer
o milagre sem que a pessoa acreditasse. Jesus poderia fazer, mas estava impedido de fazê-lo
por algum motivo. Jesus era muito maior do que São Bernardo. Se São Bernardo conseguiu
fazer um milagre sem exigir a fé das pessoas, inclusive pressupondo o escárnio, Jesus poderia
fazê-lo com muito mais facilidade. Então, se ele não podia é porque não tinha licença, pois
seus milagres eram simbólicos: eram verdadeiros milagres, mas simbolizavam outra coisa.

Os milagres de Jesus simbolizavam materialmente a regeneração espiritual. Tanto é assim que


Jesus fazia o milagre e, quando curava a pessoa, não lhe dizia: “A tua fé te curou”. Ele dizia:
“Filho, vai em paz, a tua fé te salvou”. Mas “salvou” do que, se o sujeito tinha pedido para
ser curado da cegueira, da paralisia? Ele tinha pedido uma cura e em vez disso Jesus disse: “A
tua fé te salvou”. É que aqueles milagres simbolizavam a cura interior que viria pela fé, depois
da Sua Ressurreição, e este milagre Deus não pode fazer se a pessoa não crê, ou seja, Deus não
pode regenerar espiritualmente a alma de um indivíduo se ele não crê — Deus pode obrigar
alguém a crer mesmo contra a sua própria vontade, isto é, se ele não quer crer, então Deus
pode fazer um milagre e infundir a fé na alma dele; porém, Deus não pode infundir a graça
sem que o fulano creia, pois isso é contraditório —, Ele pode fazer o fulano crer e, junto com
a fé, vem a graça, mas não pode infundir a graça e ao mesmo tempo o fulano teimar de
permanecer no erro e na descrença. Não existe isso, porque a graça produz por si mesma uma
luz pela qual a pessoa vê.

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Assim, visto que Jesus veio para produzir milagres espirituais, para infundir a santidade,
infundir a graça, aqueles milagres que Ele fazia enquanto caminhava nesta terra eram uma
espécie de sacramento — não no sentido em que estamos falando agora, mas enquanto
“sinal”. Isto é, Jesus curava a paralisia, mas estava tentando mostrar às pessoas como
funcionava o milagre espiritual que viria depois da Ressurreição. Por isso ele exigia a fé,
porque sem a fé não existe regeneração espiritual, nem com o poder de Deus.

Deus pode regenerar o fulano que não quer querer, mas, no momento em que ele se
regenerar, deve estar crendo. Do contrário, isso seria o mesmo que curar um cego sem que ele
veja: ele continuaria cego! Não há outra maneira: se o cego foi curado ele está vendo, se ele
não está vendo é porque não foi curado.

O ato de crer é o ponto de partida, a primeira de todas as coisas que a verdadeira regeneração
espiritual produz; o resto vem em seguida. A fé é o ponto de partida da vida espiritual. Por
causa disso, Jesus estava proibido de fazer milagres para as pessoas que não tinham fé.
Quando ia a um lugar em que as pessoas não tinham fé, Ele poderia curá-las se quisesse, mas
estava proibido porque, depois de todos aqueles milagres, Ele dizia: “Filho, a tua fé te salvou”.
Ele não poderia dizer isso ao fulano que tivesse curado, sem que houvesse fé.

Então aconteceu uma coisa muito curiosa que mostra a natureza dos sacramentos. No meio
de todos os milagres que Jesus fez, há um particularmente impressionante: é o milagre da
mulher que padecia fluxo de sangue. Era uma mulher que tinha uma hemorragia constante
e tinha gastado muito dinheiro com todos os médicos – é assim que fala o Evangelho – e não
tinha adiantado nada, e ela soube que Jesus estava passando.

Jesus estava passando no meio de uma multidão, apertado por todos, e ela pensando assim:
Se eu colocar a mão nele, ficarei curada, pelo menos na roupa dele (cf. Mc 5, 28). E sem que
ninguém percebesse, ela conseguiu colocar a mão em Jesus. Na mesma hora sentiu uma força
saída do Cristo que a curou, e o Cristo também percebeu essa força; não foi só ela. Cristo
percebeu que uma força tinha saído dele e perguntou: “Quem foi que me tocou?”. (cf. Mc 5,
30). E todos começaram a rir, porque fazer essa pergunta no meio daquela multidão que o
estava espremendo, era a mesma coisa que chegar na floresta Amazônica e perguntar onde
tem uma árvore!

Disseram a ele: Mestre, o Senhor não está vendo que todos estão te tocando, e o Senhor está
perguntando: Quem foi que me tocou? (cf. Mc 5, 30). E diz o evangelho que Jesus percebeu
uma força saindo de dentro dEle. Então a mulher que tinha sido tocada, mas estava lá num
cantinho, pois foi jogada para fora pela multidão, entendeu que Jesus estava se referindo a ela
porque tinha percebido essa força e disse: Fui eu! Aparentemente ridículo, porque tinham
sido todos. Mas Jesus lhe disse: “Filha, a tua fé te salvou” (cf. Mc 5, 34).

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Isso é um símbolo do que viria depois com os sacramentos. Jesus, durante a sua vida terrena,
recebeu de Deus ampla permissão para curar doenças e fazer milagres, milagres corporais,
com uma única condição: a pessoa deveria ter fé. É como se o Pai lhe dissesse: Não me vá
fazer milagre se o fulano não acreditar, mesmo que você possa. Então você vai dizer: ‘Filho, a
tua fé te salvou’, para ele entender que você está se referindo a outra realidade.

Nesse caso em especial muitas pessoas estavam tocando o Cristo, mas a força não saiu para
ninguém; só a pessoa que cria é que recebeu essa força. A mesma coisa ocorre com os
sacramentos.

Contudo, essa força não era subjetiva porque não foi só a pessoa curada que sentiu; o próprio
Cristo, que teoricamente não devia ter percebido nada, não devia estar consciente disso —
apesar de sabermos que Ele sabia — Ele mesmo diz ter sentido uma força em si. Portanto,
essa força não era produto de autossugestão da pessoa, senão o Cristo não a teria percebido.

Alguém pode, por exemplo, autossugestionar-se que ficará curado ao colocar a mão num
determinado poste na avenida paulista. Ele se sugestiona tanto que vai lá no poste e fica
curado. Porém, ao examinar a estrutura do poste, não verifica nenhuma força que tenha
passado por ele e modificado sua estrutura; é algo apenas da própria autossugestão do
indivíduo.

No caso do Evangelho, Cristo percebeu a força. Era então uma força que agia através da fé,
pré-condicionada pela fé. E era objetiva, pois não agiu simplesmente porque as pessoas o
tocavam; a pessoa deveria ter uma preparação. Nos sacramentos acontece uma coisa assim.

Jesus, depois da ressurreição, não está muito interessado em curar as doenças das pessoas,
porque elas morrerão de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde. Ele está, sim, interessado
em curar as pessoas espiritualmente. Os sacramentos foram feitos para fazer esse tipo de
milagre, só que espiritual, e nós percebemos que funciona, que existe esta força.

Em particular, no caso da Confissão, nós percebemos essa força. Além de crer que os nossos
pecados foram perdoados — e isso não dá para ver, não dá para sentir —, percebemos que a
Confissão introduz em nós uma força para tornar-nos mais fortes contra o pecado. Vemos
que não é uma força natural, mas uma força diferente daquela alcançada pelo propósito, o
arrependimento, a meditação, enfim, pelos esforços pessoais.

E na Eucaristia percebemos — embora seja bem suave no início — que existe uma força
sobrenatural ajudando-nos a aprender a amar e cumprir o primeiro mandamento mais
profundamente. E isso é proporcional à fé e ao amor com que nos aproximamos dos

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sacramentos. Apesar de ser proporcional, o efeito alcançado está além daquele que
esperaríamos apenas pela preparação que tínhamos feito.

6. Os sacramentos e a vida espiritual

Os sacramentos são basicamente para isso. Nesse sentido, eles servem inclusive para
desencadear e iniciar uma vida espiritual mais profunda. Na medida em que se vai adquirindo
essa intimidade com o sagrado através dos sacramentos, uma das coisas que devemos fazer,
por exemplo, é tentar procurar a mesma intimidade na vida de oração, reproduzindo nela o
mesmo amor que aprendemos no sacramento da Eucaristia.

Se através da Eucaristia recebida tão devotamente, com tanta fé, com toda essa preparação,
percebemos a força que dela emana, basicamente, para podermos começar uma vida de
oração, temos que tentar imitar na oração aquilo que aprendemos a fazer na Eucaristia. Sob
este aspecto, além de servirem de canal da graça, os sacramentos são também como um farol
para a vida espiritual, um farol experimental, um farol concreto.

A vida espiritual obviamente não se limita aos sacramentos, e o canal da graça não é apenas
os sacramentos, mas eles são instrumentos importantíssimos. Numa oficina de carpinteiro o
martelo não é tudo, porém é muito difícil trabalhar na carpintaria sem o martelo. O
carpinteiro pode até se virar, mas o martelo é o instrumento oficial e sem ele é complicado
gerir uma carpintaria, apesar de não ser impossível, principalmente se o carpinteiro é divino.
Mas o próprio “carpinteiro” divino não quer dispensar o martelo (os sacramentos), o martelo
faz parte integrante do serviço da oficina.

7. Avisos

Por enquanto foi colocada aqui a natureza do sacramento em geral. A Confissão é um dos
sete sacramentos. No próximo encontro trataremos mais exatamente como funciona o
sacramento da Confissão. Explicaremos os pontos básicos da moral cristã, que são necessários
para fazermos uma boa confissão.

Por fim mostraremos como isso se ordena à Eucaristia e como a Eucaristia se ordena à oração.
Isso não é toda a doutrina cristã, é simplesmente a Preparação para a Confissão, de modo que
não estamos dispensados de estudar e nos aprofundar no restante que é um mar enorme.
Trataremos aqui de apenas um dos instrumentos da oficina, na qual um número enorme das
coisas mais maravilhosas que existem.

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Aula 2 – ELEMENTOS DA CONFISSÃO

Índice
1. Introdução
Recapitulação
Os sacramentos e a vocação à santidade
2. Necessidade da Confissão
3. Finalidade da Confissão
4. Eficácia da Confissão frequente
5. Elementos da Confissão
A) Exame de consciência
B) Arrependimento
C) Propósito
D) Acusação
E) Satisfação
F) Absolvição
6. A luta contra o pecado e o progresso espiritual
7. Síntese dos elementos da Confissão
8. Considerações finais

1. Introdução

Recapitulação. — Estamos na segunda palestra sobre a preparação para a confissão. Na


primeira falávamos sobre a natureza dos sacramentos, que são sinais simbólicos que
produzem realmente aquilo que significam, isto graças aos méritos da morte e ressurreição de
Nosso Senhor Jesus Cristo. Falávamos que cada um dos sete sacramentos, além de infundir
a graça, tem também efeitos especiais. Os sacramentos funcionam como instrumentos numa
oficina de um carpinteiro muito sábio, que além de usar os próprios conhecimentos e a
própria habilidade, tem à disposição vários instrumentos para fazer tais e tais coisas. Inclusive,
Santo Tomás de Aquino, na sua teologia, chama os sacramentos de causas instrumentais, e a
comparação é reconhecidamente muito correta.

É como se estivéssemos numa oficina, onde Jesus, que é o Verbo Encarnado, é o carpinteiro
e tem um projeto a executar. Dentro desse projeto ele usa de si mesmo e da sua sabedoria, da
sua vontade, do seu poder, mas no meio de todas as coisas ele também usa destes
instrumentos que são os sete sacramentos.

Os sacramentos e a vocação à santidade. — Estes sete sacramentos fazem parte de um


objetivo maior a ser alcançado que é a santidade, a “plena filiação divina”, outro nome que
damos à santidade. Esse objetivo é a “comunhão com Deus” ou o “reino dos céus”, que são

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outras maneiras de expressar a ideia da santidade. É ainda a “graça do Espírito Santo”, uma
maneira de expressar a santificação humana através da sua causa direta.

Santo Tomás de Aquino diz que a essência do evangelho é a graça do Espírito Santo (S. Th.
I-II, q. 106, a. 1), que é dada àqueles que creem em Cristo. Isso é a mesma coisa que dizer a
santificação humana. A graça do Espírito Santo é a própria causa da santificação humana em
vários sentidos. Então, se a natureza do evangelho é a graça do Espírito Santo, é porque ela é
a santificação humana, que é dada àqueles que se aproximam de Cristo através da fé,
esperança e caridade.

Os sacramentos são instrumentos que existem justamente para nos aproximarmos do Cristo
e da graça que ele nos infunde. Por isso é muito importante entendermos pouco a pouco não
só como funcionam os sacramentos, mas como eles se encaixam dentro desse contexto maior.

Antes de prosseguirmos, há uma pequena observação a ser feita. O primeiro de todos os


sacramentos que recebemos é o Batismo. Nós só podemos recebê-lo uma vez, que é para
sempre. Sem o sacramento do Batismo, todos os outros não valem. Eles são dispostos de tal
maneira que, se alguém não for batizado e receber qualquer um dos outros sacramentos, eles
não têm valor algum. O Batismo é, pois, a porta de entrada para os demais sacramentos.

Pelo Batismo o indivíduo se torna cristão. Ele se torna cristão exatamente para esse propósito:
receber a graça do Espírito Santo ou santificar-se, ou tornar-se Filho de Deus. Por isso, todos
os sete sacramentos e toda a vida cristã pressupõe que, ao se batizar, o sujeito fez um acordo
de amor e comunhão com Deus pelo qual aceita santificar-se, e é nesse sentido que devemos
entender como funcionam os demais sacramentos.

Os sacramentos são instrumentos que Cristo Jesus usa para poder ajudar-nos na santificação,
mas não é toda a santificação; assim como a carpintaria não consiste somente em utilizar o
martelo. Ele é uma parte muito importante, pois apesar de possível, é muito difícil ser
carpinteiro sem usar martelo, é quase impossível.

A ideia básica por trás disso é que o cristão é uma pessoa que, pelo Batismo, deseja
profundamente santificar-se. A ideia do cristianismo é convidar-nos para a plena santidade.
Quando dizemos isso não se deve imaginar apenas um “católico praticante”. Estamos falando
exatamente daquelas pessoas como São Bento, São João Bosco, São Francisco de Assis, Santo
Antônio de Pádua, Santo Tomás de Aquino, Santa Teresa de Ávila, Santo Agostinho, todos
aqueles que realmente reconhecemos com uma santidade eminente.

Pelo Batismo estamos comprometidos com uma coisa desse tipo e Deus também conosco.
Não entender isso é como alguém que entrasse numa faculdade de medicina apenas para ter
o direito de usar a piscina da universidade, isto é, ele não entende que está lá para ser médico;

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ou então ele entra no curso porque terá a possibilidade de melhorar a leitura de tanto ler
livros! Sim, ele irá melhorar a leitura, mas se entrou numa faculdade de medicina foi para se
tornar médico, fazer cirurgias e curar as pessoas.

Algumas pessoas podem querer ser cristãs porque um cristão leva uma vida mais regrada,
mais ordenada, não dá “murro em ponta de faca”, não se envolve com drogas, quando monta
uma família ela tem uma vida mais ordenada, mais agradável. Mas não é essa a finalidade!
Quem faz faculdade de medicina tem direito à piscina, ao plano de saúde da universidade.
Quem entrar na USP, por exemplo, tem direito de almoçar mais barato no bandejão, mas o
fulano não entrou lá para isso, ele deveria ter entrado para se tornar médico.

Outras pessoas resolvem ser cristãs porque imaginam, como é verdade, que quando não
seguimos os mandamentos nós podemos sofrer uma condenação eterna. A pessoa quer ter
certeza de que se livrou da condenação eterna, então diz: “Eu me batizei. E agora, o que devo
fazer? Essas são as regras? Já estou livre da condenação? Pronto, então estou satisfeito! Graças
a Deus!”.

O mesmo acontece com alguém que quer ser deputado federal ou senador porque terá
imunidade parlamentar. Ele pensa: “Até que enfim, agora eu sou senador. Tenho imunidade,
não posso mais ser preso, e se acontecer alguma coisa eu só posso ser julgado diretamente pelo
Supremo Tribunal Federal – que é um tribunal muito especial, de juízes teoricamente mais
competentes. O sujeito não entendeu que se tornou senador para aperfeiçoar as leis da
República, não para ter imunidade parlamentar.

Com o Batismo é mesmo, nós nos comprometemos com a santificação. A pessoa que se
batiza deveria ter um desejo imenso de santificar-se e, obviamente, isso não é uma coisa que
nós sabemos como fazer. Por isso devemos estudar a doutrina, aprofundar-nos e buscar,
porque é algo que normalmente está bem acima do nível em que nós habitualmente nos
situamos quando começamos a ser cristãos.

O que faremos nessas palestras não é falar de tudo, mas apenas de algo específico dentro disso.
Como se alguém desejasse ser piloto de avião e estivesse fazendo um curso de meteorologia.
É um assunto importantíssimo que ele deve dominar, mas não é o voo completo.

Falaremos dos sacramentos, especialmente do sacramento da Confissão. Estamos dando essas


noções fundamentais, para que se tenha uma ideia do contexto mais amplo, pois não estamos
aqui [nesta vida] para confessar-nos, mas para santificar-nos.

A Confissão é um instrumento que não podemos deixar de usar, mas não é toda a “ciência
do voo”, é apenas um capítulo, porém tão importante que merece um curso a parte. Junto

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com a Confissão, falaremos alguma coisinha sobre a Eucaristia. O resto devemos aprender
em outros departamentos ou em outras ocasiões.

2. Necessidade da Confissão

Vimos que temos sete sacramentos e que o Batismo é a porta de todos os outros. Se a pessoa
não é batizada, não adianta nada se confessar porque seria inválida a Confissão; ela não
produziria o efeito da graça, mas tão somente um efeito psicológico, do puro simbolismo.
Uma pessoa enganada, que não tivesse sido batizada e fosse confessar-se, poderia ter algum
efeito por causa do rito em si, no entanto é o mesmo que faríamos se nos confessássemos num
teatro e ficássemos imaginando que a Confissão era correta.

Como todos os demais sacramentos, o Batismo infunde a graça e ao fazê-lo perdoa também
os pecados. O Batismo não só aumenta a graça quando ela já existe, mas pode inclusive
infundi-la quando ela não existe de todo.

Por isso, quando as pessoas recebem o Batismo não precisam se confessar dos pecados
passados. Pela doutrina cristã e o modo como Jesus encaminhou a prática dos sacramentos,
quando uma pessoa se batiza ela tem que fazer uma reflexão sobre os pecados da sua vida
passada — aqueles que vão contra a lei de Deus. Ela tem que reconhecer o erro, fazer um
propósito de não voltar a cometê-los e de mudar de vida, e começar a encaminhar-se em
direção à santidade, mas não precisa confessar nenhum daqueles pecados.

Após o Batismo, a doutrina diz que quando caímos em algum pecado grave, por descuido,
por desleixo, por culpa, somos obrigados a confessá-los. Dali para frente não basta apenas
recebermos um sacramento, mas devemos nos confessar segundo uma metodologia que a
Igreja também prescreve. É justamente dessa metodologia que falaremos agora, sem entrar
em detalhes no conteúdo da moralidade que ela implica.

3. Finalidade da Confissão

O sacramento da Confissão existe principalmente para perdoar os pecados graves que


tenhamos cometido depois do Batismo, mas não somente para isso, pois ele infunde a graça.
Então, mesmo que a pessoa não tivesse cometido pecado grave, ou não tivesse cometido um
pecado entre uma confissão e outra, o sacramento da Confissão ainda assim não seria inútil,
porque ele infunde a graça em quem o recebe adequadamente, do mesmo modo que
qualquer outro sacramento o faz.

Exatamente por isso é obrigatório que nos confessemos quando percebemos que cometemos
um pecado grave, mas não é necessário que tenhamos cometido um pecado grave para nos

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confessarmos. Inclusive é muito bom que nos confessemos regularmente, porque todos os
sacramentos infundem a graça santificante, e é desta maneira que eles perdoam os pecados.

O sacramento da Confissão perdoa os pecados não porque avisa um anjo que está fazendo
contabilidade no céu e tem uma lista com todos os pecados que fizemos e, quando nos
confessamos, o anjo contabilista recebe um e-mail, pega o arquivo e deleta os pecados que
fizemos e a nossa ficha fica limpa. Não é assim que funciona!

O sacramento da Confissão perdoa os pecados até de uma maneira indireta, infundindo a


graça, isto é, ao infundir a graça ele remove os pecados. Embora o padre diga no momento da
absolvição: “Eu te absolvo dos teus pecados, em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”,
essa absolvição, porém, não está ocorrendo porque um “e-mail sobrenatural” está sendo
enviado ao céu e lá os pecados estão sendo deletados juridicamente de um arquivo. Os
pecados estão sendo deletados porque ocorre uma infusão da graça no momento em que
somos absolvidos, se nos preparamos adequadamente.

Essa infusão da graça não só produz o perdão dos pecados, mas um próprio aumento da
graça. Além disso, produz principalmente uma coisa notável: um fortalecimento contra a
nossa fraqueza em relação ao pecado. Isso é muito perceptível quando nos confessamos
regularmente. Nós percebemos, não no momento da absolvição, mas depois da Confissão
quando voltamos à vida comum, que é como se tivéssemos recebido uma vacina ou um
fortificante, que está além do que conseguiríamos por meios naturais. Nitidamente
percebemos que existe quase que uma espécie de proteção sobrenatural contra a fraqueza do
pecado.

A pessoa caía muito em pecados de raiva, pecados contra a castidade, e se propôs não fazê-los
mais. Ela mudou de ideia, meditou, refletiu e já está diferente porque fez todos esses
propósitos, e então se confessa. Quando sai da Confissão, depois de alguns momentos, ela
percebe que seu propósito ficou suavemente mais firme do que antes da própria Confissão.
Isso é bem notável porque, se a pessoa faz todos esses propósitos, decide realmente se
emendar, porém não se confessa, ela percebe que esse plus normalmente não aparece e
permanece só com a força dos seus próprios propósitos. Existe então alguma coisa que a
Confissão coloca para fortificá-la contra o pecado.

Isso não é definitivo, é uma ajuda. Não significa que se tem a garantia de não pecar. E é
exatamente por causa disso que vale a pena nos confessarmos regularmente, não só se
cometemos pecado grave, porque realmente a Confissão perdoa os pecados (se houverem),
mas além disso ela infunde realmente uma graça (que já vale por si mesma) e confere uma
força contra o pecado.

4. Eficácia da Confissão frequente

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Obviamente, [a Confissão] é um instrumento de santificação valiosíssimo, de modo que, se
realmente temos fé e amor, se levamos uma vida espiritual com um mínimo de prática,
percebemos clarissimamente a tremenda ajuda que isso é na santificação pessoal.

Se alguém está tentando emendar-se de seus defeitos e pecados, a Confissão pode dar-lhe uma
catapultagem fora do comum, muito mais do que os propósitos, as meditações, as resoluções,
a força de vontade, mesmo com a ajuda da graça ordinária que vem fora da Confissão.
Portanto, é muito bom que nos confessemos regularmente o quanto for possível.

Naquelas circunstâncias, por exemplo, de alguém que mora num convento ou seminário
onde há bons confessores disponíveis e se leva uma vida condizente, muitas regras religiosas
recomendam a confissão semanal. Na regra dos Jesuítas, escrita por Santo Inácio de Loyola,
ele recomendava que os seminaristas e clérigos se confessassem toda semana. Hoje em dia é
um pouco difícil fazer isso, pois a cidade é grande, faltam padres e os bons padres que podem
ouvir Confissão têm pouco tempo ou então é difícil ter acesso a eles.

Em vista disso, a recomendação que temos dado é que pelo menos não deixemos passar mais
de dois meses sem se confessar. Se for possível, uma vez por mês. E se for muito fácil confessar-
se — se a pessoa possui amizade com algum padre, se mora numa paróquia e for
extremamente fácil —, não seria nada mal, e seria uma ajuda tremenda que não se pode
desprezar, poder confessar-se toda semana, desde que obviamente entendamos o espírito da
coisa de modo que seja feito conforme a natureza mesma da Confissão, pois ela não é uma
receita mecânica que podemos dar às pessoas sem que elas entendam o modo como se faz.

5. Elementos da confissão

Genericamente a doutrina diz que a Confissão tem cinco elementos. Num certo sentido
poderíamos dizer que são seis, mas a doutrina dos Catecismos oficiais e da Teologia diz que
são cinco. Devemos guardá-los de cor na nossa alma, tendo-os sempre presentes para checar
e ver se realmente passamos pelos cinco antes de nos confessarmos. Eles são como um roteiro
para checarmos se fizemos tudo direitinho.

A) Exame de consciência. — O primeiro é o Exame de Consciência. Antes de nos


confessarmos devemos examinar a nossa consciência para nos lembrarmos de todos os
pecados que cometemos desde a última Confissão bem feita.

Quando se trata da primeira Confissão que fazemos depois de estarmos afastados da Igreja
por muitos anos, o que é uma coisa comum hoje em dia (a pessoa voltar para a Igreja depois
de vinte ou trinta anos de uma vida em que ela fez de tudo), esse exame de consciência pode
ser bem demorado, podemos levar alguns dias para fazê-lo. Depois que nos confessamos a

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primeira vez e nos acostumamos a confessar-nos regularmente, o exame de consciência pode
durar alguns minutos ou às vezes nem é necessário um exame de consciência minucioso:
lembramos num instante, temos bem presente o que fizemos e nos confessamos. Então
normalmente o primeiro exame de consciência é trabalhoso e exige um cuidado especial. Os
demais são necessários, mas não é algo complexo e sim de alguns minutos.

No exame de consciência temos de lembrar todos os pecados que fizemos desde a última
Confissão bem feita ou então desde toda a vida, se não nos confessamos nenhuma vez. Só
não precisamos nos confessar se nunca fomos batizados, pois o Batismo apaga todos os
pecados sem necessidade de Confissão. Ainda assim seria necessário fazer um exame de
consciência: a pessoa não tem que confessá-los, mas deve ter consciência do que fez para
propor-se a não voltar a fazê-lo.

Nesse exame de consciência devemos procurar não aquelas coisas que estão afligindo a nossa
consciência, mas as que vão contra a lei de Deus objetivamente revelada.

Isso é uma experiência contada pelos sacerdotes: é muito comum os sacerdotes ouvirem
Confissão de pessoas que não se confessam há anos e que fizeram um aborto. A psicologia
do aborto é assim: a pessoa faz um aborto e, depois que fez, aquilo começa a torturá-la, ainda
que ela não era católica. Aí ela resolve ter um outro filho para compensar aquele que fora
abortado, mas aquilo não sai: ela faz tratamento, tenta esquecer, faz uma viagem e depois de
vinte, trinta anos, quando já não aguenta mais, ela vai procurar um padre porque pecou. Mas
o único pecado que está confessando é o aborto, ou seja, ela passou a vida inteira fora da
Igreja, fez todo o resto e só quer se livrar do aborto. Na verdade, ela está analisando sua vida
moral de acordo com o sentimento de culpa que tem, não objetivamente de acordo com o
que Deus manda.

É bom que prestemos atenção àquilo que a consciência costuma nos afligir, porque se a
consciência nos aflige, geralmente é sinal de que fizemos uma coisa errada. E muitas vezes a
coisa é tão errada que, mesmo a pessoa tendo uma cosmovisão totalmente errada do mundo,
ainda assim aquilo ali não sai da aflição, então deve haver algo ali para ser examinado.

Mas não se faz o exame de consciência procurando as coisas que nos afligem. Não importa se
aflige ou não. Devemos procurar objetivamente de acordo com o que Deus prescreve e revela,
e a Igreja ensina como sendo pecado, segundo regras bem claras e objetivas, julgando, de
acordo com aquela regra, os atos que fizemos. Isso é tremendamente importante porque, em
primeiro lugar, aprendemos a deixar de ser subjetivos. Inclusive esse é o primeiro passo para
conseguirmos nos livrar do sentimento de culpa.

O sentimento de culpa é muito enganoso na maioria das pessoas. Muitas vezes tal sentimento
nos acusa de coisas que não tivemos culpa e, por outro lado, deixa de nos culpar de coisas

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onde havia culpa. Ele está sujeito a uma série de circunstâncias que absolutamente não têm
nada de objetivo. As pessoas que mais sofrem com sentimento de culpa são justamente
aquelas que não se confessam. O exercício de julgarmos objetivamente os nossos erros de
acordo com uma regra externa que é bem conhecida e não está sujeita a variações, faz com
que comecemos a nos conhecer objetivamente.

Então, o exame de consciência, em princípio, é para ser feito de acordo com a moral cristã.
Devemos aprender a moral cristã que Deus revelou e percorrer segundo ela os pontos em que
falhamos na nossa vida. Isso é o exame de consciência.

Podemos escrevê-lo. Se o exame de consciência for longo, se for a primeira vez, nós podemos
escrever num papel para que, quando formos nos confessar, nos possamos lembrar, mas isso
não é obrigatório. Se a pessoa lembrar tudo na hora de se confessar sem escrever, não precisa
escrever.

É bom não guardarmos as coisas que escrevemos. É bom também não escrever os pecados
que fazemos a não ser no momento que formos fazer o exame de consciência para aquela
Confissão. É uma prática muito ruim que tenho visto em algumas pessoas e que só traz
problemas: a pessoa comete um pecado e, para não esquecer, ela anota. Isso é péssimo e só
traz confusão.

A recomendação é que, dentro do possível, o exame de consciência seja feito apenas de


memória, no momento em que a pessoa já está se preparando para a Confissão; ou fazê-lo
todo dia, mas de memória, para emendar-se dos pecados daquele dia, e não ficar anotando
para um “dia quando for confessar”, porque isso gera uma confusão tremenda.

O primeiro exame de consciência, quando vamos nos confessar pela primeira vez, é bom que
anotemos porque inclusive ele será mais demorado. Esse exame de consciência na verdade é
um primeiro grau de conscientização sobre a verdadeira vida moral que temos. Muitas vezes,
nós erramos moralmente porque não pensamos e refletimos. Quando fazemos o exame de
consciência, fazendo um inventário segundo uma lei externa, começamos a adquirir um
primeiro domínio sobre nós mesmos.

B) Arrependimento. — O segundo passo ou segundo elemento da Confissão é o


arrependimento. O arrependimento significa reconhecer que naqueles casos em que
pecamos, realmente estávamos errados e também detestar esses atos, pelo menos do ponto de
vista racional.

O arrependimento é mais do que o exame de consciência. Neste último lembramos dos


pecados segundo uma regra externa. No arrependimento, além de lembrar dos pecados
cometidos, devemos realmente checar se reconhecemos que cometemos um erro. Porque

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acontece que a pessoa reconhece ter ido contra uma regra que Deus manda, mas naquele caso
em especial ela pensa que havia uma situação que a desculpasse. É como dizer: “Eu não posso
bater na minha esposa, isso é errado. Mas veja bem, você deve ver o que ela fez. Diante do que
ela fez eu tinha que bater nela”. O sujeito reconhece que fez aquilo, reconhece que em
princípio aquilo é um erro, mas não reconhece que errou.

Como se alguém dissesse: “Sim, tudo bem, beber é errado e embebedar-se é pior ainda, mas
diante da vida que eu levo, das amarguras que eu tenho, não tenho outra coisa! Não sou um
homem rico, não posso ir a divertimentos, não posso viajar! Se eu não beber, eu entro numa
depressão fora do comum. Deus não pode me condenar por causa disso”. O sujeito reconhece
que se embebedar é pecado, reconhece que se embebedou, mas pensa que naquelas
circunstâncias havia um motivo que o desculpava, não era tão grave. As pessoas fazem isso!

Seria ainda dizer: “Sim, fazer aborto é um pecado gravíssimo, mas naquelas condições eu não
tinha como sustentar uma criança, eu não tinha nem condições psicológicas, não havia outra
solução”. A pessoa reconhece que aquilo é um pecado grave, reconhece que fez, mas acha
uma desculpa para entender que não é grave e que no fundo ela não teve culpa.

Na verdade, ela não se arrependeu e até faria de novo; ou até ela não faria de novo porque
aquilo a machucou muito. Então ela diz: “Eu nunca mais farei, nem se estiver nas mesmas
situações, mas não me venha culpar por causa daquilo, porque lá naquela época eu não tive
culpa, não tinha outro jeito”. Isso não é arrependimento!

Pior ainda se a pessoa sequer reconhece o erro na sua generalidade. Geralmente as pessoas que
fazem assim é porque não reconhecem o erro naquelas circunstâncias específicas: elas veem
que a ação é errada, mas naquele caso pensam que não erraram. Pior ainda se elas não
reconhecem que a ação é errada: acham que em certas circunstâncias o aborto é um direito.

Isso não adianta. Mesmo supondo que o sujeito não queira mais pecar porque aquilo o
machucou, provocando um remorso de modo que não quer fazê-lo nunca mais, no entanto
ele não consegue reconhecer que aquilo foi um erro. Ainda que esteja arrependido por causa
das consequências que o ato teve, e tenha realmente a firmeza de não querer voltar a fazê-lo,
se ele não reconhece que foi um erro, não pode se confessar, pois não está arrependido.

Por outro lado, arrepender-se não é tão difícil, porque não é necessário ser um filósofo que
consiga enxergar o motivo por que aquilo é errado. Nesse ponto, Deus resolveu facilmente
as coisas para todos, ou seja, Ele mesmo revela o que é errado — na Sagrada Escritura, através
da Igreja, do Magistério. Se a pessoa não entender claramente onde está o erro, é suficiente
que aceite a autoridade divina, pois se Deus está ensinando assim Ele deve saber o que está
fazendo.

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O bom seria que compreendêssemos mais claramente onde está o erro além da simples
revelação, porque a maioria desses pecados são contra o direito natural. O normal seria que
percebêssemos que matar é um crime não só porque Deus manda. Porém, se não há outro
jeito, nós fazemos assim.

Os índios brasileiros tinham muita dificuldade em entender que o canibalismo era errado,
eles achavam que era a coisa mais comum. Muitos deles se confessavam, prometiam que não
comeriam mais ninguém porque Deus estava mandando, mas no fundo eles ainda sonhavam
com aquela sopa de carne humana. Tem até a história de uma índia que, antes de morrer, o
padre Anchieta foi confessá-la e disse-lhe: “Qual seu último desejo?”. Ela disse: “Olha, na
verdade está tão confuso, porque eu gostaria de uma sopa de dedinhos de crianças, mas pelo
jeito Deus não gosta, não é?”. Nesse caso, ela não percebia onde estava o erro, mas pelo menos
aceitou que Deus não gostava e isso já é suficiente.

Depois de fazer o exame de consciência, a pessoa deveria então checar se realmente aceitou
que aquelas coisas que Deus diz serem um erro foram realmente um erro, e o foram nas
condições em que a pessoa as fez.

Vejamos alguns exemplos:


i) Nas circunstâncias, o sujeito estava endividado e resolveu roubar o banco; ele deve aceitar
que aquilo não é desculpa;
ii) A mulher xingou o marido e ele deu um tabefe nela; ele deve aceitar que isso não o desculpa
da coisa.
iii) Ela engravidou fora das circunstâncias ideais, mas aquilo não justificaria fazer um aborto,
ela errou.

E assim por diante. Todos inventam desculpas! O Hitler matou seis milhões de judeus, mas
ele diz na sua cabeça: “Esses judeus estavam fazendo um mal tão grande para a humanidade,
que não tinha outra coisa que eu pudesse fazer”. Ele tem que entender que isso é um crime,
pois ninguém pode matar seres humanos dessa maneira.

C) Propósito. — Depois do arrependimento, o terceiro elemento da Confissão é o


propósito de nunca mais voltar a pecar. O sacramento da Confissão exige que esse propósito
seja universal e definitivo, pelo menos para todos os pecados graves.

A doutrina cristã admite que existem pecados graves e pecados leves, e há também uma coisa
que se chama de imperfeição. Para se confessar a pessoa deve ter certeza que está arrependida
de todos os pecados graves. Não é obrigatório que isso se estenda aos pecados leves também,
apesar de que seria bom.

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É obrigatório também que o propósito se estenda a todos os pecados graves sem exceção e
imediatamente. Quando alguém vai confessar-se deve ter o firme propósito de que irá
abandonar (1) tudo aquilo que Deus ensina que é pecado grave, (2) em definitivo e (3)
imediatamente, não em etapas.

É muito comum hoje em dia, quando as pessoas reconhecem os erros, elas irem
abandonando-os de pouco em pouco, gradualmente. Acontece isso com a bebida, a droga e
várias coisas. Existem programas de auxílio e eles podem ser muito bons. Para quem não está
disposto a largar imediatamente, é melhor que largue aos poucos do que não largar nunca;
porém, para a Confissão isso não serve!

A Confissão exige que se tenha um propósito (1) total, (2) definitivo e (3) imediato. Significa
que a pessoa deve fazer um exame de consciência, ter um arrependimento e uma decisão de
que vai largar todos os pecados graves de uma vez para sempre e de uma só vez. Se ela quiser
largar todos menos um, a Confissão não é válida. E se quiser largar todos, mas aos poucos,
também não é válida. E isso tem funcionado de uma maneira extraordinária. Não existe
maneira mais correta de abandonar o pecado (pelo menos o grave) a não ser desse modo. Se
o sujeito não fizer desse jeito, não largará nunca, e, pegando alguns exemplos extremos, é
possível percebê-lo.

O indivíduo é um assassino serial, já matou trinta pessoas e não aguenta mais essa vida e quer
parar. Ele diz: “Eu vou parar, mas não posso parar de repente, vou parar aos pouquinhos. Eu
mato em média uma pessoa por mês. Então vou começar a matar uma a cada dois meses”. É
evidente que esse fulano não vai parar de matar nunca! Não existe essa de “um a cada dois
meses”. Logo, logo ele vai voltar a matar mais do que antes.

É a mesma coisa se o fulano comete adultério. Ele é mulherengo e trai a mulher três vezes por
semana, e diz: “Não! Eu vou começar traindo só uma vez por semana”. Esse fulano não vai
parar nunca. Se ele quer parar, deve ser radical. Tem que entrar em si, tomar uma decisão e
decidir definitivamente. Apesar disso, se por fraqueza ele acabar caindo mais para frente,
pode voltar a se confessar novamente. Mas então deve se arrepender amargamente daquele
pecado que voltou a fazer e ter um propósito de que aquela queda tenha sido a última. Se
apesar disso, de toda sinceridade, ele voltar a cair, ele pode se confessar outra vez, mas aí terá
que fazer um propósito ainda mais forte, porque já viu que o anterior não tinha sido
suficientemente forte.

Isso é muito bom porque, ao fazer essas coisas nós acabamos nos conhecendo a nós mesmos.
Para fazermos o propósito, normalmente, se percebemos que não temos essa decisão ainda
firme, temos que meditar, refletir as consequências do pecado, a feiura do pecado, o que
estamos perdendo, como a vida seria muito melhor se não tivéssemos pecado, o quanto

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ofendemos a Deus. E se nós entendemos a profundidade dos mistérios de Deus, os motivos
sobrenaturais vão ficando cada vez mais fortes.

Através da meditação podemos aprender a fazer com que a vontade fique cada vez mais firme.
Isso vale não só para o pecado, mas para uma série de outras coisas. Na medida em que
aprendemos a fortalecer a vontade, somos capazes de tomar decisões mais lúcidas e firmes na
nossa vida profissional, familiar, nos nossos empreendimentos. E isso tem consequências
extremamente benéficas e indiretas para a vida humana.

No entanto, se percebemos que não temos força suficiente para fazer um propósito
definitivo, imediato e universal, temos que aprender a meditar o tempo que for suficiente,
pedir a Deus a ajuda da graça para que ele fortaleça a nossa vontade até podermos dizer
finalmente: “Eu consegui, estou convencido e decidido. Não vou fazer nunca mais”.

Depois, se voltarmos a recair apesar de que tínhamos certeza de ter feito o propósito, isso nos
mostra que aquele propósito não foi suficientemente forte. A pessoa deve voltar, analisar
tudo outra vez e dizer: “Antes eu pequei quinhentas vezes. Apesar do descuido, agora eu
pequei uma, mas não era para ter pecado nenhuma. Então alguma coisa não funcionou
direito”. A partir disso nós fazemos um propósito ainda mais firme para que essa uma vez, se
demorou um mês para acontecer, demore dez anos para voltar. E se ela voltar, nós fazemos a
mesma coisa.

Com isso, mesmo do ponto de vista natural, vemos que a Confissão nos ajuda
tremendamente a abandonar o pecado, mesmo sem ser a Confissão propriamente dita –
porque isso que estamos falando ainda é a preparação psicológica. Embora haja a ajuda da
graça, da oração, essa ainda é a preparação pessoal, não há sacramento. Só a preparação já faz
uma verdadeira revolução na pessoa!

D) Acusação. — O quarto ponto da Confissão é o que chamamos de acusação. O primeiro


é o exame de consciência, o segundo é o arrependimento, o terceiro é o propósito e o quarto é a
acusação.

Acusação significa que a pessoa, uma vez que tenha feito os primeiros passos — lembrar de
tudo o que era humanamente possível, arrepender-se de tudo e ter o propósito de abandonar
tudo —, deve ir lá, ajoelhar-se na frente de um sacerdote e contar os seus pecados.

Temos que entender que as leis da Igreja exigem que o padre tenha sigilo absoluto daquilo
que ouve em Confissão. Um padre não está autorizado a revelar o que ouviu em Confissão
em hipótese alguma, nem que seja para salvar a própria vida ou a vida de um inocente.

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Por exemplo: Alfredo foi se confessar e disse que matou Maria. No dia seguinte aparece no
jornal que prenderam Fernando como sendo o assassino de Maria. O padre que ouviu
Alfredo em confissão está vendo que um inocente está sendo levado para a pena de morte
(supondo que houvesse pena de morte no Brasil). O padre sabe quem matou Maria porque
o assassino se confessou, mas ele não pode chegar lá no tribunal e dizer: “Não, a Maria não
foi morta pelo Fernando, quem a matou foi um outro safado que se confessou comigo. Aliás,
agora ele está arrependido e inclusive eu lhe dei o perdão, mas ele não quer contar que foi
ele”. O padre não pode fazer isso! Ele deve assistir o inocente ser condenado e não pode fazer
nada.

Se o indivíduo voltar à Confissão, o padre até pode falar ao sujeito: “Mas olha, o Fernando
vai morrer no teu lugar e ele é inocente”. Se o Alfredo não quiser ir reconhecer o crime, o
padre não pode fazer. Ele pode negar a absolvição ao penitente, mas não pode dizer nada.
Parece uma coisa dura, mas se não houvesse isso, ninguém se confessaria, seria inviabilizar a
Confissão.

E o padre está proibido de fazê-lo não só se o inocente acusado é um terceiro, mas até se ele
mesmo for acusado. Isto é, se a polícia achar que foi o padre que matou Maria e o padre sabe
quem realmente foi, porque o assassino se confessou, ele pode até dizer “Não fui eu”, porém
não pode dizer que foi o Alfredo, mesmo sabendo que será morto e que poderia se livrar
dizendo o nome de quem foi. Simplesmente o sigilo da Confissão é total e absoluto!

Outra coisa que devemos reconhecer durante a acusação é que, na verdade, pelo que a própria
Confissão irá produzir, quem está realmente ouvindo a confissão é o próprio Cristo através
do qual será infundida a graça que virá pela Confissão. O sacerdote está ali com esse sigilo,
porque na verdade está emprestando seus ouvidos para o Cristo.

Mas por que ele está emprestando seus ouvidos para o Cristo se ele ouve e nós não
precisaríamos fazer isso? Em grande parte porque é importantíssimo que nos acusemos dos
nossos pecados, pois no momento em que nos acusamos é que entendemos melhor o que
fizemos. Há vários exemplos de que, quando contamos aos outros as coisas que fizemos, nós
reconhecemos aqueles erros melhor do que se não os contássemos.

O maior exemplo disso é um episódio acontecido durante os julgamentos de Nuremberg, os


julgamentos depois da Segunda Guerra Mundial, quando os nazistas foram julgados pelos
aliados que ganharam a guerra. Os aliados não queriam condená-los à morte ou à prisão
perpétua sem que antes fossem julgados. Então eles foram ouvidos.

Consta que havia um oficial nazista que na cadeia estava exortando os colegas a não
esconderem o que fizeram, porque tudo tinha sido “um grande bem para o mundo”. Então,
enquanto seus colegas não queriam contar nada e diziam que negariam tudo, ele disse: “Eu

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não vou negar nada, vou concordar com tudo e ainda vou dizer todo o resto que eles não me
perguntarem, porque isso aqui está tudo errado. Nós estamos sendo condenados por um
bem que fizemos. Nós somos beneméritos da humanidade, estávamos livrando a
humanidade dos judeus e de uma série de outras desgraças. Nós deveríamos receber um
prêmio e não uma condenação. Eu vou contar a coisa do jeito como aconteceu, eles têm que
entender que isso foi uma coisa boa”.

Dito e feito! Enquanto os colegas negaram tudo, ele chegou lá na frente e disse: “Senhor juiz,
o senhor não precisa me interrogar de nada. Eu estou consciente do que fiz e de que foi um
grande bem. Vou contar tudo o que o senhor quer e, se o senhor me deixar falar, eu vou falar
muito mais do que o senhor me perguntar”. O juiz ficou admirado e disse: “O senhor pode
contar”.

Ele começou a narrar como havia matado tantos judeus aqui e ali, como os tinha fuzilado,
como havia tratado aqueles outros. No início ele começou todo entusiasmado, mas o pessoal
foi percebendo que na medida em que ele ia contando, seu tom de voz ia ficando mais
reservado e, quando estava no final, começou a gaguejar, falando de um jeito preocupado,
não tinha mais aquela expansão. Depois de terminar a narração ele disse: “Pois é, foi isso o
que nós fizemos. O senhor quer saber mais alguma coisa?”. Aí o juiz ficou espantado e falou:
“Não, não excelência, muito obrigado. Nós não esperávamos por uma narração como essa. E
nós estamos tão abismados aqui diante do que ouvidos que eu acho melhor suspendermos o
julgamento por hoje. Vamos devolver os prisioneiros para a cela e continuaremos amanhã,
depois de meditarmos durante a noite”.

No dia seguinte, quando foram buscar os indivíduos, eles viram que aquele que tinha
contado tudo havia se enforcado. Ele não aguentou ver claramente o que havia feito! No
entanto, ele sabia daquilo de cor e salteado, pensava que era um bem e que quando todos
ouvissem iriam aplaudir. Em vez disso, ele mesmo ficou horrorizado! Não porque ele não
soubesse, mas por ter contado aos outros.

Quando contamos as coisas erradas que fizemos, nós adquirimos um nível de consciência
daquilo que não imaginávamos. Justamente por causa disso esse é um dos motivos pelos quais
nos acusamos na confissão.

Temos de nos acusar e a doutrina dos sacramentos pede que nos acusemos como se fôssemos
um promotor. Não como quem pede desculpa, mas como quem está dizendo: “Eu fiz isso!”.
É um promotor diferente, pois o sujeito sabe que será absolvido e não condenado. Mas a
Confissão é uma espécie de tribunal, é o tribunal da penitência. Um tribunal onde o
promotor é o réu, e o juiz está preparado para absolver e não para condenar – salvo raras
exceções em que ele nega a absolvição porque percebe que o penitente não está arrependido;
que é uma farsa ou que ele não se preparou devidamente.

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Mas a ideia da acusação é que nos acusemos como um promotor o faria, ou seja, que não
escondamos as coisas, mas digamos claramente: “Eu fiz isso, fiz aquilo, foi desta e desta
maneira”. Não devemos “dourar” o erro cometido, dizendo algo do tipo: “Ah, eu fiz isso,
mas o senhor tem que entender que houve aquela circunstância”. Não é assim que o
promotor faz! Ele é justo, mas diz realmente a coisa, ele está se acusando. Então nós devemos
estar lá nos acusando.

Porém, a doutrina diz que a exigência da Igreja ao nos acusarmos é que não nos acusemos de
todos os detalhes nem contemos a história. Devemos nos acusar dos nossos pecados na sua
(1) espécie e no seu (2) número, não na sua circunstância e na sua individualidade.

Isso é mais ou menos parecido com o que ocorre no Código Penal. Ele tipifica o crime nas
suas espécies: homicídio premeditado, homicídio qualificado, roubo com agravante, rapina,
sequestro. Cada um destes crimes tem uma tipificação bem clara. Então a primeira coisa que
o delegado faz quando alguém comete um crime, é procurar saber em qual espécie ele se
enquadra. Depois, no julgamento humano, como a pessoa pode ser condenada ou absolvida,
entra-se em todos os detalhes das provas, das circunstâncias, da história, para chegar-se a uma
conclusão.

Mas na penitência o sujeito já chegou à conclusão: ele mesmo está se considerando culpado.
Então não é preciso examinar os detalhes, mas simplesmente saber qual é o crime. Exatamente
por causa disso, nós não precisamos detalhar as circunstâncias na Confissão, mas somente a
espécie, que seria mais ou menos o equivalente à tipificação penal. Também é necessário dizer
o número de vezes, não é preciso contar uma história.

Por exemplo. No caso em que o sujeito tivesse cometido adultério, ele não precisa dizer que
conheceu uma pessoa, que ela era muito bonita, que ele tentou seduzi-la. Então levou-a para
o motel e ficaram quatro horas no motel. Que no motel tinha televisão e era muito agradável.
Não precisa depois contar a história do que eles conversaram no motel, se o dia estava frio ou
não, se o motel era ou não de luxo; se a esposa dele gostou ou não, se ela soube ou não soube.
O que ele deve contar é o ato que foi o pecado mesmo, ou seja: “Eu cometi adultério uma
vez”. Acabou!

Obviamente há certas circunstâncias que devemos declarar, por exemplo: se o sujeito é casado
e a moça com que ele cometeu adultério também é casada, isso deve ser dito, porque são dois
pecados, são dois adultérios. É mais grave e é diferente ser casado e ter uma relação com uma
solteira, do que ser casado e ter relação com outra casada, pois assim dois matrimônios foram
violados, isso é um outro tipo de pecado. Esse detalhe muda a espécie, por isso ele faz parte.

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Se o sujeito era padre e cometeu adultério com uma pessoa casada, o fato de ele ser padre é
outro pecado, porque ele cometeu um sacrilégio contra o sacerdócio e um adultério contra o
outro. Então ele deve dizer: “Eu sou padre e cometi adultério com uma pessoa casada”. Porém
o resto da história (se durou quatro horas ou duas, se o dia estava frio, se a conversa foi longa
antes de convencer a mulher, se ele pagou ou se não pagou, se foi num motel ou numa casa)
tudo isso é individualidade. O que interessa é a espécie e o número.

A espécie engloba tudo o que é necessário saber para o confessor entender exatamente qual
pecado foi feito. Os detalhes individuais, a história, isso não interessa. Contudo, qualquer
detalhe que mude o tipo de pecado cometido, deve ser falado.

O sujeito diz que bateu numa pessoa e essa pessoa era o seu pai. Isso não é um detalhe, porque
além de ter batido numa pessoa ele cometeu um pecado contra o quarto mandamento, que
é honrar pai e mãe. A espécie é o que faz entender claramente o que foi feito.

Outro exemplo. Não adianta chegar na Confissão e dizer “Padre, eu pequei cinco vezes.”.
Esse “pequei cinco vezes” não explica qual é a espécie; podem ser tantos tipos diferentes, não
dá para entender. Também não adianta dizer: “Padre, eu pequei contra a castidade cinco
vezes.”, porque os pecados contra a castidade são inúmeros: pecados por pensamento, por
atos (masturbação, adultério). Dos tipos mais comuns, o adultério é o pior dos pecados
contra a castidade, pois além da castidade o sujeito está violando um matrimônio. Portanto,
só dizer que pecou contra a castidade não explica a coisa. Ele deve descer ao nível de detalhe
que dê para entender claramente o que fez, não as circunstâncias nem a história. Seria mais
ou menos assim: “Eu me masturbei [tantas vezes]”; “Eu cometi adultério [tantas vezes]”;
sendo que ele deve dizer se era casado ou se ela era casada, ou se ambos eram casados. Enfim,
deve-se chegar ao ponto em que fique bem claro o que foi feito.

Temos ainda que dizer o número. O número, em princípio, deveria ser exato: eu pequei
[tantas vezes], cometi adultério duas vezes ou cinco vezes. Porém é muito frequente,
principalmente nas primeiras confissões, que nós não lembremos mais o número, porque
pecamos a vida inteira e nem nos preocupávamos com essas coisas. Nesses casos o sujeito
perde a conta do número de vezes que cometeu adultério ou pecou contra a castidade;
quantas vezes bateu em outra pessoa; ou um ladrão de carteira perde a conta do número de
vezes que roubou.

Quando não soubermos dar um número exato, devemos dizer algo aproximado, de modo que
dê para entender o número de vezes que foi cometido de uma maneira geral. Por exemplo: se
o sujeito foi um grande mulherengo, deve dizer alguma coisa desse tipo: “Eu cometi adultério
a vida inteira. Toda semana eu saia com duas ou três mulheres e isso foi durante no mínimo
dez anos”. Isso já dá para ter uma ideia do número, é o que é possível fazer.

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Contabilizar uma por uma não tem sentido. Até se fosse possível, por exemplo, porque o
sujeito é uma pessoa rica e tudo que ele faz está na contabilidade; se puxar os registros
contábeis ele verá os motéis que pagou, e se pesquisar ele calculará o número exato; porém
isso não é obrigatório.

No exame de consciência temos que lembrar as coisas tal como é possível serem lembradas
pela memória dentro de um exame normal. Sabemos que o exame de consciência termina
quando a pessoa, depois de ter se lembrado e anotado os pecados cometidos, percebe que não
vai sair mais nada. Ainda que a pessoa tenha como acessar registros históricos,
computacionais, que possam dar uma precisão maior, ela não é obrigada a fazer isso, pois está
além do exame de consciência normal. Ela até poderia fazê-lo, mas isso geralmente não
convém, principalmente porque raríssimamente essas coisas são facilmente acessíveis. Isso
dará uma trabalheira tão desmesurada que, quando fosse possível, está além da ideia da
Confissão.

Por exemplo. Se o sujeito faltou à missa a vida inteira ele pode pegar um calendário e contar
quantos domingos houve durante toda a sua vida. Ele pensa: “Completei sete anos com a
idade tal, aí contei todos os domingos: faltei exatamente 472 domingos, porque eu não vim
nunca”. Ele não precisa contar isso! Basta dizer: “Desde que eu nasci, nunca fui à missa. Fui
batizado, fiz a primeira comunhão e depois não fui nunca mais. Depois eu fui uma vez ou
outra”. Pronto, ele não precisa nem se lembrar quantas vezes foi, se foram três, quatro ou
cinco, ou seja, foram 472 menos tais e tais dias. Basta dizer: “Eu fui duas ou três vezes na vida,
e desde os sete anos eu nunca mais fui”. Pronto, já está confessado!

A mesma coisa acontece com a pessoa que se prostitui. Ela não se lembrará quantas vezes se
prostituiu. Deve dizer: “Eu me prostituo há quinze anos e cada noite eu tinha cinco clientes
em média, e fazia isso seis vezes por semana. Tirava apenas um dia de folga, e de vez em
quando nem a folga eu tirava”. Isso aí já está confessado.

Logo, a ideia da acusação é que nos acusemos objetivamente, como se fôssemos um


promotor, declarando a espécie e o número de vezes que cometemos o pecado.

Não existe uma definição oficial da Igreja de como se computa o número de vezes que
cometemos o pecado. Os teólogos que estudam sobre esse assunto dão indicações gerais,
baseadas no bom senso e num pouquinho de filosofia.

Essas indicações gerais dizem mais ou menos para seguir o bom senso, mas há uma que tenho
visto que ajuda muito a fazermos o exame de consciência, que é a seguinte: Quando uma
pessoa se prepara para fazer um determinado pecado de ação que exige uma preparação longa,
mas termina com uma determinada ação, tudo isso é um pecado só, não são vários.

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Por exemplo. O sujeito resolve roubar um banco e durante um ano se prepara para o roubo.
Ele vai lá olha o banco, entra nele, passa um dia pensando em roubá-lo. Depois passa uma
semana em que ele não faz nada. Depois daquela semana o sujeito compra um mapa do
esgoto, do metrô, e vai bolando as coisas. Aí numa outra semana ele planeja outra coisa. Na
outra semana vai comprar uma arma. Na outra semana vai comprar um aparelho que desliga
todos os telefones. Depois ele tenta entrar no banco e naquele dia não dá certo, ele aborta a
operação. No fim, dois anos depois, ele entra e rouba o banco. Tudo isso não são vários
pecados, é um pecado só que na verdade se consumou naquele ali.

Da mesma maneira o fulano que tenta estuprar uma moça ou está planejando um adultério.
Ele vê a mulher e planeja. Começa a seduzi-la, falar com ela, convida-a para alguma coisa, mas
tudo em vista do adultério. No fim ele comete adultério. Tudo isso, segundo a teologia moral,
é um pecado só.

No caso do banco talvez teria um pecado a mais, porque no nosso exemplo foi dito que o
sujeito comprou uma arma. Se comprou uma arma, ele estava pensando talvez em matar uma
pessoa e aí é outra história. Entra um segundo pecado, porque além de assaltar o banco ele
pensou em matar uma pessoa. Mas em princípio, se não fosse isso, quando se faz uma coisa
planejada para que um resultado aconteça, o resultado é o pecado, o resto é o planejamento.

A não ser que, no meio disso, o indivíduo tivesse se arrependido. Se o fulano pensou em
assaltar o banco, planejou um ano e disse: “Não vou fazer isso nunca mais. Meu Deus me
perdoe, eu sou um criminoso, eu devia ter mudado de ideia”. E ele muda de ideia. Porém,
dois meses depois ele volta atrás e começa a planejar tudo outra vez. Na verdade, o pecado de
roubar o banco começa depois que ele mudou de ideia. A primeira parte antes de ele se
arrepender é um pecado à parte.

Inclusive os pecados são individuais, são vários, porque não terminaram num só. Então ao se
confessar ele deve dizer: “Eu planejei assaltar um banco trinta vezes” - até o dia em que ele se
arrependeu. A partir de quando ele voltou atrás [e se confessou] até roubar, só subsiste o
pecado de ter roubado o banco.

É diferente quando os vários atos não convergem para um só. Se toda vez que um sujeito vê
uma mulher ele tem um mau pensamento, mas não está naquele momento planejando fazer
algo em concreto, porém depois aquilo acaba se tornando um adultério, nesse caso os pecados
são vários. Cada vez que ele viu a mulher e pensou mal é um pecado diferente, porque aqueles
maus pensamentos não eram um meio de chegar ao adultério. Cada vez que ele olhou era um
pecado diferente; quando aquilo acabou se tornando um adultério, não era algo que estava
sendo planejado.

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Óbvio que, se o sujeito planejou o adultério e aqueles maus pensamentos eram, cada um
deles, um fim em si, eles também são pecados em separado. Mas se foram simplesmente a
preparação do adultério, ou seja, eram simplesmente um método para preparar o adultério,
tudo se torna um pecado só, o de adultério.

Tirando esse critério que vemos nos livros de moral, de quando o sujeito prepara uma ação
pecaminosa por muitas etapas também pecaminosas e depois, ao concretizá-las, tudo forma
uma coisa só que é o resultado final (desde que as etapas sejam apenas etapas e não um fim
em si), o resto quanto ao número de vezes, nós calculamos pelo bom senso, pelo que
normalmente as pessoas entendem ou entenderiam que foi um ou vários.

E) Satisfação. — O quinto elemento da Confissão é a satisfação: depois que o padre ouve a


confissão, ele absolve a pessoa e lhe dá uma penitência. Seria algo dado como pena em troca
da absolvição, alguma satisfação que se daria a Deus. Essa penitência é sempre simbólica,
porque não existe compensação que se possa dar a Deus por um pecado cometido.

Um pecado diante de Deus é uma ofensa tão gigantesca que nem a condenação ao inferno
repara o preço do pecado! Essa é a grande verdade, não existe reparação possível! A única
reparação possível pelo pecado foi a que Jesus fez na cruz, ele pagou a verdadeira penitência.
Jesus, ao morrer crucificado, pagou o preço pelo nosso pecado.

Nós, quando vamos fazer a penitência, estamos fazendo algo simbólico. É como aqueles
contratos que têm que ter um preço: a pessoa vende uma empresa (que na verdade quer
doar), mas para fazer o contrato ela não pode dizer que doa e sim que vende. Então ela estipula
que a outra parte pagará R$ 5,00 pela empresa. Seria como comprar uma companhia de
aviação, uma companhia de petróleo, um banco, por R$ 5,00: enquanto a pessoa não pagar
os R$ 5,00 o contrato não está cumprido, a empresa não é dela. Ela tem que ir lá pagar os R$
5,00 e pegar o recibo. Obviamente que os R$ 5,00 não pagam o valor da empresa, pois o
proprietário quis doá-la.

Na Confissão acontece algo parecido. O padre dá uma penitência simbólica e a pessoa tem
que pagar a penitência, mas ela não paga o preço real do pecado. O que paga o pecado mesmo
é o resgate que Jesus fez na cruz.

A doutrina diz que a pessoa está perdoada mesmo antes de cumprir a penitência: ela está
perdoada a partir do momento em que recebe a absolvição. Depois de acusar seus pecados, o
padre diz umas palavras do rito da Confissão e pronuncia a fórmula absolutória que é: “Eu te
absolvo dos teus pecados, em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”. A pessoa é obrigada
a cumprir a penitência, mas não é somente depois de cumpri-la que ela é perdoada; ela já
estava perdoada antes.

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A menos que o padre estipule quando a penitência deve ser cumprida (o que geralmente ele
não faz), a pessoa tem uma certa liberdade para fazê-lo, ou seja, não precisa cumprir a
penitência imediatamente, pode ser no dia seguinte, dois dias depois. Inclusive ela tem a
liberdade de receber a comunhão antes de cumprir a penitência. O que ela não pode é deixar
a penitência para muito tempo depois, como se estivesse se esquecido dela.

F) Absolvição. — Falamos que existia um sexto elemento. O sexto elemento, que não está
na lista do Catecismo, é a própria absolvição. Talvez ela não seja listada como sexto elemento,
porque é o padre quem dá a absolvição e os outros cinco elementos quem faz é o penitente:
o exame de consciência, o arrependimento, o propósito, a acusação e a penitência. Talvez eles
não listaram por causa disso.

Mas, de certa maneira, o penitente tem que fazer algo, que é o que lhe incumbe em todo
sacramento. O sacramento opera tanto mais profundamente quanto maior for a devoção com
que nos aproximamos dele, quanto maior for a fé e o amor com que nos aproximamos.

Para receber o perdão dos pecados, basta que se tenha feito essas coisas corretamente: o exame
de consciência, o arrependimento, o propósito e a acusação e posteriormente a penitência.
Mas o nível da graça que a pessoa receberá no sacramento depende (e isso é de fé) do grau de fé
e devoção com que se aproxima do sacramento. O efeito do sacramento não é igual para todos,
pois os pecados são perdoados não porque são apagados de uma lista, mas porque foi
infundida a graça. Então, dependendo do grau de fé e devoção com que alguém se aproxima
do sacramento, essa graça será infundida num grau maior ou menor e o efeito de preservação
contra o pecado é maior ou menor de acordo com a devoção com que a pessoa se aproxima.

É possível perceber que vem algo além dessa devoção pessoal, algo que não foi produzido pela
devoção, mas que depende dela, sim, como o exemplo da mulher que sofria fluxo de sangue:
todos estavam tocando em Jesus, muita gente estava doente, muita gente estava com câncer
e nem sabia e Jesus não curou ninguém. Mas aquela mulher que se aproximou com fé e
devoção foi curada, pois “saiu uma força” de lá de dentro.

Por isso, quando formos nos confessar devemos observar um sexto elemento: procurar
cultivar a fé e o amor com que vamos receber a absolvição, não só o arrependimento, o
propósito, etc. Assim como a mulher que padecia de fluxo de sangue tinha certeza que não
estava encostando num simples homem, devemos cultivar aquela certeza de que, ao
confessarmos e recebermos a absolvição, não estamos nos aproximando de um simples padre:
ter a certeza de que a graça não virá por causa do sacerdote, mas do Cristo ressuscitado que
vive realmente e é aquele que de fato canaliza toda essa graça.

Devemos cultivar aquela certeza de fé, ao contemplar que não estamos nos confessando
diante de um sacerdote (apesar de ele estar ali), mas diante do próprio Cristo que está ouvindo

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e é ele mesmo quem vai nos absolver — porque se fosse só o padre seria uma bobagem,
poderíamos ser absolvidos com um poste. Devemos ter a certeza de que é o Cristo que está
ouvindo através do padre, que nos dará uma força não só para perdoar os nossos pecados,
mas para infundir em nós a graça que nos vacinará contra a fraqueza do pecado. Apesar de
não percebermos essa força no momento da absolvição, é realmente lá que a recebemos. É
quando o padre absolve que a Confissão tem o seu efeito.

A experiência mostra que nós não percebemos o efeito na hora. Na momento da absolvição
não sentimos nenhum choque, nenhuma descarga elétrica. Mas é só sairmos da Confissão e
voltarmos para a vida real, que normalmente já percebemos (se fizemos uma confissão bem
feita) que alguma coisa agiu e que não foi só o nosso propósito, nossa fé, nossa devoção, nem
o arrependimento, o exame de consciência ou só a acusação. É uma coisa bem diferente de
um efeito psicológico. É algo suave, que está agindo aparentemente sem ter força. É assim
que percebemos. Não é uma descarga elétrica! Percebemos uma certa leveza ou, melhor
dizendo, notamos que estamos mais fortes contra o pecado.

Além disso, há ainda outra coisa, outro efeito de quando a pessoa está arrependida dos
pecados, mas está obcecada por algum específico, porque às vezes houve uma tentação muito
grande: alguém a feriu e ela já perdoou, mas aquela mágoa permanece e ela não consegue se
livrar dela; ou até mesmo quando se trata de algo contra a castidade, alguma tentação mais
obsessiva na qual a pessoa não consente e que rejeita prontamente, mas percebe que aquilo
está forçando-a. Curiosamente, quando ela se confessa, depois que sai da Confissão aquilo
sumiu! Aquela mágoa de fundo em que a pessoa não consentia, mas que estava obcecando-
a, desaparece do seu coração.

Não significa que isso acontecerá todas as vezes, mas geralmente sempre acontece essa
percepção de se ter ficado mais forte contra o pecado. Aquele propósito ficou muito mais
enraizado: não podemos provar matematicamente o que é sobrenatural, mas aqui
começamos a perceber o gostinho da coisa, quer dizer, é a própria graça!

A luta contra o pecado e o progresso espiritual

Uma coisa muito semelhante a essa costuma acontecer também na Eucaristia, porém de
outro modo. Na Confissão nós temos a certeza de que o pecado foi perdoado, coisa que não
sentimos, mas apenas cremos. Se sentirmos algo, provavelmente isso é mais psicológico; nós
cremos e fim. No entanto, além disso nós percebemos que realmente existe ali um antídoto
contra a fraqueza do pecado: nós ficamos mais fortes contra ele. Isso é uma coisa fantástica!

Na comunhão esse tipo de coisa é mais evidente. Conhecer essa realidade leva pouco a pouco
a uma confiança nos sacramentos, especialmente aquelas definições que vimos na aula
passada (que o sacramento é um instrumento, uma causa instrumental que o Cristo usa).

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Nós vemos claramente que é assim. Claro, desde que a pessoa não se aproxime deles de
mentira: se uma pessoa vai lá só para experimentar, ela não acredita. Devemos ser sinceros,
devemos preencher esses requisitos todos: estar arrependido dos pecados, ter a vontade de não
cometê-los mais, ter a fé; mas o resultado é além da preparação que colocamos.

Então pouco a pouco vamos vendo que isso é como que uma antecipação da vida espiritual.
Quando ela começa a se desenvolver, a intimidade com Deus vai se tornando cada vez mais
frequente. Santa Teresa descreve a vida espiritual como uma sequência de sete moradas. A
intimidade divina na sétima morada é a máxima possível abaixo do céu. Entre uma
extremidade e outra, a intimidade divina vai crescendo cada vez mais, de uma maneira nítida.

O primeiro ponto em que começamos a percebê-la é nos sacramentos, principalmente a


Confissão e mais ainda a Eucaristia. É suave, é só para aqueles que se aproximam
corretamente, mas é nítido. O próprio Deus está usando destes instrumentos para mostrar
que realmente quer ser nosso amigo, que está lá. E há um elemento sobrenatural em tudo
isso: é uma parte da tremenda oficina onde Jesus trabalha, na qual não há só sacramentos,
mas os sacramentos são tremendamente importantes.

Síntese dos elementos da Confissão

Recordemos o que foi colocado nesta aula. Existem cinco ou seis elementos na Confissão:

O exame de consciência, onde devemos fazer um inventário dos pecados graves.

O arrependimento, onde devemos reconhecer os erros e detestá-los, pelo menos


racionalmente — não é necessário detestá-los sensorialmente, e.g.: o fulano que foi canibal a
vida inteira, sempre vai gostar de comer carne humana, isto é, “Eu detesto porque Deus não
quer, então eu não vou comer carne humana”, mas ele não vai conseguir dizer que o gosto é
horrível, pois certamente ele gostava. É suficiente que detestemos racionalmente os pecados.
De fato, com o tempo acabamos detestando-os também sensorialmente, é óbvio, porque
essas coisas não são desregradas por convenção, elas vão contra a natureza humana, ou seja,
se a natureza humana está gostando é porque ela está depravada. Mas na medida em que se
vai consertando, a começa a detestar de fato.

Depois tem o propósito, que normalmente é a parte mais delicada, é onde temos que tomar
mais cuidado, pois devemos ter certeza que estamos rompendo definitivamente,
universalmente e imediatamente com todos os pecados graves.

Tem a acusação, onde devemos acusar-nos com sentimento imparcial de quem está sendo
promotor e está dizendo “Eu fiz isso, eu sou culpado”, sem morbidez, mas claramente. Não é

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dizer “Desculpe, eu fiz isso, mas o senhor vai entender...”, não, não! Devemos dizer: “Eu fiz isso,
a espécie é essa e o número é esse”.

Depois devemos nos preparar para a absolvição com uma fé e um amor tremendo, o maior
que pudermos: uma fé de que estamos em contato direto com Cristo. Aliás, pela graça, nós
estamos mesmo em contato direto com o Cristo. Nos sacramentos nós estamos de um modo
especial.

E depois temos que cumprir a penitência, sabendo sempre que não haveria penitência no
mundo capaz de pagar pelos nossos pecados, se Jesus não tivesse morrido na cruz. Na verdade,
Jesus pagou tudo e ele está querendo que paguemos um pouquinho só para dizer que não
pagamos nada, é sempre simbólico.

Os padres costumam dar como penitência rezar três Ave Marias, rezar cinco Pai Nossos, rezar
uma dezena do Rosário. Alguns que são um pouco mais “caxias”, dependendo do que o
fulano fez, mandam rezar um Terço inteiro, mas normalmente eles pedem uma coisa muito
leve, porque mesmo que rezemos um terço isso não é nada. Um terço, ou vinte terços, ou um
ano de terços não pagaria absolutamente nada, não faria diferença, o preço é infinito!

Já que o preço é infinito, então tanto faz. Nunca ninguém vai dar uma penitência para um
ano. Geralmente o máximo que costumam dar algumas vezes (quando é um padre muito
bom) é mandar rezar um terço, se a pessoa pisou um pouquinho mais na bola. Mas
normalmente são poucas orações: três Pai Nossos, cinco Ave Marias ou uma Ave Maria, ou
ler um salmo, como por exemplo o salmo 50.

Considerações finais

Cumprindo os cinco requisitos tradicionais da confissão com certeza a pessoa estará


perdoada, porque inclusive terá o mínimo de fé e amor necessários para ser perdoada. Mas é
evidente que, quanto mais profundo for o grau de fé e amor que tenha para receber a
absolvição, maiores serão os efeitos. Porém, isso não vai fazer diferença no fato de os pecados
serem perdoados ou não: cumprindo os cinco requisitos que estão no catecismo, com certeza
ela está perdoada, mas o efeito da infusão da graça pelo sacramento da Confissão é muito
diferente.

O perdão virá, mas o efeito benéfico da graça é fora do comum. E isso é tão verdade que a
doutrina cristã e a encíclica do Papa Pio XII, Mediator Dei sobre a liturgia, dizem que a
Confissão é uma coisa tão boa que não precisamos esperar pelo pecado para nos
confessarmos, basta que tenhamos algum pecado na vida.

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Suponha, por exemplo, que passaram dois meses e a pessoa não cometeu nenhum pecado,
nem grave, nem leve; ela não tem do que se confessar. É um caso meio difícil. Que não se
tenha pecado grave poderia e deveria acontecer, mas que não tenha pecado leve é um pouco
difícil, apesar de que com a graça pode também acontecer. Mesmo assim o Papa Pio XII diz
que seria bom nos confessarmos.

Mas como confessamos se não cometemos nenhum pecado? Pegamos um que já cometemos,
já confessamos e já nos arrependemos, e confessamos novamente. Diz-se assim: “Padre,
graças a Deus não cometi nenhum pecado grave desde a última confissão, mas eu queria
renovar a confissão de um pecado que eu fiz quando era jovem”. De preferência, devemos
colocar um pecado grave para termos certeza que estamos arrependidos. Não podemos
colocar um pecado de que não estejamos arrependidos. Dos pecados graves devemos estar.
Então procuramos um pecado que já fizemos na vida e renovamos a confissão dele, dizendo:
“Eu renovo a confissão [de tal pecado] apesar de já ter sido perdoado dele”. E a doutrina diz que
isso é muito bom!

Se na Mediator Dei não estiver exatamente com essas palavras, deve estar quase assim. Nos
livros bons de teologia tem isso: é possível confessar mesmo que não se tenha nenhum pecado
atual não perdoado, renovando a acusação de algum pecado já cometido. Tem que ser
verdadeiro: não podemos inventar um pecado que nunca existiu.

Com isso vemos claramente que a confissão não é só para perdoar os pecados, é para infundir
a graça e dar força para não pecar mais, senão não isso teria sentido. A pessoa não cometeu
nenhum pecado nos últimos dois meses e colocando novamente um pecado da vida passada
que já foi perdoado. Ela deve colocá-lo senão a confissão não tem matéria, e os sacramentos
têm que ter matéria e forma.

No batismo a matéria é a água, a fórmula são as palavras do batismo. Na confissão a matéria


é a acusação dos pecados (a manifestação externa do penitente de que está arrependido) e a
forma é a absolvição. Então devemos nos acusar de alguma coisa.

Apesar do pecado ter sido perdoado, é louvável que se faça isso. Nesse caso, porém, todo o
benefício da confissão não virá tanto da confissão em si, mas da fé e do amor com que se
aproxima dela. E a pessoa receberá aquele choque; não na hora da absolvição, mas depois. Ela
perceberá que uma força veio de lá, que essa força é a própria graça e que essa graça existe
realmente. Não há como prová-lo nesse nível matematicamente, mas isso não nos engana,
isso existe realmente, é o próprio Cristo que estava lá agindo. E é algo não apenas para
testemunharmos “Não, é verdade, que engraçado. Olha só, aconteceu de novo”; isso para o
nosso bem: nós crescemos na santidade, nos tornamos mais fortes contra o pecado e o nosso
grau de graça aumenta.

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Portanto, a fé e o amor são uma parte absolutamente importante da confissão,
principalmente naquelas pessoas que estão abandonando o pecado. Devemos crer realmente
que estamos nos aproximando do Cristo, e é isso que estamos fazendo através do
cristianismo. O cristianismo é uma união cada vez mais íntima com Cristo e, através de
Cristo, com Deus e com toda a Santíssima Trindade.

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Aula 3 – PECADO GRAVE

Índice
1. Pecado grave e pecado venial
2. Elementos do ato pecaminoso
3. Plena advertência da inteligência
4. Pleno consentimento da vontade
5. Regras sobre a dúvida quanto ao consentimento

1. Pecado grave e pecado venial

O que é pecado? Como reconhecemos o que é pecado e como se dá a diferença entre pecado
grave e pecado leve? Essa é uma diferença que existe na teologia: i) pecados graves, dos quais
devemos nos arrepender totalmente e ter um propósito firme de não mais cometê-los; ii) e os
pecados leves que são inúmeros, e com muita santidade e ajuda da graça de Deus nós
podemos chegar inclusive a evitar todos eles habitualmente, porém geralmente isso não se faz
logo de começo. Seria algo quase inumano exigir que a pessoa imediatamente fizesse o
propósito de largar inclusive todos os pecados leves. Isso seria muito bom, mas nem sempre
as pessoas conseguem-no de modo imediato.

Ocorre que nem sempre está clara a distinção do que é pecado leve. Já dos pecados graves não
há desculpa alguma, é uma exigência claríssima.

Quando nos confessamos, devemos abandonar todos os pecados qualificados como graves
ou mortais. Os pecados graves são conhecidos como mortais; os pecados leves, como veniais.
São veniais porque em latim venia é perdão. Quando os advogados dizem no tribunal “data
venia” é como se dissessem: “Queira me desculpar”.

Os pecados veniais são, pois, aqueles mais facilmente perdoados, inclusive nem é necessária a
confissão para ser perdoado deles. Já no caso dos pecados mortais o meio ordinário é a
confissão, apesar de poderem ser perdoados sem ela. Mesmo que sejam perdoados sem a
confissão, como pode acontecer por um grandíssimo arrependimento profundo, em que
Deus pode conceder o perdão imediatamente, até mesmo antes da confissão, no entanto eles
obrigam que nos posteriormente confessemos.

E como sabemos se um pecado é grave? Quais são os pecados graves? Como os distinguimos
dos outros e o que significa isso? Essas questões serão tratadas nesta aula.

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Os pecados graves são aqueles que, ao cometermos, perdemos a graça de Deus que tínhamos
adquirido pelo Batismo, pela Confissão ou pelos sacramentos, ou por um arrependimento
profundo. Perdemos todo o organismo espiritual que tínhamos e pelo qual participávamos
da vida divina – aquele organismo que, na medida em que vai se desenvolvendo, vai
produzindo a santidade dentro de nós. Por um pecado grave o sujeito perde completamente
a graça. Já os pecados veniais não eliminam a graça.

2. Elementos do ato pecaminoso

Segundo o catecismo tradicional, para que um pecado seja grave deve haver três coisas: i)
matéria grave, ii) plena advertência da inteligência e iii) pleno consentimento da vontade. Isso
significa que, para que algo seja considerado pecado grave, deve ser um ato plenamente
humano.

Na Suma Teológica, Santo Tomás de Aquino diz que existem atos humanos e atos de homem.
Os atos de homem são todos os atos que são feitos por um ser humano, mas nem por isso são
propriamente humanos. O ser humano é um animal racional. Logo, um ato totalmente
privado de razão e de vontade, não é humano. Por exemplo, se alguém chega perto de um
fogão pensando que esteja apagado e põe a mão nele para pegar algo, mas o fogão está a 300°
de temperatura: antes de entender e querer o sujeito já tira a mão de lá. Isso é um ato reflexo:
foi um ato de um ser humano, mas não um ato humano porque não foi uma coisa racional,
isto é, não foi algo pensado, deliberado, advertido, consentido.

Muitas vezes também, quando fazemos algo, a coisa é tão rápida que nem entendemos o que
aconteceu. Por exemplo: Tem uma criança passando numa rua, está meio na neblina, o farol
estava fechado e o motorista avançou o sinal e não percebeu que a criança estava lá. Quando
viu, tentou desviar, mas atropelou a criança. Isso é um ato de homem, mas não é um ato
humano, pois não foi uma coisa entendida, deliberada, consentida. Obviamente essas coisas
nunca poderão ser pecado mortal. Se nós perdêssemos a amizade com Deus por uma coisa
dessas, Deus inclusive seria injusto, porque está tratando como inimiga uma pessoa que não
tem culpa alguma.

Para haver um pecado grave é preciso existir um ato. Para que este ato seja plenamente
humano ele tem que ser plenamente advertido e plenamente consentido. Então a primeira
coisa que devemos analisar quando examinamos se um ato é pecado grave ou não, é
justamente isso: se há plena advertência e pleno consentimento.

Alguém poderia dizer que isso é mais ou menos óbvio, porque as coisas involuntárias não são
pecado grave. Isso é verdade, mas também há uma coisa: entre o totalmente involuntário e o
totalmente voluntário, há uma faixa intermediária onde podemos ter uma meia culpa. Essa

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faixa intermediária de que vamos falar, muitas vezes não é pecado grave, mas também não é
totalmente involuntária; é o que chamamos de pecado leve.

Um dos motivos para haver pecado leve é que não houve plena advertência e pleno
consentimento, mas também não foi totalmente involuntário, conforme falaremos mais
adiante. O pecado leve não acontece somente quando o ato foi totalmente involuntário.
Existem também matérias leves, coisas que são pecado e, mesmo que forem feitas com plena
advertência e consentimento, não são graves porque a matéria não é de pecado grave.

3. Plena advertência da inteligência

O que é a plena advertência e o pleno consentimento? A plena advertência é um atributo da


inteligência, um atributo do ato inteligente: o ato inteligente humano tem que ser
plenamente advertido. De modo geral pode-se dizer que uma ação foi plenamente advertida
quando a pessoa entendeu claramente o que estava fazendo. Noutras palavras, é entender a
malícia do se estava fazendo.

Do ponto de vista moral, o que é “entender a malícia” para haver plena advertência? Não
significa que é necessário ter sido avisado formalmente que tal coisa era pecado. Não é
necessário saber por estudo ou por uma notícia formal, que tal coisa é pecado. Se fosse assim,
só os teólogos cometeriam pecado, porque no fundo só eles sabem exatamente o que é pecado
e o que não é pecado de um ponto de vista bem formal. Da mesma maneira, só um advogado
cometeria um crime, porque os homens comuns não conhecem o Código Penal, já que não
estudaram. Mas de fato, se cometerem qualquer um daqueles crimes eles são responsáveis. O
sujeito então não precisa ter estudado a coisa, porque senão só advogado cometeria crimes e
só teólogo cometeria pecados.

Logo, para entender a malícia basta que se perceba de alguma maneira a malícia da coisa.
Também não é necessário que entendamos claramente a essência da malícia, ou seja, “isso é
um roubo, isso é um furto, isso é um adultério, isso é pecado disso ou daquilo”. Basta que se
perceba a malícia, ainda que de uma maneira confusa.

Dissemos clara, mas agora estamos falando confusa. Parece contraditório, mas queremos
dizer que a advertência deve ser clara de modo que o sujeito esteja percebendo o que está
fazendo, e pode ser confusa no sentido de ele não precisa ser capaz de definir qual o tipo de
pecado está fazendo. Basta que perceba: “Isso é uma coisa má, isso não está cheirando coisa
boa, mas eu nem sei o que é. Não sei se isso é adultério, assassinato, aborto. Se é falar mal, se
é contra o contrato”.

Se a consciência mostra que Deus não gosta daquilo, que a coisa não é boa e há maldade, isso
já é advertência plena. Não é necessário que o sujeito saiba formalmente, que tenha estudado,

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nem sequer saiba explicar qual é a coisa errada que está fazendo. Desde que ele perceba
claramente que está fazendo alguma coisa que não está “cheirando bem” no sentido moral,
isso já é plena advertência.

Além disso pode acontecer uma outra coisa que também não desculpa da plena advertência.
Às vezes a pessoa não tem a plena advertência porque há muito tempo leva uma vida má. Por
exemplo: Fulano é um criminoso que mata, estupra, aí chega em casa e dá um tabefe na sua
mulher e nem percebe que aquilo é um pecado grave. Se alguém é casado e dá uma surra na
sua esposa, isso, do ponto de vista cristão, é um pecado gravíssimo. Mas o fulano mata todo
dia, rouba, trafica, tem uma vida irregular, trai a mulher o tempo todo; se ele der um tabefe
na mulher achando que tem motivo, ele pensa que está fazendo um favor para a mulher, que
está colocando-a na linha, que haveria pecado se ele não desse o tabefe.

Nesse caso ele não adverte nada, não percebe a malícia do ato, mas essa falta de advertência é
consequência dos pecados que ele cometeu e que endureceram a sua mente, a sua consciência.
Nesses casos não há desculpa para a plena advertência: é pecado sim! Quando ele receber a
graça e se converter, quando for se confessar e cair em si, ele dirá: “Meu Deus, o que eu fiz?
Como eu tratei a minha mulher? Eu fui um monstro!”. De fato ele era um monstro e nem
percebia, porque durante o dia fazia mil vezes pior.

A plena advertência em coisas do direito natural é exigida nessas circunstâncias quando se


trata de uma pessoa que já tem boa fé, que já tem uma consciência razoavelmente formada.
Senão, na verdade não é necessária plena advertência. Há uma referência clara a isso no
primeiro capítulo da epístola aos Romanos (1, XX), quando São Paulo fala: Olha, eu estou
indo para Roma, mas aí é uma terra dissoluta onde as pessoas bebem, fazem orgia, praticam
homossexualismo, têm escravos, compram gente, mandam gente para o Coliseu, fazem
miséria e eles não tiveram ninguém que lhes explicasse que tudo isso era errado. Na Judéia
nós tivemos os profetas, então eles já estão avisados. Na Grécia eles tiveram os filósofos, que
no fundo ensinaram uma moral muito parecida com a cristã. Agora aqui em Roma nunca
ninguém ensinou, o pessoal faz isso e acha que é um direito: Ah, a mulher já está enchendo o
saco, vamos matá-la, ela é minha propriedade. E acham que é normal mandar matar o escravo,
jogar as pessoas aos leões, fazer orgia toda semana. E se você lhes perguntar, mas isso é pecado?
Responderão: Imagina, pecado? O que é isso?

Eles não sabem. Então ser desculpados por não terem plena advertência? Em hipótese
alguma, porque caíram nesse estado por causa de todos os outros pecados que fizeram antes,
razão pela qual se tornaram totalmente insensíveis. E tanto é verdade que, na hora em que
eles começam a ouvir o cristianismo e se convertem, dizem: “Meu Deus, como eu pude ter
feito isso?”. Na verdade, no fundo eles sabiam, mas eles próprios se cegaram.

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A falta de plena advertência só desculpa o pecado grave quando se trata de uma consciência
já formada. E mesmo numa consciência plenamente formada existe um dever dos cristãos de
estudarem a doutrina, pelo menos o mínimo, para informarem-se das coisas. Se houver uma
negligência muito evidente da pessoa em aprender o mínimo da doutrina cristã, ela é
responsável pelos pecados que cometer sem advertência.

É difícil acontecer uma negligência patente de não se interessar pelas coisas de Deus entre as
pessoas que hoje em dia se convertem com seriedade ao cristianismo. Isso acontecia mais
frequentemente quando toda a sociedade era cristã, onde havia alguns que eram cristãos
quase que por osmose e descuidavam dos deveres mais elementares.

Nesses casos, quando o fulano teve uma vida muito dissoluta ou tem negligência crassa em
aprender o mínimo de doutrina compatível com o seu estado, ele é culpado mesmo se não
houver plena advertência. Contudo, supõe-se que um médico, um advogado, um
empresário, devam aprender mais doutrina cristã sobre esse ponto do que uma pessoa
comum. No caso de um padre, ele tem que saber muitíssimo mais sobre isso, e também se
torna culpado mesmo se não houver plena advertência.

Digamos assim: Numa pessoa de consciência bem formada, de acordo com o seu estado, para
haver um pecado grave deve haver plena advertência – significa que o indivíduo tem que
perceber claramente o que está fazendo e advertir pelo menos confusamente a malícia do que
está fazendo. Confusamente significa que ele percebe realmente a malícia, mas não sabe
explicar no que ela consiste. A consciência está acusando e isso já é suficiente. Como se
dissesse: “Isso não é coisa boa. Eu nem sei o que é isso, mas eu vou fazer”. Ele sente que está
fazendo uma coisa errada. Quando existe plena advertência está presente um dos elementos
do pecado grave, porque tem que ser um ato plenamente humano.

Depois tem que haver também o pleno consentimento. Isso significa que o ato deve ser de tal
maneira voluntário que o sujeito possa dizer com sinceridade que fez porque quis, e que se
não quisesse fazê-lo estaria em condições de não ter feito. Isso é o que se chama plenamente
voluntário. De todas as coisas que ouvimos e que tentam explicar o plenamente voluntário,
a melhor que encontramos é quando o sujeito pode dizer plenamente “Eu fiz porque quis;
além disso eu tenho certeza que, se naquelas condições eu não tivesse querido fazer, eu não
teria feito, ou seja, eu estaria em condições de não o ter feito”.

Para haver um pecado grave, além da matéria grave, são necessárias essas duas condições que
definem um ato plenamente humano, não apenas um ato de homem: a plena advertência e o
pleno consentimento. Na prática às vezes isso causa alguma dificuldade de discernir se foi
plenamente voluntário e plenamente advertido. E é muito bom que essas dificuldades
aconteçam, porque na medida em que vamos tentando compreender isso, vamos
conhecendo melhor a nós mesmos, vamos como que tomando posse de nós mesmos. Na

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medida em que essas dificuldades acontecem e tentamos resolvê-las, vamos nos tornando
mais conscientes de nós mesmos. E isso também é uma boa oportunidade para estudarmos
estes temas e nos aprofundarmos no conhecimento da moral.

Algo importante para entendermos o sentido disso é que tais coisas aplicam-se muito aos
pecados por pensamento. Deus quer que sejamos bons não somente nos atos externos, mas
também nos internos, ou seja, que sejamos puros em todos os sentidos.

Existem duas paixões muito fortes no ser humano, que de uma certa maneira coordenam
todas as outras: são as paixões do concupiscível e do irascível. As paixões do concupiscível são
aquelas que buscam o prazer e as paixões do irascível são aquelas que foram dadas ao ser
humano para defender a própria vida. Irascível vem da palavra ira.

Os pecados contra a castidade, os pecados de uma vida sexual desregrada, são do


concupiscível; e os pecados de não perdoar, de revoltar-se, aborrecer-se com os outros, brigar,
irar-se, não perdoar a si próprio, são provenientes das paixões do irascível. Essas duas paixões
costumam produzir em nós pecados por pensamento, elas são sua principal fonte: são
pecados contra a castidade e pecados de ira contra próximo.

Deste modo fica claro o que é o plenamente consentido e plenamente advertido.


Normalmente, na maioria dos seres humanos, dificilmente um pensamento surge por livre e
espontânea vontade. Os pensamentos, na maioria dos seres humanos, voam! Associamos
uma coisa com outra e essa com aquela, e o pensamento está continuamente numa balbúrdia.

Por isso, quando estamos em ocasião de cometer um pecado por pensamento, geralmente o
pensamento não surgiu porque nós quisemos; ele teve origem de uma maneira automática,
nós não procuramos pensar naquilo. Isso se dá geralmente e principalmente numa pessoa que
já tem uma boa consciência.

Uma pessoa que anda no temor de Deus, raramente vai começar um pecado de mau
pensamento de caso pensado, de forma premeditada. Esses pensamentos surgem
automaticamente na nossa mente, por associação de ideias, então demora um certo tempo
para percebermos que estamos pensando no assunto. Quando eles começam, nós nem
advertimos que estamos pensando na coisa. Quanto mais delicada é a consciência da pessoa
mais rápido isso acontece. Às vezes é uma coisa quase que instantânea, mas tem a passagem:
i) surge o pensamento e não percebemos; ii) num segundo momento nos damos conta de que
estamos pensando em tal coisa; iii) aí pode acontecer num terceiro momento em que
percebemos a malícia da coisa. Dependendo do assunto e da consciência da pessoa, esses três
momentos podem até ser bem distintos.

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Para um cristão, é imediatamente visível que certos pensamentos têm malícia. Se um cristão
pensar em surrar a própria mulher, na mesma hora ele perceberá que aquilo tem malícia. Se
um cristão pensar numa revista erótica, ao reparar que está percebendo o assunto, ele vai
perceber a malícia.

No entanto, há casos de coisas diferentes que não são tão fáceis de identificar, onde as etapas
são três. Por exemplo: A pessoa vê um objeto, começa a gostar dele e resolve pegá-lo, mas só
depois ela percebe que aquele objeto não é para levar, aquilo está à venda. Isso acontece
muitas vezes: deveria ser evidente que tal coisa está sendo oferecida num lugar, mas não é
gratuita, está sendo vendida, mas o sujeito quer pegá-la. Ele percebe que está pegando, mas
só depois se dá conta: “Ah, isso aqui não é amostra grátis, isso está à venda”. Em outras
palavras, ele percebeu claramente o que estava fazendo, mas demorou mais um tempo para
perceber onde estava a malícia da coisa.

Portanto, pode acontecer algumas vezes que o sujeito não perceba o que estava fazendo,
depois percebe o que estava fazendo, mas só depois percebe a malícia. A partir do momento
em que ele percebeu que estava fazendo tal coisa e percebeu claramente a malícia daquilo, aí
está a advertência plena. Dependendo do pensamento, a diferença entre perceber que está
pensando e perceber a malícia é quase zero. Outras vezes pode haver uma diferença, mas
quando essas coisas se completam existe a plena advertência.

4. Pleno consentimento da vontade

Daí para frente a coisa é da vontade. O sujeito já percebeu o que estava acontecendo. O que
ele faz agora, aceita ou não aceita aquilo? Geralmente as respostas do ser humano são três.
Quando percebeu que era uma coisa má, ele recusa. Se é um mau pensamento, ele se distrai.
Por exemplo: Um fulano está aborrecendo o João, aí João começa a pensar: “Nossa, esse cara
merecia morrer, se ele morresse seria tão bom, ele tem que morrer”. Depois João percebe:
“Ué, mas querer que ele morra e matar é a mesma coisa. Isso é pecado, eu estou querendo a
morte do meu irmão”. Ele já teve advertência, então o negócio passa para a vontade.

Se ele percebeu que aquilo é um pecado ou uma coisa má, ou algo que tem malícia:
i) Ou ele consente e diz: “Eu quero que ele morra mesmo, esse cara tem que morrer”. Nesse
caso ele percebe que poderia ter dito não e quis dizer sim, então teve pleno consentimento e
é pecado grave, se for matéria grave.
ii) Ou ele recusa e diz: “Não! Eu tenho que parar de pensar nisso. Deus não gosta disso e, por
amor a Deus, eu não quero pensar mais nisso. Na verdade, eu vou perdoar esse fulano. Ele
merece morrer, mas eu não quero que ele morra, eu quero que ele viva, fique bom, seja um
santo homem. Está perdoado”. Nesse caso ele não consentiu.
iii) Outras vezes o sujeito simplesmente nem consente, nem não consente, mas continua
pensando no piloto automático e vendo “como seria bom se ele morresse mesmo”.

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Aparentemente ele não está consentido, mas também não está recusando e isso é a mesma
coisa que consentir. Deixar o pensamento permanecer numa coisa dessas e não recusá-la
prontamente, para todos os efeitos práticos, na esmagadora maioria das vezes é a mesma coisa
que consentir.

Pode acontecer que, no meio de uma atividade muito exigente, esses pensamentos venham e
nós sequer percebemos que eles estão vindo, ou até percebemos, mas não dá tempo de prestar
atenção, porque estamos nos concentrando em outra coisa e não temos tempo de dizer não a
eles, estão indo quase que no automático. Isso não é um ato humano, é um ato de homem.

Para saber se houve ou não consentimento, a pergunta é aquela: naquela situação em que eu
estava, se quisesse ter recusado eu conseguiria ter recusado, eu poderia ter recusado e não
recusei porque quis não recusar? Se a resposta for sim, é plenamente consentido. Se a pessoa
disser: “Não, a coisa estava tão exigente que eu não tinha nem tempo de prestar atenção
naquilo direito. Aquilo veio, mas na verdade nem se eu quisesse eu poderia ter recusado,
naquelas condições em que me encontrava”. Nesse caso não há pleno consentimento.

Muitas vezes a vontade começa a se envolver com a coisa antes que haja a plena advertência,
isso acontece muitas vezes em pensamentos. Salvo engano, em moral se chama o “movimento
primeiro do primeiro”: às vezes o sujeito percebe a coisa e mal está entendendo a malícia, mas
já está consentindo; logo depois ele percebe realmente mais claramente a malícia e volta atrás
quase que imediatamente, porém de uma certa maneira já consentiu.

Isso não é suficiente para ser pecado grave, por um motivo muito simples: raciocinando bem
claramente dentro de si e fazendo uma introspecção bem profunda, o sujeito pode chegar à
conclusão que não dava para não querer nem que se quisesse; era impossível porque a coisa
não estava clara. Ele realmente quis, mas foi o primeiro instante do querer quando a própria
inteligência não estava enxergando muito claro. Então a vontade foi levada, mas não foi
plenamente deliberada; não se pode dizer que ele foi plenamente responsável. Examinando
sinceramente, o sujeito não teria podido efetivamente não fazer aquilo de uma maneira plena.
E tanto é verdade que, geralmente, quando acontece isso, logo em seguida nós voltamos atrás.
Na verdade, nós não voltamos atrás, mas retificamos nossa ação uma vez tendo posse de todos
os elementos para a existência de um ato humano. Nesses casos pode até ser pecado venial,
mas nunca será pecado grave.

Numa pessoa que realmente tem temor a Deus, os pecados mais evidentes são rapidamente
advertidos e consentidos, ou não. Com um pouquinho de prática percebemos a diferença de
um e outro, e isso é muito bom para o nosso discernimento, a fim de nos conhecermos e nos
tornamos cada vez mais senhores de nós mesmos.

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Isso inclusive é muito importante para o maior de todos os mandamentos que é o amor.
Amar é doar, e o maior amor é doar a si mesmo: se alguém não é plenamente dono de si, não
consegue doar-se a si mesmo. Isso pode ser tanto para com uma esposa, para com Deus, para
um filho, um pai. Quer dizer, quanto mais somos donos de nós mesmos, mais podemos nos
doar, porque amar é doar-se.

5. Regras sobre a dúvida quanto ao consentimento

Ainda assim a moral cristã faz uma distinção interessante: as pessoas têm dúvida se
consentiram ou não consentiram num ato, o que ocorre muitas vezes com os pensamentos.
Os livros de moral, Santo Afonso de Ligório inclusive, dão uma regra para essas coisas.
Quando a pessoa examinou se teve plena advertência, se percebeu a malícia, se teve
consentimento pleno (se tivesse querido, ela poderia não ter feito e ela fez porque realmente
quis, ou seja, se ela quisesse não ter feito ela não teria feito); ela vai examinando e não chega a
uma conclusão. Às vezes ela não chega a uma conclusão porque não se conhece a si mesma.
Esse exame, aliado principalmente à prática da oração, faz com que nos conheçamos a nós
mesmos de uma maneira cada vez mais plena, e essas coisas vão se dirimindo.

Entretanto, às vezes é muito frequente causar dúvidas. O sujeito vai para a confissão e diz:
“Eu fiz isso, mas não sei se consenti ou não”. Nós dirimimos a questão normalmente por
presunção:
i) Uma pessoa que costuma cometer aquele tipo de pecado constantemente; se ela está na
dúvida se consentiu ou não, presume-se que ela consentiu.
ii) Uma pessoa que dificilmente comete aquele pecado, que já está acostumada a um longo
tempo a não cometê-lo, que repele essas coisas, pois procura cultivar a paciência ou a
castidade, que habitualmente não peca nisso e está acostumada a rejeitar tais pensamentos; se
ela está na dúvida, presume-se que não consentiu.

Isso é muito fácil de entender. Se o fulano faz isso o tempo todo e ainda está na dúvida, é
porque de fato ele fez e não está querendo admitir, não está querendo ser sincero. Por outro
lado, se o sujeito não faz aquilo, tem uma consciência delicada e está acostumado a evitar
aquele pecado, é porque não fez, porque se realmente tivesse feito ele teria percebido e estaria
dizendo: “Eu fiz porque eu quis e está evidente. Eu fiz porque eu quis, querendo mesmo”.

Portanto, quando vamos nos confessar depois de uma prática cristã sincera, e estamos na
dúvida, normalmente usamos esse critério: se a pessoa está acostumada a não consentir e está
com uma dúvida, presume-se que ela não consentiu; se ela está acostumada a fazer, se cai
habitualmente ou com frequência naquilo e está na dúvida, é porque ela consentiu mesmo e
deve se confessar.

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Finalmente tem uma última pergunta. E se o fulano se enganar? Se ele disse: “Eu estava na
dúvida, mas como normalmente eu não consentia, então eu disse que não havia consentido”.
Mas e se ele estiver enganado? Se a pessoa estiver enganada, mas está usando esses critérios
com sinceridade, moralmente ela não tem motivos para se confessar daquilo.

Para se confessar de algo é preciso ter fundamento de que cometeu pecado. Se a pessoa
examina tudo isso com clareza e sinceridade, fica na dúvida e realmente tem um histórico de
uma consciência delicada que normalmente rejeita, e não está vendo motivo claro donde
possa dizer “Eu consenti ou tenho uma presunção que consenti”, nesse caso ela não tem uma
obrigação explícita de se confessar daquilo. Caso ela tenha realmente consentido, quando
receber a absolvição será perdoada daquele pecado, porque o motivo de não confessar não
foi a intenção de mentir, nem de ocultar por vergonha, nem por querer calar, mas porque a
pessoa não soube dirimir se houve ou não consentimento. Se, apesar de tudo isso ela se
enganou, o pecado, seja lá qual for, será certamente perdoado na absolvição.

Isso daí parece burocracia religiosa, mas na verdade faz um bem enorme, pois isso ajuda a
termos um domínio. A confissão regular, em que nos acusamos dessas coisas e nos
examinamos dessa maneira, ajuda-nos a ter um domínio dentro de nós cada vez maior. Isso
nos dá um controle tremendo dentro de nós, de modo que acabamos sendo donos de nós
mesmos e mais livres, porque podemos dispor de nós mesmos de uma maneira muito mais
racional, clara, serena.

Num casamento, por exemplo, as pessoas que se casam e são assim, não doam somente a vida
externa, mas são capazes de doar-se inteiramente de corpo e alma, é a verdadeira doação de
uma pessoa à outra. Ela é dona de si para poder fazer o que entende que deve ser feito. As
pessoas que não são assim, na verdade são cada vez mais um joguete das próprias paixões.

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Aula 4 – MATÉRIA GRAVE

Índice
1. Introdução
2. O pecado como transgressão de uma ordem
3. Conceito de imperfeição
4. Conceito de pecado grave
5. Diferença entre os pecados mortais e veniais
6. Sobre a ordem da vida espiritual
7. Conceitos de Santo Tomás de Aquino sobre o pecado mortal
A) Pecados contra Deus
B) Pecados contra o próximo
C) Pecados contra a sexualidade
8. Relação entre o mandamento do amor ao próximo e a sexualidade
A) A sexualidade contém a vida humana em potência
B) A sexualidade se ordena à família
9. Papel da sexualidade ordenada na santificação pessoal do cônjuge
10. Visão geral da doutrina sobre o pecado grave
11. Papel da castidade e do amor ao próximo na ordenação das paixões humanas
12. Os mandamentos da Igreja
13. Síntese da aula

1. Introdução

Na terceira aula estávamos falando sobre a distinção entre pecado grave e pecado leve (pecado
mortal e pecado venial). Falávamos que a confissão obriga a que nos arrependamos, façamos
propósito e nos acusemos de todos os pecados mortais sem exceção. A confissão nesse sentido
tem que ser universal: não podemos nos arrepender de uma parte dos pecados graves e sermos
perdoados destes agora, e sobrarem dois ou três dos quais ainda não temos estrutura para nos
arrependermos, deixando para nos arrependermos deles daqui a seis meses. No caso dos
pecados mortais tem que ser ou tudo, ou nada, e também deve ser uma ruptura definitiva!

Existem outros pecados que se chamam veniais. Seria muito bom que nos arrependêssemos
deles e fizéssemos o mesmo propósito, mas para muitas pessoas (principalmente as que estão
começando) isso seria um peso impossível de ser contornado, uma barreira impossível de ser
vencida e impossibilitaria que as pessoas se confessassem, impossibilitaria a conversão; além
do fato de que não é esse o verdadeiro requisito.

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De fato nós veremos que, pela natureza das coisas, para recebermos a graça não há necessidade
absoluta de que nos arrependamos e façamos um propósito de todos os pecados veniais sem
absoluta exceção. Se fosse obrigatório seria um absurdo abrir-se uma exceção. Se fosse de
necessidade intrínseca da coisa, teríamos de dizer: “Olha, é dificílimo, mas eu tenho que lhe
dizer: ou é assim ou você está perdido!”. Mas de fato não é! Para que possamos receber a graça,
o sacramento da confissão e o perdão dos nossos pecados, basta que nos arrependamos de
todos os pecados mortais, mas sem exceção alguma. Exatamente por causa disso é muito
importante entendermos a natureza do que é pecado grave e distingui-lo do que é pecado
leve, para que possamos fazer as coisas devidamente. É justamente disso que estávamos
falando.

Dentro dessa linha, estávamos dizendo na aula passada que para haver um pecado grave é
necessário haver plena advertência, pleno consentimento e matéria grave, conforme ensina o
Catecismo e a doutrina universal da Igreja - que devemos saber de cór, pois são elementos da
doutrina cristã que todos os cristãos devem saber sem esquecimento para a própria facilidade
do seu adiantamento espiritual. Na aula passada estávamos falando do que era plena
advertência e pleno consentimento. Sobrou a parte mais ampla, que seria explicar o que é
matéria grave.

2. O pecado como transgressão de uma ordem

A presente aula possui conteúdo mais doutrinário, teológico e filosófico e é muito


importante que a entendamos bem, porque será uma bússola para orientar nossos passos no
início da vida espiritual.

Normalmente nós distinguimos o que se chama matéria grave de matéria leve e de outra
coisa que chamamos de imperfeição. De modo geral, o que chamamos de pecado é uma
transgressão da ordem que provém de Deus. A ordem do universo, a ordem da natureza, a
ordem das coisas, a ordenação que existe dentro da natureza humana para com todo o
universo, isso tudo vem de um primeiro princípio que é Deus. Logo, em última análise,
quando transgredimos a ordem estamos indo contra Deus.

A ordem da natureza vem do primeiro princípio que é Deus. Inclusive, Santo Tomás de
Aquino, quando fala dos modos pelos quais podemos provar a existência de Deus, coloca as
cinco vias. A primeira via é a do movimento: de que tudo que se move é movido por outro,
então chega-se a um primeiro motor. A segunda via é a da causalidade, a terceira é a da
contingência, a quarta é a dos graus e quinta é a via da ordem.

Isso tudo estou citando a modo de resumo, porque discutir as vias é uma coisa muito
profunda. Mas podemos mostrar que todas as cinco vias baseiam-se na primeira, isto é, a

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verdadeira maneira do ser humano poder provar que Deus existe por argumentos racionais é
através do movimento. Sofisticando melhor esta, cai-se na da causalidade. Sofisticando a via
da causalidade, cai-se na da contingência. Sofisticando a via da contingência, cai-se na dos
graus do ser. E sofisticando a via dos graus do ser, cai-se na via da ordem. E essa via da ordem
que é a mais ampla, profunda e complexa, que imperceptivelmente se baseia na primeira, é
normalmente aquela intuitiva pela qual as pessoas percebem que Deus existe.

Os camponeses, as pessoas simples, principalmente aquelas que tiveram contato com a


natureza e não foram deformadas ideologicamente por uma escola, quando veem a natureza,
veem a ordem das coisas e percebem que toda vez que uma coisa está ordenada é porque
alguém fez; que não existem coisas inteligentemente ordenadas sem haver um autor. Então,
vendo que existe na natureza uma ordem muito maior, elas dizem: “Alguém fez isso”; e esse
primeiro princípio que colocou essa ordem é Deus.

Na verdade, sem reduzir este argumento à primeira via ele não é muito convincente, porque
às vezes pode haver uma ordem casual. Quanto mais complexa é a ordem, a chance de haver
uma causalidade é cada vez menor. Mas em última análise, para demonstrar toda a força
probatória disso é necessário reduzi-lo à primeira via. Porém as pessoas simples, que não são
capazes dessas sutilezas, normalmente têm o sentimento racional de que existe Deus através
da ordem do universo. Esse convencimento é correto, não é ilícito, ele é válido, mas
geralmente as pessoas não têm a profundidade metafísica para, reduzindo à primeira via,
perceber que esse argumento é plenamente válido. Quer dizer, esse sentimento que as pessoas
têm da ordem para com Deus é totalmente legítimo.

Voltando ao que estávamos falando isso significa que, quando dizemos que um pecado é uma
transgressão da ordem, como essa ordem está intimamente relacionada com Deus, pois não
existiria se não fosse Deus e é através dela que o homem simples vê a Deus; se alguém a
transgredir, dependendo de que como entendemos (por exemplo a ordem da natureza) estará
indo contra Deus.

A interface do homem que vive em graça com Deus é a fé. A interface do homem comum,
racional, independentemente da fé, é a ordem, a ordem da natureza. A interface do homem
sábio, que não necessariamente vive a vida da graça (o que na prática não é possível, mas
supondo que existisse) seria a metafísica, donde ele mergulharia nas primeiras vias.

De qualquer maneira, colocar o pecado como uma transgressão da ordem é muito válido, e
equivale a colocá-lo como uma transgressão de Deus. Porque de fato não é possível
transgredir contra Deus, pois ele é inatingível. Pode-se transgredir a interface com ele, que é
justamente a ordem.

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Isso é importante porque a partir disso podemos dizer o seguinte: toda vez que existe uma
transgressão contra a ordem natural, há um pecado. Pecado é uma transgressão da ordem. E
nesse sentido poderíamos dizer que o que chamamos de pecado venial necessariamente é uma
transgressão da ordem. Todo pecado venial é uma transgressão de alguma ordem. A ordem
da natureza humana, a natureza das coisas, a natureza da sociedade era tal e o sujeito rompeu
com ela: no mínimo isso é um pecado venial.

3. Conceito de imperfeição

Nós falamos que o pecado venial está entre a imperfeição e o pecado mortal. O que é a
imperfeição? A imperfeição não é a transgressão da ordem. Ela ocorre quando o sujeito
poderia fazer uma coisa melhor do que estava fazendo e não fez, mas não é visível nenhuma
transgressão de ordem.

Tomemos o exemplo de um entregador de pizza. Ele tem um contrato pelo qual deve
entregar pizzas. Ele vai, entrega a pizza e devolve o dinheiro para o fulano que lhe deu. Faz a
entrega no horário certo, tudo certinho. Dentro da ordem que tinha sido acordada entre
ambos, ele fez o que lhe pediram, em nenhum momento foi contra a ordem. Por outro lado,
ele está indo contra a ordem se lhe mandam entregar a pizza e o faz depois de duas horas e a
pizza está gelada. Não era isso que se esperava! Ou então ele não entrega a pizza, ou diz que a
pizza é R$ 30,00 (e na verdade era R$ 20,00) e fica com R$ 10,00 – ele roubou o fulano.
Tudo isso é transgressão de ordem, é pecado; no mínimo venial.

Porém, tem um fulano que entrega a pizza e diz com toda delicadeza: “Boa noite, como vai a
senhora? Aqui está a pizza, está quentinha”. Isto faz ela dizer: “Nossa, mas que entregador
agradável, como é bom. Da próxima vez eu vou chamar esse”. Este entregador está
acrescentando coisas, está fazendo a coisa mais perfeita. E o outro não faz nada disso. Ele vai
e diz: “Pizza! É R$ 20,00! Está aqui, tchau!”. Cumpriu seu dever, não transgrediu nenhuma
ordem, mas da próxima vez a pessoa vai preferir o que foi mais gentil.

Se o sujeito percebe que pode fazer melhor, que não custa nada e não o faz, porém está
fazendo exatamente o que dita a ordem, ou seja, não foi indelicado, não foi chato, não falou
com uma voz seca; ele simplesmente não quis ir além nem se esforçar mais porque não estão
lhe pagando por isso; isso seria um exemplo do que é imperfeição. Dentro da vida espiritual
isso é uma coisa muito séria, porque as coisas da vida espiritual devem desenvolver-se de uma
maneira absolutamente extraordinária.

Aquelas pessoas que somente evitam o pecado grave e não querem saber de evitar o pecado
leve, e até as pessoas que só evitam o pecado leve, mas não querem evitar a imperfeição (só
querem fazer as coisas direitinho, não querem dedicar-se de cheio), não são aquelas que vão
se santificar.

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É mais ou menos o que acontece também na vida acadêmica, por exemplo. Quem serão os
grandes gênios da música? Quem serão os grandes médicos? Não são aqueles que dizem: “O
que está sendo exigido de mim? É estudar isso, isso e isso? Tudo bem, já fiz, agora quero me
divertir, quero ir ao cinema, etc!”. Enquanto há outros que dizem: “Não, não, isso é muito
profundo. Eles estão exigindo isso, mas eu quero mais, eu quero aprender mais. Isso aqui é
fantástico, maravilhoso. Eu quero pesquisar, eu quero ver porque é assim”. Estes último s estão
indo além da ordem, e são eles que se tornarão os grandes cirurgiões, os grandes engenheiros,
os grandes cientistas, os grandes músicos! É o sujeito que não está contente apenas em não ir
contra a ordem, ele quer mais.

Isso vale em todas as artes: quanto mais uma coisa é arte, mais isso vale. Os grandes artistas
são os que, dentro da sua ordem, não toleram sequer uma imperfeição; querem tudo ao
máximo, interessam-se por tudo. E a arte das artes é a vida espiritual, bem como o ensino da
vida espiritual.

Na verdade, essas distinções são importantes para sabermos nos guiar. No caso da pizza o
dono da firma não é nenhum santo e não quer tornar-se perfeito; como é um contexto em
que não existe arte, pois são apenas pessoas vendendo produtos e a si mesmas, tanto faz
entregar melhor ou pior a pizza. Mas numa arte isso faz diferença. E na arte das artes, que é a
vida espiritual, faz toda a diferença! É importante, porém, que percebermos a distinção,
porque entre uma imperfeição e um pecado venial há uma diferença gigantesca e temos que
ter consciência disso.

Então toda vez que alguém identifica claramente uma ordenação natural das coisas, que em
última análise vem de Deus; ou uma ordenação sobrenatural que em última análise vem de
Deus, e vai contra, esta pessoa está cometendo um pecado. Quando ela não está indo contra
a ordem, mas podia fazer melhor e não o faz porque não quer, isso é o que se chama de
imperfeição. Não é um pecado, mas enquanto não nos corrigimos dessas coisas no plano
espiritual, com certeza será muito difícil conseguirmos percorrer as moradas de Santa Teresa.

4. Conceito de pecado grave

O mais importante para nós nesse momento é diferenciarmos o que é pecado grave. Pecado
grave é aquela coisa absolutamente intolerável para a vida espiritual. Cometemos um pecado
grave? Estamos fora! Ele se chama mortal porque é como se estivéssemos mortos, morremos
para a vida da graça. São violações intoleráveis da ordem!

Mesmo nesses exemplos dá para perceber que estes pecados existem. Retomemos o exemplo
do entregador de pizza. Ele vai, faz o que deve, mas poderia fazer melhor. E o outro
entregador faz muito melhor. No fundo, um dia, se o dono da pizzaria for um homem

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sensato dentro da linha do negócio, ele mandará embora todos aqueles que só fazem o dever
e ficará com os que fazem a coisa de uma maneira brilhante. E se também ele adotar essa
política para si mesmo, aquela será a melhor pizzaria do mundo.

No entanto, há certas coisas que são absolutamente intoleráveis. Se o cliente paga a pizza com
uma nota suja e o entregador dá um tabefe nele, este entregador está despedido! É tolerância
zero, ele cometeu “um pecado mortal” em relação à pizzaria (não diante de Deus). Na hora
que o cliente telefonar para o dono e disser assim: “Vocês vieram entregar a pizza e o cara me
deu uma surra”; o dono dirá: “O que? Ele fez isso? Eu vou despedir ele já”. Então não adianta
pedir desculpa, pois o patrão dirá: “Mas como, desculpa patrão? Você foi entregar uma pizza
e deu uma surra no cliente e ainda quer que eu continue pagando você? Você está despedido,
acabou! Você está fora”.

A mesma coisa ocorre dentro de um matrimônio. Dentro de um matrimônio sério há certas


coisas que causam separação imediata. Por exemplo, o sujeito é casado e de repente acontece
algo e ele espanca a esposa. Num matrimônio bem feito, socialmente tradicional; num
matrimônio verdadeiramente cristão nós poderíamos pensar em perdoar. Mas num
matrimônio comum, se o marido der uma surra na esposa ela pede separação na mesma hora.
É o “pecado mortal” no matrimônio.

Numa sociedade tradicional o adultério também é um pecado mortal do matrimônio.


Dentro de um matrimônio cristão pode se recomendar o perdão, mas numa sociedade mais
tradicional e conservadora, normalmente se o marido trair a mulher, acabou, é separação; se
a mulher trair o marido, acabou o matrimônio. Isso é o que seria “pecado mortal” em relação.

Em toda ordem existem transgressões intoleráveis. São transgressões de tão grande porte que
causam a ruptura da própria ordem. Não é que se está simplesmente indo contra a ordem,
mas, digamos assim, ainda “dentro dela”. O sujeito quebrou a ordem, então ele está morto: o
matrimônio acabou, o emprego morreu e assim por diante.

Por exemplo, na sociedade comum normalmente se tolera um xingamento. Mas se um


diplomata é enviado como representante do Brasil na França, recebe o presidente da França
e xinga um palavrão, dizendo: “Seu filho da mãe, como é que você fez isso com o Brasil”; este
diplomata está despedido na hora! Normalmente nós não despedimos alguém por falar um
palavrão, mas se o diplomata fala um palavrão para o chefe de Estado onde ele está exercendo
a representação, acabou a carreira dele, não adianta pedir desculpas. Se fosse numa pizzaria
ele até aceitaria um pedido de desculpas, mas na diplomacia um negócio desses é “pecado
grave”, é mortal. Ele não morreu, mas a carreira dele morreu.

Então em toda ordem existem essas coisas, isto é, certos pontos que se forem transgredidos
causam a quebra da ordem inteira e o sujeito está fora! Existem certos pecados que são ditos

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mortais por causa disso, e os veniais (os leves) são ditos veniais porque “venia” em latim
significa perdão; então veniais são pecados perdoáveis.

Isso não significa que Deus não esteja disposto a perdoar os mortais. Deus está disposto a
perdoar os mortais se houver arrependimento sincero, e a confissão é justamente para perdoá-
los. Porém a doutrina diz que os veniais acabam sendo perdoados muitas vezes sem
necessidade de nenhum sacramento: às vezes, pela própria vida da pessoa, que vai
melhorando e a caridade vai aumentando. O próprio exercício do mandamento do amor
acaba perdoando os pecados veniais e a pessoa nem sabe como.

É mais ou menos o que acontece no caso do entregador de pizza: ele fez um monte de
bobagens e o patrão vai tolerando tudo. De repente ele começa a ser um super funcionário e
o patrão esquece todos aqueles erros. Sem tê-lo perdoado formalmente, o patrão perdoou os
defeitos que o entregador tinha feito antes, porque este se tornou tão bom que a própria vida
posterior dele já paga os erros anteriores.

Contudo, isso não acontece nos outros casos citados acima. Se o marido cometeu adultério e
surrou a esposa, mas se tornou uma pessoa maravilhosa; ou se o diplomata xingou o
presidente, mas mudou seu comportamento; normalmente, dentro de uma sociedade como
o tal, se diz: “Olha, ele pode ser uma pessoa maravilhosa, mas aquilo não se faz. Eu não caso
mais com ele”; ou ainda: “Tudo bem, ele virou o maior empresário do mundo, mas ao corpo
diplomático ele não volta. Eu desejo que ele seja um grande empresário, mas aqui na
diplomacia não tem mais espaço para ele, ele se queimou”.

Essa seria a diferença do pecado mortal para o venial, com a ressalva de que nos pecados
mortais, ao contrário desses exemplos, Deus está sempre disposto a receber o pecador de volta
desde que haja um arrependimento sincero. E esse perdão divino exige a confissão, a
celebração do sacramento da penitência, ainda que às vezes o arrependimento seja tão grande
que o sujeito possa estar perdoado até antes do sacramento da penitência. Porém exige-se o
sacramento da penitência para que o indivíduo seja reintegrado à Igreja, reintegrado aos
sacramentos, à Eucaristia, assim por diante.

5. Diferença entre os pecados mortais e veniais

Em tese a diferença é essa. Nós vimos o conceito dos pecados mortais, agora devemos ver
quais são eles. A ideia para entendermos quais são os pecados mortais é muito simples. Por
esses exemplos é possível perceber que os pecados mortais são uma transgressão da própria
essência da ordem transgredida; é uma transgressão tão grande, que o sujeito está
desmontando a ordem inteira.

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Vejamos o caso do casamento. Na essência do casamento está a necessidade de haver uma
comunhão de pessoas que vivam num mesmo teto. Não cozinhar direito, fazer cara feia, são
transgressões de uma ordem, mas não quebram a essência dela; pode-se conviver com uma
pessoa que está fazendo cara feia, que não faz a comida com capricho como deveria, ou até
que se recusa a fazer comida – o casal pode comer no restaurante! Porém, não dá para
conviver com uma pessoa que espanca o cônjuge, e não dá para conviver com uma pessoa em
matrimônio se ela comete adultério; com isso se está transgredindo a própria essência da coisa.

No caso da pizza é a mesma coisa. Pode-se tolerar que um entregador de pizza chegue um
pouco atrasado, não esteja vestido tão direitinho, vá com a roupa um pouco suja; mas se o
entregador espanca o cliente, não tem como continuar no serviço, pois ele está indo contra a
própria natureza da coisa.

Com a diplomacia é a mesma coisa. Diplomacia é fazer o máximo para preservar as boas
relações com o outro. Se o diplomata xinga com um palavrão o representante do governo
onde está fazendo a representação, não existe diplomacia possível: ele foi contra a essência da
coisa.

Aquelas transgressões da ordem que ainda permitem que ela fique de pé, são pecados veniais;
dá para perdoá-los porque dá para tolerar uma pessoa assim. Mas aquelas transgressões da
ordem que significam a própria abolição da ordem mesma, estas são intoleráveis: ou é o
sujeito transgressor ou a ordem!

Não dá para tolerar o entregador de pizza que surra os clientes: ou é ele, ou é a pizzaria. É
como se o patrão disse: “Esse não é um defeito que possamos aguentar, quer dizer, se nós
aguentarmos um fulano como você nós vamos à falência: morre você, ou morremos nós. Então
você está fora”. O diplomata que faz isso é a mesma coisa, acabou a diplomacia. Se um
diplomata fizesse isso seria melhor não ter a diplomacia. Então ou ele cai fora ou acaba a
diplomacia.

Portanto, aquilo que vai diretamente contra a essência da ordem, aquilo que significa a
própria anulação da ordem, isto é pecado grave e mortal. Significa que o fulano deve cair fora,
por uma exigência interna.

6. Sobre a ordem da vida espiritual

Nesse sentido, temos que entender qual é a ordem da vida espiritual, qual é a essência do que
Jesus veio fazer, qual é a essência da ordenação divina.

Um dia perguntaram a Jesus qual era o maior de todos os mandamentos. Para entendermos
o que significa isso, temos que entender o seguinte: quando Deus criou o homem, segundo

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diz a Bíblia, ele não deu nenhuma ordem explícita; o homem tinha que cumprir a lei natural,
a lei escrita na natureza. Deus não revelou através de uma formalidade escrita, de um texto,
qual era a ordem natural, mas deixou que o homem mesmo a enxergasse, e o primeiro homem
era capaz de enxergar. Deus só deu uma única ordem que era não comer de um fruto
proibido. Aparentemente ele confiava que o homem entendesse a ordem natural e a
cumprisse, sem precisar ensiná-lo explicitamente.

Como esta seria mais difícil de ele entender, Deus lhe deu a ordem formal: “Eu não quero que
você coma do fruto dessa árvore”. Ele não disse: “Não pode matar, não pode roubar, não pode
cometer adultério, não pode mentir”, não porque isso fosse permitido, mas porque Deus
imaginava que isso o homem entenderia facilmente. Ele não disse que o homem deveria
reconhecer a Deus, amar a Deus em primeiro lugar, pois imaginou que o homem entenderia
isso facilmente, já que estava num estado mais preservado. Deus só deu uma ordem.
Evidentemente, o que fosse contra essa ordem seria pecado grave, porque inclusive quando
o homem rompeu tal ordem, Deus o expulsou.

De fato havia alguma ordem que não sabemos qual seja exatamente, porque essa é uma
linguagem figurada. Com certeza não deveria ser uma árvore e uma fruta específica. Isso deve
ser uma linguagem figurada que nós não compreendemos, pois não vemos nenhuma
interpretação clara do que era isso. Entretanto, na essência era isso: havia uma ordem clara e
Deus não admitia que ela fosse rompida – era como a história da pizzaria. O homem
transgrediu e foi expulso do paraíso.

Depois que ele foi expulso do paraíso continuou a vigorar a lei natural, mas Deus então foi
dando alguns preceitos. Percebe-se que, antes de Moisés, Deus deu alguns poucos preceitos
no Velho Testamento, que são mais ou menos os preceitos da lei natural mais explicitados.
Quando veio Moisés, Deus deu uma lei: além dos Dez Mandamentos, havia mais uma grande
quantidade de leis, mais de 600. Esses mandamentos eram o que os judeus entendiam como
“a lei e os preceitos”.

Na época de Jesus, pela lei mosaica, havia cerca de 600 mandamentos. Quando perguntaram
a Jesus qual era o maior dos mandamentos, a pergunta queria dizer: “Qual destes preceitos é o
maior de todos?”. E Jesus disse: “O maior de todos os preceitos é amar a Deus de todo coração,
com toda alma, com todo entendimento e com todas as forças. Não há maior do que este”. Só
que Jesus aproveitou a ocasião e, ao invés de limitar-se a responder a pergunta, disse: “E existe
um outro mandamento que é o segundo depois deste: amarás o teu próximo como a ti mesmo”.

Ele foi além da pergunta que o rabino tinha feito. A pergunta era “Qual era o maior
mandamento”, ele respondeu e acrescentou: “Depois deste, tem outro, que é o segundo depois
desse”. E acrescentou outra coisa: “Nestes dois mandamentos consiste toda a lei e todos os
profetas”. Quando ele disse “consiste toda a lei”, significa que todas as seiscentas leis de Moisés

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se resumem nessas duas. E quando ele falou “os profetas”, ele estava se referindo à bíblia,
porque nós chamamos a bíblia com esse nome na tradição cristã, porém na tradição judaica
não havia a palavra bíblia. Aquilo que nós chamamos de bíblia era chamado de “lei, profetas
e outros escritos”. Em hebraico é “Torah Neviim Ketuvim” – que significa: a lei, os profetas
e os outros escritos. Se alguém compra uma bíblia em hebraico, não está escrito BÍBLIA, mas
TORAH NEVIIM KETUVIM – a lei, os profetas e os outros escritos.

Então quando Jesus diz que o primeiro mandamento, o maior de todos indubitavelmente é
amar a Deus de todo coração, de todo entendimento, de toda alma e com todas as forças e
que, depois desse, o segundo maior é amar o próximo como a si mesmo, e conclui que nesses
dois mandamentos estão contidos toda a lei e os profetas; quando faz isso ele está dizendo:
Nisso está contida toda a bíblia. Toda a lei divina está arquitetada em torno destes dois
mandamentos, é a essência da arquitetura, é o miolo da coisa.

É como a pizzaria. Ela foi organizada para entregar pizza. O que impede a pessoa de entregar
pizza, acaba com a pizzaria, é mortal. O que bagunça o negócio, mas não impede a entrega de
pizza, é venial, ou seja, dá para perdoar porque o serviço continua. Logo, se o patrão quiser,
dá para manter um funcionário que faça pecados veniais, desde que não impeça a entrega de
pizza. Mas se o fulano vai diretamente contra a ordem, de tal maneira que é impossível
continuar a entrega, isso é mortal.

Na diplomacia a essência é manter boas relações com os governos estrangeiros. Pode-se


tolerar qualquer coisa, mas não algo que vá diretamente contra isso.

Na passagem citada, Jesus indicou a essência de toda a bíblia do ponto de vista da lei, da
ordem. Veja bem, o que chamamos de lei é uma explicitação da ordem interna da coisa. Uma
lei que vai contra a ordem interna da coisa, não é uma lei válida.

Para funcionarem, as coisas precisam ter uma ordem. Explicitar isso para torná-lo mais claro
ou para instituir uma ordem dentro da ordem, é o que chamamos de lei. Quando, no meio
das leis de Moisés, Jesus disse quais são as maiores, ele estava explicitando a ordenação da vida
de comunhão com Deus e estava indicando o miolo dessa ordem.

O que vai diretamente contra o miolo da ordem é intolerável dentro dessa ordem: é pecado
mortal. O que vai contra a ordem, mas não a destrói na sua raiz, é o que chamamos de pecado
venial.

Com base nessa sentença de Jesus é que se pode explicar claramente o que é pecado mortal
ou não. Jesus diz que a essência da ordem de toda a Sagrada Escritura é o amor a Deus e ao
próximo. Portanto, o que vai diretamente contra isso é pecado mortal.

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No caso da pizzaria a essência do negócio da pizzaria é vender pizza. O que vai diretamente
contra isso e impede o ato de entregar pizza é “pecado mortal”. No caso da ordem divina, o
que vai diretamente contra o amor a Deus e ao próximo, é pecado mortal. Não adianta o
fulano dizer que é cristão e fazer isso. Ele não é cristão!

7. Conceitos de Santo Tomás de Aquino sobre o pecado mortal

Vamos desenvolver um raciocínio que está contido essencialmente nos escritos de Santo
Tomás de Aquino, principalmente nas questões disputadas que é o livro mais complexo dele.
O mais profundo é a Suma Teológica, mas está escrito numa linguagem simples. O mais
complexo, onde ele vai mais a fundo nas coisas (apesar de não ter chegado tão longe) é o das
Questões Disputadas.

O que nós depreendemos mais ou menos do que está escrito ali é o seguinte. O que é pecado
mortal? Pecado mortal é o que vai diretamente contra a lei de Deus. Ora, a lei de Deus consiste
no amor a Deus e ao próximo. Então o que vai contra o amor a Deus e ao próximo é pecado
mortal. Vejamos o que vai contra o amor a Deus e ao próximo.

Contra o amor a Deus não é muito difícil de entender, porque contra Deus nós praticamente
não podemos fazer nada. Deus é todo-poderoso, inatingível, inacessível e nós não podemos
fazer quase nada para prejudicá-lo. O que vai contra Deus é, por exemplo, ter raiva de Deus,
odiar a Deus, blasfemar contra Deus, não crer em Deus quando ele está nos dando os
instrumentos da fé para podermos chegar até ele.

A) Pecados contra Deus. — Nós vamos até Deus através da fé. Recusar a fé quando ela já
está suficientemente clara, seria pecado grave. Para nos aproximarmos de Deus temos que
crer. Se alguém peca diretamente contra a fé, recusando-a, está cortando o caminho para
aproximar-se de Deus. Isso é contra o amor de Deus. Então os pecados contra a fé são pecados
graves.

Os pecados contra a esperança são pelo mesmo motivo supracitado. O que é a esperança?
Nós cremos e sabemos que Deus nos ama, espera-nos e quer que cheguemos até ele. Pecar
contra a esperança seria dizer: “Eu acredito, mas já estou perdido. Eu nunca vou chegar lá,
então eu desisto. Eu sei que vou para o inferno e já estou conformado”. Isso é diretamente contra
o amor de Deus!

Um pecado contra a esperança é como, dentro de uma família, um filho dizer assim: “Eu sou
tão ruim que a melhor coisa que eu posso fazer é me suicidar. Assim meus pais ficam livres de
mim”. Se os pais estiverem ouvindo isso, isso é um golpe mortal neles. Quer dizer, é óbvio
que os pais querem os filhos, não importa a imperfeição que tenham; eles querem ajudá-los.

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Pecar contra a esperança, desesperar da salvação, vai diretamente contra o amor de Deus e é
evidente que o fulano que permanece nisso está fora da vida espiritual. Como pode estar
dentro da vida espiritual um fulano que, por algo da sua cabeça, cisma que está fora e que
não vai fazer mais nada para estar dentro?

Então os pecados que vão diretamente contra a fé, a esperança e a caridade, que são os meios
pelos quais nós nos unimos a Deus, são pecados graves: odiar a Deus, blasfemar, desrespeitar
as coisas sagradas enquanto tais.

Perceba que, se alguém chegar na frente de uma igreja e disser: “Nossa, como ela está suja,
essa igreja está imunda”; essa pessoa não está desrespeitando uma coisa sagrada, mas a
arquitetura dela, isto é, o fulano que faz a limpeza; a pessoa não está tentando atingir o
próprio Deus, nem o respeito que devemos para com ele. Às vezes a igreja está imunda
mesmo!

Às vezes o indivíduo pode ser indelicado. A indelicadeza pode até ser um pecado grave contra
o próximo, mas com certeza não é contra Deus, porque a pessoa está falando coisas injuriosas
contra um templo, porém não enquanto “coisa sagrada”. É pecado contra Deus aquilo que
desrespeita as coisas sagradas enquanto tais.

O mesmo se dá com as coisas que no fundo são explicitamente contra Deus, apesar de
indiretamente. Por exemplo, um fulano que dissesse: “Olha, o mundo inteiro foi criado todo
errado, quem fez o mundo é um idiota. Se eu tivesse feito o mundo eu faria de outro jeito. A
melhor coisa seria explodir o mundo inteiro e construí-lo com outras leis”. Ninguém faz isso,
ninguém é doido a esse ponto. Mas se alguém o fizesse, isso seria um pecado contra Deus.
Porque a ordem do universo enquanto tal é uma expressão da sabedoria de Deus: a pessoa
está indo diretamente contra Deus. Nesse ponto não tem muita dificuldade.

B) Pecados contra o próximo. — Em relação ao próximo a coisa começa a ficar um


pouquinho mais delicada. Veja só, o segundo mandamento é amar ao próximo como a si
mesmo. Então os pecados diretamente contra o amor ao próximo são pecados mortais,
porque o próprio Jesus colocou assim e ele tem suas razões, uma vez que isso faz parte da
essência da ordem da vida sobrenatural: o amor a Deus e ao próximo.

Quando estamos começando a vida espiritual nós normalmente não percebemos porque tem
que ser assim, apesar de vermos que tem uma certa lógica. Jesus, porém, sabia o que estava
falando. Portanto, o amor ao próximo faz parte da essência da vida espiritual.

O problema é entendermos o que é amor ao próximo, porque pensamos que pecado contra
o amor ao próximo é causar dano a ele: matar o próximo, cortar uma perna, furar um olho,
causar um incêndio na casa que o pobrezinho lutou a vida inteira para construir; todos

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percebem evidentemente que isso vai contra o amor ao próximo. As pessoas pensam mais ou
menos assim: causar um prejuízo ao próximo é pecado contra o próximo; se eu não causar
prejuízo não é pecado nenhum, eu não fiz mal nenhum. Porém, não é assim!

Vemos no evangelho que, quando Jesus explica o amor que devemos ao próximo, ele pede
que amemos os inimigos. E mais ainda, a frase onde talvez ele explique melhor o que é o amor
ao próximo é onde diz que devemos “rezar pelos nossos inimigos”.

Quando ele exige que perdoemos os nossos inimigos setenta vezes sete e que rezemos pelos
nossos inimigos, para bom entendedor isso explica tudo, porque só tem sentido rezar se
estamos pedindo a vida eterna. Quem reza é porque quer o paraíso, quer aproximar-se de
Deus, quer ser amigo de Deus para sempre. Só tem sentido rezar pelos inimigos e por
qualquer pessoa, se rezamos pela salvação e pela vida eterna dela. Ora, isso é o maior bem do
mundo! Isso é muito mais do que pedir para ela a terra inteira, o Reino da Inglaterra, a
Presidência da República, uma fortuna como a do Bill Gates! As coisas mais fantásticas que
se poderia desejar para uma pessoa, são um nada perto de desejar-lhe o céu.

Desejar para uma pessoa um casamento feliz, uma família numerosa, cheia de sítios, casa de
campo, iates, prosperidade; desejar-lhe uma boa fama, que ela seja querida por todos, seja
bem falada pela imprensa; desejar que ela ganhasse no primeiro turno caso se candidatasse à
presidência; desejar que ela ocupasse o cargo de secretário-geral da ONU e fosse vista pelo
mundo inteiro; desejar-lhe essas coisas e não a vida eterna é nada, pois tudo isso é nada perto
da vida eterna!

Então “rezar pelos inimigos” significa que você deve querer-lhe um bem absolutamente
inimaginável. Quando Jesus diz que devemos rezar pelo inimigo é muito mais do que desejar
que tudo de bom e de melhor possa acontecer-lhe nessa vida. Isso na verdade significa uma
benevolência fora do comum: para a pior das pessoas deve-se desejar o maior de todos os bens;
imagine para as outras que não são [as piores pessoas]!

Jesus então pede a benevolência para com todos. Benevolência, isto é, o amor ao próximo,
significa desejar-lhe de coração o maior de todos os bens. No fundo, só pode amar o próximo
quem ama a Deus, porque amar o próximo verdadeiramente é querer o bem dele, e o bem
dele é a vida eterna, é o próprio Deus. Se alguém não ama a Deus, não tem como estimar esse
bem. Se uma pessoa não ama a Deus, não pode desejar Deus para os outros, porque para si
mesma isso não significa nada! Então, na verdade essa pessoa não ama o outro; ela até pode
ter-lhe uma simpatia, mas não é alguém que verdadeiramente quer o bem dele.

Portanto, o amor ao próximo está indissoluvelmente ligado com o amor a Deus. Esse amor
significa uma benevolência enorme para com o próximo, e tudo que vai diretamente contra
essa benevolência é pecado grave.

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Por exemplo, xingar alguém como quem está querendo machucar. Não se enquadram aqui
os xingamentos por reconhecer que o fulano é um incompetente e não trabalha direito,
dizendo por exemplo: “Não contrate esse sujeito, ele é um ignorante”. Nesse caso trata-se de
uma avaliação técnica e isso não supõe malevolência. Poderia ser inclusive com o próprio
filho da pessoa, caso ela tenha um filho retardado e venha um grande empresário, dizendo:
“Olha, eu quero contratar o seu filho, porque você é tão inteligente e o seu filho deve ser também
assim. Então eu vou contratá-lo”. O pai diz: “Olha, desculpe, eu amo meu filho, eu quero o de
melhor para ele, mas infelizmente você não sabe o que aconteceu: ele nasceu retardado! Ele é
um retardado, um ignorante. Ele é um débil mental literalmente falando”. Este pai não está
xingando o filho, está contando a realidade. Ele quer o bem dele, deseja o céu para ele, mas
tem que reconhecer uma avaliação técnica. Não é nesse sentido que Jesus está falando!

Entretanto, se alguém xingar uma pessoa por ter perdido a benevolência para com ela, comete
pecado grave. Em teoria ele pode até desejar que a pessoa vá para o céu, mas não quer isso
muito profundamente, pois está chateado com ela e quer que ela vá para “aquele” lugar. Se
for sincero é pecado grave! Isso está escrito no próprio evangelho: Vocês ouviram o que está
no Antigo Testamento ‘Não matarás’, então vocês acham que matar é um pecado grave e
vocês têm razão. Mas eu, Jesus, digo a vocês que aquele que chamar seu próximo de cretino,
será réu do fogo do inferno.

Jesus está assemelhando a atitude de quem xinga alguém de cretino à atitude de quem matou.
No fundo ele matou, mas como não quer sujar as mãos de sangue, não quer ficar depois com
remorso de saber que matou, não quer ser reconhecido por todos como assassino; como
também não quer ir para o inferno e não quer chegar a essas coisas porque dá trabalho matar
uma pessoa, então ele xinga o sujeito de “cretino”. Jesus coloca isso como pecado grave.

A melhor de todas as descrições disso está contida num texto da Teologia Moral de Santo
Afonso, onde ele comenta o amor ao inimigo. Esse texto é tão importante que foi traduzido
para o português e colocado na página do site cristianismo (www.cristianismo.org.br).
Procurando a página do cristianismo e percorrendo o índice, é possível encontrar um texto
de Santo Afonso de Ligório chamado “Sobre o amor ao inimigo”, no qual está explicado
exatamente este ponto: o que é o amor de benevolência para com o próximo. Lá diz que tudo
aquilo pelo qual você suprime um amor de amizade com alguém e equivale a um sinal de
inimizade, é pecado grave!

Por exemplo: O pai está discutindo com o filho. De repente o filho diz: “Ah, velho quadrado,
para com isso, para de encher o saco!”. Evidentemente estas palavras magoam e a pessoa sabe
disso; naquele momento isso é uma declaração de inimizade. Ele não é verdadeiro inimigo,
no sentido de que vá brigar com o pai a vida inteira, mas naquele momento ele não se

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comportou como alguém que quer uma sociedade com o pai para a vida eterna. Ele aceitou
a provocação e xingou.

Além disso o texto diz, por exemplo, que também é pecado grave quando alguém briga
conosco e não cumprimentamos mais aquela pessoa de caso pensado: encontramos a pessoa,
ela nos diz bom dia e não respondemos.

Isso é pecado grave, porque significa dizer: “Você está fora da lista dos meus amigos”. Porém,
um dia aquela pessoa pode se converter e entrar no céu. Quando o outro chegar lá, São Pedro
vai dizer: “Ah, que bom que você chegou aqui, tem um fulano aqui que é muito seu amigo”.
Quando ele chega para cumprimentá-lo, o outro diz: “Ah, você? Você está aqui? Não, eu não
quero conversa com você.”. São Pedro diz: “Ahn? Como é que você falou? Você não quer conversa
com ele? Então sinto muito, não tem lugar aqui para você”.

Não tem sentido um desejo assim, pois o céu é a felicidade perfeita. Então todos que estão lá
são irmãos uns dos outros. Não há classes dentro do céu de modo que alguém diga: “Você está
aqui e eu estou lá e nós não nos falamos. Eu não me misturo com você, inclusive eu estou com
bronca de você desde que nós estávamos na terra. Então já que você está aqui, ótimo, fique, mas
você lá e eu aqui, nós não nos falamos por toda a eternidade”. Isso é inconcebível! Devemos,
pois, tratar as pessoas como se já estivéssemos no céu. Tudo que vai contra isso é pecado grave.

Também é pecado grave excluir alguém da lista de amigos por falta de benevolência. Se a
pessoa exclui alguém da lista de seus amigos por motivos técnicos, isto é, porque fulano é
perigoso e a pessoa tem que evitá-lo para a segurança de sua família, é outra história. Quando
o fulano estiver no céu e a pessoa encontrá-lo lá, ela deve diz: “Olha, eu não falei com você
porque naquela época você era um assassino, mas agora que você está aqui, dá-me um abraço,
querido! Eu sempre quis que você viesse para cá.”. Nesse caso é outra história, é um motivo
técnico, não é por rancor.

Ademais, se um sujeito faz parte de uma lista de pessoas que se formaram e convida todos
para uma festa de cinquenta anos de formatura, mas tem alguém que brigou com ele e então
ele não convida tal pessoa de propósito, só por causa disso; isso também é pecado grave,
porque o sujeito excluiu a outra pessoa da sua lista de amigos. Ele poderia excluí-la se na
última festa ela ficou bêbada e quebrou todas as janelas e portas. Nesse último caso, o sujeito
está excluindo a outra pessoa porque não quer detonar a sua casa, não por falta de
benevolência.

Roubar também é a mesma coisa, quer dizer, quando alguém rouba é evidente que causará
prejuízo para a pessoa. O roubo é pecado porque inclusive se está causando um prejuízo
concreto, um prejuízo material. Quando se causa um dano para alguém de caso pensado, não

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há a menor dúvida, todos entendem. O problema é entender que, quando uma pessoa nega
a benevolência que deve ter para com alguém, está cometendo pecado grave.

Se alguém nos rouba, podemos entrar na justiça para reaver as coisas roubadas, bem como
denunciar o fulano para que ele não roube outras pessoas. No entanto, não podemos fazê-lo
por desejo de vingança, porque seria pecado grave.

Devemos denunciar um estuprador pois ele vai estuprar outras pessoas, e inclusive porque
isso faz parte do amor que devemos a elas. Porém, não podemos fazê-lo por raiva do
indivíduo, pois devemos querer o bem dele.

Da mesma maneira o juiz pode e deve condenar os réus à pena justa, porém não por ódio e
sim porque isso é necessário para a defesa da sociedade contra a desordem e o crime. Por
exemplo: Sabemos que a lei impede um juiz de julgar um caso quando ele está envolvido nele,
mas suponha que um juiz fosse julgar o estuprador da sua própria filha.
i) Se no seu coração ele disser: “Eu já perdoei esse homem, quero tudo de bom para ele, que se
converta, mude de vida, seja um homem de bem, mas eu tenho que condená-lo à pena de tantos
anos de cadeia, porque isso é o que está na lei e é necessário para a proteção da própria sociedade.
Além disso ele ainda não se converteu e se eu soltá-lo ele vai estuprar a filha do meu vizinho”;
se ele fizer assim, está tudo correto. Ele é um juiz justo, correto, está cumprindo seu dever e
inclusive é virtuoso.
ii) No entanto, se ele disser: “Olha, esse daqui é o estuprador da minha filha. Agora eu vou ter
o gosto da vingança! Como sou um juiz justo eu vou dar a pena correta, mas eu odeio esse fulano.
Ainda bem, a maior vingança foi eu mesmo ter dado a condenação para esse homem”. Isso é
pecado grave, porque ele está odiando o inimigo, perdeu a benevolência para com ele. Ele não
quer o bem do sujeito e não seria capaz de rezar pedindo a sua salvação. Ou então se ele rezasse
seria uma coisa irrisória, porque ele quer a salvação, mas não entende exatamente o que é e
não consegue perceber que está pedindo mais do que todos os bens possíveis que poderia
estar pedindo. Isso é pecado grave!

Então toda vez que vamos contra o amor a Deus e contra a benevolência para com o próximo,
estamos cometendo pecado grave.

A ira, de modo geral, só é pecado grave quando vai dirigida contra o próximo. Quando não
vai dirigida contra o próximo, ela é apenas uma desordem. Isso ilustra muito bem a diferença
de um pecado mortal para um venial. Por exemplo: Fulano perdeu o emprego de uma
maneira injusta. Ele está revoltado, não se conforma e passou dois dias pensando somente
naquilo. Não dormiu direito, não comeu direito. Chegou no meio da rua e chutou uma
pedra contra a parede. Tudo isso é uma desordem, porque se o fulano já perdeu o emprego
não tem mais o que fazer. Se ele pode recorrer à justiça, entre na justiça e reaja seu emprego;
se não pode fazer isso, acabou!

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Qualquer revolta interior é uma desordem, porque a nossa psicologia não foi feita para isso.
A psicologia humana foi feita para fazer o bem, para elevar-se a Deus, pensar em coisas
maravilhosas, louvar a Deus. Aqueles dois dias que o fulano passou se angustiando à toa
(porque não iam resolver nada) foram dias de vida espiritual perdida, jogados na latrina!

Isso é desordem evidente, mas não está indo contra Deus nem contra o próximo. Portanto,
não dá para ser pecado mortal dentro dessa linha; não é matéria grave. Não vai contra o
“edifício”. É uma coisa, digamos assim, tolerável. É como o entregador de pizza que chega
constantemente atrasado, mas faz o seu trabalho: está indo contra a ordem, mas é algo
tolerável.

Entretanto, se o fulano está todo revoltado contra a justiça, chutou a pedra e num
determinado momento diz assim: “Eu queria estrangular quem fez isso. Se ele estivesse aqui
na minha frente eu ia acabar com a vida dele”; isso aí já foi contra a benevolência e é pecado
grave, mesmo que isso não fosse verdade, ou seja, se a pessoa estivesse ali de fato o fulano
jamais iria estrangulá-la nem acabaria com sua vida. Claro, desde que fosse plenamente
advertido e plenamente consentido, o que não é difícil de ser percebido rapidamente pelas
pessoas que vivem no temor a Deus. É muito fácil percebermos se temos que evitar uma ação
ou não. A distinção, se fizemos uma coisa que é pecado grave ou não, é clara.

C) Pecados contra a sexualidade. — Contudo, Santo Tomás adverte que há um problema


nisso tudo, uma vez que não são só esses casos, mas há coisas implícitas. Em princípio, se o
pecado grave fosse só isso, pecado grave seria o que vai contra Deus e contra a benevolência
ao próximo de uma forma aberta. Mas Santo Tomás de Aquino adverte que existe um outro
capítulo na questão dos pecados graves, os os pecados contra a sexualidade, que não está na
lista de Jesus.

Jesus falou que toda a lei divina se resume no amor a Deus e no amor ao próximo; não parece
que está aí a sexualidade. No entanto, Santo Tomás de Aquino diz que não parece, mas está:
a sexualidade está dentro do amor ao próximo. É que nos dias de hoje as pessoas levam uma
vida tão desregrada que já desvincularam uma coisa da outra e não mais percebem que a
sexualidade está contida no amor ao próximo.

8. Relação entre o mandamento do amor ao próximo e a sexualidade

Os motivos principais são dois:

A) Primeiro, que a sexualidade envolve a vida humana. A sexualidade não é como comer um
bombom de chocolate, que é um prazer quase que em si. Apesar de um bombom alimentar,
ele não alimenta quase nada. Chupar uma bala ou comer um bombom destina-se mais ao

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prazer do que à alimentação, mas não se pode dizer que envolve uma vida humana. Além
disso, escutar uma música também é um prazer em si. Já o prazer sexual envolve uma vida
humana, pois é evidente que o sistema reprodutor foi feito para que, através dele, nós não só
geremos um ser humano, mas formemos uma família. Na sexualidade humana não basta
gerar o ser humano para dar-lhe a vida; depois se deve cuidar dele.

A galinha gera o pintinho que, quando sai da casca do ovo, pode se virar sozinho ou quase
sozinho. Muitos animais fazem o ovo e nem esperam que ele choque. Eles vão embora e
quando nasce o filhote, ele se vira sozinho. No caso do ser humano, porém, não basta
reproduzi-lo através da sexualidade. Para poder desenvolver-se plenamente ele tem que ser
mantido numa família, e a família só existe onde houver sexualidade. Quer dizer, a família é
uma consequência natural do amor dos esposos, que provém de uma intimidade sexual.

Portanto, todo o amor e carinho que devemos aos filhos, depende do amor dos esposos, e o
amor dos esposos depende da sexualidade. Então a sexualidade inclui a dignidade da vida
humana, primeiro porque ela é biologicamente necessária para gerar o ser humano.

“A dignidade que o ser humano tem – isso são palavras de Tomás de Aquino – é
compartilhada com a dignidade da sexualidade”. A sexualidade contém em parte a dignidade
que a vida humana contém - a sexualidade contém uma participação da dignidade da vida
humana. Se a vida humana possui uma dignidade que deve ser respeitada (direitos humanos),
a sexualidade humana, por conter a vida humana em potência, possui também uma grande
parte da mesma dignidade que a vida humana tem em si. Portanto, o respeito que devemos
ao próximo, devemos também à sexualidade.

A sexualidade não é um objeto que possa ser usado à vontade, assim como o ser humano que
é usado e desusado à vontade como muita gente faz. Muitos ditadores, imperadores e patrões,
se não houvesse lei trabalhista, tratariam o ser humano como se fosse um mero objeto, pois
esquecem que aquilo não é um objeto e tem uma dignidade. Hoje fazemos com a sexualidade
a mesma coisa que os grandes empresários e imperadores faziam com os seres humanos
quando não havia lei trabalhista: tratamo-la como se não tivesse dignidade alguma e fosse um
mero objeto do nosso prazer.

Assim sendo, o respeito à sexualidade humana - segundo Santo Tomás de Aquino - está
contido dentro do mandamento do amor ao próximo, porque este mandamento se baseia na
dignidade da vida humana e a sexualidade humana compartilha dessa dignidade, enquanto já
contém o ser humano em potência. Esse é o primeiro argumento.

B) Nesta mesma linha, porém, existe um outro argumento ainda mais forte, principalmente
para os cristãos.

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Nós falávamos que devemos respeito à sexualidade humana não só porque ela reproduzirá
um ser humano, mas porque esse ser humano precisa de uma família e essa família não se
mantém se não houver uma vida sexual regrada, pois onde há uma vida sexual desregrada,
não é possível construir uma família ordenada para o ser humano. Em vista disso, há uma
questão muito importante que é a do matrimônio e da família.

Para explicarmos toda a relação da vida sexual com o mandamento do amor ao próximo,
temos que colocar alguns pontos teóricos, mas que são chaves para entendermos.

O que é o matrimônio? Esse é o ponto chave. O matrimônio foi elevado à sacramento depois
que veio Jesus. Antes de Jesus o matrimônio existia, mas não era sacramento. Então para
entendermos o que é o matrimônio à luz da doutrina cristã, temos que separar claramente: i)
o que é matrimônio antes de Jesus e ii) o que é matrimônio depois de Jesus.

i) Antes de Cristo. O matrimônio existe desde que a humanidade foi criada, isto é, antes da
vinda de Jesus. Na linguagem da bíblia o matrimônio foi criado no paraíso terrestre. Adão
estava no paraíso terrestre, não era o paraíso celeste, não era ver Deus face a face. Adão tinha
uma vida física, natural, só que em um grau de espiritualidade muito maior do que temos
hoje. Se Adão perseverasse até o fim com todas aquelas facilidades espirituais do paraíso
terrestre, seria admitido um dia no paraíso que entendemos hoje: a visão de Deus face a face.

Nesse paraíso terrestre, Adão não se sentia bem sozinho e sentiu falta de uma companheira.
Deus então criou uma companheira, diante da qual Adão exclamou: “Esta sim, é carne da
minha carne e osso dos meus ossos”. E Deus uniu-os em matrimônio, dizendo: “O homem
deixará seu pai e sua mãe e viverá com sua esposa, e não serão mais dois, porém uma só carne”.
Dali para frente o ser humano começou a se casar e, mesmo decaído do paraíso, já havia
matrimônio. É o que chamamos de matrimônio de direito natural.

Desse ponto de vista o matrimônio faz parte da ordem da natureza, o que é muito fácil de
entender. O matrimônio é um contrato de direito natural entre duas pessoas, pelo qual elas
dão uma à outra o direito sobre os próprios corpos para uso naqueles atos que a natureza
estabeleceu para a procriação da prole. Isso é o matrimônio de direito natural, o “contrato” de
direito natural. O homem é dono do seu corpo e a mulher é dona do seu; um doa ao outro o
seu corpo para aqueles atos que, segundo a ordem natural, a natureza instituiu como sendo
capazes de gerar a prole, ou seja, o ato sexual normal.

Qual a finalidade deste contrato? Trata-se de um contrato da natureza, porque o próprio ser
humano se casa movido por um instinto natural. Não foi Deus que inventou o matrimônio
enquanto Adão não sabia de nada; o próprio Adão sentiu falta de uma companheira. É isso
que ocorre com os seres humanos: numa certa idade o homem sente falta de uma

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companheira e o relacionamento que deseja ter com ela inclui atividade sexual normal —
aquela que, por sua natureza, será capaz de produzir a prole.

Mas qual a finalidade disso? Pela doutrina tradicional o casamento possui três finalidades. A
primeira é a formação de uma família, a geração da prole. A segunda é o auxílio mútuo dos
esposos. Nesse sentido, uma pessoa que saiba que não vai ter filhos também pode se casar,
desde que não exerça atos que não são aqueles instituídos pela natureza para produção da
prole.

Mesmo que ele saiba que já é velhinho e não vai ter mais filhos (porque a esposa já é velhinha
ou não é fértil) ele pode se casar, já que a finalidade do matrimônio não é só a procriação da
espécie, mas também o socorro mútuo. Porém ele não pode, pelo direito natural, exercer atos
que não sejam aqueles que a natureza instituiu para produzir a prole, mesmo que saiba que a
prole não vai sair. Nesse sentido o matrimônio não prevê o coito anal, o coito interrompido
ou outras formas de atividade sexual que não sejam o ato sexual normal. Isso não está dentro
do acordo da lei natural.

Está dentro do acordo da lei natural, as pessoas que exerçam esses atos [instituídos pela
natureza] ainda que saibam que a esposa é estéril, desde que tal esterilidade não seja culpa
deles. Se o marido esteriliza a esposa ou a si mesmo, ele está indo contra a ordem da natureza.
Por isso que a anticoncepção, quando modifica o ato sexual que a natureza fez, esterilizando
propositalmente ou temporariamente uma das partes, é uma violação do direito natural.

A terceira finalidade do matrimônio é o que chamamos tecnicamente de remédio da


concupiscência. Certas pessoas estão muito bem de vida, têm servos, criados, não precisam do
auxílio de uma esposa e não sentem falta da companhia dela, porque são egoístas. Elas
também não podem ter prole, porque são estéreis, já estão velhas. Porém elas percebem que
não conseguem ficar sem sexo: se não casarem, vão estuprar as pessoas, vão adulterar ou serão
perseguidas por pensamentos obsessivos o tempo todo. Então resolvem casar porque senão
teriam uma vida sexual desregrada. Isso não é uma coisa ilícita, é correto — se bem que não
seria bom que a pessoa casasse assim.

O casamento de direito natural pleno é o que engloba as três finalidades: 1) o fulano deseja
formar uma família, e se ele não puder (porque descobre que é estéril), não é por ser contra o
seu desejo, ele gostaria de ter filhos; 2) ele quer ter a alegria de contar com uma companheira
que o ajude nas dificuldades e também quer ajudá-la; 3) e ele faz isso também porque poderá
praticar melhor a castidade tendo uma esposa do que caindo em irregularidades.

A pessoa pode se casar, no direito natural, tendo um desses motivos como principal. O ideal
seria que o motivo primordial fosse o primeiro, porque esse é o primeiro e principal motivo.
O segundo motivo também é importante. Mas o fulano que casasse principalmente por

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remédio da concupiscência, não estaria errado desde que não excluísse os outros motivos,
pois os outros fazem parte do contrato.

Se colocássemos tudo junto, o contrato de direito natural seria mais ou menos o seguinte: é
o indivíduo que entrega a uma outra pessoa, de maneira única e exclusiva (não vai ser com
vários parceiros) e indissoluvelmente (significa até a morte), o direito sobre o próprio corpo
para aqueles atos que a natureza instituiu como capazes de produzir a prole. E faz isso tendo
por finalidade: primeiro, formar uma família; segundo, o auxílio mútuo dos esposos; terceiro,
o remédio da concupiscência se for necessário — que normalmente é necessário dentro do
direito natural, porque sem a ajuda da graça não é possível evitar o pecado; e as pessoas não
consagradas à vida religiosa não conseguirão evitar o pecado contra a castidade se não se
casarem.

Contudo, mesmo se casando, sem não houver a ajuda da graça também não dá para evitar o
pecado, mas o casamento é o remédio que a natureza instituiu. A natureza vai até aí; para
suprir tem que haver outro, mas esse é um remédio correto. E a pessoa que não segue uma
vida religiosa, uma vida monástica, uma vida de católico praticante, de doação plena com
Deus, não consegue evitar o pecado contra a castidade se não se casar. No âmbito da natureza,
é o recurso disponível.

Isso é o casamento do ponto de vista do direito natural. Não é obrigatório que ele seja feito
em cartório nem com cerimônia, religiosa, cívica, social, nada. Pela doutrina cristã, antes de
Jesus e antes que a Igreja exigisse que entre cristãos o casamento fosse celebrado na igreja,
qualquer acordo sério valia.

Por exemplo. Se um rapaz quisesse casar com uma moça e lhe dissesse em segredo:

— Olha, eu te amo, eu te adoro, quero formar uma família contigo. Você quer se juntar
comigo?
— Mas, espera lá, isso é para sempre ou não? Responde a moça.
— É para sempre. Eu vou ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte
nos separe.
— Você promete mesmo, eu posso confiar? Pergunta a jovem.
— Claro! Eu te amo, é verdade!
— Mas você não vai sair com outras mulheres? Diz ela.
— Não, é só com você. Você vai ser a minha única esposa.
— Está bem, se for assim eu aceito. Responde a jovem.
— Então ótimo, vamos morar juntos!

Segundo a doutrina cristã estas pessoas já estão casadas e indissoluvelmente ligadas, elas
fizeram um contrato sério e dentro dos termos da natureza.

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A Igreja hoje, pelo direito canônico, exige que as pessoas façam isso diante do padre e das
testemunhas, pois a natureza humana é tão fraca que a pessoa diz que promete e depois diz:
“Não, você não ouviu direito!”. O outro responde: “Como eu não ouvi direito? Eu ouvi sim,
você falou isso”. O primeiro diz: “Eu falei isso? Mas eu não estou lembrado”. Quantas vezes
falamos algo a uma pessoa e para nós está claro, mas depois a pessoa diz: “Ué, eu falei isso?
Não, eu não lembro disso”; e ela está sendo sincera.

Então dentro da história da Igreja chegou um momento em que ela falou: “Vamos parar com
isso. Agora, para o casamento ser válido tem que ser na frente do padre, com assinatura, com
testemunhas, padrinho, madrinha. Se a pessoa disser que não lembra, nós vamos consultar o
arquivo”. Numa cerimônia pública, dentro da igreja, onde todos viram, como a pessoa dirá
que não se lembra? Quem é que casou na igreja e pode dizer: “Mas eu não lembro?”. Só se ele
estiver com Alzheimer. Mas a foto prova, o documento prova, não há mais desculpa.

Até Jesus havia isto. Como as pessoas normalmente percebiam que isso era uma coisa sagrada,
a cerimônia do casamento tornou-se uma cerimônia religiosa praticamente em todas as
religiões, porque é uma coisa muito séria e tem que ser muito clara e explícita. Para ser válido,
um casamento privado teria que ser uma coisa clara como essa, porque senão nós não
sabemos se é uma aventura ou um contrato verdadeiro.

Adão e Eva e os primeiros seres humanos, antes de se depravarem, provavelmente sabiam


disso, tinham uma consciência mais clara do direito natural. A humanidade foi se depravando
depois, em consequência dos próprios pecados.

Em suma, o matrimônio como contrato de direito natural é isso: são duas pessoas que dão
uma à outra o direito aos próprios corpos, para exercerem os atos que a natureza instituiu
para a continuação da prole, dentro de um acordo onde formarão uma família. Esse acordo
exige a univocidade (unicidade entre os esposos); a perpetuidade até a morte (senão não teria
família, pois ela se dissolveria rapidamente); exige que isso seja para constituir uma família
(portanto para reprodução); exige o auxílio mútuo dos esposos, senão não vai ter família (o
filho é gerado, mas não se consegue educá-lo) e também pressupõe o remédio da
concupiscência.

ii) Depois de Cristo. O grande problema é que esse matrimônio, do jeito que está aí,
principalmente no estado de humanidade decaída, impede o desenvolvimento da vida
espiritual, ou seja, a pessoa que se casa neste matrimônio de contrato natural pode esquecer
a vida espiritual. Na prática, o matrimônio é uma coisa passional, cheia de ciúmes, problemas,
confusões como doenças de filhos, falta de emprego, falta disto e daquilo; não existe dentro
do ambiente familiar o espaço para rezar, para desenvolver-se espiritualmente.

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As pessoas que se casam podem esquecer da santidade; se forem simples católicos praticantes
já está muito bom. A vida espiritual profunda deveria ser para os celibatários, para as pessoas
que buscam só a Deus, que se entregam completamente a Deus; os casados não têm
condições de ter vida espiritual dentro desse regime. Porém isso é contra o que Jesus veio
pregar!

Jesus veio chamar todos à salvação. Vê-se claramente lendo o Novo Testamento, lendo o
evangelho de São João, que estão sendo chamados à comunhão com Deus não os celibatários
nem os monges (que inclusive não existiam, pois os primeiros monges na história da Igreja
começaram a surgir 250 anos após a vinda do Cristo). Os primeiros cristãos eram todos
casados. Desde o início da pregação muitos se consagravam e não tinham perspectiva de casar,
vivendo uma vida celibatária ainda que não monástica. Mas o evangelho não está dirigido aos
celibatários; dirige-se indistintamente a todos os homens, solteiros ou casados, consagrados
ou celibatários, não existe distinção.

Existe um convite a abraçar a castidade perfeita e o celibato, um convite muito explícito.


Vemo-lo claramente no capítulo 7 da primeira Epístola aos Coríntios; é o lugar onde está
mais explícito o convite a abraçar uma vida consagrada de união com Deus através do
celibato. Mas o evangelho como um todo não é dirigido a essas pessoas. Evidentemente,
porém, para uma pessoa casada dentro desse contexto – que é muito parecido do ponto de
vista dos fatos, com os casamentos que vemos hoje, mesmo quando são sacramentos – o
casamento impede a vida espiritual.

Então Jesus aparentemente estava incorrendo numa contradição.


● Ou ele fala claramente: Toda essa maravilha é para os celibatários e os casados estão
fora. Mas, como o mundo não pode ficar sem casados, senão acabaria a humanidade,
então vocês façam o sacrifício. Vocês estão fora do evangelho, vocês vão entrar no
paraíso pela porta dos fundos, mas nós precisamos de vocês. Porém vamos admitir a
realidade: a perfeição é para os celibatários. O casamento não dá, porque é tanta
preocupação, é tanto ciúme, tanta intriga, tanta desarmonia entre as psicologias do
homem e da mulher; são tantos problemas que não é possível cultivar uma vida
espiritual profunda, permanecendo naquela vida de oração na presença de Deus, na
doação de si, assim por diante.
● Ou então Deus conta uma mentira: ele chama a todos, mas na prática os casados não
têm vez e vão morrer sem saber por quê.

Jesus resolveu isso elevando o matrimônio a um sacramento; foi a grande saída que ele
encontrou. Jesus resolveu o problema, mas ainda assim ele convida insistentemente ao
celibato, está lá na epístola aos Coríntios. São Paulo já sabia que o matrimônio era um
sacramento, já sabia que dentro do caráter sacramental era possível [santificar-se], mas ainda

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assim ele diz: “Quem puder abraçar o celibato, viver como eu, eu preferiria, mas ninguém
está excluído”.

Por que não está excluído? O que é um sacramento? Segundo a doutrina cristã, para o
matrimônio ser um sacramento basta que os cônjuges que fazem o contrato natural sejam
batizados. No momento em que uma pessoa batizada celebra um contrato de direito natural
de matrimônio com outra pessoa batizada, porque causa do batismo de ambos aquele
contrato torna-se um sacramento.

Se por acaso eles já eram casados no paganismo e o marido se converte, torna-se cristão e se
batiza, e depois a esposa faz o mesmo ou vice-versa (o mais frequente era converter-se
primeiro a mulher e depois o marido) no momento em que o segundo cônjuge for batizado,
aquele contrato deixa de ser apenas de direito natural e se torna também um sacramento. Em
suma, o que faz o matrimônio ser um sacramento é o batismo dos dois cônjuges, seja ele
prévio ou posterior ao contrato.

Para compreender isso, primeiro devemos entender que quando uma pessoa se batiza não é
uma mera formalidade nem é apenas apagar o pecado original; o batismo nos transforma em
cristãos, filhos de Deus. Supõe-se então que uma pessoa é batizada porque quer ser santa, não
apenas porque quer entrar no céu, não apenas porque quer cumprir os mandamentos “Eu
cumpro os mandamentos, você me dá o céu, toma lá, dá cá”, como um contrato de compra
e venda. Não é isso! A pessoa batizada está desejando a santidade. Então as duas pessoas
casadas batizadas desejam a santidade.

Lembremos que na primeira aula, quando explicávamos o que era um sacramento, dizíamos
que todo sacramento era um símbolo eficaz de uma coisa que ele representa. O sacramento
representa uma coisa e produz aquela coisa.

O Batismo representa uma lavagem, um banho. Mergulhar dentro d’água ou passar água na
cabeça da pessoa é o ato de lavar, que produz o que significa: a regeneração espiritual pela
graça que produz. O sacramento da Penitência é a imitação de um tribunal, simboliza um
tribunal: ele é realmente um tribunal onde o penitente está sendo absolvido de seus pecados.
A Eucaristia simboliza um sacrifício, que realmente acontece na missa. Mas também
simboliza uma refeição, pois há uma mesa, pão e vinho, e ela produz na nossa alma uma
refeição espiritual da graça e do amor.

O Matrimônio, se é um sacramento, deveria significar alguma coisa que de fato produz. Pela
doutrina cristã o matrimônio representa a união entre Cristo e a Igreja, a união entre Jesus e
os Santos: o Corpo místico de Cristo. Por causa disso ele produz realmente na pessoa dos
esposos o que significa, e é por isso que na epístola aos Efésios São Paulo diz assim: “Maridos,

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amai vossas mulheres como Cristo amou a Igreja. Mulheres, amai vossos maridos como a
Igreja amou o Cristo”.

Dentre outras coisas, isso significa que foi acrescentada uma outra finalidade ao matrimônio
que não havia no contrato natural, e que a graça sacramental realmente produz aquilo que
significa. A graça sobrenatural dá o auxílio para que isso se cumpra: o marido tem que amar
a esposa como o Cristo amou a Igreja, e a esposa tem que amar o marido como a Igreja amou
o Cristo.

Trocando em miúdos, significa que o marido deve amar a esposa como Jesus amou a Virgem
Maria, ou como Jesus amou São Francisco, ou como Jesus amou os maiores Santos; e a esposa
deve amar o marido como São Francisco amou Jesus, ou como a Virgem Maria amou Jesus.
Colocado mais explicitamente isso quer dizer que a esposa deveria receber o marido quando
ele chega em casa, como se estivesse recebendo a Eucaristia; e o marido deve sentar-se à mesa
preparada pela como se estivesse recebendo a hóstia sagrada ou como se a Virgem Maria
estivesse aparecendo diante dele.

Trata-se de algo que não estava presente no contrato de direito natural. No contrato de
direito natural a pessoa se casa para quê? Para ter uma família, para ter uma companheira e
para moderar-se na castidade. No matrimônio sacramental a pessoa se casa para aprender a
amar o cônjuge com o mesmo amor que deve aprender a ter para com Deus. Digamos assim,
o marido está treinando com a sua esposa o amor que deve dar a Deus na oração, o amor que
deve dar a Deus na Eucaristia. Toda vez que ele estiver diante da esposa deve ser como se
estivesse diante de Deus, ele deve estar praticando o amor a Deus.

Ora, uma das coisas que na vida de oração devemos aprender a conquistar é, através da união
da fé e da caridade, morar permanentemente na presença de Deus. Se o esposo trata a esposa
dessa mesma maneira, e tendo em vista que o contrato de direito natural deixa de ser apenas
um contrato e torna-se um sacramento por serem os dois batizados, e que há ainda uma graça
especial para fazer isso, ao invés de ser uma arapuca o matrimônio se torna um caminho de
perfeição! A própria vida matrimonial será muito parecida com a vida de comunhão com
Deus, pois ao invés de distrair o cônjuge da vida espiritual, ela o fará concentrar-se nela.

Então, para um esposo aprender a amar sua esposa dessa maneira, deve fazer com ela as
mesmas práticas que fazemos para aprender a amar a Deus na oração. Tudo que aprendemos
sobre a união da fé e da caridade, sobre como nos desenvolvemos na vida espiritual, as práticas
de oração, os caminhos, tudo aquilo pode ser aplicado à esposa. Além disso há a ajuda da
graça para fazer isso, uma graça especial do sacramento. Claro, desde que saibamos
aproveitar, que é justamente o que as pessoas não sabem fazer. E neste caso, além das três
razões do direito natural para casar, a pessoa tem uma razão sobrenatural que transcende tudo
isso, pois é de uma ordem maior. Transcende não no sentido de que anula. Ela conserva as

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outras, mas transcende porque é de uma ordem maior. Para a pessoa que realmente faz assim,
o matrimônio não é mais uma arapuca, é um caminho.

É como o sacerdócio. O sacerdócio é um caminho para Deus. Porém não seria mais fácil ser
monge e nem ser sacerdote, mas simplesmente se dedicar todo à oração? Pode ser,
dependendo da nossa vocação. Mas o sacerdócio não atrapalha: se for bem trabalhado como
caminho para Deus, num certo sentido ele é mais poderoso que a vida monástica.

Na prática, hoje pode não ser assim porque hoje a Igreja está uma bagunça e para ser um bom
sacerdote é necessário um grau de consciência que é difícil conseguir num seminário comum.
Mas em tese, um sacerdócio bem ordenado é maior do que a simples vida monástica, a não
ser que seja um monge que também é sacerdote. Pois bem, na vida sacerdotal o padre se
envolve com uma série de coisas que representam Deus; elas não são a própria vida de oração,
mas vão aperfeiçoando o sacerdote para ela, e não pouco. E o matrimônio como um
sacramento é a mesma coisa.

Apesar de tudo isso e de São Paulo saber disso, ele ainda aconselha: Quem for capaz da
perfeita castidade, eu preferiria que fossem assim, mas não está mais fechado.

9. Papel da sexualidade ordenada na santificação pessoal do cônjuge

Voltemos agora à questão da moral e dos pecados contra a castidade. É evidente que o
matrimônio como sacramento pressupõe o matrimônio como contrato. O matrimônio
como sacramento não anula o matrimônio como contrato, ele o pressupõe; então tudo que
havia no matrimônio como contrato está dentro do matrimônio como sacramento, só que
neste há ainda mais. Logo, se uma pessoa observar o matrimônio como sacramento, mas não
como contrato, ela explodiu também o matrimônio como sacramento.

O matrimônio como sacramento pressupõe o matrimônio como contrato, e o matrimônio


como contrato pressupõe a vida sexual, de modo que não existe matrimônio sem vida sexual.
Pode haver matrimônio sem atividade sexual, mas não existe matrimônio sem sexualidade,
senão poder-se-ia casar com qualquer coisa: homem com homem, mulher com mulher, com
um ET. Mas não daria certo, porque só é possível apaixonar-se e ter um amor que leve ao
matrimônio em relação a uma pessoa de outro sexo — mesmo que não houvesse vida sexual
ativa, como a Virgem Maria por exemplo. Mesmo que ambos fosse já de certa idade e não
quisessem ter uma vida sexual, não adianta, tem que ser com uma pessoa de outro sexo; então
a sexualidade está lá presente.

Pode haver matrimônio sem atividade sexual, mas não sem sexualidade. E para a esmagadora
maioria das pessoas, esse é o caminho ordinário de santificação. Queira ou não queira, ao que
tudo indica, a esmagadora maioria das pessoas não será de vida consagrada, mas matrimonial.

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Hoje em dia é assim. Pode ser que algum dia a espiritualidade seja tão elevada que a maioria
das pessoas seja de vida consagrada e os casados sejam a minoria. Mas ainda assim os casados
sempre existirão, e para essas pessoas não há nenhuma outra via de salvação senão a vivência
do sacramento do matrimônio.

O matrimônio é uma faca de dois gumes: ou a pessoa o vive como sacramento ou então não
tem santificação, acabou! Como hoje a esmagadora maioria dos cristãos se casam, a única
chance que têm de se santificar é através da sacramentalidade do matrimônio, e essa
sacramentalidade pressupõe a vida sexual, e uma vida sexual regrada. Desregrando a vida
sexual, acabamos com a única chance que 99% das pessoas têm de se santificar. Não adianta
a doutrina, elas não vão se santificar nunca, porque o próprio matrimônio acaba com isso.
Elas até podem ser católicos praticantes, mas se não conseguirem viver o matrimônio como
sacramento, elas não conseguirão se santificar.

Vemos, portanto, que a sexualidade tem algo a ver com o amor ao próximo, e com um amor
ao próximo sublime. A santificação do matrimônio supõe um amor ao próximo entre os
cônjuges absolutamente sublime, e a possibilidade dessa sublimidade exige uma sexualidade;
se ela não existir, acabou.

Hoje em dia mais de 99% dos cristãos se casam e a única chance de santificação que eles têm
é o sacramento do matrimônio que, para ter toda sua eficácia, exige um amor absolutamente
transcendente entre os cônjuges. Esse amor só se realiza dentro de um contexto de
matrimônio, é um amor que não pode ser dado a todos, somente ao cônjuge. Um amor dessa
maneira não pode se dado nem a um grande amigo; tem que ser para um cônjuge e de outro
sexo. Então o contrato matrimonial pressupõe a sexualidade, e o sacramento matrimonial
também.

Ora, falávamos que a vida sexual está dentro do amor ao próximo porque contém a vida
humana em potência. Mas considerando a natureza do sacramento do matrimônio pode-se
dizer que a vida sexual está dentro do amor ao próximo, porque não existe outra via para uma
pessoa casada se santificar a não a vivência sacramental do matrimônio. E isso supõe a
sublimidade de um amor a um próximo em especial que será uma “plataforma” para o
cônjuge aprender a amar a Deus, que pressupõe uma vida sexual regrada.

Então o imbecil que detona a própria sexualidade está detonando aquela que talvez seria a
única chance de ele se santificar. Está detonando a possibilidade de amar sua esposa como
Deus pede dentro do sacramento do Matrimônio. Isso vai contra o amor ao próximo, que é
muito semelhante ao amor a Deus.

Concretamente, a doutrina diz que qualquer pecado contra a castidade (por pensamentos,
palavras ou obras), que seja plenamente advertido e plenamente consentido, é pecado grave,

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por menor que seja. Não existem pecados contra a castidade que sejam leves em si; se forem
plenamente consentidos e plenamente advertidos eles são graves.

Isso está claramente no evangelho. No evangelho diz assim: Vocês ouviram o que foi dito aos
antigos “Não cometerás adultério (porque no sexto mandamento do decálogo estava escrito
isso; e esse não cometerás adultério era tido pelos judeus como pecado contra a castidade); e
Jesus acrescenta: Não, na verdade eu vos digo, não é só quem comete adultério que transgride
os mandamentos da lei de Deus. Todo aquele que olhar para uma mulher com olhar impuro,
já cometeu adultério no coração. Com isso Jesus está comparando um mau pensamento com
o pecado de adultério, que era gravíssimo para os judeus. Até um pensamento contra a
castidade é tão grave quanto o mais grave de todos outros pecados.

Da mesma maneira, em seguida ele fala do pecado do respeito ao próximo: Vocês ouviram o
que foi dito aos antigos, mas eu digo “Quem chamar o irmão de cretino já é réu do fogo do
inferno”. Ele pisou em cima da castidade e do respeito ao próximo, ele sublinhou
fortissimamente; então já estava lá.

E por que acontece isso? Existem muitas e muitas maneiras de explicá-lo por argumentos mais
convincentes para as pessoas de hoje. Citaremos um dos que parecem mais inteligentes para
as pessoas de hoje; não é a verdadeira razão, mas exemplifica muito bem.

Por exemplo, ver filme pornográfico, ou uma imagem pornográfica, ou uma mulher em trajes
menores. Qual é o mau que pode haver nisso? É muito simples. Primeiro porque isso é algo
que vicia: o fulano que apreciou uma mulher em trajes menores ou que vê uma imagem
pornográfica, depois vai querer ver outra. O desejo acende e aí ele vai querer ver outra, outra
e outra; a possibilidade de ele se tornar um viciado nisso é grande. E viciada não é apenas
aquela pessoa que não consegue fazer mais nada sem isso ou que nem consegue trabalhar; é a
pessoa que já está habituada a isso, que não consegue mais dizer definitivamente “Eu não
quero”.

Esse ato de ver uma imagem pornográfica, o que significa? Normalmente as pessoas que
fazem pornografia colocam mulheres bonitas, modelos, as mulheres mais lindas que existem.
Então quando um homem vê uma imagem pornográfica, ele está tendo um encontro sexual
com as mulheres mais lindas do mundo. E geralmente ele vê aquilo trinta segundos, um
minuto, depois descarta e vai ver outra, não é nunca com a mesma. Depois ele vê outra e gosta
de ver trinta segundos, um minuto, então descarta. As próprias revistas que fazem essas coisas
não são nunca com a mesma mulher, é sempre uma diferente, senão a pessoa não compraria
mais; sempre tem uma mulher diferente, cada uma mais linda que a outra.

Até o ponto em que o sujeito fica acostumado a ter relação sexual desta maneira: pega a
mulher mais linda do mundo e usa trinta segundos, depois vê a mulher mais linda do que a

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mais linda do mundo e joga fora depois de trinta segundos. Ele acostumou a vida inteira a
pegar as mulheres mais lindas do mundo, cada uma mais linda do que a outra, usá-las trinta
segundos e jogar fora, e já não conseguiria mais nem ser fiel àquela figura, pois queria ver mais
e mais e mais.

Um dia ele encontra uma namorada e casa com ela. Com toda certeza ela não vai ser tão linda
quanto aquelas dos vídeos. Ele já se acostumou a usar mulheres muito mais lindas do que ela
por trinta segundos e jogá-las fora. E com essa, que por mais linda que seja, está muito abaixo
de todas as da pornografia, ele promete ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença,
até que a morte os separe, prometendo que nunca vai pensar em outra a não ser nela.
Conversa fiada! Pura conversa fiada! O sujeito jogou fora a base física e biológica da sua
santificação através do sacramento do matrimônio. Com muita dificuldade ele se aguenta na
primeira morada, dali não passa. Ou então passa com uma dificuldade muito maior que na
prática as pessoas não têm.

Nas aulas que damos nós vemos que, quando falamos desses temas, as pessoas nem se
interessam. Tem tanta gente que vai à Igreja... se as pessoas se interessassem, todas viriam a
essas aulas, mas são poucas as que vêm. E as poucas que vêm, sentem-se atraídas, mas têm
uma dificuldade enorme para essas coisas. Em grande parte, isso se deve justamente aos
pecados contra a castidade que fizeram no passado.

Também tem outra coisa: os pecados contra a castidade, quando se instalam na pessoa
tornam-se hábitos programados biologicamente. É duro largar daquilo. Pelo que temos lido,
salvo engano, muitas pessoas que são homossexuais não eram homossexuais, não nasceram
homossexuais; alguém as colocou em contato com uma relação homossexual. No princípio
eles podem não ter gostado, mas se acostumaram e depois que acostumaram já não querem
ter outro tipo de vida sexual. Também as pessoas que, quando de criança têm contato com
uma forma depravada de vida sexual (quando alguém abusou delas e as acostumou com
algum modo anormal de vida sexual) depois que se casam, ficam ainda sonhando com aquela
forma de vida sexual e às vezes não têm coragem de propô-la ao parceiro, porque não têm
coragem de revelá-lo, mas na verdade aquilo não as larga.

Então os desvios da vida sexual, mesmo que sejam pequenos, grudam na pessoa de uma
maneira terrível. Isso provoca um dano tremendo à vida espiritual, e muito mais hoje em dia!

Além da sexualidade totalmente livre que está sendo pregada, agora que estão tentando
colocar nas escolas a ideologia de gênero, vão programar biologicamente os corpos das pessoas
para formas totalmente anômalas de vida sexual que não têm nada a ver com o matrimônio.
Se isso não for coisa do maligno, que sabe que 99% da santificação do gênero humano
depende do matrimônio, eu não sei o que é!

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Sob essa perspectiva é evidente que o cristianismo tem razão: todo pecado contra a
sexualidade é grave, se for plenamente consentido e plenamente advertido: seja por
pensamento, seja uma pornografia, um ato de masturbação, uma carícia avançada entre
pessoas que não são casadas, por desejo do prazer; seja o que for é tudo pecado grave! É pecado
grave, não se pode tolerar: se alguém faz isso, está fora da vida espiritual, pois foi contra a
ordem sobrenatural que Deus veio trazer para a alma humana.

Trazendo para o caso da pizzaria, seria como ter feito algo que impossibilitasse a entrega de
pizzas. Se o sujeito faz isso, não dá para se santificar e não dá para permanecer na graça, ele
está fora. Como as pessoas que fazem isso nunca estiveram dentro, elas não entendem.
Quando o fulano que entrega pizza surra o cliente, ele vai perceber que isso é contra o
trabalho que estava fazendo. Mas infelizmente a maioria das pessoas que estão no pecado
grave, nunca estiveram dentro da vida da graça nem da vida espiritual, então não conseguem
entender a relação. Nós falamos disso, mas só quem está lá dentro é que enxerga claramente.
É uma lástima! E hoje as pessoas estão fazendo tudo que podem para detonar isso de uma
maneira definitiva.

10. Visão geral da doutrina sobre o pecado grave

Olhando sob esse ponto de vista nós temos uma ideia mais ampla do que é pecado grave.
Pecado grave é tudo que vai diretamente contra o amor de Deus, tudo que vai diretamente
contra a benevolência para com o próximo e tudo que vai contra a castidade. O resto, em
princípio, se é uma desordem é pecado, mas venial, não vai diretamente contra o “edifício”.
É uma desordem, pois o sujeito não dinamitou o alicerce; ele sujou a parede, mas depois
podemos limpá-la. É possível morar num lugar com a parede suja, mas se o sujeito dinamitou
o alicerce não dá para morar lá dentro; tem que sair fora antes que o prédio caia.

E o que não vai contra uma desordem do sistema, mas é algo que poderia ter sido feito
melhor, é uma imperfeição: o sujeito poderia pintar a parede de uma cor mais bonita, mas
não quis e pintou de uma cor que estava dentro do padrão; ele não quis fazer a coisa melhor.
Dentro do edifício isso até pode não ter tantas consequências: o edifício deixou de ficar mais
bonito, mas funciona bem. Dentro da vida espiritual isso pode ser um problema muito sério,
até mesmo uma coisa dessas porque é outro tipo de ordem. Ainda assim, nós devemos ter a
consciência clara: nem pecado isso é, pois para ser pecado deve haver uma desordem e ir
contra o amor a Deus, contra a benevolência ao próximo ou contra a castidade.

11. Papel da castidade e do amor ao próximo na ordenação das paixões humanas

Antes de tratar de outro assunto, queremos chamar a atenção de como isso é uma coisa sábia.
Desde de Tomás de Aquino, desde Aristóteles a filosofia entendeu claramente que o ser
humano tem paixões desordenadas e as paixões se agrupam em dois tipos: as paixões do

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concupiscível e do irascível. As paixões do concupiscível são aquelas pelas quais vamos em
busca de um prazer: gula, alcoolismo, sexo, etc. E as paixões do irascível são aquelas que o ser
humano tem para se proteger contra os perigos de vida: quando alguém ameaça uma pessoa
de morte, a adrenalina sobe e ela se defende ou sai correndo. Ou então se é simulado um
perigo de morte, mas não é de fato: alguém xingou o pai da pessoa ou a mãe dela lhe bateu, e
ela fica com raiva. As paixões do irascível são, pois, aquelas relacionadas com a raiva, com a
ira. Originalmente a função delas era proteger-nos do perigo de morte; hoje o ser humano
acaba usando-as para outras coisas. Mas basicamente todas as paixões humanas ou seguem o
modelo do concupiscível ou o modelo do irascível, ou são de um tipo ou são de outro.
Inclusive do ponto de vista fisiológico a origem delas é diferente.

As paixões humanas desregradas impedem a inteligência de funcionar. A inteligência, ao


buscar a verdade, precisa da ajuda do imaginário; mas o imaginário não é movido somente
pela inteligência, mas também pelas paixões. Quando alguém está com raiva de uma pessoa,
começa a pensar o pior dela; quando um homem cobiça uma mulher, começa a pensar mil
fantasias. De modo geral as paixões não deixam o nosso imaginário ficar quieto.

Esse é um dos motivos por que a inteligência não pode se desenvolver bem, porque nos
distraímos apaixonadamente por outras coisas. O imaginário inclusive sequestra muitas vezes
a inteligência para seu próprio serviço — as paixões sequestram a inteligência para seu próprio
serviço. Por exemplo, o fulano que ama o seu próprio ego, sequestra a inteligência não para
se elevar à verdade, mas para alcançar o poder. A inteligência vive ao serviço disso; ao invés de
estar livre para enxergar as coisas como elas são, ela acaba enxergando o mundo como o sujeito
gostaria que fosse. Por conta disso, é muito difícil alguém entender a natureza da vida
espiritual enquanto não ordena suas paixões.

As paixões se agrupam, pois, em dois grandes tipos. Não existem paixões humanas que não
estejam ou na linha do concupiscível ou do irascível.

Veja que, do ponto de vista concreto, operacional da vida espiritual, ao colocar a doutrina
dessa maneira, Jesus simplificou grandemente toda a doutrina religiosa, porque aboliu todos
aqueles 600 e tantos mandamentos da lei de Moisés e reduziu-os a dois, que no fundo são
três: amar a Deus, amar o próximo e a castidade — onde a castidade está incluída no amor ao
próximo.

Além do amor a Deus, que é a busca das coisas mais elevadas, o amor ao próximo exige o
respeito. A prática do amor ao próximo, da benevolência, exige o controle do irascível. A
prática da castidade exige o controle da mais forte das paixões do concupiscível, que é o
[apetite] sexual. O fulano que sabe se controlar no respeito ao próximo e na castidade,
adquire o domínio completo das suas paixões inclusive sem precisar se dedicar muito em
analisar as demais.

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Veja bem, o fulano que realmente é casto por virtude também não vai se viciar em bebida,
não vai se viciar em droga, não vai se viciar em jogo de cavalo, dificilmente vai ser um guloso,
dificilmente vai ter sede de glória e de outras coisas. O fulano que é casto tem o domínio da
mais forte das paixões do concupiscível e domina as outras brincando. Só não domina as do
irascível, que são um outro departamento.

No irascível a mais difícil paixão a ser dominada é o medo da morte iminente, o perigo de
vida iminente. Mas é difícil treinar essas coisas. Primeiro porque nos dias de hoje é raro que
alguém ameace imediatamente a nossa vida; teríamos que procurar algum trabalho que
colocasse nossas vidas em risco o tempo todo. Porém, nesse caso não treinaríamos muito
tempo, porque num trabalho desses a nossa vida seria muito breve, nós morreríamos
treinando.

Na prática, nós treinamos o irascível justamente com o respeito ao próximo. O indivíduo que
respeita o próximo sinceramente, não só externamente, mas internamente, perdoando, sendo
amável, não julgando mal das pessoas e assim por diante, acaba adquirindo o controle perfeito
do irascível. E como todas as paixões e as virtudes estão interligadas, ele inclusive terá uma
surpresa no dia em que tiver que arriscar a vida: ele vai arriscar a vida com cavalheirismo, com
virtude, honradamente.

A moral cristã é muito suave em relação à moral de outras religiões (do islã, do judaísmo) que
exigem uma infinidade de coisas. No fundo a moral cristã é rígida só em dois pontos: na
castidade e no respeito ao próximo. Nisso ela é intransigente! No resto, quase todas as outras
transgressões são veniais.

Se o sujeito é preguiçoso, está dormindo além da conta e isso não prejudicar gravemente
alguém, é pecado venial. Se ele come, já está satisfeito e depois come um bombom que não
precisava, isso é uma desordem, pois ele não precisava; mas ordinariamente não é pecado
grave, a não ser que o sujeito prejudique seriamente alguém: por exemplo se ele for um
diabético e aquele bombom puder colocá-lo em risco de vida, estará pecando contra sua
própria vida.

O cristianismo é então muito leniente, muito condescendente com a moral toda, mas nesses
dois pontos ele é absolutamente severo. Desrespeitar o próximo, da maneira explicitada
naquele texto de Santo Afonso de Ligório sobre o amor ao inimigo (que é leitura obrigatória
antes da próxima aula), ou cometer um pecado contra a castidade, isso é matéria grave de
confissão: temos que fazer exame de consciência, nos arrepender, fazer propósito, nos acusar
e não voltar a fazer mais. E com a graça da confissão nós realmente conseguimos voltar a não
fazer mais.

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Só que isso liberta a nossa mente de uma maneira fora do comum. A pessoa verdadeiramente
paciente e verdadeiramente casta começa a ter o gosto das coisas de Deus, adquire uma
liberdade interior absolutamente estupenda. Ela está livre para buscar as moradas interiores
de Santa Teresa! E além da questão moral, tudo isso tem um objetivo ascético, um objetivo
de estudo. Quer dizer, ao adotarmos esse sistema de ver as coisas, a confissão nos prepara para
a vida espiritual que é o verdadeiro objetivo da vida cristã!

Colocada a coisa dessa maneira, vemos o bem que isso realmente traz e a realidade tão
extraordinária de que não é um capricho o fato destas duas coisas serem tão graves e as outras
não; vemos que isso não foi escolhido a esmo, além da perfeita ordenação dessas coisas nos
seus vários aspectos. A partir disso, podemos dizer que, via de regra, pecados graves, pecados
mortais são aqueles que vão contra o amor a Deus, contra a benevolência ao próximo e contra
a castidade.

12. Os mandamentos da Igreja

No entanto, há uma coisinha a mais que precisaríamos acrescentar para completar o quadro.
Quando esteve na terra, Jesus sagrou Pedro como primeiro pontífice, dizendo: “Pedro, tu és
pedra e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão
sobre ela”; e acrescentou: “Tudo que ligares na terra será ligado no céu, e tudo que desligares
na terra será desligado no céu”. Com isso, ele deu à Igreja e ao sumo pontífice autoridade para
acrescentar algumas coisas à lei divina ou desligar algumas coisas, desde que não
desrespeitando a lei divina como tal. Conferiu à Igreja autoridade para fazer algumas leis que
valessem no céu assim como na terra, tal como valem as leis de Deus; isso obviamente para
benefício dos fiéis.

Então durante sua história a Igreja fez algumas leis que, digamos assim, acrescentam-se às leis
divinas. Ela tem direito de fazer isso, [responsabilizando-nos] sob pena de pecado grave. Essas
leis, principalmente para os leigos são muito poucas, resumindo-se a cinco. São leis que em si
não deveriam ser pecado grave, mas são pecado grave porque a Igreja assim o exige.

Todas são muito simples, inclusive fáceis de observar. É da natureza do cristianismo não ter
muitas leis, é a característica própria do cristianismo. Jesus reduziu praticamente a legislação
judaica ao amor a Deus, à benevolência ao próximo e à castidade. E a Igreja tem no seu total
cinco mandamentos que comentaremos depois.

Apenas a título de exemplo. Um dos mandamentos da Igreja é o de assistirmos missa aos


domingos e dias santos. Então nos domingos e dias santos é obrigatório assistir missa, sob
pena de pecado grave. Não deveria ser pecado grave: Jesus não pediu para assistir missa aos
domingos; pediu para celebrarmos e assistirmos a missa, mas não disse quando. Mas a Igreja

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entendeu por bem especificá-lo: é no domingo. Portanto, faltar à missa aos domingos é
pecado grave, se a pessoa já for batizada.

Para quem ainda não é batizado, a obrigação começará após o batismo. Para as crianças
pequenas, pela própria lei da Igreja, a obrigação só começa a partir dos sete anos de idade. A
lei da Igreja é assim: a obrigatoriedade de ir à missa começa para os batizados aos sete anos de
idade; para os que não são batizados, começa após o batismo, se já tiverem mais de sete anos
de idade.

Outra lei da Igreja é que devemos nos confessar uma vez ao ano. Na verdade, isso não seria
obrigação. Jesus instituiu a confissão para aqueles que caem em pecado grave. Se alguém
passasse cinco, seis, dez anos sem cometer um pecado grave, não seria obrigado a se confessar.
Porém a Igreja entendeu, para o bem geral dos fiéis, que eles devem se confessar pelo menos
uma vez ao ano.

De modo geral as leis da Igreja são um total de cinco. Vamos comentá-las depois, mas são
todas muito simples de cumprir.

A outra é comungar uma vez ao ano. Um bom cristão que quer ser santo deveria comungar
com a maior frequência possível; então exigir a comunhão uma vez ao ano é quase uma piada.
Mas para o bem dos fiéis, principalmente daqueles que são tão relapsos que não comungam
nem uma vez ao ano, a Igreja colocou essa obrigação de comungar pelo menos uma vez por
ano.

Por incrível que pareça, hoje em dia isso quase não faz sentido, porque atualmente a maioria
das pessoas está fora da Igreja. Os que estão realmente dentro, não precisam desta lei, pois
comungam muitas vezes. Mas na época em que a sociedade inteira era cristã, havia todo tipo
de cristãos: havia cristãos bem praticantes que queriam se santificar, e também cristãos que
estavam à margem. Na prática, todos eram cristãos inclusive os que estavam afastados da
Igreja: quando as pessoas morriam elas sempre pediam o padre para se confessar, e quando o
padre vinha ele percebia que as pessoas sabiam como deviam se confessar.

Há cem anos atrás era uma época em que a sociedade, principalmente na Europa, era
totalmente cristã. Havia então uma grande quantidade de fiéis que cumpria exatamente o
que a Igreja falava, mas não fazia mais, porque tinha medo de fazê-lo. Para tais pessoas estes
mandamentos eram importantíssimos, pois havia algumas delas que só se confessavam e
comungavam porque era obrigatório uma vez por ano, e se não o fosse elas deixariam passar
um ano, dois, três: iriam à missa, mas não comungariam.

Estes são, pois, mandamentos sábios que a Igreja colocou para o bem dos fiéis. E todos são
muito fáceis de cumprir: comungar uma vez por ano, confessar-se uma vez por ano, ir à missa

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todos os domingos e mais alguns outros. Colocadas as coisas assim, nós completamos o
quadro.

13. Síntese da aula

Então o que seria pecado grave? Pecado grave é tudo que vai diretamente contra o amor a
Deus, contra a benevolência ao próximo, contra a castidade e contra algum mandamento que
a Igreja instituiu em virtude do poder de ligar e desligar que recebeu, para o bem dos fiéis e
que se ela quisesse poderia até revogar. Enquanto ela não os revoga, nós batizados somos
obrigados a obedecê-los, justamente porque Jesus pediu dessa maneira. Eles são muito
poucos e todos muito razoáveis e sensatos, como veremos depois.

Na prática, esses quatro critérios não nos eximem de estudar Teologia Moral, pois servem
mais para podermos ter uma visão de conjunto, bem como princípios que ordenem o
assunto. Na prática, muitas vezes há coisas que estão implícitas dentro de outras, por
exemplo: quem diria que a castidade está implícita dentro do mandamento de amor ao
próximo?

Já vimos inclusive um sacerdote malformado, infelizmente, que quando o catequista foi


explicar o pecado contra a castidade para as crianças, o sacerdote falou: “Como você faz isso?
Para com isso. Pecado é ir contra o amor de Deus e o amor do próximo. Não tem nada de
castidade. Então eu não quero que você fique colocando minhoca na cabeça das crianças”.
Infelizmente acontece isso, ele mesmo não enxerga.

Existem coisas que estão implícitas, por exemplo: os pecados de superstição, adivinhação,
práticas divinatórias e coisas desse tipo. Pelo que estamos falando, teoricamente as práticas
divinatórias não vão nem contra o amor a Deus, nem contra o amor ao próximo, nem contra
a castidade, nem contra os cinco mandamentos da Igreja; então deveria ser pecado venial,
porque é uma desordem – não tem como adivinhar o futuro com prática divinatória; se
alguém pudesse adivinhá-lo com isso, significaria que não existe livre arbítrio, que o destino
humano já está predeterminado. Porém, só Deus pode saber o futuro, se ele quiser revelá-lo
com certeza absoluta.

Então a prática divinatória é uma desordem, porque está se fazendo uma coisa que não está
dentro da ordem natural. Como é apenas uma desordem deveria ser um pecado venial, mas a
doutrina cristã diz que nesse caso há certas coisas implícitas que incluem as práticas
divinatórias dentro do mandamento do amor a Deus. As práticas divinatórias na verdade são
um chamariz para maus espíritos, que de fato existem. Essas práticas divinatórias descambam
muito facilmente para isso, e muitas vezes eles mesmos [os demônios] se infiltram no meio:
fulano começa de fato a adivinhar o futuro.

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Práticas divinatórias, conscientemente ou não, envolvem espiritualmente uma tentativa de
relacionamento com maus espíritos e isso é pecado contra o primeiro mandamento “Não
adorarás outros diante de mim”. Relacionar-se com o demônio ou utilizar alguma coisa que
foi feita ou é canal para isso, é contra o primeiro mandamento. Estou colocando isso apenas
como exemplo.

Em linhas gerais é isso. Esse esquema é excelente para sabermos diferenciar o que é matéria
grave do que não é, mas sob forma de princípios. Existem muitas coisas que, na prática, é
preciso uma análise para reduzirmos a eles. Quer dizer, simplesmente porque [um ato] não
encaixou nessas coisas, isso não nos autoriza a praticá-lo só porque não cabe naqueles quatro
princípios – é porque nós não conseguimos enxergar como eles se encaixam. Na verdade, não
existem quatro princípios, existem dois, mas tem dois outros princípios que decorrem tão
imediatamente desses que podemos colocar como sendo quatro: i) o amor a Deus; ii) a
benevolência ao próximo; iii) a castidade; iv) e o que vai abertamente contra o que a Igreja
definiu como uma lei e que ela exige sob pena de pecado grave.

Mas existem coisas implícitas que somente com o estudo e a prática nós vamos percebendo.
Contudo, isso não quer dizer que não vale nada, porque tem coisas que incluídas nisso, apesar
de parecerem que não estão. Na verdade, isso vale muito, porque coloca a lógica da coisa,
coloca a arquitetura da coisa, que nós depreendemos de Tomás de Aquino e vemos que está
em coerência com todo o resto que a Igreja sempre ensinou, bem como a Tradição cristã e a
Sagrada Escritura.

Essa é a melhor explicação que encontrei até hoje para demostrar claramente como a natureza
do pecado grave difere do pecado venial e da imperfeição, de um ponto de vista prático, de
uma perspectiva da essência da coisa, sem entrar no detalhe e especificar o que é cada coisa. É
possível defini-lo mais refinadamente, porém tudo se torna tão abstrato e profundo que não
conseguimos enxergá-lo concretamente, que é o que queremos agora.

Há maneira teológica mais profunda de definirmos exatamente o que é matéria grave.


Estamos definindo operacionalmente, mas é isso que nos interessa. A outra é mais profunda
e pode ter alcances teológicos maiores, e serve muito para contemplarmos os mistérios de
Deus; do ponto de vista da contemplação, da vida espiritual ela é maravilhosa. Porém o que
nós queremos aqui é desenvolver os princípios operacionais da moral. Sob esse ponto de vista,
nunca vimos uma explicação melhor do que essa.

Esperamos que isso dê para ficar bem claro, porque é bem básico. Em suma, se alguém não
quer ser “despedido da pizzaria” imediatamente, nunca cometa um “pecado grave” contra a
pizzaria. Se alguém não quer estar fora da vida sobrenatural, nunca caia numa dessas coisas:
se caiu, está fora, está despedido na hora!

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A diferença da pizzaria é que o funcionário nunca mais volta. Aqui, porém, se a pessoa se
arrepender com humildade e se comprometer a respeitar tudo novamente e voltar com a
ajuda da graça, Deus a acolhe novamente. Mas se ela pisar de novo, está fora outra vez.
Enquanto ela se arrepender com sinceridade total, terá “n” chances de voltar. Mas ai de nós
se morrermos e estivermos fora!

A moral da história é essa: se o sujeito quer manter-se como entregador da pizzaria, tem certas
coisas que não pode fazer nunca; se alguém quer viver na graça de Deus, tem certas coisas que
não pode fazer nunca. Nós temos que fazer todo o esforço para isso! E os sacramentos estão
planejados por Jesus Cristo para ajudar-nos a não cair nisso.

É uma vida maravilhosa, porque Deus demarcou exatamente o lugar onde não podemos ir,
está tudo marcado com segurança, direitinho. Se a pessoa se mantiver dentro, para fora ela
não cai; e se tiver boa vontade, para dentro ela só cresce.

Não existe coisa mais maravilhosa! Isso não é uma tirania. É como se um sujeito fosse trilhar
um caminho muito difícil. Então alguém, sabendo disso e querendo protegê-lo, colocou
várias placas, avisos, alarmes e remédios para o sujeito não cair fora; ele só cai fora se quiser:

— Não, mas eu quero ir lá”. Diz o fulano.


— Mas está escrito aqui: não pode!
E o fulano põe o pé para fora e soa um alarme: Alarme! Perigo!
— Não, mas eu sou livre! Exclama o fulano.

Ninguém vai dizer que esse fulano está sendo perseguido por aquela pessoa, pois ela está
amando-o. Se ele se jogar lá fora é porque quis! Na verdade, isso não é para prender o
indivíduo, é para libertá-lo. Não são regras para prender a pessoa, são para libertá-la, a fim de
que possa ter uma vida livre, plenamente humana, plenamente desenvolvida e então
desenvolver-se espiritualmente tanto quanto puder.

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Aula 5 – QUARTO MANDAMENTO

Índice
1. Introdução
2. Os dez mandamentos
3. Os dez mandamentos em ordem decrescente de gravidade
4. Matéria grave em relação ao quarto mandamento
A) Do filho contra o pai
B) Do pai contra o filho
C) Observações quanto às funções de autoridade
D) Síntese sobre a matéria grave
5. O quarto mandamento e a independência dos filhos
6. Dever dos pais de dar instrução religiosa aos filhos

1. Introdução

Recapitulando, na primeira aula falamos sobre o que são os sacramentos e como devemos
nos aproximar deles com fé e devoção para que possam produzir mais abundantemente seus
efeitos, embora eles operem por si mesmos se a pessoa tiver um mínimo de disposição.

Na segunda aula falamos sobre o sacramento da confissão em si mesmo. Dissemos que a


confissão tem cinco elementos e que deveríamos sabê-los de cór: i) o exame de consciência;
ii) o arrependimento; iii) o propósito; iv) a acusação em espécie e número; v) e a penitência;
e poderíamos acrescentar de alguma forma um sexto: vi) a absolvição, que é feita por parte
do padre antes de dar a penitência.

Então quando vamos nos preparar para a confissão devemos verificar se preenchemos todos
esses requisitos: se foi feito o devido exame de consciência; se estamos arrependidos e
reconhecemos o erro dos pecados que cometemos; se temos o verdadeiro propósito de não
voltar a pecar mais (pelo menos em tudo que é pecado grave). Depois, feitas essas coisas,
devemos nos acusar como se fôssemos o promotor de nós mesmos; não é uma terapia, mas
um julgamento onde o réu, se der tudo certo, será sempre absolvido; além disso o acusador é
o próprio réu e o juiz não está lá para condenar, mas para absolver, se o penitente tiver a devida
disposição.

Depois de feita a acusação em número e espécie, não nos detalhes individuais, temos a
absolvição onde o padre nos absolve em nome da Santíssima Trindade e pelos méritos do

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Cristo. Enfim, há uma penitência para ser rezada – geralmente a penitência é uma oração,
mas poderia ser outra coisa. A penitência na verdade é simbólica, porque não haveria
penitência no mundo que nos merecesse o perdão dos pecados, ou que poderíamos fazer em
troca do pecado que cometemos; quem fez a verdadeira penitência foi Jesus na cruz, nós a
fazemos apenas como que para nos unirmos à dele.

Na terceira aula falamos sobre o que era o pecado e como distinguimos o pecado grave do
pecado leve. Comentamos que há três requisitos para existir um pecado grave: matéria grave,
plena advertência e pleno consentimento. Deixamos para explicar depois o que era matéria
grave.

Plena advertência significa perceber claramente que existe uma malícia no que se está
fazendo, mesmo que não se saiba explicar qual é, mas que de alguma maneira pela sua
consciência o sujeito perceba essa malícia. A não ser que ele seja culpado de não ter essa
advertência, porque negligenciou estudar ou levou uma vida ruim e então a consciência ficou
embotada de modo que não vê mais malícia em nada – nesse caso o sujeito peca mesmo sem
advertência.

O pleno consentimento significa que a pessoa estava numa situação de alma tal que, se
quisesse não ter feito, ela poderia não ter feito, mas fez porque o quis. Ela aceitou fazer aquilo
e, olhando para trás, percebe claramente que se tivesse não querido fazê-lo, teria toda
liberdade de não o ter feito. Toda liberdade não quer dizer que o indivíduo deva estar numa
situação de liberdade total e absoluta, completa, livre. O consentimento se dá quando,
mesmo se estivesse sendo forçada, a pessoa percebe que se tivesse querido não fazer aquilo ela
podia não ter feito, ainda que estivesse aflita, preocupada. Enfim, ela fez porque quis!

Depois, na quarta aula, começamos a explicar em linhas gerais o que era matéria grave.
Falamos que matéria grave é aquilo que viola diretamente a lei de Deus. O pecado [venial] é
uma desordem, ainda que não seja uma violação direta da lei divina. E existe uma outra coisa
semelhante, que chamamos de imperfeição: é quando alguém poderia fazer uma coisa de uma
maneira mais perfeita, mas, sem nenhuma desordem, deixou de fazê-la, podendo fazê-la.

Por exemplo: alguém pede para o sujeito comprar um pãozinho. Se ele compra o pão, volta,
entrega para a pessoa e podia dar um sorriso, fazer aquilo com alegria e não faz, isso seria uma
imperfeição: ele fez o que era para ser feito, mas podia fazê-lo melhor e não fez porque não
quis. Caso ele não tivesse comprado o pãozinho (disse que iria, mas depois não foi), por ser
uma desordem isso seria um pecado leve. Ele pegou dinheiro alheio para comprar um pão e
acabou não indo; é uma coisa de pequena monta, pois a pessoa não vai morrer por causa
disso; e depois ele devolve o dinheiro e diz que não foi por qualquer razão.

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O pecado se torna grave quando vai diretamente contra a lei divina que, em princípio, é o
amor a Deus e o amor ao próximo (entendido como benevolência). Nesse exemplo do
pãozinho seria grave se a pessoa não vai por ódio do sujeito: o cara pediu, ele aceita, mas na
verdade odeia o fulano e só não estoura a cara dele porque tem educação, e por ódio do
indivíduo ele não vai comprar o pãozinho. Isso seria um pecado grave. Nós vemos nesse
pequeno exemplo a diferença entre imperfeição, pecado venial e pecado mortal.

O pecado mortal é o que vai diretamente contra a lei divina, clara e frontalmente. São
aquelas coisas, digamos assim, que na linguagem comum das pessoas seriam “imperdoáveis”.
Vejamos exemplos.

● Dentro do casamento (entendido como uma instituição social), trair a mulher ou o


marido, os homens consideram algo imperdoável, isto é, acabou o casamento com o
adultério.
● Dentro de uma firma, se o funcionário brigar com o patrão e der-lhe um soco na cara,
ele está despedido, não será admitido mais, pois foi diretamente contra a ordem da
firma.

Estas coisas é que são matéria grave, pois são intoleráveis dentro de um sistema: se alguém as
faz, está fora dele. Numa firma, surrar o patrão seria um “pecado grave” – estamos falando
não em termos de moral, mas de conduta.

Cada atividade tem as coisas que são totalmente incompatíveis com ela. Se um médico for
fazer uma cirurgia para a qual não está qualificado, ele perde a licença. O sujeito é pediatra e
resolve fazer um transplante de coração sem ter especialização em cardiologia: acabou a
carreira dele! Então essas coisas é que são pecado grave.

Os pecados veniais seriam desordens, mas que ainda assim são compatíveis com o [sistema].
Se o funcionário chegar atrasado no serviço, o patrão não vai gostar, vai dar-lhe uma bronca,
mas não vai mandá-lo embora. Se o marido tem uma briguinha, uma desavença com a esposa,
o casamento não acaba por causa disso; mas é uma desordem.

E a imperfeição seria aquilo que alguém poderia fazer melhor, mas não quis fazê-lo. Como
um médico que atende o paciente, diagnostica a doença, receita o remédio, mas é seco, rápido,
curto e grosso; não dá atenção, não responde às perguntas do paciente e faz a coisa de má
vontade. Ele podia ter feito melhor, porém fez tudo que devia ter feito, não omitiu nada. Isso
seria uma imperfeição. A não ser, obviamente, que a coisa chegue num ponto de grosseria tal
que fosse contra a ética médica, por exemplo. Nesse caso já passaria de uma imperfeição para
o que seria um “pecado venial” na ordem humana. Na ordem divina o critério é outro.

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Enfim, em qualquer ordem onde existem pessoas, há certas coisas que são incompatíveis com
o sistema: se alguém as fez, está fora. Há outras que vão contra o sistema: o sujeito está indo
contra o que se espera, contra a devida ordem, mas não se considera que ele vá ser caçado,
expulso ou esteja fora. E há outras coisas ainda que certas pessoas fazem muito melhor e
outras fazem muito pior, porém dentro do que se espera: se podemos fazer melhor, mas não
o fizemos porque não quisemos, isso é o que se chama de imperfeição. Conceitualmente a
linha divisória é bastante clara.

Na confissão nós somos obrigados a nos arrepender de todos os pecados mortais, todos sem
exceção. Também somos obrigados a nos comprometer a não cometer mais nenhum pecado
mortal. Os veniais nós podemos confessar ou não. Eles podem ser objeto de confissão e
obviamente nós não poderíamos confessá-los se não estivéssemos arrependidos deles. No
entanto, a doutrina admite que alguém faça uma confissão sem confessar um pecado venial,
inclusive sem estar arrependido dele. Mas os mortais nós temos que eliminar de vez!

Essa ideia de ir para a confissão com a clareza de que existem certas coisas que espiritualmente
diante de Deus são absolutamente intoleráveis, apesar de que Deus esteja disposto a perdoá-
las (mas nem por isso elas são menos intoleráveis; é porque Deus é bom e nos perdoa); essa
ideia de que existem certas coisas que moralmente são absolutamente intoleráveis e que
devemos abandonar radicalmente e de uma vez por todas, é uma das coisas maravilhosas da
confissão, porque nos põe imediatamente num outro patamar a partir do qual é possível
inclusive iniciar uma vida espiritual. E se fizermos as coisas direito, esse é um patamar donde
não voltamos mais atrás tão facilmente: se fazemos uma confissão bem feita, é muito difícil
voltarmos atrás.

O que temos visto na prática é que, quem faz uma confissão bem feita, normalmente é para
sempre mesmo; podemos ter uma queda por fraqueza, mas nos recuperamos imediatamente.
As pessoas que fazem a coisa como se deve, com a ajuda da graça de Deus, não voltam atrás
nunca mais; ou se voltam atrás, como estamos falando, é uma fraqueza momentânea onde a
pessoa mesma cai em si e recupera-se imediatamente. Pode ser um tombo grave, mas é um
tombo, não é que a pessoa voltou de uma vez para sempre depois de ter mudado de vida.

Exatamente por causa disso nós demoramos mais na última aula para explicar o que era
matéria grave. Como está tudo no texto anterior e estamos somente recapitulando, não
queremos repetir todas elas novamente, mas apenas chamar atenção sobre os pontos básicos.

Isso que falamos e que vou repetir agora é a doutrina que tiramos das “Questões disputadas
sobre o mal”, de Santo Tomás de Aquino. Ele escreveu um livro menos profundo que a Suma
Teológica, mas bem mais complexo, que se chama “Questões disputadas”. É onde ele,
digamos assim, colocou em marcha toda sua potencialidade.

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Existem as questões disputadas sobre a potência, sobre as virtudes, sobre a alma, sobre a
verdade (que é a maior de todas). E dentre elas há uma que se chama “Questões disputadas
sobre o mal”, donde nós tiramos isso que falamos: que o pecado grave é aquilo que vai
diretamente contra a lei de Deus. Deus disse que não aceita aquilo de jeito nenhum e nós
vamos contra ele, dentro dessa ótica que estávamos falando.

E o que Deus não tolera absolutamente, de jeito nenhum, é o que está lá no evangelho
quando perguntaram para Jesus: “Em que consiste a lei? Qual é o maior mandamento?”.
Jesus disse: O maior mandamento é amar a Deus de todo coração, de toda alma, com todas as
forças e todo entendimento. E logo abaixo tem um outro que é muito parecido com esse: “Amarás
o teu próximo como a ti mesmo”. Aí ele disse: “Nesses dois mandamentos se resume toda a lei”.
Então o que Deus quer do homem é isso: amar a Deus e amar o próximo.

Sendo assim, o primeiro pecado grave são as coisas que vão diretamente contra o amor de
Deus, como a blasfêmia ou o ódio por Deus, ou os pecados contra as virtudes teologais. Por
exemplo, tendo a evidência suficiente para crer que Deus se revelou, uma pessoa diz “Eu não
acredito, não acredito, isso é bobagem. Eu detesto isso, não quero crer”; mas ela tem os
elementos para entender que foi Deus quem se revelou, portanto não aceita porque não quer
aceitá-lo, está rejeitando-o! Como quando conhecemos uma pessoa e insistimos em não
querer acreditar nela, apesar de já termos todos os elementos para crer. Essas coisas que vão
diretamente contra Deus são pecado grave.

O segundo pecado grave é o que vai contra o amor ao próximo, mas falar apenas isso não
explica o que seria falta de amor ao próximo. Não é apenas prejudicá-lo. Segundo o
evangelho, faltar com o amor ao próximo é não lhe querer um bem semelhante àquele que
queremos a Deus, porque o próprio Jesus diz: “O segundo mandamento é parecido com este,
‘Amarás ao próximo como a ti mesmo’; de alguma maneira se parece com o de Deus. Ele está
dizendo então que devemos amar o próximo com um amor semelhante ao que temos por
Deus.

O tipo de amor que Deus quer que tenhamos para com ele é com todo o afeto, com toda a
alma, com todas as forças; e ele quer que amemos o próximo de uma maneira mais ou menos
desse tipo, é um mandamento semelhante. Deus não quer nós apenas não matemos ou não
prejudiquemos o próximo, mas que tenhamos realmente uma benevolência para com o
próximo, que queiramos o bem do próximo sinceramente, inclusive se ele for o nosso
inimigo.

Portanto, se alguém odiar qualquer pessoa, mesmo que seja o seu pior inimigo, vai
diretamente contra esse mandamento, é o que está escrito lá no evangelho. Excluir uma
pessoa do círculo de amizades por rancor, por ódio, por não querer perdoá-la, vai diretamente

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contra o segundo mandamento. Detestar uma pessoa, xingá-la, insultá-la, magoá-la, desprezá-
la, humilhá-la, vai diretamente contra esse mandamento.

Só podemos nos afastar de alguém por motivos técnicos: se é alguém que pode nos matar,
bater em nós; alguém que vai nos destroçar se tentarmos falar com ele; ou se convivermos
com a pessoa, ela vai nos trair, tomar nossos segredos, nossa conta bancária, ou vai tocar fogo
na nossa casa. Nesses casos nós queremos distância da pessoa, mas não por ódio. Desejamos
que ela vá para o céu, que se converta, perdoamos a pessoa, mas não podemos ter proximidade
com ela por essas questões, não por inimizade.

Um exemplo muito claro disso podemos ver no caso de um juiz que tivesse que julgar o
assassinato do próprio filho. Na lei humana isso não é permitido, porque o juiz estaria
impedido de um julgamento assim. A lei humana atual não admitiria que o juiz julgasse o
assassinato do próprio filho, ele teria que dar o lugar a outro. Mas já houve época em que era
possível acontecer uma coisa dessas: que o juiz tivesse que julgar o réu do assassinato do
próprio filho.

Nesse caso ele pode estar pecando gravemente condenando o réu ou não, dependendo da
situação interna dele. Se ele dá a sentença correta e ao mesmo tempo está numa posição
interior em que fica feliz de ter sido ele a condenar o assassino do seu filho, porque se fez
justiça e o fulano merece isso, e ele fica feliz pela vingança que conseguiu por si mesmo;
embora dê a pena justa e proceda segundo a lei, este juiz pecou gravemente porque odiou o
indivíduo.

Se, ao contrário, ele perdoou interiormente o réu, não lhe quer mal, inclusive quer o bem
dele, que se converta e vá para o céu; que se torne outra pessoa, que com a pena ele aprenda
a se reformar; se ele está dando a pena por ser para o bem da sociedade, porque não se pode
deixar um assassino impune e ele pode matar outras pessoas e precisa também se corrigir;
então nesse caso o juiz não está cometendo pecado nenhum.

Isso se aplica inclusive àquelas pessoas condenadas à pena de morte, nos lugares onde ela é
permitida. Quando se condena um assassino à pena de morte com provas cabais e as pessoas
estão lá com faixas celebrando a condenação “justiça foi feita, o miserável vai pagar a
sentença”, isso é pecado gravíssimo!

Pode não ser pecado do juiz se houver as condições requeridas para a pena de morte, coisa
que hoje em dia é muito difícil. A pena de morte nos dias de hoje, na maior parte das vezes
não deveria ser aplicada. Admite-se a pena de morte em casos muito extremos, mas hoje em
dia, com todos os recursos da civilização, não deveria ser aplicada. Porém, ainda que não fosse
a pena de morte e sim a prisão perpétua ou a prisão de trinta anos, e o pessoal estivesse lá com

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faixas celebrando, soltando fogos de artifício, isso é pecado gravíssimo, pois estas pessoas
desejaram o mal do fulano, apesar de que aquela era a pena devida.

Vejamos outro exemplo. Houve um ditador na Nicarágua que, quando estourou a revolução
sandinista, fugiu e se abrigou no Paraguai. Um dia, depois de alguns anos, alguém foi com
uma bazuca e atirou no carro onde ele estava indo. Ninguém sabe até hoje quem fez isso, mas
os nicaraguenses celebraram como se dissessem: “Viva! Finalmente!”. Isso é pecado grave
evidentemente! As coisas que ele fez sendo ditador provavelmente são pecado grave, então
ele merecia uma pena justa; mas celebrar a pena justa por vingança é pecado grave.

Pelo mesmo motivo, por exemplo, xingar uma pessoa com raiva, ou até sem com raiva, mas
de uma maneira própria a humilhar, também é pecado grave! Um ato assim vai diretamente
contra o segundo mandamento.

A melhor explicação sobre isso está num texto da Teologia Moral de Santo Afonso que foi
traduzido para o português justamente porque é um texto precioso, e está na página do
cristianismo (www.cristianismo.org.br). Ali está claríssimo, com vários exemplos, o que é a
benevolência para com o próximo, independente se é amigo ou inimigo.

Em suma, o que vai contra o amor a Deus e a benevolência ao próximo é pecado grave. E por
extensão, Santo Tomás de Aquino diz que os pecados contra a castidade são pecados graves,
porque a castidade deriva do amor ao próximo. Primeiro porque pela vida sexual é possível
gerar um ser humano, então a vida sexual é o ser humano em potência. Logo, ela tem uma
dignidade semelhante. Segundo, porque a vida sexual nos animais foi feita para simples
reprodução, mas nos seres humanos foi feita para criarem uma família, e a família é a própria
caridade para com o próximo.

Num matrimônio que é sacramento isso é mais [intenso] ainda. Quando as pessoas são
batizadas e se casam, o matrimônio entre elas é um sacramento. A partir desse momento elas
não só devem construir uma família, mas devem amar-se mutuamente como Cristo amou a
Igreja. Com isso elas deveriam estar aprendendo a se amar do modo como devemos amar a
Deus: como a Igreja ama o Cristo e como o Cristo ama a Igreja. Na verdade, os dois se casaram
não só para constituir uma família, mas para aprenderem a se amar como se estivessem
treinando para amar a Deus. Para as pessoas que se casam essa é a única chance de ter uma
vida espiritual profunda.

Comentávamos da última vez que o casamento de direito natural é uma armadilha para a vida
espiritual. Enquanto homem decaído, casar e ter uma vida espiritual é praticamente
incompatível, o que seria uma desgraça para a humanidade, pois Jesus veio chamar todos para
uma vida espiritual profunda. Além disso, a maioria dos homens terá que se casar, por uma
obrigação de ofício. Alguns podem não casar, mas a maioria tem que casar senão acaba a

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humanidade. Se a maioria não casasse e a humanidade estivesse perigando, seria moralmente
obrigatório casar-se. Porém, justamente as pessoas que estariam cumprindo essa obrigação,
ficariam ao mesmo tempo impedidas da vida espiritual profunda, o que seria um
contrassenso.

Jesus então elevou o matrimônio a sacramento, para que ele se tornasse o símbolo da união
entre Cristo e a Igreja. A partir disso, o marido deve amar a esposa como Cristo ama a Igreja,
e a esposa deve amar o marido como a Igreja ama o Cristo. Então na verdade, através da
convivência com o cônjuge, os esposos deveriam aprender a estar permanentemente na
caridade para com Deus.

Como justamente o casamento é impossível sem sexualidade – ele pode até ser possível sem
relações sexuais, mas não sem a atração biológica entre um homem e uma mulher – então
exatamente por causa disso a sexualidade se torna sagrada e está incluída dentro do amor ao
próximo.

Portanto, violar o mandamento da castidade, principalmente se são leigos, é algo grave em


todos os sentidos. Num clérigo é grave porque ele fez voto de castidade. Mas, digamos assim,
isso tem consequências muito sérias para a vida espiritual para os que são leigos, porque
através da pornografia e de todas essas coisas eles estão minando a única via que têm para uma
espiritualidade profunda.

Noutras palavras, quem se casa (e a maioria das pessoas se casa) não têm chance nenhuma de
uma vida espiritual profunda sem viver plenamente o matrimônio como sacramento. E se o
indivíduo tem uma vida sexual desregrada, isso está fora de cogitação.

De modo geral é pecado grave o que vai contra o amor a Deus, contra a benevolência ao
próximo e contra a castidade. Em matéria de castidade a doutrina diz que qualquer uso do
prazer venéreo, seja por pensamentos, atos, palavras, ou qualquer outra forma fora do
casamento legítimo, é matéria grave, mesmo que seja um pensamento ou uma revista
pornográfica, um comercial erótico ou coisa assim.

Além disso tem o quarto item. Jesus concedeu um poder à Igreja quando disse que tudo que
ela ligasse na terra seria ligado no céu, e o que desligasse na terra seria desligado no céu. Dentro
disso a Igreja tem um poder dado por Deus de estabelecer que certas condutas ou práticas
possam ou não ser obrigatórias, sob pena de pecado grave. Normalmente são muito poucas:
assistir missa aos domingos e dias santos, jejuar na quarta-feira de cinzas e na sexta-feira santa,
confessar-se uma vez por ano, e outras coisas do gênero das quais falaremos depois.

Digamos assim, numa apreciação geral é pecado grave o que vai contra o amor a Deus,
contra a benevolência ao próximo, contra a castidade ou contra algum mandamento que a

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Igreja estabelece para o bem dos fiéis, sob pena de pecado grave. Algo que não se inclui nisso,
mas é uma desordem, é pecado leve. E o que não é uma desordem, mas poderia ter sido feito
melhor, é o que se chama de imperfeição caso fosse voluntária — então nem pecado seria.

Esses conceitos são importantes. Existem coisas que podem ser pecado grave e que, à primeira
vista não parecem estar incluídas dentro disso, mas estão. Estes são critérios gerais, mas que
não nos dispensam de estudar melhor o assunto. Por exemplo, muitas práticas de superstição
podem ser pecado grave, apesar de que à primeira vista pareçam mais uma burrice, uma
idiotice, do que algo que vá contra Deus, contra o próximo ou contra a castidade, ou seja lá
o que for.

Por exemplo, práticas de adivinhação do futuro são consideradas pecado grave, porque de
alguma maneira isso está incluído dentro do primeiro mandamento. De certo modo isso vai
contra o amor a Deus, porque normalmente estas práticas abrem porta para uma
comunicação com maus espíritos. Apesar de que, na maioria das vezes tal comunicação não
ocorra, essas práticas de magia negra, bruxaria, adivinhação são uma tentativa de fazer contato
com essas entidades com as quais Deus não quer que entremos em contato. Então isso vai
contra o amor a Deus, por isso elas muito facilmente podem ser pecado grave.

Dito isso, o que precisaríamos fazer agora era comentar os mandamentos da lei de Deus que
percorrem toda a matéria moral, comentar os mandamentos da Igreja, bem como algumas
questões de moral e com isso prepararmos a confissão.

2. Os dez mandamentos

Os dez mandamentos estão divididos em duas tábuas; a primeira tábua se refere a Deus e a
segunda ao próximo. Devemos sabê-los de cór, assim como essas coisas que falamos
anteriormente:

● O que é um sacramento?
R: É um símbolo eficaz que produz efetivamente aquilo que significa.

● Quais são os requisitos da confissão?


R: O exame de consciência, o arrependimento, o propósito, a acusação e a penitência.

● Quais são os requisitos para haver um pecado grave?


R: Matéria grave, pleno consentimento e plena advertência.

● O que é matéria grave?

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R: Em linhas gerais é o que vai diretamente contra o amor a Deus, diretamente contra
a benevolência ao próximo, contra a castidade ou contra um preceito da Igreja,
promulgado para ser cumprido sob pena de pecado grave.

● O que é pecado venial?


R: Uma desordem.

● O que é imperfeição?
R: É não fazer melhor aquilo que já estamos fazendo de um modo certo, quando isso
é possível de ser feito.

Os dez mandamentos é outra realidade que devemos saber de cór. Devemos saber estas coisas
de cór mesmo, para a vida inteira, pois elas são uma bússola dentro de nós e justamente
porque o primeiro passo da vida espiritual é romper com o pecado grave de uma vez para
sempre. Para termos um propósito tão radical assim, esses conceitos básicos não podem sair
do nosso coração.

Esquecer o que é um pecado grave, o que é matéria grave, quais são as partes da confissão,
quais são os dez mandamentos, é a mesma coisa que estarmos navegando e jogarmos a bússola
fora: não sabemos mais onde estamos navegando! Se além disso, estamos navegando num
lugar perigoso, como espiritualmente é o nosso mundo, então jogar a bússola fora é muito
mais temerário ainda.

Vejamos, pois quais são os dez mandamentos. Essa não é a sua versão original, é a versão atual
como está no catecismo. Os dez mandamentos, conforme foram feitos no original, são bem
parecidos com isso.

1º Mandamento. O primeiro não dizia “Amar a Deus sobre todas as coisas”, e sim “Eu sou o
Senhor teu Deus; não terás outros Deus diante de mim”. Mas como depois Moisés ensinou a
amar a Deus e amar a Deus é o primeiro mandamento, na verdade ele estava esperando por
esse. Por isso no catecismo falamos “Amar a Deus sobre todas as coisas”.

2º Mandamento: “Não tomar seu santo nome em vão.

3º Mandamento: “Guardar domingos e festas – que na antiguidade era guardar o dia de


sábado. A partir daí começa a segunda tábua.

4º Mandamento: “Honrar pai e mãe”.

5º Mandamento: “Não matarás”. O quarto e o quinto são iguais aos do Velho Testamento.

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6º Mandamento: “Não pecar contra a castidade”. No original está “Não cometerás adultério”,
mas como na verdade ele não condena só o adultério, porém todos os pecados contra a
castidade, no catecismo acabou passando a ser “Não pecar contra a castidade”.

7º Mandamento: “Não roubar”.

8º Mandamento: “Não levantar falso testemunho”.

9º Mandamento: “Não desejar a mulher do próximo”.

10º Mandamento: “Não desejar as coisas alheias. Esse não desejar as coisas alheias significa
enquanto alheias, ou seja, ele proíbe o desejo de roubar, o desejo de arrancar as coisas dos
outros; não proíbe que alguém deseje algo igual ou semelhante ao que a outra pessoa tem. Se
alguém tem um carro de último modelo e uma pessoa diz: “Ah, eu gostaria de ter um carro
assim”; esse mandamento não proíbe isso, desde que ela respeite o bem do outro.

Nesses dez mandamentos está contida praticamente toda a lei natural. Normalmente nós
temos comentado do quarto em diante e depois voltamos aos três primeiros. Vamos então
começar pelo quarto.

3. Os dez mandamentos em ordem decrescente de gravidade

O quarto mandamento diz Honrar pai e mãe. Podemos perceber que os mandamentos estão
mais ou menos numa ordem decrescente de importância. Primeiro vêm os mandamentos em
relação a Deus: em primeiro lugar, “amar a Deus sobre todas as coisas”; depois o seu “santo
nome” que abaixo de Deus é a coisa mais sagrada que as Escrituras colocam; abaixo do nome
de Deus vem “santificar o dia do sábado” (ou do domingo), que no fundo é a vida espiritual,
pois a santificação do domingo através da missa ou do descanso sabático (como era
antigamente) não apenas para não trabalharmos, mas justamente para nos dedicarmos
àquelas coisas que promovem um contato da vida espiritual com Deus.

Deus é mais importante do que “contatar” com Deus. O nome de Deus é justamente aquilo
pelo que nos contatamos com Deus, coisa íntima. E o sábado (ou o domingo), ou seja, a
prática espiritual, são aquelas coisas que externamente consideradas promovem o contato
diretamente com Deus.

Depois de terem falado de Deus, os mandamentos falam sobre o próximo. E dentre todos os
“próximos”, aqueles aos quais devemos mais reverência são o pai e a mãe, porque nos deram
toda a nossa vida. Mesmo uma esposa ou um marido não doam tanto quanto o pai e a mãe
deram. O pai e a mãe nos deram a vida inteira, já a esposa ou o marido dão o restante de suas
vidas até que a morte os separe; é muito menos do que o pai e a mãe deram.

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Na sequência do mandamento de respeitar pai e mãe, vem o pior dos pecados contra o
próximo que é arrancar a vida — muito pior do que cometer adultério, muito pior do que
roubar alguma coisa. Ao tirar a vida, se está tirando tudo. Quem tira a vida de alguém, está
lhe tirando a esposa, os bens, tudo que ele tinha.

Abaixo da vida está a esposa (ou o esposo), por isso o preceito “Não cometerás adultério”,
que se estende a toda a matéria da castidade. Isso é mais grave do que roubar alguma coisa.
Roubar a mulher de alguém é muito mais grave do que lhe roubar um objeto ou até uma
casa: o marido pode comprar outra casa, mas, perdendo a esposa, perde um bem
absolutamente inestimável, isto é, alguém que já fazia parte dele.

O oitavo mandamento é o “roubo da fama”. Não se está roubando um objeto, mas a fama
do indivíduo através de uma calúnia. Isso pode ou não ser mais grave do que o roubo. De
modo geral, se alguém conseguir tirar a fama do indivíduo totalmente, isso é mais grave do
que o roubo. Quando o sujeito é roubado é possível refazer os bens, mas se perder a fama,
não vive mais em sociedade. Então roubar a fama pode ser mais grave do que o roubo de um
objeto. Agora, evidentemente, quando é um fuxico, uma murmuração, pode ser menos grave
do que um roubo.

E os dois últimos mandamentos “Não desejar a mulher do próximo” e “Não desejar as coisas
alheias” estão proibindo os maus desejos, ou seja, o que menos lesa o próximo. Quem deseja
estas coisas, na verdade está mais lesando a si mesmo do que ao próximo, que pode nem ficar
sabendo que a pessoa desejou aquelas coisas.

Portanto, os dez mandamentos estão numa ordem decrescente de gravidade. É muito


interessante que o quarto mandamento (o primeiro da série dos que são relacionados ao
próximo) esteja em primeiro lugar. Significa que, em princípio, o respeito ao pai e à mãe é
algo mais sério do que a própria vida do próximo. Desrespeitar o pai e a mãe está numa
hierarquia maior do que respeitar a própria vida de uma pessoa comum, justamente porque
à pessoa comum às vezes não devemos nada, já ao pai e à mãe devemos a própria vida.

4. Matéria grave em relação ao quarto mandamento

A) Do filho contra o pai. — O que o quarto mandamento proíbe ou o que ele preceitua?
Principalmente ele preceitua que respeitemos o pai e a mãe. Geralmente as pessoas que
chegam à catequese imaginam que o quarto mandamento proíbe que desobedeçamos ao pai
e à mãe; porém ele não diz Obedecerás teu pai e tua mãe, mas Honrarás pai e mãe. Ele exige
muito mais o respeito do que a obediência.

100
Na maior parte das vezes, quando a desobediência ao pai e à mãe chega a ser matéria grave, é
porque já seria grave mesmo se não fosse uma desobediência ao pai e à mãe. Na maioria das
vezes a desobediência aos pais não é um pecado grave, pois não chega a ir contra o próximo, é
apenas uma desordem.

Por exemplo, se a mãe ou o pai falam para o filho “Joaozinho, vai comprar um pão”. Ele diz
“Já vou, papai”, mas não vai. Não vemos aí aqueles critérios de pecado grave: o Joãozinho
não foi contra o amor a Deus, não está desprezando ninguém, não está tendo malevolência
contra ninguém, muito menos contra o pai; é que ele está muito vidrado no jogo de futebol
e não quer largar a bola para ir comprar o pão. Ao mesmo tempo o papai e a mamãe não vão
morrer por causa da falta do pão e ele sabe disso. Então na verdade aquilo é uma desordem.

A maioria das desobediências são mais uma desordem do que algo que vá contra a castidade,
contra a benevolência ao próximo, contra o amor a Deus ou contra um mandamento
explícito da Igreja. Portanto, a maioria das desobediências dos filhos são pecados veniais.

Seria pecado grave se fosse abertamente contra o próximo. Nesse caso, porém, seria não só
por ter sido contra o pai e a mãe; o ato já seria pecado grave em si mesmo. Por exemplo, se a
mãe disser “Joaozinho, papai acabou de ter um infarto, chama a ambulância”, e ele não vai.
É evidente que é pecado grave, porque o filho está sabendo que o pai vai morrer, mas prefere
jogar bola e que a vida do pai se dane. Em si mesmo isso já é pecado contra o próximo; torna-
se mais grave e com uma malícia específica e inclusive maior, porque além de ser contra o
próximo vai contra o próprio pai. Mas não é tanto por ser desobediência, senão por estar indo
contra a mesma benevolência que devemos aos pais.

Por outro lado, desrespeitar os pais, assim como desrespeitar qualquer pessoa, mas
normalmente os pais, geralmente é pecado grave. Por exemplo, xingá-los de algum nome, ou
usar palavras próprias para magoar, ou até gritar com eles ainda que não se esteja xingando,
mas de uma maneira que se sintam magoados; ou ainda que eles não se sintam magoados,
mas aquela maneira é própria para magoar uma pessoa (pode ser que eles já se acostumaram
e não sentem mais nenhuma mágoa, mas aquilo são palavras próprias para magoar). Dizer,
por exemplo: “Cala a boca velho, você não entende nada, você já está ultrapassado, fica
quieto”. Dependendo do tom que falamos, isso é pecado grave, isso é matéria grave! Falar
assim machuca, ofende e não é coerente com a benevolência que devemos ao próximo, muito
menos aos pais.

Sendo assim, desrespeitar os pais, bater neles então nem se fale... essas coisas são matéria grave.
E quando incorremos nessas coisas, somos obrigados a pedir desculpas. Gritar com eles,
altercar com eles, pois mesmo que estejamos com a razão, não devemos levantar a voz contra
os pais. No meio de uma briga:

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— Faça isso! Diz o pai.
— Não, não vou fazer! Responde o filho.
— Faça! Insiste o pai.
— Ah, não vou, eu já falei que não vou! E o filho começa a brigar, falar em voz alta.

Isso normalmente já é pecado grave, é o contrário da benevolência. A lei da benevolência de


modo geral é para com todos os seres humanos. Com os pais a coisa se torna muito mais séria.

B) Do pai contra o filho. — O mesmo vale também dos pais para com os filhos, com uma
diferença de que essa mesma regra moral é mais leniente para com os pais do que para com os
filhos; não porque estão sendo abertas exceções, mas pelo próprio contexto, já que os pais
têm de educar os filhos e as vezes precisam dar uma palmada para educá-los.

Atualmente existe uma lei dizendo que, diante dos homens, isso não é permitido. Mas essa
lei está sendo feita para corromper mesmo a autoridade paterna, ela não é legítima. Os pais
podem dar palmada nos filhos! Mas obviamente há uma palmada que se dá para corrigi-los e
outra palmada que se dá por raiva. Se o pai der uma palmada no filho por raiva, isso é pecado
grave, pois vai contra a benevolência.

Por exemplo, uma criança derrubou o cinzeiro e quebrou-o. O pai então fica uma arara
contra e diz: “Eu te mato, seu sem vergonha. Vem aqui que eu vou arrebentar com você”. E
a criança sai correndo: “Socorro, papai quer me matar”. É claro que ele não vai matá-la, mas
está querendo arrebentar com ela. Isso já é suficiente para ser pecado grave por parte do pai,
porque ele não está fazendo isso por benevolência.

É muito diferente quando o pai dá uma palmada porque o filho não se corrige e precisa se
corrigir e está numa idade que pode não entender uma conversa, argumentos e o único
recurso é dar-lhe uma palmada. Todos percebem que o pai não está com raiva. Não é uma
vingança, mas uma atitude pedagógica. Na verdade ele está amando o filho. Num caso desses
é evidente que isso não é pecado grave, nem matéria grave, mas é inclusive o próprio exercício
da caridade.

Por que um filho não poderia fazer isso com o pai? Primeiro que corrigir o pai não é o ofício
dele. E é difícil enxergar um contexto em que o filho bata no pai, mesmo a pretexto de corrigi-
lo, dizendo que foi por amor e que não estava com raiva. É quase inconcebível acontecer uma
situação em que o filho tenha de fazer uma coisa dessas e que isso não fosse pecado, não fosse
uma manifestação de falta de benevolência.

Quando poderia acontecer uma coisa dessas? Imaginemos, por exemplo, que o filho está no
alto de um prédio e o pai dele vai se matar, vai se jogar e ele não consegue segurá-lo de jeito
nenhum. O único jeito de impedir que ele se mate é dando-lhe um soco e levando-o a

102
nocaute. Nesse caso, talvez fosse benevolência, mas convenhamos: são situações raríssimas e
mesmo que aconteça algo assim, provavelmente sempre ele poderia resolver de outra maneira.
Mas supondo que fosse impossível, que o pai fosse uma pessoa forte, estivesse deprimido e
quisesse se jogar. Ele tem todas as condições de fazer isso e vai fazer mesmo, e o único jeito é
acertar um nocaute nele, deixá-lo tonto para levá-lo num lugar onde possa tomar um
calmante ou alguma coisa assim. É óbvio que num caso desses isso seria uma manifestação de
amor. Mas são situações praticamente impensáveis, que não sabemos se poderiam acontecer
de fato. É pura teoria.

De modo geral os pais podem bater nos filhos se for algo moderado, coerente com uma
atitude de amor; se for necessário para a correção do filho e não esteja sendo feito por
vingança, rancor, ódio e dentro de um verdadeiro sentido que até o próprio filho depois
perceba “Não, ele fez isso porque me ama, isso não é um sinal de inimizade”.

Da mesma maneira os pais levantarem a voz contra os filhos. Um pai pode levantar a voz
contra um filho se esse for o único jeito de ele entender uma coisa necessária para o seu
desenvolvimento educativo. Mas, evidentemente, se nessa voz ele xinga, não conseguimos
imaginar uma situação em que xingamento seja pedagógico. Levantar a voz é uma coisa, ser
enérgico é uma coisa. Insultar o filho com nomes próprios para ofender e humilhar é sinal de
malevolência; isso nunca é pedagógico.

Os pais podem então levantar a voz contra os filhos, se isso for necessário dentro do devido
contexto. Agora, insultá-los, chamá-los de “filho não sei do que”, safado, sem vergonha,
cafajeste, seja lá o que for, tudo isso é pecado grave. Quando é feito para humilhar ou de um
modo próprio de humilhar (ainda que não seja esta a intenção) isso é pecado grave.

C) Observações quanto às funções de autoridade. — Esses critérios também valem com


o próximo, apesar de que com os pais é bem mais delicado. Isso vale também quando se tem
uma situação de ofício. Quando o sujeito é juiz, agente penitenciário, professor ou de alguma
maneira tem um ofício em que, para que a justiça se cumpra, precisa ser enérgico, os critérios
valem da mesma maneira.

Um soldado policial, quando está perseguindo um bandido, com certeza não lhe dirá: “Por
favor, por gentileza, queira estender a sua mão para que eu possa passar uma algema”. Ele vai
dizer: “Levanta a mão, você está preso!”, e vai falar isso com uma voz alta, para intimidar.
Agora, se ele se aproveita disso e começa a xingar o indivíduo, já começa aí a extrapolar o seu
serviço, a justa função, e isso passa a ser matéria grave.

Da mesma maneira um professor. Um professor pode, com uma voz autoritária, colocar para
fora da sala um aluno que está causando uma desordem. Obviamente, porém, não pode
xingá-lo, pois já não é mais o seu ofício, mas uma coisa pessoal. Ele está alterado, tomou a

103
coisa como ofensa pessoal, está numa situação de inimizade para com o aluno e não está
desejando o bem do indivíduo, está sendo malevolente.

D) Síntese sobre a matéria grave. — Em suma, o respeito aos pais exige que não
xinguemos, não levantemos a voz, não gritemos, não discutamos quando a discussão começa
a ser humilhante. Se fizemos essas coisas, devemos pedir desculpas pelas vezes que foram
feitas. O pedido de desculpas não é necessariamente pelo conteúdo em si que dissemos,
porque as vezes numa briga o filho está com a razão e não o pai. Então não vamos pedir
desculpa por aquilo que pensamos, senão pelo modo como o tratamos.

Se o pai pede uma coisa absurda ao filho e o filho xingou porque disse que não ia fazer, o filho
não deve pedir desculpa e depois fazer a coisa absurda, nem pedir desculpa por ter dito que
não queria fazer a coisa absurda. Deve pedir desculpa pelo modo como tratou o pai.
Joaozinho diz: “Eu, reconheço, papai, que te tratei mal, te peço desculpas. Mas olha, eu estava
com a razão. Você não leve a mal, mas eu concordo com o que falei, só não deveria ter tratado
o senhor daquela maneira. Desculpe, não vou fazer mais”.

Discussões entre marido e mulher cristãos deveria ser uma coisa impensável. Entre pai e filho,
às vezes o pai não é católico praticante, mas o filho é. Mas de modo geral, numa discussão o
melhor é não respondermos nada, deixarmos os ânimos se acalmarem e quando estiver tudo
sereno, voltarmos a discutir o assunto; ou então dizermos apenas que não concordamos.

Se nosso pai está brigando conosco por uma coisa que consideramos injusta e com razão, o
melhor é dizermos calmamente apenas uma vez: “Pai, eu não concordo com isso, por causa
disso, disso e disso”. Se ele continuar discutindo, não devemos responder mais nada, apenas
calar. Já dissemos o que era necessário; qualquer coisa a mais só irá exacerbar o ânimo e
acabaremos xingando nosso pai, coisa que não deveríamos fazer nunca.

A melhor coisa quando há uma disputa dessas é não respondermos nada ou então darmos
uma resposta uma única vez, racionalmente, somente para assegurar que ele ficou sabendo o
que nós pensávamos; e ainda com o propósito de, falada uma vez, não falar mais para evitar
brigas. Se ele quiser brigar, que continue brigando, mas que nós não lhe respondamos.

5. O quarto mandamento e a independência dos filhos

No relacionamento entre pais e filhos, os pais têm o direito de pedir a obediência dos filhos,
mas não a vida inteira. Uma vez que os filhos chegam à maior idade eles não são mais
obrigados obedecer aos pais.

A desobediência na maioria dos casos é matéria leve; quando é matéria grave, ela já é grave
por causa de outros temas. Mas a obediência não obriga os filhos além da maioridade. Então

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um pai não pode obrigar um filho a seguir uma determinada profissão, a seguir uma
determinada carreira, a viver sempre com ele, a não querer que ele se case com a pessoa que
ama. A partir da maioridade o filho tem liberdade de fazer o que quiser, desde que não
desrespeite o pai. Também não é obrigado a permanecer na mesma cidade, caso queira viajar
para o exterior.

O dever da obediência fica restrito enquanto ele é menor de idade, em questões materiais. Em
questões espirituais o dever da obediência cessa, digamos assim, com a idade da razão.
Portanto, o filho deveria obedecer ao pai que é contra um casamento se ele é menor de idade.
Porém o filho não é obrigado a obedecer ao pai caso queira converter-se ao cristianismo a
partir do momento em que alcançou a idade da razão. A partir da idade da razão (que é por
volta dos sete anos ou antes, dependendo da maturidade da criança), ele já está emancipado
espiritualmente. Logo, se ele quisesse se converter ao cristianismo e os pais fossem de outra
religião, os pais não têm direito de impor sobre ele: “Você vai ser judeu ou budista, até os
dezoito anos”.

Por outro lado, existe o dever dos filhos de socorrer os pais em assuntos graves, e esse não
caduca nunca. A partir da maioridade o filho é livre da obediência aos pais, mas não é livre
do dever de socorrê-los até sua morte.

Ele tem o direito de casar com quem quiser, desde que seja um casamento honesto. O pai tem
direito de não querer que ele case com alguém que perceba ser uma pessoa ruim; mas se for
uma pessoa boa, o filho tem direito de casar com quem quiser. Além disso, o filho tem direito
de escolher a profissão que quiser, tem direito de escolher onde vai morar mesmo que seja na
China e o pai mora no Brasil — se ele ficar triste e chateado é um capricho, isso não pode
obrigar o filho.

Diferente, porém, é se ele estiver passando necessidades graves, aí a coisa é completamente


diferente. Se por motivo de doença, de pobreza extrema ou de quaisquer coisas que sejam
necessidades objetivas em que o pai precise da ajuda do filho, este é obrigado a ajudar no que
for possível, mesmo que custe a sua carreira, mesmo que custe o sonho da viagem dele. Ainda
que custe o que for, esse dever tem precedência sobre as demais coisas, inclusive até mesmo
se fosse a vida religiosa.

Em suma, nós devemos respeito e socorro aos pais até a morte. Os pais continuam sendo pais
até morrerem, não deixam a obrigação de serem pais depois de os filhos alcançarem a
maioridade, apesar de que já não é mais do modo como quando eram crianças em que
estavam sob sua orientação. E a desobediência dos filhos não é pecado grave, a não ser quando
já é grave por outros motivos, além do fato de ser pecado contra o respeito aos pais.

6. Dever dos pais de dar instrução religiosa aos filhos

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Há algo dentro da questão do mandamento de honrar pai e mãe que é a obrigação dos pais
de dar instrução religiosa aos filhos. Essa é uma das coisas mais negligenciadas que já vimos
até hoje! Os pais não têm só o dever de alimentar os filhos, educá-los, dar-lhes uma profissão,
assim por diante. Têm a obrigação de encaminhá-los na vida religiosa. De modo geral, isso
significa a santidade!

Os pais não se desobrigam do ensino religioso para com os seus filhos simplesmente
colocando-os na catequese. Eles têm uma obrigação mínima de educar os filhos de tal maneira
que, pelo menos, eles possam ter uma certeza moral de que vão conseguir se manter em estado
de graça até o fim da vida.

É o mesmo requisito que a Igreja exige para os Bispos que admitem alguém ao sacerdócio.
Para o sujeito ser sacerdote é exigido um certo grau de santidade. O mínimo que se exige de
um sacerdote para ser ordenado é que ele possa manter-se em estado de graça de maneira
habitual.

O mínimo que se exige de um pai que educa um filho, é que pelo menos ele o eduque a poder
manter-se em estado de graça perpetuamente. Que ele assista missa aos domingos, confesse
regularmente, evite o pecado grave, tenha algum grau de vida de oração (sem o que é
impossível manter-se nessas coisas). Que se interesse pela doutrina e, se vier a casar, possa não
só fazê-lo sacramentalmente do ponto de vista formal, mas entender o que é o sacramento do
matrimônio; ou se for para a vida religiosa, que o faça conscientemente; ou se não for nem
um, nem outro, que pelo menos seja um católico praticante de fato, firme até o fim da vida.

Isso é o mínimo! Na verdade, um cristão deveria ser alguém que buscasse a vida interior, o
desenvolvimento da vida espiritual, que buscasse avançar nas moradas de Santa Teresa
d’Ávila, subir a escada das Bem-aventuranças; alguém que tivesse vontade firme de encontrar
a comunhão com Deus e pudesse transmitir aos filhos esse ideal, que é o verdadeiro miolo do
evangelho.

O evangelho é a graça do Espírito Santo que é dada àqueles que creem em Cristo. Essa graça
do Espírito Santo é a graça pela qual vamos nos unindo cada vez mais profundamente com
Deus. Então na verdade os pais deveriam educar os filhos com o objetivo de alcançar esse
entendimento, mas pelo menos que pudessem ter certeza que os filhos serão católicos
praticantes e que se desviarão nunca disso.

Não é isso que nós vemos! Na maioria dos casos nem os pais são católicos praticantes, muito
menos entendem algum ideal de uma espiritualidade mais profunda. E quando são católicos
praticantes, tentam ensinar alguma coisa aos filhos, levá-los à missa por exemplo, e percebem
que quando chega aos treze, quatorze anos, perdem completamente a autoridade sobre eles,

106
que não os obedecem mais, desencaminhando-se da vida religiosa. Os pais percebem, por
exemplo, que eles não frequentam mais os sacramentos, começam a se envolver sexualmente
com as namoradas, que não se casam dentro da Igreja, levam uma vida totalmente mundana,
nem católicos praticantes são e muito menos estão buscando uma santidade, uma sabedoria,
alguma coisa maior. E os pais dizem: “Mas onde foi que eu errei?”.

Na maioria das vezes a culpa é deles mesmos. Não sabem onde foi que erraram, mas nós
sabemos. O grande problema é o seguinte: eles quiseram ensinar pelo exemplo e pelo exemplo
nós não ensinamos ninguém. O próprio São João Crisóstomo diz que o exemplo serve para
as pessoas que já estão bem encaminhadas; para as pessoas ruins ou sujeitas às más influências,
o exemplo serve muito pouco.

Isso é evidente, porque se você der o exemplo quando a criança é pequenininha, ela vê o pai
e segue o exemplo. Mas depois, na medida em que ela vai crescendo, todos os colegas dão
exemplos diferentes, todas as outras famílias dão exemplos diferentes, a televisão dá exemplos
diferentes, os livros dão exemplos diferentes, a escola dá exemplos diferentes e o mundo
inteiro dá exemplos diferentes, menos o pai. Qual é a conclusão que ela vai tirar? Que o pai
pode ser uma pessoa muito admirável, mas ele é um trouxa, o exemplo dele não convence
ninguém!

A única coisa capaz de educar uma criança e mantê-la firme na vida religiosa é a doutrina, o
ensino, quando não ensinamos apenas pelo exemplo, mas damos as razões, explicando o
porquê. O efeito então é completamente diferente, porque quando ensinamos a doutrina,
não damos só um exemplo, uma norma, mas ensinamos os porquês. Fundamentamos as
coisas, damos todo um universo, uma síntese de algo coerente e a criança vai assimilando
aquilo. Quando ela chega diante da Tv Globo, do rádio, dos jornais, dos exemplos dos
colegas, ela vê que todos estão fazendo diferente, mas sabe o motivo de fazer o certo.

Então por curiosidade ela vai perguntar às demais pessoas: “Mas por que você está fazendo
isso? Por que é desse jeito, se eu aprendi de uma outra maneira que inclusive tem lógica?”. Com
certeza ela vai procurar a lógica, porque não tem lógica que todos estejam errados e só o pai
dela esteja certo. Quando então ela procurar a lógica, perceberá que a lógica não existe, eles
não vão dar lógica, não vão dar uma razão. Inclusive se ela for falar com o pai: “Pai, o mundo
está louco, porque eles estão fazendo isso, mas não tem lógica”, o pai pode mostrar por que não
tem lógica, pode explicar por que o resto do mundo está fazendo daquele jeito. E quando o
filho perceber, dará graças a Deus por ter nascido numa família como aquela, pois todos estão
doidos, mas o pai dele é a pessoa mais sábia que existe.

Essa pessoa nunca mais vai se perder! Ela está pronta para enfrentar o mundo, o diabo, a
carne, o que for que seja. Uma criança assim não volta mais atrás, isso é para sempre, porque

107
diante da doutrina certa, da justificação certa, como existe dentro da Igreja, da Tradição
cristã, da sã filosofia, da sã teologia, não tem nada que consiga concorrer.

O problema de se fazer isso (e é por isso que a educação falha) é que os pais têm de estudar,
os pais não podem se limitar a dar exemplo. Se os pais não estudarem, dificilmente se
santificarão. Se tiverem sido bem encaminhados, pelo menos poderão perseverar na vida
cristã de um católico praticante até a morte, mas não conseguirão que os filhos façam a
mesma coisa.

Então se é para garantir um mínimo dos mínimos, que é o mínimo mesmo, isto é, se não é
para buscar a perfeição do reino dos céus, mas pelo menos ser um católico praticante e ter
certeza de haver morrido e deixado os filhos encaminhados, e que quando eles morrerem
chegarão ao céu, os pais têm que estudar, têm que estudar muito! Devem ser mais inteligentes
que o mundo inteiro que estará à volta do seu filho! E o filho precisa perceber isso, perceber
essas razões.

Essa é uma obrigação estrita. Apesar de tudo que falamos sobre o matrimônio, o primeiro
dever dele é a educação dos filhos, maior inclusive que os deveres com o próprio cônjuge. A
partir do momento em que alguém tem filhos, sua primeira obrigação é com eles. E
exatamente por causa dessa obrigação, a pessoa tem o dever de fazer tudo que seja possível
para poder educar seus filhos na vida religiosa. Se hoje em dia os pais não conseguem mais
garantir que os filhos sejam católicos praticantes sem estudar, significa que eles têm [a
obrigação] de estudar ou então estarão cometendo um pecado grave.

Há 500, 300 anos atrás, para garantir essas condições mínimas, talvez isso não fosse
necessário: na época em que não havia rádio, telefone, televisão, os jornais eram escassos,
poucas pessoas tinham acesso a essa abundância de livros como se tem hoje.

A biblioteca que temos aqui é razoável, mas hoje qualquer professor universitário que se
preze tem algo semelhante. Porém, há 500 anos atrás só o Vaticano tinha algo assim! A
maioria das grandes bibliotecas tinham 100 livros, era uma prateleira só. As pequenas tinham
20, 30 livros e eram todos manuscritos. Hoje em dia se tem acesso aos livros a torto e a direito
e, quando o livro não presta, pode-se achá-lo até na lata do lixo. Se alguém quiser um livro
não precisa nem gastar dinheiro, pode pedir e qualquer um lhe dá um livro — provavelmente
será alguma coisa que não presta.

Quando não havia essa proliferação de todo tipo de material audiovisual, de internet, de
informação, talvez seria possível garantir a educação [religiosa] do filho sem precisar estudar;
simplesmente frequentando a Igreja, fazendo ele ter amizade com o padre, levando-o à
catequese. Se era possível garantir uma coisa dessas naquela época, a pessoa que procedera
assim fez o mínimo necessário.

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Na verdade, nós temos obrigação não só de sermos católicos praticantes, mas de nos
santificarmos e ensinarmos o caminho da santidade, da verdadeira espiritualidade aos filhos.
Mas, digamos assim, o mínimo que seria moralmente necessário para não ser matéria grave é
aquilo que é necessário para garantir que o filho se manterá em estado de graça durante todo
o resto da sua vida. É o mesmo que um Bispo deve ser capaz de garantir em relação a um
candidato à ordenação sacerdotal, é o mínimo! Ressalte-se que é o mínimo mesmo, ou seja,
exigir de um padre que ele se mantenha em estado de graça é o mínimo dos mínimos;
normalmente se deveria dar mais a um padre e mais aos filhos.

Ocorre que hoje, mesmo para esse mínimo, não é possível sem muita sabedoria, sem muito
conhecimento. É necessário dialogar com o filho, explicar-lhe as razões profundas do
universo, da criação, da religião, da espiritualidade, da moral, da ética. Não basta só dizer o
que é o certo; é preciso dar a justificação completa, cosmológica, senão diante do mundo nós
o perdemos!

Apenas quando o pai tiver explicado tudo nos mínimos detalhes para o filho e ele puder
comparar com as razões que o mundo dá, e então perceber que o pai efetivamente tem razão
“Não sei como aconteceu esse milagre, mas ele tem razão e está todo mundo errado”; enfim,
quando o filho perceber isso claramente, é que ele não vai se perder nunca mais.

Portanto, para sermos pais hoje em dia somos obrigados a fazer isso, senão o que vai acontecer
é o espetáculo que estamos vendo a muito tempo, é o mesmo filme! Vemos pais católicos
praticantes que acreditam nos sacramentos, confessam, vão à missa aos domingos, cumprem
os mandamentos; se não fossem casados nem tivessem filhos, isso seria o mínimo para se
salvarem, mas estão descuidando obviamente da educação dos filhos e quando estes tiverem
quinze anos, os pais não saberão mais o que fazer. Podem garantir que os filhos não serão
traficantes nem marginais, mas não vão garantir que eles não viverão em pecado grave.
Inclusive vai ser até um milagre se eles não pecarem gravemente, apesar do exemplo deles.

Então, por incrível que pareça, dentro do mandamento de honrar pai e mãe, a parte mais
pesada não é para os filhos, mas justamente para os pais. Porque hoje em dia é evidente que
existe uma obrigação grave para os pais que, para ser cumprida, exige muita preparação.
Sendo assim, eles são obrigados a se preparar para isso.

E não é nada de fora do comum, mesmo que a pessoa não tenha se preparado para o
casamento. Suponha que uma pessoa está namorando e vai casar ano que vem: até que ela
tenha o primeiro filho e até que esse filho comece a conversar, são uns quatro ou cinco anos.
Em quatro ou cinco anos somos capazes de mudar tremendamente e de aprender um mundo
de coisas; só não aprendemos porque somos preguiçosos, pois tem como fazer isso.

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Normalmente o certo seria se nós já fizéssemos isso desde criança. Quando alguém chega aos
dez, doze, quinze anos, se teve uma educação sadia, ele já sabe se quer ser padre, ser monge,
se quer casar, só não sabe com quem vai casar. Mais ou menos as pessoas sabem: “Eu quero
ser padre”; “Eu quero casar, vou encontrar uma menina bonita que goste de mim. Vou casar
e formar uma família”.

Se realmente o indivíduo está recebendo a formação, o próprio pai deveria orientá-lo,


dizendo: “Olha, se você está pensando em casar, se você quer ser pai e formar uma família,
você terá responsabilidade para com os seus filhos. Você já tem que começar a estudar,
conhecer as Sagradas Escrituras, conhecer filosofia, teologia, conhecer essas coisas todas para
orientar os seus filhos um por um. Você não pode deixá-los sob a responsabilidade da
catequese”.

A catequese no Brasil é muito pobre. A melhor catequese que ouvimos falar era a que se dava
na Polônia. Durante a época comunista, a igreja na Polônia tinha criado faculdades de
catequese – para ser catequista o sujeito deveria ter feito a faculdade de Catequese. Havia
então a catequese não só para a primeira comunhão, mas para a vida toda: colocava-se a
criança pequenininha na catequese, que durava praticamente até ela casar.

Entretanto, ainda que existisse uma coisa dessas, isso não dirimiria a obrigação dos pais. Na
verdade, isso é uma ajuda para os pais. Quem vai responder diante de Deus pela formação
religiosa dos filhos não é o catequista, é o pai. Então ele pode se servir dessas coisas.

Isso existia na Polônia na época do Partido Comunista; agora não sabemos se é assim. De
qualquer maneira, o único lugar que conhecemos onde houve algo desse tipo é na Polônia,
mas nem isso seria desculpa! Na catequese do Brasil na maior parte das vezes as pessoas são
improvisadas: o pároco, que nem sempre tem uma formação muito boa, convida no começo
do ano dentre os fiéis quem quer ser catequista e lhes dá uma preparação improvisada, muito
longe de ser uma Faculdade de Catequese.

Sendo assim, não tem como confiar numa catequese dessa maneira. Nós temos que estudar
para termos a garantia de que nossos filhos sejam educados e perseverem pelo menos no
estado de graça. Muito mais desejável ainda seria se, além da moral e das coisas básicas do
cristianismo, conhecêssemos espiritualidade e tivéssemos uma vida interior de comunhão
com Deus com experiência da coisa, sabendo o que essas coisas significam por experiência
própria, a fim de podermos passar aos filhos não só o desejo de perseverar no estado de graça,
mas também de ir ao encontro de uma comunhão com Deus. São essas coisas que, de modo
geral, são encontradas no quarto mandamento.

Quando o pai realmente conheceu a doutrina, foi um homem sábio e virtuoso e educou os
filhos desde criança, é praticamente impossível um filho educado dessa maneira se perder.

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Mas quando o pai começa a fazer isso quando os filhos já têm quinze ou dezoito anos, na
maior parte das vezes não há mais o que fazer. O pai então é obrigado a se confessar, dizer o
estrago que fez e repará-lo dentro do possível, porém na maioria das vezes não tem mais o que
fazer.

Contudo, Deus é misericordioso e nunca despreza o coração contrito. Com certeza, se a


pessoa reconhece o erro e promete que não vai fazer mais caso tenha outra chance, Deus vai
saber perdoá-la.

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Aula 7 – QUINTO MANDAMENTO I
(Obs.: Não existe a aula 6)

Índice
1. Introdução
2. O aborto e as demais práticas abortivas
A) Pílula do dia seguinte
B) Anticoncepcionais hormonais
C) Dispositivo Intrauterino (DIU)
D) Fecundação artificial
E) Se o aborto é lícito em alguma hipótese
F) Aborto indireto
G) Casos semelhantes ao aborto indireto

1. Introdução

Sabemos que o quinto mandamento é Não matar. Isso significa que, depois do respeito aos
pais, Deus pede que tenhamos respeito pela vida dos outros. E isso inclusive mostra o quanto
ele quer que respeitemos os pais, porque ele colocou o respeito aos pais num plano mais
elevado do que o próprio “Não matar”.

Os mandamentos de Deus estão em ordem decrescente de gravidade: os primeiros três dizem


respeito a Deus, os outros dizem respeito ao próximo. É evidente que matar é mais grave do
que cometer adultério. O que é mais grave: matar um homem ou dormir com a mulher dele?
É matar a pessoa! E cometer adultério é mais grave do que roubar. Qualquer pessoa preferiria
perder uma posse do que perder a própria mulher, e qualquer pessoa preferiria perder a
mulher do que perder a própria vida. Considerando assim, podemos ver o quanto Deus julga
que o respeito aos pais é uma coisa grandiosa, porque vem antes do próprio mandamento de
não matar.

Este mandamento não ensina apenas a não matar, mas todas aquelas coisas que se assemelham
ao ato de matar só que são menos graves. Assim como nós não podemos matar, também não
podemos bater, judiar, arrancar um olho, agredir, sendo que a agressão mais grave é
justamente aquela que acaba tirando a vida. Matar é a mais grave das situações que ocorrem
dentro do mandamento de não matar. Mas o mandamento também preceitua todas essas
coisas: que perdoemos, que não tenhamos malevolência, que não judiemos, que respeitemos,
assim por diante.

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2. O aborto e as demais práticas abortivas

Em particular há algumas coisas muito delicadas em relação ao não matar que devemos saber,
por exemplo a questão do aborto. Obviamente o aborto está dentro de “não matar”: não
podemos cometer aborto porque estamos matando um ser humano que já existe.

Dentro desta questão é importante salientar que não é pecado apenas fazer aborto, mas
também é pecado gravíssimo aconselhar a fazer aborto, orientar a fazer aborto. Também é
evidentemente um pecado grave se um médico se recusa a fazer aborto, mas dá o endereço de
um colega que faz. Ao fazer isso ele praticamente está fazendo o aborto: isso também é pecado
grave. O mesmo vale para as pessoas que orientam a fazer aborto. Elas dizem: “Olha, eu sou
contra o aborto, mas eu respeito a tua opinião. No que decidir fazer eu te ajudo”.
Obviamente isso também é pecado grave.

A) Pílula do dia seguinte. — Coisa que as pessoas também não sabem é que existem vários
métodos que fazem aborto e que normalmente não são tidos como tais. Por exemplo a pílula
do dia seguinte é abortiva. A pessoa tem uma relação sexual desprotegida e a bula da pílula
diz que durante 72 horas ela pode tomá-la, pois a pílula não permitirá que ela fique grávida.
O fato é que, se a pessoa está no seu momento de fertilidade, a concepção do bebê pode se
dar em questão de 20 minutos. Quer dizer, se a mulher está no seu pico de fertilidade e tiver
relação naquele momento, a fecundação do óvulo pode se dar em questão de 10, 20 minutos:
é questão apenas do espermatozoide subir pelo útero e ir até a trompa. E no pico de fertilidade
todo o aparelho do útero está revestido de um muco com PH exato para o espermatozoide
fazer isso, então em 20 minutos ela pode engravidar.

A bula então diz que se a pílula for tomada nas próximas 72 horas a mulher não engravida.
Porém ela não vai perceber a gravidez, porque na verdade essa pílula altera o endométrio (o
revestimento interno do útero) de modo que, no sétimo dia da gravidez quando o embrião
tivesse que implantar, ele não consegue se implantar. Portanto é realmente um aborto!

A pílula do dia seguinte é abortiva, é feita para isso. Se a pessoa não engravidou, obviamente
a pílula não vai fazer um aborto, porque a mulher não ficou grávida. Nesse caso seria inclusive
inútil tomar a pílula. Mas se ela engravidou, se o óvulo foi fertilizado, a pílula do dia seguinte
impede que ele implante (nidação). Logo, ela é feita para ser um abortivo.

B) Anticoncepcionais hormonais. — Da mesma maneira ocorre com os anticoncepcionais


hormonais. Quando eles foram desenvolvidos nos anos 60 a dosagem era muito alta e dava
efeitos colaterais muito fortes: pressão alta, problemas no fígado, irritabilidade, suspeita de
câncer, etc. A dosagem era alta porque a intenção era impedir a ovulação, mas as queixas
foram tantas que os laboratórios acabaram descobrindo que, reduzindo a dosagem abaixo do

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nível aonde já não deveria mais haver segurança que a mulher engravidasse, mesmo assim ela
não engravidava. E descobriram que isso ocorre porque a pílula não só age impedindo a
ovulação, mas também alterando o endométrio.

Colocaram uma dosagem mais baixa e em alguns ciclos a mulher não ovulava, mas em alguns
ciclos ela ovulava. Porém, apesar de ovular e poder engravidar, a gravidez não continuava
porque no sétimo dia o embrião não implantava. Isso pode ser encontrado nas próprias bulas
dos anticoncepcionais.

A bula não diz que o anticoncepcional é abortivo, mas que a pílula consegue seu efeito de
impedir a gravidez por um mecanismo tripartite: impedindo a ovulação, alterando o
endométrio e mais um terceiro. Se, porém, ela diz que não é apenas impedindo a ovulação,
mas também alterando o endométrio, e se esse mecanismo é relevante para que a mulher não
engravide, só pode ser porque na verdade ela concebe, mas o óvulo não implanta.

Portanto, as pílulas anticoncepcionais são também abortivas. Não tanto quanto a pílula do
dia seguinte, porque em alguns ciclos elas são anovulatórias, mas nós nunca sabemos qual o
ciclo em que ela será anovulatória. A proporção dos casos em que ela não é anovulatória varia
pela composição das pílulas. A literatura fala que as pílulas que são apenas de um único
hormônio não impedem a ovulação em 50% dos ciclos. Quer dizer, em metade dos ciclos ela
não impede a ovulação: se a mulher estiver fértil ela irá engravidar, mas vai abortar no sétimo
dia da gravidez sem nem perceber a diferença entre um aborto e uma menstruação –
sintomaticamente é a mesma coisa, mas lá no meio da menstruação tem um bebezinho, um
embrião mais ou menos do tamanho de metade de um grão de arroz.

As pílulas combinadas de dois hormônios, estrógeno e progesterona, calcula-se que elas não
sejam anovulatórias numa taxa que depende muito da composição, mas que muitas vezes
podem estar em torno de 90%. Então em 90% dos ciclos elas são anovulatórias, em 10% dos
ciclos elas não impedem a ovulação, mas ainda assim a mulher não desenvolve a gravidez.
Portanto elas são abortivas.

Assim como a pílula, todos os métodos anticoncepcionais que são químicos, por exemplo a
injeção e o implante debaixo da pele, também são abortivos porque utilizam o mesmo
mecanismo da pílula.

C) Dispositivo Intrauterino (DIU). — Depois existe também o DIU. Quando foi


desenvolvido ainda em plástico, ele era abortivo em 100% dos ciclos, porque o DIU não
impedia a ovulação. Ele irritava a parede do endométrio, produzindo nela uma inflamação.
A mulher ovulava e o óvulo que engravidava não implantava. Ele podia ser abortivo doze
meses por ano, o que moralmente falando é uma tragédia.

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Depois inventaram um DIU que era de cobre. Além de irritar a parede do endométrio, ele
liberava íons cobre dentro do útero e o pessoal afirma que essa liberação é espermicida. Então
o DIU de cobre teoricamente mata os espermatozoides. Porém nós nunca vimos nenhum
estudo que dissesse que a eficiência espermicida do DIU de cobre seja 100%. Se fosse 100%
ele não seria abortivo, mas não dá para garantir isso. Não temos conhecimento de nenhum
estudo que garanta uma coisa dessas.

E é uma coisa que se pode fazer, porque antes de inventarem o DIU de cobre fizeram estudos
para provar que o DIU era abortivo. Isso era feito colocando DIU em uma macaca. Ela usava
DIU e se deixava ela ter relação sexual com o macaco. Depois, quando ela menstruava,
analisava-se a menstruação no microscópio.

O que se sabe é que quando a pessoa ovula, mas não fecunda, o óvulo fica na trompa, não
desce para o útero e é absorvido pela trompa. Quando a pessoa menstrua não tem restos do
óvulo. Quando a pessoa engravida, fecunda, o óvulo vai para o útero e não implanta.

Ao analisarmos a menstruação de macacas que usam DIU é simples vermos se o DIU é


abortivo ou não, porque se em nenhuma menstruação encontrarmos algum óvulo
fecundado é porque não é abortivo: ela nunca fecundou e os óvulos foram absorvidos na
trompa. Se encontrarmos óvulo fecundado na menstruação da macaca quer dizer que o DIU
não impediu a ovulação: o óvulo não implantou e desceu na menstruação.

Teve um médico em São Paulo que fez uma tese sobre isso com o DIU de plástico e provou,
através desse método, que ele era abortivo de uma maneira evidente. Já pela lógica deveria ser,
mas com essa experiência a prova fica flagrante. E quando surgiram os DIUs de cobre ele
tentou fazer uma outra tese, mas não conseguiu levar ao fim. De qualquer maneira a coisa é
clara. É muito duvidoso que a eficiência dos íons de cobre como espermicida seja 100%. É a
mesma coisa da pílula anticoncepcional. Então o DIU, até prova claríssima em contrário, é
abortivo.

Podemos ver que, sob esse ponto de vista, o mandamento de não matar se estende a mais
coisas.

D) Fecundação artificial. — Pior ainda é o caso da fecundação artificial, que cai exatamente
dentro do mandamento de não matar. As pessoas que fazem fecundação artificial são pessoas
que não podem ter filhos. Elas tomam um remédio para ter uma hiperovulação e ovulam
vinte óvulos num ciclo; um médico recolhe os óvulos e coloca-os numa Placa de Petri onde
há substâncias nutritivas, jogando depois os espermatozoides do marido ou do doador e esses
espermatozoides fecundam os vinte óvulos.

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O médico então escolhe dentre estes vinte óvulos os quatro ou cinco que, pelo microscópio,
ele acha que são melhores depois que já estão fecundados, e geralmente congela os outros
quinze ou joga-os fora. Ele poderia não fazer assim também: poderia só pegar quatro,
fecundar os quatro e usar os quatro. Às vezes se faz isso, às vezes não. Por vezes fecunda-se
mais e deixa-se os óvulos já fecundados numa geladeira a 180° abaixo de zero, caso a mulher
queira tentar de novo e não precise refazer o procedimento; se ela não quiser, aquilo vai para
o lixo ou para experiências com células-tronco.

Célula-tronco significa que deixar o embrião desenvolver-se até um estágio, salvo engano
vinte células, depois pegar o embrião, abri-lo e arranca as vinte células. As células-tronco são
isso, elas não são o embrião. Células-tronco são células que estão em via de especializar-se, são
semiespecializadas. Na verdade, é estripar o embrião!

Aquele embrião seria colocado no útero da mulher. Então separa-se as vinte células que ele
tem e cada uma daquelas células, cultivada em determinadas substâncias, PHs, temperaturas,
etc., vai dar determinados tipos de tecidos. Isso que são células-tronco, mas para isso é preciso
esquartejar um bebê! É um ser humano que podia ser um médico, podia ser o filho daquela
mulher, podia estar na escola: ele foi esquartejado para que suas vinte células pudessem ser
trabalhadas em meios e cultivos diferentes, cada uma delas para dar tecidos neurológicos,
tecidos cardíacos, tecidos de vários tipos.

Nós vemos que, por trás da indústria da fertilização in vitro, há uma indústria assassina, isso
é homicídio! Os quatro embriões que são fecundados são colocados no útero da mãe
simultaneamente. Na fecundação normal do ser humano dificilmente são fecundados dois,
mais dificilmente ainda são fecundados três. Normalmente cada ciclo fecunda somente um
embrião, é raro o ciclo em que dois são fecundados. E nasce um ser humano!

Na fertilização in vitro, colocando um no útero a chance de engravidar é mínima. Então são


colocados três ou quatro para engravidar um, pois espera-se que, com quatro, um sobreviva.
Isso é diferente do que a natureza normalmente faz, por causa do seguinte. Primeiro que os
motivos que a ciência parece enxergar sobre o por que existe essa diferença, e conseguimos
entender que são verdadeiramente fundamentados, não estão sendo passados por haver uma
ideologia interessada em propor caminhos falsos.

Os motivos básicos são dois. Primeiro porque a fecundação normal se dá no útero e não na
placa. No útero o homem tem que colocar os espermatozoides na vagina da mulher e os
espermatozoides têm que subir numa corrida ao longo do colo do útero, por dentro do útero
até a trompa. Então, no seu dia de fertilidade a mulher é revestida de um muco que faz uma
“auto-estrada” para o espermatozoide ir até o óvulo. No dia da fertilidade há uma “pista de
corrida” e um bilhão de espermatozoides apostando corrida, uma corrida longa. Isso
provavelmente é para selecionar o melhor. Então quando o óvulo fecunda e tem um bilhão,

116
a natureza foi sábia, não foi simplesmente um bilhão à toa. Ela colocou um bilhão para
apostar corrida para que o melhor, o mais rápido, o mais forte ganhasse a corrida, porque o
primeiro que alcançar, fecunda.

Para fecundar na Placa de Petri, que é um vidrinho redondo, coloca-se quatro óvulos com
todos os espermatozoides ali dentro; não tem corrida nenhuma, aquele que por acaso caiu
mais perto é o que fecunda. Esse provavelmente é um dos motivos porque é tão difícil
engravidar uma mulher com a fecundação artificial, em relação à fecundação natural: são
necessários quatro para vingar um. E numa fecundação normal, se houvessem quatro óvulos,
provavelmente os quatro iriam vingar.

Mas tem um outro problema também: é que na hora que ocorre a fecundação na trompa
(houve a corrida e um espermatozoide ganhou) na hora que ocorre a fecundação
imediatamente existe uma liberação de hormônios na trompa para avisar o corpo da mulher
que ela acabou de engravidar e, portanto, tem que preparar o endométrio não para uma
menstruação, mas para acolher o bebê. Porém, quando ocorre a gravidez na placa a mulher
não está sabendo disso. O corpo da mulher está no dia da fertilidade, mas não fecundou
ninguém dentro do corpo dela e sim na placa, então não existe aviso hormonal. Ao contrário,
o corpo da mulher fica hormonalmente sabendo que dessa vez ela “não engravidou” e prepara
já o endométrio para menstruar e não para acolher a gravidez — o endométrio é a camada
interna do útero que cresce durante o ciclo menstrual para poder acolher o bebê; quando a
gravidez não ocorre essa camada descama e isso é a menstruação. A menstruação é a camada
mais interna do útero que se renova de ciclo em ciclo.

Portanto, quando engravida na Placa de Petri, a mulher não tem hormônio liberado para
avisar o seu corpo de que ela engravidou. Ela fica hormonalmente sabendo que “não está
grávida”, porém de fato está, mas lá na placa e seu corpo não sabe disso e está preparando o
endométrio para descamar. Então no sétimo dia, quando os óvulos foram fecundados, já
estão com um certo número de células e o médico pode escolher qual dos óvulos é o melhor
para implantar, ele vai e joga os óvulos dentro do útero, um útero que já estava começando a
se preparar para a menstruação. Nesse momento os embriões começam a enviar o sinal
hormonal: “Não é verdade. Você está gravida! Para tudo, segura a menstruação. Agora você
tem que acolher os bebês”. Então na última hora é como se acontecesse um alarme: a mulher,
que estava preparando para menstruar, tem que segurar tudo e reverter a coisa toda.

Obviamente o processo não é tão eficiente como se tivesse sido preparado com sete dias de
antecedência. Esse é outro motivo porque a gravidez artificial tem uma porcentagem muito
pequena de sucesso em relação à fecundação normal. Por isso que são colocados quatro
óvulos para fecundar um, pois se apenas um fossse colocado provavelmente a mulher não
engravidaria e a operação deveria ser repetida várias vezes, custando mais dinheiro e mais
desilusão, sacrifício, etc.

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Até aí, do ponto de vista do homicídio, não haveria problemas. Do ponto de vista do sexto
mandamento, da castidade, a coisa seria problemática. Não é só por ser homicídio que a
fecundação artificial é errônea; tem outros motivos em relação à própria sacralidade da
sexualidade. De qualquer forma, se fosse só por isso, não haveria problema por causa da
questão do homicídio, supondo que não se jogasse fora embriões descartados.

Imaginemos uma mulher que não pode ter filhos de jeito nenhum. Se ela engravidar pela
natureza a chance de que a gravidez vá à frente, digamos assim, é 80%. Os médicos dizem que
esse percentual é menor, mas temos praticamente certeza que tal afirmação foi motivada
ideologicamente. Temos razões para acreditar que a eficiência da fecundação natural é muito
mais alta do que aquelas que se creem hoje, e por questões teológicas, mas questões biológicas
que estudamos. Supomos que haja gente interessada em dizer que a eficiência é baixa, mas
mesmo os que falam que ela é baixa, reconhecem que é muito mais alta do que a artificial.
Isso é um fato: a eficiência da fecundação natural é muito mais alta do que a da artificial. E
na nossa opinião ela é muito mais alta do que aquilo que os médicos admitem, e temos razões
médicas para achar isso e não são razões superficiais. De qualquer forma, acontece que a
eficiência da fecundação natural é muito mais alta do que a artificial.

Supondo então que uma mulher queira engravidar pelo método natural, mas não consiga e
se vê diante do dilema: “Vou engravidar por um outro método, só que a eficiência é muito
mais baixa, a chance do bebê morrer é muito mais alta”. Seria lícito fazer isso, do ponto de
vista do mandamento “Não matar”?

Se fosse só por causa do mandamento de não matar seria lícito, porque se uma pessoa não vai
nascer de jeito nenhum e ela tem uma chance de nascer por um outro método, que é muito
menos eficiente, mas existe uma chance, essa pessoa tem todo direito de correr o risco. Se eu
sei que não vou nascer indo por um determinado caminho e, por um outro caminho, eu
tenho 10% de chance de viver, eu tenho todo direito de tentar buscar aquilo ali, porque
aqueles 10% valem mais do que a certeza do não.

É o mesmo motivo pelo qual, moralmente, uma pessoa que está sujeita a ter um aborto
natural (ela engravidou e abortou, depois engravidou e abortou, engravidou e abortou) e a
chance de ela engravidar e vingar é pequena, mas existe (...) então nós devemos dizer a ela que
não tente mais porque a vida é sagrada? Não, ela deve tentar justamente porque a vida é
sagrada! Porque essas crianças abortaram, mas inclusive já existiram, elas vieram à vida,
viveram dois, três meses. Dois, três meses de vida é um dom muito maior do que não ter vida
nenhuma — fora o fato de que nós acreditamos que eles tinham uma alma e que essa alma
sobreviveu.

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Se aplicarmos a mesma lógica à fecundação artificial, sob esse ponto de vista, o fato de que a
mulher não pode engravidar de jeito nenhum por um método natural, mas existe um outro
método de uma eficiência mais reduzida, não deveria ser um pecado contra o mandamento
de não matar.

Isso seria um pecado sim contra o sexto mandamento, que tem outras questões, mas do
ponto de vista de “não matar” não seria errado. O erro está em outro lugar: colocar três ou
quatro embriões para que ela engravide. Isso já conversamos até intimamente com
especialistas em fecundação artificial e eles não conseguiam entender, por incrível que pareça.
Eles podiam até não aceitar, mas imaginávamos que ao menos entendessem, porém o fato é
que não conseguiram sequer entender, e eram pessoas inteligentíssimas.

O problema está no seguinte. Vamos imaginar que, implantando um embrião, a chance de


ele vingar seja 10%: a mulher tem 10% de chance de ficar grávida e há 90% de chance de não
dar certo. Colocando dois embriões, a chance de cada um vingar é menor, porque os dois
atrapalham – por incrível que pareça se houver dois embriões no útero, um atrapalha a
sobrevivência do outro: a chance de vingar cai de 10% para 9%. Só que os dois juntos têm
18%, então a chance de a mulher engravidar dobrou, mas a chance de cada um deles
sobreviver diminuiu, é de 9%. Colocando três, a chance cai para 8%, mas com os três juntos
passa de 18% para 24%: quase triplicou a chance de a mulher engravidar. Colocando quatro,
a chance de cada um cai para 7%, mas os quatro juntos têm 28% de chance. Portanto, quanto
mais embriões são colocados, maior é a chance daquele ciclo dar certo, mas cada embrião tem
menos chance individualmente.

Na verdade, isso é monstruoso, porque estes embriões já estão com uma chance reduzidíssima
de vingar. É como se o bebê tivesse nascido em risco de vida e precisasse ser colocado numa
incubadora: ele já está num risco de vida muito grande, porque aquela não era a condição
normal de ele ter sido fecundado; e para atrapalhar, colocam na incubadora um segundo bebê
e depois um terceiro. Já é difícil de ele sobreviver sozinho na incubadora; com dois, complica
mais e com três, complica mais ainda.

Para a maternidade como um todo é ótimo, porque vão nascer mais bebês, mas para cada
bebê que já está numa situação de risco delicadíssima e precisando de toda assistência, isso é
atrapalhar ainda mais a sua vida. E para quê? Para economizar no orçamento da mãe, para
que a mãe não tenha várias voltas! Na verdade, estamos brincando com a vida humana,
estamos judiando da vida humana! Estamos reduzindo ilegitimamente uma chance de a
pessoa sobreviver de um modo que não devia, a troco de um ganho.

Há outra coisa que costuma ser feita, mas nem sempre — em alguns lugares já está
começando a ser proibido, não sabemos como está a legislação mundial nesse momento. Dez

119
anos atrás isso não era proibido em lugar nenhum, mas agora parece-nos que já é em vários
lugares.

Supondo que fossem colocados três embriões, os três vingassem e mulher tenha pedido um.
Eles usavam uma técnica de redução embrionária, dizendo: “Não se preocupe, se
engravidarem os três nós fazemos uma redução embrionária. Não tem problema, não é
aborto”.

A redução embrionária é o seguinte: quando os três já estivessem suficientemente crescidos,


injetava-se uma agulha através do útero até o coração de dois dos três bebês, aplicando KCl
(Cloreto de Potássio) e o bebê morria, não sendo necessário fazer aborto. Quando os três
nascessem, aquele em que não havia sido feita redução embrionária nascia normalmente, e os
outros dois nasciam calcificados — como aqueles bebezinhos de gesso de dois meses de idade
que circulam no movimento Pró Vida.

Nada disso é explicado à mulher que vai fazer fertilização artificial. Elas acham que é uma
maravilha porque se está dando a vida, mas para cada vida colocada, podem ter sido mortas
mais vinte e dessas vinte algumas serão literalmente estripadas, se forem para a indústria da
pesquisa embrionária de células-tronco. Alguns embriões ficarão congelados para sempre,
não se sabe quanto tempo. Estima-se que a população de embriões congelados no mundo
está crescendo cada vez mais. Já há mais de milhões de bebês congelados no mundo inteiro a
200° abaixo de zero, que são todos bebês viáveis.

Uma coisa boa que não se fala, mas se sabe, porém se divulga o contrário, é que o
congelamento não danifica o embrião, independentemente do tempo. Uma vez que o
embrião é congelado a 200° abaixo de zero, a cinética química é nula, então o embrião não se
deteriora com o congelamento. O perigo para o embrião é o momento do congelamento e
do descongelamento.

O tempo de armazenamento não danifica o embrião. Um embrião de duzentos anos, de um


milhão de anos, é tão bom quanto um bebê que foi congelado a um mês atrás. Normalmente
na fecundação congela-se um embrião e, se o ciclo não der certo, usa-se os congelados no
próximo ciclo, sem precisar repetir a coisa.

É espalhado entre as pessoas na mídia que, depois de três anos, o embrião congelado não
presta mais, é lixo descartável. Isso não é verdade, porque nos EUA há múltiplas experiências
de centenas de embriões que estavam congelados a mais de uma década, e eles se
comportaram tão bem quanto os que estavam congelados a um ano.

A experiência mostra isso, é algo claro para quem conhece química e cinética química e sabe
como é a curva da velocidade da reação com a temperatura. Normalmente os médicos não

120
têm clara consciência disso, mas a 200° abaixo de zero não existe atividade química nenhuma,
não existe energia de ativação suficiente para poder desencadear qualquer reação química;
então para aquilo ali o relógio parou. Portanto, sob esse ponto de vista, um embrião
congelado a um milhão de anos é tão bom quanto um que foi congelado semana passada,
desde que ele seja congelado corretamente, o que não depende do tempo em que foi
congelado.

Isso significa que há uma quantidade enorme de seres humanos congelados que podiam estar
vivos! Eles são tão bons quanto os que foram congelados a semana passada e, por um motivo
sórdido, inacreditável, os cientistas divulgam constantemente na mídia que um embrião de
mais de três anos não presta, é lixo hospitalar. Eles sabem que é mentira, porque os dados
médicos empíricos mostram claramente que um embrião de 10 ou 15 anos, uma vez
descongelado, comporta-se tão bem quanto um de um mês. Isso é empírico!

Por não conhecerem de cinética química eles têm uma consciência muito confusa. Nesse
ponto precisariam chamar físico-químicos para conversar com eles. Isso eu reconheço: eles
têm uma consciência muito confusa. Se passasse um milhão de anos, não alteraria nada. Para
um físico-químico isso é claro como a luz do meio dia.

Agora, do ponto de vista prático isso não faz diferença nenhuma, porque a experiência
mostra que os embriões mais antigos que existem até hoje (não existe um embrião de um
milhão de anos, existem embriões congelados a 20 anos no máximo); a experiência mostra
que todos os que foram descongelados, comportaram-se tão bem ao serem implantados
como os recém-implantados. Sendo assim, pelas amostras que temos na prática, os médicos
têm os dados claros para entender que tanto faz [o tempo de congelamento]. Isso de um
milhão de anos um químico pode saber, mas não existem bebês de um milhão de anos; só
existem os de vinte, daqui a dez anos haverá os de trinta; e as experiências vão confirmando a
teoria química, de que uns são tão bons quanto os outros.

Nos EUA já existem irmãos gêmeos em que um está acabando a faculdade e o outro está
acabando de nascer, e são irmãos gêmeos. Um foi obtido na fertilização in vitro vinte anos
antes; o outro estava congelado a vinte anos, acabaram de descongelá-lo e ele está lá brincando
de boneca, enquanto o primeiro está se formando em medicina.

Noutras palavras, fertilização in vitro infelizmente é sinônimo de homicídio! É assassinato


em massa: descartar, congelar, estripar vários! Fecundam quatro, colocando-os numa
situação de risco agravado, que é ilícito. O único caso em que a fertilização in vitro não seria
homicídio seria quando pegassem um único óvulo e fecundassem um único óvulo,
implantando esse único óvulo numa mulher que seria absolutamente certo que não poderia
engravidar pela via natural. Nesse caso a pessoa não seria ré do quinto mandamento, mas seria
ré do sexto.

121
A fertilização in vitro não é lícita em caso nenhum. Esse único caso em que, embora não fosse
homicídio, seria pecado grave contra o sexto mandamento, esse caso não existe porque
nenhum médico fará isso. O médico que montar uma clínica para fertilizar um óvulo e
implantar um óvulo, terá que cobrar tão caro da mulher e a mulher terá que se submeter a
tantos ciclos que vai dizer: “Mas doutor, o senhor está louco. O seu vizinho me engravida
num ciclo só. Eu pago menos e não preciso ficar fazendo essa tortura toda”.

Então nenhum médico vai fazer isso, porque quando desaparece o critério moral, não tem
vantagem de fazê-lo. O médico que proceder assim é doido, a sua clínica vai fechar. Ainda
assim, a pessoa não seria ré do quinto mandamento, mas seria do sexto, que é outra questão.
A fertilização in vitro, mesmo se pudesse ser feita dessa maneira, seria sempre moralmente
ilícita, mesmo que pudesse ser feita com um único embrião.

De qualquer forma, se fosse possível, seria melhor que fosse com um único embrião do que
sendo desse jeito, porque assim é como um Serial Killer, por mais incrível que pareça! Mas é
isso, é assassinato em massa! Não é justo! Se alguém reconhece que é um ser humano, não é
justo tratar as pessoas desse jeito, como se fossem matéria bruta. Nós temos a plena dignidade
humana a partir da concepção.

E) Se o aborto é lícito em alguma hipótese. — Quando1 o aborto é lícito? Nunca, pode se


dizer!

Isso significa que em caso de estupro não é lícito fazer aborto, pois o criminoso é o
estuprador, que não será morto; e a criança que não tem culpa nenhuma, não pode receber
uma pena de morte, que seria desproporcional inclusive para um crime de estupro, pois
condenar um estuprador à morte é uma pena desproporcional. A pena de morte não seria
justa nem para o estuprador; ele merece uma pena, mas não tem sentido condená-lo à morte.
Logo, se nem o estuprador é condenado à morte, porque um inocente deve receber a pena de
morte? Ele tem direito à vida e tem tanto direito quanto um ser humano qualquer; ele não
tem nada a ver com o estupro que foi provocado. Então não é lícito fazer aborto em caso de
estupro.

Não é lícito também fazer aborto em caso de risco de vida. Se a pessoa tiver que escolher entre
fazer um aborto e a sua própria vida, ela não pode fazer o aborto, porque de modo geral
[ninguém] pode matar uma pessoa para sobreviver. Há outros casos semelhantes em que é
muito fácil de entendê-lo. Se admitimos as regras da lógica é possível entender isso
claramente.

1
Aqui tinha uma frase curta em que ele citava que deveria tratar do aborto indireto. Porém desenvolveu a
questão da ilicitude do aborto. Coloquei o trecho lá embaixo, num tópico separado para o aborto indireto,
quando ele retoma este assunto.

122
Imagine que João se encontre na seguinte situação: existe uma pessoa inocente (Alberto) e
uma quadrilha quer matá-la. O bandido chega para João, que é amigo do inocente, e diz
assim: João nós queremos matar o Alberto, mas você tem amizade com ele e é muito mais
fácil você matar o Alberto do que nós. Se você não fizer, nós vamos matar o Alberto, mas por
que fazer pela via complicada? O Alberto já está morto, nós vamos matá-lo, mas como você
tem amizade com ele, você pode matá-lo muito facilmente. Então olha, aqui tem um pozinho
que você pode colocar na comida dele e assim ele morrerá com certeza, mas de um jeito que
nenhum IML nunca vai identificar que ele morreu por envenenamento. Você pode fazer isso
de um modo muito fácil. Se você não fizer, nós vamos matá-lo do mesmo jeito. Mesmo que
saia no jornal, tenha investigação, nós sabemos fazer o negócio, mas nós queremos de um
jeito mais simples e se você não quiser nós vamos matar ele. Além disso, se você disser não,
nós vamos matar o Alberto e você também, que já está sabendo da nossa intenção; vamos
matar a sua mulher e os seus filhos. O Alberto já está morto, agora depende de você escolher
se você vai querer morrer com a sua mulher e os seus filhos. Não fique com pena dele, ele já
vai morrer de qualquer jeito. Você aceita? Se você aceitar nós te pagamos um milhão de
dólares.

É lícito João aceitar uma proposta dessas? De jeito nenhum! Ele não pode matar um inocente
para salvar a sua vida.

Outro exemplo. Imagine que Pedro seja funcionário de um banco e entre num cofre no qual,
quando alguém entra, a porta fecha na sexta-feira a noite e só abre na segunda. E por acaso
Pedro entrou junto com um colega dentro do cofre e os dois ficaram presos, só vai abrir na
segunda-feira. Eles calculam o ar que tem lá dentro e só tem ar para uma pessoa. As hipóteses
de se salvarem são as seguintes: i) se não fizerem nada e ficarem esperando quietinhos, sábado
à noite os dois estão mortos, porque não tem ar para os dois; ii) se Pedro matar o colega ou o
colega o matar, ou se Pedro se suicidar, ou o colega se suicidar, vai sobrar o ar direitinho para
uma pessoa.

Se os dois não fizerem nada ambos morrerão. Se um matar o outro ou um se matar, o outro
sobrevive. Não seria mais lógico um matar o outro? Isso não seria lícito num caso desses, pois
[ninguém] tem o direito de matar uma pessoa para salvar a própria vida. Se fosse lícito fazer
isso, também seria lícito o João matar o Alberto, porque o Alberto vai morrer mesmo e se
João não matá-lo, além do Alberto, vão morrer João e a sua família. Mas não é certo isso, não
é certo. Portanto [ninguém] pode matar uma terceira pessoa para salvar a tua vida.

Assim sendo, se uma mulher estivesse grávida e tivesse que fazer um aborto para salvar a sua
vida, ela não poderia fazer esse aborto. [Ninguém] pode matar uma pessoa para salvar a
própria vida, não importa quem seja: se é o João, se é o Alberto, se é o colega do cofre ou se é
o bebê, se é o próprio filho.

123
Graças a Deus, a partir da segunda metade do século XX os médicos dizem que esse caso não
acontece mais, ou se acontece é uma raridade fora do comum. Já vi muitos professores de
obstetrícia afirmarem claramente que esse caso não existe mais. Já vimos outros dizerem que
existe, mas são casos raríssimos. O mais provável é que não exista mesmo, mas antigamente
existia. Até 1950 mais ou menos era comum ter que escolher entre fazer o aborto e a vida da
mãe.

Por exemplo, até a invenção da penicilina, em 25% das cesáreas a mãe morria por infecção,
principalmente nas condições menos favoráveis de cem anos atrás, e muito mais nas de
duzentos anos atrás. Fazer uma cesárea era quase como condenar a mulher à morte; em certos
casos mais delicados podia ser até quase uma certeza. Então era preciso escolher entre fazer a
cesárea e a mulher morrer, ou matar o bebê. Num caso como esse não seria lícito matar o
bebê.

Também tem outros casos, há cem anos atrás, que em certos partos a criança nascia de
maneira torta e encalacrava e não tinha jeito de fazer a cesárea. Era preciso fazer uma
craniotomia — pegar um fórceps, esmagar a cabeça do bebê e tirá-lo de dentro do útero; ou
então o parto era feito, mas a mulher morria. Isso não existe mais, não se ouve falar mais de
craniotomia há décadas, mas até o começo do século XX isso era comum, porém não era
lícito. Num caso desses infelizmente deveríamos salvar o bebê, não poderíamos matá-lo para
salvar a mãe, pois isso não é lícito.

Isso não era algo difícil de entender. Quando minha irmã e eu nascemos nos anos 50, minha
mãe teve risco durante o parto. Ela não era nenhuma pessoa de virtudes heroicas, era uma
católica bastante comum, mas segundo o padrão de sessenta anos atrás — não se compara
com os comuns de hoje. Quando foi para o meu parto e o da minha irmã ela dizia que, se
tivesse de escolher pela vida dela e do bebê, que escolhesse a do bebê. E papai do lado, ao invés
de dar bronca, dizia: “Doutor, eu assino embaixo, é do jeito como ela está falando”. E era uma
atitude muito comum, ninguém ficava admirado com isso.

Nos dias de hoje, em que essas atitudes não são mais necessárias, as pessoas não conseguem
mais entender isso. Agora, que realmente não existe aquele problema, mas a questão moral
existe, as pessoas não entendem mais.

F) Aborto indireto. — Existe uma outra questão no quinto mandamento em relação ao


aborto que devemos tratar, é a questão do aborto indireto. O aborto indireto é quando a
mulher não está sendo interpelada para a necessidade de fazer um aborto, mas precisa fazer
um tratamento que pode causar indiretamente um aborto. Normalmente os casos são dois.

124
● Primeiro, uma quimioterapia. A mãe está grávida e para sobreviver precisa fazer uma
quimioterapia imediatamente. Ela não pode esperar o fim da gravidez, pois se esperar
o bebê vai nascer, mas ela não terá mais chance de fazer a quimioterapia; porém se ela
fizer a quimioterapia, provavelmente o bebê vai morrer.
● Um outro caso parecido é quando a mãe tem câncer de útero, então precisaria retirá-
lo. Mas ela está grávida e se retirar o útero, o bebê morre.

Nesse caso isso não é um aborto, porque o que a pessoa quer não é matar o bebê, mas retirar
o útero e essa retirada do útero seria feita estando grávida ou não, então indiretamente o bebê
vai junto. No caso da quimioterapia é a mesma coisa. A quimioterapia era para tratar o câncer
da mãe, não para matar o bebê. O bebê está lá e pode morrer por causa da quimioterapia,
porque estava ali na hora errada.

Num caso desses a moral coloca que, se realmente houver uma probabilidade fundada da
mãe sobreviver (não é uma quimioterapia inglória, que não vai funcionar), tanto na
quimioterapia como na retirada de útero ela pode ou não fazer isso, porque não é
verdadeiramente um aborto: a mãe não está matando uma pessoa para sobreviver, está
fazendo um tratamento que teria direito com gravidez ou sem gravidez. O objetivo do
tratamento não é matar o bebê, mas curar a mãe.

Num caso desses a mãe pode: i) optar pela vida do bebê, que nesses casos geralmente seria o
que mais esperaríamos de uma mãe, mesmo que ela tivesse outros filhos; ii) ou também, se
quiser, ela pode legitimamente pedir o tratamento sabendo que o bebê pode morrer. Em
ambos os casos isso só pode ser feito, porém havendo garantia de que o processo realizado
permitirá que o bebê receba o sacramento do batismo, porque a vida espiritual do bebê é mais
importante que a vida material tanto do bebê como da mãe. Portanto, em ambos os casos
seria necessário garantir que a terapia fosse realizada de tal maneira que o bebê pudesse ser
batizado.

Nestes casos de aborto indireto a mãe e o pai têm o direito de optar. Não é errado nem fazer
de uma maneira, nem de outra, embora o que seria de se esperar de uma mãe é exatamente
uma atitude semelhante a essa dos anos 50 que contamos. Meu pai e minha mãe não estavam
cogitando se o aborto era direito ou indireto, nem estavam cogitando em moral. Estavam se
comportando com a atitude natural dos pais: “Doutor, salve primeiro o meu filho!”. Nem
sei se eles sabiam dessas questões morais. Eles não estavam agindo por ter estudado moral,
mas agiam como a humanidade sempre agiu. O natural de um pai e de uma mãe é agir assim.
Era muito comum nessa época e ninguém dizia que essas pessoas eram heroínas, pois era algo
muito comum, era o que se esperava de uma mãe.

G) Casos semelhantes ao aborto indireto. — De forma análoga a esses casos, há muitos


outros relacionados ao quinto mandamento em que se pode invocar um princípio

125
semelhante. Por exemplo: um avião foi sequestrado por um terrorista. O terrorista está
apontando um revólver para o comandante, está no comando do avião e vai jogá-lo contra
um prédio onde há dez mil pessoas. E a única coisa que se pode fazer é jogar um raio laser no
avião, antes que ele bata no prédio: se o sujeito jogar o raio laser, vai explodir os duzentos
passageiros; se não jogar, os duzentos passageiros vão morrer e dez mil pessoas no prédio
morrerão também. Mas aparentemente o sujeito está matando pessoas inocentes. Ele pode
ou deve fazer isso?

A resposta é muito simples. Se tiver que matar um inocente para salvar milhões de pessoas,
não podemos fazer isso. Porém, nesse caso ele não está querendo matar um inocente e sim o
sequestrador que está controlando o avião. Se não houvessem inocentes no avião, mas apenas
o sequestrador, o sujeito poderia jogar o laser e com razão porque isso seria legítima defesa —
se alguém vai nos matar, nós podemos matá-lo antes. Logo, se um terrorista vai jogar um
avião contra um prédio e ele está sozinho, por legítima defesa nós temos o direito de matá-lo
antes que ele mate a nós e a todos os que estão no prédio. Se por acaso há duzentos inocentes
dentro do avião, é a mesma coisa do aborto indireto.

Veja como isso tem lógica e coerência com outras coisas. O aborto indireto é lícito exatamente
por causa disso. Se o aborto indireto não fosse lícito, não poderíamos dar um tiro nesse avião,
porque tem duzentos inocentes. Mas o fato é que não queremos matar os duzentos inocentes,
eles estão lá por acaso. Nós queremos deter o sequestrador, mas não é possível detê-lo sem
diretamente matar os outros duzentos.

Voltando ao caso do aborto. A quimioterapia da mãe não é lícita se a chance de ela sobreviver
com esse tratamento é nula. Ela não tem direito de tentar uma coisa que não dará certo,
porque o aborto é indireto. Deve haver um objetivo comparável em importância, com o mal
que se está indiretamente causando. A vida dela é tão importante quanto à do bebê; a vida
espiritual do batismo, não. Mas quanto à vida [natural] da mãe, é vida contra vida; então ela
pode!

No caso do avião, os duzentos inocentes morrerão na colisão de qualquer jeito e também vão
morrer mais dez mil que estão no prédio; as consequências benéficas são muito maiores do
que o dano. Então podemos dar o tiro porque não estamos matando inocentes, mas
derrubando um avião, no qual por azar há inocentes.

Um outro caso parecido. Um indivíduo está num submarino e o submarino recebeu um


torpedo na popa (a parte de trás) e está entrando água. O submarino vai afundar, vai matar
todos e a única maneira de evitar que ele afunde é fechando a porta do meio de tal maneira
que a água inunde a parte de trás, mas não a da frente. Porém isso deve ser feito já e não haverá
tempo de os marinheiros que estão na traseira virem para frente. São duas hipóteses: i) ou ele

126
espera que os marinheiros venham para frente e aí morrem todos; ii) ou então ele fecha a
porta e vão morrer aqueles lá. É lícito fechar a escotilha?

Por essa lógica é lícito, porque o indivíduo não está querendo matar os fulanos, é um azar
que eles estejam lá. O que ele quer fazer é impedir que a água venha para frente e mate os
outros. E o objetivo é proporcional porque se ele não fizer isso, morrem duzentos; se fizer,
morrem cem, ou seja, ele salvou cem marinheiros. O objetivo é proporcional. Se o objetivo
não fosse proporcional, se estivesse tudo perdido por perdido, possivelmente não seria lícita
uma coisa dessas. Mas nas circunstâncias do exemplo isso é permitido; é a mesma coisa do
aborto indireto.

Esses critérios são muito importantes, inclusive podemos ver como eles têm lógica entre si.
Negando um só desses casos e tendo que fazer lógica, acaba-se por chegar a absurdos.

Por exemplo: jogar uma bomba atômica, é lícito ou não é lícito? Os EUA jogaram duas
bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki porque falaram que, se não jogassem, a guerra
continuaria e ao invés cem mil pessoas, iria morrer um milhão. Hoje nós sabemos que não
foi assim: aquilo parece que foi feito por motivos de geopolítica, de demonstração de forças
porque o Japão já havia anunciado que iria se render; era só questão de se reunir e fazer os
termos ou alguma coisa muito próxima disso. No entanto os EUA jogaram a bomba.
Supondo, porém, que fosse como eles diziam na época: “Nós jogamos uma bomba atômica
porque era melhor que morressem cem mil pessoas do que um milhão”. Nesse caso seria lícito
fazer uma coisa dessas?

Não seria! Porque no caso da bomba atômica o objetivo era matar cem mil inocentes, não era
outro. O mal que se estava querendo fazer era direto e não indireto. Não era uma terapia, ou
seja, não se estava jogando a bomba sobre o alvo militar que poderia ter um efeito colateral
de matar outras pessoas. Eles estavam jogando uma bomba em que o objetivo era arrasar uma
cidade de inocentes, para causar um impacto psicológico de que os inimigos tinham que se
render.

Era como estar fazendo um aborto para salvar a vida da mãe, é a mesma coisa. Se alguém pode
fazer um aborto para salvar a vida da mãe, então também pode jogar a bomba atômica em
Hiroshima, a lógica é a mesma: o sujeito vai matar cem mil inocentes para salvar um milhão.
Ou que não seja um milhão: ele vai matar cem mil inocentes japoneses para salvar cem mil
inocentes americanos. “Ah, mas os americanos são o meu povo, eu tenho que dar preferência
ao meu povo diante do outro”. Não é verdade! Não devemos dar preferência, a regra não é
essa. A regra é: não se pode matar um inocente para salvar a vida de ninguém, nem que fosse
de um número mais numeroso de pessoas.

127
Se alguém precisar matar um inocente para salvar dez pessoas, ele não pode fazer isso. E se
precisar se suicidar para salvar cem pessoas, também não pode fazê-lo. Simplesmente não
podemos matar uma pessoa para salvar a vida de outras. Podemos arriscar a vida de uma
pessoa numa ação cujo objetivo não é matar a vida dela; seria o caso do aborto indireto.

Se houver cem pessoas em risco e um sujeito precisar fazer uma operação perigosa que não é
para se suicidar, mas na qual fará o possível para não morrer e nessa operação perigosa ele irá
salvar os cem, isso é lícito e às vezes até obrigatório.

Por exemplo: se uma usina nuclear está para explodir, há duzentas pessoas fechadas lá dentro
e alguém precise apertar um botão para poder parar a detonação, mas nesse caso ele morre, é
lícito fazer isso, pois o botão não foi feito para matá-lo e sim para parar a explosão. Se o sujeito
morrer no processo ou tiver um alto risco de morrer, isso é um efeito indireto. Ele não está se
suicidando, inclusive vai apertar o botão de todos os jeitos possíveis para salvar a própria vida.
Ele não está oferecendo sua minha vida, não está se matando. Como são cem vidas contra a
dele, num caso desses seria até obrigatório. Se há cem pessoas que vão morrer e ele tem que
arriscar a vida de uma contra cem, ele tem até a obrigação de fazer isso.

Seria uma coisa a se pensar caso fosse apenas uma pessoa a ser salva, porque a vida do sujeito
é tão importante quanto à daquela pessoa. Mas se fossem cem ou uma cidade inteira, a vida
daquela multidão é mais importante que a do indivíduo. Portanto, ele não pode matar-se a si
mesmo nem que fosse por cem mil pessoas, mas arriscar a vida é outra coisa, mesmo que o
risco seja certo, desde que o objetivo não seja a morte do indivíduo.

Numa guerra, por exemplo, nunca é lícito matar cidadãos inocentes diretamente, como
objetivo. Não se pode fazer isso em hipótese alguma. Num caso desses o [subordinado] teria
que desobedecer às ordens, quaisquer que fossem.

Muitas vezes, numa guerra pode-se fazer coisas duvidosas porque não se sabe exatamente
quais são as razões que o alto comando tem para fazê-las. Mas quando é evidente que ele está
mandando matar inocente por inocente como num caso desses, não importa o que seja: se
lhe mandarem destruir uma cidade com uma bomba atômica, isso é alvejar inocentes, então
[o subordinado] não pode obedecê-lo em hipótese alguma, nem que vá para a Corte Marcial.

128
Aula 8 – QUINTO MANDAMENTO II

Índice
1. A gravidade dos pecados e o direito natural, segundo a doutrina tomista
2. Da cooperação com o mal
A) Cooperação formal
B) Cooperação material
b.1) Cooperação material necessária
b.2) Cooperação material indiferente
C) Casos práticos sobre a cooperação com o mal
3. Do dever de caridade
A) Necessidade extrema
B) Necessidade grave
C) Necessidade leve
D) Casos práticos sobre o dever de caridade

1. A gravidade dos pecados e o direito natural

Esta é a continuação da exposição que estávamos fazendo. Nós poderíamos acrescentar uma
reflexão importante com um critério muito significativo a respeito das coisas que falamos
sobre o aborto, o aborto em caso de estupro, de risco de vida da mãe, fertilização artificial,
ausência de respeito à vida humana e mais. É o seguinte: na Suma Teológica fica muito claro
que, no seu gênero, um pecado é tanto mais grave quanto mais vai contra a natureza humana.
Os pecados contra o direito natural são tanto mais graves quanto mais vão contra a natureza
humana.

Nós dizemos “no seu gênero” porque depois deve ser considerado o grau de consciência que
a pessoa tinha, o grau de consentimento. Então um pecado que no seu gênero é gravíssimo,
pela consciência do indivíduo pode ser levíssimo. E vice-versa: um pecado leve, pela
consciência do indivíduo pode ser mais sério do que aparentemente seja em si mesmo.

Mas no seu gênero, os pecados que vão contra o direito natural são tanto mais graves quanto
mais vão contra a própria natureza. Nesse sentido, matar uma pessoa é menos grave do que
matar o próprio filho, ou seja, fazer um aborto é mais grave do que um homicídio, justamente
porque é o próprio filho. E matar a mãe ou o pai é mais grave do que fazer um aborto, porque
nós somos muito mais devedores ao nosso pai e à nossa mãe do que a um filho — deveríamos

129
ter a eles um respeito muito maior. Tanto é assim que o quarto mandamento vem antes do
“não matar”.

Por esse mesmo motivo, suicidar-se é mais grave do que matar o pai e a mãe, porque é o que
vai mais contra a natureza. Muitas vezes o suicídio pode não ser tão mais grave do que matar
o próprio pai ou a mãe, porque a pessoa pode ter um nível de advertência e consentimento
baixíssimo, mas ele é o mais grave de todos nessa linha.

Quando analisamos isso, curiosamente vemos que a humanidade tem progredido


historicamente no século XX de uma maneira muito preocupante. No começo do século XX
houve o holocausto nazista, contra seres humanos. Depois começou-se a legalizar o aborto e
isso foi crescendo de tal maneira que, tirando a América, os povos em geral são cada vez mais
a favor do aborto — a legalização do aborto foi levada até o nono mês nos EUA. Agora está
se propondo a Eutanásia. Começa justamente com matar um ser humano por misericórdia e
a coisa está progredindo para o reconhecimento do direito ao suicídio, como falamos que
existe na Suíça onde há cadeias de hotéis que oferecem o serviço do suicídio, amparados
dentro da lei. Os demais Estados da Europa estão reclamando que não têm esse serviço.

Estão indo justamente na direção dos pecados contra a vida humana cada vez mais graves.
Fazer um aborto é mais grave do que matar um estranho. Matar os pais, não importa por
quais motivos, é muito mais grave que fazer um aborto. E matar-se a si mesmo é o mais grave
de todos. Isso não acontece à toa, na verdade existem instituições que estão promovendo essas
coisas deliberadamente. Analisando sob esse ângulo de vista vemos que na verdade existe um
propósito maléfico por trás disso: estão querendo quebrar o sentido dos próprios princípios
do direito natural dentro da comunidade humana.

Por que está acontecendo isso, como isso está ocorrendo e quais as causas, etc., não tem a ver
com as aulas de preparação à confissão, mas o fato é que isso não ocorre por acaso, é feito de
maneira deliberada. Alegam-se outros princípios, outras motivações, mas na verdade o que
se quer fazer é uma reestruturação da sociedade humana na qual deve ser destruída a
percepção do direito natural nas pessoas. Inclusive por essa razão estas coisas de moral são tão
importantes, para que possamos tomar consciência delas de uma maneira ordenada e saber
fazer frente a essa falsa consciência que está sendo alimentada sobre a sociedade humana.

2. Da cooperação com o mal

Dizendo isso, podemos passar àquela questão que estávamos falando sobre a cooperação com
o mal, que está relacionada ao quinto mandamento.

A questão da cooperação com o mal surge quando alguém em princípio não quer fazer uma
coisa má, porém é obrigada pelas circunstâncias ou pelas outras pessoas, não a fazer

130
propriamente a coisa má, mas a colaborar com ela. Por exemplo: Um bandido está fazendo
um roubo e exige que a pessoa fique quieta, dizendo: “Isso não é da tua conta!”. Ou alguém
está se corrompendo e quer que a pessoa não denuncie.

Também outro exemplo: um bandido quer roubar uma casa e pede a chave dela para a pessoa.
Não é ela que vai roubar, mas o bandido exige que ela entregue a chave. É óbvio que a pessoa
não vai entregar, mas às vezes ele tem alguma maneira de forçá-la a entregar: por exemplo, se
não entregar será mandada embora do emprego ou morrerá. E aí? Ela não entregaria. Mas e
se quiserem matá-la, ela pode entregar a chave? Afinal de contas não será ela que vai roubar a
casa, e se não entregar a chave ela morre. E na medida em que a vida vai ficando complicada,
existe uma série muito grande de circunstâncias em que essas coisas acontecessem o tempo
todo. Então nós temos que ter critérios para saber quando devemos ou não cooperar com
essas coisas.

De modo geral os critérios para podermos analisar uma situação de cooperação são os
seguintes. Cooperação com o mal é quando estão pedindo para a pessoa fazer uma coisa que
ajudará alguém a fazer o mal. Não estão pedindo para a pessoa fazer o mal, mas para ajudar a
fazer o mal. Esse é o problema: se estivessem pedindo para a pessoa fazer o mal, não haveria
questão a discutir. A questão é que alguém vai fazer o mal e precisa da ajuda daquela pessoa,
ou do seu silêncio, ou da sua cumplicidade, ou de alguma coisa do gênero.

Como nós examinamos esses casos? Em primeiro lugar, na moral se fala que existem dois
tipos de cooperação: uma formal e outra material.

A) Cooperação formal. — É quando alguém está ajudando a fazer um mal através de uma
outra ação que, apesar de ser secundária, em si mesma já é um mal; mesmo que a coisa
principal não seja feita, a secundária já é má em si mesma. Um exemplo: os bandidos querem
assaltar um banco, mas precisam que alguém mate o guarda, então eles obrigam uma pessoa
a matar o guarda; se a pessoa não matar o guarda, eles não conseguem entrar no banco. Isso
seria uma cooperação formal porque, supondo que depois a operação seja interrompida e os
bandidos desistam de roubar o banco, matar o guarda já é um mal, é um mal em si.

B) Cooperação material. — Chamamos de cooperação material aquela que, por si só, se o


mal principal não for realizado, não é mal nenhum. Ela só é um mal, porque depois será feita
uma coisa má. Por exemplo: um bandido querer assaltar um banco, mas precisa que alguém
abra a porta. Se a pessoa abrir a porta, mas o bandido desistir de roubar o banco, o simples
ato de abrir a porta não foi mal nenhum — é uma cooperação material, que não é um mal
em si.

A cooperação material ainda pode ser subdividida em dois tipos, que é um critério
importantíssimo.

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b.1) Cooperação material necessária. — Existe uma cooperação com o mal que é
necessária, de tal maneira que, se a pessoa não ajudar, o mal não será feito. No caso do assalto
ao banco só ela tem a chave da porta, que não pode ser aberta senão com aquela chave. Então
se a pessoa se recusar, o assalto não vai acontecer. Essa é a cooperação material necessária.

b.2) Cooperação material indiferente. — A cooperação material chamada de indiferente


se dá, por exemplo, quando o bandido vai assaltar o banco e pede para uma pessoa abrir a
porta, mas se ela não abrir, o próprio bandido abre-a. Quer dizer, ele está pedindo uma
cooperação de uma coisa que não era necessária; é apenas uma gentileza, digamos assim. Se a
pessoa não abrir a porta, ele vai abrir do mesmo jeito, vai entrar e assaltar o banco. Então a
recusa dela em abrir a porta não impedirá o assalto em hipótese alguma, moralmente falando.
O futuro a Deus pertence, isto é, o fulano pode ter um infarto na hora em que começa o
assalto; então, ao invés de ser preso, ele será levado ao hospital e ninguém sabia que ele iria
assaltar o banco, todos pensaram que era um coitadinho que teve um infarto. Mas
moralmente falando a pessoa sabe que, abrindo ou não a porta, o assalto vai acontecer de
qualquer jeito, tanto quanto é humanamente previsível.

Sendo assim, em todos os casos de cooperação (que são muitos e ocorrem frequentemente na
vida moderna, principalmente quando temos uma profissão liberal ou estamos envolvidos
com coisas mais complexas) a primeira coisa que devemos analisar para podermos ter uma
compreensão clara é: se a cooperação é formal, ou seja, se aquilo que estão pedindo já é um
mal em si mesmo, ainda que não aconteça mais nada: só de ter prestado a ajuda aquilo já é
uma tragédia, já é um crime, já é um pecado; ou se a cooperação é material, ou seja, se fosse
só aquilo que eles pediram para fazer não haveria mal nenhum; só é mal porque, por causa
daquilo, alguém irá fazer um verdadeiro mal.

Essa cooperação material às vezes é: necessária (se dissermos não, o mal não será feito, então
depende da nossa aceitação ou não de ajudar e o agente sabe que o mal poderá ou não ser
feito); ou essa cooperação é indiferente (com nossa ajuda ou não, o mal será feito da mesma
maneira).

Considerando as coisas desse modo, a moral diz que quando a cooperação é formal nós nunca
podemos aceitar cooperar, em hipótese alguma; se tivermos que morrer por causa disso,
temos de enfrentar a morte. Não podemos cooperar com o mal de maneira formal em
nenhum caso, porque aquilo já é pecado, já é um mal em si.

Quando a cooperação é material temos que analisar qual é o dano que estão querendo
provocar-nos, caso nos recusemos a cooperar. Se em caso de recusa, o dano que sofreremos é
maior do que o mal que estamos ajudando a provocar, podemos cooperar. Se ele for igual
dentro da razoabilidade das coisas, podemos cooperar ou não. Se o dano que sofreremos é

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menor do que o dano que iremos ajudar a fazer, aí não podemos cooperar, supondo que a
cooperação seja necessária.

C) Casos práticos de cooperação com o mal. — Vejamos concretamente no caso do roubo


ao banco. Se um bandido vai assaltar o banco e diz assim: “Olha, você tem que ir na frente e
matar o guarda”. Isso é cooperação formal, a pessoa não pode matar o guarda. E se o bandido
disser: “Mas se você não matar o guarda, nós vamos matar você e depois matamos o guarda”;
mesmo assim a pessoa não pode matar o guarda. Ela não pode fazer o mal para daí vir o bem:
os fins não justificam os meios. [Ninguém] pode matar um inocente, custe o que custar, para
livrar a própria vida ou qualquer que seja o dano. Então se o bandido pedir para a pessoa
matar o guarda senão ela morre e ele quer assaltar o banco, a pessoa tem que se recusar a matar
o guarda e fim. Aí o que acontecer, os responsáveis vão responder diante de Deus.

Agora, se a questão é abrir a porta e o fulano diz: “Ou você abre essa porta ou eu te mato”, a
pessoa pode abrir a porta. E por quê? Porque a vida dela vale mais do que todo o dinheiro
que eles roubarem do banco. A pessoa poderia dizer: “Mas pode ser que eu abra a porta do
banco e eles matem alguém ali dentro”. Pode ser, mas não é certeza. Pode ser que eles não
matem ninguém e levem só o dinheiro. Então a vida daquela pessoa vale mais do que
qualquer monte de milhões de dólares que possa haver dentro do banco. Por isso ela pode
abrir tranquilamente, inclusive deve fazê-lo, porque a vida dela vale mais do que o dinheiro e
abrir a porta em si não é algo errado, não é um mal em si.

Se, ao contrário, eles querem assaltar o banco e querem que a pessoa abra a porta e, se ela não
abrir a porta, eles vão xingá-la, o xingamento que é muito inferior ao assalto que vai ser feito
ao banco; então ela não deve fazer isso.

De modo geral, quando a cooperação é material e necessária, o que se deve julgar é: qual o
dano que estamos provocando contra o dano que vamos receber caso nos recusemos? E caso
o dano que receberemos seja igual ou maior que o dano que vamos provocar, nós podemos
cooperar tranquilamente. Se o dano que vamos provocar é muito maior do que o que vamos
receber, não podemos cooperar.

Suponha que eles não queiram assaltar o banco, mas matar um sujeito lá dentro. Eles querem
que a pessoa abra a porta e, se não abrir, ela vai receber uma surra, mas eles não vão matá-la.
A surra é muito menos do que a vida do outro, então ela não poderia abrir a porta. Agora, ao
contrário, eles querem entrar lá para dar uma surra no fulano e, se a pessoa não abrir, eles vão
matá-la. A vida dela vale mais do que a surra dele, então ela pode abrir a porta.

Isso concretamente tem uma série de casos. Estamos dando um caso que serve de exemplo
para entendermos melhor, mas essas coisas acontecessem na vida diária quase que
constantemente. Pode haver um monte de exemplos a respeito disso.

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Existe ainda o caso em que a cooperação é indiferente, que é quando o mal será feito de
qualquer jeito. Se o mal será feito de qualquer jeito, com a ajuda da pessoa ou não, qualquer
motivo razoável serve para ela cooperar. Se não houver um motivo razoável, cooperar só por
cooperar já é errado porque ela não tem motivo nenhum para se recusar, não vai sofrer
absolutamente nenhuma pena, nenhum contratempo.

Sendo assim, se uma pessoa ajudar para uma coisa que vai acontecer de qualquer jeito, mas
não tendo nenhum motivo para desculpar o seu envolvimento, ela está cooperando
voluntariamente com o mal. Quando a cooperação é indiferente e a coisa for razoável, tiver
uma certa lógica que nós estimamos pela prudência humana comum de uma pessoa virtuosa,
estamos justificado de fazer aquilo.

Dando mais exemplos. Imagine que o fulano foi preso por terroristas e estão várias pessoas
presas. O terrorista diz: “Fulano, está aqui uma arma e você vai matar o sicrano”. O fulano
não pode matar o sicrano porque isso é cooperação formal. Não importa o que aconteça, ele
simplesmente não pode matar o indivíduo.

Se, ao contrário, o terrorista disser: “Fulano, entrega-me essa arma porque eu vou matar o
sicrano”, e você está vendo que se entregar ou não entregar, ele vai pegar a arma do mesmo
jeito e vai matar o sicrano, isso é uma cooperação indiferente. E o que é pior, se o fulano não
entregar a arma, provavelmente o terrorista vai ficar aborrecido e vai matar o fulano e o
sicrano também. Então é a vida de duas pessoas contra, talvez, a vida de uma só, que já está
perdida de qualquer jeito, pois a arma está lá e ele só pediu “por favor”. Nesse caso o fulano
pode entregar a arma, porque é um motivo razoável, proporcional, e ele inclusive não tem o
que fazer, já que a coisa vai acontecer de qualquer maneira.

Outro caso que acontece com um vendedor de armas, por exemplo. Em princípio ele pode
fazer isso se for dentro da lei, dentro de uma atividade normatizada que imaginamos esteja
dentro de certos parâmetros de razoabilidade, porque as armas não são vendidas só para
matar, mas também para treinar tiro ao alvo, para as pessoas poderem portá-las a fim de se
protegerem. Inclusive fala-se, por exemplo, que na própria Suíça todos os cidadãos sabem
tiro ao alvo, têm munição pessoal e aprendem a fazer isso conscientemente. Então ali o nível
de assaltos é pequeníssimo, o nível de homicídios é pequeno porque todos estão cientes de
que todos sabem se defender e estão prontos para isso. Portanto, é lícito vender armas num
caso assim.

Se o vendedor soubesse que alguém vai comprar a arma para matar uma pessoa e vendesse a
arma, aí há um caso de cooperação material: ele não está matando o indivíduo, está
entregando a arma. No entanto, o vendedor sabe que aquele é um caso especial, pois não está
vendendo armas para as pessoas praticarem tiro ao alvo ou aprenderem a se defender; ele sabe

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que o fulano está pedindo a arma para matar alguém. Num caso desses ele não poderia vender
a arma com a desculpa de que vai perder o lucro, mesmo sabendo que o sujeito é livre e pode
comprá-la em outro lugar, caso ele se recuse a vendê-la. Não é razoável. Muito mais ainda se
o vendedor sabe que a única loja de armas é a dele: ele não pode vender!

A única coisa que justificaria vender é se o sujeito estivesse com uma outra arma pronto para
matar o vendedor, caso ele não venda. Nesse caso é a vida do vendedor contra a do outro,
inclusive ele vai perder a vida agora, o outro ainda pode se defender. Num caso desses seria
lícito, se ele vai perder a vida caso não efetue a venda naquele momento.

Outros casos desse gênero. Nós podemos pagar imposto para um governo que faz coisas
bárbaras, que é tirânico, assassino? Como decidimos uma coisa dessas? Isso evidentemente
não é cooperação formal, pois estamos pagando o imposto devido; o governo é que vai usar
aquilo para vender armas a um outro tirano que está fazendo uma guerra injusta. Se
pagarmos2 o imposto a cooperação é material, não é formal: não estamos pegando uma arma
e matando ninguém. Inclusive ela é remota, porque também não sabemos se justamente
aquele dinheiro será usado para fabricar aquela arma.

Num caso desses isso é uma cooperação material e pode-se dizer que é indiferente, porque
caso nos recusemos a pagar, provavelmente o governo para o qual daríamos o imposto não
deixará de produzir aquelas armas nem de vendê-las para aquelas pessoas que não deveriam
recebê-las; então é uma cooperação indiferente. Numa cooperação indiferente, qualquer
motivo razoável é justo. O motivo razoável é que seremos perseguidos, postos na cadeia e
sofreremos sanções caso não paguemos. Isso já eximiria a pessoa de um pecado grave caso
pagasse o imposto.

O que acontece é que como cidadãos, não temos só o recurso de não pagar os impostos para
impedirmos o governo de fazer bobagens. Existe uma democracia ou pelo menos deve haver
instituições democráticas para que as pessoas possam mexer-se e conseguir por outras vias
que o governo não faça aquelas coisas. E estas vias inclusive são muito mais eficientes do que
se recusar a pagar imposto, que não vai resolver o problema em hipótese alguma, pois as armas
serão feitas da mesma maneira.

Outro caso onde podemos ver isso, por exemplo, é aquele que comentávamos sobre soltar
uma bomba atômica numa cidade. O governo dos EUA decidiu soltar duas bombas atômicas
sobre Hiroshima e Nagasaki. Evidentemente isso era uma coisa má, não tinha o que discutir.
Não importa as razões de guerra, pois eles estavam alvejando uma sociedade civil inocente e
isso não pode ser feito nunca. Mas de fato o governo ordenou os pilotos a irem lá e a pergunta
é: os pilotos podem fazer isso?

2
Aqui dizia "Se não pagarmos", mas não tem sentido. Coloquei como afirmação: Se pagarmos...

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Dentro da ação de levar um avião com uma bomba atômica até o Japão, o que é cooperação
formal é o ato de jogar a bomba. Conduzir o avião até Hiroshima é cooperação material,
porque se vier uma ordem de não soltar a bomba, o piloto volta e nenhum mal foi feito. Então
conduzir o avião até Hiroshima é cooperação material. O que é cooperação formal (ou o
próprio mal) é soltar a bomba. Assim sendo, nenhum soldado poderia aceitar soltar a bomba
em hipótese alguma.

Supondo que o Fulano é o único piloto que sabe pilotar aquele tipo de avião. Se ele recusar,
a bomba não será jogada, mas ele sabe que vai para a Corte Marcial e para o paredão (na pior
das hipóteses). Mesmo assim, o Fulano tem que aceitar a sua morte em vez de provocar a
morte de cem mil pessoas, porque o mal que está fazendo é muito maior do que aquele que
está evitando. Agora, se qualquer um pode pilotar o avião e o Fulano está sendo obrigado a
pilotá-lo, ele precisa de um motivo razoável para recusar. Um motivo razoável seria por
exemplo, ele morrer: se o Fulano morrerá por recusar-se a pilotar o avião, ele pode escolher
pilotá-lo e não soltar a bomba; porém se o Fulano sofrerá qualquer outro tipo de sanção que
não seja a morte, consideramos que nesse caso perde a razoabilidade completamente.

Inclusive num caso desses talvez escolheríamos até não ir e enfrentar o paredão. Não
podemos dizer que seja moralmente obrigatório, porque tratando-se de uma cooperação
indiferente, qualquer motivo razoável já vale. E se a própria morte do indivíduo não for algo
razoável, qual motivo será razoável? Então o princípio do princípio razoável desaparece! Não
se pode dizer uma coisa dessas. Mas não seria errado recusar.

Realmente não sabemos se, numa situação dessas, não seria até uma coisa virtuosa uma pessoa
honesta recusá-lo. Mas claramente alguém poderia se recusar, caso fosse certo que o crime
aconteceria de qualquer outra maneira e se participação do indivíduo fosse apenas pilotar o
avião ou tripular o avião — servir cafezinho, fazer a limpeza ou qualquer coisa desse tipo.
Com muito mais razão fazer a limpeza do avião não seria uma coisa errada, mesmo sabendo
o porquê deste serviço, pois seria uma cooperação remota muito indiferente: limpando ou
não o avião ele irá do mesmo jeito, já que outras pessoas irão limpá-lo, além de ser uma coisa
muito mais distante do efeito que a própria pilotagem.

Da mesma maneira podemos ver, por exemplo, com os motoristas de táxi. Quando eles
trabalham em determinados hotéis ou pontos, têm consciência que quando um passageiro a
tal hora pega um táxi para ir a um determinado bairro, ele está procurando boate,
prostituição, essas coisas. Se, por exemplo, pessoas que trabalham na noite com prostituição
pegam um táxi e às 04:00 da manhã pedem para ir à Rua Augusta, num lugar onde só tem
casa noturna, o taxista sabe que eles vão fazer o que não se deve. Ele pode levar ou não? É
justo levá-los ou o taxista deve recusar?

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Caso se recuse, ele perderá o dinheiro do seu trabalho e a pessoa vai pegar outro táxi com toda
certeza. Ela não vai deixar de ir lá, é uma cooperação totalmente indiferente. Como é
necessário um motivo razoável, parece-nos suficientemente razoável não perder a corrida
para levar a pessoa, apesar de que ele também pode recusar e não seria ausência de virtude.
Poderia ser algo virtuoso principalmente se, ao recusar-se, por exemplo, as pessoas
entendessem-no como uma lição moral e não simplesmente “Ah, o motorista não quis
porque ele quer ir dormir”. Seria virtuoso se pudesse ajudar a dar um ensinamento de cunho
moral para as pessoas.

Todavia, já deixa de ser razoável se o motorista percebe que eles estão indo a uma clínica de
aborto clandestino, pois estão matando um ser humano. Mesmo sabendo que, se ele recusar
outra pessoa vai, a coisa é tão gritante e tão desproporcional por ser um assassinato, que não
nos parece haver uma razoabilidade.

Deve haver um critério de certa prudência geral para dar uma coisa dessas. É muito mais fácil
levar numa corrida de táxi alguém que está indo a um lugar onde existe prostituição, do que
saber que está levando alguém a um lugar em que vão matar uma criança. Quer dizer, o
choque interior de consciência é muito mais forte. Parece-nos que a desproporcionalidade é
total: o taxista teria que se recusar numa coisa dessas.

Daí tiramos outras coisas. Por exemplo, imaginemos um médico anestesista que trabalha
num hospital onde são feitas operações ilícitas, não necessariamente aborto: laqueadura,
esterilização, coisas que podem ser comuns em certos hospitais e que não são lícitas a
ninguém fazer. Geralmente o médico anestesista não é responsável pela cirurgia, ele só
anestesia o indivíduo. Ele está trabalhando e é chamado a fazer anestesias. Quer anestesie as
laqueaduras ou não, ele está cooperando, com seu bom nome, para a fama do hospital:
“Doutor “Fulano de Tal” trabalha lá, então o hospital é um lugar bom”. É justo ele fazer uma
cooperação dessas?

Isso infelizmente é comuníssimo em grande parte dos hospitais. O médico anestesista


trabalha não com consultório próprio, mas auxiliando os outros médicos que farão as
cirurgias. Se ele se recusar a trabalhar nesse hospital, provavelmente terá que se recusar a
trabalhar em praticamente todos; e provavelmente entrará no lugar dele um outro médico
que não tenha princípios médicos ou pelo os mesmos princípios éticos seus. Além disso, a
cooperação que ele está fazendo não é formal: ele não está fazendo a laqueadura, mas
anestesiando o paciente. Se a operação (laqueadura) não se realizar, não foi feito mal algum.
Então, já que a cooperação não é formal, mas material, ele pode fazer a anestesia. Se ele não
fizer, com certeza eles vão contratar outro e isso não deixará de ser feito, então é uma
cooperação indiferente. Ele pode cooperar por um motivo razoável, por exemplo: porque é
bom ele trabalhe e que haja na medicina médicos cristãos. Portanto, o anestesista pode
continuar fazendo isso, o que ele não poderia fazer é a laqueadura.

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O mesmo podemos dizer dos médicos que estão fazendo residência. Um médico precisa fazer
residência para poder se formar e provavelmente terá que participar de uma cirurgia de
laqueadura. Num lugar onde o aborto é legalizado ele pode até ter que participar de uma
cirurgia de aborto. Então o que ele deve fazer num caso desses?

Se lhe pedirem para fazer um aborto porque senão ele será expulso da residência e não se
formará, ele deve deixar ser expulso da residência e não pode fazer o aborto, porque isso é
cooperação formal. Entretanto, se lhe pedirem para instrumentar a cirurgia de aborto,
mesmo num país onde o aborto é legalizado (ele não poderia alegar que está fazendo uma
coisa ilegal) e se isso for condição sine qua non para ele tirar o diploma, nós estamos aí diante
de uma cooperação indiferente já que o aborto será feito de qualquer jeito.

Seria muito diferente se ele pudesse evitar o aborto, aí seria outra história: a vida de um ser
humano está acima de qualquer outra coisa. Mas se o aborto será feito de qualquer jeito e ele
se recusa a instrumentar (limpar a sala de cirurgia, passar os instrumentos, desde que não faça
o aborto); se isso é indiferente e vai custar a sua formatura, o que ele está pondo em jogo ao
recusar-se é muito mais importante: ele está impedindo que um médico cristão, contrário ao
aborto, à eutanásia e todas essas barbaridades que estão vindo, entre na comunidade médica
e possa dar uma palavra para ajudar a reverter esse quadro; ele simplesmente não vai se formar.
Então se aquele aborto será realizado de qualquer maneira, o residente pode até instrumentá-
lo porque é uma cooperação indiferente.

Obviamente a situação seria outra se aquele aborto concretamente não se realizaria, caso ele
se recusasse a instrumentá-lo. Nessa hipótese, o valor daquela vida humana não pagaria a sua
formatura, mesmo que fosse cooperação material. Se naquele dia, por exemplo, não há outro
para instrumentar e o aborto não seria feito, e o médico que estaria disposto a fazer só poderia
voltar dali a um mês e já não haveria mais prazo legal e a criança nasceria, a coisa nesse caso é
completamente diferente: o residente tem que aceitar que estamos vivendo num lugar iníquo
e que não pode matar um ser humano para se formar, nem pelo bem que isso possa vir a trazer
futuramente, pois aí não é mais cooperação indiferente.

Da mesma maneira pode haver uma série enorme de outros casos desse tipo. Por exemplo,
um caso típico dos dias de hoje: vender revista pornográfica. Um jornaleiro vende revista
pornográfica, a banca de jornal está cheia de pornografia. Suponhamos que o jornaleiro
resolva ser cristão: um cristão não vende pornografia. Acontece que se ele se recusar a vender
as revistas pornográficas, a mesma empresa que vende revistas pornográficas também vende
outras; então se o jornaleiro recusa as pornográficas, a gráfica não dá nem as pornográficas,
nem as outras. Recusando-se a vender pornografia, ele só poderá vender os jornais diários: a
Folha de São Paulo, o Estado de São Paulo, o Diário de São Paulo e o Agora; os outros ele
não mais vai vender. E, segundo o testemunho dele, é impossível viver só de vender o jornal

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diário, a banca de jornal não sobrevive só com o jornal diário: ou ele vende pornografia, ou
fecha a banca.

Uma coisa dessas nós entendemos assim: vender uma revista pornográfica que só sirva para
pornografia, é cooperação formal. Quando estamos vendendo algo que só serve para aquela
finalidade, estamos cooperando formalmente. Isso não é uma cooperação material, pois
estamos entregando uma coisa que é má em si, foi feita para fazer o mal. Então nós
simplesmente não podemos vender isso.

Se a revista tem pornografia, mas não é pornográfica (isso a maioria das revistas são, inclusive
os jornais diários) aí a coisa é diferente, porque não necessariamente quem compra está
comprando por causa da pornografia; inclusive a pessoa pode até estar comprando por causa
da pornografia, mas depois que chegar em casa ela pode esquecer do assunto e só ir ver as
manchetes do dia. Nesse caso a cooperação é material, pois estamos entregando uma coisa
que não necessariamente é usada para fazer o mal, e provavelmente ela pode não ser usada
para fazer o mal. Num caso desses nós poderia vender, porque é cooperação material.

É um pouco diferente se alguém chegasse e dissesse que quer uma revista não pornográfica e
diz que deseja ver a parte pornográfica, ele declara isso explicitamente. Aí é um caso a se
pensar. O fato é que o problema da banca de jornal é que ela não sobrevive sem vender a coisa
estritamente pornográfica. Nesse caso a cooperação é formal, não material, então ele não
pode fazer isso. Se não tem outro jeito, o jornaleiro deve abandonar a profissão.

O único caso em que poderíamos vender ou ceder um material pornográfico a uma pessoa é
se o fulano exige aquilo sob a mira de um revólver: “Se você não me der isso, eu te mato”. Aí
poderíamos dar a ele, porque na verdade ao fazer isso não estamos dando uma revista
pornográfica, mas algo que ele na verdade está roubando. Além disso, não estamos dando
para que ele veja, mas para que desista de nos matar. Inclusive, assim que ele for embora nós
podemos denunciá-lo à polícia e dizer: “O fulano veio aqui e me roubou uma revista sob a
mira de um revólver”. Nós podemos exigir aquilo de volta antes que ele comece a ler.

Mas quando vendemos por vender, não podemos exigir aquilo de volta, porque em troca do
dinheiro estamos dando à pessoa o direito de fazer o mal, estamos vendendo o direito de fazer
o mal, então é uma coisa formal. Se fosse um assalto, se tivéssemos esse material pornográfico
do qual nos desfaríamos mais tarde e o assaltante quisesse levá-lo obrigando-nos sob a mira
de revólver, na verdade não estamos entregando pornografia, mas um objeto que não
queremos que ele use. Formalmente estamos entregando uma coisa que não queremos que
ele use, não estamos dando o direito. Na verdade, estamos dando algo (como tantas outras
coisas que ele poderia estar exigindo) apenas para livrar a nossa vida; e depois poderíamos
exercer o direito de reaver tais coisas pelos meios legais. Logo, não estamos concordando que
ele veja aquilo. É diferente de quando vendemos.

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A mesma coisa pode ser vista, por exemplo, nas farmácias. Lá vende-se abortivos — as pílulas
anticoncepcionais são abortivas, as pílulas do dia seguinte são abortivas, mais ainda do que
os anticoncepcionais. E nos lugares onde o aborto é legalizado, pode-se vender abortivos no
verdadeiro sentido da palavra. Nesse caso o farmacêutico pode vender isso?

Em hipótese alguma, porque é cooperação formal. Num lugar onde o aborto é legal o
farmacêutico não pode vender remédio abortivo, porque isso é vendido para fazer um mal
em si. O mesmo princípio vale para a pílula anticoncepcional, que se destina a fazer um mal
em si.

Algumas mulheres podem usar pílula anticoncepcional para dar um choque hormonal,
mesmo que não esteja tendo relações sexuais; então a pílula pode ser usada numa terapia. Se
a mulher não está tendo relações sexuais, obviamente a pílula não será abortiva: pode ser uma
jovem, uma freira, que precise de um choque hormonal por algum motivo. Mas esses casos
são exceções, pois quem vai comprar essa pílula na farmácia tem motivos anticonceptivos;
aquilo praticamente só serve para isso. Se alguém quiser comprar por outro motivo, o
farmacêutico deveria ter certeza do motivo, senão não poderia vender.

Se isso vale para o abortivo exatamente por ser um mal em si; se vale para a pílula
anticoncepcional que é menos mal porque não é necessariamente abortiva em todos os ciclos,
mas é uma coisa intrinsecamente má, inclusive se não fosse abortiva; isso vale também para o
preservativo e para todas as coisas que só existem para fazer coisas más, uma vez que todos
sabem que se o fulano as compra é porque vai fazer uma coisa ilícita. Nesse caso, o dono da
farmácia não pode vender isso. Deve recusar-se a vender, não importa o prejuízo, pois é
cooperação formal.

O mesmo vale se o sujeito é funcionário da farmácia também! Não conseguimos ver qual o
motivo de a venda feita pelo funcionário ser cooperação material, e pelo dono ser cooperação
formal. A diferença é que o dono teria um motivo menos grave para se recusar, pois não seria
mandado embora: o dono poderia se dar ao luxo de ter um pequeno prejuízo de não vender
um item e se recusar. O empregado provavelmente perderia o emprego, então tem um motivo
mais grave para zelar. Mas o fato é que a cooperação do dono é formal.

Vale lembrar que os preservativos não são errados por serem contra o quinto mandamento,
mas contra o sexto. Eles não são abortivos, porém não se pode utilizar métodos artificiais de
controle da natalidade nas relações sexuais e os preservativos só servem para isso. Se o
vendedor soubesse com certeza que o preservativo seria usado para uma outra coisa, nesse
caso poderia vender. Não sendo isso, o dono de farmácia que vender essas coisas que só
servem para o mal (anticoncepcionais, pílulas do dia seguinte, preservativos) está cooperando
formalmente.

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O funcionário da farmácia tem um motivo mais grave para se recusar do que o dono, porque
ele perderá o emprego; não é um pequeno prejuízo. Ele vai perder o meio de subsistência, mas
o dono não. Acontece que, no caso do dono da farmácia não é cooperação material, mas
formal. Então essa formalidade não é perdida quando o funcionário da farmácia tem que
vender o preservativo ou a pílula. É a mesma formalidade: se é formal para o dono, é formal
para o funcionário. A diferença é que o funcionário tem um motivo mais grave.

Inclusive ele poderia ter o motivo da indiferença, [caso fosse cooperação material]. No caso
do funcionário ele poderia dizer que é uma cooperação indiferente: se não vender ele será
mandado embora e outro irá vender. Se fosse material nós poderíamos pensar no caso, mas o
problema é que essa cooperação é formal, e a cooperação formal não é justa em caso nenhum.

O único caso em que seria perdida a formalidade é se viesse um assaltante e quisesse roubar a
farmácia e, no meio das coisas que quisesse roubar, ele também quisesse o pacote de
anticoncepcionais e dos próprios abortivos, dizendo: “Se você não der, você morre”. Nesse
caso perderia a formalidade, porque na verdade não estamos dando o direito a ele, nós sequer
estamos cooperando. Estamos apenas tolerando que ele leve isso e, teoricamente, assim que
ele sair de lá, nós podemos ligar para a polícia, dizer que fomos assaltados e queremos todos
os remédios de volta. Na verdade, não estamos dando para que ele use, estamos dando
provisoriamente para livrar-nos da morte que ele nos vai dar.

É como alguém que viesse assaltar uma loja de armas e quisesse roubar um revólver com balas
que irá usar para matar, e se não dermos, nós iremos morrer. Então nós damos o revólver com
balas, mas não estamos dando para matar; estamos entregando um material esperando que o
sujeito não use; nesse contexto não seria cooperação formal. Mas vender a coisa livremente
sim, pois estamos vendendo para isso, estamos concordando com a finalidade do fulano que
está comprando.

Então o único caso em que seria permitido “vender” um abortivo para uma pessoa é no caso
de ela exigi-lo sob pena de nos matar. Na verdade, estamos dando uma coisa para livrar a nossa
vida e não estamos querendo que a pessoa use, inclusive esperamos que ela não vá usar. Mas
quando vendemos estamos fazendo-o para que ela use, estamos concordando com isso; não
tem jeito de não ser formal.

Dentro da Igreja hoje essas coisas não estão muito claras, porque os princípios são aceitos por
todos, mas a dedução deles até as últimas consequências às vezes não fica clara para algumas
pessoas. Nem todos, mesmo pessoas corretas, têm muito claro por exemplo que um
funcionário não pode vender um abortivo ou um anticoncepcional de farmácia, porém
achamos que não há como escapar disso. Inclusive os livros clássicos de moral dizem
claramente que os vendedores de mercadorias não podem vender ao público mercadorias

141
cujo uso dominante seja unicamente para fazer o mal. Obviamente estes livros antigos
referem-se a um sujeito que é dono do próprio negócio, como era antigamente. Estão se
referindo a uma pessoa que seria claramente o dono da farmácia. Fica a dúvida se isso valeria
para o funcionário.

Raciocinando claramente é possível ver que deve valer para o funcionário, porque qual o
motivo de o dono da farmácia não poder vender uma coisa que só serve para o mal? Não é
porque se trata de cooperação material, é cooperação formal: ele está concordando com o
indivíduo que vai usar aquilo, está vendendo o direito de fazer o mal e isso não é material, é
formal. Portanto, se o funcionário vender, isso não deixa de ser formal. A diferença moral é
que ele tem um motivo muito mais grave para se desculpar que é perder o meio de
subsistência, algo que o dono não teria. Mas na cooperação formal isso não desculpa, é
sempre ilícito.

Logo, não é permitido vender pornografia, seja ao dono da banca seja ao empregado. Não é
permitido vender coisas que só servem para fazer o mal, e isso está dentro dessas coisas. Mas
por incrível que pareça é permitido anestesiar, dentro de certos limites e com razoabilidade,
por exemplo numa operação ilícita. Seriam necessários motivos muito mais graves para
anestesiar uma operação que será um aborto. Cremos que a simples indiferença não
justificaria o ato de anestesiar um aborto, principalmente num lugar onde o aborto é ilícito,
mas que isso valeria inclusive onde o aborto fosse lícito.

Podemos ver que essas coisas são de aplicação constante na nossa vida. Por exemplo: Fulano
é funcionário de uma firma e vê que seu chefe está fraudando a firma. Ele deve denunciá-lo
ou não? Uma coisa comum nesses casos, principalmente no Brasil, é que se pode denunciá-
lo, mas geralmente a coisa é tão bem-feita que a denúncia não vai dar em nada e o Fulano
pode inclusive perder o emprego ou até ser processado por calúnia. Na maioria das vezes
aquilo não dará nenhum resultado, ele só terá problemas.

Se não denunciar, o Fulano está cooperando com o mal. Se denunciar, o mal não deixará de
ser feito. É uma cooperação material indiferente, porque ele não está fazendo o roubo. Seria
diferente se o chefe estivesse convidando-o para roubar, pois o Fulano estaria vendo que ele
está fazendo o roubo. O fato de não denunciar é uma cooperação material (uma omissão
material). Se o Fulano tem certeza que o chefe está roubando, mas que não existe nenhuma
chance dessa denúncia ser levada adiante e que ele só irá criar problemas para si mesmo,
obviamente não tem obrigação de fazer essa denúncia. Pode até fazer caso queira, não é um
erro fazê-la, mas não há a obrigação de fazer a denúncia. Isso é um caso muito comum na
sociedade moderna, principalmente na brasileira e na latino-americana em geral, além de
outros países do terceiro mundo onde grassa a corrupção.

142
É uma coisa em que nós ficamos muitas vezes no dilema: será que estou ou não cometendo
um pecado ao não fazer a denúncia? Pode ser que sim, pode ser que não. E se soubermos que
a coisa funcionará, caso denunciemos? Aí é diferente, porque a cooperação se torna
necessária: se não cooperarmos com o nosso silêncio, o crime para.

Supondo que fosse um crime de milhões de dólares, um roubo gigantesco. Se fizermos a


denúncia, tudo para, mas sabemos que vão nos matar, ou seja, a corrupção é tal e as pessoas
envolvidas são tais que podemos ter certeza que, ainda que nos mudemos para a Sibéria, eles
vão mandar alguém lá e nós vamos morrer com um tiro, eles não vão perdoar de jeito
nenhum. Nesse caso devemos fazer a denúncia ou não? Não somos obrigados a fazer, porque
a nossa vida vale mais do que qualquer volume de milhões de dólares! Não importa quantos
milhões de dólares, a nossa vida vale mais.

Agora, suponha que não seja um roubo, mas um atentado terrorista que descobrimos:
alguém está tramando o assassinato de vinte mil pessoas e se nós denunciarmos, a coisa para;
se fizermos isso, porém, depois estamos mortos. O que devemos fazer? Num caso desses nós
temos que denunciar, supondo que seja certeza de que, denunciando, nós paramos o
terrorismo, porque com isso salvaremos vinte mil vidas humanas que morrerão com certeza.

Ademais, já que fizemos a denúncia e sabemos que vão nos matar, vamos procurar nos
defender, procurar ajuda da polícia, fugir para outro país; vamos pedir ajuda a alguém para
sumir do mapa; vamos vestir uma peruca e iremos para a Mongólia. Nós podemos tentar nos
defender, mas aquelas vinte mil pessoas não têm defesa alguma, elas não estão sabendo de
nada. Mesmo que não pudéssemos nos defender, tendo certeza de que são vinte mil pessoas
contra a nossa vida somente, infelizmente deveríamos reconhecer ter chegado a hora de
darmos a vida pela virtude.

Essas coisas são bem claras, não são meras hipóteses, possibilidades. Em casos concretos, onde
as coisas não são “negro e branco” e onde intervêm muitas outras possibilidades estratégicas
de como fazer a denúncia, de trâmites processuais para julgar as verdadeiras possibilidades,
conviria consultar especialistas no assunto que entendem do ramo, do tipo de negócio, da
justiça e etc. Estamos imaginando coisas absolutamente claras, ou seja, se for absolutamente
claro que ao fazer uma denúncia, evitaremos um atentado onde morrerão vinte mil pessoas,
mas salvando essas vinte mil pessoas corremos risco de vida, somos obrigados a denunciar.

Um outro caso concreto, tendo como base aquela época dos gângsters nos EUA; nem o
faroeste, nem nos EUA de hoje, mas a época da máfia. Supondo que teve um mafioso que
matou cinco pessoas e está sendo julgado. Sicrano é a única testemunha. Se ele disser: “Eu vi,
ele matou mesmo”, o gângster vai preso, mas o Sicrano está morto. O mafioso matou cinco
pessoas, mas não quer dizer que matará mais cinco, nem que vai matar mais uma, porém o
Sicrano vai morrer porque eles costumam colocar uma bomba no carro do delator; há uma

143
grande chance de o Sicrano e sua família morrerem de forma pirotécnica. O bandido será
condenado por um crime que já fez, mas não é certeza que ele fará outro. O Sicrano é
obrigado a dar esse testemunho?

Nesse caso é uma cooperação material necessária, não é indiferente: ele não está matando
ninguém. O que está em jogo então? A morte quase certa do Sicrano, contra a possibilidade
de o mafioso matar mais gente. Ele é um criminoso, mas não quer dizer que vive de matar
pessoas. Ele é um traficante e mata se for o caso, se tiver alguma necessidade. Ele matou cinco
porque precisou, talvez não mate nunca mais, inclusive porque já passou por julgamento e
será absolvido e terá cuidado; além disso as pessoas já irão saber sobre ele e talvez [saibam] se
defender. Que ele possa matar alguém é uma hipótese, mas que o Sicrano vai morrer não é
uma hipótese remota. É uma hipótese de um assassinato futuro, contra uma morte quase
certa — o desequilíbrio, a desproporcionalidade é muito grande.

Nesse caso a cooperação é necessária, não é indiferente. Mas o bem que o Sicrano está
defendendo é muito maior do que aquele que está produzindo. Então ele pode
tranquilamente, sem remorso de consciência dizer “Não tenho nada a testemunhar”, e não
seria absolutamente nenhum pecado de omissão. Diferente do caso anterior em que, fazendo
uma denúncia, com certeza salvaríamos a vida de vinte mil pessoas.

Essas coisas ocorrem o tempo todo, em vários graus diferentes. Há um outro caso que aparece
nos livros antigos de moral. Hoje não aconteceria mais dessa maneira, mas é muito lúcido, é
um caso muito explicativo.

É o seguinte. João está sendo perseguido por um bando de assassinos que querem a sua vida,
mas ele é inocente, não fez nada. Então entra numa cidade (supondo aquelas cidades
medievais que eram cercadas por muralhas), vai lá falar com o duque da cidade e diz: “Olha,
eu sou inocente e tem umas pessoas que estão me perseguindo, eles querem a minha cabeça, você
pode me refugiar?”. O duque confia em no João e dá ordem para fechar as portas, colocar os
soldados nas torres e diz: “Se aparecer alguém exigindo a sua cabeça, nós não iremos dar”.

O pessoal então cerca a cidade e o duque percebe que não era um ou outro, são piratas
organizadíssimos, pessoas maquiavélicas (como os terroristas modernos). Eles cercam a
cidade e fazem uma exigência: “Nós temos aqui artefato suficiente para explodir tudo isso, vão
morrer todos. Mas não queremos vocês, nós queremos o João, esse João aí que está dizendo que é
inocente. Não importa se ele é inocente ou não, nós queremos a cabeça dele. Então vocês vão
matar ele e trazer o cadáver aqui fora. Se vocês não fizerem, João vai morrer, mas também vão
morrer todos, pois nós colocamos uma bomba aí e não vão adiantar as muralhas, todos
morrerão”.

144
É permitido [ao duque] matar o João? Não, porque seria cooperação formal: não se pode
matar um inocente para salvar qualquer número de pessoas. Agora, se a exigência deles não
for o cadáver do João? Eles exigem o seguinte: “Nós queremos o João, nós não queremos que
você o mate. Nós queremos ter o prazer de nós mesmos matarmos ele. Vocês simplesmente vão
abrir a porta e entregá-lo para nós e aí nós vamos embora. O que nós fizermos com o João é
problema nosso”.

O duque sabe que eles vão matar o João. mas se o João ficar lá dentro, vai morrer a cidade
inteira. Nesse caso ele pode entregar o João? A coisa é simples: num caso desses o João tinha
obrigação de se entregar. Não é nem questão se é permitido ou não entregá-lo. O João mesmo,
quando visse isso, deveria dizer: “Eu não posso me matar. Se eles pedirem para eu me dar um
tiro, eu não posso fazer isso. Mas se eles estão querendo me pegar, eu posso me entregar e fugir se
puder. Se não puder, eu vou morrer, mas eles é que vão me matar”.

Isso é cooperação material: [o duque] não está matando o João. E é uma cooperação material
que, num caso desses, seria inclusive obrigatória. Se é certeza que morrerão dez mil pessoas
juntamente com o João; se eles só querem que o duque entregue o João, a obrigação do
próprio João é entregar-se porque ele já está “morto” mesmo, e deveria poupar a vida de dez
mil pessoas que morrerão inutilmente.

É diferente se a cidade pudesse resistir e defender-se a si mesma e ao João; mas se a cidade não
pode, o João tinha que se entregar e fazer o seu dever. Não só se fosse o João, mas também
um de nós! Numa situação dessas pode ser o inocente que for: temos a obrigação de fazer
isso. Caso o João não queria cumprir a sua obrigação, o duque pode fazê-lo cumprir na marra,
ou seja, pode entregar o João. Aliás ele até deveria, infelizmente, pois isso seria o justo.

Esses casos podem acontecer de todas as maneiras com coisas simplórias, como numa padaria,
no nosso trabalho cotidiano, no nosso emprego, numa relação de médico com paciente, de
professor com aluno, de empresário com empregado, de marido com mulher. Há milhares
de maneiras que isso pode acontecer, mas esses critérios são de uma profundidade e
discernimento extremamente grande.

Em resumo, quando somos obrigados pelas circunstâncias a ter que cooperar com o mal, o
que devemos ver é se a cooperação é formal ou material. Se for formal, já está terminado o
assunto. Se for material, é preciso ver se é necessária ou indiferente. Se ela for necessária, é
preciso estar defendendo um bem igual ou maior ao que se está provocando, para poder
cooperar. Se ela for indiferente, basta um motivo razoável e proporcional: o critério de
razoabilidade não dá para se colocar num papel, mas também não é subjetivo, é um critério
de justa prudência.

145
Um homem justo, um homem santo, um homem bom, desenvolve uma virtude que se
chama prudência, e a Teologia Moral inclusive é feita para poder ajudar a desenvolver essa
virtude. Os critérios da prudência, na medida em que a justiça e a virtude vão se
desenvolvendo, são quase que universais. Noutras palavras, é a prudência do homem
virtuoso que julga a razoabilidade num caso de cooperação indiferente, o que na esmagadora
maioria dos casos não é nada difícil. Não é necessária a prudência de um Tomás de Aquino
ou de um grande Santo, uma prudência infusa ou extraordinariamente infusa. Normalmente
basta a prudência de um homem bom.

3. Do dever de caridade

Existe ainda uma outra coisa que tem afinidade com esta. Não é exatamente o quinto
mandamento nem exatamente a cooperação com o mal, é a questão da ordem da caridade.
Quando somos obrigados a fazer determinados bens, apesar de que possamos ter sérios
prejuízos? São situações que acontecem muitas vezes, principalmente nas pessoas que
trabalham com relações humanas: médicos, assistentes sociais ou pessoas que trabalham
fazendo com beneficência. Acontece menos com pessoas que trabalham em áreas técnicas,
mas nos dias de hoje pode acontecer com qualquer um.

Dentro da teologia da tradição cristã desenvolveu-se um critério para discernir o grau de


obrigação que teríamos de socorrer uma pessoa, distinguindo as necessidades em que as
pessoas estão em três categorias genéricas: a) a necessidade extrema, b) a necessidade grave c)
e a necessidade leve. De modo geral, quando alguém está seriamente necessitado de socorro,
ou a pessoa está numa situação extrema, ou numa situação grave, ou numa situação leve. Esse
critério é muito bem feito, porque realmente, junto com a devida prudência, ele esclarece
quase tudo ou pelo menos as situações fundamentais.

A) Necessidade extrema. — Significa que, além de ser grave, é uma necessidade na qual o
indivíduo não é capaz de socorrer-se sozinho. Por exemplo:
● Um fulano que foi injustamente condenado à morte e não tem como fugir; alguém
que foi preso na cadeia e condenado à morte pelos companheiros de cela e não tem
como se socorrer, ele vai morrer.
● Ou alguém que foi atropelado e está inconsciente em coma, e não tem como se
socorrer: ou alguém o leva ao hospital, ou ele está morto.
● Ou um fulano que está num nível de diabete altíssimo e precisa de insulina, mas não
tem dinheiro para comprá-la. Se não receber insulina em questão de cinco, dez, vinte
minutos, ele está morto, e não tem como comprar. Supondo que a insulina fosse uma
coisa cara e há alguém que geralmente não tem recurso, isso é uma necessidade
extrema: ele está num perigo iminente de vida ou de dano gravíssimo e não tem como
resolver isso por si.

146
B) Necessidade grave. — É quando a pessoa está numa situação em que pode tentar se
socorrer ou não, mas ela vai sofrer um prejuízo absolutamente gigantesco. Exemplos de coisas
graves:
● A família da pessoa vai ser destruída.
● Ou ela vai perder o emprego, numa situação onde não existe mais emprego e tem
várias crianças para cuidar.
● Ou vai perder todo o seu patrimônio ou toda a sua honra.
● Ou o sujeito é médico e vai ser cassado.
● Ou é advogado e vai perder a OAB e não terá como trabalhar em outra coisa.
● Ou trabalhou a vida inteira para ter uma casa e a casa vai pegar fogo.

C) Necessidade leve. — É quando alguém terá um prejuízo que pode administrar com
facilidade. Por exemplo:
● A pessoa vai perder o emprego, mas logo encontra outro.
● Alguém vai roubar-lhe o carro, mas depois ela pode arrumar outro.
● Ela vai perder uma chance de fazer o vestibular, mas depois pode fazer outro.
● Ou a pessoa vai ficar sem almoçar um dia.

A questão é a seguinte. Quando não temos obrigação de ofício, isto é, não somos o pai da
pessoa necessitada, nem o empregado dela, nem o advogado pessoal do fulano com o qual
temos um acordo (recebemos dinheiro para poder socorrê-lo); nem somos o médico dele,
nem o guarda-costas do indivíduo (então teríamos obrigação de socorrê-lo por estarmos
recebendo); então se não temos obrigação de ofício e encontramos uma pessoa que está numa
situação dessas, o quanto somos obrigado a socorrer alguém que apareça nessa situação?

Devemos ver qual prejuízo teremos ao socorrer essa pessoa: se para socorrer uma pessoa em
necessidade extrema, nós entraremos em necessidade extrema, não somos obrigados a
socorrê-la. Podemos socorrer se quisermos, mas temos que amar o próximo “como a nós
mesmos”. Então se vamos socorrê-la de uma necessidade extrema e aí nós entraremos em
necessidade extrema: se quisermos podemos socorrer; se não quisermos, não somos obrigados
e não existe problema de consciência num caso desses. É diferente se a pessoa está em
necessidade extrema e nós teremos um prejuízo grave: a necessidade extrema do próximo tem
prevalência sobre o prejuízo grave que tivermos.

É a mesma coisa numa necessidade grave: se socorrendo uma necessidade grave, nós
passaremos por uma grave, não somos obrigados a fazê-lo. Se alguém está numa necessidade
grave e nós passaremos por uma leve, ordinariamente teríamos que ajudar.

E numa necessidade leve, nós não somos obrigados a socorrer o outro se tivermos qualquer
necessidade leve como consequência. Poderíamos ter que ajudar ou não se não tivéssemos
absolutamente problema nenhum. Ainda assim só cairia na questão de matéria grave

147
dependendo de qual necessidade leve a pessoa estivesse tendo. Obviamente, se nós não temos
prejuízo nenhum, nem de tempo, nem de nada, e alguém vai passar uma necessidade leve,
seria pelo menos uma desordem não ajudarmos apenas por pirraça.

Passemos a exemplos concretos que podem acontecer. Muitas vezes isso deixa para as pessoas
tormentos de consciência que não existem.

D) Casos práticos sobre o dever de caridade. — Alguém está se afogando, está pedindo
socorro. Só o Fulano está lá e ele não sabe nadar. Ele pode tentar se jogar na água para salvar
a pessoa, mas não sabe nadar e provavelmente o que vai acontecer é que morrerão os dois; ou
então talvez ela se salve, mas o Fulano morra. A pessoa está numa necessidade extrema, mas
ao tentar salvá-la o Fulano cairá em outra necessidade extrema. É uma coisa lícita e louvável
tentar salvá-la, mas isso não é uma obrigação, porque ele não é obrigado a entrar numa
necessidade extrema para tirar outra pessoa de uma necessidade extrema.

A mesma coisa se o Fulano vê uma velhinha sendo assaltada e que ela será morta às quatro da
madrugada numa rua deserta. Ele percebe que se entrar na briga vai salvar a pessoa, porém ele
é que vai morrer no lugar dela, porque pelo fator surpresa o assaltante já sabe que a pessoa é
indefesa, mas ele não conhece o Fulano, não sabe se é um faixa preta de karatê, se está armado.
Então o assaltante vai esquecer da pessoa, ela vai fugir correndo e ele vai para cima do Fulano.
Quando o ladrão perceber que o Fulano é um nada perto dele, o Fulano está morto: salvou a
pessoa, mas morreu no lugar dela.

Ele é obrigado a fazer isso? Não existe obrigação moral, porque é a vida dela contra a dele. Se
ele percebe que vai salvar a vida dela, mas vai pagar com a sua, ele pode fazer isso ou não. E se
não fizer, isso não é culpa nenhuma, mesmo que depois ele veja que a pessoa morreu e diz:
“Olha, se eu tivesse feito alguma coisa eu teria salvo ela”. E poder-se-ia dizer-lhe: “Sim, mas
você teria ido!”. Então é um caso de uma necessidade extrema em troca de uma necessidade
extrema.

Um outro caso bastante diferente. O sujeito é um advogado, possui a carteira da OAB e pode
visitar uma penitenciária. Ele chega numa penitenciária e aí um fulano lhe diz que está
condenado à morte, que está cumprindo dez anos de cadeia, mas dentro daquela cela eles
decidiram matá-lo naquela noite. Ele precisa de um Habeas Corpus e se o advogado não o
fizer ele está frito e não tem para quem pedir. Mas naquele dia o advogado tem a defesa de
uma causa que é a causa da sua carreira: ele se tornará um advogado famoso ou, se não
aparecer, acabou a carreira dele, ninguém mais vai acreditar nele durante muitos anos ou
talvez para sempre. Então ou ele faz o Habeas Corpus para o fulano ou acaba com a sua
carreira.

148
O fulano não é cliente dele, inclusive é um marginal, mas vai morrer injustamente. O
advogado pode tranquilamente dizer: “Olha, eu lamento, não posso. Peça para outra pessoa,
mas eu tenho um cliente e inclusive eu vou dar prejuízo ao meu cliente. Eu vou acabar com
a minha carreira e vou prejudicar o meu cliente que está me pagando”? Ele pode fazer isso?

Pelos critérios citados o advogado não pode, porque trata-se de um prejuízo grave dele e do
seu cliente, mas inclusive o cliente teria obrigação de entender. Supondo que seja verdade o
que o fulano está falando, ele está numa necessidade extrema, caso não haja outro jeito
(sempre pode ter um outro jeito, mas nesse caso o advogado não está prevendo outro;
humanamente falando é uma sorte que ele tenha passado por ali, e o fulano está precisando
de um Habeas Corpus). Sendo assim, ele está numa necessidade extrema que está acima da
necessidade grave que o advogado vai passar. São esses sacrifícios que nós temos que fazer.

Um outro exemplo. O sujeito é médico num hospital [privado] e a ordem é não socorrer
ninguém que não seja conveniado. Aí aparece um fulano que teve um infarto e o médico sabe
que ele precisa ser socorrido, porém não tem nem dinheiro para pagar. Se o médico não
socorrê-lo, ele morre. Pode até transferi-lo, mas não dá tempo para isso, ele vai morrer. Se o
médico colocá-lo para dentro, estará despedido. Pode não acabar a sua carreira de médico,
mas será um belo pepino. Além disso, pode não ser a última vez que isso aconteça; pode
acontecer isso várias outras vezes e, assim como o médico foi despedido desse, também vai ser
despedido dos outros hospitais. Nesse caso é a mesma coisa: uma necessidade grave contra
uma necessidade extrema. O médico tem que socorrer o indivíduo, não adianta!

Quanto ao caso da insulina que estávamos falando. Tem um cara que vai morrer por falta de
insulina e ele aparece na farmácia, dizendo: “Eu preciso de insulina”. O funcionário diz: “Ah,
custa tanto”. Mas o sujeito não tem dinheiro. O funcionário diz: “Bom, mas eu não posso te
dar. Inclusive se eu der três insulinas dessas por mês para alguém, foi todo o meu salário e se eu
te der eu terei que pagar”.

Na verdade, um fulano desse tinha direito de roubar a insulina, porque de fato era obrigação
do farmacêutico, do dono da farmácia, de qualquer pessoa. Se estiver claro e flagrante que o
fulano vai morrer por falta de insulina, qualquer pessoa é obrigada a dar o dinheiro que tem
— a não ser que ela também precise de insulina e vá morrer caso dê o dinheiro. Mas se for por
prejuízo de dinheiro, devemos pagar e não importa se vamos ser despedidos, se a farmácia vai
à falência; num caso desses temos que dar. E se não dermos e o sujeito conseguir roubar, é um
direito que ele tem, porque na verdade ele está tomando o que é dele. Nós tínhamos
obrigação de dar, então na verdade a insulina já é dele: caso conseguisse roubar, ele não
poderia nem deveria ser preso, porque está exercendo seu direito. Alguém poderia dizer:
“Mas e se o caso é frequente? Eu vou ficar maluco!”. Não importa se o caso é frequente, nós
temos que fazer.

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Essas coisas podem ocorrer no dia a dia e normalmente as pessoas não são educadas para
terem critérios para elas. Os critérios legais muitas vezes podem ser incorretos do ponto de
vista moral.

Vamos imaginar um psicólogo que recebe uma chamada de um indivíduo que diz: “Doutor,
eu vou me matar”; e o psicólogo percebe que é verdade, que ele pode se matar mesmo e ele
quer falar com o psicólogo. Só que é o dia da festa de aniversário de 15 anos da filha do
psicólogo. E ele diz: “Olha, infelizmente eu estou ocupado, preciso fazer outra coisa, me liga
amanhã”. E o sujeito diz: “Doutor, amanhã eu sou um homem morto”. O psicólogo diz:
“Então você procura outro lugar”.

Ele sabe que de fato podia socorrer o indivíduo, mas a filha está fazendo 15 anos e já está de
saco cheio do pai ficar atendendo pacientes fora de hora: “Até no dia dos meus quinze anos
que eu queria ter o meu pai junto...”. Mas paciência, a filha vai ter que entender! Se fosse cristã
ela teria que entender isso. E no fim das contas, não ter o pai na festa de 15 anos não é o fim
do mundo, pois são convenções humanas. Alguém vai morrer e pediu socorro. O que se pode
fazer o que? Tem pessoas que escolheram fazer isso como profissão. E mesmo se não tivesse
escolhido isso, ele teria que deixar a festa de 15 anos da filha.

Ressalte-se que estamos nos referindo a casos concretos. Não são hipóteses como: “Ah, tem
alguém que vai se matar hoje; se eu procurar vou achar, pois todo dia há pessoas se suicidando.
Então hoje a minha filha está fazendo 15 anos, mas se eu não procurar alguém, esse alguém
vai morrer”. Isso é outro contexto. Estamos falando de casos concretos.

O advogado vai defender o cliente, mas pensa: “Ah, com certeza alguém deve ter sido
ameaçado numa penitenciária. Se eu procurar eu encontro e aí terei que fazer um Habeas
Corpus”. Não estamos falando disso, mas de coisas concretas, líquidas e certas.

Se fosse assim, uma vez que o cara é médico, ele teria que partir para a Libéria onde estão
todos morrendo de ebola, pois se tiver um médico a mais, com certeza morrerão menos
pessoas. Além disso, os padres teriam que partir para as terras de missão. Mas não existe essa
obrigação individual imediata de partir para a Libéria se alguém é médico, ou de partir para
uma terra de missão se o sujeito é missionário. Essas são obrigações coletivas da humanidade
como um todo e da Igreja como um todo, respectivamente.

Se fosse assim, todos os médicos deveriam sair do Brasil e todos os padres deveriam sair donde
estão para procurar lugares de missão. Existe essa obrigação sim, mas não é uma obrigação
“agora”, líquida, imediata, do indivíduo. Não é porque ele sabe de um lugar onde há uma
necessidade muito maior, que deve largar imediatamente tudo, por uma coisa que depois na
prática nós vemos que é cheia de incertezas. Se fosse assim, então todos deveriam ir para a

150
Mongólia onde não existem cristãos. Nós também não poderíamos estar fazendo um
trabalho aqui no Brasil.

É certo que a Igreja no seu conjunto tem a obrigação de se preocupar com a Mongólia, de
mandar pessoas para lá, mas estes exemplos que estamos dando são de necessidades líquidas,
certas, claras e imediatas. Essas outras também devem chamar a nossa atenção, mas não temos
esse mesmo imperativo moral imediato, concreto, líquido, como se o sujeito tivesse de partir
para a Mongólia já, e não pudesse defender a causa do cliente com o qual já havia acertado.
Dentre outros motivos, inclusive porque essas coisas são muito incertas: o missionário não
sabe se vai adaptar-se ao frio da Mongólia, não sabe como vai entrar lá, não sabe se é possível;
não sabe se pode até complicar as coisas ao invés de ajudar — se eles não vão achar estranho
que um brasileiro com chegue na Mongólia querendo fazer não sei que. Eles poderiam
pensar: “Será que esse cara não é um espião”. Então ao invés de ajudar, o sujeito será preso. São
coisas tão cheias de incertezas que na prática não se fazem assim na aventura.

Muito diferente do médico que tem um paciente na sua porta, algo que não é nenhuma
aventura. Ele sabe o que fazer, mas o problema é que terá um prejuízo. Ou o advogado que
está lá na penitenciária e sabe que o indivíduo precisa de um Habeas Corpus. Ele sabe como
fazer o Habeas Corpus, conhece a situação, vê que é certo e não tem nenhuma incerteza, é só
fazer.

Estamos falando de casos líquidos e certos. Não podemos extrapolar esse mesmo tipo de
imperativo para essas outras necessidades que na prática envolvem considerações logísticas
de outro tipo. Elas também têm que ser resolvidas, mas não na base de um imperativo moral
desse tipo que estamos dizendo.

Conseguimos ver uma série de critérios que depois devem ser refletidos com cuidado, porque
servem para toda a vida, já que pela ausência deles, frequentemente nós nos omitimos onde
deveríamos ter atuado ou provocamos uma consciência de culpa onde não haveria culpa
alguma.

151
Aula 9 – NATUREZA DA MORAL I

Índice
1. A importância da teologia moral para evitar o pecado grave
2. A importância da teologia moral para a prática das virtudes
A) Praticar as virtudes para ordenar as paixões
B) Praticar as virtudes para unir-se a Deus
3. Importância e necessidade da virtude da prudência
4. Papel da teologia moral no desenvolvimento da prudência
5. Conceito de homem prudente

1. A importância da teologia moral para evitar o pecado grave

Precisamos dar uma ideia do porquê exatamente se fala dessas coisas todas: por que existem
tais mandamentos, tais critérios, por que se estudam essas coisas? Na verdade, nós estamos
nos preparando para a confissão. Em princípio, quando fazemos a confissão pela primeira
vez é para definitivamente abandonarmos tudo que a Igreja ensina ser pecado grave.

Já vimos o que é pecado grave: é como algo que se faz num emprego, num contrato, numa
convivência, num acordo, numa comunidade, que torna a vida incompatível com aquele
emprego ou aquela comunidade, etc. Como naquele exemplo que demos sobre o entregador
de pizza que, ao fazer a entrega, enfia a pizza na cara do freguês: ele está despedido e não tem
mais conversa, nunca mais entregará pizza! Ou no caso do sujeito que é comandante de avião
e resolve apresentar-se e comandar o avião de shorts ou de uma maneira que as pessoas possam
ter alguma dúvida se o comandante está em perfeito juízo: ele nunca mais pilotará um avião
na vida.

Dependendo do acordo, da convivência, da sociedade, da comunidade, há coisas que são


absolutamente imperdoáveis, isto é, a própria natureza daquela relação não comporta uma
pessoa desse tipo. Como um fulano que fosse matador em série, um criminoso assassino,
dificilmente seria aceito para estudar medicina, e assim por diante.

São Paulo diz que quando nos tornamos cristãos nós somos aceitos na casa de Deus, na
família de Deus. Tem certas coisas que são a quebra, a ruptura completa desta familiaridade
e Deus mesmo diz quais são elas: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si
mesmo. Nesses mandamentos consiste a lei, e a partir disso entende-se muito corretamente
que o preceito da castidade está incluído no segundo mandamento.

152
Se quisermos ser cristãos nós devemos nos aproximar de Deus já sabendo que a convivência
com ele exige tais coisas, de modo que não existe maneira de conciliar as duas coisas. Por isso
o primeiro passo para sermos cristãos é romper com o pecado grave definitivamente. Por
consequência, temos que entender o que é o pecado grave, temos que explicar em miúdos o
que isso significa. No entanto não é só isso, já que existem várias outras coisas além de evitar
o pecado grave, além de evitar essas “rupturas”.

Quem vai casar com uma moça (isso falando no plano meramente natural) tem que entender
que, ao casar, terá que voltar para casa todo dia, morar junto com a menina e ser fiel na saúde
e na doença, assim por diante. O sujeito não pode casar com alguém e dizer: “Eu vou para
minha casa!”. A mulher responde: “Mas como assim para tua casa? Agora você está morando
comigo”. E ele diz: “Você vai exigir que eu vá todo dia para a tua casa?”. E ela diz: “Não, não é
a ‘tua’ casa, é a nossa casa!”. E ele diz: “Não, mas eu não estou sabendo de nada disso. Imagina,
agora eu vou virar escravo, tenho que ficar ali dentro? Todo dia tenho que voltar lá e ainda por
cima tenho que dormir com você? O que é isso?”. E ela diz: “Não, mas não é só isso. Você vai ter
que ser fiel e eu também”. E ele diz: “Sai de perto!”.

Não dá para casar se o sujeito não entender primeiro que vai repartir a vida com ela, que está
doando a vida a ela, que tem que ser fiel. Se não entender essas coisas e resolver casar, ele vai
destruir o casamento. Aliás é inconcebível: há certas regras mínimas de convivência que nós
temos que entender.

A mesma coisa o sujeito que vai trabalhar num emprego e deve ir lá todos os dias. E ele diz:
“Todo dia?”. “Claro que sim!”, respondem. Tem certas coisas que devem ser explicadas e,
dependendo do emprego, há exigências especiais que são inegociáveis, porque senão o
emprego é inviável. Isso que seria o pecado grave.

2. A importância da teologia moral para a prática das virtudes

Mas não é apenas isso. Existe uma coisa que chamamos de virtude. Virtudes são qualidades
que adquirimos e pelas quais praticamos certos atos que são coerentes com a natureza
humana. Nós temos que desenvolver essas virtudes. E por que devemos fazer isso? Existem
vários motivos, mas devemos perceber que nós aprendemos e estudamos essas coisas não só
para evitarmos o pecado grave e sermos recebidos na família divina; nós também temos que
desenvolver certos hábitos que são chamados virtudes.

A) Praticar as virtudes para ordenar as paixões. — Há várias razões para praticarmos as


virtudes. Primeiro é que algumas destas virtudes estão relacionadas com aquilo que
chamamos de paixões, e as paixões básicas da alma humana se dividem em dois tipos: o
irascível e o concupiscível.

153
O irascível são aquelas paixões do tipo da raiva, da violência, da explosão de cólera, da
vingança, do desejo de retribuir o mal com o mal, do ódio. O concupiscível são as paixões que
se assemelham à sexualidade desenfreada: o desejo de sexo, de prazer, de gula, além dos vícios
de modo geral, como álcool, drogas (apesar de que nem todos caem neles), que no fundo são
buscas desenfreadas de certos tipos de prazeres. Também vícios de jogos: pessoas que são
viciadas em jogo de cavalo, jogo de cartas, jogo de cassino; estas não são paixões do tipo
irascível, mas do concupiscível.

O característico é a sexualidade (que primariamente seria a luxúria e secundariamente, a gula)


e a ira; são as características do irascível e do concupiscível. Via de regra, todas as paixões
humanas ou são da família do concupiscível ou da família do irascível; elas têm uma
psicologia própria.

O ser humano comum, o ser humano na sua natureza decaída, normalmente deixa isso se
desenvolver como se fosse uma erva daninha e o resultado é tremendamente deletério para a
inteligência: uma pessoa que deixou desenvolver o concupiscível e o irascível, não tem mais
condições de pensar corretamente. Quando dizemos isso não estamos nos referindo a
cálculos ou operações logísticas, teses de história, geografia, mas ao pensamento abstrato no
sentido filosófico. O sujeito não consegue claramente pensar na organização da própria vida,
em questões de justiça, do que ele realmente deve aos seus semelhantes, aos patrões e a si
próprio.

É muito difícil enxergar claramente as questões mais profundas do ser humano, quando se
está envolvido nessas coisas. É muito difícil coordenar todas as coisas. E dependendo dos
casos pode até ser difícil pensar em matemática e coisas intelectuais que não tenham uma
amplidão tão grande. Sendo assim, nós precisamos ordenar as paixões através da virtude para
podermos ter uma mente mais aberta. E a experiência mostra que a prática da castidade e da
paciência (do respeito ao próximo) tem um efeito absolutamente fulminante no desempenho
do trabalho da mente: a mente fica mais limpa, mais clara, pensa muito melhor e não só nas
coisas mais profundas, mas também nas coisas elementares.

É muito comum num estudante jovem que tem vícios no irascível e no concupiscível, se ele
abandona imediatamente isso com uma confissão bem-feita, ver que o seu rendimento
escolar nas matérias triviais sobe da noite para o dia, desde que seja uma conversão sincera. É
algo que tem um efeito na vida espiritual absolutamente fora do comum. Essa é uma das
coisas que explicamos quando preparamos as pessoas para a confissão, porque isso não é o
fim da vida espiritual, mas o começo. Por isso precisamos ter bem claro o que é o irascível e o
concupiscível para sermos absolutamente radicais com isso.

154
O evangelho exige uma conversão em relação a isso. Podemos ver como Jesus era severo com
essas duas coisas. Quando vemos o sermão da montanha no capítulo 5 de São Mateus, Jesus
se refere a dois mandamentos em especial: não matar e não cometer adultério, e comenta esses
dois mandamentos: Vocês ouviram o que está escrito “Não matarás”; mas eu digo que aquele
que xingar, insultar o seu irmão, chamando-o de cretino já será réu de condenação —
obviamente ele não está falando de uma avaliação psiquiátrica onde o médico afirma que o
QI do fulano é baixo; ele está dizendo “chamar de cretino” querendo insultar, magoar,
desprezar ou num contexto onde se esteja humilhando uma pessoa. Ele está comparando
insultar uma pessoa, a um assassinato.

Logo depois ele faz a mesma coisa com o concupiscível: Vocês ouviram falar que não se deve
adulterar, mas eu digo que aquele que olhar para uma mulher com um mau desejo no
coração, já cometeu adultério. E na tradição judaica, assim como no início da tradição cristã
(até hoje é assim, mas as pessoas não sentem que é assim), o adultério era uma coisa gravíssima.

No judaísmo o adultério recebia a pena de apedrejamento. No início do cristianismo, o


adultério tanto do homem quanto da mulher, era uma coisa simplesmente impensável: o
indivíduo cristão que adulterasse tinha que pedir perdão à Igreja (não se admitia uma simples
confissão como se faz hoje) e tinha que fazer penitência durante vários anos antes de ser
readmitido à Igreja. Além disso ele só tinha uma única chance; se cometesse um segundo
adultério ele não voltava mais para a Igreja, tinha que resolver o problema diretamente com
Deus. Ele não estava perdido, Deus poderia perdoá-lo, mas o problema dali em diante era
entre ele e Deus.

Hoje em dia a gravidade do adultério não diminuiu, mas a disciplina eclesiástica é mais
simples. O sujeito pede perdão, confessa e tem que mostrar ao padre que realmente está
disposto a nunca mais cometê-lo; porém a gravidade não é menor.

Jesus então pega dois pecados que as pessoas entendiam claramente que eram gravíssimos
(assassinato e adultério) e diz que assassinato não é só matar uma pessoa, mas xingar uma
pessoa para humilhá-la já é assassinato. E adultério não é só dormir com a mulher do vizinho
casado, mas olhar para uma mulher com mau desejo. E ele tem essa rigidez especificamente
com esses dois tipos de pecado; podemos ver então que ele está atingindo o irascível e o
concupiscível.

Consequentemente, uma das coisas que devemos aprender na preparação para a confissão
não é apenas que temos certas regras fundamentais que são quebradas pela raiz caso não as
sigamos; além disso há duas coisas que devemos desenvolver: a virtude da pureza e a virtude
da mansidão — a virtude do respeito ao próximo, dessa benevolência, sendo capazes de rezar
e desejar o bem dos próprios inimigos, daqueles que nos odeiam e nos fazem o mal, ter essa
[disposição interior] para com todos. Em nenhum momento ofender, humilhar, desprezar as

155
pessoas de maneira alguma, mesmo que em certas ocasiões em dever de ofício (como um juiz
ou um policial) o sujeito tenha que tomar uma atitude enérgica; deve fazê-lo dentro dos
limites do próprio ofício, dentro de um contexto razoável e dos limites que a situação exige e
não além.

Desenvolver essas virtudes, a castidade e o respeito ao próximo, é uma coisa indispensável


para o nosso [posterior] desenvolvimento espiritual. Isso abre a mente e, uma vez que o
façamos, nós nos tornamos outra pessoa. O que acontece é que a mente se abre para
horizontes mais largos. Isso já resulta num desenvolvimento evidente não só se a pessoa se
dedica a algum trabalho intelectual, mas o principal é a perspectiva que isso abre. É claríssimo
que isso acontece!

B) Praticar as virtudes para unir-se a Deus. — Existe um outro motivo pelo qual temos
de praticar essas virtudes: porque a finalidade da vida humana é alcançar uma comunhão
pessoal com Cristo, que se dá dentro numa vida de oração e espiritualidade. Isso se faz através
do que chamamos de vida contemplativa. Para isso não precisamos necessariamente nos
entregar a uma vida puramente contemplativa num mosteiro; devemos ter uma vida interior,
não importa o gênero de vida que tenhamos, pois é nessa vida interior que se dá o encontro
com Deus, o encontro verdadeiro, íntimo e pessoal com Deus.

Isso pode ser visto claramente na parábola de Marta e Maria, onde Jesus fala que Marta estava
na cozinha preocupando-se com muitas coisas. Ele foi visitar as duas irmãs e a outra irmã,
Maria, foi sentar-se aos seus pés e ficava ouvindo-o falar. Quando Marta reclamou que Maria
não estava ajudando na cozinha, ao invés de receber um elogio ela recebeu uma repreensão
ouvindo que, na verdade, só existe uma única coisa necessária e que Maria tinha escolhido a
melhor parte, a única que não lhe seria tirada.

Jesus estava dizendo que o miolo da vida cristã está justamente no que chamamos de
contemplação, onde ocorre a intimidade com Deus. Ora, a experiência mostra que a
contemplação exige como preparação, via de regra, mais do que apenas a prática da castidade
e do respeito ao próximo, mas também a prática de um apostolado efetivo.

Ela exige a prática de uma coisa que se chama vida ativa e que é uma espécie de justiça: dar
aos outros aquilo que lhes é devido, mas não apenas num sentido estritamente jurídico, como
num contrato. Dar o que é devido significa que as pessoas que estão passando fome estão
precisando de alguém que lhes leve a comida, não necessariamente a que está na nossa casa;
eles estão precisando de socorro e isso lhes é devido. Àquelas pessoas que estão na ignorância
do evangelho, é devido que alguém o leve. As pessoas que serão mortas, precisam ser ajudadas
a não morrer, e há milhares de pessoas assim. Então se nós podemos fazer alguma coisa, é
nosso dever fazer algo por essas pessoas.

156
Isso é mais trabalhoso do que a castidade e o respeito ao próximo, porque no fundo viver a
castidade e respeitar o próximo é não fazer certas coisas. No apostolado, na justiça, onde
levamos às pessoas aquilo que lhes é devido (ainda que não seja uma coisa que não esteja em
nossa posse física, mas algo que possa ser feito) nós temos que esquecer de nós mesmos e
abandonar o nosso egoísmo! Poderíamos estar em casa fazendo outras coisas, poderíamos
estar passeando, viajando pela Europa. Quando começarmos a perceber principalmente
quanta gente está precisando, quando começarmos a cair na realidade do que é o mundo,
pouco a pouco veremos que não há mais espaço para o “eu”: ou nos se doamos ou nos
trancamos.

Jesus diz que nós não podemos ser seus discípulos se, além de abandonar o pecado, não
renunciamos a nós mesmos. O único jeito de renunciar a si próprio é através do apostolado
sério, não aquele que fazemos nas horas vagas, nos momentos que queremos para
satisfazermos uma inclinação pessoal: visitar um asilo de velhinhos num certo horário, só
naquele e no resto nós fazemos outras coisas. Existe uma atividade para fazer o bem, existem
obras de misericórdia a serem feitas, que justamente produzem o verdadeiro efeito de fazer
com que renunciemos o egoísmo, porque quando fazemos essas coisas nós não temos mais
tempo de pensar em nós, temos que pensar no outro!

Essa vida ativa é pressuposto ordinariamente para a contemplação. Aquilo que se chama
contemplação, na verdade é uma intimidade divina onde nos doamos a Deus e Deus
efetivamente se doa a nós. Deus entra em contato pessoal conosco, cada vez mais
profundamente. Para que isso possa acontecer plenamente é necessário não só que a pessoa
esteja livre das paixões e do pecado grave, mas também um desprendimento, a doação, a
ausência do egoísmo. E nós costumamos aprender essa ausência de egoísmo através do que
chamamos de vida ativa. Não é apenas praticar as virtudes evitando o pecado, mas aprender
a doar-se ao próximo através das obras de justiça, ainda que seja uma justiça entendida num
sentido lato, não num sentido de “Fulano comprou tal coisa e paga tal coisa”; mas num
sentido maior, de verdadeira misericórdia.

É aí que vem aquilo que talvez seja a grande função desse aprendizado da moral: tudo isso em
última análise é uma preparação para um encontro com Deus através da vida espiritual.
Portanto, essas coisas não são para ser feitas de qualquer maneira; tudo isso deve ter uma
ordenação em direção à finalidade última, ou seja, o encontro com Deus.

3. Importância e necessidade da virtude da prudência

Existe então uma virtude que é responsável por fazer a coordenação a fim de entendermos o
sentido e o critério de todas as coisas. Existe uma virtude que é capaz de ordenar as outras
virtudes e [regular] exatamente cada uma delas para que, em função do fim último, possamos

157
dosar a quantidade certa das coisas. Essa virtude nós chamamos de prudência, é a grande
virtude da moral humana.

Prudência é aquela virtude da inteligência prática pela qual conseguimos coordenar todas as
demais virtudes a uma determinada finalidade. Logo, a prudência age de duas formas.
i) No momento presente, quando precisamos fazer uma coisa direito, praticar uma boa ação
de uma maneira elegante, que chegue ao seu bom termo; então sabemos a palavra certa a ser
usada, sabemos não deixar a cólera subir e nos influenciar, sabemos não deixar as paixões, o
amor, a inclinação pela coisa nos desviar; enfim, sabemos pesar exatamente cada coisa,
entender o que queremos e fazê-lo na medida certa. A prudência serve então para o sujeito
ser sábio numa determinada circunstância.
ii) Além disso, a prudência serve principalmente para que o sujeito, através dela, possa
ordenar toda sua vida à finalidade última, que é aquela que Jesus estava falando para Maria:
“Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”.

E por que Marta não sabia fazer isso? No caso dela o problema era muito elementar: ela era
doida por cozinha! Ela chegava na cozinha e não conseguia mais sair de lá, os seus olhos
ficavam lá, então ela estava apaixonada por cozinha. O problema dela não era nem a falta de
prudência, era passional.

Supondo que a pessoa se livrou das paixões: ela tem que se livrar do egoísmo. Mas supondo
que a pessoa já seja suficientemente desprendida de si e não tenha as paixões: ela ainda assim
tem que aprender a coordenar as coisas, tem que ser um “bom administrador”. Ela não será
um bom administrador se tiver paixões e egoísmo; mas se já não os tiver, ainda assim precisa
aprender os critérios pelos quais se administram as coisas. Uma vez que o sujeito tenha
desenvolvido essas virtudes, quem ensina esses critérios é uma outra virtude que se chama
prudência, e que aprendemos principalmente através da moral.

4. Papel da teologia moral no desenvolvimento da prudência

A grande função da moral é desenvolver nos indivíduos aquela virtude que chamamos de
prudência, ou seja, os critérios pelos quais sabemos agir corretamente. Em última análise esses
critérios devem ser capazes de nos levar à contemplação; devem tornar-nos capazes de saber
usar o desenvolvimento das virtudes para dirigirmo-nos a uma vida de comunhão com Deus.

Supondo que fulano tenha se livrado do pecado grave, tenha desenvolvido as virtudes e não
seja um preguiçoso. Supondo que, além de evitar o pecado, ele tenha o desprendimento de
saber doar-se porque precisa vencer o egoísmo e a preguiça e mostrar que é uma pessoa
perseverante; que diante da dificuldade ele não fala, depois de uma semana, “Eu já fiz a
minha parte e os outros também tem que fazer a deles”. Se o fulano realmente é capaz de
entender o sofrimento alheio na perspectiva do outro e não da sua própria, ele ainda precisa

158
de uma virtude que se chama prudência, aquela virtude que sabe julgar corretamente como
desenvolver todas as ações humanas, tanto as pequenas numa situação concreta, como a
maior de todas que é coordenar todas as virtudes em direção à contemplação.

O que estamos vendo é a teologia moral dirigida à confissão, mas embutido nisso já é possível
ver que há outras coisas; é um primeiro gosto. No entanto, a principal finalidade daquilo que
chamamos de moral é o desenvolvimento dos critérios e da virtude da prudência. Vemos isso
nessas coisas que estamos falando. Por exemplo: Quando estávamos discutindo o quinto
mandamento nós apresentamos vários casos “Nesse caso o que fazer? Quais são os critérios?”.
Apresentamos os critérios-chave e fomos discutindo casos, que [provavelmente] não vão
acontecer na vida, mas podem acontecer semelhantes e estávamos discutindo como
[proceder]. Ao fazer isso não estávamos apenas nos preocupando em dar uma tabela do que
é pecado grave e o que não é; estávamos desenvolvendo critérios pelos quais podemos analisar
como é que se age.

Esses critérios têm que ser aprendidos e refletidos durante a vida. É importante que nós os
estudemos e desenvolvamos essa capacidade de saber encontrar o modo certo de fazer as
coisas, o modo ético, o modo moral. Entretanto, o grande desafio da prudência é ordenar não
só cada uma das pequenas ações, mas todo o conjunto da vida humana à vida espiritual.

Noutras palavras, o homem que soube fazer direito todas as coisas, soube fazer de maneira
ética as suas diversas atividades, mas não conseguiu ordenar o conjunto à verdadeira
finalidade da vida humana que é a profundidade da vida espiritual, qualquer que fosse o seu
estado de vida, esse sujeito não foi um homem prudente! Ele não tinha verdadeira prudência,
pois não soube ordenar os meios em direção ao fim. Ele soube ordenar meios pequenos em
relação a fins imediatos, mas aqueles fins imediatos eram por sua vez meios para o fim geral
da vida humana. E o fim geral da vida humana é a união com Cristo, como ele mesmo nos
fala no evangelho: Eu quero que todas essas pessoas sejam um só comigo, assim como eu, o
Cristo, sou um contigo, ó Pai. Eu, o Verbo, sou um contigo, ó Pai.

Isso nós não conseguimos apenas praticando a castidade ou o respeito ao próximo, não
conseguimos apenas pela justiça, não conseguimos apenas pela vida ativa. Nós conseguimos
isso pela prática das virtudes teologais numa vida profunda de oração. Porém não estamos no
céu, estamos nesse mundo onde todas estas atividades nos solicitam: temos que cozinhar,
temos que acudir os outros, temos que estudar, trabalhar; alguns têm que casar, cuidar dos
filhos, cuidar da casa, têm que dormir, têm vários problemas, têm que pagar contas, têm
outros problemas profissionais. E nós precisamos ter uma sabedoria para podermos
coordenar tudo isso e não nos perdermos na “cozinha”, como fez Marta. Devemos levar tudo
isso como meio para uma vida profunda de oração. Isso quem faz é a prudência!

159
Não existe prudência nas coisas grandes se não houver também nas pequenas. O meio básico
de aprender a prudência é através do estudo daquilo que chamamos de moral.

No fundo essa preparação à confissão é a moral aplicada de uma maneira imediata primeiro
à confissão, ou seja, é a moral aplicada com o objetivo de o sujeito desvencilhar-se do pecado
grave. Depois nós devemos usar a moral para nos libertarmos da desordem das paixões, que
ofuscam a mente humana. Em seguida, temos que aplicar a moral para aprendermos a
trabalhar pelo outro e nos esquecermos de nós mesmos. Por último, temos que aplicar a
moral principalmente, no seu ponto máximo, para desenvolvermos uma virtude que se
chama de prudência. Não cabe desenvolvermos isso aqui na preparação à confissão, pois
estaríamos colocando a carroça na frente dos bois, mas o “filé mignon” daquilo que
chamamos de moral (e tudo isso no fundo já é moral) é o desenvolvimento de uma virtude
especial na inteligência prática, que tem a habilidade de coordenar todas as demais virtudes.

E para que temos que coordenar todas as demais virtudes? De maneira imediata isso é
necessário para praticarmos uma ação virtuosa, porque praticar uma ação virtuosa não é só
“ter virtude”; precisamos entender a circunstância e ver a dose certa para aplicar cada coisa,
cada palavra, cada virtude, cada parte da alma humana àquela situação concreta.

Se vamos consolar um aflito, existe uma certa medida: se começamos a consolá-lo demais, a
coisa sai mal feita. Todas as coisas têm a sua medida. É justamente essa virtude da prudência
que mostra como se encontram as coisas. E para isso ela tem seus critérios: ela avalia e julga as
coisas.

Portanto, todos esses critérios que estávamos discutindo não são apenas uma tabelinha de
coisas que temos que entender para não cometermos um pecado grave. Estamos discutindo
esses critérios como uma amostra do [processo pelo qual] vamos desenvolvendo uma virtude
que se chama prudência.

A prudência julga o modo correto de desempenhar as virtudes. Para se desenvolver bem ela
precisa do prévio desenvolvimento das demais virtudes, principalmente dessas três: a
castidade e o respeito ao próximo, que estão relacionadas às paixões do concupiscível e do
irascível, respectivamente; e em segundo lugar, precisa do senso de justiça, que dificilmente
será desenvolvido sem um trabalho de autêntico apostolado e não de um hobbie, isto é, deve
haver uma doação em trabalho de misericórdia, movido não por gosto, mas por um
sentimento de justiça para com a necessidade do próximo; se não houver isso é muito difícil
desenvolver a justiça, mesmo dando [todos os critérios possíveis].

Se o sujeito for um viciado em sexo, que desrespeita os outros e não tem senso de justiça, não
tem prudência que vá se desenvolver, pois ela precisa destas coisas. Mas, supondo que elas
existam, a prudência precisa também ser aprendida através do desenvolvimento de critérios e

160
isso nos exige reflexão sobre a nossa vida moral, sobre o que é certo e errado, o que foi além
ou a menos; enfim, sobre a medida certa de termos feito as coisas. Tudo sso é ajudado
tremendamente pelo estudo da [teologia] moral, pois ela [existe] justamente para desenvolver
esses critérios.

Falamos isso para darmos uma ideia do porquê estamos fazendo todas estas coisas, a fim de
não parecer uma série de regras caóticas, matemáticas. Na verdade, ao termos desenvolvido o
quinto mandamento como fizemos, analisando os casos daquela maneira e com aqueles
critérios, estávamos querendo dar uma certa ideia disso.

A prudência é para coordenar a nossa atividade moral, supondo que ela já exista. Não existe
prudência onde não houver virtudes. A prudência coordena as virtudes: se não houver
virtudes, não há prudência. É como um jogo de futebol: só tem o técnico se tiver os jogadores.
Se não houver jogadores e colocarmos um monte de gente lá no meio do campo que não
entende nada de futebol, não adianta trazer o melhor técnico da seleção brasileira: não vai sair
nada! Para ter um técnico é preciso ter jogadores. Por outro lado, se só tiver jogadores e não
tiver o técnico, a coisa não funciona direito, é uma salada. Então a prudência é como se fosse
o técnico.

A prudência vai mostrar aos jogadores como eles podem ganhar o jogo, supondo que sejam
bons jogadores. Ensinará como eles podem chegar à meta que pretendem. A prudência não
só vai mostrar como se faz uma boa jogada, mas principalmente como, através dessas boas
jogadas, é possível chegar à vitória do jogo. A “vitória final” no jogo é a intimidade divina, a
que Deus nos chama através da vida interior: essa é a vitória final. E os “passes”, as “boas
jogadas”, são as práticas das pequenas virtudes. Mas também o técnico que não tem o sentido
do jogo no seu conjunto e só sabe bolar boas jogadas, não serve de nada ou serve muito pouco.

Portanto, o aprendizado da prudência envolve o desenvolvimento de critérios, supondo que


existam as virtudes. Ademais, a função da moral é também ajudar a desenvolver as virtudes.
Por isso estamos, por exemplo, mostrando não só critérios, mas dizendo por que é tão
importante a castidade, por que é tão importante o respeito ao próximo, por que temos que
ser radicais nisso. Ao dizer essas coisas, não estamos apenas preparando para a confissão. Se
estivéssemos preparando para a primeira confissão a fim de abandonar o pecado grave,
diríamos: “Não faça isso e prometa que não vai fazer mais”. Porém estamos dizendo mais: é
importantíssimo desenvolver as virtudes, porque a moral não é só para preparar para a
confissão, mas para desenvolver as virtudes.

Sem virtudes não adianta desenvolver prudência, pelo mesmo motivo que não adianta trazer
o melhor técnico do mundo se os jogadores não valem nada; seria jogar dinheiro fora. Não
adianta trazer o melhor professor de música se o aluno não tem vocação nenhuma para
música, ele não presta. É inútil, ele não vai entender nada. Ao mostrarmos porque essas

161
virtudes são importantes e muito mais do que as outras, e porque estamos desenvolvendo-as,
estamos indo além do mero propósito que se exige para a primeira confissão, estamos
imaginando um trabalho de ascese.

Ao explicar todos esses critérios que estávamos dando como amostra, estamos tentando dar
uma ideia do que é o desenvolvimento da virtude da prudência, que é o filé mignon do que
chamamos de moral. Isso nos ajuda a fazermos as coisas direito, a não “dar murro em ponta
de faca”, fazendo as coisas direitinho, com sabedoria, de maneira que normalmente sempre
dá certo; e quando não dá certo, aprendemos a fazer o certo da próxima vez, então na verdade
sempre dá certo, mesmo quando não funciona. Aprendemos a praticar as virtudes de uma
maneira elegante, isto é, de uma maneira que funciona realmente. Mas principalmente,
através desses critérios todos, nós temos que ser capazes de refletir sobre o jogo inteiro e como
ganhar o “campeonato”, quer dizer, como alcançar a nossa santificação.

Estamos dizendo isso para que justamente não confundamos essa preparação para a confissão
com um amontoado de regras que simplesmente temos que aprender porque parece haver
uma tabela, com certas regras que temos de cumprir: se nós cumprirmos iremos para o céu;
se não cumprirmos, não iremos para o céu. A coisa não é bem assim! Isso não é exatamente
uma tabela, não é dessa maneira. É uma coisa extremamente profunda. Inclusive, para
aprendê-la bem, posteriormente ela precisa estar em conjunto com a teologia da
espiritualidade (o conhecimento do desenvolvimento da vida espiritual) e com o
conhecimento dos mistérios da fé, que realmente explicam profundamente o sentido dessas
coisas todas.

5. Conceito de homem prudente

Essa prudência de que estávamos falando é uma virtude que o comum das pessoas costuma
chamar de sabedoria, que não é o conceito de sabedoria tradicional. Na tradição cristã,
sabedoria é uma coisa mais alta que isso. Porém, no conceito comum das pessoas de hoje,
chama-se de homem sábio aquele indivíduo que é chamado quando há um problema
insolúvel: ele nos explica exatamente o que devemos fazer, sem paixões, sem injustiças e
dosando exatamente as coisas e com um entendimento claríssimo do que é para ser alcançado.
Fazemos o que ele disse e a coisa se resolve. Isso é que o hoje chamam de homem sábio: essas
pessoas que nos dão um conselho na hora da dificuldade e, seguindo aquele conselho, nós
acertamos sempre.

Na verdade, esse não é o homem sábio, não é o homem prudente. Prudente, no sentido
comum de hoje, é o fulano que não se mete em confusão. É o fulano que, na dúvida, fica
quieto. Não é dessa prudência que estamos falando. Isso é o conceito moderno da palavra.
As palavras mudam de sentido conforme o tempo, é muito comum acontecer isso. Ministro
na época de Cristo significava “empregado doméstico”; hoje ministro é o chefe de Estado. Na

162
época de Cristo, hipócrita significa “ator de teatro”; hoje hipócrita é um fulano mascarado,
que diz uma coisa, mas faz outra na cara de pau. No fundo, é o que os atores de teatro fazem:
eles são uma pessoa no mundo e no teatro são outra. Mas naquele tempo todos sabiam que
era teatro e era uma profissão digna. Hoje hipócrita é um insulto; estrela de cinema é um
elogio — hipócrita significava “estrela de cinema”. Então as palavras mudam de sentido, isso
é uma coisa comuníssima.

O que na antiguidade chamava-se sabedoria, hoje é uma coisa totalmente ignorada, as pessoas
não têm mais ideia do que seja. Em compensação, hoje chama-se de homem sábio aquele
indivíduo que nos explica exatamente o que devemos fazer em relação a qualquer tipo de
problema. Ele é desapaixonado, isento, tem as paixões ordenadas para poder julgar. Tem um
senso correto de justiça, para não ferir os direitos de ninguém e contemplar a todos no que é
devido. Além disso, ele tem o sentido da medida com que se deve fazer a coisa e tem
exatamente a consciência da finalidade que está sendo alcançada. Então ele explica direitinho
como se faz a coisa sem erro.

Contudo, a prudência que temos de desenvolver não é a prudência de perguntar para o


“homem sábio”, que na verdade é o “prudente”. Temos que ir aos poucos desenvolvendo
moralmente essa prudência. E não basta que a desenvolvamos para resolver um aperto; temos
que aplicá-la para planejar toda a nossa vida, de modo que ela seja um sucesso no fim das
contas: o sucesso no fim é alcançar o reino de Deus, a filiação divina, a intimidade com o
Cristo, a união com o Cristo, a perfeição da vida espiritual, aquela “única coisa necessária,
que jamais será tirada”.

Muitas pessoas que às vezes tem sabedoria para as pequenas coisas, não têm sabedoria
nenhuma ou prudência nenhuma para a única coisa necessária. No fundo é porque não
tinham de fato uma grande prudência para as pequenas coisas, mas uma certa esperteza.
Normalmente, quando desenvolvemos corretamente essa virtude da prudência, começamos
a enxergar não só o pequeno, mas o grande. Começamos a entender a vida toda e a realmente
buscar aquilo que é o verdadeiro miolo.

Esta comparação é justamente para entendermos o que é a virtude da prudência. Prudência


mudou de sentido. Hoje, quando se fala de prudência, as pessoas estão se referindo a uma
pessoa cautelosa que não se mete em frias, que não se mete em confusões, que não se mete
em aventuras. Ela tem cautela e, digamos assim, não dá murro em ponta de faca. Mas a
prudência não é isso. No conceito de hoje ela [seria] o “homem sábio”. E nós deveríamos
desenvolver isso para que pouco a pouco pudéssemos adquirir os critérios do homem sábio.

Uma das finalidades da moral é justamente esta. Não é só desenvolver a prudência, mas
desenvolver a justiça, as virtudes. A primeira tarefa que se pede dela é ensinar a evitar o pecado

163
grave. O que se chama pecado grave é algo que causa o rompimento completo da vida
espiritual, é regra mínima da convivência com Deus.

164
Aula 10 – SEXTO MANDAMENTO I

Índice
1. O sexto mandamento segundo a tradição cristã
2. A dignidade da sexualidade
A) Pela relação direta com o amor ao próximo
B) Por estar ordenada ao sacramento do matrimônio
C) Aplicação ao sexto mandamento
3. Matéria grave em relação ao sexto mandamento
4. A castidade como fonte de felicidade
5. Continuação sobre a matéria grave em relação ao sexto mandamento
6. Dos métodos de controle e regulação de fertilidade
7. Da castidade após o casamento
8. Da finalidade da teologia moral

1. O sexto mandamento segundo a tradição cristã

Originalmente, na Sagrada Escritura, o sexto mandamento dizia “Não cometerás adultério”,


mas a verdade é que o sexto mandamento não se limita apenas ao adultério; o adultério seria
o mais grave das infrações contra o sexto mandamento. O sexto mandamento condena todos
os pecados contra a dignidade da sexualidade. Ele pode ser colocado de uma maneira mais
precisa dizendo que é a proibição do uso do prazer venéreo fora do matrimônio legítimo.

O prazer venéreo difere, do ponto de vista técnico, do prazer que poderíamos chamar sexual
ou difere do uso da sexualidade. Entendemos que sexualidade é muito mais amplo do que o
prazer venéreo.

Por exemplo, as linhas aéreas normalmente preferem ter uma atendente do sexo feminino,
porque é mais agradável ser atendido por uma moça do que por um homem. Em certas
circunstâncias isso é verdade: na recepção de um hotel, num atendimento telefônico. Via de
regra, a menos que o homem seja muito bem treinado, é muito mais agradável ser atendido
por uma moça do que por um homem, principalmente se os clientes são homens.

Ao que se deve isso? É por causa da sexualidade. Mas nós não vamos dizer que isso seja o
pecado contra a castidade; é uma consequência normal da sexualidade. Também é
consequência da sexualidade que, se um rapaz quiser casar, dará preferência a uma moça,
sentirá uma alegria no dia do seu noivado por estar pedindo a mão dela em casamento, coisa

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que não sentiria se fosse um homem — supondo que quem estivesse pedindo fosse um
homem. Sendo assim, é óbvio que isso é um prazer que tem origem sexual, mas não é o que
se chama de prazer venéreo.

A emoção de estar pedindo uma moça em casamento deve ser muito maior do que estar
recebendo um diploma. Qual é o motivo disso? Provavelmente é porque tem um
componente sexual aí no meio, sem dúvida alguma. O sujeito vai naturalmente preferir ser
atendido num serviço onde as atendentes são bonitinhas, ao invés de serem pessoas velhas.
Isso é de origem sexual. Então a sexualidade está além do prazer venéreo.

O prazer venéreo seria a própria relação sexual ou as coisas que excitam e preparam para a
relação sexual. Nesse sentido, por exemplo, é prazer venéreo assistir filme erótico, ter um
pensamento erótico, mesmo que não leve a uma relação sexual, uma vez que ele excita e
começa justamente a produzir aquele movimento que, se dermos corda, vai acabar numa
relação sexual. Por conseguinte, qualquer prazer venéreo livremente consentido e advertido
fora do matrimônio legítimo é pecado grave.

2. A dignidade da sexualidade

Isso se deve a duas coisas. De uma maneira muito genérica o motivo não é porque o sexo é
uma coisa suja. É justamente o contrário: o sexo é uma coisa sagrada. De modo geral, as coisas
sagradas não podem ser usadas à torto e a direito.

Por exemplo, a missa é uma coisa extremamente sagrada, mas um sujeito não pode celebrá-la
sem ser ordenado padre. Inclusive ele não pode ser ordenado padre sem ter uma longa
preparação, para ir adquirindo a dignidade compatível com a celebração de uma missa. E a
própria missa não pode ser celebrada em qualquer lugar, tem que ser celebrada
ordinariamente num lugar sagrado.

Nós proibimos que pessoas celebrem missa sem serem sacerdotes, do mesmo jeito que a
religião proíbe que as pessoas tenham relação sexual sem terem contraído matrimônio. E a
Igreja não permite que um sujeito seja ordenado padre apenas para celebrar missa; ele tem
que ter se preparado para compreender a dignidade do que vai fazer. E ao fazê-lo, tem que
proceder com a devida dignidade: com os devidos paramentos, com as devidas cerimônias
litúrgicas, nos devidos lugares, justamente porque é uma coisa sagrada e não porque é uma
coisa suja. Se ele não celebrar missa dentro dessas condições, estará cometendo um sacrilégio.
De modo semelhante, se alguém mantiver uma relação sexual fora das circunstâncias devidas,
poderá estar cometendo um adultério ou um pecado gravíssimo contra a castidade.

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Portanto, a razão de existirem os pecados contra a castidade não é porque a castidade é uma
coisa sórdida e baixa. É o contrário: a sexualidade é uma coisa elevada, uma coisa sagrada, que
merece o devido respeito.

A) Pela relação direta com o amor ao próximo. — E por que a sexualidade tem essa
dignidade? Pelo que vimos, a explicação de Santo Tomás de Aquino é porque ela está
incluída dentro do segundo mandamento de amar ao próximo. E qual o motivo de ela estar
incluída no segundo mandamento? Um dos motivos é porque a finalidade da sexualidade é
constituir uma família e gerar a vida. Obviamente isso é consequência do amor: é por amor
que se constitui uma família e é por amor que se gera a vida. Por causa disso, a sexualidade
leva a dignidade da vida humana consigo, ela carrega junto de si a dignidade da vida humana.
A sexualidade já é a vida humana em potência. Então ela participa grandemente da dignidade
do segundo mandamento do amor ao próximo.

Fora isso, também do ponto de vista do direito natural, percebe-se que a esmagadora maioria
dos seres humanos, se não tivesse ajuda explícita da doutrina cristã, jamais entenderia o que é
amor e doação caso não se apaixonassem por uma pessoa e constituíssem família com ela.
Para a grande maioria das pessoas, a única chance de entender o que é doação e amor, é
quando elas se apaixonam por uma pessoa e resolvem constituir uma família. A partir disso,
elas começam a ter um outro sentido na vida, que não é elas mesmas e que normalmente é a
única chance que têm de entender o que é amor e doação.

Se não houvesse isso, se as pessoas nascessem por clonagem, por produção em série numa
medida que o governo estabelecesse; se elas pudessem viver a vida toda e nunca se tivesse
ouvido falar de família, de sexualidade e de amor entre duas pessoas, a vida das pessoas seria
um vazio absurdo e não sabemos como elas chegariam no fim da vida. O número de suicídios
seria altíssimo com toda certeza, seria um verdadeiro caos. E o pior é que as pessoas teriam
vivido a vida inteira sem jamais ter entendido o que é verdadeiro amor e doação.

Do ponto de vista biológico, isso é proporcionado pela sexualidade. Logo, a sexualidade não
existe apenas para o prazer. A finalidade última dela está manifestamente relacionada com o
amor e a doação, não só a uma esposa, mas a uma família. Existe então mais um motivo por
que ela participa do segundo mandamento.

B) Por estar ordenada ao sacramento do matrimônio. — Porém, mais ainda do que isso
é o que tínhamos mencionado antes. Existem dois tipos de matrimônio do ponto de vista da
doutrina cristã: existe o matrimônio de direito natural e o matrimônio que é também
sacramento — além de ser de direito natural, também é sacramento.

Duas pessoas batizadas que se casam na Igreja não estão apenas realizando o direito natural,
estão realizando o sacramento do matrimônio. Onde está a diferença? A teologia diz que ela

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não está no fato de que elas estão se casando numa cerimônia religiosa, porque inclusive essa
cerimônia religiosa só se tornou obrigatória por um decreto da Igreja emitido pelo Concílio
de Trento por volta de 1580. Nesse decreto a Igreja estabeleceu que, se duas pessoas são
batizadas, o matrimônio só será válido se for contraído diante de um sacerdote e com
testemunhas. A partir daí as pessoas batizadas na Igreja católica, para ser válido o matrimônio,
são obrigadas a se casar na cerimônia religiosa.

Antes disso, porém, qualquer cerimônia valia, desde que fosse séria. Desde o início do
cristianismo era possível casar no cartório, fazer uma festa em casa. Se o sujeito fizesse
qualquer manifestação séria de que queria unir sua vida com uma mulher e que os dois
estavam fazendo isso de comum acordo e queriam constituir uma família, isso já era um
matrimônio válido e era um sacramento, caso os dois cônjuges fossem batizados.

Então o que faz o matrimônio ser sacramento é que os dois nubentes sejam batizados. A
necessidade da cerimônia religiosa para a validade só se tornou obrigatória nos últimos 500
anos por decreto da Igreja, que inclusive ela poderia revogar. Nós imaginamos que ela jamais
o fará, porque o decreto teve uma grande utilidade e é extremamente útil que seja assim, é
benéfico que seja assim. Porém seria possível voltar ao regime anterior.

De fato, é possível em certos casos usar o regime anterior. Salvo engano, o direito canônico
diz que, quando as pessoas moram num lugar onde não existe sacerdote e um sacerdote só
passa uma vez a cada dois, três anos, as pessoas podem fazer uma cerimônia e se casarem, e
isso vale como se fosse um casamento legítimo. Se os dois são batizados, é sacramento. Se
nenhum dos dois for, vale sempre como matrimônio. Se um dos dois é batizado e o outro
não, ainda não é sacramento, mas também é válido.

Então, além do requisito do batismo, onde está a diferença para que o matrimônio seja
sacramento? Quer dizer, a exigência da cerimônia pública com o padre e duas testemunhas é
algo acrescentado, não constitui o sacramento. A exigência verdadeira é que os cônjuges
sejam batizados. Nesse caso é sacramento; senão, não é sacramento.

A diferença é que são coisas bastante diferentes o sacramento do matrimônio e o matrimônio


de direito natural. Este último, qualquer pessoa não batizada pode contrair com qualquer
pessoa não batizada, por qualquer cerimônia possível, até uma cerimônia bastante informal,
onde simplesmente eles fazem um acordo de união para formar uma família. O [matrimônio]
de direito natural tem três finalidades e só. A primeira é a formação da família e a educação
dos filhos, que é a maior de todas. A segunda é a felicidade do casal, o apoio mútuo entre os
dois. E a terceira é a própria vida sexual, ou seja, as pessoas se casam tendo como finalidade
também ter uma vida sexual. Essas são as três finalidades do matrimônio de direito natural.

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O grande problema é que este tipo de casamento é extremamente ruim para uma vida
espiritual. Na prática, um casamento de direito natural é uma associação que envolve paixões,
aflições, preocupações com os filhos, com a prole, com os filhos que estão doentes, com o
emprego. Verdadeiramente, do ponto de vista espiritual, ele não compensa! Espiritualmente
falando, é muito melhor ser monge do que ter um casamento destes. Espiritualmente
falando, esse casamento é uma armadilha, já que não permite uma vida espiritual profunda.

A vida espiritual profunda exige uma vida de oração profunda, que exige um
desprendimento e uma despreocupação com as coisas do mundo, e este tipo de casamento
traz não só preocupações, mas também uma passionalidade que na prática é tão envolvente
que não dá condições: não se tem tempo para rezar, para estudar, para se dedicar a Deus, para
ter uma vida espiritual. E mesmo que se tivesse, as aflições, as preocupações e as paixões com
que se está envolvido são descomunais para esse propósito.

Sendo assim, dificilmente as pessoas iriam se santificar num casamento desses. No entanto, a
maioria das pessoas terão que casar, por uma questão biológica. Se as pessoas não se casassem,
a humanidade pereceria. E Jesus, quando veio ao mundo, quis trazer a vida espiritual e o reino
de Deus a todos. Se alguns tivessem que cumprir a obrigação do casamento, estariam
extremamente prejudicados sob esse ponto de vista. Então Jesus resolveu a coisa de uma
maneira extraordinária: elevou o matrimônio a sacramento.

Todo sacramento simboliza uma coisa que realmente contém. A Eucaristia simboliza a
refeição do corpo e sangue de Cristo, que realmente contém. O sacramento da Confissão
simboliza um julgamento, onde realmente o réu é absolvido. O Batismo é um ato de lavar,
que significa a purificação que realmente produz. E o matrimônio como sacramento
simboliza o amor entre Cristo e a Igreja, que ele realmente produz, realmente contém.

Ele contém isso justamente porque no matrimônio sacramental, quando as pessoas são
batizadas, os cônjuges recebem uma graça especial para poderem se amar como Cristo amou
a Igreja. Então a meta do matrimônio não é apenas a educação dos filhos, não é apenas o
amparo mútuo nem a vida sexual, é uma coisa ainda maior: ter que aprender a amar o cônjuge
como se fosse o próprio Cristo ou como se fosse a Virgem Maria. Isso significa um amor que
é algo mais divino que humano. Significa, na verdade, aprender a tratar uma pessoa quase
como se ela fosse algo sagrado. O sujeito tem que aprender a amá-la como iria amar o Cristo.
O esposo tem que receber a esposa com um amor e um carinho como se estivesse recebendo
a Eucaristia, como se estivesse naquele momento recebendo uma aparição da Virgem Maria
ou do próprio Cristo.

Na verdade, ao fazer isso não só em um momento, mas sempre, através do matrimônio


acabamos como que treinando o tempo todo a própria comunhão com Deus. O esposo vai
se relacionar com sua esposa da mesma maneira que depois [terá] diretamente na oração com

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o próprio Cristo, com o qual é convidado à comunhão. Nessas circunstâncias não existe
incompatibilidade radical entre a vida do matrimônio e a vida espiritual. Ao mesmo tempo,
porém, são necessários uma doação e um desprendimento de um cônjuge para com o outro
que deve atravessar o limite do sagrado.

Então não se [admite] dentro de um matrimônio sacramental sequer uma briga entre
cônjuges, nem mesmo um desconforto. O verdadeiro matrimônio sacramental deveria
tender a que a vida matrimonial não tivesse uma grande diferença da própria vida de oração.
Num caso desses, o matrimônio não vai atrapalhar a vida espiritual, só vai ajudar. Isso é uma
coisa simplesmente grandiosa e fora do comum.

Mas na verdade, é um pouco mais do que isso. Na epístola aos Efésios onde se fala que o
marido deve amar a esposa como Cristo amou a Igreja, há uma explicação que vai além disso.
Ele diz que está escrito no Velho Testamento que, ao tornar-se adulto, o homem abandonará
a casa do pai e da mãe, unir-se-á a uma esposa e os dois serão uma só carne. Depois São Paulo
diz assim: Muito bom, o que significa uma só carne? Significa que ninguém odeia a própria
carne, mas cuida dela e a alimenta, assim como o Cristo faz com a Igreja. Com isso ele diz
que, justamente pelo fato de o matrimônio conter o amor entre Cristo e a Igreja, e o homem
e a mulher serem uma só carne, nós temos que “alimentar” a própria carne (a própria esposa)
como o Cristo faz com a Igreja.

E como Cristo faz com a Igreja? Vemos isso nas outras cartas de São Paulo, principalmente
aos Colossenses, que foi escrita na mesma época da carta aos Efésios. Jesus faz isso através da
graça — iluminando e convidando as pessoas, através da graça, a se unirem consigo. Isso
acontece principalmente quando estamos em oração e praticamos a virtudes da fé, esperança
e caridade, que nos unem ao Cristo. É nesse momento que Cristo nos alimenta e alimenta a
Igreja com sua graça. Quando estamos unidos a ele em oração pelas virtudes teologais, ele nos
alimenta com sua graça e nos faz crescer no organismo sobrenatural em direção a ele.

E São Paulo está dizendo que devemos amar a própria esposa e alimentá-la como Cristo
alimenta a própria Igreja, ou seja, ele está querendo dizer que devemos procurar alimentar a
própria esposa e obviamente a própria família, através do crescimento da graça.

Nós não temos condições de infundir a graça nas pessoas, isso é dado por Deus. Mas o que
podemos fazer de modo semelhante a isso é iluminá-las pelas palavras, pelo ensinamento, pelo
exemplo. Essa justamente é a finalidade de uma família: a verdadeira família surge não
quando as pessoas estão agindo em conjunto, tendo uma vida comum; ela surge quando uma
pessoa muito sábia e virtuosa se dispõe a ensinar e consegue reunir em volta de si pessoas
desejosas de aprender. Isso pode acontecer quando um homem muito Santo junta discípulos
ao seu redor e aceita viver com eles para educá-los no caminho da perfeição. Mas também
deveria acontecer no caso da família cristã.

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A verdadeira família cristã é constituída por um homem que se associa nisso a uma mulher,
em que ambos procuraram a virtude e a sabedoria e agora querem transmiti-las a outros.
Agora eles se uniram justamente para terem seus filhos, que desde a primeira infância são
dóceis aos pais e continuarão dóceis se realmente forem santos e virtuosos. Então os pais têm
a oportunidade de ensinar e fazer crescer seus filhos dentro da vida espiritual, assim como o
Cristo, quando estamos unidos com ele, faz conosco, faz com a Igreja. É assim que amamos
nossa família (não só a esposa) como Cristo amou a Igreja, segundo o que podemos entender
por essas palavras de São Paulo.

Nesse sentido, podemos ver que o matrimônio é a culminância do amor de Deus, é a


culminância do amor ao próximo. Exige um amor e um carinho para com a esposa (o) deste
modo extraordinário, de tal maneira que a relação entre os dois impulsione a vida espiritual.
Além disso, exige a disposição de doar abundantemente essa vida espiritual à própria família
como Cristo faz com a Igreja, quando nos unimos a ele pela fé, esperança e caridade.

Obviamente isso é um ideal que, no matrimônio de direito natural, as pessoas não têm, nunca
tiveram. Esse ideal extraordinário foi justamente trazido pelo cristianismo para fazer com que
a família biológica não fosse um empecilho à vida sobrenatural. No estado de homem decaído
a família biológica é uma atrapalhação na vida espiritual fora do comum. A [família]
sacramental não deveria sê-lo mais, porém o indivíduo tem que estar disposto a uma coisa
dessas.

C) Aplicação ao sexto mandamento. — Voltando ao sexto mandamento. O fato é que não


existe matrimônio sem vida sexual. Esse amor que estou descrevendo nunca se dará entre dois
homens. Hoje as coisas estão todas desviadas, então as pessoas até acham que possa existir
entre dois homens. Mas a verdade é que, por mais que alguém queira bem ao seu amigo,
nunca terá este tipo de amor que pode ser sublimado a tal ponto com a ajuda da graça dentro
do casamento. E não é possível ter um amor desses por um amigo ou uma amiga mulher que
se tenha, a não ser que a pessoa se una com ela.

Então, apesar de a sexualidade não fazer parte da essência da família, ela é um componente
indispensável, é um componente integrante da coisa. Alguém até poderia casar e não ter
relações sexuais, mas não poderia casar se não houvesse sexualidade. Um homem pode, por
exemplo, casar com uma mulher, ela ser estéril e ambos renunciarem a ter vida sexual, e
continuaria sendo um matrimônio possível. Mas não é possível ter isso sem a base da
sexualidade. Logo, esse nível de vivência de amor ao próximo que está implicado no desejo
profundo de alcançar a sabedoria e a virtude para transmiti-las a outros, e de amar alguém
como algo de sagrado assim como Cristo amou a Igreja, não é ordinariamente possível sem a
sexualidade.

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Na sua esmagadora maioria, as pessoas nunca serão monges nem sacerdotes. Sacerdotes,
monges, bispos e consagrados, sempre serão uma minoria. Talvez um dia possa ser uma
minoria muitíssimo grande, mas necessariamente serão sempre uma minoria; é para ser assim.
A esmagadora maioria das pessoas só conseguirá se santificar se o fizerem dentro do
matrimônio, e o matrimônio é impossível sem a sexualidade. Portanto, a finalidade
sexualidade, ainda que não diretamente como parte integrante da própria coisa em si, é o
desenvolvimento de uma vida de amor ao próximo neste nível.

O indivíduo que em vez de orientar a sexualidade para isso, orienta-a para todos os absurdos
que vemos hoje (pornografia, masturbação, prazer descompromissado), na verdade está
adulterando a própria sexualidade de tal maneira que, quando ele casar, não mais terá isso
orientado às finalidades do sacramento; ele terá bombardeado a única chance que realmente
tem de se santificar profundamente! Ele só tinha esta e destruiu pela raiz.

Isso não é difícil de entender. O fulano que vê pornografia, na verdade o que ele faz? Ele está
pegando fotografias ou filmes das mulheres mais lindas do mundo e tendo um “princípio”
de relação sexual com elas durante trinta segundos. Aí depois ele joga fora aquela pornografia
e pega outra; vai para a página seguinte ou o filme seguinte e pega outra das mulheres mais
lindas do mundo (que são escolhidas exatamente por isso) e tem trinta segundos de relação
com essa pessoa que ele não conhece, não conversou com ela, não se compromissou com ela,
não se doou a ela; usa-a por trinta segundos e depois pega outra e outra, e mais outra, e mais
outra.

Com o passar dos anos o indivíduo se acostumou a pegar as mulheres mais lindas do mundo,
usá-las por trinta segundos e jogar fora. Um dia ele vai casar e provavelmente a sua mulher
não estará entre as mais lindas do mundo, é o que acontece normalmente. Ainda que seja
uma das mulheres mais lindas do mundo, ela vai continuar linda por alguns anos e depois
ficará feia (muitas das grandes artistas mais lindas do mundo que agora estão velhas, são
verdadeiros monstros; ninguém acredita que esta é a fulana que, quando éramos criança,
todos diziam que era a mulher mais linda do mundo). E ainda que ela se mantivesse sempre
linda, o sujeito acostumou-se a usar as mulheres por trinta segundos sem compromisso algum
e isso vai criando hábitos.

Um dos grandes problemas da vida sexual é que os hábitos que nós construímos vão se
enraizando e depois são difíceis de serem corrigidos. Ainda que o sujeito estivesse casando
com a mulher mais linda do mundo e que ela permanecesse linda até que a morte os separasse,
ele já se acostumou a usar as outras mais lindas por trinta segundos, jogar fora e pegar outra.
Na prática não vai acontecer isso: provavelmente ele vai casar com uma que não está entre as
mais lindas do mundo, e ela não vai continuar linda durante muitos anos, além do que ele já
se acostumou (pela pornografia) a ter relações com outras muito mais lindas do que a sua.

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Uma pessoa que vai casar assim, nunca conseguirá entender a diferença entre o matrimônio
sacramental e a prostituição.

Existe um livro de Marx onde ele diz que uma prostituta é muito mais digna do que uma
esposa, porque uma prostituta vende o seu corpo durante 01 hora e cobra; a esposa vende seu
corpo durante a vida inteira e não cobra nada, faz de graça; então, segundo ele, a prostituição
é muito mais digna para a mulher do que o matrimônio. Parece inacreditável, mas são
supostamente uns dos grandes filósofos e pensadores da humanidade, Marx e Engels, que
escrevem isso. E não são os únicos! O que isso significa? Que eles não estão vendo nenhuma
diferença essencial entre pornografia e matrimônio.

O mesmo acontecerá com o fulano que afunda na pornografia. A única chance de alcançar
uma vida espiritual, para a esmagadora maioria das pessoas entender o que é doação, o que é
o amor divino, o que é sabedoria, o que é ensinar, a fim de entender com os próprios filhos
de que maneira o Cristo ama a Igreja, o sujeito simplesmente destruiu prematuramente para
sempre! Para corrigir isso ele vai precisar de uma conversão gigantesca. E as pessoas que estão
incentivando pornografia, masturbação, todo tipo de coisas que vemos nos dias de hoje, estão
contribuindo para o desastre, trancando a porta da vida espiritual para a humanidade inteira.
Isso é uma verdadeira tragédia.

Por essa explicação podemos ver como a sexualidade humana está relacionada com o amor
ao próximo. A sexualidade humana possibilita a forma mais elevada e extraordinária de amor
ao próximo que existe, fora da consagração religiosa. Não existe vivência maior de amor ao
próximo por uma pessoa casada do que uma vivência dessas. Mas a sexualidade desregulada
destrói isso para sempre, e era a única chance que Deus tinha preparado para o fulano.

Deus procurou educar o povo judeu num respeito ao matrimônio de uma maneira tão
profunda e depois, para próprio benefício da humanidade, elevou esse matrimônio ao nível
de sacramento dessa maneira que estamos explicando. Aí vem esses idiotas e puxam o tapete
por baixo. É um dano gravíssimo! Os pecados contra a castidade, por sua natureza, são graves.

3. Matéria grave em relação ao sexto mandamento

A partir disso, precisaríamos dar alguns exemplos concretos. Colocados esses princípios, não
precisamos usar muitos exemplos, porque é mais ou menos claro: todo uso advertido e
deliberado do prazer venéreo fora do matrimônio legítimo é matéria grave, é pecado grave.

Nesse sentido, é pecado grave assistir filme pornográfico, assistir comercial pornográfico ou
assistir inclusive um pedaço ainda que pequeno de um filme pornográfico, desde que seja
advertido e consentido. Se assistimos inadvertidamente e, quando percebemos, nos
distraímos, já deixa de ser pecado grave. Se, porém, o sujeito adverte e consente

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deliberadamente, mesmo que por poucos momentos ou um momento, mas com plena
deliberação, isso já é grave, já exigiria a confissão.

Masturbação é pecado grave, tocar-se a si mesmo para sentir excitação sexual é pecado grave.
Tocar outras pessoas, mesmo que seja a namorada, com carícias avançadas para sentir
excitação do prazer sexual é pecado grave. Até mesmo um beijo na boca é pecado grave, se
não for uma mera demonstração de afeto — o que é praticamente impossível entre dois
jovens, pois normalmente as relações sexuais começam com um beijo na boca; já é um
começo e as pessoas se beijam na boca para se excitarem, não é apenas uma manifestação de
carinho. Se fosse, como o pode ser um beijo comum, não haveria problema algum.

O problema não é ser um beijo na boca, nem o lugar. O problema é que as pessoas fazem de
propósito para se excitar sexualmente e isso já é matéria grave. Se elas vão pegando esse
costume, isso inevitavelmente acabará numa relação sexual ou na excitação do desejo de ter
relação sexual com outra pessoa, é feito para isso! Isso é justamente o que não é lícito antes
do matrimônio legítimo. A lógica é evidente. Se existe alguém que ao [ler] estas coisas acha
que estamos exagerando, isso está exatamente dentro do contexto. Só pelo fato de que isso
choca as pessoas, nós não podemos ocultar a verdade das coisas, o contexto é muito claro.

Também os pensamentos eróticos são pecados contra a castidade, desde que advertidos e
consentidos. Eles costumam vir com frequência nas pessoas e, quando elas os advertem, têm
que procurar se distrair. Se, ao contrário, elas consentem e continuam pensando, isso é
pecado grave, é matéria de confissão.

4. A castidade como fonte de felicidade

Reprimir-se destas coisas sem ser por virtude pode ser que faça mal às pessoas. Mas quando é
por virtude, por amor à vida espiritual, por amor à castidade, isso não causa mal nenhum.
Muito pelo contrário, isso costuma abrir a mente, porque ordena as paixões e a ordenação
das paixões dá depois uma perspectiva intelectual fora do comum.

Isso nunca fez mal! Num quartel, onde o sujeito é obrigado por causa da lei marcial a não ter
atividade sexual durante muito tempo, pode ser que tenha reações adversas. No entanto, a
experiência comum é que as pessoas que praticam a castidade por virtude, não por obrigação
ou por coação externa, com certeza o que acontece é o contrário: o rendimento escolar sobe,
o aproveitamento aumenta.

Além disso, quando as pessoas se casam depois de terem vivido castas e se casam para doar-se,
a vida sexual é muito mais prazerosa, muito mais serena e gratificante do que das pessoas que
não fizeram assim.

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Existem muitas pesquisas, mas uma em particular que temos gravada, onde numa
Universidade Norte Americana analisaram a vida sexual de pessoas que não tinham religião
e pessoas que eram católicas, ortodoxas ou protestantes. Eles descobriram que a vida sexual
das pessoas religiosas era muito menos tumultuada que a das pessoas não religiosas, muito
mais gratificante. Elas tinham muito menos medo de perder o cônjuge, muito menos
problemas de ciúmes, fobias, era uma vida tranquila. Enquanto que as outras tinham medo
de perder o cônjuge, sentimentos de posse doentia pelo outro, ciúmes e não era uma coisa
que tinha aquela serenidade, aquele prazer ordenado das pessoas religiosas.

E essas pessoas religiosas, sejam católicas, ortodoxas ou romanas, ou evangélicas, o fato de


terem praticado a castidade antes ou pelo menos não terem sido tão promíscuas como as
outras (não sabemos qual amostra eles tiveram), isso não afetou em nada o desempenho
sexual; muito pelo contrário.

Isso está muito de acordo com Santo Tomás de Aquino, pois tem um lugar na Suma
Teológica em que ele pergunta se havia prazer sexual no paraíso terrestre antes da queda
humana. E ele comenta um fato que é muito coerente com essa pesquisa, onde começa a
questão dizendo que houve algumas pessoas que disseram “Como no paraíso terrestre o ser
humano ainda não havia decaído, havia atividade sexual é óbvio, porque deveria haver
procriação, mas sem prazer nenhum”. E Santo Tomás de Aquino não concorda, dizendo:
Com certeza devia haver, porque faz parte da natureza humana e devia ser muito mais
sublime e gratificante do que o que se tem hoje, porque eram pessoas mais puras. Isso está
exatamente de acordo com esta pesquisa. É uma coisa que vale a pena ler e passar para as
outras pessoas.

Essa prática de procurar a castidade e inclusive acusar-se em confissão com o propósito de


não voltar a cair e com intenção de receber uma graça para poder permanecer mais firme na
castidade, não é algo repressivo de maneira nenhuma. Isso promove a natureza humana, quer
o sujeito vá ter uma vida consagrada, quer vá ter uma vida matrimonial.

5. Continuação sobre a matéria grave em relação ao sexto mandamento

Quando vamos nos confessar pela primeira vez, depois de muitos anos afastados da Igreja,
provavelmente cometemos tantos pecados contra a castidade que nem lembramos, nem dá
para numerá-los.

A Igreja pede que nos confessemos pela espécie e pelo número. Então não basta dizer “eu
pequei contra a castidade”. A pessoa deve dizer se pecou contra a castidade cometendo
adultério ou tendo relação sexual com uma pessoa solteira. Tem que dizer se ela própria é
casada ou solteira, porque se for casada já está cometendo adultério, mesmo que esteja se
relacionando com uma pessoa solteira: se um casado trai a mulher com uma pessoa casada,

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são dois adultérios. Tem que dizer se foi masturbação, se foi vendo pornografia. Tem que
dizer o número de vezes que fez, se foi por pensamento, se foi por desejo e assim por diante.

Talvez dê para dizer o número de quantas vezes se adulterou, mas os pensamentos, os filmes
eróticos, isso não dá para contar nos dias de hoje. Então, ao invés de contar os números,
devemos nos acusar dizendo por exemplo: “Durante a vida toda, de tal ano a tal ano, desde
criança até hoje, eu sempre cultivei o hábito de ter pensamentos eróticos, e isso era em média
trinta vezes por dia, todos os dias, ou duas ou três vezes todos os dias”. Assim já se entende
mais ou menos o número e isso é o suficiente para a confissão.

Tratando-se do matrimônio, a atividade sexual dentro dele é lícita, mas obviamente apenas
aquela que diz respeito à vida matrimonial. Então dentro do matrimônio obviamente não é
lícito ver pornografia, ter pensamentos eróticos com artistas de cinema. O que é lícito dentro
do matrimônio é o ato sexual normal.

O que é o ato sexual normal? Pode se dizer que é exatamente o seguinte: é o ato sexual que a
natureza instituiu como sendo capaz de produzir a prole. Atenção: não é o ato sexual que
produzirá a prole, é o ato sexual que segundo a natureza é aquele capaz de produzir a
prole. Se não fosse assim, se fosse só aquele que produziria a prole, não seria possível casar
com uma pessoa estéril nem ter relação sexual nos dias inférteis da mulher. O sujeito sabe que
naqueles dias não haverá prole, mas o ato sexual normal é aquele instituído pela natureza
como sendo o capaz de produzir a prole. É aquele que, na sua estrutura, produz a prole,
mesmo que por uma circunstância (infertilidade, o dia do ciclo) ele não vá produzi-la.

E quais os atos sexuais que não são assim? São, por exemplo, o sexo oral e o sexo anal. O sexo
anal, além disso, pelo que sabemos biologicamente é uma verdadeira tragédia. Além de não
produzir a prole, quando nos informamos sobre o que os médicos e biólogos falam, é um
negócio de ficar com cabelo em pé!

O intestino tem muito menos camadas de recobrimento interno do que o colo do útero;
então, se alguém tiver uma relação sexual anal, a probabilidade de ter um pequeno corte no
intestino através do atrito do pênis é muito alta. E o que acontece é que as fezes vão
diretamente para o sangue, e as bactérias que podem estar contaminando o órgão sexual pelo
sujeito estar inoculando no parceiro, ou as próprias fezes do indivíduo, podem ir para o
sangue. Assim, uma das consequências da prática do sexo anal é justamente uma doença que
dá no coração, onde as veias em volta do coração entopem por causa de bactérias e o sujeito
tem um infarto por causa de bactérias, que é característica da prática do sexo anal.

Vimos uma palestra onde médico dizia que, quando começou a epidemia da AIDS, todos os
doentes terminais de AIDS precisavam de um tratamento cardiológico porque o coração e as
veias deles estavam cheios de bactérias. No começo achavam que fosse por causa da baixa

176
imunológica. Mas acontece que os doentes que tinham AIDS e baixa imunológica por causa
de transfusão de sangue, não tinham esse problema no coração, bem como outros doentes
que tinham baixa imunológica também não tinham isso; eram só os aidéticos que tinham
tido relação sexual anal, que eram homossexuais. Logo, isso não era consequência da AIDS,
era consequência do sexo anal, mesmo que o indivíduo que estivesse praticando sexo anal
com o outro não estivesse infectado com AIDS: ele poderia não pegar AIDS, mas pegaria isso
e “N” outras coisas. Percebe-se que isso é realmente contra a natureza em todos os sentidos,
só que não precisava chegar nesses detalhes, pois o próprio exame moral já o demonstra.

Em suma, a relação sexual que é lícita dentro do matrimônio é o ato sexual normal. Pelo
mesmo motivo o coito interrompido em que, no momento de terminar a relação sexual, o
sujeito ejacula fora, também não é o ato sexual que a natureza instituiu, portanto não
pertence ao matrimônio legítimo.

Igualmente também não é lícito alterar o funcionamento do corpo humano para impedir a
prole, ou seja, transformar o ato sexual num ato que seja incapaz de produzir a prole. Por
exemplo: fazendo laqueadura, usando preservativo, usando diafragma ou esterilizando o
órgão masculino. Ao fazer isso, a pessoa não está mais utilizando da relação sexual que a
natureza instituiu para constituir a prole, está alterando-a de propósito e isso vai contra a
natureza do mandamento.

Fora isso existe o contraexemplo. O que acontece quando o sujeito casa com uma pessoa e,
de repente, descobre que ela é estéril? Ela não pode ter a prole, mas não é porque algo foi
alterado por isso. O ato sexual em si é o ato que pode produzir a prole, só não está produzindo
por um defeito involuntário. Nesse caso a relação sexual é lícita.

Ela também é lícita se o sujeito é obrigado a alterar o corpo da mulher ou do homem por um
problema de saúde que não seja a esterilização voluntária. Por exemplo: se a mulher tem um
câncer de ovário, um câncer de útero e arranca o útero, obviamente ela não pode mais ter
filhos, mas a relação sexual permanece sendo aquela que a natureza instituiu para produzir a
prole. Então a esterilidade, desde que não seja provocada para [impedir a prole], não impede
o ato sexual.

Uma outra coisa que devemos observar nesse raciocínio é a seguinte. Se uma pessoa se
esterilizar, os atos sexuais que ela tiver serão ilícitos da mesma maneira que os coitos anais que
teria seriam ilícitos, porque não são legítimos. Então, caso uma pessoa se esterilize
voluntariamente, todas as relações sexuais que tiver dentro do matrimônio serão ilegítimas.
Isso deixa de ser ilegítimo se a pessoa se arrepender e fizer o possível para reverter a
esterilização.

177
Sendo assim, caso uma pessoa que se esterilizou queira voltar a ser cristã, o que ela deve fazer
é arrepender-se verdadeiramente de ter se esterilizado e, se puder reverter a cirurgia, deve fazê-
lo assim que for possível; mas se não for possível de maneira nenhuma, ela pode continuar
assim. A partir do momento em que se arrependeu verdadeiramente, com o propósito de
reverter a cirurgia assim que tiver a possibilidade (se for possível), a esterilização se torna como
que “involuntária”: [no passado] ela quis esterilizar-se, mas daqui para frente já está estéril
contra sua vontade. Com isso, a relação sexual volta a ser legítima.

Se os parceiros são dois e um se esterilizou contra a vontade do outro, ocorre uma coisa
curiosa: do ponto de vista do que não quis, aquela esterilização do parceiro é involuntária,
então ele tem direito ao ato sexual; do ponto de vista do outro parceiro que se esterilizou
porque quis, o ato sexual é ilegítimo, então este não teria direito [ao ato sexual]. É uma
situação curiosa em que o ato é pecado por parte de um e não é pecado por parte do outro.

Por exemplo: se em um casal cristão, repentinamente a mulher quis se esterilizar e disse ao


marido: “Eu me esterilizei”; ele tem direito de ter relação sexual, mas a esposa não. Ela deveria
se arrepender disso e, se puder, deveria reverter a esterilização. Se não puder, basta que ela
realmente tenha o desejo sério disso.

Outra coisa também importante que ocorre nas situações de matrimônio é sobre os
pensamentos eróticos. O que se deveria julgar, por exemplo, sobre um marido que está em
viagem e tem um pensamento erótico com a própria esposa? Nesse caso, a questão é a
seguinte. É óbvio que a relação sexual é precedida de muitos outros atos que nem sempre são
a própria relação sexual: um abraço, um beijo, um pensamento. Todos esses atos, na medida
em que se ordenam a uma relação sexual, obviamente fazem parte disso. Então se os atos
ordenam-se a uma relação sexual com a própria esposa, não importa que sejam distantes no
tempo ou próximos, eles são lícitos! É lícito pensar, no que é lícito fazer. No caso citado,
desde que [os pensamentos] ordenem-se à tal coisa.

Obviamente não é lícito pensar numa imagem erótica de uma terceira pessoa para excitar-se
a fazer sexo com a própria esposa, isso seria pecado. Não é lícito ter uma relação sexual com a
esposa, imaginando estar tendo relação sexual com uma modelo de cinema, pois isso seria um
adultério. Na verdade, o sujeito está tendo relação espiritualmente com outra pessoa, e
materialmente com a própria esposa.

Os pensamentos que normalmente acabam se dirigindo a ter uma relação com a própria
esposa não podem ser considerados ilícitos, pois obviamente eles estão dentro da lógica
matrimonial. Os pensamentos eróticos com outros parceiros que não a própria esposa são
ilícitos sempre, não importa que se dirijam à relação com a própria companheira. Porém os
pensamentos eróticos, mesmo que sejam com a própria esposa, mas que não se ordenam a
uma relação sexual com a própria esposa, são pecado grave. Por exemplo: se o marido está

178
viajando num congresso e sabe que se tiver pensamentos eróticos, mesmo que seja com a
própria esposa, ele vai acabar se masturbando antes que volte ao convívio com a própria
esposa, isso é gravemente pecaminoso, porque não se dirigiu à sua finalidade natural.

A prática do pensamento erótico, mesmo que fosse com o próprio cônjuge, mas que acabasse
não produzindo a própria relação sexual com o tal cônjuge, seria algo gravemente pecaminoso
e obviamente matéria de confissão.

6. Dos métodos de controle e regulação de fertilidade

Existe ainda um último assunto intimamente relacionado com isso, que se refere aos métodos
naturais e artificiais de controle e regulação de fertilidade. Os métodos naturais de controle
de fertilidade são aqueles que apontam quais dias do ciclo menstrual da mulher são férteis e
quais são inférteis, sem alterar o ciclo.

O primeiro que surgiu foi o método de Ogino Knaus, nos anos 40 do século XX. Ogino
Knaus percebeu que o dia da ovulação é quatorze dias antes da próxima menstruação. Então
se é possível prever a próxima menstruação (porque a mulher tem um ciclo regular), voltando
quatorze dias esse é o dia da ovulação. Assim, aqueles dias em volta do dia da ovulação são
dias férteis, os outros são inférteis. O problema é que na maioria das mulheres não era
totalmente regular, então não dava para prever exatamente qual era o dia certo.

Posteriormente surgiu o método do termômetro, que no dia da ovulação a temperatura sobe:


medindo a temperatura basal é possível saber qual é o dia da ovulação.

Depois surgiu um outro melhor que é o método de Billings. Ele mostra que quando o
organismo está se preparando para ovular começa a escorrer um muco pela vagina da mulher
e isso dá para perceber tatilmente. Esse muco vai se tornando mais líquido, menos viscoso e
no dia da máxima fluidez é quando ocorre a ovulação, e depois o muco continua espessando
até sumir. Estes dias em que existe muco são os dias de fertilidade. Para isso não é preciso que
o ciclo seja regular: regular ou irregular, quando existe muco são dias férteis, quando não
existe muco não são dias férteis; e no dia da máxima fluidez do muco é quando vai ocorrer
ovulação.

Muitas mulheres, com a prática, conseguem inclusive identificar o momento da ovulação,


porque existe uma pequena dor no momento em que a mulher ovula. Normalmente essa dor
passa despercebida porque a mulher não está atenta, mas se ela sabe qual é o dia fértil e está
prestando atenção ela aprende a perceber a dor e inclusive identifica se o ovário que ovulou
é o esquerdo ou o direito. Fica uma coisa extremamente clara de se fazer. Se a pessoa souber
aprender, ela identifica os dias férteis e os dias inférteis e, se quiser engravidar ou não quiser
engravidar, ela pode escolher o dia.

179
O problema é que o fato de ser natural, por si só, não torna lícito recorrer a esse método. Por
exemplo: se alguém vai casar com uma pessoa e tem condições de ter filhos, não é lícito fazer
um pacto com a companheira dizendo: “Nós vamos casar, mas não vamos ter filhos nunca e
vamos usar o método natural. Se acontecer que de nós errarmos, tudo bem, nós aceitaremos,
não vamos abortá-lo; porém vamos fazer todo o possível para nunca termos um filho”. Isso
só seria lícito se houvesse um motivo grave para não ter filhos: miséria, problema de saúde,
risco de a mulher morrer durante o parto. Mas se o casal pode e tem condições de ter filhos,
não é lícito que digam: “Não vamos ter filhos nunca”.

O verdadeiro cristão está procurando santidade, está procurando sabedoria, está procurando
a virtude e quer ter pessoas para comunicar isso, assim como Jesus quer alimentar a sua Igreja.
Então o normal de um matrimônio cristão é que o casal queira ter o maior número de filhos
possível.

Se for um matrimônio sacramental, isso não causa mal algum à humanidade, não é
superpopulação, porque essas pessoas serão todas muito bem-educadas, muito santas, muito
sábias. E “para cada boca que nasce, nascem dois braços para trabalhar”; isso não causa
superpopulação. A superpopulação má é aquela desordenada onde os filhos são gerados, não
são educados e, uma vez soltos, tornam-se marginais e depois acabam perdendo a própria
alma. Esta superpopulação é ruim, mas o crescimento populacional de pessoas qualificadas e
virtuosas só edifica a sociedade.

Além disso, em relação ao número absoluto de pessoas, a Terra está muito longe de ser
superpovoada. Examinemos isso em termos concretos. A população do mundo consiste em
7 bilhões de habitantes. Coloquemos um habitante em cada 1 m2 de terreno — um terreno
razoavelmente pequeno, mas se [cada habitante] estivesse nesse 1 m2, a [população mundial]
estaria longe de estar esmagada uns com os outros. Fazendo um simples cálculo nós veríamos
que, para abrigar 7 bilhões de pessoas, seria preciso de 7.000 km2: cada 1000 km2 abrigariam
1 bilhão de pessoas, e 7.000 km2 abrigariam 7 bilhões de pessoas.

Quanto é 7.000 km2? Basta pegarmos um Atlas e examinarmos um pouco a situação. Na


América Latina, um dos menores países que existem é o Uruguai, que fica encravado entre
Brasil e Argentina. Este país, a República do Uruguai, tem 200.000 km2 e está dividido em
cerca de 20 departamentos. Então 200.000 km2 divididos em 20 departamentos (que é a
menor unidade governativa do país) significa que cada departamento do Uruguai (que é 5%
do país) possui 10.000 km2.

Ora, se for dado 1 m2 para cada pessoa do mundo, a população mundial cabe em 7.000 km2.
Mas 5% do Uruguai, que é um dos departamentos do país, são 10.000 km2: é mais do que
suficiente, muito mais do que suficiente para abrigar toda a população do mundo! A

180
população inteira do mundo, se fosse dividida em terreninhos de 1 m2 por pessoa, caberia em
um departamento do Uruguai, que é 5% de um país que já é minúsculo, e ainda sobraria
considerável espaço dentro do departamento, o resto do Uruguai estaria vazio e o resto do
mundo estaria deserto.

Levemos isso para a realidade brasileira. O menor Estado do Brasil é Sergipe, que tem 21.000
km2, ou seja, três vezes 7.000 km2. Se nós colocássemos a população inteira do mundo em 1
m2 cada pessoa, isso ocuparia a terça parte de Sergipe; 2/3 estariam vazios, o resto do Brasil
estaria vazio e o resto do mundo estaria deserto.

Em Alagoas, isso daria a quarta parte do Estado. Então em Alagoas, considerando esse espaço
de 1 m2, cabe quatro vezes a população da Terra inteira, quatro vezes a população que existe
hoje e ainda assim o resto do Brasil estaria deserto, e o resto do mundo também deserto.

Tomemos o caso do Estado de São Paulo e façamos uma conta diferente. Vamos dividir o
Estado de São Paulo em lotes de 200 m2 de um só andar — isso significa um apartamento de
luxo muitíssimo confortável para o padrão da classe média, e já é um apartamento de luxo
pequeno para um padrão mais elevado, mas muito grande para o comum das pessoas. Se
dermos um lote de 200 m2 para cada família de quatro pessoas de 7 bilhões da Terra inteira,
o Estado de São Paulo abrigaria a Terra inteira em lotes de 200 m2 com quatro pessoas em
cada um (lotes de somente um andar e não prédios) o resto do Brasil ficaria vazio e o resto do
mundo ficaria deserto.

Se passarmos ao Estado de Amazonas, que é sem dúvida o maior Estado do Brasil, mas é um
dos 27 Estados da Federação, a conta vai muito além disso. Nós poderíamos dividir o Estado
de Amazonas em lotes de 1 km2 para cada família de quatro pessoas da Terra inteira, e o
Estado de Amazonas abrigaria toda a população da Terra — não estamos falando da
Amazônia brasileira que é bem maior do que o Estado do Amazonas, nem da Amazônia toda
que é muito maior ainda; estamos falando só do Estado do Amazonas.

O Estado do Amazonas, dividido em lotes de 1 km2, abrigaria a Terra inteira em famílias de


quatro pessoas por cada lote. E os outros 26 Estados da Federação brasileira, muitos dos quais
têm tamanho comparável ou próximo do Amazonas, estariam totalmente vazios e a Terra
inteira estaria totalmente deserta.

Vamos fazer uma última comparação para entendermos a coisa melhor, como que
visualmente. Imaginemos o Estado da Mongólia. A República da Mongólia é um país que
tem exatamente o tamanho do Estado do Amazonas. Porém, para os brasileiros,
geograficamente talvez seja o lugar mais remoto do mundo, o lugar mais inacessível do
mundo, mais do que o Tibet. Muitos brasileiros estiveram no Tibete e não sabemos se algum
brasileiro já esteve na Mongólia!

181
A Mongólia é um Estado que fica encravado entre o norte da China e o sul da Sibéria.
Geograficamente é o lugar mais remoto do mundo para um brasileiro, mais do que o extremo
oriente, a China, a Rússia, o polo norte, a Antártida. É literalmente, para nós, como que o
fim do mundo, e um lugar relativamente pequeno: um Estado do tamanho do Amazonas,
encravado entre a China e Sibéria.

Como a Mongólia é do mesmo tamanho do Estado do Amazonas, isso significa


concretamente que se pegarmos toda a população do mundo e colocarmos na Mongólia,
dando 1 km2 de terreno para cada família de quatro pessoas viver, a população inteira da Terra
cabe apenas na Mongólia! A Sibéria fica vazia, a Rússia fica vazia, a China fica vazia, a Ásia
inteira fica vazia e inclusive a Índia; a Oceania, a África, a Europa, a América inteira, o Brasil,
o Amazonas, o Uruguai, a Terra inteira!

Com isso, a única conclusão que podemos chegar é que o conto da superpopulação absoluta
do planeta Terra não passa de um mito! É uma realidade inexistente! Por que esse mito foi
contado é uma outra história, que não diz respeito a essas exposições sobre moral e confissão.
Existem interesses para se desenvolver esse mito: interesses de organizações internacionais,
interesses geopolíticos, interesses de grandes fundações e organizações. Mas era muito
importante termos abordado isso aqui, porque a anticoncepção foi introduzida
principalmente com o argumento da superpopulação mundial. Esta foi a desculpa
historicamente colocada: o controle populacional. Explicar isso aqui não é o caso, mas, como
este foi o motivo utilizado para introduzir isso, nós tínhamos que explicar que se trata de um
mito e que o verdadeiro motivo que estava por trás não era esse.

O verdadeiro motivo era desencadear propositalmente uma revolução sexual no mundo. Isso
foi planejado e apresentado debaixo das “vestimentas” de uma superpopulação. E o motivo
pelo qual se quis fazer esta revolução sexual não é a revolução sexual em si. O motivo é que
estava sendo planejado desde o final da Primeira Guerra Mundial um programa de
modificação estrutural do tecido social da sociedade humana, das instituições básicas da
sociedade humana, a fim de permitir uma reestruturação geopolítica internacional,
conforme o interesse de vários grupos que estavam trabalhando com essa mesma estratégia.

Esses vários grupos tinham metas diferentes, mas todos descobriram que sociologicamente o
caminho era esse, e a revolução sexual era um dos componentes desta reestruturação do
tecido social. Quando isso for conseguido (se chegarem a consegui-lo) estes vários grupos vão
acabar lutando entre si para ver que tipo de sociedade montarão em cima daquela que houver
sido desmontada e reconstruída.

Então o problema não é absoluto, o problema é relativo. O problema da superpopulação é


que surjam pessoas desqualificadas, isto é, gerar as pessoas e jogá-las na sociedade sem educá-

182
las. Se elas forem educadas, na verdade quanto mais pessoas nascerem, mais aumenta o
mercado de trabalho, mais aumenta o número de mãos para produzir, mais aumenta o
mercado interno, mais aumenta a possibilidade de ter empresas diferentes. Isso não tem
problema nenhum!

Com razões mais altas, um casal cristão que realmente procure a sabedoria e a virtude, só será
inteligente para casar se for para fazê-lo com o matrimônio sacramental para que isso possa
ajudá-los na vida de santidade; eles não vão casar com um matrimônio apenas de direito
natural. E faz parte disso, por causa da busca da sabedoria e da virtude, o desejo de comunicar
aos demais. O casal cristão não pode delegar a educação dos filhos à escola, muito menos ao
governo. São eles os responsáveis, eles estão lá para isso!

Sendo assim, não é lícito usar os métodos naturais se alguém casou e não quer ter filhos; só é
lícito usá-los se houver razões suficientes para ter que adiar o nascimento dos filhos.
Normalmente essas razões são do seguinte tipo: se a esposa corre risco de morrer no parto
caso dê à luz; se há um risco fundado de que os filhos possam nascer com deformidades
graves. Também se admite como motivo justo as razões econômicas: se eles estão numa
miséria ou o lugar onde vivem está numa miséria tamanha que seria temerário ter mais um
filho, ou se não seria possível educar os outros corretamente.

Além disso, podem ser admitidas razões psicológicas, que normalmente são unilaterais, por
exemplo: se uma esposa ameaça o marido de divórcio caso ela venha a engravidar de novo.
Eles podem ter filhos normalmente, sem problema algum, mas deu um problema na esposa
e ela diz: “Se eu tiver mais um filho, eu abandono o lar”. Ela não teria direito de fazer isso, se
eles podem realmente ter uma criança, porém o marido tem o direito de aceitar a condição
por amor à família. [Seria lícito ao marido] aceitar que ela usasse o método natural, mas [à
esposa] não seria. E vice-versa também. Se o marido disser: “Se você engravidar mais uma vez,
eu deixo você sozinha e as crianças”. Ela pode aceitar usar o método de Billings, o método
natural. É ilícito ao marido fazer uma exigência dessas, mas é lícito à esposa aceitar uma tal
exigência por amor à família.

Também outra coisa que pode acontecer. Por exemplo, se eles são recém-casados e o marido
receba uma bolsa de estudos para estudar na Inglaterra, de modo que isso mude
completamente a perspectiva de profissão e de vida do casal, porém supondo que eles não
poderiam ir com um bebê. As condições seriam tais que ele vai ganhar a bolsa, mas só poderia
ir se ainda não tivesse um bebê. Não encontramos esse caso nos livros que tratam desse
assunto, mas é uma coisa que parece evidentemente bastante lícita.

Motivos realmente razoáveis para adiar a natalidade, permitem isso. Motivos que sejam meros
caprichos do casal e não tenham fundamento nenhum, ou seja, é simplesmente porque eles
não entenderam o que é o matrimônio como sacramento, estes não justificam usar os

183
métodos naturais. É preciso ter razões coerentes para isso, razões proporcionais ao sentido da
coisa.

7. Da castidade após o casamento

Uma última coisa que é interessante colocar para entendermos a lógica de tudo é o que
acontece depois do casamento, quer dizer, se a pessoa se torna viúva ou viúvo.

O casamento dura até que a morte separe o casal, ao contrário da Ordem sacerdotal. Quem é
ordenado sacerdote, é sacerdote por toda a eternidade; ele continua sacerdote no céu.
Obviamente ele não vai celebrar missa no céu, mas uma vez sacerdote, ele é sacerdote
eternamente. A pessoa casada só é casada até a morte do cônjuge, tanto assim que depois ela
pode casar outra vez. E quando o viúvo que se casou uma segunda vez morrer, ele não é
marido de nenhuma das duas mais: eles vão se encontrar no céu, vão saber [que foram
casados] e terão um carinho especial entre si porque viveram juntos na Terra, mas ele não é
marido nem da primeira, nem da segunda e nem da única (caso ele não tivesse casado
novamente).

O matrimônio então termina com a morte do cônjuge. Isso significa que após a morte do
cônjuge, o viúvo ou a viúva têm que voltar a praticar a castidade na sua integralidade. Todo
uso do prazer venéreo fora do matrimônio legítimo é matéria grave contra a castidade.
Portanto, ao viúvo que permanece na Terra, não é lícito cultivar pensamentos eróticos nem
com a própria cônjuge falecida! Já não tem mais sentido, aquilo já não é mais para favorecer
um amor mútuo e não se ordena à uma relação sexual. O pensamento erótico dentro do
matrimônio ordena-se a uma relação sexual; depois do matrimônio, não se ordena a nada.
Aquilo é uma coisa que, do ponto de vista do mandamento do amor, não tem mais sentido,
é uma desordem e nesse caso é matéria de pecado grave.

Essas coisas, quando ditas sem explicações, chocam o homem comum e as pessoas ficam
horrorizadas, mas é porque justamente tais pessoas foram submetidas a uma propaganda
erótica monumental. Assim como existem fundações e organizações que estão incentivando
o aborto e a eutanásia no mundo de hoje para tentar quebrar os pilares do direito natural e
desmontar a estrutura social que temos para construir uma outra, essas pessoas também
investem na banalização da sexualidade, numa educação sexual ilegítima que não se destina à
formação de uma família.

Vemos nos livros de educação sexual que estão sendo publicados no final do século XX e
começo do XXI, que eles descrevem todos os tipos de sexualidade que existem, todas as
formas de fazer sexo, mas nenhum deles tem nem uma única referência a uma instituição
chamada família. Quer dizer, não parece que a vida sexual se ordena à família, mas a si mesma.

184
É um absurdo e isso está acontecendo sistematicamente no mundo inteiro. De todas as
cartilhas sobre educação sexual que estão sendo feitas no mundo inteiro com a orientação da
UNESCO, dos SIECUS e de todos esses organismos que cuidam desse assunto, nenhuma
fala de família. É uma educação sexual propositalmente elaborada para ser desvinculada da
família, porque, por outro lado, existe um trabalho gigantesco justamente para eliminar a
instituição familiar da estrutura social.

Por esta razão as pessoas às vezes ficam chocadas com isso, porque não entendem a ordenação
destas coisas à família nem a ordenação da família à sacramentalidade, que se ordena por sua
vez a uma vida espiritual mais profunda e que seria a verdadeira base de uma estrutura social
nova. Nós, porém, não podemos esconder a verdade das coisas só porque as pessoas ficarão
chocadas; precisamos explicá-la muito bem. Por isso que essa explicação é tão grande. Nós
poderíamos simplesmente dizer: “Não pode isso, não pode aquilo”, mas a coisa não faria
sentido algum.

8. Da finalidade da teologia moral

Ademais, a finalidade não é esta. A finalidade da moral não é dizer que não pode isso, não
pode aquilo. A finalidade da moral em primeiro lugar é afastar-nos do pecado grave, como
sendo as coisas que destroem o relacionamento que Deus quer ter conosco — assim como é
preciso advertir o empregado que vai entrar numa firma daquelas coisas que ele não pode
fazer em hipótese alguma, senão ele se tornará tão incompatível com o serviço que será
mandado embora, mesmo que peça desculpas.

O segundo motivo é entendermos quais são as virtudes básicas que devem ser desenvolvidas:
as virtudes que ordenam as paixões e aquelas relacionadas com a justiça, que fazem com
renunciemos o próprio egoísmo.

Em terceiro lugar, é o desenvolvimento da prudência. Supondo que haja já as demais virtudes,


o objetivo dessas coisas é desenvolver os critérios pelos quais possa se desenvolver a prudência
dentro do indivíduo, a prudência que coordene o trabalho das várias virtudes. As virtudes
não trabalham sozinhas, elas precisam de uma coordenação da inteligência prática. Essa
coordenação da inteligência prática é uma virtude por si mesma, que tem de ser desenvolvida.
E uma das coisas que é essencial para o desenvolvimento da prudência é o estudo, supondo
que as demais virtudes estejam sendo constituídas.

Então não são apenas regras e regulamentos. Primeiro é afastar-se de certas condições sine qua
non, para podermos iniciar uma vida cristã. Depois, o conhecimento de virtudes básicas a
serem desenvolvidas e para isso precisamos ter alguns critérios. Em terceiro lugar, o
desenvolvimento de uma virtude que pressupõe a existência de outras, isto é, a virtude da
prudência, que vai coordenar todas as demais e fazer com o trabalho delas seja harmônico,

185
correto, de modo que as pessoas saibam exatamente o que estão fazendo, do modo correto,
no momento correto, tendo a consciência de que estão usando os meios corretos para os fins
corretos também.

E essa virtude da prudência, na medida em que vai aprendendo a ordenar a vida prática do
indivíduo, tem que se expandir de uma tal maneira que chegue a abarcar o conteúdo inteiro
e o fim último da vida humana. Ela tem que ser capaz de coordenar todas essas boas ações,
todas essas ações virtuosas no contexto em que o indivíduo viva, a fim de que ele possa
alcançar a vida espiritual que promoverá sua união com o próprio Deus — uma vida de
intimidade com Deus, que depende da vivência de uma espiritualidade profunda; é aquilo
que Jesus falava para Marta e Maria.

Para chegar a isso, não basta ter as virtudes ou ter praticado as virtudes. Na verdade, é preciso
ser capaz de tomar conta de toda a orquestra da própria vida e ordená-la a esse lugar. Se não
tiver uma virtude para isso, não é possível fazê-lo. A “Marta” vai sempre se enrolar na cozinha,
pois lhe falta a prudência.

Estamos falando em “prudência” porque é a palavra tecnicamente correta. No uso comum


das pessoas de hoje seria faltar a “sabedoria”. Existe uma sabedoria prática que temos de
desenvolver, que é dos homens sábios ou dos homens prudentes, a qual permite enxergarmos
a vida e ordená-la ao fim último a que temos de aderir já de partida.

Por isso, todas essas explicações são dadas, haja vista que o assunto é espinhoso,
principalmente este. Colocado de qualquer maneira, ele gera muitos mal-entendidos, porque
a contrapropaganda é fenomenal e é propositalmente dirigida: é para destruir realmente o
sentido dessas coisas. É uma coisa proposital. Não é simplesmente por desejo de lucro ou por
ignorância das pessoas, é algo deliberadamente arquitetado.

Nem todos os que estão na indústria do sexo fazem isso de propósito, com essa intenção;
alguns fazem para ganhar dinheiro, outros porque adoram o assunto, outros porque
simplesmente concordam e odeiam o que a Igreja fala. Mas há pessoas por trás que estão de
propósito organizando as coisas de caso pensado, para garantir a destruição dessas realidades:
a destruição da família, da dignidade humana, do sentido da sexualidade humana, porque
existe um projeto de desconstrução da sociedade atual, a sociedade que o Cristo esteve
tentando montar e que ainda não chegou à sua perfeição. E estas pessoas querem substituir
essa [sociedade] por outra. Por isso que temos de ser claros nessas coisas, explicando-as desde
os fundamentos.

186
Aula 11 – SEXTO MANDAMENTO II

Índice
1. Projeto de destruição da família
2. Recapitulação dos conceitos gerais sobre pecado grave
3. Da ocasião próxima de pecado grave
4. Pecado de escândalo

1. Projeto de destruição da família

Um dos motivos porque estávamos dando tantos detalhes, tantas circunstâncias, tantos
porquês, tantas contextualizações do sexto mandamento, é que a racionalidade, a
naturalidade dele está sendo tremendamente atacada nos dias de hoje. Isso acontece porque
existem organizações (principalmente de 80 anos para cá, após a Primeira Guerra Mundial)
que estão investigando, trabalhando e investindo dinheiro, recursos, pensamentos, pesquisas
e trabalhos administrativos, políticos e etc., para alterar, decompor o tecido social do mundo
moderno, para reconstruir toda a humanidade em padrões inteiramente novos, mas que eles
mesmos não sabem direito quais são.

Existem vários grupos diferentes que estão fazendo a mesma coisa com finalidades últimas
diferentes, mas a metodologia é muito semelhante. Esses vários grupos estão inclusive se
unindo no momento, pois descobriram que, apesar dos objetivos serem diferentes, a
metodologia é igual. Por isso estão trabalhando no sentido de “Vamos ficar unidos, vamos
trabalhar juntos e quando conseguirmos desmantelar o tecido social vigente, aí acertamos as
contas para ver quem fica com a vitória”.

Uma das coisas necessárias para fazer isso é justamente mexer nos padrões das relações sexuais,
na concepção que as pessoas têm de sexualidade, porque fazendo isso de uma maneira
“correta”, pode-se inclusive desmantelar uma instituição que se chama família. E todos esses
grupos estão esperando ansiosamente que apareça uma tecnologia nova chamada clonagem,
pois quando ela aparecer, a dissolução da família será muito mais rápida. Eles já estão
preparando essas coisas.

É exatamente por causa disso que se diz às mulheres para tomarem anticonceptivos, que se
incentiva todas essas novas formas de sexualidade: para desmontar pouco a pouco os
costumes a fim de que, com o desmantelamento dos costumes, sejam desmanteladas as
instituições e as unidades básicas que compõem o tecido social vigente.

187
Justamente por isso as pessoas não conseguem entender a moral sexual cristã, que
basicamente diz que a sexualidade não é um divertimento, mas o seu destino natural, a sua
função é a construção de uma família. E poucas coisas há tão belas como a família, uma
família bem estruturada, pois é daí que se forma a virtude, a sabedoria; se os pais buscaram
antes sabedoria, conhecimento e virtude para então formarem uma família e poderem
repassar isso a outras pessoas que virão e estão sendo ansiosamente esperadas.

Essa é a ideia básica da sexualidade na sua verdadeira natureza. A sexualidade existe para que,
através dela, haja uma base biológica para construir-se uma das coisas mais belas que já foram
imaginadas por Deus: a família humana. Na própria epístola aos Efésios, São Paulo diz que a
família humana reflete as relações que existem entre os Anjos que se iluminam uns aos outros,
e que tudo isso remonta à estrutura da verdadeira família, da verdadeira paternidade: a
paternidade existente dentro da Santíssima Trindade, que é a do Pai em relação ao Filho.

Jesus inclusive diz: Assim como o Pai me amou, eu vos amei, e quero que permaneçais no meu
amor. Com esse amor com que vos amei, quero que vos ameis uns aos outros. O que significa
isso? Que Jesus deseja que, através da vida espiritual, nós experimentemos o amor que ele tem
por nós. E esse amor que tem por nós, Jesus no-lo dá conforme o amor que o Pai teve com
ele; o amor que o Pai teve com ele é o amor que existe dentro da Santíssima Trindade. Então
o amor que existe dentro da família divina é aquele que Jesus nos transmite na vida espiritual.
E ele quer que, experimentando este, nós o transmitamos aos outros. Quando São Paulo diz
que quer que o marido ame a esposa como o Cristo amou a Igreja, esse amor com que Cristo
amou a Igreja é o amor com que o Pai amou o Filho.

Sendo assim, esta concepção de família remonta, em sua raiz, ao amor que existe dentro da
Família que é a Santíssima Trindade, da qual procede toda família no céu e na terra, como
está escrito na epístola aos Efésios: Toda paternidade no céu e na terra (...). Isso só é possível
numa família biológica onde houver sexualidade.

A razão da sexualidade é, pois, poder construir essa maravilha. É ali onde devemos aprender
o que é o amor de Deus, é para isso que ela existe. Quer dizer, os esposos deveriam ser pessoas
que experimentaram o amor de Jesus, que não é dele, mas do Pai, ou seja, que vem de dentro
da Santíssima Trindade, a Família donde origina toda família. E assim como ele nos amou,
nós devemos nos amar uns aos outros, e à esposa e aos filhos. Esta é a verdadeira função da
sexualidade: constituir a base biológica onde possamos fazer um programa desses.

É evidente que isso está sendo detonado no plano filosófico (um assunto que não vamos
entrar aqui), mas também no plano pragmático. Existem ideologias muito bem elaboradas a
nível filosófico que estão detonando esses conceitos dentro da elite intelectual da sociedade;

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tudo isso depois se reflete em programas bem pragmáticos que querem fazer uma revolução
sexual deliberadamente planejada, arquitetada e conduzida, como está sendo feito.

A anticoncepção e todas essas ideias fazem a moral sexual cristã parecer uma idiotice, mas na
verdade isso não tem nada a ver com a verdadeira libertação da mulher nem a verdadeira
realização humana. Trata-se de um projeto de reconstrução da sociedade sobre bases que em
última análise não apresentam fundamento nenhum. De todo esse esforço que eles fazem, a
única coisa que tem lógica (não que esteja correto) é o processo pelo qual querem destruir a
estrutura presente. O que eles vão construir depois é algo totalmente incerto, não existe
praticamente fundamento nenhum em todas as propostas. Elas só têm em comum esse
projeto inicial de desmantelar a [estrutura] presente.

O fato, porém, é que eles sequer entenderam qual é a natureza da presente. Para o Cristo e a
tradição cristã existe claramente um projeto para a humanidade, e estas pessoas que estão
querendo desmantelá-lo mostram que não têm a mínima ideia do que seja. Por isso, nós
temos que pensar muito antes de tomarmos como certas algumas ideias que não são mais do
que a manipulação ideológica em massa que está sendo feita com todas as pessoas,
principalmente em relação à castidade.

A plena realização do projeto divino é o mandamento do amor a Deus e do amor ao próximo,


mas o lugar onde se aprende a amar o próximo é numa família: pode ser uma família biológica
espiritualizada no sacramento do matrimônio, ou pode ser uma família espiritual. De
qualquer forma, é numa família que se aprende a viver profundamente os mandamentos do
amor a Deus e ao próximo!

E a maioria das famílias não são puramente espirituais. A maioria será sempre de famílias
biológicas elevadas à sacramento, e estas não podem subsistir sem uma concepção clara da
sexualidade. Ao detonar isso, estão sendo detonadas não só as famílias como as possibilidades
reais das pessoas vivenciarem o que é o mandamento do amor a Deus e do amor ao próximo,
principalmente aquele amor ao próximo onde Jesus pede que não apenas nos amemos uns
aos outros como a nós mesmos, mas com o mesmo amor com que ele nos amou — que
inclusive não é o amor dele, mas o amor que ele recebeu do Pai, que vem de dentro do
mistério da Santíssima Trindade. Isso é algo de uma transcendência enorme que, na prática,
no modo como se [realiza], está totalmente vinculado com o mandamento da castidade.

O mal que estas pessoas estão fazendo ao propagar toda essa sexualidade desenfreada, essa
revolução desenfreada (que na verdade não é desenfreada, pois está sendo muito bem
calculada e planejada em conjunção com uma série de outros projetos paralelos); o mal que
estas pessoas estão fazendo é uma coisa simplesmente indescritível. Então nós [devemos]
tomar uma posição sábia e lúcida, de um modo muito especial em relação a esse tema, que no

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momento é um ponto fraco ao qual as pessoas estão cedendo de uma maneira cada vez mais
lastimável.

Feito esse comentário do porquê não explicamos simplesmente em que consiste os


mandamentos, mas tentamos explicar todo o contexto e por que isso é tão importante,
queremos complementar algumas coisas em relação ao que estávamos falando sobre a
castidade na última vez.

2. Recapitulação dos conceitos gerais sobre pecado grave

Na aula anterior falamos sobre a castidade de modo geral, dela em si: o que significa a
castidade antes do casamento, no casamento e após o casamento. Agora teríamos que falar de
um ou dois tópicos anexos a estes, como que as consequências disso.

Isso é uma regra orientativa e não uma regra que possa ser aplicada imediatamente de maneira
simplória. Mas, como uma forma de orientação geral para que tenhamos uma ideia de síntese,
nós falamos que é pecado grave: i) o que vai diretamente contra o amor a Deus, ii)
diretamente contra o amor ao próximo (entendido debaixo da razão de benevolência), iii) o
que vai diretamente contra a castidade (por ela estar incluída no amor ao próximo, segundo
todas as razões que falamos), iv) e também aquilo que, por uma contingência histórica, vai
diretamente contra algum mandamento da Igreja, que ela tenha introduzido valendo-se do
poder de ligar e desligar. Para os leigos são muito poucos; um deles é o preceito de assistir
missa aos domingos e dias santos. Não é muito mais do que isso. Depois trataremos desse
assunto.

Em linhas gerais é isso que constitui o pecado grave. São coisas que devemos evitar a todo
custo, como aquelas que constituiriam “pecado grave” pela natureza do que se está fazendo
e que poderia não ser para outra realidade: algo que é gravíssimo e intolerável numa empresa
de aviação, pode não ser numa pizzaria. Contudo, daquilo que é pecado grave numa
instituição, numa corporação, na sociedade ou na sociedade humana e divina, tem que se
tomar uma providência a fim de que não aconteça nunca.

Um dos sentidos da confissão (pelo menos da primeira confissão) é justamente esse:


afastarmo-nos definitivamente do pecado grave, aprendermos a “ser gente”, digamos assim;
aprendermos a ter aqueles modos que não se podem tolerar. Como na diplomacia há certas
coisas imperdoáveis, então o diplomata primeiro tem que saber o que ele não pode fazer em
hipótese alguma, depois o resto ele pode ir aprendendo.

Então é tão grave o pecado grave que o bom seria que, após a primeira confissão, as pessoas
não o fizessem nunca mais. Infelizmente a natureza humana decaída é fraca e nem sempre

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isso acontece. Por causa disso permite-se que as pessoas possam sempre se confessar outra vez,
porém se propondo novamente em definitivo a não voltar nunca mais cair ali.

3. Da ocasião próxima de pecado grave

Isso é uma coisa tão séria que, na prática, expor-se ao perigo próximo de pecado grave, já se
considera um pecado grave. É óbvio, pois já seria pelo menos um pecado contra o próximo
que, no caso, é o próprio sujeito: se a coisa é tão grave e sem razão grave o sujeito se expõe
proximamente a cometer um pecado grave, ele está sendo seu maior inimigo. Isso é um
pecado contra a benevolência para consigo mesmo.

E por que não falamos isso antes? Porque, via de regra, onde isso acontece com mais
frequência é justamente onde a natureza humana é particularmente fraca, o que costuma ser
no pecado contra o sexto mandamento, o pecado contra a castidade. Pode acontecer com
qualquer mandamento, qualquer matéria moral, mas costuma acontecer em maior grau com
o sexto mandamento.

Em outras palavras. Se um sujeito sabe, por exemplo, que indo num determinado lugar vai
acabar cometendo um adultério (falando com determinada pessoa ele não se responsabiliza
mais por si mesmo, porque ela vai acabar seduzindo-o e só Deus sabe se ele vai ou não ter
forças para dizer não, mas mesmo assim ele vai lá), este sujeito está sendo extremamente
temerário e está pecando no mínimo contra si mesmo, já que está expondo sua salvação a um
perigo imenso, sem ter um motivo para fazê-lo.

Isso não vale só para a castidade, mas para muitas outras coisas. Aquele homem que sabe que,
se passar perto de um cassino, vai jogar todo seu dinheiro e irá perdê-lo, de modo que a família
cairá na miséria, a mulher vai passar fome, os filhos vão passar fome, se é que ele já não fez
isso outras vezes e a mulher já o tenha ameaçado de divórcio caso se repetisse outra vez; se ele
entrar no cassino e disser: “Não, eu não vou jogar nada”, mas ele não tem certeza se não vai
ser convidado; só pelo fato de estar se expondo assim, supondo que o perigo seja próximo,
isso já é um pecado grave! Isto é, expor-se ao perigo próximo de cometer um pecado
grave sem um motivo grave e proporcional, já é pecado grave por si só, mesmo que o
fulano não peque.

Obviamente estamos falando de perigos próximos, porque é impossível evitar perigos


remotos. Além disso, na maioria das vezes, os perigos remotos são aqueles que nós, se
tivermos um pouco de honestidade e brio, não caímos neles.

Há perigos remotos a todo momento. A qualquer momento alguém pode seduzir o sujeito,
a qualquer momento ele pode ver uma revista pornográfica, a qualquer momento alguém
pode fazer-lhe uma proposta tentadora de suborno, corrupção. A qualquer momento ele

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pode se tornar um alcoólatra. Então, sem ter vício algum, o sujeito deveria recusar
sistematicamente beber todo copo de vinho; não poderia comprar um jornal, porque a banca
de jornal está cheia de revistas pornográficas. Normalmente nós compramos o jornal e não
olhamos as outras [revistas], mas a tentação está lá. As mulheres no Ocidente se vestem de
uma maneira lasciva, então o sujeito teria que viver na Arábia Saudita!

Estamos falando de perigos próximos. Como sabemos que o perigo é próximo? Pela própria
experiência, pelo próprio conhecimento. O fulano que bebe e tem vício para a bebida, sabe
que se entrar no bar ele não responde mais por si: pode ser que não faça nada, mas ele sabe
que é temerário “assinar um cheque em branco”. O fulano que sabe que tem uma queda por
certa mulher e que não faz a mínima ideia do que vai acontecer se for vê-la, ele já sabe por
experiência própria que aquele perigo não é remoto, mas é próximo. Então, via de regra, nós
só devemos nos expor a um perigo próximo de pecado grave caso tenhamos um motivo grave,
proporcional para enfrentar isso.

Normalmente a experiência mostra que, quando o motivo é grave e proporcional, o caráter


remoto do perigo desaparece. Por exemplo: um fulano tem uma queda pelo pecado contra a
castidade, mas ele é bombeiro e tem um prostíbulo que está pegando fogo, pegando fogo
mesmo, ameaçando cair as vigas em cima da cabeça das pessoas, tem gente morta lá dentro,
carbonizada e ele tem que apagar o incêndio. Entrar num prostíbulo para uma pessoa dessas
seria ocasião próxima de pecado. Porém, no meio daquela tensão em que a pessoa pode
morrer a qualquer momento, uma viga pode cair na cabeça dele, estão todos morrendo, a
pessoa está totalmente tensa e concentrada numa outra questão, de modo que não dá tempo
de dar atenção a qualquer tentação que seja. (Eu já vivi não essa, mas experiências parecidas
em que tive de socorrer a vida de alguém em lugares não convenientes de estar, onde na
prática é tão grande a tensão por ter que salvar a vida de alguém ou daquilo que está
envolvido, que o perigo de cometer pecado numa situação dessas desaparece).

Então, via de regra, nós não devemos nos expor ao perigo próximo de cometer pecado, ou
seja, àquelas experiências onde sabemos que, se não as evitarmos, não podemos nos
responsabilizar pelos nossos atos de uma maneira honesta, uma maneira moralmente
responsável. Expor-se a uma coisa dessas só seria justificado se houvesse uma razão grave,
muito grave, proporcional ao perigo da nossa condenação eterna. Porém na maioria das vezes,
quando esse caso é muito grave mesmo, a experiência tem demonstrado que na prática o
perigo a que estamos nos expondo desaparece. Contudo, devemos [admitir] que são ocasiões
raríssimas, não são coisas do dia a dia; são coisas que acontecem uma vez ou outra na vida, se
acontecerem.

4. Pecado de escândalo

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Existe uma outra situação semelhante a essa, que é uma consequência lógica. Pela mesma
razão que temos de evitar o perigo do pecado próximo a nós, temos de evitar o perigo
próximo de pecado a outras pessoas. Isso é o que costumamos chamar de escândalo.
Escândalo é uma pedra de tropeço: significa colocar um tropeço para alguém cair, essa é a
origem etimológica da palavra.

Hoje chamamos de escândalo alguma coisa que choca as pessoas, uma informação
midiaticamente fascinante, que se propaga rapidamente e sobre a qual todos falam, mas
escândalo originalmente não era isso. Significava colocar uma pedra no caminho de alguém,
ou seja, oferecer a alguém a chance de cair em pecado. É o que fazemos expondo-nos ao perigo
próximo de cair em pecado: estamos colocando um “escândalo” para nós mesmos.

Na prática, uma das ocasiões mais comuns de escândalo é o modo como as pessoas se trajam,
principalmente as mulheres: o modo como as mulheres se vestem pode ser provocativo para
os homens. As próprias mulheres não percebem o quanto podem ser provocativas porque,
sendo mulheres, elas normalmente são excitadas sexualmente por outros modos que não pelo
visual. Então normalmente as mulheres têm uma dificuldade muito grande de perceber como
são capazes de excitar os homens, principalmente os homens que não praticam a castidade.

Nesse sentido, nós não devemos pôr em ocasião próxima de pecado nem a nós, nem aos
outros. Mas no tema em relação aos outros, uma das ocasiões mais frequentes, que faz parte
do espírito da castidade justamente porque a sexualidade humana se dirige não a excitar os
outros indiscriminadamente, mas para que se possa formar uma família bem constituída que
seja um reflexo da vida da Trindade, um canal onde o amor da Santíssima Trindade possa ser
experimentado pelos homens; exatamente por esse motivo nós não podemos transformar a
sexualidade humana, muito menos a feminina, num aparelho de excitação geral.

Por causa disso deveria haver um modo honesto de as mulheres se trajarem. Isso é muito
difícil de se estabelecer, porque os costumes variam, as propensões das pessoas variam, mas
pensamos ser [oportuno] colocar um critério razoavelmente bom, pelo qual possamos
nortear-nos do que poderia ser um traje correto.

Isso pode variar de lugares para lugares, pode variar entre pessoas. O critério em última análise
é [definir] o que seria verdadeiramente provocativo para outras pessoas. O que numa tribo
indígena não seria provocativo, na sociedade ocidental seria extremamente provocativo;
porém pensamos poder dar alguns critérios que foram bem meditados, bem fundamentados.
Em última análise, quem realmente deve ser capaz de julgar o que é provocativo ou não à luz
da castidade, são as pessoas que realmente vivem a castidade e têm uma ideia do seu
verdadeiro sentido. As sentenças morais têm que provir de homens prudentes, que tenham a
prática das virtudes e possam analisar isso à luz da tradição da Igreja, do sentido cristão, à luz
da graça e dos ensinamentos que os Santos de modo geral nos deram.

193
Dentro disso, não nos parece estar muito fora de uma normalidade se dissermos que um traje
decente para uma mulher seja: um traje em que as saias não estejam acima do joelho, as
camisas não sejam sem mangas, que não haja decotes, que não sejam transparentes e, se forem
calças, não sejam justas de modo que evidencie os contornos da pessoa. Parece-nos que uma
[mulher] que usa esses critérios está muito bem dentro dos padrões corretos daquilo que se
espera de uma pessoa casta.

Sair fora disso, para uma pessoa que seja jovem e bela, parece-nos sair daquilo que a caridade
exige para com os outros, pois assim como não desejamos cair no pecado, nós não devemos
desejar fazer cair os outros. O que vai além disso (mesmo que a pessoa não tenha a intenção),
normalmente é planejado pelos condutores da moda para provocar deliberadamente. A
pessoa pode não ter intenção, mas a coisa em si tem.

Existe uma outra questão dentro disso que são os trajes de banho quando vamos à praia.
Quando vamos à praia, evidentemente não podemos ir trajados dessa maneira [referida
acima]; os trajes são sempre menores.

Dentro de um certo bom senso, à luz desses critérios, nós não podemos dizer que frequentar
a praia seja uma coisa má em si por conta de os trajes serem menores, inclusive porque as
pessoas que praticam a castidade sabem que a praia é um lugar onde há pessoas assim. Então
não é como estar trajado de uma maneira provocante no meio da rua, onde as pessoas terão
que passar e encontrarão essas provocações querendo ou não querendo. Um sujeito que vai
à praia sabe que lá há pessoas assim, e se ele quiser evitar ir à praia porque é fraco e cai no
problema da castidade, ele simplesmente não vai. (Conhecemos alguns pais que não levam os
filhos na praia em dias de movimento, justamente para que os filhos não se acostumem com
essas coisas; eles os levam em outros momentos e em lugares mais vazios).

Sendo assim, ao ver que existe ocasião quanto a ir praia, é possível evitá-la. O que não é
possível evitar é ir à rua, à escola, à praça, ao mercado, aos lugares que são públicos, onde é
necessário ir de qualquer maneira.

Portanto, o que parece ser sensato numa praia é que se deveria escolher os trajes de banho
que são condizentes com uma visita à praia, aquele que fosse o mais conservador possível. E
também procurar, dentro do possível, evitar uma aglomeração muito grande de pessoas, onde
isso pudesse servir de excitação para outras pessoas, ou seja, cultivar uma certa discrição. Por
outro lado, as pessoas que sabem que mesmo assim, se forem à praia elas não conseguirão
conter-se nem voltar às suas residências sem ter cultivado maus pensamentos e inclusive sem
ter incorrido num risco próximo de pecar contra a castidade pelos olhos ou por pensamentos,
estas pessoas deveriam simplesmente não ir à praia.

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Há lugares nos centros urbanos (não falamos de praias, mas de piscinas), onde a situação é
particularmente mais grave, em que o espaço é mais estreito e não se pode usar de uma certa
discrição. Quer dizer, pelo espaço ser muito estreito e a frequência muito grande, as pessoas
estão muito próximas umas das outras. Aí é praticamente inevitável que as pessoas pequem,
e pecam mesmo! Inclusive é muito inevitável que até bons cristãos que frequentem esses
lugares não sejam assediados por maus pensamentos.

Esses casos são bastante diferentes de uma praia, onde o espaço é maior. Na prática, pelo que
temos ouvido inclusive de pessoas boas que têm frequentado lugares assim, eles são tão
danosos à vida da castidade que não sabemos como seria possível isentar-se de pecado indo a
um lugar desses. Porque o risco normal que as pessoas correm em ir ali e ser assediadas por
maus pensamentos é gigantesco, pelo apinhamento das pessoas. E o risco alguém estar
provocando isso nos outros é praticamente certo, principalmente se for mulher.

Nós particularmente não iríamos num lugar assim sem um motivo muito sério, seríssimo,
que não conseguimos imaginar. Não iríamos num lugar assim para nos divertir um
pouquinho, sabendo que estamos provocando pecado em um sem número de pessoas. Então
tais lugares, se estiverem revestidos dessas condições apontadas, não é nenhuma sabedoria
cristã frequentá-los, são para ser evitados. Obviamente não estamos falando de uma piscina
onde haja pouca gente, onde haja um ambiente familiar. Estamos referindo-nos a algumas
piscinas que há nos centros urbanos e são extremamente lotadas, onde vemos que é muito
que essas coisas não ocorram na prática. E isso é um pecado contra o próximo, é expor as
pessoas a uma perdição. Mesmo que a pessoa já esteja no pecado, nós não podemos afundá-
la mais ainda, nós temos que tirá-la de lá.

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Aula 12 – SÉTIMO MANDAMENTO

Índice
1. Da matéria de confissão em relação ao roubo
A) Parvidade de matéria
B) Negar o salário aos empregados
C) Atrasar o aluguel
D) Do pagamento dos impostos
E) Cobrança de impostos com fins revolucionários
2. Do dever de reparar o roubo
3. Do pagamento do salário justo
4. A desigualdade de renda e o dever de dar o supérfluo
5. Do dinheiro adquirido com atividades moralmente ilícitas

1. Da matéria de confissão em relação ao roubo

A) Parvidade de matéria. — Vamos tratar do sétimo mandamento que diz “Não roubar”.
Uma das características do sétimo mandamento é que, curiosamente, como é lógico de se
esperar, admite parvidade de matéria, ou seja, não necessariamente o que chamamos roubo
seria por si só um pecado grave; pode haver um roubo que seja pecado leve.

A diferença entre pecado grave e pecado leve é que o grave vai diretamente contra o amor a
Deus ou diretamente contra o amor e a benevolência ao próximo, ou contra a castidade. O
roubo muitas vezes não vai diretamente contra o amor ao próximo, mas é apenas uma
desordem. Quando a coisa é muito pequena e entre amigos, muitas vezes o próprio amigo
não toma isso como roubo, por exemplo: o sujeito vai na casa de um amigo e tira uma bala
de um pacotinho sem lhe pedir licença; o sujeito roubou a bala, mas de fato o amigo nem vai
achar ruim; caso tivesse pedido, o amigo lhe teria dado. Nem se pode dizer que isso seja
matéria leve, pois na verdade, o sujeito só não teve a oportunidade de pedir ao amigo.

Da mesma maneira às vezes alguém pode roubar uma coisa muito pequena, uma moeda por
exemplo, que o indivíduo não teria gostado [caso soubesse], mas não ficaria muito
incomodado com fato por não ter lhe causado um grande dano. E inclusive o sujeito não fez
isso por raiva ou desejo de vingança, ou inimizade para com o indivíduo; simplesmente foi
uma desordem: ele não aguentou a tentação e quis ficar com aquela moedinha. Isso já é uma
desordem, é um pecado leve, mas não chega a ser um dano ao próximo.

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Para que o um roubo seja um pecado grave, seja matéria grave, ordinariamente ele precisaria
ser [uma realidade] que o dono considerasse como uma injúria, que o dono sentisse aquilo
como um ato de inimizade, como algo contra a benevolência.

Normalmente, nos livros de moral (apenas como uma orientação geral, não é uma regra
matemática) estima-se que o que é matéria grave em relação ao sétimo mandamento é furtar
aquilo que seria equivalente a uma jornada de trabalho de um assalariado, uma jornada de
trabalho de um trabalhador braçal. Seria, digamos assim, aquilo que corresponderia a um dia
de trabalho de uma pessoa que ganha salário-mínimo. Hoje o salário-mínimo está em torno
de R$ 900,00. Isso em dez dias dá R$ 300,00, logo seria uma coisa em torno de R$ 30,00.

Entretanto, isso é apenas para dar uma ideia; não significa que estamos autorizando a roubar
R$ 10,00 das pessoas, nem que isso não possa ser pecado grave. Tudo depende de como o
indivíduo, nas suas condições, toma isso como sendo uma injúria. O sujeito pode ter um
amigo e tirar R$ 10,00 do bolso dele para comprar alguma coisa sem ter lhe pedido
autorização, e depois o amigo pode até ficar chateado porque com aqueles R$ 10,00 ele queria
pagar um café e agora está sem; como os dois são amigos, ele não ficou chateado porque sentiu
a injúria, mas porque estava querendo comprar o café e ficou sem. Conclui-se, portanto, que
ele não sentiu isso como uma afronta pessoal, além do fato de que a quantia está abaixo da
jornada do trabalhador.

Ao mesmo tempo, um sujeito pode arrancar esses R$ 10,00 de um mendigo e o fulano ficar
doido da vida, sentir aquilo como uma injúria mortal e odiar o sujeito, xingá-lo e responder-
lhe com ódio. Quer dizer, aquilo estava abaixo da jornada do trabalhador e o sujeito roubou
do mendigo. Nesse segundo caso, trata-se de algo que vai diretamente contra o amor ao
próximo. Isso seria pecado grave.

Estamos dando casos extremos. Essa regra prática que existe nos livros de moral é apenas uma
orientação genérica para ter-se mais ou menos uma ideia do que estamos falando. Logo, como
um parâmetro genérico, constituiria matéria grave aquilo que esteja a partir da jornada de
trabalho de um trabalhador, se bem que, dependendo das circunstâncias a coisa pode variar
muito facilmente em termo de gravidade ou parvidade.

B) Negar o salário aos empregados. — Em relação ao roubo, ao não furtar, não é apenas
roubo o que nós diretamente subtraímos contra a vontade de alguém às escondidas de outra
pessoa. Constitui também pecado contra o sétimo mandamento, por exemplo, atrasar o
salário dos trabalhadores propositalmente, como se fazia muito antigamente.

Quando a inflação no Brasil era muito grande, havia aplicações de dinheiro de um dia para o
outro que se chamavam overnight. As firmas atrasavam a entrega do salário dos trabalhadores

197
para aplicarem no overnight; quando os trabalhadores já estavam reclamando demais, aí elas
pagavam, mas ficavam com todos os juros.

Percebamos que nesse caso na verdade há dois roubos: primeiro que eles atrasaram o
pagamento e isso já é pecado contra o sétimo mandamento, o que é evidente pelo fato de ir
contra a benevolência ao próximo (se aquilo é devido e o patrão não paga, o fulano não vai
gostar e com razão); ademais, a partir do dia em que era devido dar o dinheiro ao trabalhador,
o dinheiro já era dele; então todo o dinheiro ganhado no overnight não [deveria] ficar com o
patrão, deveria ter sido dado ao trabalhador. No fim ele acabou pagando e parece que fez
tudo certo, porém fez já dois roubos contra o indivíduo.

C) Atrasar o aluguel. — Da mesma maneira atrasar o aluguel, dar cheque sem fundo de
caso pensado. Essas coisas são facilmente pecado grave. Não parece ser pecado grave atrasar a
conta da luz, atrasar o pagamento de IPTU, porque essas coisas não são tomadas pela
Prefeitura, pela Companhia de Luz, como uma injúria séria; eles já contam mais ou menos
com isso. Mas atrasar o aluguel de uma pessoa que é a dona do imóvel, que vive daquilo e está
esperando no dia, [é pecado grave]: o sujeito sabe que é devido e o locador vai lá no banco,
olha se chegou o dinheiro e não chegou; aí se pergunta o por que não foi pago. Depois de
algum dia o sujeito paga e o locador vê que finalmente chegou. Mesmo que a pessoa não
estivesse indo verificar, não estivesse precisando, mas do ponto de vista do locatário ela
poderia estar hipoteticamente precisando. Isso, de caso pensado, é facilmente matéria grave.

Por outro lado, não seria [pecado grave] atrasar contas de telefone, luz, gás, etc., que são de
companhias grandes e impessoais, onde a injúria praticamente é mínima, se é que existe (para
eles é apenas um problema burocrático). Essas coisas não devem ser feitas se não houver um
motivo razoável, porque de qualquer forma é uma irregularidade. Mas para dizer que seja
matéria grave é muito diferente.

D) Do pagamento dos impostos. — Da mesma maneira existe uma outra coisa semelhante
que cai no sétimo mandamento, que é o pagamento dos impostos. Os impostos são devidos.
Quando corretamente estabelecidos eles são obrigatórios, porque é uma função do Estado
através daqueles impostos, providenciar os serviços públicos que todos nós usamos. Se não
houvesse os serviços públicos, a vida social seria impossível. Então aquilo é devido.

O que ocorre, porém, é que muitas vezes não se é obrigado a pagar o imposto, porque o
imposto não está corretamente colocado. Por exemplo: um imposto manifestamente abusivo
não é obrigatório de ser pago. O que seria um imposto manifestamente abusivo? É aquele
que é tão abusivo que sua abusividade é evidente para o senso comum. É uma coisa injusta,
não é apenas algo exagerado, mas totalmente fora de lugar. Por exemplo: cobrar imposto de
renda de uma pessoa que ganha salário-mínimo e tem cinco filhos, em qualquer nível de

198
imposto é abusivo. Se for cobrado imposto desse indivíduo e ele não tiver como pagar, ele
não estará cometendo roubo nenhum ao fazer isso.

Outro tipo de imposto abusivo, por exemplo, seria cobrar 50% ao ano do valor do imóvel no
IPTU — um imposto sobre o imóvel, que equivaleria praticamente a ter que vendê-lo.
Pagando por ano um imposto de 20% ou 50% do imóvel, o que acontece na verdade é que
estamos dando o imóvel para a Prefeitura a cada quatro anos novamente, quer dizer, a
Prefeitura está roubando nosso imóvel a cada quatro anos novamente. É muito melhor do
que ela roubar de uma vez, então ela rouba várias vezes. IPTUs absurdos de 20%, 30%, 50%
ao ano, são impostos que podem ser subornados porque são manifestamente abusivos.

Outro tipo de imposto que também não é ilícito [subornar] são aqueles que os governos dos
países onde existe muita corrupção cobram muito acima do que esperam que as pessoas
pagam, porque sabem que o contribuinte suborna. O governo sabe que se cobrar 20,00, o
sujeito paga 5,00, então cobra 100,00 para ver se o fulano paga 25,00; se o fulano paga 25,00
ele já está contente, não vai perseguir o indivíduo. O governo então já está colocando 100,00
porque sabe que o contribuinte só paga 25,00, porém o que está exigido na lei é 100,00.

Imagine que, numa situação dessas, um empresário honesto resolve pagar 100,00. De fato o
imposto é 100,00, mas o governo espera receber 25,00; ele cobra 100,00, mas se alguém pagar
25,00 ele está satisfeito, e todos pagam 25,00. Aí aparece um empresário honesto e diz: “Não,
eu vou pagar 100,00 porque lei é lei”, porém ele vê que o custo de seu produto subiu e terá
que cobrar mais caro. Consequentemente ele não vai conseguir vender o seu produto,
porque o concorrente, que paga só 25,00 de imposto, está vendendo mais barato. Pode ser a
mesma qualidade, mas o do honesto é mais caro e o do outro que é desonesto é mais barato;
então o fulano não vende o seu produto, o desonesto é que vende. O sujeito vai à falência
porque resolveu ser honesto.

Num caso desses é evidente que não se é obrigado a pagar esse imposto, porque está escrito
que é 100,00, mas na verdade o governo só queria 25,00 porque todos estão pagando 25,00
e se o sujeito pagar 50,00 ou 100,00 vai terminar indo à falência. Num caso desses é permitido
subornar e não seria pecado, porque de fato um imposto que, se for pago, obriga o sujeito a
ir à falência ou inviabiliza o seu empreendimento, é um imposto abusivo. Não é
manifestamente abusivo ao público (até poderia ser pago se todas as empresas pagassem
100,00; o produto fabricado custaria mais caro para a população, mas as pessoas deveriam se
conformar). Tal imposto poderia até ser pago se todos respeitassem, mas justamente o
governo não espera que as pessoas respeitem. Nas circunstâncias concretas, o fulano que
pagar o imposto verdadeiro vai à falência.

Sendo assim, considerando as situações internas do mercado (que só os especialistas do ramo


conhecem) o imposto é abusivo. Aos olhos do público pode até parecer exagerado, mas não

199
necessariamente abusivo. No entanto, ele de fato é abusivo. Logo, ao pagarmos menos, não
incorremos num delito contra mandamento nenhum: nem contra o amor ao próximo, nem
contra o governo, nem contra o público, nem contra o mercado, nem contra nós mesmos.
Num certo sentido poderia até ser pecado pagar porque o sujeito estaria introduzindo uma
desordem: vão todos à falência e várias famílias vão perder o emprego e cairão na miséria,
inclusive a do próprio sujeito.

E) Cobrança de impostos com fins revolucionários. — Agora, existe uma outra questão
delicada nisso que é a seguinte: em princípio, a pessoa não deveria pagar um imposto
claramente abusivo e escorchante; quanto aos impostos exagerados, mas que são possíveis de
ser pagos, a pessoa deveria pagar. O remédio certo seria ir à Câmara e ao Senado, fazer um
trabalho legislativo com os parlamentares e mostrar-lhes que precisam fazer impostos mais
corretos e procurar diminuir a corrupção do próprio Governo, que rouba uma parte dos
impostos e por causa disso precisa colocar mais, para poder fazer frente às despesas que tem.
Seria um problema de exercício da democracia pelos direitos e obrigações que temos como
cidadãos.

Mas na prática nós sabemos que de fato, no século XX, existe um outro fator em jogo que é
o programa dos partidos de esquerda, principalmente os partidos socialistas. Esta proposta já
começou no próprio Manifesto Comunista de Karl Marx e foi se aperfeiçoando no século
XX. Ela foi aperfeiçoada não pelos marxistas em si, mas pelos socialistas, que surgiram de
dentro dos grupos marxistas e, logo depois da Segunda Guerra Mundial, separaram-se.

Os socialistas propuseram uma [nova] estratégia para chegar aos mesmos objetivos da
Revolução Comunista, cuja finalidade [inicial] era tomar o poder por uma revolução dos
trabalhadores e então desmantelar o Estado, primeiro através da abolição da propriedade
privada. Esse era o programa original de Marx: através de uma revolução, que aconteceria
naturalmente (não precisaria ser provocada), os operários tomariam o poder e aboliriam a
propriedade privada e a partir daí desmantelariam o Estado para construir a sociedade
comunista.

Os socialistas perceberam que a revolução não aconteceria naturalmente, simplesmente a


revolução não viria. E os leninistas perceberam que a revolução só viria se eles a provocassem
através das armas, da tomada violenta do poder. Então, logo no começo do século XX, os
esquerdistas dividiram-se em dois: os leninistas, que queriam fazer uma revolução armada e
não queriam esperar por uma revolução [espontânea]; e os socialistas, que entenderam que a
revolução não viria nunca e que não era para provocá-la. Mais tarde, os comunistas
originários chegaram a uma outra conclusão: que a revolução deveria sim acontecer
naturalmente, mas deveria ser corretamente preparada por uma ação revolucionária cultural
em todos os âmbitos da sociedade e não só com os trabalhadores; a sociedade deveria ser

200
desmantelada ponto por ponto, através de uma crítica, de uma corrosão, inclusive a
revolução sexual, etc.

Mas o que interessa aqui é a estratégia dos socialistas, que não era de fazer a revolução nem
desmantelar a sociedade. Eles queriam ganhar as eleições através do voto, tomar o poder e aí
ir aumentando gradativamente os impostos até chegar a um patamar de 50%, 60% da renda
nacional, se cobrada em termos de impostos, ou seja, até que o governo tivesse metade ou
mais do dinheiro do país. A partir desse momento o governo passaria a comprar, pouco a
pouco, todas as grandes empresas até que não houvesse mais capital privado, até que não
houvesse mais propriedade privada industrial produtiva, mas somente propriedade privada
de pequenas coisas não produtivas: lazer, um carro, uma mesa, a casa própria, mas não
empresas, de modo que fosse tudo propriedade estatal, absolutamente tudo. E tudo isso
ocorreria de uma maneira indolor, porque ninguém perceberia: o governo iria comprando
pouco a pouco, já que possuiria 60% da renda.

Evidentemente, isso vai totalmente contra os princípios do cristianismo. A doutrina social da


Igreja diz claramente que o princípio que deve reger a estrutura social é o princípio da
subsidiariedade: o governo só deve fazer aquelas coisas que a iniciativa privada não é capaz de
fazer ou não é capaz de fazer direito, ele não deve tentar assumir a iniciativa de tudo. Por
vários motivos, isso é contra a natureza!

Isso significa que esses programas de impostos, principalmente quando são colocados pelos
partidos de esquerda (que os de direita quando assumem o poder, não se atrevem a diminuir,
mas na próxima rodada em que os de esquerda retomam, eles vão aumentando); isso na
verdade faz parte de um programa deliberado e revolucionário que em princípio foi
concebido pelos socialistas na sua escalada plena, sendo inclusive o que acabou forçando o
advento do neoliberalismo, que é outra coisa que não é boa, é o capitalismo selvagem.

Quando alguns Estados europeus chegaram realmente, logo depois da Segunda Guerra
Mundial, a esse nível de 60% de impostos, e começaram a surgir os projetos de lei para que o
governo começasse a comprar todas as iniciativas privadas, os capitalistas reagiram. Eles
perceberam que estavam sob perigo iminente e bolaram uma resposta radicalmente oposta.
É o erro completamente oposto, ou seja, eles estão no outro extremo do princípio da
subsidiariedade. Afirmam que o governo deve fazer o mínimo, deve apenas garantir a justiça,
os tribunais e alguns serviços onde não se pode cobrar lucro, o resto deve ser tudo na base da
iniciativa privada. E caso alguém esteja muito mal, seja prejudicado, esteja passando fome,
etc., azar! Com o tempo isso se conserta, porque a riqueza vai subindo e gerações mais adiante
isso vai se consertar de uma maneira automática.

Isso é contra o princípio da subsidiariedade porque, nesse caso, essas pessoas que estão sendo
prejudicas, às quais a iniciativa privada não pode socorrer, teriam que ser socorridas pelo

201
Estado. Então eles não podem advogar uma coisa dessas. Justamente esse outro mal
(neoliberalismo moderno) surgiu como reação a essa coisa (socialismo), uma reação ao perigo
iminente dela. Não é apenas uma corrente filosófica, ele tem suas estruturas para se impor.
Portanto, nós estamos vivendo num fogo cruzado de ideologias.

Em vista disso, os impostos estão altos não porque o governo queira fazer o bem, mas ao
mesmo tempo há muita corrupção e roubo, e então ele tem que subir os impostos pois ele
mesmo não tem todo o dinheiro que precisa — 50% é roubado, aí as pessoas roubam mais e
ele não consegue controlar a corrupção e precisa aumentar os impostos. Na verdade, essa
escalada dos impostos faz parte de um programa gradual e proposital, que no fundo é o roubo
de toda a propriedade privada honesta, de toda iniciativa privada honesta, justa e benéfica à
sociedade, [programa este] que está dando margem a um erro que é exatamente o oposto dele.
Tais pessoas estão brigando entre si, porque é uma luta de vida ou morte; e quem está
pagando o pato somos nós!

A questão é a seguinte: o imposto pode não ser abusivo, pode não ser escorchante, mas é
exagerado. Porém ele não é exagerado porque houve um engano, ou as pessoas não estavam
preparadas, ou o governo é ineficiente; ele é abusivo e vai continuar sendo mais ainda
propositalmente, porque isso faz parte de um projeto revolucionário. E na prática, as pessoas
sentem isso! As pessoas percebem que dá para pagar, mas é muito forte, é muita coisa.

Do ponto de vista moral a solução correta seria um trabalho cidadão que levasse a população
à consciência do que está acontecendo. Não apenas em seus fatos, mas também e
principalmente em suas causas históricas e em suas perspectivas futuras, para poder ser
exigido agora, no momento presente, uma política tributária honesta. Essas coisas são
perfeitamente possíveis, mas exige muito conhecimento, trabalho, persistência e prudência
política.

Em relação à moral individual deve ficar claro que o pagamento dos impostos é um dever
moral que obriga de modo geral sob matéria grave, porém não se pode afirmar como regra
que toda sonegação de impostos, dentro deste quadro, seja necessariamente matéria grave de
pecado. Para [preservar] a integridade da consciência, onde não haja um imposto claramente
escorchante e não houvesse a clara tranquilidade moral do homem prudente, seria preferível
que o imposto cobrado fosse devidamente pago.

2. Do dever de reparar o roubo

Uma dificuldade maior em relação a isso é que se considera doutrina comum da teologia que
não basta que a pessoa se arrependa do roubo: o indivíduo que roubou, deve devolver [a coisa
alheia] ou então não tem perdão, ele não pode ser absolvido. Então se o sujeito roubou quem
quer que seja, ele não pode ser absolvido caso não se comprometa a devolver o roubo. A

202
obrigação é apenas de devolver o roubo ao seu dono, não existe a obrigação de revelar-se em
público como sendo o ladrão. A obrigação é de cumprir com a justiça.

Por exemplo, se o fulano roubou o carro de alguém, deve devolver o carro para a pessoa, ou
o mesmo ou outro igual. Ele não precisa dizer que roubou, pode apenas “dar de presente”
para o dono. A pessoa até pode não entender porque o fulano está dando de presente, mas
ele deve devolver o carro ao indivíduo.

Se a pessoa roubou U$$ 1.000.000,00 de uma instituição, deve devolver o mesmo valor
àquela instituição. A instituição pode estar procurando o ladrão em todo lugar, e a pessoa
que roubou pode chegar e dizer: “Olha, eu estou com pena de vocês, mas vou fazer o seguinte:
vou doar U$$ 1.000.000,00 para vocês”. Isso é o suficiente.

Quando não é possível identificar a pessoa que foi roubada, ainda assim existe a obrigação de
devolver. Teríamos que devolver a uma instituição ou alguém que estivesse numa situação
semelhante àquela. Então se a pessoa roubou U$$ 1.000.000,00 de um hospital e esse hospital
não existe mais e ela não tem como devolver, a pessoa deveria doar esses U$$ 1.000.000,00 a
um outro hospital ou a alguma sociedade beneficente que prestasse um serviço ao público,
semelhante àquele primeiro que foi roubado. Se não houver isso, a absolvição é inválida.

Existem casos em que o indivíduo não tem condições de devolver o roubo, porque ele mesmo
não conta com aquele dinheiro. Por exemplo, um político que roubou a vida inteira e foi
descoberto. Agora que foi descoberto ele não tem nenhuma fábrica, nenhum banco,
nenhuma entidade, nenhum trabalho pelo qual possa devolver todo o dinheiro roubado,
porque já o gastou. O que ele deve fazer? Deve propor-se a ir devolvendo aos poucos até o
fim da sua vida, dentro daquilo que pode. Se ele falecer e não tiver completado a devolução,
ele fez o que era possível.

Evidentemente também, por exemplo, se a pessoa roubou casas, prédios, propriedades, ela
não pode passá-los em herança aos seus filhos e os filhos também não podem aceitar uma
herança dessas. Se os filhos têm consciência de que aquilo foi roubado, eles sabem que não é
deles, mas de outra pessoa. E não interessa que não seja possível saber de que pessoa seja o
bem roubado, eles devem desfazer-se deles, devolvendo aos autênticos donos ou a alguém que
esteja mais ou menos nas mesmas necessidades que os donos autênticos: se aqueles edifícios
eram de hospitais, que voltem para outros hospitais; se eram de asilos, que voltem a outros
asilos.

E caso sejam de uma pessoa comum? Se o indivíduo bateu uma carteira e se arrependeu e não
sabe para quem devolver, nem sabe quem era a pessoa? Ele tem que devolver a uma
instituição filantrópica, uma instituição de caridade qualquer ou então a uma pessoa que
esteja passando por extrema necessidade. Ele não pode ficar com aquilo.

203
No caso dos impostos, em princípio também é a mesma coisa, porém é um pouco mais
delicado para se julgar, inclusive porque existem leis que dizem que, se o Estado não cobrou
o imposto até tantos anos, ele não pode cobrar mais. Existem leis que dizem que, se a pessoa
não pagou o imposto e foi pega em sonegação, ela deve pagar os atrasados, mas em até tantos
anos. Caso ela tenha conseguido ficar mais de tantos anos sem pagar o imposto, a partir de
determinada data o Estado não tem mais direito de abrir processo contra ela.

Isso em parte é feito para dar uma tranquilidade social às pessoas, a fim de que não comecem
a ser processadas por coisas que fizeram na infância, na juventude, pois seria uma
complicação defender-se disso, inclusive se fosse um processo injusto. Então o Estado
estabelece que, depois de uma determinada data, a dívida não possa mais ser executada — não
sempre exatamente que ela prescreva.

Nesses casos, isso não é claro moralmente. Mas pelo contexto geral das pessoas que convivem
com isso e compreendem o contexto, apesar de não estar escrito na lei porque ela só se
preocupa com coisas socialmente verificáveis, só se preocupa com o foro externo e não com
o interno, a lei não diz que o fulano está perdoado; a dívida estar ou não perdoada é uma
questão de foro interno. Na prática o que interessa é se o Estado pode ou não executar a
dívida. A lei diz que, a partir de tantos anos, o governo não pode mais executar a dívida. A
lei humana normal nunca vai dizer que o fulano está perdoado, isso não interessa. O que
interessa para ela é se o sujeito vai ser processado ou não. O que interessa é o dinheiro, o foro
externo.

Do ponto de vista do que é possível entender, tais leis equivalem a um perdão tácito a essas
dívidas, ou seja, quando o Estado diz que após tantos anos ele não pode mais executar a
dívida, a obrigação interna de devolver desaparece, porque é como se o dono tivesse perdoado
à dívida e então a pessoa não é obrigada a devolver.

Se alguém roubou dinheiro de um homem rico, vai pedir desculpas, quer devolver e o homem
rico diz assim: “Não, não devolva. Faz o seguinte, eu te dou de presente”. Nesse caso a pessoa
não é mais obrigada a devolver. Quando o Estado diz que depois de tantos anos ele não pode
mais executar a dívida, como ele é o Estado e está legislando e a legislação é de foro externo,
obviamente ele não vai dizer “Você está perdoado, não precisa devolver”; mas na prática nós
interpretamos moralmente que aquilo equivale a um perdão da dívida. Quer dizer, se o
Estado admite que não vai mais perseguir o indivíduo judicialmente para cobrar a dívida, é
porque está perdoando a dívida. Logo, o indivíduo não tem mais obrigação de restituir a
partir desse momento, salvo circunstâncias legais excepcionais, onde nós temos de entender
o contrário, ou circunstâncias humanas excepcionais onde tenha que se entender algo em
contrário.

204
Em suma, quando uma pessoa rouba de alguém, é obrigada a devolver, a não ser que o fulano
declare que ela está perdoada. Quando a pessoa deixa de pagar um imposto, é obrigada a pagar
o imposto que é devido, supondo que ele seja claramente devido. Quando ele está neste lusco
fusco que, por causa da desonestidade geral de pessoas e instituições, é muito difícil de
determinar, o mais correto é que nós do ponto de vista da consciência tratemos disso com
um sacerdote ou um homem verdadeiramente sábio e versado em teologia moral; mas em
princípio [deve-se] devolver o imposto enquanto o Estado se arroga o direito de abrir uma
demanda judicial contra o indivíduo. Quando essa prerrogativa cessa, nós imaginamos que o
Estado não só está cessando de querer perseguir judicialmente o indivíduo, mas está também
perdoando a sua dívida, coisa que em relação a uma pessoa particular nós não deveríamos
entender, a não ser que ela se manifestasse dessa maneira ou desse a entender indiretamente
que é dessa maneira.

3. Do pagamento do salário justo

Existe ainda uma outra coisa no sétimo mandamento que é a questão do salário justo: os
trabalhadores têm direito a receber o salário justo. O que é o salário justo? Não é o salário de
mercado, mas aquele pelo qual uma pessoa, ainda que solteira, seja capaz de manter
dignamente uma família com o valor daquele salário. Se diz ainda que seja solteira, porque
ela pode ser solteira, mas estar juntando dinheiro para mais tarde se casar e constituir uma
família.

Sendo assim, salário justo é aquele com o qual o trabalhador pode manter dignamente uma
família: possa colocar os filhos na escola, possa ter direito à saúde e todas essas coisas que se
espera para uma educação digna. Obviamente isso não é o salário mínimo dos dias de hoje,
inclusive é difícil de dizer quanto é o salário justo.

O salário mínimo hoje deve estar por volta de uns R$ 800,00 e com esse valor não é possível
manter uma família; nem com R$ 1.500,00, nem com R$ 2.000,00 e, dependendo das
circunstâncias, nem com R$ 3.000,00. Então, é difícil estabelecer qual é o salário justo. Isso
depende inclusive se a pessoa mora na capital ou no interior.

De qualquer maneira o fato é que frequentemente o patrão não pode pagar o salário justo,
nem que queira. Por exemplo: às vezes, para termos uma empregada doméstica, se quisermos
pagar-lhe o salário justo, teremos que lhe dar todo o nosso salário; e às vezes pode acontecer
que nem dando todo o nosso salário, não seria para a empregada um salário justo porque o
nosso também não é justo.

Como agir num caso desses? Não se deve contratar a empregada? Existem certos ramos de
trabalho, certas profissões em que, se fosse lícito pagar somente o salário justo, não
pagaríamos ninguém, então as pessoas morreriam de fome porque não haverá emprego.

205
Então dificilmente uma pessoa comum poderá ter uma empregada e pagar o salário justo,
pois deveria dar todo seu salário para a empregada e ficaria sem salário, o que seria obviamente
uma outra injustiça. Porém, caso não contratasse a empregada, talvez esse seria o único
emprego que ela poderia ter; então ela vai preferir ter um salário que não é justo, do que não
ter salário nenhum.

É uma coisa semelhante que ocorria antigamente, por exemplo, na indústria de construção
civil. Os trabalhadores da construção civil não ganhavam um salário justo, ganhavam muito
abaixo do justo, não era um salário digno. Só que, se a firma desse o salário justo, o preço do
imóvel a ser construído seria tão caro que ela não venderia o imóvel; a indústria iria à falência
e o patrão não poderia contratar mais nenhum trabalhador. Ele teria de escolher entre duas
alternativas: i) dar o salário justo aos empregados durante algum tempo e depois ir à falência
e ter de mandá-los embora; ii) ou dar um salário abaixo do justo, continuar o trabalho e
depois contratá-los para outro prédio, outro prédio.

Nesse caso o problema são as leis do mercado ou talvez as leis próprias do sistema econômico
que, erroneamente ou não, acharam que assim é melhor para o país: eles mantêm o preço do
imóvel numa determinada faixa, mas nessa faixa não é possível pagar o salário justo. Então no
caso da construtora, não é problema dela. Assim como no caso do fulano que contrata uma
doméstica, também não é problema dele, pois ele tem limitações de mercado que não lhe
permitem pagar [o justo].

O salário do profissional liberal não permite que ele pague o salário justo a um empregado
doméstico. O salário de um juiz de segunda instância sim, ou de um diretor de hospital, mas
não de um profissional liberal comum. É uma distorção do mercado.

A indústria civil é a mesma coisa: a porcentagem do custo do salário dos trabalhadores da


construção civil é grande parte do valor do produto final. Num banco essa proporção é
menor: o salário dos bancários dentro do custo do banco é uma coisa irrisória. Então os
bancos poderiam dar salários muito mais altos para as faxineiras. Os bancos poderiam dar um
salário justo para as faxineiras e não dão!

A construção civil não poderia dar um salário justo aos operários, e a maioria dos
empregadores de domésticas também não poderia. Nesse caso deve ser feito o que é óbvio:
não devemos pagar o valor do mercado, mas o valor que podemos pagar, honesta e
generosamente. Se pagarmos o valor que efetivamente podemos e a pessoa concordar, aquilo
é o certo (apesar de que a pessoa tem outras opções de encontrar algo melhor); é o certo
naquelas circunstâncias, mesmo que não seja o justo.

O padrão é o salário que uma pessoa pode manter corretamente uma família. Então, desse
ponto de vista de justiça, também vale o contrário: se um empregador está numa situação de

206
mercado onde certos tipos de profissionais são ultra valorizados e recebem salários
fantásticos, ele não é obrigado a pagar aquele salário só por ser o valor de mercado — valores
absurdamente altos por causa de uma distorção momentânea do mercado naquela geração;
ele é obrigado a pagar o salário justo. Um salário digno com que o indivíduo possa manter a
família, este é o salário justo.

Na prática a coisa é diferente, porque se o mercado faz com que o salário dele seja
astronômico, não adianta oferecer o justo porque o sujeito não vai trabalhar, ele vai encontrar
outro lugar; o mercado está a favor da pessoa. Mas teoricamente o empregador não está
fazendo um roubo num caso desses se pagar abaixo do valor de mercado: ele está oferecendo
50% do valor de mercado, mas aquilo já é bem mais alto do que o salário justo. Assim sendo,
o [empregador] não está cometendo nenhuma injustiça em pagar 50% do valor de mercado.
Se o sujeito não quiser, ele tem a liberdade de procurar outro lugar, mas não é injustiça da
parte do [contratante].

Aliás, é o mercado que, por causa da sua despersonalização, está valorizando aquele
profissional de uma maneira que não é devida. Às vezes, absolutamente falando, um médico,
um juiz ou algum outro profissional, objetivamente valem muito mais do que aquele
indivíduo. O indivíduo está aproveitando de uma escassez momentânea de profissionais e de
uma supervalorização daquele trabalho que está fazendo.

Então se um patrão não está pagando o salário justo e pode pagá-lo, ele é obrigado a pagar o
salário justo caso se arrependa e se confesse. Se o sujeito se arrepende, vai se confessar e o
sacerdote vê que ele é um empresário, que no seu ramo pode pagar o salário justo aos seus
empregados e não está fazendo, mas pagando somente o valor de mercado, o sacerdote não
pode absolvê-lo se o empresário não se comprometer a pagar o salário justo.

Num caso desses, tanto quanto podemos entender, o patrão não seria obrigado a restituir o
salário passado, porque se ele pagou o que foi combinado e o fulano aceitou, a justiça moral,
salvo engano, não obriga o indivíduo a retroagir e pagar o salário justo que não foi pago aos
empregados, desde que tenha cumprido com o acordo que havia sido feito, isto é, tenha pago
o salário combinado. Se o patrão fraudou o salário combinado, ele é obrigado a restituir tudo.

Com base nisso, aquelas pessoas que na época da inflação atrasavam o salário dos empregados
em cinco, dez dias e aplicavam no overnight para ganhar lucro, se elas se confessarem, têm que
devolver todo aquele lucro dos overnights que tiraram dos empregados. Aquilo era devido! A
partir do dia em que elas tinham o dinheiro disponível e não pagaram, o dinheiro não era
mais delas, era dos empregados, e o overnight era dos empregados. Alguém que vá se confessar
disso e vai ser absolvido, tem que pagar os overnights¸ mesmo que tenham passado anos, caso
tenha condições de fazê-lo; senão, deve fazê-lo dentro do possível.

207
O indivíduo, porém, que não pagou o salário justo, mas pagou pontualmente o combinado,
tem que atualizar o salário justo e passar a pagá-lo. No entanto, o que foi combinado e que
era de estrita justiça, foi pago. Nesse caso [a obrigação] não é retroativa, mas é obrigatório
[atualizar o salário] caso ele possa fazê-lo.

4. A desigualdade de renda e o dever de dar o supérfluo

Existe ainda uma outra coisa no sétimo mandamento: a questão da própria desigualdade de
renda que existe no mundo. De modo geral, podemos dividir a renda que cada pessoa recebe,
que cada instituição recebe, em três níveis: i) o necessário, ii) o digno, iii) e o supérfluo —
coisa que também não é fácil de se determinar. Isso pode ser melhor determinado pelo
próprio indivíduo do que por um estranho, supondo que ele seja honesto, virtuoso e justo.

i) Necessário é aquilo sem o qual a pessoa não consegue viver ou se rebaixa de nível, não
conseguindo mais atuar na posição social em que se encontra. Isso é o que se chama de
necessário. Por exemplo, para uma faxineira não é necessário ter um carro, mas para um
médico é absolutamente necessário: se o médico ganhar tão pouco que não consiga nem ter
um carro ou um consultório, ou comprar os livros da profissão, mesmo que sobreviva, ele
não vai mais conseguir exercer a profissão médica, então aquilo ali é o necessário.

ii) Digno é aquilo que o indivíduo precisa para poder exercer as coisas que normalmente se
espera que ele possa fazer no seu cargo. Para um médico é digno ele ter um bom consultório,
bem aparelhado; que ele possa viajar para comparecer em congressos, atualizar-se na
profissão, fazer uma pós-graduação. São coisas que, numa situação de aperto, ele poderia
deixar de fazer num ano ou noutro, sem que por isso deixasse de ser médico.

iii) Supérfluo é aquilo que é totalmente inútil: ele está gastando, mas não precisaria em
hipótese alguma estar fazendo-o. É aquilo que está sobrando, que ele pode dar e não afeta em
nada a sua dignidade: que não o rebaixa em dignidade, nem em classe e função social.

O que a moral cristã diz é que as pessoas têm direito ao necessário e ao digno. E o que elas
conseguem que esteja na faixa do supérfluo, ainda que seja de sua propriedade, elas não
podem usar atoa para gastar com superfluidade; devem repassá-los às pessoas que estão
passando extrema necessidade.

Em outras palavras, se a pessoa ganha o necessário, o digno e o supérfluo, e depois que o


Estado lhe cobra os impostos ela ainda fica com um monte de supérfluos, aquilo é dela,
ninguém pode chegar e dizer: “Isso é supérfluo, eu vou pegar o que você tem de supérfluo
porque você não precisa disso. Vou confiscar o supérfluo”. O supérfluo lhe pertence, mas ela
não pode usá-lo para si, comprando mais outro iate, outro apartamento, fazendo uma viagem
que não iria fazer, enfim não sabendo onde gastar. Ela deve procurar aquelas pessoas que

208
estão morrendo de fome, que estão passando necessidade grave e isso tem de monte no
mundo — não é [simplesmente] dar para a igreja. É só ir procurar, ela tem obrigação de
procurar! Se a pessoa ganhou o supérfluo, ela não pode ficar com ele para si.

Aquele supérfluo são [fruto] das leis do mercado que são impessoais e tiraram do outro
indivíduo que está passando fome e colocaram onde aquela pessoa está. Na verdade, ela
mereceu aquilo porque trabalhou, mas a partir do momento em que não tem necessidade
daquilo e foi uma lei impessoal que o colocou na sua mão e arrancou do outro que está
passando fome, ela não pode ficar com aquilo: se a pessoa gastar em bobagem indo para Las
Vegas ou seja lá que outra coisa, na verdade ela está deixando o cara morrer com o dinheiro
que deveria ir para ele. Isso não é justo!

A moral diz então que temos de prestar atenção, pois se tivermos o que é supérfluo dentro
do nosso orçamento, devemos fazê-lo chegar a quem está passando necessidade extrema. Não
é a Igreja que está pedindo-o para si mesma, não é o pastor que está pedindo para ele (não
significa ter que dar para a igreja “x”). O destinatário não é uma entidade beneficente só por
ser beneficente. Devemos fazer aquilo passar para quem está sofrendo necessidade grave, e
devemos procurar quem esteja nessa situação. Dependendo do grau de superfluidade que
tenhamos, devemos montar uma instituição para ela procurar essas pessoas que estão
passando necessidade extrema e garantir que elas não vão morrer por termos ficado com o
dinheiro [que lhes era devido].

Ressalte-se que esse dinheiro é da pessoa, é propriedade dela; o uso do dinheiro é que não lhe
pertence. É ela então quem vai decidir. A pessoa não pode pegar esse dinheiro e dizer: “Eu
não quero me preocupar com esse assunto, vou doar para a CNBB e aí ela se vire”. Quem falou
que a CNBB está passando necessidade extrema? Quem falou que a CNBB vai repassar o
dinheiro para o fulano que está tendo necessidade extrema? A pessoa se livrou do negócio
porque aquilo era supérfluo e não queria se dar ao trabalho de preocupar-se com o assunto.

Não é isso que se faz! Não se pode [dar o dinheiro] para uma instituição de caridade qualquer
só porque é supérfluo. Devemos procurar quem está passando necessidade extrema, ou
garantir que ele chegue até quem está tendo necessidade extrema. Se conhecemos uma
instituição que está trabalhando com esses casos com certeza absoluta, poderíamos dar para
ela; senão, devemos procurar dentro das possibilidades. Se fosse inclusive um grande
milionário, ele teria que usar uma parte desse dinheiro para fundar alguma entidade, juntar
alguns profissionais que soubessem procurar e fazer chegar isso a quem é devido.

Existe muita gente no mundo hoje, muita gente, na América Latina, dentro do Brasil, que
está nessas situações! Estão assim porque essas pessoas nas mãos das quais foi parar o dinheiro,
pelas leis do mercado que são impessoais e pagaram exageradamente mais do que competia à
sua necessidade, elas não têm coração e discernimento, fazem chegar o dinheiro onde as leis

209
do mercado mandam. Então aquele indivíduo que objetivamente mereceria, não recebeu; e
o outro recebeu quarenta vezes mais do que precisava.

Estamos dando esses exemplos exagerados para dar uma noção clara do conceito, mas o
supérfluo não significa que seja só das pessoas podres de ricas: Rockfeller, Ford, Warren
Buffet, George Soros. Qualquer um pode ter supérfluo. O difícil muitas vezes é discernirmos
exatamente o que é. Isso requer honestidade, porque o que parece a um estranho algo
supérfluo, às vezes é necessidade. Por exemplo, para dar uma ideia: certos grandes negócios
só são feitos em grandes eventos, em festas fora do comum onde são convidadas pessoas da
elite empresarial e que não podem ser festas baratas, são festas caríssimas. Aquilo parece que
se está jogando dinheiro fora, e pode ser que seja isso mesmo. Porém pode ser que não seja;
pode ser que justamente nessas festas que os promotores fazem os maiores negócios de suas
vidas. Se for assim, a festa não é nem o digno, mas pode ser o necessário. E pode também não
ser nada disso e aquilo ser mera superfluidade de estar jogando dinheiro fora.

Como se vai saber isso? Externamente é impossível de julgar. É a própria virtude, honestidade
e sinceridade do indivíduo, o seu senso de justiça que deverá julgar isso. Um sacerdote
virtuoso e conhecedor da moral pode ajudar, mas mesmo assim a última palavra nesse caso às
vezes tem que ser do indivíduo, porque somente quem está na situação é que pode julgar
claramente o que pertence ao necessário, ao digno e ao supérfluo. Mas que existe o supérfluo,
existe! E não só em milionários, mas às vezes em pessoas comuns.

Dito isto, dentro dos limites e das possiblidades, o supérfluo tem que chegar àquelas pessoas
que estão em necessidade e que não necessariamente são instituições filantrópicas, igrejas, etc.
Isso é muito diferente da questão de dízimo, por exemplo, que as igrejas pedem. Não tem
nada a ver! Inclusive no Brasil o dízimo não é obrigatório, mas voluntário. Porém o destino
do supérfluo não é voluntário, é obrigatório e tem que ir para as pessoas que sofrem. É a
correção do mercado.

Aquilo que falamos do salário justo em relação à restituição vale também para o supérfluo.
Suponha que haja uma pessoa muito rica que empobreceu e vá se confessar. Ela sabe da lei
do supérfluo: “Nossa eu joguei todo meu supérfluo fora, nunca dei para ninguém que estava
em extrema necessidade”.

O supérfluo é uma obrigação de caridade, não de justiça, no seguinte sentido: seriam


obrigações de justiça aquelas que fazem parte do ofício ou derivam de um contrato, de um
acordo claro. Neste sentido, quando alguém contrata uma pessoa, o acordo é o trabalho a ser
desempenhado pelo trabalhador e o salário a ser pago pelo patrão. Se o salário era justo ou
não, o que ambos contrataram é aquilo. Salário justo é uma obrigação de caridade, o que não
quer dizer que não seja obrigatório. O pagamento do salário estipulado é uma obrigação de
justiça.

210
O que somos obrigados a devolver num caso de roubo são as obrigações de justiça. As
obrigações de caridade não são objetos de devolução, não têm obrigatoriedade de devolução.
Então o indivíduo que pagou o salário estipulado, mas não o justo, não é obrigado a devolver
o salário justo, porém é obrigado a pagar o salário justo dali para frente. Já o fulano que nunca
destinou o supérfluo aos verdadeiramente necessitados, quando se arrepende e se confessa,
não é obrigado a devolver o supérfluo, pois aquilo não era obrigação de justiça estrita.

Diferente seria se ele tivesse roubado. Por exemplo, um político corrupto que roubou bilhões
e ficou pobre e não tem mais poder e vai se confessar, é obrigado a devolver aquilo dentro das
possibilidades, porque era obrigação de justiça: ele tirou o que não devia.

5. Do dinheiro adquirido com atividades moralmente ilícitas

Finalmente tem uma última coisa que, pela lógica, segue a isso. É quando uma pessoa ganha
dinheiro com operações ilícitas, porém a operação ilícita não consiste no roubo, mas em
outras coisas. Por exemplo: um médico que passou a vida fazendo abortos e ficou milionário;
ou a mulher que se prostituiu e ganhou uma bolada de dinheiro; ou o fulano que vendeu
drogas a vida inteira e ganhou um montão de dinheiro.

Ele não roubaram, a atividade ilícita não consistia no roubo. O médico fez o aborto pelo valor
que normalmente se cobrava e o aborto era tecnicamente correto; a mulher se prostituiu e
cobrou aquilo que uma prostituta cobra, ou o que ela quis cobrar e o fulano livremente
aceitou; o sujeito vendeu a droga pelo valor de mercado. O ilícito aí está no aborto, na
prostituição e na droga, não na cobrança.

Se estas pessoas ficaram milionárias e se arrependem, pedem para serem absolvidas em


confissão e são sinceras e vão levar uma vida cristã, aquele dinheiro que ganharam é delas. A
droga custava tanto e ele vendeu pelo preço que valia: o erro estava em vender droga, mas o
dinheiro é dele. O aborto que o médico fez era tecnicamente correto e era tanto que custava.

Obviamente essas pessoas deveriam, por caridade, procurar sanar os prejuízos que deram, mas
às vezes não é possível. No caso do aborto, como você vai sanar o prejuízo? A vítima morreu
e não tem herdeiros, então não tem o que fazer, o dinheiro é do médico. No caso das drogas,
por caridade ele poderia às vezes pagar o tratamento de uma pessoa que caiu na dependência
e está querendo se livrar daquilo. No caso da prostituta ela não pode fazer nada: o prejuízo
que ela causou não tem remédio, e não parece que ela seja obrigada a custear o tratamento
das doenças venéreas que provocou — provavelmente ela também teve doenças venéreas
provocadas e o fulano sabia muito bem disso. Então esse dinheiro não é para ser devolvido.

211
É óbvio que, quando o dinheiro é muito grande, para remediar a vida errada que tiveram,
essas pessoas deveriam procurar aplicá-lo de uma maneira a tentar sanar os erros que fizeram.
Como o doutor Bernard Nathanson que fez os vídeos de “O grito silencioso”. Um fulano
que tivesse sido vendedor de drogas e estivesse milionário por isso, deveria fazer alguma
fundação para tentar minimizar o problema que ele ajudou a propagar.

Mas estritamente falando não existe a obrigação de devolver, porque não houve roubo.
Haveria a obrigação de devolver se o fulano tivesse roubado. Se tivesse, por exemplo, cobrado
um aborto e não tivesse feito. Na verdade, ele não tem obrigação de fazer, ele não poderia ter
feito isso nunca. Mas se cobrou o aborto e não o fez, ele enganou a pessoa. Nesse caso sim ele
deveria procurar o paciente e devolver-lhe o dinheiro, porque fradou o paciente. Ele não
poderia fazer o aborto em hipótese alguma, mas num caso desses o dinheiro foi cobrado
ilegitimamente. Se o fulano vendeu droga e não era droga (ele cobrou o preço alto como
droga, mas era farinha), ele tem que devolver esse dinheiro, porque isso é roubo.

Vejamos uma observação a mais no caso da prostituta e do médico que fez os abortos.

Imagine que a prostituta se prostituiu e o cliente não pagou. Aí ela se arrependeu e foi se
confessar. Ela pode ser absolvida, deve prometer que nunca mais irá se prostituir, mas ela tem
o direito de cobrar do fulano que não pagou, porque ela fez o serviço e ele foi combinado,
então o dinheiro era dela, ela tem o direito de cobrá-lo. Inclusive, se fosse uma atividade legal
(coisa que não seria correto) e ela pudesse processar o indivíduo, mesmo depois de
arrependida e de ter se confessado, ela poderia processar o fulano que não pagou pelo serviço
prestado.

A mesma coisa o indivíduo que fez o aborto e a cliente não pagou. Ele poderia cobrar. É uma
situação meio curiosa, mas o erro não está em receber o dinheiro, mas em fazer a coisa
(prostituição, aborto). E o matador de aluguel, aquele fulano que é cangaceiro e foi
contratado por um sujeito para matar alguém. Ele foi lá, arriscou a própria vida, pois podia
ter sido morto, e matou o indivíduo. Depois chorou, arrependeu-se, pediu perdão a Deus, só
que o contratante não lhe pagou. Ele pode voltar lá e exigir o pagamento do serviço.

O bom seria, inclusive para poder contribuir para o desenvolvimento da própria consciência,
que essas pessoas depois não usassem esse dinheiro para coisas egoístas e pessoais. Ele arriscou
a própria vida, mas matou alguém! Seria bom que essas pessoas usassem o dinheiro de uma
maneira altruísta: não para dá-lo ao padre que ouviu a confissão, nem para a igreja
necessariamente, mas para alguém que estivesse realmente precisando de uma ajuda. E se essa
pessoa que foi morta deixou uma família pobre e morrendo de fome, aí o sujeito tem a
obrigação de dar o dinheiro para a família.

212
No caso do aborto, quem morreu não tinha família. A única coisa que ele tirou do indivíduo
que morreu é a sua vida e isso ele não conseguirá restituir; então o médico não está devendo
mais nada a ninguém. Agora, o cangaceiro que matou um pai de família e deixou uma família
pobre, que está passando necessidade por causa do assassinato, tem que devolver o dinheiro
que recebeu. E não só o dinheiro que recebeu: se ele não recebeu dinheiro nenhum, mas a
família está passando necessidade extrema por causa do assassinato que ele fez, ele deve dar o
seu próprio dinheiro.

Porém, se ele matou um indivíduo que era rico e milionário e a família não está passando
necessidade nenhuma, a família pode até estar agradecida “Que bom, mataram meu marido,
até que enfim!”, aí ele não tem que devolver nada a ninguém. Ele não pode devolver a vida
do indivíduo que foi morto. O dinheiro lhe pertence, porque ele se arriscou e pode ir lá
cobrar. Porém ainda assim, se o [ex-cangaceiro] não é um pobre coitado, se tem do que viver,
seria bom que ele fizesse alguma caridade evidente para que não usasse um dinheiro
manchado de sangue para si mesmo, que poderia provocar uma distorção da consciência.
Mas estritamente falando é um direito dele: ele arriscou a própria vida, a operação custou
tanto, então ele tem o direito de receber.

Inclusive, para ser mais exato, se ele for preso, condenado e estiver na cadeia, ele tem o direito
de receber aquele dinheiro na cadeia, porque foi o preço que ele cobrou: o trabalho vale tanto.
Se ele está na cadeia, foi preso, está pagando, em sã justiça ele poderia dizer: “Tudo bem, estou
preso, vou pagar tantos anos pelo que eu fiz. Mas o serviço custou tanto e o cara não me pagou.
Eu quero meu dinheiro, quero que coloquem na minha conta e quando eu sair da cadeia eu
quero usar aquilo ali”. Isso aí é bastante claro.

213
Aula 13 – NATUREZA DA MORAL II

Índice
1. Das diversas finalidades da teologia moral
A) Para evitar o pecado grave
B) Para praticar as virtudes
C) Para desenvolver a virtude da prudência
D) Para ordenar todas as ações humanas à vida espiritual

1. Das diversas finalidades da teologia moral

A) Para evitar o pecado grave. — Antes de falarmos do oitavo mandamento, queríamos


relembrar quais são os motivos e as finalidades de estudarmos teologia moral. No fundo,
grande parte da preparação para o sacramento da confissão é moral, mas essa preparação tem
que servir também para que possamos iniciar uma vida cristã, não é apenas para a primeira
confissão. Vale a pena então entendermos o sentido dessas coisas todas que estamos
aprendendo.

Dissemos que o primeiro sentido de aprendermos moral é o de aprendermos a evitar o pecado


grave, porque em todas as nossas atividades sempre existem coisas que são mortais,
definitivas, letais, que se forem feitas o sujeito não pode mais participar daquela atividade. E
isso não é só no campo religioso.

Recentemente houve um desastre de avião, onde parece que o piloto quis se suicidar e jogou
o avião com todos os passageiros em cima de uma montanha. Isso é mortal! Se uma pessoa
tem problemas psiquiátricos, em hipótese alguma uma companhia pode aceitá-la com esses
problemas. Ele pode servir para outra profissão, mas não para cirurgião, nem pode ser piloto
de avião. Então isso é uma condição sine qua non.

Em todas as atividades existem coisas sine qua non que se as fizermos estamos
automaticamente incapacitados para aquilo, pois inviabilizamos a coisa em si. O pecado
mortal é exatamente isso: são aquelas coisas que vão diretamente contra o miolo do
evangelho, que rompem a amizade com Deus. Isso nós temos que aprender com a moral
desde o início. Em toda atividade que vamos exercer, as pessoas têm que primeiro nos explicar
aquilo que em hipótese alguma deve ser feito.

214
Um diplomata tem que ter uma linguagem polida, estudada, não pode externar sinceramente
os seus sentimentos diante da pessoa que está representando. Isso, que em outras profissões
não significa nada, para um diplomata seria um “pecado mortal”. Deve-se explicar então para
quem vai seguir essa carreira, que existem essas condições.

Via de regra o que é mortal no matrimônio em si (não enquanto sacramento) é a fidelidade.


Sendo assim, a pessoa que casa deve entender que está se dedicando exclusivamente ao seu
companheiro e que aquilo não é para ser compartilhado com mais ninguém. Se o indivíduo
não for fiel a isso, irá romper o matrimônio (dizemos isso do ponto de vista natural).

Logo, a primeira coisa que temos de aprender com a moral são aquelas regras, digamos assim,
de “etiqueta sobrenatural” que não podemos romper em hipótese alguma se quisermos seguir
uma vida em direção à comunhão com Deus. Em linhas gerais elas estão naquelas rubricas:
de amor a Deus, de benevolência para com o próximo, da castidade e daqueles mandamentos
que a Igreja exige sob pena de pecado grave.

B) Para praticar as virtudes. — Feito isso, porém, a moral existe também para ajudar-nos
a desenvolver as virtudes. Não é só para evitar o pecado grave, isto é, aquelas coisas que não
podemos em hipótese alguma pensar em incorrer, senão estaremos demitidos.

Praticar as virtudes é uma coisa importantíssima porque na verdade a finalidade do


cristianismo é que possamos alcançar uma vida de comunhão com Deus, de intimidade
divina, onde participemos da natureza divina e alcancemos aquilo que, em certas passagens
da Sagrada Escritura no Novo Testamento, chama-se o Espírito Santo que é concedido àqueles
que creem em Cristo e noutros lugares chamamos de contemplação infusa.

Para podermos alcançar uma prática de espiritualidade que possa chegar ao que a Sagrada
Escritura e a Teologia chamam de contemplação nós precisamos em primeiro lugar ordenar a
nossa psicologia, ordenar as nossas paixões, ordenar os nossos maus hábitos que impedem
justamente que possamos fazer isso. Nós o fazemos através da prática das virtudes, já que as
virtudes ordenam a nossa psicologia.

De maneira especial há algumas virtudes que são muito importantes para isso: i) a própria
castidade, que ordena o concupiscível; ii) o respeito ao próximo, que ordena o irascível; iii)
e a justiça, que nos faz tomar consciência do outro enquanto outro que, em certo sentido, é
o início de um antídoto contra o egoísmo. Quando a pessoa nasce ela tem uma pequena
consciência do outro enquanto tal. Começar a enxergar o direito alheio como uma coisa
autônoma, como algo que é de alguém semelhante a si mesmo para poder amá-lo como a si
mesmo, é algo que exige uma virtude especial que chamamos de justiça.

215
O que estivemos vendo até agora são critérios que no fundo desenvolvem em nós o senso da
castidade, do respeito ao próximo e da justiça. Nós percebemos que há pessoas razoavelmente
boas que não conseguem enxergar todos aqueles critérios sobre o roubo, o supérfluo, o salário
justo. Há pessoas boas que dão salários injustos, podendo dar um salário justo; elas não
conseguem se colocar na pele do outro. Essa incapacidade de enxergar realmente o direito do
outro é algo que supõe uma desordem interior, que depois nos impede de desenvolver uma
espiritualidade mais profunda.

Então o objetivo da castidade não é apenas um pecado a ser evitado, mas uma virtude a ser
cultivada, que irá ordenar nossas paixões internas de uma maneira harmônica, com uma
finalidade maior que é a busca da contemplação. O respeito ao próximo também é a mesma
coisa: as pessoas que se irritam com facilidade e desrespeitam o próximo, normalmente têm
uma mente extremamente estreita, elas nunca vão entender o que é ordenar-se a uma vida
que busca a contemplação, como está explicado no evangelho onde se fala de Marta e Maria.
Também a pessoa que não consegue enxergar o que é justo dar ao próximo, no fundo é cega.
Ela não vai conseguir entender o que é devido à sua própria natureza, que é o maior de todos
os bens: Deus. Se não conseguimos enxergar um direito claro e evidente de um próximo que
muitas vezes está em situações extremas, jamais conseguiremos perceber que nós mesmos
estamos numa situação mais extrema (espiritualmente falando) do que aquela que vemos no
outro.

Por isso, o crescimento nessas virtudes é essencial para que possamos nos dispor àquilo que é
a verdadeira razão de existirmos, ou seja, o que Jesus fala no evangelho de São Lucas quando
diz à Marta “Marta, Marta, tu te preocupas com muitas coisas, mas poucas coisas são
necessárias, na verdade só é necessária uma, e Maria escolheu a melhor parte”.

Essa “uma só” é resultado de uma vida dedicada à espiritualidade, onde buscamos alcançar
uma comunhão com Deus através das virtudes da fé, esperança e caridade. Mas na prática
isso é muito complicado porque nós somos psicologicamente desordenados, e a raiz dessa
desordem é justamente a falta dessas virtudes que ordenariam a nossa psicologia. A castidade
ordenaria o concupiscível, o respeito ao próximo ordenaria o irascível, e a justiça ordenaria a
vontade.

Portanto, a segunda função de [estudarmos] a moral é aprendermos uma série de coisas


dentre as quais o miolo é desenvolver as virtudes, que são principalmente estas três.

C) Para desenvolver a virtude da prudência. — Existe depois uma outra tarefa da moral
que, de certa maneira, já podemos enxergar nessas coisas que andamos vendo. É a seguinte:
uma vez que haja as virtudes, quando vamos agir para fazer alguma coisa, nós vamos utilizar
essas virtudes. Todo ser humano, ao agir em algo que tenha valor moral (e praticamente todas

216
as ações humanas significativas têm valor moral, direta ou indiretamente), põe em marcha
essas virtudes.

Podemos comparar a uma orquestra que, para executar uma música, precisa de muitos
instrumentos e que cada um dos instrumentos seja tocado por virtuoses. Mas não basta que
sejam virtuoses; é preciso ter um maestro que possua uma virtude diferente da dos executantes
que é a virtude própria do maestro, qual seja de ordenar todos eles em direção à harmonia da
música que está sendo executada. Na vida moral existe também uma virtude dessas que está
na inteligência, a qual chamamos de prudência.

Em outra dessas aulas comentamos que essa prudência é o que chamaríamos na linguagem
de hoje como sabedoria, que antigamente não se chamava assim, pois sabedoria antigamente
era uma coisa bem mais elevada, da qual o homem de hoje praticamente não tem mais
consciência.
A “sabedoria” do homem de hoje é aquele indivíduo que, quando o consultamos, ele sempre
explica como resolvermos um problema. É o homem “sábio” que tem todas as respostas para
qualquer situação.

● Eu devo casar com essa pessoa ou com a outra? O sujeito então vai lá consultar com o
“sábio”e ele lhe explica: “Case com essa e não com aquela, por causa disso, disso e
disso”. E o sujeito percebe que ele está certo, faz aquilo e se dá bem.
● Eu devo arrumar esse emprego ou outro? Aí ele explica como é e o sujeito percebe que
deve seguir a orientação dele, porque se dará bem.
● Eu briguei com uma pessoa e não sei como fazer as pazes; se eu chegar até ela, vai ter
mais briga. Aí ele ouve a situação do sujeito, vê a sua história e diz: “Olha, você vai
fazer assim” — e lhe diz exatamente os passos. O sujeito faz o que o “sábio” lhe disse
e consegue fazer as pazes com a pessoa.

Esse é o que hoje chamaríamos de “homem sábio”, mas a mil anos atrás nós o chamaríamos
de “homem prudente”. Hoje, prudência significa cautela, então as coisas mudaram de
sentido. O que hoje chamamos de prudência, na antiguidade se chamaria de cautela; o que
chamamos de sabedoria, na antiguidade eles chamariam de prudência. E ao que na
antiguidade se chamava sabedoria, hoje não temos equivalente, pois o homem de hoje
desconhece esse conceito, é uma coisa muito mais alta.

Então a execução de uma ação não envolve apenas a virtude. Além de várias virtudes, ela
[precisa] envolver normalmente o “maestro” que saiba fazer com que cada instrumento
toque afinadamente e tão somente a parte que lhe cabe naquela ação específica. Isso é o que
chamamos de prudência, que seria o sábio [na linguagem moderna].

217
Se uma pessoa é virtuosa, isso não basta para fazer as coisas direito. Por exemplo: a pessoa
precisa fazer uma denúncia. Um homem virtuoso vai, faz a denúncia de qualquer jeito. Põe
toda sua vontade e coragem, não tem medo de nada, mas ele faz de um jeito que depois a coisa
fica pior do que se não tivesse denunciado. O homem prudente, se também for virtuoso, sabe
exatamente o jeito de fazer aquela denúncia de uma maneira exata, concreta, de modo que
aquilo tenha sucesso. Não é o homem cauteloso. Ao contrário, o homem cauteloso é aquele
que põe cautela em tudo e às vezes acerta, às vezes erra. Na verdade, ele é um cego que possui
cautela, mas não tem o discernimento. Algumas vezes a sabedoria manda não ter cautela,
outra vezes manda ter uma cautela diferente. A “sabedoria” ou a prudência é o maestro e nós
desenvolvemos essa virtude.

A justiça é da vontade, a castidade é do concupiscível e o respeito ao próximo é do irascível.


A prudência é da inteligência, não de uma inteligência especulativa, mas prática. O exemplo
do maestro é muito bem colocado: o maestro entende muito de música, mas para tocar aquela
partitura. Ele não é feito para escrever a partitura, isso é coisa do compositor. O compositor
é o teórico, o maestro é o que sabe agora coordenar os músicos (as virtudes) para tocar uma
sinfonia. O compositor pode até ser fantástico, mas se for reger uma orquestra ele pode ser
um desastre.

Se a coisa fosse certa mesmo, os bons compositores deveriam ter sido maestros antes, assim
não seriam um desastre na hora de reger como maestros. Mas de qualquer maneira, são coisas
diferentes. Essa “sabedoria” que se chama prudência é uma sabedoria prática. Como a
sabedoria prática é da inteligência, ela exige um treino da inteligência e esse treino
aprendemos em parte pela reflexão e em parte pelo estudo. Na verdade, principalmente pelo
estudo, se tivermos o material correto. Uma pessoa pode tornar-se um bom maestro pela
prática, mas muito mais se estudar caso, exista uma cultura musical a ser passada ao maestro.

No caso, todos esses critérios que estávamos dando sobre a teologia moral não são apenas
uma burocracia para saber quando algo é pecado grave ou não. Se compreendemos bem esses
critérios, veremos que eles não estão só tentando determinar o que é pecado grave, mas
também tentando mostrar como praticamos essas virtudes. E principalmente estão tentando
mostrar como desenvolver os critérios que a prudência vai necessitar para agir concretamente.

É algo que temos de aperfeiçoar mais tarde através do estudo da moral, se quisermos buscar
a santidade. O estudo da moral não é apenas para os sacerdotes que ouvirão confissão, para
julgarem os casos. Ela serva para desenvolvermos a virtude da prudência, a fim de sabermos
exatamente como coordenar as virtudes com fineza e então acertarmos em cada caso, como
se fosse uma orquestra harmoniosa tocando.

Aproveitando que vamos nos preparar para a confissão (então temos que nos arrepender dos
pecados graves e confessá-los, com a resolução de não os fazer mais), o modo como estivemos

218
expondo essa preparação já dá uma ideia de algumas coisas que devemos fazer depois: temos
que desenvolver a prudência. A prudência se desenvolve através do estudo da moral e da
prática na utilização desses critérios na nossa vida, avaliando-os, pensando-os e
amadurecendo-os.

Como imaginamos que se forme um bom maestro: ele tem que aprender toda a teoria, toda
a prática, os conselhos, os critérios que os mestres anteriores tiveram, mas depois ele deve
pegar uma orquestra várias vezes e ir aplicando aquilo, percebendo ele mesmo como se faz.
Deve perceber principalmente como proceder com cada um dos músicos, que são cada uma
das virtudes, porque as virtudes não são iguais de uma pessoa para outra.

As virtudes, no seu gênero, são iguais, mas algumas pessoas têm uma facilidade natural para
a castidade que outras não têm. Algumas pessoas têm uma paciência às vezes até exagerada,
de modo que precisam ser um pouquinho mais duras, apesar de não ser o que normalmente
acontece; normalmente acontece justamente o contrário. Portanto, cada maestro tem os
próprios músicos que tem de harmonizar individualmente. Para isso não há regra geral, nós
temos que aprender na prática. Mas de qualquer forma, nós aprendemos a prudência.

D) Para ordenar todas as ações humanas à vida espiritual. — Daí vem a coisa mais
importante de todas, que é a última das finalidades. A primeira finalidade da moral é
evitarmos o pecado grave, custe o que custar. A segunda é aprendermos a desenvolver as
virtudes-chave, que modificam completamente a psicologia humana, harmonizando-a e
dando equilíbrio emocional. O homem casto, paciente e justo, é uma pessoa totalmente
equilibrada. Porém, para fazer as coisas direito, ele ainda precisa de uma virtude que se chama
prudência. A prudência vem principalmente pelo estudo e a reflexão, baseada nesses
princípios e outras coisas que aprendemos.

Mas existe uma coisa que é a maior de todas, inclusive é a verdadeira e última função da moral.
É o seguinte: O que é realmente a prudência? Ela é o maestro capaz de tocar a música certa,
na hora certa, do jeito certo. Então a prudência é aquela virtude que, quando o sujeito precisa
executar uma ação utilizando as virtudes que possui, ele sabe exatamente como fazer as coisas,
como levar aquilo a um bom desempenho. Ele tem a noção do que é para ser feito e dos meios
disponíveis, e é capaz de adequar uma coisa à outra, inclusive as circunstâncias e etc.

Supondo, por exemplo, que estivéssemos numa guerra e precisássemos de um esforço


diplomático. Se o homem prudente tiver o diplomata “A” ele irá orientá-lo a agir de uma
determinada forma, porque conhece o modo das virtudes do diplomata “A”. Se tiver o
diplomata “B”, que é uma pessoa diferente, com virtudes e um jeito diferente de ser, ele vai
aconselhá-lo a agir de uma maneira diferente. Dos dois jeitos vai dar certo. Se o homem trocar
os papéis e dar o conselho que era destinado ao “B” para o “A”, estoura uma guerra.

219
Então a prudência, que nos dias de hoje chamaríamos de sabedoria, é uma maneira de ordenar
os meios (que são as virtudes) a uma determinada ação. É o maestro necessário à orquestra;
ou é o executivo de uma empresa que, se tiver bons funcionários, consegue levar aquela
empresa a uma elevada eficiência.

Do jeito como estamos falando, isso vale para pequenas ações: essa guerra, numa diplomacia;
esse plano econômico, para uma empresa; essa briga de casal, entre duas pessoas; ou
simplesmente fazer determinadas boas ações. Acontece que a vida humana é um todo
coerente e, como um todo, ela tem uma meta, não é só cada pequena ação. As pequenas ações
do ser humano ordenam-se a outras maiores, e outras maiores ordenam-se a outras, e no fim
toda a vida humana se ordena a um objetivo.

Nós sabemos que o objetivo da vida humana é aquele que Jesus explicou para Marta,
interpretando o que Maria estava fazendo: Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será
tirada. É a única coisa necessária, ou seja, a vida espiritual, que se realiza pelo exercício das
virtudes da fé, esperança e caridade, através dos sacramentos, para levar a uma comunhão
íntima com Cristo e, através disso, com a Santíssima Trindade. Essa comunhão autêntica
com Deus é que é a finalidade da vida humana. Para isso, exige-se uma prática profunda de
espiritualidade.

Supondo que a pessoa esteja em estado de graça, que ela queira essa realidade e saiba o que é;
o que normalmente impede isso é justamente a desordem do indivíduo. Nós estamos imersos
numa sociedade que já não favorece isso. E mesmo se favorecesse, a nossa harmonia interior,
o nosso equilíbrio emocional não é suficientemente grande para que possamos nos dirigir a
isso.

É o que acontece comumente: as pessoas se enrolam com todas as coisas. É o que acontecia
no caso de Marta e Maria: Marta estava enrolada com a cozinha, estava em desespero com a
cozinha, como se a cozinha fosse uma bomba atômica pronta para explodir. Ela não
conseguia ter uma cozinha e fazer o que Maria estava fazendo. Maria certamente era capaz de
colocar a cozinha em ordem, mas seria capaz de fazer a coisa certa, já que ela sabia colocar as
primeiras coisas em primeiro lugar. Marta, perto de uma cozinha, perdia a cabeça. E é isso
que nós fazemos: perto das coisas com que estamos envolvidos nós perdemos a cabeça. Está
faltando um maestro!

Esse maestro é justamente a prudência. A maior tarefa da prudência é ordenar a nossa vida à
vida de contemplação, seja qual for o estado de vida: bispo, padre, monge, advogado, médico,
professor, dona de casa, filho de família, carteiro, lixeiro, faxineiro, professor leigo de teologia,
seja lá o que for! Supondo que existam as demais virtudes (porque senão não adiantaria nada,
como não adiantaria nada ter um maestro sem os músicos ou ter músicos que não prestam),

220
é a virtude da prudência que deve orientar tudo isso para lá infalivelmente, porque é a própria
razão de existir. Se não nos encaminharmos para isso, nós demos com os burros n’água!

Só que não são duas prudências diferentes, é a mesma virtude. A mesma virtude da prudência
que faz essas pequenas coisas é que faz a grande. Quer dizer, a virtude do copiloto é a mesma
do piloto, e a virtude do maestro auxiliar é a mesma do maestro. É a mesma coisa, mas um
está fazendo pequenas tarefas e o outro é responsável pelo conjunto, mas é exatamente a
mesma coisa.

O copiloto ainda não tem maturidade para ser piloto, o maestro auxiliar ainda não tem
maturidade para ser maestro. É como um estagiário de direito: antes de pegar uma causa, ele
vai pegando pequenas coisas que vão ajudando; mas o estagiário tem que ter o mesmo
conhecimento do direito, não são direitos diferentes. E depois que o fulano já é advogado, ele
ainda vai pegar algumas causas, não vai imediatamente dirigir o escritório. Só quando ele
realmente estiver consumado é que então será enviado para dirigir o escritório inteiro de
advocacia, quando já tiver a visão de conjunto.

Sendo assim, a prudência que fará com que ordenemos todas as virtudes para permitir a vida
de contemplação, é a mesma que exerce sua sabedoria nas pequenas causas. Nós temos que
aprender a ter essa devida prudência, para podermos alcançar a outra. O fulano que não sabe
gerir virtuosamente a vida em família, a vida em paróquia, que não sabe resolver com
sabedoria todas essas coisas, não vai nunca resolver o seu primeiro problema que é ordenar
tudo isso à vida de contemplação.

A vida de contemplação depende de outras virtudes que não são a castidade, o respeito ao
próximo e a justiça, nem sequer a prudência. A vida de contemplação depende basicamente
do exercício profundo e constante das três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. E isso
não é no céu, mas aqui na Terra, enquanto estivermos vivos, no meio das nossas atividades
naturais. As demais virtudes têm que organizar a nossa vida de maneira que nos permitam
desenvolver a fé, esperança e caridade na contemplação.

Se o sujeito não tiver a castidade, se não tiver a justiça, o respeito ao próximo e as demais
virtudes, todas coordenadas pela prudência, de modo que ela orquestre tudo para permitir
que ele tenha com calma a consciência de que o principal é a fé, esperança e caridade; sem
todas essas virtudes básicas dando um equilíbrio emocional para o indivíduo poder fazer
realmente a coisa que está em primeiro lugar, e sem a coordenação dessas virtudes todas que
depende da prudência, simplesmente o sujeito não consegue rezar: não acha tempo, não é
sistemático e acaba se [atrapalhando]3 completamente.

3
Preferi colocar o verbo "atrapalhar" no lugar de "perder-se" para não dar margem à interpretação de que sem a
prudência o sujeito pode "perder-se eternamente".

221
Isto posto, tudo isso que estamos vendo, essas regras, esses critérios, essas coisas que para uma
pessoa superficial parecem burocracia, ou alguns até podem achar que isso só serve realmente
e em toda sua profundidade para os sacerdotes que ouvirão confissão, na verdade tudo é para
que possamos desenvolver uma virtude chamada prudência, aquela que vai ordenar a nossa
vida para permitir um exercício profundo da fé, esperança e caridade na vida espiritual, que
nos leve a alcançar uma comunhão com o Cristo e, através dele, com a própria Santíssima
Trindade, a quem ele chama de Pai.

Frequentemente, quando Jesus fala do Pai ele não está falando unicamente do Pai, mas da
Santíssima Trindade! Não porque não esteja falando do Pai, mas porque o Pai, o Filho e o
Espírito Santo não são deuses diferentes que possamos separar; eles são um só Deus. Se são
um só Deus, onde está o Pai também está o Filho, e onde está o Filho está o Espírito Santo, e
onde está qualquer um dos três, também estão os outros juntos. Com isso, ao dizer que
através da permanência no seu amor ele nos levará ao Pai, Jesus está querendo dizer que irá
nos levar à vida de comunhão com toda a Santíssima Trindade. É com o Pai, mas onde está o
Pai, está o filho e o Espírito Santo também.

Contudo, na prática, como somos de carne e osso e estamos nessa vida onde há roubos,
mulheres, desrespeitos, situações concretas que devemos saber organizar, mas
frequentemente enlouquecemos como Marta enlouquecia na cozinha, se não possuirmos
essa virtude da prudência desenvolvida num grau extraordinário, não vamos conseguir
organizar a nossa vida de tal maneira que possamos agir de modo coerente com o
ensinamento de Cristo, de que no fundo só existe uma única coisa necessária, a única que
nunca nos será tirada.

A causa da contemplação não é a prudência, mas as virtudes da fé, esperança e caridade.


Porém, se soubermos organizar as primeiras coisas, supondo que tenhamos as virtudes e que
tenhamos abandonado o pecado grave, é a prudência que vai ordenar a nossa vida a fim de
que a fé, esperança e caridade tenham espaço para [exercer] uma vida profunda dentro de
nós.

Por isso é muito importante nós não perdermos de vista esse critério, porque essa é a razão de
termos de ir aprofundando essas coisas. No momento presente, como provavelmente o
objetivo próximo será um exame de consciência para a primeira confissão, devemos nos
concentrar totalmente em abandonar de uma vez para sempre o pecado grave,
definitivamente. Mas era importante vermos que isso não era uma regra burocrática
simplesmente para a confissão; não é uma regra burocrática sequer para saber que os pecados
foram apagados: “Ah, eu fiz como manda a regra, então agora estou perdoado”.

Tomar uma resolução de, através da graça, não só ser perdoado, mas abandonar
definitivamente o pecado grave é muito mais do que isso! Porém, mais ainda nós temos de

222
perceber que depois devemos nos aprofundar nisso através do estudo, onde nos
concentramos nesses pontos.

Primeiro aprender exatamente quais são as virtudes fundamentais, que puxam todas as
outras, que são exatamente as chamadas virtudes cardeais. Veremos que na teologia fala-se de
virtudes cardeais e que elas não estão só nomeadas dessa maneira nas Sagradas Escrituras
(estão exatamente assim no livro da Sabedoria), mas também nos livros dos filósofos gregos.
São elas: i) a paciência para com o próximo (semelhante a essa há uma virtude cardeal que se
chama fortaleza, que está no irascível); ii) a castidade, que está no concupiscível; iii) a justiça;
iv) e a prudência. Elas puxam, digamos assim, todas as outras.

Portanto, devemos aprofundar isso para sabermos exatamente aquelas coisas em que
precisamos insistir e nos aprofundar. Não basta termos abandonado o pecado grave.
Precisamos ter um grande amor à castidade, um grande amor à paciência — exercitá-la
verdadeiramente. Precisamos ter um senso de justiça que esteja completamente tomado
dentro de nós. E a partir disso, uma vez que tenhamos essas virtudes e as demais que forem
sendo organizadas em volta delas, devemos ir desenvolvendo pelo estudo a virtude da
prudência, para nos tornarmos homens sábios (no sentido moderno de homem sábio).

Todos esses critérios já ajudam muito a perceber como se desenvolve a prudência: ela vai se
desenvolvendo ao longo do tempo, ao longo da vida, como o vinho vai amadurecendo no
tonel. Mas tem que chegar um momento em que a prudência seja tão profunda, que se torne
o maestro não só de uma ação, mas da nossa vida em conjunto, ordenando-a à única coisa
necessária.

Com essas coisas, imaginamos ter deixado um pouco mais clara a importância do
desenvolvimento da moral na nossa vida.

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Aula 14 – OITAVO MANDAMENTO

Índice
1. Relação do oitavo mandamento com a virtude da justiça
2. Matéria grave em relação ao oitavo mandamento
A) Calúnia
B) Difamação
C) Julgamento temerário

1. Relação do oitavo mandamento com a virtude da justiça

Vamos agora falar algo sobre o oitavo mandamento, que conhecemos como “Não levantar
falso testemunho”. Frequentemente nos livros de moral este mandamento é assemelhado ao
sétimo. No sétimo mandamento que preceitua a não roubar, através do roubo estamos
tirando a propriedade alheia; no oitavo mandamento que preceitua a não levantar falso
testemunho, estamos tirando a fama alheia.

E coloca-se que, de modo geral, tirar a fama de uma pessoa é mais grave do que tirar-lhe as
posses, por um motivo muito simples: se alguém rouba a casa do fulano, mas ele tem uma
reputação de homem honesto, bom, trabalhador, ele arruma outro emprego e monta outra
casa; no fundo o sujeito perdeu apenas uma casa, não perdeu tudo. Agora, se a pessoa perder
a fama, de certa maneira ela perdeu tudo, porque o lugar dela na sociedade depende da fama
que possui.

Quando estamos nos referindo à fama não significa o fulano ser famoso e conhecido, ou ser
desconhecido e ignorado, não é esse tipo de fama. A fama de que estamos falando é a de, ao
ser conhecido, as pessoas constatarem que o sujeito é uma pessoa honesta, virtuosa, confiável.
Então ele pode ter uma boa fama e ser um ilustre desconhecido, ou pode ser uma pessoa
famosa e não ter fama nenhuma no sentido moral.

Noutras palavras, se uma pessoa é famosa, conhecida por todos, mas todos sabem que ela não
presta, essa pessoa não tem fama nenhuma. Se ninguém a conhece, mas todos os que estão
perto dela atestam de joelhos que se trata da pessoa mais honesta do mundo, e se alguém
ignorando que ela existe, souber da sua existência e fizer uma pesquisa constatando que é de
fato uma pessoa honesta e confiável, a fama dela é enorme.

224
É isso que permite a vida em sociedade. Quando as pessoas confiam no outro porque ele tem
construído uma fama de homem justo, honesto, competente, sincero, confiável, etc., ele
consegue fazer qualquer coisa: um empréstimo, uma doação para começar um trabalho, caso
tenha perdido tudo; se já tem um trabalho, ele consegue bons contratos, porque as pessoas
confiam no seu produto, na sua palavra.

Alguém assim nunca estará em maus lençóis, sempre terá amigos que o ajudem ou pessoas
que estejam dispostas a fazê-lo. Ao contrário, quem tem uma péssima fama está “roubado”,
não consegue fazer absolutamente nada, pois perdeu a coisa mais preciosa do mundo, mais
do que qualquer propriedade. É por isso que muitas vezes os fulanos que saem de um presídio
depois de terem cumprido longas penas por crimes horríveis não conseguem reconstruir a
vida; e isso não porque não sejam pessoas competentes do ponto de vista profissional, mas
porque perderam completamente a fama.

Portanto, o sétimo mandamento proíbe que causemos dano à propriedade alheia. O oitavo
mandamento proíbe que causemos dano à fama alheia. No seu gênero, tirar a fama é mais
grave do que tirar a propriedade, por conta disso que acabamos de falar. Então o sétimo e o
oitavo mandamento estão profundamente relacionados com a questão da justiça.

Frequentemente, o principal aspecto envolvido quanto ao respeito ao próximo é a questão


do descontrole do irascível. O sétimo e o oitavo mandamento envolvem questão de justiça.
Inclusive, assim como no sétimo, a quebra do oitavo mandamento exige a restituição da fama,
exatamente por causa da justiça. No sétimo mandamento, para o sujeito que roubou ser
perdoado, não basta pedir perdão, ele tem que devolver o objeto do roubo. No caso da fama,
quando possível, por exemplo no caso de ter feito uma calúnia, não basta pedir perdão, é
preciso desfazer a calúnia.

Seria muito bom que aprendêssemos os três grandes aspectos que vemos no oitavo
mandamento, para desenvolver esse senso de justiça, esse senso do outro.

A grande diferença da justiça para a castidade e a paciência é que no fundo estas duas últimas
virtudes ordenam a nossa psicologia interna em relação a nós mesmos, para não nos irarmos
fora das medidas e controlarmos os próprios desejos de concupiscência. Então é uma
ordenação interna. A justiça nos ordena não tanto para conosco, mas em relação às coisas
externas, às pessoas externas; num certo sentido ela exige um nível de consciência maior. Não
basta que sejamos donos de nós próprios, temos que também ser capazes de possuir a
consciência do justo valor do outro. É uma maneira de aprendermos a estender a virtude ao
mundo exterior que nos rodeia. Ao darmos o salário justo, ao repassarmos o supérfluo às
pessoas que padecem necessidade extrema, no fundo estamos nos conscientizando e
aprendendo a ter uma sensibilidade para com a realidade externa, do ponto de vista moral.

225
De certa maneira, o oitavo mandamento está dentro disso. No fundo, o oitavo mandamento
é uma questão de justiça para com o próximo a respeito de um bem que é mais sutil, porém
mais importante do que a propriedade, isto é, a fama do indivíduo. Normalmente nós não
temos consciência disso. E de certa maneira, é um pecado inclusive muito comum nas pessoas
do sexo feminino: falar mal dos outros, etc.

Para podermos nos corrigir disso é necessário que desenvolvamos uma grande consciência da
existência do outro, que saibamos nos colocar na pele do outro como se fôssemos nós
mesmos. Isso é uma preparação muito forte para o mandamento de amar o próximo como a
si mesmo; e o indivíduo que não tem este senso de justiça está longe desse mandamento.

2. Matéria grave em relação ao oitavo mandamento

A) Calúnia. — Existem três aspectos importantes no oitavo mandamento. O mais grave de


todos é o da calúnia. Calúnia é o ato pelo qual atribuímos a uma pessoa uma culpa que ela
não tem. O sujeito acusa alguém de ter cometido um pecado grave que ele realmente não fez
(que ele roubou, ou matou, ou estuprou; que ele mente, etc).

A calúnia normalmente se refere principalmente a essas coisas que, ao serem feitas, são
moralmente más. É possível caluniar também atribuindo um defeito grave a uma pessoa, mas
de modo geral o que realmente tira a fama do indivíduo são as coisas do campo moral, aquelas
acusações de coisas que tornam uma pessoa má: roubo, adultério e assim por diante.

Não é propriamente uma calúnia quando o sujeito atribui um defeito à outra pessoa, a não
ser que seja um defeito que desmereça o indivíduo, um defeito que ele não poderia ter, pela
profissão que exerce ou pelas coisas que normalmente faz. De modo geral, a calúnia ocorre
quando atribuímos a alguém alguma coisa moralmente má. Nesses casos nós não só
incorremos num pecado grave ao fazer isso com advertência e consentimento, como também
incorremos no dever de desfazer a calúnia. Então se acusamos alguém de ter roubado e não
era verdade, não podemos [receber] o perdão sacramental caso não nos comprometamos a
desfazer a calúnia, alcançando todos quantos a calúnia chegou, tanto quanto possível.

Por exemplo. Se acusamos um fulano no jornal, dizendo que é ladrão e ele não era, temos que
publicar naquele jornal um esclarecimento de que aquilo não era verdade. Teoricamente o
que somos obrigados a fazer, é desfazer o dano. Então, para desfazer o dano não interessa se
estamos declarando que fizemos de propósito, de má vontade ou se foi um engano
involuntário. Para desfazer a calúnia não interessa que declaremos nossas verdadeiras
intenções. O que interessa é que fique bem claro que o fulano acusado de ter roubado, não
roubou. O fato de termos feito sem querer ou de propósito, em princípio não interessa para
esclarecer a verdade. Logo, não somos obrigados a dizer: “Eu caluniei de propósito, por
maldade”. Podemos dizer: “De fato houve um engano, maldoso e proposital”. Dizendo isso

226
as pessoas normalmente entendem que foi sem querer. Dizer, por exemplo: “Houve um
engano. Lamentavelmente foi divulgada uma notícia errada. O fulano que foi acusado disso
e disso é totalmente inocente, nunca fez isso e é uma pessoa ótima, excelente”.

Se a coisa evoluiu para além do âmbito daquele jornal (por exemplo, se publicamos a calúnia
naquele jornal local e depois a espalhamos para o Brasil inteiro) temos que arrumar um jeito
de fazer a [verdade] chegar mais ou menos até o âmbito em que o fulano foi danificado.
Noutras palavras, temos a obrigação de desfazer o dano que causamos.

Vejamos outro exemplo. Nós [decidimos] caluniar o fulano. Para tanto, escrevemos o texto,
mandamos para o jornal, porém ele não publicou. Depois vamos visitar o jornal e vemos que
a nossa carta sequer foi aberta e então a pegamos de volta. Nesse caso nem precisamos explicar
o que aconteceu: como ninguém ficou sabendo, não houve dano nenhum.

B) Difamação. — O segundo aspecto do oitavo mandamento é um pouco diferente: é


quando falamos, divulgamos uma qualidade má de um indivíduo, que infelizmente é
verdadeira.

Por exemplo, quantos casos há que às vezes uma esposa até boa, compreensiva, dedicada, bem
tratada pelo marido, um dia, num momento de depressão acaba traindo-o com outra pessoa.
Depois, porém, ela se arrepende amargamente, nunca mais volta a fazê-lo e nunca ninguém
ficou sabendo disso, a não ser João. Aí um belo dia, no meio da janta junto com seu colega,
João diz: “Olha, você sabia que a sua mulher fez isso, isso e aquilo?”. O marido diz: “Quando?”.
João responde: “Cinco anos atrás, eu fui testemunha”. Mas tirando isso aquela mulher foi
sempre uma pessoa exemplar, nunca ninguém soube.

João está contando uma verdade, mas está causando um prejuízo gigantesco para o casal. Não
tinha motivo para contar isso, pois ele está contando uma verdade que ia revelar um defeito
grave de uma pessoa sem haver nenhum motivo. Se a esposa se arrependeu (inclusive o
próprio marido pode ter feito o mesmo talvez cinquenta vezes e ela só fez uma), isso era para
ficar [em segredo], enterrado para o resto da vida, a não ser que algum dia houvesse um
motivo justo para declará-lo.

Tal atitude é evidentemente um pecado grave, pois vai contra a benevolência que devemos
ao próximo. Com certeza essa mulher deve ter passado a odiar o João por ter dito uma coisa
dessas! É evidente que uma coisa que incorre numa rejeição desse porte é pecado grave. Além
disso, João está roubando uma fama que a pessoa tinha e que não precisava ser tirada. Ele está
tirando muito mais do que se estivesse tirando-lhe a casa, pois provavelmente acabou o
casamento dela, que é mais valioso que a própria casa. Se João tivesse lhe roubado a casa, não
seria algo tão grave quanto uma coisa dessa.

227
Portanto, de modo geral nós nunca podemos declarar algum pecado grave que a pessoa tenha
realmente cometido, se não houver um motivo justo. Se houver um motivo justo a história é
diferente, mas se não houver, dizer coisas verdadeiras que desabonam os outros é pecado
grave, principalmente se forem pecados graves, porque é justamente o pecado grave que faz
com que a pessoa perca aquela fama de pessoa boa e merecedora de confiança que ela precisa
para poder viver em sociedade.

O que seria então uma causa justa para revelar um defeito grave de uma pessoa? Defeito grave
de modo geral são os pecados graves — a não ser que não sejam pecados graves, mas
qualidades pelas quais o fulano necessita conservar sua fama, em vista da profissão ou do
posto que está ocupando na sociedade. Então o que justificaria uma coisa dessas?

Primeiro, evitar um mal maior, evitar um pecado grave ou um mal muito grande,
proporcional à revelação que estamos dando. Por exemplo, um fulano é viciado em drogas,
mas ninguém sabe. Se isso não está causando mal a ninguém, não é justo contarmos a todos
que o fulano é viciado em drogas. Se aquilo não está causando mal a ninguém, é um problema
dele por enquanto. O que devemos fazer é aconselhá-lo e não falar isso para todos.

Muito diferente é se o fulano é viciado em drogas, ninguém está sabendo e ele é noivo de uma
menina, filha de uma boa família, que quer constituir uma família cristã honrada e vai casar
com um viciado em drogas sem estar sabendo. Num caso desses é absolutamente justo chegar
a essa moça e dizer: “Escuta, eu queria te falar uma coisa em particular. O indivíduo com
quem você vai casar é viciado em drogas, assim, assim, assado e cozido”. Se ela entendeu,
muito bem! Se, apesar de todas as evidências, nós vemos que ela não quer acreditar, pois está
cega e inclusive ficou irada conosco por dizermos algo que ela considera uma mentira, mas
temos certeza que aquilo é verdade, que vai arrebentar a vida dela e ela só vai perceber isso
depois de casada, nós também temos direito de ir falar com o pai ou com a mãe da moça. Isso
não é falar mal dos outros, isso é justo e pode inclusive ser obrigatório.

Outro exemplo. Um indivíduo que roubou a vida inteira, só vive para roubar (mas ninguém
está sabendo), candidata-se à prefeitura, ao governo do Estado ou à presidência da República
e só nós sabemos. Sabemos inclusive que, dado o seu passado, ele está fazendo isso porque na
Prefeitura, no Governo do Estado, na Presidência é que ele vai roubar mais do que já roubou
durante toda a vida. Nesse caso é justo e correto escrever um artigo de jornal ou denunciar
publicamente que o fulano fez isso, isso e isso, porque ele está usando essa falta de
conhecimento para poder causar um prejuízo muitíssimo maior. Portanto, [a intenção] de
evitar um mal maior ou proporcional, justifica plenamente [o ato] de avisar a quem de direito
tenha que saber sobre os males que no momento estão ocultos.

Um outro motivo que justifica revelar um defeito grave de alguém é quando precisamos pedir
um conselho para resolver um problema, mas não podemos explicar o que está acontecendo

228
sem dizer que o fulano envolvido na história não presta. Por exemplo, tem um indivíduo que
é ladrão, mas ninguém está sabendo disso. Ele nos pede para irmos trabalhar consigo e não
sabemos se aceitaremos ou não, porque o trabalho oferecido é honesto. Não vamos roubar
no desempenho desse trabalho, o trabalho não foi feito para roubar, mas sabemos que o
fulano é um ladrão. E o único jeito de resolver essa história é pedindo conselho para alguém
que trabalhou naquela repartição ou em serviços semelhantes. Para isso, teremos que
explicar: “Olha, o fulano me convidou para tal serviço, mas ele é um ladrão. Você acha que eu
devo aceitar ou não?”.

Jamais a pessoa entenderá o que estamos falando sem explicarmos que o sujeito é um ladrão.
No fundo esse caso é o mesmo do anterior: estamos querendo evitar um mal maior ou
proporcional. Principalmente, se estamos pedindo conselho não ao jornalista que vai
publicar a coisa no jornal, mas a alguém que manterá a devida reserva, de modo que a coisa
fique só entre nós, por tratar-se de um homem prudente e que vai entender a coisa. Isso é um
motivo justo.

Obviamente estamos nos referindo a alguém que roubou, mas que não está ameaçando
imediatamente roubar uma pessoa. Talvez não seja o exemplo mais adequado. Mas em suma,
ir a um homem prudente (que não vai espalhar [o assunto]), para pedir conselho sobre uma
pessoa que tem um passado condenável em alguma coisa, não é algo errado, é algo
proporcional.

Também não se considera errado falar mal dos outros quando todos já estão sabendo do que
o fulano fez. Por exemplo, há pessoas que possuem fama de serem grandes ladrões e todos
sabem disso, é algo público e notório — no Brasil há muitas pessoas assim. Se comentarmos
com alguém, dizendo que determinada pessoa é corrupta, isso não é algo errado. O erro está
justamente em roubar a fama de alguém ou tirar-lhe a fama sem motivo justo: se o sujeito já
perdeu completamente a fama, não estamos tirando-lhe nada que ele próprio já não tenha
perdido. Então isso não é um erro moral.

Há pessoas que já ficaram marcadas na história por terem sido assassinas e todos sabem; falar
disso não é absolutamente nenhum erro. Todos sabem que o Hitler mandou matar milhões
ou milhares de judeus nos campos de concentração. Se comentarmos isso com alguma pessoa,
o Hitler já perdeu sua fama até o dia do juízo final, então isso absolutamente não é erro
nenhum.

Também não se considera um erro moral quando, por exemplo, [o nosso chefe] fez uma
grande maldade contra nós, ninguém está sabendo, mas é uma maldade muito grande. Então
naquela angústia e tristeza, desabafamos com o nosso grande amigo, ou com a esposa, ou com
o pai, desde que o desabafo fique circunscrito àquele ambiente. Objetivamente nós não
precisávamos contar isso, porque o nosso chefe fez um grande erro moral, mas a coisa está

229
resolvida, não vai mais se repetir. Não há motivo porquê falar e não adianta nada falar para a
esposa, ou filho, ou pai, ou grande amigo, mas o abalo é tão grande que sentimos a
necessidade de desabafar. Se aquilo ficar circunscrito àquele ambiente (nós com aquela
pessoa), isso não é considerado um pecado grave ou matéria grave, principalmente se o nosso
[confidente] não tiver conhecimento do outro: ele sabe quem é o outro, mas ambos não
convivem juntos. Numa situação dessas, não estamos subtraindo grande coisa da fama do
sujeito, principalmente se o desabafo foi com uma pessoa discreta que sabe guardar reserva e
etc.

Isso se dá porque, tendo sofrido uma injúria muito grande que nos causa uma aflição
tremenda, seria uma coisa extremamente desumana ser obrigado a não contar a ninguém, ou
seja, se alguém nos fizer uma tremenda maldade e aí, só pelo fato de não haver utilidade
objetiva nenhuma para corrigir a coisa ao contar para uma pessoa, sermos obrigados a guardar
segredo para o resto da vida.

Contudo, supõe-se que isso seja dito a um amigo íntimo, preferencialmente alguém que não
seja da convivência do outro: a própria esposa, o pai, o conselheiro ou um homem de virtude
que saberá guardar reserva; e que isso seja feito por questão de consolo, de desabafo. Se a
pessoa o fizer por ódio (inclusive se os feitos maldosos do indivíduo são públicos e notórios),
isso já é pecado por si mesmo. Se ela divulga o fato simplesmente por gostar de falar mal dos
outros e só não fala outras coisas ocultas, mas somente as que são notórias, porque as
desconhece, fazendo isso já com má intenção, nesse caso tudo que dissemos acima cai por
terra e já é maledicência.

Então, via de regra, se não tivermos circunstâncias desse tipo, falar mal dos outros a respeito
de coisas que são matéria de pecado grave, normalmente é pecado grave. Nós temos que ter
um respeito muito grande pela fama das pessoas, mesmo nesses casos em que elas são
culpadas. E muitas vezes essas pessoas culpadas estão em processo de arrependimento, então
a coisa é uma injúria ainda mais grave.

Imaginemos, por exemplo, uma prostituta que vivia no mundo das drogas, da prostituição,
da libertinagem. Aí ela consegue sair desse submundo e se tornar uma secretária executiva de
altíssimo padrão, totalmente honesta, uma pessoa exemplar. Um belo dia, João a encontra
depois de muito tempo, chega ao seu escritório e diz: “Nossa, você por aqui? Como você mudou!
Essa mulher, olha, essa mulher é um exemplo. Vocês não imaginam de que mundo ela saiu. Eu
a conheci quando ela estava na vida assim, assim e assim, mas agora ela é um exemplo, ela vale
muito mais do que vocês que nasceram em berço de ouro. Isso é que é uma pessoa que merece
realmente respeito”. O que João fez? Acabou com a vida dessa pessoa! E era tudo verdade, isso
que era pior. Isso simplesmente não é justo, ainda que não seja um caso tão extremo quanto
esse.

230
C) Julgamento temerário. — Finalmente existe um último aspecto desse problema, que
normalmente é reflexo de desajustes psicológicos muito sérios que precisam ser corrigidos.
Tem gente viciada nisso: em calúnia, em falar mal e nessa última coisa de que falaremos agora.
Esse último aspecto do respeito à fama alheia é o que chamamos de julgamento temerário.

Julgamento temerário é quando, no nosso íntimo, fazemos um julgamento sobre a conduta


de alguém, sem termos divulgado a ninguém; julgamos a pessoa de uma maneira má, sem
termos a prova de que realmente a pessoa agiu de uma maneira má.

Há pessoas que fazem isso quase como uma segunda natureza. É algo horrível e obviamente
é um empecilho à prática do amor ao próximo, tal como Jesus a entendia: dar a todos,
inclusive àqueles que nos ofenderam, que nos prejudicaram, uma benevolência que inclua
um perdão ilimitado.

Um caso típico de julgamento temerário é, por exemplo, o que ocorre naqueles lugares onde
existe preconceito contra os negros. Se houve um roubo na loja, a pessoa já acusa
interiormente, pensando consigo que certamente foi o funcionário negro que roubou. Não
encontraram o criminoso nem possuem as provas evidentes, mas a pessoa já diz no seu
íntimo: “Só pode ter sido o João” (que é o fulano de cor). A pessoa tem certeza que foi o João
e só não vai acusá-lo porque não tem provas, pois sabe que se falar disso ele pode processá-la.
Mesmo assim, no seu íntimo, ela julga que foi João, sendo que não tem nenhuma prova disso.
Ela até pode desconfiar que foi ele, levantar a hipótese (isso é outra história), mas considerar
como certo que foi ele sem ter a prova, é julgamento temerário.

Só podemos atribuir no nosso íntimo uma culpa grave a alguém, quando temos a prova
evidente daquilo. No entanto, as pessoas que incorrem em julgamento temerário,
normalmente pensam que qualquer coisa já é prova evidente: se o cara é negro e ninguém
achou o culpado, só pode ser ele. E assim, frequentemente atribuem aos atos das pessoas,
intenções maléficas que elas não tinham e acham com certeza que só pode ter sido por causa
daquilo.

Levantar a hipótese é uma coisa certa. Se houve um roubo no Vaticano, podemos inclusive
levantar a hipótese de que foi o próprio Papa, apesar de ser uma hipótese remota. Mas como
mera hipótese de trabalho, se o sujeito é um detetive contratado para investigar o caso, ele
não pode descartar essa hipótese prontamente, pelo menos não com certeza total e absoluta.
Porém uma coisa é colocar uma hipótese, inclusive remotíssima, outra coisa é dar como certo
que o culpado é o fulano de tal sem que tenha sido, bem como achar que um indivíduo que
fez tal coisa só podia estar sendo movido por tal intenção, se essa intenção, caso fosse real,
fosse um pecado grave, mesmo sem dizê-lo a ninguém.

231
Na prática, uma pessoa que seja verdadeiramente boa e virtuosa, muitas vezes se engana,
porque pode estar cometendo julgamento temerário sem ter verdadeira consciência disso. Ela
acha sinceramente que os indícios são suficientes, quando na verdade não são. Ou então a
pessoa diz que está considerando como hipótese, mas não percebe que está considerando
como certo, enganando-se a si mesma.

Esses enganos podem acontecer com pessoas muito tementes a Deus e que estão acostumadas
com a virtude. O fato, porém, é que há pessoas com uma inclinação quase que conatural ao
julgamento temerário: qualquer coisa que aconteça, sempre a intenção é a pior possível. Essas
coisas podem ser pecado grave sim e com muita facilidade.

De modo geral, atribuir como certo a alguém uma culpa grave não tendo a prova certa,
mesmo que não cause uma retirada de fama da pessoa, porque não foi dito nada a ninguém,
isso é uma coisa injusta. Quer dizer, não temos o direito de pensar mal de uma pessoa, se não
tivermos a prova clara daquilo. Podemos suspeitar.

Percebemos que, quando as pessoas fazem muito isso, elas não param mais de fazê-lo. Se
começamos a cultivar isso, torna-se uma escada escorregadia terrível. Se começamos a ter um
pouco disso e não nos corrigimos, em questão de anos isso vira um vício que dificilmente
conseguimos largar.

Apesar de parecer uma coisa inofensiva, trata-se de algo muito grave, inclusive do ponto de
vista da nossa convivência, porque é difícil trabalhar com pessoas assim quando começam a
ter isso em grande quantidade. Qualquer coisa que aconteça ela vai enxergar sempre da pior
maneira e tomará decisões erradas para sua própria vida, ou seja, vai acabar fugindo das
pessoas que lhe fariam o bem e acabará caindo na mão das que querem lhe fazer mal.
Simplesmente ela está vivendo num mundo fantástico onde irá interpretar as coisas de
maneira totalmente contrária ao que objetivamente deveria estar fazendo para seu próprio
bem ao tomar suas atitudes. A maior vítima é ela própria, além do fato de que isso é uma coisa
injusta.

No fundo, essas pessoas não desenvolveram o senso de justiça, esse senso de justiça que é
indispensável para a prudência. Não existe prudência se primeiro as virtudes básicas não se
desenvolvem, do mesmo jeito que não adianta ter o maestro se os músicos são uma droga; e
mesmo que o músico seja uma maravilha, mas se o clarinete está totalmente desafinado, no
fim a música vai ser o “fim da picada”.

Essas pessoas não desenvolveram um senso agudo de justiça, qual seja “atribuir ao próximo
aquilo que lhe é de direito”. Elas podem dar o salário certo, podem dar o supérfluo, podem
às vezes não caluniar os outros e até não falar mal, mas lá dentro não têm interiormente aquele
senso de atribuir às pessoas externas o que é justo. Se pudessem o outro estivesse ouvindo o

232
que ela está pensando dele, simplesmente perceberia um mundo fantástico e que a tal pessoa
não consegue entender o outro enquanto outro. Tudo isso por faltar-lhe esse item do senso
de justiça, que são as três virtudes cardeais principais que temos de desenvolver e que vão
puxando todas as ouras, antes que a prudência possa ser corretamente exercida.

Como é que uma pessoa pode ser prudente se não é casta, se desliza na castidade o tempo
todo? A falta de castidade fará com que ele tenha julgamento errôneo na hora de agir: ele vai
preferir a mulher sensual à pessoa certa para fazer o trabalho certo. Se a pessoa é viciada em
julgamento temerário, como ela pode desenvolver a prudência se a toda hora está julgando
dentro de si um mundo fantástico, porque não consegue ter o senso de justiça do outro? A
prudência simplesmente não funciona! Ela vai tomar decisões erradas, não vai coordenar as
coisas direito, nunca vai se desenvolver a prudência. Inclusive, se a prudência não se
desenvolve nas coisas pequenas, ela não consegue desenvolver-se na vida como um todo para
levar à contemplação.

É uma tragédia, mas isso faz parte do senso de justiça. E em certo sentido, para algumas
pessoas a questão do julgamento temerário é mais delicada, porque a pessoa que está certa no
resto, mas tem o vício do julgamento temerário, simplesmente não sabe o que é senso de
justiça: externamente ela pode observar o senso de justiça, mas internamente não tem o senso
de justiça e sim uma desordem radical na vontade. Aí não existe prudência, e sem a prudência
não existe o trabalho harmônico das virtudes, não existe aquela música: o violino é uma
maravilha, mas a música não presta. Se a pessoa não consegue tocar uma “música”, ela não
vai conseguir tocar a “sinfonia” da vida inteira.

Esses três pontos, calúnia, falar mal e julgamento temerário, são coisas extremamente
importantes de serem [combatidas].

Temos um exemplo fantástico do oposto do julgamento temerário na vida de Santo Tomás


de Aquino. Quando Santo Tomás era estudante já universitário ele foi transferido da Itália
para a Alemanha. Quando chegou à Alemanha, integrou-se num ambiente em que não era
conhecido e ouvia as aulas com o maior silêncio. Ele ouvia, anotava e não falava nada. E as
pessoas estranharam que ele não falava nada e acharam que era um débil mental. Então um
dia fizeram uma brincadeira: “Você quer ver como ele é um débil mental? Olha, eu vou dizer
a ele que tem uma vaca voando no céu e você vai ver que ele vai para a janela”. O outro disse:
“Não, ninguém é tão idiota assim, você está tirando sarro”. E o primeiro disse: “Não, você vai
ver!”.

O fulano foi e disse: “Tomás, olha, tem uma vaca voando”. Aí Tomás levantou e foi até a
janela, e o pessoal ficou estupefato. E o pior é que quando voltou, ele ainda disse: “Não tinha
nenhuma vaca voando, eu não vi”. Aí todos riram! E lhe disseram: “Hahaha, onde você já viu
uma vaca voando, Tomás? Não tem nenhuma vaca voando!”. E Tomás disse: “Ah, então

233
vocês mentiram?”. Eles disseram: “Agora que você está percebendo que nós mentimos?
Onde você está com a cabeça? Você é doido por acaso ou idiota? O que você está fazendo
estudando aqui junto com a gente”. Aí Tomás explicou: “Olha, na verdade, eu achei
estranho. Só que vocês são seminaristas. Então eu pensei: ‘Nunca vi uma vaca voar, mas
também nunca vi um seminarista mentir, então prefiro achar que uma vaca está voando e
não que um seminarista esteja mentindo’. Então vocês mentiram?” Ficaram boquiabertos!

Vejamos! Isso é o oposto do julgamento temerário, ou seja, mesmo quando estava evidente
que eles estavam mentindo, Tomás de Aquino quis ter uma prova: “Para Deus nada é
impossível e um seminarista não mente. Quem sabe? Eu só vou ter certeza quando for olhar”.
Aí ele foi e viu. Isso não reflete uma idiotice, mas um senso de justiça tremendo! Foi esse
mesmo senso de justiça que, ao fazer a Suma Teológica, permitiu que todas as coisas
estivessem equilibradas no seu lugar. A Suma Teológica é um livro equilibradíssimo, sensato,
onde cada coisa é dada e colocada no seu justo valor, na sua justa posição.

No fundo, é justamente porque “ele foi olhar se tinha uma vaca voando”. Se Tomás não
tivesse ido, seria sinal de que não tinha esse senso de justiça pelo qual estava tão convicto em
não fazer um julgamento temerário, pois até naquele caso ele pensou “Vaca não voa, mas eu
vou olhar”. Portanto, o senso de justiça nele era tão grande que acabou refletindo-se em todo
o resto. Então nós temos que fazer questão de cultivar realmente essas coisas, inclusive porque
os grandes erros começam nas pequenas coisas.

234
Aula 15 – NONO E DÉCIMO MANDAMENTOS

Depois do oitavo mandamento, temos o nono e o décimo. O nono diz que não desejemos a
mulher do próximo, e o décimo, que não desejemos as coisas alheias. Esses dois mandamentos
estão aí para mostrar que não apenas não devemos cometer adultério, mas não devemos
desejá-lo; e que não devemos apenas não roubar as coisas alheias, mas também não desejar
roubá-las.

Na verdade, o nono e o décimo mandamentos estão dizendo: não é lícito desejar aquilo
que não é lícito fazer. Então, de certa maneira, ao falarmos do sexto e do sétimo
mandamento, nós já comentamos o nono e o décimo.

O sexto é “Não pecar contra a castidade” e o sétimo é “Não roubar”. O nono e o décimo
mandamentos condenam essas mesmas práticas, quando feitas por pensamento ou por
desejo.

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Aula 16 – OS TRÊS PRIMEIROS MANDAMENTOS

Índice
1. Introdução
2. Conversão de Santo Agostinho
3. Do exercício das virtudes teologais: fé, esperança e caridade
A) Virtude da fé
B) Virtude da caridade
C) Virtude da esperança
4. Essência dos três primeiros mandamentos
5. Do sacramento da Eucaristia
6. Finalidade da evangelização e o início da vida espiritual

1. Introdução

Agora podemos passar para os três primeiros mandamentos: i) amar a Deus acima de todas
as coisas; ii) não tomar seu santo nome em vão; iii) e guardar domingos e festas. Podemos
perceber que esses três primeiros mandamentos referem-se a Deus, às coisas sagradas,
enquanto os outros referem-se ao próximo: honrar pai e mãe: que são os próximos; não
matar: o próximo; não cometer adultério: em que se está indo contra o próximo; não roubar:
as coisas do próximo; não levantar falso testemunho: contra o próximo; não desejar as coisas
alheias: as coisas do próximo.

Os mandamentos, do quarto ao décimo, referem-se ao próximo, e do primeiro ao terceiro,


referem-se a Deus. Aqui, de certa maneira, estamos no miolo do cristianismo. Esses primeiros
mandamentos, de certa maneira, transcendem no seu conteúdo a própria moral básica, pois
são muito mais profundos do que apenas a abordagem da moral.

Nós falamos que a moral é para evitarmos o pecado grave, depois desenvolvermos as virtudes
para ordenarmos a nós mesmos e, ordenando-nos, podermos desenvolver a virtude da
prudência. E a virtude da prudência, por sua vez, ordenando depois as virtudes nos atos
concretamente, possa então ordenar-nos à contemplação, à união com Deus.

Esses três primeiros mandamentos referem-se justamente a isso que é o objetivo do


cristianismo: a própria união com Cristo e com Deus, através do Cristo. Na epístola aos
Colossenses São Paulo diz para não pensarmos nas coisas da terra, mas nas do alto, porque
nossa vida está “escondida junto com Cristo em Deus” (Col 3,3). Esta vida escondida com

236
Cristo em Deus é aquela que se aproxima e se desenvolve em nós através do que está explícito
e implícito nos três primeiros mandamentos.

2. Conversão de Santo Agostinho

Uma das coisas mais fantásticas para poder explicar isso em poucas palavras é a história de
Santo Agostinho. Nessa história podemos entender de uma maneira fácil, se a graça nos
ajudar, o que estamos querendo dizer, que é o seguinte. Santo Agostinho, digamos assim,
teve três etapas da sua vida. Essas etapas servem para explicar muito bem o sentido dos
primeiros mandamentos.

Na primeira etapa ele era um homem mundano e queria o sucesso do mundo, então foi
estudar retórica que era uma profissão muito qualificada. Na sua época, em que não havia
televisão, rádio, não havia os meios de comunicação que temos hoje (efeitos especiais, etc) a
pessoa que sabia falar bem, com elegância, sabia escrever bem, expressar-se bem, ganhava
muito dinheiro, era contratada para falar às multidões. Os reis, as pessoas importantes
contratavam essas pessoas para que elas falassem ao público as coisas das quais eles queriam
que o público fosse informado. Era uma espécie de “TV Globo” da época. Era a televisão, o
jornal, o rádio da época, já que não havia nem jornais.

Outras vezes o fulano usava isso para si mesmo. Ele começava uma carreira de advogado,
defendendo causas públicas, causas particulares. Para ser advogado naquela época era mais
importante ser um grande retórico do que conhecer bem as leis. O conhecimento das leis era
até meio secundário, o mais importante era que ele soubesse defender bem a causa. E outras
vezes isso servia no âmbito da política, para o sujeito conseguir notoriedade política.

Então ser um bom retórico era a carreira que dava dinheiro, que dava fama, e Santo
Agostinho foi atrás disso. Depois de haver se tornado um grande retórico e começado a
ganhar dinheiro, ter fama, etc., ele leu um livro de filosofia onde um grande retórico do
passado escrevia que a retórica era pura vaidade, e que havia uma coisa muito mais nobre e
que não dava dinheiro: a vida de filósofo. Dizia ainda que os filósofos eram pessoas que
tinham abandonado tudo para ir em busca da verdade.

Os filósofos de hoje não são assim; eles estão mais para uma retórica sofisticada, do que para
a verdadeira filosofia que é a busca da verdade. No fundo, os filósofos modernos estudam
filosofia para ter uma audiência para suas ideias; eles estão muito mais para a vocação de
retórico que de filósofo. Mas naquela época, como existiam retóricos, os que
verdadeiramente tinha essa vocação iam para a retórica, e na filosofia só ficavam aquelas
pessoas que queriam entender o sentido das coisas. Tais homens entendiam que as coisas
tinham um sentido e que esse sentido deveria ser compreendido custe o que custasse, e eles
se dedicavam mesmo a isso. Pelo que vemos, lendo os grandes filósofos da antiguidade, Platão

237
e principalmente Aristóteles, de fato conseguiram entender isso, mas depois de uma vida de
abnegação, estudo, sacrifício, etc.

Então Santo Agostinho, que era uma pessoa bem orgulhosa de si mesma, que estava
querendo ganhar dinheiro, mas principalmente fama, sentiu-se envergonhado quando viu
que havia pessoas que estavam procurando a verdade e que eram mais nobres do que ele. Ele
achava que era da estirpe mais nobre que existia, procurando a retórica.

Aí ele resolveu abandonar tudo para procurar a verdade. Pelo jeito não foi só o orgulho.
Talvez no princípio ele tivesse sido ferido pelo orgulho: “Como pode alguém ser mais do que
eu?” Mas depois percebeu o drama da verdade e começou a se preocupar mesmo. Passados
alguns anos, ele abandonou a retórica e começou a estudar e tentar compreender o sentido
das coisas, tentar compreender se havia uma verdade no mundo a ser compreendida.

Na medida em que os anos foram passando ele foi desenvolvendo, através do estudo, a
compreensão de várias coisas que lhe pareciam verdades definitivas. E o mais estranho é que,
na medida em que esse estudo avançava, Santo Agostinho começou a perceber que essas
verdades que estava descobrindo lhe eram familiares: eram aquelas que sua mãe, quando ele
ainda era criança, explicava que existiam na bíblia, um livro que ele sempre havia desprezado.

Até que um dia a coisa foi tão longe que ele resolveu comprar uma bíblia para ver essas coisas,
ver o que o livro falava. Então ficou surpreso ao perceber que tudo quanto havia descoberto
em termos de verdade estava na bíblia, e que lá tinha muito mais que ele ainda não havia
alcançado. E ficou intrigado sobre como pessoas tão simples e tão rudes como os profetas e
escritores do Velho Testamento, que estavam muito longe da sua erudição, assim como os
do Novo Testamento, conseguiam ter essa profundidade sem erro nenhum e conseguindo ir
tão além de tudo quanto ele tinha ido.

Na medida em que foi avançando com isso, começou a suspeitar que aquilo só poderia ser de
origem divina, que estava além da capacidade de um ser humano fazer uma coisa tão perfeita.
(E de fato é assim mesmo! Principalmente o Novo Testamento, é de uma profundidade
absolutamente assombrosa; não existe livro na história humana tão profundo quanto o Novo
Testamento! O Velho também, mas o Novo é uma coisa simplesmente deslumbrante, mais
do que Tomás de Aquino, mais do que qualquer outra coisa; aquilo é totalmente fora de
série. E é perfeito, sem furos, coerente. É uma coisa simplesmente assombrosa, aquilo é sobre
humano. A Suma Teológica já dá uma impressão de ser algo sobre humano, só que o Novo
Testamento está a anos luz da Suma Teológica).

Santo Agostinho foi percebendo isso e chegou uma hora em que teve de aceitar a evidência:
ele creu que Deus existe! Inclusive uma coisa curiosa que se fala sobre Santo Agostinho é que
ele dizia que o começo da conversão humana tinha que ser através [do ato] de crer em Deus.

238
Mas o argumento que ele tinha para que crêssemos em Deus era a própria bíblia. Quer dizer,
para alguém crer que Deus existe, era preciso ler a bíblia. Na medida em que a pessoa fosse
entendendo realmente o que estava ali e a coerência daquilo, teria a prova de que Deus existe,
porque um livro como aquele não poderia ter outra origem senão uma origem divina.

Existem argumentos metafísicos, filosóficos para provar que Deus existe; existem provas
filosóficas bem elaboradas. Na época essas provas não eram tão elaboradas como hoje, mas
Santo Agostinho dizia que o jeito mesmo de conhecer Deus era ler a Sagrada Escritura e
prestar atenção no que Ele estava falando, e perceber-se-ia que aquilo não é de origem
humana. Exatamente como Jesus fala no evangelho: As palavras que eu vos falo não são
minhas, mas do Pai que me enviou. Tudo que ouvi do Pai, eu vos dei a conhecer. Santo
Agostinho tinha certeza que, se examinássemos a bíblia com atenção, nós iriamos chegar
numa conclusão e crer que Deus existe.

Porém o mais fantástico não é isso, mas o que aconteceu depois que ele creu. Depois que
Santo Agostinho creu que Deus existe e que Jesus realmente foi enviado por Deus para falar
as coisas que ouviu do Pai; depois que ele creu que Jesus era Deus e creu na Sagrada Escritura,
ele percebeu que quando voltava a ler e meditar na verdade a sua mente tinha ficado muito
mais clara. Depois que creu, ele conheceu tudo com uma clareza muito mais meridiana que
antes.

No caso dele a coisa era muito mais dramática, porque a maioria das pessoas quando se
convertem, não se convertem por causa de uma vida intelectual. Geralmente as pessoas se
convertem por uma vida moralmente errônea, quer dizer, um fulano roubou, outro fulano
adulterou, outro se corrompeu; para o outro a vida perdeu o sentido, entrou numa fossa, ou
ele pecou e está cansado do erro; enfim, eles veem uma vida moralmente regrada e admiram,
veem que as pessoas que creem são diferentes e querem ser também assim. Então o sujeito crê
que Deus deve agir nas pessoas e aceita que Deus aja na sua vida também, aí se converte.

A maioria das pessoas então se converte geralmente depois de uma vida moralmente errônea,
a não ser que já venha de criança. Mas é difícil encontrar alguém que levou a sério uma vida
intelectual de busca da verdade e, de tanto tentar procurar a verdade, depara-se com uma
[verdade] maior e percebe que Deus existe, porque aquilo é muito maior que todo o trabalho
intelectual que ele já fizera em sua vida; e que é muito maior, mais claro e mais coerente que
qualquer outra coisa que um ser humano poderia fazer humanamente.

Santo Agostinho era uma pessoa acostumada à vida da inteligência, mesmo quando vinha do
paganismo, e estava acostumado a uma busca da verdade. Assim como está aqui uma
passagem do evangelho de São João que diz exatamente isso: Não se perturbe o vosso coração;
credes em Deus, crede também em mim (João 14, 1), quando Santo Agostinho se converteu e
aceitou que a Sagrada Escritura era feita por Deus e creu em Deus e em Jesus, ele percebeu

239
que começou a entender de forma muito mais rápida, clara e luminosa todas essas coisas que
estava trabalhando anos para entender.

A maioria das pessoas que se converte (que não vem de uma vida intelectual) não percebe
isso. Quando se convertem, elas percebem que a vida tem sentido, está mais alegre, mais
suave, mas não percebem que sua mente começou a funcionar melhor, porque na verdade
ela nunca funcionou muito bem. No caso de Santo Agostinho ela já estava funcionando a
todo vapor. Quando ele creu, percebeu que houve uma catapultagem.

Ele achou isso estranho, achou o fato curioso e tentou entender o que era. Aí, procurando a
Sagrada Escritura, no início do evangelho de São João ele encontrou a explicação disso. No
início desse evangelho está escrito assim: No princípio era o Verbo — o Verbo aí é o próprio
Cristo, a segunda pessoa da Santíssima Trindade — e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
Deus, no princípio ele estava com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito, de
tudo que existe. Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens, e a luz brilhou nas trevas,
mas as trevas não o apreenderam.

Ele está dizendo que no princípio era o Verbo (a segunda pessoa da Santíssima Trindade, que
se encarnou e se fez homem e habitou entre nós) e que o Verbo era Deus. Ele estava com
Deus, nele estava a vida e a vida era a luz dos homens. Essa luz brilhou nas trevas (que
Agostinho diz ser o pecado), mas as trevas não a apreenderam. Porém, ele diz depois, a todos
os que o receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus, os que creem no seu
nome, que não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem,
mas de Deus nasceram.

Podemos ver que ele está dizendo que o Verbo estava com Deus, que nele estava a vida e a
vida era a luz dos homens. “A vida era a luz dos homens”. De que luz ele está falando? Santo
Agostinho diz que não pode ser a luz dos astros, a luz do sol, a luz da vela, a luz da lâmpada;
essa luz só pode ser a da inteligência, é a luz da própria verdade. E esta Vida era a luz dos
homens, só que a luz brilhou nas trevas, isto é, ela brilhou na minha vida. Porém eu estava
imerso no pecado e não enxergava nada e não a apreendi, mas essa luz era o próprio Jesus, era
o próprio Cristo. E àqueles que o aceitaram, que creram nele, deu-lhes o poder de se tornarem
filhos de Deus, aos que nasceram de Deus, não da carne nem do sangue.

Então foi isso que aconteceu: na hora em que eu cri, surgiu uma luz dentro de mim e é por
esta luz que eu enxergo melhor as coisas. Eu estou compreendendo as verdades de um jeito
que até ontem não compreendia, com uma facilidade tremenda. Essa luz começou a brilhar
dentro de mim a partir do momento que aceitei, e essa luz é o próprio Jesus, é o próprio
Cristo. Eu encontrei o Cristo em pessoa, o Cristo ressuscitado.

3. Do exercício das virtudes teologais: fé, esperança e caridade

240
A) Virtude da fé. — Isso é um ponto central para entendermos os primeiros mandamentos.
Na verdade, o que a tradição cristã ensina é que quando cremos verdadeiramente em Deus,
no Cristo e em tudo mais que Deus revela, não fazemos isso só porque queremos, mas porque
uma luz nos está iluminando: a luz da graça nos está iluminando e essa luz é o próprio Cristo
ressuscitado, ou, melhor falando, é uma participação no Cristo ressuscitado. E não
conseguimos crer novamente se ela luz não nos iluminar de novo. Uma vez que cremos, para
que possamos continuar crendo, essa luz tem que continuar nos iluminando. É uma coisa
semelhante à quando temos os olhos perfeitos, mas estamos num lugar escuro onde não há
luz: os olhos podem estar perfeitos, mas se alguém não acender a luz, não enxergaremos nada.

Então ainda que creiamos, ainda que tenhamos o hábito de crer, nós não conseguimos de
fato enxergar uma verdade sobrenatural em ato, se naquele momento essa luz sobrenatural
não estiver nos iluminando. Essa luz é a luz da graça — nós a chamamos de graça. E a graça
necessariamente tem que agir no momento em que cremos verdadeiramente e como que
enxergamos, de uma maneira meio conatural, as verdades que Deus ensina.

É por isso que há certas pessoas que creem e outras que não creem, como podemos ver no
episódio da crucificação de Cristo onde havia dois ladrões. Ambos conheciam toda a história
do Cristo, foram crucificados junto com ele: um deles tinha certeza que o Cristo iria morrer
e ir para o reino dos céus e queria uma parte lá com ele; o outro dizia que o primeiro estava
louco: Onde está o reino dos céus? Onde você vai ter parte com ele? Daqui a três, quatro horas,
nós estaremos todos mortos num caixão lá no IML, com os outros dissecando nossos corpos.
Vamos todos ser enterrados e acabou. Quer dizer, um enxergava alguma coisa e o outro não
enxergava. Isso aconteceu porque a graça iluminava o primeiro, e o outro a graça não
iluminava ou então ele estava imerso nas trevas e rejeitou essa graça.

Toda vez que nós cremos verdadeiramente, naquele momento uma participação com Cristo,
uma força do alto, uma graça, uma luz ou tantos nomes que possa ter, está agindo dentro de
nós. E o que é essa luz? É uma graça que vem de Deus, mas depois que o Cristo ressuscitou
(e nós cremos que, ao ressuscitar e subir aos céus, ele continua vivo), essa luz nos é dada
através da sua humanidade: é a humanidade do Cristo que distribui essa luz entre os homens,
que distribui a graça de Deus; ele morreu, ressuscitou e subiu aos céus exatamente por isso.
Como ele diz: “Todo poder me foi dado no céu e na terra. Recebei o Espírito Santo”; e
soprou. Jesus disse isso logo depois de ter ressuscitado, como quem diz: Eu consegui! Todo
poder me foi dado no céu e na terra para distribuir o Espírito Santo, distribuir a graça.

Então quando nós cremos, na verdade estamos em contato com o Cristo. São Paulo diz que
o evangelho é uma força vinda do alto que age sobre aqueles que creem, que cresce da fé para
a fé e que vivem da fé, e que os homens santos vivem da fé. A coisa que o Novo Testamento
fala mais frequentemente é da necessidade de crer, e dá exemplo de pessoas que creem às quais

241
Jesus elogia e diz que a fé os salvou. Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica diz algo mais
impressionante ainda: que quando nós cremos, entramos em contato espiritual com o
próprio Cristo ressuscitado e é por causa desse contato que nos é transmitida a graça. Então
a coisa mais importante que existe para que possamos nos relacionar com Deus é crer: crer
nas coisas que ele revela.

A Sagrada Escritura revela coisas de Deus que nós jamais conseguiríamos deduzir de uma
maneira lógica, através de um raciocínio lógico. Elas não contrariam a lógica, mas não
poderiam ser deduzidas por nós. Estas coisas [são] apreciadas pela nossa mente na sua
coerência e logicidade, mas com a ajuda dessa luz sobrenatural que é o próprio Cristo. E toda
vez que cremos, podemos ter certeza que estamos em contato com o Cristo. No entanto, este
contato com o Cristo ressuscitado que vem pela fé, deve ser aprofundado por duas outras
virtudes: a virtude da caridade e a virtude da esperança.

B) Virtude da caridade. — A virtude da caridade é uma amizade que existe entre Deus e o
homem. É o primeiro mandamento: amar a Deus de todo coração, de toda alma, de todo
entendimento e com todas as forças. Porém para amar uma pessoa, é preciso primeiro
conhecê-la e estar em contato com ela. Dificilmente alguém vai amar verdadeiramente com
amor de amizade, com amor de comunhão, uma pessoa com a qual não tenha proximidade.
Para apaixonar-se por uma moça, o rapaz tem que conviver com ela, levá-la para tomar café,
para um restaurante, para passear, conversar com ela; somente a partir disso é que pode nascer
uma intimidade que leve ao amor.

O amor pressupõe uma intimidade com a pessoa. Espiritualmente a intimidade com Deus
vem através da fé. E quando cremos, quando somos capazes de exercitar o ato de crer, pouco
a pouco vamos percebendo (como Santo Agostinho) que existe uma força maior agindo
dentro de nós e que realmente ocorre isso e que essa força é o próprio Deus. Não existe
contato mais íntimo que poderíamos ter com Deus do que o contato através da fé.

Existe uma explicação para dar mais coerência a tudo isso, que é a seguinte. Como pode ser
que toda vez que fazemos um ato de fé, a graça de Deus nos está iluminando? Como ocorre
essa “mágica”? Como é possível? Então Deus está nos vigiando o tempo todo?

A resposta é a seguinte: na verdade, Deus está muito mais perto de nós do que imaginamos,
porque Deus não pode criar as coisas e deixá-las existindo pela própria inércia. Ao criar as
coisas ele tem que continuar sustentando-as no ser, porque a criação não é um movimento.
As coisas não são criadas do nada devagarzinho: é ½ nada, um pouquinho mais do que nada,
bem mais do que nada, começou a ser alguma coisa e de repente a coisa surge. Entre o nada e
o existente não tem gradação.

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Na verdade, não existe um movimento de criar as coisas. Deus, ao criar as coisas, na verdade
está dando o ser. Este ser precisa da intervenção divina, e o primeiro momento da criação não
é diferente dos outros, depois da coisa ter sido criada. Se a coisa precisa de uma intervenção
divina para entrar na existência, ela precisa da mesma intervenção divina para continuar
existindo. Então Deus, ao criar as coisas, tem que continuar sustentando-as no seu ou elas
voltariam ao nada.

Se fosse possível a uma criatura finita como nós criar algo do nada, seria um pesadelo, porque
se nós criássemos uma coisa do nada teríamos que estar concentrados nela o tempo todo; o
primeiro esquecimento, um cochilo, a coisa sumiria! Sendo assim, só Deus pode criar as coisas
e mantê-las na existência sem enlouquecer, porque ele é onisciente, onipresente e não existe
antes ou depois para ele, já que Deus está na eternidade. Logo, ele pode sustentar as coisas no
ser indefinidamente, se quiser.

Então, aparentemente, esse universo que estamos vendo foi criado dessa maneira, ou seja, em
algum momento, pois como diz o Lavoisier: “Nada se cria e nada se perde, tudo se
transforma”. No ato criador do universo Deus interviu uma vez, tirando [tudo] do nada, e as
coisas continuam existindo. No nosso caso, porém, é diferente, porque a alma humana, que
é imaterial e se une ao óvulo fecundado, não tem origem material. A alma humana tem que
ser criada por Deus no momento da fecundação. Portanto, no caso dos seres humanos Deus
tem que intervir com um ato criador toda vez que um ser humano é gerado. Por isso, da
mesma maneira que Deus tem de sustentar as coisas em geral no ser para elas continuarem
existindo, no caso da nossa alma ele também tem que continuar sustentando essa criatura no
ser para ela continuar existindo. E é um ato criador diferente, distinto daquele pelo qual Deus
criou o universo no seu conjunto.

Assim, cada uma das nossas almas foi criada por um ato criador de Deus, distinto daquele
com o qual ele criou o universo como um todo, e Deus tem que continuar sustentando essa
alma no ser. É justamente porque ele tem que continuar sustentando-a no ser que Deus está
presente não só em todas as coisas, desde o começo do universo, como em cada um de nós,
desde que fomos concebidos. Deus está presente em nós, não porque estejamos contendo-o,
mas porque ele nos sustenta no ser.

Deus tem que sustentar de uma maneira especial a nossa alma no ser para que continuemos
existindo, e é justamente por isso que ele já está presente intimamente dentro de nós, mais
próximo do que imaginaríamos. Então, para enviar-nos a sua graça, ela não precisa envolver
o universo infinito ou finito, seja lá como for! Ela não precisa brotar do chão, mas vem
diretamente da presença que Deus tem dentro da nossa alma, dentro de nós. E Deus na
verdade está constantemente enviando essa graça pela qual nos favorece, e praticamente nos
pede que creiamos para podermos começar a dialogar com ele, para ouvirmos a sua voz.

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Quando Santo Agostinho percebeu que ao crer ele começava a enxergar melhor as coisas, é
porque tinha se conectado com essa graça que Deus lançava o tempo todo, chamando-o de
dentro dele mesmo: ele estava tão perto e Santo Agostinho não sabia.

Logo, o primeiro passo para termos um contato com Deus é abrirmo-nos a essa luz que fala
dentro de nós e nos está convidando o tempo todo a enxergar os sinais que ele colocou no
mundo inteiro. A natureza fala de Deus, mas para podermos enxergar Deus na natureza,
precisamos dessa luz da graça. Como tínhamos decaído pelo pecado original e se tornou
difícil enxergar Deus na natureza, então Deus mandou a lei escrita, mandou a revelação
escrita onde ele está se revelando. Aquilo são palavras que vêm de Deus, mas para podermos
compreendê-las nós precisamos dessa luz da graça.

No momento em que aceitamos essa luz da graça e aceitamos crer (o que não pode ser feito
se na verdade nós não engatamos, não aceitamos essa luz que vem de Deus) nós começamos
a entender e as coisas começam a fazer sentido, nós começamos a contatar com Deus. É por
isso que a bíblia diz: “Àqueles que creram, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus”.
Por isso que a Sagrada Escritura, principalmente o Novo Testamento, insiste tanto que
creiamos. Na verdade, estamos crendo em algo que Deus já está nos chamando
[interiormente] para crer.

Só que esse é um primeiro contato. Para que possamos realmente crescer dentro dessa relação
divina, Deus nos ensina que devemos amá-lo e devemos amá-lo supondo que reconheçamos
a sua presença, supondo que o tenhamos encontrado. Nós encontramos a Deus pela fé e nos
unimos a ele pela caridade. Por isso que se diz que a comunhão com Deus se dá pelo
conhecimento e o amor: pelo conhecimento da fé, e pelo amor da caridade.

Ao fazermos isso, ao crermos e amarmos, estamos na verdade em comunhão com o Cristo


em sua humanidade, através do qual nos vem essa graça, depois da sua ressurreição. Mas ao
estarmos em contato com a humanidade do Cristo pela fé e a caridade, pouco a pouco Jesus
vai construindo dentro de nós um organismo sobrenatural que vai se desenvolvendo e Deus
começa a se manifestar de uma maneira mais evidente. Isso é que o ocorre quando vamos nos
santificando: pouco a pouco, através da graça, o Cristo ressuscitado nos leva a um
conhecimento cada vez mais íntimo de Deus, algo que ocorre quando começa a se manifestar
uma santidade mais explícita.

É exatamente por isso que, no episódio de Marta e Maria, ao falar que Marta estava na
cozinha e se preocupava com muitas coisas, Jesus dizia que a coisa mais importante era o que
Maria estava fazendo (ela estava sentada aos pés do Senhor ouvindo a sua palavra).

Hoje, depois da ressurreição do Cristo, para estarmos “sentados aos pés do Senhor”, isso
acontece através da fé. Quando cremos, estamos sentados aos pés do Senhor, estamos em

244
contato com ele de uma maneira física, ontológica, real: estamos em contato com o Cristo
ressuscitado. E quando nós não só reconhecemos a sua presença pela fé, mas o amamos, o
próprio Cristo diz: Se alguém me ama, meu Pai (que é a Santíssima Trindade) o amará e nós
viremos até ele e construiremos nele a nossa morada.

Além disso, ele diz que devemos permanecer no seu amor: “Quem permanece em mim,
produz muito fruto; quem não permanece em mim, será jogado fora”. O que ele quer dizer
é que quem não permanece nele, como Maria estava, não vai produzir fruto espiritual
nenhum. Pode produzir fruto se montar uma empresa, se é um grande político, mas depois
morre e acabou! Tudo isso não foi fruto espiritual nenhum, pois os frutos espirituais vêm
através da vivência da fé e da caridade na oração.

C) Virtude da esperança. — Existe uma terceira virtude: a esperança. A esperança é uma


virtude que nos faz ter pressa. As pessoas que têm esperança são aquelas que querem alcançar
alguma coisa: o indivíduo tem esperança da coisa, porque não vê a hora da coisa chegar. Então
é a esperança que faz a fé se juntar com a caridade. E, sabendo que estamos correndo em
direção a uma perfeição espiritual, a um estado de “adulto” em Cristo; sabendo que essas
coisas são verdadeiras, são reais, ela faz com que tenhamos pressa e não façamos isso uma [vez]
ou outra, mas nos dediquemos verdadeiramente à vida espiritual.

4. Essência dos três primeiros mandamentos

Justamente os primeiros mandamentos, que falam de amar a Deus sobre todas as coisas,
santificar o seu nome, santificar os dias santos de guarda, são mandamentos que se referem
ao nosso relacionamento com Deus, que se dá principalmente através da oração na medida
em que nela nós conseguimos juntar a fé, a esperança e a caridade.

Então, na verdade, para cumprirmos o primeiro mandamento nós precisamos aprender a


rezar. Porém, aí vem a dificuldade, porque essa maneira de rezar que estamos comentando é
muito simples se soubermos fazê-la e se tivermos já uma certa experiência das coisas de Deus:
de que pela fé realmente existe uma força que age dentro de nós, onde percebemos que ao
crer estamos em contato com alguma coisa divina, e reconhecemos que isso que não vemos é
o próprio Deus em nós, sendo capazes de amá-lo de uma maneira extraordinária.

Isso é muito difícil de fazer. É fácil quando nós já temos algum conhecimento, alguma
experiência. Mas na prática é dificílimo fazer isso quando somente ouvimos, achamos bonito,
mas não conseguimos ver.

Santo Agostinho teve uma grande vantagem: ele viu isso desde o início porque havia levado
uma vida de busca da verdade e, quando creu, percebeu uma transformação tão grande e tão

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repentina na sua mente que notou que aquilo não era qualquer coisa, mas o Cristo que estava
agindo pela fé.

5. Do sacramento da Eucaristia

Toda vez que cremos, Cristo age em nós pela fé, age verdadeiramente. Mas no começo da
vida espiritual, apesar de poder perceber sinais de que isso é assim, parece uma coisa muito
abstrata. Em razão disso nós precisávamos de um remédio. Jesus inventou um remédio
absolutamente extraordinário que é uma das coisas mais geniais já feitas em todos os tempos.
Isso e a obra da criação são coisas paralelas; é uma coisa absolutamente extraordinária quando
percebemos a sua grandeza. Jesus inventou uma coisa que chamamos de Eucaristia. Graças à
Eucaristia se abre uma porta de vida espiritual até às pessoas mais primitivas.

Na Eucaristia nós cremos, por causa da palavra de Cristo e do testemunho dos primeiros
cristãos, que quando se celebra a santa missa e o sacerdote devidamente ordenado consagra o
pão e o vinho, aquilo se transforma no Corpo e Sangue de Cristo: o pão se transforma no
Corpo de Cristo, e o vinho se transforma no Sangue de Cristo.

Não dá para entrar aqui nos detalhes de como isso acontece, mas podemos adiantar alguma
coisa. Quando dizemos que o pão se transforma no Corpo de Cristo, na verdade o que está
presente ali não é só o Corpo de Cristo. O pão se transforma no Corpo de Cristo, mas é o
Corpo de Cristo ressuscitado. Jesus ressuscitou e está vivo fisicamente em algum lugar do
universo. Ele ressuscitou em carne e osso, então tem três dimensões, portanto ocupa um lugar
no espaço até hoje. Ele está sentado à direita do Pai, no sentido de que é o primeiro ministro
de Deus (a sua humanidade que dispensa a graça para todos nós), mas está fisicamente em
algum lugar.

Quando se consagra o pão, o pão não perde a aparência de pão, mas se transforma neste
Corpo de Cristo que está lá. O Corpo de Cristo consagrado não é uma cópia do Corpo
ressuscitado: é o próprio Corpo de Cristo que passa a estar na substância da hóstia. E esse
Corpo não está dissociado do Sangue, nem da sua Alma, nem da sua Divindade. Logo, na
hóstia consagrada está o Cristo inteiro.

Pelo mesmo motivo, o vinho consagrado se transforma no Sangue de Cristo, mas não é uma
cópia do Sangue de Cristo: é o próprio Sangue de Cristo, tal como está nele fisicamente hoje
ressuscitado. Este Sangue de Cristo não está separado do seu Corpo, nem da sua Alma, nem
da sua Divindade. Logo, no Sangue de Cristo (no vinho consagrado), está o Cristo inteiro.

Quando comungamos, quando recebemos essa hóstia (seja nas duas espécies ou não, porque
ele está inteiro em qualquer uma das duas), nós temos a presença física do Cristo ressuscitado
dentro de nós de um modo especial, sacramental, enquanto essas espécies continuam visíveis

246
— enquanto a aparência do pão continua pão e a aparência do vinho continua vinho. No
momento em que recebemos o pão, até que ele não se dissolva no estômago, temos a presença
sacramental do Cristo vivo e ressuscitado em nós. Essa presença cessa quando as aparências
do pão e do vinho se desfazem completamente.

Durante cerca de dez minutos (que é aproximadamente o tempo que pode durar a presença
do Cristo na Eucaristia) Cristo está realmente dentro de nós. E o motivo da instituição desse
rito onde Cristo se dá a nós como alimento é justamente para que, naqueles dez minutos em
que estamos em comunhão com ele, possamos aprender a amá-lo tanto quanto possível. Essa
é a finalidade da Eucaristia: que durante dez minutos [aproximadamente] tenhamos uma
experiência de amor.

Muito curiosamente o que ocorre é que, com frequência, dependendo da fé e da caridade


que tivermos, da fé e da devoção com que comungamos, nós percebemos que conseguimos
amar muito mais profundamente a Cristo naquele momento do que se estivéssemos em
outro momento.

É como aconteceu no evangelho com aquela moça que padecia fluxo de sangue: como ela
cria, ao tocar no Cristo ela percebeu que uma força saía de lá para curá-la. Da Eucaristia vem
também essa força (que depende da nossa fé e amor) não para curar uma doença, mas para
que aprendamos a amar.

Normalmente, quem comunga com frequência vai percebendo a transformação que a


comunhão faz dentro de si: as virtudes ficam mais fáceis [de ser praticadas], a castidade fica
mais leve, a paciência fica mais profunda, a devoção vai crescendo. Nós vamos mudando
realmente se nos aproximamos da Eucaristia da mesma maneira que aquela moça que padecia
fluxo de sangue se aproximou do Cristo. Não é sugestão, porque se tentarmos fazer isso com
qualquer outra coisa, como o terço, a bíblia, o retiro espiritual ou qualquer outra prática, não
conseguimos reproduzir o mesmo efeito. Nós percebemos que é diferente.

De qualquer maneira, o mais importante que queremos sublinhar aqui é outra coisa.
Podemos perceber que na comunhão, no rito da Eucaristia, há todos os elementos da oração
que acabamos de descrever e que conseguimos fazer de uma maneira muito mais fácil do que
pela própria descrição da oração que colocamos. Quando nos aproximamos da Eucaristia,
em primeiro lugar precisamos crer que Jesus está lá, pois do contrário não estaríamos nos
aproximando; devemos ter aquela consciência de que estamos nos aproximando de Jesus
ressuscitado. Então já não existe muita dúvida e muita complicação de como fazer um ato de
fé.

Na oração, por incrível que pareça, isso é mais complicado. Quando fazemos um ato de fé,
realmente estamos em contato com Jesus ressuscitado. Ele está lá, porque Deus está dentro

247
de nós, tentando entrar em contato conosco. Quando nós cremos (se o fazemos
verdadeiramente) ele já está em contato conosco, o contato já foi feito. Porém, nós não
sabemos se de fato cremos ou não cremos, se cremos direito, se é daquela maneira, em que
devemos crer; há muitas dúvidas. É a coisa mais simples do mundo, mas quando já
conseguimos fazê-lo.

Na Eucaristia não existe essa dúvida. É muito simples: Jesus está lá e porque está mesmo, e vai
ficar dez minutos conosco. Devemos crer nisso ou então não tem sentido ir comungar. Crer
na Eucaristia é muito simples, só precisamos procurar crer com mais atenção, mais dignidade,
mais reverência, mais profundidade. Precisamos crer com a devida dignidade e a devida
preparação da alma, a qual exige que estejamos em estado de graça quando nos aproximamos
da comunhão. Mas concretamente, a coisa não deixa muita margem à dúvida: nós sabemos
o que devemos fazer, só devemos procurar fazê-lo mais profundamente. Depois, quando o
recebemos na Eucaristia, já sabemos para onde devemos dirigir o objeto do nosso amor: é o
próprio Cristo que está lá naquela Eucaristia que recebemos.

Quando estamos rezando e fazemos um ato de fé, nós sabemos que estamos em contato com
o Cristo, mas temos dificuldade de entender: “Mas onde, cadê?”. Fica mais difícil
compreender de que modo a caridade se junta ao ato de fé. Na Eucaristia não tem dificuldade
nenhuma: nós crê que Jesus está na hóstia (e de fato ele está) e sabemos que durante dez
minutos temos de amá-lo, agradecê-lo e esperar também que ele manifeste seu amor por nós.
Sabemos que ele permanece naquela hóstia consagrada enquanto ela não se desmancha. Até
uma criança inocente que sabe quem é Jesus e sabe que ele está na hóstia é capaz de ter uma
experiência profunda de união de fé e caridade na Eucaristia. Essa é uma das experiências mais
extraordinárias que podemos ter.

Em vista disso, para aprendermos a rezar temos que aprender primeiro a comungar bem, ou
seja, fazer uma boa confissão, abandonar todo pecado grave (que é condição indispensável,
sem a qual receber a Eucaristia seria um sacrilégio). E na hora que aprendermos a comungar,
voltarmos a comungar nos dias seguintes, comungar com frequência, até aprendermos a
apreciar o encontro íntimo que temos através da graça com o Cristo na Eucaristia.

Quando começamos a fazer isso, começamos a perceber que tem uma força lá, porque para
quem comunga com frequência (se a comunhão foi correta e em estado de graça) os efeitos
da Eucaristia sobre a vida pessoal começam a ser quase que imediatos, começam a ser visíveis
em questão de dias e até no mesmo dia, dependendo do fervor que a pessoa tem.

Quando começamos a perceber o quanto aquilo é autêntico e verdadeiro, o quanto é sagrado


e verdadeiramente procede de Deus, aí a oração consiste em fazer exatamente a mesma coisa,
mas sem a ajuda daquela Eucaristia, sem a ajuda do rito. Não esquecendo que,
independentemente disso, a Eucaristia tem um valor insubstituível, porque nela Deus está

248
mais presente do que na própria oração. Na oração ele está presente através da graça; na
Eucaristia, além da graça, Deus está presente também pelo sacramento.

A Eucaristia funciona então como uma espécie de muleta para ensinar-nos a andar sozinhos.
Porém quando aprendemos, percebemos que a muleta na verdade é mais valiosa do que o
próprio andar sozinho. É uma muleta curiosa, como se fosse uma muleta de um trilhão de
dólares: nos usamos a muleta, mas quando aprendemos a andar, não queremos deixar a
muleta! Como se disséssemos: “Não, isso aqui vale um trilhão de dólares. Em toda a minha
vida eu não vou ganhar um trilhão de dólares. Eu quero continuar com a muleta, essa aqui
eu não largo nunca mais!”

6. Finalidade da evangelização e o início da vida espiritual

Na verdade, o que acontece é o seguinte: o trabalho de evangelização que Cristo instituiu,


pelo qual ele quer que a salvação e a santidade cheguem a todos os homens, consiste em
alcançarmos o maior grau possível de comunhão com Deus através da oração e da vida
espiritual. Só que para fazer isso, nós precisamos primeiro crer em Deus. Para crer em Deus,
precisamos conhecer a Sagrada Escritura, precisamos conhecer a revelação: é o caminho
ordinário.

Podemos conhecer a Deus simplesmente admirando a natureza, mas isso acontecia no paraíso
terrestre. Hoje em dia as pessoas olham para a natureza e compram uma passagem para a
Disneylandia! Elas não enxergam Deus, mas a Disneylandia, Bariloche, os Alpes. Já foi a
época em que os homens podiam ordinariamente, no paraíso terrestre, ver a Deus olhando a
natureza. Mas isso pode ser alcançado, teoricamente não é impossível. Porém o meio
ordinário também não é estudando metafísica; o meio ordinário é esse de Santo Agostinho:
meditando, estudando as Sagradas Escrituras, até percebermos que aquilo não pode vir de
outro lugar senão de Deus.

Logo, o anúncio da palavra é o começo da salvação. A palavra foi anunciada para que pudesse
ser construída a Igreja, com os seus sacramentos, os sacerdotes, os bispos, as diversas funções,
o papa, etc. A Igreja é necessária porque normalmente as pessoas não vão ter vida espiritual
se não for através da Eucaristia. Na verdade, nós temos que anunciar a palavra para que as
pessoas aceitem a Igreja e possam começar a vida espiritual através dos sacramentos,
principalmente através da Eucaristia. É na Eucaristia que as pessoas aprendem pela primeira
vez a ter uma experiência de comunhão com Deus, é para isso que ela existe.

Pela confissão, vamos corrigindo as virtudes, pois nós nos confessamos uma vez para sair do
pecado grave, mas depois precisamos confessar regularmente caso tenhamos caído em um
pecado grave, e independentemente disso, precisamos nos confessar para podermos crescer
nas virtudes. Na medida em que vamos crescendo nas virtudes, na renúncia a nós mesmos e

249
na intimidade com o Cristo na Eucaristia, devemos pouco a pouco tentar “voar com as
próprias asas”, isto é, aprender a montar a nossa vida de oração, montar uma vida espiritual,
uma vida que é uma busca de intimidade com Deus semelhante àquela que encontramos na
Eucaristia, mas que não conseguimos mais do que dez minutos por dia, porque não podemos
comungar o dia inteiro.

Até recentemente era proibido receber a Eucaristia mais de uma vez por dia. De uns trinta
anos para cá, a Igreja passou a permitir que a pessoa possa comungar duas vezes no dia se, na
segunda vez, ela assistir uma missa completa, e não mais do que isso. Normalmente as pessoas
comungam uma vez por dia ou algumas vezes na semana. De qualquer maneira, ainda que
comungassem todos os dias, são dez minutos de comunhão com Deus. O que Deus quer é
que essa comunhão se aprofunde através da fé, da esperança e da caridade, durante as vinte e
quatro horas do dia, o máximo possível e através da oração.

Para a oração realmente produzir um fruto muito grande dentro de nós, para que ela possa
realmente produzir o desenvolvimento de todas as virtudes interiores, de toda a caminhada
até a plena estatura dos filhos de Deus, os grandes Santos de Deus que tiveram experiência
mais palpável disso dizem que seriam necessárias pelo menos duas horas de oração por dia,
todos os dias. Poderia ser vinte e quatro horas por dia, como São Francisco que durante a
quaresma ficou quarenta dias no monte Alverne, mas não necessariamente. Porém, também
não é uma Ave Maria de vez em quando.

O objetivo do evangelho é a comunhão com Deus. Isso está lá no evangelho de São João,
quando Jesus fala: Quero que essas pessoas que me destes, estejam tão unidas a mim como eu
estou unido a ti, ó Pai. Jesus quer que estejamos tão unidos com ele, como ele próprio está
unido ao Pai. E normalmente, para que realmente possamos alcançar uma coisa dessas, se não
conseguirmos organizar uma vida em que tenhamos duas horas de oração profunda por dia,
que não seja a leitura da Sagrada Escritura, nem o breviário, nem a liturgia, mas uma
experiência profunda de fé, esperança e caridade; se não conseguirmos uma coisa dessas,
dificilmente conseguiremos entrar mais afundo.

Justamente porque não é qualquer oração, ou seja, não é o terço, não é o breviário, não é a
leitura das Sagradas Escrituras, mas uma experiência de duas horas de comunhão com Deus,
onde a fé esteja unida à caridade pela esperança tão fortemente, que chegue a durar um tempo
destes; exatamente por essa razão nós não alcançamos isso logo de uma vez. Temos que
começar pelo começo: que aqueles dez minutos da Eucaristia sejam uma experiência intensa.
Quando conseguirmos alcançar este fruto da Eucaristia, devemos procurar ter alguns
momentos de dez minutos de oração durante o dia onde tentamos alcançar aquela mesma fé,
devoção e comunhão com Deus que alcançamos na Eucaristia.

250
Enquanto não alcançarmos uma devoção deste tipo, não adianta rezar uma hora nem duas:
será apenas aflição e desespero que talvez acabe até nos fazendo desistir de rezar. Mas pouco
a pouco devemos nos esforçar por tentar alcançar uma vida de oração onde possamos ter essa
experiência de oração profunda, por pelo menos uma ou duas horas cada dia.

Na vida da maioria dos grandes Santos nós vemos que eles rezavam isso. Dificilmente alguém
se santificou sem que tivesse uma vida de oração assim. E para fazermos isso, precisamos da
experiência da Eucaristia, que não é uma experiência passageira! Mesmo quando chegamos a
esse nível de oração, a experiência da Eucaristia continua. É uma muleta mais valiosa do que
a própria coisa à qual ela nos está preparando.

E para haver Eucaristia tem que haver Igreja, e para haver Igreja tem que haver o anúncio da
palavra. Então, de modo geral, esse é o esquema da evangelização. E é curioso que esse
esquema de que estamos falando nunca apareceu assim tão claro na história da Igreja a não
ser por causa do Concílio Vaticano II. Isso foi debatido durante o Concílio Vaticano II e
Paulo VI acabou colocando esse esquema, ao qual eu estamos acrescentando um
detalhezinho aqui e outro ali. O Papa colocou isso bem claro numa exortação apostólica que
se chama Evangelii Nuntiandi.

Isso encerrou um debate que se desenvolvia paralelamente ao Concílio Vaticano II, no qual
os teólogos estavam discutindo qual era a finalidade da evangelização: anunciar a palavra ou
construir a Igreja. Aí Paulo VI disse: “Não, a finalidade da evangelização não é anunciar a
palavra, é construir a Igreja. Nós anunciamos a palavra para podermos construir a Igreja”. E
ele continua, dizendo que nós construímos a Igreja para que as pessoas possam se aproximar
da Eucaristia. E nos aproximamos da Eucaristia para podermos desencadear a vida espiritual,
que nos levará à plena comunhão com Deus.

Por que estamos falando isso? Porque temos três mandamentos para analisar, que são: “Amar
a Deus acima de todas as coisas”, “Não tomar seu santo nome em vão”, e “Santificar
domingos e festas”, e estes três mandamentos referem-se a isso. No entanto, isso é tão
profundo que nós precisávamos ter essa ideia clara de que não se trata de um meio, mas do
próprio fim da vida cristã.

Existe um exame, uma análise que temos de fazer dos três mandamentos à luz do que é evitar
o pecado grave e à luz dos outros níveis. Aqui, porém, nós temos mandamentos que estão no
nível máximo, é o nível mesmo de fim.

Lembremos do que falamos sobre a finalidade da moral. Ela existe primeiro para nos
afastarmos definitivamente do pecado grave, indicando exatamente as coisas das quais temos
de nos afastar de uma vez. Segundo, a moral existe para que possamos desenvolver as virtudes
fundamentais e com isso ordenar a nossa alma, ordenar nossas paixões e nossas relações para

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com o próximo. Terceiro, para desenvolver a prudência e assim a prudência, que é a maior
das virtudes cardeais, possa ser o maestro que se utiliza sabiamente das virtudes que
conseguimos desenvolver.

Por último, a prudência deve ser capaz não só de dirigir as virtudes numa “música” em
especial (apenas numa ação concreta), mas também na “sinfonia” inteira da nossa vida, que
consiste em ordenar todas as coisas de tal maneira que possamos abrir espaço para a
contemplação. Abrir espaço para a contemplação, que na verdade é o modo pelo qual nos
unimos a Deus, é justamente a função dos três primeiros mandamentos e das três virtudes
teologais: fé, esperança e caridade.

Portanto, os três primeiros mandamentos estão no nível máximo disso tudo. Por isso, nós
não podíamos fazer uma análise deles apenas do ponto de vista mais baixo, senão perderíamos
de vista o sentido de todo esse conjunto.

Isso não é uma burocracia! Todas estas coisas que estamos aprendendo não são uma
burocracia do que é certo ou errado: se fizermos certo, ganhamos um ponto; se fizermos
errado, perdemos um; de repente pisamos na bola e estamos fora. É algo muito maior do que
isso. Dito isso, agora temos de ver esses três mandamentos dentro deste contexto.

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Aula 17 – TERCEIRO MANDAMENTO

Índice
1. O descanso sabático na tradição cristã
2. Essência do terceiro mandamento
3. O dízimo da oração: pedir a graça da fé
4. Requisitos para alcançar a graça da fé
5. As obras que a fé produz
6. Matéria grave em relação ao terceiro mandamento
A) Assistir missa aos domingos e dias santos
B) Abstenção de trabalhos aos domingos e dias santos
b.1) Trabalhos servis
b.2) Trabalhos forenses
b.3 ) Comércio público

1. O descanso sabático na tradição cristã

O terceiro mandamento na tábua original de Moisés dizia o seguinte: “Lembra-te de


santificar o dia de sábado. Trabalharás durante seis dias e farás neles todas as tuas obras. O
sétimo dia, porém, é o sábado do Senhor teu Deus: não farás nele obra alguma, nem tu, nem
teu filho nem tua filha, nem teu servo nem tua serva, nem teu gado, nem o peregrino que está
dentro de tuas portas. Porque o Senhor fez em seis dias o céu e a terra, e o mar e tudo que neles
há, e descansou ao sétimo dia. Por isso o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou”.

Se prestarmos atenção, aqui nesse mandamento se diz que no dia de sábado, o sétimo dia da
semana, Deus quer que as pessoas não façam obra alguma e que descansem para santificar
esse dia.

Os cristãos entendem que, ao ter Cristo morrido, ressuscitado e subido aos céus, esse
mandamento e muitos outros da lei judaica foram revogados, assim como todas as outras leis
do Velho Testamento que eram [meramente] rituais ou judiciais. De qualquer maneira, o
sentido delas não mudou, permanece válido. Nós vemos que esse mandamento diz para
descansar no dia de sábado, não fazer obra, porque Deus também no dia de sábado
descansou: ele fez o mundo em seis dias e no sétimo descansou.

Na Suma Teológica, Santo Tomás de Aquino diz que o sentido deste mandamento ou um
dos seus sentidos é comemorar a criação do universo. Deus criou o universo do nada e não

253
tinha necessidade de fazê-lo: em sua perfeição infinita, Deus poderia ser único, sendo só ele o
único ser existente, mas ele quis compartilhar isso com todos nós. Então criou o universo
espiritual (os anjos) e o universo físico. Na linguagem da bíblia isso é traduzido como “o céu
e a terra”: o céu é a criação espiritual, a terra é a criação material. E a criação material foi se
desenvolvendo, para que no seu coroamento pudesse surgir o homem, sendo imagem e
semelhança de Deus. Isso é uma obra simplesmente extraordinária: o homem é a obra-prima
de Deus.

Por isso, Deus instituiu esse dia de sábado primeiramente para que [tomássemos consciência]
da grandiosidade disso e pudéssemos agradecê-lo por ter criado o mundo. Habituados com
o trabalho do dia a dia, as aflições dos dias, nós esquecemos de perceber essa realidade. Então
o sétimo dia, o dia de sábado, era para descansarmos, para o santificarmos, agradecendo a
Deus por ele ter criado o mundo, por ter sido bom: por ter querido compartilhar a sua
felicidade conosco, ao invés de desfrutá-la sozinho. São sentimentos da ordem mais elevada
possível!

Depois, porém, Jesus nasceu, cresceu, pregou, morreu, ressuscitou e sentou-se à direita do
Pai, para que pudesse redimir a humanidade do pecado em que ela tinha caído. E São Paulo
diz que, em Cristo, Deus recapitulou o céu e a terra, fez uma nova criação.

A grandiosidade do que fez Cristo ao subir aos céus e, através da graça, permitir-nos participar
de sua própria filiação divina, é uma coisa muito mais extraordinária do que toda a obra da
criação. Perto do que Jesus fez no domingo ao ter ressuscitado, a criação se torna uma coisa
menor, apesar de toda essa grandiosidade que falávamos. Então os cristãos entenderam que,
a partir da ressurreição e ascensão de Jesus ao céu, nós tínhamos muito mais razão de
agradecer a Deus pela nova criação que surgiu em Cristo, do que pela criação material que já
havia (a criação que Deus já havia realizado na obra dos seis dias).

A partir disso, ao invés de agradecer pela criação, as pessoas começaram a agradecer muito
mais pela redenção e imediatamente passou-se a cultuar o dia de domingo. Desde o início do
cristianismo os cristãos não cultuavam mais o sábado, mas o domingo, o dia do Senhor. Eles
faziam vigília no sábado à noite, celebravam uma missa e aguardavam o amanhecer como que
reconhecendo a ressurreição de Jesus. Começou-se então a cultuar o domingo.

No entanto, sempre se entendeu que esse culto do domingo não era o “substituto” da lei do
sábado. Na verdade, com o advento de Cristo, a lei do sábado assim e as leis cerimoniais do
Velho Testamento foram todas abolidas. A lei do sábado não foi “transformada” na lei do
domingo. Esse agradecimento a Deus que se fazia todo sábado pela obra da criação, passou,
sem que se tivesse trocado uma lei por outra, a se dar no domingo de uma maneira
espontânea. Só muito tempo depois é que a Igreja, usando o poder de ligar e desligar, passou
a exigir dos fiéis que em todos os domingos eles assistissem missa.

254
Portanto, a lei que obriga os cristãos a assistirem missa todos os domingos é uma lei
eclesiástica. O costume de celebrar o domingo começou imediatamente depois da
ressurreição do Cristo. Os cristãos reuniam-se no sábado à noite para celebrar a Eucaristia e
faziam vigília até de manhã, esperando o sol nascer em comemoração à ressurreição do Cristo.
Esse costume foi quase que espontâneo.

A lei de ser obrigatório assistir missa aos domingos, salvo engano, veio uns trezentos anos
depois quando a Igreja estabeleceu em algum momento (talvez no primeiro concílio
ecumênico) que os cristãos deveriam assistir missa aos domingos obrigatoriamente. Jesus
nunca preceituou que fosse obrigatório assistir missa aos domingos. Ao celebrar a última ceia
ele disse: “Fazei isso em minha memória”, mas não disse quando. Deu a entender que ele
queria que fosse costumeiramente, mas quem estabeleceu [a lei] foi a Igreja.

2. Essência do terceiro mandamento

Por causa dessas nuances, dentre os dez mandamentos, o terceiro deles (que era descansar no
dia de sábado e santificá-lo) passou a ser colocado no catecismo como: Guardar domingos e
festas. Esse mandamento tinha um sentido mais profundo no Velho Testamento, porque nós
vemos que os três primeiros mandamentos se referem a Deus e os sete últimos se referem ao
próximo, e todos estão em ordem decrescente de importância: honrar pai e mãe (as criaturas
às quais devemos a maior gratidão de todas, por nos terem dado a vida) está em primeiro; não
tirar a vida dos outros (que é mais do que qualquer outra coisa) está em segundo; não cometer
adultério vem antes de não roubar, que é menos grave do que cometer adultério, e assim por
diante.

Os [sete últimos] mandamentos estão, pois, em ordem decrescente de importância, assim


como os três primeiros. Estes, seja lá o que signifiquem (o que nós vamos ver) mostram-nos
em ordem decrescente aquilo que Deus quer no nosso relacionamento para com ele, que é
próprio miolo do cristianismo, o próprio miolo da religião: o relacionamento íntimo com
Deus.

Nesse sentido, ao olhar o Velho Testamento nós vemos que apesar de o mandamento do
sábado pedir para descansarmos, não fazermos trabalho e santificarmos o dia, há duas
passagens do profeta Isaías (capítulos 56 e 58) em que é possível perceber que esse
mandamento do sábado está relacionado com a vida espiritual. Nessas passagens o profeta
diz que aquelas pessoas que observarem os sábados vão perceber um efeito espiritual
absolutamente extraordinário em suas vidas, mas tão extraordinário que podemos perceber
que está se referindo à própria santidade. Quer dizer, aquelas pessoas que observarem o
sábado alcançarão uma santidade e intimidade com Deus fora do comum.

255
Obviamente não podemos entender que tudo isso acontecerá [pelo simples fato] de o fulano
descansar no sábado. Há pessoas que descansam a semana inteira, esses então deveriam se
tornar o que? Nós percebemos, por estas passagens, que o profeta está querendo sugerir que
esse descanso de sábado, esse “parar de fazer tudo” é para que a pessoa se dedique à vida
espiritual, mais exatamente à vida de oração, porque é isso ela produz na vida das pessoas
quando elas a seguem.

Na verdade, por tais passagens entendemos que no Velho Testamento, na época de Moisés,
Deus encontrou pessoas muito rudes e estava querendo acostumá-las pouco a pouco à vida
interior, por isso dizia as coisas às vezes pela metade. Por exemplo: “Olho por olho e dente
por dente”. Lendo isso hoje, parece que ele está ensinando a nos vingarmos, mas se
remontamos à época de Moisés veremos que naquela época, se um sujeito arrancasse o olho
de uma pessoa, como vingança ela arrancava o olho do sujeito, da mulher dele, da sogra dele,
dos netos dele, até à sétima e oitava geração. Moisés então disse: Vamos para com isso! Se
alguém arrancar o teu olho, você pode arrancar só um olho dele, não os dois, e muito menos os
da mulher dele. E chega, está cumprida a justiça!. Ele estava querendo moderar as paixões
dessas pessoas.

No Velho Testamento Moisés também disse: Você não vai cobrar juros do teu irmão, do
israelita; pode cobrar juros do estrangeiro. Depois, porém, os profetas dizem para não cobrar
juros nem do estrangeiro, nem dos israelitas. E Jesus depois disse: Vocês ouviram falar: olho
por olho, dente por dente. Agora é diferente, agora eu quero o perdão completo.

Sendo assim, no Velho Testamento, quando Deus pediu que os judeus descansassem no
sábado, era para aprenderem a parar de trabalhar; mas na verdade Deus queria que no sábado
eles rezassem e se dedicassem à vida espiritual. Na época de Moisés, talvez isso não pudesse
ser entendido logo, mas aqui Isaías o dá a entender. No capítulo 58, 13, o profeta Isaías diz:
“Se tu afastares o teu pé do sábado para não fazeres a tua vontade no meu dia santo e chamares
ao sábado ‘as tuas delícias e o dia santo e glorioso do senhor’, e o solenizares, não seguindo teus
caminhos, não fazendo tua vontade, não dizendo palavras vãs, então te deleitarás no Senhor e
eu te elevarei acima das alturas da terra, e alimentar-te-ei com a herança de Jacó, teu pai,
porque a boca do Senhor falou”. Ele diz que quem observa o sábado se deleitará no Senhor,
terá intimidade com Deus e será elevado acima das alturas da terra. Isso é uma promessa que
cabe a quem tem uma profunda vida de oração, não é simplesmente a quem descansa.

E no capítulo 56, 4, ele diz: “Àqueles que guardarem os meus sábados, praticarem o que eu
quero e abraçarem minha aliança, darei um lugar na minha casa e das minhas muralhas a
dentro, e um nome ainda melhor do que eu darei aos filhos e às filhas. Dar-lhe-ei um nome
eterno, que não perecerá jamais. E aos filhos do estrangeiro, que se unem ao Senhor para o
honrar e amarem o seu nome, a todo que guardar o sábado para não o profanar e abraçar
minha aliança, conduzi-los-ei ao meu santo monte e os alegrarei na minha casa de oração. Seus

256
holocaustos e suas vítimas ser-me-ão agradáveis sobre o altar, porque minha casa será chamada
casa de oração para todos os povos”.

Tais promessas que ele está dando a quem guardar o sábado, seriam incompreensíveis se Isaías
estivesse concebendo que o mandamento do sábado esgota-se no repouso. Repouso por
repouso, sabemos que há pessoas que repousam a semana inteira, com sombra e água de coco
e eles não merecem de Deus essas coisas; aliás, merecem boas chibatadas pelo pecado da
preguiça.

Vemos então que esse mandamento do sábado no fundo quer ensinar-nos a levar uma vida
espiritual. O primeiro dever para com Deus é levarmos uma vida de oração. E como no Novo
Testamento as formalidades judiciais e cerimoniais do Velho Testamento foram abolidas, na
verdade a essência do terceiro mandamento não é que exatamente santifiquemos o sábado ou
o domingo, mas que nos dediquemos profundamente a uma vida de oração, não só no
sábado e domingo, mas sempre. A vida de oração é [o assunto] de que fala o terceiro
mandamento, é o verdadeiro significado do terceiro mandamento: o verdadeiro culto a Deus,
que começa com a oração.

A Igreja acrescentou a isso algumas exigências mínimas que entendeu ter a prerrogativa de
fazer. A oração enquanto tal tem que ser livre, tem que ser consequência do amor, por isso
não podemos colocar requisitos mínimos obrigatórios. Mas a Igreja pode, como faz no culto
a Deus, para o bem dos fiéis colocar algumas coisas das quais ela não quer que eles se afastem.

Por conta disso, dentro desse mandamento de guardar domingos e festas a Igreja preceituou
duas coisas: que assistamos missa aos domingos e dias santos, e que no domingo e nos dias
santos nós nos abstenhamos de determinados tipos de trabalho, ambas as coisas sob pena de
pecado grave. Na verdade, há duas coisas no terceiro mandamento: i) sua verdadeira natureza,
sua natureza mais profunda que é o início do relacionamento com Deus; ii) bem como duas
coisas que a Igreja preceituou como obrigatórias, sob pena de falta grave. Sobre isso ela
legislou o mínimo.

3. O dízimo da oração: pedir a graça da fé

Para entendermos corretamente, deveríamos falar das duas coisas. O que seria a oração do
ponto de vista mínimo, ou seja, a partir do mais baixo dentre os três mandamentos
relacionados a Deus? A oração, dentro desse mínimo, é uma elevação da mente a Deus para
pedir-lhe as coisas necessárias à nossa vida espiritual. A oração nesse nível é isso: uma elevação
da mente a Deus para pedir-lhe as coisas necessárias à vida espiritual. E a primeira coisa
necessária para a vida espiritual, absolutamente a primeira de todas sem a qual não existe vida
espiritual, é a graça da fé. Devemos então entender o que é a graça da fé.

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Na verdade, se a oração é uma elevação da mente a Deus para pedir-lhe as coisas necessárias à
vida espiritual, e a primeira de todas as coisas é a fé, se não houver isso [fé] não existe vida
espiritual, porque a Sagrada Escritura diz em Hebreus 11, 1: “Sem fé é impossível agradar a
Deus, porque para aproximar-se de Deus é necessário primeiro crer que ele existe e recompensa
os que dele se aproximam”. Logo, o primeiro objeto que temos de pedir na oração é a graça da
fé. Por isso devemos ver o que significa a fé.

Quem mais brilhantemente conceituou teologicamente o que é a fé foi Santo Tomás de


Aquino na Suma Teológica. Santo Tomás de Aquino diz que a fé é um ato da inteligência.
Ora, um ato da inteligência sempre tem por objeto a verdade. Quando lembramos de uma
notícia do jornal, isso não é um ato da inteligência, apesar de parecê-lo. Quando estamos
contando uma história, não necessariamente é um ato da inteligência: aquilo é resultado do
imaginário. O ato da inteligência enquanto tal tem que ter por objeto uma verdade. Logo, se
a fé é um ato da inteligência, ela é um ato da inteligência que enxerga uma verdade.

Para enxergar uma verdade, normalmente ou essa verdade é um princípio evidente como os
princípios do ser (que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo — princípio clássico
de filosofia que não é preciso demonstrar); ou então se não é um princípio evidente, é alguma
conclusão a que chegamos a partir de um argumento, a partir de um raciocínio.
Raciocinando a partir de princípios que são evidentes, chegamos a uma conclusão.

Para enxergar uma verdade, ou ela é um princípio auto evidente, ou é necessário um


argumento. O problema é que o objeto da fé são as verdades que Deus revela, como por
exemplo: que Deus é bom, que Deus é misericordioso, que Deus nos ama, que Deus nos
concede a graça, que existe o paraíso, que Jesus era o próprio Deus encarnado e fundou a
Igreja; que os sacramentos têm eficácia por causa dos méritos da ressurreição do Cristo e uma
série de outras coisas. Todas as coisas que Deus revela (a Santíssima Trindade, a encarnação)
são mistérios da fé, porém esses mistérios não podem ser deduzidos por argumentos
humanos, pois não existe argumento humano que nos faça enxergar esses mistérios como
verdade. É diferente de um teorema de matemática sobre o qual podemos raciocinar e chegar
a uma conclusão.

Logo, se a fé é um ato da inteligência que enxerga uma verdade (e no caso são as verdades que
Deus revela), não podemos deduzi-los por nós mesmos. Só podemos aceitá-los se a vontade
humana, na confiança, dobra a inteligência a aceitá-los como verdade. Noutras palavras:
precisamos querer aceitá-los.

Entretanto, há outro problema: para aceitarmos uma coisa como verdade porque queremos
assim, também precisamos ter algum motivo razoável. Isso fazemos o tempo todo. Quando
vamos ao médico, ele nos diz: “Se não tomar esse remédio você morre. Você deve tomá-lo
toda semana”. Aí aceitamos. Às não temos um nível de instrução suficiente para verificar,

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mas pela vontade nós aceitamos que aquilo é verdadeiro porque há outros argumentos
plausíveis: sabemos que o nosso vizinho se curou, que todos se curam quando vão ao médico;
que as pessoas que não foram ao médico acabaram morrendo; que as pessoas que tinham
aquela doença passaram muito mal; além disso, vemos que o médico tem uma reputação, ele
estudou numa Universidade, que a lei dá um diploma e isso não aconteceria se ele não fosse
alguma coisa. Então aceitamos, apesar de não termos o argumento, aceitamos pela vontade.

Mas no caso da revelação divina, até isso não é suficiente, porque as coisas que Deus revela
são muito fortes. Deus diz que nos ama individualmente e isso é uma pretensão muito
grande. Segundo nós achamos, Deus é quem criou o céu e a terra, o universo inteiro. Se isso
for verdade, ele é muito mais importante que o presidente dos EUA ou o Rei da Inglaterra.
E o fato de acharmos que o presidente dos EUA nos ama já é uma pretensão fora do comum:
nós, meros cidadãos de um país do terceiro mundo, por que ele nos amaria? Pensando assim,
provavelmente seríamos uns desajustados. Se achamos que Deus, criador do céu e da terra,
perto do qual o presidente dos EUA não é nada, nos ama, isso é uma pretensão fora do
comum!

Não existe argumento de plausibilidade que consiga fazer nossa vontade se curvar diante
disso. No entanto, vê-se que muitas pessoas, principalmente os Santos, acreditavam nisso
com uma clareza, com uma certeza tranquila, pacífica, como se fosse a coisa mais evidente do
mundo. Por que eles faziam isso? Porque, na verdade não basta que apenas a vontade curve
a inteligência; é preciso que uma outra força nos ajude a fazê-lo. Essa força nós chamamos de
graça, graça atual, uma graça que age naquele momento.

Quando cremos, não é apenas a nossa vontade que curva a inteligência para crer porque há
um argumento plausível. Quando cremos é porque uma graça que Deus infunde no nosso
interior nos ajuda a isso: é uma graça que convida a vontade e ilumina a inteligência, para que
aquilo pareça verdadeiro. Essas quatro coisas compõem o ato de fé.

O ato de fé ocorre quando Deus revela alguma coisa externamente, propõe essa coisa
externamente. A inteligência compreende, vê que não existe prova. A vontade faz com que a
inteligência concorde com aquilo porque nós queremos, exatamente como quando
queremos acreditar num médico que prescreve tal tratamento como sendo o correto:
acreditamos porque quisemos; apesar de termos motivos, não tínhamos a prova.
Precisaríamos ser médicos para termos a prova e discutirmos o tratamento. Inclusive por isso,
normalmente não discutimos: ou aceitamos ou não aceitamos. Se não acreditamos,
procuramos outro médico; se acreditamos nele, aceitamos o seu conselho.

No caso, porém, do ato de fé, a inteligência assente a uma verdade que Deus revela porque a
vontade aceitou e dobrou a inteligência a isso, mas não só porque ela aceitou, senão porque
também havia uma ajuda da graça divina que iluminou a inteligência e convidou

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internamente a vontade, como se dissesse: “Pode crer, isso é assim mesmo”. Aí acabamos
como que vendo uma coisa que, na verdade, não teríamos um argumento racional. Nós
temos argumentos razoáveis sim, mas não argumentos probatórios que dispensem [o
império] da vontade e a ajuda externa. Isso que é o ato de fé.

Essa graça que nos ajuda a crer vem de dentro de nós. Ela vem de Deus, mas não através do
espaço, não é como um raio que cai sobre nós. É porque, desde que somos concebidos, nossa
alma teve que ter sido criada do nada. Deus não só deve criar as coisas do nada, mas também
sustentá-las no ser continuamente, senão elas voltariam ao nada. Portanto, Deus está presente
em todas as coisas, na medida em que precisa sustentá-las no ser. E na nossa alma, Deus está
presente de uma maneira especial.

Como Deus nos ama, mesmo que estejamos no pecado ele está tentando iluminar-nos o
tempo todo, ainda que não percebamos. Ele não só está tentando nos iluminar, mas se
aceitássemos essa iluminação, esse convite, Deus trabalharia nossa alma para ela se fortalecer
e ser capaz de ouvi-lo cada vez com maior clareza. Mas como não escutamos, não o deixamos
trabalhar.

Essa graça [necessária] para crermos é muito comum, é uma coisa constante nas pessoas. Deus
deu esta graça aos homens inúmeras vezes. Os homens, porém, na maioria das vezes a
desprezaram, não ouviram a voz de Deus que lhes falava desde dentro. Mas àqueles que
ouviram e acolheram, Deus concedeu a graça de crer, de enxergar os mistérios que está
revelando. A partir disso se inicia a vida espiritual.

A graça da fé, que é esse conjunto todo, é a primeira coisa que devemos aprender a pedir na
oração. A oração é uma elevação da mente a Deus para pedir-lhe a graça da fé, que é a primeira
manifestação do Espírito Santo, a primeira manifestação de Deus na nossa alma; todas as
outras são consequências dessa. É a graça interior de enxergar as coisas que Deus está
revelando-nos externamente.

Só a revelação externa não é suficiente para cremos. Temos um exemplo muito claro disso na
história da crucificação do Cristo, onde havia dois ladrões que conheciam Jesus, um tão bem
quanto o outro. Enquanto Jesus pregava na Galiléia eles iam roubar as pessoas, então ambos
estavam por dentro de tudo que aconteceu naqueles tempos: eles sabiam dos milagres que
Jesus tinha feito, conheciam a história toda e por igual, pois eles “trabalhavam” juntos.

Um dia ao serem presos, foram crucificados junto com Jesus. Um deles, vendo o Cristo lá
crucificado, reconheceu que ele era Rei, que morreria e entraria no seu Reino, e pediu-lhe
que não se esquecesse dele quando entrasse no paraíso, no seu reino. Aí Jesus lhe disse: “Hoje
mesmo estarás comigo no paraíso”. Mas o outro, que conhecia Jesus tão bem quanto o

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primeiro, admirou-se: Mas que paraíso, que reino, que lugar? Você está louco! Daqui há duas
ou três horas nós três estaremos mortos e pronto, acabou, não tem reino nenhum.

Apesar de isso ser tão evidente, o ladrão que estava pedindo um lugar no paraíso nem ligou,
pois estava enxergando que Jesus era mais do que seus olhos lhe mostravam. Onde estava a
diferença? É que este ouviu o convite da graça! Os dois viram a mesma revelação externa: os
milagres que Jesus fez, os milagres de Lázaro. Tudo aquilo era uma revelação externa. Mas o
mau ladrão não conseguiu ouvir a interna, ou talvez nem houvesse a interna, porque por ser
uma pessoa muito ruim, talvez ele já tivesse afastado a revelação interna. O outro, porém,
ouviu e creu evidentemente numa verdade que estava acima do que os olhos podiam ver.

Isso que é a graça da fé: é a graça de, com a ajuda dessa iluminação da inteligência e esse convite
da vontade, podermos saborear e reconhecer como verdadeiras as coisas que Deus está
revelando. Isso é indispensável para começarmos a vida espiritual, porque sem isso não
podemos crer que Deus existe, não podemos crer que ele é bom, o quanto ele nos ama. Sem
isso, não experimentamos essas realidades, não as enxergamos, estamos no escuro e não temos
como começar uma vida espiritual.

Teoricamente, se o sujeito soubesse muita ciência, muita filosofia, ele poderia provar que
Deus existe, mas não muito mais que isso. Uma coisa é provar que Deus existe (o que já é
difícil), outra coisa é ter aquela certeza que Deus nos ama e, mais ainda, que ele criou a nossa
alma e está bem perto de nós, tentando entrar em contato conosco. E mais ainda, que essa
graça pela qual ele está tentando entrar em contato conosco, vem do próprio Cristo
ressuscitado, como acreditamos que seja. Pois após a ressurreição do Cristo, essa graça com
que Deus nos chama à vida divina, nos vem através do Cristo homem-ressuscitado.

A raiz da oração consiste, pois, em pedir a Deus a graça da fé. Em relação a isso existe uma
coisa muito importante: em nenhum momento Deus promete que vai atender nossas orações
indiscriminadamente. Há até passagens na bíblia, como no profeta Ezequiel, onde ele diz que
jamais daria certas coisas, nem que estivessem juntos pedindo, Moisés, Elias e Daniel, diz que
negaria até a eles. Porém, existe uma coisa que a Sagrada Escritura diz que ele jamais nega, que
é justamente essa: o Espírito Santo, cuja primeira manifestação é a graça da fé. Esta Deus
jamais nega! Não é dogma de fé, mas é quase como se fosse porque está claríssimo ali e é
consenso entre todos os teólogos.

Jesus fala disso no evangelho de São Lucas quando diz: Se vocês que são maus não dão uma
pedra quando seus filhos pedem um pão, quanto mais Deus não recusará o Espírito Santo
àqueles que lho pedirem. Nessa passagem ele está comparando a maldade humana com a
bondade divina, dizendo que, se os homens maus não recusam os pedidos dos filhos, e
quando um filho pede um pão o sujeito não dá uma cobra, então Deus não vai recusar o
Espírito Santo a quem lhe pede.

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Nessa passagem, ao contrário do que parece, Jesus não está querendo ensinar que Deus é
bom; ele está pressupondo que todos saibam que Deus é bom. O verdadeiro ensino aqui é
que não devemos ser idiotas em deixar de pedir a graça do Espírito Santo, porque essa Deus
jamais negará. É promessa divina que, se nós pedirmos a graça do Espírito Santo, Deus a dará
com certeza absoluta. E a primeira manifestação da graça do Espírito Santo é a fé.

4. Requisitos para alcançar a graça da fé

Existem dois requisitos, porém, para que essa oração seja atendida. O primeiro é que nós
queiramos efetivamente o que estamos pedindo. Basta elevarmos a mente a Deus e pedirmos
a graça a da fé, mas nós temos que querer realmente aquilo que estamos pedindo. Se pedimos
somente porque está escrito e estamos repetindo, mas no fundo não queremos, nós não
seremos atendidos. E o segundo requisito, que pode ser visto nas Sagradas Escrituras, é que
peçamos com fé.

São só esses dois requisitos. Nós temos que ter certeza que Deus vai nos conceder, porque ele
assim explicou (é a única oração que jamais não é atendida), e temos que querer de fato o que
estamos pedindo.

Pode parecer estranho que tenhamos que ter fé para pedir a graça da fé, parece uma
contradição. Ocorre que, quando pedimos a graça da fé, não estamos pedindo a fé em si, mas
um aumento da fé. Se não tivéssemos um pouco de fé, que é dada gratuitamente por Deus
sem nós a pedirmos, nós não poderíamos pedi-la e alcançá-la. Isso está escrito inúmeras vezes
no evangelho: “Àquele que tem, será dado mais, e àquele que não tem, até isso que ele tem
será tirado”.

Para pedirmos, pois, a graça da fé, nós precisamos da fé. Mas na verdade o que estamos
pedindo é o crescimento da fé, e esse crescimento vem imediatamente. Se pedirmos a graça
da fé com verdadeira vontade de alcançá-la, sabendo que Deus está presente em nossa alma
por ele nos ter criado do nada, que ele está muito mais próximo de nós que imaginamos, e
que ele nos está ouvindo e já prometeu que nos dará e temos certeza que ele no-la dará, iremos
perceber um resultado na nossa vida que vai muito além do que poderíamos imaginar caso
fosse produto de autossugestão. É só fazermos a experiência! O resultado é real e efetivo.

5. As obras que a fé produz

Quando pedimos a graça da fé, ela vem e nós começamos a enxergar, começamos a
compreender. Esse é o verdadeiro sentido da fé. A fé é um ato da inteligência que enxerga
uma verdade, que enxerga as verdades que Deus nos revela, e nós começamos a compreender

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pouco a pouco aquelas coisas. Além disso, as Sagradas Escrituras dizem que a fé faz milagres.
Quer ela seja uma fé muito grande ou pequena, ela faz milagres, ela opera.

Vemos isso claramente na epístola de São Tiago onde ele rebate as pessoas que tinham
entendido que a fé era importante, dizendo que se essa fé não tiver obras, ela de nada vale.
Essas “obras” são coisas consequentes à fé. A pessoa que realmente crê, muda, faz coisas que
uma pessoa que não crê não faz, porque é o próprio Deus que começa a orientá-la. Pela graça
divina nós conseguimos entender o sentido da graça de Deus, é como se tivéssemos outros
olhos e isso tem que se manifestar externamente.

Vale a pena ler esse texto da epístola de São Tiago 2, 14-26. Ele diz que a fé, quando é
autêntica, não para no conhecimento da verdade, ela produz resultados. O primeiro
resultado é que, quando começamos a crer e enxergar e saborear essas coisas de Deus, a nossa
vida começa a mudar e inclusive começamos a sair do pecado.

Essa é a maneira de sair do pecado. Se conseguirmos ensinar isso para absolutamente qualquer
pessoa (pode ser um criminoso, um facínora, uma prostituta, alguém encharcado no pecado
até o último e que não tem forças para largá-lo); se conseguirmos explicar isso e ensiná-la a
pedir a graça da fé desta maneira, com este sentido, podemos ter certeza que se a pessoa não
parar, em questão de alguns dias ela começa a mudar e em questão de mais tempo ela é alguém
completamente diferente: ela vai abandonar o pecado, inclusive se não tiver nenhum outro
ensinamento. É uma coisa absolutamente fantástica, as pessoas mudam realmente só por isso.

Essa é inclusive uma maneira de, na prática, abandonarmos o pecado. Em determinadas


circunstâncias, nós podemos abandonar certos pecados apenas pela força de vontade. Aliás,
para abandonarmos certos pecados, às vezes não precisa nem isso: até o pecado pode nos
impedir de cometer pecado.

Por exemplo: João é um bandido e quer matar um outro cara. Pedro quer que João desista
de matar o outro, mas ele não quer desistir. Ele diz: “Não, eu vou matá-lo porque ele não
presta, ele me desaforou. Eu vou arrebentar com a vida dele. Eu vou cortar o pescoço dele,
vou estripá-lo, vou queimá-lo, vou arrebentar com ele”. Aí Pedro diz: “Mas caramba João, se
você fizer isso, você será preso”. E ele diz: “Eu estou pouco me importando se vou ser preso,
eu quero matar ele”. Pedro responde: “Sim, João, mas acontece que eu ia convidar você para
assaltar o Banco do Brasil daqui a quinze dias, então você não vai poder”. E ele diz: “Ah é?
Então o negócio é diferente. Tudo bem, então eu não vou matar mais o cara. Eu vou com
você assaltar o Banco do Brasil”. Quer dizer, o cara desistiu de um assassinato para fazer um
outro pecado. Assim, em certas circunstâncias, o desejo de cometer um pecado pode fazer-
nos abandonar um pecado.

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E em certas circunstâncias a pessoa pode abandonar um pecado apenas pela força de vontade,
porque quer. Ela está fumando demais, vai morrer e diz que quer parar de fumar. Ou o sujeito
está saindo com a mulher do vizinho e está vendo a encrenca que isso dá: ele resolve que não
quer mais e então para de fazê-lo. Só o uso apenas da força de vontade em si é um método
fraco, porque a carne humana é fraca. [Ninguém] vai conseguir abandonar todo pecado
apenas pela força de vontade.

Depois existe um jeito um pouquinho melhor que é usando a reflexão. Quando percebemos
que não possuímos força de vontade para mudar algumas coisas da própria vida (fazemos o
propósito e caímos, renovamos o propósito e caímos) o que devemos fazer é refletir, isto é,
precisamos estudar sobre aquele assunto.

Se o sujeito quer parar de fumar e não consegue, deve ler livros sobre o que acontece com as
pessoas que não param de fumar. Se ele quer parar de usar drogas, deve ler sobre o que
acontece com as pessoas que tomam drogas. Se o sujeito comete adultério, precisa ler livros
sobre as doenças venéreas que alguém pega quando é promíscuo e trai a mulher com todo
mundo. De tanto ler, o sujeito pode chegar a uma conclusão que reforça a sua vontade.

Isso se deve ao fato de que todas as coisas têm seu lado bom e ruim. É como se fosse um cubo:
há seis lados, mas nunca vemos todos os lados ao mesmo tempo, só três no máximo e os outros
três ficam ocultos. Se o sujeito “olha o cubo” pelo lado bom, ir com a mulher do vizinho é
agradável porque ela é mais bonita do que a dele; mas tem o outro lado do cubo, ou seja, o
marido dela é um exímio atirador. Então, se o sujeito considerar a beleza da vizinha ele vai
trair a esposa; mas se virar o cubo do outro lado e ficar vendo que o marido dela é campeão
de tiro ao alvo, de repente, de tanto pensar naquilo, acaba passando a vontade de trair.

A meditação faz isso: depois de ter examinado “os lados do cubo”, quando decidimos que
vamos fazer alguma coisa a nossa vontade é tão forte que, mesmo vendo o lado bom do cubo,
ainda assim decidimos mudar. Quando nossa vontade não é suficiente, devemos virar o cubo
e olhar o outro lado, e de tanto ver o lado ruim da coisa, decidimo-nos a não fazê-la.

Acontece que mesmo assim nós somos fracos e às vezes nem isso é suficiente. Muitas vezes
estamos vendo o lado ruim do cubo, mas o lado bom entrou tanto na nossa memória que
não nos larga, por mais que leiamos livros sobre a coisa errada. Por mais que o sujeito veja o
campeonato de tiro ao alvo, veja o vizinho ganhando outra vez o campeonato, mesmo assim
ele não consegue.

O que realmente nos faz mudar sempre é a graça da fé, porque nela não só vemos o outro
lado do cubo com nossas próprias forças, mas vemos uma verdade com a ajuda da graça de
Deus. A diferença entre saber e crer é que o crer é muito mais convicto e o é de uma maneira
sobrenatural, e essa sobrenaturalidade é autêntica. Então, na medida em que se pede a graça

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da fé (e nós devemos pedi-la, porque ela vem de Deus), o próprio conhecimento da fé vai
inundando-nos, e pela iluminação de Deus e o convite da sua graça, nós acabamos saindo do
pecado, acabamos vencendo os vícios, vencendo os defeitos.

Isso daí é uma espécie de pequeno milagre, é um começo daquilo que Jesus dizia: que se
crêssemos verdadeiramente, poderíamos dizer para uma montanha sair de um lugar e ela
sairia. E se dissermos para o Mar Vermelho abrir, ele abrirá. Nada será impossível, mas isso
começa em escala pequena.

O começo disso são justamente essas obras, esse operar, essa modificação que deve vir junto
com a graça da fé. E no início da vida espiritual nós temos que aprender a pedir
insistentemente a própria graça da fé, com desejo e vontade de conseguir e certos de que Deus
vai mandar essa graça, a graça de crer, de ver. E na medida em que vamos vendo o que Deus
faz, nós vamos mudando sem saber como. Exatamente como diz: o reino dos céus é como a
mulher que colocou fermento na massa e, sem ela saber como (porque naquela época não
havia a ciência química de hoje), a massa cresce. Ao pedirmos a graça da fé é como se
estivéssemos colocando fermento na massa e esse fermento vai fazendo ela crescer.

Por que estamos falando isso? Porque nós veremos que, assim como os sete últimos estão
relacionados com o próximo, os três primeiros mandamentos estão relacionados com Deus;
e assim como os sete últimos estão em ordem decrescente de importância, os três primeiros
também estão. E nós acabamos de mostrar, citando principalmente o profeta Isaías, que o
mandamento do descanso de sábado era uma maneira materializada de começar a acostumar
as pessoas com a vida de oração.

Então, dos mandamentos que estão relacionados com a relação entre Deus e o homem, o
terceiro mandamento é o mais fraquinho, o mais básico — aquele que pede para pararmos
um tempo para rezar. No caso dos judeus era o sábado, no caso dos cristãos é o tempo todo,
é rezar sempre.

Por isso, nós temos que aprender o miolo da oração: o início da oração é pedir a graça da fé.
Se nós a pedirmos diariamente, com certeza iremos recebê-la e ela produzirá sua obra e nos
ajudará a sair do pecado. Isso é tão certo que um dos livros mais impressionantes sobre a
oração, que nós não deveríamos deixar de ler (deveríamos comprar em algum lugar ou baixar
na internet) é um livrinho escrito por Santo Afonso de Ligório que se chama “O grande meio
da Oração”.

Nesse livro ele diz que os que aprendem a rezar se salvam, e os que não rezam se perdem (neste
sentido, rezar é fácil, pois é só pedir desta maneira como ensinamos). E — continua o Santo
— a maior desgraça, a maior mágoa que teremos se nos perdemos (Deus queira que não), é

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que quando estivermos perdidos iremos nos lembrar que bastaria ter rezado para não termos
nos perdido, e rezado dessa maneira tão simples.

Mesmo essa maneira tão simples de oração, que é a mais elementar que existe, é suficiente
para nos tirar do pecado gradativamente, nos tirar de fato, não por decreto. Nós percebemos
que estamos nos afastando, até que a nossa vida muda completamente, não importa os vícios
que tenhamos, não importa o pecado que tenhamos! Nós temos que aprender isso.

Estou dizendo isso porque o objetivo da moral e das coisas do cristianismo, dessa preparação,
não é só nos afastarmos do pecado grave. O objetivo da vida cristã não é só afastar-se do
pecado grave, mas caminhar para a santidade. E os mandamentos são para fazer isso: não só
para afastar do pecado grave, mas para pouco a pouco ir levando à santidade. Por isso que às
vezes fizemos umas digressões sobre a prudência, as virtudes, etc., e agora estamos falando
disso.

6. Matéria grave em relação ao terceiro mandamento

A) Assistir missa aos domingos e dias santos. — No terceiro mandamento a Igreja pede
com exigência jurídica, em vista do poder de ligar e desligar que recebeu, em primeiro lugar
que assistamos a missa nos dias de domingo e nos dias santos. Esse mandamento não está na
bíblia, trata-se de um mandamento da Igreja. Ela tem autoridade de pô-lo sobre nós porque
entende que é para o nosso bem espiritual.

Com isso ela pede que tenhamos um mínimo de culto a Deus, que consiste em assistirmos a
missa aos domingos e dias santos. Quais são os dias santos? Variam de país para país. Existe
uma lista dos dias santos no direito canônico que vale para a Igreja inteira. A estes a Igreja
acrescenta mais alguns em certos lugares, e em outros ela tira, dependendo do número de
igrejas, da facilidade que pode haver para o culto, etc.

No Brasil os dias santos são só quatro: Natal, Ano Novo, Corpus Christi e 08 de dezembro
(Festa da Imaculada Conceição). Três desses quatro dias são feriados, mas o dia 08 de
dezembro não é, a lei civil não o reconhece, então o dia 08 de dezembro é um dia comum.
Em compensação, a lei brasileira reconhece o dia 12 de outubro como feriado, dia de Nossa
Senhora Aparecida, mas que não é dia santo pela Igreja Católica. Isso foi uma homenagem
que o último presidente militar fez a uma visita de São João Paulo II ao Brasil. Em
homenagem ele decretou o dia 12 de outubro como feriado nacional, dia de Nossa Senhora
Aparecida. No entanto, foi uma homenagem pouco esclarecida, porque se ele fosse um bom
católico teria colocado não o dia 12 de outubro — que a Igreja não pede que seja dia santo
—, mas o dia 08 de dezembro, que a Igreja pede. Porém ele não concedeu, talvez nem
soubesse.

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Então são quatro dias santos no Brasil: Natal, Ano Novo, Corpus Christi (que é sempre
numa quinta-feira, mas é feriado) e dia 08 de dezembro, que pode ocorrer em qualquer dia
da semana. Nós temos obrigação de assistir missa nestes dias e em todos os domingos.

Só podemos deixar de assistir missa aos domingos e dias santos se tivermos um motivo grave,
não basta ser um motivo razoável. Motivo grave significa: uma doença grave, ter que socorrer
alguém que está gravemente acidentado, ter um prejuízo fora do comum por algum motivo.
Por exemplo: Se a pessoa estiver num país onde há perseguição religiosa, e caso vá à missa será
presa, torturada, morta, nesse caso não é obrigada a ir à missa.

Outro exemplo seria se, no país em que a pessoa esteja, só houver missa num lugar muito
distante. Supondo que a pessoa esteja na Mongólia (nem sabemos se existe Igreja Católica lá).
Ela então precisa tomar um avião para Pequim, seis horas de viagem para poder assistir a
missa. Ainda que fosse milionária e tivesse dinheiro e isso não custasse nada em termos
financeiros, ela não seria obrigada a ir à missa, pois é uma distância descomunal.

Também se a pessoa está na Floresta Amazônica onde as distâncias são mais curtas, porém
mais inacessíveis e tem que fazer oito horas de barco para ir à missa na ida, e dezesseis na volta,
porque vai remar contra a corrente, gastando ao todo um dia inteiro viajando para ir à missa.
Isso está fora de cogitação, ainda que seja possível e o tempo da pessoa permita, pois a Igreja
não exige uma obrigatoriedade a esse ponto.

Entretanto, se na cidade da pessoa não há missa, ou seja, ela está no interior e a cidade vizinha
é relativamente próxima, e o tempo é quase como se fosse ir de um bairro para outro dentro
de São Paulo, não vemos que isso seja uma desculpa para não ir à missa. Muito menos se a
pessoa está em casa no domingo e de repente chega o seu primo na hora da missa, e ela diz:
“Bom, paciência, eu vou num outro dia”. Ou então se ela estiver cansada e dizer: “Ah, eu
gostaria de dormir mais um pouquinho”.

Uma coisa é estar gravemente doente ou numa situação de debilidade que aquilo possa vir a
ser uma doença grave; outra coisa é querer descansar mais um pouquinho ou não ir à missa
porque apareceu alguém fora de hora! Estas [trivialidades]4 não dispensam de ir à missa.

Vale ressaltar que, em si mesmo, isso não seria pecado grave. Faltar à missa em um domingo
não é algo que vai contra o amor a Deus, nem contra a benevolência ao próximo, nem contra
a castidade. Jesus inclusive não pediu para ir à missa aos domingos, mas para fazer isso em sua
memória. Ele pediu para que se celebrasse a missa com frequência, mas não estabeleceu a
frequência. Sendo assim, para um cristão que vai à missa regularmente, faltar uma vez ou
outra não deveria por si só ser pecado grave, mas é pecado grave, porque a Igreja assim o
4
Estava "coisas", mas poderia ficar dúvida sobre os dois exemplos: os que dispensam e o que não dispensam.
Coloquei "trivialidades", mas não sei se está bom.

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pediu. Ela exige que, sob pena de pecado grave, as pessoas não faltem à missa aos domingos e
dias santos, a menos que haja uma razão grave para faltar. É assim porque a Igreja estabeleceu
desta maneira pelo poder que Jesus lhe deu de ligar e desligar.

B) Abstenção de trabalhos aos domingos e dias santos. — Existe uma outra coisa que a
Igreja preceitua para os domingos e dias santos de guarda que é o descanso no dia de domingo.
Esse descanso também é uma lei jurídica, é um preceito do direito canônico. A Igreja
entendeu que, para o bem dos fiéis, ela deveria proibi-los de realizar certos trabalhos em dia
de domingo, para fazer com que esse dia não se tornasse um dia de trabalho comum.

Recentemente foi mudado o texto dessa lei, não o espírito. As leis da Igreja estão todas num
livro chamado Código de Direito Canônico. A maioria delas refere-se aos padres, bispos e
congregações religiosas; aos leigos, a menor parte. Logo, as obrigações dos leigos são
relativamente pequenas diante do quanto o direito canônico preceitua para o clero.

No antigo Código de Direito Canônico, que vigorou até 1983, a Igreja estabelecia que nos
dias de domingo e nos dias santos estavam proibidos realizar-se: trabalhos servis, em primeiro
lugar; trabalhos forenses, em segundo lugar; e comércio público, em terceiro lugar. Isso que
era preceituado: era proibido, sob pena de pecado grave, a realização de trabalhos servis,
forenses e comércio público. Então a coisa estava bem clara e é visível que a Igreja preceituava
isso para que o dia de domingo não se tornasse um dia de comércio comum, um dia de
trabalho comum, mas que houvesse dentro da sociedade cristã um respeito pelo dia de
domingo.

b.1) Trabalhos servis. — Os trabalhos servis significavam todos os trabalhos próprios aos
servos (isso naquela época em que a sociedade era dividida entre profissionais liberais e
servos). Eram proibidos aqueles trabalhos que normalmente seriam feitos pelos servos —
pessoas que não tinham uma educação mais sofisticada. São exemplos de trabalhos servis:
trabalhar na lavoura, trabalho de pedreiro, de pintor, de gari, mudança de apartamento, todo
trabalho que uma pessoa de poucas qualificações faria, mesmo que não fosse um profissional,
mesmo que fosse uma coisa diletante como construir a própria casa no dia de domingo.
Evidentemente que não se refere a passar um reboco, colocar um prego, alguma coisa de
menor importância. E em relação à mudança também: o que se entende é mudar uma casa
inteira e não, por exemplo, pegar uma televisão, colocar num carro e levar a um parente. São
trabalhos que transformariam o domingo num dia laboral.

b.2) Trabalhos forenses. — Os trabalhos forenses são os que eram feitos no fórum pelos
advogados. Não se proibia o trabalho que os juízes e advogados faziam sozinhos estudando
os processos em suas casas ou até no próprio escritório. O que se proibia eram trabalhos no
fórum, como a defesa de causas, porque era preciso abrir o cartório, levar o juiz, colocar os
guardas. Além disso o transtorno dessas causas é tão grande, que o domingo acaba sendo

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transformado num dia de serviço comum: acabou o dia de domingo! Então os trabalhos nos
fóruns eram proibidos.

b.3) Comércio público. — Em relação ao comércio público, a mesma coisa. Comércio


público é toda atividade de compra e venda feita no público, porém eram excetuadas as coisas
necessárias ao bom andamento da cidade ou aquelas coisas “comuníssimas” que já vinham
de longa data e contra as quais a Igreja nunca havia se manifestado.

Exemplos de atividades de comércio público necessárias: restaurantes, padarias, farmácias,


transportes, táxi. Exemplos de coisas de longa data que a Igreja nunca tinha reclamado:
cinemas, parque de diversão, teatros. Um teatro pode ser ilícito se apresentar peças
inadequadas, mas nesse caso a ilicitude não se dá por violar o preceito do domingo, tendo em
vista que é algo ilícito em qualquer dia. Porém o teatro enquanto tal é uma atividade
característica dos dias de feriado.

[São permitidas] estas coisas que essenciais ou que existem há muito tempo, já são
consagradas e a Igreja nunca proibiu, como por exemplo a atividade do jornaleiro. As edições
mais importantes que as pessoas podem ler melhor na semana são justamente aquelas de
domingo, nas quais vêm cadernos maiores. Então a atividade de jornaleiro também não é
ilícita.

No entanto, segundo esse critério, seria ilícita a atividade das lojas de departamentos de
roupas, sapatos, as feiras, os supermercados e aquelas lojas cujo momento certo de abrir é
durante a semana.

Apesar de existir muita novidade, podemos facilmente enquadrá-las dentro desses critérios.
Por exemplo: o câmbio. O banco é o tipo de atividade que não é lícito abrir em dia de
domingo. Mas alguém pode perguntar: E a loja de câmbio, na qual se troca reais em dólares,
dólares em euros e assim por diante? Se raciocinarmos um pouquinho, é evidente que os
câmbios dos aeroportos são lícitos, porque são atividades essenciais. O transporte é
considerado atividade essencial, então os aeroportos têm que funcionar no domingo, assim
como as rodoviárias. E alguém pode ter que viajar no domingo às pressas por causa de uma
emergência, e para viajar terá que trocar o dinheiro na loja de câmbio. Então os câmbios de
aeroportos fazem parte do serviço essencial, que é o próprio aeroporto.

Já o câmbio dentro da cidade não parece ser um trabalho essencial, mas um simples comércio
público. Então o câmbio do aeroporto, dentro desse critério, é manifestamente uma
atividade lícita. A loja de câmbio no meio da cidade é uma atividade de comércio público,
que não é correto abrir em dia de domingo. Devemos notar que não é correto porque existe
um mandamento da Igreja que assim o pede. Se não existisse esse mandamento da Igreja, não
haveria um motivo para não ser correto. É a Igreja que assim o exige.

269
Para o comércio público ser errado tem que ser uma atividade de comércio verdadeiramente
dito. Se no almoço de domingo em casa, o sujeito comprar o carro do seu vizinho e eles até
fazem o contrato, mas dentro de casa, isso não é comércio público, pois não se está
transformando o domingo num dia laboral, isso é uma atividade privada. Também seria se o
vizinho é dono da papelaria e o sujeito precisa de um caderno no dia de domingo. Ele chega
no vizinho e diz: “Olha, vizinho, você pode abrir a papelaria para me vender um caderno?”
Aí como ele vê a necessidade, acaba abrindo a papelaria, pegando o caderno e dando ao
sujeito. Mesmo se ele tirar uma nota fiscal e aquilo for um ato de compra e venda legalmente
falando, na verdade foi um favor que ele fez, pois ele não abriu um comércio público, não
abriu a loja ao público.

Depois, quando chegou em 1983 a Igreja mudou o texto dessa lei. Até 1983, o Direito
Canônico, onde a Igreja expressa as coisas com as quais ela quer que ela própria e a sociedade
sejam ordenadas, dizia que no dia de domingo eram proibidos apenas os comércios públicos,
os trabalhos servis e forenses. Em 1983 São João Paulo II reformou o direito canônico bem
como esse cânon, que agora diz o seguinte: “No domingo e nos outros dias festivos de
preceito, os fiéis têm obrigação de participar da missa. E abstenham-se ainda daqueles
trabalhos e negócios que impeçam o culto a prestar a Deus, a alegria própria do dia do Senhor
ou o devido repouso do espírito e do corpo”.

Não está falando mais do que é para fazer ou não, está falando numa linguagem genérica e
até hoje o sentido exato disso não foi oficialmente interpretado. Pelo que conseguimos
entender, isso não foi interpretado porque o mundo está em crise: as pessoas estão querendo
legalizar aborto, eutanásia, casamento homossexual e várias outras coisas muito mais graves,
de modo que não ouvem mais a Igreja, nem nessas coisas graves. Então a Igreja talvez
entendeu que, publicamente, não existe um espaço nem algum motivo para ter que entrar
nos detalhes, e deixou essa interpretação ao bom senso dos teólogos.

O fato, porém, é que também a teologia em geral está atravessando uma crise dentro da Igreja
(como tudo que existe dentro dela) e os bons teólogos estão tendo que se preocupar com
coisas bem mais graves que isso: mostrar que realmente o aborto é errado, esclarecer uma série
de problemas novos que surgem em relação à moral (clonagem, fertilização artificial, razões
novas e diferentes de movimentar uma guerra). Eles estão muito ocupados em enfrentar esses
dilemas e provavelmente as pessoas não dariam grande atenção ou até deturpariam um
teólogo que tivesse de especificar o que significa esse mandamento. Por isso, temos que apelar
para o bom senso.

Isto posto, colocaremos a interpretação que conseguimos ter disso, a mais sincera possível
dentro do que entendemos a respeito dessa questão.

270
Não existe nenhum ponto em que a Igreja tenha dito que está querendo inventar uma nova
disciplina para o mandamento do dia de domingo. Não existe nenhum momento em ponto
algum que a Igreja tenha oficialmente declarado que, ao fazer uma nova redação, ela estava
querendo quebrar a continuidade com a interpretação anterior, coisa que ela poderia fazer
porque esse é um mandamento da Igreja e não um mandamento divino que ela não pode
mudar.

Existe uma carta que São João Paulo II escreveu sobre o mandamento de domingo, mas ele
não entra nos detalhes da interpretação. Nessa carta, chamada Dies Domini, ele tenta mostrar
como é importante santificarmos o dia de domingo, que é uma instituição básica para a
civilização cristã e a Igreja. Ao invés de entrar no detalhe, ele está querendo mostrar que é
importante darmos o devido relevo a esse mandamento; em nenhum momento ele está
dizendo que houve um motivo para mudar de interpretação. Se formos interpretar o
legislador como se deve, entendemos que esse texto significa que o Papa está querendo
manter a coisa anterior, mas de tal maneira que se veja mais claramente o seu verdadeiro
sentido.

Na legislação anterior havia certas coisas que evidentemente destoavam do mandamento do


repouso dominical, mas que não estavam contempladas na lei. Por exemplo, os casos mais
evidentes que já encontrei são dois, muito semelhantes. A lei dizia que não era permitido fazer
trabalho servil, trabalho forense nem comércio público, todo resto era lícito.

Por exemplo, era lícito um professor de escola pública que ganhava pouco, no dia de
domingo agendar aulas particulares. Ele agendava uma aula das 07:00 às 08:00, com outro
aluno das 08:00 às 09:00, com outro aluno das 09:00 às 10:00, com outro aluno das 10:00 às
11:00, com outro aluno das 11:00 ao 12:00 e parava ao meio dia para almoçar. Das 13:00 às
14:00 ele agendava com outro e assim ia até o fim do dia.

Isso era lícito, porque a Igreja dizia que não era lícito o trabalho servil: dar aula particular não
é trabalho servil, é liberal. Também proibia fazer comércio, mas isso também não é comércio
público, porque o professor agendava essas aulas com seus próprios alunos ou os coleguinhas
das outras turmas que estavam desesperados: então não era público, mas privado, já que não
tinha placa, não tinha nada. Em terceiro lugar, isso não era trabalho forense. Logo, era algo
lícito. Porém o fulano trabalhava no domingo mais desesperadamente que durante a semana.
Quer dizer, justamente o que a Igreja queria era evitar que o dia de domingo se tornasse um
dia laboral, mas para esse professor o dia de domingo era mais laboral que os outros: na
verdade, ele descansava durante a semana e no domingo ele trabalhava. E mesmo que
separasse das 18:00 às 19:00 para ir à missa, na verdade ele estava trabalhando como um
doido. Então é evidente que isso era contra o espírito da lei, mas não estava proibido na lei.

271
A mesma coisa se podia dizer do indivíduo que trabalhava numa loja de consertos mecânicos
ou eletrodomésticos e ganhava seu dinheirinho, mas no dia de domingo agendava para visitar
as casas dos clientes para consertar televisões, rádios, vitrolas, toca discos e assim por diante.
Aí no dia de domingo ele começava de manhã cedinho e ia de casa em casa. Não era comércio
público, porque o sujeito tinha agendado entre amigos; não era trabalho servil, porque era
um trabalho especializado; e não era trabalho forense, porque não era trabalho de tribunal.
Logo, era lícito. Mas o fulano trabalhava no domingo mais desesperadamente que nos dias
de semana.

Assim sendo, no sentido jurídico, independente do que estava pensando o fulano que redigiu
isso (se ele estava pensando nesse caso ou não), entendemos que a Igreja está querendo
retomar (sem aquela linguagem jurídica estrita) o velho mandamento de que não se pode
fazer trabalho servil, forense e comércio público, que inclusive tem um sentido comum: o
sentido comum dessas leis é não transformar o dia de domingo num dia laboral. E o que a
Igreja está querendo dizer é que, se tivermos qualquer atividade além dessas, que
manifestamente esteja transformando nosso dia de domingo num dia laboral ou até pior que
um dia laboral, ele está dentro disso, porque é um mandamento genérico: abstenham-se dos
trabalhos e negócios que impeçam o culto a prestar a Deus, a alegria própria do dia do Senhor
ou o devido repouso do espírito e do corpo.

Entendemos que a Igreja está proibindo a mesma coisa que estava proibindo no cânon
anterior, porque ela não o revogou explicitamente, não disse que o mandamento mudou de
sentido, inclusive a lógica desse mandamento é a mesma do anterior. Porém devemos dar uma
interpretação, até que a Igreja o faça oficialmente de uma outra maneira, porque isso é uma
lei da Igreja e ela pode ser interpretada de modo semelhante ao que se faz com as leis.

Portanto, até prova em contrário, entendemos que a interpretação mais correta que podemos
dar é a seguinte: continua valendo o anterior, ou seja, a proibição dos trabalhos servis,
forenses e comércio público, como regra geral, porque o espírito desse mandamento é o
mesmo do anterior. No entanto, estão incluídas quaisquer aberrações desse tipo que
manifestamente não estejam naqueles três itens, porém transformam o dia de domingo num
dia laboral comum, com todas as exceções que se interpretavam antes: os trabalhos essenciais,
os trabalhos costumeiros dos quais a Igreja nunca reclamou, como os jornaleiros que existem
há décadas e décadas e que, mesmo quando a Igreja não estava em crise e podia manifestar-se
livremente, ela nunca proibiu; também são lícitos os cinemas, parques de diversões e todas as
atividades próprias do dia de domingo.

Além disso, obviamente estão desculpados os que correm um risco de dano grave, porque
todas as leis da Igreja não são exigidas nesses casos. Não somos obrigados a ir à missa se
estivermos com uma doença grave, se tivermos de socorrer alguém em perigo de vida ou se
nós mesmos corremos risco de vida por ter de ir à missa. Consequentemente, toda vez que

272
formos obrigados a fazer um desses trabalhos proibidos porque corremos algum dano grave,
automaticamente estamos dispensados, pelo próprio modo como a lei da Igreja é colocada.

A Igreja diz que dispensa o cumprimento das leis de direito eclesiástico se houver um risco de
dano grave. Então se tivermos que descumprir qualquer mandamento puramente eclesiástico
porque vamos correr um dano grave, estamos automaticamente dispensados ipso facto.

Existem muitas situações que podem dar margem a dúvidas na questão do repouso dominical
e são dúvidas que basicamente se devem ao fato de que não há recentemente interpretações
oficiais da lei. A lei do descanso dominical aos domingos é uma lei positiva eclesiástica e, para
ser corretamente entendida, a Igreja deve manifestar claramente o que ela deseja que seja feito.

Em 1917 havia sido enunciado o conteúdo dessa lei no Código de Direito Canônico anterior,
que tinha sido suficientemente bem interpretada. Estava bem claro o que ela preceituava,
havia pouca margem de dúvida. Depois de 1983 a Igreja modificou o texto da lei
(aparentemente não o seu espírito), mas não houve mais interpretações para explicar o que
exatamente se pretendia nos seus detalhes.

A Igreja não interpretou mais o conteúdo, provavelmente não porque não quisesse fazê-lo,
mas porque as pessoas desde os anos 60 para cá, do ponto de vista moral e espiritual,
simplesmente enlouqueceram. Já os Papas anteriores estavam notando esse afastamento da
civilização contemporânea do espírito cristão, esse é um tema abundante nos documentos
pontifícios. Mas a partir de 1960 essa tendência simplesmente extrapolou: as pessoas
começaram a fazer campanha a favor do aborto, da eutanásia, do suicídio assistido, do
divórcio, da laicização da sociedade, começou a haver uma infiltração marxista evidente
dentro da Igreja. E as pessoas estão muito mais preocupadas com essas aberrações e
simplesmente não querem saber de observar o dia do domingo ou um dia de descanso, e
muito menos querem saber qual é a interpretação correta que deve ser dada.

O Papa João Paulo II publicou uma encíclica sobre o dia do domingo chamada Dies Domini
onde, em vez de interpretar a lei, teve de gastar todo o tempo e espaço disponíveis
simplesmente para tentar mostrar que era muito importante, valioso e necessário que
houvesse um dia de descanso e que ele fosse valorizado. Simplesmente não havia espaço social
disponível para se poder discutir qual seria a interpretação exata a ser dada à lei.

Por conta disso, há muitas situações que podem dar margem a dúvidas e que, na falta de uma
orientação oficial, devem ser resolvidas em particular. Há muitas situações então sobre as
quais deveríamos nos aconselhar em particular e tentar consultar aquelas pessoas capazes de
interpretar honestamente o espírito da lei dentro daquilo que a Igreja pede.

273
Um problema constante que temos visto é uma situação em relação aos estabelecimentos ou
serviços que oferecem alimentos nos dias santos e de preceito. É evidente que os
estabelecimentos que oferecem refeições completas (um almoço, uma janta) podem e devem
permanecer abertos, tanto para as pessoas que estão em viagem como para as que não estão e
desejam procurar um estabelecimento para almoçar. Trata-se de um atendimento de primeira
necessidade, é um serviço necessário, não algo supérfluo. Isso está dentro do espírito do
descanso dominical.

Da mesma maneira, os serviços que se multiplicaram, por exemplo de pizzaria. Não são
propriamente restaurantes, mas fazem pizzas e entregam nas casas em vez de as pessoas
jantarem num estabelecimento: também caem dentro da mesma coisa. Existem restaurantes
que basicamente oferecem pizzas no seu cardápio, são especializados em pizzas. O fato de
estarem entregando nas casas ou abrindo espaço para as pessoas jantarem ali não parece fazer
diferença; no fundo é a mesma coisa, mas oferecida de outra maneira: se um é serviço
essencial, o outro também é. Se uma pizzaria pode permanecer aberta e oferecer serviços em
dia de domingo (porque ela essencialmente está oferecendo uma refeição completa), uma
pizzaria que entrega à domicílio está prestando o mesmo tipo de serviço.

A questão é os serviços que oferecem apenas um lanche, que não pode ser chamado de uma
“refeição completa”, ainda que algumas pessoas, pela pressa, estejam usando esses serviços
como se fossem um pequeno almoço. Na verdade aquilo não é realmente um serviço
essencial, é apenas um agrado, do qual eventualmente alguém poderá servir-se como uma
refeição completa. O que pensar disso?

Não existe uma interpretação para estes casos, mas nós arriscaríamos, dentro da maior
honestidade possível e do que é possível conhecer. Arriscaríamos inclusive supondo, como
vemos pelo enunciado da lei de 1983, que basicamente a lei na sua essência não mudou e que
a finalidade e o escopo da lei do descanso no direito canônico de 1983 é a mesma do de 1917.
Inclusive, apesar de não ser capaz de especificar os detalhes, está mais amplamente descrita na
lei de 1983 do que na de 1917.

Na de 1917 são especificados os casos, a de 1983 diz a finalidade para que se destina a lei,
dizendo que ela quer que essas coisas sejam evitadas para que haja o devido descanso, o devido
repouso e o devido culto ao Senhor nesses dias. É exatamente a mesma coisa, inclusive até um
pouco mais ampla. Logo, o princípio da lei antiga continua sendo o mesmo. E nesse caso,
apesar da diferença do ambiente cultural, como a intenção do legislador era exatamente a
mesma, o que podemos depreender da atitude dos legisladores eclesiásticos antes do Concílio
Vaticano II e depois de 1917, são exatamente as mesmas intenções dos legisladores que vieram
depois. Em nenhum momento eles afirmam que mudaram [as intenções], aliás eles
explicitamente estão dizendo a mesma coisa.

274
Ora, temos aqui em mãos um livro de um concílio eclesiástico realizado no Brasil na véspera
da Segunda Guerra Mundial, o Concílio Plenário Brasiliense de 1939. Sim, a situação era
diferente, a cultura era diferente, mas não estamos nos referindo a isso. Estamos dizendo que
a intenção da lei é exatamente a mesma, mas ali em 1938 havia o clima para manifestar
claramente à sociedade qual era a intenção que se tinha.

O Concílio Plenário Brasiliense é um livro enorme no qual quase que se reorganiza toda a
atividade da igreja no Brasil. Ele pede, no apêndice 55, que todas as paróquias brasileiras
promovam uma associação de fiéis chamada Liga Paroquial do Descanso Dominical, onde
seria eleito um diretor sob orientação do pároco. Que a liga seria composta de comerciantes
e pessoas da paróquia, e zelaria para divulgar entre os estabelecimentos comerciais a santidade
do dia do Senhor. Além disso, a Liga deveria chamar esses comerciantes a se associarem à ela,
e visitar as outras lojas para que elas fechassem nos dias de domingo.

Ela diz bem claro que os sócios que se inscreverem deveriam procurar fazer com que os
estabelecimentos entendessem que nos dias santos não se deveria nem vender, nem comprar
senão as coisas de primeira necessidade, e estas ainda dentro dos limites de tempo razoáveis.

Podemos ver que isso era tido como muito importante. É o mesmo espírito da lei, ou seja, se
hoje não existe um clima político social para se fazer isso, não quer dizer que o espírito da lei
tenha mudado. E isso está interpretando o espírito da lei. Eles pedem que as paróquias façam
uma liga para convencer as pessoas e os comerciantes pouco a pouco da importância de não
vender nem comprar nos dias santos a não ser as coisas de primeira necessidade, e estas
inclusive dentro de limites razoáveis de tempo, bem como outras disposições desse tipo.
Logo, nós só podemos concluir que aquelas coisas que não são de primeira necessidade não
deveriam estar funcionando!5

Ora, dificilmente conseguimos enquadrar dentro disso um estabelecimento comercial que


vende alimentos que não são os de primeira necessidade, que não os realmente necessários
para se fazer uma refeição. As pessoas podem eventualmente juntar coisas para fazer uma
refeição, mas não é para isso que estes estabelecimentos existem. São, por exemplo, aqueles
lugares que vendem apenas um drink, uma coxinha, um lanchinho, como um bar ou uma
lanchonete.

Considerando ser este o espírito desejado pela Igreja, inclinamo-nos a dizer, até que haja uma
interpretação oficial, que o correto é isso: que estes estabelecimentos não deveriam ficar
abertos, [com exceção] daqueles que oferecem uma refeição completa ou as padarias, que
têm de vender o pão fresco senão não há sentido de vendê-lo.

5
Tirei os exemplos de coisas de primeira necessidade, para não ficar dúvida de quais coisas "não deveriam estar
funcionando". Além disso, ele deu estes mesmos exemplos mais acima, e numa lista maior.

275
Aula 18 – SEGUNDO MANDAMENTO

Índice
1. Recapitulação da aula anterior
2. Sobre o segundo mandamento e o “nome” de Deus
3. O pedido da fé
4. Papel da meditação no aprofundamento da fé
5. Matéria grave em relação ao segundo mandamento

1. Recapitulação da aula anterior

Na última aula, em que falávamos sobre o terceiro mandamento, dissemos que originalmente
ele tinha uma redação diferente. Os dez mandamentos estão listados na bíblia no livro do
Êxodo, capítulo 20. Os sete últimos são muito parecidos com o que nós encontramos no
catecismo atual da Igreja católica.

O quarto mandamento é “Honrarás pai e mãe”, o quinto é “Não matarás”. O sexto


mandamento, que diz “Não cometerás adultério”, no catecismo está “Não pecarás contra a
castidade”: inclui o adultério e todos os demais pecados contra a castidade, que aqui estão
listados nos dez mandamentos originais de acordo com o mais grave. O sétimo é “Não
furtarás”. O oitavo é “Não levantar falso testemunho”, que é exatamente a mesma redação.

No entanto, os três primeiros são diferentes. O terceiro mandamento diz “Lembra-te de


santificar o dia de sábado. Trabalharás durante seis dias e farás neles todas as tuas obras. O
sétimo dia, porém, é o sábado do Senhor teu Deus: não farás nele obra alguma, nem tu, nem
teu filho, nem tua filha, nem tua serva (...), porque o Senhor fez em seis dias o céu e a terra e
no sétimo, descansou. Por isso o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou”.

Apesar de que Deus está mandando descansar no dia de sábado, assim como ele fez acerca da
obra da criação, conforme a narração da bíblia, contudo ele não somente descansou no dia
de sábado, mas contemplou todas as suas obras e viu que tudo era muito bom. No dia de
sábado então Deus não só repousou, ele contemplou e o mandamento está dizendo para
fazermos no dia de sábado como Deus fez, isto é, Deus não descansou apenas, ele abençoou
o dia de sábado e o santificou.

Nós estávamos mostrando que, na interpretação de Isaías no capítulo 56, 57 e 58 da bíblia, o


profeta promete coisas extraordinárias a quem observar o sábado, que normalmente estão

276
associadas a uma profunda vida de oração. E disto nós entendemos que, como o povo que
saiu do Egito era ainda muito rude quando recebeu os dez mandamentos, que foi logo após
a saída do Egito, na verdade Deus estava codificando os dez mandamentos (principalmente
os três primeiros, que são mais profundos) de uma maneira mais material, pela coisa que havia
de mais externa: vamos descansar! Mas ele já dava a entender, ao dizer por exemplo “para fazer
como Deus fez”, que ele santificou o dia de sábado e o santificou contemplando.

Séculos mais tarde, a partir do que o profeta Isaías falou sobre o sábado, nós vemos
claramente que isso está associado com a oração. Então Deus não queria somente que os
judeus descansassem no dia de sábado, mas que se dedicassem à vida espiritual. Esse é o
sentido! Portanto, o dia de sábado é para dedicarmos ao Senhor, através da comunhão com
ele — aquela que São João nos fala entre capítulos 13 a 17 do seu evangelho, aquela que São
Paulo nos fala o tempo todo nas suas epístolas, e essas que falamos nas nossas aulas.

Não podemos dizer nada da tradição rabínica como tal, pois não a conhecemos a fundo, mas
pelo que vemos na narração dos evangelhos, os judeus interpretavam o mandamento do
sábado de uma maneira diferente, como parece que ainda interpretam hoje. Primeiro que, ao
contrário da nossa tradição romana em que o dia começa à meia noite, para os judeus o dia
começa quando o sol se põe: quando o sol se pôs na sexta-feira, começou o sábado; quando
o sol se pôs no sábado, terminou o sábado, apesar de ainda ser sábado na nossa contagem.
Para eles então o sábado vai das 19:00 da sexta-feira, dependendo da hora que fique escuro,
até às 19:00 do sábado. Nesse [período] os judeus não podem andar mais do que tantos
metros, não podem fazer nenhum esforço, não podem entrar em elevador, não podem subir
escada, não podem fazer nada que seja trabalho físico, só o mínimo. É assim que eles
interpretam e, se ficar só nisso, interpretaram a coisa somente materialmente.

A verdadeira natureza do mandamento do sábado é o preceito da oração: Deus quer que


reservemos um tempo para a oração. E aos judeus, ele pediu que fosse o sábado. No
cristianismo nós entendemos que todas prescrições cerimoniais e judiciais do Velho
Testamento estão abolidas pelo Cristo, mas não o sentido delas. O que é de direito natural e
aquilo que o Cristo acrescentou em relação aos sacramentos, continua existindo. Com isso,
o sábado está abolido no sentido de que existe uma obrigação de parar de trabalhar
rigorosamente na noite da sexta-feira até a noite do sábado. Mas o sentido do preceito que é
o mandamento de rezar, não está abolido, nem poderia: quem não reza se perde, quem reza
se salva, infalivelmente.

Ademais, falávamos que o mandamento do sábado implicava um agradecimento a Deus por


ter criado o mundo; isso pode ser encontrado claramente na Suma Teológica. O
mandamento do sábado era como que as pessoas lembrando-se do maior feito de toda a
história que é a criação do universo. Cada sete dias as pessoas paravam para agradecer a Deus
a dádiva de ter criado o universo, sem o qual não existiríamos. Era um ato de profundo

277
agradecimento a Deus, o que é uma coisa extremamente coerente e correta, porque quando
amamos uma pessoa, normalmente reconhecemos o que ela tem de melhor e o que de melhor
ela nos fez. E a melhor coisa que Deus nos fez foi ter criado o universo!

Se alguém diz: “Deus é bom porque me deu saúde”, Deus lá no céu deve estar pensando: “O
Fernando é uma pessoa boa, mas ele não entendeu o que eu fiz por ele. Porque recuperou a saúde,
ele está achando que eu sou o máximo, mas não percebe que eu criei o universo para ele poder
existir, isso ele nunca me agradeceu e é a maior coisa que eu fiz. Então no fundo ele não entendeu
que eu sou Deus, no fundo ele acha que eu sou o irmão mais velho dele ou alguma coisa assim.
Ele ainda não entendeu que eu sou Deus, não percebeu que eu criei o mundo do nada e que, se
ele pode estar vivo e com saúde, é porque primeiro eu criei o mundo. E como não tem nada maior
que eu fiz até hoje do que ter criado o mundo, por isso eu pedi para eles pararem no dia de
sábado”.

Agora o fato é que Deus fez uma coisa maior que ter criado o mundo, só que depois disso: a
encarnação de Jesus Cristo. Nós podemos não entender como a encarnação, a ressurreição e
a ascensão de Jesus Cristo aos céus pode ser maior do que a criação do mundo, porque não
conseguimos penetrar o mistério de Cristo como São Paulo o faz, por exemplo, na epístola
aos Efésios ou como São João demonstra nos seus escritos, no Apocalipse também.

Porém ao não só ter criado o mundo, mas ter se encarnado permanentemente numa natureza
humana e ter nos salvado por sua morte, ressurreição e ascensão aos céus, Deus fez uma coisa
mais extraordinária que a criação do mundo. Então se nós realmente reconhecemos que Deus
é Deus, não temos mais que agradecer principalmente por ele ter criado o mundo, já que
temos um motivo muito maior, pois ele fez uma coisa mais extraordinária que a criação: ele
refez toda a obra da criação.

Pode parecer uma comparação meio ingênua, mas na verdade, quando Deus se encarnou,
ressuscitou e subiu aos céus, ele fez uma coisa como a Microsoft quando fez o DOS e depois
criou o Windows. Se estávamos agradecidos à Microsoft por ter criado o DOS e ter feito com
que cada pessoa tivesse um computador mais poderoso que os computadores da NASA
quando colocaram um astronauta na lua, ao passarem para o Windows eles se superaram a si
próprios: ninguém pensa mais no DOS. Então Jesus Cristo é o “Windows” da criação, é a
nova criação.

Os cristãos, percebendo naturalmente isso, sem ninguém ter dado uma ordem explícita, a
partir da ressurreição e ascensão do Cristo aos céus, começaram a cultuar a Deus não mais no
sábado, mas no domingo. Porque é certo agradecer a Deus pela criação, mas diante da
redenção que é estupendamente mais fantástica, se reconhecemos a obra de Deus, agora
devemos agradecê-lo por ter se feito homem e ter recapitulado toda a criação do céu e da terra
em Jesus Cristo, criando em nós um homem novo. Assim como a velha criação culminou em

278
Adão, a nova criação culminou em Jesus e no homem novo, “que se renova segundo a
imagem do Cristo”.

Então naturalmente começou-se a cultuar o domingo, não porque o mandamento do sábado


tivesse sido decretado para passar ao domingo, mas porque o preceito do sábado, que era
cerimonial, deixou de existir. E naturalmente, não como uma substituição jurídica, as pessoas
passaram a celebrar uma festa de agradecimento e louvor no dia de domingo. Pouco a pouco
a Igreja chegou a esta conclusão e, pelo poder que lhe foi dado por Cristo de ligar e desligar,
num certo momento da sua vida (talvez no Concílio de Nicéia) ela estabeleceu que dali para
frente todos os cristãos seriam obrigados a assistir missa todos os domingos e dias santos, além
de abster-se de alguns trabalhos nos dias de domingos e dias santos, sob pena de pecado grave.

A Igreja entendeu ser bom preservar o aspecto cerimonial do sábado para o bem dos fiéis,
apesar de que não é a mesma coisa: a cerimonialidade do dia de sábado era de decreto divino;
já a cerimonialidade dos trabalhos servis proibidos no domingo e a obrigatoriedade da missa
aos domingos é de direito eclesiástico, ou seja, a Igreja poderia abolir essa lei. Se a Igreja
entender por bem ela pode não mais obrigar as pessoas a assistirem missa aos domingos sob
pena de pecado grave, e poderia liberar os trabalhos servis, mas ela entende que isso não é
bom. De nossa parte pensamos que ela tem muita razão e que isso vai continuar até o fim dos
tempos, já que não tem motivo para mudar nunca, pois só tem bem a ser feito. Mesmo assim
ela poderia mudar, porque Jesus não mandou celebrar missa no domingo, ele mandou
celebrar missa e isso a Igreja não tem direito de abolir. Se ela abolisse a obrigação de ouvir
missa aos domingos, continuaria a obrigação dos cristãos de assistirem e celebrarem a missa
com frequência, a ser estabelecida ou não, mas com frequência.

Continua, pois, a ideia básica de que o terceiro mandamento contém a obrigação da vida
espiritual, a obrigação de rezar, a obrigação de relacionar-se diretamente com Deus. Isso, que
é o miolo do terceiro mandamento, jamais poderá ser abolido, tendo em vista que é de direito
natural e divino. É a razão de existir do ser humano: o ser humano foi criado para poder
conhecer e amar a Deus. E o terceiro mandamento está dizendo isso!

Além de respeitar o pai e a mãe, não cometer adultério, não pecar contra a castidade, não
roubar, não levantar falso testemunho, além de todo bem que deve fazer ao próximo, existe
um mandamento maior, isto é, temos que nos relacionar com Deus e essa relação vem pela
oração. Não só pela oração, mas também pela Eucaristia, algo que está implícito no
mandamento de assistir missa aos domingos.

Somos obrigados a assistir missa todo domingo, mas não a comungar todo domingo, porém
o convite para comungar está supostamente feito. A Igreja estabelece como mínimo
obrigatório que a pessoa comungue uma vez ao ano, por uma lei externa. Mas o convite é que
a pessoa comungue na maioria dos domingos se possível, ou todos os domingos; inclusive, se

279
ela pode, que comungue até mais frequentemente que só aos domingos, livremente durante
a semana.

Esse é o terceiro mandamento. E chamávamos a atenção para o fato de os mandamentos


estarem em ordem decrescente de importância. Então “Não roubar” é menos importante do
que “Não pecar contra a castidade”: adulterar é mais grave do que qualquer roubo, pelo
menos no seu gênero. “Não matar” é mais grave do que qualquer adultério. E o respeito que
devemos ao pai e à mãe é o maior que devemos a qualquer criatura, porque para eles nós
devemos mais do que a um estranho: nós devemos ao pai e à mãe toda a vida!

Apesar de que no oitavo mandamento a moral diz que retirar a fama de uma pessoa é mais
grave do que roubar, porque se a pessoa é roubada ela não perde prestígio nenhum. Se a
pessoa é boa e é roubada, pela boa fama que tem ela reconstitui tudo que perdeu. Agora, se
alguém perdeu a fama, por exemplo, as pessoas descobriram que o sujeito era um malandro
disfarçado que não merece confiança nenhuma, ele perdeu toda chance de fazer fortuna, toda
chance de construir uma vida. Tal sujeito não tem apoio nenhum na sociedade, portanto
perdeu uma coisa maior do que a posse dos bens.

Por que “Não levantar falso testemunho” está depois de “Não matar” é uma boa pergunta.
Talvez porque os falsos testemunhos usuais normalmente não roubam a fama de uma pessoa
tão extensamente a esse ponto. Então do ponto de vista prático, às vezes contar uma mentira
sobre uma pessoa (que às vezes inclusive se é mentira mesmo ela não cola, porque as pessoas
acabam não acreditando), pode na prática não ser tão grave quanto roubar as posses dela.
Pode causar maior dano roubar todas as posses de um indivíduo do que levantar uma calúnia,
pois às vezes o fulano realmente é uma pessoa de honra e os outros não vão acreditar naquilo,
pode ser uma coisa pragmática.

Mas em si, no seu gênero, a calúnia é mais grave do que o roubo. Se a calúnia for levada às
últimas consequências, com certeza ela é pior do que um roubo. Uma calúnia bem-feita pode
destruir uma pessoa para sempre. Uma pessoa honrada, que continua sendo entendida como
honrada e que perdeu todos os seus bens, pode reconstruir a sua vida com muita facilidade,
não faltará quem irá ajudá-la e com razão. Uma pessoa que perdeu totalmente a fama é quase
como ter recebido uma sentença de morte: ela passa a “vegetar” na sociedade.

Se entendermos nessa lógica, o segundo mandamento é mais elevado do que o terceiro, e o


terceiro mandamento já preceitua a vida espiritual! Então o que pode ser mais elevado do que
a vida espiritual?

2. Sobre o segundo mandamento e o “nome” de Deus

280
O segundo mandamento diz o seguinte: “Não tomarás o santo nome de Deus em vão”. No
texto original era assim que estava escrito, e ainda continua escrito assim no catecismo: Não
tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão, porque o Senhor não terá por inocente aquele
que tomar em vão o nome do Senhor teu Deus.

Então ele está dizendo que existe uma coisa que se chama o nome de Deus, que ele não tolera
em hipótese alguma que tomemos em vão. Isso é mais grave do que matar, mais grave do que
desrespeitar o pai e a mãe e é mais grave que não rezar. O nome de Deus é mais importante
do que tudo isso.

Só que, tanto quanto podemos entender, está acontecendo aqui a mesma coisa que no dia de
sábado. Essas coisas eram muito profundas e o povo judeu não conseguiria entender o que
era o nome de Deus. Então, para chamar a atenção de que era uma coisa elevadíssima, Deus
disse: Não tome isso em vão. Ai de quem tomar o nome de Deus em vão! E não explicou mais
nada. Mas, na medida em que o tempo foi passando, a própria Sagrada Escritura foi
aprofundando o conceito de nome de Deus.

Nessa passagem o nome de Deus aparece pela primeira vez ou quase que pela primeira vez. É
só citado: “Existe isso e olha que está num nível muito alto, mais do que o dia de sábado, mais
do que a vida de oração, mais do que matar, respeitar pai e mãe, não cometer adultério”.
Considerando isso, as pessoas deviam se perguntar: “Mas afinal de contas, que nome de Deus
é esse?”. A Sagrada Escritura foi aprofundando isso e, quando chegou no Novo Testamento,
Jesus coloca a coisa de uma maneira completamente diferente. Na oração do Pai-Nosso
podemos ver que há sete pedidos e esses pedidos também estão em ordem decrescente de
importância. É como os dez mandamentos: começa pelo mais alto e vai passando para os mais
baixos.

O Pai-Nosso começa assim: Pai nosso que estais nos céus, santificado seja o vosso nome,
venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso
supersubstancial nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas (...). Percebamos que, logo abaixo da
primeira frase “Pai nosso que estais nos céus”, Jesus coloca “Santificado seja o vosso nome” e
dá a entender que o maior de todos os pedidos é que santifiquemos o nome de Deus. Jesus
não está dizendo “Não tomar o nome de Deus em vão”, está indo muito mais além:
“Santificado seja o teu nome”. E ele está dizendo que esse deve ser o maior de todos os nossos
desejos.

No Pai-Nosso há a lista das coisas que devem ser desejadas para crescermos na vida espiritual,
em ordem decrescente de importância. Sendo assim, para Jesus o nome de Deus está numa
hierarquia tão alta como nos dez mandamentos, porém não é apenas para não tomá-lo em
vão (assim como no mandamento do sábado não é apenas para ficar descansando), mas para

281
nos dedicarmos à vida espiritual. Ele está dizendo: não é só para você não tomar o nome de
Deus em vão, mas para santificá-lo.

Jesus dá a entender no evangelho de São João que, durante a sua vida, ele foi explicando cada
vez mais claramente aos apóstolos o que era o nome de Deus. Até que, na véspera da sua
paixão, no capítulo 17 de São João, ele levanta uma oração a Deus e diz ao Pai: Pai, eu
completei a obra que me deste e manifestei a estes que tu me deste (aos apóstolos) o teu nome.
Quer dizer, ele dá a entender que todo o ensino que deu aos apóstolos foi um longo
aprendizado do que era o “nome de Deus” e que, tendo manifestado o nome de Deus aos
apóstolos, havia completado a sua obra. E ele diz que justamente esse deve ser o maior dos
nossos desejos: santificar o nome de Deus, e não apenas não o tomar em vão.

Nessa mesma última ceia, Jesus diz aos apóstolos: Até hoje vós nunca pedistes nada em meu
nome. Pedi em meu nome. Tudo que pedirdes em meu nome, ser-vos-á concedido. Essa frase
revela muito o que é o nome de Deus, porque nos evangelhos sinóticos Jesus fala essa mesma
coisa, porém não do nome de Deus, mas da fé. Ele diz: Tudo aquilo que pedirdes com fé, ser-
vos-á concedido. Se disserdes a uma montanha “Sai daqui e vai para lá” e tiverdes fé e não
hesitardes no coração, a montanha sairá e nada vos será impossível. No final do evangelho de
São João ele fala a mesma coisa, mas em vez de falar que é a fé, ele diz que é o seu nome. Como
se dissesse: Vocês até agora nunca fizeram isso, mas peçam em meu nome e nada será negado
a vocês.

Daí podemos perceber que o nome de Deus e a fé são a mesma coisa. E é isso que Hugo de
São Vitor deduz quando interpreta o Pai-Nosso. Num livro em que Hugo de São Vitor
interpreta o Pai-Nosso, ele pergunta: O que é o nome de Deus que está no evangelho? É
justamente a fé! Por que? Porque a fé nesse mundo faz as vezes da visão beatífica.

Vemos isso pela epístola de São Paulo aos Coríntios. Nessa epístola São Paulo diz o seguinte:
De todas as coisas, as mais importantes são a fé, esperança e caridade, mas tudo há de cessar.
Quando estivermos na outra vida, no prêmio eterno, não haverá mais fé, não haverá mais
esperança. A esperança é substituída pela posse: quem possui, não tem mais esperança de
possuir. E a fé será substituída pela visão. Só permanecerá a caridade!

Se a fé será substituída pela visão, significa que nesse mundo, enquanto não estamos na
presença de Deus, a fé faz as vezes da visão: o que é a visão beatífica no céu, (que nos dá a
posse de Deus) é a fé nesta terra. Assim, enquanto não vemos Deus face a face, o modo de vê-
lo é através da fé. E não é um modo falso, porque, pelo que falamos da outra vez, já sabemos
que para fazermos um ato de fé (e isso é teologicamente certo) não basta que creiamos.

Mesmo que tenhamos a virtude de crer, que tenhamos o hábito de crer, para fazermos um
ato de fé pleno no qual saboreemos a verdade divina, precisamos naquele momento de uma

282
iluminação de Deus, de um movimento da graça que convide a vontade e ilumine a
inteligência. E esse movimento da graça vem diretamente do Verbo, é o Verbo que nos
ilumina para fazer isso. E depois da sua ressurreição e ascensão aos céus o Verbo, que é Cristo,
faz isso através da sua humanidade encarnada: é através da sua humanidade ressuscitada que
está junto de Deus que nos vem essa graça para podermos crer, em cada momento que
experimentamos a virtude de crer. Logo, quando cremos estamos em contato físico com Jesus
ressuscitado.

Isso está claríssimo na Suma Teológica quando Santo Tomás de Aquino fala dos modos da
redenção na terceira parte da Suma. Ele diz que a graça para nos desenvolvermos na vida
espiritual vem através da humanidade do Cristo ressuscitado e, para acontecer isso, deve
haver um contato entre essa humanidade e a nossa alma. Este contato se dá através do ato de
crer. Quando cremos verdadeiramente, quando experimentamos a riqueza do ato de crer,
aquela luz que se abre para enxergarmos a verdade, aquele convite ao qual nos abrimos para
nos entregar às coisas divinas, aquilo é uma graça que vem de um contato pessoal com Cristo
ressuscitado, ainda que no início da vida espiritual não seja claramente manifesto.

Portanto, a fé, entendida nesse sentido, é o nome de Deus. Porque o nome é o meio pelo qual
conhecemos pela primeira vez a coisa a que se refere o nome, é o modo usual das pessoas
aprenderem o que são as coisas. Se estamos vendo um objeto e não sabemos o que é,
perguntamos: “O que é isso?”. Aí alguém diz: “Isso é uma jarra”. Sabendo que é uma jarra,
isto é, sabendo o nome da coisa, já começamos a entender o que aquilo é: podemos ver no
dicionário, podemos conversar com outras pessoas.

Nas linguagens antigas isso era mais profundo, porque hoje os nomes são arbitrários: o nome
é um “som” que se dá a uma coisa. Já nas línguas semitas (árabe, hebraico, etc.) o nome que
era dado à coisa não era um som qualquer, mas tinha normalmente uma raiz de modo que o
próprio nome já dava uma ideia do que a coisa era; é uma coisa que não existe nas línguas
modernas. Nas línguas antigas o nome não era escolhido à toa: quando o pai escolhia um
nome para um filho ele dava mais ou menos o nome daquilo que ele intuía que o filho seria,
considerando como pretendia educá-lo. O nome já era como uma espécie de identidade, uma
personalidade do indivíduo. Nas línguas antigas, ao aprender o nome, já se tinha uma
informação sobre a natureza da coisa.

O nome, no seu sentido original, significa isso: é a primeira realidade que começa a revelar o
que a coisa é, enquanto não se tem a própria coisa em si. Vemos isso, por exemplo, quando
na bíblia se diz que, depois que Adão foi criado, ele começou a dar nome às coisas. Não
significa que ele inventava nomes, mas que compreendia o que eram as coisas e conseguia
descobrir qual era o nome delas. Cada coisa então tem um nome próprio que revela o que a
coisa é.

283
3. O pedido da fé

O ponto na espiritualidade humana que começa a revelar quem Deus é, é justamente o ato
de fé. E como se desenvolve o ato de fé? Estávamos falando disso na aula passada.
Primeiramente temos que pedir o ato de fé a Deus, porque ele assim o diz. Jesus diz que se
pedirmos pão aos nossos pais, mesmo sendo ruins eles não darão uma pedra, mas o pão, então
Deus saberá dar o Espírito Santo a quem lhe pede. E a primeira manifestação do Espírito
Santo é o dom da fé, pelo qual a nossa mente começa a se abrir aos mistérios de Deus, porque
ele mesmo vai como que nos iluminando e convidando a perceber isso. Então o primeiro
passo é pedir.

Pedir o dom da fé é uma coisa absolutamente indispensável, é o começo da vida de oração —


isso nós explicamos quando falamos do terceiro mandamento. É no fundo o mesmo
ensinamento que está no Velho Testamento, quando Deus elogia Salomão por ter pedido
sabedoria ao invés de riqueza, ao chegar ao trono de Israel. Deus ficou tão contente por ele
ter pedido sabedoria, que prometeu dar-lhe sabedoria e tudo o mais.

Pedir a fé e pedir sabedoria são coisas muitos semelhantes. A sabedoria é o desenvolvimento


da fé num grau muito maior. O que a sabedoria mostra como dom de Deus, não é diferente
do que a fé mostra, é apenas a fé num grau muito mais desenvolvido. Então a Sagrada
Escritura, ao elogiar Salomão por ter pedido a sabedoria e ao mostrar a prodigalidade de Deus
em responder a esse pedido, está ensinando a mesma coisa que o Novo Testamento: que
devemos pedir e será atendido, desde que peçamos com fé e com vontade de receber aquilo.

4. Papel da meditação no aprofundamento da fé

Só que existe uma maneira de desenvolver isso. Na medida em que vamos recebendo a graça
da fé e vamos mudando, a fé vai produzindo virtudes dentro de nós, vai nos tirando do
pecado, vai nos dando força para vencer as tentações, para quebrar nossos vícios e vai
produzindo obras que no fundo são pequenos milagres. Nós pouco a pouco vamos
percebendo que a maneira de cultivarmos mais profundamente a fé não é apenas pedindo,
mas através da meditação das Sagradas Escrituras.

No livro da Sabedoria está escrito que a verdadeira razão de existir das Sagradas Escrituras é
alimentar a nossa fé. “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de
Deus”, tal citação está no livro do Êxodo. Há uma outra no livro da Sabedoria, onde se diz
que a palavra de Deus é o alimento mais extraordinário, é o alimento próprio da fé. Por quê?

A Sagrada Escritura é a revelação de Deus, mas Santo Tomás de Aquino explica que a Sagrada
Escritura enquanto livro impresso é apenas a revelação externa. A revelação de Deus não
consiste apenas na externa, consiste também na interna. A revelação externa não é só a

284
Sagrada Escritura, pois a natureza também é revelação de Deus. Por isso Deus se serve tanto
da natureza quanto da Sagrada Escritura para nos iluminar, enquanto vamos percorrendo
estas [fontes] na intenção de descobrir Deus. A meditação das Sagradas Escrituras, se a
procuramos para isso, é uma oportunidade, assim como quando pedimos a graça da fé.

Quem medita nas Sagradas Escrituras para procurar uma verdade está como que pedindo a
Deus para iluminá-lo, a fim de entender o verdadeiro sentido daquilo que ele está revelando
externamente. Existe uma revelação interna sem a qual não poderíamos crer, pois crer é
enxergar uma verdade que Deus está revelando, não porque conseguimos entender o sentido
dela por nossas próprias forças e faculdades intelectuais, que não alcançariam isso, nem
simplesmente porque teimamos em entender. Nós cremos naquela verdade porque um
instinto interior, uma força interior, um movimento interno da graça está realmente naquele
momento nos iluminando e convidando nossa vontade para abraçar aquilo.

Assim sendo, a leitura meditada em que buscamos uma verdade quando estudamos as
Sagradas Escrituras ou os textos que são consequências honestas da Sagrada Escritura (os
Santos Padres, Santa Teresa, Tomás de Aquino, Agostinho, Hugo de São Vitor e outros) são
um convite para a graça de Deus ir nos iluminando, e ela vai fazer isso! Na medida em que
lemos as Sagradas Escrituras, começamos a compreender seu verdadeiro sentido de uma
maneira que vamos percebendo que é simplesmente sobre-humano o que está escrito, é de
uma profundidade que não encontramos em nenhum outro livro, nem mesmo naqueles que
foram escritos por pessoas iluminadas como a Suma Teológica de Tomás de Aquino, por
exemplo, que já é um livro sobre-humano, mas as Sagradas Escrituras estão muito acima disso
e o Novo Testamento então nem se fala!

O Novo Testamento é o suprassumo de absolutamente qualquer coisa que tenha sido escrita.
Perto da Suma Teológica, o Novo Testamento está a uma distância infinita! E a Suma
Teológica está a uma distância infinita das outras obras humanas. É quase impossível
conceber um ser humano que tenha escrito um livro como a Suma Teológica, é uma obra
praticamente sobre-humana, mas ela empalidece diante do Novo Testamento!

Na medida em que vamos enxergando, saboreando e sendo transformados por essas coisas,
tal experiência da fé é o “nome de Deus”. Trata-se de um nível, digamos assim, mais elevado
que aquele de que fala o terceiro mandamento. O terceiro mandamento pede para descansar
para dedicar-se à vida espiritual, o que já é uma grande coisa, maior do que todos os outros
mandamentos. Mas o segundo mandamento, que é santificar o nome de Deus, pede que nos
aproximemos do Deus vivo que se manifesta pela fé, até chegarmos a perceber que estamos
em contato com o próprio Verbo, alcançando uma intimidade tão grande com o nome de
Deus que possamos dizer que permanecemos na sua palavra. Esta palavra que ele está
falando é a verdade, que é o próprio Jesus, e também é o nome de Deus, são coisas semelhantes.
São a mesma coisa, vista sob um prisma diferente.

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Quando no capítulo oitavo do evangelho de São João, Jesus prega para as pessoas, ninguém
entende e todos querem matá-lo. Ele percebe que o pequeno grupinho de repente acreditou
e vira e diz a esse grupo: “Se permanecerdes na minha palavra, conhecereis a verdade e a
verdade vos libertará”. Essa palavra de que está falando é a revelação interna.

Jesus percebeu que o que ele tinha falado revoltou a todos, mas um grupinho de repente
acreditou: “É mesmo, isso vem de Deus”. Aí o que ele quis dizer é o seguinte: Se vocês
acreditaram é porque perceberam a revelação interior, é porque não foi pela carne e pelo sangue
que vocês acreditaram, mas porque o meu Pai o revelou. A palavra que eu lhes disse e que só
vocês ouviram — os outros não, porque estão querendo me matar — não é minha, mas vem de
Deus. Eu só vim trazê-la, ela vem do Pai. E esta palavra que vocês ouviram, que é a minha voz
a qual as minhas ovelhas ouvem, este que é o “nome de Deus” e é esse que eu queria revelar aos
apóstolos. Eu quero vocês permaneçam, que aprendam a identificar esse “nome de Deus” e
permaneçam nele.

Uma das maneiras de permanecer nele é através da meditação das Sagradas Escrituras, se
estivermos procurando um sentido mais profundo, uma verdade mais elevada que não pode
vir senão com a ajuda da graça, de tal maneira que aprendamos a identificar a revelação
interna que constantemente tenta se dar, porque Deus vive em nós, sustenta a nossa alma no
ser e tenta nos comunicar isso. E se nós procuramos isso com vontade de compreender,
estamos convidando-o a intervir. Se, pois, conseguimos meditar com frequência nas Sagradas
Escrituras para percebermos, por estarmos procurando uma verdade, que alguma coisa
interior nos está ajudando e nós conseguimos permanecer nessa pequena contemplação que
já é sobrenatural, esta verdade, esta palavra interior é o próprio Cristo, é o nome de Deus.

Então o segundo mandamento está fazendo algo mais que o terceiro. O terceiro está pedindo
que rezemos. O segundo está pedindo que, se acostumamos a rezar e a buscar a verdade
através da meditação das Escrituras ou com a ajuda também daqueles textos que derivam das
Escrituras; em suma, se estamos procurando a verdade que é o próprio Cristo e que não vem
se o Cristo não nos iluminar, [o mandamento pede] que nos acostumemos a permanecer no
nome de Deus. E ao fazer isso ele está nos convidando a termos intimidade com Deus.

Não é possível nesta vida ter uma intimidade maior com Deus do que através do seu nome,
que é a fé entendida nesse sentido. Maior do que isso é só na outra [vida], quando não existe
mais fé, pois ela é substituída pela visão de Deus.

A visão de Deus é impossível nessa vida, aparentemente porque seria uma experiência tão
dramática que até mesmo os grandes Santos não a suportariam, provavelmente eles seriam
fulminados na sua vida física. Deus não quer se revelar nesta vida, provavelmente porque se
ele o fizesse o fulano não suportaria, fisicamente falando! A estrutura física, biológica do ser

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humano, tal como é agora (não após a ressurreição) é incompatível com a visão de Deus. É
uma experiência fora do comum! A experiência do Cristo ressuscitado que São Paulo teve, já
o deixou cego por dias e ele só voltou à vista porque uma outra pessoa chamada por Cristo
fez o milagre de lhe restituir a visão. A visão de Deus face a face provavelmente fulminaria
um ser humano.

Portanto, a maior experiência de intimidade com Deus nessa vida se dá através do “seu
nome”. Logo, o segundo mandamento não está pedindo apenas para rezar, mas está
convidando à maior intimidade possível com Deus, à maior intimidade possível com Cristo.
É aquela experiência da qual falamos tanto em relação a Santo Agostinho: ele procurou a
verdade durante muitos anos, quase uma década, até que começou a perceber que as verdades
que estava buscando estavam nas Sagradas Escrituras. Santo Agostinho ridicularizava as
Sagradas Escrituras desde criança, como sendo uma coisa infantil. Porém, quando percebeu
que só Deus podia ter escrito aquilo com aquela perfeição e enfim creu, ele percebeu que sua
mente, já sensibilizada por um trabalho intelectual profundo, turbinou! Ela começou a
entender um monte de coisas que até a véspera estavam difíceis de serem entendidas, coisas
que ele buscava, procurava e era complicado compreender. Mas de repente se iluminou e ele
percebeu que alguma coisa tinha acontecido.

Geralmente quando as pessoas se convertem elas não percebem isso, porque é raro uma
pessoa se converter através de um trabalho intelectual. A maioria das conversões vêm “a
cavalo” de uma conversão moral: a vida da pessoa está podre, ela quer sair daquela vida e
aceita a graça de Deus que a muda, porém não tinha feito um trabalho intelectual prévio, não
estava buscando [a verdade] pela inteligência, mas [simplesmente] uma renovação da vida
moral. Ou às vezes a pessoa não tinha uma vida tão podre assim, mas de repente encontrou
um homem santo, de uma virtude fora do comum e ficou tão encantada que queria ser boa
assim: é também uma conversão moral.

É raro acontecer que um ateu esteja procurando a verdade de uma maneira tão encaniçada e
rigorosa como Santo Agostinho e de repente creia. Ele perceberia, pelo trabalho anterior, que
alguma coisa havia turbinado na sua mente. E quando Santo Agostinho foi ver o que era isso,
ele entendeu o que estava no evangelho de São João quando o evangelista diz: No princípio
era o Verbo e o Verbo estava com Deus. Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens. Essa
luz brilhou nas trevas, mas como as obras dos homens eram más e eles estavam nas trevas, eles
não a receberam. Mas quando àqueles que o receberam, que creram nele, Deus deu-lhes o
poder de se tornarem filhos de Deus, porque nasceram não da carne e do sangue, mas de
Deus.

São as mesmas palavras que Jesus fala para São Pedro quando, no meio de uma confusão de
opiniões sobre Jesus, o apóstolo diz: Para mim tu és o Filho de Deus. E Jesus diz: Pedro, bem-
aventurado és tu porque não foi a carne nem o sangue que te revelaram, mas o meu Pai que

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está nos céus que te revelou isso. É a mesma coisa que está no evangelho de São João: [aos que
tiveram] fé em Cristo, Deus deu-lhes o poder de se transformarem em filhos de Deus, porque
nasceram não da carne nem do sangue, mas de Deus nasceram.

Com palavras semelhantes às que estão no evangelho de São João, no de São Mateus Jesus diz
para São Pedro quando ele acaba de crer em Cristo: Não foi a carne nem o sangue, mas o Pai
que, através de mim, deu-te a graça de enxergar isso. Isso é o nome de Deus! E nós o podemos
cultivá-lo permanecendo na sua palavra, procurando identificar a sua presença, até sermos
tão íntimos com essa presença que reconheçamos que Jesus e, através dele a Santíssima
Trindade, vive conosco, dialoga conosco, ainda que no início isso aconteça muito
suavemente sem nada de ostensivo, como os milagres do Êxodo, a ressurreição de Lázaro e
assim por diante.

O segundo mandamento é, pois, um convite à intimidade com o nome de Deus, que no


fundo é a maior intimidade possível com Deus nesta vida. É um modo de oração mais elevado
do que aquele do preceito anterior. O preceito anterior nos manda reservar um dia para rezar,
pelo menos no Velho Testamento. Manda tirar um dia para descansar e dedicar ao Senhor,
apesar de não estar falando claramente da oração; ele fala apenas indiretamente que é para
fazer a mesma coisa que Deus fazia; porém no último dia Deus não só descansou, mas
contemplou a sua obra e viu que tudo era muito bom.

Então implicitamente está aí a oração. Depois, através de Isaías, interpretando o


mandamento do sábado, fica claríssimo que ele não pode estar falando de outra coisa que da
oração, mas é a oração em si. O segundo mandamento está convidando a uma intimidade
com Deus nesta oração através do seu nome. Na verdade, o segundo mandamento não
deveria ser exatamente “Não tomar o nome de Deus em vão”. Deus fez assim porque era o
que os judeus na época podiam entender. O segundo mandamento é aquilo que está no Pai-
Nosso: Santificado seja o teu nome. Não é só não tomar em vão o nome de Deus, mas santificá-
lo.

Portanto, de tudo que estamos vendo, abaixo do primeiro mandamento, a maior de todas as
coisas que existe é o nome de Deus; mais do que o sábado, mais do que honrar pai e mãe, mais
do que não matar, mais do que não cometer adultério e assim por diante.

5. Matéria grave em relação ao segundo mandamento

Evidentemente existem certas coisas também que a moral entende como coisas mínimas,
digamos assim. Do ponto de vista moral é difícil cometer um pecado grave por “não ter
intimidade com o nome de Deus”, porque inclusive não se pode obrigar alguém a ter
intimidade com o nome de Deus só por decreto. A Sagrada Escritura e os mandamentos estão
nos exortando a chegar a esse ponto, mas não se pode dizer a um indivíduo que ele cometeu

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um pecado grave por não ter intimidade com o nome divino. A maioria das pessoas nem
entende o que é isso. E também não temos certeza se quem estiver ouvindo essa gravação vai
entender completamente, mas pelo menos entenderá que existe algo para ser procurado e que
é mais profundo que a oração em si. É algo dentro da oração, que Deus manda.

Baseado no que vemos nos livros de teologia moral, para efeito de exame de consciência
podemos traduzir algumas coisas que seriam pecado grave contra o segundo mandamento.
De modo geral podemos dizer que “não ter intimidade com o nome divino” não é pecado
grave contra o este mandamento, porque isso já um desenvolvimento espiritual que não se
pode exigir imediatamente de um principiante. Pecamos contra o segundo mandamento
gravemente quando tratamos de uma maneira irrisória, debochada ou depreciativa das coisas
sagradas. De modo geral, as coisas que falam de Deus não podem ser tratadas de uma maneira
debochada e irrisória, mas reverente, devota (se possível) e própria para estimular a piedade,
a fé, a devoção e a reverência para com Deus.

Então aquelas pessoas que usam os motivos religiosos ou as coisas que falam de Deus de uma
maneira vilipendiosa, sarcástica, depreciativa, estão cometendo um pecado grave, porque isso
vai contra aqueles três pontos que estávamos falando: o amor a Deus, a benevolência ao
próximo e a castidade. As pessoas que pegam as Sagradas Escrituras ou as coisas que falam de
Deus (que deveriam transmitir a fé, que é o nome de Deus) e tratam disso de uma maneira
sarcástica, depreciativa, estão cometendo um pecado grave e isso é motivo para acusar-se [na
confissão].

Também cometem um pecado contra o segundo mandamento aquelas pessoas que juram
em falso pelo nome de Deus. Inclusive as pessoas que fazem juramento em nome de Deus a
respeito de algo que não seja grave, também cometem esse pecado. Então jurar por Deus em
coisas irrelevantes [ é pecado grave]. Nós só deveríamos jurar por Deus: primeiro, se for
verdade, senão já estaríamos cometendo um pecado grave; e segundo, se for algo de uma
importância transcendente como o juramento de uma testemunha num tribunal a respeito
de um crime ou uma coisa grave, ou coisas deste tipo. Jurar por Deus por uma irrelevância,
mesmo que seja verdadeiro o juramento, considera-se uma falta grave.

É também uma falta grave contra o segundo mandamento, nesse sentido, fazer uma promessa
a Deus e não cumprir. Isso é uma coisa comum de as pessoas fazerem. Via de regra não
podemos fazer promessas a Deus a não ser de coisas [relevantes], que sejam importantes para
o desenvolvimento da nossa vida espiritual. Mas seja qual for a promessa que se tenha feito,
deve-se cumpri-la, pois uma promessa é uma obrigação contraída pelo sujeito.

Nos livros de moral, encontra-se algumas explicações sobre isso, alguns detalhamentos sobre
isso. Se alguém prometeu uma coisa ilícita, a promessa é inválida: a pessoa não é obrigada a
cumprir, aliás, é obrigada a não cumprir. Por exemplo: se o sujeito promete a Deus que vai

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matar o vizinho, só pelo fato de ter feito essa promessa ele já tem que se confessar, porque isso
já é um pecado! Independente disso, ele não é obrigado a cumprir essa promessa, aliás, é
obrigado a não cumprir. Em resumo, o sujeito não é obrigado a fazer mais nada a não ser
pedir perdão em confissão por ter feito uma promessa hipócrita como essa, uma promessa
que já é um pecado. Deve simplesmente não cumprir a promessa e acabou!

Se a pessoa promete uma coisa lícita (mesmo que seja uma estupidez), em princípio ela é
obrigada a cumprir. Mas o fato é que muitas vezes as pessoas, principalmente as que têm
pouca formação, às vezes prometem coisas lícitas absurdas, que não fazem sentido, e inclusive
não seria bom elas cumprirem, apesar de serem lícitas. Por exemplo: Prometer ir a pé até
Aparecida ou subir de joelhos uma escada de 500 degraus. É o tipo de promessa que inclusive
é uma estupidez, porque a pessoa promete a Deus fazer uma coisa da qual ele mesmo não está
muito interessado. Qual pode ser o interesse de Deus em alguém subir de joelhos uma escada
de 500 degraus? O que Deus quer é a nossa santificação, a nossa união com ele, o nosso
apostolado para ajudar a completar a obra da redenção. Ele está pouco se lixando se a pessoa
vai subir 500 degraus de uma escadaria ou se vai a pé até Aparecida. Deus está muito mais
interessado em que a pessoa vá a Aparecida e comungue com devoção, do que no jeito com
que ela irá.

Apesar disso, se uma pessoa prometeu, ela é obrigada a cumprir. Nesses casos de promessas
sem sentido, a moral ensina que é lícito mudarmos essa promessa por outra melhor e que não
precisamos fazer nada a não ser propormo-nos a fazer outra coisa melhor do que a que
tínhamos prometido. Por exemplo: Se alguém prometeu a Deus subir uma escadaria de 500
degraus, ele pode trocar isso por exemplo, por uma promessa de assistir missa cada dia
durante uma semana e comungar nesses dias. Isso é muito mais do que subir os 500 degraus!
E mesmo se não for sete dias! Se o sujeito prometer que durante cinco dias ou quatro dias irá
à missa e comungará, isso vale infinitamente mais do que subir a escadaria!

E Deus sempre aceita essa mudança. É como num caso humano uma pessoa prometer à outra
que lhe dará uma caixa de bombom e “promessa é dívida”, ela tem que dar a caixa de
bombom. Mas aí a pessoa chega e diz: “Olha, fulana, eu mudei de ideia. Eu não vou te dar a
caixa de bombom, vou comprar uma passagem para você visitar a Europa e, quando você
voltar, eu vou te dar um apartamento no Morumbi. Você prefere a caixa de bombom ou
isso?”. Ela vai dizer: “Não, esquece essa caixa de bombom! Eu fico com esse outro presente”.
É óbvio que ela vai sempre aceitar, não precisa nem perguntar se ela aceita.

Então imaginamos que, se a pessoa trocar uma promessa idiota ou pelo menos mal feita, por
uma outra muito mais preciosa aos olhos de Deus, ela não precisa mandar um telegrama e
esperar a resposta. A resposta é óbvia: já está aceita na hora! Sempre podemos trocar uma
promessa malfeita por uma outra bem-feita. E não interessa o fato de a nova promessa ser
mais fácil, porque ela é muito mais preciosa, não interessa a facilidade. Talvez seja muito mais

290
difícil para um grande milionário comprar uma caixa de bombom do que dar uma passagem
para a Europa. Talvez o fulano tenha nojo de chocolate, então ele nem consegue chegar perto
e desmaia. Só de sentir o cheiro ele já tem uma queda de glicemia, então é muito mais difícil
ele dar a caixa de bombom do que a passagem para a Europa e o apartamento no Morumbi.
Mas o que interessa não é isso e sim que a coisa vale muito mais. Qualquer pessoa aceita a
troca, a questão da dificuldade é irrelevante.

Às vezes não existe uma coisa melhor para trocar. Por exemplo: Imagine que o indivíduo
prometeu que ia ser padre, mas depois percebeu que fez a promessa num momento de
desvario, pois não tem vocação e caso cumpra a promessa será um mau padre. Ele não tem
vocação para coisa, ele detesta, foi um momento de desespero, mas já prometeu. Ele pode
trocar isso por outra coisa melhor, mas o que pode existir melhor do que ser padre? O que
pode ser mais agradável a Deus? Praticamente não existe outra coisa, não adianta encontrar
outra coisa melhor. Dificilmente se encontrará uma coisa melhor (provavelmente nem existe
uma coisa melhor).

Mas o problema é que aquilo está mal colocado. Não adianta insistir, porque o sujeito não
será um bom padre. Ele não nasceu para ser padre, não foi chamado para ser padre e sabe que
será uma desgraça para si e para os outros, mas não dá para trocar por uma coisa melhor,
porque não existe. Nesse caso deveríamos ir lá no céu, falar com Deus e dizer: “Olha, Senhor,
infelizmente eu prometi, estou devendo, mas eu fui um doido! Troca isso por outra coisa,
escolhe o Senhor”. Aí se Deus dissesse: “Não, eu quero que você seja padre!” Aí não tem jeito,
o sujeito vai ter que ser. Se Deus escolher (…) ele que escolheu, ele aceitou. Mas como vamos
falar com Deus num caso desses? A maioria das pessoas não tem condições de ir lá e falar com
Deus face a face, como vemos que muitos Santos faziam.

A Igreja diz que nesses casos ela tem o direito de dispensar, porque Jesus disse: “Tudo que
ligardes na terra, será ligado no céu e tudo que desligardes na terra, será desligado no céu”.
Então se a Igreja, autoridade eclesiástica, achar razoável que nessa situação Deus entenderia e
trocaria a coisa, ela pode trocar uma promessa malfeita por uma outra coisa inferior, mas que
se supõe que Deus aceitaria. Contudo, nesse caso o indivíduo não tem autoridade para fazer
isso por si mesmo. Ele teria que se submeter à autoridade da Igreja, que no caso seria o bispo
ou o pároco. Não é qualquer padre que pode fazer isso.

Salvo engano, dependendo do caso, existe um privilégio de fazer isso para as ordens
mendicantes, como franciscanos e dominicanos. Ou teria que ser com um padre que seja ao
mesmo tempo pároco. Não pode ser a um padre que apenas seja padre, mas um que esteja no
exercício da paróquia, ou o bispo, ou o santo Padre. Normalmente o santo Padre não é
acessível a qualquer um porque é muito ocupado, e é só para o mundo inteiro. Mas podemos
pedir a um pároco em confissão para que, se houver justa causa, ele dispense uma promessa
que fizemos por um bem ótimo [trocando-o] por um outro não tão elevado, porque a

291
promessa está malfeita. Deus não se agrada de promessas que trarão dano espiritual à pessoa
e aos outros. E a Igreja tem o direto, como Jesus disse, de ligar e desligar as coisas da terra, mas
isso não ao arbítrio próprio, porém em nome de Deus. Deve haver razoabilidade, senão a
dispensa não é válida.

É assim também que ocorre com os sacerdotes. Um sacerdote promete que vai ser fiel ao
sacerdócio, aos votos de pobreza, castidade e obediência (no caso de religioso) para o resto da
sua vida. Ele pode pedir dispensa, mas tem que haver causa justa. Um sacerdote que fez voto
de pobreza, castidade e obediência, fez uma promessa a Deus, inclusive solene e pública e de
um bem extraordinariamente elevado. Para pedir dispensa não pode ser só porque ficou de
saco cheio. Se ele tinha vocação e simplesmente encontrou uma menina bonita que virou sua
cabeça e ele quer casar com ela, o que ele tem é que tomar jeito, esquecer a menina e ser fiel à
sua promessa!

É semelhante ao matrimônio: se o sujeito prometeu que vai casar com uma pessoa e dali há
dez anos encontrou outra pessoa que é “a mulher da vida dele” e, se a tivesse conhecido antes,
teria casado com essa e não com a esposa atual, tal sujeito não pode pedir dispensa do
matrimônio! “Ah, mas eu casei com a pessoa errada”. Ele já prometeu e isso está ligado até a
morte! Além disso, se ele casou com a sua esposa é porque gostava dela. Se apareceu outra
melhor que ela, azar, porque depois que ele casar com essa nova, dali há cinco anos vai
aparecer outra melhor ainda. O sujeito vai ficar trocando a vida inteira? O que você deve fazer
é esquecer da outra e ficar feliz com a família que Deus lhe deu, que é um tesouro. A que ele
tem já é o caminho para Deus, mas a outra não é.

Então o padre que realmente era padre, tinha vocação e quis ser padre, não foi enganado, não
foi ludibriado, sabia o que estava fazendo e livremente resolveu ser padre; se depois encontrou
“a mulher da vida dele”, ele não tem direito de ser infiel. Deve pôr a cabeça no lugar, esquecer
a tal mulher e continuar no sacerdócio. Mesmo que ele peça dispensa, enganando os
superiores com uma desculpa qualquer, dizendo que tem um motivo válido, mas sabe que
não é, essa dispensa não é válida, porque a Igreja não pode passar por cima de Deus. A Igreja
tem a autoridade de ligar e desligar, dentro da lógica das coisas de Deus. Ela está
representando a Deus e não passando por cima dele.

Em suma, sempre podemos trocar uma promessa de um bem menor por um bem maior, isso
não precisa de autorização de ninguém. Não podemos trocar uma promessa de um bem
maior por um menor sem ter um motivo justo e sem pedir a dispensa da autoridade
eclesiástica que, nesse caso, faz as vezes de Deus. E se o motivo é justo, a autoridade eclesiástica
deveria dar essa dispensa.

Simplesmente ignorar uma promessa malfeita e dizer que não vai cumprir porque é uma
estupidez, não é algo justo e é matéria grave, pois as promessas devem ser cumpridas. Se elas

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são malfeitas, devem ser trocadas por uma coisa melhor de livre e espontânea vontade, se for
manifestamente melhor aos olhos dos critérios divinos; ou pela autoridade eclesiástica se, para
desfazer a coisa malfeita e não podendo trocá-la por uma melhor, o sujeito é obrigado a
oferecer uma coisa pior.

A não ser que seja uma promessa ilícita, de uma coisa pecaminosa, desonesta. Nesse caso não
é necessário trocar. Aliás, o sujeito deve confessar-se por ter feito aquela promessa, é outro
caso. Mas não é justo, por mais absurda que tenha sido uma promessa que se tenha feito,
simplesmente ignorá-la, dizendo: “Não vou fazer!” Isso é tomar o nome de Deus em vão, é
aquilo que estava lá no Velho Testamento: “Não tomarás o nome de Deus em vão”. O sujeito
prometeu e depois disse que não vai cumprir.

A retidão da nossa consciência diante disso exige que sigamos esse padrão. E ao mesmo tempo
esse padrão vai criando dentro de nós um respeito, para que, quando começarmos a apreciar
realmente a intimidade de Deus através do seu nome, possamos usufruir daquilo com toda a
seriedade e profundidade possível.

É como preparar uma pessoa para o casamento. Uma pessoa que cumpre as promessas que
faz e aprendeu que elas devem ser cumpridas, [certamente] cumprirá melhor as promessas do
casamento. Para casar bem, é preciso ser uma pessoa séria. Para ser íntimo de Deus, é preciso
ser uma pessoa séria. E essas regras aparentemente burocráticas, não são tão burocráticas
assim, pois preparam a nossa alma para ter uma seriedade com essas coisas, a fim de que
quando realmente formos capazes, possamos apreciar tudo isso em toda a sua plenitude
através da vida espiritual.

Podemos ver que isso é algo de uma profundidade enorme, que nos prepara para uma vida
de santidade, mas que não se consuma enquanto não chegamos no primeiro mandamento.
Então temos ainda a considerar o primeiro mandamento.

Dificilmente alguém cometeria um pecado por não ter intimidade com o nome de Deus. As
pessoas que são assim é porque estão muito no início da vida espiritual e às vezes não tiveram
uma explicação destas. E, mesmo se tiveram, não têm como fazer isso [imediatamente], pois
é necessário um adiantamento na vida espiritual. Porém, essas outras coisas que parecem
formais (a promessa, o não desprezar, ridicularizar as coisas divinas, etc), são matéria de
confissão e temos que aprender a nos deixar moldar por elas.

Queríamos chamar a atenção para um detalhe acerca das piadas sobre as coisas sagradas. Nós
nunca devemos ridicularizar as coisas sagradas, mas na prática vemos que existem dois tipos
de piadas sobre as coisas divinas. Tem um tipo de piada onde não se está ridicularizando
Deus, mas uma coisa humana e as coisas divinas são uma espécie de “palco”, que não está
sendo ridicularizado em si.

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Por exemplo, uma piada desse tipo que não é nada de pecaminoso em si, apesar de que não é
uma coisa boa, é a história de três políticos que morreram e um deles é mais esperto que os
outros, mas os três são ladrões. Então eles não sabiam como fazer para entrar no céu e chegam
diante de São Pedro, que diz: “Mas aqui está escrito que você é um ladrão. Como você
explica?”. Aí o fulano diz isso e aquilo, mas São Pedro responde: “Não, não! Pode ir para o
inferno”. Aí vem o segundo, que roubou mais do que o outro, e São Pedro diz: “Mas escuta,
cavalheiro, aqui está escrito que o senhor é um ladrão. Inclusive o outro que roubou menos
que você já foi para o inferno, eu o condenei. E agora, o que eu vou fazer? Qual é a explicação
que você tem? Aí o cara tenta e não tem explicação. Aparece então o terceiro, que é o maior
ladrão dentre os três, mas é um espertinho que todos conhecem na vida política como
“espertalhão” e diz: “Não, São Pedro, eu explico. O que aconteceu foi isso, isso e isso”. Aí São
Pedro diz: “Ah, está bom, pode entrar”. Aí o cara ri, porque é justamente o jeito que ele fazia
para enganar o fisco, o governo, o congresso e assim por diante.

Uma piada dessas não está ridicularizando as coisas sagradas e sim a política. O “São Pedro”,
o “céu”, o “paraíso”, estão ali apenas como um palco. Então não podemos entender que este
tipo de piada seja um pecado contra o segundo mandamento. Apesar de que, na verdade, não
se deveria fazer piadas assim, porque deveríamos acostumar a falar das coisas de Deus para
elevar a mente das pessoas gradativamente ao nome de Deus.

As coisas de Deus deveriam ser veículo não para uma gracinha, mas para a revelação interna
de Deus. Deveríamos falar das coisas de Deus para que as pessoas pouco a pouco percebessem
a voz de Deus que fala no seu interior e está tentando iluminar o sentido profundo daquelas
coisas que estão sendo ditas externamente. E quando contamos uma piada destas, a voz de
Deus pode querer falar, mas não tem o que falar, pois aquilo é uma piada. Não estamos
ridicularizando as coisas de Deus, mas estamos usando-as indevidamente. Como não é uma
coisa direta, não podemos dizer que é um pecado grave. Seria um pecado grave se estivéssemos
ridicularizando o próprio Deus, ou a revelação, ou uma coisa sagrada. Aí sim, com certeza!

Muitas vezes nós vemos que em certos círculos de seminaristas ou clérigos elas são comuns.
Políticos fazem piadas com político, aviadores devem fazer piadas com aviadores, atrizes de
cinema devem fazer piadas com temas cinematográficos. Normalmente fazemos piadas com
as coisas do meio em que vivemos. E seminaristas às vezes são tentados a fazer piadas com
coisas da Igreja. Não lembramos de ter ouvido uma piada onde eles estivessem ridicularizando
as coisas sagradas.

São apenas piadas onde acontece isso: as coisas sagradas são como um ambiente da piada, mas
eles estão ridicularizando um coleguinha ou alguma atitude estranha de um fiel. Às vezes
pode não ser muito caridoso ridicularizar, [com] muito fundamento. Esse tipo de coisa é
muito ruim, mas não podemos afirmar que chegue a ser matéria grave contra o segundo

294
mandamento. Diversamente seria, se o objeto do ridículo da piada fosse o próprio Deus, a
revelação ou alguma coisa sagrada.

No segundo mandamento temos estas duas coisas para ver. Tem um lado mais direto, um
lado mais material da coisa e um lado mais profundo. Os três primeiros mandamentos,
principalmente do jeito como estão formulados na lei de Moisés, materialmente referem-se a
uma coisa, mas ao mesmo tempo estão querendo chamar a atenção para algo muito mais
elevado, que só no Novo Testamento é colocado de uma maneira escancarada. E mais do que
a oração e o nome de Deus, existe uma realidade mais sublime de todas: o primeiro
mandamento.

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Aula 19 – PRIMEIRO MANDAMENTO I

Índice
1. Essência do primeiro mandamento: o relacionamento com Deus através da fé
2. Essência do segundo mandamento: a profundidade do relacionamento com Deus
3. Prática da meditação para o aprofundamento na intimidade com Deus
4. Essência do primeiro mandamento: a união com Deus
5. A porta estreita da perseverança na oração diária
6. Eficácia santificadora da Eucaristia
7. A passagem do segundo mandamento para o primeiro

1. Essência do primeiro mandamento: o relacionamento com Deus através da fé

Nesta sequência vamos falar sobre o primeiro mandamento. Chamamos a atenção para o
modo como Moisés apresentou os três primeiros mandamentos ao povo no deserto do Sinai.
O terceiro pedia para santificar o dia de sábado: dizia que podíamos trabalhar durante seis
dias e no sétimo dia deveríamos descansar e não fazer nenhum trabalho. O segundo, que pela
lógica deve ser uma coisa muito mais elevada que o terceiro, dizia para não tomarmos o nome
de Deus em vão. E o primeiro diz: “Não terás outros deuses diante de mim, não farás para ti
imagem de escultura, nem figura alguma do que há em cima do céu, do que há embaixo da
terra, nem do que há nas águas debaixo da terra. Não adorarás tais coisas, nem lhes prestarás
culto. Eu sou o Senhor teu Deus, forte e zeloso, que vingo a iniquidade dos pais nos filhos até a
terceira e quarta geração daqueles que me odeiam, e que uso de misericórdia até mil gerações
com aqueles que me amam e guardam meus preceitos”.

Nestes três mandamentos percebemos que Moisés estava falando de coisas elevadíssimas para
pessoas que ainda eram muito rudes. Então ele não está indo a fundo na coisa, está tratando
o conteúdo desses mandamentos pela periferia. Ele quer que aquele povo rude comece a
praticar esses mandamentos pela periferia, pelo acessório, pelo acidental para que, uma vez
assimilado isso, possam entender o conteúdo. O que não significa que essa periferia, esse
“secundário” seja irrelevante!

É como chamar o matrimônio de “casamento”. Casamento vem de casa. Quer dizer que as
pessoas que vão se casar têm que ter uma casa, mas a casa é a periferia do casamento. Não é
porque tem uma casa e vai morar com outra pessoa dentro dela, que o sujeito está se casando.
Óbvio, porém, que é difícil alguém casar se não tiver uma casa. É preciso ter uma casa, é

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preciso morar numa casa com a própria esposa, mas a essência do matrimônio, da família,
não é a casa.

Aqui Moisés está fazendo uma coisa semelhante. O povo tinha acabado de sair do Egito, era
um povo de escravos que tinham sido tratados de uma maneira rude, talvez durante décadas
ou séculos. Eles tinham acabado de ver os milagres que Deus fizera através de Moisés para
libertá-los do Egito, além de haverem chegado há pouco num deserto sob um sol escaldante.
Então Moisés tinha que ensinar a lei de Deus (algo de uma profundidade espetacular) a um
povo muito diferente dos apóstolos, por exemplo, que já tinham 1200 anos de tradição
judaica nas costas, já tinham uma educação religiosa, tradicional, etc. Ali no deserto aquele
povo não tinha nada!

Os mandamentos em relação ao próximo (honrar pai e mãe, não cometer adultério, não
matar) são evidentes. Apesar de que, para facilitar, Moisés vai no miolo da coisa. No quinto
mandamento ele diz: “Não matarás”, mas não está dizendo que não se pode sequer xingar!
No sexto mandamento diz: “Não cometerás adultério”, mas não diz que temos de ser puros
até no pensamento, como Jesus fala; ele está falando de adultério. Mas pelo que é mais forte,
mais grave em cada mandamento, ele subentende o resto. Agora, no caso dos mandamentos
em relação a Deus a coisa é diferente. Ele não poderia ir no miolo da coisa, porque seria muito
difícil para aquelas pessoas entenderem. Sendo assim, nos três primeiros mandamentos
Moisés teve que ir para a periferia de cada mandamento.

Estes três mandamentos nos ensinam a nos relacionar com Deus, a alcançar a intimidade com
Deus. É isso que Deus quer. O homem tinha se afastado de Deus pelo pecado e ele quer trazê-
lo de volta, mas é um longo caminho. Então Moisés, no terceiro mandamento (o mais baixo
dos três primeiros), está dizendo que não se pode trabalhar o tempo todo, que se deve
consagrar um tempo para a Deus e nele não trabalhar com nada, deve-se parar com tudo. Mas
na verdade, o que ele está querendo dizer é que é preciso parar tudo para poder rezar, apesar
de não dizê-lo claramente. Ele deixa subentendido, dando como exemplo do repouso do dia
do sábado aquele que Deus fez, onde ele não repousou apenas, mas contemplou.

Aqui já tem uma leve indireta de que não era apenas para não fazer nada, não era “a
sacramentalização da preguiça”. Era justamente para que repousássemos no dia de sábado
como Deus fez, contemplando as suas obras. Então nós, através da contemplação da obra de
Deus ou da revelação, conseguimos contemplar o próprio Deus. Se fizermos como Deus fez
no sétimo dia, iremos acabar atingindo o próprio Deus.

Mas pelo que percebemos sobre a forma como os judeus interpretaram, eles se concentraram
na obrigação de descansar, que era correto porque Deus exigia isso, mas era apenas o começo
do mandamento. Nós vimos em outra aula que quem interpretou bem o mandamento foi

297
Isaías. Na profecia de Isaías está evidente que ele entendeu que o sábado não era só descanso,
era oração, era trato com Deus.

Portanto, o terceiro mandamento pede para rezarmos, para nos relacionarmos com Deus. E
a forma mais básica de oração, a forma fundamental pela qual todos devem começar é pedir
a Deus o Espírito Santo que significa concretamente, para quem está começando, pedir a
graça da fé: o conhecimento das coisas de Deus; ou como fez Salomão: pedir a sabedoria; mas
com desejo de alcançá-la e sabendo que ela não vem apenas pelo estudo ou pelo
conhecimento da revelação externa. É necessária a graça de Deus que nos ilumina e move o
nosso coração para aceitar e compreender o conhecimento que vem dele e que ilumina a
nossa mente para poder vislumbrar o verdadeiro sentido do que ele está dizendo.

Começamos, pois, a praticar este mandamento aprendendo a pedir o “conhecimento de


Deus”, o conhecimento da fé, a vida da fé, a graça da fé, com desejo de alcançá-la e com fé,
porque Deus prometeu infalivelmente que jamais negará essa oração a quem lhe pedir.
Porém, ele não dará tudo de uma vez, mas na forma de um “pão de cada dia”. Cada vez que
pedimos ele dá um pouco a mais e assim vamos crescendo na fé, caminhando da fé para a fé.

Falamos que essa forma de oração é suficiente para nos afastar do pecado, porque junto com
a fé vem a força para abandonarmos o pecado. Isso é algo que encontramos claramente
sublinhado na epístola de São Tiago, dizendo que a fé produz obras, que a fé sem obras é
morta; mas ela está se referindo a obras que são produto da própria fé. Então essa fé que
pedimos, esse conhecimento de Deus não é morto, é vivo e produz transformações em nós,
faz com que abandonemos o pecado e abandonemos mesmo, com força e em definitivo (em
definitivo enquanto continuarmos rezando, enquanto continuarmos nessa proximidade
com Deus).

Se rezamos constantemente, sem desanimar, com certeza nos salvamos. Se pararmos de rezar,
estamos perdidos. É essa ligação com Deus que não pode cessar. E Moisés queria que
parássemos no sábado para podermos rezar, mas nem sublinhou profundamente sobre a
oração porque conhecia o povo que tinha; primeiro eles tinham que aprender a fazer isso.

Então o terceiro mandamento, que é o mais inferior dos três primeiros, o mais baixo na
hierarquia dos três, pede que separemos um tempo na nossa vida para entrarmos em contato
com Deus. E isso acontece pela fé e essa fé tem que ser pedida, não tem como ser diferente! E
devemos perceber que, na medida em que pedimos a graça da fé, essa fé nos muda e vai nos
dando a força de não cair no pecado. Aí percebemos o que São Paulo dizia: que “o evangelho
é uma força que vem de Deus que age sobre aqueles que creem”.

Quando pedimos a graça da fé e, sendo atendidos, percebemos que a nossa vida vai mudando
e vamos abandonando inclusive o pecado, e que estamos fazendo isso não tanto porque nos

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propomos, mas porque há uma força do alto que nos está ajudando, isso é a maior prova de
que São Paulo tinha razão: O evangelho é uma força que vem de Deus, que age sobre aqueles
que creem e caminham de uma fé pequena para uma fé maior, porque os homens santos vivem
da fé. (Rom 1, 17).

Essa força que vem do relacionamento com Deus pela fé (que inclusive é necessária para
cumprirmos os sete mandamentos restantes, pois sem ela não conseguimos perseverar neles),
é a que nos está sendo preceituada no terceiro mandamento. Então temos que separar um
tempo para, através da oração, comunicarmo-nos com Deus e com essa força que vem do
alto. E a virtude que intermedia isso é a virtude da fé, que já explicamos o que era.

Posteriormente, pela lógica que estávamos seguindo, de que cada mandamento é maior do
que o anterior, no segundo mandamento nós deveríamos ter uma coisa muito maior que a
do terceiro. O que pode ser maior do relacionar-se com a força do alto que vem de Deus,
relacionar-se com Deus? Maior que isso é a intimidade desse mesmo relacionamento!

2. Essência do segundo mandamento: a profundidade do relacionamento com Deus

O segundo mandamento preceitua então a intimidade do relacionamento com Deus, não é


apenas o relacionamento, e essa intimidade está colocada justamente no nome de Deus.
Quando Moisés diz “Não tomarás o nome de Deus em vão” ele está usando a mesma técnica:
está chamando a atenção para um mandamento que as pessoas não iriam compreender. Se
Moisés sabia que eles não compreenderiam a própria espiritualidade do sábado e teve que
instituir a obrigação de parar de trabalhar, quanto menos eles entenderiam o que é a
intimidade divina! Então ele disse apenas: Olha, ninguém vai tirar sarro do nome de Deus,
ninguém vai usar o nome de Deus em vão. Eu quero o maior respeito.

O “nome de Deus” é a intimidade divina. Por que? Nós também falamos na última aula. O
nome é aquilo pelo qual se pode conhecer uma coisa antes que se tenha a própria coisa na
frente. E mais ainda porque os nomes das línguas antigas não eram simples sinais
convencionais, pois eram dados de tal maneira que, pela etimologia das línguas, ao saber o
nome não era preciso procurar no dicionário o que significava; pela própria etimologia era
possível perceber o que era.

Isso é raro nos dias de hoje nas línguas modernas. Nós temos um exemplo disso em alguns
casos. Por exemplo: Quando alguém vê um negócio na rua, que tem quatro rodas e um
volante e pergunta o que é isso? A pessoa diz: “É um carro”, porém isso não significa nada.
Mas se ela disser: “É um automóvel”, nesse caso é possível entender tudo. Porque, o que é um
automóvel? É uma coisa que se move automaticamente, por si mesma. Como se o sujeito
exclamasse: “Ah, então isso é uma carroça que não precisa de cavalo, ele anda sozinho!” É isso
mesmo. Se a pessoa nunca tivesse visto um automóvel e alguém dissesse que lhe daria um, ela

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perguntaria qual o nome da coisa e o sujeito responderia: É um automóvel. Parando para
pensar um pouquinho, a pessoa já teria entendido o que era. Já sabe que não é comida, já sabe
que não é uma carroça, porque uma carroça não automóvel, ela é puxada por um cavalo. Já
sabe que é uma coisa que anda e se mexe, então não é um livro. Enfim, [com esse nome] a
pessoa já sabe muitas coisas.

Isso que acontece com a palavra automóvel nas línguas modernas, o que é raro, mas nas
línguas antigas era comum. Quando alguém ouvia o nome, pensando um pouquinho no
nome já entendia o que era a coisa. O nome é aquilo que faz entender a coisa antes de tê-la na
frente. Logo, o nome de Deus é aquilo que mostra quem é Deus antes de vê-lo face a face. E
o que nos faz entender quem é Deus antes de vê-lo face a face? É justamente a fé. A própria
Sagrada Escritura, em São Paulo na primeira epístola aos Coríntios capítulo 13, diz que
quando vier a visão direta do céu não haverá mais fé, porque a fé em Deus será substituída
pela visão direta. Então não será mais necessário crer, pois iremos vê-lo. Daí percebemos que,
enquanto não o vemos, quem faz as vezes da visão beatífica é a fé.

Portanto, a fé é o nome de Deus. Principalmente porque a fé não é apenas crença, mas um


ato da inteligência movido pela vontade, que contempla, saboreia a verdade revelada por
Deus, porque ela [a inteligência] é iluminada pela graça naquele momento e a vontade faz a
inteligência assentir, porque também é convidada pela graça a mover a inteligência a assentir.
Logo, o ato de fé é mais do que um nome, é um nome sobrenatural. O ato de fé não é apenas
nome no sentido que Deus está revelando a palavra certinha que traduz o que Deus é. Além
da fé supor um conteúdo externo, supõe também uma iluminação da graça e um convite da
graça à vontade, para enxergar aquele conteúdo. É um nome que tem uma força. Não é
apenas como automóvel, que ouvimos essa palavra e raciocinamos: “Ele é móvel, mas é móvel
automaticamente, por si mesmo. Ah, então já estou entendendo!”.

É como se, ao ouvir a palavra “automóvel”, se a pessoa não fechasse o coração, ela percebesse
ao mesmo tempo uma luz que a faz entender mais rapidamente o que é um automóvel e [lhe
dá] uma vontade de abraçar o automóvel. É, pois, um nome maior que um nome comum.
Isso é a fé, isso é o nome de Deus!

Na verdade isso acontece quando, já experiente na oração, a pessoa já percebeu que pedindo
a graça da fé ela muda, abandona o pecado, a vida se ilumina, as coisas ficam mais claras e ela
vai percebendo tudo isso pouco a pouco pela constância, porque o “sábado” que ele estava
preceituando não é uma vez ou outra, mas todo sábado. Ele preceituou uma vida de oração!

Hoje nós cristãos acreditamos que a parte cerimonial da lei foi abolida por Jesus, então está
abolida essa exigência de que tenha que ser no sábado, desde o anoitecer da sexta, mas o
sentido da coisa não [mudou]. O sentido do mandamento, que é essa constância da vida
inteira, separar um sábado inteiro, isto é, um tempo para a oração, faz com que a pessoa

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quando tem constância na oração, comece a perceber que Deus age na sua vida através da fé.
Os defeitos de que ela não consegue se emendar, mesmo fazendo propósitos, arrependendo-
se, fazendo força, etc., todo esse esforço pode ser [robustecido] tremendamente por uma
força externa, como o sacramento da confissão (desde que haja fé) ou inclusive a própria fé.

Assim a pessoa vai percebendo que alguma coisa está agindo nela, que existe uma força do
alto. E depois de um certo tempo, de tanto conviver com a força de Deus, às vezes ela pode
parar de rezar e vai perceber que caiu no pecado de novo, voltou tudo como era antes. Ela
pode receber uma graça ou refletir: “Mas onde foi que eu errei, o que eu fiz de errado?”. Aí
começa a perceber: “Começou a dar tudo errado quando eu parei de rezar”. E então volta a
rezar, pedir a fé e percebe que retorna ao estado anterior que era melhor. Com isso ela vai
percebendo, por experiência, como realmente Deus age pela fé.

Quando fazemos isso, quando praticamos o sábado (nesse sentido) durante um bom tempo,
começamos a ter uma experiência de Deus vivida. No começo a fé poderia ser inclusive um
instrumento para abandonarmos o pecado, mas depois de certo tempo começamos a
perguntar “quem é a fé”, o que é essa força que vem quando cremos.

Suponhamos uma comparação de patrão que tenha um empregado supereficiente. Ele


contrata o empregado, tem como norma que vai respeitá-lo, não vai usar suas coisas em vão
e se relaciona com ele apenas com empregado. Pede uma coisa e ele faz. No outro dia ele faz
com eficiência. No terceiro dia, quando o patrão pede, o empregado já fez, porque sabia que
ele precisava. No quarto dia, inclusive sem pedir, ele melhorou a coisa que o patrão estava
precisando, e isso faz o patrão perceber que o empregado pensou nele. E pouco a pouco o
patrão vai vendo que toda sua vida vai ficando melhor por causa daquele empregado: a
agenda, os compromissos, tudo. E ele começa a usar o empregado a torto e a direito,
honestamente, dentro do contrato de trabalho, dentro do devido respeito de não usar dos
serviços dele em vão.

O patrão esgotou as possibilidades, pois tudo que esperava do empregado ele deu muito mais.
O sujeito nem sabe mais o que lhe pedir, mas já está convivendo com ele de tal maneira que
sem ele já não consegue fazer mais nada, porque vai sair tudo uma droga se dispensá-lo, o
escritório voltará a ser a bagunça que era antigamente. Aí quando o empregado cumpriu
todas as exigências, o patrão começa a se perguntar: “Mas quem é esse fulano? De onde ele
veio? Como ele não erra nunca? Como ele é tão eficiente? Ele começa até a duvidar que
aquilo é um ser humano, pensando se talvez não seja um ET que apareceu e se ofereceu para
trabalhar consigo. O patrão começa a querer saber quem ele é.

Se for uma secretária mulher o patrão até pergunta: “Escuta, quem é você? Como você é tão
eficiente? Onde você nasceu? Onde você estudou? Você é de carne e osso?” Ele quer conhecer

301
essa pessoa. A partir de então, já não está mais interessado nos serviços dela, mas quer saber
quem ela é.

Com a fé acontece uma coisa assim. Quando vemos que Deus age através da fé, chega uma
hora em que nos intrigamos e dizemos: “Mas quem é essa fé? De onde vem essa sabedoria?”
Aí começamos a perceber que na verdade o importante da fé não é o que ela faz, é o que ela
é, porque na verdade essa fé está fazendo as vezes do próprio Deus, essa fé é o contato com o
próprio Deus. A fé já é uma maneira de Deus se tornar íntimo.

Se fosse uma secretária o sujeito até iria convidá-la para jantar, passear, a fim de conhecê-la.
Não iria mais querer os seus serviços, mas ela mesma e começaria a honrá-la. No caso do nome
de Deus que é a fé, nós não apenas “não tomamos o nome de Deus em vão”, mas fazemos como
está no Pai-Nosso: santificamos, honramos, começamos a viver na intimidade do nome de
Deus, que é a antessala do paraíso. No paraíso não haverá o nome de Deus, mas o próprio
Deus; enquanto o próprio Deus não vem, nós ficamos com o seu nome que é a fé.

Então o segundo mandamento, na verdade, está nos convidando a ter uma intimidade com
a fé, a contemplar os mistérios da fé, contemplar a própria fé ou melhor: contemplar o
próprio Deus através da fé. Isso é santificar o nome de Deus. Moisés não conseguiu exigir
isso dos judeus. Ele disse apenas: Respeitem o nome de Deus, por misericórdia. Respeitem,
porque é a coisa mais sagrada que existe. Um dia Jesus vai explicar. E Jesus realmente explicou.
No último dia, na última ceia ele diz assim: Pai, eu completei a missão que me deste, manifestei
o teu nome a estes apóstolos que me deste. Jesus levou essas pessoas à intimidade de Deus através
da fé.

3. Prática da meditação para o aprofundamento na intimidade com Deus

O início da oração é pedir a graça de Deus, pedir a fé e em grande parte com o fim de
abandonar o pecado para poder se transformar. Mas, uma vez que já tenhamos intimidade
com essa forma de oração que poderíamos chamar “vocal” (na verdade não é tão vocal assim,
porque exige requisitos internos como fé, sinceridade e apesar de ser necessário pedi-la, não é
preciso pedir vocalmente, pode-se fazê-lo apenas interiormente); mas chamando de “vocal”,
uma vez que temos a experiência da fé e aprendemos a rezar sem cessar, uma das maneiras
para nos aprofundarmos na experiência da fé e nos aproximarmos do nome de Deus é a
meditação das Sagradas Escrituras: meditar nas Sagradas Escrituras ou nos livros que são
baseados nelas, como as obras de Santo Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Hugo de São
Vitor e os Santos Padres em geral.

Devemos fazê-lo com a intenção de procurar compreender o sentido mais profundo,


compreender interiormente o que essas coisas significam, ou seja, tentarmos compreender
medularmente a revelação externa de Deus. Quando fazemos isso, se o fazemos com

302
sinceridade, procurando um conhecimento mais íntimo da verdade divina, sabendo que ele
existe e procurando-o, Deus começa a nos ajudar interiormente pela revelação interna. Deus
começa a nos enviar a mesma graça que estava enviando para que crêssemos e
abandonássemos o vício, exercendo um efeito sobre a vontade. Aqui ele começa a enviá-la
para exercer um efeito mais pronunciado sobre a inteligência, a fim de nos revelar como ele
é.

Na medida em que vamos meditando nas Sagradas Escrituras, se através delas procuramos a
experiência dessa palavra interior, [acontecerá] o que Jesus dizia quando falava: “Aquele que
me ama, permanecerá na minha palavra (ele está se referindo à palavra interna) e meu Pai o
amará e nós viremos a ele e nos manifestaremos a ele, e faremos nele a nossa morada”. Além
disso, ele diz que quer que nos “santifiquemos na verdade” e a verdade é a palavra de Deus a
“tua palavra”. Ele está subentendendo que essa palavra na qual deseja que permaneçamos é
essa revelação interna, pela qual, através da graça, Deus nos ilumina quando procuramos
[entendê-lo].

Não é simplesmente a memorização da palavra externa, tampouco um raciocínio dedutivo


dela, mas a busca de uma experiência de fé. As Sagradas Escrituras são o alimento mais forte
da fé, se as buscarmos desta maneira. Devemos meditar buscando uma verdade, pois se não
houver essa busca da verdade não resolve nada. Deve haver um compromisso com essa
verdade, que é o equivalente na oração “vocal”, da exigência de que a oração não pode ser
apenas a manifestação do pedido, mas o desejo de alcançar a coisa que estamos pedindo.

Sendo assim, na meditação das Sagradas Escrituras não basta que leiamos nem que reflitamos.
Deve haver o equivalente do desejo de alcançar a coisa pedida, deve haver a busca da verdade,
de uma verdade tão evidente que esteja acima da verdade humanamente falando — uma
verdade iluminada por Deus, que no fundo é uma participação da vida divina. Tem que haver
um compromisso com a busca de uma verdade. A mera curiosidade, a mera reflexão, a mera
leitura (mesmo que seja eruditíssima) não leva a nada, porque o que queremos é o alimento
da virtude da fé. E na medida em que vamos fazendo isso, vamos nos tornando cada vez mais
íntimos, num grau mais delicado, com essa força de Deus que age dentro de nós quando
cremos, de modo que ela vai perdendo, digamos assim, essa primeira aparência de ser uma
força e vai se tornando pouco a pouco o nome de Deus.

A própria experiência da fé vai se tornando algo que nós não chamaríamos mais de uma força
e sim do que Jesus fala: o nome de Deus, que devemos santificar. Quando ele diz para
“permanecermos na sua palavra” e “santificarmos o seu nome” está falando da mesma coisa.
Isso é a maior intimidade que podemos ter com Deus nesta vida. E nós percebemos que isso
não é humano, ainda que bem indiretamente no começo. É uma luz, um entendimento que
não alcançaríamos simplesmente por métodos puramente lógicos.

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Então o segundo mandamento “Não tomar o santo nome de Deus em vão” está bem melhor
colocado no Pai-Nosso “Santificado seja o vosso nome”, não porque Moisés fosse burro, mas
porque a audiência dele não lhe permitia ser mais claro. Ele está preceituando a mesma coisa
que está no terceiro mandamento, só que num grau mais profundo. Não é apenas separar
um tempo para Deus; ele está preceituando a intimidade com Deus através da fé que é o nome
de Deus.

Portanto, temos que aprender a conviver com a contemplação da fé, meditando nas Sagradas
Escrituras, refletindo. E através da própria oração temos que aprender [isso] até chegar num
ponto citado por um discípulo de São João evangelista, Santo Inácio de Antioquia. No
primeiro capítulo de um escrito seu chamado “Epístola aos Efésios” (não a de São Paulo, mas
de Santo Inácio), ele diz assim: Aqueles que possuem a palavra de Jesus são capazes de ouvi-lo
inclusive no silêncio. Quer dizer, eles estão tão íntimos do nome de Deus, têm uma
convivência tão íntima com a palavra de Jesus (a palavra interna, a espada de dois gumes que
vai até a medula de que fala a epístola de São Paulo aos Hebreus) que podem ouvi-lo inclusive
no silêncio. E eles alcançam isso porque se tornaram íntimos da palavra interna, porque
aprenderam a rezar, a pedir a graça da fé, a alimentá-la pela meditação das Sagradas Escrituras
(não por terem se tornado eruditos nas Sagradas Escrituras, apesar de poderem sê-lo). Eles
alimentaram a fé, o conhecimento interno da fé, a experiência da fé, o contato real com Deus,
o mais sublime que existe abaixo da visão beatífica.

Eles já têm tanta intimidade com o nome de Deus que, mesmo se não estiverem meditando
nas Sagradas Escrituras, como que forçando Deus a iluminar com sua graça o que estão
entendendo; ainda que não estejam ouvindo a palavra exterior, eles têm tanta intimidade que
são capazes de perceber a presença dela na sua alma, mesmo que delicadamente no silêncio.
Isso é santificar o nome de Deus! Por isso que São Paulo dizia: Não sou mais eu que vivo, mas
o Cristo que vive em mim. E o Cristo vive em mim — continua São Paulo — pela “fé que eu
tenho no Filho de Deus”. Ele não só diz a frase, mas especifica o sentido: é pela vivência da
fé, levada a esse ponto, ao ponto do segundo mandamento.

Após isso parece que não há mais nada. O que pode ser maior do que isso? Contudo, devemos
lembrar: há um primeiro mandamento que é maior do que todos os outros.

4. Essência do primeiro mandamento: a união com Deus

No primeiro mandamento Moisés usa a mesma estratégia. É uma coisa tão sublime que ele
não se aventurou a explicar aos judeus. Então disse-lhes assim: Primeiro mandamento. Eu sou
o Senhor teu Deus! Não terás outros deuses diante de mim. Você não fará esculturas, não
adorará o deus cobra, o deus urubu, a deusa águia, o deus touro e não invente outros deuses. Ai
de quem fizer escultura de um outro deus. Inclusive eu não quero que façam nem da minha.
Vocês não vão fazer esculturas, não terão outros deuses. Eu sou zeloso e não quero ter outro. Eu

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sou o Deus terrível que castiga quem fez isso até a quarta geração. Castigo os que me odeiam,
mas uso de misericórdia com aqueles que me amam.

Vejamos, o amor a Deus saiu pela tangente no finalzinho, como um lembrete. O que ele está
querendo mesmo é que eles não tenham outros deuses, ele está abrindo caminho. Assim
como abriu caminho para a oração através do sábado; para o nome de Deus pedindo que não
o desrespeitassem; abriu o caminho para a amar a Deus dizendo que não era permitido ter
outros, que eles não inventassem outra coisa, pois só há um Deus. E no fim ele disse: Se
alguém me amar, eu vou fazer misericórdia durante mil gerações. A indireta está dada!

Quarenta anos depois Moisés explicou esse mandamento ao povo (está no Pentateuco, no
Deuteronômio). Na antessala de sua morte, Moisés fez um último discurso e falou ao pessoal
o significado do primeiro mandamento, mas nem disse que era o primeiro. Pela primeira vez
ele anunciou o primeiro mandamento em toda sua extensão: “Ouve, Israel, amarás o Senhor
teu Deus de todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e todas as
tuas forças”.

Mesmo assim, depois disso ele pediu que as pessoas meditassem nesse mandamento, dia e
noite sem cessar, quase como se não tivesse tendo certeza que eles cumpririam o
mandamento. Por isso insistiu que eles deveriam meditá-lo. Ao invés de insistir que eles
tinham que cumprir, Moisés disse: Você tem que meditar nesse mandamento dia e noite, sem
cessar; na hora que você deita, na hora que está andando, quando falar para os teus filhos, para
os outros, etc. Ele enunciou o mandamento, mas insistiu principalmente na necessidade de
meditá-lo.

A impressão que temos é que Moisés tinha entendido que o povo estava mais maduro, porém
mesmo assim não iria entender isso em toda sua extensão. Mas dá para entender em toda sua
extensão se compreendemos essa sequência: de pedir a graça da fé, experimentar a graça da fé
e aprofundar-se nela pela meditação das Escrituras até ouvir gradativamente essa palavra
interior e conhecer o nome de Deus.

Quando uma pessoa tem essa certeza, quando percebe que é capaz de possuir a palavra de
Jesus de tal maneira que se torna capaz de ouvi-lo no silêncio, na verdade ela percebe que o
“nome” de Deus é Deus [mesmo], é o modo mais íntimo possível com que Deus se relaciona
com ela. A pessoa percebe que, enquanto não estiver no céu na visão beatífica, não existe uma
coisa que seja mais Deus do que aquela.

Quando a pessoa percebe que na verdade, pela graça e pela vida espiritual, Deus vive nela
como São Paulo percebia; quando percebe que aquele é o Cristo, aquela é a “luz que era o
Verbo” que ilumina as trevas, que “as trevas não a receberam”, mas ela recebeu; depois de
tudo isso, o que existe de maior é amar esta pessoa que ela já conhece na intimidade. É aí que

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podemos amar a Deus de todo coração, de toda alma, com todo entendimento e todas as
forças.

Essa união da experiência do nome de Deus pela fé com a vontade de cumprir o primeiro
mandamento de amar essa pessoa que está entranhadamente íntima conosco, é o que
chamamos de comunhão com Deus, de união com Deus. E o próprio Santo Inácio de
Antioquia nos seus escritos diz que a união da fé com a caridade é a coisa mais intimamente
unida que existe em todo universo, abaixo da própria união que existe entre Cristo e o Pai,
abaixo da própria união existente na Santíssima Trindade.

Não existe nada mais unido entre si no universo do que a união entre a fé e a caridade
entendida nesse nível, a não ser a própria união que existe entre as pessoas divinas. A união
entre corpo e alma, a união entre a batata e a casca, entre a porca e o parafuso, as uniões de
quaisquer coisas que existirem são todas mais fracas do que essa. Essa é a maior união possível
imaginável: a união entre a fé e a caridade, mas a que se operou dessa maneira: no primeiro
mandamento.

Isso é a própria união com Deus, a própria união com Cristo, para ser mais exato. Essa união
da fé e da caridade entendida dessa maneira (que na verdade é a união com o próprio Cristo
ressuscitado tanto quanto é possível nesta vida) é exatamente o último pedido que Jesus fez
na última ceia antes de terminar tudo e antes de Judas vir buscá-lo. Ele disse: Isto que eu queria
agora, ó Pai. O meu desejo é que estas pessoas que me deste estejam tão unidas comigo como eu
estou unido a ti, ó Pai. Com essa união com ele, Cristo está se referindo a esta união descrita
no primeiro mandamento, que é consequência da prática do terceiro, do segundo e culmina
na prática do mandamento do amor desta maneira que estamos descrevendo.

Jesus diz também na última ceia: “Permanecei no meu amor. Quem permanece em mim,
produz muito fruto. Sem mim, nada podeis fazer”. Ele estava dizendo que quando
conseguimos chegar a praticar o primeiro mandamento, porque já praticamos o terceiro e o
segundo, se permanecermos nele (Jesus), enquanto permanecermos nele nós vamos produzir
fruto espiritual e ele vai alimentando a nossa alma para crescermos na santidade.

Jesus diz ainda: Se alguém me ama (desta maneira), será amado por meu Pai e nós viremos
até ele e faremos nele a nossa morada. Quando ele diz “Nós viremos até ele” está se referindo
ao Cristo e ao Pai. Mas na verdade, pela teologia nós entendemos que a Santíssima Trindade
é indivisível, então onde está o Filho está o Pai e está o Espírito Santo. Então o sentido é esse:
Se alguém me ama a mim que me encarnei, e através da minha ressurreição estou dando toda
essa graça para vocês, meu Pai o amará (quer dizer, o Pai, o Verbo em sua divindade e o
Espírito Santo), e nós viremos até ele (a Santíssima Trindade toda) e faremos nele a nossa
morada. E nós seremos um templo da Santíssima Trindade!

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E quando diz “e nós nos manifestaremos a ele”, está se referindo a um nível de espiritualidade
ainda maior do que aquele, onde estas coisas não são mais delicadas como diz Santo Inácio
de Antioquia (se possuímos a palavra de Jesus nós ouvimos no silêncio). Aí não tem mais
silêncio, é explícito. É a partir daí que começa a surgir a santidade eminente que vemos nos
Santos da história da Igreja — essas pessoas que viviam virtudes heroicas, conversavam com
Deus abertamente e tinham intimidade com ele, quase como se estivessem conversando com
outra pessoa visivelmente.

Quer dizer, essa manifestação mais explícita da presença de Deus na nossa vida é dada a quem
cumpriu os três primeiros mandamentos e permaneceu neles. Logo, esses três mandamentos
indicam o caminho a ser feito.

E Jesus pede que permaneçamos nele, no seu amor, isto é, quando permanecemos no seu
amor, nesta comunhão com Deus que é a união da fé e da caridade descrita no primeiro
mandamento, produzimos fruto. Significa que, pela graça, nós nos desenvolvemos na
santidade, nós crescemos em santidade.

Existe um organismo sobrenatural dentro de nós que, ao estarmos em comunhão com Deus,
ao estarmos aos pés de Jesus como Maria (Marta estava na cozinha, mas Maria estava lá
fazendo a melhor parte); ao fazermos isso não estamos na verdade apenas honrando a Deus,
Deus está produzindo nosso crescimento interior. Então devemos dar esse tempo a Deus,
para ele poder nos aproximar cada vez mais de si e poder se manifestar a nós.

5. A porta estreita da perseverança na oração diária

Então vem a dúvida: Mas como fazemos isso? Todas essas coisas iluminam os três primeiros
mandamentos de trás para frente de uma maneira maravilhosa.

Se vemos na vida dos Santos, eles dão a entender o seguinte. Santa Teresa, por exemplo,
coloca que o desenvolvimento da vida interior passa por sete moradas. A maioria dos cristãos
está na primeira e não passa dela. Depois da primeira tem a segunda, terceira, quarta, quinta
e vai até a sétima. Existe então um mapa, uma cartografia da vida interior que está implícita
em toda a Sagrada Escritura, mas Santa Teresa foi a primeira que descreveu com todos os
detalhes. Apesar de outros antes dela terem escrito alguma coisa semelhante, contudo
ninguém escreveu tão bem como ela.

O fato é que, depois da primeira morada, existe um ponto que chamamos de porta estreita. É
fácil entrar na primeira morada, mas dali para a frente progredir para as mais interiores não é
tão fácil, porque existe um ponto de estrangulamento onde precisamos renunciar a nós
próprios, conhecer essas coisas, dedicarmo-nos a Deus, mas principalmente precisamos nos
dedicar à vida de oração.

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A maioria das pessoas reza pouco, então não percorrem esses três níveis. Se você pegar um
livro chamado “Teologia da Perfeição Cristã”, do Frei Antônio Royo Marin, ele diz que os
três primeiros estágios da oração são a Oração Vocal, a Oração Meditativa e a Oração Afetiva.
Isso corresponde mais ou menos a estes três primeiros mandamentos ou a estas três formas
de oração que estávamos colocando.

Vejamos a experiência das pessoas que se santificaram manifestamente. Aqui nos referimos
não só, mas principalmente a um texto que está na página www.cristianismo.org.br que são
algumas notas sobre a oração, de São Pedro de Alcântara, orientador de Santa Teresa d’Ávila
durante um tempo de sua vida. São Pedro de Alcântara diz que nós chegaríamos com certeza
à contemplação infusa (que é a quinta morada); com certeza chegaríamos aos estágios
interiores da vida espiritual, atravessaríamos a porta estreita se pudéssemos todos os dias rezar
duas horas mais ou menos, mas de uma oração que fosse pura devoção.

Como pura devoção devemos entender uma experiência de oração que compreendesse estes
três níveis: terceiro, segundo e primeiro mandamentos. Que fosse aquela união da fé e da
caridade que, abaixo da Trindade, não há nada mais unido, união de que fala Santo Inácio de
Antioquia. Que fosse aquilo que Jesus fala na Sagrada Escritura quando diz “Permanecei no
meu amor. Se alguém me ama, será amado por meu Pai, e nós viremos e faremos nele a nossa
morada”.

São Pedro de Alcântara dá a entender que, se pudéssemos nos dedicar todos os dias a uma
oração que fosse essa pura devoção, ou melhor, essa integralidade de que estamos falando
aqui; se fossem duas horas de permanência no amor de Cristo (como ele pede no evangelho
de São João), nós com certeza alcançaríamos as moradas interiores de Santa Teresa.

Para isso não vale o terço, o breviário, a missa, a leitura das Sagradas Escrituras, não vale a
leitura espiritual, não vale nenhuma dessas coisas. Tais coisas servem como preparação, mas
São Pedro de Alcântara está se referindo à oração nessa integralidade que estamos colocando:
é a união da fé com a caridade, a própria experiência da comunhão com Cristo.

Vejamos bem! Dentre os cristãos é raro alguém chegar a ter uma experiência de oração assim.
E pelo que vemos hoje em dia entre os leigos principalmente, ou também entre os sacerdotes,
com exceção dos contemplativos, é raro encontrar alguém que além [destas devoções]
alimente-se duas horas por dia disso, todos os dias. Então é fácil entender porque as pessoas
não passam pela porta estreita e não entram nas moradas interiores.

Também é fácil de entender o que significam duas horas. Duas horas, se prestamos atenção,
é mais ou menos a sétima parte do nosso tempo útil. Se tirarmos 8 horas de sono, sobram 16
horas. Tomemos 14 horas livres: 14 dividido por sete, são 2 horas. O que São Pedro de

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Alcântara está dizendo é que, se dedicarmos a sétima parte do nosso tempo útil a Deus, com
certeza chegaremos à vida interior.

Ora, era justamente o que Moisés tinha dito no terceiro mandamento: Seis dias vocês vão
trabalhar, no sétimo vocês vão descansar. No sétimo dia eles iriam dormir e durante o sono
não iriam rezar. No entanto, Moisés queria que no sétimo dia eles só rezassem e nos outros
seis poderiam trabalhar como “doidos”. Então o sétimo dia, a sétima parte do tempo eles
deveriam dar a Deus. E a experiência dos Santos mostra que nós precisamos disso!

Está revogada a parte da lei cerimonial que exigiu dos judeus o descanso no dia do sábado e
não em outro, mas a obrigatoriedade de darmos a sétima parte do nosso tempo útil a Deus,
exclusivamente para a vida interior, essa não está revogada nem podia estar revogada. Porque
nas epístolas de São Paulo está escrito que Deus quer “que todos se salvem e cheguem ao
conhecimento da verdade”. O conhecimento da verdade é a verdade da qual Jesus disse: “O
Espírito Santo vos fará conhecer toda a verdade”, ou seja, é a contemplação infusa que ocorre
na quinta morada. Deus quer que todos cheguem pelo menos na quinta morada!

E os próprios Santos que chegaram lá estão testemunhando que são necessárias duas horas de
comunhão com Deus por dia. Isso é a sétima parte do tempo útil que temos, que é justamente
o que Moisés estava dizendo. Talvez Moisés exigiu que fosse no sábado porque se explicasse
de outro jeito não adiantaria, já que eles não sabiam como rezar. Então ele tinha que mandar
separar a sétima parte do tempo e consagrá-la a Deus. Depois Isaías foi mostrando que aquilo
queria dizer: oração.

Então nós só podemos chegar à conclusão que isso é obrigatório. Deus quer que nos
santifiquemos, e isso não será possível se não separarmos para Deus a sétima parte do nosso
tempo útil, que dá mais ou menos duas horas de oração [diária].

Vemos inclusive que, nas aparições de Medjugorje na ex Iugoslávia, esse foi um dos primeiros
pedidos da Virgem Maria: “Por favor, apaguem a televisão e eu quero que vocês dediquem
pelo menos três horas à oração”. E as pessoas disseram: “Três horas? Essa mulher está louca?”
Nossa Senhora dizia: “Mas nós temos 24 horas no dia, vocês têm 21 horas para fazer o resto”.
Nós vemos que é mais ou menos a mesma doutrina, é o mesmo ensinamento.

Para a oração conduzir a vida interior, não basta que ela seja de 2 horas ou a sétima parte do
tempo útil. Ela conduzirá a vida interior se for a experiência da comunhão com Deus. Ela
tem que envolver a integralidade dos três primeiros mandamentos. Enquanto não somos
capazes disso, temos que seguir as etapas.

Por isso, temos que nos acostumar a pedir a graça da fé com insistência, até percebermos
claramente que Deus responde. Depois temos que meditar, temos que estudar: meditar nas

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Sagradas Escrituras, nas verdades eternas, algo em torno de um tempo desses (duas horas) até
termos uma intimidade com a palavra de Jesus, a palavra interior, para sermos capazes de
ouvi-lo no silêncio, como diz Santo Inácio de Antioquia; enfim, que percebamos como
alguma coisa nos está ajudando a compreender efetivamente os seus mistérios.

Um termômetro se estamos no caminho certo está contido na epístola de São Tiago capítulo
3: as obras. É importantíssimo que leiamos isso. Se não houver obras, não é a verdadeira fé, é
uma fé morta. Se a única coisa que [percebemos] é uma clareza maior dos mistérios de Deus,
mas não houver obras, não houver uma mudança para melhor através das virtudes, não é a fé
viva. Esta passagem da epístola de São Tiago está no capítulo 2, verso 14 a 26.

Trata-se da experiência de que, pela prática da oração, da meditação das Sagradas Escrituras
e da proximidade com a palavra, nós não só mudamos de vida porque quisemos, mas porque
manifestamente alguma coisa exterior nos ajudou. As obras de que ele está falando são
aquelas que vêm da experiência da fé. É como se fosse um pequeno milagre: quem crer
profundamente, vai ser capaz de fazer milagres. Mas o primeiro milagre que a fé faz é a própria
mudança da nossa vida: defeitos dos quais não conseguíamos nos corrigir nunca, o pecado
que não conseguíamos abandonar.

Portanto, nós deveríamos separar para o relacionamento com Deus (como Deus mesmo pode
estar dizendo), a sétima parte do nosso tempo útil. Temos que dividir o nosso tempo em sete
e mais ou menos dosar 1/7 apenas para Deus. Nos outros seis tempos trabalhamos, podemos
trabalhar inclusive para Deus, mas é trabalho. A sétima parte é para o relacionamento direto
com Deus. Se ainda não somos capazes daquela união da fé e da caridade que chamamos de
comunhão com Deus, união com Deus, união com Cristo, então usemos essa sétima parte
para fazer aquelas coisas que preparam para isso. Se perseverarmos nesta sétima parte é o que
Deus precisa para agir em nós, quando conseguirmos realmente viver esse amor que inclui
tudo isso na sua integralidade.

Não vale, nesta sétima parte, outras atividades religiosas: não vale ajudar os pobres, não vale
dar catequese, não vale dar aula de teologia, não vale preparar aula de teologia. Não vale visitar
penitenciárias, ajudar os doentes. Não vale a própria missa, não vale o breviário, não vale o
rosário. Todas essas coisas têm valor, são coisas imprescindíveis, são preparatórias, mas não
substituem essa busca da experiência da oração.

A única coisa que é equivalente a isso, pelo que conseguimos entender, é a experiência da
Eucaristia. Não é a liturgia da missa, mas a experiência da Eucaristia: aquela experiência que,
quando comungamos, sabemos que o Cristo sacramentado está em nós enquanto as espécies
do pão não se dissolvem. Durante uns dez minutos após a Eucaristia, Jesus está em nós. Se
crermos nisso e o amarmos, o próprio sacramento naquela experiência de dez minutos (que
mais ou menos dura a presença eucarística de Cristo em nós) nos ensina a amar o Cristo e

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aqueles dez minutos são equivalentes a essa oração. O problema é que são só dez minutos!
Não conseguimos comungar duas horas, porque depois de dez minutos as espécies
eucarísticas [se dissolvem]. Podemos continuar em oração, mas aí é oração, não é mais
Eucaristia.

6. Eficácia santificadora da Eucaristia

Então vem uma última pergunta que poderíamos fazer nisso: Muito bem, explicamos os três
mandamentos. O [terceiro] é a oração, que começa por pedir a fé com fé. O segundo é a
intimidade com Deus pela sua palavra. E o [primeiro] é a própria comunhão com Deus,
quando conseguimos a intimidade com ele através do seu nome; é a comunhão que vem
quando nós o amamos entranhadamente, conhecendo a sua presença. Mas onde entra a
Eucaristia nisso tudo?

A Eucaristia é um presente extraordinário que Deus fez, porque até os principiantes que
acabaram de se converter e estão com dificuldade até de compreender os primeiros passos da
oração, se comungarem corretamente eles terão uma pequena experiência de comunhão com
Deus antecipada.

A Eucaristia é como se fosse um farol, porque tudo isso é difícil de entender. Mas se
comungarmos com devoção, a experiência da Eucaristia tem exatamente essas três coisas
mergulhadas numa coisa só. Entender isso é complicado, é quase metafísica, mas podemos
experimentar imediatamente o aperitivo disso na hora que comungamos. E se comungarmos
todo dia, durante dez minutos nós podemos ter a experiência integral de tudo isso que
falamos, inclusive sem ter estudado quase nada.

Basta que creiamos que Jesus é o Filho de Deus, que quando na missa se consagra o pão e o
vinho eles se transformam realmente no Corpo e Sangue de Cristo, e que quando recebemos
a Eucaristia nós vamos receber o Cristo de uma maneira mais explícita que apenas pela graça
ordinária, pois ele vai estar lá também sacramentalmente, em corpo, sangue, alma e
divindade, presente e unido a nós durante dez minutos. Crendo nisto, naqueles dez minutos
nós devemos amá-lo o mais profundamente possível. Se o fizermos com fé, assim como veio
uma força para a mulher que padecia fluxo de sangue, também virá uma força para
aprendermos a amá-lo mais profundamente.

A Eucaristia é como se fosse um farol, uma bússola para a viagem. Deram a aula todinha da
viagem e está tudo emaranhado, porque é algo complicado. Mas aí dizem: Não se preocupa
não, está aqui uma bússola e é só você seguir. Essa “bússola” é a própria Eucaristia. E a
Eucaristia em si é mais valiosa do que tudo isso, porque por mais unidos que estejamos com
Cristo nesta vida, a Eucaristia tem mais do que isso. Na Eucaristia o Cristo está lá presente de
uma forma ainda maior do que apenas pela graça. Então apesar de ser uma bússola, apesar de

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servir como uma muleta, é uma muleta que vale mais do que o próprio indivíduo que está
sendo levado pela muleta. É uma muleta que o próprio paralítico nunca vai querer
abandonar, mesmo que volte a andar.

Mesmo que o paralítico volte a andar, ele não vai querer largar da muleta. Todo dia vai querer
andar um pouquinho com a muleta, porque ela é mais preciosa do que o próprio andar dele.
É uma muleta, mas diferente. A muleta normal, quando fez seu serviço, nós a largamos. Essa
muleta, não só não largamos como inclusive ela é mais valiosa do que o serviço feito, apesar
de servir para que o serviço seja feito. Ao mesmo tempo a Eucaristia já é um aperitivo de tudo
isso, e Deus no-la está dando para nos guiar. No fundo, tudo isso que estamos fazendo é
tentar reproduzir pela oração a experiência que já realizamos ao comungar.

A Eucaristia não é um “método” de oração. Ela é uma coisa completamente diferente, é uma
coisa a parte, uma coisa espetacular que Jesus inventou, pois só alguém com uma sabedoria
como aquele homem (que era Deus) para inventar uma coisa tão bem imaginada!

7. A passagem do segundo mandamento para o primeiro

Há uma pergunta a respeito desse assunto: Como se dá a passagem do segundo mandamento


para o primeiro? No segundo nós vivemos a experiência da fé. O segundo é a intimidade
divina que vem pela fé, que chamamos santificação do nome de Deus. O nome de Deus é a
própria fé, [e nesse mandamento] ela se manifesta de um modo mais exuberante que apenas
aquele que o nome fé dá a entender. É a mesma realidade, mas é tão manifestamente mais
profunda, que Jesus chama de nome de Deus, “Santificado seja o teu nome”.

Nos evangelhos sinóticos ele diz que tudo que pedirmos com fé, Deus dará. No evangelho de
São João ele diz: “Até agora vós não pedistes nada em meu nome. Pedi em meu nome e vereis
que nada vos será negado”. A mesma coisa que ele atribui à fé, depois ele atribui ao nome de
Deus. Vemos [claramente] que é a mesma realidade, mas ela é tão mais abundante, tão mais
crescida que o nome fé quase que fica pobre para revelar à mente humana todo o conteúdo
daquilo. Então Jesus chama a mesma realidade de nome de Deus.

Alguém poderia dizer: “Tudo bem, através da meditação, da fé, das Sagradas Escrituras, nós
conseguimos crescer na fé até esse ponto. Mas como passamos para o mandamento da
caridade?”.

Primeiro que na verdade não tem uma “passagem” porque, a partir do momento em que nos
convertemos e levamos uma vida cristã, já amamos a Deus, temos que aprender a amá-lo
desde o início. Tanto é assim que, quando fizermos a primeira Eucaristia após a confissão,
aquela Eucaristia já é essencialmente uma experiência de amor, onde a fé já vai embutida.
Sendo assim, nós não vivemos a caridade só a partir desse ponto mais avançado de que

312
estamos falando. Se não tivermos algum outro momento especial, logo no primeiro dia após
a confissão em que recebermos a Eucaristia em estado de graça, já somos convidados a viver
as três coisas simultaneamente.

Na verdade, nós vivemos os três mandamentos constantemente, porém temos que ir


crescendo na prática da vida espiritual, pois naquele tempo que reservamos à oração, vemos
que a nossa oração é principalmente: i) numa primeira etapa um pedido da fé, que
chamaríamos de oração vocal, apesar de que nem sempre ela é vocal; ii) numa segunda etapa
tentamos aprofundar a própria fé através da meditação com o auxílio da palavra interna.

Esta outra forma de oração o Royo Marin chama de Meditativa porque é predominante o
aspecto, digamos assim, do conteúdo, do aprofundamento, de alguém que não quer mais a
força de Deus para vencer o pecado, mas a luz de Deus para compreender mais
profundamente a sua mensagem. É alguém que está buscando a verdade, mas não uma
verdade meramente racional. Buscamos uma verdade que é racional, mas percebemos a ajuda
da iluminação de Deus, a ajuda da graça para a saborearmos e compreendermos. É uma
verdade diferente da mera verdade lógica, apesar de ser mais lógica do que a própria lógica. É
mais clara, mais firme, mais coerente, mais completa.

A verdade tem níveis. A suprema verdade é aquela quando vemos Deus face a face: vendo
Deus face a face nós vamos compreender a verdade numa extensão e numa profundidade que
seria impossível nesta vida. E mais ainda é a verdade que Deus mesmo contempla ao
conhecer-se a si próprio, que é maior do que aquela que no paraíso nós, simples criaturas
limitadas, podemos perceber mesmo contemplando a Deus. Nós somos finitos, Deus é
infinito. O Deus infinito, na medida que se contempla a si mesmo, vê uma verdade num nível
que nós [nunca] veremos.

Então existem níveis da verdade, apesar de que todas elas são verdadeiras. Isso é uma coisa
bem sabida em filosofia. O ser tem níveis. Certas coisas são mais seres do que outras: Deus é
mais ser do que as criaturas. E entre as criaturas, umas são mais intensamente seres do que
outras. E com a verdade também é assim.

Naquilo que chamaríamos de segundo mandamento (a intimidade com a verdade), o esforço


predominante do indivíduo é de compreender, de enxergar mais manifestamente as coisas
que Deus revela, saborear a verdade. No terceiro nível o esforço do indivíduo é
principalmente amar essa verdade, aderir a ela pelo amor. É unir-se, pelo amor, ao Deus que
ele já conhece intimamente.

Num certo sentido não há passagem, porque nós não amamos só quando chegamos nesse
ponto. Nós já temos uma experiência de amar a Deus nas nossas vidas, nas nossas ações,
principalmente na Eucaristia, que é o amor realmente em toda sua integralidade. Não

313
significa que só conhecemos o amor naquele ponto, senão que a partir daquele ponto nós
começamos a procurar uma intimidade com Deus através do amor, que é muito mais
pronunciada do que nas etapas anteriores.

Como se dá essa passagem? Uma das coisas mais notáveis que conhecemos sobre isso é um
texto de Tomás de Aquino na Suma Teológica onde ele pergunta qual é o ato próprio da
caridade e o que é a caridade em si. A caridade é o mandamento de amar a Deus de todo
coração, de toda alma, todo entendimento e todas as forças. O que é a caridade?

Aí ele pergunta se por acaso a caridade não significa querer bem, se amar não é querer bem.
Porque ele diz que aparentemente amar é isso: alguém ama uma pessoa quando quer o bem
dela. Para ser mais exato: amor no seu verdadeiro sentido é quando não só queremos o bem
de outra pessoa, mas essa outra pessoa também quer o nosso bem. Esse tipo de amor
chamamos de amizade, que é um amor de dois lados, um amor que só existe entre pessoas,
pois alguém pode querer bem um carro, mas o carro não vai retribuir-lhe. Então nunca
veremos amizade entre um carro e uma pessoa.

Mas a pergunta é se a caridade significa querer bem. Aí ele diz que a caridade não é querer
bem, porque podemos querer bem e isso não ser amor, como é evidente em muitos casos. Por
exemplo: Quando nós vamos assistir uma luta ou um jogo e queremos o bem de um dos
lados, queremos que um dos dois ganhe. Evidentemente estamos querendo o bem de um
lutador e não estamos querendo o bem do outro, mas podemos dizer que isso é amor?
Certamente não, pois nem conhecemos o indivíduo! Chegamos na arena, vimos dois
lutadores, simpatizamos com um na hora, nem sabemos do que se trata e dizemos: “Eu quero
que ele vença!” E ficamos torcendo por ele. Nós queremos o bem dele, mas isso não significa
que é amor.

O amor, diz Santo Tomás, normalmente nasce depois de ter um conhecimento íntimo com
uma pessoa. O amor nunca nasce do nada, só porque queremos. Isso é uma coisa fortuita. O
amor é uma coisa mais profunda, mais estabelecida, mais permanente, mais sólida, não pode
nascer de um momento para outro. O amor supõe um conhecimento íntimo da pessoa
amada.

Ele diz que é justamente deste conhecimento íntimo que surge o amor. Para amar alguém é
preciso primeiro conhecer intimamente essa pessoa, senão não é um verdadeiro amor. E
quando esse verdadeiro amor surge, o efeito dele não é querer o bem da pessoa amada. É
possível querer o bem em qualquer momento, não é necessário conhecer a pessoa
intimamente. Pode ser inclusive um querer o bem sincero: podemos conhecer alguém
extraordinário, vemos que ele é um benfeitor, ou um gênio, ou um grande compositor e
dizemos: “Fantástico! Esse homem merece 20 milhões de dólares. Eu vou financiar a carreira
dele”.

314
Pode acontecer isso. O sujeito é um milionário, conheceu um fulano que compôs uma
música extraordinária, é um superdotado, mas um pobre coitado que ninguém dá valor.
Como o sujeito tem dinheiro sobrando, diz assim: “Escuta, fulano, não se preocupa mais com
dinheiro, pois eu vou financiar a tua carreira. Pensa em compor as melhores músicas que você
já escreveu na tua vida”. Quantos músicos já não tiveram isso? Beethoven, Tchaikovsky,
Chopin. Isso não é amor no verdadeiro sentido! Estes “patrocinadores” não conheciam
direito a pessoa. Conheceram rapidamente, mas entenderam quem ela era.

O amor verdadeiro é produto primeiro de um conhecimento íntimo de uma pessoa. E o


resultado desse amor, se ele existe, é querer bem, mas desejar profundamente se unir à pessoa
amada! Isso que é extraordinário em Santo Tomás de Aquino, pois ele não diz que o fruto do
amor é querer bem. É óbvio que deve haver isso, senão não é amor: se o sujeito ama e quer
mal, ou então nem quer bem nem mal, tanto faz, isso não é amor. Contudo, o ato próprio
do amor é a união.

É por isso que chamamos o encontro da fé com a caridade de união com Cristo. Porque, pela
fé vivida nesse nível do segundo mandamento do nome de Deus, já temos um conhecimento
íntimo da pessoa. Jesus não é um nome que viveu há dois mil anos, do qual lemos a biografia.
Conhecemos o Jesus ressuscitado, que vive em nós pela graça na Eucaristia e já temos
intimidade para saber que aquilo é uma coisa divina, que aquele é Deus ressuscitado, que não
é uma mera impressão. Nós conhecemos intimamente!

Em cima dessa intimidade surge o desejo profundo de unir-se a ele, que é trazido pelo amor.
A fé traz o conhecimento íntimo, mas o amor traz o seu efeito próprio que é unir-se à pessoa
amada. Por isso que quando um jovem se apaixona por uma moça extraordinariamente,
conhece-a intimamente e a ama, ele não quer simplesmente continuar fazendo-lhe o bem,
mas quer casar com ela, quer se unir para que os dois sejam uma só carne. Ele não vai dizer:
“Olha, você fica na tua, eu fico na minha e eu vou te ajudar em tudo”. Isso não é amor! Se o
rapaz ama, ele quer se casar com ela, quer se unir a ela!

Então a passagem do segundo para o primeiro mandamento se dá desse jeito. É um amor de


intimidade, produto do conhecimento íntimo. Temos que ter praticado o terceiro, o
segundo, e a intimidade da fé faz com que surja esse desejo de unir-se intimamente, que é um
ato da vontade que arrasta consigo os sentimentos e todo o resto. E a união da fé com a
caridade produz a união com Deus, a união com Cristo.

Tudo isso nós já vivemos integralmente quando comungamos corretamente pela primeira
vez. Vivemos isso durante uns dez minutos. Não de uma maneira tão extraordinária porque
ainda não somos Santos, Sábios, com a profundidade que Deus gostaria que fôssemos. Mas
é por culpa nossa, pois se já fossemos assim, o ato da Eucaristia seria a coisa mais sublime do

315
mundo. Quando6 recebemos a Eucaristia estamos recebendo algo maior do que a própria
graça que vem pela oração.

Por nossa limitação, isso às vezes não é tão profundo dessa maneira, mas é maior do que essa
e está em toda sua integralidade, não precisa passar por etapas. Na Eucaristia bem vivida, até
uma criança, sem saber como, experimenta toda essa riqueza dos três mandamentos juntos.

Contudo, a passagem se dá nisso, ou seja, se já praticamos a caridade na Eucaristia desde o


começo, pois já temos tal experiência de forma latente. Se procuramos fazer as coisas que
Deus nos pede por amor, se procuramos desempenhar por amor as obras que ele pede, esse
amor vai se desenvolvendo, essa simpatia por Deus vai se desenvolvendo. Quando chega o
conhecimento da fé que nos mostra Deus com tal intimidade, este amor simplesmente
incendeia e queremos nos unir a ele. É justamente o que fazemos naquela sétima parte do
tempo útil que Deus pede para separarmos para ser vivida com ele, a fim de termos essa
experiência de união com Deus, que são justamente os momentos em que ele alimenta o
crescimento da nossa alma em direção ao homem interior, em direção a uma comunhão
maior com toda a Santíssima Trindade, que vem através dessa união com Cristo.

6
Tirei uma frase "Não é por culpa nossa", pois parecia contraditória.

316
Aula 20 – PRIMEIRO MANDAMENTO II

Índice
1. Introdução: finalidade da teologia moral
2. Das três virtudes teologais
3. Dos pecados contra a fé
4. Dos pecados contra a esperança
5. Dos pecados contra a caridade
6. Observações sobre os pecados contra a castidade, o amor ao próximo e a fé
7. Se há um tempo mínimo de oração sub grave

1. Introdução: finalidade da teologia moral

Já falamos dos três primeiros mandamentos naquilo que têm de mais profundo. Agora vamos
para o conteúdo básico do primeiro mandamento, que corresponde àqueles aspectos da
moral sobre os quais tratamos em uma dessas aulas.

A função da moral em primeiro lugar é afastar-nos do pecado grave. Em todas as atividades,


em todas as organizações, em todas as sociedades, em todas as alianças, em todos os pactos
existem aspectos que não se pode violar em hipótese alguma. Por exemplo: Num avião que
já está voando a 10.000km de altura, pressurizado, não se pode abrir uma porta, pois com isso
o sujeito explode o avião. É o que chamaríamos de “pecado mortal” para o avião. Em hipótese
alguma [é permitida uma coisa dessas]. O sujeito não pode fazer isso nem pensando, [acabou]
inviabilizando o voo. Também demos o exemplo da pizzaria: O entregador pode até
resmungar com o cliente, mas não pode jogar a pizza na cara dele, pois isso acabaria com o
emprego.

Aqui estamos tratando de uma aliança de amizade entre Deus e o homem, que vai terminar
numa plenitude do compartilhamento da vida divina. Como em toda sociedade, todo pacto,
todo acordo, toda empresa, toda instituição, existem aquelas coisas que não se pode fazer de
jeito nenhum porque inviabilizam o pacto, a amizade, o acordo, a aliança, nós temos o
primeiro tema da moral que é explicar o que são os pecados graves, as coisas que não se pode
fazer nem pensando. Para assumir essa aliança é necessário deixar tudo isso para trás para
sempre.

317
Depois, dissemos que a segunda tarefa da moral era desenvolver as virtudes. Uma vez que o
sujeito aceitou o básico, a moral mostra quais são e como se desenvolvem as principais
virtudes e como elas se integram dentro do desenvolvimento espiritual.

Em seguida, falamos que existe um outro nível. Uma vez que as virtudes existem no ser
humano, há uma outra virtude cuja função é ser o “maestro” das anteriores. Normalmente,
quando vamos exercer alguma ação moral, não usamos só uma virtude, mas várias; ou mesmo
que usemos uma só, ela tem que ser dosada especificamente para aquela situação. Portanto,
é necessário um maestro. O maestro da “orquestra das virtudes”, mesmo que seja uma
orquestra pequena ou até que seja de um executor só, é a prudência.

Sendo assim, um outro aspecto da moral é desenvolver a prudência. E na medida em que a


prudência vai se desenvolvendo ela tem que, no fim das contas, aprender a desenvolver a vida
toda, o conjunto inteiro da vida: deve saber disponibilizar todo o conjunto da vida para que
ele alcance o fim último. Temos que nos decidir pelo fim último que, em termos de filosofia
clássica, é a contemplação; em termos do cristianismo é a união com Cristo, pela qual
alcançamos uma comunhão com a Santíssima Trindade. É o que São João dizia: Cristo queria
que os homens que Deus lhe dera fossem tão unidos a ele quanto ele mesmo estava unido
com o Pai. Isso ocorre principalmente através da vida espiritual, através do exercício das
virtudes teologais que, unindo-se entre si, acabam desembocando no que chamamos de
contemplação infusa.

No entanto, para alcançarmos esse fim temos que saber organizar, disponibilizar a nossa vida.
Fazemos isso através das virtudes, que devem ser coordenadas pela prudência. Existe então
um último assunto da moral: habilitar-nos, através da prudência, a sermos capazes de saber
alcançar a plena contemplação, não importa o ofício e a ocupação que tenhamos.

Agora estamos nos dispondo a confessar, porém se mais tarde nos desenvolvermos na vida de
virtudes (como esperamos), teremos que estudar moral de alguma maneira; ou através de
palestras, ou através da orientação de alguém, ou através do nosso estudo. Na prática, o que
podemos ver é que estes assuntos não parecem estar tratados num livro de moral, mas em
livros de assuntos diferentes, nos livros de moral isso não parece assim.

Os livros especializados de moral, para algumas pessoas, parecem estar tentando habilitar um
sacerdote erudito a ser capaz de ouvir bem uma confissão, como se ele fosse um juiz. E de
fato, é verdade: na confissão, o sacerdote é juiz, médico e pai, então ele tem que aprender o
ofício de juiz, médico e pai. Como juiz ele tem que saber avaliar à luz da moral as coisas que
o penitente está colocando. Obviamente a pessoa que é capaz de fazer isso, deveria ser capaz
também, ao agir, de saber julgar e ordenar as próprias ações. Então, apesar de parecer que
esses livros estão formando um juiz, que é o sacerdote, na verdade eles estão tentando

318
desenvolver a prudência. Porém, alguns pensam que tais livros são [apenas] para formar o
sacerdote a ouvir confissão.

Se analisarmos a fundo, ainda que às vezes alguns autores desses livros tivessem em mente
principalmente essa intenção, os mais profundos desses livros na realidade não estão fazendo
bem isso. Se analisarmos os mais profundos dentre tais livros, cuja maioria infelizmente está
em língua latina, o que eles realmente estão tentando fazer é desenvolver a virtude da
prudência que é um dos aspectos da moral.

Num certo sentido é o mais nobre de todos e o mais central porque, desses quatro assuntos,
é relativamente simples delimitar o que é pecado grave com o objetivo de afastar a pessoa
definitivamente dele e mudar de vida radicalmente em relação a esse aspecto para uma vida
nova. Não precisaríamos de uma moral tão complexa para isso. O desenvolvimento das
virtudes geralmente acaba sendo deixado para outros textos. E a ordenação da prudência à
contemplação acaba sendo deixada também para outros textos, textos de Teologia da
Espiritualidade.

Os livros de moral não parecem ter toda essa riqueza que estamos falando. Os bons livros de
moral, os grandes clássicos ou os melhores dos grandes clássicos, na verdade são um
aprendizado para desenvolver a virtude da prudência; não em relação à contemplação, ao
conjunto da vida, mas em relação a situações específicas. Mas é justamente o pré-requisito
para a outra. Se a prudência não consegue desenvolver-se para situações específicas, ela não
vai conseguir abranger a vida inteira, então uma é pré-requisito da outra. E esse outro aspecto
frequentemente é deixado para os livros de espiritualidade, mas está implícito.

Supõe-se que um teólogo moral devesse ser, antes de mais nada, um profundo teólogo — que
é uma coisa amplamente abrangente. Se os livros de moral [concentram-se] no
desenvolvimento da prudência, o teólogo ou estudioso que estivesse estudando deveria ser
capaz de completar, porque é um absurdo ser um grande conhecedor de moral e não
conhecer o restante da teologia como um todo.

Dizemos isso porque provavelmente as pessoas vão topar com os livros de moral e não
reconhecerão logo essa descrição que estamos dando. Ao contrário, dará a impressão de que
esses livros querem desenvolver a “perícia jurídica” do confessor ao ouvir as confissões.
Estamos dizendo que os livros bons e os mais fraquinhos podem até ter sido feitos assim,
porém os melhores e mais profundos concentraram-se nessa terceira tarefa: estão tentando
desenvolver a virtude da prudência. E o resto ou está embutido, ou está implícito, ou tem que
ser preenchido, ou tem pequenas referências, mas que podem ser encontradas em outros
lugares, mas a ideia toda é essa.

319
No caso dos três últimos mandamentos, pode parecer estranho que os tenhamos
desenvolvido com essa profundidade, que na verdade é a essência do mandamento. Ocorre
que, em relação a eles, nós passamos para o extremo oposto. A explicação dos três primeiros
mandamentos e a abordagem que fizemos do primeiro na última aula, já era justamente para
explicar como ordenamos as virtudes teologais (fé, esperança e caridade) à própria
contemplação. O que fizemos foi passar para o extremo, para o ponto onde já estamos
ordenando a vida à contemplação — que aliás é uma obrigação moral, pois o ser humano não
é verdadeiramente humano se não entende a vocação à qual é chamado por Deus.

Contudo, existe o aspecto básico que é o assunto de que trataremos agora. Justamente
estamos fazendo essa introdução para não aparentar que é um choque: falamos de coisas
belíssimas do primeiro mandamento, agora vamos falar de algo que parece muito elementar.
O fato é que existem na moral esses quatro aspectos.

Tem o aspecto do pecado grave, que não é uma convenção ou uma burocracia, porque é da
natureza de qualquer aliança, de qualquer pacto, de qualquer sociedade, haver certas regras
que se o sujeito não seguir ele quebra a própria estrutura da sociedade ou da aliança. Como
essa que falamos de abrir a porta num avião pressurizado; isso é da natureza das coisas. Esta é
a primeira função da moral. A segunda é desenvolver as virtudes. A terceira é coordenar as
virtudes pela prudência. E a quarta é coordenar a vida toda para a meta suprema, para a qual
precisamos que as próprias virtudes sejam coordenadas totalmente para um fim máximo.

Estávamos tratando justamente desse pólo oposto e teremos que voltar ao primeiro. Estamos
dizendo tudo isso justamente para não provocar um choque, como se estivéssemos dizendo:
“Não, mas são duas abordagens completamente diferentes. Esse é um ponto de vista e aquele
é outro, e são pontos de vista contraditórios”. Estamos dizendo que não são contraditórios,
pois toda moral tem esses quatro pontos de vista que pertencem à natureza do agir humano.

Temos que ver agora, dentro do primeiro mandamento, o que é pecado mortal, o que é
impensável. Porque no outro extremo você não tem regra, no outro extremo a regra é ir até o
limite, mas no extremo oposto existem certas coisas que precisamos aprender a romper.

2. Das três virtudes teologais

O que seria então no primeiro mandamento o que chamaríamos de pecado grave? O que seria
um pecado grave que temos de romper em definitivo?

Nós temos três coisas no primeiro mandamento. O primeiro mandamento preceitua que
amemos a Deus acima de todas as coisas. Mas na verdade, para amá-lo nós precisamos esperá-
lo, e para esperá-lo nós precisamos crer nele. Estas são as três virtudes teologais. Não é possível
amar a Deus se não cremos, mas só crer não é suficiente. Amar a Deus em sua plenitude não

320
significa apenas querer bem. Pelo que vimos na aula anterior, o ato próprio do amor é querer
unir-se, então quem apenas crê em Deus ainda não o ama. Para poder amá-lo, querer unir-se
a ele numa amizade que tenha esse nível de profundidade, é preciso também esperá-lo, saber
que é possível [essa união], que Deus realmente não apenas revelou-se para que saibamos que
ele existe, mas também porque nos ama e quer uma amizade conosco. Ele quer unir-se a nós.
Isso não é uma utopia! É possível e nós esperamos que se realize: isso é a virtude da esperança.

Na verdade, é a virtude da esperança que apressa a união entre a fé e a caridade. Quando


esperamos, sabemos que é possível e é um objetivo plausível, então nos animamos e corremos
em direção à meta. Se o rapaz vê uma moça a qual admira muito, mas sabe que é impossível
porque ela é a princesa da Inglaterra e o sujeito é um pobre plebeu coitado, ele sequer vai
tentar fazer coisa alguma. Mas se ela é a colega de escola e o rapaz gosta dela, inclusive sabe
que ela não está comprometida, ele tem a esperança de que ela pode ser a sua noiva. O rapaz
não vai perder tempo, vai correr atrás dela. Assim ele pode unir-se com a moça por amor.

Então a doutrina cristã, a teologia diz que não é possível amar a Deus se não houver a virtude
da esperança e a virtude da fé. Diz a Sagrada Escritura na epístola aos Hebreus 11, 1: Sem fé é
impossível agradar a Deus, porque para agradar a Deus antes de tudo é preciso saber que ele
existe e que ele recompensa os que o procuram.

Saber que ele existe é [papel] da fé. Que ele recompensa os que o procuram já é mais ou menos
a esperança. Do jeito como a epístola está falando, essa segunda frase é fé, é “saber que ele
recompensa os que o procuram”. Mas quando cremos que ele recompensa aqueles que o
procuram, não apenas que ele existe, já é o fundamento da esperança, pois sabemos que se o
procurarmos ele irá nos recompensar, então não é um Deus inacessível. Esse é o fundamento
da esperança. E essas duas coisas são necessárias para agradar a Deus.

Sendo assim, para amar a Deus, para unir-se a ele, é necessário crer que ele existe e esperar
nele, ter aquela firme esperança de que Deus realmente recompensa com sua graça aqueles
que o procuram. Assim, a fé e a esperança estão dentro do mandamento do amor, fazem parte
dele. Logo, as coisas que seriam pecados contra o primeiro mandamento, são os pecados
contra as virtudes teologais: fé, esperança e caridade.

3. Dos pecados contra a fé

O que seria um pecado contra a fé? Um pecado contra a fé seria negar os mistérios que Deus
revela. Para crermos em Deus não basta que queiramos, necessitamos da sua graça. Essa graça
Deus não nega a ninguém, a menos que a pessoa já tenha rejeitado tantas e tantas vezes e de
uma maneira tão ingrata, que Deus venha a retirar sua graça de uma pessoa por ter caído nessa
infelicidade. Deus, porém, dá a graça de crer a todas as pessoas. Se ele nunca tivesse concedido,

321
ninguém poderia ser condenado porque essas pessoas não iriam acreditar, sem ter culpa
nenhuma. Mas Deus quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade.

Então constitui um pecado contra a fé negar as coisas que Deus revela quando elas já estão
suficientemente reveladas a nós pela sua graça. Por exemplo: Uma pessoa acreditou em Deus,
então já teve a graça de crer, já creu sinceramente. Ela creu também que Deus instituiu a Igreja
e ao fazê-lo, deu-lhe o poder de ligar e desligar. Creu que Deus lhe deu o poder de, com
autoridade, definir certos pontos de doutrina que podem não ser claros no texto da revelação.

Existem muitas coisas na revelação que a maioria das pessoas não teria inteligência ou elevação
espiritual suficientes para poder enxergar claro. Por exemplo: Existe o matrimônio. É
sacramento ou não é sacramento? Existe Eucaristia, a pessoa do Cristo? Isto é, o corpo e
sangue do Cristo estão realmente presentes na Eucaristia ou é um símbolo? Outras coisas
inclusive mais correntes: Jesus diz que o matrimônio é indissolúvel, que o homem não separe
o que Deus uniu. Mas em outra parte da Sagrada Escritura Jesus diz que a lei foi feita para o
homem e não o homem para a lei. E ele dá a entender, portanto, que dependendo da situação
certas leis podem ter exceção. Mas ele não disse claramente, pelo menos à primeira vista se,
no caso da indissolubilidade do matrimônio vale uma exceção ou não vale. Em princípio o
casamento é indissolúvel, mas isso vale para qualquer caso? Ninguém fez essa pergunta para
ele. Apesar de que podemos entendê-la se compreendermos bem o contexto.

Então a Igreja tem toda autoridade, com base na tradição que vem dos apóstolos e na
assistência garantida que ela tem do Espírito Santo, para definir com autoridade essas coisas,
ou seja, dirimir essas questões. Esse é um serviço que a Igreja presta, porque esses pontos são
tantos que se a Igreja não dirimisse isso, as pessoas teriam que ficar estudando a vida inteira
para que, quando estivessem bem velhinhas, se conseguissem, pudessem chegar a alguma
conclusão e não daria tempo de começar a ter uma vida espiritual.

Se uma pessoa, por exemplo, já acreditou em Deus, já acreditou em Cristo e na Igreja,


enxergou isso claramente e aceitou, ela comete um pecado contra a fé se negar os pontos
básicos da fé que são definidos pela Igreja ou que são absolutamente claros na Sagrada
Escritura. Isso seria um pecado grave contra a fé.

Negar um dogma de fé, a partir do momento em que já se tem a luz suficiente para enxergá-
lo. Se o indivíduo já creu sinceramente, já era um bom cristão e de repente começa a negar
que exista o inferno, dizer que acredita nisso e não naquilo, primeiramente ele está de fato
negando implicitamente que Deus revelou tais coisas, pois se realmente ele havia reconhecido
que Deus as tinha revelado, Deus não pode se enganar. Então se ele está enxergando que
“Deus se enganou” porque não concorda com alguns pontos, é porque está negando que foi
Deus que o revelou. Isso é um pecado grave, porque na verdade impede todo o
desenvolvimento da vida espiritual. Nós temos acesso à comunhão com Deus justamente

322
através da fé, e essa seria a base material da fé. Fazendo isso, o sujeito está minando pela base
a possibilidade do seu desenvolvimento espiritual. E está negando inclusive que seja
realmente Deus quem se revelou.

O problema é quando o fulano ainda não creu. Em alguém que já creu realmente com
sinceridade, podemos ver claramente que ele já teve essa luz de Deus, portanto já tem a luz
para compreendê-lo. Se está negando, ele não pode dizer que não teve a luz, porque se nunca
tivesse tido não seria pecado. Se uma pessoa nunca tivesse tido a graça para crer, não é pecado
não crer.

Um pagão (um chinês, um árabe, um mongol, um esquimó) que nunca ouviu falar de Jesus
ou só ouviu falar que existiu Jesus e não crê: esse fulano não pode estar cometendo um pecado
mortal por não crer, pois ele não teve nem a revelação externa suficientemente para poder
crer. Quando alguém creu sinceramente em tudo e de repente começa a negar, já vemos por
suposição que ele teve a luz suficiente para crer, então está cometendo um pecado grave ao
negar qualquer conteúdo da fé, seja os que a Igreja tenha definido, seja o que ele já enxergou
claramente como sendo o que se depreende da revelação, ainda que a Igreja não tenha
definido.

Fica mais difícil de podermos decidir quando a pessoa ainda não chegou a crer
completamente, quando não é ainda um cristão integral, digamos assim, que tenha aderido à
integralidade da fé. Aí imaginamos que ele tenha tido alguma luz para crer, tanto na revelação
externa como na interna, e pode não ter tido uma luz para crer em outra parte. Externamente
não podemos julgar esse indivíduo.

Por exemplo: O fulano crê em Deus, mas não crê na Igreja. Ele leu o evangelho, leu a Sagrada
Escritura e crê sinceramente em Deus, mas não crê na Igreja, como acontece com os
evangélicos por exemplo, que creem na bíblia, mas não creem na Igreja. Isso é pecado ou não
é pecado? Externamente é muito difícil de decidir, porque não sabemos quais luzes Deus lhe
concedeu concretamente naquele momento. Nós não sabemos se ele já recebeu as luzes para
crer no mistério da Igreja e as está negando, ou se ele é um esquimó e caiu uma bíblia ali, ele
mal ouvir falar que existe uma Igreja e então não sabe exatamente o que é Igreja, porém crê
no evangelho porque leu a bíblia, mas está afastado da Igreja. No pólo norte onde ele está não
há igreja. Ele sabe historicamente que existe, como nós ouvimos falar que existem os budistas.
Se ele vive aqui no ocidente onde a Igreja está presente, nós não sabemos o quanto já lhe foi
suficientemente concedido de luz para compreendê-lo.

Assim sendo, é muito difícil saber externamente se ele está pecado contra a fé ou não. É um
problema que deverá ser resolvido entre ele e Deus. Se o sujeito já era batizado e resolve se
confessar, ele deve confessar isso conforme conseguir sinceramente enxergar. Supõe-se que,
se ele vai se confessar, é porque já acredita na Igreja senão não estaria se confessando. Então

323
ele poderia expor na confissão, em linhas gerais, o estado da própria alma. Se ele souber
enxergar se já estavam suficientemente claras essas coisas das quais Deus o iluminara pela
graça e era ele que as estava negando, que o diga; senão não dá para julgar externamente, é
uma coisa dele com Deus. É o sujeito que deve saber e se não o souber com clareza, quando
for se confessar pela primeira vez ele deve expor a sua situação da maneira que puder.

Mas de modo geral, o mais importante sobre certos aspectos é a conduta que devemos ter
após a primeira confissão, quando voltamos para a Igreja ou quando entramos nela: que é
matéria grave e pecado grave negar as coisas que Deus revela claramente na Sagrada Escritura
ou aquelas coisas que a Igreja define, com a autoridade que recebeu, como sendo matéria de
fé.

Isso é grave porque esse conhecimento todo não nos é revelado por Deus à toa, é porque em
cima dele nós temos que montar a nossa vida espiritual. Então não podemos ficar perdendo
tempo discutindo os fundamentos teóricos e epistemológicos da vida interior. É mais ou
menos como quando um fulano vai fazer uma corrida de Fórmula 1: ele tem que acreditar
que o carro está em ordem, que foi todo calibrado direitinho, que tem gasolina e dá para
terminar, porque precisa se concentrar na corrida. Se no meio da corrida ele estiver com
dúvida se o tanque está ou não cheio, se o parafuso está no lugar ou não, ele vai bater no
primeiro poste e vai morrer.

Então a vida espiritual é como uma corrida. Os pressupostos da corrida, como da Fórmula 1,
são muito complexos. Muitos engenheiros tiveram que fazer aquele carro. O corredor tem
que ter certeza que o engenheiro mecânico sabia o que estava fazendo, que o engenheiro
eletrônico sabia o que estava fazendo, que o engenheiro químico que destilou o petróleo e
fez a gasolina sabia o que estava fazendo. O piloto não pode se preocupar com isso senão não
tem condições de correr.

Na vida espiritual é a mesma coisa. Se ficarmos examinando todos os fundamentos da vida


espiritual ela não vai começar nunca. Então Deus já nos prestou esse serviço como que
dizendo: “Eu quero que vocês creiam em tudo isso, e se houver alguma dúvida relevante a
Igreja vai decidir e pôr um ponto final. Mas isso é para o bem de vocês, pois eu não quero que
vocês se preocupem com isso. Se vocês ficarem estudando todos os pressupostos
epistemológicos do que estou dizendo, vocês vão gastar a vida inteira e na hora da morte vão
dizer ‘Agora eu entendi como é que faz’, então não adiantou nada! E eu não quero isso para
ninguém. Isso se tiver alguém que seja capaz de abarcar todas essas coisas”.

Deus quer que nós creiamos que ele existe, que ele é Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito
Santo), porque quando vemos o evangelho de São João e as epístolas de São Paulo,
percebemos que a Santíssima Trindade é absolutamente essencial para explicar os pontos
mais profundos de espiritualidade. Se houver uma confusão nisso, acabou a vida espiritual.

324
Além disso, Deus quer que creiamos que ele se encarnou e se fez homem, que morreu pelos
nossos pecados, que ressuscitou, que existe um céu, que existe um castigo eterno para os que
não o procuram. Deus quer que creiamos que ele está na Eucaristia, porque a Eucaristia é
importantíssima para a vida espiritual.

Para que possamos crer na Eucaristia precisamos crer no sacerdócio, pois a Eucaristia só é
validamente consagrada se for por um sacerdote. Não tem como crer na Eucaristia se não
crermos no sacerdócio, e não dá para crer no sacerdócio se não cremos na Igreja e assim por
diante. É um todo interligado.

Devemos crer que os livros da Sagrada Escritura são estes declarados pela Igreja e não outros
que existem (há muitos apócrifos), porque precisamos saber o que iremos seguir.

Quem duvida dessas coisas está impedindo a vida espiritual. É como o corredor de Fórmula
1 que entra no carro e não sabe mais se pode confiar no carro: ou ele não vai ganhar a corrida,
ou vai morrer de um acidente. Se ele for investigar tudo, a corrida acabou. Na hora em que
ele achar que pode correr, quem já ganhou o prêmio foi outro. E vão perguntar-lhe: “Por que
você não correu?”. Ele vai responder: “Ah, é porque eu estava com dúvida, eu tinha que
investigar as coisas”.

Na verdade, quando não cremos ou nos recusamos a crer, isto é gravíssimo para a vida
espiritual. A maioria das pessoas não percebe porque não estão interessadas na vida espiritual.
Muitas pessoas são católicas só de nome, então se acreditam numa coisa e não em outra,
inclusive não veem muita consequência imediata. Deus, porém, não quer que sejamos
cristãos só de nome, mas que cheguemos à contemplação e nos santifiquemos.

Quem começa a duvidar da fé está bombardeando completamente suas chances, assim como
o fulano que peca contra a castidade está detonando o casamento que um dia será o veículo
para ele ir a Deus. A maioria das pessoas não quer ir para Deus. O sujeito, sendo cristão só de
nome, acha que tudo vai no piloto automático, então não consegue perceber essas
correlações. Mas na verdade os pecados contra a fé são gravíssimos, a menos que o fulano não
tenha tido a suficiente revelação externa e interna para poder crer.

Se o sujeito era católico praticante, reconheceu o mistério da Igreja, a tradição cristã, a Sagrada
Escritura, reconheceu tudo isso e começou a praticá-lo, supõe-se, se ele era sincero, que não
pode ter feito isso sem a suficiente revelação externa e interna. A partir daí supõe-se que, se o
fulano nega qualquer mistério da fé, ele está cometendo um pecado grave. Antes disso é difícil
supor, porque não há um dado externo visível para aferir o quanto de revelação externa e
interna o indivíduo teve.

325
O julgamento imparcial ocorre entre ele e Deus. Não podemos simplesmente dizer, sem mais
nem menos, se o indivíduo está cometendo um pecado grave ou não ao fazer aquilo. Ao
contrário, numa pessoa que já era cristã praticante, já está lá a evidência de que ela teve
suficientemente a revelação interna e externa.

Então, dentro desses três aspectos (fé, esperança e caridade), os pecados graves contra a fé
consistem em negar os mistérios da fé ou ensinar o erro, o que é pior. Negar os mistérios da
fé é um pecado grave se já houve a suficiente revelação interna e externa. Ensinar o erro é mais
grave ainda, pois o sujeito está ajudando a corromper os outros homens que precisariam deste
conhecimento para aproximarem-se de Deus. Nesse caso se está sabotando a possibilidade de
tais homens aproximarem-se de Deus. O sujeito pode até pensar que está abrindo a mente
deles, mas na verdade está fechando-lhes a mente à obra da graça.

4. Dos pecados contra a esperança

A esperança é aquela certeza, aquela expectativa de que podemos crescer na santidade e


alcançar a vida eterna, o paraíso, se entrarmos nessa aliança com Deus. Esperança de que Deus
já tem todas as graças preparadas para nos dar e que, se aderirmos a isso e fizermos a nossa
parte, com certeza teremos a possibilidade de chegar ao céu. Não é certeza absoluta! Isso nós
nunca temos, porque nunca sabemos se um indivíduo no último ano, na última semana, na
última hora, no último minuto da sua vida, não cometeria um pecado grave. Nem o maior
Santo poderia ter certeza absoluta, apesar de que quando a vida espiritual é muito evidente
nós temos uma presunção de que dificilmente o indivíduo voltaria atrás, mas nunca temos
certeza absoluta.

Contudo, é certeza absoluta que, se ele corresponder à graça, com certeza chegará lá. Não é
uma coisa impossível, não é uma utopia, está ao alcance de qualquer pessoa. Deus dá a todos
as graças suficientes para se salvarem: esse é o fundamento da esperança.

São pecados contra a esperança aqueles os que dizemos ser por excesso e por falta.

a) Pecados por excesso de esperança. Pecam contra a esperança por excesso (e é matéria
grave) aquelas pessoas que têm certeza absoluta que vão se salvar sem ter os méritos
necessários para isso; que podem descuidar de cumprir os mandamentos da lei divina; que
dizem poder cumprir nove dos dez mandamentos, pois Deus não vai se importar se não
cumprirem um (e as pessoas costumam pensar isso especialmente em relação ao sexto). Há
muitas pessoas que dizem: “Eu cumpro nove dos dez mandamentos. Não roubo, não mato,
amo a Deus, etc. O único que não cumpro é a castidade, mas Deus não vai me condenar,
porque eu cumpri nove e [só] deixei um”.

326
Primeiro que, na verdade, o raciocínio não está correto. Normalmente, o fulano que de uma
maneira pertinaz não cumpre um mandamento, pode-se ter certeza que ele está deixando de
cumprir muitos outros, ele virou um cego. A segunda coisa é que a natureza do pecado grave
é tal, que se fizermos só um, acabou!

É como o caso do avião: se o sujeito fez tudo direito, montou o avião, colocou o melhor
comandante, mas abriu a cabine no momento em que ela estava pressurizada, ele só fez um
erro, mas explodiu o avião. Então ele não pode dizer: “Eu fiz tudo certo, preparei-me vinte
anos para esse voo, foi só um errinho. Não é possível que vá explodir por causa de um erro”.
Mas a verdade é que vai! É da natureza das coisas haver certos pontos imperdoáveis, que não
podem ser transgredidos. Posteriormente, se o indivíduo se arrepender, ele pode até ser
perdoado, mas aí é outra história: estaria voltando a reconstruir o relacionamento, mas por
aquela atitude ele acabou, foi destruído.

O excesso de esperança é justamente achar, por exemplo, que podemos nos salvar sem mérito
ou sem os méritos suficientes, ou que podemos nos salvar mesmo cometendo de vez em
quando este ou aquele pecado grave do qual não queremos nos arrepender. O próprio fato
de pensar assim já é um pecado grave, que chamamos de pecado de presunção.

b) Pecados por falta de esperança. O oposto desse pecado é o desespero. Não é o excesso
de esperança, mas a falta total dela. É o indivíduo que jogou a toalha fora porque diz: “Eu
não consigo, estou perdido. Sou um pecador, não me emendo”. Ou então ele diz: “Eu cometi
um pecado tão absurdo, que Deus jamais vai me perdoar e nem eu me perdoo. Eu já estou no
inferno, os meus dias estão contados. Os últimos dias de felicidade que eu tenho são esses
últimos anos de vida. Então eu vou passear, vou fazer as coisas. Nem vou mais à Igreja, porque
já estou perdido”.

Isso é o pior dos pecados, é mais grave do que o excesso de confiança (a presunção), por ser o
que mais vai contra a misericórdia de Deus. Pode-se julgá-lo pela vida humana comum. Se
um filho, por exemplo, diz: “Eu vou pintar e bordar, meu pai não vai se importar”. Aí o filho
pinta e e borda, e o pai se desespera. Isso é muito menos doloroso do que o filho que diz:
“Olha, eu sou tão ruim, tão ruim; eu não presto e meu pai me odeia de tal maneira que o
melhor presente que posso fazer é me dar um tiro e aí eu sumo da vida dele”. Se o filho der
um tiro em si mesmo e sumir da vida do pai ou simplesmente se ele pensar assim, isso irá doer
muito mais no pai. Na prática pode levar o pai à loucura!

Eu7 já tive a experiência quando era mais jovem de ter visto uma pessoa bem mais jovem do
que eu que se suicidou, deixando isso: “Que ela estava se matando para poder aliviar a vida
dos pais. Que eles não precisariam se preocupar mais com ela, porque ela já tinha dado muito

7
Aqui é aquele caso de exemplos bem pessoais. Deixei na primeira pessoa mesmo.

327
desgosto”. Obviamente o que aconteceu foi que a mãe enlouqueceu. Depois eu nunca mais
soube o que aconteceu, mas inclusive era uma família bem constituída, de classe média, que
pagava escola particular para os filhos, mas a mãe enlouqueceu. Quer dizer, em vez de a filha
“fazer um presente” para a mãe sumindo da vida dela, a mãe enlouqueceu. Não sei se
definitivamente!

Deus, por ser infinito e todo poderoso, não enlouquece. Mas imaginemos o que é o pecado
de desesperança! E existe gente que é assim. Há pessoas que creem em Deus e de repente o
sujeito larga a toalha e diz: “Não, eu não vou me salvar, já estou perdido”. De todos esses
pecados, este é o pior de todos, é o que dói mais para Deus, é o que mais vai contra a
misericórdia de Deus.

Com certeza Deus deve estar mandando a essa pessoa luzes e mais luzes para tentar fazê-la
enxergar. Deus nos ama! Isso não é uma coisa bonita. É um pecado grave e muito grave.
Jamais devemos desesperar da própria salvação, isso tem que ser evidente. Deus nos ama
muito mais do que imaginamos! E quando formos julgados, seremos julgados com justiça,
mas por alguém que é infinitamente sábio. [O julgamento] não será de acordo com a nossa
perspectiva.

5. Dos pecados contra a caridade

Depois da esperança vem a própria caridade: amar a Deus de todo coração e de toda alma.
Todos os pecados vão contra o primeiro mandamento, ao menos indiretamente. No fundo,
quando o sujeito é cristão e comete adultério, está pecando contra o primeiro mandamento,
pois está amando mais um pecado do que o próprio Deus que pediu para não fazer aquilo.
Mas seria pecado diretamente contra o primeiro mandamento, em primeiríssimo lugar ter
ódio por Deus, ter ódio das coisas divinas.

Em segundo lugar, considera-se também pecado grave as práticas de superstição. Superstição


significa praticar certos procedimentos que não têm relação nenhuma de causa e efeito para
aquilo que se quer alcançar, e ainda por cima insistir em tentar fazer aquilo. Um exemplo
claro de superstição são as práticas adivinhatórias do futuro.

Utilizar, por exemplo, o horóscopo quando não se quer descrever a personalidade do


indivíduo de acordo com a época do nascimento (se isso tem fundamento ou não é uma
questão aberta aos estudiosos). Mas utilizar horóscopo quando, através da posição dos astros,
tenta-se adivinhar o futuro, principalmente o futuro de um acontecimento humano que está
submetido ao livre-arbítrio e, portanto, não pode ter relação nenhuma a certeza de um
acontecimento futuro que depende do livre-arbítrio do próprio indivíduo e de várias outras
pessoas. Além disso, tais acontecimentos não estão sujeitos somente ao livre-arbítrio, mas

328
também à intervenção da graça na alma dessas pessoas ou de uma pessoa que intervirá no
meio desse processo.

Não existe maneira de determinar um evento futuro com certeza. Então é superstição
quando o sujeito tenta adivinhar esse futuro lendo nas tripas dos pássaros, na bola de cristal,
nas cartas, no tarô, no horóscopo, não importa como (...) a não ser que seja um efeito futuro
que tenha evidente natureza de causa e efeito. Por exemplo, o sujeito está voando num avião
e vê, pelo tanque, que só dá para voar duas horas. Aí diz: “Se você tentar voar três horas o
avião vai cair”. Nesse caso há uma relação de causa e efeito evidente. Essa previsão pode ser
feita.

Se o sujeito tem um mapa metereológico do satélite e diz que daqui a três dias deve chover,
essa é uma relação de causa e efeito. Se o médico tem um doente e conhece o curso clínico da
doença, ele pode prever que o paciente tem tantos dias de vida ou que a doença vai durar
tantas semanas, mas vai melhorar se ele tomar tal e tal remédio. Isso é uma previsão de futuro
com fundamento, não é superstição.

Mas tentar prever o futuro através de coisas que não podem ter relação de causa e efeito e
ainda insistir, é o que se chama de superstição. Pode não ser o futuro, pode ser outra coisa.
Por exemplo, o sujeito fazer um feitiço achando que com esse rito destruiu a vida de uma
pessoa. Se a vida da pessoa vai ser destruída ou não, depende de outras causas, não de um rito
que se vá fazer. Isso não tem sentido.

Agora, aparentemente isso não parece ser um pecado contra o primeiro mandamento. O
primeiro mandamento é amar a Deus sobre todas as coisas e isso parece mais ser uma burrice,
um ato de ignorância. Qual é a relação disso com o primeiro mandamento? A explicação mais
clara sobre esse assunto pode ser encontrada na Suma Teológica e em outros livros.

A razão de as práticas supersticiosas serem pecados graves contra o primeiro mandamento é


porque, se o sujeito começar a fazer essas coisas seriamente, por incrível que pareça a história
mostra que às vezes elas acontecem. Ele começa a fazer esses procedimentos para acabar com
a vida de um fulano e acontece mesmo. Começa a fazer prática adivinhatória para adivinhar
o futuro e acaba adivinhando mesmo. Isso é o que dizem muitos testemunhos. Não é muito
claro para a maioria das pessoas, e ainda bem que não é porque é uma coisa que pertence ao
submundo. Mas o fato é que existem evidências de que, por incrível que pareça, às vezes
acontece. E não poderia acontecer! O sujeito faz um bonequinho de uma pessoa, diz que esse
bonequinho é tal pessoa e queima no fogareiro. Aí diz: “Daqui a seis meses o fulano vai
morrer desse jeito num acidente com o carro explodindo”. E dali a seis meses o cara morre
mesmo!

329
O que os textos de teologia presumem? É que, na verdade, existem maus espíritos: são os
demônios. E quando a pessoa faz esses ritos, essas coisas, na verdade é como se estivesse
fazendo uma oração aos demônios. Quer queira ou não queira, quer saiba ou não saiba, seja
essa a intenção ou não, a pessoa está pedindo a intervenção dos espíritos malignos, que
existem! Eles tentaram o Cristo e nos tentam [também]. E o principal trabalho deles é
introduzir mentiras na sociedade humana.

O demônio é o pai da mentira. Ele não só alicia uma pessoa boa a trair a esposa com a mulher
do vizinho (para o que às vezes não precisa nem do demônio, porque a própria mulher do
vizinho já é suficiente para tentar o sujeito), mas o principal trabalho dele é introduzir
mentiras na sociedade humana.

Esses espíritos malignos existem e estas práticas supersticiosas são chamarizes deles. Então
onde houver uma prática supersticiosa que esteja sendo feita realmente para conseguir o
efeito, isso na verdade é implicitamente um culto ao espírito do mal. Disso entendemos
porque tais práticas são contra o primeiro mandamento: pois se está cultuando os demônios.
Não importa nada que se tenha clareza evidente disso ou não, que a intenção tenha sido essa
ou não, tais práticas já são condenadas na Sagrada Escritura desde o Velho Testamento.

A Sagrada Escritura condenava os adivinhos, condenava aqueles que chamavam os espíritos


para se comunicar com eles. As sessões espíritas e mesmo as sessões supostamente mediúnicas
onde se tenta entrar em comunicação com os mortos, são todas elas gravemente pecaminosas.
Às vezes não acontece nada, às vezes pode ser uma farsa, mas muitas vezes aquilo que
supostamente aconteceu é uma mentira engendrada pelo espírito do mal.

A pessoa não sabe quem está chamando quando faz uma prática dessas. E mesmo que
nenhum desses maus espíritos queira aparecer (porque a humanidade já está tão perdida que
eles não precisam se preocupar com isso mais) a essência da coisa é essa.

No Velho Testamento inclusive, Deus condena gravemente aqueles que chamam os mortos.
Algo notável no final do primeiro livro de Samuel é o caso do rei Saul. Ele pediu para uma
advinha invocar o espírito do profeta Samuel e Deus repreendeu gravissimamente o rei Saul:
ele acabou morrendo em batalha por causa disso. E o que lá consta é uma lição tremenda:
Deus abomina esse tipo de prática!

Então as práticas de superstição e de espiritismo são condenadas gravemente e não


constituem em si uma burrice. Se fosse simplesmente uma burrice, não seria pecado contra o
primeiro mandamento e provavelmente não seria nem pecado grave. A natureza do pecado
grave é aquela que colocamos nas primeiras aulas: o que vai contra Deus, contra a
benevolência ao próximo, contra a castidade e contra algumas determinações da Igreja que
ela exige sob pena de pecado grave, porque Deus lhe concedeu a faculdade de fazê-lo.

330
Se fosse apenas uma burrice, não vemos nem como enquadrar isso dentro daquelas coisas.
Mas o fato é que, implicitamente, tais práticas envolvem uma comunicação com os maus
espíritos e por isso vão contra o primeiro mandamento.

6. Observações sobre os pecados contra a castidade, o amor ao próximo e a fé

Na prática, um bom cristão dificilmente vai odiar a Deus, vai cair nessas aberrações, nem deve
pecar por [excesso de esperança], nem por desespero.

Tudo é importante, mas há três pontos que devemos chamar muito a atenção principalmente
para quem está começando uma vida espiritual, que são: a castidade, o respeito ao próximo e
os pecados contra a fé. Porque a castidade ajuda-nos a dominar o concupiscível. O respeito
ao próximo, intransigente, profundo, arraigado, ajuda-nos a dominar o irascível. Uma pessoa
verdadeiramente paciente e determinada a respeitar o próximo em qualquer situação, e que
ao mesmo tempo seja casta, rapidamente adquire um domínio e uma ordem de todas as suas
paixões.

Todas as paixões humanas estão, de alguma maneira, atreladas a essas duas. Então o indivíduo
que pratica a castidade e o respeito ao próximo profundissimamente, pode inclusive sentir
bastante dificuldade no início, mas a recompensa é muito grande e em muito pouco tempo,
porque as paixões se ordenam e isso liberta a mente para poder se desenvolver sem estar presa
ao passional. O imaginário não fica mais preso ao passional e isso dá uma amplidão de mente
que é impressionante.

E a fé contém todos os pressupostos para mergulharmos numa vida espiritual a olhos vistos,
porque é como se entrássemos numa estrada com um carro que sabemos exatamente como
conduzir. Conhecemos o manual e não temos dúvida de que ele está perfeitamente equipado,
com a manutenção correta, a gasolina perfeita, de modo que só precisamos nos preocupar
em correr na estrada e não com sobressaltos a todo momento.

Estas três coisas produzem uma liberdade interior absolutamente extraordinária. É a


liberdade para podermos crescer na vida interior, a liberdade para corrermos para Deus. E
elas produzem realmente isso: uma liberdade de mente absolutamente extraordinária. Crer
com a ajuda da graça divina, sem pestanejar, na integralidade dos mistérios da fé, praticar a
castidade e o respeito ao próximo, isso produz uma liberdade interior absolutamente fora do
comum para a mente poder encontrar horizontes novos e se desenvolver para Deus. Então
nesses pontos nós devemos ser absolutamente intransigentes, para o nosso bem.

Em tudo o que é pecado mortal nós temos que ser intransigentes, mas nestas coisas temos
que desenvolver muito mais a virtude: crer, ser casto e respeitar o próximo com uma paciência

331
a toda prova. É mais do que uma paciência, é uma benevolência. Não é a mera paciência, mas
a paciência resultado da benevolência do amor ao próximo, mesmo se for um inimigo.

Acabamos de explicar como é importante ter um cuidado especialíssimo com três dos
preceitos que vimos até agora da lei de Deus: a castidade, o respeito ao próximo e a fé, de tal
maneira que devemos cumprir isso em toda sua radicalidade, porque essas coisas dispõem a
nossa mente para nos libertar das paixões e permitir enxergar mais longe. Ao mesmo tempo
impedem que nossa mente se envolva com dúvidas e incertezas que não permitem que
comecemos a correr. Estas três coisas produzem uma libertação e amplidão de vistas
extraordinárias no ser humano, inclusive muito rapidamente.

7. Se há um tempo mínimo de oração sub grave

Existe, porém, uma outra coisa que é igualmente fundamental, tão fundamental quanto isso,
mas num outro plano. É a questão da oração, a questão do terceiro mandamento, que pede
que dediquemos a sétima parte do nosso tempo útil a Deus, à vida de oração e espiritualidade.
Isso é fundamental em outro sentido, porque esses mandamentos (a fé, a castidade e o
respeito ao próximo) se referem àqueles entraves que costumam colocar os principais
obstáculos da vida espiritual. Mas o terceiro mandamento é a própria vida espiritual. Então
nós removemos os entraves justamente para podermos correr, mas é preciso que a pessoa
queira correr. E a vida de oração e a espiritualidade são absolutamente fundamentais, é a
melhor parte do evangelho.

O que isso significa (o terceiro mandamento) é o que está contado em última análise no
episódio de Marta e Maria, que nós vemos no evangelho de São Lucas. Jesus foi visitar duas
irmãs e uma delas ficava na cozinha trabalhando como uma louca, arrumando as coisas,
fazendo café, comida, pãezinhos, etc. Maria, a outra irmã, estava aos pés do Senhor ouvindo
a sua palavra. E quando Marta pediu que Jesus repreendesse a irmã Maria porque ela não
estava ajudando na cozinha, quem acabou sendo repreendida foi Marta, quando Jesus disse
que ela se preocupava com muitas coisas, mas poucas coisas eram necessárias, na verdade
somente uma era necessária e que Maria tinha escolhido a melhor parte, que nunca lhe seria
tirada.

Colocando em outras palavras, esse preceito pelo qual Deus pede que lhe dediquemos a
sétima parte do nosso tempo útil significa que ele não quer que cuidemos só da cozinha, mas
que fiquemos aos pés [de Jesus], conversando e adquirindo intimidade com ele, para que
possamos vir a amá-lo como quem o conhece entranhadamente. E através disso ele nos
mostrará o Pai, que significa a Santíssima Trindade.

Evidentemente o que Jesus está querendo dizer é que ele quer, ele exige, ele nos ordena que
não sejamos só Marta: que usemos seis partes do nosso tempo para o trabalho de Marta,

332
mesmo que esse trabalho de Marta seja um trabalho apostólico, mesmo que seja na liturgia,
mesmo que seja no breviário, no apostolado, na catequese, no ensino da teologia, no
atendimento aos pobres. Nós temos seis tempos disponíveis para trabalhar, mas na sétima
parte do nosso tempo Jesus quer estejamos aos seus pés em comunhão com ele.

Essa comunhão com ele se realiza basicamente através da oração, quando praticamos na
oração as três virtudes teologais, fé, esperança e caridade, que pouco a pouco vão se fundindo,
vão se unindo e se transformando no que chamamos de contemplação infusa. Isso não tem
nenhum substituto! A única coisa que é equivalente a isso são aqueles dez minutos que
passamos junto com o Cristo quando recebemos a Eucaristia: aqueles dez minutos
aproximadamente, em que as espécies eucarísticas ainda se conservam e, portanto, o Cristo
permanece sacramentalmente em nós ensinando-nos a sermos íntimos dele e a amá-lo. Fora
dessa experiência da Eucaristia eu não conheço outro substituto para a oração, outra coisa
que possa ser equivalente, por mais que sejam práticas louváveis e preparatórias para isso.

Então a vida de Maria é obrigatória, pelo que nós entendemos. O grande problema, porém,
estava na medida. De fato, a vida de Maria é obrigatória, mas se ela devesse ocupar todo o
nosso tempo nós não teríamos outra alternativa a não ser desvencilharmo-nos de tudo e nos
dedicarmos apenas à oração. Só que, nesse caso, a natureza humana estaria mal construída
por parte de Deus, porque o ser humano precisa trabalhar, comer, cuidar da cozinha e não
poderia dedicar (a não ser em casos excepcionais) toda a integralidade do seu tempo à oração.

A humanidade como um todo não poderia fazê-lo. Isso é cabível numa natureza angélica,
não numa natureza humana. Já que essa integralidade não é compatível com a natureza
humana, pelo menos não ordinariamente, vem o problema: Então como eu vou saber quanto
é o certo? Deus foi extremamente bondoso conosco em apontar-nos que a nossa natureza foi
construída de tal forma que a medida da sétima parte é suficiente para podermos conseguir
os objetivos de união com ele que ele espera que alcancemos.

Do modo como foi colocado no mandamento de Moisés, Deus não só exige a sétima parte,
pois está especificando concretamente uma sétima parte. Ele está especificando que essa
sétima parte constitua um dia inteiro da semana e diz inclusive qual seja o sétimo dia: o dia
do sábado. Após a vinda do Cristo nós entendemos que esta especificação constitui uma
cerimonialidade do mandamento, que foi abolida com o advento, morte e ressurreição do
Cristo.

A obrigatoriedade de culto do dia do domingo, que passou a ser observado no lugar do


sábado, não é uma lei divina, é uma lei eclesiástica. Do ponto de vista de como ela se realizou
nos primórdios do cristianismo ela é divina sim, ou seja, foi uma inspiração do Espírito Santo,
pois nós vemos que logo após a ressurreição do Cristo todos os cristãos começaram a cultuar
o dia de domingo celebrando a ressurreição do Cristo. Mas enquanto lei jurídica exigida sob

333
pena de pecado grave, de que haveria uma obrigação severa, dispensável apenas diante de uma
causa justa, ela é lei eclesiástica: foi a Igreja que, usando das suas prerrogativas, decidiu que
assim fosse.

Porém, em relação ao tempo que está determinado (essa sétima parte do dia útil), isso
entendemos que faz parte da natureza da vida espiritual e, portanto, não poderia ter sido
revogada por Deus. Esse tempo é justamente aquele que a experiência dos Santos que
percorreram toda a vida interior diz ser necessário para que a nossa vida espiritual consiga
passar pela porta estreita que existe logo após a primeira morada, pois sem passar por ela nós
não conseguimos entrar no “reino de Deus”, nas moradas interiores.

Os Santos são mais ou menos concordes, pela prática e pelo testemunho, que, a menos que
dediquemos cerca de duas horas à oração diariamente (o que corresponde mais ou menos a
1/7 do tempo útil que nós seres humanos dispomos) dificilmente entramos no reino de Deus.
Parece então que o grande segredo por trás do terceiro mandamento (do mandamento do
sábado, de dedicar um tempo ao Senhor) é essa questão da sétima parte. E isso é mais do que
um simples conselho que nós podemos aceitar ou não.

Pode se dizer que isso é uma obrigação? O testemunho que nós vemos de toda a tradição
cristã é que não se chega à plenitude da vida espiritual sem esse mínimo de dedicação à
intimidade divina. Por outro lado, nós sabemos (e o Concílio Vaticano II colocou isso
explicitamente) que Deus chama todos à plenitude da santidade! Inclusive ele morreu na cruz
justamente para que nós possamos alcançar isso.

Na epístola de São Paulo a Timóteo, o Apóstolo diz que Deus quer que todos se salvem e
cheguem ao conhecimento da verdade. E nós temos o testemunho de que isso é impossível
sem essa sétima parte separada para Deus. Então se Deus exige, se ele deu o seu Filho para
isso, nós não podemos dizer: “Não, não estou interessado! Não tenho tempo!” Não se pode
dizer que isso é um conselho, não se pode dizer que é lícito aceitar ou recusar. Isso é mais do
que um conselho, é uma ordem.

O problema que nós estamos querendo determinar é se existe algum limite claro que permite
afirmar quando isso constituiria um pecado grave. O que se observa nos livros de moral é que
não existe uma definição clara sobre isso, e há as razões para tanto.

É óbvio que uma pessoa que despreze a oração e diga: Eu não quero ser perturbado porque não
tenho tempo para rezar. Eu não vou me dedicar à vida espiritual, isso não é comigo. Eu vou
cumprir os mandamentos, vou à missa aos domingos, mas não me peçam mais do que isso,
porque não tenho tempo e não terei. E mesmo que tivesse, isso não é comigo, não é a minha
vocação; dificilmente nós poderíamos desculpar isso de pecado grave! Ele está evidentemente
recusando-se àquilo que Deus veio lhe pedir. Porém, tirando esse caso de um desprezo claro,

334
evidente e nítido, não existe uma regra clara do que constituiria um pecado grave em relação
a isso.

É evidente que, por um lado, a própria tradição cristã testemunha que uma negligência para
com a vida de oração é uma temeridade gravíssima, porque quem descuida da vida de oração
infalivelmente irá acabar cometendo os pecados graves que nos colocam fora da vida divina.
Por outro lado, [a razão] de não podermos recusar esta vida de oração, esta vida de Maria, não
é apenas porque tal recusa é uma temeridade ou uma atitude arriscada de poder cair em
outros pecados. Não é apenas um conselho, mas de alguma maneira é um mandamento de
Deus!

Não é possível chegar à santidade se vivermos apenas do trabalho de Marta, mesmo que esse
trabalho seja feito por amor a Deus. Nós temos obrigatoriamente que ser Maria para
alcançarmos uma comunhão maior com Deus. E Deus está sendo muito bondoso em
transmitir-nos o modo como fazer isso.

Não se pode dar uma regra certa para o início da vida espiritual. No caso dos judeus e de
Moisés a regra certa era o dia do sábado porque foi um decreto divino, mas aparentemente
poderia ter sido diferente. Dar uma regra certa que seja baseada na natureza das coisas não é
fácil inclusive porque a prática da vida espiritual no início, para quem acaba de confessar-se
pela primeira vez e acaba de voltar para a Igreja, nem sempre é fácil na sua integralidade.

Ademais, não é por qualquer prática de oração que conseguimos passar a porta estreita, ainda
que lhe dediquemos a sétima parte do tempo útil, mas por aquela que inclui a integralidade
dos níveis dos três primeiros mandamentos como nós falamos. É uma experiência que seja
simultaneamente amor e intimidade com Deus. É uma experiência de união de fé e caridade.

Somente a união do Pai com o Filho é maior que a união com Deus que podemos alcançar
através da união da fé e da caridade. Mas ambas essas virtudes não conseguem unir-se desta
maneira se antes a experiência da fé não tenha se transformado na experiência do nome de
Deus e da intimidade divina, ou seja, num reconhecimento vivo de que através da fé se-nos-
está comunicando a intimidade de uma pessoa.

No começo da vida espiritual não se consegue fazer isso e é muito difícil alcançá-lo. No início
da vida espiritual somente é possível uma certa experiência (até sublime algumas vezes) desta
união da fé e da caridade dentro do sacramento da Eucaristia, mas este sacramento não dura
mais de cerca de dez minutos. É o tempo em que as espécies eucarísticas não se desmancham.
É o tempo em que Jesus em sua humanidade e divindade está junto conosco na Eucaristia.

Evidentemente [a solução] não é fazer algum tipo de fermento ou de pão que possa durar
mais tempo. Se isso foi feito assim pelo Cristo é porque era para ser assim. A Eucaristia é uma

335
experiência para ser vivida alguns minutos. Então, já que no início da vida espiritual é possível
experimentar algo da comunhão com Deus através da Eucaristia, seria bom que as pessoas
que iniciam a vida interior pudessem comungar com frequência. Além disso, que em outro
momento procurassem imitar na oração durante uns dez minutos a mesma experiência que
alcançaram na Eucaristia. Que procurassem viver alguns momentos durante o dia, de uma
experiência de oração que tomasse como modelo o que elas aprenderam com o Cristo
pessoalmente na Eucaristia, pois com isso elas podem alcançar uma referência concreta e
vivida do que seja oração, mesmo que por um tempo curto.

Além disso, enquanto não são capazes de uma oração deste modo, fora desses dez minutos
elas poderiam aprender a separar daquela sétima parte entregue ao Senhor um tempo para a
meditação da palavra de Deus, das Sagradas Escrituras, tendo um compromisso de busca da
verdade. Porém, não como quem lê uma história, não como quem está adquirindo erudição
para fazer uma palestra, mas como quem está buscando compreender uma verdade que
transcende as suas possibilidades do momento, uma verdade mais profunda do que consegue
alcançar.

Ao fazer isso, no fundo estamos implicitamente pedindo que o Espírito Santo, que pela graça
vive dentro de nós se estivermos em estado de graça, nos ilumine para podermos enxergar
mais claramente a verdade divina. Na verdade, estamos dando uma oportunidade para Deus
comunicar-se conosco e para que nós possamos gradativamente aprender a ter intimidade
com ele, que é o primeiro passo antes de o amarmos profundamente.

Além da própria palavra de Deus, da própria Sagrada Escritura, pode-se também meditar na
vida dos Santos (que seguiram os exemplos das Sagradas Escrituras) ou nos textos dos Santos
Padres, dos quais citamos principalmente Santo Agostinho, Hugo e Ricardo de São Vitor e
Santo Tomás de Aquino, que escreveram coisas maravilhosas para que nós pudéssemos
compreender melhor o sentido das Sagradas Escrituras. Eles são como o revérbero das
Sagradas Escrituras, mas de qualquer maneira o principal será sempre as Sagradas Escrituras
e mais ainda o Novo Testamento.

Temos que fazer isso dando a oportunidade e pedindo insistentemente ao Espírito Santo,
como quem bate a uma porta, que ele nos mostre o sentido íntimo da verdade que estamos
efetivamente procurando. Isso é extremamente importante! Não existe meditação se não
houver busca da verdade. A busca da verdade e a consciência de que existe uma verdade a ser
buscada, é o pressuposto da meditação. Sem isso, nenhuma leitura, nenhum estudo, pode se
tornar verdadeira meditação. A meditação busca a verdade. E se nós estamos buscando uma
verdade revelada, esta verdade só poderá ser compreendida com a ajuda da graça do Espírito
Santo.

336
Esta busca é inevitavelmente um pedido do Espírito Santo, e esse pedido irá fazer com que
gradativamente passemos a ter uma intimidade cada vez maior com ele e com o Cristo, a
quem o próprio Espírito nos revela. Quando amamos e descobrimos uma certa intimidade,
podemos dizer que isso é o Espírito Santo. Quando essa verdade se-nos-comunica ela mesma,
é o próprio Cristo Verbo de Deus que está tentando tomar parte conosco.

Enquanto não estamos, porém, nesse ponto de alcançar essa intimidade que fundamente um
amor de união, não parece haver algum fundamento de uma obrigação radical sob pena de
pecado grave, de que devemos usar exatamente a sétima parte do tempo. Enquanto essa
intimidade não ocorre, não parece haver um motivo para exigir-se a sétima parte.

A cerimonialidade do mandamento divino do Velho Testamento, pela qual durante algum


tempo Deus quis que lhe fosse consagrado exatamente um dos dias da semana e exatamente
aquele (o sábado), foi revogada com o advento de Cristo. Tirando isso, não parece haver um
fundamento na própria natureza das coisas que exija [obrigatoriamente] a dedicação da
sétima parte do tempo para atravessar a porta estreita.

A sétima parte do tempo parece [revestir] seu verdadeiro valor para conduzir através da porta
estreita, quando a pessoa alcança uma experiência de oração que possa ser descrita como uma
comunhão íntima com Deus através do Cristo. Porém, é evidente que para chegar a isso
deveríamos separar um tempo razoável para aquelas práticas espirituais cotidianas, a fim de
que sejamos alimentados pouco a pouco com o pão nosso supersubstancial de cada dia, que
nos conduza o quanto antes a esse ponto.

Parece muito razoável que nos esforcemos o mais empenhadamente possível, e a sétima parte
pode ser uma boa sugestão. Contudo, o que parece mais justo aqui não é tanto exigir a sétima
parte, senão um empenho profundo em encontrar a verdade com a ajuda da graça do Cristo,
encontrar uma intimidade com esta verdade através da Eucaristia, da oração, da meditação
das Sagradas Escrituras.

Então, embora a sétima parte nesse sentido não esteja na natureza das coisas, um empenho
deste gênero — enquanto não se consegue integrar os três primeiros mandamentos — não é
um mero conselho, mas uma ordem. Jesus quer que façamos isso, ele morreu para isso. Jesus
quer que sejamos íntimos dele, quer que sejamos um com ele, assim como o Pai é um com
ele. Uma negligência evidente em relação a isso, principalmente se for consciente e mais ainda
se for por desprezo, chegaria a ser pecado grave.

Queremos chamar a atenção de que isso não é importante somente para a nossa salvação
[pessoal]. Muitas pessoas se perdem e muitas pessoas não conhecem a Deus porque nós não
lhes pudemos testemunhar o amor de Deus. Lembremos o que Jesus disse: “O amor que vos
dei não é meu, é o amor com que o Pai me amou. E assim como eu vos amei, quero que vos

337
ameis uns aos outros. Nisto conhecerão que vós sois meus discípulos: se vos amardes uns aos
outros como eu vos amei”. É como se dissesse: “Conhecendo-me e abrindo-se à graça, vocês
reconhecem que esse amor não vem de mim, mas da Trindade. Assim, quando as pessoas
puderem reconhecer que o amor com que vocês se amam não vem de vocês, mas de mim,
nesse momento elas conhecerão que vocês são os meus discípulos, conhecerão que esse amor
vem de Deus, terão a experiência do amor de Deus — aquele amor que eu mesmo às vezes
não posso comunicar-lhes porque eles não querem ouvir, não querem abrir-se. Mas em vocês
elas podem vê-lo e podem perceber o amor que Deus também têm por elas”.

Obviamente que, para amar os outros dessa maneira, é preciso termos uma experiência do
próprio amor de Deus. Então nós temos obrigação de caridade para com essas pessoas.
Existem muitas pessoas que se perdem porque nós não fomos capazes de testemunhar o amor
que Deus tem por nós, e não fizemos isso porque não conhecemos o amor que Deus tem por
nós, e não o conhecemos porque resolvemos ser somente Marta, não quisemos ser também
Maria!

A única chance de muitas destas pessoas conhecerem a Deus seria através de nós se tivéssemos
separado a sétima parte do tempo útil para sermos Maria. Por questões da providência, não
haveria outra pessoa disponível para chegar ali naquele lugar senão nós mesmos. E nós
simplesmente dizemos que não temos tempo, nem para nós e nem para essas pessoas que
Deus nos daria!

Portanto, para muitas pessoas que Deus planejou salvar através de nós, podemos ter certeza
que somos insubstituíveis, pois não haveria outras que chegariam até ali. Então não só por
nossa causa, mas também pela salvação dos demais, isso é uma obrigação, uma obrigação
importante. É uma obrigação tão fundamental quanto a castidade, o respeito ao próximo e a
fé, embora de outra maneira. Deus não quer que sejamos apenas Marta. Em seis tempos
podemos trabalhar junto com Marta, mas em pelo menos um tempo temos que ir junto com
Maria.

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Aula 21 – PRIMEIRO MANDAMENTO III

Índice
1. Conteúdo da fé

1. Do conteúdo da fé

Estávamos terminando de falar sobre o primeiro mandamento, mas refletindo bem,


percebemos que estava faltando uma coisa na aula anterior sobre o primeiro mandamento,
particularmente sobre a fé. Temos que falar alguma coisa da fé, mais exatamente sobre o
conteúdo material da fé. Nós falamos muito sobre o que a fé é em si mesma, digamos assim,
formalmente (como se dá o ato de fé, a intimidade que ela produz com Deus, a graça
necessária), mas falamos pouco e passamos por cima de certas coisas que são fundamentais
acerca do conteúdo da fé: o que a fé realmente revela e a relação disso com as coisas que
estávamos falando anteriormente.

Nós falamos que negar um mistério de fé, quando já é suficientemente revelado, constitui
um pecado grave. E falávamos do dano que isso produz em nós, porque a vida espiritual é
longa e a vida [humana] é curta e não podemos perder tempo discutindo pressupostos a
respeito dos quais é necessária uma erudição tremenda que a maioria das pessoas não tem, e
que somente chegaremos a uma conclusão no fim da vida, se chegarmos. Falávamos que Deus
inclusive fez um ato de misericórdia conosco revelando-nos já pronto e mastigado aquilo em
que precisamos crer para que não perdêssemos tempo com isso.

De coração aberto ele já deu uma ciência superior e pede por favor: “Se você tiver tempo e
condições de discutir, analisar, aprofundar, faça isso para proveito de todos, mas se não tiver
tempo, esqueça, acredite! Sou eu que estou falando e vamos correr. E se você puder estudar
essas coisas a fundo, ótimo, estude, mas não duvide. Comece a correr e estude por fora, o
estudo seja em paralelo”.

Entretanto, faltou colocarmos algo importante para nossa orientação, ou seja, qual o
conteúdo da fé. Qual o conteúdo em que devemos crer para podermos seguir uma vida cristã?
Como estávamos falando, a Sagrada Escritura e a revelação são bastante claras no fato de que
a vida espiritual, a vida cristã começa justamente pela fé, é o primeiro ponto. O primeiro sinal
de que a graça está agindo sobre uma pessoa é que ela é capaz de crer, ela manifesta que crê e
crê como quem está enxergando o sentido, o conteúdo da revelação divina com a ajuda da
graça.

339
Não dá para medir isso por instrumento de laboratório, por teste físico-químico, por teste
farmacológico, por teste eletrônico. Mas no contexto do que conhecemos sobre o
desenvolvimento da vida espiritual, tem os sinais de que aquilo ali é algo que está ocorrendo
com a ajuda da graça divina

Portanto, a vida espiritual sempre começa pela fé. Há um texto da Sagrada Escritura que é
muito claro em relação a isso. Trata-se da epístola aos Hebreus, capítulo 11, verso 6, onde ele
primeiro diz o que é fé, dando-lhe duas definições: i) a fé é a substância do que se espera; ii) e
um argumento das coisas que não se veem; são duas definições que São Paulo coloca. Mas
depois, no verso 6 deste capítulo, ele diz: “Sem fé é impossível ser agradável a Deus, porque
aquele que se aproxima de Deus deve crer que ele existe e que recompensa aqueles que o
procuram”. Esse texto é de uma claridade meridiana e é usado abundantemente por todos os
teólogos que tratam do assunto de que iremos falar agora.

Então o que devemos crer para podermos seguir uma vida cristã? Qual é o conteúdo em que
nós temos como que uma obrigação de crer?

Aqui diz claramente: Sem fé é impossível agradar a Deus, porque quem se aproxima de Deus
em primeiro lugar deve saber que ele existe, e em segundo lugar, que ele recompensa aqueles
que o procuram. Ou seja, que não só ele é Deus e existe, mas que realmente se aproxima das
pessoas que o procuram pela sua graça. Essa “recompensa àqueles que o procuram” não é em
dinheiro, não é em saúde, não é em fama. Pode até ser, acidentalmente em algum caso, mas
essa recompensa é ele próprio.

Não é apenas “Eu creio que Deus existe, está lá em algum lugar, criou o universo inteiro e
está preocupadíssimo com o mecanismo de funcionamento do cosmos, mas quanto a mim,
um simples grão de areia minúsculo no meio do oceano, ele nem quer saber quem eu sou”.
Muito pelo contrário, Deus se aproxima de quem o procura. É isso que significa que ele
“recompensa aqueles que o buscam”.

Estes são, inclusive por uma declaração explícita das Sagradas Escrituras, dois pontos sem os
quais é impossível aproximar-se de Deus. São os pontos mais centrais que existem na fé: crer
que Deus existe e está interessado em nós, que ele se aproxima e recompensa aqueles que o
buscam; ou em outras palavras, que existe um prêmio eterno para quem busca a Deus. Sem
isso não existe vida cristã, então destas coisas não é lícito duvidar. A partir do momento que
Deus já nos concede a graça de tê-lo compreendido, não é justo, não é honesto, é um pecado
grave, um ultraje a Deus e além disso um prejuízo tremendo que causamos à nossa própria
alma, porque sem isso é impossível fazer alguma coisa espiritualmente, Não é lícito negar essas
coisas, pois seria um pecado grave e um dano gravíssimo que estaríamos fazendo a nós
mesmos.

340
Existe um outro texto que trata disso no Novo Testamento. Porém, se este texto não existisse,
nós poderíamos deduzir a mesma coisa de inúmeras outras maneiras. Inclusive estamos
citando este apenas porque é escrachadamente claro, mas em relação à profundidade do
conteúdo teria outros muito melhores.

Está nos Atos dos Apóstolos 16, 30-31. É uma situação em que São Paulo e um colega
estavam presos numa cadeia agrilhoados. Eles começaram a rezar e cantar e, de repente, as
cadeias se desamarraram, as portas das celas se abriram e os prisioneiros ficaram todos soltos.
Aí o carcereiro, quando percebeu isso, disse: Estou frito! Eu vou morrer nos leões amanhã. Os
meus superiores romanos não vão me deixar vivo. Então a melhor coisa é me matar. Ele já estava
tentando se matar, quando São Paulo chega e diz para ele e diz: Não, não faça isso. As cadeias
caíram, a porta se abriu, mas ninguém fugiu, nós estamos todos aqui. O carcereiro disse: O
que? Aí ele acreditou que aquilo era coisa de Deus e perguntou: Senhores, o que eu devo fazer
para ser salvo? E São Paulo respondeu: Crê no Senhor Jesus e serás salvo tu e os teus. É o mesmo
São Paulo que escreveu ser necessário crer que Deus existe e recompensa aqueles que o
buscam. Aqui ele não disse isso, mas: Crê em Jesus e serás salvo tu e toda tua família.

Justamente por causa disso e por outros argumentos até bem mais profundos, mas que seria
mais difícil de expor sucintamente, a teologia cristã diz que o essencial da fé não é apenas crer
que Deus existe e recompensa aqueles que o buscam, mas é necessário também crer em
Cristo.

Por que é necessário crer em Cristo? Devemos recordar que, antes da encarnação do Verbo e
da Ressurreição de Cristo, quem se comunicava pela graça, quem nos transmitia essa graça
que vem de Deus, era o próprio Verbo em sua divindade. Foi o Verbo que falou com os
profetas e os justos do Velho Testamento, eles ouviam a palavra de Deus que vinha pelo
Verbo. Depois este Verbo se encarnou. Ao encarnar-se, fazer-se homem e ressuscitar é ele,
ressuscitado em sua natureza humana, que nos transmite a mesma graça que antes vinha
através dele em sua divindade sem ser por sua humanidade.

Para que possamos crescer na vida interior em direção a Deus temos que aprender a amar esse
Verbo ou amar esse Cristo ressuscitado, e fazemos isso através da fé. Quando cremos
realmente nós estamos sendo iluminados pela graça: a graça ilumina nossa mente e convida
nossa vontade. Mas essa graça vem da humanidade de Cristo. Então não basta apenas crermos
que Deus existe e recompensa; é necessário crermos no próprio Cristo, no mistério de Cristo,
porque é através da intermediação dele que nos chega essa graça com que Deus quer
recompensar-nos.

Sendo assim, o terceiro ponto importante da fé, que é imprescindível e tem uma hierarquia
maior que todos os outros, é justamente o mistério de Cristo. Concretamente o que? Que ele

341
se encarnou, ou seja, fez-se homem. Que o Verbo, a segunda pessoa da Santíssima Trindade,
o Filho, encarnou-se e fez-se homem para nos salvar. E que depois, aos trinta e três anos de
sua vida ele se ofereceu em sacrifício pelos pecados dos homens.

Esta graça que chega até nós pela humanidade do Cristo, chega efetivamente quando nós
cremos nele; ele como que está em contato espiritual conosco e nos repassa essa graça. É pela
fé que se manifesta uma força de Deus em nós, que é a própria graça que vem pelo Cristo
ressuscitado. Mas isso vem pelos méritos que ele teve ao oferecer-se em sacrifício por nós na
cruz.

Esse é um assunto complexo e não é necessário sabermos todos os detalhes, mas é necessário
cremos nisso. Temos então mais dois mistérios fundamentais: a encarnação e a redenção. A
encarnação é que, das três pessoas divinas, uma se fez homem e viveu entre nós. A redenção
significa que ele morreu na cruz, ofereceu-se em sacrifício por nós no dia de uma sexta-feira
de páscoa. Que surpreendentemente ele morreu exatamente como Moisés prescrevia que
devia ser sacrificado o cordeiro pascal naquela sexta-feira em todos os lares. Pois os romanos,
quando crucificaram Jesus, mataram-no na mesma hora em que todos estavam oferecendo o
cordeiro pascal em suas casas, e exatamente seguindo as mesmas regras do cordeiro pascal,
com muito mais crueldade, pois o cordeirinho pascal não sofre tanto quanto sofreu Jesus.
Era Deus que, naquela páscoa, estava sacrificando seu próprio Filho. A redenção significa
isso.

Não só isso, mas também também devemos crer que pela sua morte ele ganhou os méritos
para nos redimir, que pela sua ressurreição ele continua vivo em carne e osso, ainda que de
forma gloriosa, e que quando diz que subiu aos céus e sentou-se à direita de Deus Pai, isso é
uma maneira figurada de explicar algo. Sentar-se à direita é um termo que os primeiros
ministros utilizavam. Antigamente os reis sentavam no trono e os ministros sentavam-se à
direita, para significar que depois do rei ele era o mais poderoso de todos e que inclusive estava
administrando o poder do rei. Então Jesus “sentar-se à direita do Pai”, significa que a sua
humanidade está administrando a graça de Deus e ele conseguiu isso pelos méritos do seu
sacrifício. Isso é a redenção!

Portanto, para podermos compreender a fundo inclusive a própria espiritualidade do Novo


Testamento, é necessário crer nestas duas coisas: o mistério da encarnação e da redenção.

Existem quatro mistérios de fé que são maiores que todos os outros ou têm prioridade diante
dos outros: a existência de Deus, que Deus recompensa os que o buscam, a encarnação, a
redenção. E existe um quinto, que é necessário para podermos entender plenamente a
encarnação: que é a Santíssima Trindade. Se não temos uma noção, ainda que mínima da
Santíssima Trindade, não é possível segundo a teologia, compreender exatamente a
encarnação, porque quem se encarnou foi uma das pessoas da divindade.

342
Em Deus existem três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Estas três pessoas são um só
Deus. Elas são realmente diferentes umas das outras, mas não porque são três deuses. Elas
têm praticamente tudo em comum, exceto as relações de filiação e de processão do Espírito
Santo. Além disso, elas têm em comum inclusive a própria existência. A existência do Pai não
é diferente da existência do Filho, e a existência do Filho não é diferente da do Espírito Santo.
São um só Deus, uma só essência, uma só existência e é exatamente por isso que não se pode
separá-los: onde está o Pai está o Filho, e onde está o Filho está o Espírito Santo, e onde está
o Espírito Santo estão os outros dois. Se fosse possível separá-los (aqui está um e o outro não
está lá) é porque eles teriam existências diferentes.

Apesar disso elas não são “a mesma”, mas diferem, de uma maneira que até certo ponto dá
para explicar teologicamente, porém não precisamos entrar nisso já que nem mesmo a
Sagrada Escritura revelou explicitamente isso. É uma dedução teológica, apesar de ser
praticamente certa.

Em suma, apenas uma das pessoas se fez homem, que é a segunda pessoa: o Filho. Quando
dizemos “fazer-se homem”, não queremos dizer que ele entrou dentro de um corpo humano.
O corpo humano de Cristo não encerra a pessoa [divina] do Filho. Inclusive em Deus não
houve mudança dentro da divindade depois da encarnação. O que aconteceu é que esta
segunda pessoa da Santíssima Trindade uniu-se a uma natureza humana.

Em Deus não aconteceu nada, Deus não encolheu nem entrou em um ser humano. Deus
criou uma natureza humana que não foi produto de uma relação sexual. Foi uma natureza
humana perfeitíssima, gerada inclusive pelo poder de Deus, pelo Espírito Santo na Virgem
Maria, sem intervenção de homem. E essa natureza humana uniu-se à pessoa do Verbo, à
segunda pessoa da Santíssima Trindade, ao Deus Filho.

Temos então [seis] mistérios-chave: i) a existência de Deus, ii) a Santíssima Trindade, iii) a
encarnação do verbo, iv) a redenção, v) a recompensa eterna para aqueles que o buscam, vi)
e a existência de um castigo eterno, de uma perda eterna irreparável para aqueles que não o
buscam. Sem isso não faria sentido haver uma recompensa para aqueles que o buscam.

Esses seis mistérios da fé são os mistérios básicos, digamos assim. São chamados pela teologia
de mistérios da fé em que é necessário crer por necessidade de meio. Necessidade de meio
significa que é necessário crer porque existe uma ordem, um mandamento, um preceito que
obriga a crer. É assim porque, sem crer nisso, fica impossível seguir a vida espiritual.

Com certeza absoluta a existência de Deus e a recompensa é necessidade de meio


absolutamente indiscutível. Logo em seguida, o mistério de Cristo está praticamente no
mesmo plano e a Santíssima Trindade vem em decorrência. E o último, digamos assim, pode

343
até ser algo discutível que seja assim tão necessário como necessidade de meio, mas o fato é
que sem o sexto (que existe uma perda eterna para os que não o buscam) fica ininteligível o
verdadeiro sentido do quinto. Considera-se, pois, que estes seis são os mistérios da fé nos
quais devemos crer por necessidade de meio. Supostamente nem Deus poderia dispensar-nos
de crer nisso, pois sem eles não é possível viver a vida espiritual.

Com certeza absoluta os dois primeiros são evidentes: não adianta buscar a Deus se não
cremos que ele existe nem que é possível buscá-lo, porque ele se aproxima de quem o busca.

A teologia diz que nós não só temos que conhecer esses seis mistérios da fé, mas também ter
explicitamente crido neles para podermos receber os sacramentos. É uma coisa plausível que
os sacramentos podem não ser válidos se uma pessoa aproxima-se deles, mesmo de boa
vontade, sem que tenha crido explicitamente nesses seis pontos. Esses seis pontos são de
necessidade de meio por causa disso. Não há desculpa para não crer neles, eles são necessários
para poder iniciar uma vida espiritual.

Então, em primeiríssimo lugar, para que sejamos cristãos e nos aproximemos de Deus temos
de crer nestes seis mistérios de fé. Todos os restantes não são absolutamente necessários,
porém são importantíssimos e quanto mais os conhecermos, mais podemos crescer na fé.
Estes outros, em primeiro lugar são aqueles nomeados no Credo, aquela oração que começa
assim: Creio em Deus Pai todo poderoso, criador do céu e da terra (...). Ela foi composta no
ano 313 por uma reunião dos bispos de toda a cristandade no primeiro Concílio Ecumênico
[celebrado] em Nicéia, para resumir os principais pontos da fé cristã que nenhum cristão
deveria deixar de compreender e crer explicitamente.

Digamos assim: o mínimo do mínimo que não tem dispensa em caso nenhum, sem os quais
a vida espiritual se torna quase sem lógica nem fundamento, são estes seis. Mas o ideal é que
acreditemos pelo menos em todo o conteúdo do Credo, que conheçamos o conteúdo do
Credo e entendamos o significado de todas aquelas sentenças lá contidas.

Ainda assim existem coisas importantíssimas que não estão no Credo. Por exemplo: o
mistério da Eucaristia, os sete sacramentos, não estão no Credo. O Credo também não fala
da oração, das virtudes da fé, esperança e caridade. Mesmo o que está no Credo não encerra
todo o conteúdo da fé.

Por extensão, o conteúdo da fé é tudo aquilo que Deus explicitamente revela sobre si mesmo
e sobre os meios que os homens dispõem para aproximar-se dele. Na medida em que vamos
aprendendo essas coisas, vamos meditando na revelação e aprendendo [estas verdades]. Se
forem clara e manifestamente reveladas por Deus, são mistérios da fé nos quais somos
obrigados a crer. Somos obrigados a assentir a tudo aquilo que Deus revelou explicitamente,
apesar de que haja essa hierarquia.

344
Ocorre que quando, começamos a ir aos detalhes nos demais mistérios, nem sempre
conseguimos distinguir aquilo que realmente é a verdadeira interpretação dos mistérios da fé
e aquilo que não estamos compreendendo bem. Demos alguns exemplos na aula passada, de
que há muitas passagens da bíblia que não são claras por si só. Por exemplo quando Jesus
celebra a Eucaristia, diz: Isto é o meu corpo e este é o cálice do meu sangue, fazei isso para celebrar
a minha memória. Nesse caso ele estava querendo dizer que a Eucaristia é um símbolo do seu
corpo e do seu sangue, ou que realmente o seu corpo e seu sangue estavam lá?

É difícil concluir isso só pelas Sagradas Escrituras, porque inclusive o autor sagrado naquele
momento não estava tentando se aprofundar exatamente nesse ponto. Tanto pode significar
uma coisa como outra. Inclusive porque tem um lugar da Sagrada Escritura onde Jesus diz:
Eu sou a porta: aquele que passar por mim está no caminho correto, quem pular fora, pela cerca,
é ladrão e salteador. Ele disse “Eu sou a porta”, mas isso não quer dizer que vemos uma porta
e reconhecemos Jesus. Logo, era uma linguagem figurada. E quem garante que não era uma
linguagem figurada quando ele disse: Isto é o meu corpo?

O único jeito de resolver essa dúvida é examinando a história, examinando o que os


documentos desde o início da Igreja dizem que aquilo significava. Se desde o início na Igreja
inteira, em todos os lugares se considerou que aquilo não era um símbolo, mas uma realidade,
e nunca ninguém reclamou dizendo que se tratava de um desvio, nunca ninguém chegou e
disse: Espera um pouquinho! Meu avô conheceu São Pedro e São Paulo. Não tem essa história
de “Isto é o meu corpo” como uma coisa real. Eu lembro que meu pai dizia ter ouvido São Pedro
falar diferente; se não havia essas pessoas reclamando e todos aceitavam a mesma coisa, é
porque essa é a interpretação certa, que os apóstolos ensinaram.

Conferido a história (que chamamos de Tradição) nós vemos que no caso da Eucaristia a
história aponta inequivocamente que todas as igrejas de todas as comunidades desde o início
entenderam que na Eucaristia existe uma presença real do Cristo e nunca ninguém reclamou,
a não ser tardiamente, muito tarde, quando todos já falavam a mesma coisa desde o início.
Então a Tradição mostra que o conteúdo da fé é este.

A mesma coisa com o batismo das crianças. A Sagrada Escritura não diz se devemos batizar
as crianças ou não, não tem um exemplo claro, mas existe na tradição. Desde o início do
cristianismo, todas as igrejas batizavam crianças e nunca ninguém reclamou. O único caso de
terem reclamado que aparece na história ocorreu no ano 250 no norte da África, onde um
padre inventou de batizar as crianças no oitavo dia, seguindo o costume de Moisés que
mandava circuncidar as crianças no oitavo dia. Isso gerou um constrangimento e chamaram
os bispos de todo o norte da África para ver se era certo o que o padre estava fazendo. Isso foi
num concílio em Cartago, dirigido por São Cipriano.

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A conclusão foi que condenaram o padre por unanimidade, não porque ele estivesse
inventando moda ao batizar crianças, mas porque estava inventando moda ao batizá-las no
oitavo dia. Por unanimidade, cerca de uma centena ou mais de bispos disseram que tal padre
deveria ser condenado porque isso era uma irresponsabilidade, que nunca se tinha ouvido
falar de um costume de batizar as crianças no oitavo dia e que elas deveriam ser batizadas
imediatamente após o nascimento, porque quem se responsabilizaria se essa criança morresse
antes do oitavo dia? Por essa resposta e outras podemos ver que a Igreja sempre entendeu que
os filhos dos cristãos deveriam ser batizados como recém-nascidos, então a história e a
tradição apontam que o conteúdo é esse. E assim por diante.

Outro exemplo dado anteriormente. Cristo diz que quando as pessoas se casam elas não
podem pedir divórcio e separarem-se, pois o matrimônio é válido até a morte. Quem se
descasa para casar com outra pessoa, comete adultério. Porém em outra passagem Jesus diz
que “o homem não foi feito para a lei, mas que a lei foi feita para o homem”, ou seja, em
certos casos se pode abrir uma exceção. Então nesse caso é para abrir ou não uma exceção?
Jesus disse que nunca pode haver divórcio, mas o fato de que a lei foi feita para o homem e
não o homem para a lei, autoriza num caso difícil e complicado dissolver um casamento e se
casar com uma pessoa?

Não dá para responder isso apenas lendo a Sagrada Escritura, apesar de que com um
pouquinho de reflexão, se a pessoa for profunda ela pode acabar chegando à conclusão, mas
não é tão evidente. O melhor jeito é ver como era na história: se desde o início a Igreja admitia
exceção ou se ela era intransigente e não havia exceção nenhuma. Pois, se em todo lugar nunca
houve exceção e nunca ninguém reclamou disso, é porque este era o ensinamento dos
apóstolos, recebido de Cristo.

Devemos ter crido ao menos uma vez na vida naqueles seis mistérios antes de recebermos
qualquer sacramento, e permanecer nessa fé para sempre. Quando, além dos seis mistérios
básicos nos quais é necessário crer como necessidade de meio, passamos ao conteúdo do
Credo, na medida em que vamos nos aprofundando na revelação, quando as coisas não ficam
claras o recurso é buscarmos o conteúdo da tradição. Se ela é unânime sem contestação desde
o início, é porque a interpretação certa é aquela, só pode ser aquela.

O problema é que nem todos têm erudição e capacidade de investigar a tradição da Igreja.
Seria necessário ter acesso a muitos livros e conhecer outras línguas, além de conhecer história
para poder encaixar as coisas nos seus devidos contextos. Isso não seria então amplamente
acessível a todos. Exatamente por causa disso existe, por graça de Deus, um outro critério para
nos ajudar a formar o conteúdo da fé. Esse que precisamos ter para não nos preocuparmos
com isso e podermos avançar na vida cristã; ou, se nos preocuparmos com isso, fazermo-lo
como um aprofundamento, não porque precisemos desempatar o conteúdo da fé por nós
mesmos.

346
Esse recurso é a própria autoridade que Deus deu à Igreja. E se Deus não tivesse dado essa
autoridade à Igreja de ligar e desligar, a vida cristã seria uma confusão, porque milhares de
pessoas poderiam chegar a conclusões diferentes. Os grandes Santos, que têm uma
intimidade mais profunda com Deus, poderiam acabar enxergando corretamente tudo. Mas
a grande maioria das pessoas, as que estão no meio do caminho e as que ficam no começo do
caminho (que são a maioria), não teria como desempatar nem distinguir quem realmente está
próximo de Deus, porque existem muitas maneiras de enganar as pessoas ou de as pessoas
enganarem-se a si mesmas.

Então Deus nos deu o privilégio de ele ter fundado uma Igreja. A Igreja católica, apostólica,
romana foi fundada para isto e para outras coisas. Ele deu autoridade aos apóstolos e seus
sucessores de ligaram e desligarem as coisas da terra que seriam ligadas e desligadas no céu.
Portanto a Igreja tem autoridade para definir o conteúdo de um mistério de fé quando ele
está causando problemas de divisões ou dificuldades dentro da própria Igreja.

Vejamos a importância de entender isso. A Igreja não tem autoridade para exigir que nós
creiamos no que ela bem entende. Ela não tem autoridade para exigir que creiamos em
verdades filosóficas, por exemplo, que não têm nada a ver com o conteúdo da fé.

Exemplo de uma verdade filosófica: Qual o melhor sistema de governo? É o


parlamentarismo, o presidencialismo, a monarquia, a ditadura? A Igreja não tem autoridade
para obrigar alguém a crer na monarquia e ter que votar na monarquia; ou no
presidencialismo, e não ser livre de fazer diferente porque a Igreja está mandando. Isso não
pertence ao conteúdo da fé. Por mais que um bispo, um papa ou a hierarquia da Igreja goste
de certas posições ou prefira umas a outras, ela não tem autoridade de obrigar alguém a crer
nisso só porque ela está falando.

Ela tem autoridade para [declarar] explicitamente o conteúdo de algum mistério da fé,
quando ele não esteja claro e esteja causando problemas dentro da Igreja; ou quando um tema
[sobre o conteúdo da fé] por algum motivo precisa ser esclarecido. Não é uma intervenção
na liberdade das pessoas, não é um poder indiscriminado. Além disso ela não pode inventar
conteúdos novos da fé.

Por exemplo, Jesus instituiu sete sacramentos. A Igreja não tem autoridade para abolir um
nem inventar um oitavo. Ela se limita, para o bem dos fiéis, a dirimir essas questões difíceis
justamente para que corramos na vida interior sem que nos preocupemos com isso.

Neste ponto, porém, justamente quando a Igreja define um mistério de fé com explícita
autoridade de fazê-lo, isso passa a ser conteúdo obrigatório da fé. Inclusive porque, se não
passasse, toda a fé cristã se tornaria inválida. Porque se a pessoa acredita que foi Deus que

347
instituiu a Igreja, deu-lhe esse privilégio e garantiu que as portas do inferno não prevaleceriam
contra ela, mas que ela pode definir coisas erradas, então o fulano que criou isso não pode ser
Deus: se é assim, quem instituiu isso não tem autoridade divina, é um indivíduo que se
enganou.

Sendo assim, somos obrigados a crer nestas coisas desta maneira sob pena de falta grave; não
por imposição e sim para aliviar o fardo, a fim de podermos nos preocupar com o importante.
Isso não dá autoridade à Igreja para cometer arbitrariedades. Ela não tem direito de definir
como verdades de fé coisas que não estão contidas na revelação. Ela não pode obrigar alguém
a pensar de um modo ou de outro conforme ela queira, exceto nos mistérios da fé — que ela
faz inclusive quando é necessário para o crescimento espiritual dos fiéis.

Na verdade, isso é um serviço que a Igreja presta, um serviço altamente valioso, porque senão
seria uma loucura. A vida espiritual seria impossível, seria um caos, pois deveríamos nos
preocupar com discussões infinitas e que não terminariam nunca. Quando chegássemos a
uma conclusão, viriam outras pessoas colocando novas objeções e estaríamos partindo de
volta da estaca zero.

Evidentemente estas definições do Magistério da Igreja têm que ser coerentes com a tradição
cristã. A Igreja não pode nunca definir nenhum mistério de fé que depois descobriu-se que
era incoerente com os dados da tradição cristã. Desde o início sempre se pensou de um jeito,
toda a Igreja era unânime, nunca ninguém reclamou, mas de repente as pessoas esqueceram
e dizem que dois mil anos a Igreja inventou que era para acreditar daquela maneira e se
descobre que era exatamente o contrário do que foi desde o início.

Isso acontece com muita facilidade com as igrejas evangélicas: os fundadores de uma igreja
evangélica acreditarem que as coisas são de um determinado jeito, mas quando se examina a
história é exatamente do jeito como nunca foi. O que é um sinal inclusive de que o Magistério
da Igreja está muito bem montado, porque é de uma coerência absolutamente extraordinária.

Nestas aulas nós não entramos a fundo sobre os mistérios da fé, sobre o conteúdo em si
(explicando em que sentido Jesus é Deus, que ele é a segunda pessoa da Santíssima Trindade,
etc.) porque estamos num país cristão e as pessoas que estão voltando para a Igreja geralmente
não se desgarraram por um problema de fé, senão por um problema moral ou simplesmente
porque não enxergaram a profundidade da coisa, mas não estão vindo de um ateísmo ou de
outra religião (budismo, xintoísmo). Por isso não entramos a fundo no conteúdo da fé,
estamos tratando mais da confissão.

Imaginamos que quem esteja ouvindo essas aulas não tenha dificuldade de crer que Deus
existe, que ele recompensa as pessoas que dele se aproximam. Poderia ser o caso de um budista
que não tenha dificuldade em crer na Santíssima Trindade: ele pode não compreender a coisa

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a fundo, mas é tão comum se falar do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que não existe grande
dificuldade em aceitar isso. Uma vez que aceitemos as Sagradas Escrituras, aceitemos a Igreja,
nós naturalmente aceitamos a Santíssima Trindade, mesmo sem compreendê-la em toda sua
profundidade, o que é muito difícil. Se a Igreja ensina assim, a Sagrada Escritura fala assim e
a Tradição cristã fala assim, nós cremos que é verdade e com o tempo vamos aprofundando.

Não entramos no mérito desses assuntos porque imaginamos que não haja dificuldade. Se
estivéssemos falando de alguém vindo de um ateísmo declarado ou de uma religião não cristã,
deveríamos ter começado essas aulas a partir de uma exposição da fé. Imaginamos que não
seja esse o nosso caso. Se acontecer de alguém que se enquadra dentro disso ouvir essas aulas,
aconselhamos que antes de se confessar essa pessoa vá procurar informar-se em algum livro
ou com alguma pessoa para ter uma orientação mais explícita sobre a fé até resolver todas as
dúvidas que possa ter.

Não estamos pecando contra a fé quando não conseguimos compreender exatamente o


mistério por causa da sua profundidade, mas aceitamos que ele seja assim. O mais difícil dos
mistérios da fé é a Santíssima Trindade. Pode-se estudar a Santíssima Trindade a fundo até
esclarecermos todas as dúvidas, não para prová-la, mas é difícil realmente que uma pessoa
compreenda como três pessoas possam ter uma existência comum e ainda assim serem três
pessoas diferentes, compartilhando a mesma existência, a mesma essência e sendo um só
Deus. Parece uma contradição de que o que é três é três, e o que é um é um: três não pode ser
um e um não pode ser três. Há uma explicação teológica e metafísica, mas não está ao alcance
de todos porque exige estudo, profundidade, etc., e nem todos têm esse tempo. Nenhum ser
humano está excluído de poder acompanhar isso, mas exige tempo.

Compreender como isso se explica não é obrigatório para a fé. Basta, como exigência mínima,
aceitarmos que assim está escrito na Sagrada Escritura e que, se nós compreendemos que foi
Deus que revelou, deve haver alguma explicação. De fato há, mas não somos obrigados a saber
explicá-la.

A Eucaristia é uma coisa semelhante. Na Eucaristia está realmente presente todo o Cristo
ressuscitado: Corpo, Sangue, Alma e Divindade, presentes na hóstia e no vinho consagrados.
Explicar isso é uma coisa complexa; menos do que a Santíssima Trindade, mas também não
é uma coisa fácil, porém não se exige isso para a fé. Nem todos são obrigados a entender como
é possível que Jesus esteja realmente presente na Eucaristia. Basta crermos que a Igreja assim
o define e a tradição testemunha; que tudo indica que Jesus ensinou assim e que, sendo Deus,
ele sabia o que estava fazendo. Enfim, basta que confiemos ser verdade e isto já é o suficiente.
É o suficiente inclusive para nossa vida espiritual, o suficiente para recebermos os frutos da
prática eucarística.

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Aula 22 – MANDAMENTOS DA IGREJA I

Índice
1. Primeiro mandamento da Igreja
2. Segundo mandamento da Igreja
3. Terceiro mandamento da Igreja
4. Quarto mandamento da Igreja
A) Da abstinência de carne
B) Do jejum
C) Do jejum eucarístico
5. Quinto mandamento da Igreja
6. Conclusão

1. Primeiro mandamento da Igreja

Já falamos dos três primeiros mandamentos. Agora precisaríamos falar dos mandamentos da
Igreja, que são simples, mas um deles é muito profundo e vai exigir uma explicação maior de
nossa parte. Existem cinco mandamentos da Igreja, todos eles muitos simples no seu básico.
Um é de uma profundidade extraordinária, digamos assim, no seu desenvolvimento.

Esses cinco mandamentos, em primeiro lugar, são semelhantes à segunda parte do terceiro
mandamento da lei divina, que é “guardar domingos e festas”. Enquanto preceito divino, o
terceiro mandamento se refere à vida espiritual e a doar mais ou menos 1/7 do tempo útil à
vida espiritual, à oração, para uma proximidade direta com Deus, para a comunhão com
Deus. Enquanto preceito estabelecido pela Igreja, tal mandamento nos obriga a evitar certos
trabalhos nos domingos e dias santos, bem como assistir missa aos domingos e dias santos. Já
falamos sobre isso quando estávamos no terceiro mandamento. A parte que é da Igreja acerca
deste mandamento é a obrigação de abster-se de certos trabalhos e de assistir missa. Esta parte
é o que a Igreja tem como o seu primeiro mandamento.

Vale ressaltar que estes mandamentos da Igreja não têm uma ordem certa, salvo engano. São
cinco, mas em alguns lugares o que estamos citando como primeiro pode ser o terceiro, assim
por diante.

2. Segundo mandamento da Igreja

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O segundo mandamento da Igreja é “confessar-se uma vez ao ano”. A Igreja exige que esse
mandamento seja cumprido entre 01/01 e 31/12, quer dizer, ao longo do ano. E isso a Igreja
nos obriga mesmo que não tenhamos um pecado grave.

Quando cometemos um pecado grave, não podemos comungar a não ser que primeiro nós
tenhamos nos confessado sacramentalmente. Se temos todos os pecados graves que
cometemos já perdoados pelo sacramento da confissão, nós podemos comungar sempre que
quisermos sem necessidade de confissão, uma vez por dia no máximo. O novo Código de
Direito Canônico permite que a pessoa comungue uma segunda vez no dia, não mais do que
isso, mas desde que essa segunda comunhão seja dentro da missa. A primeira comunhão do
dia pode ser dentro da missa (como tem sido o mais comum nos dias de hoje) ou fora da
missa; mas se houver uma segunda, tem que ser dentro da missa completa. Antes de 1983 só
era permitida uma comunhão por dia, não importando como fosse a segunda.

O segundo mandamento da Igreja preceitua (porque assim a Igreja o pede) que, embora não
tenhamos pecado grave, devemos confessar uma vez por ano. Se não tivermos pecado grave
algum cometido desde a última confissão, nós podemos renovar a confissão de um pecado
grave passado; isso não é proibido, inclusive é louvável. Porque nós não nos confessamos
apenas para obter o perdão dos pecados, mas também para receber a graça sacramental da
confissão e essa graça é útil para crescermos na vida cristã, inclusive para dar-nos mais força
para não cair no pecado.

Para que haja confissão tem que haver acusação. Nós somos obrigados a nos acusar de todos
os pecados graves que cometemos desde a última confissão, sem exceção. Porém, se não temos
nenhum pecado para confessar desde a última confissão, podemos repetir a confissão de
qualquer pecado que fizemos para que haja matéria válida de confissão, e isso é suficiente
para recebermos a absolvição.

Podemos também confessar os pecados que não são graves, ou seja, os pecados leves (já
explicamos o que são nas primeiras aulas), mas nesse caso temos que estar realmente
arrependidos deles e com verdadeiro propósito de nos emendarmos. Se fizermos a confissão
de pecados leves dos quais não tenhamos verdadeiro propósito de emenda, a confissão é
inválida. [Isso pode acontecer] se, por serem leves, não nos damos conta de que devemos nos
emendar deles em definitivo, uma vez que os confessarmos. Então o melhor nesses casos é
que renovemos a acusação de um pecado grave que já fizemos na vida passada e, como
supostamente nós temos o propósito de não cometer este mais, isso já é o suficiente para
validar a confissão mesmo que não tenhamos uma certeza absoluta se o nosso propósito nos
pecados leves é inteiramente absoluto.

Na hipótese de alguém que não tivesse nunca cometido pecado, nem grave, nem leve, mesmo
assim existe uma obrigação de se confessar uma vez ao ano. Esta obrigação é para todos.

351
Não se pode calar um pecado grave em confissão conscientemente. Aquela pessoa que tivesse
vergonha de acusar um pecado que fosse matéria grave de confissão e calasse tal pecado por
causa disso, estaria cometendo um sacrilégio: a confissão não seria válida, ela não teria
nenhum pecado perdoado e, além disso, teria cometido um outro pecado que é o sacrilégio.
E se ela fosse se confessar de novo, para reparar isso ela não poderia apenas acusar o pecado
que havia calado, porque a confissão anterior não foi válida. Ela precisa repetir inteiramente
a confissão que deveria ter feito naquela ocasião, acrescentando o pecado de omissão que
cometeu (sacrilégio), porque a confissão anterior não valeu.

Diferente é o caso que ocorre quando fazemos corretamente o exame de consciência, de uma
maneira diligente, e apesar disso nos esquecemos de contar algum pecado cometido na
confissão. Nesse caso o pecado é perdoado porque não foi uma omissão voluntária, mas fica
ainda a obrigação de confessá-lo na próxima vez em que retornarmos ao sacramento da
confissão. Não é necessário confessá-lo o quanto antes. Como os pecados já foram perdoados
é permitido comungar e, na próxima confissão, acusar o pecado omitido por esquecimento.

A confissão tem que ser precedida de um exame de consciência que, dentro de um tempo
normal, o penitente possa lembrar-se de todos os pecados graves que cometeu. Isso na
primeira confissão da nossa vida, quando estamos voltando para a Igreja, pode ser difícil e
demorado de fazer, pode exigir alguns dias de trabalho. Mas depois que nos confessamos pela
primeira vez, que já estamos atentos para não cair em pecado, nas vezes seguintes é
extremamente fácil de ser realizado: fazemos um exame de consciência e em questão de alguns
minutos ou menos já nos lembramos de quais são os pecados graves que fizemos (se é que os
fizemos) e então nos confessamos.

O exame de consciência não é nenhum absurdo de dificuldade. O tempo necessário é o


tempo que necessitamos para lembrar das coisas: se percebemos que já lembramos o que
tínhamos de lembrar e não vamos recordar facilmente mais outra coisa, o exame de
consciência já está realizado; mesmo que houvesse uma outra coisa, mas que aparentemente
não estivesse no horizonte da recordação durante o exame. Aí devemos nos acusar com a
certeza de que estamos arrependidos, reconhecemos o erro e nos propomos a nunca mais
voltar a pecar. E assim estamos prontos para fazer a confissão.

O bom seria que as pessoas pudessem confessar-se mais vezes e não apenas uma vez ao ano.
O quanto seria bom varia muito de caso para caso, inclusive da facilidade que temos para nos
confessar. Se moramos num mosteiro, onde os sacerdotes estão muito acessíveis, não seria
uma coisa má se nos confessássemos até toda semana. Mesmo que não tivéssemos motivos
muito sérios para nos confessar, a graça sacramental que recebemos na confissão é um tesouro
preciosíssimo e não devemos evitá-lo só porque não cometemos um pecado grave.

352
Agora, para a maioria das pessoas e com a falta de bons padres hoje em dia, bem como a
dificuldade de acesso às igrejas, confessar-se uma vez por semana seria um transtorno que
impediria uma série de outras coisas, inclusive a prática religiosa. Então isso varia,
dependendo do acesso que tenhamos a um bom sacerdote e das condições da própria pessoa.
Mas de modo geral não seria muito bom que deixássemos passar mais de dois meses sem nos
confessarmos. Seria uma boa prática nós nos confessarmos a cada dois meses mais ou menos.
Para os dias de hoje, para as condições de uma cidade brasileira ou americana em geral e da
Europa, é uma coisa bem factível confessar-se uma vez a cada dois meses mais ou menos, e
isso é muito bom.

3. Terceiro mandamento da Igreja

Falando apenas da materialidade da coisa (pois isso tem uma profundidade muito maior), o
terceiro mandamento da Igreja é que comunguemos pelo menos uma vez ao ano. Este
preceito, porém, não é mais para ser cumprido do dia 01/01 ao dia 31/12. A Igreja pede que
comunguemos pelo menos uma vez ao ano, entre a Quarta-feira de Cinzas e o dia de
Pentecostes.

Muito antigamente, na Idade Média, a Igreja exigia que os fiéis comungassem uma vez ao ano
na semana da Páscoa ou talvez até na própria Páscoa. Mas na Idade Média havia uma
quantidade imensa de padres, uma facilidade de comungar e confessar que não existe hoje.
Então esse preceito que era comungar na Páscoa foi sendo ampliado até que passou, nos dias
de hoje, a um período de 90 dias, que vai desde a Quarta-feira de Cinzas até o dia de
Pentecostes.

Da Quarta-feira de Cinzas (que é quando começa a quaresma) até a Páscoa, são quarenta dias;
da Páscoa até Pentecostes são cinquenta dias: cinquenta mais quarenta são noventa dias.
Então há um período de três meses dentro do qual somos obrigados a comungar uma vez,
pelo preceito da Igreja.

Em épocas passadas esse preceito no Brasil, por privilégio da Santa Sé, chegou a ser até maior
do que isso. Quando eu8 era criancinha esse prazo ia da Quarta-feira de Cinzas até o dia de
Nossa Senhora do Carmo, que é no dia 16 de julho, então era bem maior que noventa dias.
Era um privilégio concedido ao Brasil. Pelo que podemos entender, canonicamente esse
privilégio não existe mais. Agora vale, salvo decisão em contrário da autoridade da Igreja, o
que está no direito canônico e vale para o mundo inteiro: da Quarta-feira de Cinzas até o dia
de Pentecostes.

8
Uma daqueles casos em que ele dá um exemplo da própria vida. Deixei em primeira pessoa mesmo.

353
Obviamente, se uma pessoa se converte três dias antes de Pentecostes e tem que fazer uma
preparação para a confissão, e é impossível fazer isso até o dia de Pentecostes, ela está
dispensada de fazer isso, mas deve procurar fazê-lo o quanto antes. E as pessoas que não o
fizeram no tempo certo, a Igreja preceitua que o façam o quanto antes. Havendo algum
motivo espiritual grave ou sério, ou razoável, justo, que pode ser avaliado por um bom
sacerdote, facilmente se entende que a pessoa pode estar dispensada disso.

Mas é muito difícil haver um motivo razoável, pois o prazo é justo. O único motivo razoável
que costumeiramente pode acontecer é o de uma pessoa que resolve voltar para a Igreja
depois da Páscoa: já está perto o dia de Pentecostes e não dá tempo para a pessoa aprender as
coisas básicas [oportunamente], a fim de comungar antes do dia de Pentecostes. Tirando isso,
é muito difícil na vida de um cristão comum num país como os da América e da Europa, ele
não conseguir comungar nesse prazo.

Isso é preceituado sob pena de falta grave, ou seja, ainda que a pessoa tenha comungado o
ano todo até a Quarta-feira de Cinzas, e depois o ano todo depois de Pentecostes, a Igreja
quer que comunguemos entre a Quarta-feira de Cinzas e entre Pentecostes. Não
obrigatoriamente na semana da Páscoa, como às vezes se pensa. É que o preceito foi criado
na Idade Média e naquela época o preceito ditava a obrigação de comungar uma vez por ano
na Páscoa, mas depois foi sendo ampliado e ficou o preceito como é hoje. Chama-se o
“Preceito Pascal”, mas é um pascal amplo, não é só na Páscoa. Estamos falando só da
materialidade destas coisas, mas depois abordaremos a sua profundidade.

4. Quarto mandamento da Igreja

O quarto preceito da Igreja é jejuar e fazer abstinência [conforme manda a Santa Igreja].
Neste ponto a Igreja pede que façamos um jejum e uma prática de abstinência que é de uma
simplicidade absolutamente extraordinária. Inclusive nos deixa surpresos como se pode exigir
isso sob pena de pecado grave, porque é de uma simplicidade que beira a simploriedade.

No entanto a Igreja exige isso sob pena de falta grave. Por quê? Jesus diz que devemos rezar,
jejuar, fazer penitência. E a Igreja supõe que os cristãos pratiquem o jejum e a abstinência de
uma maneira mais liberal, mas não quer exigir isso sob pena de pecado grave porque as
circunstâncias das pessoas são muitas e não se pode dar uma lei que seja coerente com a vida
de todas elas.

Por exemplo, preceituar jejum para um atleta é matar o sujeito. Preceituar abstinência de
carne para um cristão que está vivendo em países onde existe perseguição religiosa, [acabaria
levando o sujeito] a trair-se na frente de todos que é um cristão e ele poderia ser morto. Então
há certas circunstâncias em que não se pode fazer jejum. Às vezes o sujeito é um diplomata,
tem que participar de jantares para, naqueles jantares e conversas, evitar uma guerra. Se ele

354
dissesse: “Não, eu não vou comer isso, não vou comer aquilo, estou de jejum”, a potência
inimiga poderia considerar isso uma provocação. Não vai ter tratado assinado, vai ter uma
guerra!

Se houvesse o preceito da abstinência de carne ou jejum para um cozinheiro, para um maître,


como ele trabalharia? Então, por causa disso a Igreja até pensou em abolir a obrigatoriedade
do jejum, mas depois Paulo VI pensou direito e viu: Se abolirmos a lei do jejum o pessoal vai
imaginar que isso não existe mais, que é coisa do passado. Então vamos exigir apenas
simbolicamente, mas é uma exigência para mostrar que é sério.

A Igreja exige então que se cumpra o jejum de uma maneira extremamente simples, mas é
apenas para dizer que o jejum ainda existe e é para ser levado a sério. Aí depende da boa
vontade, do conhecimento e da prática de cada um.

A) Da abstinência de carne. — A Igreja exige neste quarto mandamento em primeiro lugar


que todos os fiéis a partir dos 14 anos de idade façam abstinência de carne todas as sextas-
feiras do ano. Por carne entende-se a de animais de sangue quente, como pássaros, aves, boi;
não animais de sangue frio, como os peixes por exemplo. A Igreja preceitua então que todos
os cristãos dentro dessa faixa etária façam abstinência de carne todas as sextas-feiras do ano.
Porém, como isso seria muito difícil em certas circunstâncias, a Igreja diz que é possível trocar
essa abstinência de carne por qualquer obra de piedade. Podemos rezar uns dez minutos, rezar
um terço ou uma parte dele. Podemos ir ajudar os pobres por caridade, ir à missa, dar
catequese, ler um pouco da bíblia, fazer uma meditação, qualquer coisa que possa ser
considerada uma obra de piedade.

Acreditamos que não se encaixa nisso a própria profissão. Por exemplo, se o sujeito é médico
e vai tratar dos seus pacientes, isso não parece ser propriamente o que a Igreja está pedindo
como obra de piedade. Mas uma obra de piedade pode ser feita com toda facilidade a todo
momento, inclusive um cristão que passe um dia sem fazer uma obra de piedade, é um cristão
suspeito. Quer dizer, se o fulano não reza, não lê a bíblia, não pensa em Deus, não faz nenhum
bem ao próximo (...) é quase impossível ser um cristão verdadeiro e ter passado 24 horas sem
ter feito uma obra de piedade! Contudo, se passou [o dia assim] e comeu carne, ele está
violando esse preceito. E apesar da simplicidade isso é matéria grave.

B) Do jejum. — Um outro preceito ainda dentro do quarto é o jejum. Além da abstinência


de carne toda sexta-feira (que pode ser trocada por qualquer obra de piedade), a Igreja
preceitua que façamos jejum dois dias por ano e esses dois dias são a Quarta-feira de Cinzas e
a Sexta-feira Santa. Estão obrigadas a esse preceito todas as pessoas maiores de 18 anos até
completarem os 60 anos.

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No caso, em além de fazermos a abstinência de carne de animais de sangue quente (peixes não
quebram a abstinência, nem das sextas-feiras, nem desses dois dias), o jejum consiste em que
façamos apenas uma única refeição completa normal como faríamos, acrescentando a
abstinência de carne e, no lugar das outras refeições, que comamos uma coisa muito leve
apenas para não ficar com o estômago totalmente vazio, mas de tal maneira que o alimento
consumido nas outras refeições somado não desse uma refeição completa.

Em outras palavras, o jejum é uma refeição completa e alguma coisa muito leve, de tal maneira
que o café da manhã e a janta somados não dessem uma refeição completa. Quer dizer,
durante o dia não deveria se completar duas refeições completas. A água não quebra o jejum,
tampouco os remédios que forem necessários à saúde.

C) Do jejum eucarístico. — O jejum também é obrigatório antes de comungar. Até uns


oitenta anos atrás, para poder comungar era obrigatório fazer jejum a partir da meia-noite até
o momento da Eucaristia. Se alguém fosse assistir missa às 11:00 da manhã deveria ficar em
jejum completo, exceto água, desde a meia-noite até o momento da Eucaristia. Nessa época
era muito comum se celebrar missa só de manhã cedinho.

O Papa Pio XII, que reinou no período da Segunda Guerra Mundial, de 1939 até 1958,
mudou o jejum para três horas antes da Eucaristia. A partir daí começaram a se difundir as
missas vespertinas. Não havia praticamente missa vespertina na Igreja antes disso, porque se
deveria ficar de jejum desde a meia-noite até às 18:30 da tarde — jejum absoluto e não esse de
fazer apenas uma refeição completa.

Então a partir do momento que começou a lei do jejum eucarístico de três horas, antes do
momento da comunhão e não do início da missa, começaram as missas vespertinas.
Começou-se a celebrar em todo o mundo com frequência missas às 17:00, 18:00, 19:00.
Depois, com o Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI diminuiu esse jejum para uma hora.
Como geralmente uma missa demora 45 minutos e esse jejum de uma hora é antes do
momento em que recebemos a Eucaristia e não uma hora antes da missa, isso faz com que na
maioria das vezes seja lícito comer alguma coisa até meia-hora antes da missa, desde que a
Eucaristia seja tomada uma hora depois.

Esse jejum de uma hora, como é uma lei da Igreja, os livros de moral sempre entenderam que
é para ser tomado rigorosamente. Quando era desde a meia-noite, não se podia passar um
minuto da meia-noite: só era permitido comer antes da meia-noite. Quando eram três horas,
eram três horas, não duas horas e cinquenta e cinco minutos. E se seguirmos o mesmo
critério, que não consta ter sido alterado pela Igreja, se é só uma hora é uma hora. O indivíduo
que percebeu que são 59 minutos, não tem direito de comungar.

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Por que é assim? Poderia ser diferente, mas é assim que a lei da Igreja é. Isso não consta ter
sido alterado, então ainda que um padre, um bispo, um teólogo, um canonista, diga: “Não,
mas isso é bobagem”, [na verdade] não é bobagem porque é um preceito eclesiástico e
devemos obedecê-lo como a Igreja pede. A Igreja pede que seja assim, não consta que ela
tenha alterado. Sempre se considerou assim, sempre se ensinou assim e sempre foi explicado
assim, e a Igreja sempre soube disso e nunca corrigiu.

Tais coisas não são de direito natural, são de direito eclesiástico. Então se a Igreja manda
assim, não é lícito dizermos: “Ah, mas eu acho diferente”. Se fosse de direito natural nós
poderíamos tentar compreender a lógica da coisa para [ajustarmo-nos] à finalidade dela, mas
como é direito canônico e foi preceituado desse jeito, é assim que devemos obedecer.

Portanto, é uma hora o mínimo exato. Quer dizer, teoricamente pelo direito natural é um
absurdo exigir, sob pena de pecado grave, uma abstinência de carne que se pode trocar por
qualquer coisa. É praticamente não exigir nada, mas é assim que a Igreja preceitua e ela
inclusive faz de propósito. É tão fácil que [na verdade] é só para lembrar às pessoas da
existência disso, no desejo de que elas façam melhor.

O mesmo se dá com a Eucaristia: uma vez por ano é muito pouco, mas é o que a Igreja está
preceituando e tem que ser obedecido. Ela diz que é da Quarta-feira de Cinzas até o
Pentecostes: se o sujeito comungou cem vezes fora desse período e nenhuma nesse período,
está indo contra o que ela pediu! Essas coisas são assim porque é assim que a Igreja quer ser
obedecida, e não consta que ela tivesse mudado de ideia. Se constasse, é ela que manda, nós
não temos direito de mudar. Isso é feito assim para o bem dos fiéis e é assim que deve ser.

5. Quinto mandamento da Igreja

O último preceito da Igreja é o de pagar o dízimo. Dízimo significa “décima parte”. Porém a
lei do dízimo não diz apenas pagar o dízimo, mas pagar o dízimo conforme o costume.
Conforme o costume significa “de acordo com o costume que a Igreja local estabelece”. Isto
significa que existe a lei para se pagar o dízimo, mas ela tem que ser cumprida de acordo com
o costume da igreja local, de acordo com o que a autoridade eclesiástica local estabelece.

Nisso a Igreja tem sido muito sábia, porque no Brasil a interpretação canônica que é dada é
que tal “costume” não existe. Na prática temos que pagar o dízimo conforme o costume, mas
não é que não existe o costume, senão que deve ser inteiramente voluntário. O costume
estabelecido pela igreja no Brasil é que não haja obrigatoriedade, mas seja voluntário.

Significa que no Brasil a igreja não quer preceituar o dízimo sob pena de pecado algum: o
sujeito pode dar o dízimo ou não, conforme ele acha. Se acha que deve dar o dízimo a uma
instituição de caridade, pode dá-lo. Também não está estabelecido que seja 10%, conforme o

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nome. O “voluntário” significa que inclusive pode ser o quanto o sujeito quiser pagar, se
quiser.

Portanto existe esta lei e ela ainda é lei da Igreja porque, as situações se alterando, as
circunstâncias exigindo, sendo razoável, a Igreja quer lembrar que ela teria ainda o direito de
exigir mais claramente que as pessoas contribuíssem para sua manutenção. Contudo,
atualmente no Brasil ela não quer obrigatoriedade nenhuma, mas que as pessoas deem o
quanto acham que devem dar, se quiserem dar.

6. Conclusão

Estes são os cinco mandamentos da Igreja: i) guardar os domingos e festas, ii) confessar-se
uma vez ao ano, iii) comungar uma vez por ano, iv) observar o jejum e a abstinência de carne
nos dias preceituados, v) e pagar o dízimo conforme o costume (que no Brasil a igreja
estabelece que é inteiramente livre).

Materialmente a coisa é esta, porém o mandamento da Eucaristia (de comungar uma vez ao
ano) tem muita coisa profunda escondida e isso não pode passar em brancas nuvens. É como
o preceito de “Não tomar o seu santo nome em vão”, pois na verdade o nome de Deus significa
muito mais do que está sendo exigido; e é a mesma coisa que o descanso no dia do Senhor,
que está querendo dizer muito mais coisas do que aparentemente está sendo exigido.

O preceito de comungar uma vez ao ano significa muitíssimo mais do que parece, e que não
está caindo sob a ótica do que é matéria grave e aquelas coisas que não podemos nem pensar
em quebrar. Uma das ideias da primeira confissão e das seguintes é justamente que
consigamos abandonar de uma vez para sempre todo pecado grave, para haver uma divisão
na nossa vida, antes e depois, e que, livres dessas coisas que acabam com a nossa vida
espiritual, possamos crescer em direção a Deus.

Sob o ponto de vista da matéria grave a Igreja pede apenas que comunguemos uma vez por
ano, mas dentro do mandamento da Eucaristia existe uma profundidade absolutamente fora
do comum que não podemos passar desapercebidamente aqui, para que não percamos a ideia
de conjunto daquilo a que Deus realmente nos está convidando.

358
Aula 23 – MANDAMENTOS DA IGREJA II

Índice
1. Da presença de Deus na criação
2. Da presença especial de Deus no ser humano
3. Da Santíssima Trindade
4. Da revelação divina
5. Do sacramento da Eucaristia
6. Observações sobre o sacramento da Eucaristia
A) Leituras recomendadas
B) Dicas práticas

1. Da presença de Deus na criação

Vamos falar especificamente sobre um dos cinco mandamentos da Igreja que é o de


comungar uma vez ao ano, mas na verdade falaremos sobre a Eucaristia. Queremos dar uma
ideia sobre a profundidade da Eucaristia e sobre o que ela significa na vida do cristão e da
Igreja. A Igreja pede que comunguemos pelo menos uma vez ao ano, entre a Quarta-feira de
Cinzas e o dia de Pentecostes, mas isso é apenas o mínimo. Ela espera que sejamos muito mais
assíduos à Eucaristia [exatamente] por causa das coisas que diremos, tanto quanto
conseguimos entender.

Comecemos do início para compreendermos bem a coisa. Nós falávamos que Deus está em
todas as coisas. O que significa isso? É diferente de quando dizemos que o ar está em todas as
coisas ou que a água está em alguma coisa. Quando dizemos que a água está numa garrafa, ela
está limitada pela garrafa. Ao dizermos que o ar está em todas as coisas, significa que o ar
permeia todas as coisas. Mas não é desse modo que Deus está em todas as coisas, inclusive
porque Deus é um puro espírito e não tem quantidade, não tem dimensões para poder estar
contido dentro de uma garrafa, ou dentro de uma mesa, ou dentro de nós mesmos.

Ao afirmarmos que Deus está em todas as coisas (uma explicação disso pode ser encontrada
bem no início da Suma Teológica), queremos dizer que Deus criou todas as coisas, pois nada
do que existe poderia existir se Deus não tivesse criado. Porém, após serem criadas por Deus,
as coisas não podem continuar existindo sozinhas. Uma vez criadas as coisas, Deus tem que
mantê-las positivamente na existência senão elas deixariam de existir no mesmo momento.

359
É uma coisa parecida, sob certos aspectos, com a luz elétrica. A usina de eletricidade está
bombeando eletricidade para manter a luz acesa. Para a luz continuar acesa, a usina tem que
continuar bombeando essa eletricidade o tempo todo. Se a usina parar um só segundo, a
lâmpada apaga. O mesmo ocorre com a criação, é como se Deus fosse a usina: ele cria as coisas
e é como se as coisas “acendessem”; ele tem que continuar “mandando energia” para a
lâmpada continuar acesa. Deus tem que continuar mantendo as coisas na existência; se ele
parasse um único instante, as coisas desapareceriam e voltariam ao nada.

O motivo disso, filosoficamente falando, é porque o ato da criação não é um movimento.


Quando algo é criado ele simplesmente tem um primeiro instante onde passa a existir, não
vai sendo criado devagarzinho: a coisa é como se fosse nada, depois um pouco mais do que
nada, aí um pouco mais do que esse nada e é um “seminada”, é quase um meio ser. Ou ele é
ou não é!

Então, na verdade, ao criar, Deus não está fazendo um movimento, ele está colocando a coisa
na existência imediatamente, e sem a intervenção divina a coisa criada não poderia existir.
Esse estado de a coisa precisar de Deus para existir, é ontologicamente, fisicamente igualzinho
ao estado dela depois de já criada. Não existe nenhuma diferença entre a coisa já criada dez
anos depois e o primeiro instante em que ela foi criada. Se no primeiro instante, para entrar
na existência ela precisava da intervenção divina, dez anos depois, para continuar nesta
existência, ela também precisa da intervenção divina porque o estado é exatamente o mesmo.

Seria diferente se a criação fosse um movimento, se a criação fosse um processo em que se


fosse arrancando as coisas do nada, como que utilizando um fórceps, fazendo força e, quando
ela chegasse no final do processo, se diria: Ah, finalmente, acabamos de criar a coisa. Aí a
intervenção divina seria necessária para forçar o processo, mas uma vez terminado, a coisa
continuaria na existência. Para a coisa voltar ao nada, Deus teria que ser chamado e reverter
o processo pela força que ele usou. Como esse processo não existe, Deus tem que manter a
coisa o tempo todo e, se falhar uma única vez, um único instante, a coisa volta ao nada. Então,
para continuarem existindo, as coisas precisam de uma intervenção de Deus nelas o tempo
todo e é por causa disso que Deus está em todos os lugares.

Inclusive os lugares só existem porque as coisas estão nesses lugares. O lugar não é uma coisa
que existia antes e a coisa foi criada depois. Na verdade, o lugar só existe porque algo foi criado
e, ao ser criado este algo, surgiu o lugar onde o algo está. Deus está em todos os lugares, porque
mantém essas coisas no ser. E aparentemente Deus criou o universo desde o início da criação
e continua mantendo-o no ser.

2. Da presença especial de Deus no ser humano

360
Os seres humanos, porém, têm uma alma espiritual que não existe desde o início do universo.
Nossa alma tem que ser criada por Deus do nada no momento da concepção. A partir
daquele momento Deus começa a estar na nossa alma de um modo especial, porque ele
sustenta a nossa alma no ser.

Mas ele está no nosso ser, na nossa alma, de uma maneira especial, nova, diferente de como
está em todo o universo que ele criou desde todos os tempos. E aparentemente este universo
é o mesmo que já existia, só muda de configuração. Nossa alma não existia desde o começo
do universo, ela passou a existir naquele momento. Então Deus passa a existir nas nossas
almas de uma maneira especial.

É uma maneira especial, mas no fundo é a mesma com que ele está em todas as coisas: Deus
sustenta nossas almas no ser, ele começa a fazer isso a partir de um determinado tempo na
história, mas do mesmo modo como sustenta uma pedra, o mar, o ar, a terra, o sol, o universo,
a galáxia, desde o começo do universo. Portanto, Deus está de fato em todas as coisas, se
entendemos sob esse sentido.

Estávamos dizendo que é justamente este motivo pelo qual ele fala conosco, os seres
humanos. Quando dissemos que, para crermos nós precisamos de uma intervenção divina,
da luz da sua graça para que possamos crer, falamos que essa graça não vinha do espaço sideral
dos limites do universo, mas de nós mesmos, porque Deus está lá, assim como ele está numa
pedra e na alma de uma pessoa. Então, para nos enviar a sua graça, Deus não precisa trazê-la
dos confins do universo ou de um depósito. Deus já está lá dentro e ele mesmo no-la
comunica de lá de dentro.

Ele tenta falar conosco, tenta se comunicar conosco. Tenta iluminar a nossa inteligência e
convidar o nosso coração inúmeras vezes durante a nossa vida. Deus está fazendo isso o
tempo todo, ele deseja comunicar-se conosco.

Então eu queria te chamar a atenção primeiro para uma coisa: Por que Deus não tenta se
comunicar com uma pedra, já que ele também está na pedra? Você já havia pensado nisso?
Por que Deus não fala com uma pedra, não fala com a água, se ele está lá como está dentro de
nós?

A verdade é que Deus está na pedra, mas não fala com ela porque ela não tem estrutura para
ouvi-lo, haja vista que é apenas uma pedra. Deus, portanto, não fala com uma pedra pelo
mesmo motivo com que nós não falamos com a parede: a parede não nos escutaria. Podemos
falar com a parede, mas a parede não vai ouvir, então simplesmente não falamos. Mas falamos
com a esposa, com os filhos, com os entes a quem queremos bem. Falamos até com um
cachorro, pois apesar de não entender exatamente o que estamos dizendo, um cachorro é
capaz de entender alguma coisa.

361
E a verdade é que Deus é tão bom, ele ama tanto as suas criaturas que falaria com as pedras se
elas pudessem ouvi-lo, mas as pedras não têm espírito, as pedras não têm alma. Ele poderia,
ao invés de ter criado uma pedra, ter criado um ser humano, uma “pedra humana”. Mas
acontece que, para o ser humano existir, as pedras eram necessárias. Para o homem existir são
necessárias as árvores, os vegetais, a comida, o ar, o mar, etc, então é necessário que haja
pedras. Para a integridade do universo é necessário que haja estas criaturas que, apesar de
Deus estar lá, nunca ouvirão Deus falando.

O primeiro ente na escala dos seres que é capaz de ouvir a Deus, que é capaz de se comunicar
com Deus porque tem uma alma, é o ser humano. Acima de nós existem as criaturas angélicas
e outras. Deus nos ama tanto que quer conversar conosco. Ele nos manda sua graça, tenta
iluminar-nos, tenta nos mostrar a sua vida e convidar-nos a participar dela, porém,
infelizmente, apesar de ele insistir tanto nós não o ouvimos. E por que nós não o ouvimos?
Por causa dos nossos pecados, por causa do pecado original pelo qual decaímos do paraíso, e
aos quais acrescentamos os nossos próprios pecados, as nossas próprias paixões e toda a
maneira deformada com que fomos educados. Pois não só levamos uma vida de Marta
desesperada, como inclusive acrescentamos a isso paixões, pecados e uma podridão moral e
espiritual de modo que não ouvimos Deus querendo comunicar-se conosco porque nos ama.

Vejamos que a Sagrada Escritura, quando fala do paraíso terrestre (aquele no qual Adão foi
criado) dá a entender que Deus falava livremente com ele no paraíso. Ele não estava no céu,
não estava na visão beatífica, estava nesse mundo, mas ainda não tinha decaído pelo pecado,
nem mergulhado nos pecados pessoais, nas suas paixões, no seu desregramento. Em sua
pureza, Deus conversava com Adão, eles se entendiam. Adão ouvia a voz de Deus, ouvia Deus
que se-lhe-comunicava.

Isso se perdeu depois do pecado original. São os nossos pecados, a nossa sexualidade
desregrada, o nosso orgulho, nossa ambição, nossa cegueira, nossa fixação pelas coisas
materiais, com o egoísmo e todas essas coisas, que nos impedem até de ouvirmos a voz da
razão e mais ainda a voz de Deus que quer se comunicar conosco pela sua graça. Quando
Deus começa a se comunicar conosco, o efeito é justamente a fé: essa capacidade de perceber
o sentido das coisas divinas, porque Deus nos está iluminando a inteligência e convidando o
coração.

3. Da Santíssima Trindade

Antes de continuarmos queremos fazer uma outra digressão. Quem é o Deus que está dentro
de nós, como está na pedra? Este Deus é a Santíssima Trindade, Deus Pai, Deus Filho e Deus
Espírito Santo, porque Deus é isto.

362
E como se pode entender a Santíssima Trindade? Embora não seja uma explicação totalmente
satisfatória (porque a coisa é muito profunda), podemos começar a compreender alguma
coisa da Santíssima Trindade sabendo que Deus é espírito. Se é espírito ele é um ente
consciente. Apesar de não ter uma faculdade inteligível, não ter um atributo anexo da
inteligência; apesar de não ter uma faculdade que não é ele, mas um órgão dele chamado
inteligência, ele é inteligente.

Por ser inteligente, ele se intelige a si próprio. Ao inteligir-se a si próprio ele forma como que
um Verbo dele mesmo. Um verbo significa o que fazemos quando tentamos compreender
alguma coisa. Quando tentamos compreender alguma coisa, vamos formando como que um
discurso sobre ela, e aquele discurso serve para contemplarmos o que compreendemos da
coisa que estamos tentando compreender.

Deus não está tentando compreender-se a si mesmo como se ele precisasse aprendê-lo. Deus
já é infinitamente sábio, Deus não precisa aprender. Mas justamente porque ele é tão sábio,
ele acaba formando como que uma imagem de si próprio, a que chamamos de Verbo.

Essa imagem dele próprio, que é um Verbo mental que procede de Deus como se fosse por
modo de inteligência, é o que seria o Filho de Deus. Deus Pai fez essa imagem de si próprio,
que na verdade não é uma coisa que existe independentemente: em Deus, as pessoas da
Santíssima Trindade possuem a mesma existência e a mesma essência. Mas quando Deus faz
essa imagem de si mesmo e se contempla a si mesmo, isso é uma coisa tão fantástica em termos
de conhecimento, é uma coisa tão deslumbrante que é algo semelhante só que mais profundo
ao que acontecerá conosco quando estivermos no paraíso: quando estivermos no paraíso
veremos Deus face a face, mas limitadamente, porque somos finitos.

Deus, ao gerar o seu Verbo, contempla-se a si mesmo, mas de uma maneira infinita: é como
se fosse o paraíso de Deus. O que é o paraíso para nós, o que é a visão beatífica para nós, a
geração do Verbo é para Deus muito mais: é o céu de Deus. E assim como nós, quando virmos
Deus face a face vamos amá-lo de uma maneira tão grande, esta geração do Verbo produz um
amor tão grande que este amor acaba se tornando uma pessoa diversa do Verbo.

Sendo assim, em Deus existem três pessoas que são um só Deus, que compartilham uma
única existência, uma única essência, porque Deus se intelige a si próprio e, ao inteligir-se,
produz um Verbo. Esse Verbo, ao Deus contemplar-se, é a visão de uma beatitude tão
extraordinária que acaba inspirando um amor tão fora do comum que esse amor é o Espírito
Santo, e os três estão unidos e inseparáveis desde toda a eternidade.

Quando Deus age externamente nas criaturas, quando Deus cria alguma coisa do nada, por
exemplo quando criou o universo do nada, não foi o Pai, não foi o Filho, não foi o Espírito
Santo que o criou, foram as três pessoas juntas, que são um só Deus. O poder de Deus é

363
comum a essas pessoas. Então quando Deus cria o universo ou quando faz qualquer coisa
fora dele, não é uma das pessoas que age em separado. Se uma pessoa pudesse agir em
separado, seriam três deuses e não um só Deus. São as três, que são um só Deus, que criam
simultaneamente as coisas.

Isso significa que, quando Deus sustenta nossa alma no ser assim como sustenta a pedra no
ser, quem está sustentando-nos no ser e está lá em nós é o Pai, o Filho e o Espírito Santo, mas
essa sustentação do ser é obra conjunta dos três. E quando Deus tenta falar conosco, nos dar
a sua graça, nos dar a sua luz, quem está produzindo esse efeito, quem está falando isso (é um
efeito externo) são as três pessoas da Santíssima Trindade simultaneamente, não é uma.

Ocorre que, quando nós percebemos essa voz de Deus, se esta voz de Deus, se esta graça
ilumina a nossa mente (...) quer dizer, nós sentimos um gostinho sobrenatural que vem de
Deus e esse gosto ilumina a nossa mente, a nossa inteligência, como isso é um efeito
intelectivo, a nós parece como se fosse o Verbo que estivesse falando aquilo, porque o Verbo
de Deus é a geração intelectual de Deus.

Quando Deus nos fala, quando tenta se comunicar conosco, quando tenta nos mover pela
graça, é toda a Santíssima Trindade em conjunto que está tentando nos mover. Contudo,
quando o resultado disso é na inteligência, a impressão que temos é que ouvimos de Deus
alguma coisa intelectiva, então temos a impressão que é como se o Verbo tivesse falado e
associamos aquele movimento na inteligência à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade,
porque lá dentro da Trindade a pessoa que procede por modo de inteligência é o Verbo.
Apesar de ser as três pessoas que estão produzindo aquilo, nós temos a impressão como se
tivéssemos ouvido o Verbo: o Verbo nos falou! Nós associamos dessa maneira.

Ao contrário, quando a graça nos move o coração e nos faz amar a Deus ou nos faz amar de
modo geral, a impressão que temos é como se tivesse sido o Espírito Santo que nos tivesse
movido, porque lá dentro da Santíssima Trindade ele que é o amor. E o Pai nós nunca vemos,
porque ou a graça move a inteligência, iluminando-a, ou convida a vontade, movendo-a a
amar.

Quando ocorre a primeira coisa, nós temos a impressão de que é o Verbo que está falando. E
quando somos movidos pela vontade, temos a impressão que é o Espírito Santo. E temos a
impressão de que o Pai nunca está presente: ou é o Cristo que nos fala, ou é o Espírito Santo
que nos move.

Por essa razão dizemos que desde que começou a humanidade e que Deus está tentando
constantemente se comunicar conosco pela graça, ou é o Espírito Santo que nos inspira para
amar a Deus (e ao fazer isso nós o compreendemos melhor), ou é o próprio Deus que está
tentando nos iluminar (e ao fazer isso é o Verbo que nos está falando). E os homens Santos

364
que conseguiram ouvir a Deus, foram conduzidos pelo Espírito Santo e iluminados pelo
Verbo de Deus.

É ao Verbo de Deus que compete revelar-nos9 o próprio Deus, que é Pai, Filho, e Espírito
Santo. E é ao Espírito Santo que compete fazer-nos amar a Santíssima Trindade, que é Pai,
Filho e Espírito Santo. Mas como, pelo menos no início, conseguimos somente ser
iluminados na inteligência ou inspirados no amor, aparentemente Deus Pai fica escondido,
mesmo que seja dentro de nós (o Deus invisível) e são o Filho ou Espírito Santo que nos
movem.

4. Da revelação divina

Deus então, através do Verbo ou do Espírito Santo (entendidos como sendo a própria
Santíssima Trindade que nos sustentava no ser) tentava falar conosco de todas as maneiras
desde a queda, mas ele viu que estávamos nos depravando e, numa tentativa de falar mais
claramente, começou a revelar-se externamente. Provavelmente ele tentou se revelar
internamente às pessoas enquanto a humanidade ainda não tinha se corrompido muito.

Entretanto, do mesmo jeito como quando falamos com uma pessoa, ela pode deturpar as
coisas que falamos, quando Deus falava com os seres humanos às vezes alguns entendiam
(porque eram mais puros) e outros deturpavam, mas no fim acabava ficando uma bagunça:
o erro se misturava no meio das coisas pelas quais Deus mesmo estava tentando chamar os
homens.

Deus então resolveu revelar-se externamente, o que começou a acontecer com Abraão e
principalmente com a lei de Moisés. Deus ditou os dez mandamentos, colocou-os numa
tábua, fez milagres ostensivos, mandou Moisés escrever o Pentateuco, mandou os profetas
escreverem. Ele começou a revelar-se externamente porque percebia que todos nós
ouviríamos. Se fôssemos puros, se abandonássemos o pecado, se nos dedicássemos à oração,
se fôssemos de uma bondade e uma pureza muito grande, ouviríamos gradativamente cada
vez mais a voz de Deus dentro de nós. Deus não fala só para os Santos, Deus fala também
para os pecadores, somos nós que não conseguimos [perceber] por causa da maldade do
nosso coração.

Deus resolveu revelar-se por escrito através da Sagrada Escritura e pediu insistentemente que
meditássemos na Sagrada Escritura, pois ela contém externamente aquelas coisas que Deus
tenta falar dentro de nós. Deus tenta comunicar internamente, de uma maneira direta e
pessoal e com todas as pessoas, aquelas coisas que estão nas Sagradas Escrituras. Nós não
precisaríamos das Sagradas Escrituras se conseguíssemos ouvi-lo, mas como estávamos

9
Estava: nos revelar "ao" próprio Deus; mas penso que o sentido seja: revelar "o" próprio Deus.

365
ficando cada vez mais cegos, ele resolveu pôr por escrito e pediu para meditarmos para ver se,
meditando naquilo, conseguíssemos pouco a pouco perceber que internamente ele está
tentando nos falar pessoalmente aquelas coisas escritas ali, que internamente poderíamos
entender muito melhor e com muito mais profundidade, porque internamente ele nos
abriria a mente e convidaria o coração para compreendê-lo.

Ele nos abriria a mente através do Cristo, através da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade,
e nos convidaria o coração através do Espírito Santo, apesar de que na verdade é toda a
Santíssima Trindade que está produzindo aquele efeito. Mas quando sentimos o gosto de
Deus pela inteligência, isso se parece com uma experiência do Verbo; e quando sentimos o
gosto de Deus pela vontade, isso se parece com uma experiência interior do Espírito Santo.

Deus percebeu que a coisa tinha ido melhor, mas que os seres humanos ainda não
conseguiam ouvi-lo como se devia. Então aconteceu uma coisa extraordinária: o Verbo, a
Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, aquela que na Trindade é gerada por modo de
inteligência, fez-se carne e veio morar entre nós, e juntou alguns discípulos. Aí ele começou a
explicar pessoalmente aquelas coisas que está constantemente querendo contar a todos nós
através da sua graça. Ele chegou a um refinamento de nos transmitir o que quer nos contar e
que era impossível no Velho Testamento, porque [agora] ele veio em pessoa.

Todo professor sabe que através de uma aula pela internet ou uma aula impessoal pela
televisão, pode-se explicar muitas coisas. Tratando-se, porém, de uma coisa muito mais
profunda é preciso formar uma turma de alunos, formar uma intimidade entre eles,
envolvendo-os pessoalmente consigo, para conseguir passar toda a profundidade do que se
quer falar, principalmente se são coisas muito elevadas: filosofia, poesia. Muito mais tentar
explicar em palavras aquelas coisas que Deus está querendo comunicar através da sua graça,
que não entendemos por causa da obtusidade.

Deus então encontrou uma maneira de se revelar mais extraordinária que nos Velho
Testamento. Podemos ver isso nitidamente se examinarmos todo o Novo Testamento e
principalmente o evangelho de São João, particularmente o diálogo que Jesus teve na última
ceia com os apóstolos. Aquele nível de delicadeza com que Jesus explica o desenvolvimento
da graça em nossa alma se nós lhe damos atenção, jamais Moisés teria conseguido explicar
porque não havia ambiente para isso, não havia estrutura para isso.

O Verbo tinha que se fazer homem, vir aqui entre nós, juntar alunos, formá-los, ter amizade,
intimidade com eles, para conseguir passar uma delicadeza de descrição como aquela. Então
a revelação do Novo Testamento, por causa da presença física de Jesus e da intimidade que
ele formou com os apóstolos para poder explicar-lhes a coisa, é algo que simplesmente era
impossível num ambiente como o Velho Testamento.

366
Deus encontrou uma maneira de se revelar mais profundamente. O que ele está querendo
com isso é que entendamos não o que ele falou, mas que consigamos perceber o que ele está
tentando comunicar-nos internamente pela graça. Ele mesmo diz: “Se permanecerdes na
minha palavra, encontrareis a verdade e a verdade vos tornará livres”. Ele está dizendo que, se
conseguirmos entrar na intimidade da palavra divina que Jesus passou aos apóstolos (como
se estivéssemos entre os apóstolos tentando compreender o que ele fala) nós conseguiremos
compreender o que ele está tentando fazer conosco internamente na nossa intimidade.

Na verdade, ele quer entrar em contato pessoal conosco. E como era uma revelação de
conteúdo (ele estava tentando revelar uma coisa) quem acabou tomando natureza humana
foi a pessoa do Filho. Se procurarmos meditar com cuidado o Novo Testamento, pouco a
pouco iremos percebendo que não só Deus nos fala através da Sagrada Escritura, mas vamos
percebendo que Deus nos fala dentro de nós mesmos, que Deus tenta se comunicar pela
graça.

Isso é uma coisa maravilhosa que Deus fez. Vejamos o quanto Deus nos ama! Deus nos ama
tanto que ele falaria inclusive com uma pedra, se a pedra pudesse ouvi-lo. Como a pedra não
pode ouvi-lo, mas só os seres humanos, realmente nós percebemos que ele está fazendo uma
coisa absolutamente extraordinária, algo inacreditável. Deus realmente revelou algo a Moisés
para tentar chamar a atenção dos seres humanos ao que ele tenta nos explicar internamente.
Depois, com o Cristo, Deus veio provocar uma situação em que pudesse chegar a um nível
de profundidade e delicadeza para nos explicar isso, como nunca se havia chegado antes. E é
por isso que ele pede que rezemos, que separemos uma parte do nosso tempo para o trabalho
de Maria, porque ele quer que o ouçamos. Assim como Maria o ouvia, sentada diante do seu
banco, ele quer que nós o ouçamos também, porém não sentados no banco, mas que o
ouçamos falando dentro de nós e tentando comunicar-se conosco.

E há algo ainda mais inacreditável. Se olharmos o finalzinho do evangelho de São João,


quando Jesus já havia passado os três anos de apostolado com o colégio dos seus discípulos,
ele diz o motivo porque os ama: Eu vos amei e portanto “não vos chamo mais de servos,
chamo-vos de amigos, porque tudo o que ouvi do Pai eu vos dei a conhecer”.

É como se dissesse: Eu agora posso dizer que vos amo, porque [vos comuniquei] tudo aquilo
que ouvi do Pai (o que pertence à vida divina, a Deus, Santíssima Trindade que está dentro
de nós e que quer se comunicar conosco). Tudo que Jesus, Deus feito homem, ouviu do Pai,
tudo que conheceu de dentro da Santíssima Trindade, ele comunicou a nós. Onde? No Novo
Testamento. Quer dizer, ele conseguiu colocar por escrito, pela sua palavra falada, todas
aquelas coisas que Deus está querendo insistentemente falar conosco.

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Depois disso, porém, ele foi ainda mais longe. Vejamos: qual o caminho que devemos fazer
para conseguir religar nossa alma com Deus que está dentro de nós tentando comunicar-se o
tempo todo? É justamente o que fizemos nas aulas:
i) Abandonar o pecado, que é o que está nos impedindo de fazer isso, pois estamos afundados
na matéria e não temos como ouvir a voz de Deus.
ii) Praticar a virtude porque isso ordena as nossas paixões. Uma vez que abandonamos o
pecado, temos que ordenar as paixões que foram desregradas por causa do pecado e isso
fazemos pela virtude.
iii) Depois temos que pedir a Deus a graça da fé. Pedir a graça da fé é a mesma coisa que
estarmos pedindo que ele fale conosco, porque não podemos enxergar as coisas de Deus se
ele não nos iluminar, se ele não se comunicar conosco, se ele não nos der a graça.
iv) Depois ele pede que meditemos na sua palavra, porque esta palavra (que está no Velho e
muito mais no Novo Testamento) é o reflexo daquela [palavra] interior com que ele nos quer
falar. É o reflexo, porque ele mesmo diz: “Tudo aquilo que ouvi do Pai eu vos dei a conhecer”.
Então se procuramos compreender e aprofundar, e realmente vamos compreendendo o
sentido, começaremos a perceber que lá dentro Jesus está vivo, presente.
v) Depois disso, se meditando as Sagradas Escrituras e pela oração começarmos a perceber a
sua presença, a sua voz que nos fala, ou seja, o efeito da graça que nos ilumina e nos convida,
e se começamos a perceber que isso é alguma coisa de verdadeiramente sobrenatural e que na
verdade é o próprio Cristo, a própria Santíssima Trindade que quando ilumina a mente tem
um gosto do Verbo, e quando convida o coração tem um gosto do Espírito Santo (...) quando
reconhecemos isso, ele pede que nós comecemos a amá-lo.

Jesus sabia que o amor se dá quando existe intimidade entre pessoas semelhantes, ou seja,
pessoas de mesma natureza. Então, como estávamos muito decaídos e como esta graça que
recebemos de Deus não é o próprio Deus, senão um efeito espiritual da Santíssima Trindade
sobre nós (que ora tem um gosto do Verbo, ora tem um gosto do Espírito Santo) Jesus fez
uma coisa ainda mais extraordinária: ele morreu por nós e ao fazê-lo, conseguiu pelos seus
méritos o prêmio de que a sua natureza humana redistribuísse essa graça.

Essa graça (que é a Santíssima Trindade, que é Deus vivendo em nós) pela qual ele nos chama,
depois da ressurreição e ascensão de Cristo aos céus, passou a advir da sua natureza humana
como um instrumento. Quer dizer, essa graça não vem diretamente de Deus em sua
divindade, ela vem de Deus através da humanidade do Cristo.

O que ele quis ao fazer isso é que soubéssemos que, quando somos iluminados pela graça, na
verdade estamos em contato não só com Deus, mas com o Cristo em sua natureza humana.
Porque é natural aos seres humanos amar pessoas semelhantes a si. É natural aos seres
humanos amar a esposa, os filhos. Então aparentemente Deus resolveu fazer ainda mais um
favor para conquistar o amor dos seres humanos.

368
Quando virmos Deus face a face nós iremos amá-lo com toda certeza. Por enquanto não o
vemos face a face, pois o que vemos na verdade é uma graça que vem de Deus que vive dentro
de nós. Aquilo vem de Deus, mas não é Deus. É um Deus inclusive meio escondido. Mas se
soubéssemos, como é verdade, que aquela graça está sendo canalizada pela natureza humana
do Cristo, pois Jesus ressuscitou e está em algum lugar físico qualquer que seja, é de lá que ele
instrumentaliza e distribui essa graça que vem de Deus a nós. Jesus não ressuscitou
simplesmente para aparecer durante algum tempo e [depois] dissolveu essa natureza humana.
Ele está ressuscitado em algum lugar fisicamente.

Assim sendo, quando recebemos a graça e começamos a ouvir a voz de Deus, a compreender
como ele nos move, podemos ter certeza que é realmente uma coisa sobrenatural que está
agindo sobre nós, podemos ter certeza que aquilo ali está vindo pela humanidade do Cristo,
Jesus [enquanto] homem. Isso é para que tenhamos mais facilidade para amá-lo e amando-o
desta maneira nós podemos mais facilmente amar a Deus.

A encarnação do Cristo foi para que ele pudesse nos explicar mais profundamente essas
coisas. A ressurreição foi para podermos amá-lo mais facilmente, já que estávamos nessa
situação de decadência. Mas ainda assim ele percebeu que tudo isso é muito difícil para os
seres humanos na situação em que estávamos, e resolveu encontrar uma maneira ainda mais
próxima de experimentarmos o amor que ele tem por nós.

Na última ceia Jesus disse que nos tratava como amigos porque tinha revelado todas as coisas
que ouvira do Pai, mas logo antes de dizer isso, ele também disse: “Ninguém tem maior amor
do que aquele que dá a vida pelos seus amigos”. Jesus estava se referindo à paixão e morte que
[sofreria].

Essa paixão e morte de Cristo (que é contada em todos os evangelhos com todos os seus
detalhes) é um relato absolutamente extraordinário, porque ele sofreu uma morte muito mais
torturada, humilhada e [dolorosa] do que aquela sofrida normalmente pelos condenados à
morte do Império Romano. Pilatos não queria que Cristo morresse, então mandou
flagelarem-no para ver se os judeus se comoviam, porém eles não se comoviam. Mandou
baterem no Cristo, mandou coroarem-no de espinhos. Então, ao finalmente ser condenado
à morte, Jesus estava mais judiado do que um condenado comum e morreu de uma morte
atroz, que dificilmente os próprios condenados à crucificação padeciam. E o impressionante
é que ele não deu um único “piu”, sendo que tinha o poder de, com uma palavra, libertar-se
de tudo — os milagres que ele tinha feito mostravam claramente isso.

É muito difícil um ser humano fazer isso! Não dizer um “ai!”. Não reclamar, não xingar, pelos
excessos que eles estavam fazendo. Padecer três dias de suplício sem uma única palavra.
Apesar de nos amar, apesar de ter contado tudo que ouvira do Pai, explicando-nos o que
tantas vezes estava tentando [dizer] como Deus dentro de nós, Jesus resolveu sofrer desta

369
maneira porque logo antes havia dito: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a
vida pelos seus amigos”.

Nós não conseguiríamos entender que ele nos ama tanto só pelo fato de ter contado tudo o
que queria, pois nem entendemos o que ele fala! Não percebemos como ele nos fala
interiormente, não percebemos a presença de Deus para [tomarmos consciência] da
grandiosidade do que ele está explicando, que é exatamente isso! Então ele resolveu sofrer essa
morte horrenda para provar-nos o quanto nos amava, porque talvez dessa maneira nós
compreenderíamos.

Jamais na história humana encontrar-se-á um relato de alguém que sofreu tanto por outra
pessoa, como Jesus na sua crucificação. E com esse heroísmo e essa passividade, como que
dizendo: Isso é a prova de que eu te quero bem. Se você não ouve a minha voz interior, pelo menos
entenda isso aqui.

Jesus então foi acumulando coisa sobre coisa: a revelação mosaica, a encarnação, as coisas
fantásticas que diz no Novo Testamento, que são de uma sublimidade fora do comum e que
são reflexo da coisa interior. Percebemos que, se a pessoa for se espiritualizando e
compreendendo o que está escrito no Novo Testamento, ela percebe exatamente o que Jesus
está nos revelando na sua intimidade, porque ele nos ama e está nos contando tudo que ouviu
do Pai.

Depois, morrendo e ressuscitando, ele conseguiu do Pai que a sua natureza humana pudesse
nos transmitir essa graça, que já vinha do Verbo em sua divindade desde sempre. Ele
conseguiu canalizar isso através da sua humanidade para que, ao receber a graça, tivéssemos
certeza de estarmos como que tocando no Cristo homem ressuscitado. Quando um marido
dá um beijo na esposa, quando alguém abraça uma pessoa querida, está tendo um contato
físico, porém o importante não é o contato físico, mas saber que aquele contato físico é de
uma pessoa humana que lhe quer bem.

Jesus então ressuscitou e está canalizando a sua graça por sua humanidade justamente para
que comecemos a perceber que a sua voz, a sua graça não é um mero efeito da Santíssima
Trindade, é como se o Cristo estivesse dando-nos um abraço. E para provar ainda mais que
ele nos quer bem, se não conseguíamos perceber a profundidade do que ele estava nos
transmitindo, Jesus resolveu padecer tão horrenda morte pois ele mesmo disse que este é o
maior sinal de alguém ama outra pessoa: quando dá a vida [por ela].

A verdadeira natureza desse amor é que ele nos quer comunicar a sua vida, a sua vida divina,
a sua graça e a sua luz. Ele quer nos levar ao Pai. Essa é a verdadeira natureza do amor! Mas a
prova externa é ele ter sido capaz de sofrer dessa maneira. Ele estava morrendo pelos nossos

370
pecados, ele deu a vida por isso e nós temos que reconhecer que isso é uma prova inconteste
do quanto ele nos ama e do quanto ele nos quer, apesar de que não ouvimos.

5. O sacramento da Eucaristia

Ainda assim, para a nossa natureza decaída isso é pouco, porque as pessoas não conseguem
compreender isso apesar de ser tão óbvio. Ademais, para compreendê-lo nós deveríamos ser
capazes de nos deixar mover docilmente pela graça, pois não entendemos apenas pelas nossas
forças. E tudo isso ainda não demonstra experimentalmente este amor com que ele quer se
unir a nós.

Por isso Jesus inventou uma coisa ainda mais sublime, justamente para as pessoas decaídas:
inventou nada mais nada menos do que a Eucaristia. Se apesar de tudo isso as pessoas não
entendessem, elas poderiam experimentá-lo na Eucaristia, ainda que debilmente. De fato, isso
é algo tão extraordinário que a Eucaristia deveria ser uma coisa mais fantástica do que abrir o
Mar Vermelho, se nós compreendêssemos realmente o que está lá.

Jesus então instituiu o sacrifício da missa, no qual nós repetimos o sacrifício que ele fez na
cruz. No sacrifício da cruz Jesus morreu e derramou todo o seu sangue por nós. Ele morreu
na Sexta-feira Santa, quando os judeus estavam imolando o cordeiro pascal. O cordeiro pascal
tinha que ser imolado cortando a sua jugular e derramando todo seu sangue no chão, depois
ele seria assado e comido sem lhe serem quebrados os ossos.

Ao ser crucificado, Jesus derramou todo o seu sangue. Quando já estava morto, atravessaram-
no com um lança e saiu sangue e depois água. Além disso, ao contrário dos outros presos, não
quebraram os seus ossos como os romanos costumavam fazer. Portanto, ele foi imolado
como se fosse o cordeiro pascal.

Quando celebramos a missa, o padre repete a mesma coisa. Primeiro ele consagra o pão, que
se transforma no Corpo de Cristo. Depois ele consagra o vinho, que se transforma no Sangue
de Cristo: de um lado há o pão, que é o Corpo de Cristo, e do outro o cálice, que é o Sangue
de Cristo. O Sangue está totalmente separado do Corpo. Essa consagração em separado
reproduz o derramamento de Sangue do Cristo, que foi total na cruz. É como se estivéssemos
pegando um cordeiro pascal, cortando a sua jugular e separando todo o sangue do seu corpo.

Na missa, a consagração em separado constitui uma repetição incruenta do sacrifício de


Cristo na cruz. Diz-se incruenta porque esse sacrifício na verdade não envolve um
derramamento real do sangue de uma pessoa, não envolve sofrimento físico, mas repete o
sacrifício que foi oferecido outrora na cruz por Cristo.

371
Isso é feito para que, através do sacerdote, Cristo ofereça novamente o mesmo sacrifício que
outrora ofereceu a Deus e, antes de recebermos a Eucaristia, possa lembrar-nos que ele
morreu por nós e que não existe uma prova maior deste amor e de quão grande ele é, do que
isso que ele fez e quer que seja relembrado por todos os tempos, especialmente naquele
momento.

No final da missa é repartida a Eucaristia, onde nós recebemos uma hóstia que se
transformou no Corpo de Cristo. Agora vejamos bem. Não é o ponto de entrar em detalhes
sobre questões menores e perder de vista o conjunto, mas quando o pão, continuando com
as aparências de pão, deixa de ser pão e se transforma no Corpo de Cristo, o que acontece é
que de fato este Corpo de Cristo que está lá não é uma “cópia” do Corpo do Cristo: o pão se
transforma no Corpo do Cristo realmente ressuscitado, não em uma cópia dele.

Em outras palavras: apesar do pão transformar-se no Corpo do Cristo e do vinho


transformar-se no Sangue de Cristo, este Sangue de Cristo não é uma cópia do Sangue do
Cristo ressuscitado que talvez tenha 5 litros e ali haja mais alguns mililitros; ou uma cópia do
Corpo de Cristo, que está em algum lugar, mas ali seja uma reprodução dele. A
transformação do pão é no Corpo de Cristo, que realmente ressuscitou, não é uma cópia a
mais dele; e a transformação do Sangue, mantendo as aparências do vinho, é uma
transformação no Sangue do Cristo realmente ressuscitado, o mesmo Sangue que já existe.

Portanto, na hóstia, ao haver se consumado a transformação do pão no Corpo de Cristo, não


está apenas o Corpo de Cristo, mas por concomitância estão também a sua Alma, o seu
Sangue e a sua Divindade. Porque justamente ele se transformou no Corpo de Cristo, que já
existe, e esse Corpo que já existe não está separado do seu Sangue nem da sua Alma, nem da
sua Divindade. Então, ao comungarmos o Corpo ou o Sangue de Cristo, estamos na verdade
recebendo o Cristo inteiro: Corpo, Sangue, Alma e Divindade.

E o mistério afirma que, uma vez consagrada a hóstia, essa presença sacramental do Cristo
continua enquanto as aparências do pão não se corrompem. Isso significa que, se nós
pegássemos a hóstia consagrada e colocássemos numa água até ela se dissolver completamente
e não ter mais aparências de pão, não estaria mais lá presente o Cristo. E quando comemos a
hóstia consagrada, quando o suco gástrico corrompe definitivamente as aparências do pão, o
Cristo não está mais lá sacramentalmente. Portanto, o Cristo está presente sacramentalmente
após a comunhão por volta de uns cinco, dez minutos, conforme a textura do pão e o próprio
corpo de cada um.

Neste momento em que recebemos a comunhão o Cristo não está presente apenas pela sua
graça santificante, que está em nós quando estamos em graça. Além disso ele também está
presente sacramentalmente em Corpo, Sangue, Alma e Divindade, durante
aproximadamente dez minutos. E por que ocorre isso? É porque, naqueles dez minutos em

372
que as espécies ainda não se corromperam, Jesus quer que experimentemos um amor de
união com ele. É este o motivo porque nós comungamos.

Na Suma Teológica Tomás de Aquino diz que a ação e o efeito próprio da Eucaristia é levar
o amor a um amor de união. Ao comungarmos, Jesus quer que entendamos que ele está bem
intimamente conosco, mais ainda do que já está através da graça, da sua voz e da sua presença
com que nos fala habitualmente, principalmente quando estamos em graça. Ele quer que
creiamos nisso, e o [simples ato de] crer, já é um efeito da sua graça, sem a qual é impossível
crer. Ao crermos nisso, ele quer que procuremos amá-lo justamente porque nós o cremos.
[Vivida assim] a Eucaristia produz uma espécie de refeição espiritual de amor em nós durante
alguns minutos.

Como no evangelho fala-se daquela mulher que padecia fluxo de sangue e que por causa da
sua fé tocou no Cristo e uma força saiu de dentro dele, o fantástico desta refeição espiritual é
que, se nos aproximarmos com fé e devoção da Eucaristia como se estivéssemos
aproximando-nos do próprio Cristo vivo (o que de fato está ocorrendo fisicamente,
sacramentalmente), uma força vai sair de lá, dessa vez não para curar uma doença, mas para
levar o nosso amor ao ato, para que tenhamos a oportunidade de experimentar
sobrenaturalmente o que é o amor.

A Eucaristia então é feita para que mesmo os principiantes na vida espiritual, que ainda não
conseguem claramente ouvir a voz de Deus, possam experimentar o amor que Cristo tem por
eles. Em virtude dessa presença real de Cristo na Eucaristia, se nos aproximarmos dela pela fé
e o amor, ela nos ajuda a amá-lo de uma maneira mais profunda, que pouco a pouco muito
facilmente vai se revelando como uma experiência mais profunda do que aquela que
alcançaríamos apenas através da oração. Assim, aos poucos não há como duvidarmos
interiormente que de fato alguma coisa sobrenatural estava ali, além da própria graça
ordinária.

Cabe, pois, a pergunta, que já é possível de entrever: Por que ele quer que nós façamos isso?
Por que ele quer que nós tenhamos essa experiência? Porque, ao fazer isso, nós estamos
juntando todos os elementos da vida espiritual de uma maneira experimental.

Jesus sabia que, apesar da revelação de Moisés, apesar de ter vindo, ter ressuscitado, ter
garantido que a partir de então quando crêssemos estaríamos em contato com ele fisicamente
em sua humanidade; apesar de que se nós entendêssemos que ele morreu por nós, teríamos
uma prova de amor; que ele vai nos iluminando por sua graça e vai nos mostrando a vida
interior da Santíssima Trindade, que vai se acentuando e que, na medida em que isso vai
acontecendo, nós percebemos que é ele mesmo; enfim, ele percebeu que para os que estariam
começando, até isso pareceria muita teoria e as pessoas não iriam enxergar claramente se é
apenas uma doutrina ou se é realmente o reflexo da realidade que está ocorrendo.

373
Então para que pudéssemos experimentar isso desde o início, ele instituiu a Eucaristia. Trata-
se de algo tão extraordinário que, na verdade, Jesus instituiu a Igreja basicamente para que
nós pudéssemos comungar. Isso é tão necessário, isso é o suprassumo de uma vontade de nos
chamar à comunhão com ele. Consideremos o quanto Deus nos ama e quer que nos unamos
a ele, para bolar uma coisa dessa maneira! E ainda por cima, para que pudéssemos comungar,
ele criou a Igreja.

Na verdade, se não fosse sido criada a Eucaristia, talvez não precisasse da Igreja, talvez teria
outra maneira. A Igreja foi montada por Cristo basicamente para que as pessoas pudessem
ter uma experiência íntima de comunhão com Deus antes que conseguissem perceber isso na
própria vida espiritual, exatamente por causa da miséria em que o pecado nos colocou.

Deus fala conosco, como ele falaria com as pedras; isso é uma realidade, mas nós não
percebemos. Quando dizemos que ele fala conosco, queremos dizer que ele se comunica
conosco se tivermos um pouquinho de sensibilidade, principalmente se começarmos a viver
a vida cristã que ele realmente nos inspira, nos ilumina, nos conduz. Na medida em que
vamos nos desenvolvendo espiritualmente, isso fica cada vez mais evidente.

Os Santos muito elevados que estavam lá longe na vida espiritual até falavam com Cristo
quase como se fosse uma conversa pessoal ou até mais. Mas no começo da vida espiritual nós
percebemos que ele está constantemente nos enviando torpedos SMS, e-mails, de todas as
maneiras, porém a melhor maneira de perceber isso é na Eucaristia. Aliás ela não é só a melhor
maneira, mas inclusive uma maneira fácil de conseguirmos quase que espontaneamente
executar todos os elementos da vida interior sem precisar de entender tanta metafísica e tanta
teologia.

Justamente a Eucaristia é tão extraordinária nesse ponto, que uma das definições mais
extraordinárias do seu papel foi dada recentemente na segunda metade do século XX pela
Igreja pós-conciliar.

O Papa Bento XVI visitou uma casa onde ele tinha morado durante o Concílio Vaticano II,
que foi entre 1962-1965. Nessa época ele era padre e assessor teológico do Concílio. Quando
voltou a visitar essa casa ele estava lembrando que naquela época havia uma discussão entre
os teólogos franceses e os teólogos alemães, que na época ele não havia entendido. A discussão
consistia no seguinte: Qual é a finalidade da evangelização? Uns teólogos diziam que a
finalidade da evangelização era anunciar a palavra e outros diziam que a finalidade era
construir a Igreja. Os alemães diziam uma coisa e os franceses outra, não sabemos precisar
qual era a posição de cada um.

374
Ele disse que acompanhou a discussão toda, que não chegou a nada e ele também não
entendia o porquê dessa discussão. Quando terminou o Concílio Vaticano II, o Papa Paulo
VI organizou um sínodo para discutir o tema da evangelização. Sem fazer referência a essa
controvérsia, Paulo VI a dirimiu e colocou a resposta num documento chamado Evangelii
Nuntiandi.

Este documento diz que a finalidade da evangelização não é anunciar a palavra, mas construir
a Igreja. Só que ele foi além da discussão inicial e explicou o porquê. Disse que a finalidade da
evangelização é construir a Igreja porque, através da construção da Igreja, é que as pessoas
podem aproximar-se da Eucaristia. Então na verdade a finalidade da evangelização é construir
a Igreja para poder oferecer a Eucaristia a todos os homens que se tornarem católicos.

A partir disso já podemos ver o porquê: na verdade, a maior expressão do amor que Jesus tem
por nós, a maior expressão da vontade que Jesus tem de que experimentemos a proximidade
com ele é justamente a Eucaristia. Na prática, nós homens estamos envolvidos nos vícios e
nas paixões. E mesmo aquelas pessoas que não têm pecados graves são passionais, levam uma
vida de Marta, não têm a sensibilidade para perceber o quanto Deus está querendo
comunicar-se conosco o tempo todo. Por isso, sem a Eucaristia nós não teríamos como
experimentar essa realidade antecipadamente e ter uma “bússola” para nos orientar. É tudo
muito teórico, tudo muito difícil, tudo muito metafísico. Tudo isso que estamos falando é
quase ininteligível. Ou podemos entender apenas do ponto de vista especulativo, mas aquilo
significa pouco porque nós não percebemos realmente isso como uma realidade em nós.

Portanto, a Eucaristia é o contato mais íntimo, real e experimental que podemos ter com
Cristo. Se nos aproximamos dela com verdadeiro fervor e verdadeira fé, nós percebemos que
uma força de Deus age sobre nós e é exatamente do modo como ela deve agir. Ao fazermos
isso nós nos comportamos exatamente do modo como Deus quer que nos comportemos,
servindo de referência para nossa vida interior. A nossa vida interior pode ser modelada em
termos de uma referência concreta.

6. Observações sobre o sacramento da Eucaristia

Nós falamos dos primeiros mandamentos, mas agora estamos falando que de uma certa
maneira isso acaba concretizando-se totalmente na Eucaristia, para depois acabar
concretizando-se novamente na nossa vida interior. Como isso é muito importante e a
experiência de comungar é decisiva para a vida interior (desde que construamos o restante da
vida interior), gostaríamos de deixar aqui algumas referências importantes.

A) Leituras recomendadas. — Onde podemos encontrar uma explicação da missa


enquanto sacrifício, ou seja, o que significa a missa enquanto sacrifício? No site
www.cristianismo.org.br existe um texto que se chama “A liturgia da missa segundo o

375
Concílio Vaticano II”. É um livro que foi escrito até a metade; a segunda metade nunca foi
escrita e talvez nunca o será. Essa primeira metade, porém, é um estudo histórico do
desenvolvimento da missa até o Concílio Vaticano II, onde explica basicamente em que
sentido ela é um sacrifício. Vai explicar algumas coisas que estávamos falando aqui, mas de
uma maneira mais profunda. Vale a pena que leiamos isso.

Sobre a Eucaristia em si e a atitude como devemos recebê-la, no site www.cristianismo.org.br


temos quatro textos de Santo Tomás de Aquino, que é muito importante que ler e meditar
constantemente. O primeiro chama-se “Os efeitos da Eucaristia”, que é tirado da Suma
Teológica. Depois há orações em forma de poesias escritas por Tomás de Aquino, poesias à
Eucaristia, que são: Adoro te Devote, a Oração Antes da Comunhão e a Oração Depois da
Comunhão. Esses quatro textos são simplesmente fora do comum e é importante que os
conheçamos.

Depois, para entender a Eucaristia em si tanto quanto é possível, temos o “Tratado da


Eucaristia” que está dentro da Suma Teológica, donde saiu o texto “Os efeitos da Eucaristia”,
que Jesus acabou ele próprio elogiando Tomás de Aquino por ter escrito. Diz a história que
Tomás de Aquino estava escrevendo a Suma Teológica no final da vida. Quando terminou
o Tratado da Eucaristia, uma noite ele foi rezar e entrou em êxtase, levitou e o frade que estava
escondido viu o crucifixo inclinar-se diante de Tomás de Aquino e elogiá-lo: “Tomás você
escreveu muito bem a meu respeito. O que eu posso lhe dar em recompensa?”. Aí Tomás de
Aquino disse que nada, pois só queria o próprio Deus. Depois Deus lhe deu a recompensa
alguns dias depois com um conhecimento divino extraordinário, sobre o qual porém ele o
proibiu de escrever sequer uma linha. Por isso a Suma Teológica ficou incompleta. Ela
terminou algumas páginas depois do Tratado da Eucaristia.

E existe um outro livro que é difícil encontrar, mas valeria a pena que escaneássemos e
disponibilizássemos a todos, que é um tratado da Eucaristia que alarga a Suma Teológica
chamado “Tratado da Santíssima Eucaristia” de um padre espanhol dos anos 50 chamado
Gregório Alastruey.

B) Dicas práticas. — O assunto da Eucaristia é tão profundo e importante que merece ser
refletido desse modo por nós. Concretamente, quando formos nos confessar, vamos começar
uma vida cristã. O que podemos fazer? Com base nisso, podemos ler o que está na “Liturgia
da missa segundo Concílio Vaticano II” para entendermos o que é a missa. Além disso,
podemos ler o que está escrito nos “Efeitos da Eucaristia” e nas orações de Santo Tomás, que
ensinam como nos aproximamos da Sagrada Eucaristia.

Procuremos comungar com a maior frequência possível, porém não nos preocupemos que
seja todo dia, mas principalmente que seja da forma mais espetacular possível. Depois
de nos confessarmos [pela primeira vez], devemos procurar confessar regularmente a cada

376
dois meses, procurar assistir a missa ou receber a Eucaristia com uma frequência razoável. Se
possível razoavelmente de um modo cotidiano, mas o mais importante é que, quando
recebermos a Eucaristia, seja de uma maneira espetacular.

Devemos nos preparar antes de ir à Igreja, meditar na grandiosidade do que vai ocorrer, tentar
relembrar dessas coisas que estávamos falando aqui. Tentemos relembrar o quanto na
Eucaristia Jesus está tentando manifestar-se a nós mesmos naqueles dez minutos para poder
facilitar a nossa vida interior, para permitir que experimentemos realmente a sua presença e
para ensinar-nos a amá-lo. E quando recebermos a Eucaristia, devemos nos recolher
profundamente num canto da Igreja e procurar amá-lo o tanto quanto possível, crendo
profundamente que estamos numa intimidade com ele, inclusive maior do que aquela que é
possível na própria oração, porque na Eucaristia Jesus não está só presente pela graça, mas
também está sacramentalmente.

Depois, se um dia pudermos adquirir esse livro do Alastruey, podemos ir aprofundando isso
porque é uma coisa absolutamente extraordinária. Enquanto não conseguimos aquele livro,
podemos estudar sobre o assunto na Suma Teológica. Mas não esqueçamos da experiência
que tivemos na Eucaristia. Procuremos todos os dias, durante um espaço equivalente a uns
dez minutos, procurar rezar exatamente como comungamos. Não devemos tentar começar
com duas horas de oração, apesar de que isso seria a sétima parte do tempo útil que temos.
Tentemos algumas vezes ao dia separar cerca de dez minutos de oração (o tempo de uma
comunhão) para relacionarmo-nos com Cristo daquele modo que aprendemos na Eucaristia.

Saibamos que, no momento em que cremos, em que contemplamos uma verdade


sobrenatural, de fato a graça nos está iluminando e a própria Santíssima Trindade que mora
em nós está tentando comunicar-nos algo, está tentando mostrar-nos aquilo que estamos
tentando ver. E depois da ressurreição do Cristo, não é só a Santíssima Trindade: aquela graça
que nos permite fazer isso vem da própria humanidade ressuscitada do Cristo, é o Cristo
ressuscitado.

Então, quando cremos, se naqueles dez minutos ao invés da presença eucarística Deus estiver
presente pela fé, na verdade é o Cristo ressuscitado que está lá junto e devemos procurar amá-
lo como se ele estivesse presente eucaristicamente. Ele não está [eucaristicamente] e pela graça
através da sua humanidade; não daquele modo integral da Eucaristia, mas não tem problema
já que é uma coisa semelhante. Devemos tentar reproduzir a experiência da Eucaristia
naqueles dez minutos. Não tentemos rezar duas horas, mas rezar naqueles dez minutos como
se tivéssemos recebido a Eucaristia, sem deixar de aprofundar a experiência dela de dia para
dia.

Peçamos a graça da fé habitualmente, persistentemente, com o desejo sincero e profundo de


recebê-la e a certeza de fé de que Deus concede realmente essa graça a quem lhe pede, e no

377
restante da sétima parte do tempo útil procuremos estudar os mistérios da fé, para
transformarmos a vida à luz desse conhecimento.

Meditemos nas Sagradas Escrituras, não para alcançar erudição — pelo menos não nesta
sétima parte do tempo útil, mas para experimentarmos o sentido profundo delas. Ao fazer
isso, ao buscar isso, estamos na realidade convidando Deus a enviar-nos sua graça para
iluminar-nos e inclinar nosso coração a abraçar essas realidades.

Comecemos pelo Novo Testamento diariamente, tentando penetrar exatamente,


precisamente no sentido das coisas que estão sendo ditas. Quando percebermos que algo tem
um sentido maior, devemos parar e refletir mais de uma vez e voltar no dia seguinte para
examinar melhor. E assim como se pede a graça da fé, peçamos a Deus que revele o sentido
[daquilo que meditamos].

As pessoas hoje não têm mais ideia (a não ser que tenham um contato com os textos latinos
da antiguidade) de quanto os cristãos do primeiro milênio tinham uma verdadeira paixão por
essa prática: como eles buscavam ardentemente uma compreensão do sentido das Sagradas
Escrituras. Para eles, quando Jesus dizia “Batei e abrir-se-vos-á” ele estava se referindo
justamente ao sentido das Sagradas Escrituras, porque na verdade ao fazer isso nós estamos
pedindo que o próprio Deus se aproxime de nós para, nesse diálogo, mostrar-nos esse sentido
e nós começarmos a conhecer não só o sentido, mas ele próprio que age dentro de nós.

Meditemos, pois, nas Sagradas Escrituras de tal modo que possamos sentir de modo cada vez
mais fino e claro o gosto sobrenatural do trabalho de Deus em nós. Podemos meditar não só
nas Sagradas Escrituras, mas também nas vidas dos Santos, pois elas mostram a ação da graça
de Deus em nós, mostram como a vida da graça se desenvolve em nós. Podemos meditar
também nos livros dos Santos Padres em geral. Nós recomendamos de modo especial os de
Santo Agostinho, os de Hugo e Ricardo de São Vitor e os de Santo Tomás de Aquino.

Santo Tomás de Aquino, para poder ser compreendido, é necessária uma base filosófica. Essa
base filosófica pode ser encontrada em várias fontes. Nós citamos que existe um DVD
contendo onze textos em português que, se forem estudados na sequência, fornecem uma
base bastante razoável da filosofia necessária para compreender Tomás de Aquino. Feito isso,
se tivermos um conhecimento razoável das Escrituras, podemos passar ao estudo da Suma
Teológica, que é a principal obra de Tomás de Aquino.

Seria imensamente importante que pudéssemos ter lido a Suma Teológica do princípio ao
fim, linha a linha, de preferência já no começo de nossas vidas para que, ao longo dela,
pudéssemos refletir e amadurecer seu conteúdo durante os anos, tendo então uma base não
só para compreendermos os princípios de nossa santificação nos seus fundamentos, mas
também condições de poder ensiná-la em profundidade a outras pessoas. De qualquer

378
maneira tudo isso é um reverbério do que está nas Sagradas Escrituras. O principal são as
Sagradas Escrituras, os demais são consequências.

Quando percebemos que a graça de Deus age em nós, que ele mora e tem intimidade conosco,
depois de ter feito tudo isso, quando se torna algo habitual, devemos reconhecer então que
esse que fala conosco, esse que se comunica conosco, esse que age em nós é o Cristo, é o Cristo
ressuscitado.

Depois da ressurreição do Cristo, depois que ele disse: “Todo poder me foi dado no céu e na
terra”, e soprando sobre os apóstolos, disse: “Recebei o Espírito Santo”, esta graça que nos é
concedida e que age em nós vem até nós pelo contato íntimo com Cristo ressuscitado em sua
humanidade, que nos vem pelo contato da fé. A partir daí, quando essa intimidade e esse
conhecimento do Cristo ressuscitado se tornar uma realidade em nós, o que temos a fazer é
estender aqueles dez minutos de oração até que eles ocupem a sétima parte do nosso tempo
útil, amando o Cristo, como nos prescreve o terceiro mandamento.

Quando estivermos íntimos, quando já o conhecermos e percebermos através da Eucaristia e


da prática da fé que ele age dentro de nós, temos que estender esses dez minutos de oração
para amá-lo, a fim de que se cumpra aquilo que está escrito nas Sagradas Escrituras. Para
atravessar a porta estreita que existe logo após os primórdios da vida espiritual é necessário
que empreguemos cerca da sétima parte do nosso tempo útil em uma comunhão com Deus,
que seja uma união de conhecimento e amor: o conhecimento que vem pela fé e o amor que é
a caridade, tão íntimo e vivo como a união entre Cristo e o Pai.

Isso cumpre exatamente o que está escrito no evangelho de São João: “Permanecei no meu
amor — diz Cristo. Quem permanece no meu amor, meu Pai o amará”. Aqui este “meu Pai”
significa a Santíssima Trindade, porque as três pessoas são inseparáveis e onde está o Pai, está
o Filho e também o Espírito Santo, já que não são três deuses, mas um só Deus. Nesse sentido
é que nós podemos entender: “Quem permanece no meu amor, meu Pai o amará e nós
viremos até ele e a ele nos manifestaremos”.

Outra coisa. São Paulo diz que quando nos unimos a Cristo pelas virtudes teologais (fé,
esperança e caridade) deste modo que estamos dizendo, não apenas nossa vida está
“escondida com Cristo em Deus” (é o que São Paulo diz na epístola aos Colossenses), mas
também somos “concidadãos e membros da família de Deus”, participantes da casa de Deus,
“domésticos da família de Deus” (isso está na epístola aos Efésios).

Quando estamos em contato com Cristo, na verdade isso significa que estamos não só em
contato com Cristo, mas também com todos aqueles que estão unidos a ele. Quando nos
unimos a Cristo, unimo-nos também a toda a sua família, formamos com ele “um templo de
pedras vivas” (estas são palavras de São Pedro). Não somente nós, mas nós em união com

379
todas as demais pedras vivas que estão unidas a ele. Somos, desta maneira, “concidadãos dos
Santos” (estas são palavras de São Paulo).

Dentre estas pedras vivas, pela sua proximidade com Cristo, têm um lugar especial a Virgem
Maria, a Mãe de Deus. Com razão nós cremos que, entre todos os homens, ela é a criatura
mais abençoada que já existiu em toda a criação. Cultivar uma amizade com ela pode ajudar-
nos a compreender mais rapidamente o próprio Cristo. Ela tem sido chamada de Mãe da
Igreja e de Auxiliadora dos Cristãos.

380
Aula 24 – ORIENTAÇÕES FINAIS

Índice
1. Da necessidade do firme propósito
2. Da força divina que vem em auxílio do propósito humano
3. Como acessar essa força que vem de Deus
4. Requisitos essenciais para iniciar a vida espiritual
5. A conversão operada pela fé
6. O papel da virtude da esperança
7. Conclusão
8. Perguntas: O amor está associado ao primeiro, ao segundo ou ao terceiro mandamento? A
fé e a caridade estão associadas a qual mandamento?

1. Da necessidade do firme propósito

Queríamos [dar] algumas recomendações relacionadas às últimas aulas. A primeira coisa é


que, ao fazer a primeira confissão, precisamos ter a certeza de ter feito um propósito
firmíssimo de nunca mais cometer um pecado grave. Devemos nos concentrar
principalmente naquelas coisas que mais costumam fazer cair as pessoas, ao mesmo tempo
que podem transformar mais rapidamente o nosso ser: a castidade e o respeito ao próximo.
Nestas coisas temos que ser rigorosos.

Procuremos, pois, com todo empenho e toda força: i) não cometer mais pecados contra a
castidade e cultivar a pureza ao grau máximo; ii) decidirmo-nos a não pecar contra a castidade
nem por pensamento, nem por desejo, nem atos; iii) fugir de toda pornografia e das ocasiões
desses pecados. E o respeito ao próximo tem que ser radical e profundo como nos textos de
Santo Afonso de Ligório que se encontram traduzidos na página do site
www.cristianismo.org.br na internet, os textos que falam sobre o amor ao inimigo, que neste
ponto são os mais lúcidos, exatos e precisos que conhecemos em toda a tradição cristã.

Jamais partir para o desrespeito ao próximo. Não cultivar amargura nem ódio por ninguém,
ou pensar na possibilidade de não perdoar alguma pessoa por qualquer motivo que seja. E
temos que tomar um cuidado muito especial quando somos filhos e vivemos com os pais: de
respeitá-los mesmo que eles nos desrespeitem, jamais levantar a voz. O bom é que tenhamos
pais cristãos que também nos respeitem, mas se tivermos pais que não se importam com essas
coisas, isso acaba entrando dentro daquela palavra do apóstolo de que “Tudo concorre para
o bem dos que amam a Deus”: nossos pais vão treinar a nossa paciência.

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Quem é casado deve fazer isso com a esposa ou com o marido, tendo por ele (a) um amor e
carinho absolutamente descomunais e sequer imaginar a possibilidade de uma briga.
Devemos procurar amá-la (lo) como Cristo amou a Igreja como se ele (a) fosse um
sacramento vivo, para que possamos aprender a viver na presença do amor de Deus
constantemente, usando o [relacionamento] com o cônjuge como se fosse um treinamento.
Isso nos ajuda a aprender a respeitar o próximo de uma maneira absolutamente profunda,
pouco a pouco vamos estendendo isso a outras pessoas.

2. Da força divina que vem em auxílio do propósito humano

Portanto, quanto à castidade e o respeito ao próximo temos que fazer um esforço para nos
modificarmos até tornar-se uma segunda natureza. Para isso é muito importante o propósito
que fazemos na confissão, mas uma coisa importantíssima é que isso não basta. Temos que
aprender a viver com o poder de Deus, com a força de Deus. A que estamos nos referindo?
Falamos concretamente de uma frase que está na epístola aos Romanos 1, 17: “O evangelho
é uma força de Deus que age sobre aqueles que creem”.

Significa que precisamos saber nos transformar não usando apenas a nossa força, mas uma
força que vem do alto. Nós percebemos que essa força existe em nós no momento em que
cremos. Não é possível crer em um determinado momento concretamente (não por ter uma
crença habitual) sem que uma luz de Deus esteja nos iluminando. Se conseguimos crer
efetivamente em ato, isso não é possível fazer sem que uma luz de Deus nos esteja iluminando.
Esta "luz de Deus é a tal “força” de que São Paulo fala.

Essa força nos transforma e nos dá as condições de vencer as tentações pecaminosas e as más
inclinações. Ela é uma força que se soma às forças da nossa natureza, que são mais débeis.
Então temos que aprender a conviver com esta força que vem do alto. Temos que pedir
verdadeiramente a graça da fé, motivados por um desejo de experimentá-la em
funcionamento. É ela que nos dá a força para vencermos as más inclinações que cultivamos
durante a vida.

Se esquecermos disso, só o propósito não funciona. Iremos perceber que, quando nos
confessamos e confessamos bem, uma força semelhante age sobre nós. Essa força vem pela fé,
porque quando nos confessamos já estamos fazendo um ato de fé. De fato, não iríamos
confessar caso não crêssemos que aquilo é algo sobrenatural, pois do contrário estaríamos
simplesmente nos acusando de nossos pecados para uma pessoa ouvir; porém estamos lá
aproximando-nos de um sacramento e crendo que ele é instituído por Cristo e que quem está
perdoando-nos é o Cristo. Então, por menos explícito que seja o nosso ato de fé, aquilo é um
ato de fé. No entanto, iremos perceber que do sacramento da confissão vem uma força
suplementar, além daquela que recebemos quando pedimos a graça de crer.

382
O sacramento da confissão não existe só para perdoar o pecado e infundir a graça, ele dá
realmente uma força para resistirmos mais facilmente ao pecado. Não percebemos isso como
se fosse um raio que cai em nós na hora da confissão. No momento da confissão não
percebemos nada, mas logo depois que saímos de lá, quando voltamos para a vida normal,
percebemos que alguma força agiu em nós e que [adquirimos] uma certa resistência ao
pecado que não tínhamos antes.

Em nenhum momento isso acontece como se fosse uma descarga elétrica, mas é possível
percebê-lo. E mais ainda se aproximarmo-nos da confissão com uma fé explícita como a
daquela mulher que se aproximara de Jesus porque padecia de um fluxo de sangue. Ela cria
que, se encostasse em Jesus, ficaria curada. E de fato ela ficou curada, mas não por sua própria
sugestão, pois Jesus mesmo percebeu que uma força saíra de si. Se fosse autossugestão ela
ficaria curada e Jesus não teria percebido nada.

Alguém pode acreditar que, se colocar a mão num poste, ficará bom. Até certo ponto, pode
até ser que se o sujeito acreditar muito nisso, ele se sugestione e tenha alguma melhora. Mas,
pegando o poste e fazendo uma análise no laboratório, o sujeito verá que não aconteceu nada
no poste, foi só sugestão dele. No caso de Jesus aconteceu, pois ele mesmo sentiu a força.
Quando cremos, acontece isso. E quando nos aproximamos de um sacramento como essa
mulher se aproximou de Jesus, acontece isso! No sacramento da confissão nós percebemos
uma força especial para ficarmos mais fortes contra o pecado, para ficarmos mais firmes no
nosso propósito: nosso propósito como que se sobrenaturaliza e nós percebemos isso
retrospectivamente.

No sacramento da Eucaristia o que percebemos é que, aproximando-nos dele com fé e


devoção, a presença do [sacramental do Cristo] ajuda-nos a levar o amor ao ato, ajuda-nos a
aprender a amar, como se fosse uma força mesmo. Inclusive é este o efeito próprio da
Eucaristia que Santo Tomás de Aquino descreve na Suma Teológica, que está naquele texto
“Os efeitos da Eucaristia” que recomendamos no site www.cristianismo.org.br. O efeito da
Eucaristia é levar o amor ao ato, não só pela força da graça (que já pode estar agindo em nós),
não só pelo nosso desejo de amar o Cristo, mas porque uma força saiu de lá. E essa força vem
principalmente pela fé, quando cremos.

Com tudo isso estamos querendo ensinar o “lugar” donde tiraremos a força para nos
modificar, para vencer o pecado. Tem que fazer um propósito firme: vamos romper com o
pecado grave de uma vez para sempre. Mas esse propósito, por mais forte que seja (e tem que
ser forte e decidido), não vai ter força suficiente para nos manter firmes o tempo todo e muito
menos para crescermos na santidade como deveríamos. Porque se fosse assim, tem gente que
entra no Partido Comunista e tem uma força de vontade fora do comum. Eles são capazes de

383
ser mártires, de dar a vida pelo partido e acreditam no Marx, no Lênin, no Che Guevarra, mas
nem por isso [acontece neles] aquela transformação que vemos nos Santos.

Sendo assim, a força de vontade humana não é suficiente para isso. Precisamos engatar com
Deus, e engatar com Deus não é difícil porque Deus não está longe. Ele sustenta o nosso ser,
assim como sustenta o ser da pedra. Acontece que a pedra, apesar de estar sendo sustentada
por Deus, não tem espírito, não tem alma, não tem estrutura ontológica para ouvir a voz de
Deus. Nós seres humanos temos, então Deus fala conosco, Deus se comunica conosco. Deus
quer chamar-nos a participar da sua graça, o que ele faria inclusive com uma pedra se a pedra
tivesse estrutura para ouvi-lo, mas como ela não tem, Deus se limita a guardar a sua existência
para o bem das outras criaturas.

Conosco ele não se limita a guardar a nossa existência, ele quer comunicar-se. E ele já está
fazendo isso há muito tempo com cada um de nós, a menos talvez, que já tenhamos sido tão
podres que Deus não esteja falando mais. Mas não sabemos se haveria alguém que Deus
tivesse abandonado a este ponto! De qualquer maneira não é o teu caso, porque senão nós
não estaríamos conversando sobre essas coisas e você não estaria ouvindo. Se você está
prestando atenção e está achando bom, se tem alguma afinidade com isso, só pode ser porque
de alguma maneira Deus está querendo comunicar-se contigo. É desta comunicação de Deus
que vem essa força.

3. Como acessar essa força que vem de Deus

Como nós acessamos isso para abandonarmos o pecado em primeiro lugar? Nós não somos
uma pedra, nós temos como ouvi-lo, mas não o ouvimos por causa dos nossos pecados, do
desregramento das nossas paixões, do modo desenfreado com que nos dedicamos às coisas
mundanas, em razão da materialidade em que caímos. Para podermos sair disso não basta só
o propósito, é preciso que Deus nos mande a sua graça.

Isso nos vem, em primeiro lugar, pedindo com fé e constantemente que queremos mais fé,
que queremos viver da fé, que queremos experimentar a graça da fé. Quando
experimentamos a graça da fé, na verdade naquele momento Deus está tentando se
comunicar do jeito como ele é capaz de nos inspirar: ele está ajudando a nossa vontade, está
iluminando a inteligência, está tentando dar-nos clareza e está nos comunicando esta força
que irá diminuir a força do pecado [em nós].

E isso é visível. O problema é que uma boa parte dos cristãos esquece (ou não sabia disso) e
para de tentar acessar o próprio Deus que quer ajudar-nos e começa a cair novamente no
pecado. Então não podemos parar de pedir a graça da fé. Não nominalmente! Devemos pedir
com fé, de modo que esse pedido seja um próprio exercício de fé, e com o desejo verdadeiro
de querer experimentar já a graça da fé. Ao fazer isso, o próprio Deus vai nos orientando a ter

384
sensibilidade para a sua graça e para acolher essa graça que nos fortalece. Quem fizer isso, verá
que vai se tornando muito mais fácil resistir ao pecado.

Esta força também se exerce quando nos confessamos. Porém para que ela seja mais clara,
além dos requisitos da confissão (um bom exame de consciência, um bom propósito, ter
certeza de que estamos arrependidos, acusarmo-nos de uma maneira clara, sem mentiras)
devemos nos preparar para aproximarmo-nos da confissão como aquela mulher que padecia
fluxo de sangue: crendo que realmente há um padre lá nos ouvindo, mas é Jesus que está lá,
é aquele Jesus em que a aquela mulher tocou. Ela o tocou pela fé e fisicamente, mas se
tocarmos nele pela fé, uma força vai sair de lá; não para curar nossa doença física nesse caso,
mas para curar a fraqueza diante do pecado.

Aproximemo-nos, pois, da confissão sobrenaturalmente como se estivéssemos indo falar com


o Cristo. Estamos falando com um padre, mas no momento em que recebermos a absolvição
do sacerdote, é o próprio Cristo que está usando dele — desde que seja um sacerdote
validamente consagrado, o que é caso normalmente, pois os padres são validamente
consagrados. Obviamente isso não aconteceria se fôssemos contar nossos podres a um
psicoterapeuta.

Apesar de diferente, naquele momento acontece conosco algo semelhante com aquilo que
recebemos quando cremos. Em parte porque a confissão já é um ato de fé sobrenatural, em
parte porque aquilo tem mais: não é só o exercício da fé sobrenatural, aquilo é um sacramento
através do qual a humanidade de Cristo age. E na Eucaristia isso é mais abundante ainda.
Temos aí os elementos donde tirar esses recursos, mas não podemos esquecer de pedir através
da oração.

Na medida em que formos percebendo com o correr dos dias, que realmente isso é como se
fosse um milagre, pois a oração dá uma força para vencermos a nós mesmos que não vem de
nós; quando percebermos que Deus está agindo, devemos nos aproximar dessa mesma força
através da meditação da Sagrada Escritura e daqueles textos de pessoas que, por conseguirem
ouvir o sentido das escrituras, são como um revérbero delas: de um modo geral, os Santos
Padres, os doutores da Igreja, especialmente Santo Agostinho, Tomás de Aquino, Hugo e
Ricardo de São Vitor. E também um que é especialíssimo entre todos, que escreveu só oito
cartas (que estão no site do cristianismo), que é Santo Inácio de Antioquia, alguém que
conviveu intimamente, pessoalmente com a Virgem Maria e São João evangelista. Suas cartas
são quase uma extensão das Sagradas Escrituras. Contudo, o objeto por excelência desta
meditação são as Sagradas Escrituras.

Devemos procurar separar uma parte do tempo útil para meditar nas Sagradas Escrituras, mas
tentando ouvir a voz de Deus que fala dentro de nós quando lemos as escrituras. Porque o
verdadeiro conteúdo das Sagradas Escrituras, principalmente o Novo Testamento, é idêntico

385
àquilo que Deus está querendo nos comunicar. Então se for lendo, meditando naquilo e
tentando compreender o verdadeiro sentido, pouco a pouco começaremos a perceber que
Deus está inspirando-nos interiormente para entendermos aquelas mesmas coisas.

Isso pode ser visto no Novo Testamento. Na primeira carta aos Tessalonicenses 2, 13, São
Paulo fala aos tessalonicenses: “É por essa razão que agradecemos a Deus sem cessar, porque vós
acolhestes a palavra que vos pregamos”. Ele agradece a Deus porque eles prestaram atenção e
acolheram. Quando se usa estas palavras “prestaram atenção e acolheram” significa que eles
ouviram, mas depois foram meditando. Eles não esqueceram, mas foram relembrando para
tentar compreender bem. Aí ele diz: “Não como palavra humana, mas como na verdade é,
palavra de Deus, que está produzindo efeito em vós”. Então, ao ouvirem a palavra de São Paulo,
eles ouviram alguma coisa que estava tentando contar em palavras exatamente o que Deus
estava tentando inspirar-lhes. A revelação externa é uma cópia do que Deus quer nos passar
pessoalmente.

Por isso São Paulo diz: Eu fico feliz por vocês terem compreendido que o que eu preguei não é
uma palavra humana, mas a palavra de Deus que está produzindo efeito em vocês. É
exatamente o que ocorre quando estamos pedindo a graça da fé. Estamos pedindo a graça da
fé, e quando Deus nos concede esta graça e está ele mesmo movendo nosso coração e nossa
inteligência para crermos, ele está produzindo um efeito dentro de nós e é assim que
abandonamos o pecado.

Aqui São Paulo está dizendo a mesma coisa: Quando vocês ouviram a palavra que falei a vocês,
vocês perceberam que era palavra de Deus, vocês começaram a ouvir a palavra interior que
estava dentro de vocês. Então vocês na verdade começaram a ficar mais sensíveis a perceber o
Espírito Santo que fala conosco, ou Jesus, o Cristo.

Lembre-se que dissemos que, antes da encarnação do Verbo, era a Santíssima Trindade que
tentava produzir um efeito em nós para comunicar-se conosco. Quando esse efeito é sobre a
vontade, nós apropriamos isso ao Espírito Santo, porque estamos percebendo um efeito de
Deus sobre nós que tem semelhança com o papel que o Espírito Santo tem na Santíssima
Trindade, que vive dentro de nós. Quando percebemos que ela nos ilumina, está mostrando
uma verdade, nós apropriamos isso ao Verbo, à pessoa do Filho, porque é esse o modo como
ele procede do Pai dentro da Santíssima Trindade: parece que é o Filho, dá impressão de que
o Filho está agindo em nós, quando na verdade, é um efeito da Santíssima Trindade.

Depois da ressurreição e ascensão de Jesus Cristo a Deus, ele obteve pelos méritos da sua
paixão, que essa graça fosse intermediada pela sua natureza humana. Então, ao estar essa graça
agindo sobre nós, sabemos que estamos em contato com o Cristo em sua natureza humana.
Ele fez isso para que pudéssemos aprender a amá-lo intimamente, assim como sabemos amar
um ser humano, assim como aprendemos a amar o nosso cônjuge.

386
De qualquer maneira [precisamos reservar] um tempo para a meditação nas Sagradas
Escrituras, procurando não que a erudição cresça, mas fazer de tal modo que possamos dar
oportunidade a Deus de trabalhar com sua palavra interior sobre a nossa alma, do mesmo
modo como ele fazia enquanto lhe pedíamos a graça da fé. Veremos que, na medida em que
vamos meditando nas Sagradas Escrituras, a nossa alma vai se abrindo, a inteligência vai se
iluminando, o coração vai se aquecendo, principalmente se fazemos isso com método, com
uma certa rotina.

Nós aprendemos pouco a pouco a ter uma convivência com Deus e ele vai tendo
oportunidade de ir trabalhando a nossa alma, até que acabamos nos tornando familiares com
ele, familiares a essa ação que nos ilumina, transforma, dando-nos forças para que
abandonemos aquela vida que levávamos antes de afundar no vício, no pecado, na desordem
e vamos percebendo como que um homem novo vai surgindo dentro de nós. Esse homem
novo vai se renovando à imagem do Cristo. Estas coisas não são teoria, é assim que mudamos.
E se não estivermos mudando, se as pessoas ao redor perceberem que estamos iguais, então é
porque está tudo errado, não entendemos nada. Vejamos que São Paulo diz: “Não sou mais
eu que vivo, mas o Cristo que vive em mim”. Ele diz: “O Cristo vive em mim por causa da fé
que tenho no Filho de Deus”.

No começo temos que nos concentrar no pecado grave, principalmente a castidade, o


respeito ao próximo e a firmeza na fé. Depois podemos nos aproximar dessa luz e força de
Deus para ir eliminando os outros erros, os outros defeitos que temos. Para ir eliminando as
desordens, fazer uma limpeza na nossa alma para acolher mais o Cristo. Na medida em que
vamos nos familiarizando com isso, que vamos aprendendo a ter trato com a graça de Deus
que nos transforma, que é o próprio Cristo que é luz que nos ilumina; quando começarmos
a ter familiaridade com ele, a perceber que pertencemos à família de Deus, que Deus não é
uma teoria, que ele está lá vivo atuando em nós, apesar de ainda não estar vendo-o e falando
com ele com essa clareza com que falamos com as pessoas; enfim, quando percebermos quase
que por evidência que algo está agindo em nós e quando tivermos intimidade com isso, aí
devemos entender que aquele é o Cristo ressuscitado que, através da sua humanidade está
dando a sua graça e começar a amá-lo como fazemos quando recebemos a Eucaristia.

4. Requisitos essenciais para iniciar a vida espiritual

Falamos que é preciso concentrar-se em três pontos principais. Obviamente isso depende da
vida que as pessoas levaram, mas normalmente os pontos críticos para a transformação, que
ordenam as paixões rapidamente, são a castidade, o respeito ao próximo (aos pais e cônjuges
em primeiríssimo lugar, se formos casados ou se ainda formos filhos [que moram com a]
família) e a firmeza na fé.

387
Entretanto, se considerarmos direito há um outro ponto importantíssimo: separar uma parte
do nosso tempo útil para que possamos ter trato com Deus. Separar um tempo para
recebermos a Eucaristia, para meditarmos nas Sagradas Escrituras tentando buscar uma
clareza que só pode vir pela luz de Deus. Procurar, através das Sagradas Escrituras, o próprio
Deus que age dentro de nós e que vai suplementar a força que [ele mesmo] nos dá quando
pedimos a graça da fé. Fazer com que a oração seja a intimidade com a fé. Essa intimidade
com a fé é uma intimidade com o próprio Cristo. Quando [alcançamos] tal intimidade,
conhecemos Jesus intimamente e aí devemos amá-lo.

Justamente quando o amamos e quando este amor se une à fé (porque já percebemos que a
fé é a própria presença ontológica de Cristo em nossa alma) é que aquilo vai fazer-nos passar
pela porta estreita. Aquilo é o verdadeiro motor da vida espiritual: esse momento de união
com Deus, quando o amor é resultado da intimidade que temos com alguém e, como
resultado dessa intimidade, nós desejamos nos unir a essa pessoa.

Não somos nós que dizemos isso. É algo que está na Suma Teológica, questão 27 da segunda
parte, quando Santo Tomás fala da natureza do ato do amor. O amor, a caridade, o primeiro
mandamento é resultado de uma intimidade com Deus, que não vem se não houver o
exercício prévio, profundo e habitual da fé, pois aí que nos tornamos íntimos de Deus. E
como resultado dessa intimidade (uma intimidade com uma pessoa) nós queremos nos unir
a ela pelo amor. Somente quando conseguimos fazer isso, é que a vida espiritual começa,
começa profundamente!

Nós podemos achar que vai demorar séculos então para começar, mas não, pois quando
recebermos a Eucaristia da maneira conveniente, isso já terá começado na própria Eucaristia;
aqueles dez minutos de Eucaristia já são uma prévia disso. São uma prévia justamente para
que, conhecendo o que é, possamos apressar o resto, ou seja, possamos ter pressa de querer
alcançar logo. Só que para isso teríamos que separar, como a própria recomendação divina,
mais ou menos a sétima parte do nosso tempo útil para o “serviço de Maria”.

Quando pedimos a graça de crer, devemos fazer isso de tal maneira que esse pedido já seja um
exercício profundo do próprio crer. Se não crermos, é impossível, inclusive nem iremos pedir;
ou então, se pedirmos, não resolve nada. Devemos que crer! Mas acontece que devemos
procurar que esse ato de crer não seja apenas com o nosso crer habitual, mas realmente um
exercício de fé proposital. Quer dizer, peguemos a fé de que já dispomos e usemo-la no maior
grau possível e veremos que, quando vier a resposta, a nossa fé vai aumentar.

Os apóstolos não pediam a Jesus: “Aumentai a nossa fé”? Então eles aparentemente estavam
interessados em fazer crescer a própria fé. Na verdade, esse crescimento da fé não é um
condicionamento para ter uma lavagem cerebral sobre alguma coisa. Essa vontade de
crescer na fé, na verdade, é uma maneira diferente de falar que o que estamos

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pedindo é uma intimidade mais profunda com Deus. Isso acontece quando já
experimentamos com verdadeira fé que, quando cremos, não apenas nos convencemos de
alguma coisa, mas algo estava agindo em nós, alguma coisa de outra ordem e que não é deste
mundo.

5. A conversão operada pela fé

Quando já acreditamos, quando já fizemos a experiência de ter crido, sabemos que quando
cremos o que estava acontecendo não é que simplesmente nos convencemos de alguma coisa:
nós experimentamos que algo nos estava ajudando a enxergar! E esse algo não é o simples fato
de termos mudado de opinião, mas alguma coisa que verdadeiramente nos ajudava não só a
ver, mas que estava produzindo uma certa transformação no nosso ser. Fica mais fácil evitar
o pecado, fica mais fácil praticar a virtude, fica mais fácil aproximar-se de Deus na oração,
então não é apenas uma troca de opinião!

A fé não é “Antes eu achava que Deus não existia e agora mudei de opinião e acho que ele
existe”, ou “Antes eu não acreditava no Partido Comunista, agora eu acho que o Partido
Comunista vai fazer a revolução e trazer a felicidade”. Não é uma mudança de ideia ou de
time. A fé não é uma mudança de conteúdo.

O evangelho é uma força que age sobre aqueles que creem e vivem da fé, e essa força não é
deste mundo, ela é sobrenatural. E tanto é verdade que ela é sobrenatural que, se lhe dermos
corda, simplesmente não nos tornamos fanáticos, mas Santos! A experiência que vemos na
história é que as pessoas se modificaram de tal forma, que ocorreu com elas o que está no
evangelho quando diz: “Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de
Deus”. As próprias pessoas percebem: “Olha, isso aqui não é um ser humano. Se não for
Deus, é o Filho dele! Com essa bondade, com essa doçura, com essa paciência, com esse
heroísmo nas virtudes; com essa capacidade de doação, com essa simplicidade, com essa
humildade, com essa falta de orgulho, com essa vontade de trabalhar, de fazer o bem; e
quando estamos perto dele, ele nos ama de tal maneira que eu nunca vi ninguém querer bem
a alguém deste modo. Na verdade, ele experimentou o amor com que Jesus o amava e o está
repassando aos outros”. Então na verdade as pessoas estão pressentindo o que há de Deus
nele.

Se o efeito da fé fosse simplesmente trocar de opinião, então o sujeito poderia mudar de vida
deixando de torcer pelo Corinthians e passando a torcer pelo Palmeiras. Qual é a diferença?
“Antes eu não acreditava em Deus, agora eu acredito. Antes eu não acreditava no
Corinthians, agora eu acredito”. Deus é mais exigente, mas para o torcedor fanático do
Corinthians, talvez ele possa até estar exigindo mais. E pode ser que até esteja mesmo, mas ele
não vai dar alguma coisa em troca, alguma coisa sobrenatural; não vai haver essa
transformação.

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A verdadeira transformação ocorre não só quando cremos, mas quando cremos com tal
intimidade que, por essa intimidade com o próprio Deus, começamos a amá-lo querendo nos
unir a ele. É aí que as coisas realmente começam a mudar profundamente: pela união com
Deus, não apenas pela fé. Portanto, a fé tem que se juntar à caridade.

6. O papel da virtude da esperança

E onde entra a esperança? A esperança é uma virtude que produz uma certa expectativa.
Expectativa é quando, percebendo que pode alcançar uma coisa, alguém começa a ficar
ansioso por aquela coisa e quer que ela chegue mais rápido. Só existe esperança de coisas
possíveis, do impossível nós não temos esperança. Se uma coisa é impossível nós ficamos com
desesperança.

A esperança em primeiro lugar é a expectativa que resulta de saber que Deus nos prepara um
prêmio se nós o buscarmos. Mas a esperança num sentido mais plenamente exercido acontece
quando essas coisas começam a se tornar reais: começamos a perceber que são verdadeiras,
que esse é o caminho para Deus através da união com Cristo pela fé. Então, vendo que isso é
próximo e possível, começamos a ter um entusiasmo tão grande que já não queremos perder
tempo e não vemos o momento em que isso se torne realidade.

Portanto, para a esperança surgir ela precisa da fé. Na medida em que, pela experiência da fé,
nós tocamos as realidades celestes e vemos que essas coisas são “a substâncias das coisas que
esperamos” — como diz a Sagrada Escritura — então a esperança diz assim: “Mas o que nós
estamos esperando? O que estamos aguardando? Por que não aceleramos?”. Quando vemos
que a meta está próxima, começamos a correr: “Agora eu quero chegar mais rápido!”. A
[esperança] promove então uma rapidez para que a fé se una à caridade.

O que realmente nos leva a Deus é a fé que opera pela caridade — é uma frase de São Paulo.
Nós recebemos o Espírito Santo pela fé que opera pela caridade, isto é, pela união da fé com
a caridade. Sabendo, pois, que pela intimidade divina (que vem pela fé) surge um amor e por
esse amor nos unimos ao Cristo que já conhecemos, a esperança nos faz ter pressa de fazer
isso logo, e então nós corremos! Não é algo que vamos fazendo devagar, quando for possível.

7. Conclusão

Na medida em que estas coisas sejam possíveis, pela própria orientação das Sagradas
Escrituras, temos que procurar separar pelo menos 1/7 do nosso tempo útil para o trato com
Deus. E aí vamos correr!

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Ao fazer isso, podemos realizar a maior obra de evangelização possível: quando damos
testemunho para as pessoas de algo que conhecemos. Quando as pessoas mesmas puderem
ver em nós, saborear em nós algo do amor de Deus, algo da sobrenaturalidade do evangelho,
aí sim elas verão que somos discípulos de Cristo, porque é o próprio Cristo que está usando
de nós para fazer o bem, para revelar-se e mostrar-se aos demais. E temos que convidar estas
pessoas a saírem do pecado. Temos que convidá-las a se confessarem, a mudarem de vida, a
se unirem com Cristo e, através disso, alcançarem a Deus.

Não esqueçamos, porém, dos pontos fundamentais. Temos que nos confessar, preparando-
nos bem com uma firmeza de propósito para rompermos com o pecado grave. Temos que
trabalhar bastante, principalmente na castidade, no respeito ao próximo e na firmeza da fé.

Para isso não basta a força de vontade: temos que pedir a Deus cotidianamente a graça da fé.
Esse pedido não pode ser apenas nominal. Primeiro precisamos entender realmente o que é
isso e querer realmente uma coisa dessas. Segundo, o momento em que o pedirmos tem que
ser cheio de devoção e de consistência da própria fé. A quem tem, mais será dado, a quem não
tem, até isso será tirado. E na medida em que façamos isso, em questão de dias iremos
perceber que por causa desse exercício da fé, uma força de Deus age em nós e está nos
ajudando a permanecer firmes, mais do que qualquer força de vontade nossa. Enquanto isso,
não descuidemos da Eucaristia, porque a Eucaristia já é comunhão de fé e amor com o Cristo.

Ademais, na medida em que os dias vão passando, procuremos separar pelo menos uns dez
minutos de tempo de oração para tentarmos imitar/reproduzir a experiência da Eucaristia na
oração. Não é uma questão de separar a sétima parte do tempo útil disponível, são dez
minutos! Assim como na Eucaristia são dez minutos, procuremos separar dez minutos uma
ou duas vezes por dia para tentarmos reproduzir o mais profundamente possível aquela
comunhão com Cristo que experimentamos na Eucaristia.

A comunhão com Cristo na Eucaristia é por causa da presença sacramental do Cristo. Na


oração, a presença do Cristo se dá através da pura fé, não tem o sacramento. Sabemos que, se
cremos, o Cristo está lá em presença íntima conosco, ainda que não percebamos claramente.
Devemos então procurar amá-lo ainda assim!

Na medida em que percebemos que, pedindo a graça da fé, realmente vem uma força
sobrenatural para nos transformar, pela qual saímos do pecado com uma força que não
teríamos pela simples força de vontade, apesar de não ser dispensado de modo algum o
propósito da vontade, quando percebemos que vem o suplemento, comecemos a procurar
esta mesma coisa, esta mesma força, este mesmo convite interior na meditação das Sagradas
Escrituras. Não propriamente no texto externo, não propriamente lendo o texto, mas
compreendendo que esse texto está se referindo a realidades mais profundas, mais sublimes.

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E que, na verdade, o que o texto da Sagrada Escritura e os Santos Padres estão querendo nos
comunicar, é o mesmo que o Cristo interiormente está querendo nos comunicar ele mesmo.

Devemos então nos abrir para que ele possa iluminar-nos e convidar-nos a contemplar
aquelas coisas pela sua graça. É uma coisa semelhante a pedir a graça da fé, em que estamos
abrindo o coração para que Deus nos transforme pela sua força; aqui [na meditação] estamos
fazendo a mesma coisa de um jeito diferente.

Procure, pois, ouvir a palavra viva de Deus e aos poucos iremos percebendo que há uma
resposta. Não desanimemos, vamos em frente! Na medida em que vamos percebendo esta
resposta, percebamos que esta resposta, esta inspiração, este reforço sobrenatural da graça é
uma coisa semelhante ao que já ocorre na Eucaristia quando comungamos, é uma coisa
semelhante ao que ocorre na confissão quando nos confessamos com fé e devoção e
recebemos esse reforço. Principalmente é uma coisa semelhante à Eucaristia: o mesmo Cristo,
a mesma Santíssima Trindade que age na Eucaristia, age nas Sagradas Escrituras e age quando
lhe pedimos a graça da fé.

Na medida em que formos percebendo que convivemos e conhecemos cotidianamente o


próprio Cristo, vai acontecer como quando conhecemos uma moça e começamos a conhecê-
la intimamente na sua vida, nos seus modos, no seu jeito de pensar, na sua bondade e
queremos nos unir a ela. O Cristo quer unir-se a nós pelo amor, mas para isso precisamos
conhecê-lo intimamente antes, e quando fazemos isso é que começa a melhor parte da vida
espiritual!

Jesus diz: “Sem mim, nada podeis fazer. Permanecei no meu amor. Quem me ama, meu Pai
o amará e nós viremos a ele e nos manifestaremos a ele”. Aí alguém poderia dizer: “Mas ele já
não estava se manifestando?”. Ele já estava se manifestando, mas aqui está falando de uma
coisa muito maior, inclusive ele nos quer levar à própria intimidade com a Santíssima
Trindade. É isso que aconteceu na vida dos Santos! É aí que nós, com mais amor e devoção,
temos que procurar dar a sétima parte do nosso tempo a Deus.

8. Perguntas: O amor está associado ao primeiro, ao segundo ou ao terceiro


mandamento? A fé e a caridade estão associadas a qual mandamento?

Na verdade, os três primeiros mandamentos estão associados à fé, esperança e caridade, todos
os três, mas, digamos assim, quase como em níveis diferentes.

O terceiro mandamento, onde Deus originalmente pediu para repousar no dia do sábado, é
como se estivesse pedindo: “Vamos parar para rezar. Vamos fazer um retiro. Vamos dedicar
esse tempo a Deus”. Então é como se fosse um mandamento externo de rezar. Mas
obviamente quando estamos rezando, devemos praticar a fé, a esperança e a caridade.

392
O segundo mandamento, que é não tomar o nome de Deus em vão (que mais
profundamente é santificar o nome de Deus), significa essa mesma prática da oração onde já
existe uma intimidade com Deus. A fé tornou-se tão constante, tão profunda, tão habitual e
carregada de uma evidente sobrenaturalidade, que aquilo ali quase não chamamos mais de fé,
mas de “o nome de Deus”. É a fé, mas ela já tem um aspecto evidente. É o nome de Deus, é
aquilo que já anuncia a presença de Deus. Não é Deus face a face, mas já é um gosto de Deus,
assim como o nome de uma coisa representa a coisa para nós, quando a própria coisa não está
presente.

O terceiro mandamento seria então a obrigação de separar um tempo para Deus. O segundo
seria que já existe uma intimidade com Deus, por termos praticado isso. E o primeiro
mandamento, aquele que diz explicitamente “amar a Deus de todo coração, de toda alma, de
todo entendimento, de toda força”, é quando essa intimidade se tornou tão grande que
produziu o desejo de se unir a ele, que é justamente o efeito do amor. São as mesmas coisas,
as mesmas virtudes teologais (fé, esperança e caridade) que nos unem a Deus, agindo em três
níveis, em três graus, digamos assim.

No primeiro é a pessoa que decide separar um tempo para rezar, um tempo para buscar a
Deus. No segundo ela já descobriu onde Deus está: Deus está visível, presente no ato de fé
que é o seu “nome”, são as pessoas que conhecem o nome de Deus. E no primeiro
mandamento são essas pessoas que conhecem o nome de Deus tão profundamente que
querem se unir a ele por amor, e de fato o fazem. E é para estas que Jesus então diz: “Quem
me ama, meu Pai o amará” — a Santíssima Trindade toda o amará mais profundamente; e
nós viremos até ele e faremos nele nossa morada e nos manifestaremos a ele” — de uma
maneira bem mais evidente do que acontecia até esse momento.

Até esse momento, Deus está visível, está presente, mas de uma maneira como que silenciosa.
A pessoa percebe nitidamente a presença dele, percebe seu amor, sua bondade, sua
providência, porém é como uma brisa suave, mas que realmente está lá. Dali para frente,
quando verdadeiramente resolvemos amá-lo e a ele nos unirmos, ele promete manifestar-se
de uma maneira cada vez mais clara. E é isso que ele quer com “compartilhar sua vida
conosco”. Ele nos criou para isso, deu-nos uma estrutura para isso. Deus está presente em
todas as coisas, mas não pode comunicar-se dessa maneira com todas as coisas, como a pedra,
a água, a terra, o fogo. Deus está presente lá, mas elas não podem ouvi-lo.

Entretanto, ele nos construiu de tal maneira que deu toda a constituição física para isso. São
os nossos pecados e paixões, nossos desregramentos que nos tornam cegos e não permitem
que possamos ouvi-lo. Quando conseguimos ouvi-lo, acontece de maneira tão leve e suave
como uma brisa, mas uma brisa que realmente está presente. Quando identificamos
finalmente: “Não, agora eu entendi! É você que estava aqui o tempo todo. Muito obrigado!

393
Eu entendi o que você quer, eu te amo de todo coração e aceito o teu convite”, aí então isso
vai deixando de ser uma brisa e começa a querer manifestar-se muito mais, porque ele nos
ama e nos quer muito próximos.

Com os anjos é mais fácil. Como nós caímos no pecado original e além disso somos criaturas
inferiores (as últimas das criaturas capazes dessa comunicação com Deus) então é uma
trabalheira fora do comum. [Felizmente], Deus está disposto a fazer essa trabalheira, se nós
fizermos um mínimo em troca; ele quer uma correspondência. E é para acontecer isso: temos
que ser Santos!

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Aula 25 – PRECEITOS GERAIS

Índice
1. Da questão da dúvida nos atos humanos
2. Da regra moral de não agir na dúvida
3. O que fazer quando a dúvida é insolúvel
4. Do desempate da dúvida por presunção
5. Do ato de contrição perfeito
6. A dúvida moral deve ser razoável
7. Benefícios de seguir o princípio de não agir na dúvida
8. Conclusão

1. Da questão da dúvida nos atos humanos

Estamos na última aula desta preparação para a confissão, onde vamos tratar de um tema
genérico de moral que não está associado a nenhum mandamento: a dúvida. A questão da
dúvida é a seguinte: O que fazer quando estamos na dúvida? Porque quando a coisa é clara
nós sabemos o que fazer. Deus diz: “Não cometerás adultério”: então se estamos diante de
um adultério já sabemos que não é para adulterar. Ele diz para não roubar: se estamos diante
da tentação de roubar, já sabemos que não é para roubar. E assim por diante, são preceitos
claros e inequívocos.

O problema é quando estamos diante de uma situação em que não sabemos como agir,
inclusive porque nem todos os mandamentos estão na lei divina, nem todos os mandamentos
estão lá nas Sagradas Escrituras. A própria natureza é obra de Deus, então podem surgir
situações infinitas de modo que se deveria escrever livros infinitos. Até Deus teria que fazer
um livro gigantesco para poder entrar todas as coisas.

Por exemplo: Deus nunca falou de anticoncepcionais, porque eles não existiam. Deus nunca
falou de clonagem, Deus nunca falou de fertilização assistida. Deus nunca falou se certos
tipos de contrato que se fazem hoje equivalem a um roubo, porque não se fazia este tipo de
coisa. Então há muitas situações novas que não estão nas Sagradas Escrituras, mas que são
evidentemente lícitas. E há muitas situações peculiares onde não se sabe exatamente como
agir. Por exemplo, todos aqueles critérios que demos para a cooperação com o mal não
estavam nas Sagradas Escrituras; foram deduzidos por pessoas sábias a fim de ajudar-nos a
compreender uma situação específica que não estava claramente contemplada na revelação.

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Ademais, também podem ocorrer muitas outras situações de dúvida: O sujeito vai comprar
uma casa, mas o vendedor não tem a escritura, e o sujeito não sabe se a casa é dele ou não é
dele. O sujeito acredita porque o vendedor diz que a casa é dele, mas que ele perdeu a
escritura. O que fazer? O sujeito não sabe se o vendedor o está enganando e roubando. Pior
ainda: ele não sabe se, ao querer arriscar, na verdade estará prejudicando uma terceira pessoa
que talvez nem esteja sabendo das coisas.

São situações de dúvidas onde ficamos perplexos na hora de agir e não adianta procurar na
revelação, porque lá está escrito: “Não roubar”. E nós dizemos: “Tudo, bem isso entendi, mas
isso daqui é um roubo?”. Surge então a questão moral de como devemos agir quando estamos
na dúvida. Trata-se de uma questão delicada, que em pessoas muito aflitas e ansiosas pode
inclusive produzir exageros, e devemos ter o cuidado de saber evitá-los.

2. Da regra moral de não agir na dúvida

De modo geral existe uma regra muito importante na moral que diz o seguinte: Não se pode
agir na dúvida. Quando agimos na dúvida, já estamos cometendo o pecado que estaríamos
cometendo se aquela dúvida fosse certa, ou seja, se tivéssemos certeza que não era dúvida, mas
algo claramente errado. Não é difícil de entender essa regra.

Imaginemos o seguinte. João está caçando um javali na África. De repente uma coisa se move
atrás da árvore e João acha que é o javali. Faz vinte dias que ele está procurando o javali e não
acha: ou ele atira agora ou então vai ter que voltar para casa sem o javali. Mas João não tem
certeza de que é o javali. Tudo indica que é, mas talvez fosse uma criança. E então João resolve
atirar mesmo assim, porque deve ser um javali e ele não vai perder a viagem sem levar o javali
para casa. Ele diz consigo: “Não deve ser uma criança”, e então dá um tiro e alguma coisa cai
atrás da moita.

Depois de ter dado o tiro, João pensa: “E se era uma criança, como eu faço agora? Eu matei
um ser humano, vou ser preso”. Ele vai atrás da moita para ver se era uma criança ou um
javali. Quando abre a moita, era um javali. Então diz: “Ah, que bom, não era uma criança!”.

Parando para pensar, João matou uma criança, pois podia ser uma criança. Ele não podia ter
atirado na dúvida! Na verdade, ele já fez uma coisa perversa porque, sabendo que podia ser
uma criança, mesmo assim resolveu arriscar. Materialmente João matou o javali, mas no seu
coração, na sua alma ele matou uma criança! Não se pode agir na dúvida. Se a pessoa age na
dúvida e não acontece o pior, ela já é culpada do pior.

Isso pode parecer uma coisa horrível e de fato às vezes é, porque às vezes as pessoas começam
a ficar meio doidas e a duvidar de tudo, até onde não há fundamento para duvidar. Isso é
ruim. Aqui estamos falando de dúvidas realmente fundadas. Porém, quando se trata de uma

396
dúvida fundada, essa regra é fundamental, porque é ela que na verdade acaba produzindo a
prudência.

Anteriormente falamos que existe uma virtude chamada prudência, aquela que determina o
que é correto agir nas situações concretas; e que a prudência tem que surgir pelo estudo e a
reflexão principalmente, supondo que haja as virtudes. Sendo assim, ao dizer que não se pode
agir na dúvida e que se deve resolvê-la antes, na verdade se está obrigando o fulano a ser uma
pessoa prudente. O que se está dizendo é que nunca podemos fazer as coisas sem conselho.
Devemos fazer as coisas apenas quando tivermos certeza que são lícitas, porque pensamos
nelas e não estamos arriscando a própria vida, a vida dos outros e a moralidade dos nossos
atos.

Essa regra é equivalente a dizer: “Não faça nada sem conselho e jamais te arrependerás” (Eclo
32,24). Essa regra diz que quando existe um risco moral, não podemos “atirar a esmo”,
primeiro devemos ter certeza que o risco moral foi afastado. Então João não poderia ter
atirado naquele javali havendo a dúvida se era uma criança. Primeiro ele tinha que se certificar
que não era uma criança, do contrário deveria se abster, dizendo: “Paciência! Eu acho que
vou perder um javali, mas antes isso do que poder estar matando uma criança”.

Isso significa o seguinte: Quando alguém está na dúvida, não deve agir. Estamos falando isso
de dúvidas morais. Não são dúvidas do tipo: Eu vou ao restaurante e o garçom me mostra o
cardápio e não se vou comer pizza ou feijoada, estou na dúvida. Essa não é uma dúvida moral,
ou seja, tanto faz comer pizza ou feijoada, isso é questão de gosto. Nesses casos nós podemos
agir na dúvida. Aqui estamos falando de dúvidas morais.

O sujeito está doente e o médico diz: “Olha, aqui tem dois remédios. Um deles é um veneno
e se você tomá-lo, pode morrer; o outro é o remédio que vai te curar”. O paciente diz: “Eu
acho que é esse, mas não tenho certeza”. Isso é uma dúvida moral, porque ele pode estar
cometendo um suicídio. E ele diz ao médico: “Não, doutor, o senhor se informe direito e
quando tiver certeza qual o remédio que não é o veneno, o senhor me fala”.

A não ser que seja o caso em que ele diga: “Olha, não vai dar tempo de pesquisar e
infelizmente, se você não tomar agora, daqui um minuto você vai ter um infarto e estará
morto! Então temos que arriscar, porque em um minuto você está morto. Se você tomar o
remédio pode ser que sobreviva. Então o que você acha?”. Aqui há [uma escolha] entre a
morte certa e a probabilidade de acertar. Esse caso é diferente, porque inclusive moralmente
não há dúvida a solucionar. Num caso desses a dúvida é do remédio, mas moralmente não
existe dúvida. Se é certo que o sujeito terá um infarto em um minuto e morrerá com certeza,
e que quase tudo indica que o remédio certo é aquele, moralmente a dúvida acabou: ele deve
tomar aquele remédio e torcer que seja o certo. Não existe dúvida moral, a dúvida moral
acabou.

397
3. O que fazer quando a dúvida é insolúvel

O problema é que muitas vezes, quando a pessoa entende que está diante de uma dúvida e
vai tentar resolvê-la, ela percebe que a dúvida é insolúvel. A dúvida pode ser insolúvel por
vários motivos. Às vezes não é um problema de doutrina, mas um problema de fato.

José vai comprar uma casa e não sabe se o vendedor é o dono da casa, porque a escritura
sumiu: ele está dizendo que é, mas pode ser que não seja. O que o José tem que fazer? Antes
de cometer uma injustiça, ele deve investigar se a casa é do sujeito realmente. Não tendo a
escritura, José pode procurar os meios que a lei ou a prática sugerem para descobrir se a casa
é dele. Mas depois de investigar tudo, ele vê que não dá para resolver a dúvida, a dúvida é
insolúvel. Não foi porque José não quis, é que não deu para resolver. O que fazer nesse caso?

O que temos de fazer num caso desses é o seguinte. Toda vez que estivermos diante de uma
dúvida fundada, não podemos agir na dúvida. Primeiro devemos investigar o que é o certo.
Esse investigar o certo fazemos investigando os fatos (se for um problema de fato),
investigando a doutrina (se for um problema doutrinal), perguntando para alguém que
conhece moral ou estudando por conta própria, mas primeiro devemos resolver a dúvida.

Se resolvemos a dúvida, o problema está resolvido, porque já sabemos como agir. Se


percebemos que a dúvida é insolúvel, que não dá para resolvê-la, nesse caso a moral ensina
que há duas possibilidades:

i) Se é algo que pode causar a morte de alguém ou um problema gravíssimo, como era o caso
do javali, ou se é algo que pode causar a invalidade de um sacramento (matrimônio, a
administração do batismo, a confissão ou a Eucaristia por parte do padre, etc.), ou pode
causar transtornos inaceitáveis, impensáveis, danos graves de modo geral, mesmo vendo que
a dúvida é insolúvel, nós não podemos agir na dúvida, deve agir da maneira mais segura.

No exemplo acima, João não deve dar o tiro no “suposto javali”, porque não conseguiu se
certificar se era ou não uma criança, e trata-se da vida de um ser humano. Então simplesmente
João não pode dar o tiro, mas deve agir da maneira mais segura. A maneira mais segura é não
dar o tiro.

ii) Se é algo que não [envolve] um problema grave, nem a validade de um sacramento, nem a
vida de uma pessoa ou a nossa, mas um problema meramente legal (se é um dia de jejum ou
não, se há a obrigação de assistir missa ou não), nós podemos agir como bem entendermos.
Se a pessoa chega à conclusão que a coisa não tem solução, porque, por exemplo, a única
testemunha morreu e nunca mais alguém saberá a verdade sobre o que aconteceu; se a pessoa
investiga a doutrina da teologia moral, dos sábios sobre aquele assunto e chega à conclusão

398
que as melhores cabeças ainda estão em dúvida, porque aquilo não tem solução, a Igreja não
se pronunciou a respeito e os estudiosos que investigaram o assunto estão perplexos; ou se
por qualquer outro motivo não há possibilidade de resolver o problema e o assunto não for
causar dano grave ou a morte de uma pessoa, nem a invalidade de um sacramento, nesse caso
o sujeito está liberado para fazer o que bem entender.

Podemos agir fazendo ou deixando de fazer o que pretendíamos, porque num caso destes
considera-se que não existe o preceito que deveria regulamentar aquela conduta, não existe
critério. Se não existe lei e não iremos causar dano a ninguém, não somos obrigados a seguir
uma lei que ninguém sabe se existe, se foi promulgada ou não pelo direito explícito ou pelo
direito natural.

Em suma, não é lícito agir na dúvida. Estamos falando de dúvidas fundadas, dúvidas que
tenham consistência, pois do contrário começamos a achar que absolutamente tudo é dúvida
e isso não é bom. Estamos falando de dúvidas fundadas. Quando estamos em dúvida se uma
coisa é ou não correta, não podemos agir daquela maneira. Primeiro devemos nos informar
ou investigar a coisa. Do contrário, ao fazer aquilo, cometemos um pecado.

Se ao investigar a dúvida encontramos a solução, ótimo: ajamos de acordo com aquela


solução. Se não encontramos solução porque ela humanamente é impossível; nunca se saberá
ou pelo menos nessa geração não se saberá o que realmente é verdade sobre aquilo, pois
depende de documentos que só daqui a cem anos serão descobertos; quando a dúvida for
insolúvel e é algo que vai matar alguém ou causar um prejuízo grave, devemos abster-nos de
uma conduta que possa causar tais danos graves, agindo de um modo mais seguro. Se é algo
que não vai causar dano grave a ninguém, é uma questão puramente legal, de honestidade de
consciência, então estamos livres para fazer aquilo que quisermos, de uma maneira ou de
outra, pois na prática a dúvida acabou.

4. Do desempate da dúvida por presunção

Em certos casos, quando investigamos a dúvida e ela continua, podemos agir por presunção,
podemos desempatar por presunção. Um caso comum em que acontece isso é quando
estamos na dúvida se cometemos um pecado por pensamento. A pessoa vai analisar se
advertiu ou não, se consentiu ou não, e fica perplexa: “Não sei responder!”. O que fazer?

Esse é um caso onde a moral recomenda desempatar por presunção. Se o indivíduo costuma
cair naquele pecado com certa habitualidade e está na dúvida se consentiu, presumimos que
ele consentiu e deve se confessar. Se o fulano, ao contrário, é uma pessoa temente a Deus que
habitualmente não consente nunca naquele tipo de pecado e está na dúvida se consentiu ou
não, porém não consegue desempatar, temos que presumir que ele não consentiu. Isso é
suficiente, isso resolve o problema.

399
Se o sujeito tem certeza que consentiu, obviamente deve se confessar. Se ele tem certeza que
não consentiu, não tem que se confessar. Caso esteja na dúvida se consentiu ou não, deve
fazer um pequeno exame de consciência e lembrar o que aconteceu. Se ainda assim fica difícil,
não se deve mais esgoelar o cérebro: estamos na dúvida, é uma dúvida insolúvel. Nesse caso a
moral recomenda que “desempatemos” por presunção: Se o sujeito cometia aquele pecado
sempre ou habitualmente; se tem experiência disso, mas está na dúvida se fez ou não, é porque
fez! Porque se o sujeito tivesse uma consciência tão delicada de modo que nunca faria aquilo
e nesta ocasião tivesse feito, ele teria percebido.

5. Do ato de contrição perfeito

Por outro lado, se o sujeito não [resolveu a dúvida] e nunca faz aquilo, é porque
provavelmente não fez e então não precisa se confessar daquilo. Na melhor das hipóteses,
para desencargo de consciência, faça um ato de contrição [perfeito] 10 antes de receber a
comunhão e aquilo já é suficiente.

Um ato de contrição perfeito é arrepender-se sinceramente na oração de um pecado feito ou


possivelmente feito contra Deus, em virtude do amor. Obviamente um ato de contrição
perfeito deve incluir em si não apenas o arrependimento, a dor e o reconhecimento do erro
de que pecamos, mas também o propósito firme de não voltar a pecar. Caso esse propósito
não exista, isso não é nenhum ato de contrição, mas uma atitude falsa.

A essência do ato de contrição, porém, que é capaz de perdoar-nos o pecado simplesmente


por tê-lo feito, não é nem o arrependimento, nem o propósito, mas o motivo que nos leva a
ter esse arrependimento e propósito, isto é, se ele está sendo feito por amor a Deus. Porque o
pecado e a verdadeira caridade não podem coexistir: se realmente esse arrependimento e esse
propósito são motivados por um verdadeiro e sincero amor a Deus, eles perdoam
imediatamente o pecado.

E como consequência disso também, na hipótese de estarmos falando de um ato de contrição


a respeito de um pecado não duvidoso, mas de pecados certos que foram verdadeiramente
cometidos ou que devem ser presumidos que foram cometidos, apesar do ato de contrição
nos obter o perdão imediato do pecado, para ser verdadeiro ele deve incluir o propósito de
que nos confessemos assim que possível. Apesar de termos sido perdoados pelo ato de
contrição ou, mais exatamente, pelo exercício da caridade que nos leva ao ato de contrição,
nós não temos o direito de nos aproximar da Eucaristia sem que tenhamos nos confessado
antes, por mais certos que estejamos de que tivemos um ato de amor e contrição capaz de nos
ter perdoado o pecado imediatamente.

10
Aqui estava "bem feito", mas coloquei perfeito por conta do contexto que segue o raciocínio.

400
Isso evidentemente supondo que o ato de caridade que levou ao arrependimento e ao
propósito tenha sido suficientemente sincero e perfeito para obter o perdão deste pecado, o
que nem sempre se pode presumir. Mas mesmo na hipótese de não haver uma presunção de
que este ato de caridade tenha sido tão perfeito assim, se existe o arrependimento e o
propósito (que são muito mais fáceis de avaliar que a caridade) isso já é suficiente para que,
ao recebermos o próximo sacramento, (que pode ser a Eucaristia, não necessariamente a
confissão) este próximo sacramento nos perdoe o pecado que tivesse sido cometido.

Então, se um fulano que costuma cometer o pecado está na dúvida se consentiu, é porque ele
consentiu. Então deve confessar-se. Se a pessoa for sincera e honesta e fazer todas essas coisas
que estamos aprendendo, logo, logo ela romperá definitivamente com o pecado e não terá
mais estas dúvidas.

6. A dúvida moral deve ser razoável

A dúvida que deve fazer com que nos abstenhamos de agir tem que ser fundamentada e
razoável. Existem certos casos em que temos medo de estar na dúvida não porque estejamos
de fato na dúvida, mas porque não sabemos explicar racionalmente o porquê aquilo é certo
ou errado. Existem de fato situações em que temos a impressão psicológica de estar na dúvida,
porém de fato não estamos numa dúvida moral no verdadeiro sentido. Na verdade, estamos
diante de uma certeza moral, mas nos parece que aquilo seja uma dúvida porque não sabemos
dar a explicação técnica, filosófica, teológica da razão daquilo parecer-nos certo ou errado.

Isso não é uma verdadeira dúvida. Quando acontece isso e nós temos praticamente aquela
firme certeza de que algo é correto e que jamais qualquer especialista honesto que
consultemos nos vá dizer que a coisa é errada, estamos diante de uma certeza, principalmente
se aquilo não envolve perigos extremos. Nestes casos não estamos diante de uma dúvida
autêntica. Isso na verdade é um medo de errar por não sabermos dar a explicação correta, mas
a evidência da moralidade da coisa se impõe.

Obviamente estamos falando de uma pessoa que esteja comprometida com o bem, que viva
razoavelmente as virtudes e tenha a virtude da prudência razoavelmente desenvolvida. Não
estamos assinando um cheque em branco para qualquer pessoa que diga que tem certeza
absoluta que tal coisa é certa ou errada, mas não sabe explicar porque e então estamos lhe
dizendo que faça o que bem entende. Estamos falando de pessoas que realmente têm uma
integridade moral que lhes dá esta certeza de avaliação, embora não saibam dar uma
explicação técnica.

Por outro lado, isso não é uma coisa tão incomum de acontecer. Nós, por exemplo,
normalmente não somos especialistas em direito penal, não sabemos todos os crimes que

401
podem ser cometidos diante da lei numa sociedade. No entanto, não nos preocupamos com
isso na maioria dos casos porque temos neles uma convicção de que tal ação ou tal outra ação
não poderá ser um crime, ainda que não tenhamos estudado direito penal. E temos a certeza
que, apesar de não sabermos explicar porque, jamais haverá um jurista que nos conseguirá
convencer que aquilo é um crime diante da lei.

A mesma coisa também ocorre na medicina. Nós frequentemente temos sintomas de uma
série de coisas e muitas vezes sabemos que aquilo não deve ser uma doença grave, de modo
que não iremos procurar um pronto-socorro ou um médico porque temos outra coisa muito
mais importante para fazer. Além disso, naquele caso não podemos acreditar que haja um
médico no mundo que, se fôssemos consultá-lo, iria dizer-nos que deveríamos ser internados
imediatamente porque nossa vida corre perigo.

Portanto, existem muitos casos em que isto é praticamente uma evidência, apesar de não
sabermos dar a justificativa técnica. Obviamente voltamos a dizer que, nesse caso, estamos
nos referindo a uma pessoa de experiência e que tenha uma certa cultura geral para poder
avaliar esses casos praticamente óbvios, mesmo sem ter estudado medicina.

De fato, há pessoas que por falta de prudência, ou de um certo conhecimento geral ainda que
não especializado, podem colocar em risco sua vida. Não estamos dando um cheque em
branco para as pessoas agirem só porque teimam irresponsavelmente e sem ter as
qualificações, de que modo que só por tal coisa lhe parecer certa ou errada ela possa agir em
consonância. Estamos dizendo que existe uma certa prudência, uma certa cultura geral que,
ou na área moral, ou na área médica, permite a um leigo julgar que determinada situação não
é caso de internação num pronto-socorro, não é crime no direito penal e não pode ser pecado
grave em hipótese alguma. O fato de ela não saber justificá-lo tecnicamente, não lhe tira essa
certeza. A dúvida que torna ilícito o agir quando estamos em dúvida não é desse tipo.

7. Benefícios de seguir o princípio de não agir na dúvida

Queremos observar aqui que este preceito de que é ilícito agir na dúvida sem antes tê-la
resolvido, na verdade é um preceito dourado que tem um valor pedagógico muito grande.
Porque a vida das pessoas é complicada, é enrolada e elas se metem em situações que detonam
suas vidas, justamente por não terem esse cuidado, justamente por não agirem com
prudência.

A prudência, dentre outras coisas, é aquela virtude que determina se estamos fazendo a coisa
na dose certa e se aquela coisa é correta ou não moralmente. Então essa regra moral de não
agir na dúvida equivale a dizer: “Em todas as coisas aja com prudência. Tudo o que você fizer,
nunca arrisque sair errado. Em tudo que fizer, aconselhe-se primeiro consigo mesmo, com
sua consciência, com sua reflexão, com uma pessoa que conheça, com um homem sábio, com

402
os livros que tratam do assunto. Quando as coisas tiverem implicações morais, nunca as faça
arriscando”.

A maioria das pessoas, quando detonam suas vidas, é porque não seguiram essa regra; se a
seguissem, nunca dariam murro em ponta de faca, suas vidas seriam como um regato que vai
fluindo suavemente no seu leito. No fundo isso é o preceito que está na bíblia: “Age sempre
com conselho e nunca te arrependerás”. Agir sempre com conselho é: quando estiver na
dúvida (senão não há motivo para conselho) procure o conselho e aja quando tiver certeza.

Isso também evita uma outra coisa muito ruim. Normalmente as pessoas gostam de culpar
os inocentes, os que são mais idôneos. Numa [família] completamente desordenada, em que
o pai é drogado, os filhos são viciados e estão no crime, e a única pessoa honesta é a esposa,
tudo que acontecer de errado eles vão dizer: “A culpa é tua! Você que deveria ter tido mais
paciência, você tinha que ter previsto isto, tinha que ter feito aquilo”. Ela diria: “Não, mas
foi o meu marido que fez isso”. E lhe diriam: “Sim, mas acontece que se você tivesse sido
melhor, ele não teria feito”. Ao invés de colocarem a culpa nele, colocam nela!

E se a pessoa sempre agiu coerentemente, sempre agiu sabendo que estava fazendo o certo, e
quando não sabia procurou informar-se, quando as pessoas começam a acusá-la, ela mesma
tem uma defesa na própria consciência: “Eu nunca agi na dúvida, sempre agi sabendo das
coisas, então não tenho culpa! Se aconteceu o pior a culpa não foi minha”.

Na medida em que as pessoas vão se tornando mais virtuosas, sua consciência vai ficando
mais delicada e elas começam a acusar-se dos erros, ou até a própria consciência começa a
duvidar: Será que eu agi errado? Uma pessoa que segue esse preceito de sempre se consultar
em caso de dúvida, sabe [perfeitamente] que não agiu errado. Se tiver errado, não é culpa dela
porque ela tomou todas as providências. Se lá na frente algo der errado na sua vida ou dos
familiares, nunca essa pessoa vai achar que a culpa foi dela, pois ela sabe que não foi.

Então, tanto para defesa da nossa consciência, como para a construção da prudência, bem
como para não detonarmos a própria vida, temos que aprender a parar quando não temos
certeza se uma coisa é lícita ou não, se uma coisa é correta ou não, se aquilo vai colocar em
risco a vida dos nossos filhos, do nosso cônjuge, a nossa própria vida, e sabermos refletir antes
de agir. Devemos agir com consciência da correção dos nossos atos, pois quando não fazemos
isso estamos moralmente cometendo o próprio pecado de que tínhamos dúvida.

Supondo que a mãe não saiba se numa escola usam drogas e, sem perguntar mais nada,
coloque o filho naquela escola. Mesmo que depois descubra que lá não tem droga nenhuma,
ela já pode se confessar por ter colocado seu filho numa escola onde se usam drogas. A mãe
deve se confessar justamente do pecado no qual estava pensando que fosse errado e que
pudesse incorrer.

403
Isso é uma regra moral que não está vinculada a nenhum mandamento. É uma regra moral
geral, mas muito importante. Ao mesmo tempo, temos que tomar cuidado de certas pessoas
mais delicadas, que têm um pavor às vezes muito bonito de não cair em pecado e começam a
enxergar dúvidas onde não existem. Aqui estamos falando de dúvidas com fundamento,
dúvidas razoáveis.

Caso haja o simples temor de estar na dúvida, quando racionalmente podemos provar que
não há motivo de estar na dúvida, não há dúvida! O fato de ter uma certeza moral razoável de
que uma coisa é correta, mas não saber dar a explicação, não é dúvida. Dúvida é aquilo que
tem fundamento lógico. Se percebemos que não há fundamento lógico e estamos com medo
que possa estar errado, isso não é dúvida.

Existem milhares de crimes que podemos cometer pela lei humana, pelo Código Penal. Na
maioria das vezes em que uma pessoa que não é um advogado age, ela não se preocupa com
isso, mas se guia por um certo bom senso e acerta. O fato de não saber explicar por que
determinada ação não é crime por não ser professor de direito penal, não significa que aquilo
é uma dúvida.

Assim também pode acontecer em muitas situações morais. Portanto, não saber a explicação
de uma coisa quando é evidente que ela não pode estar errada (evidente de uma maneira clara
para um homem prudente) isso não é dúvida. E o medo de estar errado, quando temos toda
fundamentação para não a ter, esse medo também não é dúvida: podemos agir
contrariamente a esse medo, porque a dúvida não é um problema passional, mas racional.

Tirando isso, este é um dos preceitos que nos ajudam a desenvolvermo-nos na prudência, a
levarmos uma vida com a consciência tranquila para que, se mais tarde nos vier um
imprevisto ou infortúnio, possamos ter aquela paz de consciência de que nós nunca agimos
errado e que, portanto, se alguma coisa não funcionou não é nossa culpa. Essa é uma maneira
de desenvolver um modo de vida onde, como se diz, nunca damos murro em ponta de faca,
fazendo coisas que são resultados de uma imprudência patente por termos acostumado a agir
sem pensar.

Talvez a grande maioria das pessoas tornam complicadas as suas vidas, tornam suas vidas um
labirinto de dificuldades e frequentemente colocam suas próprias vidas numa situação em
que se viabilizam, justamente porque nunca foram educadas a ter o cuidado de observar esse
preceito. Na verdade, elas não agiram com a devida prudência.

A prudência é aquela virtude que, diante de uma situação concreta, determina o modo
correto de proceder, a proporção dos meios em relação ao fim, à qual cabe dar uma avaliação

404
moral acerca da licitude de uma situação concreta que está acontecendo num universo
prático.

Essa regra de não agir na dúvida, na verdade, equivale a dizer que em todas as coisas deve-se
ter certeza de estar agindo mediante a orientação da virtude da prudência. A virtude da
prudência não é a cautela, mas aquela que julga no caso concreto a correção da ação que
vamos fazer. Ela julga a proporção dos meios aos fins, o modo correto de proceder,
ordenando as diversas virtudes que vão participar da ação na dose certa entre si, e que sabe
dar-nos uma avaliação moral sobre a licitude daquela ação.

Não é a simples cautela. Diante da mentalidade do homem moderno, é o que chamaríamos


de sabedoria. Um homem sábio, para o homem moderno, é um homem prudente. Então esse
preceito diz que alguém nunca pode agir na dúvida porque em tudo se deve agir com
sabedoria, ter certeza que se está agindo com sabedoria. Em todas as coisas que fizermos
precisamos ter a certeza de não as fazer precipitadamente. E justamente por não agir
precipitadamente, sem pensar nem tomar conselho, não estamos correndo um risco
humanamente evitável de a coisa sair errada.

Sim, em certas ocasiões podemos perder uma grande oportunidade por não termos agido
precipitadamente, mas para cada oportunidade que ganharmos, se continuarmos agindo
daquela maneira precipitada, na próxima arrebentamos a própria vida. Então é melhor saber
esperar a oportunidade correta, a oportunidade em que sempre podemos ter certeza de estar
agindo licitamente, do que arriscar e uma hora dar certo e outra hora não dar.

É uma coisa semelhante, num certo sentido, à vida de um assaltante. Um ladrão pode fazer
uma grande fortuna quando comete um assalto, mas se cometer assaltos frequentemente ele
nunca saberá na verdade se não será preso ou morto. E é exatamente por causa disso que a
vida das pessoas envolvidas com o crime é triste, sempre termina mal e é curta. O mesmo
ocorre quando alguém se acostuma a agir na dúvida: é como se estivesse moralmente fazendo
um assalto. Pode ser que o sujeito ganhe uma grande oportunidade; pode ser que o ladrão,
não roubando o banco, perdeu a chance da sua vida; mas caso ele se acostume a agir dessa
maneira, verá o que acontecerá: sua vida será desgraçada, ruim, curta e um inferno. A vida
daquelas pessoas que não aprenderam esse preceito moral se torna um inferno.

Esse preceito de não agir na dúvida equivale a dizer que tudo que fizermos devemos fazê-lo
com conselho, tão cuidadosamente quanto a situação o exige. Devemos nos aconselhar
conosco mesmos, com a nossa consciência, com nossa reflexão, com uma pessoa que conhece
melhor o assunto, com um homem sábio, com os livros que tratam do assunto. Mas não
devemos avançar numa situação que pode conter riscos morais, enquanto não alcançarmos
aquela certeza moral de que estamos fazendo algo lícito e correto.

405
Nós nunca devemos nos arriscar sem nos aconselharmos quando as coisas tiverem
implicações morais. A maioria das pessoas que detonaram suas vidas, de uma maneira ou de
outra, é porque em algum momento não seguiram essa regra ou porque não aprenderam a
segui-la em tudo o que devessem fazer.

Quando agimos na dúvida estamos cometendo aquele pecado que receávamos cometer no
caso em que, se estudássemos e resolvêssemos a dúvida, descobríssemos que era o que
realmente estávamos temendo. Se as pessoas aprendessem a seguir essa regra desde o começo
de suas vidas, ou pelo menos a partir do momento em que resolvem convertê-las a Deus, a
vida delas seguiria de uma maneira calma e plácida como as águas de um regato que corre
suavemente em seu leito, mesmo que aparentemente diante dos outros elas estejam vivendo
uma vida cheia de eventos intensos. No fundo esse é o preceito do livro do Eclesiástico, que
diz: “Age sempre com conselho e jamais te arrependerá.

Além de evitar que na nossa vida haja imprevistos que detonem o seu curso, este preceito
também é um remédio contra um outro mal que está relacionado com os sentimentos
infundados de culpa. É um preceito muito útil e importante porque, na medida em que
resolvemos seguir uma vida de virtudes, vemos que nossa consciência vai se tornando cada
vez mais delicada. Justamente por causa disso, não somente nós, mas inclusive as pessoas à
nossa volta costumam nos culpar cada vez mais fortemente por coisas que objetivamente nós
temos cada vez menos culpa.

A maneira de evitar que isso nos assalte, principalmente se venha a ocorrer algum infortúnio
por algum motivo que frequentemente não é de nossa responsabilidade, é justamente pela
observação desse preceito. Se em tudo que agimos temos a certeza de tê-lo feito em sã
consciência (porque antes nos aconselhamos, tanto quanto era humana e moralmente
exigido pela situação) sobrevenha o infortúnio que sobrevier, ninguém poderá culpar-nos
por algo que claramente diante de nossa consciência não era de nossa responsabilidade.

Portanto, esse preceito de não agir na dúvida serve, em primeiro lugar, para defesa de nossa
própria integridade pessoal, para defesa de nossa própria consciência que, por estar se
tornando cada vez mais delicada e sutil, precisa ter suas defesas. Sobre um outro ponto de
vista ele é também muito importante para a construção da virtude da prudência, pois é
justamente nestes momentos de dúvida que a virtude da prudência pode ser construída.

Em muitas circunstâncias, estes momentos de dúvidas podem nos parecer muito dolorosos.
Pode parecer que seria melhor não os ter e que, se ignorássemos todas essas coisas, nossa vida
seria mais tranquila e espontânea. Ocorre, porém, que são justamente esses momentos
devidamente trabalhados pelo aconselhamento moral, onde não nos descuidamos de ir
temerariamente contra a consciência, que nos fazem desenvolver verdadeiramente a virtude

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da prudência, aquela virtude pela qual passamos a ter uma cristalinidade nas decisões da vida
prática, nas decisões morais importantes.

O preceito de não agir na dúvida serve, ademais, não só para defender a nossa consciência à
medida que ela se torna mais desenvolvida — coisa que não é pequena. Os seres vivos, quanto
mais perfeitos são em sua estrutura, mais necessitam de um sistema imunológico avançado.
É assim que o sistema imunológico de um ser humano tem que ser muito mais sofisticado
que o de um macaco, tem que ser mais sofisticado que o de um pato, que é imensamente mais
sofisticado que o de uma ameba (se é que uma ameba tem sistema imunológico). Exatamente
por esse motivo a consciência de um homem santo deve ter um “sistema imunológico” que
cresceu pelo cuidado que ele teve com estas questões em toda sua vida.

O preceito de não agir na dúvida serve: i) para que possamos construir uma base sólida para
uma consciência cada vez mais fina; ii) para construirmos a virtude da prudência; iii) e
terceiro lugar serve também para que não inviabilizemos o curso de nossa própria vida, o que
ocorre na imensa maioria das vezes justamente quando deixamos de observar esse preceito
com cuidado: entramos muitas vezes num beco sem saída, no qual não teríamos entrado se
tivéssemos observado o mapa. É muito importante, portanto, que tenhamos esta norma
moral bastante clara diante dos olhos.

8. Conclusão

Do ponto de vista do sacramento da confissão e do erro que é feito quando se age na dúvida,
o que se tem a dizer é que, quando agimos na dúvida, incorremos exatamente na culpa
daquele pecado que estávamos com receio que pudesse ser constituído, caso estivéssemos
fazendo o erro que estávamos temendo.

Imaginemos o caso em que uma mãe coloca o próprio filho numa escola, onde ela tem
fundamentos para crer que esteja havendo tráfico de drogas e que seu filho possa tornar-se
um viciado em drogas. Ainda que ela depois verifique que os motivos que ela tinha para ter
receio de que houvesse drogas na escola não tenham fundamento, ela na verdade expôs seu
filho a se tornar um drogado e isso já é um pecado: é o próprio pecado que ela estaria
cometendo caso estivesse colocando o filho numa escola em que tivesse certeza de haver
tráfico de drogas sim, de um modo que pudesse envolvê-lo nesse crime.

Este preceito de não agir na dúvida não está vinculado a um determinado mandamento, mas
à moral cristã como um todo. Há que se tomar cuidado, evidentemente, em não enxergar
dúvida onde ela não existe. Para que se possa falar de uma dúvida moral, ela deve ter um
fundamento; o simples medo de errar não é dúvida. A dúvida tem que ter um fundamento
em que se basear, um fundamento lógico, um fundamento racional, senão não existe dúvida.

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Dúvida é um problema da razão e não da paixão. O simples temor de estar na dúvida, quando
racionalmente podemos provar que não temos motivo de estar na dúvida, não é dúvida. A
verdadeira dúvida é aquela que tem fundamento lógico. Se percebemos que não há
fundamento lógico e estamos com medo [de errar], isso não é dúvida. E o medo de estar
errado, quando temos toda a fundamentação para não ser [um erro], também esse medo não
é dúvida: podemos agir contrariamente a esse medo, porque a dúvida não é um problema
passional, mas um problema racional.

Tirando isso, este é um dos preceitos que ajudam a nos desenvolvermos na prudência, a levar
uma vida com a consciência tranquila, para que, havendo algum imprevisto ou infortúnio
mais tarde, possamos ter aquela paz de consciência de nunca termos agido errado. E é uma
maneira de desenvolvermos um modo de vida em que não comecemos a fazer as coisas que
só são resultado de uma imprudência patente, ou seja, por termos acostumado a agir sem
pensar.

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