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O mistério da Eucaristia: centro e ápice da vida cristã

O que é o cristianismo? Seria ele um mero sistema moral, que nos ensina o que é
certo ou errado ou bons sentimentos? Ou seria ele uma coleção de verdades dogmáticas,
expressas no Credo, nos concílios ou no catecismo da Igreja? Ambas as concepções estão
muito em voga nos dias de hoje, como naqueles que afirmam que bastam “os bons
sentimentos e ações para sermos bons cristãos” quanto naqueles que reduzem o
cristianismo a um conhecimento mais aprofundado de sua doutrina. Entretanto, ambas as
concepções são insuficientes e circunscrevem a fé cristã a apenas um aspecto. Não quero
dizer que a fé cristã não tenha um sistema moral, ético, mas apenas que ela não é um
sistema moral e ético. Tampouco afirmo que o conhecimento da doutrina e dos dogmas não
é importante para não cairmos em confusão e erro, entretanto o cristianismo não é uma
doutrina, ele tem uma doutrina.
O cristianismo, antes de tudo, antes de ser uma doutrina, antes de ser uma manual
de boas condutas, é o mistério de Deus como revelado em Cristo. Pelo menos, é dessa
forma que São Paulo o entende, quando diz: “E é pelo seu sangue que temos a redenção, a
remissão dos pecados, segundo a riqueza da sua graça, que ele derramou profusamente
sobre nós, infundindo-nos toda sabedoria e inteligência, dando-nos a conhecer o mistério
de sua vontade, conforme decisão prévia que lhe aprouve tomar para levar o tempo à sua
plenitude a de em Cristo encabeçar todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão
na terra” (Ef 1,7-10); ou ainda “Por revelação me foi dado a conhecer o mistério, como atrás
vos expus sumariamente: lendo-me, podeis compreender a percepção que tenho do
Mistério de Cristo. Às gerações e aos homens do passado este Mistério não foi dado a
conhecer, como foi agora revelado aos seus santos apóstolos e profetas, no Espírito (...) A
mim, o menor de todos os santos, me foi dada esta graça de anunciar aos gentios a
insondável riqueza de Cristo e de pôr em luz a dispensação do Mistério oculto desde os
séculos em Deus (...)” (Ef 3).
O que é afinal um mistério? Como se desenvolveu ao longo da história esse termo?
O primeiro sentido do termo, aquele que vem imediatamente à nossa cabeça, é que mistério
consiste em algo escondido, de difícil compreensão ou apreensão, do qual pouco ou nada
pode ser dito. Esse sentido, de certa forma, já está presente na própria etimologia da
palavra. Mistério tem origem no verbo grego myo, que significa fechar, ocultar. O Cardeal
Ratzinger, em um belíssimo texto acerca dos sacramentos, aponta algumas realidades
humanas básicas que sempre foram associadas ao mistério, ao incontrolável: o nascimento,
a morte, a refeição e as relações sexuais. Todas as culturas associaram a esses dados
básicos, biológicos, do homem, um sentido de mistério, de sacramento. E por que razão?
Todos os animais, e não apenas o homem, nascem, morrem, se alimentam e se
reproduzem. Entretanto, no homem, esses fatos não podem ser meramente “biológicos” -
eles abrem o homem para uma realidade maior que ele mesmo, da qual ele não tem
controle e diante da qual ele deve se dobrar. Quem nunca teve uma experiência do mistério
da vida ao carregar um recém nascido em seus braços, ou, ao contrário, ao carregar um
caixão em seus ombros? Em relação à refeição, o homem não é um animal que
simplesmente se alimenta para conseguir sobreviver: a alimentação, para ele, tem um
profundo sentido social e espiritual. A mesma coisa com as relações sexuais. No homem,
elas devem ser muito mais do que um instinto para a reprodução.
Todas essas realidades, nascimento, morte, refeição e sexualidade são “fissuras
através das quais o eterno intromete-se na rotina humana”, na definição de Schleirmarcher.
E por que é assim? Por que o homem alegra-se tanto com o nascimento de uma criança,
por que ele se entristece tanto com a morte de alguém, por que ele deseja tanto
compartilhar uma refeição ou ter relações baseada num amor verdadeiro? Por que ele não
se contenta, como um animal, a vivenciar essas realidade no mero nível biológico,
orgânico? Porque o homem NÃO pode ser reduzido a uma realidade meramente biológica
ou material. Essas realidades tão básicas e tão universais abrem o homem para uma
espiritualidade, para uma comunhão com Deus e com os homens, que revelam a
especificidade de sua natureza. Esse é um aspecto do mistério que de certa forma está
presente em todas as culturas e que o cristianismo também recebeu: o mistério permite que
o homem conheça a si mesmo verdadeiramente, que ele se abra para a sua realidade mais
íntima.
Essa é uma das razões profundas de o homem atual encontra-se perdido, num vazio
existencial imenso: perde-se, cada dia mais, o sentido de mistério. Os nascimentos são
cada dia mais vistos como um empecilho, um estorvo. A morte é cada vez escondida,
encarada pouco de frete; as refeições perdem cada vez mais o sentido social e comunitário;
e as relações sexuais cada vez mais revelam relações efêmeras e por mero prazer. O
homem fechado ao mistério se fecha a si mesmo.
O homem moderno perdeu a capacidade de dobrar-se diante do mistério: a natureza
para ele não é nada mais do que a extensão do seu próprio eu, e não mais um meio pelo
qual revela-se o inefável. O universo perde seu conteúdo espiritual, não é mais um símbolo
que aponta para realidades mais profundas. Hoje, compreende-se a natureza em sua
materialidade como nunca antes: desde as galáxias mais longínquas até as menores
partículas que compõem as coisas; entretanto, o universo fechou-se em si mesmo, não se
abre para um descortinamento das coisas mais altas. Essa é a grande miséria do homem
moderno, que está fadado a viver uma vida sem sentido, preocupado apenas com o
conforto e as novas invenções tecnológicas. Não seria essa forma de relacionar-se com o
universo uma reedição do pecado de Adão e Eva, que quiserem conhecer “o bem e o mal”
em sua totalidade, privando a criação de Deus de todo o seu mistério?
O que isso tem a ver com o mistério propriamente cristão e, especificamente, com o
mistério da Eucaristia? Será que essa atitude do homem moderno de fechar-se ao mistério
da natureza também não o impede de participar frutuosamente do mistério da Eucaristia?
Antes de responder a essas perguntas, perguntemos, antes, o que é o mistério
revelado em Cristo e como nós, cristãos batizados, participamos dele por meio da
Eucaristia.
Já citamos o texto de São Paulo, segundo o qual o mistério de Deus foi revelado em
Cristo, quando este assumiu a carne humana, isto é, a sua natureza. Deus começa a
revelar o seu mistério em Cristo na Encarnação, no seio da Virgem. Entretanto, não
podemos reduzir o mistério de Cristo àquele momento: toda a sua vida é mistério, é
revelação de Deus. Devido ao pecado e a miséria humana, o Verbo Encarnado tornou-se
semelhante a nós em tudo, padeceu as dificuldades que todos padecemos: solidão, fome,
dor, incompreensão, carregando o fardo do pecado. Ao fim de sua vida terrena, tomou a
Cruz e morreu, inocente como era. Depois, ressuscitou, glorificado, num estado diferente do
de sua vida precedente. Ascendeu aos céus e sentou-se à direita do Pai, glorificado
eternamente.
Entretanto, esse mistério, revelado a poucos no começo - aos apóstolos e discípulos
- não consiste meramente num ensinamento doutrinal, o que seria uma redução da fé cristã
a uma simples filosofia de vida. O cristão é chamado para além disso; ele deve incorporar-
se a Cristo de tal modo que sua vida seja uma extensão, uma continuação, da vida deste.
Esse é o cerne e a razão do mistério cristão, fechado aos soberbos de coração e revelado
aos humildes.
Por esse motivo, a Igreja é chamada por São Paulo como o “Corpo de Cristo” (1Cor
12,27). Somos membros de Cristo, não vivemos apenas a nossa vida. No Batismo, fomos
de tal modo incorporados a Ele que podemos dizer, sem exageros, que “Cristo vive em
mim”. Santo Agostinho dizia que todo cristão é Cristo.
Na cruz, Cristo ofereceu-se sozinho; agora, glorificado, a Igreja une-se a Ele em seu
sacrifício e, um dia, há de participar plenamente de sua glória. Dessa forma, Cristo torna-se
o salvador de todo o seu Corpo místico.
Em suma, podemos dizer que o mistério cristão é a revelação de Deus por meio de
Cristo e nossa participação em sua vida, que se dá por meio da graça e tem início no nosso
batismo.
Nesse ponto, já podemos adentrar nos sacramentos propriamente ditos. A nossa
participação nos sofrimentos e na glória de Cristo, obviamente, não pode ocorrer apenas
por meio de nossos esforços puramente humanos; é necessária a ação do próprio Cristo,
por meio de sua graça. Não basta também, como queria Lutero, de uma aceitação
meramente “pela fé” do Cristo, como se a ação principal residisse em nossa aceitação do
que na ação direta do próprio Cristo.
Antes, é necessária uma ação direta do Cristo em nós, mas uma ação que nos faça
participar ativamente de sua vida. Por esse motivo o Senhor nos deu os sacramentos, que
são ações que nós realizamos - é um homem que batiza, que celebra missa etc. -, mas que
ao mesmo tempo, pertencem a Cristo. Odo Casel explica que “através dessas ações (dos
sacramentos) torna-se possível para nós participar mais intensamente e concretamente
numa espécie de contato imediato, mas também espiritual, nos atos redentores de Deus”.
É o que São Paulo afirma na Carta aos Romanos: “Ou ignorais que todos os que
fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte? Fomos, pois, sepultados
com ele na sua morte pelo batismo para que, como Cristo ressurgiu dos mortos pela glória
do Pai, assim nós também vivamos uma vida nova. Se fomos feitos o mesmo ser com ele
por uma morte semelhante à sua, o seremos igualmente por uma comum ressurreição.
Sabemos que o nosso velho homem foi crucificado com ele, para que seja reduzido à
impotência o corpo (outrora) subjugado ao pecado, e já não sejamos escravos do pecado.*
(Pois quem morreu, libertado está do pecado.) Ora, se morremos com Cristo, cremos que
viveremos também com ele, pois sabemos que Cristo, tendo ressurgido dos mortos, já não
morre, nem a morte terá mais domínio sobre ele.” (Rm 6, 3-7).
A Eucaristia encaixa-se nessa dinâmica: por meio dela, participamos de uma
maneira íntima do mistério de Cristo. Todos os sacramentos revelam, por meio de sinais
sensíveis, uma realidade invisível e nos unem à ação salvífica do Cristo: o batismo nos
regenera, fazendo-nos participar do mistério da Morte e da Ressureição; a confirmação nos
preenche com o Espírito do Cristo, unindo-nos mais intimamente ao Cristo ressuscitado e à
sua missão evangelizadora. A Eucaristia, por sua vez, representa uma “comunhão de vida
com Deus e unidade do povo de Deus, pelas quais a Igreja é o que é (...) Nela se encontra
o cume, ao mesmo tempo, da ação pela qual Deus, em Cristo, santifica o mundo, e do culto
que no Espírito Santo os homens prestam a Cristo e, por Ele, ao Pai”. Por meio dela,
também, nos unimos à Liturgia celeste e antecipamos a vida eterna, que se define por uma
união íntima com o Senhor.
Cristo quis significar a sua íntima união com a Igreja por meio dos sinais do pão e do
vinho: “Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não
tereis vida em vós. Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna”
(Jo 6).
Recordando o que dissemos no início, podemos afirmar que a Eucaristia é o ápice
de todo o mistério do homem e Deus, pois por meio dela Deus revelou de maneira mais
perfeita o seu plano de salvação a todos homens, e estes, por sua vez, descobrem na
Eucaristia a razão e o sentido de vida: a união, na vida eterna, com Deus.
Por essa razão, participemos da Eucaristia plenamente e ativamente, com a
consciência de que se trata do centro e do ápice de nossa vida. O homem moderno, pouco
afeito ao mistério, tende a reduzir tudo ao plano do aqui e agora, inclusive a Missa! Basta
ver como a missa, em muitos lugares, tornou-se um momento de barulho e confusão, e não
de silêncio e oração. Apenas dessa forma, nos configuraremos plenamente ao mistério do
Cristo.

FONTES:

Catecismo da Igreja Católica


CASEL, Odo. The mystery of Christian Worship and other writings. Westminster:
Darton, Longman & Todd, 1962.
RATZINGER, Joseph. The Sacramental Foundation of Christian Existence in
RATZINGER, Joseph. Collected Works: Theology of the Liturgy. San Francisco: Ignatius, v.
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