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CRISTOLOGIA

Uma vez que o principal objetivo da doutrina sagrada, diz o Doutor Angélico, é
conhecer a Deus não apenas em si mesmo, mas enquanto princípio e fim de todas
as coisas, nada é mais importante para a boa formação do católico que
conhecer Jesus Cristo, que é o caminho pelo qual Deus quer ser alcançado
(cf. STh I 2, pr.). E porque Nosso Senhor, que veio salvar o seu povo de seus
pecados (cf. Mt 1, 21), mostrou-nos em si mesmo o caminho da Verdade, o único
por que havemos de chegar, renascidos Uma vez que o principal objetivo da
doutrina sagrada, diz o Doutor pela graça, à vida imortal, nada nos deve ser mais
grato ao coração, mais constante na leitura nem mais presente à meditação
do que a figura do nosso divino Salvador e a lembrança dos benefícios por Ele
merecidos para o gênero humano (cf. STh III pr.).
O curso divide-se em duas partes, ambas fundadas no ensinamento oficial do
Magistério eclesiástico e na doutrina segura e tradicional dos melhores
teólogos. Na primeira parte, centrada no estudo do Verbo encarnado em si
mesmo, mergulharemos no mistério da união hipostática e em algumas de suas
consequências para a santíssima humanidade de Jesus. Na segunda, dedicada ao
estudo do Verbo encarnado em sua obra redentora, contemplaremos “a largura, o
comprimento, a altura e a profundidade” (Ef 3, 17) desse insondável mistério de
amor que é a Santa Cruz. Assim teremos percorrido — das alturas do decreto da
Encarnação à escandalosa, para os judeus, e louca, para os gentios, crucificação
do Filho encarnado — o único Caminho que é exemplar e fonte de todas as
virtudes, sem o qual não podemos ser santos nem chegar ao Pai.
Essa semana vamos oferecer a vocês uma compreensão sólida e coerente, a
partir do que ensinam o Magistério eclesiástico, a S. Escritura e a Tradição
divino-apostólica, da pessoa de Jesus Cristo. Adotaremos, por isso, uma
aproximação pautada fundamentalmente na fé, evitando desde o início as
deficiências e deformações do método histórico-crítico e das correntes
hermenêuticas que, de um modo ou de outro, rejeitam a priori o testemunho
dos evangelhos como fontes históricas sobre a vida de Nosso Senhor.

Evitaremos, portanto, a tentação tão frequente de apresentar um Cristo


adaptado às expectativas e esquemas do que se costuma chamar “o homem
moderno”. Com efeito, para reconhecer que a docilidade da fé é o meio mais
adequado para descobrir quem realmente é Jesus, basta ter em conta que o
homem de hoje não difere essencialmente do de épocas passadas e que os
milagres do Evangelho, a tragédia do Calvário, o testemunho de Cristo sobre
sua filiação divina etc., por um lado, e a sua condição de verdadeiro homem,
por outro, foram e serão sempre um desafio à inteligência humana e à
soberba dos que querem um Deus à medida dos próprios conceitos.

O conhecimento de Cristo. — Por isso dizia o Apóstolo S. Paulo,


recordando suas primeiras palavras aos fiéis de Corinto: 
Também eu, quando fui ter convosco, irmãos, não fui com o prestígio
da eloquência nem da sabedoria anunciar-vos o testemunho de Deus. Julguei
não dever saber coisa alguma entre vós, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo
crucificado. Eu me apresentei em vosso meio num estado de fraqueza, de
desassossego e de temor. A minha palavra e a minha pregação longe
estavam da eloquência persuasiva da sabedoria; eram, antes, uma
demonstração do Espírito e do poder divino, para que vossa fé não se
baseasse na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus (1Cor 2, 1-5).
Ora, que seja necessário a todos conhecer Jesus Cristo, recorda-o
o Catecismo Romano, ao dizer: “O primeiro requisito é lembrarem-se os
pastores, continuamente, que toda a ciência do cristão se resume nesse
ponto capital, ou antes, como se exprime Nosso Salvador (Jo 17, 3): ‘Esta é a
vida eterna, que só a vós reconheçam como verdadeiro Deus, e a Jesus
Cristo, que vós enviastes’” .Se, com efeito, a vida eterna consiste no
conhecimento direto de Deus, em sua essência e Trindade de pessoas, e este
só pode ser alcançado se antes tivermos fé, com um conhecimento suficiente
de seus mistérios, é evidente que conhecer e crer em Jesus Cristo é meio
necessário à salvação de todos os homens.

A) A religião natural. — É verdade que o homem poderia, só com as luzes


naturais da razão, reconhecer sua dependência essencial de Deus e
descobrir aqueles deveres mínimos de religião que fluem dessa dependência,
deveres que poderíamos caracterizar como a necessidade que todo ser
humano tem, enquanto criatura feita por Deus e para Deus, de sacrificar-lhe
tudo o que é e possui, prestando-lhe culto por atos internos e externos de
adoração e respeitando, em âmbito tanto individual quanto social, a primazia
que lhe é devida. 

B) A elevação sobrenatural. — Uma vez, porém, que o homem foi ordenado
por Deus à participação de sua vida e bens sobrenaturais, foi necessário que
se lhe revelassem todas as coisas que ele deve saber e fazer para alcançar
esse fim supremo. E o meio que Deus escolheu, em seus soberanos
desígnios, para nos transmitir sua palavra e resgatar-nos, no presente estado
de pecado, da condenação eterna foi o seu próprio Filho unigênito, que, sem
perder a condição divina, assumiu a natureza humana e, sem deixar de ser
eterno e inefável, quis ser chamado no tempo pelo dulcíssimo nome de Jesus.

O Verbo da vida. — Nosso não é outras palavras, que o de S. João em sua


primeira epístola, isto é: conhecer e dar a conhecer este Homem que, por
sua divindade, há de ser o centro de nossas vidas, pois é o Alfa donde
saímos e o Ômega para onde vamos voltar, e, por sua humanidade, é o
Pontífice que nos une novamente a Deus e nos torna, pela graça merecida na
cruz, filhos e familiares do Pai:

O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os


nossos olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado no
tocante ao Verbo da vida — porque a vida se manifestou, e nós a temos visto;
damos testemunho e vos anunciamos a vida eterna, que estava no Pai e que
se nos manifestou —, o que vimos e ouvimos nós vos anunciamos, para que
também vós tenhais comunhão conosco. Ora, a nossa comunhão é com o Pai
e com o seu Filho Jesus Cristo. Escrevemos-vos estas coisas para que a
vossa alegria seja completa (1Jo 1, 1-4).

Divisão do curso.  Pois bem, dividiremos essas aulas de Cristologia em duas


partes principais, seguindo o esquema básico em que estão estruturados os
evangelhos sinóticos. Tanto Mateus quanto Marcos e Lucas, com efeito,
apresentam a vida de Nosso Senhor em duas seções: 

a) na primeira, narram o que Ele fez ao longo de sua vida pública (milagres,
profecias, sermões, discursos etc.) para mostrar aos discípulos a sua
identidade messiânica e filiação divina; 

b) na segunda, descrevem o que Ele fez no final de sua vida neste mundo
para consumar a missão recebida do Pai (são os capítulos da Paixão). Por
isso, dedicaremos uma parte do curso ao estudo de Jesus Cristo em
sua dupla natureza, divina e humana, e outra ao de sua obra salvífica, cujo
ponto culminante é o sacrifício da cruz.

Necessidade da fé. — Ora, assim como Cristo, em sua vida pública, foi
revelando aos Apóstolos sua identidade divina, não por argumentos lógico-
dedutivos, mas por sinais certos de credibilidade (milagres, curas,
exorcismos, leitura dos corações, domínio sobre a natureza etc.) [1], a fim de
conduzi-los, com o auxílio de graças externas, à experiência da fé, suscitada
pela graça interna de iluminação, nós também só seremos capazes de
conhecer quem de fato é Jesus se nos abrirmos a essa mesma experiência
de fé. Não porque Cristo — como poderiam pensar alguns — seja um ideal
confuso ou o resultado de ideias religiosas superpostas, mas porque aquilo
que Ele é, embora atestado por fatos históricos de todo inegáveis, supera de
tal modo a compreensão humana, que não pode ser demonstrado por razões
positivas e diretas, mas apenas acolhido e reconhecido como verdade pela
obediência da fé. E o que Cristo testemunhou sobre si mesmo foi,
essencialmente:

a) Sua legação divina sobrenatural, afirmando de modo explícito a missão


que recebeu de Deus para promulgar, em nome dele e com sua própria
autoridade, uma nova doutrina religiosa.

b) Seu caráter histórico e concreto de Messias, esperado pelos judeus e


profetizado no Antigo Testamento.

c) Sua natureza divina, atestando sua condição de Filho de Deus, igual a Ele


em unidade de essência e, portanto, atribuindo a todas as suas palavras
humanas o valor de uma mensagem divina infalível.
Observação sobre “o Jesus histórico”. — Por isso, rejeitamos desde o
início o que convencionalmente se denomina “o Jesus histórico”. Ainda que
essa expressão possa ter um uso legítimo, enquanto significa o estudo de
testemunhos históricos extra-bíblicos sobre Nosso Senhor (fontes judaicas,
romanas etc.) ou do contexto histórico em que Ele se moveu (v.gr., história,
geografia e tradições palestinas do séc. I), o que geralmente se entende por
ela é a pretensão de descobrir, em meios às “fabulações” dos evangelhos, a
“verdadeira fisionomia” de Jesus, despido de toda roupagem fantástica,
miraculosa ou divina. Ora, a ninguém escapa que os defensores de uma tal
ideia presumem, sem nenhuma razão e, de regra, por simples preconceito,
que os evangelhos e demais escritos do Novo Testamento carecem de todo
valor histórico e, portanto, devem ser considerados fontes espúrias ou,
quando menos, de duvidosa veracidade.

Soteriologia. — Pois bem, como toda a revelação da natureza divino-


messiânica de Nosso Senhor se ordena, fundamentalmente, à
sua obra redentora, depois de termos estudado quem é Cristo, estudaremos o
que Ele fez, isto é, o mistério de sua Páscoa. Não porque o episódio da
Paixão seja algo isolado e como que “acidental” na vida de Jesus, mas
porque é o ponto culminante de sua missão. É o ato para o qual Ele se
preparou e para o qual quis preparar seus próprios discípulos, advertindo-os
em inúmeras oportunidades de que tudo o que Ele havia de sofrer nas mãos
dos chefes do povo e dos pagãos, Ele o aceitava como mandato do Pai e a
ele se submetia livremente. Foi para isso que Ele veio, como testemunha o
autor da Epístola aos Hebreus: “Ao entrar no mundo, Cristo diz: Não quiseste
sacrifício nem oblação, mas me formaste um corpo […]. Eis que venho,
venho, ó Deus, para fazer a tua vontade” (10, 5.7), e é para isso que temos
de olhar, se queremos compreender cabalmente quem é Cristo. Só a fé em
sua condição de Filho de Deus encarnado permite entender
corretamente o mistério da cruz, e só à luz do mistério da cruz é possível
compreender a fundo quem é e o quanto nos ama o Homem-Deus.

O que Jesus diz de si mesmo. — No início dos nossos estudos


de Cristologia, devemos ter bem claro o sentido e alcance do testemunho de
Jesus sobre si mesmo, com base no que encontramos na S. Escritura. Ora, a
quem quer que folheie o Texto sagrado é mais do que evidente que Jesus,
pelo teor mesmo de suas palavras, jamais se considerou um santo como
outros nem, muito menos, um homem qualquer, apesar de ter insistindo
repetidas vezes em sua condição de verdadeiro homem. É precisamente na
gravidade desse testemunho que reside o que poderíamos chamar o
“escândalo” da Encarnação. Se Jesus, com efeito, se enganou em suas
afirmações, imaginando ser o que não era, estamos diante de um louco sem
um pingo de modéstia; se, pelo contrário, mentiu em suas afirmações a fim de
enganar seus seguidores, estamos diante de um blasfemo da pior espécie.
Em ambos os casos, temos alguém que não só não merece crédito, mas a
quem não podemos sequer chamar de bom, por lhe faltar o mínimo de
humildade e honestidade. Logo, mesmo para quem não tem fé, é impossível
considerá-lo um “modelo” ou “exemplo” de comportamento ao mesmo tempo
que se supõe ser falso o que Ele disse de si mesmo. Mas a que se resume,
afinal de contas, esse testemunho?
I. Em primeiro lugar, Jesus se atribuiu qualidades verdadeiramente divinas: 

a) considerava-se superior às pessoas e coisas mais sagradas, como os reis


Davi (cf. Mt 22, 43ss) e Salomão (cf. Mt 12, 42), o profeta Jonas (cf. Mt 12,
41; Lc 10, 24), os anjos de Deus (cf. Mt 13, 41; 16, 27) e inclusive o Templo
de Jerusalém, venerado pelo povo como casa de Javé (cf. Mt 12, 8.26; 17,
24-27); 

b) pôs em exercício poderes físicos próprios da divindade, como o de curar


qualquer doença (cf. Lc 6, 19; Mc 6, 56; Mt 14, 35) e dar ordens aos
demônios (cf. Mc 1, 24.34; Lc 4, 41); 

c) arrogou-se prerrogativas exclusivas de Deus, como a de legislar e


aperfeiçoar a Lei de Moisés (cf. Mt 5, 21.27.31.33), de julgar todos os homens
no Fim dos tempos e, sobretudo, de santificar pelo perdão dos pecados
(cf. Mt 9, 3.6; Mc 2, 7; Lc 7, 48s); 

d) afirmou ser o centro do verdadeiro culto religioso, meio necessário à


salvação de todos os homens (cf. Mt 7, 23; 10, 32s; 25, 35-46) e digno de ser
amado sobre todas as coisas (cf. Mt 10, 37; Lc 12, 26).

II. Em segundo lugar, proclamou ser o Filho natural de Deus, não como os
judeus afirmavam ser filhos adotivos, mas como pessoa realmente divina,
igual ao Pai em essência, poder e majestade. Prova disso são: 

a) os textos em que afirma conhecer, em razão de sua filiação natural, os


segredos e a intimidade do Pai (cf. Mt 11, 25-30; Lc 10, 21s); 

b) sua confirmação elogiosa da confissão de Pedro, que o reconheceu não


apenas como o Messias profetizado no Antigo Testamento, mas como o Filho
do Deus vivo (cf. Mt 16, 13-19); 

c) sua resposta afirmativa às interrogações do Sinédrio, que o condenou


justamente por fazer-se igual a Deus (cf. Mt 26, 62-66; Mc 14, 60-64; Lc 22,
66-71); 

d) por último, a missão que confiou aos Apóstolos de evangelizar o mundo,


trazendo todos os homens à obediência da fé, batizando-os em nome das três
pessoas divinas e ensinando-os a observar sua doutrina como um depósito
inviolável de verdades religiosas e morais (cf. Mt 28, 18ss) [1].

A divindade de Jesus Cristo. É evidente, portanto, que não se pode atribuir


a Jesus, ao menos de forma coerente, qualquer grau de respeitabilidade
moral se não se toma como verdadeiro o seu testemunho. Mas, se isso é
assim, o que implica dizer que Nosso Senhor é verdadeiramente o Filho de
Deus? Este será o tema das aulas desta primeira parte do curso. É
conveniente, em todo o caso, estabelecer três distinções básicas, para que
tenhamos claro desde agora o que queremos dizer quando afirmamos que
Jesus não é como os outros santos, mas que nele Deus está presente de um
modo único e exclusivo. Dizemos, com efeito, que Deus está presente:

a) Por essência e imensidade em todas as coisas, como Criador da


ordem natural e, portanto, como Causa primeira que comunica a perfeição do
ser a todas as criaturas, de maneira contínua e ininterrupta. Por essa
modalidade de presença, Deus se diz presente em absolutamente todos os
entes do universo, dos minerais mais simples até os demônios e condenados
no inferno.

b) Por inabitação em todos os justos, sejam homens ou anjos, como Autor da


ordem sobrenatural e, portanto, como Pai e Amigo. Deus só se diz presente,
por essa segunda modalidade, nas criaturas racionais elevadas a um princípio
de vida divina por obra da graça santificante, que é uma qualidade habitual
criada que confere à alma humana ou à substância angélica uma participação
verdadeira na natureza de Deus, unindo-as a Ele de maneira muito mais
íntima do que a propiciada pela presença de imensidade.

c) Por união pessoal ou hipostática, em virtude da qual Deus mesmo assume


para si uma natureza criada (a saber, a santíssima humanidade de Nosso
Senhor), unindo-a sem confusão nem mistura à sua própria pessoa divina.
Trata-se da união mais íntima possível e, por isso mesmo, indissolúvel. Em
Cristo, Deus não está presente apenas como a Causa que sustenta no ser
sua humanidade nem apenas pela graça santificante, mas como a pessoa ou,
se se prefere, o eu de Jesus. Nele, não há uma pessoa ou eu humano, senão
que todas as suas ações e palavras procedem verdadeiramente do Filho
eterno, assim como, guardadas as proporções, nossas ações e palavras
procedem de nós e nos são atribuídas como à sua fonte ou origem pessoal.

Conclusão — Daí se vê o quão falsas são as teorias, hoje tão vulgarizadas,


para as quais Jesus não seria mais do que um judeu entre tantos, que por um
dom especial foi adquirindo no decorrer de sua vida pública, entre períodos
de crise e incerteza, consciência de sua “filiação adotiva”, mas que acabou
sendo injustamente silenciado pelas autoridades da época, que viam no
movimento por Ele iniciado um perigo para a estabilidade política de Israel.
Nem os evangelhos permitem falar de uma “evolução psicológica” nem as
motivações dos chefes de Israel foram políticas, mas eminentemente
religiosas, inconformadas antes de tudo com a declaração mais ousada que já
ouviu o mundo: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10, 30).

O erro do kenotismo. — Apoiadas em uma conhecida passagem de S. Paulo


na Epístola aos Filipenses, algumas correntes cristológicas contemporâneas
vêm propondo uma interpretação do mistério da Encarnação que não só se
distancia do entendimento canônico da Igreja, mas que implica a anulação do
próprio mistério de Cristo. O texto em questão é o hino cristológico em que o
Apóstolo das gentes canta em tons poéticos — eco talvez da liturgia pré-
paulina que já se celebrava entre os primeiros cristãos — a humildade com
que o Filho eterno de Deus, assumindo a natureza humana, veio ao mundo
para nos redimir: “Sendo Ele de condição divina”, diz, “não se prevaleceu de
sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a
condição de escravo e assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente
reconhecido como homem, humilhou-se ainda mais, tornando-se obediente
até a morte, e morte de cruz” (Fp 2, 6ss).

Desse texto pretendem concluir os kenotistas que o Filho de Deus se


despojou por completo da natureza divina, tornando-se puramente homem,
quer no instante mesmo da Encarnação, quer ao longo da vida, em um
processo de auto aniquilamento que se consumaria no Calvário. Essa
interpretação, no entanto, tem uma série de inconvenientes e é indefensável
por qualquer católico de boa doutrina: a) em primeiro lugar, é contrária ao
Magistério eclesiástico, que ensina de modo claro que o Filho, antes e depois
de assumir a natureza humana, sempre foi e sempre será Deus; b) supõe,
além disso, o absurdo de que Deus seria mutável e imperfeito, já que poderia
perder sua própria condição divina; c) tem, por último, a grave deficiência de
interpretar em sentido literal um trecho não apenas poético, mas que adota
uma linguagem cristológica carente da precisão técnica que a Igreja só
adotaria tempos mais tarde.

O mistério da Encarnação. — O absurdo desses erros pode ser mais bem


avaliado com a simples exposição da verdadeira doutrina católica. Com
efeito, por Encarnação entende a Igreja Católica a união real, admirável e
misteriosa da natureza humana com a divina pessoa do Verbo. Ora, podemos
considerar esse mistério de dois ângulos distintos:

a) Ativamente, ou do ponto de vista do autor da união, a Encarnação não é


mais do que a a ação em virtude da qual Deus criou no tempo uma natureza
humana determinada, composta de corpo orgânico e alma racional, no seio
de Maria Virgem, fazendo-a subsistir desde o primeiro instante de sua
existência na divina pessoa do Verbo.

b) Passivamente, ou do ponto de vista da união em si mesma, trata-se do


vínculo substancial entre a divina pessoa do Verbo e essa natureza humana
determinada, vínculo esse em razão do qual Nosso Senhor Jesus Cristo é, ao
mesmo tempo, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. 

Corolários. — Disto se depreendem os seguintes corolários:

1.º A união estabelecida graças à Encarnação, também chamada união


hipostática, não consiste na “fusão” ou “mistura” das naturezas divina e
humana, mas na coexistência de ambas em unidade de pessoa,
permanecendo cada uma delas perfeitamente íntegra em suas propriedades.

2.º Isso, porém, não se deve entender como se houvesse em Cristo


duas pessoas distintas, uma divina e outra humana. A união hipostática, com
efeito, se realiza na pessoa mesma do Verbo, o que significa que em Cristo
não há mais do que uma única pessoa ou eu, a saber: a pessoa e o eu divino
do Filho eterno, em quem subsiste, sem personalidade humana própria, sua
santíssima humanidade. 

3.º Por isso, mais do que um homem, no sentido de pessoa humana, o mais


adequado é dizer que o Verbo assumiu uma natureza humana. Daí não se
segue, contudo, que o Filho se tenha “revestido” de uma humanidade, porque
a união com a natureza humana não é acidental, mas substancial, como
afirma explicitamente o Apóstolo S. João: “E o Verbo se fez carne” (Jo 1, 14).

4.º A assunção da natureza humana se realizou toda de


maneira imediata e simultânea, no sentido de que, desde o primeiríssimo
instante em que Maria Virgem concebeu o corpo de seu Filho, a ele já estava
unido substancialmente o Verbo de Deus. Ou seja, Maria não
concebeu primeiro uma natureza humana que só mais tarde seria assumida
pelo Filho, senão que o Filho assumiu sua humanidade no instante mesmo de
sua concepção passiva. Afirmar o contrário seria incorrer em alguma forma de
adocionismo, heresia já condenada pela Igreja e que afirma que Cristo
existiu antes como homem e foi posteriormente adotado ou assumido pelo
Filho.

5.º Por fim, sendo o Verbo de natureza divina e, portanto, imutável e


perfeitíssimo, a Encarnação não implica nenhuma mudança ou alteração da
parte do Verbo, mas exclusivamente da parte da natureza humana por Ele
assumida, privada da personalidade humana que teria se pertencesse a uma
pessoa humana. É verdade que nos custa entender como é possível que o
Verbo se tenha unido a uma humanidade sem sofrer nenhum gênero de
mudança; trata-se, não obstante, de uma conclusão iniludível, uma vez que
Deus é ato puro, sem mescla alguma de potência.

A união das duas naturezas. — Como vimos na aula passada, o dogma da


Encarnação, segundo o qual os católicos cremos que Jesus Cristo é
verdadeiro Deus e verdadeiro homem, supõe o que a Igreja denomina, em
sua linguagem canônica, união hipostática. Já esboçamos o que se entende
por essa expressão. Convém insistir agora em algumas distinções
importantes, para que compreendamos da maneira mais adequada possível,
dentro do que permitem nossos pobres conceitos, este grandíssimo mistério
sobrenatural. Pois bem, o conceito de união hipostática articula duas noções
filosóficas básicas:

a) Por um lado, a noção de natureza, que para a filosofia clássica significa


não apenas o conjunto das coisas naturais (as plantas, os animais etc.), mas
também o constitutivo íntimo que faz cada coisa ser o que é, como membro
de uma dada espécie. A natureza, tomada nesse sentido, é o que responde à
pergunta pelo quid ou essência de um ente determinado: o que é isto? Uma
pedra, um cavalo, um homem, um anjo, Deus etc.
b) Por outro lado, a noção de pessoa, que significa o sujeito (também
chamado de suposto ou hipóstase) subsistente que realiza operações por
meio de uma natureza racional. A pessoa, tomada nesse sentido preciso, é o
que responde à pergunta pelo quis ou o sujeito concreto de ações
intencionais e livres: quem é este? É Pedro, Maria, Gabriel, o Verbo etc.

À luz dessa distinção, torna-se um pouco mais fácil entender o que significa o
mistério da Encarnação. O que ensina, pois, o dogma católico é que em
Jesus Cristo há uma única pessoa (um único quis ou hipóstase), que é Filho
eterno de Deus, o qual subsiste em sua própria natureza divina, mas também
em uma natureza humana, criada por obra do Espírito Santo no seio da
Virgem Maria. Mas essa subsistência em duas naturezas não implica que elas
estejam separadas nem, muito menos, que se tenham fundido ou mesclado,
dando origem a uma terceira coisa.

Algumas precisões. — Pelo contrário, como vimos anteriormente, a união na


pessoa do Verbo entre as naturezas divina e humana é substancial, ou
seja: a) não é nem meramente moral, como é o caso da união entre Deus e
os justos pela graça santificante; b) nem acidental, como se a humanidade de
Cristo fosse um “fantoche” ou ferramenta manipulada pelo Verbo; c) nem de
adoção mais ou menos tardia, como pretendem os vários tipos de
adocionismo. No entanto, essa união estreitíssima, em uma só pessoa, das
duas naturezas tampouco implica que elas estejam misturadas e confusas,
senão que cada uma delas, estando unida à outra,
preserva integralmente suas propriedades e atributos. Por isso, não se pode
dizer: a) que a natureza humana tenha sido “engolida” pela divina, porque em
tal caso Jesus não seria verdadeiro homem; b) nem que Cristo tenha uma
“natureza mista”, porque em tal caso Ele não seria nem Deus nem homem de
verdade; c) nem, por último, que se trate de uma “natureza composta”, à
semelhança da natureza humana (composta substancialmente de corpo e
alma como de partes essenciais), porque a divindade não pode ser parte
formal e substancial de nada, como se entrasse em composição com algo
distinto.

Vale a pena ler por inteiro a definição solene com que a Igreja Católica,
reunida em Concílio ecumênico na cidade de Calcedônia, em 451, declarou e
definiu em termos precisos esse mistério soberano:

Seguindo, pois, os santos Padres, com unanimidade ensinamos que se


confesse que um só e o mesmo Filho, o Senhor Nosso Jesus Cristo, perfeito
na sua divindade e perfeito na sua humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro
homem <composto> de alma racional e de corpo, consubstancial ao Pai
segundo a divindade e consubstancial a nós segundo a humanidade,
semelhante em tudo a nós, menos no pecado (cf. Hb 4, 15), gerado do Pai
antes dos séculos segundo a divindade e, nestes últimos dias, em prol de nós
e de nossa salvação, <gerado> de Maria, a virgem, a Deípara, segundo a
humanidade; um só e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, unigênito, reconhecido
em duas naturezas, sem mistura, sem mudança, sem divisão, sem
separação, não sendo de modo algum anulada a diferença das naturezas por
causa da sua união, mas, pelo contrário, salvaguardada a propriedade de
cada uma das naturezas e concorrendo numa só pessoa e numa só
hipóstase; não dividido ou separado em duas pessoas, mas um único e o
mesmo Filho, unigênito, Deus Verbo, o Senhor Jesus Cristo (DH 301-302).
Corolários. — 1.º A distinção entre natureza e pessoa também nos ajuda a
compreender melhor em que sentido a Virgem Maria é Mãe de Deus, como os
católicos sempre cremos e professamos. É evidente que Maria não é Mãe de
Deus no sentido de ter gerado a natureza divina, que é necessariamente
incriada e ingênita; mas o é no sentido de ter gerado em suas entranhas
puríssimas a natureza humana a que se uniu o Verbo de Deus desde o
primeiro instante da concepção passiva de sua carne. Maria é Mãe de Deus,
em última análise, porque se lhe perguntamos quem (quis) é seu Filho ou a
quem ela gerou, a resposta não pode ser outra: o Filho de Deus; se lhe
perguntamos, por outro lado, o que (quid) ela gerou por obra do Espírito
Santo, a resposta só pode ser: a natureza humana assumida pelo Filho de
Deus.

2.º A dificuldade de imaginarmos a Encarnação se deve ao fato de que se


trata, sim, de uma união única e inimaginável. A união hipostática, vale
ressaltar, é uma realidade criada, que começou a existir em um tempo
concreto, a saber: no instante mesmo em que o Verbo se fez carne em Maria
Virgem, sem que isto tenha importado qualquer mudança em Deus, mas
apenas na humanidade assunta. A união hipostática, ademais, é única, por
ser a única união substancial criada em que os termos unidos não
são partes essenciais de um só composto (como é o caso do homem, no qual
a alma é forma e ato de um corpo orgânico em potência para a vida), senão
que tanto a natureza humana quanto a divina se encontram unidas, mas sem
confusão, e permanecem distintas, mas sem separação. Por isso diz S.
Tomás de Aquino que não se pode encontrar entre as criaturas nenhum
exemplo que represente de maneira adequada o mistério assombroso da
Encarnação do Verbo

Recapitulação. — Como vimos na última aula, é verdade revelada por Deus


nas Escrituras, contida nos símbolos de fé e definições conciliares e proposta
pela doutrina constante e universal dos SS. Padres, que Nosso Senhor Jesus
Cristo é uma única hipóstase, na qual subsistem, inconfusas e indivisas, duas
naturezas: a divina e a humana. Um só pois e o mesmo Verbo é verdadeiro
Deus e, a um tempo, verdadeiro homem, não porque tenha assumido uma
humanidade por união acidental nem, como dito antes, por união moral ou de
inabitação, mas porque a assumiu em união propriamente substancial, de
maneira que há um único sujeito de atribuição, que possui a divindade e uma
humanidade. Por isso, embora sejam distintas suas duas naturezas, em
Cristo não há um que seja Deus, e outro que seja homem, senão que o
mesmo Verbo eterno e subsistente, permanecendo verdadeiro Deus,
começou a ser no tempo verdadeiro homem.

As cristologias atuais. — Essa é a terminologia empregada pela Igreja para


expressar o dogma cristológico, da qual, infelizmente, muitos teólogos
contemporâneos se têm afastado, seja por afã de novidade, seja com a
intenção de reformular as verdades de fé em categorias mais “acessíveis” à
mentalidade moderna. O resultado disso é quase sempre discutível, quando
não catastrófico. E a razão fundamental de tantas cristologias atuais
distorcerem o mistério de Cristo é porque seguem o caminho contrário ao que
a Igreja mesma percorreu para defini-lo. Com efeito, a noção de “pessoa”
utilizada pela Igreja para exprimir o dogma cristológico não
é puramente filosófica, elaborada de antemão por pensadores antigos e da
qual se teriam valido os teólogos com o objetivo de defender a divindade de
Nosso Senhor. Trata-se, no fundo, de um conceito misto ou composto, que
tem um substrato filosófico prévio, mas que só pode aplicar-se a Deus em
sentido adequado com as ampliações e retificações que a
própria Revelação sobrenatural proporciona. Em outras palavras, podemos
afirmar que [1]:

a) Não é o dogma revelado das duas naturezas de Cristo em uma pessoa que
deve ajustar-se às noções de “natureza” e “pessoa” descobertas
racionalmente apenas com o exercício da filosofia; antes, pelo contrário, são
essas noções filosóficas que devem ser polidas, retificadas, enriquecidas e
ajustadas à norma do dogma revelado. Não somos nós que ditamos em que
sentido Cristo é pessoa e tem esta ou aquela natureza; é  Deus mesmo quem
nos revela que seu Filho encarnado é uma só pessoa em duas naturezas,
cabendo-nos então o trabalho de adequar ao mistério o conceito de “pessoa”
e “natureza” que já possuíamos.

b) Daí que um conceito pleno e ajustado de “pessoa” seja em parte racional


ou filosófico (porque supõe a noção comum de “pessoa” que somos capazes
de formular graças à experiência que temos das pessoas humanas finitas), e
se derive em parte de verdades sobrenaturais (porque foi apenas à luz da
Revelação que pudemos nos dar conta de que a nossa definição comum de
“pessoa” era não só errônea em teologia, mas falsa em filosofia, a saber: que
a cada substância intelectual ou natureza singular racional corresponde uma,
e somente uma, hipóstase, o que é falso quando aplicado aos mistérios
cristológico e trinitário).

c) O que fazem, porém, as cristologias modernas é sujeitar os mistérios da fé


a categorias meramente humanas, quando não completamente falsas,
invertendo assim a ordem de subordinação entre as ciências: põem a teologia
a serviço da filosofia ou, o que é pior, de ideologias, distorcendo o sentido
autêntico dos dogmas da Igreja, numa multiplicação de heresias diretamente
proporcional ao número de “escolas” e “correntes” cristológicas. Daqui
surgem, por exemplo, cristologias inspiradas no existencialismo, na
psicanálise, no marxismo, nenhuma das quais é capaz de
enxergar quem realmente é Cristo, porque são incapazes por si sós de
elaborar um conceito suficientemente fino e universalmente aplicável de
“pessoa”. Eis por que apelam a todo tipo de torneios argumentativos para
explicar como o que julgam ser um “simples homem” poderia dizer de si
mesmo: “Eu sou a ressurreição e a vida” (Jo 11, 25).
Recapitulação. — Dedicamos as primeiras aulas do curso ao estudo da
união hipostática em si mesma. Vimos que se trata de uma união  pessoal, e
não moral ou acidental (como é o caso, v.gr., da união entre Deus e os justos
pela graça santificante), e substancial, não porque em Cristo haja uma só
natureza, resultante da fusão entre a divindade e a humanidade, mas porque
esta foi verdadeiramente assumida pelo Verbo, permanecendo íntegras e
inconfusas ambas as naturezas. Daí que o Magistério da Igreja tenha
condenado, nos Concílios de Éfeso e Calcedônia, os erros tanto
do nestorianismo como do monofisismo em todas as suas formas: o primeiro,
por ensinar que em Cristo há duas pessoas distintas, de modo que Ele não
seria realmente Deus, mas um simples teóforo ou um santo de inigualável
grandeza; o segundo, ou por diluir a humanidade na divindade, convertendo
Cristo em homem aparente, ou por misturar as duas naturezas em uma
terceira, negando-lhe com isso a condição de verdadeiro Deus e verdadeiro
homem.

A graça de Cristo. — Na presente aula, estudaremos em grandes linhas uma


das primeiras consequências que, para a humanidade de Jesus Cristo,
implicou essa união pessoal e substancial com o Verbo divino: a santidade ou
a graça de Nosso Senhor. Pois bem, dado que toda natureza humana se
compõe, como de partes físicas essenciais, de alma e corpo, veremos
primeiro a graça que compete à humanidade de Cristo como tal, ou seja,
enquanto composto, e em seguida a que compete propriamente à sua Alma.
Os teólogos, com efeito, costumam distinguir em Jesus Cristo três tipos de
graças: a) a graça substancial de união, por um lado, e as
graças acidentais b) santificante e c) capital, por outro. Vejamos brevemente
cada uma delas:

a) Por graça de união se entende a própria união substancial com que a


natureza humana de Nosso Senhor está unida, em sua integridade (ou seja,
em alma e corpo), ao Verbo divino. Em virtude dessa união, comunica-se à
humanidade de Cristo não apenas santidade, mas também a dignidade do
Filho eterno de Deus. Isso significa que, mesmo enquanto homem, Nosso
Senhor era e sempre foi absoluta e intrinsecamente impecável, digno da
mesma adoração devida a Deus e sujeito de operações de um valor
meritório infinito (assim, v.gr., tiveram um valor infinito aos olhos do Pai não
apenas os seus sofrimentos redentores, mas as suas ocupações ordinárias,
como o seu trabalho de carpinteiro, e os seus incômodos diários, como a
fome e a sede depois de uma jornada na carpintaria). É dessa graça que nos
fala o Apóstolo S. João, ao escrever no prólogo do seu evangelho: “E o
Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, a glória que o
Filho único recebe do seu Pai” (Jo 1, 14) [1].

b) Além disso, Jesus Cristo possui em plenitude, intensiva e extensivamente,


a graça santificante ou habitual, como o mesmo S. João afirma em seu
prólogo: “Cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 14). A graça santificante, vale
lembrar, é uma qualidade sobrenatural criada que Deus infunde na essência
da alma humana, elevando-a a uma participação real e verdadeira da
natureza divina e provendo-a dos hábitos operativos (isto é, das virtudes
infusas) necessárias para operar e merecer sobrenaturalmente. É evidente
que a Alma humana de Cristo, justamente por ser humana, precisava da
graça santificante ou habitual, por mais que Cristo fosse Deus em razão
do suposto, que é o Verbo, e de sua natureza divina. A humanidade de Cristo,
por conseguinte, é perfeitíssima na ordem da graça, capaz por si mesma e
enquanto instrumento do Verbo eterno de operações próprias, elevadas e
enriquecidas pela graça santificante.

c) Por fim, reconhece-se em Cristo a chama graça capital, o que significa que


Ele é, sob todos os títulos, Cabeça da Igreja e fonte da qual promanam todas
as graças que chegam aos membros do seu Corpo. A Igreja Católica,
lembremos sempre, é em sua realidade mais profunda Corpo místico de
Cristo: os que a ela pertencemos não somos apenas integrantes de uma
comunidade visível e de caráter externo, mas também, e antes de tudo,
membros de um organismo vivo, pelo qual circula uma mesma vida
sobrenatural. Por graça capital, portanto, devemos entender a própria graça
santificante ou habitual de Cristo que, em virtude de sua superabundância
infinita, “é princípio da graça em todos os membros do seu Corpo místico” [3].
É a isso que se refere, uma vez mais, o evangelista S. João, ao escrever:
“Todos nós recebemos da sua plenitude graça sobre graça” (Jo 1, 16).

A ciência de Cristo. — Se Cristo, como diz S. João, é “cheio de graça e


de verdade” (Jo 1, 14), é evidente que se lhe deve reconhecer
um conhecimento elevadíssimo, não somente como Deus, mas também como
homem. É a sentença mais comum entre os Padres, Doutores e teólogos de
todas as épocas, mas que foi posta em xeque a partir de meados do séc. XIX,
com o surgimento da heresia modernista. Para os modernistas, de modo
geral, a Cristo se deve atribuir não apenas certo grau de ignorância, mas
também o fato de ter-se realmente equivocado em determinadas matérias.
Prova disso, pensam eles, seriam suas últimas palavras na cruz, um sinal de
que o desiludido rabino galileu, vendo-se abandonado pelo Pai, teria
finalmente entendido que a vinda do Reino não era tão iminente como Ele
havia imaginado. É por isso que o modernismo nega a Jesus toda e qualquer
ciência infalível, ao mesmo tempo que afirma que Ele não teve sempre
consciência de sua dignidade messiânica, senão que a foi “descobrindo”
pouco a pouco (cf. S. Pio X, Decreto “Lamentabili”, de 3 jul. 1907, prop. 35:
DH 3435).

Nada disso, porém, é compatível com o dogma católico nem com o


testemunho da Escritura e da Tradição da Igreja. O Papa S. Pio X, com efeito,
condenou a seguinte proposição: “Não é possível conciliar o sentido natural
dos textos evangélicos com aquele que nossos teólogos ensinam a respeito
da consciência e da ciência infalível de Cristo” (Decreto “Lamentabili”, prop.
32: DH 3432). Os autores sagrados, por sua vez, ensinam com toda a
clareza: “Sobre ele repousará o Espírito do Senhor, Espírito de sabedoria e
de entendimento […], Espírito de ciência” (Is 11, 2); “Cristo, no qual estão
escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência” (Col 2, 3). E S.
Jerônimo, no séc. V, escreveu: “Nenhum homem, salvo aquele que, pela
nossa salvação, se dignou vestir-se de carne, teve ciência plena e
verdade certíssima” (Ep. 36, ad Damasum: PL 22, 459). Por fim, um decreto
do S. Ofício, de junho de 1918, determinou que não se pode ensinar com
segurança (isto é, sem risco de desvio na fé) a opinião segundo a qual Cristo
não teve a ciência dos bem-aventurados nem conhecia, no Verbo, tudo o que
Deus conhece com ciência de visão (cf. DH 3645ss).

Quatro classes de ciência. — Ora, se a verdade católica nos ensina que


Cristo é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, nada mais natural
do que lhe atribuir uma ciência divina, própria do intelecto que, como Verbo,
tem em comum com o Pai e o Espírito Santo, e uma ciência humana, própria
do intelecto que, como homem, tem em virtude de sua alma racional. Por
esse motivo, os teólogos costumam distinguir em Nosso Senhor quatro
classes de ciência: de um lado, a ciência divina e, de outro, uma tríplice
modalidade de ciência humana, enquanto se divide
em beata, infusa e experimental ou adquirida. Vejamos cada uma delas:

a) Ciência divina. — É evidente, em primeiro lugar, que Cristo tem e sempre


teve a ciência própria e característica do seu intelecto divino, já que é Verbo
eterno, consubstancial ao Pai. Esta ciência divina, por ser tal, é infinita,
estendendo-se a tudo o que é, foi e será (ciência de visão) e a tudo quanto
poderia ser ou ter sido (ciência de simples inteligência). Enquanto Deus,
portanto, Jesus Cristo possui uma ciência perfeitíssima, que abarca de modo
exaustivo tudo o que participa ou pode participar da perfeição do ser, ou seja,
que abarca tudo o que pode ser conhecido, não somente em geral, mas de
maneira particular e plenamente diferenciada.

b) Ciência beata. — É igualmente certo, além disso, que Jesus teve, desde o
primeiro instante de sua concepção, a chamada ciência beata ou de visão
beatífica, que é a ciência com que os anjos e santos do céu conhecem a
Deus em si mesmo e as outras coisas em Deus. Cristo, portanto, via e
conhecia a Deus não apenas com seu intelecto divino, ao compreender sua
própria substância divina, mas também com seu intelecto humano elevado
pelo lumen gloriae. Ele mesmo o afirma, ao dizer a Nicodemos: “Ninguém
subiu ao céu senão aquele que desceu do céu, o Filho do Homem
que está no céu” (Jo 3, 13). O Filho do Homem, por conseguinte, mesmo na
condição de viator, estava no céu, o que não é possível senão pela visão
beatífica. O que também se pode ver pelo seguinte argumento: se toda causa
é anterior ao efeito e contém, de modo superior, a perfeição comunicada ao
efeito, é evidente que Cristo, sendo a causa da bem-aventurança para os
outros homens, como diz a Escritura: “Desejando conduzir à glória numerosos
filhos” (Hb 2, 10), deveria ser bem-aventurado primeiro e mais do que todos
os outros. É uma exigência não só da união hipostática, mas de sua condição
de autor da nossa salvação.

c) Ciência infusa. — Tampouco se pode duvidar, em terceiro lugar, de que


Nosso Senhor tivesse ciência infusa, isto é, não adquirida por atos próprios,
mas infundida por Deus em seu intelecto humano. Se, com efeito, em Cristo
estão todos os tesouros de sabedoria e ciência, não se lhe pode
negar um dos maiores tesouros de ciência, que é justamente a ciência infusa.
Por quê? Porque não convinha, diz o Angélico (cf. STh III 9, 3 c.), que fosse
imperfeita a natureza humana assumida pelo Verbo. E como um intelecto
ainda em potência para o que pode ser conhecido implica certo grau de
imperfeição (pois conhecer em ato é a perfeição da inteligência), convinha
que o intelecto de Cristo, desde o primeiro instante de sua concepção, tivesse
impressas em ato, por infusão, as espécies de tudo aquilo que um intelecto
humano está em potência para conhecer, tanto na ordem natural (verdades
naturais) quanto na sobrenatural (mistérios da graça).

d) Ciência adquirida. — Por último, sendo Cristo verdadeiro homem e tendo,


por essa razão, a faculdade de conhecer como todo intelecto
humano naturalmente conhece, é evidente que possuía ciência experimental,
adquirida por atos e vivências próprias. Se, com efeito, Cristo é verdadeiro
homem, tem verdadeira alma racional, e como em toda alma racional há uma
dupla potência cognoscitiva (o intelecto possível, que recebe as espécies, e o
intelecto agente, que as torna inteligíveis em ato por abstração dos
fantasmas), tampouco se pode duvidar de que Jesus adquirisse
conhecimentos por experiência própria e pessoal, como insinua o evangelista
S. Lucas: “E Jesus crescia em estatura, em sabedoria e graça, diante de
Deus e dos homens” (Lc 2, 52).

Uma dificuldade. — Em Cristo, como vimos até agora, apesar de haver


duas naturezas, a divina e a humana, há uma única pessoa, a do Verbo de
Deus, e por este motivo uma perfeita unidade ontológica: Cristo é um só ser,
com uma única existência substancial, comum às duas naturezas. Mas —
poderíamos perguntar —, se nele há duas naturezas distintas, e
ambas intelectuais, não se segue daí que nele há também
duas consciências distintas e, portanto, dois eus diferentes: um próprio da
divindade, e outro exclusivo da humanidade? Em outras palavras, a unidade
hipostática é realmente compatível com a unidade psicológica de Nosso
Senhor? Afinal, se em Cristo há somente um eu divino, parece pouco
provável que Ele se soubesse e sentisse como verdadeiro homem; se, por
outro lado, não há mais do que um eu humano, Ele certamente não poderia
nem saber-se nem sentir-se como verdadeiro Deus; se, enfim, admitimos um
duplo eu, um para cada natureza, introduzimos na consciência de Cristo uma
espécie de “esquizofrenia”, pouco conforme à sua própria maneira de referir-
se a si mesmo como uma única pessoa: “Eu sou o pão vivo que desceu do
céu” (Jo 6, 51); “Antes que Abraão fosse, eu sou” (Jo 8, 58); “Eu e o Pai
somos um” (Jo 10, 3); “Saí do Pai e vim ao mundo. Agora deixo o mundo
e volto para junto do Pai” (Jo 16, 28).

Resposta. — A solução mais provável e segura a este aparente impasse


afirma que, “embora Jesus Cristo, como verdadeiro Deus e verdadeiro
homem, tenha consciência divina e consciência humana, goza, não obstante,
de uma perfeita unidade psicológica, ou seja: possui um só eu não apenas
ontológica, mas também psicologicamente. Trata-se do eu divino do Verbo”. A
existência em Cristo de uma dupla consciência não só não implica nenhum
tipo de “esquizofrenia” (como poderíamos pensar), senão que é uma
consequência necessária da unidade ontológica que decorre da união
hipostática. Em Cristo, há de fato duas consciências (uma divina e outra
humana, que se subdivide, como em todo homem, em sensível e intelectual),
mas um só eu: o eu do Verbo eterno. A razão disso é que para cada
consciência não se requer, necessariamente, uma pessoa correspondente,
mas apenas uma natureza consciente, e como a natureza humana de Nosso
Senhor subsiste, sem um suposto humano próprio, na pessoa divina do Filho,
segue-se que nele há um único eu, que fala de si mesmo como um só
sujeito de operações, tanto divinas quanto humanas.

Breve explicação. — Mas, se isso é assim, de que maneira Jesus Cristo, por
sua consciência humana, sabia com toda a certeza que era Deus? É
evidente, por um lado, que o Verbo, à luz de sua ciência divina e
omnicompreensiva, sabia ter-se encarnado e que, portanto, era ao mesmo
tempo perfeitamente Deus e perfeitamente homem. Mas por que meio, no fim
das contas, a alma humana de Cristo se dava conta de pertencer, em unidade
de pessoa, ao próprio Filho de Deus? Mais uma vez, a solução provável e
segura é a que afirma que “Jesus Cristo, enquanto homem, teve consciência
de sua divindade em virtude da visão beatífica, da qual gozava a sua alma já
neste mundo” [2]. Assim sendo, “a mesma pessoa que, pelo entendimento
humano, realiza o ato da visão beatífica percebe-se claramente a si mesma
como presente ao seu próprio ato de visão, já que essa pessoa é Deus
mesmo”

A dupla vontade de Cristo. — Se em Cristo, como temos visto, há


duas naturezas intelectuais íntegras e inconfusas — a divina e a humana —,
e se a toda natureza intelectual corresponde um intelecto, pelo qual conhece
a verdade, e uma vontade, pela qual ama o bem apreendido pelo intelecto, é
evidente que em Cristo deve haver não somente dois intelectos, mas
também duas vontades: uma própria da natureza divina, comum às três
pessoas da SS. Trindade, e outra pertencente à natureza humana assumida.
Trata-se de uma consequência lógica da união hipostática, que supõe da
parte do Verbo a assunção, em unidade de pessoa, de uma
humanidade completa, com todas as partes que lhe convêm essencialmente.

Alguns erros contrários. — Negaram a existência de uma dupla vontade e


operação em Cristo os hereges apolinaristas, para os quais o Verbo divino
desempenhava a função de intelecto na natureza humana, a qual estaria
desprovida, portanto, de faculdades cognoscitivas e apetitivas próprias;
os maniqueus, segundo os quais Jesus não seria homem verdadeiro, mas
aparente; os monofisistas, que, por não admitirem mais do que uma natureza
em Cristo, não podiam, como é lógico, conceber nele mais do que uma única
vontade; e os chamados monotelitas (ou monergistas), que afirmavam
abertamente que em Cristo havia apenas uma operação e virtude e, por
conseguinte, uma só vontade. O Magistério da Igreja, no entanto, declarou e
definiu de modo solene a existência em Jesus Cristo de uma dupla vontade e
operação em ao menos duas ocasiões: no I Concílio de Latrão, sob o
pontificado de Martinho I (cf. DH 500), e no III Concílio de Constantinopla, sob
o pontificado de Agatão, que ensinou: “Proclamamos nele [em Cristo],
segundo o ensinamento dos Santos Padres, duas vontades ou quereres
naturais e duas operações naturais, sem divisão, sem mudanças, sem
separação ou confusão” (DH 556).

Uma objeção. — Ora, admitida, segundo o ensinamento católico, a existência


de duas vontades em Jesus Cristo, poder-se-ia objetar que houve nele
contrariedade e oposição entre as vontades divina e humana e, portanto, ao
menos alguma resistência, da parte da segunda, a fazer o que desejava a
primeira, o que não parece estar livre de pecado. Prova disso seriam as
palavras por Ele ditas durante a agonia no Getsêmani: “Pai, se é de teu
agrado, afasta de mim este cálice!” (Lc 22, 42). Contra essa objeção, podem
aduzir-se dois argumentos principais:

a) O ensinamento da Igreja. — Em primeiro lugar, a autoridade magisterial da


Igreja, ao definir a coexistência de duas vontades em Nosso Senhor, declarou
também que entre elas não houve nem poderia haver nunca contrariedade e
oposição, pois a vontade humana esteve sempre perfeitamente sujeita à
divina. Eis as palavras do III Concílio de Constantinopla:  “As duas vontades
naturais não estão – longe disso! – em contraste entre si, como afirmam os
ímpios hereges, mas a sua vontade humana segue sem oposição ou
relutância, ou melhor, é submissa à sua vontade divina e onipotente. Era
necessário, de fato, que a vontade da carne fosse guiada e submissa à
vontade divina” (DH 556).

b) A razão teológica. — Como explicar então as palavras ditas durante a


agonia no Horto? Para inteligência deste ponto, cumpre recordar que a
vontade humana, em função da diversidade de seus atos, pode ser
considerada de dois ângulos: como natureza (voluntas ut natura) e como
razão (voluntas ut ratio). O que isso significa? Significa que a mesma vontade
humana possui duas classes ou ordens de apetite: por um lado, enquanto
potência natural, está inclinada por si mesma e espontaneamente a querer o
bem e a fugir do mal; por outro, enquanto potência racional ou subordinada à
razão, pode querer aqui e agora o que, revestido de todas as circunstâncias e
ordenado a um determinado fim, se lhe afigura um bem, por mais que lhe
repugne segundo sua inclinação natural. Assim, por exemplo, embora a
vontade ut natura esteja, por si mesma, inclinada a rejeitar a dor, pode querer
até mesmo o sofrimento como algo ordenado a um bem superior. Nesse
sentido, a vontade humana de Cristo (ut natura) rejeitava submeter-se à
paixão e à morte, que, em si mesmas, são males contrários à inclinação
natural de toda vontade humana, e por isso clamava Ele em oração: “Pai,
afasta de mim este cálice”; mas a mesma vontade humana de Cristo (ut ratio)
queria a paixão e a morte, que, por estarem ordenadas à nossa redenção,
eram para Ele um bem mais apetecível do que a sua própria vida natural, e
por isso acrescentava: “Não se faça, todavia, a minha vontade” ut natura,
“mas sim a tua”, à qual a minha, ut ratio, está plenamente subordinada.

Daí se vê que em Cristo não houve, propriamente, luta ou contrariedade entre


duas vontades: primeiro, porque a sua vontade como razão sempre quis e foi
dócil ao que era do agrado da vontade divina; e, segundo, porque um “conflito
de interesses” entre um apetite racional e a inclinação natural da vontade não
implica, necessariamente, uma contrariedade interna à própria vontade, mas,
antes, a subordinação dos afetos ou amores naturais da vontade a um bem
superior indicado pelo intelecto. Por isso, as palavras ditas no Getsêmani não
provam uma “insubordinação” momentânea de Cristo à vontade do Pai, mas
justamente sua conformidade plena e meritória a ela: “Não se faça, todavia, a
minha vontade, mas sim a tua”.

Corolários. — Donde se segue que Cristo foi perfeitamente livre e, ao


entregar-se à morte redentora que seu Pai havia decretado, exerceu um ato
de verdadeiro livre-arbítrio e, portanto, meritório. É insustentável, por outra
parte, a opinião dos que afirmam que, para um ato ser meritório, é preciso
que o sujeito tenha a capacidade de realizar livremente o
ato demeritório contrário, e como Cristo era essencialmente impecável, não
poderia merecer com nenhuma ação. Com efeito, a capacidade de realizar
ações moralmente imperfeitas não é da essência da liberdade, mas apenas
um sinal de liberdade, a saber: da liberdade finita própria dos agentes que,
por não verem naturalmente o sumo Bem, podem desviar-se dele ao
quererem um bem particular fora da ordem devida. Ora, uma vez que Jesus
Cristo, desde o primeiro instante de sua concepção, via o sumo Bem, tanto
pela graça de união como pela ciência beata, possuía um livre-arbítrio
confirmado no bem e, por isso mesmo, “incapaz” de pecar, não por defeito,
mas por abundância de liberdade: “Quem de vós me acusará de pecado?”
(Jo 8, 46).

A oração de Cristo. — Estabelecida, na aula anterior, a dupla vontade e


operação de Cristo, implicação necessária da união hipostática, cumpre
estudar agora uma segunda consequência da assunção da natureza humana
por parte do Verbo, que é a oração de Nosso Senhor. Vimos, com efeito, que
em sua agonia no Horto das Oliveiras Jesus clamou ao Pai: “Afasta de mim
este cálice” (Lc 22, 42), e em diversas passagens os evangelhos atestam que
Ele rezava com frequência, às vezes durante noites inteiras: “Subiu à
montanha para orar na solidão” (Mt 14, 23). Mas como entender que, sendo
Deus, Cristo rezasse ao Pai? Afinal, toda oração consiste em manifestar à
divindade os próprios desejos, e não parece coerente que Deus reze a si
mesmo nem que a vontade divina manifeste a si mesma seus próprios
desejos. É evidente, portanto, que Cristo rezava segundo a sua
natureza humana e em razão de sua vontade humana, já que, enquanto
Deus, tinha com o Pai a mesma vontade e o mesmo poder de realizar tudo o
que quisesse. Por isso, deve-se dizer que a Cristo convinha rezar
enquanto homem, pois a sua vontade humana, naturalmente limitada, não
podia fazer por si só tudo o que quisesse, mas precisava recorrer ao poder
divino, do qual disse o salmista: “O Senhor faz tudo o que lhe apraz” (Sl 134,
6).

Uma objeção. — Poder-se-ia, no entanto, levantar a seguinte objeção: Cristo,


mesmo enquanto homem, possuía um conhecimento perfeitíssimo em razão
de sua ciência beata e infusa, o que inclui o conhecimento dos eventos
futuros; ora, ninguém pede o que sabe que certamente há de acontecer, pois
todo pedido versa sobre o que se deseja como possível, e não como
absolutamente certo; logo, não parece que Cristo tivesse de pedir em oração
o que quer que fosse. Deve-se dizer, em sentido contrário, que nesse mesmo
conhecimento de Cristo fundava-se a necessidade de rezar, pois
Ele sabia que, por disposição divina, algumas coisas não sucederiam senão
por força de sua oração, porquanto Deus, se pode providenciar por si mesmo
e diretamente às criaturas tudo o que lhes é necessário ou conveniente, pode
também providenciá-lo por intermédio das próprias criaturas, ou seja,
contando com a colaboração delas como causas segundas na ordem da
Providência, à qual pertence a oração de agentes livres como, por exemplo,
Cristo-homem.

As qualidades da oração de Cristo. — São duas, fundamentalmente:

1.ª Plena conformidade com a vontade divina. — Também se deve dizer que


“a oração de Cristo brotou sempre de sua razão deliberada, nunca de seu
apetite sensitivo; mas, às vezes, manifestou Cristo em sua oração os desejos
do apetite sensitivo e da vontade natural” [1]. É nesse sentido que se deve
entender, em última análise, a oração no Horto: “Afasta de mim este cálice”.
Nela, com efeito, Jesus exprimia a Deus os desejos de sua sensibilidade e a
inclinação natural de sua vontade, a fim de nos ensinar três coisas: a) que Ele
assumiu uma natureza humana real, com todos os seus afetos e inclinações
próprias; b) que nos é lícito expressar a Deus os desejos da nossa
sensibilidade e, em função deles, formular pedidos condicionais: “Pai, se é de
teu agrado”; c) que é necessário submeter a Deus nossos próprios afetos,
conformando-nos ao que é do agrado dele, e não do nosso: “Não se
faça, todavia, a minha vontade, mas sim a tua” [2].

2.ª Plena eficácia. — Ora, se a oração de Cristo procedia sempre de


sua razão deliberada, isto é, de sua vontade absoluta, era sempre atendida
por Deus, já que por esta vontade, sempre conforme à divina, não queria nem
pedia em oração mais do que sabia ser querido e atendido por Deus, como se
lê no Evangelho: “Sei também, agora, que tudo o que pedires a Deus, Deus te
concederá” (Jo 11, 22); “Pai, rendo-te graças, porque me ouviste. Eu bem sei
que sempre me ouves” (Jo 11, 41s); e na Epístola ao Hebreus: “Dirigiu preces
e súplicas, entre clamores e lágrimas, àquele que o podia salvar da morte,
e foi atendido pela sua piedade” (Hb 5, 7).

33. Corolários. — Donde se segue que as orações condicionais de Cristo,


pelas quais expressava a Deus os afetos da sensibilidade ou as inclinações
da vontade como natureza (voluntas ut natura), nem sempre foram atendidas,
como é o caso da oração no Horto. Também se deve dizer, por último, que
Jesus Cristo continua a rezar no céu, intercedendo ao Pai por nós como
nosso advogado, a fim de recebermos no tempo oportuno os frutos de seus
méritos redentores. É o que nos dizem as Escrituras: “Cristo Jesus […], que
está à mão direita de Deus, é quem intercede por nós” (Rm 8, 34); “Vive
sempre para interceder em seu favor” (Hb 7, 25); “Se alguém pecar, temos
um intercessor junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo” (1Jo 2, 1).
Noção de sacrifício. — A palavra “sacrifício” pode tomar-se em três sentidos,
do mais comum e genérico, aplicável a qualquer tipo de sacrifício, ao mais
restrito e específico, próprio do sacrifício religioso. 

a) Em sentido comum e genérico, entende-se por sacrifício a entrega de


algum bem, sensível ou não, motivada por um fim honesto (assim, v.gr., diz-
se que faz um sacrifício a criança que renuncia à sua parte do bolo para que
os irmãos possam comer mais); 

b) em sentido religioso amplo, entende-se por sacrifício todo ato interno de


entrega de si mesmo a Deus, bem como toda manifestação externa dessa
entrega interior (assim, v.gr., diz-se que faz um sacrifício quem reza, jejua ou
dá esmola); 

c) em sentido religioso estrito, entende-se por sacrifício todo rito externo em


que se oferece a Deus um dom sensível por intermédio de um ministro
legítimo, com a finalidade de (i) reconhecer o domínio soberano de Deus e,
no estado atual de pecado, de (ii) reconciliar-se com Ele pela expiação das
culpas (assim, v.gr., diz-se que oferece um sacrifício o padre que celebra a
Santa Missa).

Observação. — Embora a oferta a Deus de um sacrifício em


sentido estrito seja competência de um sacerdote — como veremos adiante
—, todo ser humano tem, enquanto criatura, o dever natural de sacrificar a
Deus, ao menos em sentido religioso amplo. A razão disso é que, sendo Deus
a causa eficiente primeira e a causa final última de todas as coisas, o homem
está naturalmente obrigado a reconhecer a soberania de Deus sobre o
conjunto da criação e, portanto, de assumir livremente os deveres de servidão
e entrega que se seguem de sua própria dependência de Deus, em tudo o
que é e possui. Por isso, pode-se dizer que o homem é, por natureza,
um animal sacrificial: se toda criatura, com efeito, está destinada a dar glória
a Deus, o ser humano, enquanto criatura racional, não pode realizar esta
glorificação senão por intermédio de suas potências espirituais, a inteligência
e a vontade, o primeiro de cujos atos é reconhecer e aceitar sua total
dependência de Deus e, com isso, entregar-se a Ele, fonte de seu ser e
finalidade de sua existência. Nisso se salva, ao menos em sentido amplo, a
acepção religiosa de “sacrifício”. 

O sacerdote. — Em sentido restrito e mais específico, todo sacrifício exige


um ministro legítimo, também chamado sacerdote. É sacerdote, portanto,
quem é constituído por mandato de autoridade pública como intermediário
entre Deus e os homens para oferecer a Deus, em protestação de sua
soberania, dons e sacrifícios. Daí se segue que: a) quem, destituído de
mandato público, oferece a Deus dons e sacrifícios em sentido impróprio
(v.gr., oblações espirituais, como a oração) não é propriamente sacerdote,
mas pode assim ser chamado em sentido amplo, em razão de certa
semelhança, como no caso do sacerdócio comum dos fiéis (cf. 1Pd 2, 9); b)
quem tem por ofício a faculdade de oferecer a Deus um sacrifício
propriamente dito e de dispensar aos homens as coisas sagradas é, no
sentido mais rigoroso da palavra, sacerdote. O múnus principal do sacerdote,
porém, é oferecer a Deus sacrifícios, como diz a Epístola aos Hebreus: “Todo
pontífice é […] e constituído […] nas coisas que dizem respeito a Deus, para
oferecer dons e sacrifícios pelos pecados” (Hb 5, 1), competindo-lhe
apenas secundariamente o de dispensar aos homens as coisas sagradas.
Logo, o sacerdócio é a função principal de um mediador entre Deus e os
homens, porquanto lhe cabe oferecer a Deus o que é do homem (orações e
dons) e dar aos homens o que é de Deus (graças e sacramentos) [3].

Conclusão. — Com base nestas noções, pode-se afirmar que Jesus Cristo é,
verdadeira e propriamente, sacerdote e mediador perfeitíssimo entre Deus e
os homens. Atestam-no as SS. Escrituras: “O Senhor jurou e não se
arrependerá: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de
Melquisedec” (Sl 109, 4); “Temos, portanto, um grande Sumo Sacerdote que
penetrou nos céus, Jesus, Filho de Deus” (Hb 4, 14), e confirma-o a razão
teológica. Com efeito, o ofício próprio do sacerdote é ser mediador entre Deus
e os homens, enquanto dispensa ao povo as coisas sagradas e apresenta a
Deus as preces do povo e oferece-lhe sacrifícios; ora, tudo isto convém a
Cristo por excelência, como está escrito: “Aprouve a Deus fazer habitar nele
toda a plenitude e por seu intermédio reconciliar consigo todas as criaturas,
por intermédio daquele que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu
a paz a tudo quanto existe na terra e nos céus” (Col 1, 19); logo, é evidente
que Cristo-homem é, por excelência, mediador entre Deus e os homens e, por
isso mesmo, própria e verdadeiramente sacerdote [4].

Veremos nas aulas seguintes, à luz do que vimos nesta, a natureza de seu
sacrifício redentor.

Soteriologia. — Com a presente aula damos início à segunda parte do nosso


curso de Cristologia, na qual nos iremos centrar no estudo da obra da
Redenção, também chamado pelos tratadistas de Soteriologia. É importante
recordar, no entanto, que a reflexão sobre a Encarnação em si mesma, como
fizemos até agora, é inseparável, embora distinta, da reflexão sobre a
Encarnação do ângulo de seu motivo ou finalidade, que foi redimir o gênero
humano. Isso significa que Cristologia e Soteriologia não constituem,
propriamente falando, dois tratados teológicos à parte, mas dois capítulos ou
momentos integrantes de um único tratado, cujo objeto de estudo é o Verbo
encarnado, primeiro no que lhe convém em si mesmo, e depois no
que fez para nos salvar. A divisão do estudo teológico do Verbo encarnado
nestes dois capítulos se justifica, antes de tudo, por uma questão de ordem
pedagógica: embora o Verbo se tenha encarnado a fim de nos redimir, para
nós é mais conveniente entender primeiro a Encarnação para só depois, uma
vez instruídos no dogma, compreendermos de modo adequado a sua obra
redentora.

O próprio Cristo, com efeito, primeiro conduziu os discípulos, por sinais certos
de credibilidade, à fé no mistério da Encarnação, para só então lhes revelar a
plenas luzes o mistério da Redenção na cruz. Temos disso uma amostra na
confissão cristológica de S. Pedro, onde vemos o Senhor louvar a fé do
príncipe dos Apóstolos em sua condição de Filho de Deus: “Tu és o Cristo, o
Filho de Deus vivo” (Mt 16, 16), para logo em seguida complementá-la com o
fato, inseparável da Encarnação, de que o mesmo Cristo “precisava ir a
Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos príncipes dos sacerdotes
e dos escribas; seria morto e ressuscitaria ao terceiro dia” ( Mt 16, 19). Já nos
referimos a essa complementaridade mútua entre Cristologia e Soteriologia
na segunda aula do curso (cf. n. 7ss).

O motivo da Encarnação. — Antes, porém, de estudarmos em detalhe a


obra redentora de Nosso Senhor, convém insistir um pouco mais na verdade,
atestada claramente pelas fontes da Revelação, de que o Filho de Deus se
encarnou de fato para redimir a humanidade, perdida em Adão pelo pecado
original. Vejamos apenas uns poucos testemunhos da Escritura, suficientes
para confirmar essa tese: “Hoje vos nasceu na Cidade de Davi um Salvador,
que é o Cristo Senhor” (Lc 2, 11), anunciam os anjos aos pastores de Belém;
“O Filho do Homem”, afirma Jesus, “veio procurar e salvar o que estava
perdido” (Lc 19, 10); “De tal modo Deus amou o mundo”, escreve S. João,
“que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas
tenha a vida eterna” (Jo 3, 16); “Quando veio a plenitude dos tempos”, ensina
S. Paulo, “Deus enviou seu Filho, que nasceu de uma mulher e nasceu
submetido a uma Lei, a fim de remir os que estavam sob a Lei, para que
recebêssemos a sua adoção” (Gl 4, 4-5). Além disso, o Símbolo niceno-
constantinopolitano, expressão oficial e autorizada da fé da Igreja, diz
claramente, referindo-se à Encarnação do Verbo: “Qui propter nos homines et
propter nostram salutem descendit de caelis”, onde se deve notar o uso da
preposição propter, que em latim significa tanto a causa final quanto
aquilo em prol do qual se faz alguma coisa.

Resumo. — É evidente, portanto, que a Encarnação do Verbo se ordenou de


fato à redenção humana, e isso de tal maneira — defende S. Tomás
(cf. STh III 1, 3 c.) — que não seria inconveniente dizer que, se o pecado não
tivesse entrado no mundo, na presente ordem de coisas o Filho não se teria
encarnado, o que não significa, obviamente, que a potência divina esteja
como que limitada ou circunscrita ao pecado do homem, uma vez que Deus
poderia, por força de outro decreto de sua Providência, encarnar-se mesmo
que Adão não tivesse pecado. O fato é, em todo o caso, que Deus entregou
ao mundo seu próprio Filho em remédio do pecado, e é apenas nele, e em
ninguém mais, que temos “a expiação pelos nossos pecados, e não somente
pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo” (1Jo 2, 2).

Noções gerais. 

a) A honra divina ultrajada. — Pelo pecado, o homem viola a honra devida a
Deus e, com isso, torna-se réu de uma injúria que, segundo a medida da
pessoa ofendida, possui certa gravidade infinita. Deus, com efeito, tem pleno
direito a que as criaturas racionais a Ele se submetam como à causa primeira
e fim último do universo, e nesta livre submissão, que não é mais do que o
reconhecimento teórico e prático de sua excelência e domínio supremos,
consiste formalmente a glória ou honra externa de Deus. Por isso, negar-lhe
tal reconhecimento implica, por si só, a violação de um direito divino à livre
sujeição do homem, o que pode caracterizar-se propriamente como injúria,
isto é, como lesão de um direito alheio. Ora, dado que a gravidade da injúria
se mede por comparação ao grau de dependência do agravante em relação
ao agravado, de maneira que será tanto mais grave a injúria quanto mais
essencial for a dependência do primeiro com respeito ao segundo, é evidente
que o pecado constitui a injúria mais séria possível e tem, ademais, certa
gravidade infinita, fundada na infinitude do ofendido, que é o próprio Deus
(cf. STh III 1, 2 ad 2).

b) Mal de culpa. — A violação desse direito implica, para a criatura rebelde,


duas coisas: de um lado, a culpa daí decorrente e, de outro, a pena devida a
esta culpa. A culpa radica, fundamentalmente, no ato de insubmissão a Deus
e na consequente violação do direito divino. Do ato por que o homem incorre
em culpa se segue, como consequência espontânea, um estado habitual de
aversão a Deus, no qual o pecador se encontra com justiça sob a ira e a
improbação do ofendido, segundo a Escritura: “Todos nós nos tornamos”,
pelo pecado, “como homens impuros” (Is 64, 5); “Éramos […], por natureza,
verdadeiros objetos da ira” divina (Ef 2, 3). Ora, uma vez que, na ordem atual
da Providência, Deus elevou o homem à vida sobrenatural, constituindo-o no
princípio filho adotivo pela graça santificante e destinando-o à participação
dos bens divinos, a este estado habitual de pecado corresponde a privação
da graça de adoção, que em todos os homens, mesmo antes de qualquer
pecado atual, recebe o nome de pecado original, contraído de Adão por
descendência natural.

c) Mal de pena. — A permanência da culpa reclama, por sua vez, o dever de


submeter-se à pena devida, segundo a gravidade da ofensa. Ora, a pena
proporcional à aversão a Deus, como fim último da ordem sobrenatural, não
pode ser outro señoa a privação dos dons da graça e da fruição dos bens
divinos, o que significa frustrar o fim último para o qual homem foi criado e
ordenado desde o princípio. Isso implica que, enquanto permanecer em
estado de pecado, ou por não se ter purificado do pecado original ou, caso o
tenha feito, por haver incorrido em outro pecado grave, o homem não
pode por si mesmo alcançar o seu fim último, encontrando-se por isto
destinado à perdição eterna. Eis por que as SS. Escrituras referem-se a tal
estado como escravidão. Trata-se, de fato, de uma escravidão: a) sob
o pecado, porque exclui a dignidade, a liberdade e os direitos hereditários dos
filhos de Deus; b) sob a ignorância e a concupiscência, que afligem as
potências superiores do homem, a inteligência e a vontade; c) sob a dor, tanto
nesta vida quanto na outra; d) e também sob o demônio, já que por sua
mentira o primeiro homem, representante de todos os outros, foi tentado a
pecar, e ao diabo compete, em certo sentido, executar no inferno as penas
que hão de sofrer com ele os demais condenados.

O nosso Redentor. — Pois bem, na hipótese de que a santidade e justiça


divinas queiram compensar a injúria sofrida (e não indultá-la gratuitamente),
reparar a ordem da justiça e, portanto, exigir uma pena proporcional e
equivalente a todas as culpas (isto é, ao pecado de todos os homens), é
necessário — pelo que se disse antes — oferecer a Deus uma satisfação, um
mérito e uma redenção de valor infinito, já que infinita é a gravidade da
violação de seus direitos. É evidente, porém, que nenhuma pessoa humana
pode oferecer um preço de tal magnitude, mas apenas uma pessoa cuja
dignidade seja comparável à de Deus mesmo. Por isso, se “todos os homens,
tendo perdido a inocência pela culpa de Adão […], eram a tal ponto servos do
pecado (cf. Rm 6, 20) e estavam sob o poder do demônio e da morte, que […]
não podiam ser libertados ou se reerguer de tal condição”,
era hipoteticamente necessário que Deus mandasse “aos homens Cristo
Jesus, seu Filho […], para que resgatasse os judeus, ‘que estavam sob a Lei’
(Gl 4, 5) e para que ‘os gentios, que não buscavam a justiça, chegassem à
justiça’ (Rm 9, 30) e todos recebessem ‘a adoção de filhos’ (Gl 4, 5)” (Concílio
de Trento, Decreto sobre a justificação, cc. 1–2: DH 1521s), perdida outrora
em Adão.

Noção de Redenção. — Por isso, unicamente a Cristo, destinado para ser


nosso propiciador, “não somente pelos nossos pecados, como também pelos
do mundo inteiro” (1Jo 2, 2), compete o poder de redimir a humanidade, isto
é, de restituí-la do seu estado habitual de escravidão à antiga liberdade dos
filhos de Deus, e isso mediante um preço. A palavra “redenção”, com efeito,
vem do latim redemptio, que significa, aplicada a coisas materiais, o ato pelo
qual se compra de volta um objeto, restituindo-o ao seu antigo dono; aplicada
a pessoas, designa a ação de resgatar um servo, devolvendo-lhe a liberdade
ou entregando-o ao seu antigo senhor, mediante uma quantia paga a quem
tem atualmente domínio sobre ele. Aplicada ao conjunto dos homens,
reduzidos à escravidão do pecado, da ignorância e da concupiscência, das
penas do pecado e, em última análise, do demônio (não, porém, como
legítimo possuidor), a redenção tem como “preço” a ser pago a satisfação e
o mérito do próprio redentor, oferecidos a Deus em reparação do pecado. Diz-
se porém que a satisfação e o mérito são o “preço” a ser pago, não por serem
de valor equivalente ao do servo resgatado, já que o superam infinitamente,
mas porque a satisfação é, por um lado, suficiente para compensar a injúria
cometida e, por outro, equivalente em dignidade à honra divina ultrajada, ao
passo que o mérito é superabundante para recuperar, em proveito de toda a
humanidade, os dons sobrenaturais da graça outrora perdidos

Dois aspectos da Redenção. — Assentados, na aula passada, os conceitos


necessários à reta inteligência do mistério da Redenção, cumpre estabelecer
agora algumas distinções importantes. Pode-se dizer que a salvação operada
por Jesus Cristo na cruz tem dois efeitos ou, antes, se reveste de dois
aspectos complementares: a) um aspecto mais positivo, consistente no mérito
em virtude do qual Ele nos mereceu os dons da graça e, com isso, o
reerguimento da humanidade caída à ordem sobrenatural; b) e um aspecto
mais negativo, consistente no valor satisfatório do sacrifício por Ele oferecido
e em razão do qual dizemos que, na cruz, foi satisfeita a justiça divina. Para
entender, porém, em que sentido o sacrifício da cruz satisfez à justiça de
Deus, é importante recordar o que se viu na aula anterior.
A gravidade de uma ofensa e da violação de um direito, como vimos, se mede
pela dignidade da pessoa cuja honra é violada. Ora, como o pecado constitui
uma insubordinação a Deus, por negar-lhe a submissão que toda criatura
racional está chamada a prestar-lhe, representa uma injúria de gravidade
infinita, dada a infinitude mesma da pessoa ofendida, que é Deus, princípio e
fim de todas as coisas. Em ordem inversa, o valor da satisfação oferecida
para reparar uma ofensa se mede pela dignidade, não já do ofendido, mas da
pessoa que oferece a satisfação. Isso implica que, ao pecar em Adão, cabeça
e representante de todos os homens, a humanidade inteira se pôs em uma
situação de certo modo irreparável: de um lado, na dignidade do ofendido se
funda uma injúria e, portanto, uma culpa infinita; de outro, na dignidade de
qualquer possível reconciliador entre os homens se funda uma
satisfação finita, incapaz de reparar adequadamente a ordem da justiça
divina. Daí se segue que qualquer satisfação que possa ser oferecida por
uma pessoa finita será sempre de ordem inferior e não poderá compensar, de
modo adequado, uma injúria cometida contra Deus.

Era necessária a Encarnação? — É por isso que, de acordo com os


melhores teólogos, para satisfazer os pecados da humanidade
era necessária a Encarnação do Verbo, já que apenas a satisfação oferecida
por uma pessoa infinita e de dignidade equivalente à divina pode ter um valor
meritório igualmente infinito, suficiente para compensar toda e qualquer injúria
contra a honra de Deus. Contudo, a Encarnação do Verbo não se diz
necessária em sentido absoluto, como se Deus não tivesse outro meio de
reparar o pecado humano que não fosse pela Encarnação de seu Filho, mas
em sentido relativo ou condicionado, isto é, na hipóteses de que Deus: a)
queria restaurar o gênero humano, dEle separado pelo pecado, e b)
determine perdoar-lhe a culpa e devolver-lhe a graça mediante
uma satisfação adequada pela injúria sofrida e um mérito adequado à
recuperação dos bens sobrenaturais. A Encarnação de alguma pessoa divina,
por conseguinte, era necessária para reparar o pecado do homem, no caso
de Deus determinar repará-lo com uma reparação de estrita e perfeita justiça,
que possa “estabelecer uma igualdade absoluta entre o ofensor e o ofendido,
e entre o devido e o que se paga”

Recapitulação. — Vimos na aula passada que a Redenção operada pelo


Filho encarnado (ou por alguma das três Pessoas divinas) era necessária
hipoteticamente após o pecado original, isto é, sob a condição de que Deus,
para reparar a injúria do pecado, tenha querido exigir uma satisfação
adequada em todo o rigor de justiça, embora pudesse fazê-lo de muitas
outras formas (v.gr., perdoando gratuitamente nossas culpas ou exigindo-nos
uma satisfação relativa, imperfeita e, por isso, inadequada). As fontes da
Revelação, por sua vez, nos mostram sem sombra de dúvida que o Verbo se
encarnou, de fato, para padecer e morrer segundo a carne, ou seja, em sua
natureza humana, com o fim precípuo de satisfazer verdadeira e propriamente
pelos nossos pecados, oferecendo à majestade divina uma satisfação
adequada e estritamente proporcional à gravidade da ofensa.
Por isso, não há inconveniente em dizer que a Redenção consiste no
pagamento de uma dívida ou, se se prefere, na prestação de um débito.
Esse aspecto da obra redentora, no entanto, precisa ser bem compreendido,
para que não se caia nas aberrações teológicas protestantes, que pervertem
o dogma da Redenção ora por excesso, no caso dos primeiros pseudo-
reformadores, ora por defeito, no caso dos protestantes liberais dos últimos
dois ou três séculos. Para entendermos o sentido e o alcance do dogma
católico, passemos em revista esses dois erros contrários à verdadeira
doutrina cristã.

Erros. 

a) O protestantismo histórico. Os primeiros protestantes, sobretudo os de


orientação calvinista, chegaram ao extremo de afirmar que Nosso Senhor
Jesus Cristo, cobrindo-se com os nossos pecados, fez-se odioso e maldito
aos olhos de Deus e, cravando-se na cruz como verdadeiro pecador, suportou
na condição de culpado a pena que deveria recair, não sobre si, mas sobre os
homens. Não é nesse sentido que os católicos falamos de “satisfação vicária”,
cujo conceito explicaremos abaixo em nota à parte. Qualquer um é capaz de
ver, além disso, que a noção calvinista de expiação converte o sacrifício
redentor de Cristo em um ato de suma injustiça por parte de Deus, que teria
disposto, como meio e condição necessária para restaurar o gênero humano,
a condenação de um inocente às penas devidas à culpa de outrem.

b) O protestantismo liberal. Se os primeiros reformadores erravam por


acentuarem a justiça a ponto de a depravarem numa espécie de vingança
indiscriminada, muitos protestantes liberais, imbuídos de racionalismo e
negando, portanto, a ordem sobrenatural da graça e da glória, exacerbaram
de tal forma a misericórdia, que privaram a obra redentora de Jesus de todo
valor satisfatório e meritório. Para alguns deles, com efeito, a Redenção não
seria mais do que o conjunto de ensinamentos e exemplos que, ao longo de
seu ministério, Cristo deixou à humanidade, para instruir-nos no caminho da
“fraternidade”. Jesus, desse ângulo, seria redentor em sentido apenas
metafórico, quando não impróprio. Essa concepção “moralizante” é cara a
pensadores como Bultmann, cujo kenotismo implica, na prática, a negação da
divindade de Nosso Senhor: a cruz seria ou um “acidente de percurso”, pondo
fim à pregação do Reino, ou no máximo um exemplo de fortaleza e paciência.

50. Doutrina católica. — A doutrina católica, que preserva o mistério em toda


a sua profundidade, sem exagerar nem diminuir nenhuma de suas facetas,
nos ensina que a Redenção possui — para o que aqui nos importa — ao
menos dois aspectos principais. O primeiro deles corresponde
ao conceito primário e fundamental de Redenção, ao passo que o segundo,
ao qual está subordinado o primeiro, exprime o motivo e a raiz de todas as
obras divinas. O primeiro aspecto, que nos indica o que a
Redenção essencialmente é, ressalta que a economia redentora é uma obra
de satisfação; o segundo nos revela que a Redenção é, antes de tudo, um
mistério de amor. A satisfação, porém, não deve entender-se aqui em sentido
demasiado unívoco, como se não fôra mais do que o cumprimento  jurídico de
um dever, razão pela qual se há de tomá-la à luz de seu motivo essencial,
que é a misericórdia e o amor divinos.

Com efeito, quando dizemos que Cristo “satisfez pelos nossos pecados”,
devemos entender o termo “satisfação” não só em sentido próprio como
também analógico. É satisfação propriamente dita, porque uma ofensa-dívida
é satisfeita quando é compensada pela entrega ao ofendido-credor de um
bem de preço equivalente ou superior ao débito contraído, e Cristo o fez de
maneira perfeitíssima na cruz, ao oferecer a Deus Pai, em favor dos homens
e como Cabeça da nova humanidade, sua vida de infinito valor. E é satisfação
em sentido analógico, porque essa entrega (que, no caso de Cristo, é também
um sacrifício cruento) não é realizada como é costume entre os homens, isto
é, por simples dever legal, mas por um motivo mais profundo, que é o amor
teândrico e perfeitíssimo com que o Senhor se oferece a si mesmo pelos
pecadores.

É, portanto, da caridade superabundante do Coração de Jesus que procede


todo o valor e todo o mérito de sua satisfação reparadora: “Cristo”, diz a esse
propósito o Doutor Angélico, “padecendo por caridade e obediência, entregou
a Deus algo maior do que exigiria a compensação de toda a ofensa do gênero
humano” (STh III 48, 2 c.) e, assim, ofereceu algo que Deus ama infinitamente
mais do que detesta com justiça o pecado dos homens. E como às obras da
justiça divina sempre se pressupõe a misericórdia, deve-se dizer que
a justiça do Calvário é, antes de tudo, uma justiça fundada na misericórdia e
motivada por amor: na cruz, (a) recebe Deus um amor justíssimo, à altura de
sua majestade infinita, e uma reparação mais do que suficiente pelas ofensas
humanas — a própria vida do Verbo encarnado; (b) e oferece o Filho,
por amor misericordioso aos homens, o que eles por si sós não poderiam
oferecNota sobre a noção de “morte vicária”. — Do dito anteriormente se
segue que a morte de Cristo é vicária não por uma sorte de compensação
penal, como se Ele houvesse assumido como próprias as culpas dos homens
e, por essa razão, morrido na cruz submetendo-se a uma pena alheia. Na
verdade, diz-se que a Paixão de Cristo é satisfatória em sentido formal e
vicário porque, na cruz, Ele ofereceu sua própria vida pelas culpas dos
pecadores (isto é, em proveito deles e em nome deles) [3], oferecendo a
Deus por amor um bem (ou, se se quer, um preço) cujo valor supera
infinitamente a magnitude tanto da malícia dos pecados quanto da própria
ofensa.

Viator et comprehensor. — Vimos na parte cristológica do curso que, em


virtude da união hipostática, há em Cristo uma dupla ordem de operações e,
portanto, de intelecções e volições, sem prejuízo da unidade pessoal do
Verbo encarnado: uma segundo a natureza divina, outra segundo a
natureza humana. Além disso, os teólogos costumam distinguir na mesma
natureza humana de Cristo uma dupla série de operações e, igualmente, de
intelecções e volições, por conta do duplo estado em que Ele se encontrava
nesta vida mortal, isto é, antes da Ressurreição: uma segundo o estado de
compreensor (comprehensor), outra segundo o estado de viandante (viator).
É doutrina comum e certa, com efeito, que Nosso Senhor Jesus Cristo
vivenciou simultaneamente esse duplo estado, o que S. Tomás de Aquino
argumenta com as seguintes considerações:

[…] diz-se que alguém é viandante por tender à bem-aventurança, e


compreensor por já tê-la alcançado, como diz S. Paulo: “Correi, pois, de tal
maneira que consigais [o prêmio]” (1Cor 9, 24), e: “Persigo o alvo, rumo ao
prêmio celeste” (Fp 3, 15). Ora, a bem-aventurança perfeita do homem
consiste na alma e no corpo […]: na alma, quanto àquilo que lhe é próprio, na
medida em que a alma vê e goza a Deus; no corpo, por sua vez, na medida
em que ele ressurgirá espiritual, na virtude, na glória e na incorruptibilidade,
como se diz em 1Cor 15. Pois bem, Cristo, antes da Paixão, via plenamente a
Deus segundo a mente, e assim possuía a bem-aventurança quanto àquilo
que é próprio da alma. Mas, quanto a outras coisas, faltava-lhe a bem-
aventurança, porque sua alma era passível e o corpo, passível e mortal […].
Por isso, era ao mesmo tempo compreensor, enquanto possuía a bem-
aventurança própria da alma, e viandante, enquanto tendia à bem-
aventurança segundo aquilo que dela lhe faltava (STh III 15, 10 c.).
Não é de admirar — observa o Cardeal Franzelin — que se nos afigure
obscuro e quase incompreensível, por tratar-se de um dos maiores mistérios
da pessoa do Verbo encarnado, que nele coexistissem, segundo a mesma
natureza humana, estes dois estados à primeira vista incompatíveis: por um
lado, o de compreensor, graças à ciência beata em que via, com a inefável
felicidade dos bem-aventurados, a própria essência divina, com a fruição, o
gozo e os atos que a ela se seguem; por outro, o de viandante, com os atos
de que se é capaz nessa condição, como o medo, a tristeza, as angústias e
dores, sem falar daquela suprema agonia que, no Horto das Oliveiras, o levou
a cobrir a terra com suor de sangue. Não há dúvida de que isso aconteceu
“por especial dispensação de Deus, que, assim como unira duas naturezas
em uma única pessoa, por sua infinita onipotência e sabedoria uniu dois
estados, o celeste e o terreno, em uma única pessoa e natureza” [1], isto é,
segundo a mesma natureza humana do Verbo divino.

Como entendê-lo? — É à luz dessa profunda doutrina, tão certa quanto


segura, que se deve entender todo o episódio da Paixão, inclusive aquelas
palavras do Crucificado: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”,
interpretadas por muitos autores modernos num sentido inaceitável e
incompatível com a doutrina da Igreja. Sem a pretensão de desvelar o
mistério que aqui se oculta, é-nos permitido, como diz o Concílio Vaticano I
[2], buscar alguma compreensão e inteligência desse fato, isto é, da dor e
angústia vividas pelo Redentor com inigualável intensidade e, ao mesmo
tempo, da felicidade e paz que sempre reinaram inconcussas em sua alma.
Antes, porém, de apresentarmos a explicação tradicional deste ponto, convém
deixar claro o seguinte:

a) Jesus, por ser essencialmente impecável, não suportou os tormentos da


Paixão a título de pena. Todo o mistério de sua dolorosíssima agonia,
portanto, não é penal nem tem a finalidade substitutiva que lhe atribuíam
alguns hereges calvinistas, como vimos na aula anterior.
b) Pela mesma razão, Cristo não incorreu em pecado de desespero, como
poderia supor quem lesse, sem a devida atenção ao contexto, suas últimas
palavras: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” [3] Santíssimo
não só em razão da união hipostática, mas também pela virtude santificadora
da visão beatífica, Jesus nunca poderia crer-se “abandonado” por Deus.

c) Isso não impede que a parte inferior de sua alma, isto é, a parte de sua
natureza humana em estado de via, tenha experimentado, para complemento
da obra redentora, a desolação que nós muitas vezes sentimos, quando
somos por algum motivo privados da presença consoladora de Deus.

d) Tampouco se deve pensar que, na cruz, Jesus tenha suportado as penas


do inferno. Isso não só carece de fundamento nas Escrituras como contradiz
o que vimos anteriormente: Jesus não poderia suportar a pena de dano, que é
a privação e aversão definitivas de Deus, fim último sobrenatural, porquanto a
sua humanidade gozava, pela visão beatífica, da posse face a face do mesmo
Deus; nem a pena de sentido, infligida ao réprobo como parte do castigo
pelos pecados atuais em que morreu impenitente [4].

Como, então, compreender essa íntima união em Cristo padecente da paz


com a angústia, da alegria com a tristeza, do gozo com a dor? Trata-se —
vale a pena repetir — de um dos pontos mais altos do mistério da Redenção,
que constitui não só um milagre, mas um mistério essencialmente
sobrenatural, cuja evidência intrínseca nos permanece oculta nesta vida [5],
não nos cabendo outra “saída” além da dócil obediência da fé: é fato que, não
obstante a suma tristeza que o invadiu, Nosso Senhor manteve sempre a paz
em meio aos sofrimentos físicos e morais mais atrozes já vistos em um ser
humano. Prova disso são os vários testemunhos que Ele mesmo deu, no
Horto e durante a Paixão, de sua plena conformidade com a vontade divina e
da intenção sacrificial com que se entregava à morte por nós: “Tudo está
consumado” (Jo 19, 30) e “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,
46).

A explicação teológica mais coerente desse fato é a proposta por S. Tomás


de Aquino:

Em sentido contrário, está o que diz Damasceno em De fide orth. III, a saber:
que “a divindade de Cristo permitiu à carne fazer e padecer o que lhe era
próprio” [...]. Deve-se dizer que, como foi dito antes, a alma como um todo
pode entender-se (1) ou segundo a essência (2) ou segundo todas as suas
potências. Pois bem, (1) se se entende segundo a essência, toda a alma <de
Cristo> gozava, enquanto é sujeito da parte superior da alma, à qual compete
fruir da divindade, de modo que, assim como a paixão se atribui à parte
superior da alma em razão da essência, se atribua a fruição à essência em
razão da parte superior da alma. (2) Se, no entanto, tomarmos a alma como
um todo em razão de todas as suas potências, então não gozava a alma
toda, a) nem diretamente, porque a fruição não pode ser ato de qualquer uma
das partes da alma, b) nem por redundância, porque, enquanto Cristo era
viandante, não redundava a glória da parte superior para a inferior nem da
alma para o corpo. No entanto, uma vez que a parte superior da alma não era
impedida pela inferior quanto àquilo que lhe era próprio, segue-se que a parte
superior da alma gozava perfeitamente enquanto Cristo padecia (STh III 46, 8
sc. e c.).
Em outras palavras, a alma de Cristo tomada como um todo segundo sua
essência, isto é, enquanto está presente em sua totalidade no corpo inteiro e
em cada uma de suas partes e faculdades, gozava e era, portanto,
sumamente feliz; tomada, porém, como um todo por simultaneidade de suas
potências, podia realmente padecer, na medida em que Ele, por especial e
voluntária dispensação, impedia a redundância conatural da glória
beatificante de que fruía na potência mais alta da alma — chamada de “razão
superior” (ratio superior) — sobre as potências anímicas inferiores
(suscetíveis, portanto, aos influxos passionais de dor e tristeza
correspondentes ao estado de viandante) e sobre o corpo (sujeito, pela
mesma razão, ao sofrimento e à morte física). Há nisso união de contrários
extremos, mas nenhuma contradição. Com efeito,

[…] repugna que haja, ao mesmo tempo, suma alegria e tristeza onde há
somente um modo de conhecimento e volição, correspondente ao estado
de compreensor; no entanto, onde há, além dele, um modo de conhecimento
e volição correspondente ao estado de viandante, dizemos ser possível haver
suma alegria do objeto principal e dos secundários nele contidos da visão
beatífica e, ao mesmo tempo, tristeza e dor de outros objetos, apreendidos
pelo conhecimento (quer infuso, quer adquirido) de viandante. De fato,
repugna absolutamente que haja, ao mesmo tempo, alegria suma e tristeza
de uma mesma coisa e pelo mesmo motivo; mas não repugna absolutamente
que, num mesmo sujeito, haja simultaneamente alegria e tristeza de objetos
diversos e por diversa razão. Não repugna absolutamente, no sentido de que
nem Deus onipotente poderia constituir um homem nesse duplo estado; seja
como for, concedemos sem dificuldade que, conaturalmente e per se, a visão
e fruição beatificas excluem toda dor e toda tristeza. Suposta, porém, a
coexistência <em Cristo> desses dois estados, o de compreensor não apenas
não impediu ou diminui, senão que aumentou e intensificou enormemente a
dor e a tristeza de <Cristo> viandante, na medida em que a visão e o amor de
<Cristo> compreensor influíam para lhe aperfeiçoar o conhecimento e a
volição também em estado de viandante. Daí se vê que, por influxo da
divindade, na presente economia do Redentor, a Paixão de Nosso Senhor
não só não diminuiu como foi intensificada quase ao infinito [6].
Corolários. — 1.º Cristo, enquanto compreensor, não podia padecer na razão
superior, isto é, na “região” mais alta de sua inteligência e vontade, onde fruía
da visão facial da essência divina; mas, como viandante, não se limitou a
sofrer no apetite sensitivo, senão que padeceu também na chamada razão
inferior (ratio inferior), ou seja, na mesma potência racional enquanto voltada
para as coisas temporais e, portanto, subordinada às verdades eternas na
ordem especulativa, das quais toma, na ordem prática, seus princípios de
ação. Logo, Cristo sofreu realmente pelos nossos pecados como algo
temporal (quid temporale), isto é, como ofensas a Deus; mas, à luz de sua
razão superior beatificada, via com singular clareza toda a maldade e malícia
deles e podia, por isso mesmo, entristecer-se com mais  profunda e redentora
tristeza.

2.º Essa mesma apreensão da maldade do pecado humano supunha, por sua


vez, a compreensão do altíssimo desígnio por que Deus permite o pecado, a
saber: para deles tirar um bem superior, que é a manifestação de sua infinita
misericórdia e do esplendor de sua santíssima justiça, o que aumentava ainda
mais em seu Coração o desejo de padecer por nós até a tristeza mortal, a fim
de oferecer a Deus um sacrifício pleno e consumado, expressão de sua
misericórdia e fonte meritória de nossa justificação.

Recapitulação. — Vimos na última aula que Nosso Senhor Jesus Cristo,


sendo a um tempo compreensor e viandante, foi, mesmo durante a Paixão,
plenamente bem-aventurado e, por esse motivo, não experimentou nunca a
interrupção da visão beatífica, da qual gozou sempre, desde o primeiríssimo
instante de sua concepção no seio da Virgem Maria; e que às suas dores e
tristezas redentoras estavam intimamente unidas a mais perfeita alegria e
uma paz imperturbável. Trata-se, segundo a sentença comum dos teólogos,
que nisso seguem o Doutor Angélico, de um grandíssimo mistério, na medida
em que, “à margem das leis naturais da vida da alma, ou seja,
milagrosamente, Cristo viandante impedia voluntária e liberrimamente
a redundância da glória da parte superior sobre a inferior, para entregar-se
mais plenamente ao sofrimento, como vítima voluntária oferecida em
holocausto. Era, portanto, um milagre e, ao mesmo tempo, um mistério
essencialmente sobrenatural, já que os dois extremos unidos”, isto é, a visão
beatífica e a dor sobrenatural pelos pecados, “eram ambos intrinsecamente
sobrenaturais”.

E se consideramos, outrossim, que o justo tanto mais sofre pelo pecado


quanto melhor lhe conhece a gravidade e quanto mais elevado é o seu grau
de caridade para com Deus, a quem ofendem os nossos pecados, veremos
com quanta intensidade sofreu Cristo, vítima dos pecadores. Em razão, pois,
da plenitude de seu amor sobrenatural, Cristo possuía, elevada quase ao
infinito, a capacidade de sofrer pelo pior de todos os males, em virtude do
qual tantas e tantas almas têm perdido a vida eterna! Disto nos falam
abundantes passagens da Escritura: “Ele tomou sobre si nossas
enfermidades”, anuncia o profeta Isaías, “e carregou os nossos sofrimentos”
(Is 53, 4); repete-o o bem-aventurado Pedro: “Carregou os nossos pecados
em seu corpo sobre o madeiro para que, mortos aos nossos pecados” (1Pd 2,
24); e conclui o evangelista S. João: “Jesus apareceu para tirar os pecados”
(1Jo 3, 5). E Ele, que a nada deu mais valor do que à nossa salvação, como
não veria enormemente aumentada a sua dor, ao contemplar a ingratidão
com que tantos haveriam de vilipendiar o Sangue por eles vertido na cruz?... 

Ressuscitou verdadeiramente! — A morte, porém, não foi capaz de retê-lo


no sepulcro, como Ele mesmo prenunciara diversas vezes aos discípulos: “O
Filho do Homem […] ao terceiro dia ressuscitará” (Mt 20, 18s), como bem
haviam entendido os pérfidos judeus, que alertaram Pilatos no dia da
Parasceve: “Aquele impostor disse, enquanto vivia: ‘Depois de três dias
ressuscitarei’” (Mt 27, 63). Sim, Cristo ressuscitou verdadeiramente dentre os
mortos, por virtude própria e com ressurreição propriamente dita, isto é,
corporal, e não em sentido simbólico, afetivo nem “imaginativo”. Provam-no
copiosíssimos argumentos [3]:

a) Temos, em primeiro lugar, o testemunho fidedigno dos evangelistas, que


nos deixaram registrado esse acontecimento, dando-lhe um valor realmente
histórico, como testemunhas diretas e oculares. S. Mateus, por exemplo, nos
refere as palavras do anjo que apareceu às santas mulheres: “Não temais!
Sei que procurais Jesus, que foi crucificado. Não está aqui: ressuscitou como
disse. Vinde e vede o lugar em que ele repousou” (Mt 28, 5s). Os demais
evangelistas também narram a Ressurreição do Senhor, com todas as
circunstâncias em que se deu.

b) Temos, além disso, as aparições do próprio Ressuscitado, testificadas por


inúmeras testemunhas oculares: Maria Madalena e as outras miróforas, que
com ela foram ao sepulcro (já vazio!) para ungir o corpo de Cristo (cf. Mt 28,
9s; Jo 14); os dois discípulos de Emaús (cf. Lc 24, 13ss); todos os Apóstolos,
ao menos duas vezes, sem e com a presença de Tomé (cf. Lc 24, 36-43); a
alguns discípulos no mar de Tiberíades (cf. Jo 21, 1ss) e várias vezes na
Galileia; e aos mais de quinhentos irmãos de que fala S. Paulo (cf.  1Cor 15,
6).

c) Contamos também com a valente pregação dos Apóstolos, que não


temeram o ódio dos judeus, o escárnio dos gentios e as perseguições do
mundo para dar testemunho, até o fim, do que viram com seus olhos e
apalparam com suas mãos: “Levantou-se Pedro no meio de seus irmãos:
“Convém que destes homens que têm estado em nossa companhia todo o
tempo […] um deles se torne conosco testemunha da sua Ressurreição” (At 1,
15.22); e ainda: “A este Jesus, Deus o ressuscitou: do que todos nós somos
testemunhas” (At 2, 32), o que Pedro repetiu sem descanso, confirmando-o
com os prodígios que, pelo dedo de Deus, lhe era dado realizar (cf.  At 3,
12ss; 4, 8ss). S. Paulo pregou aos atenienses, no Areópago, Jesus Cristo
ressuscitado dentre os mortos, e o confirmou também ao escrever aos
coríntios: “Cristo ressuscitou dentre os mortos, como primícias dos que
morreram!” (1Cor 15, 20). E “com grande coragem” todos os apóstolos
“davam testemunho da Ressurreição do Senhor Jesus” (At 4, 33).

d) Temos ainda o testemunho dos próprios guardas do sepulcro, que, como


relata S. Mateus, “já estavam na cidade para anunciar o acontecimento aos
príncipes dos sacerdotes” (Mt 28, 11). 

e) Os próprios inimigos de Cristo deram mais de uma vez um preclaro


testemunho da Ressurreição: “Que faremos sem esses homens? Porquanto o
milagre por eles feito se tornou conhecido de todos os habitantes de
Jerusalém, e não o podemos negar. Todavia, para que esta notícia não se
divulgue mais entre o povo, proibamos, com ameaças, que no futuro falem a
alguém nesse nome” (At 4, 16s). Por isso, os chefes do povo subornaram os
homens da guarda, para que espalhassem o boato de que o corpo do Senhor
fora “roubado” pelos discípulos. “E essa versão”, admite com franqueza o
evangelista, “é ainda hoje espalhada entre os judeus” (Mt 28, 15).

Conclusão. — Assim ressurgiu vencedor da morte o que, morrendo, triunfara


do pecado e do diabo, em comprovação admirável de sua missão divina e da
verdade de seus ensinamentos. Ele, que por amor e obediência se humilhara
até a morte de cruz, mereceu ser exaltado por Deus à glória da Ressurreição,
na qual temos uma confirmação certíssima de sua divindade, um fundamento
inabalável para a nossa esperança, a causa exemplar e meritória da nossa
própria ressurreição futura e o estímulo eficaz para vivermos como homens
novos em Jesus, nosso divino Salvador [4]: “Fomos, pois, sepultados com Ele
na sua morte pelo batismo para que, como Cristo ressurgiu dos mortos pela
glória do Pai, assim nós também vivamos uma vida nova” (Rm 6, 4).

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