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Uma vez que o principal objetivo da doutrina sagrada, diz o Doutor Angélico, é
conhecer a Deus não apenas em si mesmo, mas enquanto princípio e fim de todas
as coisas, nada é mais importante para a boa formação do católico que
conhecer Jesus Cristo, que é o caminho pelo qual Deus quer ser alcançado
(cf. STh I 2, pr.). E porque Nosso Senhor, que veio salvar o seu povo de seus
pecados (cf. Mt 1, 21), mostrou-nos em si mesmo o caminho da Verdade, o único
por que havemos de chegar, renascidos Uma vez que o principal objetivo da
doutrina sagrada, diz o Doutor pela graça, à vida imortal, nada nos deve ser mais
grato ao coração, mais constante na leitura nem mais presente à meditação
do que a figura do nosso divino Salvador e a lembrança dos benefícios por Ele
merecidos para o gênero humano (cf. STh III pr.).
O curso divide-se em duas partes, ambas fundadas no ensinamento oficial do
Magistério eclesiástico e na doutrina segura e tradicional dos melhores
teólogos. Na primeira parte, centrada no estudo do Verbo encarnado em si
mesmo, mergulharemos no mistério da união hipostática e em algumas de suas
consequências para a santíssima humanidade de Jesus. Na segunda, dedicada ao
estudo do Verbo encarnado em sua obra redentora, contemplaremos “a largura, o
comprimento, a altura e a profundidade” (Ef 3, 17) desse insondável mistério de
amor que é a Santa Cruz. Assim teremos percorrido — das alturas do decreto da
Encarnação à escandalosa, para os judeus, e louca, para os gentios, crucificação
do Filho encarnado — o único Caminho que é exemplar e fonte de todas as
virtudes, sem o qual não podemos ser santos nem chegar ao Pai.
Essa semana vamos oferecer a vocês uma compreensão sólida e coerente, a
partir do que ensinam o Magistério eclesiástico, a S. Escritura e a Tradição
divino-apostólica, da pessoa de Jesus Cristo. Adotaremos, por isso, uma
aproximação pautada fundamentalmente na fé, evitando desde o início as
deficiências e deformações do método histórico-crítico e das correntes
hermenêuticas que, de um modo ou de outro, rejeitam a priori o testemunho
dos evangelhos como fontes históricas sobre a vida de Nosso Senhor.
B) A elevação sobrenatural. — Uma vez, porém, que o homem foi ordenado
por Deus à participação de sua vida e bens sobrenaturais, foi necessário que
se lhe revelassem todas as coisas que ele deve saber e fazer para alcançar
esse fim supremo. E o meio que Deus escolheu, em seus soberanos
desígnios, para nos transmitir sua palavra e resgatar-nos, no presente estado
de pecado, da condenação eterna foi o seu próprio Filho unigênito, que, sem
perder a condição divina, assumiu a natureza humana e, sem deixar de ser
eterno e inefável, quis ser chamado no tempo pelo dulcíssimo nome de Jesus.
a) na primeira, narram o que Ele fez ao longo de sua vida pública (milagres,
profecias, sermões, discursos etc.) para mostrar aos discípulos a sua
identidade messiânica e filiação divina;
b) na segunda, descrevem o que Ele fez no final de sua vida neste mundo
para consumar a missão recebida do Pai (são os capítulos da Paixão). Por
isso, dedicaremos uma parte do curso ao estudo de Jesus Cristo em
sua dupla natureza, divina e humana, e outra ao de sua obra salvífica, cujo
ponto culminante é o sacrifício da cruz.
Necessidade da fé. — Ora, assim como Cristo, em sua vida pública, foi
revelando aos Apóstolos sua identidade divina, não por argumentos lógico-
dedutivos, mas por sinais certos de credibilidade (milagres, curas,
exorcismos, leitura dos corações, domínio sobre a natureza etc.) [1], a fim de
conduzi-los, com o auxílio de graças externas, à experiência da fé, suscitada
pela graça interna de iluminação, nós também só seremos capazes de
conhecer quem de fato é Jesus se nos abrirmos a essa mesma experiência
de fé. Não porque Cristo — como poderiam pensar alguns — seja um ideal
confuso ou o resultado de ideias religiosas superpostas, mas porque aquilo
que Ele é, embora atestado por fatos históricos de todo inegáveis, supera de
tal modo a compreensão humana, que não pode ser demonstrado por razões
positivas e diretas, mas apenas acolhido e reconhecido como verdade pela
obediência da fé. E o que Cristo testemunhou sobre si mesmo foi,
essencialmente:
II. Em segundo lugar, proclamou ser o Filho natural de Deus, não como os
judeus afirmavam ser filhos adotivos, mas como pessoa realmente divina,
igual ao Pai em essência, poder e majestade. Prova disso são:
À luz dessa distinção, torna-se um pouco mais fácil entender o que significa o
mistério da Encarnação. O que ensina, pois, o dogma católico é que em
Jesus Cristo há uma única pessoa (um único quis ou hipóstase), que é Filho
eterno de Deus, o qual subsiste em sua própria natureza divina, mas também
em uma natureza humana, criada por obra do Espírito Santo no seio da
Virgem Maria. Mas essa subsistência em duas naturezas não implica que elas
estejam separadas nem, muito menos, que se tenham fundido ou mesclado,
dando origem a uma terceira coisa.
Vale a pena ler por inteiro a definição solene com que a Igreja Católica,
reunida em Concílio ecumênico na cidade de Calcedônia, em 451, declarou e
definiu em termos precisos esse mistério soberano:
a) Não é o dogma revelado das duas naturezas de Cristo em uma pessoa que
deve ajustar-se às noções de “natureza” e “pessoa” descobertas
racionalmente apenas com o exercício da filosofia; antes, pelo contrário, são
essas noções filosóficas que devem ser polidas, retificadas, enriquecidas e
ajustadas à norma do dogma revelado. Não somos nós que ditamos em que
sentido Cristo é pessoa e tem esta ou aquela natureza; é Deus mesmo quem
nos revela que seu Filho encarnado é uma só pessoa em duas naturezas,
cabendo-nos então o trabalho de adequar ao mistério o conceito de “pessoa”
e “natureza” que já possuíamos.
b) Ciência beata. — É igualmente certo, além disso, que Jesus teve, desde o
primeiro instante de sua concepção, a chamada ciência beata ou de visão
beatífica, que é a ciência com que os anjos e santos do céu conhecem a
Deus em si mesmo e as outras coisas em Deus. Cristo, portanto, via e
conhecia a Deus não apenas com seu intelecto divino, ao compreender sua
própria substância divina, mas também com seu intelecto humano elevado
pelo lumen gloriae. Ele mesmo o afirma, ao dizer a Nicodemos: “Ninguém
subiu ao céu senão aquele que desceu do céu, o Filho do Homem
que está no céu” (Jo 3, 13). O Filho do Homem, por conseguinte, mesmo na
condição de viator, estava no céu, o que não é possível senão pela visão
beatífica. O que também se pode ver pelo seguinte argumento: se toda causa
é anterior ao efeito e contém, de modo superior, a perfeição comunicada ao
efeito, é evidente que Cristo, sendo a causa da bem-aventurança para os
outros homens, como diz a Escritura: “Desejando conduzir à glória numerosos
filhos” (Hb 2, 10), deveria ser bem-aventurado primeiro e mais do que todos
os outros. É uma exigência não só da união hipostática, mas de sua condição
de autor da nossa salvação.
Breve explicação. — Mas, se isso é assim, de que maneira Jesus Cristo, por
sua consciência humana, sabia com toda a certeza que era Deus? É
evidente, por um lado, que o Verbo, à luz de sua ciência divina e
omnicompreensiva, sabia ter-se encarnado e que, portanto, era ao mesmo
tempo perfeitamente Deus e perfeitamente homem. Mas por que meio, no fim
das contas, a alma humana de Cristo se dava conta de pertencer, em unidade
de pessoa, ao próprio Filho de Deus? Mais uma vez, a solução provável e
segura é a que afirma que “Jesus Cristo, enquanto homem, teve consciência
de sua divindade em virtude da visão beatífica, da qual gozava a sua alma já
neste mundo” [2]. Assim sendo, “a mesma pessoa que, pelo entendimento
humano, realiza o ato da visão beatífica percebe-se claramente a si mesma
como presente ao seu próprio ato de visão, já que essa pessoa é Deus
mesmo”
Conclusão. — Com base nestas noções, pode-se afirmar que Jesus Cristo é,
verdadeira e propriamente, sacerdote e mediador perfeitíssimo entre Deus e
os homens. Atestam-no as SS. Escrituras: “O Senhor jurou e não se
arrependerá: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de
Melquisedec” (Sl 109, 4); “Temos, portanto, um grande Sumo Sacerdote que
penetrou nos céus, Jesus, Filho de Deus” (Hb 4, 14), e confirma-o a razão
teológica. Com efeito, o ofício próprio do sacerdote é ser mediador entre Deus
e os homens, enquanto dispensa ao povo as coisas sagradas e apresenta a
Deus as preces do povo e oferece-lhe sacrifícios; ora, tudo isto convém a
Cristo por excelência, como está escrito: “Aprouve a Deus fazer habitar nele
toda a plenitude e por seu intermédio reconciliar consigo todas as criaturas,
por intermédio daquele que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu
a paz a tudo quanto existe na terra e nos céus” (Col 1, 19); logo, é evidente
que Cristo-homem é, por excelência, mediador entre Deus e os homens e, por
isso mesmo, própria e verdadeiramente sacerdote [4].
Veremos nas aulas seguintes, à luz do que vimos nesta, a natureza de seu
sacrifício redentor.
O próprio Cristo, com efeito, primeiro conduziu os discípulos, por sinais certos
de credibilidade, à fé no mistério da Encarnação, para só então lhes revelar a
plenas luzes o mistério da Redenção na cruz. Temos disso uma amostra na
confissão cristológica de S. Pedro, onde vemos o Senhor louvar a fé do
príncipe dos Apóstolos em sua condição de Filho de Deus: “Tu és o Cristo, o
Filho de Deus vivo” (Mt 16, 16), para logo em seguida complementá-la com o
fato, inseparável da Encarnação, de que o mesmo Cristo “precisava ir a
Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos príncipes dos sacerdotes
e dos escribas; seria morto e ressuscitaria ao terceiro dia” ( Mt 16, 19). Já nos
referimos a essa complementaridade mútua entre Cristologia e Soteriologia
na segunda aula do curso (cf. n. 7ss).
Noções gerais.
a) A honra divina ultrajada. — Pelo pecado, o homem viola a honra devida a
Deus e, com isso, torna-se réu de uma injúria que, segundo a medida da
pessoa ofendida, possui certa gravidade infinita. Deus, com efeito, tem pleno
direito a que as criaturas racionais a Ele se submetam como à causa primeira
e fim último do universo, e nesta livre submissão, que não é mais do que o
reconhecimento teórico e prático de sua excelência e domínio supremos,
consiste formalmente a glória ou honra externa de Deus. Por isso, negar-lhe
tal reconhecimento implica, por si só, a violação de um direito divino à livre
sujeição do homem, o que pode caracterizar-se propriamente como injúria,
isto é, como lesão de um direito alheio. Ora, dado que a gravidade da injúria
se mede por comparação ao grau de dependência do agravante em relação
ao agravado, de maneira que será tanto mais grave a injúria quanto mais
essencial for a dependência do primeiro com respeito ao segundo, é evidente
que o pecado constitui a injúria mais séria possível e tem, ademais, certa
gravidade infinita, fundada na infinitude do ofendido, que é o próprio Deus
(cf. STh III 1, 2 ad 2).
Erros.
Com efeito, quando dizemos que Cristo “satisfez pelos nossos pecados”,
devemos entender o termo “satisfação” não só em sentido próprio como
também analógico. É satisfação propriamente dita, porque uma ofensa-dívida
é satisfeita quando é compensada pela entrega ao ofendido-credor de um
bem de preço equivalente ou superior ao débito contraído, e Cristo o fez de
maneira perfeitíssima na cruz, ao oferecer a Deus Pai, em favor dos homens
e como Cabeça da nova humanidade, sua vida de infinito valor. E é satisfação
em sentido analógico, porque essa entrega (que, no caso de Cristo, é também
um sacrifício cruento) não é realizada como é costume entre os homens, isto
é, por simples dever legal, mas por um motivo mais profundo, que é o amor
teândrico e perfeitíssimo com que o Senhor se oferece a si mesmo pelos
pecadores.
c) Isso não impede que a parte inferior de sua alma, isto é, a parte de sua
natureza humana em estado de via, tenha experimentado, para complemento
da obra redentora, a desolação que nós muitas vezes sentimos, quando
somos por algum motivo privados da presença consoladora de Deus.
Em sentido contrário, está o que diz Damasceno em De fide orth. III, a saber:
que “a divindade de Cristo permitiu à carne fazer e padecer o que lhe era
próprio” [...]. Deve-se dizer que, como foi dito antes, a alma como um todo
pode entender-se (1) ou segundo a essência (2) ou segundo todas as suas
potências. Pois bem, (1) se se entende segundo a essência, toda a alma <de
Cristo> gozava, enquanto é sujeito da parte superior da alma, à qual compete
fruir da divindade, de modo que, assim como a paixão se atribui à parte
superior da alma em razão da essência, se atribua a fruição à essência em
razão da parte superior da alma. (2) Se, no entanto, tomarmos a alma como
um todo em razão de todas as suas potências, então não gozava a alma
toda, a) nem diretamente, porque a fruição não pode ser ato de qualquer uma
das partes da alma, b) nem por redundância, porque, enquanto Cristo era
viandante, não redundava a glória da parte superior para a inferior nem da
alma para o corpo. No entanto, uma vez que a parte superior da alma não era
impedida pela inferior quanto àquilo que lhe era próprio, segue-se que a parte
superior da alma gozava perfeitamente enquanto Cristo padecia (STh III 46, 8
sc. e c.).
Em outras palavras, a alma de Cristo tomada como um todo segundo sua
essência, isto é, enquanto está presente em sua totalidade no corpo inteiro e
em cada uma de suas partes e faculdades, gozava e era, portanto,
sumamente feliz; tomada, porém, como um todo por simultaneidade de suas
potências, podia realmente padecer, na medida em que Ele, por especial e
voluntária dispensação, impedia a redundância conatural da glória
beatificante de que fruía na potência mais alta da alma — chamada de “razão
superior” (ratio superior) — sobre as potências anímicas inferiores
(suscetíveis, portanto, aos influxos passionais de dor e tristeza
correspondentes ao estado de viandante) e sobre o corpo (sujeito, pela
mesma razão, ao sofrimento e à morte física). Há nisso união de contrários
extremos, mas nenhuma contradição. Com efeito,
[…] repugna que haja, ao mesmo tempo, suma alegria e tristeza onde há
somente um modo de conhecimento e volição, correspondente ao estado
de compreensor; no entanto, onde há, além dele, um modo de conhecimento
e volição correspondente ao estado de viandante, dizemos ser possível haver
suma alegria do objeto principal e dos secundários nele contidos da visão
beatífica e, ao mesmo tempo, tristeza e dor de outros objetos, apreendidos
pelo conhecimento (quer infuso, quer adquirido) de viandante. De fato,
repugna absolutamente que haja, ao mesmo tempo, alegria suma e tristeza
de uma mesma coisa e pelo mesmo motivo; mas não repugna absolutamente
que, num mesmo sujeito, haja simultaneamente alegria e tristeza de objetos
diversos e por diversa razão. Não repugna absolutamente, no sentido de que
nem Deus onipotente poderia constituir um homem nesse duplo estado; seja
como for, concedemos sem dificuldade que, conaturalmente e per se, a visão
e fruição beatificas excluem toda dor e toda tristeza. Suposta, porém, a
coexistência <em Cristo> desses dois estados, o de compreensor não apenas
não impediu ou diminui, senão que aumentou e intensificou enormemente a
dor e a tristeza de <Cristo> viandante, na medida em que a visão e o amor de
<Cristo> compreensor influíam para lhe aperfeiçoar o conhecimento e a
volição também em estado de viandante. Daí se vê que, por influxo da
divindade, na presente economia do Redentor, a Paixão de Nosso Senhor
não só não diminuiu como foi intensificada quase ao infinito [6].
Corolários. — 1.º Cristo, enquanto compreensor, não podia padecer na razão
superior, isto é, na “região” mais alta de sua inteligência e vontade, onde fruía
da visão facial da essência divina; mas, como viandante, não se limitou a
sofrer no apetite sensitivo, senão que padeceu também na chamada razão
inferior (ratio inferior), ou seja, na mesma potência racional enquanto voltada
para as coisas temporais e, portanto, subordinada às verdades eternas na
ordem especulativa, das quais toma, na ordem prática, seus princípios de
ação. Logo, Cristo sofreu realmente pelos nossos pecados como algo
temporal (quid temporale), isto é, como ofensas a Deus; mas, à luz de sua
razão superior beatificada, via com singular clareza toda a maldade e malícia
deles e podia, por isso mesmo, entristecer-se com mais profunda e redentora
tristeza.