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«Os ESCRAVOS PULULAM por toda a parte. Todo o serviço é feito por ne TRABALHO SERVIL
gros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Es
-·
::ou em crer que em Lisboa os escravos e as escravas são mais que os portu
gueses livres de condição. Dificilmente se encontrará uma .casa onde não
naja pelo menos uma escrava destas_ É ela que vai ao mercado comprar as
coisas necessárias, que lava a roupa, varre a casa, acarreta a âgua, e faz os
despejos à hora conveniente.» E a mesma testemunha, esta flamenga: «Mal
pus o pé em Évora, julguei-me transportado a uma cidade do inferno: por
:oda a parte topava negros>> (Cerejeira, 1949, pp. 281-282 e 286).
Muitos seriam os escravos, notando-se em especial em Lisboa. Por mea
dos do século entrariam por volta de 1600-1700 cada ano. Que não ficavam
:odos na cidade. Em 1551, em 100 ooo almas contavam-se 9950 escravos,
aproximando-se dos ro % do total dos habitantes (Oliveira, 1938, p. 101) .
.'v1ercadores de escravos seriam, em 1552, uns 60 ou 70. Escravos e escravas
'ou já forros) dedicam-se às tarefas mais vis e penosas: descarregar navios,
carregar peixe e carne, vender azeite ou água, fazer os despejos, vender ma
risco, ameixas e favas cozidas, lavar e ensaboar, caiar, descarregar carvão,
andar ao trapo [Brandão (de Buarcos), 1990, pp. 203-215]. O peregrino
Bartholomé, por 1576, diz Lisboa «madre de negros». Dua:çte Nunes do
Leão refere a «multidão de escravos» como uma das razões para o aumento
das carências frumentárias (Leão, 1610, fl. 63 v). No Algarve não se exage
rará se se avançar com uns 10 % do total da população para finais do sécu <] Retrato da negra Catarina,
escrava do feitor Ruv Fernandes
lo xv1; o que viria a dar à volta de uns 6000 (Magalhães, 1970, p. 23 r). (por Albrecht Dürer,' Florença,
.'v1uitos seriam por todo o sul e vale do Tejo, em substituição da mão-de Museu dos Uffizzi, Gabinete de
-obra que procurava emigrar - e tentar a sobrevivência ou um árduo enri Estampas). A exótica serviçal
quecimento inalcançável com o penoso trabalho a que se podia dedicar nas permite ao grande pintor alemão
cerras de origem. um desenho de grande
A chegada de escravos (mão-de-obra de substituição) acelerava o movi expressividade, com um gosto
pelo pormenor que está bem no
mento de emigração dos naturais, a que faziam concorrência, por não rece seu jeito. As informações das
berem salário ou qualquer remuneração. Por outro lado, a sua aquisição novidades que os Portugueses
exigia um investimento elevado, pelo que não seriam muitos os que os po estavam trazendo para a Europa
diam ter e manter. Por isso se encontram em Lisboa, no Sul e nas Ilhas (em difundiam-se muito especialmente
especial na Madeira) ou em Santarém, poucos em Coimbra ou no Porto. através da feitoria da Flandres.
Ainda há sinal deles no Norte interior, rareando em Viana de Foz de Lima © Museu dos Uffizzi, Florença.
SOCIEDADE E CULTURA
...
causa do Tratado de Tordesilhas).
A última grande expedição com
este intuito foi a de Martim
Afonso de Sousa em 1531-1532.
(Atlas de Fernão Vaz Dourado.)
FOTO: ARQUIVO CÍRCULO DE
LEITORES.
tos que fazem cativos com cativas, sem que os amos ousem impedi-los»
(Villalba y Estaria, 1889, vol. u, p. 35). Há que supor que seriam bem me
lhor tratados do que os assalariados e trabalhadores assoldadados eventuais,
durante os anos em que a sua força física ou habilidade o justificavam. Pelo
que custavam, havia que os fazer render. Com frequência acabavam inte
grados na larga família. Tinham-se gerado laços de convivência que não re
produziriam a violência do estatuto legal. É comum a alforria em testamen
to, ou a recomendação que proíbe a sua venda e pede o seu bom tratamento
(Vieira, 1991, p. 55). A uma escrava ou um escravo que se estima propor
cionam-se meios de sobrevivência quando forro. Só assim a alforria fazia
sentido e era verdadeiramente libertadora (ibid. pp. 182-183). Alguns escra
vos conseguiam-na pagando-a. As vezes, <(dando escravos por si». Não se
ria raro, no Brasil, que artesãos pobres conseguissem a alforria de escravas
com quem casavam (Primeira visitação, 1984, pp. 363-367). Ou aproveitando
ocasiões excepcionais. Em 1580, quando Lisboa se prepara para responder
ao avanço das tropas do duque de Alba, apregoa-se que os negros cativos
471
A grande massa dos que emigravam vinham das populações rurais, que
os meios citadinos portugueses não conseguiam reter (Godinho, 1975,
pp. 28-30). Gente sem eira nem beira, que se alistava para tentar a sorte,
que poucas vezes sorriria. Em 1609, Moncorvo diz estar muito pobre, «por
causa dos ruins anos que houve até'gora, que muita gente se foi para fora
do Reino por pobreza» (Oliveira, 1887-1888, tom. II, p. 222). Destes que
nada tinham, muitos emigravam crianças. Abundavam os meninos órfãos,
abandonados e enjeitados, de que era preciso a sociedade (que fazia a mãe
abandoná-los) cuidar ou desfazer-se. Situação que piora no decurso do sé
culo. Em Braga, em 1567, a câmara constata que de alguns anos a esta parte
ia em· grande crescimento o número de enjeitados, que lhe davam muito
:rabalho e despesa, por os «mandar criar à sua custa» e haver falta de amas
«Acordos e vreações», in Bracara Augusta, vol. xxxm, r979, pp. 543-544).
. '.'Jasmesmas aflições se vê a Câmara de Coimbra, em r579 (Loureiro, 1964,
rnl. II, p. 67). O aumento de enjeitados revela o efeito conjugado de cresci
mento populacional e de maior fiscalização da Igreja depois de Trento? Os
que sobreviviam engrossavam a massa miserável. Em Lisboa, o (cpai de ve
lhacos» tinha a obrigação de lhes arranjar amo (Oliveira, 1620, fl. 97 v). Ou
seriam empurrados para a Índia e para o Brasil. Destes meninos se irão
aproveitar não pouco os filhos de Santo Inácio na sua missão evangélica.
A Índia «vêm todos os anos nas naus duzentos meninos». Recolhidos pelos A fertilidade das ilhas dos
fidalgos, criam-se e (azem-se <(soldados e honrados» (Couto, 1980, p. 187). Açores, em especial em trigo,
As órfãs eram muito pretendidas para a Índia e para o Brasil, a fim de lá ca levou a que a população aí
tivesse um notável crescimento.
sarem. Evitar-se-ia que os povoadores tivessem <mão só uma concubina, Porém o regime de capitanias e a
mas muitas». Quaisquer mulheres convinham, (<ainda que sejam erradas, pressão senhorial empurram cedo
que seguro era encontrarem marido» (Nóbrega, 1988, p. 109). A marginali para a emigração.
dade do centro aproveitada nas periferias. (Carta da ilha Terceira.)
Muitos dos emigrados não regressavam ao reino. Como não regressavam © BIBLIOTECA NACIONAL, FLORENÇA.
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SOCIEDADE E CULTURA
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Origem dos portugueses cm Goa, os que se iam instalando pelos portos da Ásia, fora do domínio dos Portugue
cm 15r4 (mapa I, Carl!J1, ses. Por isso as populações fixadas eram muito menores do que seria de espe
1884-1915, tom. v1), em Ormuz rar. Em 1561 o arcebispo de Goa informa: «Haverá nesta cidade [de Goa] ao
(r522) (mapa II, Farinha, 1991),
cm Pernambuco, em 1593-1595 menos 4343 vizinhos dos quaes são portugueses 1478 e mistiços 145; os ma:s
(mapa III, Primeira Visitação, são da terra. No termo da cidade e suas aldeias há 7025 vizinhos», não entran
1984). do soldados. O total seria de apenas 80 ooo cristãos (Gavetas, 1963, tom. DL
1963, p. 190). Cinco mil homens foi o máximo que, pelos números oficiais, se
conseguiu reunir para o socorro de Diu, em 1538. E só nesse ano, após 40
anos de presença, tinham ido na armada 2000 (Correia, 1975, vol. IV, caps. I e
XXI, pp. I0-60).
Ligar migrações e recursos alimentares é fácil: em 1555 Simão da Gama
de Andrade é encarregado de levar gente de São Miguel para o Brasil. Não
«foi o número tanto como parecia que nas ilhas se poderia achar, a razão por
que se não quisessem então embarcar foi por a terra estar muito abastada de
todos os mantimentos principalmente pão» (História, 1922-1924, vol. III.
p. 380). Um simples acidente conjuntural e há mudanças imediatas de com
portamentos. A fome leva à emigração. Como podem os lavradores por
tugueses semear em estreituras e curralejos, sendo Portugal na maior parte
de penedos, areias e campos alagados? Por isso, «constrangidos de fome», a
«esse mundo se vão». A peste seria até uma necessidade para Portugal, por
que a «gente se multiplicava em tanta maneira que ús com outros se co
miam» (Costa, 1983a, p. 59).
Também há os que procuram melhor fortuna. E que arriscam. Com IO
ou 12 anos, fugindo da «miséria e estreiteza da pobre casa» de seu pai em
Montemor-o-Velho, em 1521, vai servir para Lisboa uma senhora. Daí passa a
casa de um fidalgo. Como o que ganhava não era suficiente para a sua sus
tentação embarca então para a Índia, em 1537 (Pinto, 1974-1984, caps. HL
vol. r, pp. 4-7). Destino comum a muitos, o de Fernão Mendes Pinto. Emi
gram os pobres como soldados e servidores, emigram os filhos de ricos que
não contam com heranças. Diferente era o caso dos mercadores, que com
grande agilidade mudavam de residência, na busca das melhores oportuni
dades. Veja-se um Gaspar Lopes Homem, natural de Ponte de Lima, donde
se vai para o Funchal, saltando para Lisboa em fins do século, quando o ne
gócio do açúcar entra em depressão: na ilha já nenhum homem podia «dar
remedeo a seus filhos, porque se ficam ahi, ficam vivendo pobres». Fina-se
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A SOCIEDADE
OS CRISTÃOS-NOVOS: DA INTEGRAÇÃO
A SEGREGAÇÃO
QUANDO CLAUDE DE BRONSEVAL chega a Lisboa, ·acha a cidade «um re
-
tr?táculo de Judeus, uma ama de uma multidão de Índios, um cárcere de
.�arenos, um armazém de mercadorias, uma fornalha de usurários, um es
::.ibulo de luxúria, um caos de avareza, uma montanha de orgulho, um refú
:::o de fugitivos» (De Bronseval, 1970, tom. 1, pp. 328-329). Já ao passar
-:e!o Porto e por Tomar se chocara com a presença de numerosos judeus e
::lOuros. E o mesmo sentirá em Lamego. Em 1532 os mouros seriam escra-
os; a presença do seguidor da Lei Velha, cristão-novo desde 1497, ainda
s...'"Iia visível. Não durará muito: em I 531 D. João III obtivera o estabeleci
::1ento do Santo Ofício da Inquisição pela bula Cum ad mihil maiis, de Cle
.nente VII. Não é fácil entender a razão por que se forçou em Portugal a in
:egração violenta de uma minoria religiosa que tinha atravessado séculos em
segregada mas pacífica convivência com a esmagadora maioria cristã (Her
::tlano, 1975; Azevedo, 1975).
DESDE 1478 os REIS CATÓLICOS perseguiam os conversas. Em 1492 ex Dos JUDEUS
pulsam os judeus dos seus reinos. Lideram a corrente antijudaica popular, AOS CRISTÃOS-NOVOS
que por toda a Europa estava desencadeando perseguições e expulsões (ls
:ael, 1992, pp. 23-26). Por dificuldades de adaptação dos humildes à pro
:unda transformação provocada pela expansão do capitalismo, em período
de crescimento demográfico que agravava as condições de vida dos que na
da tinham? Pelo papel social desempenhado pela gente de nação, em que
parte dos rendeiros dos tributos eram de origem judaica, arcando com o
odioso dos acréscimos fiscais necessários ao financiamento dos Estados mo
dernos? Por os judeus serem alvo fácil para apontar a uma plebe angustiada
e penalizada pelas crescentes exigência dos governantes e senhorios - e, as
sim, escolhidos como «estupefaciente social» (Vilar, 1980, p. 335), aliviando
e transferindo a aparência de opressões bem mais pesadas? Explicações par
ciais para o fanatismo antijudaico.
Se os Reis Católicos tomam a iniciativa da expulsão e encabeçam a brutal
limpeza do reino da conspurcação hebraica, D. João II soube aproveitar a
entrada de alguns milhares de pessoas - não contabilizável (Tavares, 1987,
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243
POPULAÇÃO E ECONOMIA
travesseiros/ com mais ira que os rendeiros/ sem me razão ser ouvida»
cente, tom. n, pp. 513-514). Rendeiros, supõe-se que seriam especiahr.e-
duros os dos dízimos, que arrendavam as cobranças dessa parte de\·i� �
Deus para a manutenção do clero (que os reis, através das comendas, c.i.=
bém foram distraindo para a aristocracia). É que o produto final que os �
vradores penosamente conseguiam obter estava, ainda por cima, suje::
descontar os dízimos a Deus ( ro % para as dioceses e para outras insc._
ções religiosas que tinham esse privilégio e para os comendadores rapaccs
Some-se um sem-número de direitos reais e senhoriais que resultavar:: �
velhas dependências, antigos direitos em vigor, e das novas incorporações
de contratos privados como públicos nos forais manuelinos, e teremos -::.:=.
quadro nada idílico dos trabalhos e dos dias dos que fazem a terra ( ·e:�
1991, pp. 213-215 e 430).
As condições naturais, já de si não satisfatórias, somam-se as engrenag
de uma sociedade em que os lavradores têm de manter uma boa parte 6::
aristocratas e dos eclesiásticos. ((A Agricultura, por direito, é e den: se-
muito favorecida, porquanto per os lavradores se soporta o estado da ter....::
a mantém per suas lavras e criações, servem com pam, cabritos, galinhas, cz
neiros, palha e cevadas e outras cousas; e com todo é uma gente a que coce:
fazem mal e pouco favor», ouviu el-rei D. João II nas Cortes de Evora .i..
1481-1482 (Barros, 2.' ed., s/d, vol. IX, p. 198). Os lavradores são e serão a::::;
da os mantenedores. Dificuldades naturais, deficiências sociais. Convergen:a
Como evitar as irregularidades e calamidades naturais? Pedindo a Deus�
va, rogando-lhe para que a chuva cessasse. Uma dependência dos factores ::::,
turais, e divinais, contra os quais escassa defesa haveria, numa total ou poi.:o
menos que total dependência da Natureza. Natureza que não se mostrava p:-6-
-
diga, pela dificil e não poucas vezes contraditória interinfluência do Medice.:-=.,,,_
neo e do Atlântico na terra portuguesa, em que o relevo torna ainda mz:s
complexa e irregular a variedade climática (Ribeiro, 1986, pp. 131-16.!
A um Norte áspero e montanhoso liga-se um Sul de planície, a um No::--...e
com bastante pluviosidade e alguma fartura de águas corresponde um ::..
em que as secas são comuns. Terras montuosas para o Norte e mesmo pa:i
o Centro, onde o maciço calcário estremenho se eleva, estéril e imponente, se
parando o vale do Tejo das terras do litoral oeste. Litoral que a norte da foz e:c
Mondego também só é fértil numa estreita faixa entre as areias da costa e
montanha áspera do interior beirão, por terras de dificil aproveitamento, salr..:
em alguns vales mais férteis. Quão penosa era a produção em algumas cerra
como as do Douro, que os homens iam fazendo. As ((fragas altas levam ce:-:-z
às costas, pera plantarem as parreiras, e figueiras, pereiras, ameixieiras, e coé.:
outro arvoredo» (Collecção de ineditos, 1936, vol. v, p. ?89).
Oliveira, 1982, pp. 72-73). Eram como que a camada aristocrática do povo
Oliveira, 1971-1972, vol. 1, pp. 403-404).
313
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A SOCIEDADE
-
darem de rua em rua e _de porta em porta, pedindo por amor de Deus aos
ricos, aos prelados e conventos, aos comendadores, cónegos e abades que,
pois em lhes levantarem o preço do pão para a boca são causa da sua pobreza e
miséria e de não se poderem sustentar com seu trabalho, lhes dêem uma es
m<:>la para que não pereçam à pura fome» (Memórias, 1987, pp. 275-276).
Os contrastes e oposições eram muitos e muito fortes nesta «sociedade
conflitiva» (Kamen, 1984), que o rei procurava integrar e equilibrar através
da concessão de privilégios, privilégios que iluminam violentas oposições,
que a tornavam de mais difícil gestão.
OS ECLESIÁSTICOS
EM PRIMEIRO LUGAR, por tradição e por função de mediador para com
Deus, o clero. Grupo demasiado vasto. Muitos eram os que recebiam or
dens menores, habilitando-se a privilégios e foro de clérigo. Bastante me
nos os de ordens sacras. Em Coimbra, em 1537, foram 1737 os primeiros,
apenas 269 os segundos. Subdiácono pediram 23, diácono 24, presbítero 14.
Nesse ano receberam ordens ainda mais ro9 r. Em 1524 ordenaram-se.1963,
em 1529 ficaram-se pelós 1708 (Vasconcelos, 1915, pp. 834-835). Antes da
criação dos seminários (com o Concílio de Trento) era fácil ser clérigo. Das
40 freguesias de Lisboa, em 1620, se lê serem servidas por 300 clérigos; nos
conventos há I 36 5 frades e 1 8J2 freiras - contando as mulheres que ser
vem as religiosas (Oliveira, 1620, fls. 66-71). Em 1513, em Caminha, 0,2 %
da população, em Valença, 1,5 % (Oliveira, 1976, p. II). Não se conclua
coisa alguma.
São muitos os lugares de pároco (mais de 3000), a que se acrescentam os
benefícios em cabidos e colegiadas e os conventos de religiosos ainda em
expansão. A maioria dos lugares de curas de almas não traria, só por si, es
pecial consideração. O pároco de uma pequena aldeia não se distingue no
seu viver e nos seus recursos dos demais vizinhos. É um deles, com funções
específicas. Muitas vezes pobre e vigiado de perto por vereações e confrarias
SOCIEDADE E CULTURA
Quadro 11
e pelos patronos que lhe limitavam a acção e zelavam por que não distraísse
objectos de culto ou se apropriasse do que à comunidade pertencia. Ser pá �
Rendimentos dos bispos, estimados roco, sem mai�, não era elevada posição social; dependia da importância so!r.!
em ducados, cerca de 1529 económica da paróquia. Onde não havia velhos direitos, o rei fixa ordena C!:D
dos baixos: 20 ooo a 30 ooo réis em 1568 nos Açores (Arquivo, 1981 -1984, o�
Arcebispo de Braga - 24 000
Bispo de Évora - 20 000
vol. v1, pp. 184-192). A completar com o pé de altar (missas, baptizados, �
Arcebispo de Lisboa - 16 000
casamentos, enterros). <125 j
Bispo de Coimbra - 12 000 Bons lugares, sim, nas colegiadas e cabidos. Cónegos, meios-cónegos ?· :j
Arcebispo do Funchal - 8000 e outros prebendados instalavam-se muito acima do eclesiástico comum.
Bispo de Viseu - 8000 Além das rendas próprias das sés e colegiadas, recebiam os dízimos, a meias . - a=
Bispo de Lamego -
Bispo da Guarda -
6ooo
5000
com o prelado. Esses vultosos benefícios encontravam-se reservados para os :é r
Bispo do Porto - 4000
filhos das famílias mais importantes, que assim colocavam alguns dos seus Pz
Bispo de Silves - 4000 ao abrigo de dificuldades de sobrevivência, sem que a unidade do patrimó �
Bispo de Ceuta - 2000 nio familiar se visse ameaçada por partilhas. E, como é natural, procuravam m=:::;
fazer com que os lugares se mantivessem para membros da mesma família ::!O:li
na geração seguinte. Cediam-se, compravam-se e vendiam-se lugares, com caG
a devida aprovação papal, régia ou episcopal (Brandão, 1990, pp. ro-12). ro:::
Até à travagem tridentina não seria sequer incomum a passagem de lugares
de pais para filhos (Dias, 1960, tom. 1, pp. 36 -38). E eram pingues rendas. o_..:s-
O rei e os bispos e o longínquo papa, todos, tinham parte na nomeação de 20:
benefícios, o que implica um cuidadoso equilíbrio entre os padroeiras (pon :990
tuado por conflitualidades).
Os próprios reis reservavam os melhores lugares da Igreja para os seus fi
lhos legítimos (D. Manuel para os infantes D. Afonso e D. Henrique) e ile
gítimos (D. João lil para D. Duarte). Os lugares de apresentação ou pa
droado real eram duramente disputados. Um lugar vago era uma ocasião
-
para se moverem influências, desencadeando «combates fortíssimos». As
influências contavam (Sousa, 1946-1948, vai. 1, livro I, cap. VI, p. 42). Bra
ga valia um bom esforço. Em 1558 o mais forte postulante era irmão do
duque de Aveiro, nada menos (Anedotas, 1980, p. 141).
De entre os grandes cargos eclesiásticos, havia uma ordem de rendimen
tos, que dava o sinal da importância relativa de cada um (Góis, 1945 , p. 98)
(quadro n).
A criação dos novos bispados, a partir de 1540, empobrece as dioceses de
onde se separam: Miranda, Leiria, Portalegre e Elvas. Acresce a mobilidade
de alguns bispos, que vão sendo como que promovidos: do Algarve para
Évora ou Coimbra, de Lamego para Lisboa, de Portalegre para o Porto ...
o CONCÍLIO DE TRENTO ATÉ AO CONCÍLIO DE TRENTO, padres e bispos, e mesmo monges, eram
celibatários, sem que isso obrigasse sequer a uma ap,arência de castidade: o
próprio capelão-mor, bispo de Lamego e depois arcebispo de Lisboa,
D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos, é pai de filhos, um dos
quais cónego na mesma Sé de Lisboa (Maurício, in Ordens, 199 1 , p. 262).
Os frades eram <imenos recolhidos do que devem e mais soltos do que a re
ligiosos pertence», escreve com elegância a Câmara de Angra em 1541 (Ar-
quivo, 1981 -1984, vai. v, p. 163 ). .
A partir de 1564 (e mesmo antes), o ser eclesiástico já não deve ser apenas
um modo de vida como qualquer outro. No interior da própria organização
eclesiástica as coisas começam a mudar. Passa a exigir-se uma dedicação
pastoral e disciplinadora que deixa de se limitar à fruição pacata dos bens
terrenos. Começa a exercer-se uma forte pressão sobre as populações, vi-·
giadas e controladas a cada passo. São os registos de baptismos, casamen
tos, e enterros (decretados, mas pouco cumpridos áté então). São os róis de
confessados. São as visitas pastorais, com os seus exames ao comportamen-
to social e sexual dos fregueses.
Na primeira fornada de bispos da escolha de D. João lil surgem D. Ma
nuel de Noronha, fidalgo (Angra), o Dr. Brás Neto, desembargador e di
plomata (Santiago de Cabo Verde), D. Diogo Ortiz, deão da capela real
(S. Tomé), e o Dr. Francisco de Melo, das melhores linhagens, matemático
ilustre (Goa); D. Martinho de Portugal, cortesão e parente do rei, filho de
um arcebispo de Évora, passa a arcebispo do Funchal (Relações, 1937,
A SOCIEDADE
T__sse pp. 103-1 ro). Prelados de corte, que nem sequer tentaram conhecer as dio
:::-r2- ceses cujos titulares eram. Depois os bispos deixam, em princípio, de ser
i::c--2 sobretudo homens do serviço régio, ou filhos de grandes e de fidalgos en
caixados na fruição de chorudas rendas. Alguns dos nomeados vêm das
ordens religiosas, de entre os esperadamente virtuosos, não sem que se mo
vam influências (Dias, 1960, tom. 1, p. 75) - um núncio refere intrigalha
das de frades para afastar os clérigos seculares (De Witte, 1980-1986, vol. II,
�05 p. 152). D. Miguel da Silva, que conhecia bem o rei, aconselha o papa a no
� mear um frade português para o substituir em Viseu (ibid., vol. II, p. 501).
::.:=:as Naturalidade e disciplina regular. Outros vêm do Santo Ofício, tirocínio de
.:a os fé e rijeza doutrinária .
�..:s Pastores, em princípio virtuosos, devem residir nas suas dioceses e nelas
:.::::.ó exercer o seu múnus. O que não deixa de acarretar dificuldades, nem de en
�-.--;L-::? contrar obstáculos vindos de dentro, pois a administração das dioceses estava
_;-:ª montada para bispos absentistas. D. Frei Bartolomeu dos Mártires, promotor
ro:::t da Contra-Reforma, em cuja definição teve parte, vai debater-se mais que tudo
com a dificuldade de visitar as freguesias dependentes do seu cabido. Querem
impedi-lo de entender na «vida dos eclesiásticos, dos ricos, dos poderosos da
cidade» de Braga, sem curar de <wícios e culpas, de que a liberdade e riqueza
são fonte certa» (Sousa, 1946-1948, livro II, cap. III, vol. 11, p. 61, e Soares,
1990). O confronto com o cabido em Braga não teria sido diferente do de
quantos bispos que começaram a tomar a sério a sua missão pastoral.
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e :..e-
� �2- POR TODA A PARTE os CÓNEGOS eram gente poderosa, fazendo amargar a CONFLITOS INTERNOS
:::5'"'20 doçura episcopal. Os lugares que detinham eram definitivos e era também
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Cristóvão Lopes, Entrega dos
estatutos da Ordem às freiras da
Madre de Deus de Lisboa (Igreja da
Madre de Deus, Lisboa). A
fundação de conventos de
religiosas continua durante os
.. n- séculos xvr e xvrr. Em especial o
hábito de dotar com muitos bens
as filhas primeiras impedia o
casamento das demais.
A colocação nos conventos era a
saída. Por isso não foi fácil
.,la disciplinar a vida de religiosas,
t' c obrigadas a uma vida que não
::eal tinham escolhido, mas a que
rco tinham sido violentadas.
� d.e © ANF/Instituto Português de
Museus.
FOTO: ARMANDO SOARES.
-
de Melo (Dias, 1960, tom. n, pp. 629-633; De Witte, 1980-1986, vol. n,
pp. 525-527). Ao invés, D. Afonso de Castelo Branco, bispo-conde, exco
mungou o seu cabido de Coimbra (Teixeira, 1895-1902, p. 126) ... Os co
meços da residência dos bispos e o arranque das acções pastorais directas te
rão de passar, depois de r 564, por partilha de poderes. Porém, não foi
imediata esta presença dos bispos nas suas dioceses, e mesmo entrado o sé
culo XVII algum absentismo se mantinha (Dias, 1960, tom. 1, p. 75).
filhas dos grandes e fidalgos. Elvas, em 1498, requer ao rei esmola para fa
zer um mosteiro de freiras, por haver «muitas filhas de fidalgos e honrados
homens e as nom podem casar como a suas honras comprem». Por isso se
perdiam e cobravam má fama (Santarém, Provas, parte r, 1828, p. 78). Ou
uos, ansiosos por promoção social, metiam filhas em conventos, e esco
lhiam-nos entre os que mais enobreciam. Em famílias de nação era corrente
fazê-lo. A violência sexual do celibato sem vocação dava depois resultados
sabidos? Não importava.
Em r 532-1533 o abade de Claraval tem de vencer graves obstáculos para
se impor na mundanidade claustral de Almoster e de São Bento de Évora.
Em Almoster a abadessa, uma tia do marquês de Vila Real e irmã do conde
de Linhares, regia o convento como se de bem seu se tratasse. Os ilustres
parentes sentiram-se ofendidos com as intromissões (De Bronseval, 1970,
,·o!. I, pp. 376-381). São Bento de Évora pareceria tudo menos uma casa de
religiosas (ibid., vol. r, pp. 418-427). A abadessa de Lorvão, D. Filipa de
Eça, emprenhou já reclusa (De Witte, 1980-1986, vol. II, p. 524). Ainda em
1602, o bispo de Coimbra, D. Afonso de Castelo Branco, prefere que uma
freira de Semide saia do convento para não ensinar (ao vivo) as outras a pa
rir (Veiga, 1988, p. 280). Justas e pecadoras. Se há as exemplares freiras de
Odivelas, há as desgraçadas de Évora, para quem o convento era solução
para a falta de dote. Conscientes disso, alguns escolhiam para as filhas con
,·entos «largos», onde a observância se não tivesse instalado, «por me não
darem ao demo tantas vezes», escreve, desabusado, António de Saldanha,
em 1547. Filhas para o convento, filhos para a Índia (Costa, 1987, p. 13).
A Igreja e o rei coniventes. Aquela para aumentar o património e relevo
social, este para não se lhe multiplicarem os servidores e respectivos encar
gos. Nunca os reis acederam a limitar os dotes que os fidalgos podiam dar
às filhas, como lhe pediram nas Cortes de 1490 ou de 1581 (Santarém, Pro
vas, parte II, 1828, pp. 70 e 83). Se os morgados se destinavam a garantir
rendimentos com que o administrador devia «emparar irmãos e parentes»
(Costa, 1983b, p. 267), o sustento das jovens excedentes ia em pequeno do
te para onde as faziam professar.
Há, ao longo do século, esforços de reforma, em especial por uma estrita
observância das regras. Esforços com algum êxito, que não atacam o fundo
-
da questão: mantendo-se a mistura de leigos e clérigos na administração e
fruição dos bens, não poderia haver nunca cumprimento rigoroso das dis
posições estatutárias.
Nem por indisciplinada, embora em vias de reforma, a Igreja deixa de de
sempenhar o lugar que lhe estava conferido. E que aumenta com D. João III:
o núncio papal constata que o rei se preocupa em prioridade com negócios
eclesiásticos, esquecendo todos os outros, «por maiores e utilíssimos que se
jam» (De Witte, 1980-1986, vol. II, p. 512).
Os eclesiásticos e religiosos não formam um bloco coeso. Longe disso.
Há ricos e pobres. Seculares e frades. Conflitos, não raros nem pouco vio
lentos. Em 1490, D. João II faz avançar tropas para serenar Coimbra, onde
se guerreavam os partidários do bispo e os de Santa Cruz (Loureiro, 1964,
,·o!. r, p. 3 r 5). As questões das precedências das ordens religiosas nas pro
cissões podiam degenerar em desacatos, promovidos pelos próprios frades
(BNL, F. G., n. 0 5426). O número de frades e clérigos ia em crescimento,
de tal modo que no século xvn se pôde escrever que «se comem uns aos
outros». Tantos que não se podiam sustentar. Entretanto faltava gente para
as armadas (Oliveira, 1887-1888, tom. II, pp. 323-324). A fundação de no
vos conventos passou a ser fortemente contestada pelos povos e o próprio
rei teve de impor limitações (Silva, 1985, pp. 278-300). O reino transborda
va de frades e freiras.
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SOCIEDADE E CULTURA
Aires de Saldanha e D. Joana de de solar, os títulos e os grandes. Não era forçosa a progressão enumerada e
Albuquerque são dois bons as designações variaram (Albuquerque, 1988, pp. 31-34). O rei declarava fi
exemplares de fortunas grandes, lhar e tomar alguém como seu criado (de criação). Com isso uma forma de
ligadas ao ultramar, que se
constituem em morgado, para tratamento, o reconhecimento de honra e respectivos privilégios. O que
glória e honra de família. implicava assentamento nos livros régios. O fidalgo transmitia a qualidade e
Museu do Trajo, Lisboa. condição aos seus herdeiros. Mesmo descendentes enviesados, após reconheci
© ANF/ Arquivo Nacional de mento de paternidade e concordância régia, obtinham esse estatuto.
Fotografia. D. João II faz Pêro d' Alcáçova fidalgo, com carta de brasão de armas, e
FOTO: ARNALDO SOARES. declara: «Separamos e removemos do núm,ero geral dos homens e conto
plebeia e os reduzimos e trazemos ao conto, estima e participação dos no
bres fidalgos de limpo sangue» (Brito, 1991, p. 242). Limpo sangue não
significa ainda livre de ascendência judaica ou moura, obsessão no último
terço do século. Na carta de privilégios se continham isenções que se esten
diam à casa (parentes e servidores) do novo membro do grupo dominante.
Ninguém era feito fidalgo se se lhe não reconhecesse riqueza e status no estilo
de vida que o fazia sobressair do conjunto (Arquivo, 1981-1984, pp. 506-508).
Para se ser cavaleiro da Ordem de Santiago encontrava-se mesmo estatuído ser
rico (Olival, 1988, vol. I, p. 109).
A SOCIEDADE
o SANGUE ILUSTRE MAIS OBRIGA (Lobo, 1945, p. 297). A honra, ponto A HONRA
central da sociedade aristocrática, consiste «na virtude, valor, magnanimida
de e esforço próprio». Por ela se deve o fidalgo «aventejar do vulgo e não
os que fazem dela tão pouco cabedal que empregam o seu ânimo e saber em
cousas inclinas de homens bem nacidos, ocupando-os em latrocínios, forças,
traições, maldades, enganos e infâmias» (ibid., p. 307). Honra como recom
pensa, como aparência e como excelência (Chai.tchadis, 1984, p. 1 II). Me
recê-la, receber o correspondente tratamento e ter as qualidades que a justi
ficam, eis a que devem os homens aspirar. Os Portugueses preocupam-se
«mais com o fumo do que com o assado», diz um crítico (De Witte, 1980-
-1986, vol. II, p. 492-495). Peitam-se os cronistas da Índia para que relatem
os feitos gloriosos - lubrificação de que nem Afonso de Albuquerque se
esquece (Barros, 1974-1990, Década n, parte II, livro VII, cap. I, p. 3 r 2).
O conde de Tentúgal polemiza com Damião de Góis, negando as traições
da fanúlia de Bragança a D. João II (Góis, 1926, vol. 1). Honra e desonra
por herança.
Honra obtida por feitos militares. Honra alcançada na corte com o culti
vo de outras qualidades: «modéstia, prudência, discreção, conselho e habili
dade para tudo». O fidalgo perfeito, além de esforçado cavaleiro, será «mui
afábil, cortês e humilde com todos» (Frutuoso, 1977-1987, livro IV,
com. III, p. 121). A um fidalgo muito honrado, com o hábito de Cristo, ga
bam-se as «boas partes e discreção», o «ser honroso pera os homens, bem
inclinado, de muito respeito, grande amigo de seus parentes e desejoso de
acrescentar na dita geração, gentil-homem, gracioso, alegre, liberal, virtuo
so e temente a Deus, de muita verdade, desinteressado em falar o que en
tende, sem ter de ver com pessoa alguma». E, essencial, «por tal é conheci
do de todos» (ibid., livro vr, p. 29). Para este reconhecimento conviria que
o apelido familiar fosse usado, denotandq linhagem (Brito, 1991, p. 271).
Garcia de Resende dispõe que quem suceder no seu morgado se «chame
-
sempre de Rezende1> (Ribeiro, s/d, p. 336). Como, em 1600, Aires de Sal
danha e sua mulher, D. Joana de Albuquerque, determinam que os admi
nistradores do seu morgado guardem os apelidos de Saldanha e Albuquer
que e lhes usem as armas (Costa, 1983b, p. 262).
ÜS NOBRES O FIDALGO ERA NOBRE. Nem todo o nobre era fidalgo. Em fins do sécu o
lo xv, a expressão «nobreza» ainda pouco aparece como designando o todo se�
do grupo aristocrático, sendo muito corrente como adjectivo. A expressão co :t
<(nobres homens de linhagem» significa fidalgos, pois nobre qualifica linha �
gem. Nas mesmas Cortes de 1481-1482 se propõe ao monarca que faça «certo �.?§"�
número de vassalos e homes fidalgos e de nobre criaçom em que bem caiba tal se:::
G!.CO
honra» (Santarém, Provas, parte n, 1828, p. 136). Porém, em 1513, D. Ma
e�
nuel, ao estabelecer uma imposição sobre o consumo do vinho, refere haver
em Lisboa pessoas particulares que «ganham muito dinheiro, e assim algüs ,
- -:....
:::os
cristãos novos, merca.dores, [ ... ] homes ricos, e abastados e nobres» (Oliveira,
1887-1888, tom. 1, p. 416). Nobre, simplesmente, refere os que têm um com
z.--·
..
portamento que os aproxima da fidalguia, pela vida que podem levar, por ri
cos.
Nobre é aquele que mostra qualidades de nobreza, que sabe agir de um mo :
do honroso e socialmente prestigiante. Que cem um comportamento grave. :c:J
Ou ocupa cargos que, à partida, estava convencionado serem reservados a pes fim
soas com essas qualidades, virtudes e vida compatível. Nobre, como substanti
vo comum, só é corrente mais tarde, embora seja dificil, por vezes, limitar a
extensão do conceico, que remete para os melhores e mais honrados (Santa
rém, Provas, parte II, 1828, pp. 170-173). De que havia que dar sinais: a «gene
rosidade para com seus iguais e dependentes, a aucoridade sobre a família e
servidores, a hospitalidade e o senso de honra pessoal e familiar» (Schwarcz,
1988, p. 230). O homem designado só como nobre ficava numa zona indefini
Retrato de Vasco da Gama. O da e difusa de transição entre o plebeu e o fidalgo. Deste se vai aproximando.
capitão-mor da frota que Aparência, influência e eficácia em acrescido reconhecimento de superioridade
primeiro percorreu a rota do
Cabo era (como todos os correspondendo a um comportamento. Que ou seria aceite pela sociedade e
primeiros capitães) uma figura pelo rei, e integrado, ou se quedava pelo exterior, eventualmente próximo,
secundária da corte. Como - os sem pertença ao grupo.
demais, teria feito a sua De um postulante a um colégio de Salamanca, natural de Campo Maior, se
aprendizagem na navegação no apura ser <(de casta d'escudeiros, cavaleiros e fidalgos», que «governam e sem
golfo de Guiné. Foi escolhido
para o comando da, frota que pre governaram a terra e serviram os oficias nobres dela, de juízes e vereado
primeiro chegou à India res, sem terem raça nenhüa [nem] mácula de cristãos novos», «pessoas nobres
(1497-1498). Lá tornou em 1502, que se tratavam a lei da nobreza, com moços e escravos e cavalos, como cava
almirante. A energia (e crueldade) leiros» (Marques, 1988, p. 26). Para finais do século chamava-se-lhe viver (ou
do agora conde da Vidigueira aparentar viver) à lei da nobreza. «E todos os de Portugal e desta ilha [São Mi
indicava-o para reestrucurar o guel] são de grandes espíritos e viveram e vivem sempre à lei da nobreza,
domínio asiático, em I 524, como
vice-rei. Não teve tempo para abastados com cavalos de estado, e criados e escravos de seu serviço» (Frutuo
ISSO. so, 1977-1987, livro 1v, tom. 1, p. 50). Um tal Francisco Veloso solicita o há
FOTO: ARQUIVO CfRCULO DE bito de Santiago invocando que vive <cbem e honradamente», tem escravos e
LEITORES. escravas e moços que o servem, serve ele mesmo o rei no trato de Guiné e é
rico; além disso, não vem de casta de judeus nem de mouros nem anda horni
ziado. Vive <climpamente à lei de cavaleiro>>. Depois de 1572 convinha acres
centar que nem pai nem avós tinham sido oficiais mecânicos (Olival, 1988,
vol. I, pp. II 2-220, n. II). E juntar qualidades morais de pai-patriarca. Rui
Gago da Câmara era «de cal condição e tão nobre, que nunca agravou soldado
seu, nem usou de condenação, e prendendo-os e tratando-os com muito amor,
como filhos e assim é pai de todos e da mesma vila [da Ribeira Grande], acu
dindo primeiro que ninguém a todas as pressas e necessidades dela, e fora dela,
com sua pessoa e fazenda» (Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tom. r,
pp. 143-144).
,!
COMPORTAMENTO SE o FIDALGO NÃO TINHA de se cuidar, pois não perdia a qualidade que déti
nha por linhagem ou por mercê régia, já o nobre não podia esquecer-se disso.
O reconhecimento da sua honra passava pela aparência. Rui Brandão Sanches,
dos principais que governavam a cidade do Porto, testa que no seu morgado
não pode suceder gente não nobre nem cuja linhagem não seja antiga - a me
nos de um dote que valha quanto as terras vinculadas (Brito, 1991, p. 211). A
riqueza compensava a falha da linhagem. Ao nobre não convinha ter próximo
uma ascendência de oficiais mecânicos (ou não devia saber-se). Uma boa for
tuna acabaria por elevar, sobretudo os que conseguissem um hábito numa or
dem militar.
490
A SOCIEDADE
,-
O exagero com que os grandes, fidalgos, cavaleiros e escudeiros (e quantos � �
. ' ' •; :. ;, ·,
'.
-
riqueza recente. Desqualifica.
)
SOCIEDADE DE FORTE E VISÍVEL poder senhorial, intensamente contaminada COMENDAS
por comportamentos financeiros de uma natureza bem diversa. Os próprios
heroísmos querem-se convertidos em mais do que honra. Um acto valoro
)
so, ou pelo menos com essa fama, uma vez a valentia pessoal evidenciada e
reconhecida, justificava uma tença, um casamento, um hábito numa ordem
militar, no melhor dos melhores, uma comenda.
As comendas, que transitavam para os laicos parte dos rendimentos e dos
491
--- -- - -
-
SOCIEDADE E CuLTURA
tributos pagos à Igreja, são ainda mais apetecidas depois de 1496, quando
D. Manuel consegue acabar com a obrigação do celibato (Góis, 1926, parte I,
cap. xvn, pp. 34-3 5). Aumentar o número das comendas de Cristo, que
O. Manuel consegue do papa (comendas novas), era indispensável para mais
servidores galardoar, sem que a Fazenda régia sofresse.
Em especial as comendas são concedidas por feitos em combate contra os
Mouros, pois pertencem às ordens militares de Cristo, Santiago e Avis. A dois
filhos de D. Nuno Manuel, seu guarda-mor, sem fortuna, manda O. Manuel
«que fossem a África vencer comendas», o que implicava estarem por lá uns
anos (Anedotas, 1980, pp. 68-69). O segundo filho do conde de Sortelha,
O. Simão da Silveira, era fidalgo muito pobre, a quem D. João III propõe que
vá a África «servir uma comenda» (ibid., p. 75).
O próprio rei tem de justificar a distribuição dessas rendas em troca de
serviços prestados. Além do mais porque se trata de converter «as rendas da
Igreja e o património dos pobres em rendas e patrimónios dos leigos e ri
cos» (Dias, 1960, tom. II, p. 482). A Ordem de Cristo dispunha, em 1611,
de 456 comendas, com o rendimento anual de 90 090 258 réis, a de Santia
go 8 5 comendas, no valor de 3 5 684 ooo réis, e as 45 de Avis 24 963 ooo réis
(Falcão, 1959, pp. 209-212).
Muitas vezes o rei não cumpria as suas promessas de tenças. O que era
mau, porque delas dependiam as vidas «dos fidalgos e pessoas principais
[... ] e além disso é o mais barato soldo por que se podem achar soldados»
(Sousa, 1938, vol. 11, p. 316). Havia-os que esperavam anos sem se verem
premiados. Francisco de Sousa Tavares, que recebera por casamento uma
comenda, bem desesperou. Deveria ser, no mínimo, de 100 ooo réis, «que é
a valia das mais baixas comendas que se dão a fidalgos» - o valor médio,
-
em 1611, era de 197 566 réis (Costa, 1980, p. r20).
O rei, para assegurar o necessário fluxo de ambiciosos, servidores e
aguerridos para o serviço de ultramar, tinha de encontrar formas de com
pensação equilibrada. Por isso vai conceder os comandos das fortalezas ape
nas por três anos, numa rotação que a bastantes permitia esperar pela apro
priação de riquezas ou que atestados actos de bravura se convertessem em
recompensas - embora com o defeito de mal tratadas, como se «vinhas de
renda» (Costa, 1983a, p. 49). D. João III dá um posto de capitão-mor para a
Índia a D. Francisco Rolim, para que não tivesse de vender a sua vila da
Azambuja. Fê-lo a pedido do conde da Castanheira, que bem poderia ter
beneficiado com a compra desse senhorio. Comportamento de ajuda a um
fidalgo em apuros, que remete para a solidariedade horizontal entre privile
giados (Anedotas, 1980, pp. 124-r25; Atienza Hemández, 1987, p. 16). Por
ventura de um mesmo «partido» na corte. A concessão de viagens também
permitia acrescentar riqueza.
O rei nem sempre atendia aos requerimentos de tenças e mercês, em es
pecial sendo criticado pelos soldados velhos que as pediam e as viam escusa
das (Couto, 1980). Fica a honra: os <<serviços feitos aos reis de Portugal
eram os mores morgados dos reinos», na empáfia pelintra de Francisco
Pereira Pestana (Costa, 1983a, p. 81). Não esquecia outros. A António da
Silveira, o herói de Diu, coube a capitania do Machico, que a vendeu mais
tarde, por não coar dinheiro nas suas mãos. D. Álvaro de Castro, filho de
D. João de Castro, recusa a capitania do Faial e Pico, preferindo Fonte Ar
cada e seu termo, com jurisdição cível e crime (Arquivo, 1981-1984, vol. 1v, til
pp. 220-225).
MORGADOS E CAPELAS COM AQUILO QUE OBTINHAM, procuravam os fidalgos terras onde instituir
morgados. É o que está no centro dos esforços destes ambiciosos que arris
cavam à Índia e aos seus trabalhos. Com a instituição de morgado promo
via-se a <<conversação do nome, família e nobreza das pessoas que as insti
tuíram e a vincularam os bens que com mais renda e posse os pesuidores
pudessem ilustrar a família que decendiam e servir a seu rei na guerra e na
paz» (Costa, 1983b, p. 260). Um ou outro consegue, como Martim Afonso
de Sousa, «um arrezoado morgado» (Couto, 1777-1788, Década v, parte n,
cap. XI, p. 458). Morgados que se desejava terem por base a propriedade
492
A SOCIEDADE
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SOCIEDADE E CULTURA
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A SOCIEDADE
1989, p. 168). O que contava era ser fidalgo: «Homem que não é fidalgo
não é chamado pera nada» (Couto, 1980, p. 90). A menos de ser rico, que a
fidalguia poderia vir a obter. Dizia-se na corte de D. João III que a felicida
de de um português consistia «em chamar-se Vasconcelos; logo ter uma
quinta; depois seiscentos mil réis de renda». Nome de família ilustre, bens
de raiz, bom rendimento.
A ascendência fidalga, mesmo que por bastardia, devia ser tida como hon
rosa. Espantado ficou D. Constantino de Bragança quando um bastardo de
D. Teodósio, duque de Bragança, recusou o reconhecimento da paternida
de, coxp. as preeminências, postos e lugares que se lhe abriam. Não queria
pôr em causa o bom nome da mãe (Anedotas, 1980, pp. 140-1 41 ). Manifes
tação de dignidade desorientadora para os aristocratas, para quem a honra
não passava pelo respeito da virtude da gente miúda.
A plasticidade social e a possibilidade de mudança de estado e condição
estavam abertas, desde que o rei assim o entendesse e o comportamento in
dividual a isso desse acesso. Nem de outro modo a Expansão teria represen
tado um arra'ctivo. O indivíduo contava, e o individualismo dos comporta
mentos revela essa abertura.
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SOCIEDADE E CULTURA
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-�._. terra levando tochas e pegando às varas do pálio. Mesmo entre estes as pre-
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A SOCIEDADE
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do na Câmara de Lisboa em 1524, o que D. Sebastião alarga em 1575 aos
filhos, «por honra e autoridade do dito ofício e trabalho continuo que nele
tem». Aproximação ao enobrecimento, que D. Manuel já equiparara a es
cudeiro, enquanto em funções (Langhans, 1948, p. r29-139).
Servir de almotacé permitia a expectativa de uma ascensão social ao gru
po dos cidadãos. Nem sempre. Em l 543 Coimbra fica autorizada a escolher
almotacés entre os que fossem escudeiros, dizendo-se que estavam abaixo
de cidadãos, não obstante terem cavalo e armas (Loureiro, 1964, vol. n,
p. 163). Alguns, por via de servirem de almotacés, arrogavam-se o privilé
gio de cidadãos. Ora o rei vai fechar expressamente essa porta em 1605, ano
da provisão que também inibe o alargamento a possíveis vereadores e em
dispositivo em que também se encontra a mão do aristocrático desembarga
dor Damião de Aguiar. O rei determina que só sejam escolhidas pessoas
idóneas, netas e filhas de cidadãos (Livro 2.º, 1958, pp. 216-217). Mas logo
a seguir, em 1611, entende o Desembargo do Paço que não devem ser al
motacés os vereadores, mas os de uma qualidade mais baixa, que servem de
procuradores, desde que «vivam à lei da nobreza» (ibid., pp. 23 5-236). Ci
dadãos, mas um pouco menos qualificados. E entraram alguns filhos e ne
tos de mecânicos, obrigando a nova provisão, em que se vedava a escolha
de almotacés dessa origem (ibid., p. 253). O que fica legislado para todo o
território por um alvará de 5 de Abril de 1618, em que se fixa que os almo
tacés seriam da gente nobre «e dos milhares da terra», que neles se deviam
perpetuar os cargos e «nunca neles entrarem descendentes de oficiais mecâ
nicos». Muito menos de nação infecta (Repertorio, 1815-1819, n.º 6II, e Ma
galhães, 1985, p. 28). É o fecho contra aventuras permissivas. Todavia, na
sociedade ainda se sentia alguma vibração social.
Privilégios por ascendência ou mercê régia, defendidos publicamente por
um continuado estilo de vida prestigiante. O reforço e ·limitação numérica
dos agora homens nobres convergiu para dar consistência à aristocratização
concelhia em marcha. A ligação entre os eleitos para os cargos municipais e
o conjunto dos vizinhos atenua-se, se é que não se perde. Cada vez menos
se assiste a assembleias a que o povo vem chamado por pregões do porteiro
e em que há decisões «às mais vozes» (Moreira, 1986, pp. 88-89). A gente
nobre aliou-se, na maior parte dos casos, com a velha fidalguia, adaptando-lhe
os comportamentos. Houve casamentos. Não se desarrumou o conjunto hie-
A SOCIEDADE
PARA A POSIÇÃO FICAR solidificada deve articular-se com uma passagem UNIVERSIDADE
pela universidade e entrada em ofícios régios que requerem graus académi
cos. Manutenção ou promoção condicionadas. Para melhor resultar, havia
que meter a Igreja de través. Universidade e altos postos prclatícios tende
rão a convergir depois das reforma de 1537 (Dias, 1969, tom. II,
pp. 733-735). Os canonicados e prebendas começam a encher-se de diplo
mados. E por isso mesmo a Faculdade de Cânones é a mais atractiva e fre
quentada ( quadro 1v).
Quadro IV
Média anual das matrículas realizadas na Universidade de Coimbra por quinquénios
Faculdades
Anos lectivos Total
Teologia Cânones Leis Medicina
....
1573-1579 99 414 238 59 810
1579-1584 54 523 248 52 877
1584-1589 54 718 232 45 T049
1589-1594 83 817 240 61 1201
1594-1599 98 730 200 81 1109
1599-1604 74 ÓOI 172 66 913
1604-1609 68 640 212 68 988
1609-1614 69 705 200 62 1036
1614-1619 56 781 2!0 66 1113
1619-1624 43 678 286 66 1073
Faculdades
Anos lectivos Total
Teologia Cânones Leis Medicina
<•> Estes números abrangem apenas três anos lectivos, os de 1573-1574, 1577-1578 e 1578-1579: não exis
tem os livros de matrícula dos três anos lectivos de 1574 a 1577.
(,) Falta o livro de matrícula do ano lcctivo de 1584-1585, referindo-se, por isso, a quatro anos apenas os
números aqui registados.
(1) São relauvos a quatro anos estes números, pois não h,I registo da nutrfrula do ano de 1606-1607.
Segundo Vasconcelos, 1988, vol. 11, pp. 120-122.
499
SOCIEDADE E CULTURA
...
ximavam da fidalguia. Crescem em número na corte (e no Porto, na Índia,
na Bahia, quando se criam as respectivas relações), com o aumento de com
plexidade dos órgãos centrais. Estão presentes um pouco por todo o terri
tório à frente das divisões administrativas (comarcas e provedorias) e nos
municípios onde havia juízes de fora. É um novo estrato, que tem inte
resses próprios. E que se situa próximo da gente nobre por os seus ofí
cios os ligarem. Mais em reforço mútuo do que em concorrência. O ca
bido de Coimbra emparceira-os na morte, em 1590. Enquanto o sino
grande tangeria pelos bispos, cónegos e beneficiados e pessoas ilustres, os
meãos só pelos cidadãos e oficiais da justiça. E «por toda a mais jente se
tãojão os sinos menores» (Acordos, 1973, p. 36). António Pereira Marrama
que zurze em 1558 nos corregedores, juízes de fora, contadores e provedo
res, aos quais a velha fidalguia devia fazer justiça (Miguel, 1980, p. 217). Da
magistratura se diz estar muito «levantada e enobrecida» em 1618 (Lobo,
1945, p. 319). Ganhara raízes, obtivera um reconhecimento que se vai re
forçando. A fidalguia terá saudades do bom senhorialismo dos tempos de
D. Afonso V.
Porém, a formação dos magistrados não os levaria desde cedo a sentir a
divisão dos privilégios como alguma coisa de profundamente injusto, muito
em especial a fiscalidade? Fugiriam os legistas e canonistas à tentação de
imaginar uma sociedade em que a justiça fosse menos desigual? É interroga
ção que deve ficar. Talvez a percepção de alguma iniquidade explique por
que a Câmara de Lisboa propõe, em 1609, que «pessoa algüa, de qualquer
calidade e condição que seja», fique escusa de pagar na finta geral para a
vinda do rei (Oliveira, 1887-1888, tom. II, pp. 216-228). Aliás, nunca como
anteriormente há sinais de tanta preocupação das câmaras com os «clamores
no povo miúdo». Em aparente defesa deste vêm os vereadores e pessoas
que costumam andar na governança. Até os eclesiásticos de Braga, escusos
de pagar, o fizeram voluntariamente, para evitar uma finta geral (ibid.,
pp. 313-314 e 318). Aliança momentânea, ou sentimento geral de repugnân
cia por uma contribuição que parecia demasiado pesada e que poderia acar
retar desagradáveis perturbações?
A arquitectura política do absolutismo assenta, em boa parte, nos tribu
nais régios e nos poderes locais (Amaral, 1945, p. 47), como parte constitu
tiva essencial do novo ordenamento do corpo da República. A estrutura so
cial que o vai definindo também se lhe vai ajustando.
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A SOCIEDADE
te. Mas, depois, será obra do acaso a nomeação de seu sobrinho D. Diogo
Correia para bispo de Ceuta (Sousa, 1946-1948, livro V, cap. XXVII, p. 178)?
Também não deixa de escolher para alcaide-mor da sua Braga um primo,
cidadão de Lisboa. Sabidas virtudes as desse sortudo: fidelidade, lealdade,
esforço e limpeza. Resulta inesperadamente enobrecido depois, com as leis
das ordenanças de r 569 e I 570, ao passar a ser, por inerência, o capitão-mor
das companhias da cidade ( «Acordos e vreações», in Bracara Augusta,
vol. XXXVI, 1982, pp. 592-593, e vol. XXXVII, 1983, pp. 570-571). Manuel
Pereira, homem da família de D. Frei Bartolomeu, compra o cargo de al
caide-pequeno de Braga e seu termo, em 1 572 (ibid, vol. xxxvm, 1984,
p. 398). As famílias dos prelados (os que vivem com eles, além de parentes
os criados e outros servidores) catapultavam os seus para os lugares dispo
níveis. Nas terras onde se instalam procuram as melhores posições. Em vol
ta da «família» de D. Fernão Martins Mascarenhas, cm Faro, de 1596 a
1615, giram alguns conflitos que perturbam a Inquisição (Magalhães, 1981).
Como estes todos os prelados, não tão santos como D. Frei Bartolomeu,
não tão corruptos como acaso D. Fernão.
Ter um filho bispo faria parte das ambições de grandes, títulos e fidalgos.
Sobre isso não poderiam montar uma estratégia, a não ser depois de ocorri
da a escolha. A estratégia passa por confinar a transmissão de bens a um só
filho morgado e dote a uma só filha - dote generoso, para alcançar um
marido abastado. O descendente mais velho, a quem caberia a administra
ção dos bens vinculados, alijava irmãos e irmãs que não podiam casar no
meio de origem por falta de rendimentos. Fazê-lo fora arriscava a uma de
sonra que afectava toda a família - solução afastada.
-
FIDALGOS Nos ALTOS ESCALÕES DA SOCIEDADE apenas contava o interesse familiar e
não os sentimentos individuais: os filhos de António de Saldanha e de Rui
Lourenço de Távora tiveram ·casamento concertado com 12 e 8 anos (Anedo
tas, 1980, p. 70). Não se considerava apenas a fortuna. O conde de Marialva
persegue e afasta o marquês de Torres Novas, rico sucessor no ducado de
Coimbra e Aveiro, e obsta ao seu casamento com a sua filha única e herdei
ra, em benefício do pobre infante D. Fernando, filho de rei, que precisava
dos bens do prometido sogro (Sousa, 1938, livro r, vol. 1, cap. VIII, pp. 49-
-54). A junção das casas de Aveiro, Marialva e Loulé seria um exagero.
O rei tinha de evitar alianças que pudessem prejudicar o reino «ou ser causa
em algum tempo de revolução» (De Witte, 1980-1986, vol. r, p. 493). Ava
liavam-se as ligações matrimoniais para não desequilibrar as posições relati
vas das famílias. Por isso nos consórcios de grandes, altos funcionários e
mesmo simples fidalgos, o rei tinha sempre uma palavra a dizer. A sua au
torização era indispensável, sob pena de afastamento da corte e de desgraça,
de recusa de tenças e, aquando da sucessão, não atribuição de títulos e de
mercês. Matrimónio sem licença significava quebrar o respeito devido ao
monarca. D. Jaime, duque de Bragança, foi desterrado da corte por ter ca
sado sem dar conta ao rei (Anedotas, 1980, p. 85); acto mais grave do que
ter assassinado a primeira mulher ... Erro político castigado, desvario pes
soal perdoado. A aproximação de famílias preparava-se devidamente. Luís
Álvares de Távora desespera ao saber que uma filha cisara pobre com um
primo: nem fazenda, nem novos parentes (ibid., p. 76). Porém, a estratégia
de manutenção de um capital simbólico de superioridade passa, em casos de
uma filha morgada, por casá-la na família. Que o nome se mantenha liga'clo
ao vÚ1culo, para «memória e conservação e aumentq» dos descendentes
(Costa, 1983b, p. 267).
Para consolidar posições na corte e para se incorporarem no estrito grupo
de grandes e títulos, os altos funcionários viram-se para o matrimónio dos
filhos nessas famílias. A sua posição no aparelho central da governação da
va-lhes uma especial nobilitação aos olhos do comum. O património, o po
der de intervenção junto do rei e os rendimentos o resto.
Só o rei podia conceder a alguém um título: duque, marquês, conde, vis
conde e barão. E esses títulos não se transmitiam obrigatoriamente aos her
deiros, pois se consideravam honras pessoais. Ter título implicava um esta-
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A SOCIEDADE
dão que só com boa fortuna se podia sustentar. Numa historieta se lê que
D. Aleixo de Meneses recusara o título de conde de Vila de Rei, arguindo
•que era pobre pera título» (Carvalho, 1926, p. 233). Poucos foram os con
cemplados: cerca de 25 titulares em 1550-1580, para 34 em 1590 e 46 em
1620 (Marques, vol. 11, 10! ed., 1984, p. 112). Amigos e leais servidores,
sempre.
-
cada I, livro VIII, cap. III, p. 295). Honrarias e título que Afonso de Albu
querque não mereceu ... Boa parte destes capitães e agentes do primeiro de-
enho da arquitectura imperial portuguesa no Índico provinha do círculo
pessoal de D. João II e de D. Manuel, gente que se fizera na nova configu
ração mercantil do reino no Atlântico.
A enxurrada de fidalgos, cavaleiros e escudeiros segue-se à decisão de es
cabelecer o domínio militar como forma de assegurar o comércio asiático.
Na armada do comando de Lopo Soares de Albergaria (1503) - também
ele apenas filho de alto funcionário - seguem 12 ooo homens, «muita parte
deles fidalgos, e criados d'El-Rei, toda gente muito limpa, e tal, que com
razão se pode dizer, que esta foi a primeira armada, que saiu deste Reino de
canta, e tão luzida gente» (ibíd., livro vu, cap. IX, p. 275). Em crescendo são
necessários fidalgos e cavaleiros para comandar as expedições de honroso
roubo e vigilância na entrada do estreito do mar Roxo, nas costa do Mala
bar, Cambaia e Arábia, nas paragens de Ceilão e Bengala, em Malaca e Ma
luco. Largo espaço. Muita gente. Os primeiros resultados mostraram que
valia a pena. Se o enriquecimento não era garantido, pelo menos abriam-se
boas expectativas. Em que contavam o valor pessoal e a sorte. A maioria
• dos primeiros portugueses na Ásia, que actua não poucas vezes de maneira
temerária e sem sentido e9'1:ratégico, quereria simplesmente «ganhar honra»
(íbid., cap. IV, p. 258).
Boa parte desses fidalgos, cavaleiros e escudeiros foi-se ficando pelo ca
minho. Morria-se muito. Também as fortunas ganhas em um momento se
perdiam no seguinte. Alguns obtiveram êxito, não apenas no alcançar das
riquezas, mas na sua transferência para o reino. E, naturalmente, engrossa
ram o poderio do grupo dos fidalgos bem instalados e da gente cavaleirosa.
Sem alterar a ordem social estabelecida. Cada fidalgo ou cavaleiro enrique
cido contribuía para reforçar a estrutura social preexistente. Melhorava a fa
zenda dos que já pertenciam às camadas superiores e que nelas melhor se
instalavam, ou delas não viriam a desmerecer.
Nem todos. Havia muitas perdas. Como se assinala, «nós não lhes vemos
morgados, nem contos de juro de tantos milhões de cruzados, como tiram
de suas fortalezas, nem sabemos por onde se lhes consumem todos, porque
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SOCIEDADE E CULTURA
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eles não se logram» (Couto, 1777-1788, Década v, parte r, livro n, cap. VIII,
p. 197). Nem 2 em roo dos que de lá vêm têm de comer ou com que insti
tuir morgados (Couto, 1980, p. 25). E um outro azedo afirma: «Com a bo
ca cerrada se poderão contar os morgados e lucros que viso-reis e capitães
deixassem a seus herdeiros» (Memórias, 1987, p. 147). Bem menos do que se
deveria esperar.
A Índia destina-se aos que, à partida, não herdariam riqueza. A bre-se aos
que pouco ou nada têm. É visível o número de bastardos da fidalguia que
aparecem por lá. Talvez por isso não caia bem que herdeiros não necessita
dos partam para o Oriente. Em I 545 fora muito estranhada a ida de D. Je
rónimo de Meneses, o Bacalhau, filho e herdeiro de D. Henrique de Mene
ses, irmão do marquês de Vila Real, pois «tinha de comer, e era filho mais
velho de seu pai» (Couto, 1777-1788, Década vr, parte 1, livro r, cap. r,
p. 7). Contra a vontade de irmãos e parentes se embarcara em 1538 D. João
Manuel, o Alabastro, que tinha mais de um conto de renda (ibid., Década v,
parte 1, livro III, cap. vm, p. 280). Aventureiros, fugindo a comportamentos
esperados, desequilibravam arrumações familiares? Não se gastam os rendi
mentos dos morgados no serviço real. Constata um, soldado que «nenhum
que tenha de comer em Portugal quer passan> à India (Memórias, 1987,
p. 172).
É normal irem filhos segundos, vergônteas de gente de primeira plana.
Com as nomeações para a lndia o rei proporciona promoções que no reino
já não eram possíveis, por escassearem riquezas para redistribuir.
Contudo, não se encontrava facilitada a passagem individual de um estra
to a outro. Em simultâneo, a mistura social para fidalgos e nobres sem
grandes ambições e suas filhas, na Índia, não seria invulgar, embora não
trouxesse, por si só, elevação social. Nas periferias a incerteza do status ori
ginário põe a riqueza no centro da arrumação social. Dela decorre a posição:
sociedade de classes a que se adapta, sem hiprocrisias,' a sociedade de or
dens.
-
ncum, em 1573 (ibid., pp. 3 15-3 16).
Diferente é a aplicação dos capitais reunidos na Índia e no Brasil. Os «ho
mens da Índia, quando de lá vem para o Reino trazem consigo toda quanta
fazenda tinham [ ... ] e como todo o seu cabedal está empregado em cousas
manuais embarcam-nas consigo, e do preço porque as vendem no Reino
compram essas rendas e fazem essas casas; mas os moradores do Brasil toda
a sua fazenda têm metida em bens de raiz, não é possível serem levados para
o Reino, e quando algum para lá vai os deixa na própria terra [... ] e assim
não lhes é possível deixarem cá [no Brasil] tanta fazenda e comprarem lá
[em Portugal] outra, contentando-se mais de a terem no Brasil pelo grande
rendimento que colhem dela» (Diálogos, 1956, «Diálogo III», p. 157).
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rluminura do Livro de horas de :::e
D. Manuel, fl. 87 v (entre r517 e
l 530, segundo Godinho,
1981-1983, vol. I, entre as pp.
176 e 177). Enquadrando o de
presépio e a adoração dos magos, 1101
as boas moedas de prata e ouro seg
dos monarcas hispânicos: de irrd
D. Afonso V a D. João III e dos
Reis Católicos. O maior destaque d�
vai para os portugueses de ouro p.
de D. João III, em baixo, ao
centro. 22d
(MNAA, Lisboa.) soe
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A SOCIEDADE
capelão régio, talvez por isso (Brandão, 1990, pp. I 10-120). Muitos outros,
em pequena escala: de um vigário de Diu se sabe que «muitas vezes ia ne
gocear seos tratos e cousas de seus navios pela manhã cedo e despois torna
va a dizer missa» (Documentação, 1991-1992, vol. III, p. 475); um frei Inácio
de Chaves trazia dinheiro a câmbios em Vila do Conde (Miguel, 1980, p.
218); bem mais tarde (1614), Baltasar Estaço, cónego da Sé de Viseu, decla
ra ter em sua posse objectos de ouro e prata, como penhores de quantias
que lhe deviam (Baião, 1936-1938, vol. I, p. 85). Seria fácil fugir a este am
biente mercantil, em que os eclesiásticos e as próprias ordens religiosas, no
meadamente- a dos jesuítas, não deixam de ter fundos interesses? No entan
to, em 1612, ficciona-se que «a gente nobre não tem trato» (Oliveira,
1887-1888, tom. n, p. 293).
O rei tinha de zelar pela manutenção do ordenamento social, situando-se no
centro da mobilidade social, travando-a ou propulsionando-a. Geria a abertura
para as promoções pessoais ambicionadas: concessão de comandos e viagens
(oportunidade para o enriquecimento) ou de renças (retribuição pecuniária
por actos honrosos) ou, mais simples ainda, de moradia (reconhecimento da
dignidade e honra de pertença à casa real).
Bem trabalhosa era a vida daqueles que ambicionavam elevar-se na escala
social. Da mercancia ou dos ofícios, com um casamento bem preparado,
executavam a sua aproximação à gente nobre e fidalga. A geração seguinte
estava no bom caminho. «Deram em casamento a João Lopes, com sua mu
lher, duzentos mil réis, com os quais tratou três ou quatro anos, e no cabo
deles comprou o ofício de escrivão» (Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tom. 1,
p. 160). Pecúlio inicial, êxito, compra de um honroso ofício: estratégia bem
montada. Conseguida a aproximação ou integração, era a vez de ostentar,
gastando o que os iniciadores do processo tinham acumulado. Pelo contrá
rio, «não é justiça que a filha do cavaleiro muito honrado e com muito di
nheiro case [ ... ] com criados pobres» (Couto, 1980, p. 69). Iniciar a descida
da escala social era incapacitar-se para tomar a subi-la. E desclassificar a fa
mília. Daí a função social conservadora dos conventos femininos.
Percentagem
14 fidalgos ............................................................................. 26
12 cavaleiros e outros que vivem cavaleirosamente.................
50 escudeiros e outros que vivem limpamente........................ 50
54 vassalos e criados de fidalgos ............................................ 54
Total de se11hores e casas srohoriais.. .. :.................................. 130 23
29 besteiros do conto.............................................................
14 ourives e moedeiros.......................................................... 58 I0,6
15 monteiros..........................................................................
23 5 lavradores.......................................................................... 235
66 mesteirais (sapateiros, barbeiros, tanoeiros, carpinteiros, al-
faiates, ferreiros, etc.)........................................................ 66 12
67 moleiros, lagareiros e trabalhadores que vivem por seu tra-
balho ............................................................................... . 12
-
556
ln Vitorino Magalhães Godinho, Emaios, li, 1978, p. 22.
Quadro VI
Composição profissional da população de Coimbra em 1610-1613
1 - Primário:
Agricultura, criação de gado, caça e pesca............. 43 2,7
2 - Secundário:
Artes e oficies ....................................................... 449 2 8,1
Mobiliário e madeira ........................................... .. 43 9 ,6
Metais ................................................................... 38 8,5
Ve.stuário,_ têxteis, equipamento.............................. 236 52,5
Alimentaçao........................................................... 36 8,o
Construção civil..................................................... 65 14,5
Trabalhos artísticos e de piedade............................ 29 6,5
Diversos................................................................ 2 0, 4
3 - Terciário..................................................... 44 0 27,4
Comércio e transporte ........................................... 189 11,8
Ad�inistração, e. serviços públic os .......................... 100 6,8
SerVIços domesucos............................................... 60 3,8
Profissões liberais, ensino e saúde.......................... 91 5,7
4: '
Braceiros ............................................................... 39 2,4
Diversos e não discriminados................................. 627 39,2
Soma 1598 100
José Albertino Rodrigues, Travai/ et société urbaine au Portugal dons /e seconde tnoitit du xvf site/e, Paris, roneo
tipado, 1968, pp. 188-192. Ap. V. Magalhães Godinho, A estrutura da antiga sociedade port11guesa, Lisboa, Ar
cádia, 1975.
508
A SOCIEDADE
-
O que explica a estabilidade e a incapacidade real dos «vis» de procurarem
uma alteração profunda.