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OS ESCRAVOS E OS EMIGRANTES Joaquim Romero Magalhães

ABAIXO D-0 ORDENAMENTO SOCIAL admitido, privados de liberdade e de


quaisquer direitos, os escravos. A partir dos primeiros resgates na costa
.tl"ricana (1444) começa a vir para o reino uma grande massa, que vai apare­
::er a desempenhar as mais duras tarefas. Já em 1494 o Dr. Jerónimo Münzer
se espanta com a quantidade de negros que trabalham nas ferrarias dos Ar­
mazéns de Lisboa. Não só. Para o mesmo observador, «é verdadeiramente
extraordinária a quantidade de escravos negros e acobreados que nessa cida­
de [de Lisboa] existem». A vinda de escravos muito crianças, bem como o
aascimento de filhos de escravas, acrescia à população negra. E continua a
·.inda de escravos: que «grande quantidade de escravos negros se trazem to­
dos os dias da Etiópia para Lisboa!» (Vasconcelos, 1932, pp. 27, 51 e 63.)
. uma cristandade em que a escravatura praticamente desaparecera, não era
?()UCO original (Marques, 1987 b, p. 179).

«Os ESCRAVOS PULULAM por toda a parte. Todo o serviço é feito por ne­ TRABALHO SERVIL
gros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Es­


::ou em crer que em Lisboa os escravos e as escravas são mais que os portu­
gueses livres de condição. Dificilmente se encontrará uma .casa onde não
naja pelo menos uma escrava destas_ É ela que vai ao mercado comprar as
coisas necessárias, que lava a roupa, varre a casa, acarreta a âgua, e faz os
despejos à hora conveniente.» E a mesma testemunha, esta flamenga: «Mal
pus o pé em Évora, julguei-me transportado a uma cidade do inferno: por
:oda a parte topava negros>> (Cerejeira, 1949, pp. 281-282 e 286).
Muitos seriam os escravos, notando-se em especial em Lisboa. Por mea­
dos do século entrariam por volta de 1600-1700 cada ano. Que não ficavam
:odos na cidade. Em 1551, em 100 ooo almas contavam-se 9950 escravos,
aproximando-se dos ro % do total dos habitantes (Oliveira, 1938, p. 101) .
.'v1ercadores de escravos seriam, em 1552, uns 60 ou 70. Escravos e escravas
'ou já forros) dedicam-se às tarefas mais vis e penosas: descarregar navios,
carregar peixe e carne, vender azeite ou água, fazer os despejos, vender ma­
risco, ameixas e favas cozidas, lavar e ensaboar, caiar, descarregar carvão,
andar ao trapo [Brandão (de Buarcos), 1990, pp. 203-215]. O peregrino
Bartholomé, por 1576, diz Lisboa «madre de negros». Dua:çte Nunes do
Leão refere a «multidão de escravos» como uma das razões para o aumento
das carências frumentárias (Leão, 1610, fl. 63 v). No Algarve não se exage­
rará se se avançar com uns 10 % do total da população para finais do sécu­ <] Retrato da negra Catarina,
escrava do feitor Ruv Fernandes
lo xv1; o que viria a dar à volta de uns 6000 (Magalhães, 1970, p. 23 r). (por Albrecht Dürer,' Florença,
.'v1uitos seriam por todo o sul e vale do Tejo, em substituição da mão-de­ Museu dos Uffizzi, Gabinete de
-obra que procurava emigrar - e tentar a sobrevivência ou um árduo enri­ Estampas). A exótica serviçal
quecimento inalcançável com o penoso trabalho a que se podia dedicar nas permite ao grande pintor alemão
cerras de origem. um desenho de grande
A chegada de escravos (mão-de-obra de substituição) acelerava o movi­ expressividade, com um gosto
pelo pormenor que está bem no
mento de emigração dos naturais, a que faziam concorrência, por não rece­ seu jeito. As informações das
berem salário ou qualquer remuneração. Por outro lado, a sua aquisição novidades que os Portugueses
exigia um investimento elevado, pelo que não seriam muitos os que os po­ estavam trazendo para a Europa
diam ter e manter. Por isso se encontram em Lisboa, no Sul e nas Ilhas (em difundiam-se muito especialmente
especial na Madeira) ou em Santarém, poucos em Coimbra ou no Porto. através da feitoria da Flandres.
Ainda há sinal deles no Norte interior, rareando em Viana de Foz de Lima © Museu dos Uffizzi, Florença.
SOCIEDADE E CULTURA

ou cm Braga (Dias, 1960 , tom. n, p. 461; Norton, 1981 , pp. 394-397:


Brandão, 1972 , vol. n, p. 208).
É para serviço dos territórios além-mar que os escravos são mais necessá­
rios. Começou com a produção açucareira da ilha da Madeira, entre 1466 e
1479. Depois, a concorrência de Cabo Verde e de São Tomé faz-se sentir
não apenas no açúcar, mas na mão-de-obra, que na Madeira encarece, e
com ela o açúcar, provocando a reconversão do canavial em vinha. A colo­
nização de São Tomé, cujo clima se tinha por muito insalubre e, portanto.
de difícil ocupação, levou a que cada degredado pudesse ter uma escrava pa­
ra dela se servir (respeitava- se a fachada da monogamia), sendo os filhos li­
vres (Azevedo, in A.H.P., 1903, vol. 1, p. 302). Esperava-se que os negros e
mulatos resistissem melhor às difíceis condições de vida. A multiplicação
resultou, tendo provocado uma bela revolta de <<muitos escravos armados e
sabidos em todo o género de guerra», em 1554 , em São Tomé, e um rijo
ataque de pardos contra brancos no Príncipe, em 1566 (ibíd., pp. 302-303 e
306-307).
O tráfico dos escravos aumentou a partir de cerca de 1570 com o nú­
mero crescente de engenhos no Brasil e com os lucros do próprio trato.
que se dirigia também para as Índias de Castela (Godinho, 1981-1983.
vol. IV, p. 176). O resgate africano de escravos era monopólio régio, ad­
judicado a assentistas, individuais ou em grupos de mercadores, que dis­
punham de elevados capitais e que transportavam a mercadoria para onde
mais rendesse.
Indispensáveis para lavouras e granjearias. Todos «vivem, tratam e traba­
lham com esta gente». Dependência. Em 1616-1617 «ficaram muitos ho­
mens neste Estado do Brasil de ricos pobres pela grande mortandade que ti­
veram nos escravos». Embora. No Brasil se forma «um novo Guiné com a
grande multidão de escravos vindos dela que nele se acham» (Diálogos.
1956, «Diálogo rr», pp. ro1-125).
De 1575 a 1 59 l foram transportadas para o Brasil e Índias de Castela, só
de Angola, 52 053 peças (Brito, 1931, p. 30). Há que contar ainda com o
golfo da Guiné ou costa da Malagueta e Arguim, donde acaso não terão ido
menos (Godinho, 1981-1983, vol. rv, p. 172). Escalas intermédias e entre­
postos, as ilhas de Cabo Verde e São Tomé e dos Açores - estas em espe­
cial com destino ao Peru (Arquivo, 1981-1984 , vol. v, pp. 136-137). Grande
seria o tráfico ilegal, sobretudo para as Índias de Castela, iniciado por 1509:
trat? impossível de quantificar. No triénio de 1597-1600 , só para Cartagena
de Indias teriam sido levados 15 763 escravos, mais 3437 com outros desti­
nos (Ulloa, 1977, pp. 299-300 e 409-421). Não poucos africanos foram para
as conquistas da Asia, onde desempenharam papel fundamental na organi­
zação da defesa militar. Escravos orientais não faltaram no reino, muito em
especial malaios e jaus. Por volta de l 5 l 5 estava fortemente condicionado
trazer escravos da Ásia (Gavetas, tom. v, 1965 , pp. 355-356) e indígenas do
Brasil.

A SOCIEDADE SE QUANTO AOS AFRICANOS poucas vozes se levantaram contra a escraviza­


E OS ESCRAVOS ção - «contra a justiça, a rezão, e contra toda humanidade» sopram os bis­
pos nas Cortes de 1562-1563 (Santarém, Provas, parte 11, 1828 , p. 61) -, já
quanto aos «saltos» para apanhar índios no Brasil os jesuítas procuram per­
sistentemente impedi-los. Preferem a conversão e arrebanhá-los em aldea­
mentos. As vezes desesperam, quando as suas boas intenções são desment2-
das. O padre Manuel da Nóbrega perde mesmo a serenidade quando sabe
que o gentio caité comeu o bispo (Nóbrega, 1988 , pp. 177-218). A igreja.
em geral, apenas se incomodava até ao baptismo e com a imposição da mo­
nogamia. Lá ia, no entanto, fazendo acolher esses violentados nas confrarias
de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (Azevedo, in A.H.P., 1903, vol. 1.
p. 303).
Os escravos, sobretudo aqueles a quem era atribuído um papel mais liga­
do às lidas domésticas, vinham inserir-se numa sociedade fortemente pa­
triarcal. Pouca diferença fariam dos criados. Em Santarém um valenciano
assiste, por 1576, a um baile de negros e anota o fenómeno dos «casamen-
470
A SOCIEDADE

Depois da chegada ao Brasil de


Pedro Alvares Cabral (22 de
Abril de 1500) várias expedições
se promoveram para
reconhecimento da costa e
reivindicação de soberania (por

...
causa do Tratado de Tordesilhas).
A última grande expedição com
este intuito foi a de Martim
Afonso de Sousa em 1531-1532.
(Atlas de Fernão Vaz Dourado.)
FOTO: ARQUIVO CÍRCULO DE
LEITORES.

tos que fazem cativos com cativas, sem que os amos ousem impedi-los»
(Villalba y Estaria, 1889, vol. u, p. 35). Há que supor que seriam bem me­
lhor tratados do que os assalariados e trabalhadores assoldadados eventuais,
durante os anos em que a sua força física ou habilidade o justificavam. Pelo
que custavam, havia que os fazer render. Com frequência acabavam inte­
grados na larga família. Tinham-se gerado laços de convivência que não re­
produziriam a violência do estatuto legal. É comum a alforria em testamen­
to, ou a recomendação que proíbe a sua venda e pede o seu bom tratamento
(Vieira, 1991, p. 55). A uma escrava ou um escravo que se estima propor­
cionam-se meios de sobrevivência quando forro. Só assim a alforria fazia
sentido e era verdadeiramente libertadora (ibid. pp. 182-183). Alguns escra­
vos conseguiam-na pagando-a. As vezes, <(dando escravos por si». Não se­
ria raro, no Brasil, que artesãos pobres conseguissem a alforria de escravas
com quem casavam (Primeira visitação, 1984, pp. 363-367). Ou aproveitando
ocasiões excepcionais. Em 1580, quando Lisboa se prepara para responder
ao avanço das tropas do duque de Alba, apregoa-se que os negros cativos

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SOCIEDADE E CULTURA

que se alistassem ficariam forros. Pelo menos 440 se juntaram de imediato.


mais outros tantos vindos de fora (Soares, 1953, vol. 1, pp. 168-169 e 209).
Com frequência se encon�pm casais de escravos com casa e família, traba­ :::,_ .:
lhando para os seus senhores, apesar da desconEança que tal situação gera\"a
(Magalhães, 1970, p. 230). E havia quem tivesse escravos para do seu traba­
lho viver. Exploração bem montada (Godinho, 1981-1983, vol. IV, ;ioR
pp. 199-201). �2. ;:

Intimidades pecaminosas: «Há indivíduos que fazem bons lucros com a ��


venda dos filhos das suas escravas, nascidos em casa. Chega-me a parecer b�
que os criam como quem cria pombas para levar ao mercado[ ... ]. Longe de
se ofenderem com as ribaldias das escravas, estimam até que tal suceda,
porque o fruto segue a condição do ventre: nem ali o padre vizinho, nem eu
sei lá que cativo africano o podem reclamar», criticava o flamengo Clenardo
- -'5 -
(Cerejeira, 1949, p. 282). Havia ocasional legitimação ou reconhecimento
de filhos - e até netos e bisnetos (Vieira, 1991, p. 99). A própria aristocra­ -.-oL
cia produzirá os seus mestiços. Um bastardo de Gonçalo Vaz de Melo, Di­ :::o:::.
nis Fernandes de Melo, da armada de Tristão da Cunha à Índia, em r 505, �s
era «pouco conhecido, e estimado, por ser homem pardo nas cores» (Bar­ �
ros, 1974-1992, Década II, livro 1, cap. III, p. 22). Batalhando como esf�rça­
do cavaleiro na tentativa de tomada de Adem, morre Diogo Estaço de Evo­
ra. Ao seu lado, não menos esforçado soldado, fica-se Garcia de Sousa, seu
irmão bastardo, -mulato (ibid., livro VII, cap. IX, p. 3 52). Cristóvão Juzarce,
fidalgo, tem dificuldade em comandar uma armada nos Açores, por ser
mestiço (Frutuoso, 1977-1987, livro rv, tom. r, p. 239). Racismo com bran­
duras de sociedade patriarcal (Freyre, s/ d).
Os maus tratos e as mortes violentas de escravos não serão raros, como
os abandonos e expulsões em momentos de pânico por peste. Foi isso sen­
tido dramaticamente pela Câmara de Lisboa, aquando da grande crise de
1598-1603 (Magalhães, 1988, pp. 43-60). Porém, seria melhor o destino que
se reservava aos demais esfomeados errantes que nesses momentos procura­
vam as cidades para escaparem de morrer à fome?

ESCRAVOS A EXPANSÃO PORTUGUESA sofreu durante o século XVI com o problema


E EMIGRANTES dos fracos efectivos demográficos do reino. A introdução massiva de escra­
vos foi uma das soluções. A qual, por sua vez, provocava uma excessiva
saída de naturais (Godinho, 1975, p. 58). A falta de gente era por igual sen­
tida nos reinos e senhorios de além-mar. E abria-se sem limitações de natu­
ralidade (sim de religião) a entrada a homens de Castela e de outros reinos.
Havia carência de oficiais mecânicos especializados em tarefas que não eram
comuns no reino, e por isso de bom grado se acolhiam estrangeiros. Foi o
caso, que acabou mal, dos lapidários italianos idos à Índia com Vasco da
Gama, em 1502, e que, afinal, eram fundidores de artilharia (Castanheda,
1979, livro l, cap. LXVIII, vol. I, p. 145). Em Pernambuco vamos encontrar
galegos, biscainhos, castelhanos, canarinos, florentinos, napolitanos, ale­
mães, flamengos, franceses e ingleses (Primeira visitação, 1984). Para o Brasil
a carência é geral. Logo em 1550 se procuram aliciar açorianos para povoar
a nova cidade da Bahia (Ar quivo, 1981-1984, vol. XII, pp. 414-415). Muitos
terão ido. Duarte Coelho busca gente de Portugal, Galiza e Canárias, onde
quer que a ache, para pôr a funcionar os engenhos, em r 549 (História, 1922-
-1924, vol. III, p. 320). Com a união dinástica cresce a mistura dos portu­
gueses com os castelhanos. Portugueses, e não poucos, emigram para as Ín-·
.6. A presença de negros em
Portugal, em grande quantidade dias de Castela. Castelhanos e outros «espanhóis» para �ortugal e para o
desde meados do século xv, fica Brasil. Artilheiros flamengos e alemães também andam por Portugal e pe­
bem atestada. A nobreza também los domínios portugueses. As novas terras atraíam aventureiros e miserá­
tinha os seus mestiços. veis, na ânsia de melhores vidas.
(A adoração dos magos, proveniente Também se iam do reino homens fidalgos para servir no estrangeiro.
do Mosteiro de Celas, Coimbra O caso de Fernão de Magalhães é um, entre muitos. Martim Afonso de Sou­
Museu Nacional de Machado de
Castro.) sa, em 1515, está para se passar a Castela; impede-o o duque de Bragança,
© ANF/Instituto Português de advogando depois junto do rei que não deve «deixar perder um homem de
Museus. tanto serviço e de tais calidades e perdê-lo de seu serviço». Não há argumento
FOTO: JOSÉ PESSOA. de traição ou se invoca apego à naturalidade (Gavetas, 1964, com. rv, p. 461).
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A SOCIEDADE

A grande massa dos que emigravam vinham das populações rurais, que
os meios citadinos portugueses não conseguiam reter (Godinho, 1975,
pp. 28-30). Gente sem eira nem beira, que se alistava para tentar a sorte,
que poucas vezes sorriria. Em 1609, Moncorvo diz estar muito pobre, «por
causa dos ruins anos que houve até'gora, que muita gente se foi para fora
do Reino por pobreza» (Oliveira, 1887-1888, tom. II, p. 222). Destes que
nada tinham, muitos emigravam crianças. Abundavam os meninos órfãos,
abandonados e enjeitados, de que era preciso a sociedade (que fazia a mãe
abandoná-los) cuidar ou desfazer-se. Situação que piora no decurso do sé­
culo. Em Braga, em 1567, a câmara constata que de alguns anos a esta parte
ia em· grande crescimento o número de enjeitados, que lhe davam muito
:rabalho e despesa, por os «mandar criar à sua custa» e haver falta de amas
«Acordos e vreações», in Bracara Augusta, vol. xxxm, r979, pp. 543-544).
. '.'Jasmesmas aflições se vê a Câmara de Coimbra, em r579 (Loureiro, 1964,
rnl. II, p. 67). O aumento de enjeitados revela o efeito conjugado de cresci­
mento populacional e de maior fiscalização da Igreja depois de Trento? Os
que sobreviviam engrossavam a massa miserável. Em Lisboa, o (cpai de ve­
lhacos» tinha a obrigação de lhes arranjar amo (Oliveira, 1620, fl. 97 v). Ou
seriam empurrados para a Índia e para o Brasil. Destes meninos se irão
aproveitar não pouco os filhos de Santo Inácio na sua missão evangélica.
A Índia «vêm todos os anos nas naus duzentos meninos». Recolhidos pelos A fertilidade das ilhas dos
fidalgos, criam-se e (azem-se <(soldados e honrados» (Couto, 1980, p. 187). Açores, em especial em trigo,
As órfãs eram muito pretendidas para a Índia e para o Brasil, a fim de lá ca­ levou a que a população aí
tivesse um notável crescimento.
sarem. Evitar-se-ia que os povoadores tivessem <mão só uma concubina, Porém o regime de capitanias e a
mas muitas». Quaisquer mulheres convinham, (<ainda que sejam erradas, pressão senhorial empurram cedo
que seguro era encontrarem marido» (Nóbrega, 1988, p. 109). A marginali­ para a emigração.
dade do centro aproveitada nas periferias. (Carta da ilha Terceira.)
Muitos dos emigrados não regressavam ao reino. Como não regressavam © BIBLIOTECA NACIONAL, FLORENÇA.

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SOCIEDADE E CULTURA

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Origem dos portugueses cm Goa, os que se iam instalando pelos portos da Ásia, fora do domínio dos Portugue­
cm 15r4 (mapa I, Carl!J1, ses. Por isso as populações fixadas eram muito menores do que seria de espe­
1884-1915, tom. v1), em Ormuz rar. Em 1561 o arcebispo de Goa informa: «Haverá nesta cidade [de Goa] ao
(r522) (mapa II, Farinha, 1991),
cm Pernambuco, em 1593-1595 menos 4343 vizinhos dos quaes são portugueses 1478 e mistiços 145; os ma:s
(mapa III, Primeira Visitação, são da terra. No termo da cidade e suas aldeias há 7025 vizinhos», não entran­
1984). do soldados. O total seria de apenas 80 ooo cristãos (Gavetas, 1963, tom. DL
1963, p. 190). Cinco mil homens foi o máximo que, pelos números oficiais, se
conseguiu reunir para o socorro de Diu, em 1538. E só nesse ano, após 40
anos de presença, tinham ido na armada 2000 (Correia, 1975, vol. IV, caps. I e
XXI, pp. I0-60).
Ligar migrações e recursos alimentares é fácil: em 1555 Simão da Gama
de Andrade é encarregado de levar gente de São Miguel para o Brasil. Não
«foi o número tanto como parecia que nas ilhas se poderia achar, a razão por­
que se não quisessem então embarcar foi por a terra estar muito abastada de
todos os mantimentos principalmente pão» (História, 1922-1924, vol. III.
p. 380). Um simples acidente conjuntural e há mudanças imediatas de com­
portamentos. A fome leva à emigração. Como podem os lavradores por­
tugueses semear em estreituras e curralejos, sendo Portugal na maior parte
de penedos, areias e campos alagados? Por isso, «constrangidos de fome», a
«esse mundo se vão». A peste seria até uma necessidade para Portugal, por­
que a «gente se multiplicava em tanta maneira que ús com outros se co­
miam» (Costa, 1983a, p. 59).
Também há os que procuram melhor fortuna. E que arriscam. Com IO
ou 12 anos, fugindo da «miséria e estreiteza da pobre casa» de seu pai em
Montemor-o-Velho, em 1521, vai servir para Lisboa uma senhora. Daí passa a
casa de um fidalgo. Como o que ganhava não era suficiente para a sua sus­
tentação embarca então para a Índia, em 1537 (Pinto, 1974-1984, caps. HL
vol. r, pp. 4-7). Destino comum a muitos, o de Fernão Mendes Pinto. Emi­
gram os pobres como soldados e servidores, emigram os filhos de ricos que
não contam com heranças. Diferente era o caso dos mercadores, que com
grande agilidade mudavam de residência, na busca das melhores oportuni­
dades. Veja-se um Gaspar Lopes Homem, natural de Ponte de Lima, donde
se vai para o Funchal, saltando para Lisboa em fins do século, quando o ne­
gócio do açúcar entra em depressão: na ilha já nenhum homem podia «dar
remedeo a seus filhos, porque se ficam ahi, ficam vivendo pobres». Fina-se
4 74
A SOCIEDADE

r:n Amesterdão, embora cristão, depois de penitenciado pelo Santo Ofício


alomon, 1983, pp. 44-45 e 67). As voltas dos mercadores pelo Mundo
:-iro. a ver com a co1'tiuntura dos mercados e não obedecem às necessidades
.:os emigrantes esfaimados.
De inicio, para o Oriente há emigrantes provenientes de todo o reino, cs­
�cialmente das cidades (mapas I e n). Ao contrário da Índia, onde encon­
=amos naturais de todo o reino, para o Brasil dirigem-se os de Entre Dou­
".'O e Minho (Viana de Foz de Lima e Porto) e os de Lisboa (mapa m) .
•"'. região mais ocupada e as cidades maiores (Lisboa e Porto) têm de expul­
sar gente? A populaçã'o de Entre Douro e Minho crescera mais, por melhor
Ümentada? Efeito conjugado do milho grosso e do bacalhau?
Uns chamam outros. O crescimento do comércio entre Pernambuco e o
• ·orte de Portugal - Viana, Vila do Conde, Porto e Aveiro - era possível
-:,orque o açúcar não fazia parte do monopólio régio nem tinha de ir despa­
::!lar a Lisboa. Assim se amplia esta ligação, que continua o trato com as
:!ias (Cortesão, 1940, pp. 70-76). Facilidade legal e técnica. Para a viagem a
�mambuco não eram necessárias as grandes naus de vultoso investimento
:: ôe custosas tripulações. Circulação menos arriscada, além de muito mais
�?ida. A capitania de Pernambuco foi «a mais frequentada de navios deste
�.no por estar mais perto dele que cada üa das outras» (Gândavo, 1984,
cr:>. 3, fl. 11 v).
°Está montada para durar a estrutura de um Portugal repulsar de naturais
e gerador de emigrantes (Godinho, 1978).

OS CRISTÃOS-NOVOS: DA INTEGRAÇÃO
A SEGREGAÇÃO
QUANDO CLAUDE DE BRONSEVAL chega a Lisboa, ·acha a cidade «um re­

-
tr?táculo de Judeus, uma ama de uma multidão de Índios, um cárcere de
.�arenos, um armazém de mercadorias, uma fornalha de usurários, um es­
::.ibulo de luxúria, um caos de avareza, uma montanha de orgulho, um refú­
:::o de fugitivos» (De Bronseval, 1970, tom. 1, pp. 328-329). Já ao passar
-:e!o Porto e por Tomar se chocara com a presença de numerosos judeus e
::lOuros. E o mesmo sentirá em Lamego. Em 1532 os mouros seriam escra-
os; a presença do seguidor da Lei Velha, cristão-novo desde 1497, ainda
s...'"Iia visível. Não durará muito: em I 531 D. João III obtivera o estabeleci­
::1ento do Santo Ofício da Inquisição pela bula Cum ad mihil maiis, de Cle­
.nente VII. Não é fácil entender a razão por que se forçou em Portugal a in­
:egração violenta de uma minoria religiosa que tinha atravessado séculos em
segregada mas pacífica convivência com a esmagadora maioria cristã (Her­
::tlano, 1975; Azevedo, 1975).

DESDE 1478 os REIS CATÓLICOS perseguiam os conversas. Em 1492 ex­ Dos JUDEUS
pulsam os judeus dos seus reinos. Lideram a corrente antijudaica popular, AOS CRISTÃOS-NOVOS
que por toda a Europa estava desencadeando perseguições e expulsões (ls­
:ael, 1992, pp. 23-26). Por dificuldades de adaptação dos humildes à pro­
:unda transformação provocada pela expansão do capitalismo, em período
de crescimento demográfico que agravava as condições de vida dos que na­
da tinham? Pelo papel social desempenhado pela gente de nação, em que
parte dos rendeiros dos tributos eram de origem judaica, arcando com o
odioso dos acréscimos fiscais necessários ao financiamento dos Estados mo­
dernos? Por os judeus serem alvo fácil para apontar a uma plebe angustiada
e penalizada pelas crescentes exigência dos governantes e senhorios - e, as­
sim, escolhidos como «estupefaciente social» (Vilar, 1980, p. 335), aliviando
e transferindo a aparência de opressões bem mais pesadas? Explicações par­
ciais para o fanatismo antijudaico.
Se os Reis Católicos tomam a iniciativa da expulsão e encabeçam a brutal
limpeza do reino da conspurcação hebraica, D. João II soube aproveitar a
entrada de alguns milhares de pessoas - não contabilizável (Tavares, 1987,
475

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O CULTIVO DA TERRA Joaquim Romero �fa�alhães


�ós SOMOS VIDA DAS GENTES/ e morte de nossas vidas/ a tiranos-pacien­ ÜS LAVRADORES
que a unha e a dentes/ nos têm as almas roídas.» Assim explode cm Gil <l Fuga para o Egipto, Mestre do
11.:rnce o sentir de um lavrador comum em princípios do século XVI. Lavra­ Paraíso (atribuído a Gregório
- comum, nem melhor nem pior do que a maioria, fazendo a sua trapa- Lopes e Jorge Leal, c. 1520,).
--:-a com os dízimos, mudando os marcos para aumentar a área de terra Entre as diversas tábuas que
explora, sem ter <<tempo nem lugar/ nem somente d'alimpar/ as gotas compunham o retábulo da Igreja
seu suor» (Vicente, 1852, tom. 1, p. 249). Esse lavrador comum é sobre- do Paraíso (Lisboa), atribuído a
.; dramaticamente transmitido como explorado pelos senhores da terra, Gregório Lopes e seus
colaboradores, conta-se a
clérigos, por todos aqueles que, não a trabalhando, vivem de rendas: representação da Fuga para o
:s para que é o vilão?», exclama, em jeito de evidência, o diabo vicenti­ Egipto, um dos que mostra uma
. Para sustentar os privilegiados, como bem estava à vista, e a pergunta factura mais unitária do ponto de
:ãz:ia sentido no palco, para acentuar a crítica que exprimia. vista estilístico. Para além dos
Os lavradores têm de prosseguir um trabalho infindo, que depende, ain­ riquís�imos detal!ies «de cena» (a
palmeu:a e os anJOS ou a
- r sobretudo, de um enorme esforço físico e do querer de Deus, que lhes
gestualidade de S. José) contam-se
...:.e. de um momento para o outro, estragar toda a produção. Dá «chuvas fundos com composições
Janeiro,/ e geadas em Abril,/ e calmas em Fevereiro,/ e névoas no mês providas de valor simbólico,
� .\laia,/ e meado Julho pedra>> (Vicente, 1852, tom. II, p. 494). O drama­ como seja a figuração de um
---:=o dos anos de seca ou de excesso de chuvas revela-se sobretudo nas di- castelo, de um mosteiro e de
- .:.:dades alimentares, que às vezes afectam sem remédio as populações. uma cena rural - o pormenor
do ,,ceifeiro» - eventualmente
,;: �e. organismos debilitados, campo propício para a difusão de doenças, apresentando os três Estados do
podem desencadear epidemias, a que nem os próprios reis conseguem Mundo - a nobreza, o clero e o
�?ar. Assim se finaram D. Afonso V e D. Manuel. Reis e responsáveis povo.
c..z:.s têm de estar atentos e de providenciar a vinda de pão, pois a fome (MNAA, Lisboa.)
�e causar ou abrir o caminho a tremendos desastres. «Ordinária conse­ @ ANF/Instituro Português de
:.c?cia é da secura do céu e fome da terra, corrupção de humores, novida­ Museus.
FOTO: JOSÉ PESSOA .
...r de doenças, que param em peste. Porque a falta do bom mantimento faz
..!:!Çar mão do mau e extraordinário de ervas do campo e raízes mal conhe­ Moinhos e azenhas davam um
=.das, que, sendo por si nocivas, como lhes falta a mistura do pão, manti­ importante rendimento pelas
=:ento natural e salutífero, ficam fazendo nos corpos efeito de veneno.» maquias (cerca de 1/14 em
�,areza de um grande prosador, frei Luís de Sousa (1938, p. 67). média) que cobravam pelo
Bons motivos tinha João Murtinheira, lavrador queixoso de Deus, para trabalho. Muitos deles eram ainda
exclusivos dos senhorios que os
• .:erer fazer seu filho Bastião <<rapaz d'Igreja;/não com devassão sobeja,/ haviam recebido do rei. Os forais
� porque possa viver/como mais folgado seja» (Vicente, 1852, com. II, novos mantêm essa propriedade.
-; 495). Aparicianes, comparsa da mesma tragicomédia, bem se queixa que (Livro de horas de D. Manuel,
- ::i. «fortes temporais,/são as novidades tais,/ que não chegam para os fl. 56 v, MNAA, Lisboa.)
··:os./ E os padres verdadeiros/ cartuxos de santa vida,/ apanham-me os FOTO: PH3.

243
POPULAÇÃO E ECONOMIA

travesseiros/ com mais ira que os rendeiros/ sem me razão ser ouvida»
cente, tom. n, pp. 513-514). Rendeiros, supõe-se que seriam especiahr.e-­
duros os dos dízimos, que arrendavam as cobranças dessa parte de\·i� �
Deus para a manutenção do clero (que os reis, através das comendas, c.i.=­
bém foram distraindo para a aristocracia). É que o produto final que os �
vradores penosamente conseguiam obter estava, ainda por cima, suje::
descontar os dízimos a Deus ( ro % para as dioceses e para outras insc._­
ções religiosas que tinham esse privilégio e para os comendadores rapaccs
Some-se um sem-número de direitos reais e senhoriais que resultavar:: �
velhas dependências, antigos direitos em vigor, e das novas incorporações
de contratos privados como públicos nos forais manuelinos, e teremos -::.:=.
quadro nada idílico dos trabalhos e dos dias dos que fazem a terra ( ·e:�
1991, pp. 213-215 e 430).
As condições naturais, já de si não satisfatórias, somam-se as engrenag
de uma sociedade em que os lavradores têm de manter uma boa parte 6::
aristocratas e dos eclesiásticos. ((A Agricultura, por direito, é e den: se-­
muito favorecida, porquanto per os lavradores se soporta o estado da ter....::
a mantém per suas lavras e criações, servem com pam, cabritos, galinhas, cz­
neiros, palha e cevadas e outras cousas; e com todo é uma gente a que coce:
fazem mal e pouco favor», ouviu el-rei D. João II nas Cortes de Evora .i..
1481-1482 (Barros, 2.' ed., s/d, vol. IX, p. 198). Os lavradores são e serão a::::;­
da os mantenedores. Dificuldades naturais, deficiências sociais. Convergen:a
Como evitar as irregularidades e calamidades naturais? Pedindo a Deus�
va, rogando-lhe para que a chuva cessasse. Uma dependência dos factores ::::,­
turais, e divinais, contra os quais escassa defesa haveria, numa total ou poi.:o
menos que total dependência da Natureza. Natureza que não se mostrava p:-6-

-
diga, pela dificil e não poucas vezes contraditória interinfluência do Medice.:-=.,,,_
neo e do Atlântico na terra portuguesa, em que o relevo torna ainda mz:s
complexa e irregular a variedade climática (Ribeiro, 1986, pp. 131-16.!
A um Norte áspero e montanhoso liga-se um Sul de planície, a um No::--...e
com bastante pluviosidade e alguma fartura de águas corresponde um ::..
em que as secas são comuns. Terras montuosas para o Norte e mesmo pa:i
o Centro, onde o maciço calcário estremenho se eleva, estéril e imponente, se­
parando o vale do Tejo das terras do litoral oeste. Litoral que a norte da foz e:c
Mondego também só é fértil numa estreita faixa entre as areias da costa e
montanha áspera do interior beirão, por terras de dificil aproveitamento, salr..:­
em alguns vales mais férteis. Quão penosa era a produção em algumas cerra
como as do Douro, que os homens iam fazendo. As ((fragas altas levam ce:-:-z
às costas, pera plantarem as parreiras, e figueiras, pereiras, ameixieiras, e coé.:
outro arvoredo» (Collecção de ineditos, 1936, vol. v, p. ?89).

As TÉCNICAS DE CULTIVO As TÉCNICAS QUE SABEMOS UTILIZADAS na agricultura portuguesa de princ­


pios de Quinhentos eram ainda bastante rudimentares, não permitindo elevar �
produtividade das terras. Por ignorância? É de crer que não. Pelo menos não�
esse o aspecto mais relevante.
Na cultura extensiva dos cereais continuava a praticar-se o afolhamento
com o pousio em alqueive de, pelo menos, um ano em cada folha: ano �
vez. Só em terras muito boas, como foi o caso inicial dos Açores, se pod.:z
tornar a semear sem essa espera pela recomposição da fertilidade do solo
«Estas ilhas dos Açores não são tão estéreis como outras terras, em que b.
algumas de oito folhas e outras de sete, e daí para baixo até duas folhas, e
nenhuma de uma, porque não se semeiam cada ano, senão a melhor de do3
em dois anos, um ano e outro não, e às vezes de três em três, e de quatro
em quatro, até de oito em oito, o que se chama duas, crês, quatro, até oiro
folhas em Alentejo, que é a mãe do bom pão, e ainda estercadas, e a melho:
delas de alqueive, lavrando a terra um ano e deixando-a apodrecer à chuva e
à calma, e depois tornando-a a lavrar o outro ano seguinte, em que se há-de
semear, e assim passa por dois invernos e verões, curtindo-se ao fio e ao
sol, lavrada e beneficiada para dar fruto>> (Frutuoso, 1977-1987, livro rY.
vol. II, p. 165). Mesmo a feracidade das terras das Ilhas, nos primeiros tem­
pos depois do desboscamento, depressa começou a mostrar-se menor, ma-
244
A INDÚSTRIA

A FORTE PRESENÇA DOS MESTERES * *Joaquim Romero Magalhães


_ ·_..,_s CIDADES E VILAS DO REINO não faltavam em geral obreiros para as
�fas de alimentar, vestir e calçar as gentes, bem como fornecer os pro­
_-os, básicos ou de luxo, para as necessidades do tempo e recursos das
?Ulações. Por vezes com vocações locais. Trabalha-se em tecelagem
- � toda a parte, embora só em algumas regiões se atinjam volumes e
=alidades comercializáveis: panos e cobertores de lã e panos de linho.
�z:ito como a tecelagem, o trabalho com o ferro: facas, tesouras, nava­
..:.is, espadas, candeeiros, esporas, ferraduras e fechaduras (Oliveira, 1620,
- 158 v). «Fazem aqui nesta cidade [ do Porto] boas facas e é a sua espe­
::n.:.idade, mas são caras», nota um italiano (<<Viaje», 1964, pp. 232-233).
-zo menos a olaria, mais ou menos decorada ... E como estas outras
=ansformações com que a habilidade e o gosto dos homens de Quinhen­
:::is satisfaziam os seus contemporâneos. Sem que faltassem outros arte­
..zos, os que sabiam executar objectos de luxo ligados ao vestuário e
...Jornos, em especial na Lisboa de Quinhentos. Tanto quanto nos permitem
-nos arrolamentos de meados do século - de João Brandão (de Buarcos)
� de Cristóvão Rodrigues de Oliveira - e de 1620 - de frei Nicolau de
Oliveira. Variedade imensa de ofícios. Mas com matérias-primas que se im­
:-c>::1:avam ou com pequena incorporação de produção e transformação in­
znas.

::)ESDE FINAIS DO SÉCULO xv que a realeza e os concelhos procuram fis­ FISCALIZAÇÃO


CZ.::Zar a actividade mesteiral, por vezes aproveitando as organizações de E REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
:::rostência que a solidariedade profissional ou de moradia já tinham ido
=:is.:ituindo. Associações de entreajuda, que haviam elaborado os seus
:::Jpromissos e que obrigavam livremente os.seus membros. Vem agora a auto­ João Baptista Lavanha, Viagem da
� régia ou camarária e fixa rígidos regimentos de ordenamento do traba- catholica real magestade del Rey
(Caetano, in Langhans, 1943-1946, pp. XXXIXL-XL). Confina-se o grupo D. Filipe II ao Reyno de Portugal,
�al aos aspectos puramente profssionais. As confrarias que se mantêm Madrid, Thomas Iunti, 1622.
Ar./;O dos alfaiates: dos mesteres
_ criam têm funções de sociabilidade e religiosas e não mais assistenciais, �ais numerosos de Lisboa e de
:>elo menos não na antiga amplitude. A assistência é regulamentada de todo o Reino. Pelas taxas fixadas
::::o modo e controlada pelas grandes unidades, como o Hospital de To­ pode ver-se como eram vigiados
...::s-os-Santos, no caso de Lisboa. Criam-se e desenvolvem-se as misericór­ nos seus trabalhos. O pormenor
......s. numa dependência íntima de todo um processo de solidariedade regi­ da regulamentação dos tipos de
- :3e cima. As confrarias de base profissional e os hospitais por elas criados vestimentas e preços que podiam
levar mostram o forte
�istrados vão sendo agregados para com os seus bens se financiarem condicionamento a que estavam
�des unidades. Não apenas em Lisboa, mas por todo o reino. Recor­ sujeitos.
�-se a Misericórdia do Porto ou o Hospital de Jesus Cristo, de Santarém. FOTO: BN, LISBOA.
_::-os, onde as tutelas mais ou menos claras dos municípios ou dos senho­
,_::!S se tinham antecipado, levaram mais tempo antes da integração nas mi-
-�rdias (Beirante, 1981, p. 240). A ligação às primitivas organizações as­
�ciais mantém em Coimbra o costume de as eleições se fazerem no
. ital (Oliveira, 1971-1972, vol. I, p. 417).

= .\ �epresentação política local dos oficiais mecânicos tinha encontrado forma


Lisboa bons anos antes, em fins do século XIV (Caetano, in Langhans
-;,.i;-194.6, pp. .LY.T-.!.Y.1.x,\ -� t>..Yt>..WpJ.0 .ru C.a."3 .dns Vi.o.ter. Quatro de Lisbo.a
se foram organizando. Mesmo quando não se apresentaram com esta
-:-.rração, ficou o modelo aproximado. Muitas delas não parecem es­
::...ir:eas. Todas o rei vai regulamentar com minúcia a partir de 1539 (ano
=:ovo regimento da de Lisboa). No Porto, em Coimbra, em Évora ou
-::-a,·ira, em Guimarães ou em Ponta Delgada.
:>s mesteres passam a ter a sua representação junto das vereações. Mes­
�do não havia associações dos vários ofícios, a obrigatoriedade da
_::pação vai-se estendendo. Com excepções: a aristocrática Évora resiste
=segue não os acolher na sua câmara.
·.s vereações procuravam controlar e fiscalizar as actividades mecânicas.
em especial pelo que tocava a preços dos artefactos e tarefas a executar.
� essa fiscalização da qualidade, preços e condições de fabrico e venda as
-,,-:-as minuciosamente regulamentavam o exercício dos ofícios. Para isso
311
POPULAÇÃO E ECONOMIA

elaboravam e faziam aprovar regimentos e taxas, reformulados qua::�


cessário. Cada um dos oficiais mecânicos, ajuramentados e afiançaios
rante as vereações, ficava enquadrado nos ofícios e estreitamente r_
Eram as câmaras que passavam as cartas de examinação ou de confi.r:=
(mesmo quando havia juízes dos ofícios), depois de os oficiais m.ec1: · ;:::::
prestarem fiança e juramento. Só assim podiam exercer o seu �
A participação camarária dos mesteres tinha uma função de conL
cial evidente: prevenir a permeabilidade desta gente miúda, vil e mo -
às conjunturas adversas, que podiam descambar em agitação. No c::.s::
Lisboa isso também se mostrava como resultando de precauções po�
sociais. Não convinha nada que se abrisse caminho a amotinações e -
festações de desagrado pelo que o rei e os poderosos iam fazendo. O ·
ro de 1383, forçando o Mestre de Avis a uma revolucionária fuga �
frente, não estava esquecido.

DIFERENCIAÇÃO No ENTANTO, AS VEREAÇÕES em vias de enobrecimento procuravan::


SOCIAL dar os mesteres de muitas das votações em que deviam participar, arg::=
que apenas lhes competia apresentar requerimentos em nome do
meudo» e que não eram oficiais do concelho. Nas Cortes de 14 1-:_
Elvas atira com a autoridade de A ristóteles para mostrar que «os maio:'!:!
República devem reger e governar e os meãos obedecer e ajudar e os -
baixos trabalhar e servir». Os mesteres, gente baixa, não deviam, ;::e:::
assistir ou participar nos governos locais (Santarém, 1828, Provas, pa..-=-�
p. 171). O rei e os tribunais, como provavelmente os senhores, tinham=-­
avisada percepção dos equilfbrios sociais e lá iam repondo as situações. =.-­
tinguindo sempre o que deveria ou não ser do foro mesteiral (Beirante, :
PP· 232-233).
A relevância social dos mesteres imprime-se nesta preocupação rég-J:
os incluir nas vereações, onde têm voz e voto em todas as matérias que
interessam. E as vereações, por mais que lhe custe, têm de contar com
ouvi-los e aturá-los. Sob pena de conflito. Seguro. O rei tinha bem a -:ic:-­
cepção de que para o bom governo local a associação dos mesteres às
ções encontradas se tornava fundamental. O exclusivismo e falta de
político dos mais importantes das oligarquias locais levou tempo a inter:
zar quanto essa participação era decisiva para que os poderes dos cone�
fossem alargados, como convinha ao monarca.
Com o decurso dos anos esse comportamento vai mudando. A ín1po=­
tância das terras vê-se também na presença e variedade dos ofícios que fig=,­
ram obrigatoriamente nas procissões do Corpo de Deus e outras prociss�
oficiais, a que têm de comparecer com suas bandeiras e insígnias, como pa:-­
te do todo social da cidade ou vila. Cabe-lhes, naturalmente, a parte eh.
frente, organizando-se a procissão dos mais humildes para os mais ricos
Porque o espaço nobilitante, junto da gaiola do Santíssimo ou de andor de
santo, calha aos clérigos e aos cidadãos (depois ditos «gente nobre da gover­
nança» ). E essas mesmas vereações também iam regulamentando e fiscaE­
zando a eleição de juízes e examinadores dos mesteres. Assim se comporu
Viseu, confessadamente imitando as cidades notáveis do reino. Mesmo só
havendo por lá pedreiros, barbeiros, tosadores, alfaiates, carpinteiros, alve5-
tares e ferradores, oleiros, ferreiros e serralheiros e caldeireiros. É a verea­
ção que de motu próprio promove a regulamentação do exercício desses
ofícios em 1534 (Vale, 1945, pp. 170-171).
Mesteres, oficiais mecânicos, gente baixa, não toda igual nessa vileza do
trabalho. Há ricos e pobres, há importantes e desprezíveis. Há ofícios que
conseguem aproximar-se da cidadania e obter a consideração de nobre. Como
um escol de entre os mesteres se destacam, logo em 1508, os impressores
de livros, considerando a necessidade da «nobre arte da impressam». Ofício
perigoso. Das honras de cavaleiro da casa real gozariam os que tivessem as
qualidades que pressupunham afastamento das suspeições sociais: cristãos
velhos, ricos e não hereges (Oliveira, 1887-1988, tom. II, p. 70). Boticários,
ourives e escultores conseguem ir sendo considerados «gente do meio» e
penetram por vezes no grupo dos cidadãos, deixando de ser tidos por vis
312
A INDÚSTRIA

Oliveira, 1982, pp. 72-73). Eram como que a camada aristocrática do povo
Oliveira, 1971-1972, vol. 1, pp. 403-404).

FISCALIZAR os GANHOS oos mesteres já em 1481-1482 era uma tentação FISCALIDADE


?ara os concelhos. Queixam-se deles ao rei em cortes, pela devassidão com E PREÇOS
-!Ue actuam, por não cumprirem as taxas. Teria sido difícil exigir-lhes isso,
:?QiS os portos de mar e de terra não se encontravam cerrados e a concor­
:-ência exterior era sempre possível. As oligarquias dos concelhos racioci­
=am e agem quase sempre tendo como bom um inexistente encerramento
roque pode vir de fora, confinando-se aos espaços que dominavam - co­
::::io se isso fosse realizável. Ao rei agradou em 1481-1482 a proposta de se im­
:?Qrem taxas: mas não assumiu esse odioso. Que anualmente os concelhos as
::zessem, respondeu. Todavia, raramente assim aconteceu (Carvalho, 1922,
?P· 11-13). Essa coisa de controlar os preços é mais fácil de dizer que de fazer.
Cedo as câmaras constataram como era difícil obrigar ao cumprimento de
w..xas que se afastassem da realidade do mercado. É que os mesteres reagem e
i:IDplesmente deixam de vender, ou pioram'a qualidade dos produtos (Ma­
salhães, 1970, p. 181). Em 1600 os sapateiros de Coimbra <<se amotinaram e
�haram as portas e tendas de seus ofícios por respeito de uma taxa» (Car­
Talho, 1922, pp. 18-19). Inevitável quando as taxas não eram aprovadas pe­
::OS produtores ou se queria viciar o mercado. Não há volta a dar-lhes, a
=ienos de se respeitar o «ganho honesto,> com que contam os que traba­
_am. E os espaços concelhios não eram fechados, nem se conseguia fechá­
-i.'Os. O bom senso começa a impor-se no decurso do século xvr. Quando,
:om acordo dos mesteres, se quer publicar uma taxa há que saber-se como
-ão as coisas em concelhos limítrofes ou com que mais intensas relações co­ <l João Baptista Lavanha, Viagem
:::ierciais se estabelecem. Em Braga, em r 567, demorou a assentar a taxa dos da catholica real magestade dei Rey
sapateiros, porque havia que ajustá-la com o que se passava em Guimarães e D. Filipe II ao Reyno de Portugal,
:::o Porto ( «Acordos e vreações», in Bracara Augusta, vols. xxv-xxv1, Madrid, Thomas lunti, 1622.
7P· 436 e 441). Arco dos cerieiros: iluminar as
O normal era que as vereações, com os mesteres, acertassem os preços dos longas noites exigia cera, que
tinha de ser lavrada em velas e
:2balhos e os fossem actualizando. Assim fizeram os representantes das pes­ candeias. O culto divino não
soas da governança (fidalgos, cavaleiros e cidadãos) e os mesteres de Coim­ dispensa� a luz e os rendimentos
� em 1573 (Carvalho, 1922, pp. 22-23). Como os de Loulé tinham feito régios têm na cera um bom
ai 1555 (Magalhães, 1970, pp. 214-215). Para serem cumpridas, as taxas ingresso.
!r2m elaboradas com a concordância dos juízes dos ofícios, ouvidos expres­ FOTO: BN, LISBOA.
s.amente e com elas tendo ficado «contentes».
Por muito minuciosas que fossem as taxas - e eram-no -, muitas acti­ <l João Baptista Lavanha, Viagem
-:!dades ficavam de fora, em provável liberdade de preços. Só os grupos de- da catholica real magestade dei Rey
-::damente organizados teriam as taxas? Excluir-se-iam aquelas actividades D. Filipe II ao Reyno de Portugal,
�e, por dependerem de fornecimentos externos, a custos variáveis, se tor­ Madrid, Thomas lunti, 1622.
Arco dos ourives e lapidários:
::ian impossível estabilizar com esse tipo de tabelamento? Muito simples­ artesãos para o luxo de uma
=:ente, seguia-se um costume local? Tudo isto, talvez. sociedade que se destacava por
A organização, fiscalização e enquadramento político e social dos meste­ uma forte presença da fidalguia e
:rs é parte da «arquitectura,> do Estado moderno em definição. Limitações: nobreza, com gostos
� wn lado o rei, de outro os concelhos e, por vezes, alguns senhorios, em­ ostentatórios. Jóias de
:-;:a a economia urbana não seja um terreno de eleição para que estes se ornamentação pessoal, objectos de
mesa e alfaias litúrgicas surgem
�ntem a participar. Ao lado, pescadores e mareantes mantiveram uma decoradas com exuberância,
-Omia em que o grupo se reconhece e de que é cioso. Os seus compro- . sttjeicas a estilos e modas muitas
-:::5505 sempre conseguiram um grande afastamento em relação aos demais, vezes importados.
..r:nçando e defendendo preciosos privilégios. FOTO: BN, LISBOA.

313
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A SOCIEDADE

As universidades têm, em simultâneo, um importante papel na preserva­


ção dos grupos privilegiados e na ascensão de alguns que daí não provêm,
perturbando a desejada rigidez. Os que «as buscam, ou são filhos segundos
e terceiros da nobreza do Reino, que, por instituição dos morgados de seus
avós, ficaram sem heranças e procuraram alcançar a sua pobs letras». Pode
por igual ser uma via para «os filhos de homens honrados e ricos [ ... ] que
os podem sustentar com comodidade nos estudos» (Lobo, 1945, p. 320).
Não apenas os desta proveniência. O serviço de um estudante rico permitia
frequentar a universidade. Algumas carreiras baixas, sobretudo eclesiásticas,
assim se teriam iniciado.
Em 1569, a tomada de consciência da injustiça das profundas desigualda­
des começa a ser visível e objecto de algum descontentamento. No ano da
Peste Grande é atacad:r «a soberba dos grandes usada com os pequenos»;
denunó�-se a diferença entre as «taxas executadas nos pequenos e izentadas
dos grandes»; sublinha-se que têm «us tudo e outros nada,> (Soares, vol. 1,
1953, pp. 36-37). Mais uma razão para a instalação do controle social pela
Igreja e pelos poderes locais.
Apesar de tudo, o poder dos grandes estava limitado. Os senhores de
vassalos detêm vastas jurisdições crime e cível: mas a apelação e a decisão fi­
nal de muitas causas reservavam-se ao monarca. O rei era, afinal, recurso
contra a injustiça. E fonte de apoio para a plasticidade social.
Vozes acusam: «Regimentos não se executam senão nos pobres; leis e
provisões não se guardarão senão contra os desamparados» (Couto, 1980,
p. 39). Bom papel era o da Igreja, controlando algum desvario que porven­
tura ocorresse. Conformação e resignação. «Deus é bom, ele remediará isso
como nos a nós convém; porque mais cuidado tem de nós que nós mes­
mos>> (ibíd., p. 137). Que podiam fazer os pobres? Comer algum pão e ce­
bola, uma pouca de figo ou de castanha, irem-se ao rabisco das uvas ou de
fruta para não morrerem à fome ... Largar o podão e a enxada «e passarem­
-se da aldeia à cidade levando trás si a mísera e desventurada família, e an­

-
darem de rua em rua e _de porta em porta, pedindo por amor de Deus aos
ricos, aos prelados e conventos, aos comendadores, cónegos e abades que,
pois em lhes levantarem o preço do pão para a boca são causa da sua pobreza e
miséria e de não se poderem sustentar com seu trabalho, lhes dêem uma es­
m<:>la para que não pereçam à pura fome» (Memórias, 1987, pp. 275-276).
Os contrastes e oposições eram muitos e muito fortes nesta «sociedade
conflitiva» (Kamen, 1984), que o rei procurava integrar e equilibrar através
da concessão de privilégios, privilégios que iluminam violentas oposições,
que a tornavam de mais difícil gestão.

OS ECLESIÁSTICOS
EM PRIMEIRO LUGAR, por tradição e por função de mediador para com
Deus, o clero. Grupo demasiado vasto. Muitos eram os que recebiam or­
dens menores, habilitando-se a privilégios e foro de clérigo. Bastante me­
nos os de ordens sacras. Em Coimbra, em 1537, foram 1737 os primeiros,
apenas 269 os segundos. Subdiácono pediram 23, diácono 24, presbítero 14.
Nesse ano receberam ordens ainda mais ro9 r. Em 1524 ordenaram-se.1963,
em 1529 ficaram-se pelós 1708 (Vasconcelos, 1915, pp. 834-835). Antes da
criação dos seminários (com o Concílio de Trento) era fácil ser clérigo. Das
40 freguesias de Lisboa, em 1620, se lê serem servidas por 300 clérigos; nos
conventos há I 36 5 frades e 1 8J2 freiras - contando as mulheres que ser­
vem as religiosas (Oliveira, 1620, fls. 66-71). Em 1513, em Caminha, 0,2 %
da população, em Valença, 1,5 % (Oliveira, 1976, p. II). Não se conclua
coisa alguma.
São muitos os lugares de pároco (mais de 3000), a que se acrescentam os
benefícios em cabidos e colegiadas e os conventos de religiosos ainda em
expansão. A maioria dos lugares de curas de almas não traria, só por si, es­
pecial consideração. O pároco de uma pequena aldeia não se distingue no
seu viver e nos seus recursos dos demais vizinhos. É um deles, com funções
específicas. Muitas vezes pobre e vigiado de perto por vereações e confrarias
SOCIEDADE E CULTURA

Quadro 11
e pelos patronos que lhe limitavam a acção e zelavam por que não distraísse
objectos de culto ou se apropriasse do que à comunidade pertencia. Ser pá­ �
Rendimentos dos bispos, estimados roco, sem mai�, não era elevada posição social; dependia da importância so!r.!
em ducados, cerca de 1529 económica da paróquia. Onde não havia velhos direitos, o rei fixa ordena­ C!:D
dos baixos: 20 ooo a 30 ooo réis em 1568 nos Açores (Arquivo, 1981 -1984, o�
Arcebispo de Braga - 24 000
Bispo de Évora - 20 000
vol. v1, pp. 184-192). A completar com o pé de altar (missas, baptizados, �
Arcebispo de Lisboa - 16 000
casamentos, enterros). <125 j
Bispo de Coimbra - 12 000 Bons lugares, sim, nas colegiadas e cabidos. Cónegos, meios-cónegos ?· :j
Arcebispo do Funchal - 8000 e outros prebendados instalavam-se muito acima do eclesiástico comum.
Bispo de Viseu - 8000 Além das rendas próprias das sés e colegiadas, recebiam os dízimos, a meias . - a=
Bispo de Lamego -
Bispo da Guarda -
6ooo
5000
com o prelado. Esses vultosos benefícios encontravam-se reservados para os :é r
Bispo do Porto - 4000
filhos das famílias mais importantes, que assim colocavam alguns dos seus Pz
Bispo de Silves - 4000 ao abrigo de dificuldades de sobrevivência, sem que a unidade do patrimó­ �
Bispo de Ceuta - 2000 nio familiar se visse ameaçada por partilhas. E, como é natural, procuravam m=:::;
fazer com que os lugares se mantivessem para membros da mesma família ::!O:li
na geração seguinte. Cediam-se, compravam-se e vendiam-se lugares, com caG
a devida aprovação papal, régia ou episcopal (Brandão, 1990, pp. ro-12). ro:::
Até à travagem tridentina não seria sequer incomum a passagem de lugares
de pais para filhos (Dias, 1960, tom. 1, pp. 36 -38). E eram pingues rendas. o_..:s-
O rei e os bispos e o longínquo papa, todos, tinham parte na nomeação de 20:
benefícios, o que implica um cuidadoso equilíbrio entre os padroeiras (pon­ :990
tuado por conflitualidades).
Os próprios reis reservavam os melhores lugares da Igreja para os seus fi­
lhos legítimos (D. Manuel para os infantes D. Afonso e D. Henrique) e ile­
gítimos (D. João lil para D. Duarte). Os lugares de apresentação ou pa­
droado real eram duramente disputados. Um lugar vago era uma ocasião

-
para se moverem influências, desencadeando «combates fortíssimos». As
influências contavam (Sousa, 1946-1948, vai. 1, livro I, cap. VI, p. 42). Bra­
ga valia um bom esforço. Em 1558 o mais forte postulante era irmão do
duque de Aveiro, nada menos (Anedotas, 1980, p. 141).
De entre os grandes cargos eclesiásticos, havia uma ordem de rendimen­
tos, que dava o sinal da importância relativa de cada um (Góis, 1945 , p. 98)
(quadro n).
A criação dos novos bispados, a partir de 1540, empobrece as dioceses de
onde se separam: Miranda, Leiria, Portalegre e Elvas. Acresce a mobilidade
de alguns bispos, que vão sendo como que promovidos: do Algarve para
Évora ou Coimbra, de Lamego para Lisboa, de Portalegre para o Porto ...

o CONCÍLIO DE TRENTO ATÉ AO CONCÍLIO DE TRENTO, padres e bispos, e mesmo monges, eram
celibatários, sem que isso obrigasse sequer a uma ap,arência de castidade: o
próprio capelão-mor, bispo de Lamego e depois arcebispo de Lisboa,
D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos, é pai de filhos, um dos
quais cónego na mesma Sé de Lisboa (Maurício, in Ordens, 199 1 , p. 262).
Os frades eram <imenos recolhidos do que devem e mais soltos do que a re­
ligiosos pertence», escreve com elegância a Câmara de Angra em 1541 (Ar-
quivo, 1981 -1984, vai. v, p. 163 ). .
A partir de 1564 (e mesmo antes), o ser eclesiástico já não deve ser apenas
um modo de vida como qualquer outro. No interior da própria organização
eclesiástica as coisas começam a mudar. Passa a exigir-se uma dedicação
pastoral e disciplinadora que deixa de se limitar à fruição pacata dos bens
terrenos. Começa a exercer-se uma forte pressão sobre as populações, vi-·
giadas e controladas a cada passo. São os registos de baptismos, casamen­
tos, e enterros (decretados, mas pouco cumpridos áté então). São os róis de
confessados. São as visitas pastorais, com os seus exames ao comportamen-
to social e sexual dos fregueses.
Na primeira fornada de bispos da escolha de D. João lil surgem D. Ma­
nuel de Noronha, fidalgo (Angra), o Dr. Brás Neto, desembargador e di­
plomata (Santiago de Cabo Verde), D. Diogo Ortiz, deão da capela real
(S. Tomé), e o Dr. Francisco de Melo, das melhores linhagens, matemático
ilustre (Goa); D. Martinho de Portugal, cortesão e parente do rei, filho de
um arcebispo de Évora, passa a arcebispo do Funchal (Relações, 1937,
A SOCIEDADE

T__sse pp. 103-1 ro). Prelados de corte, que nem sequer tentaram conhecer as dio­
:::-r2- ceses cujos titulares eram. Depois os bispos deixam, em princípio, de ser
i::c--2 sobretudo homens do serviço régio, ou filhos de grandes e de fidalgos en­
caixados na fruição de chorudas rendas. Alguns dos nomeados vêm das
ordens religiosas, de entre os esperadamente virtuosos, não sem que se mo­
vam influências (Dias, 1960, tom. 1, p. 75) - um núncio refere intrigalha­
das de frades para afastar os clérigos seculares (De Witte, 1980-1986, vol. II,
�05 p. 152). D. Miguel da Silva, que conhecia bem o rei, aconselha o papa a no­
�­ mear um frade português para o substituir em Viseu (ibid., vol. II, p. 501).
::.:=:as Naturalidade e disciplina regular. Outros vêm do Santo Ofício, tirocínio de
.:a os fé e rijeza doutrinária .
�..:s Pastores, em princípio virtuosos, devem residir nas suas dioceses e nelas
:.::::.ó­ exercer o seu múnus. O que não deixa de acarretar dificuldades, nem de en­
�-.--;L-::? contrar obstáculos vindos de dentro, pois a administração das dioceses estava
_;-:ª montada para bispos absentistas. D. Frei Bartolomeu dos Mártires, promotor
ro:::t da Contra-Reforma, em cuja definição teve parte, vai debater-se mais que tudo
com a dificuldade de visitar as freguesias dependentes do seu cabido. Querem
impedi-lo de entender na «vida dos eclesiásticos, dos ricos, dos poderosos da
cidade» de Braga, sem curar de <wícios e culpas, de que a liberdade e riqueza
são fonte certa» (Sousa, 1946-1948, livro II, cap. III, vol. 11, p. 61, e Soares,
1990). O confronto com o cabido em Braga não teria sido diferente do de
quantos bispos que começaram a tomar a sério a sua missão pastoral.
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e :..e-
� �2- POR TODA A PARTE os CÓNEGOS eram gente poderosa, fazendo amargar a CONFLITOS INTERNOS
:::5'"'20 doçura episcopal. Os lugares que detinham eram definitivos e era também
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Cristóvão Lopes, Entrega dos
estatutos da Ordem às freiras da
Madre de Deus de Lisboa (Igreja da
Madre de Deus, Lisboa). A
fundação de conventos de
religiosas continua durante os
.. n- séculos xvr e xvrr. Em especial o
hábito de dotar com muitos bens
as filhas primeiras impedia o
casamento das demais.
A colocação nos conventos era a
saída. Por isso não foi fácil
.,la­ disciplinar a vida de religiosas,
t' c­ obrigadas a uma vida que não
::eal tinham escolhido, mas a que
rco tinham sido violentadas.
� d.e © ANF/Instituto Português de
Museus.
FOTO: ARMANDO SOARES.

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SOCIEDADE E CULTURA

normal a sua residência junto da catedral. Estabilidade e presença, o que


ainda com frequência não ocorria com os bispos. Com não poucos conflitos
internos, bandos alimentando sanhas pouco edificantes (Arquivo, 1981-1984,
vol. vr, pp. 198-199). Ao longo de 1612-1614 o cabido de Coimbra sustenta
uma «guerra» com o bispo. Entre outras coisas, em causa as visitas ao pa­
droado do cabido (Acordos, 1973, pp. 148-178). Também eclesiásticos e lei­
gos se chocam nos seus interesses. D. Álvaro da Costa e os seus amigos fa­
zem negra a vida do bispo do Salvador, por I 555, prendendo um cónego e
impedindo o castigo de opositores ao prelado (História, 1922-1924, vol. lll,
pp. 368-369). O bispo, por seu lado, que também não era manso, manda
espancar inimigos seus e entra em guerra declarada com o governador e seu
rebento (ibid., vol. m, pp. 373-374).
Os bispos que tinham cargos na corte concediam não pouca facilidade de
movimentos aos cabidos, esquecendo-se de visitar as suas ovelhas. O Fun­
chal e Angra, dada a distância, tarde receberam os primeiros prelados resi­
dentes. Em troca dessa liberdade, os cabidos, bem à solta, não obstariam à
saída das rendas das dioceses em que eram cobradas, mesmo quando sen­
tiam a injustiça de as verem distraídas para fora. D. Frei Amador Arrais,
bispo de Portalegre, em conflito com o cabido, renunciou. Foi-se com uma
bela pensão para Coimbra, «onde fez um galhardo templo e capela pera sua
sepultura, em que gastou sessenta mil cruzados ganhados em Portalegre,
onde puderam ser milhor gastados, que não em Coimbra» (Sotto Maior,
1984, p. 86). Outras lutas entre bispos e cabidos levaram à renúncia de pre­
lados, como o de Leiria, D. Brás de Barros (Brandão, 1972, vol. I, p. 240).
Pior: o deão da Guarda consegue a excomunhão do próprio bispo D. Jorge

-
de Melo (Dias, 1960, tom. n, pp. 629-633; De Witte, 1980-1986, vol. n,
pp. 525-527). Ao invés, D. Afonso de Castelo Branco, bispo-conde, exco­
mungou o seu cabido de Coimbra (Teixeira, 1895-1902, p. 126) ... Os co­
meços da residência dos bispos e o arranque das acções pastorais directas te­
rão de passar, depois de r 564, por partilha de poderes. Porém, não foi
imediata esta presença dos bispos nas suas dioceses, e mesmo entrado o sé­
culo XVII algum absentismo se mantinha (Dias, 1960, tom. 1, p. 75).

RELIGIOSOS E LEIGOS HÁ UMA PERNICIOSA PROMISCUIDADE entre laicos e religiosos. Instituíram-se


formas de desviar para os grandes laicos uma parte dos rendimentos eclesiásti­
cos. Antes de mais, a administração perpétua para o rei das ordens militares,
em 1551. Rendas de conventos, algumas muito apetecíveis, como Alcobaça ou
Santa Cruz de Coimbra, jorravam para as mãos de abades e priores comenda­
tários. Não se elegiam os superiores de entre os membros das comunidades.
O próprio papa Júlio II impôs um sobrinho seu como prior-mor de Santa
Cruz, o que incomodou D. Manuel, que conseguiu, em 1507, a revogação
do breve apostólico de nomeação (Loureiro, 1964, vol. II, pp. 189-191).
Aproveitando depois a situação em benefício dos seus. A D. Afonso e
D. Henrique, a D. Luís e D. Duarte - estes laicos - souberam bem rendi­
mentos eclesiásticos. E por aí abaixo. Nos capítulos das Cortes de 1562 os
eclesiásticos protestam em vão: o regente estava implicado como administra-
dor de Alcobaça (Santarém, Provas, parte I, I 828, p. 38).
Uma das formas desta promiscuidade consiste na fundação de casas reli­
giosas com reserva do padroado para os instituidores. Assim agem o rei e
os infantes, senhores e homens da nobreza local. Brás Pires do Canto, ho­
mem muito aparentado em Angra, «tem feito um mosteiro em que i pa­
droeiro perpetuo e come todas as rendas do dito mosteiro e tem suas filhas
abadessas e vigairas por sua nomeação de modo que -tem um morgado pera
dar a seus filhos das fazendas das pobres freiras»: isto em 1561 (Arquivo,
1981-1984, vol. VI, p. 197).
Já de muito antes se caminhava no sentido de favorecer a disciplina e bom
desempenho dos frades e das freiras. Boas intenções, não concretizáveis.
D. João III, apesar de estimar muito os frades, negoceia concessões com o
papa como «antre mercadores» (Gavetas, 1961, tom. I, pp. 721-725). E o
mesmo continua depois de Trento.
Muitas destas casas ditas de religião serviam para a colocação de filhos e
A SOCIEDADE

filhas dos grandes e fidalgos. Elvas, em 1498, requer ao rei esmola para fa­
zer um mosteiro de freiras, por haver «muitas filhas de fidalgos e honrados
homens e as nom podem casar como a suas honras comprem». Por isso se
perdiam e cobravam má fama (Santarém, Provas, parte r, 1828, p. 78). Ou­
uos, ansiosos por promoção social, metiam filhas em conventos, e esco­
lhiam-nos entre os que mais enobreciam. Em famílias de nação era corrente
fazê-lo. A violência sexual do celibato sem vocação dava depois resultados
sabidos? Não importava.
Em r 532-1533 o abade de Claraval tem de vencer graves obstáculos para
se impor na mundanidade claustral de Almoster e de São Bento de Évora.
Em Almoster a abadessa, uma tia do marquês de Vila Real e irmã do conde
de Linhares, regia o convento como se de bem seu se tratasse. Os ilustres
parentes sentiram-se ofendidos com as intromissões (De Bronseval, 1970,
,·o!. I, pp. 376-381). São Bento de Évora pareceria tudo menos uma casa de
religiosas (ibid., vol. r, pp. 418-427). A abadessa de Lorvão, D. Filipa de
Eça, emprenhou já reclusa (De Witte, 1980-1986, vol. II, p. 524). Ainda em
1602, o bispo de Coimbra, D. Afonso de Castelo Branco, prefere que uma
freira de Semide saia do convento para não ensinar (ao vivo) as outras a pa­
rir (Veiga, 1988, p. 280). Justas e pecadoras. Se há as exemplares freiras de
Odivelas, há as desgraçadas de Évora, para quem o convento era solução
para a falta de dote. Conscientes disso, alguns escolhiam para as filhas con­
,·entos «largos», onde a observância se não tivesse instalado, «por me não
darem ao demo tantas vezes», escreve, desabusado, António de Saldanha,
em 1547. Filhas para o convento, filhos para a Índia (Costa, 1987, p. 13).
A Igreja e o rei coniventes. Aquela para aumentar o património e relevo
social, este para não se lhe multiplicarem os servidores e respectivos encar­
gos. Nunca os reis acederam a limitar os dotes que os fidalgos podiam dar
às filhas, como lhe pediram nas Cortes de 1490 ou de 1581 (Santarém, Pro­
vas, parte II, 1828, pp. 70 e 83). Se os morgados se destinavam a garantir
rendimentos com que o administrador devia «emparar irmãos e parentes»
(Costa, 1983b, p. 267), o sustento das jovens excedentes ia em pequeno do­
te para onde as faziam professar.
Há, ao longo do século, esforços de reforma, em especial por uma estrita
observância das regras. Esforços com algum êxito, que não atacam o fundo
-
da questão: mantendo-se a mistura de leigos e clérigos na administração e
fruição dos bens, não poderia haver nunca cumprimento rigoroso das dis­
posições estatutárias.
Nem por indisciplinada, embora em vias de reforma, a Igreja deixa de de­
sempenhar o lugar que lhe estava conferido. E que aumenta com D. João III:
o núncio papal constata que o rei se preocupa em prioridade com negócios
eclesiásticos, esquecendo todos os outros, «por maiores e utilíssimos que se­
jam» (De Witte, 1980-1986, vol. II, p. 512).
Os eclesiásticos e religiosos não formam um bloco coeso. Longe disso.
Há ricos e pobres. Seculares e frades. Conflitos, não raros nem pouco vio­
lentos. Em 1490, D. João II faz avançar tropas para serenar Coimbra, onde
se guerreavam os partidários do bispo e os de Santa Cruz (Loureiro, 1964,
,·o!. r, p. 3 r 5). As questões das precedências das ordens religiosas nas pro­
cissões podiam degenerar em desacatos, promovidos pelos próprios frades
(BNL, F. G., n. 0 5426). O número de frades e clérigos ia em crescimento,
de tal modo que no século xvn se pôde escrever que «se comem uns aos
outros». Tantos que não se podiam sustentar. Entretanto faltava gente para
as armadas (Oliveira, 1887-1888, tom. II, pp. 323-324). A fundação de no­
vos conventos passou a ser fortemente contestada pelos povos e o próprio
rei teve de impor limitações (Silva, 1985, pp. 278-300). O reino transborda­
va de frades e freiras.

GRANDES, TÍTULOS E FIDALGOS


FIDALGO NASCIA-SE. Ou uma mercê do rei concedia essa qualidade e con-.
<lição: r) moço-fidalgo; 2) escudeiro-fidalgo; 3) cavaleiro-fidalgo; 4) fidal­
go-escudeiro; 5) fidalgo:..cavaleiro (graduação de 1572). Acima, os fidalgos

.-......-. -
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SOCIEDADE E CULTURA

Aires de Saldanha e D. Joana de de solar, os títulos e os grandes. Não era forçosa a progressão enumerada e
Albuquerque são dois bons as designações variaram (Albuquerque, 1988, pp. 31-34). O rei declarava fi­
exemplares de fortunas grandes, lhar e tomar alguém como seu criado (de criação). Com isso uma forma de
ligadas ao ultramar, que se
constituem em morgado, para tratamento, o reconhecimento de honra e respectivos privilégios. O que
glória e honra de família. implicava assentamento nos livros régios. O fidalgo transmitia a qualidade e
Museu do Trajo, Lisboa. condição aos seus herdeiros. Mesmo descendentes enviesados, após reconheci­
© ANF/ Arquivo Nacional de mento de paternidade e concordância régia, obtinham esse estatuto.
Fotografia. D. João II faz Pêro d' Alcáçova fidalgo, com carta de brasão de armas, e
FOTO: ARNALDO SOARES. declara: «Separamos e removemos do núm,ero geral dos homens e conto
plebeia e os reduzimos e trazemos ao conto, estima e participação dos no­
bres fidalgos de limpo sangue» (Brito, 1991, p. 242). Limpo sangue não
significa ainda livre de ascendência judaica ou moura, obsessão no último
terço do século. Na carta de privilégios se continham isenções que se esten­
diam à casa (parentes e servidores) do novo membro do grupo dominante.
Ninguém era feito fidalgo se se lhe não reconhecesse riqueza e status no estilo
de vida que o fazia sobressair do conjunto (Arquivo, 1981-1984, pp. 506-508).
Para se ser cavaleiro da Ordem de Santiago encontrava-se mesmo estatuído ser
rico (Olival, 1988, vol. I, p. 109).
A SOCIEDADE

o SANGUE ILUSTRE MAIS OBRIGA (Lobo, 1945, p. 297). A honra, ponto A HONRA
central da sociedade aristocrática, consiste «na virtude, valor, magnanimida­
de e esforço próprio». Por ela se deve o fidalgo «aventejar do vulgo e não
os que fazem dela tão pouco cabedal que empregam o seu ânimo e saber em
cousas inclinas de homens bem nacidos, ocupando-os em latrocínios, forças,
traições, maldades, enganos e infâmias» (ibid., p. 307). Honra como recom­
pensa, como aparência e como excelência (Chai.tchadis, 1984, p. 1 II). Me­
recê-la, receber o correspondente tratamento e ter as qualidades que a justi­
ficam, eis a que devem os homens aspirar. Os Portugueses preocupam-se
«mais com o fumo do que com o assado», diz um crítico (De Witte, 1980-
-1986, vol. II, p. 492-495). Peitam-se os cronistas da Índia para que relatem
os feitos gloriosos - lubrificação de que nem Afonso de Albuquerque se
esquece (Barros, 1974-1990, Década n, parte II, livro VII, cap. I, p. 3 r 2).
O conde de Tentúgal polemiza com Damião de Góis, negando as traições
da fanúlia de Bragança a D. João II (Góis, 1926, vol. 1). Honra e desonra
por herança.
Honra obtida por feitos militares. Honra alcançada na corte com o culti­
vo de outras qualidades: «modéstia, prudência, discreção, conselho e habili­
dade para tudo». O fidalgo perfeito, além de esforçado cavaleiro, será «mui
afábil, cortês e humilde com todos» (Frutuoso, 1977-1987, livro IV,
com. III, p. 121). A um fidalgo muito honrado, com o hábito de Cristo, ga­
bam-se as «boas partes e discreção», o «ser honroso pera os homens, bem
inclinado, de muito respeito, grande amigo de seus parentes e desejoso de
acrescentar na dita geração, gentil-homem, gracioso, alegre, liberal, virtuo­
so e temente a Deus, de muita verdade, desinteressado em falar o que en­
tende, sem ter de ver com pessoa alguma». E, essencial, «por tal é conheci­
do de todos» (ibid., livro vr, p. 29). Para este reconhecimento conviria que
o apelido familiar fosse usado, denotandq linhagem (Brito, 1991, p. 271).
Garcia de Resende dispõe que quem suceder no seu morgado se «chame

-
sempre de Rezende1> (Ribeiro, s/d, p. 336). Como, em 1600, Aires de Sal­
danha e sua mulher, D. Joana de Albuquerque, determinam que os admi­
nistradores do seu morgado guardem os apelidos de Saldanha e Albuquer­
que e lhes usem as armas (Costa, 1983b, p. 262).

A AUTO-REPRESENTAÇÃO DESTA GENTE passava também pelas formas de FORMAS DE TRATAMENTO


tratamento. «Dom» é parcimoniosamente concedido. Tinha o efeito ime­
diato de dar a conhecer o seu portador como pertencendo à alta fidalguia.
O regedor da justiça, João da Silva, sentia-se «fidalgo razo» por não o ter
(Carvalho, 1926, p. 228). Nas mulheres era mais vulgar o uso de «dona»
(Brito, 1991, p. 274). No tratamento pronominal, um «vós» podia resultar
ofensivo, se o chamado se achava com direito a mais: «vossa mercê», «vossa
senhoria» ou «vossa excelência». A lei previa as aplicações. Se assim não fosse,
reconhecia o rei em 1597, gerar-se-iam «grandes desordens e abusos».
ue
=-
É que todos tentavam conquistar um tratamento superior (Cintra, 1972,
1.
pp. 25-29). Confusões muitas, e não apenas na corte. O regresso da univer­
.-:.e sidade a Coimbra levou a que, em 1558, a rainha regente mandasse que três
pessoas da cidade e três da universidade se juntassem e chegassem a um
acordo. Senão ela própria decidiria (Livro 2.°, 1958, pp. 108-109).
A conjugação de tão complicadas teias de relações degeneravam por vezes
em conflitos internos. Alguns insolúveis, como os assentos de D. António,
prior do Crato, e do Senhor D. Duarte nas Cortes de 1562 (Relações, 1937,
pp. 319-320). Já antes, em 1556, se acertara a precedência dos condes, orde­
nada pela antiguidade da carta de mercê do título (ibid., p. 405). A coexis­
cio tência dos bispos e cabidos com governadores e capitães representando o rei
teve de ser também regulada nos lugares de África e ilhas, em 1588, após
trabalhoso estudo pela Mesa da Consciência e Ordens (Arquivo, 1981-1984,
vol. x, pp. 307-308). Nos começos do século xv11, o aparato protocolar rea­
firmador das posições sociais reforça-se. A sociedade-barroca exibe-se. Em
16 r I, o rei proíbe a novidade de os bispos entrarem nas terras a modo de
reis, debaixo de pálio levado por pessoas da governança a pé (Livro 2.°,
1958, p. 231).
SOCIEDADE E CULTURA

ÜS NOBRES O FIDALGO ERA NOBRE. Nem todo o nobre era fidalgo. Em fins do sécu­ o
lo xv, a expressão «nobreza» ainda pouco aparece como designando o todo se�
do grupo aristocrático, sendo muito corrente como adjectivo. A expressão co :t
<(nobres homens de linhagem» significa fidalgos, pois nobre qualifica linha­ �
gem. Nas mesmas Cortes de 1481-1482 se propõe ao monarca que faça «certo �.?§"�
número de vassalos e homes fidalgos e de nobre criaçom em que bem caiba tal se:::
G!.CO
honra» (Santarém, Provas, parte n, 1828, p. 136). Porém, em 1513, D. Ma­
e�
nuel, ao estabelecer uma imposição sobre o consumo do vinho, refere haver
em Lisboa pessoas particulares que «ganham muito dinheiro, e assim algüs ,
- -:....
:::os
cristãos novos, merca.dores, [ ... ] homes ricos, e abastados e nobres» (Oliveira,
1887-1888, tom. 1, p. 416). Nobre, simplesmente, refere os que têm um com­
z.--·
..
portamento que os aproxima da fidalguia, pela vida que podem levar, por ri­
cos.
Nobre é aquele que mostra qualidades de nobreza, que sabe agir de um mo­ :
do honroso e socialmente prestigiante. Que cem um comportamento grave. :c:J

Ou ocupa cargos que, à partida, estava convencionado serem reservados a pes­ fim
soas com essas qualidades, virtudes e vida compatível. Nobre, como substanti­
vo comum, só é corrente mais tarde, embora seja dificil, por vezes, limitar a
extensão do conceico, que remete para os melhores e mais honrados (Santa­
rém, Provas, parte II, 1828, pp. 170-173). De que havia que dar sinais: a «gene­
rosidade para com seus iguais e dependentes, a aucoridade sobre a família e
servidores, a hospitalidade e o senso de honra pessoal e familiar» (Schwarcz,
1988, p. 230). O homem designado só como nobre ficava numa zona indefini­
Retrato de Vasco da Gama. O da e difusa de transição entre o plebeu e o fidalgo. Deste se vai aproximando.
capitão-mor da frota que Aparência, influência e eficácia em acrescido reconhecimento de superioridade
primeiro percorreu a rota do
Cabo era (como todos os correspondendo a um comportamento. Que ou seria aceite pela sociedade e
primeiros capitães) uma figura pelo rei, e integrado, ou se quedava pelo exterior, eventualmente próximo,
secundária da corte. Como - os sem pertença ao grupo.
demais, teria feito a sua De um postulante a um colégio de Salamanca, natural de Campo Maior, se
aprendizagem na navegação no apura ser <(de casta d'escudeiros, cavaleiros e fidalgos», que «governam e sem­
golfo de Guiné. Foi escolhido
para o comando da, frota que pre governaram a terra e serviram os oficias nobres dela, de juízes e vereado­
primeiro chegou à India res, sem terem raça nenhüa [nem] mácula de cristãos novos», «pessoas nobres
(1497-1498). Lá tornou em 1502, que se tratavam a lei da nobreza, com moços e escravos e cavalos, como cava­
almirante. A energia (e crueldade) leiros» (Marques, 1988, p. 26). Para finais do século chamava-se-lhe viver (ou
do agora conde da Vidigueira aparentar viver) à lei da nobreza. «E todos os de Portugal e desta ilha [São Mi­
indicava-o para reestrucurar o guel] são de grandes espíritos e viveram e vivem sempre à lei da nobreza,
domínio asiático, em I 524, como
vice-rei. Não teve tempo para abastados com cavalos de estado, e criados e escravos de seu serviço» (Frutuo­
ISSO. so, 1977-1987, livro 1v, tom. 1, p. 50). Um tal Francisco Veloso solicita o há­
FOTO: ARQUIVO CfRCULO DE bito de Santiago invocando que vive <cbem e honradamente», tem escravos e
LEITORES. escravas e moços que o servem, serve ele mesmo o rei no trato de Guiné e é
rico; além disso, não vem de casta de judeus nem de mouros nem anda horni­
ziado. Vive <climpamente à lei de cavaleiro>>. Depois de 1572 convinha acres­
centar que nem pai nem avós tinham sido oficiais mecânicos (Olival, 1988,
vol. I, pp. II 2-220, n. II). E juntar qualidades morais de pai-patriarca. Rui
Gago da Câmara era «de cal condição e tão nobre, que nunca agravou soldado
seu, nem usou de condenação, e prendendo-os e tratando-os com muito amor,
como filhos e assim é pai de todos e da mesma vila [da Ribeira Grande], acu­
dindo primeiro que ninguém a todas as pressas e necessidades dela, e fora dela,
com sua pessoa e fazenda» (Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tom. r,
pp. 143-144).

,!
COMPORTAMENTO SE o FIDALGO NÃO TINHA de se cuidar, pois não perdia a qualidade que déti­
nha por linhagem ou por mercê régia, já o nobre não podia esquecer-se disso.
O reconhecimento da sua honra passava pela aparência. Rui Brandão Sanches,
dos principais que governavam a cidade do Porto, testa que no seu morgado
não pode suceder gente não nobre nem cuja linhagem não seja antiga - a me­
nos de um dote que valha quanto as terras vinculadas (Brito, 1991, p. 211). A
riqueza compensava a falha da linhagem. Ao nobre não convinha ter próximo
uma ascendência de oficiais mecânicos (ou não devia saber-se). Uma boa for­
tuna acabaria por elevar, sobretudo os que conseguissem um hábito numa or­
dem militar.

490
A SOCIEDADE

,-
O exagero com que os grandes, fidalgos, cavaleiros e escudeiros (e quantos � �
. ' ' •; :. ;, ·,
'.

se querem mostrar como vivendo à lei da nobreza) se apresentavam em públi­


co levou D. Sebastião a dispor uma séria limitação: «Que nenhüa pessoa de
qualquer stado & qualidade que fosse, pudesse trazer consigo mais que ate dois
pagês a pé, & dois homês de esporas, & um escravo em pelote com mandil
sem capa. » Além destes, podiam acompanhá-lo outros, desde que fossem por­
.... tadores de cochas (Leis extravagantes, I 569, quarta parte, tít. r, Lei VI, fl. 116) .
Uns anos antes, e com o exagero próprio dos cultores das letras humanísticas,
Nicolau Clenardo yscrevera que homens famélicos se envergonhavam «de
mostrar que se sabem servir das mãos » . Apresentam-se na rua com nove cria­
dos: «dois caminham adiante; o terceiro leva o chapéu; o quarto o capote, não
,- adregue de chover; o quinto pega na rédea da cavalgadura; o sexto é para se­
gurar os sapatos de seda, o sétimo traz uma escova para limpar os pelos do fa­
to; o oitavo um pano para enxugar o suor da besta[...] o nono apresenta-lhe o
pente » (Cerejeira, 1949, p. 288). Na corte de Filipe III, cm Valadolid, os caste­
lhanos zombavam da soberba e vaidade dos portugueses: «não cuida um fidal­
....
go português se não em que entrando na Corte, a hão-de assombrar» com os
seus lacaios, «mais rica e custosamente vestidos do que nunca seus bisavós o
... fizeram nas suas vodas» (Veiga, 1988, p. 175). Doutor João de Barros,
Quem se aproxima do rei e tem mais posses pode e deve alardear grande­ Espelho de casados, Porto
za. Assim o capitão de São Miguel, Manuel da Câmara, sustentava na corte Vasco Dias Tanco de Frcxcnal,
seu filho D. Rui Gonçalves da Câmara, «gravemente acompanhado». Trazia 1540.
Literatura moral de desejada
consigo «oito, nove homens de esporas e outros tantos pajes». Era «tão intervenção numa sociedade cm
grandioso [ ... ] que o que tinha era muito pouco para o gastar todo em uma que a gente letrada procurava
hora>>. Gastar sem tino. Retirar-se quando em atrapalhação com dívidas padrões de comportamento
vultosas. Juntar para tornar a gastar (Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tom. III, doméstico consoantes com os
pp. 114-118). Assim o exigia a manutenção do status social. Tinham de se novos tempos renascentistas.
mostrar liberais, para não serem mal vistos. «Do povo cego[ ... ] é murmu­ O padrão clássico devia
confrontar-se com a sociedade.
rado que ajunta muito dinheiro » , diz-se de pessoa principal dos Açores.
FOTO: VARELA PÉCURTO.
Frutuoso desculpa: não <<é pecado ajuntar sem dano para gastar a seu tempo
devido, antes é prudência e virtude» (ibid., pp. 122-123). A sovinice cheira a

-
riqueza recente. Desqualifica.

Os TITULARES TINHAM MESMO de ostentar e os rendimentos que lhes atri­ Os TÍTULOS


buem não parecem muito elevados. Antes de 1530, talvez por 1529, um sici­
liano apresenta como rendas anuais dos títulos portugueses, em ducados (Ma­
rineo Sículo, 1530, fl. xxv; Pereira, 1986, p. 813, n. 51 e 52) (quadro m). Quadro 111
Faltam alguns, como o conde de V idigueira, o visconde de Vila Nova de
Cerveira e o barão de Alvito. Do duque de Aveiro o autor confessa que não Rendimentos estimados em
alcançou saber o rendimento. Este perceberia anualmente quase r r contos, ducados, cerca de 1529
sendo o segundo senhor do reino (Pereira, 1986, p. 798). Grande diferença Duque de Bragança -40 000
entre os cerca de 16 contos (tomando o ducado a 400 réis) para o duque de Marquês de Vila Real -15 000
Bragança e um conto e duzentos mil réis para os condes menos afortuna­ Conde de Marialva -12 000
dos. A estes o rei tinha de prestar ajuda, não fosse ficarem incapacitados de Conde de Tentúgal 8000
assistir aos serviços da corte que a titulação impunha. Viver junto do rei Conde de Portalegre 5000
saía caro. Fará mesmo parte de uma política deliberada de domesticação dos Conde de Vimioso 5000
Conde de Redondo 5000
grandes tê-los amarrados a grandes despesas. Diz-se que Filipe II «foi o que Conde de Monsanto 5000
fez endividar os Grandes de Espanha, para que com a falta de dinheiro lhes Conde de Penela 4000
não fervesse o sangue>> (Veiga, 1988, p. 218). A ausência de rei em Lisboa a Conde do Prado 3000
partir de r 583 teria contribuído para o reforço da aristocracia portuguesa, Conde de Abrantes 3000
Conde da Feira 3000
que nas cortes de aldeia sempre ia poupando ostentações e espalhafatos.
Conde de Lmhares 3000
E aumentando a pressão sobre os que lhes pagavam as rendas.

)
SOCIEDADE DE FORTE E VISÍVEL poder senhorial, intensamente contaminada COMENDAS
por comportamentos financeiros de uma natureza bem diversa. Os próprios
heroísmos querem-se convertidos em mais do que honra. Um acto valoro­
)
so, ou pelo menos com essa fama, uma vez a valentia pessoal evidenciada e
reconhecida, justificava uma tença, um casamento, um hábito numa ordem
militar, no melhor dos melhores, uma comenda.
As comendas, que transitavam para os laicos parte dos rendimentos e dos
491

--- -- - -
-
SOCIEDADE E CuLTURA

tributos pagos à Igreja, são ainda mais apetecidas depois de 1496, quando
D. Manuel consegue acabar com a obrigação do celibato (Góis, 1926, parte I,
cap. xvn, pp. 34-3 5). Aumentar o número das comendas de Cristo, que
O. Manuel consegue do papa (comendas novas), era indispensável para mais
servidores galardoar, sem que a Fazenda régia sofresse.
Em especial as comendas são concedidas por feitos em combate contra os
Mouros, pois pertencem às ordens militares de Cristo, Santiago e Avis. A dois
filhos de D. Nuno Manuel, seu guarda-mor, sem fortuna, manda O. Manuel
«que fossem a África vencer comendas», o que implicava estarem por lá uns
anos (Anedotas, 1980, pp. 68-69). O segundo filho do conde de Sortelha,
O. Simão da Silveira, era fidalgo muito pobre, a quem D. João III propõe que
vá a África «servir uma comenda» (ibid., p. 75).
O próprio rei tem de justificar a distribuição dessas rendas em troca de
serviços prestados. Além do mais porque se trata de converter «as rendas da
Igreja e o património dos pobres em rendas e patrimónios dos leigos e ri­
cos» (Dias, 1960, tom. II, p. 482). A Ordem de Cristo dispunha, em 1611,
de 456 comendas, com o rendimento anual de 90 090 258 réis, a de Santia­
go 8 5 comendas, no valor de 3 5 684 ooo réis, e as 45 de Avis 24 963 ooo réis
(Falcão, 1959, pp. 209-212).
Muitas vezes o rei não cumpria as suas promessas de tenças. O que era
mau, porque delas dependiam as vidas «dos fidalgos e pessoas principais
[... ] e além disso é o mais barato soldo por que se podem achar soldados»
(Sousa, 1938, vol. 11, p. 316). Havia-os que esperavam anos sem se verem
premiados. Francisco de Sousa Tavares, que recebera por casamento uma
comenda, bem desesperou. Deveria ser, no mínimo, de 100 ooo réis, «que é
a valia das mais baixas comendas que se dão a fidalgos» - o valor médio,

-
em 1611, era de 197 566 réis (Costa, 1980, p. r20).
O rei, para assegurar o necessário fluxo de ambiciosos, servidores e
aguerridos para o serviço de ultramar, tinha de encontrar formas de com­
pensação equilibrada. Por isso vai conceder os comandos das fortalezas ape­
nas por três anos, numa rotação que a bastantes permitia esperar pela apro­
priação de riquezas ou que atestados actos de bravura se convertessem em
recompensas - embora com o defeito de mal tratadas, como se «vinhas de
renda» (Costa, 1983a, p. 49). D. João III dá um posto de capitão-mor para a
Índia a D. Francisco Rolim, para que não tivesse de vender a sua vila da
Azambuja. Fê-lo a pedido do conde da Castanheira, que bem poderia ter
beneficiado com a compra desse senhorio. Comportamento de ajuda a um
fidalgo em apuros, que remete para a solidariedade horizontal entre privile­
giados (Anedotas, 1980, pp. 124-r25; Atienza Hemández, 1987, p. 16). Por­
ventura de um mesmo «partido» na corte. A concessão de viagens também
permitia acrescentar riqueza.
O rei nem sempre atendia aos requerimentos de tenças e mercês, em es­
pecial sendo criticado pelos soldados velhos que as pediam e as viam escusa­
das (Couto, 1980). Fica a honra: os <<serviços feitos aos reis de Portugal
eram os mores morgados dos reinos», na empáfia pelintra de Francisco
Pereira Pestana (Costa, 1983a, p. 81). Não esquecia outros. A António da
Silveira, o herói de Diu, coube a capitania do Machico, que a vendeu mais
tarde, por não coar dinheiro nas suas mãos. D. Álvaro de Castro, filho de
D. João de Castro, recusa a capitania do Faial e Pico, preferindo Fonte Ar­
cada e seu termo, com jurisdição cível e crime (Arquivo, 1981-1984, vol. 1v, til
pp. 220-225).

MORGADOS E CAPELAS COM AQUILO QUE OBTINHAM, procuravam os fidalgos terras onde instituir
morgados. É o que está no centro dos esforços destes ambiciosos que arris­
cavam à Índia e aos seus trabalhos. Com a instituição de morgado promo­
via-se a <<conversação do nome, família e nobreza das pessoas que as insti­
tuíram e a vincularam os bens que com mais renda e posse os pesuidores
pudessem ilustrar a família que decendiam e servir a seu rei na guerra e na
paz» (Costa, 1983b, p. 260). Um ou outro consegue, como Martim Afonso
de Sousa, «um arrezoado morgado» (Couto, 1777-1788, Década v, parte n,
cap. XI, p. 458). Morgados que se desejava terem por base a propriedade
492
A SOCIEDADE

rústica (a mais honrosa e procurada) e urbana (Brito, 1991, p. 197). Tam­


bém se vinculavam padrões de juros, como o morgado constituído por
Francisco de Sousa Tavares, bravo capitão de Calecut, Cananor e Diu, num
padrão de 200 ooo réis anuais que recebia na alfândega de Aveiro (Costa,
1980, p. 120). Por dificuldade de instituir um vínculo imobiliário em terras
de bom rendimento?
Em Entre Douro. e Minho já em 1512 se entesourava em taças de prata,
«porque a terra é muito apertada e não terem onde [ ... ] empreguem seus di­
nheiros porque os três coartos da terra são eclesiásticas e do rei e dos fidal­
gos que se não poderão vender» («Uma descrição», 1959, p. 457). Muitos
anos depois «acontesse poucas vezes se achar renda de herdades» para insti­
tuir vínculos. Por isso em 1565 Francisco Pereira de Miranda, que fora capi­
tão em ·Chaul, investe 280 ooo réis a 16 por milheiro num padrão de juros,
que vincula a um futuro morgado, enquanto aguarda por uma oportunida­
de de adquirir bens de raiz (Brito, 1991, p. 187). Seria uma situação a gene­
ralizar-se? Estava a tornar-se rígida a propriedade da terra, com a extensão
de bens da Igreja, de morgados e de capelas, o que tomava normais (e pouco
visíveis) os morgados instituídos sobre valores em papel? Morgados ou reserva
de capital até ao investimento no vínculo? Ou ambas as soluções? Em vão os
fidalgos requereram nas Cortes de 1581 que os bens de raiz herdados pelos
mosteiros e igrejas fossem vendidos. O que permitiria uma maior mobilidade
da propriedade da terra (Santarém, Provas, parte II, 1828, p. 83).
Em 1619 quase todos os bens de raiz em Entre Douro e Minho estariam
em mosteiros e igrejas. Neles se iam incorporando ainda bens não vincula­
dos, impedindo a constituição de novos morgados (Silva, 1985, pp. 271-
-272). Sobre a propriedade recaíam encargos variados. Encontrar um alódio
seria difícil. E os morgados devem instituir-se sobre «bens de raiz forros, li­
vres e desembargados» (Costa, 1983b, p. 261). Daí também as dificuldades
e a preferência pelos padrões de juros? A procura aumentaria em muito o
preço da terra, como é de supor (Costa, 1983a, p. 60), mais difícil se tor­
nando a sua aquisição?
A construção de casas apalaçadas, mostrando uma nova riqueza, talvez ti­
vesse consumido parte dos tesouros da Expansão. Mesmo quem não saía do
....
reino (embora com interesses no ultramar) se esforçava por marcar a sua
posição social. Garcia de Resende dispõe no seu testamento que na sua casa
grande haverá uma «torre honrada» com as suas armas em pedra mármore
(Ribeiro, s/d, p. 336).
Muitas riquezas foram enterradas nas igrejas e conventos, para maior gló­
ria de Deus. A religiosidade exacerbada, conjugada com a ostentação glo­
rificadora do nome num local imperecível, leva à entrega dos bens aos
templos. A instituição de capelas era uma forma comum de articular um
investimento fundiário com a Igreja. Garantiam-se missas para salvação das
almas e uma boa sepultura, alimentavam-se mais uns quantos clérigos, ha­
via segurança de que o capital ficava a coberto de tentações mundanais. Mi­
guel de Moura, tarimbeiro da corte e partidário afortunado de Filipe II,
amealhou larga riqueza; não tendo filhos, gastou tudo quanto tinha em relí­
quias e em um convento que com elas dotou (Chronica, 1840, pp. I07-144).
De doações aproveitaram os jesuítas alguma coisinha, ficando com os enge­
nhos de açúcar que tinham sido de Mem de Sá (Documentos, 1954-63, vols. II
e m). Os agostinhos da Graça de Lisboa viraram·-se para os bens vinculados
por Afonso de Albuquerque (Azevedo, in A.H.P., vol. I, 1903, p. 158) ...
Porque as corporações religiosas também tinham as suas estratégias de engran­
decimento patrimonial. Em 1522, as clarissas de Santarém aproveitaram a
tremenda crise do ano anterior, comprando pequenas courelas alodiais -
nada menos de 44 -, que depois aforaram aos que as venderam (das gran­
des crises beneficiavam «senhores e homens possantes») (Costa, 1983a,
p. 60). E conventos.
Sá de Miranda preferira os tranquilos agros de Basto à tumultuosa vida
da corte. Esta «moda» europeia de retiro (Huppert, 1983, pp. 265-290), que
em Portugal também se manifesta, é canalizada depois sobretudo para os
conventos. Para finais do século a vida religiosa toma-se um atractivo para
os que já nada esperam de honras mundanais: muitas viúvas professam, os
493

..___.. ·--
SOCIEDADE E CULTURA

próprios titulares (como os condes de Vimioso) não escapam a essa necessi­


dade de pacificação interior. Co� o refúgio na religião vão-se algumas for­
tunas. Com dinheiro fresco da India mais se enriquecem essas casas de de­
voção.

CLIENTELAS Os PODEROSOS SÃO CENTROS de distribuição de poder e riqueza. Em seu


redor constituem-se grupos de parentelas e clientelas. A cada mudança dos
titulares de cargos, de que se esperavam favores, tudo tem de recomeçar.
«Senhor, os homens da India são já enfadados de sempre servir com muitos
trabalhos, e grande pobreza, de que vem a morrer no esprital, os que não
morrem no mar ou na guerra. E quando esperam mercê de satisfação, então
se vai o Governador com que serviram, e tornam a começar de servir de
novo com o Governador que vem; e assi são velhos no serviço e novos no
merecer» (Correia, 1975, livro IV, cap. IV, p. 19). Mercês e favoritismos.
Afonso de Albuquerque falha a primeira instalação em Ormuz, entre outros
motivos, por inábil protecção aos sobrinhos (Barros, 1974-1990, Década n,
livro n, cap. v, p. 72). Logo o primeiro vice-rei, D. Francisco de Almeida,
levara o filho D. Lourenço como uma espécie de número dois. O mesmo
fariam muitos outros, como D. João de Castro. D. Duarte de Meneses
accua em conjunto com seu irmão D. Luís. De um outro, D. Buarte de
Meneses, em fins do século, se diz que quem governava era um tio, Rui
Gonçalves da Câmara. Irmãos, filhos, tios, sobrinhos, parentes, redes de se­
guidores ... Um governador nomeado é um grupo familiar que entra na ex­
ploração de um posto. O velho D. Pedro Mascarenhas foi vice-rei, em par­
te por não ter filhos. Afinal tinha sobrinhos, q\le souberam aproveitar-se
(Couto, 1777-1788, Década vn, livro I, cap. I, pp. 30-33, e cap. IV, p. 40).
O mesmo se passou no Brasil, com nota especial para D. Duarte da Costa.
Vice-reis, governadores e capitães de fortalezas, se sabiam ser liberais,
atraíam outros fidalgos, nobres e soldados ao seu serviço. Os fidalgos endi­
nheirados dão alimentação (mesas) aos soldados durante os períodos em que
não há combates, juntando assim clientelas fiéis, ou pelo menos gente agra­
decida e de sua obrigação. Enriquecer dependentes e servidores dá dignida­
de ao cargo e à pessoa (Couto, 1980, p. 39).
As clientelas tomam a peito as vaidades e prosápias dos senhores cujos
homens eram. Fernão Mendes Pinto narra como no interior da China pri­
sioneiros discutem sobre a maior ou menor moradia na casa real de Madu­
reiras e Fonsecas (que estariam bem longe), «nacida de üa certa vaidade que
a nossa nação portuguesa tem consigo, a que não sei dar outra razão senão
ter por natureza ser mal sofrida nas cousas da honra» (Pinto, 1974-1984,
cap. cxv, vol. III, pp. 3-4). Todo o imaginário colectivo das linhagens trans­
ferido e assumido pelas respectivas clientelas. São estes pontos de vaidade de
honra «matéria de toda a paixão da nação Português» (Barros, 1974-1990,
Década m, parte r, cap. VI, p. 16).
A manutenção de clientelas das grandes casas também era uma obrigação
do monarca. D. Manuel, para acrescentar a já enorme fortuna e prestígio
dos Braganças, pede ao papa que 15 igrejas passem a comendas de Cristo, a
serem providas como padroado pelo duque, em conjugaçãv com o monarca,
que concederia o respectivo hábito da ordem (Gavetas, 1962, vol. II, p. 513).
Apoio e sustentação do status dos aristocratas, mas não sempre, nem quando
as rendas do próprio rei eram postas em causa (ibid., pp. 627-632).
Nesta sociedade fortemente aristocrática, o rei actua em simultâneo ..co­
mo pai da grande família dos súbditos e como primeiro dos senhores.
A todos deve alguma coisa, para mostrar a sua autoridade. Crítica de um
italiano: «Todos vivem com o rei, todos recebem rendas das rendas do
rei e todos roubam o rei» (Marques, 1987 b, pp. 212-213). «Os reis por
acrescentar / as pessoas em valia, / por lhe serviços pagar, / vimos a uns
o dom dar / e a outros fidalguia», assinala Garcia de Resende (Resende,
1902, vol. III, p. 213).
Nobrezas e fidalguias «são üs meros acidentes» que se perpetuam «na
substância das terras em que existem; e que tem por fundamento a riqueza,
sem a qual não permanecem as calidades das pessoas» (Maldonado, vol. I,

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A SOCIEDADE

1989, p. 168). O que contava era ser fidalgo: «Homem que não é fidalgo
não é chamado pera nada» (Couto, 1980, p. 90). A menos de ser rico, que a
fidalguia poderia vir a obter. Dizia-se na corte de D. João III que a felicida­
de de um português consistia «em chamar-se Vasconcelos; logo ter uma
quinta; depois seiscentos mil réis de renda». Nome de família ilustre, bens
de raiz, bom rendimento.
A ascendência fidalga, mesmo que por bastardia, devia ser tida como hon­
rosa. Espantado ficou D. Constantino de Bragança quando um bastardo de
D. Teodósio, duque de Bragança, recusou o reconhecimento da paternida­
de, coxp. as preeminências, postos e lugares que se lhe abriam. Não queria
pôr em causa o bom nome da mãe (Anedotas, 1980, pp. 140-1 41 ). Manifes­
tação de dignidade desorientadora para os aristocratas, para quem a honra
não passava pelo respeito da virtude da gente miúda.
A plasticidade social e a possibilidade de mudança de estado e condição
estavam abertas, desde que o rei assim o entendesse e o comportamento in­
dividual a isso desse acesso. Nem de outro modo a Expansão teria represen­
tado um arra'ctivo. O indivíduo contava, e o individualismo dos comporta­
mentos revela essa abertura.

GENTE NOBRE DA GOVERNANÇA DA


TERRA E OFICIAIS RÉGIOS
O re&imento dos capitães-mores e
"ToDALAS NAÇÕES TEM SEUS TERMOS de nobreza, e honra, causa dos maio­ mais capitães t.:.r officiaes da gente de
res trabalhos da vida», sentencia João de Barros (Barros, 1974-1990, Déca­ cauallo & de pee, constante das
da r, livro III, cap. IX, p. 103). Também os estratos sociais se diferenciam Leys e provisões que e/ Rey dom
pelos conceitos centrais motivadores da sua actuação. Por I 570, o procura­ Sebastião fez depois que começou a
Jtovernar, Lisboa, Francisco
dor d'el-rei no Porto, Francisco Dias, regista quais «as honras de que os ho­ Correia, r 570.
mens mais prezam nesta cidade do Porto»: <<serem vereadores», «levarem O apoio do monarca vira-se
tochas no dia de Corpus Christi» e «levarem as varas do páleo em as procis­ expressamente para as oligarquias
sões e festas do ano». Como pessoa honrada que era, o nosso informador locais, reforçadas com a força
regista que foi vereador, que levou tocha c varas de pálio. No entanto, ser legal para fazer homens de
vereador mais de uma vez <<não é de boa suspeita>>. Poderia querer dizer que armas. Militariza-se a sociedade
(mais tarde falar-se-á mesmo de
andava metido em alguns negócios e que influenciaria demasiado pelo lugar capitães-veê";;'adorcs). É uma lei
ocupado. Também era honroso ser guarda-mor e superintender na defesa fundamental para se entender a
da saúde da terra, com não pouca autoridade. O que permitia muitos abu­ sociedade portuguesa.
sos, pelos degredos e impedimentos de entradas por que eram responsáveis. FOTO: BN, LtSilOA.
Não menos honrada era a escolha para eleitor, ou seja, arrolar os que ti­
nham qualidade e condição para ocupar os lugares nas câmaras. Francisco
Dias acrescenta, como desabafo: «Estes Deus sabe se por afeição se por bem
da República elegem; eles o sabem» (Dias, 1937, p. ro2). A honra para os
cidadãos não se confundia, pois, com a que mereciam, exibiam e superiori­
zava os fidalgos.
Os estratos superiores da sociedade encontravam-se desde há muito deli­
mitados. Um grupo que lhe é inferior ganha importância no decurso do sé­
culo XVI: o da gente nobre da governança das terras. Designação que vai
substituindo a anterior de cidadãos e homens-bons que regiam as câma­
ras (embora persista na lei). Cidadãos que se vão aproximando dos fidalgos
(Carvalho, 1922, pp. 22-23). Por 1570, no Porto, já se distinguem apen,1s
dois grupos: nobres e mecânicos (Cruz, 1967, p. xx1). De algum modo essa
elevação na linguagem das honras resulta de o rei assentar sobre as câmaras
delegações várias de poderes, num neomunicipalismo querido e a ganhar
força. Com acrescidas responsabilidades, as oligarquias que dominam as câ­
maras, os principais das terras, firmam um imenso poder efectivo de man­
do (potestas). Os que detinham os ofícios concelhios eram olhados, pela sua
presença e papéis sociais, como os que mandavam - sem que isso afretasse
o poder real, a auctoritas. Apesar de filtrarem e canalizarem, quando não
condicionarem, o exercício do poder régio. Os mais honrados, os princi­
pais, os cidadãos que andavam na governança da terra, dispunham de um
mando efectivo e acatado: guardas-mores da saúde, ocupando (desde 1569-
-1570) importantes postos militares nas ordenanças, controlando o processo
de cobrança de sisas, fintas e outros tributos, decidindo das taxas dos ofi-
495

--- '
SOCIEDADE E CULTURA

cms mecamcos e fixando as jornas dos trabalhadores (e outras funções),


sendo sempre chamadas às mais importantes decisões das comunidades lo­
cais, deviam viver «limpamente de sua fazenda» (Livro 2.º, 1958, p. 112).
De um modo geral, esta gente tem bens de raiz e rendimentos da terra.
Não obsta a que alguns, em núcleos urbanos de movimento comercial, co­
mo Viana de Foz de Lima ou o Porto, fossem mesmo mercadores. Em ge­
ral não o eram. E gozando os privilégios da sua qualidade de cidadãos, não
a perderiam se se dedicassem a negócios. Não de um modo ostensivo, de
tenda aberta. Mercadores de grosso trato, não vendendo e comprando pelo
miúdo, vivendo à lei da nobreza, acabavam por conseguir elevar-se � no­
bres (Sjlva, 1985, pp. 329-331). Os mercadores de profissão, em geral, fica­
vam numa posição marginal, indefinida e mal delimitada, não figurando nas
vereações. Muitos deles afazendados, alguns mesmo ricos e muito ricos,
constituem uma «classe» poderosa que se não exprime numa «ordem» (ou
«estado») jurídica (Mousnier, 1988; Burke, in Bush, 1992). Alguns acaba­
riam promovidos à cidadania e até à fidalguia. Questão de tempo e de uma
estratégia bem montada. Mais difícil de subir para os provenientes de ofí­
cios mecânicos. No entanto, o rei podia conceder-lhes privilégios de cida­
dãos. Entre 1521 e 1527 receberam essa «cidadania» três ourives de Coim­
bra (Loureiro, 1964, vol. n, p. 236). Pela sua riqueza? Por prestarem
serviços com dinheiros, funcionando um pouco como se fossem banqueiros
(Autos,. 1989, p. 219)?
A aristocracia local dos cidadãos e homens-bons enobreceu-se, criou os
seus próprios pergaminhos, que a lei acrescentou, ao dispor que os que ti­
vessem sido juízes e vereadores passassem a ser isentos de pena vil por duas
vidas e os que tivessem sido procuradores apenas por uma vida. Ora a pena
vil era a grande distinção entre peões e gente de mor qualidade, decisiva fron­
teira social (Godinho, 1975, pp. 75-78). Enobrecimento como reforço ao
status aberto pelos privilégios dos capitães das ordenanças, que as câmaras
escolhiam entre os seus, desde l 570, e que davam a categoria de cavaleiros
aos que tais postos tivessem, mesmo que o não fossem.
A distinção legal diferenciadora para os que andavam nos governos mu­
nicipais aparecia, embora de modo menos claro, nas Ordenações manuelinas.
Aí se dispunha que vereadores e juízes de alguma cidade não seriam meti­
dos a tormento «em algum caso» (livro v, tít. LXIV), o que já vinha do tem­
po de D. João I (Ordenações afonsinas, livro v, tít. LXXXVII). É de crer que as
vilas (pelo menos as notáveis) fossem obtendo os mesmos privilégios. E o
seu desrespeito podia causar complicações. Em 1521, em Viana de Foz de
Lima, o juiz de fora procede à prisão de Fernão Pais, pondo-o a ferros d'el­
-rei. Protestos imediatos junto do corregedor da comarca de Entre Douro e
Minho, que repôs as coisas no são: «Todo o homem que entrava numa vila
nas enleições dos juízes e vereadores e procurador não era preso a ferros,
salvo sobre sua menagem, e esto nas cousas em que o eram os cavaleiros fi­
dalgos» (Moreira, 1986, p. 86). Mais grave ocorreu no Porto, em 1602,
quando os vereadores foram presos <ma Cadea pública desta cidade sem lhe
guardar menagem nem qualidade de suas pessoas>>. É que gozavam dos pri­
vilégios de «infanções que tem os vereadores desta cidade e cidadãos dela>>
(Cruz, 1943, p. 36). Pertencer à gente nobre da governança, expressão que
começa a generalizar-se pelos anos de 1570, era honroso e vantajoso.
Um dos privilégios mais estimados era o de cidadão do Porto. Conside­
rava-se uma espécie de nobilitação. Mesmo para alguém que por lá não
vivesse. Um morador na Terceira sentir-se-ia muito honrado se o rei lhe
concedesse os privilégios de cidadão do Porto (Arquivo, 1981-1984, tom: v,
p. 137). Não podia ser preso na cadeia pública, mas em sua casa, sob mena­
gem; podia vestir sedas, ostentando assim uma supremacia evidente (Privilé­
gios, 1987, pp. 2-17).
A gente nobre tem de se apresentar publicamente como a mais importan­
te da terra. Há momentos em que estes poderosos se mostram ao todo da
população que regem de um modo especialmente brilhante: as procissões
máxime do Corpus Christi. Cada grupo profissional está encarregado de
uma parte de um conjunto complexo, que culmina com os principais da

.
... .�....·-···---
-�._. terra levando tochas e pegando às varas do pálio. Mesmo entre estes as pre-

..
496

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.,

A SOCIEDADE

Famílias da oligarquia do Porto,


suas ligações familiares e lugares
camarários ocupados (Brito,
Sús 1991).
'J}-oilos
cJ,,Sá.
<J Ley sobre os vestidos de seda &
.l!,m,� ('ame/o,
feitios delfrs e das pessoas que os
podem trazer, Lisboa, 1 570. Numa
l1fJdul'f'Í­ sociedade que devia exteriorizar a
i'tlS pertença social de cada um, a
maneira de vestir e os tecidos
dos vestidos, como os
ornamentos , estavam fortemente
Ú!Õ<.'S Tat'ar('s regulamentados. Trazer ou não
Jfa;.,,.,içvs sedas era expressão de
superioridade ou inferioridade.
Como o porte de espada. As
t'igw·i i�fracções implicavam penas,
Hua., fü(li
('u,reia.s devidamente julgadas e aplicadas
Baiõe.'i.
pelos tribunais.
IJ('
@ BPM, Porto.
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G:J Pron1f'(l.l/or da ('l{lad�

cedências são minuciosamente fixadas. A sociedade mostra-se arrumada na


sua forma ideal. Sem confusões possíveis («Acordos e vreaçóes», in Bracara
Augusta, tom. XXXI, 1977, p. 548).
Os nobres respeitam as posições hierárquicas. Para a repartição das sisas,
como de outros encargos, procediam à escolha dos responsáveis em atenção
aos estratos representativos. Em Coimbra, em I 567, para a sisa, foram no­
meados «por parte dos cidadãos o doutor Jorge de Sá e Gonçalo Leitão ci­
dadãos desta cidade e por parte dos mercadores e tratantes João da Fonseca
e Heitor Fernandes e por parte do povo Afonso Nunes, ourives e Domin­
gos Lopes, luveiro» (Sisa de 1567, 1970, p. 2). Trinta e dois anos passados a
câmara escolhe «Fernão Soares Pais e Bento Arrais cidadãos para os nobres,
497
SOCIEDADE E CuLTURA

e António Fernandes mester da mesa e Estêvão Francisco para os de baixa


condição e Pero Enriques e. Pero Serrão, mercadores para os mercadores»
(Sisa de 1599, 1973, p. r). Diferença sensível: o cidadão passou a significar no­
bre, abrindo-se mais ainda a distância em relação ao povo, que agora se diz de
baixa condição. Os mercadores, que vinham em seguida aos cidadãos, passam
a último lugar, numa evidente despromoção.
As limitações introduzidas ao disposto nas Ordenações de 1603 pela provi­
são de 23 de Março de 1605 e pelo Alvará de 12 de Novembro de 1611 faci­
litam um processo velho de ligações familiares que se pode qualificar de en­
dogâmico. Os elegíveis são todos parentes (Magalhães, 1988, pp. 323-334;
Brito, 1991, pp. 12-r 5). O que por vezes torna o apuramento das câmaras
difícil. O que tinha de estar previsto: dos três vereadores da Praia, permane­
cia o mais velho para o ano seguinte. Se acertava a que um dos outros esti­
vesse familiarmente muito próximo do que ficava, elegiam outro (Arquivo,
1981-1984, vol. v, p. 371). Era comum que isto acontecesse, pois os elegí­
veis cada vez mais escasseavam.
De fora do poder exercido localmente por esta gente nobre vai ficar a de
Lisboa, sem acesso ao governo municipal a partir de 1572 (Coelho e Maga­
lhães, 1986, p. 31). Nem por isso os antigos cidadãos de Lisboa dispensam a
designação de nobres e cavaleiros do leal povo de Lisboa (Soares, vol. 1,
1953, p. 48). Restava-lhes participar na eleição dos procuradores às cortes e,
a partir de 1596, constar da pauta dos almotacés (Oliveira, 1887-1888,
tom. I, p. 90). Força política reivindicativa tinham aí os mesteres, em repre­
sentação da Casa dos Vinte e Quatro. Dos eleitos anualmente, quatro ser­
viam como procuradores junto da vereação, dos restantes dezoito um era o
juiz e outro o escrivão (Oliveira, 1620, fl. 143 r-v). A hereditariedade che­
gará. Retira-se a pena vil de açoutes, baraço e pregão aos que tiverem servi­

-
do na Câmara de Lisboa em 1524, o que D. Sebastião alarga em 1575 aos
filhos, «por honra e autoridade do dito ofício e trabalho continuo que nele
tem». Aproximação ao enobrecimento, que D. Manuel já equiparara a es­
cudeiro, enquanto em funções (Langhans, 1948, p. r29-139).
Servir de almotacé permitia a expectativa de uma ascensão social ao gru­
po dos cidadãos. Nem sempre. Em l 543 Coimbra fica autorizada a escolher
almotacés entre os que fossem escudeiros, dizendo-se que estavam abaixo
de cidadãos, não obstante terem cavalo e armas (Loureiro, 1964, vol. n,
p. 163). Alguns, por via de servirem de almotacés, arrogavam-se o privilé­
gio de cidadãos. Ora o rei vai fechar expressamente essa porta em 1605, ano
da provisão que também inibe o alargamento a possíveis vereadores e em
dispositivo em que também se encontra a mão do aristocrático desembarga­
dor Damião de Aguiar. O rei determina que só sejam escolhidas pessoas
idóneas, netas e filhas de cidadãos (Livro 2.º, 1958, pp. 216-217). Mas logo
a seguir, em 1611, entende o Desembargo do Paço que não devem ser al­
motacés os vereadores, mas os de uma qualidade mais baixa, que servem de
procuradores, desde que «vivam à lei da nobreza» (ibid., pp. 23 5-236). Ci­
dadãos, mas um pouco menos qualificados. E entraram alguns filhos e ne­
tos de mecânicos, obrigando a nova provisão, em que se vedava a escolha
de almotacés dessa origem (ibid., p. 253). O que fica legislado para todo o
território por um alvará de 5 de Abril de 1618, em que se fixa que os almo­
tacés seriam da gente nobre «e dos milhares da terra», que neles se deviam
perpetuar os cargos e «nunca neles entrarem descendentes de oficiais mecâ­
nicos». Muito menos de nação infecta (Repertorio, 1815-1819, n.º 6II, e Ma­
galhães, 1985, p. 28). É o fecho contra aventuras permissivas. Todavia, na
sociedade ainda se sentia alguma vibração social.
Privilégios por ascendência ou mercê régia, defendidos publicamente por
um continuado estilo de vida prestigiante. O reforço e ·limitação numérica
dos agora homens nobres convergiu para dar consistência à aristocratização
concelhia em marcha. A ligação entre os eleitos para os cargos municipais e
o conjunto dos vizinhos atenua-se, se é que não se perde. Cada vez menos
se assiste a assembleias a que o povo vem chamado por pregões do porteiro
e em que há decisões «às mais vozes» (Moreira, 1986, pp. 88-89). A gente
nobre aliou-se, na maior parte dos casos, com a velha fidalguia, adaptando-lhe
os comportamentos. Houve casamentos. Não se desarrumou o conjunto hie-
A SOCIEDADE

rarquizado. Sem se confundirem, partilhavam o governo das terras. A ((nobre­


za» da gente nobre da governança era local.
A gente nobre, apesar da aproximação e até convergência aos fidalgos e
senhores, continua, no entanto, a pagar para os encargos concelhios. O que
não lhe agrada. Procura, por isso, acabar com excepções. É o que se lê co­
mo queixa generalizada dos concelhos em 1609, quando se prepara o dona­
tivo para Filipe III vir ao �eino. Escreve a Câmara de Leiria: ((Não haja ex­
ceição de pessoas, de qualquer estado que sejam porque muitas vezes
acontece, e assim é, que nas pessoas isentas, e que se podem isentar, está
quasi toda ou a maior parte das fazendas da terra». No que convém a pró­
pria Câmara de Lisboa (Oliveira, 1887-1888, tom. II, pp. 216).
Com esta gente nobre a realeza alargava o grupo de apoio aristocrático,
sem novos encargos. A gente nobre era-o localmente, tinha duas gerações
para se firmar ou desaparecer junto do povo. A plasticidade da nova condi­
ção é ainda grande: alguém é nobre enquanto se comporta como tal.

PARA A POSIÇÃO FICAR solidificada deve articular-se com uma passagem UNIVERSIDADE
pela universidade e entrada em ofícios régios que requerem graus académi­
cos. Manutenção ou promoção condicionadas. Para melhor resultar, havia
que meter a Igreja de través. Universidade e altos postos prclatícios tende­
rão a convergir depois das reforma de 1537 (Dias, 1969, tom. II,
pp. 733-735). Os canonicados e prebendas começam a encher-se de diplo­
mados. E por isso mesmo a Faculdade de Cânones é a mais atractiva e fre­
quentada ( quadro 1v).

Quadro IV
Média anual das matrículas realizadas na Universidade de Coimbra por quinquénios

Faculdades
Anos lectivos Total
Teologia Cânones Leis Medicina
....
1573-1579 99 414 238 59 810
1579-1584 54 523 248 52 877
1584-1589 54 718 232 45 T049
1589-1594 83 817 240 61 1201
1594-1599 98 730 200 81 1109
1599-1604 74 ÓOI 172 66 913
1604-1609 68 640 212 68 988
1609-1614 69 705 200 62 1036
1614-1619 56 781 2!0 66 1113
1619-1624 43 678 286 66 1073

Estatística das matrículas realizadas na Universidade de Coimbra cm cada quinquénio,


desde o ano de 1573 até 1624

Faculdades
Anos lectivos Total
Teologia Cânones Leis Medicina

1573-1579 <•) 296 1242 713 179 2430


1579-1584 271 2614 1240 263 4388
1584-1589(,) 214 3874 928 180 4196
1589-1594 414 4085 1202 3o6 6oo7
1594-1599 490 3648 1001 407 5546
1599-16o4 371 3004 859 333 4567
16o4-1009 ú) 273 2561 847 271 3952
1609-1614 343 3524 1004 312 5183
1614-1619 278 3907 1050 329 5564
1619-1624 213 3389 1431 333 5366

<•> Estes números abrangem apenas três anos lectivos, os de 1573-1574, 1577-1578 e 1578-1579: não exis­
tem os livros de matrícula dos três anos lectivos de 1574 a 1577.
(,) Falta o livro de matrícula do ano lcctivo de 1584-1585, referindo-se, por isso, a quatro anos apenas os
números aqui registados.
(1) São relauvos a quatro anos estes números, pois não h,I registo da nutrfrula do ano de 1606-1607.
Segundo Vasconcelos, 1988, vol. 11, pp. 120-122.

499
SOCIEDADE E CULTURA

Mais relevante é o avolumamento do alto funcionalismo cursado na uni­


versidade. O enquadramento estabelecido por D. João III e as grandes re­
formas dos anos de regência do cardeal D. Henrique, e que depois conti­
nuam, instalam uma burocracia ao serviço da coroa. Para isso já se contava
com a produção de graduados para que se fizera, em 153 7, a reforma da
universidade.
A devassa de 1619 mostra alguns filhos de desembargadores, corregedo­
res, ouvidores e provedores e juízes de fora, de um vereador de Lisboa
(também desembargador), de um cirurgião do Hospital Real, de um conta­
dor das sete casas e de altos funcionários, magistrados e deputados dos su­
premos tribunais do reino, gente de dom e familiares e criados de eclesiásti­
cos a frequentar os estudos em Coimbra. Também aos escolares se exigia
um comportamento indiciador de uma vida exemplar. O Dr. António Ho­
mem refere que se apresentava com <<quietação, modéstia e recolhimento»,
como sempre agiu nas suas lições e conselhos, sendo exemplo de boa disci­
plina (Autos, 1989, p. 482). Como se devia exigir a pessoa de semelhante
qualidade. Pelo estudante da Corte na aldeia se fica a saber que na universi­
dade, pela «vista dos Doutores prudentes, na lição dos mestres escolhidos,
na comunicação dos nobres bem acostumados, na conversação modesta dos
religiosos, está o nobre em uma contínua lição de polícia». Essa consiste na
«compustura do rosto», na <<quietação do corpo», na <cmodéstia do trajo»,
na pontualidade na cortesia», no <ccuidado no falar>> e em «não se querer al­
gum fazer singular entre os outros» (Lobo, 1945, pp. 319-320). Aí se en­
contrava o coração do reino e se preparavam as operações principais para o
regimento da vida civil. Seria bom.
Os magistrados há muito que detinham privilégios próprios que os apro­

...
ximavam da fidalguia. Crescem em número na corte (e no Porto, na Índia,
na Bahia, quando se criam as respectivas relações), com o aumento de com­
plexidade dos órgãos centrais. Estão presentes um pouco por todo o terri­
tório à frente das divisões administrativas (comarcas e provedorias) e nos
municípios onde havia juízes de fora. É um novo estrato, que tem inte­
resses próprios. E que se situa próximo da gente nobre por os seus ofí­
cios os ligarem. Mais em reforço mútuo do que em concorrência. O ca­
bido de Coimbra emparceira-os na morte, em 1590. Enquanto o sino
grande tangeria pelos bispos, cónegos e beneficiados e pessoas ilustres, os
meãos só pelos cidadãos e oficiais da justiça. E «por toda a mais jente se
tãojão os sinos menores» (Acordos, 1973, p. 36). António Pereira Marrama­
que zurze em 1558 nos corregedores, juízes de fora, contadores e provedo­
res, aos quais a velha fidalguia devia fazer justiça (Miguel, 1980, p. 217). Da
magistratura se diz estar muito «levantada e enobrecida» em 1618 (Lobo,
1945, p. 319). Ganhara raízes, obtivera um reconhecimento que se vai re­
forçando. A fidalguia terá saudades do bom senhorialismo dos tempos de
D. Afonso V.
Porém, a formação dos magistrados não os levaria desde cedo a sentir a
divisão dos privilégios como alguma coisa de profundamente injusto, muito
em especial a fiscalidade? Fugiriam os legistas e canonistas à tentação de
imaginar uma sociedade em que a justiça fosse menos desigual? É interroga­
ção que deve ficar. Talvez a percepção de alguma iniquidade explique por
que a Câmara de Lisboa propõe, em 1609, que «pessoa algüa, de qualquer
calidade e condição que seja», fique escusa de pagar na finta geral para a
vinda do rei (Oliveira, 1887-1888, tom. II, pp. 216-228). Aliás, nunca como
anteriormente há sinais de tanta preocupação das câmaras com os «clamores
no povo miúdo». Em aparente defesa deste vêm os vereadores e pessoas
que costumam andar na governança. Até os eclesiásticos de Braga, escusos
de pagar, o fizeram voluntariamente, para evitar uma finta geral (ibid.,
pp. 313-314 e 318). Aliança momentânea, ou sentimento geral de repugnân­
cia por uma contribuição que parecia demasiado pesada e que poderia acar­
retar desagradáveis perturbações?
A arquitectura política do absolutismo assenta, em boa parte, nos tribu­
nais régios e nos poderes locais (Amaral, 1945, p. 47), como parte constitu­
tiva essencial do novo ordenamento do corpo da República. A estrutura so­
cial que o vai definindo também se lhe vai ajustando.
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A SOCIEDADE

MOBILIDADE E CRISTALIZAÇÃO SOCIAL


As ALTERAÇÕES DE COMPORTAMENTO e ideais (que se afastam entre si) e a
:nobilidade das pessoas neste «mundo tão mudado», de que fala Garcia de
Resende, embaraçam uma acatada velha arrumação. A dinâmica social sub­
·;ertia e não respeitava a desejada estabilidade? Numa sociedade fortemente
estratificada, que possibilidades se abriam à promoção social? Como ascen­
der na consideração dos contemporâneos? Ascensão individual e, por arras­
:.amento, da família a que se pertence?
Não são muitas as abertas por onde furam os que se propõem ir além da
qualidade e condição de nascimento. As saídas mais comuns, de fins do sé­
culo xv a princípios do século xvn, ainda são as da Igreja e a das armas.
E as universidades, fornecedoras da burocracia régia e eclesiástica. As alian­
ças matrimoniais jogam de forma decisiva em pretendidas ascensões e, so­
bretudo, na consolidação de posições alcançadas.

O HUMILÍSSIMO DOMINICANO D. Frei Bartolomeu dos Mártires foi arce­ BISPOS


bispo de Braga por indicação de frei Luís de Granada a D. Catarina, regen-

Os equilíbrios sociais passam pela


consideração do casamento como
ponto central de todas as
estratégias familiares. Para a
aristocracia, um casamento é uma
aliança patrimonial e de
alargamento de influência a novos
ou poderosos parentes. A
sacralização do casamento é, a
partir de 1540, mas sobretudo do
Concílio de Trento, uma das
grandes procupações da Igreja.
Exige-se a presença do padre e o
registo do acto. Condena-se a
bigamia, muito comum com a
forte emigração. Procura-se
também através das visitas
episcopais, controlar o
comportamento sexual dos
casados.
(O casamento da Virg em,
MNAA, Lisboa, Oficina lisboeta,
colaborações de Gregório Lopes e
Jorge Leal, c. 1520.)
IC> ANF/Instituto Português de
Museus.
FOTO: ABREU NUNES.
SOCIEDADE E CULTURA

te. Mas, depois, será obra do acaso a nomeação de seu sobrinho D. Diogo
Correia para bispo de Ceuta (Sousa, 1946-1948, livro V, cap. XXVII, p. 178)?
Também não deixa de escolher para alcaide-mor da sua Braga um primo,
cidadão de Lisboa. Sabidas virtudes as desse sortudo: fidelidade, lealdade,
esforço e limpeza. Resulta inesperadamente enobrecido depois, com as leis
das ordenanças de r 569 e I 570, ao passar a ser, por inerência, o capitão-mor
das companhias da cidade ( «Acordos e vreações», in Bracara Augusta,
vol. XXXVI, 1982, pp. 592-593, e vol. XXXVII, 1983, pp. 570-571). Manuel
Pereira, homem da família de D. Frei Bartolomeu, compra o cargo de al­
caide-pequeno de Braga e seu termo, em 1 572 (ibid, vol. xxxvm, 1984,
p. 398). As famílias dos prelados (os que vivem com eles, além de parentes
os criados e outros servidores) catapultavam os seus para os lugares dispo­
níveis. Nas terras onde se instalam procuram as melhores posições. Em vol­
ta da «família» de D. Fernão Martins Mascarenhas, cm Faro, de 1596 a
1615, giram alguns conflitos que perturbam a Inquisição (Magalhães, 1981).
Como estes todos os prelados, não tão santos como D. Frei Bartolomeu,
não tão corruptos como acaso D. Fernão.
Ter um filho bispo faria parte das ambições de grandes, títulos e fidalgos.
Sobre isso não poderiam montar uma estratégia, a não ser depois de ocorri­
da a escolha. A estratégia passa por confinar a transmissão de bens a um só
filho morgado e dote a uma só filha - dote generoso, para alcançar um
marido abastado. O descendente mais velho, a quem caberia a administra­
ção dos bens vinculados, alijava irmãos e irmãs que não podiam casar no
meio de origem por falta de rendimentos. Fazê-lo fora arriscava a uma de­
sonra que afectava toda a família - solução afastada.

-
FIDALGOS Nos ALTOS ESCALÕES DA SOCIEDADE apenas contava o interesse familiar e
não os sentimentos individuais: os filhos de António de Saldanha e de Rui
Lourenço de Távora tiveram ·casamento concertado com 12 e 8 anos (Anedo­
tas, 1980, p. 70). Não se considerava apenas a fortuna. O conde de Marialva
persegue e afasta o marquês de Torres Novas, rico sucessor no ducado de
Coimbra e Aveiro, e obsta ao seu casamento com a sua filha única e herdei­
ra, em benefício do pobre infante D. Fernando, filho de rei, que precisava
dos bens do prometido sogro (Sousa, 1938, livro r, vol. 1, cap. VIII, pp. 49-
-54). A junção das casas de Aveiro, Marialva e Loulé seria um exagero.
O rei tinha de evitar alianças que pudessem prejudicar o reino «ou ser causa
em algum tempo de revolução» (De Witte, 1980-1986, vol. r, p. 493). Ava­
liavam-se as ligações matrimoniais para não desequilibrar as posições relati­
vas das famílias. Por isso nos consórcios de grandes, altos funcionários e
mesmo simples fidalgos, o rei tinha sempre uma palavra a dizer. A sua au­
torização era indispensável, sob pena de afastamento da corte e de desgraça,
de recusa de tenças e, aquando da sucessão, não atribuição de títulos e de
mercês. Matrimónio sem licença significava quebrar o respeito devido ao
monarca. D. Jaime, duque de Bragança, foi desterrado da corte por ter ca­
sado sem dar conta ao rei (Anedotas, 1980, p. 85); acto mais grave do que
ter assassinado a primeira mulher ... Erro político castigado, desvario pes­
soal perdoado. A aproximação de famílias preparava-se devidamente. Luís
Álvares de Távora desespera ao saber que uma filha cisara pobre com um
primo: nem fazenda, nem novos parentes (ibid., p. 76). Porém, a estratégia
de manutenção de um capital simbólico de superioridade passa, em casos de
uma filha morgada, por casá-la na família. Que o nome se mantenha liga'clo
ao vÚ1culo, para «memória e conservação e aumentq» dos descendentes
(Costa, 1983b, p. 267).
Para consolidar posições na corte e para se incorporarem no estrito grupo
de grandes e títulos, os altos funcionários viram-se para o matrimónio dos
filhos nessas famílias. A sua posição no aparelho central da governação da­
va-lhes uma especial nobilitação aos olhos do comum. O património, o po­
der de intervenção junto do rei e os rendimentos o resto.
Só o rei podia conceder a alguém um título: duque, marquês, conde, vis­
conde e barão. E esses títulos não se transmitiam obrigatoriamente aos her­
deiros, pois se consideravam honras pessoais. Ter título implicava um esta-

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502

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A SOCIEDADE

dão que só com boa fortuna se podia sustentar. Numa historieta se lê que
D. Aleixo de Meneses recusara o título de conde de Vila de Rei, arguindo
•que era pobre pera título» (Carvalho, 1926, p. 233). Poucos foram os con­
cemplados: cerca de 25 titulares em 1550-1580, para 34 em 1590 e 46 em
1620 (Marques, vol. 11, 10! ed., 1984, p. 112). Amigos e leais servidores,
sempre.

A EXPANSÃO VEIO ABRIR novas vias de sobrevivência e de ascensão social SOLDADOS


ou, pelo menos, de manutenção de status). Primeiro foram as praças do
. orte de África. Era fácil ascender a cavaleiro e a escudeiro. Enxamearam.
.\!las logo um comando já não era para todos, e depressa algumas famílias se
instalaram no quase exclusivo desses postos, como os Meneses. Depois
abre-se o campo bem mais vasto do Oriente. Não são os filhos e herdeiros
das grandes famílias que se arriscam por estas paragens. Em r 537 os fidal­
gos velhos e ricos recusam a ida dos seus morgados ao socorro de Diu, ape-
ar de se preparar uma expedição com o próprio infante D. Luís à cabeça.
Escusam-se «porque a Índia fora descoberta pera comércio, e trato» (Cou­
co, 1777-1788, Década v, parte v, livro m, cap. vm, p. 271). As obrigações
militares dos grandes senhores, além-mar, paravam em Marrocos.
Nem se uer, pelo menos de início, os filhos segundos da aristocracia titu­
lada vão àf ndia. Soldados e diplomatas, os primeiros capitães-mores (Vasco
da Gama, Pedro Álvares Cabral, João da Nova, Duarte Pacheco Pereira,
Francisco e Afonso de Albuquerque ou Tristão da Cunha) são servidores di­
rectos do rei, de boas linhagens, mas sem títulos. Quando muito, filhos de
enhores de terras ou de alcaides-mores. Com a nomeação de D. Francisco
de Almeida, em 1505, as coisas começam a mudar. Logo, e por causa disso,
o seu embarque será o mais solene que até então se fizera. Neste caso até se
compreende, porque iria tomar o título de vice-rei (Barros, 1974-1990, Dé­

-
cada I, livro VIII, cap. III, p. 295). Honrarias e título que Afonso de Albu­
querque não mereceu ... Boa parte destes capitães e agentes do primeiro de-
enho da arquitectura imperial portuguesa no Índico provinha do círculo
pessoal de D. João II e de D. Manuel, gente que se fizera na nova configu­
ração mercantil do reino no Atlântico.
A enxurrada de fidalgos, cavaleiros e escudeiros segue-se à decisão de es­
cabelecer o domínio militar como forma de assegurar o comércio asiático.
Na armada do comando de Lopo Soares de Albergaria (1503) - também
ele apenas filho de alto funcionário - seguem 12 ooo homens, «muita parte
deles fidalgos, e criados d'El-Rei, toda gente muito limpa, e tal, que com
razão se pode dizer, que esta foi a primeira armada, que saiu deste Reino de
canta, e tão luzida gente» (ibíd., livro vu, cap. IX, p. 275). Em crescendo são
necessários fidalgos e cavaleiros para comandar as expedições de honroso
roubo e vigilância na entrada do estreito do mar Roxo, nas costa do Mala­
bar, Cambaia e Arábia, nas paragens de Ceilão e Bengala, em Malaca e Ma­
luco. Largo espaço. Muita gente. Os primeiros resultados mostraram que
valia a pena. Se o enriquecimento não era garantido, pelo menos abriam-se
boas expectativas. Em que contavam o valor pessoal e a sorte. A maioria
• dos primeiros portugueses na Ásia, que actua não poucas vezes de maneira
temerária e sem sentido e9'1:ratégico, quereria simplesmente «ganhar honra»
(íbid., cap. IV, p. 258).
Boa parte desses fidalgos, cavaleiros e escudeiros foi-se ficando pelo ca­
minho. Morria-se muito. Também as fortunas ganhas em um momento se
perdiam no seguinte. Alguns obtiveram êxito, não apenas no alcançar das
riquezas, mas na sua transferência para o reino. E, naturalmente, engrossa­
ram o poderio do grupo dos fidalgos bem instalados e da gente cavaleirosa.
Sem alterar a ordem social estabelecida. Cada fidalgo ou cavaleiro enrique­
cido contribuía para reforçar a estrutura social preexistente. Melhorava a fa­
zenda dos que já pertenciam às camadas superiores e que nelas melhor se
instalavam, ou delas não viriam a desmerecer.
Nem todos. Havia muitas perdas. Como se assinala, «nós não lhes vemos
morgados, nem contos de juro de tantos milhões de cruzados, como tiram
de suas fortalezas, nem sabemos por onde se lhes consumem todos, porque

- - -
SOCIEDADE E CULTURA

Soldados: a ocupação que


permitia uma expectativa de
promoção mais fácil para os que
nada tinham era a das armas. Em
especial a Índia e o Oriente vão
atrair quantos se sentem com
coragem para a aventura,
cavaleiros e peões.
(Painel da Ressurreição de Cristo,
pormenor, MNAA, Lisboa,
atribuído a Gregório Lopes,
1530-1540.)
© ANF/lnstituto Português de
Museus.
Foro: JosÉ PESSOA.

.
...�-

-
eles não se logram» (Couto, 1777-1788, Década v, parte r, livro n, cap. VIII,
p. 197). Nem 2 em roo dos que de lá vêm têm de comer ou com que insti­
tuir morgados (Couto, 1980, p. 25). E um outro azedo afirma: «Com a bo­
ca cerrada se poderão contar os morgados e lucros que viso-reis e capitães
deixassem a seus herdeiros» (Memórias, 1987, p. 147). Bem menos do que se
deveria esperar.
A Índia destina-se aos que, à partida, não herdariam riqueza. A bre-se aos
que pouco ou nada têm. É visível o número de bastardos da fidalguia que
aparecem por lá. Talvez por isso não caia bem que herdeiros não necessita­
dos partam para o Oriente. Em I 545 fora muito estranhada a ida de D. Je­
rónimo de Meneses, o Bacalhau, filho e herdeiro de D. Henrique de Mene­
ses, irmão do marquês de Vila Real, pois «tinha de comer, e era filho mais
velho de seu pai» (Couto, 1777-1788, Década vr, parte 1, livro r, cap. r,
p. 7). Contra a vontade de irmãos e parentes se embarcara em 1538 D. João
Manuel, o Alabastro, que tinha mais de um conto de renda (ibid., Década v,
parte 1, livro III, cap. vm, p. 280). Aventureiros, fugindo a comportamentos
esperados, desequilibravam arrumações familiares? Não se gastam os rendi­
mentos dos morgados no serviço real. Constata um, soldado que «nenhum
que tenha de comer em Portugal quer passan> à India (Memórias, 1987,
p. 172).
É normal irem filhos segundos, vergônteas de gente de primeira plana.
Com as nomeações para a lndia o rei proporciona promoções que no reino
já não eram possíveis, por escassearem riquezas para redistribuir.
Contudo, não se encontrava facilitada a passagem individual de um estra­
to a outro. Em simultâneo, a mistura social para fidalgos e nobres sem
grandes ambições e suas filhas, na Índia, não seria invulgar, embora não
trouxesse, por si só, elevação social. Nas periferias a incerteza do status ori­
ginário põe a riqueza no centro da arrumação social. Dela decorre a posição:
sociedade de classes a que se adapta, sem hiprocrisias,' a sociedade de or­
dens.

COLONOS SE o ORIENTE ABRIA, em especial para a fidalguia e para os nobres, as pos­


sibilidades de um enriquecimento que no reino já se encontrava bloqueado,
diferente será no Brasil. Parte dos donatários iniciais das capitanias tinha es­
tado na Índia, e depois investira nessas novas terras. Todavia, apenas Duarte
A SOCIEDADE

Coelho, transferindo para Pernambuco os seus interesses e aí metendo o


muito que ganhara no Oriente, faz figura de homem com êxito (Sousa,
:987, pp. 57-58). Previamente contratara a montagem dos engenhos de açú­
cu- (História, 1922-1924, vol. III, p. 199), não desdenhando as ligações co­
:nerciais. Conhecedor dos mecanismos financeiros, queixa-se em l 549 de
oão achar no reino quem lhe «empreste nem dê tanto dinheiro a caimbos»
quanto precisava (ibid., p. 3 18).
A falta de capitais e de ligações entre os donatários e os mercadores pode­
:á explicar as dificuldades de arranque da colonização do Brasil. Capitais de
que dependia, em conjugação, a aquisição da técnica e da mão-de-obra es­
crava africana. Por terem capitais, ou julgarem saber como obtê-los, vemos
aparecer como donatários homens ligados aos tratos ultramarinos: o escri­
r;ão da Fazenda, Jorge de Figueiredo Correia, o feitor e tesoureiro das Casas
da Índia e Mina, João de Barros, e o tesoureiro-mor do reino, Fernão Álva­
res de Andrada. Por isso também um banqueiro como Lucas Giraldes com­
prou a capitania de Ilhéus: nela «meteu grande cabedal, com que a engran­
deceu, de maneira que veio a ter oito ou nove engenhos». O rico mercador
Afonso de Torres está associado a Francisco Pereira Coutinho na exploração
de terras na Bahia. Martim Ferreira, em Lisboa, é sócio de Pedro de Góis,
donatário da capitania de São Tomé (ou da Paraíba), tendo entrado nessa
•companhia» com muitos mil cruzados para instalar engenhos de açúcar
,sousa, 1987, caps. XXXI e XLIV, PP· 78 e 95).
O Brasil proporcionava enriquecimento a aventureiros com sorte, arroja­
dos e persistentes. Outros, e não donatários, arranjaram boas fortunas, co­
mo o governador Mem de Sá (Documentos, 1954-1963, vol. 111). Atentos a
estas novas fortunas os grandes do reino. As herdeiras podiam dourar bra­
zões pálidos. D . Filipa de Sá, filha de Mem de Sá, sem pergaminhos de
linhagem, casa com o herdeiro do conde de Linhares. E com ela dois enge­
nhos de açúcar, um no Rio de Janeiro (Sergipe) - com 282 peças de escra­
\-os - e outro em Ilhéus - com 130 peças e mais de 500 cabeças de gado

-
ncum, em 1573 (ibid., pp. 3 15-3 16).
Diferente é a aplicação dos capitais reunidos na Índia e no Brasil. Os «ho­
mens da Índia, quando de lá vem para o Reino trazem consigo toda quanta
fazenda tinham [ ... ] e como todo o seu cabedal está empregado em cousas
manuais embarcam-nas consigo, e do preço porque as vendem no Reino
compram essas rendas e fazem essas casas; mas os moradores do Brasil toda
a sua fazenda têm metida em bens de raiz, não é possível serem levados para
o Reino, e quando algum para lá vai os deixa na própria terra [... ] e assim
não lhes é possível deixarem cá [no Brasil] tanta fazenda e comprarem lá
[em Portugal] outra, contentando-se mais de a terem no Brasil pelo grande
rendimento que colhem dela» (Diálogos, 1956, «Diálogo III», p. 157).

DIFERENÇA DE FUNDO: política de transporte, política de fixação (Sérgio, CAVALEIRO-MERCADOR


1929, pp. 69- 109). Com os distintos interesses se ligam os respectivos com­
portamentos. Enquanto no Brasil domina o patriarca rural fidalgo (ou com
fumos de fidalguia) - se bem que associado a mercadores, para escoamento
do açúcar -, no Oriente modela-se e radica-se o cavaleiro-mercador, tão
atento à guerra quanto ao preço da especiaria. Cavaleiros-mercadores que
também se encontram instalados, e bem, em Lisboa - e de que o rei não é
o menor (Godinho, 1975, pp. 89-94). Assim, «nem o marinheiro, nem o
6 João Baptista Lavanha, Virgem
mercador, nem o soldado, nem ainda o fidalgo querem que lhe pergunte se­ de D. Filipe II a Portugal, Madrid,
não pelos preços das fazendas que correm na terra, pelo que valerá em Or­ 1621. Arco dos homens de
muz, e em Malaca» (Çouto, 1777-1788, Década v, parte 11, livro vm, p. negócios. Ao homenagear o rei
202). Nos soldados da lndia é corrente esta «mecânica e vil subtileza de ad­ que visitava o seu reino, os
quirir dinheiro», sendo os capitães das fortalezas tanto mercadores como homens de negócios ostentavam
militares. O comércio não somava prestígio na sociedade aristocrática, que, o seu poderio. Também
chamavam a atenção para a
contudo, não o dispensava, porque lhe dava a riqueza. Um cavaleiro não necessidade de o monarca se fixar
desprezava o trato mercantil de que tirava lucros, exercitando-o por si ou cm Lisboa e de se transformar
por seus caixeiros. Com isso se apresentava à lei da nobreza com «lacaios, num rei do Atlântico, que não de
escudeiros e pajens>> (Anedotas, 1980, pp. 168- 169). Assim o notou um argu­ uma interioridade peninsular.
to observador estrangeiro: «São quase todos mercadores, embora se mos- FOTO: BN, LISBOA.

505

------- ---- ----··


SOCIEDADE E CULTURA

trem inimigos mortalíssimos deste nome, porque querem apelidá-lo de pes­


soa baixa. E, no entanto, [ ... ] são mercadores mais baixos do que tendeiros
e a maior parte das riquezas que possuem ganharam-nas com o comércio
[ ... ]. Falando porém dos fidalgos, eles vão e vêm das Índias continuada­
mente com as suas mercadorias, como o faz qualquer criaturinha» (Mar­
ques, T987 b, pp. 230-231).
Neste jogo aparecem muitos e interessantes figurões. Jorge da Silva, filho
de João da Silva, regedor da Casa da Suplicação, enamorado da infanta
D. Maria, autor de livros devotos, acaba casado com a filha única de um
contratador muito rico: porém continuou com o trato do sogro, que «exer­
citou por seus caxeiros» (Anedotas, 1980, pp. 167-169). Fidalgo de boa li­
nhagem, D. Lopo de Almeida, neto do conde de Abrantes, filho do conta­
dor-mor do reino, clérigo ainda por cima, chegou ao fim da vida em
Madrid com rendimentos anuais que deviam rondar uns 10 ooo cruzados
(4 contos de réis). Avisado homem de negócios. Empregava avultados capi­
tais em sedas, especiarias e adornos preciosos. Emprestava sobre penhores ?
de jóias, que cuidadosamente avaliava com balança própria para pesar ouro. ?(li
Ouvira matemática em Paris, boa preparação para usurário. Não passou de e.::::)
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rluminura do Livro de horas de :::e
D. Manuel, fl. 87 v (entre r517 e
l 530, segundo Godinho,
1981-1983, vol. I, entre as pp.
176 e 177). Enquadrando o de
presépio e a adoração dos magos, 1101
as boas moedas de prata e ouro seg
dos monarcas hispânicos: de irrd
D. Afonso V a D. João III e dos
Reis Católicos. O maior destaque d�
vai para os portugueses de ouro p.
de D. João III, em baixo, ao
centro. 22d
(MNAA, Lisboa.) soe
FOTO: PH3. nra
506

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A SOCIEDADE

capelão régio, talvez por isso (Brandão, 1990, pp. I 10-120). Muitos outros,
em pequena escala: de um vigário de Diu se sabe que «muitas vezes ia ne­
gocear seos tratos e cousas de seus navios pela manhã cedo e despois torna­
va a dizer missa» (Documentação, 1991-1992, vol. III, p. 475); um frei Inácio
de Chaves trazia dinheiro a câmbios em Vila do Conde (Miguel, 1980, p.
218); bem mais tarde (1614), Baltasar Estaço, cónego da Sé de Viseu, decla­
ra ter em sua posse objectos de ouro e prata, como penhores de quantias
que lhe deviam (Baião, 1936-1938, vol. I, p. 85). Seria fácil fugir a este am­
biente mercantil, em que os eclesiásticos e as próprias ordens religiosas, no­
meadamente- a dos jesuítas, não deixam de ter fundos interesses? No entan­
to, em 1612, ficciona-se que «a gente nobre não tem trato» (Oliveira,
1887-1888, tom. n, p. 293).
O rei tinha de zelar pela manutenção do ordenamento social, situando-se no
centro da mobilidade social, travando-a ou propulsionando-a. Geria a abertura
para as promoções pessoais ambicionadas: concessão de comandos e viagens
(oportunidade para o enriquecimento) ou de renças (retribuição pecuniária
por actos honrosos) ou, mais simples ainda, de moradia (reconhecimento da
dignidade e honra de pertença à casa real).
Bem trabalhosa era a vida daqueles que ambicionavam elevar-se na escala
social. Da mercancia ou dos ofícios, com um casamento bem preparado,
executavam a sua aproximação à gente nobre e fidalga. A geração seguinte
estava no bom caminho. «Deram em casamento a João Lopes, com sua mu­
lher, duzentos mil réis, com os quais tratou três ou quatro anos, e no cabo
deles comprou o ofício de escrivão» (Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tom. 1,
p. 160). Pecúlio inicial, êxito, compra de um honroso ofício: estratégia bem
montada. Conseguida a aproximação ou integração, era a vez de ostentar,
gastando o que os iniciadores do processo tinham acumulado. Pelo contrá­
rio, «não é justiça que a filha do cavaleiro muito honrado e com muito di­
nheiro case [ ... ] com criados pobres» (Couto, 1980, p. 69). Iniciar a descida
da escala social era incapacitar-se para tomar a subi-la. E desclassificar a fa­
mília. Daí a função social conservadora dos conventos femininos.

MERCADOR PARECE SER UM ESTADO transitório entre mecamco e fidalgo. MERCADORES -


Mercador empobrecido torna-se tendeiro? Mercador enriquecido acaba fi­
dalgo? Para a promoção dos mercadores à fidalguia exige-se habilidade e in­
vestimentos simbólicos na terra e em comportamentos nobres. Sobretudo
havia que arredar suspeitas de sangue impuro (cristão-novo). A menos de se
tratar de grandes mercadores, ligados à casa real e que o rei entendesse pre­
miar. Aconteceu a Fernão de Noronha, feito cavaleiro antes de 1494, dona­
tário da ilha que terá o seu nome, com reconhecido brazão de armas, fidalgo
de cota de armas em I 532, assim trazido «ao conto e estima e participaçam
dos nobres e fidalgos de limpo sangue•> (Espinosa, 1972, pp. 203-204). Pou­
cas vezes encontraremos casos tão claros de promoção (e quando ainda a
pureza de sangue não contava). Porém, a prestação de serviços, parceria em
negócios ou qualquer jeito que merecesse reconhecimento facilitavam a pas­
sagem. Sempre limitada. Os mercadores ricos esforçam-se por casar e casar
filhos e filhas com gente fidalga e nobre. E gente fidalga e nobre não se es­
cu�ará, embora prefira não se dedicar do mesmo modo aberto e público à
mercancia, mesmo que esse exercício lhe traga a fortuna para ascender ou
manter o status.
Tornava-se, por isso, notória a excepção dos moradores de Viana de Foz
de Lima. Aí, todos «os nobres exercitam a mercancia a uso de Veneza e Gé­
nova, contra o costume das mais terras de Portugal, que os louvam e não os
seguem, invejam a felicidade e bons sucessos do trato e não sabem imitar a
indústria». Até as mulheres «vemos ir às escolas com papel e tinta e apren­
der a ler e escrever e contar» (Sousa, 1946-1948, livro I, vol. u cap. XXVI,
p. 160).
Sociedade em que o comércio e os capitais desempenham papéis dinami­
zadores e em que mercadores não se apresentam como detentores de valores
sociais próprios, marcantes e alternativos. Capitalismo mercantil enxertado
numa sociedade em que dominam os fidalgos que, não deixando de ser
SOCIEDADE E CULTURA

mercadores, sustentam valores de honra e de hierarquia, na aparência estáti­


Quadro v
Loulé em 1564 cos, assentes numa estrutura diferenciada pelas desigualdades dos privilé­
gios. Que tem no rei e no absolutismo régio a garantia do seu sustento e da
1. Braceiros a 7000 réis
0
- 38 %. sua defesa. «Ganhou-se a Índia com o sangue dos pobres e homens peque­
2.� 8000 réis a 45 ooo réis - 4 3 %. nos, e os galardões e mercês faz ElRei aos fidalgos, por suas valias e aderên­
0
3. 46 ooo réis a 1 00 ooo réis - 13 %. cias>> (Correia, 1979, vol. n, p. 912). No conjunto, nem as novas formas
4.º no 000 réis a 900 000 réis - 6 %.
!ti Magalhães, 1970, p. 219. Quadro IV
Distribuição da população de Alenquer em finais do século xv (1497)

Percentagem

14 fidalgos ............................................................................. 26
12 cavaleiros e outros que vivem cavaleirosamente.................
50 escudeiros e outros que vivem limpamente........................ 50
54 vassalos e criados de fidalgos ............................................ 54
Total de se11hores e casas srohoriais.. .. :.................................. 130 23
29 besteiros do conto.............................................................
14 ourives e moedeiros.......................................................... 58 I0,6
15 monteiros..........................................................................
23 5 lavradores.......................................................................... 235
66 mesteirais (sapateiros, barbeiros, tanoeiros, carpinteiros, al-
faiates, ferreiros, etc.)........................................................ 66 12
67 moleiros, lagareiros e trabalhadores que vivem por seu tra-
balho ............................................................................... . 12

-
556
ln Vitorino Magalhães Godinho, Emaios, li, 1978, p. 22.

Quadro VI
Composição profissional da população de Coimbra em 1610-1613

Profissões Número de indivíduos Percentagem

1 - Primário:
Agricultura, criação de gado, caça e pesca............. 43 2,7
2 - Secundário:
Artes e oficies ....................................................... 449 2 8,1
Mobiliário e madeira ........................................... .. 43 9 ,6
Metais ................................................................... 38 8,5
Ve.stuário,_ têxteis, equipamento.............................. 236 52,5
Alimentaçao........................................................... 36 8,o
Construção civil..................................................... 65 14,5
Trabalhos artísticos e de piedade............................ 29 6,5
Diversos................................................................ 2 0, 4
3 - Terciário..................................................... 44 0 27,4
Comércio e transporte ........................................... 189 11,8
Ad�inistração, e. serviços públic os .......................... 100 6,8
SerVIços domesucos............................................... 60 3,8
Profissões liberais, ensino e saúde.......................... 91 5,7
4: '
Braceiros ............................................................... 39 2,4
Diversos e não discriminados................................. 627 39,2
Soma 1598 100

Distribuição por classes de valor da contribuição de Coimbra (1610-1613)

Réis Número de indivíduos Percentagem


Menos de 100........................................................ 713 44,7
De 101 a 250......................................................... 365 2 2,8
De 251 a 500....................................................... .. 296 16,8
De 501 a 1000....................................................... 137 8,6
De 1001 a 5000 ..................................................... 99 6,2
Mais de 5000.................................... ,.. · ·.... · ·.. · ·.. · ·.. 15 0,9
Soma 1598 IOO

José Albertino Rodrigues, Travai/ et société urbaine au Portugal dons /e seconde tnoitit du xvf site/e, Paris, roneo­
tipado, 1968, pp. 188-192. Ap. V. Magalhães Godinho, A estrutura da antiga sociedade port11guesa, Lisboa, Ar­
cádia, 1975.

508
A SOCIEDADE

políticas nem as novas dinâmicas económicas perturbaram ou subverteram


o ordenamento social. Bem pelo contrário, o peso da aristocracia no con­
junto do reino sai acrescido e reforçado. Se a pouco espessa camada supe­
rior dificilmente se deixa penetrar, o muito mais volumoso estrato que se
lhe subordina é bastante plástico e permeável.

A MOBILIDADE SOCIAL ASCENDENTE, a porosidade dos estratos inferiores da MOBILIDADE SOCIAL


aristocracia é ainda grande, pelo menos até ao conjunto de restrições de
1570. Ou por via da Igreja, dos feitos de armas ou da universidade, a pro­
moção social ia ocorrendo. Se o topo estava bloqueado, à posição de fidalgo
e de nobre sempre ia sendo possível o acesso de alguns. Individualizado.
Por prémio de serviços prestados (no Norte de Africa e no Oriente, menos
no Brasil), desde que houvesse fortuna e comportamento à lei da nobreza a
sustentar essa nova condição. Ou. a nomeação para os lugares da burocracia
da nova forma de Estado. E, sempre, desde que sobreviesse o reconheci­
mento do rei ou, no caso da gente nobre, a inclusão nos ofícios da gover­
nança local. Depois a estratificação parece tender para a estabilidade. Ainda
não de todo alcançada nas primeiras décadas do século XVII.
Estrutura que assenta numa base estreita dos que trabalham para sustentar
o todo, fortemente penalizados, em que os escravos são indispensáveis. E a
que se foge, ou é empurrado para a emigração. Cada vez mais dominadora
e entrelaçada com o absolutismo régio e com a aristocracia que o serve, a
Igreja atacará a seu modo. Controla a dissidência. Vai disciplinando a vio­
lência individual, pelo ritual e pela apropriação de bens. A cristalização so­
cial, numa desejada estabilidade, é objectivo prosseguido. A magnificência
do barroco exprime, em imagem triunfante, esse ponto de chegada.
Sociedade com uma base estreita relativamente ao conjunto (quadros rv a
VI). E em que por isso o estrato mais baixo sofre o grande peso dos que lhe
estão acima. É assim em Alenquer, Loulé ou Coimbra, �o longo do século.

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O que explica a estabilidade e a incapacidade real dos «vis» de procurarem
uma alteração profunda.

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