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emigração dos naturais, a que faziam concorrência, por não receberem salário ou
qualquer remuneração. Por outro lado, a sua aquisição exigia um investimento
elevado, pelo que não seriam muitos os que os podiam ter e manter. Por isso se
encontram em Lisboa, no Sul e nas Ilhas (em especial na Madeira) ou em Santarém,
poucos em Coimbra ou no Porto. Ainda há sinal deles no Norte interior, rareando em
Viana de Foz de Lima ou em Braga (Dias, 1960, tomo n, p. 461; Norton, 1981, pp. 394-
397- Brandão, 1972, vol. n, p. 208).
É para serviço dos territórios além-mar que os escravos são mais necessários.
Começou com a produção açucareira da ilha da Madeira, entre 1466 e 1479. Depois, a
concorrência de Cabo Verde e de São Tomé faz-se sentir não apenas no açúcar, mas
na mão-de-obra, que na Madeira encarece, e com ela o açúcar, provocando a
reconversão do canavial em vinha. A colonização de São Tomé, cujo clima se tinha
por muito insalubre e, portanto, de difícil ocupação, levou a que cada degredado
pudesse ter uma escrava para dela se servir (respeitava-se a fachada da monogamia),
sendo os filhos livres (Azevedo, in A.H.P., 1903, vol. I, p. 302). Esperava-se que os
negros e mulatos resistissem melhor às difíceis condições de vida. A multiplicação
resultou, tendo provocado uma bela revolta de «muitos escravos armados e sabidos
em todo o género de guerra», em 1554, em São Tomé, e um rijo ataque de pardos
contra brancos no Príncipe, em 1566 (ibid., pp. 302-303 e 306-307).
O tráfico dos escravos aumentou a partir de cerca de 1570 com o número
crescente de engenhos no Brasil e com os lucros do próprio trato, que se dirigia
também para as índias de Castela (Godinho, 1981-1983, vol. rv, p. 176). O resgate
africano de escravos era monopólio régio, adjudicado a assentistas, individuais
ou em grupos de mercadores, que dispunham de elevados capitais e que
transportavam a mercadoria para onde mais rendesse.
Indispensáveis para lavouras e granjearias. Todos «vivem, tratam e trabalham com
esta gente». Dependência. Em 1616-1617 «ficaram muitos homens neste Estado do
Brasil de ricos pobres pela grande mortandade que tiveram nos escravos». Embora. No
Brasil se forma «um novo Guiné com a grande multidão de escravos vindos dela que
nele se acham» (Diálogos, 1956, «Diálogo II», pp. 101-125). ,
De 1575 a 1591 foram transportadas para o Brasil e índias de Castela, só de Angola,
52 053 peças (Brito, 1931, p. 30). Há que contar ainda com o golfo de Guiné ou costa
da Malagueta e Arguim, donde acaso não terão ido menos (Godinho, 1981-1983, vol.
IV, p. 172). Escalas intermédias e entrepostos, as ilhas de Cabo Verde e São Tomé e
dos Açores — estas em especial com destino ao Peru (Arquivo, 1981-1984, vol. v, pp.
136-137). Grande seria o tráfico ilegal, sobretudo para as índias de Castela,
iniciado por 1509; trato impossível de quantificar. No triénio de 1597-1600, só para
Cartagena de índias teriam sido levados 15 763 escravos, mais 3437 com outros
destinos (Ulloa, 1977,299-300 e 409-421). Não poucos africanos foram para as
conquistas da Ásia, onde desempenharam papel fundamental na organização da
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
quem cria pombas para levar ao mercado longe de se ofenderem com as ribaldias das
escravas, estimam até que tal suceda, porque o fruto segue a condição do ventre: nem
ali o padre vizinho, nem eu sei lá que cativo africano o podem reclamar», criticava o
flamengo Clenardo (Cerejeira, 1949, p. 282). Havia ocasional legitimação ou
reconhecimento de filhos — e até netos e bisnetos (Vieira, 1991 p 99). A própria
aristocracia produzirá os seus mestiços. Um bastardo de Gonçalo Vaz de Melo, Dinis
Fernandes de Melo, da armada de Tristão da Cunha à Índia, em 1505, era «pouco
conhecido e estimado, por ser homem pardo nas cores» (Barros, 1974-1992, Década
II, livro I, cap. m, p. 22). Batalhando como esforçado cavaleiro na tentativa de tomada
de Ádem, morre Diogo Estaço de Évora. Ao seu lado, não menos esforçado soldado,
fica-se Garcia de Sousa, seu irmão bastardo mulato (ibid., livro VII, cap. IX, p. 352).
Cristóvão Juzarte, fidalgo, tem dificuldade em comandar uma armada nos Açores, por
ser mestiço (Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tomo I, p. 239) Racismo com branduras
de sociedade patriarcal (Freyre, s/d).
0s maus tratos e as mortes violentas de escravos não serão raros, como os abandonos
e expulsões em momentos de pânico por peste. Foi isso sentido dramaticamente pela
Câmara de Lisboa aquando da grande crise de 1598-1603 (Magalhães, 1988, pp. 43-
60). Porém, seria melhor o destino que se reservava aos demais esfomeados errantes
que nesses momentos procuravam as cidades para escaparem de morrer à fome?
Escravos e emigrantes. A expansão portuguesa sofreu durante o século XVI com
o problema dos fracos efetivos demográficos do Reino. A introdução massiva de
escravos foi uma das soluções. A qual, por sua vez, provocava uma excessiva saída
de naturais (Godinho, 1975, p. 58). A falta de gente era por igual sentida nos reinos e
senhorios de além-mar. E abria-se sem limitações de naturalidade (sim de religião) a
entrada a homens de Castela e de outros reinos. Havia carência de oficiais mecânicos
especializados em tarefas que não eram comuns no Reino, e por isso de bom grado
se acolhiam estrangeiros. Foi o caso, que acabou mal, dos lapidários italianos idos à
Índia com Vasco da Gama, em 1502, e que, afinal, eram fundidores de artilharia
(Castanheda, 1979, livro I, cap. LXVIII, vol. I, p. 145). Em Pernambuco vamos
encontrar galegos, biscainhos, castelhanos, canarinos, florentinos, napolitanos,
alemães, flamengos, franceses e ingleses (Primeira Visitação, 1984). Para o Brasil a
carência é geral. Logo em 1550 se procuram aliciar açorianos para povoar a nova
cidade da Bahia (Arquivo, 1981-1984, vol. XII, pp. 414-415). Muitos terão ido. Duarte
Coelho busca gente de Portugal, Galiza e Canárias, onde quer que a ache, para pôr a
funcionar os engenhos, em 1549 (História, 1922-1924, vol. m, p. 320). Com a união
dinástica cresce a mistura dos portugueses com os castelhanos. Portugueses, e não
poucos, emigram para as índias de Castela, Castelhanos e outros «espanhóis» para
Portugal e para o Brasil. Artilheiros flamengos e alemães também andam por
Portugal e pelos domínios portugueses. As novas terras atraíam aventureiros e
miseráveis, na ânsia de melhores vidas.
Também se iam do Reino homens fidalgos para servir no estrangeiro. O caso de
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Fernão de Magalhães é um, entre muitos. Martim Afonso de Sousa, em 1515, está
para se passar a Castela; impede-o o duque de Bragança, advogando depois junto do
rei que não deve «deixar perder um homem de tanto serviço e de tais calidades e perdê-
lo de seu serviço». Não há argumento de traição nem se invoca apego à naturalidade
(Gavetas, 1964, tomo IV, p. 461).
A grande massa dos que emigravam vinha das populações rurais, que os meios
citadinos portugueses não conseguiam reter (Godinho, 1975, pp. 28-30). Gente sem
eira nem beira, que se alistava para tentar a sorte, que poucas vezes sorriria. Em
1609, Moncorvo diz estar muito pobre, «por causa dos ruins anos que houve até gora,
que muita gente se foi para fora do Reino por pobreza» (Oliveira, 1887-1888, tomo II
p. 222). Destes que nada tinham, muitos emigravam crianças. Abundavam os
meninos órfãos, abandonados e enjeitados, de que era preciso a sociedade (que fazia
a mãe abandoná-los) cuidar ou desfazer-se. Situação que piora no decurso do século.
Em Braga, em 1567, a câmara constata que de alguns anos a esta parte ia em grande
crescimento o número de enjeitados, que lhe davam muito trabalho e despesa, por os
«mandar criar à sua custa» e haver falta de amas («Acordos e vereações», in Bracara
Augusta, vol. XXXIII, 1979, pp. 543-544). Nas mesmas aflições se vê a Câmara de
Coimbra, em 1579 (Loureiro, 1964, vol. II, p. 67). O aumento de enjeitados revela o
efeito conjugado de crescimento populacional e de maior fiscalização da Igreja depois
de Trento? Os que sobreviviam engrossavam a massa miserável. Em Lisboa, o «pai de
velhacos» tinha a obrigação de lhes arranjar amo (Oliveira, 1620, fl. 97 v). Ou seriam
empurrados para a Índia e para o Brasil. Destes meninos se irão aproveitar não
pouco os filhos de Santo Inácio na sua missão evangélica. À Índia «vêm todos os anos
nas naus duzentos meninos». Recolhidos pelos fidalgos, criam-se e fazem-se
«soldados e honrados» (Couto, 1950, p. 187). As órfãs eram muito pretendidas para a
Índia e para o Brasil, a fim de lá casarem. Evitar-se-ia que os povoadores tivessem
«não só uma concubina, mas muitas». Quaisquer mulheres convinham, «ainda que
sejam erradas, que seguro era encontrarem marido» (Nóbrega, 1988, p. 109). A
marginalidade do centro aproveitada nas periferias.
Muitos dos emigrados não regressavam ao Reino. Como não regressavam os que
se iam instalando pelos portos da Ásia, fora do domínio dos Portugueses. Por isso as
populações fixadas eram muito menores do que seria de esperar. Em 1561 o
arcebispo de Goa informa: «Haverá nesta cidade [de Goa] ao menos 4343 vizinhos dos
quaes são portugueses 1478 e mistiços 145; os mais são da terra. No termo da cidade e
suas aldeias há 7025 vizinhos», não entrando soldados. O total seria de apenas 80 000
cristãos (Gavetas, 1963, tomo III, 1963, p. 190). Cinco mil homens foi o máximo que,
pelos números oficiais, se conseguiu reunir para o socorro de Diu, em 1538. E só
nesse ano, após 40 anos de presença, tinham ido na armada 2000 (Correia, 1975, vol.
IV caps. I e XXI, pp. 10-60).
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
Origem dos portugueses em Goa, em 1514 (mapa I, Cartas, 1884-1915, tomo VI), em Ormuz (1522)
(mapa II, Farinha, 1991), em Pernambuco, em 1591-1595 (mapa III, Primeira Visitação, 1984).
A forte presença dos mesteres - Joaquim Romero de Magalhães (pp. 278 – 280)
Nas cidades e vilas do Reino não faltavam em geral obreiros para as tarefas de
alimentar, vestir e calçar as gentes, bem como fornecer os produtos, básicos ou de
luxo, para as necessidades do tempo e recursos das populações. Por vezes com
vocações locais. Trabalha-se em tecelagem por toda a parte, embora só em algumas
regiões se atinjam volumes e qualidades comercializáveis: panos e cobertores de lã e
panos de linho. Tanto como a tecelagem, o trabalho com o ferro: facas, tesouras,
navalhas, espadas, candeeiros, esporas, ferraduras e fechaduras (Oliveira, 1620, fl.
158 V) «Fazem aqui nesta cidade (do Porto) boas facas e é a sua especialidade, mas são
caras», nota um italiano («Viaje», 1964, pp. 232-233). Não menos a olaria, mais ou
menos decorada... E como estas outras transformações com que a habilidade e o
gosto dos homens de Quinhentos satisfaziam os seus contemporâneos. Sem que
faltassem outros artesãos, os que sabiam executar objetos de luxo ligados ao
vestuário e adornos, em especial na Lisboa de Quinhentos. Tanto quanto nos
permitem ver os arrolamentos de meados do século — de João Brandão (de Buarcos)
e de Cristóvão Rodrigues de Oliveira — e de 1620 — de Frei Nicolau de Oliveira.
Variedade imensa de ofícios. Mas com matérias-primas que se importavam ou com
pequena incorporação de produção e transformação internas.
Fiscalização e representação política. Desde finais do século XV que a realeza e os
concelhos procuram fiscalizar a atividade mesteiral, por vezes aproveitando as
organizações de assistência que a solidariedade profissional ou de moradia já tinham
ido instituindo. Associações de entreajuda, que haviam elaborado os seus
compromissos e que obrigavam livremente os seus membros. Vem agora a
autoridade régia ou camarária e fixa rígidos regimentos de ordenamento do
trabalho (Caetano, in Langhans, 1943-1946, pp. XXXIXL-XI). Confina-se o grupo
mesteiral aos aspetos puramente profissionais. As confrarias que se mantêm ou
criam têm funções de sociabilidade e religiosas e não mais assistenciais, ou pelo
menos não na antiga amplitude. A assistência é regulamentada de outro modo e
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(Oliveira, 1982, pp. 72-73). Eram como que a camada aristocrática do povo (Oliveira.
1971-1972, vol. I, pp. 403-404).
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dos grandes e fidalgos. Elvas, em 1498, requer ao rei esmola para fazer um mosteiro
de freiras, por haver «muitas filhas de fidalgos e honrados homens e as nom podem
casar como a suas honras comprem». Por isso se perdiam e cobravam má fama
(Santarém, Provas, parte I, 1828. p. 78). Outros, ansiosos por promoção social,
metiam filhas em conventos, e escolhiam-nos entre os que mais enobreciam. Em
famílias de nação era corrente fazê-lo. A violência sexual do celibato sem vocação
dava depois resultados sabidos? Não importava.
Em 1532-1533 o abade de Claraval tem de vencer graves obstáculos para se impor na
mundanidade claustral de Almoster e de São Bento de Évora. Em Almoster a
abadessa, uma tia do marquês de Vila Real e irmã do conde de Linhares, regia o
convento como se de bem seu se tratasse. Os ilustres parentes sentiram-se ofendidos
com as intromissões (De Bronseval, 1970. vol. I, pp. 376-381). São Bento de Évora
pareceria tudo menos uma casa de religiosas (ibid., vol. I, pp. 418-427). A abadessa
de Lorvão, D. Filipa de Eça, emprenhou já reclusa (De Witte, 1980-1986, vol. II, p.
524). Ainda em 1602, o bispo de Coimbra, D. Afonso de Castelo Branco, prefere que
uma freira de Semide saia do convento para não ensinar (ao vivo) as outras a parir
(Veiga. 1988, p. 280). Justas e pecadoras. Se há as exemplares freiras de Odivelas, há
as desgraçadas de Évora, para quem o convento era solução para a falta de dote.
Conscientes disso, alguns escolhiam para as filhas conventos «largos», onde a
observância se não tivesse instalado, «por me não darem ao demo tantas vezes»,
escreve, desabusado, António de Saldanha, em 1547. Filhas para o convento, filhos
para a Índia (Costa. 1987. p. 13).
A Igreja e o rei coniventes. Aquela para aumentar o património e relevo social, este
para não se lhe multiplicarem os servidores e respetivos encargos. Nunca os reis
acederam a limitar os dotes que os fidalgos podiam dar às filhas, como lhe pediram
nas Cortes de 1490 ou de 1581 (Santarém. Provas, parte II, 1828, pp. 70 e 83). Se os
morgados se destinavam a garantir rendimentos com que o administrador devia
«emparar irmãos e parentes» (Costa, 1983b. p. 267), o sustento das jovens excedentes
ia em pequeno dote para onde as faziam professar.
Há, ao longo do século, esforços de reforma, em especial por uma estrita
observância das regras. Esforços com algum êxito, que não atacam o fundo da
questão: mantendo-se a mistura de leigos e clérigos na administração e fruição dos
bens, não poderia haver nunca cumprimento rigoroso das disposições estatutárias.
Nem por indisciplinada, embora em vias de reforma, a Igreja deixa de desempenhar o
lugar que lhe estava conferido. E que aumenta com D. João III: o núncio papal
constata que o rei se preocupa em prioridade com negócios eclesiásticos, esquecendo
todos os outros, «por maiores e utilíssimos que sejam» (De Witte, 1980-1986, vol. II, p.
512).
Os eclesiásticos e religiosos não formam um bloco coeso. Longe disso. Há ricos e
pobres. Seculares e frades. Conflitos, não raros nem pouco violentos. Em 1490, D.
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
João II faz avançar tropas para serenar Coimbra, onde se guerreavam os partidários
do bispo e os de Santa Cruz (Loureiro, 1964, vol. I. p. 315). As questões das
precedências das ordens religiosas nas procissões podiam degenerar em desacatos,
promovidos pelos próprios frades (BNL, F. G.. n.° 5426). O número de frades e
clérigos ia em crescimento, de tal modo que no século XVII se pôde escrever que
«se comem uns aos outros». Tantos que não se podiam sustentar. Entretanto faltava
gente para as armadas (Oliveira, 1887-1888. tomou, pp. 323-324). A fundação de
novos conventos passou a ser fortemente contestada pelos povos e o próprio
rei teve de impor limitações (Silva, 1985, pp. 278-300). O Reino transbordava de
frades e freiras.
1986, vol. II, pp. 492-495). Peitam-se os cronistas da Índia para que relatem os feitos
gloriosos — lubrificação de que nem Afonso de Albuquerque se esquece (Barros,
1974-1990, Década II, parte II, livro II, cap. I, p. 312). O conde de Tentúgal polemiza
com Damião de Góis, negando as traições da família de Bragança a D. João II (Góis,
1926, vol. I). Honra e desonra por herança.
Honra obtida por feitos militares. Honra alcançada na corte com o cultivo de outras
qualidades: «modéstia, prudência, discreção, conselho e habilidade para tudo». O
fidalgo perfeito, além de esforçado cavaleiro, será «mui afábil, cortês e humilde com
todos» (Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tomo III, p. 121). A um fidalgo muito honrado,
com o hábito de Cristo, gabam-se as «boas partes e discreção», o «ser honroso pera os
homens, bem inclinado, de muito respeito, grande amigo de seus parentes e desejoso de
acrescentar na dita geração, gentil-homem, gracioso, alegre, liberal, virtuoso e temente
a Deus, de muita verdade, desinteressado em falar o que entende, sem ter de ver com
pessoa alguma». E, essencial, «por tal é conhecido de todos» (ibid., livro VI, p. 29).
Para este reconhecimento conviria que o apelido familiar fosse usado, denotando
linhagem (Brito, 1991, p. 271). Garcia de Resende dispõe que quem suceder no seu
morgado se «chame sempre de Rezende» (Ribeiro, s/d, p. 336). Como, em 1600, Aires
de Saldanha e sua mulher, D. Joana de Albuquerque, determinam que os
administradores do seu morgado guardem os apelidos de Saldanha e Albuquerque e
lhes usem as armas (Costa, 1983b, p. 262).
Formas de tratamento. A autorrepresentação desta gente passava também pelas
formas de tratamento. «Dom» é parcimoniosamente concedido. Tinha o efeito
imediato de dar a conhecer o seu portador como pertencendo à alta fidalguia. O
regedor da justiça, João da Silva, sentia-se «fidalgo razo» por não o ter (Carvalho,
1926, p. 228). Nas mulheres era mais vulgar o uso de «dona» (Brito, 1991, p. 274). No
tratamento pronominal, um «vós» podia resultar ofensivo, se o chamado se achava
com direito a mais: «vossa mercê», «vossa senhoria» ou «vossa excelência». A lei
previa as aplicações. Se assim não fosse, reconhecia o rei em 1597, gerar-se-iam
«grandes desordens e abusos». É que todos tentavam conquistar um tratamento
superior (Cintra, 1972, pp. 25-29). Confusões muitas, e não apenas na corte. O
regresso da universidade a Coimbra levou a que, em 1558, a rainha regente
mandasse que três pessoas da cidade e três da universidade se juntassem e
chegassem a um acordo. Senão ela própria decidiria (Livro 2.º 1958, pp. 108-109).
A conjugação de tão complicadas teias de relações degenerava por vezes em
conflitos internos. Alguns insolúveis, como os assentos de D. António, prior do
Crato, e do Senhor D. Duarte nas Cortes de 1562 (Relações, 1937, pp. 319-320). Já
antes, em 1556, se acertara a precedência dos condes, ordenada pela antiguidade da
carta de mercê do título (ibid., p. 405). A coexistência dos bispos e cabidos com
governadores e capitães representando o rei teve de ser também regulada nos
lugares de África e ilhas, em 1588, após trabalhoso estudo pela Mesa da Consciência e
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
Ordens (Arquivo, 1981-1984, vol. X, pp. 307-308). Nos começos do século XVII, o
aparato protocolar reafirmador das posições sociais reforça-se. A sociedade barroca
exibe-se. Em 1611, o rei proíbe a novidade de os bispos entrarem nas terras a modo
de reis, debaixo de pálio levado por pessoas da governança a pé (Livro 2.º, 1958, p.
231).
Os nobres. O fidalgo era nobre. Nem todo o nobre era fidalgo. Em fins do século XV, a
expressão «nobreza» ainda pouco aparece como designando o todo do grupo
aristocrático, sendo muito corrente como adjetivo. A expressão «nobres homens de
linhagem» significa fidalgos, pois nobre qualifica linhagem. Nas mesmas Cortes de
1481-1482 se propõe ao monarca que faça «certo número de vassalos e homes fidalgos
e de nobre criaçom em que bem caiba tal honra» (Santarém, Provas, parte II, 1828, p.
136). Porém, em 1513, D. Manuel, ao estabelecer uma imposição sobre o consumo do
vinho, refere haver em Lisboa pessoas particulares que «ganham muito dinheiro, e
assim algus cristãos novos, mercadores, [...] homes ricos, e abastados e nobres»
(Oliveira, 1887-1888, tomo I, p. 416). Nobre, simplesmente, refere os que têm um
comportamento que os aproxima da fidalguia, pela vida que podem levar, por ricos.
Nobre é aquele que mostra qualidades de nobreza, que sabe agir de um modo
honroso e socialmente prestigiante. Que tem um comportamento grave. Ou ocupa
cargos que, à partida, estava convencionado serem reservados a pessoas com essas
qualidades, virtudes e vida compatível.
Nobre, como substantivo comum, só é corrente mais tarde, embora seja difícil, por
vezes, limitar a extensão do conceito, que remete para os melhores e mais honrados
(Santarém, Provas, parte n, 1828, pp. 170-173). De que havia que dar sinais: a
«generosidade para com seus iguais e dependentes, a autoridade sobre a família e
servidores, a hospitalidade e o senso de honra pessoal e familiar» (Schwartz, 1988, p.
230). O homem designado só como nobre ficava numa zona indefinida e difusa de
transição entre o plebeu e o fidalgo. Deste se vai aproximando. Aparência, influência
e eficácia em acrescido reconhecimento de superioridade correspondendo a um
comportamento. Que ou seria aceite pela sociedade e pelo rei, e integrado, ou se
quedava pelo exterior, eventualmente próximo, sem pertença ao grupo.
De um postulante a um colégio de Salamanca, natural de Campo Maior, se apura ser
«de casta d’escudeiros, cavaleiros e fidalgos», que «governam e sempre governaram a
terra e serviram os ofícios nobres dela, de juízes e vereadores, sem terem raça nenhua
[nem] mácula de cristãos novos», «pessoas nobres que se tratavam a lei da nobreza,
com moços e escravos e cavalos, como cavaleiros» (Marques, 1988, p. 26). Para finais
do século chamava-se-lhe viver (ou aparentar viver) à lei da nobreza. «E todos os de
Portugal e desta ilha [São Miguel] são de grandes espíritos e viveram e vivem sempre à
lei da nobreza, abastados com cavalos de estado, e criados e escravos de seu serviço»
(Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tomo I, p. 50). Um tal Francisco Veloso solicita o
hábito de Santiago invocando que vive «bem e honradamente», tem escravos e
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
escravas e moços que o servem, serve ele mesmo o rei no trato de Guiné e é rico;
além disso, não vem de casta de judeus nem de mouros nem anda homiziado. Vive
«limpamente à lei de cavaleiro». Depois de 1572 convinha acrescentar que nem pai
nem avós tinham sido oficiais mecânicos (Olival, 1988, vol. I, pp. 112-220, n.° 11). E
juntar qualidades morais de pai-patriarca. Rui Gago da Câmara era «de tal condição e
tão nobre, que nunca agravou soldado seu, nem usou de condenação, e prendendo-os e
tratando-os com muito amor, como filhos e assim é pai de todos e da mesma vila [da
Ribeira Grande], acudindo primeiro que ninguém a todas as pressas e necessidades
dela, e fora dela, com sua pessoa e fazenda» (Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tomo I, pp.
143-144).
Comportamento. Se o fidalgo não tinha de se cuidar, pois não perdia a qualidade que
detinha por linhagem ou por mercê régia, já o nobre não podia esquecer-se disso. O
reconhecimento da sua honra passava pela aparência. Rui Brandão Sanches, dos
principais que governavam a cidade do Porto, testa que no seu morgado não pode
suceder gente não nobre nem cuja linhagem não seja antiga — a menos de um dote
que valha quanto as terras vinculadas (Brito, 1991, p. 211). A riqueza compensava a
falha da linhagem. Ao nobre não convinha ter próximo uma ascendência de oficiais
mecânicos (ou não devia saber-se). Uma boa fortuna acabaria por elevar, sobretudo
os que conseguissem um hábito numa ordem militar.
O exagero com que os grandes, fidalgos, cavaleiros e escudeiros (e quantos se querem
mostrar como vivendo à lei da nobreza) se apresentavam em público levou D.
Sebastião a dispor uma séria limitação. «Que nenhũa pessoa de qualquer stado &
qualidade que fosse, pudesse trazer consigo mais que ate dois pages a pé, & dois homes
de esporas, & um escravo em pelote com mandil sem capa.» Além destes, podiam
acompanhá-lo outros, desde que fossem portadores de tochas (Leis Extravagantes,
1569, quarta parte, tít. I, Lei VI, 11. 116). Uns anos antes, e com o exagero próprio dos
cultores das letras humanísticas, Nicolau Clenardo escrevera que homens famélicos
se envergonhavam «de mostrar que se sabem servir das mãos». Apresentam-se na
rua com nove criados: «dois caminham adiante; o terceiro leva o chapéu; o quarto o
capote, não adregue de chover; o quinto pega na rédea da cavalgadura; o sexto é para
segurar os sapatos de seda, o sétimo traz uma escova para limpar os pelos do fato; o
oitavo um pano para enxugar o suor da besta [...] o nono apresenta-lhe o pente»
(Cerejeira, 1949, p. 288). Na corte de Filipe III, em Valhadolid, os Castelhanos
zombavam da soberba e vaidade dos Portugueses: «não cuida um fidalgo português se
não em que entrando na Corte, a hão-de assombrar» com os seus lacaios, «mais rica e
custosamente vestidos do que nunca seus bisavós o fizeram nas suas vodas» (Veiga,
1988, p. 175). Quem se aproxima do rei e tem mais posses pode e deve alardear
grandeza. Assim o capitão de São Miguel, Manuel da Câmara, sustentava na corte seu
filho D. Rui Gonçalves da Câmara, «gravemente acompanhado». Trazia consigo «oito,
nove homens de esporas e outros tantos pajes». Era «tão grandioso [...] que o que tinha
era muito pouco para o gastar todo em uma hora». Gastar sem tino. Retirar-se quando
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
em atrapalhação com dívidas vultosas. Juntar para tomar a gastar (Frutuoso, 1977-
1987, livro IV, tomo III. pp. 114-118). Assim o exigia a manutenção do status social.
Tinham de se mostrar liberais, para não serem mal vistos. «Do povo cego [...] é
murmurado que ajunta muito dinheiro», diz-se de pessoa principal dos Açores.
Frutuoso desculpa: não «é pecado ajuntar sem dano para gastar a seu tempo devido,
antes é prudência e virtude» (ibid., pp. 122-123). A sovinice cheira a riqueza recente.
Desqualifica.
Os títulos. Os titulares tinham mesmo de ostentar e os rendimentos que lhes
atribuem não parecem muito elevados. Antes de 1530, talvez por 1529, um siciliano
apresenta rendas anuais dos títulos portugueses, em ducados (Marineo Sículo, 1530,
fl. XXV; Pereira, 1986, p. 813, n.º 51 e 52) (quadro III).
Faltam alguns, como o conde de Vidigueira, o visconde de Vila Nova de Cerveira e o
barão de Alvito. Do duque de Aveiro o autor confessa que não alcançou saber o
rendimento. Este perceberia anualmente quase 11 contos, sendo o segundo senhor
do Reino (Pereira, 1986, p. 798). Grande diferença entre os cerca de 16 contos
(tomando o ducado a 400 réis) para o duque de Bragança e um conto e duzentos mil
réis para os condes menos afortunados. A estes o rei tinha de prestar ajuda, não fosse
ficarem incapacitados de assistir aos serviços da corte que a titulação impunha.
Viver junto do rei saía caro. Fará mesmo parte de uma política deliberada de
domesticação dos grandes tê-los amarrados a grandes despesas. Diz-se que Filipe II
«foi o que fez endividar os Grandes de Espanha, para que com a falta de dinheiro lhes
não fervesse o sangue» (Veiga, 1988, p. 218). A ausência de rei em Lisboa a partir de
1583 teria contribuído para o reforço da aristocracia portuguesa, que nas cortes de
aldeia sempre ia poupando ostentações e espalhafatos. E aumentando a pressão
sobre os que lhes pagavam as rendas.
Quadro III
Rendimentos estimados
em ducados, cerca de 1529
menos com essa fama, uma vez a valentia pessoal evidenciada e reconhecida,
justificava uma tença, um casamento, um hábito numa ordem militar, no melhor dos
melhores, uma comenda.
As comendas, que transitavam para os laicos parte dos rendimentos e dos
tributos pagos à Igreja, são ainda mais apetecidas depois de 1496, quando D.
Manuel consegue acabar com a obrigação do celibato (Góis, 1926, parte i, cap. XVII,
pp. 34-35). Aumentar o número das comendas de Cristo, que D. Manuel consegue do
papa (comendas novas), era indispensável para mais servidores galardoar, sem que a
Fazenda régia sofresse.
Em especial as comendas são concedidas por feitos em combate contra os
Mouros pois pertencem às ordens militares de Cristo, Santiago e Avis. A dois
filhos de D. Nuno Manuel, seu guarda-mor, sem fortuna, manda D. Manuel «que
fossem a África vencer comendas», o que implicava estarem por lá uns anos
(Anedotas, 1980, pp. 68-69). O segundo filho do conde de Sortelha, D. Simão da
Silveira, era fidalgo muito pobre, a quem D. João III propõe que vá a África «servir
uma comenda» (ibid., p. 75).
O próprio rei tem de justificar a distribuição dessas rendas em troca de
serviços prestados. Além do mais porque se trata de converter «as rendas da Igreja
e o património dos pobres em rendas e patrimónios dos leigos e ricos» (Dias, 1960,
tomo II, p. 482). A Ordem de Cristo dispunha, em 1611, de 456 comendas, com o
rendimento anual de 90 090 258 réis; a de Santiago 85 comendas, no valor de 35 684
000 réis; e as 45 de Avis, 24 963 000 réis (Falcão. 1959, pp.209-212).
Muitas vezes o rei não cumpria as suas promessas de tenças. O que era mau,
porque delas dependiam as vidas «dos fidalgos e pessoas principais [...] e além disso é o
mais barato soldo por que se podem achar soldados» (Sousa, 1938, vol. II, p. 316).
Havia-os que esperavam anos sem se verem premiados. Francisco de Sousa Tavares,
que recebera por casamento uma comenda, bem desesperou. Deveria ser, no mínimo,
de 100 000 réis, «que é a valia das mais baixas comendas que se dão a fidalgos» — o
valor médio, em 1611, era de 197 566 réis (Costa, 1980, p. 120).
O rei, para assegurar o necessário fluxo de ambiciosos, servidores e aguerridos para o
serviço de ultramar, tinha de encontrar formas de compensação equilibrada. Por isso
vai conceder os comandos das fortalezas apenas por três anos, numa rotação que a
bastantes permitia esperar pela apropriação de riquezas ou que atestados atos de
bravura se convertessem em recompensas embora com o defeito de mal tratadas,
como se «vinhas de renda» (Costa, 1983a, p. 49). D. João III dá um posto de capitão-
mor para a Índia a D. Francisco Rolim, para que não tivesse de vender a sua vila da
Azambuja. Fê-lo a pedido do conde da Castanheira, que bem poderia ter beneficiado
com a compra desse senhorio. Comportamento de ajuda a um fidalgo em apuros, que
remete para a solidariedade horizontal entre privilegiados (Anedotas, 1980, pp. 124-
125; Atienza Hernández, 1987, p. 16). Porventura de um mesmo «partido» na corte. A
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esperam mercê de satisfação, então se vai o Governador com que serviram, e tornam a
começar de servir de novo com o Governador que vem; e assi são velhos no serviço e
novos no merecer» (Correia, 1975, livro IV, cap. IV, p. 19). Mercês e favoritismos.
Afonso de Albuquerque falha a primeira instalação em Ormuz, entre outros motivos,
por inábil proteção aos sobrinhos (Barros, 1974-1990, Década II, livro II, cap. V, p.
72). Logo o primeiro vice-rei, D. Francisco de Almeida, levara o filho D. Lourenço
como uma espécie de número dois. O mesmo fariam muitos outros, como D. João de
Castro. D. Duarte de Meneses atua em conjunto com seu irmão D. Luís. De um outro,
D. Duarte de Meneses, em fins do século, se diz que quem governava era um tio, Rui
Gonçalves da Câmara. Irmãos, filhos, tios, sobrinhos, parentes, redes de seguidores...
Um governador nomeado é um grupo familiar que entra na exploração de um posto.
O velho D. Pedro Mascarenhas foi vice-rei, em parte por não ter filhos. Afinal tinha
sobrinhos, que souberam aproveitar-se (Couto, 1777-1788, Década VII, livro I, cap. I,
pp. 30-33, e cap. IV, p. 40). O mesmo se passou no Brasil, com nota especial para D.
Duarte da Costa.
Vice-reis, governadores e capitães de fortalezas, se sabiam ser liberais, atraíam
outros fidalgos, nobres e soldados ao seu serviço. Os fidalgos endinheirados dão
alimentação (mesas) aos soldados durante os períodos em que não há combates,
juntando assim clientelas fiéis, ou pelo menos gente agradecida e de sua obrigação.
Enriquecer dependentes e servidores dá dignidade ao cargo e à pessoa (Couto, 1980,
p. 39).
As clientelas tomam a peito as vaidades e prosápias dos senhores cujos homens
eram. Fernão Mendes Pinto narra como no interior da China prisioneiros discutem
sobre a maior ou menor moradia na casa real de Madureiras e Fonsecas (que
estariam bem longe), «nacida de ua certa vaidade que a nossa nação portuguesa tem
consigo, a que não sei dar outra razão senão ter por natureza ser mal sofrida nas
cousas da honra» (Pinto, 1974-1984, cap. CXV, vol. III, pp. 3-4). Todo o imaginário
coletivo das linhagens transferido e assumido pelas respetivas clientelas. São estes
pontos de vaidade de honra «matéria de toda a paixão da nação Português» (Barros,
1974-1990, Década III, parte I, cap. VI, p. 16).
A manutenção de clientelas das grandes casas também era uma obrigação do
monarca. D. Manuel, para acrescentar a já enorme fortuna e prestígio dos Braganças,
pede ao papa que 15 igrejas passem a comendas de Cristo, a serem providas como
padroado pelo duque, em conjugação com o monarca, que concederia o respetivo
hábito da ordem (Gavetas, 1962. vol. II, p. 513). Apoio e sustentação do status dos
aristocratas, mas não sempre, nem quando as rendas do próprio rei eram postas em
causa (ibid., pp. 627-632).
Nesta sociedade fortemente aristocrática, o rei atua em simultâneo como pai da
grande família dos súbditos e como primeiro dos senhores. A todos deve alguma
coisa, para mostrar a sua autoridade. Crítica de um italiano: «Todos vivem com o rei,
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
todos recebem rendas das rendas do rei e todos roubam o rei» (Marques, 1987 h, pp.
212-213). «Os reis por acrescentar / as pessoas em valia, / por lhe serviços pagar, /
vimos a uns o dom dar / e a outros Fidalguia», assinala Garcia de Resende (Resende,
1902, vol. III, p. 213).
Nobrezas e fidalguias «são us meros acidentes» que se perpetuam «na substância das
terras em que existem; e que tem por fundamento a riqueza, sem a qual não
permanecem as calidades das pessoas» (Maldonado, vol. I, 1989, p. 168). O que
contava era ser fidalgo: «Homem que não é fidalgo não é chamado pera nada» (Couto,
1980, p. 90). A menos de ser rico, que a fidalguia poderia vir a obter. Dizia-se na corte
de D. João III que a felicidade de um português consistia «em chamar-se Vasconcelos;
logo ter uma quinta; depois seiscentos mil réis de renda». Nome de família ilustre, bens
de raiz, bom rendimento.
A ascendência fidalga, mesmo que por bastardia, devia ser tida como honrosa.
Espantado ficou D. Constantino de Bragança quando um bastardo de D. Teodósio,
duque de Bragança, recusou o reconhecimento da paternidade, com as
preeminências, postos e lugares que se lhe abriam. Não queria pôr em causa o bom
nome da mãe (Anedotas, 1980, pp. 140-141). Manifestação de dignidade
desorientadora para os aristocratas, para quem a honra não passava pelo respeito da
virtude da gente miúda.
A elasticidade social e a possibilidade de mudança de estado e condição estavam
abertas, desde que o rei assim o entendesse e o comportamento individual a isso
desse acesso. Nem de outro modo a Expansão teria representado um atrativo. O
indivíduo contava, e o individualismo dos comportamentos revela essa abertura.
Gente nobre da governança da terra e oficiais régios - Joaquim Romero de Magalhães (pp.
421 – 427)
«Todalas nações tem seus termos de nobreza, e honra, causa dos maiores trabalhos da
vida», sentencia João de Barros (Barros, 1974-1990, Década I, livro III, cap. IX, p.
103). Também os estratos sociais se diferenciam pelos conceitos centrais
motivadores da sua atuação. Por 1570, o procurador d’el-rei no Porto, Francisco Dias,
regista quais «as honras de que os homens mais prezam nesta cidade do Porto»; «serem
vereadores», «levarem tochas no dia de Corpus Christi» e «levarem as varas do páleo
em as procissões e festas do ano». Como pessoa honrada que era, o nosso informador
regista que foi vereador, que levou tocha e varas de pálio. No entanto, ser vereador
mais de uma vez «não é de boa suspeita». Poderia querer dizer que andava metido em
alguns negócios e que influenciaria demasiado pelo lugar ocupado. Também era
honroso ser guarda-mor e superintender na defesa da saúde da terra, com não pouca
autoridade. O que permitia muitos abusos, pelos degredos e impedimentos de
entradas por que eram responsáveis. Não menos honrada era a escolha para eleitor,
ou seja, arrolar os que tinham qualidade e condição para ocupar os lugares nas
câmaras. Francisco Dias acrescenta, como desabafo: «Estes Deus sabe se por afeição se
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
por bem da República elegem; eles o sabem» (Dias, 1937, p. 102). A honra para os
cidadãos não se confundia, pois, com a que mereciam, exibiam e superiorizava
os fidalgos.
Os estratos superiores da sociedade encontravam-se desde há muito delimitados. Um
grupo que lhe é inferior ganha importância no decurso do século XVI: o da gente
nobre da governança das terras. Designação que vai substituindo a anterior de
cidadãos e homens-bons que regiam as câmaras (embora persista na lei). Cidadãos
que se vão aproximando dos fidalgos (Carvalho, 1922, pp. 22-23). Por 1570, no Porto,
já se distinguem apenas dois grupos: nobres e mecânicos (Cruz. 1967, p. XXI). De
algum modo essa elevação na linguagem das honras resulta de o rei assentar sobre as
câmaras delegações várias de poderes, num neomunicipalismo querido e a ganhar
força. Com acrescidas responsabilidades, as oligarquias que dominam as câmaras, os
principais das terras, firmam um imenso poder efetivo de mando (potestas). Os que
detinham os ofícios concelhios eram olhados, pela sua presença e papéis
sociais, como os que mandavam — sem que isso afetasse o poder real, a auctoritas.
Apesar de filtrarem e canalizarem, quando não condicionarem, o exercício do poder
régio. Os mais honrados, os principais, os cidadãos que andavam na governança
da terra, dispunham de um mando efetivo e acatado: guardas-mores da saúde,
ocupando (desde 1569-1570) importantes postos militares nas ordenanças,
controlando o processo de cobrança de sisas, fintas e outros tributos, decidindo das
taxas dos oficiais mecânicos e fixando as jornas dos trabalhadores (e outras funções),
sendo sempre chamadas às mais importantes decisões das comunidades locais,
deviam viver «limpamente de sua fazenda» (Livro 2°, 1958, p. 112).
De um modo geral, esta gente tem bens de raiz e rendimentos da terra. Não
obsta a que alguns, em núcleos urbanos de movimento comercial, como Viana de Foz
de Lima ou o Porto, fossem mesmo mercadores. Em geral não o eram. E gozando os
privilégios da sua qualidade de cidadãos, não a perderiam se se dedicassem a
negócios. Não de um modo ostensivo, de tenda aberta. Mercadores de grosso trato,
não vendendo e comprando pelo miúdo, vivendo à lei da nobreza, acabavam por
conseguir elevar-se a nobres (Silva, 1985, pp. 329-331). Os mercadores de profissão,
em geral, ficavam numa posição marginal, indefinida e mal delimitada, não figurando
nas vereações. Muitos deles afazendados, alguns mesmo ricos e muito ricos,
constituem uma «classe» poderosa que se não exprime numa «ordem» (ou
«estado») jurídica (Mousnier, 1988; Burke, in Bush, 1992). Alguns acabariam
promovidos à cidadania e até à fidalguia. Questão de tempo e de uma estratégia
bem montada. Mais difícil de subir para os provenientes de ofícios mecânicos. No
entanto, o rei podia conceder-lhes privilégios de cidadãos. Entre 1521 e 1527
receberam essa «cidadania» três ourives de Coimbra (Loureiro, 1964, vol. II, p. 236).
Pela sua riqueza? Por prestarem serviços com dinheiros, funcionando um pouco
como se fossem banqueiros (Autos, 1989, p. 219)?
A aristocracia local dos cidadãos e homens-bons enobreceu-se, criou os seus
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
próprios pergaminhos, que a lei acrescentou, ao dispor que os que tivessem sido
juízes e vereadores passassem a ser isentos de pena vil por duas vidas e os que
tivessem sido procuradores apenas por uma vida. Ora a pena vil era a grande
distinção entre peões e gente de mor qualidade, decisiva fronteira social
(Godinho, 1975, pp. 75-78). Enobrecimento como reforço ao status aberto pelos
privilégios dos capitães das ordenanças, que as câmaras escolhiam entre os seus,
desde 1570, e que davam a categoria de cavaleiros aos que tais postos tivessem,
mesmo que o não fossem.
A distinção legal diferenciadora para os que andavam nos governos municipais
aparecia, embora de modo menos claro, nas Ordenações Manuelinas. Aí se dispunha
que vereadores e juízes de alguma cidade não seriam metidos a tormento «em algum
caso» (livro V, tít. LXIV), o que já vinha do tempo de D. João I (Ordenações Afonsinas,
livro V, tít. LXXXVII). É de crer que as vilas (pelo menos as notáveis) fossem obtendo
os mesmos privilégios. E o seu desrespeito podia causar complicações. Em 1521, em
Viana de Foz de Lima, o juiz de fora procede à prisão de Femão Pais, pondo-o a ferros
d’el-rei. Protestos imediatos junto do corregedor da comarca de Entre Douro e
Minho, que repôs as coisas no são: «Todo o homem que entrava numa vila nas
enleições dos juízes e vereadores e procurador não era preso a ferros, salvo sobre sua
menagem, e esto nas cousas em que o eram os cavaleiros fidalgos» (Moreira, 1986, p.
86). Mais grave ocorreu no Porto, em 1602, quando os vereadores foram presos «na
Cadea pública desta cidade sem lhe guardar menagem nem qualidade de suas pessoas».
E que gozavam dos privilégios de «infanções que tem os vereadores desta cidade e
cidadãos dela» (Cruz, 1943, p. 36). Pertencer à gente nobre da governança,
expressão que começa a generalizar-se pelos anos de 1570, era honroso e
vantajoso.
Um dos privilégios mais estimados era o de cidadão do Porto. Considerava-se uma
espécie de nobilitação. Mesmo para alguém que por lá não vivesse. Um morador na
Terceira sentir-se-ia muito honrado se o rei lhe concedesse os privilégios de cidadão
do Porto (Arquivo, 1981-1984, tomo V, p. 137). Não podia ser preso na cadeia
pública, mas em sua casa, sob menagem; podia vestir sedas, ostentando assim uma
supremacia evidente (Privilégios, 1987, pp. 217).
A gente nobre tem de se apresentar publicamente como a mais importante da terra.
Há momentos em que estes poderosos se mostram ao todo da população que regem
de um modo especialmente brilhante: maxime as procissões do Corpus Christi. Cada
grupo profissional está encarregado de uma parte de um conjunto complexo, que
culmina com os principais da terra levando tochas e pegando às varas do pálio.
Mesmo entre estes as precedências são minuciosamente fixadas. A sociedade mostra-
se arrumada na sua forma ideal. Sem confusões possíveis («Acordos e vereações», in
Bracara Augusta, tomo XXXI, 1977, p. 548).
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
dois anos passados a câmara escolhe «Fernão Soares Pais e Bento Arrais cidadãos
para os nobres, e António Fernandes mester da mesa e Estêvão Francisco para os de
baixa condição e Pero Enriques e Pero Serrão, mercadores para os mercadores» (Sisa
de 1599, 1973, p. 1). Diferença sensível: o cidadão passou a significar nobre,
abrindo-se mais ainda a distância em relação ao povo, que agora se diz de baixa
condição. Os mercadores, que vinham em seguida aos cidadãos, passam a último
lugar, numa evidente despromoção.
As limitações introduzidas ao disposto nas Ordenações de 1603 pela provisão de 23
de Março de 1605 e pelo Alvará de 12 de Novembro de 1611 facilitam um processo
velho de ligações familiares que se pode qualificar de endogâmico. Os elegíveis são
todos parentes (Magalhães, 1988, pp. 323-334; Brito, 1991, pp. 12-15). O que por
vezes torna o apuramento das câmaras difícil. O que tinha de estar previsto: dos três
vereadores da Praia, permanecia o mais velho para o ano seguinte. Se acertava a que
um dos outros estivesse familiarmente muito próximo do que ficava, elegiam outro
(Arquivo, 1981-1984, vol. V, p. 371). Era comum que isto acontecesse, pois os
elegíveis cada vez mais escasseavam.
De fora do poder exercido localmente por esta gente nobre vai ficar a de Lisboa, sem
acesso ao governo municipal a partir de 1572 (Coelho e Magalhães, 1986, p. 31). Nem
por isso os antigos cidadãos de Lisboa dispensam a designação de nobres e cavaleiros
do leal povo de Lisboa (Soares, vol. I, 1953, p. 48). Restava-lhes participar na eleição
dos procuradores às cortes e, a partir de 1596, constar da pauta dos almotacés
(Oliveira, 1887-1888, tomo I, p. 90). Força política reivindicativa tinham aí os
mesteres, em representação da Casa dos Vinte e Quatro. Dos eleitos anualmente,
quatro serviam como procuradores junto da vereação, dos restantes dezoito um era o
juiz e outro o escrivão (Oliveira, 1620, fl. 143 r-v). A hereditariedade chegará. Retira-
se a pena vil de açoutes, baraço e pregão aos que tiverem servido na Câmara de
Lisboa em 1524, o que D. Sebastião alarga em 1575 aos filhos, «por honra e
autoridade do dito ofício e trabalho continuo que nele tem». Aproximação ao
enobrecimento, que D. Manuel já equiparara a escudeiro, enquanto em funções
(Langhans, 1948, p. 129-139).
Servir de almotacé permitia a expectativa de uma ascensão social ao grupo dos
cidadãos. Nem sempre. Em 1543 Coimbra fica autorizada a escolher almotacés entre
os que fossem escudeiros, dizendo-se que estavam abaixo de cidadãos, não obstante
terem cavalo e armas (Loureiro, 1964, vol. II, p. 163). Alguns, por via de servirem de
almotacés, arrogavam-se o privilégio de cidadãos. Ora o rei vai fechar expressamente
essa porta em 1605, ano da provisão que também inibe o alargamento a possíveis
vereadores e em dispositivo em que também se encontra a mão do aristocrático
desembargador Damião de Aguiar. O rei determina que só sejam escolhidas pessoas
idóneas, netas e filhas de cidadãos (Livro 2º, 1958, pp. 216-217). Mas logo a seguir,
em 1611, entende o Desembargo do Paço que não devem ser almotacés os
vereadores, mas os de uma qualidade mais baixa, que servem de procuradores, desde
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
que «vivam à lei da nobreza» (ibid., pp. 235-236). Cidadãos, mas um pouco menos
qualificados. E entraram alguns filhos e netos de mecânicos, obrigando a nova
provisão, em que se vedava a escolha de almotacés dessa origem (ibid., p. 253). O que
fica legislado para todo o território por um alvará de 5 de Abril de 1618, em que se
fixa que os almotacés seriam da gente nobre «e dos milhores da terra», que neles se
deviam perpetuar os cargos e «nunca neles entrarem descendentes de oficiais
mecânicos». Muito menos de nação infecta (Repertório, 1815-1819, n.° 611, e
Magalhães, 1985, p. 28). É o fecho contra aventuras permissivas. Todavia, na
sociedade ainda se sentia alguma vibração social.
Privilégios por ascendência ou mercê régia, defendidos publicamente por um
continuado estilo de vida prestigiante. O reforço e limitação numérica dos agora
homens nobres convergiu para dar consistência à aristocratização concelhia em
marcha. A ligação entre os eleitos para os cargos municipais e o conjunto dos
vizinhos atenua-se, se é que não se perde. Cada vez menos se assiste…
Quadro IV
Média anual das matrículas realizadas na Universidade de Coimbra por quinquénios
Faculdades
Anos lectivos Total
Teologia Cânones Leis Medicina
Estatística das matrículas realizadas na Universidade de Coimbra em cada quinquénio, desde o ano de 1573 até
1624
Faculdades
Anos lectivos Total
Teologia Cânones Leis Medicina
1 Estes números abrangem apenas três anos letivos, os de 1573-1574, 1577-1578 e 1578-1579: não existem os livros
de matrícula dos três anos letivos de 1574 a 1577.
2 Falta o livro de matrícula do ano letivo de 1584-1585, referindo-se, por isso, a quatro anos apenas os números aqui
registados.
3 São relativos a quatro anos estes números, pois não há registo da matrícula do ano de 1606-1607. Segundo
Vasconcelos, 1988, vol. N. II, pp. 120-122
Porém, a formação dos magistrados não os levaria desde cedo a sentir a divisão dos
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.
Maluco. Largo espaço. Muita gente. Os primeiros resultados mostraram que valia a
pena. Se o enriquecimento não era garantido, pelo menos abriam-se boas
expectativas. Em que contavam o valor pessoal e a sorte. A maioria dos primeiros
portugueses na Ásia, que atua não poucas vezes de maneira temerária e sem sentido
estratégico, quereria simplesmente «ganhar honra» (ibid., cap. IV, p. 258).
Boa parte desses fidalgos, cavaleiros e escudeiros foi-se ficando pelo caminho.
Morria-se muito. Também as fortunas ganhas em um momento se perdiam no
seguinte. Alguns obtiveram êxito, não apenas no alcançar das riquezas, mas na sua
transferência para o Reino. E, naturalmente, engrossaram o poderio do grupo dos
fidalgos bem instalados e da gente cavaleirosa. Sem alterar a ordem social
estabelecida. Cada fidalgo ou cavaleiro enriquecido contribuía para reforçar a
estrutura social preexistente. Melhorava a fazenda dos que já pertenciam às camadas
superiores e que nelas melhor se instalavam, ou delas não viriam a desmerecer.
Nem todos. Havia muitas perdas. Como se assinala, «nós não lhes vemos morgados,
nem contos de juro de tantos milhões de cruzados, como tiram de suas fortalezas, nem
sabemos por onde se lhes consumem todos, porque eles não se logram» (Couto, 1777-
1788, Década V, parte I, livro II, cap. VIII, p. 197). Nem 2 em 100 dos que de lá vêm
têm de comer ou com que instituir morgados (Couto, 1980, p. 25). E um outro azedo
afirma: «Com a boca cerrada se poderão contar os morgados e lucros que viso-reis e
capitães deixassem a seus herdeiros» (Memórias, 1987, p. 147). Bem menos do que se
deveria esperar.
A Índia destina-se aos que, à partida, não herdariam riqueza. Abre-se aos que pouco
ou nada têm, visível o número de bastardos da fidalguia que aparecem por lá. Talvez
por isso não caia bem que herdeiros não necessitados partam para o Oriente. Em
1545 fora muito estranhada a ida de D. Jerónimo de Meneses, o Bacalhau, filho e
herdeiro de D. Henrique de Meneses, irmão do marquês de Vila Real, pois «tinha de
comer, e era filho mais velho de seu pai» (Couto, 1777-1788, Década VI, parte l, livro I,
cap. I, p. 7). Contra a vontade de irmãos e parentes se embarcara em 1538 D. João
Manuel, o Alabastro, que tinha mais de um conto de renda (ibid. Década V, parte I,
livro III, cap. VIII, p. 280). Aventureiros, fugindo a comportamentos esperados,
desequilibravam arrumações familiares? Não se gastam os rendimentos dos
morgados no serviço real. Constata um soldado que «nenhum que tenha de comer em
Portugal quer passar» à Índia (Memórias, 1987, p. 172).
E normal irem filhos segundos, vergônteas de gente de primeira plana. Com as
nomeações para a Índia o rei proporciona promoções que no Reino já não eram
possíveis, por escassearem riquezas para redistribuir.
Contudo, não se encontrava facilitada a passagem individual de um estrato a outro.
Em simultâneo, a mistura social para fidalgos e nobres sem grandes ambições e suas
filhas, na Índia, não seria invulgar, embora não trouxesse, por si só, elevação social.
Nas periferias a incerteza do status originário põe a riqueza no centro da arrumação
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assim não lhes é possível deixarem cá [no Brasil] tanta fazenda e comprarem lá [em
Portugal] outra, contentando-se mais de a terem no Brasil pelo grande rendimento que
colhem dela» (Diálogos, 1956, «Diálogo III», p. 157).
Cavaleiro-mercador. Diferença de fundo: política de transporte, política de fixação
(Sérgio, 1929, pp. 69-109). Com os distintos interesses se ligam os respetivos
comportamentos. Enquanto no Brasil domina o patriarca rural fidalgo (ou com fumos
de fidalguia) — se bem que associado a mercadores, para escoamento do açúcar —,
no Oriente modela-se e radica-se o cavaleiro-mercador, tão atento à guerra quanto ao
preço da especiaria. Cavaleiros-mercadores que também se encontram instalados, e
bem, em Lisboa — e de que o rei não é o menor (Godinho, 1975, pp. 89-94). Assim,
«nem o marinheiro, nem o mercador, nem o soldado, nem ainda o fidalgo querem que
lhe pergunte senão pelos preços das fazendas que correm na terra, pelo que valerá em
Ormuz, e em Malaca» (Couto, 1777-1788, Década V, parte II, livro VIII, p. 202). Nos
soldados da índia é corrente esta «mecânica e vil subtileza de adquirir dinheiro»,
sendo os capitães das fortalezas tanto mercadores como militares. O comércio não
somava prestígio na sociedade aristocrática, que, contudo, não o dispensava, porque
lhe dava a riqueza. Um cavaleiro não desprezava o trato mercantil de que tirava
lucros, exercitando-o por si ou por seus caixeiros. Com isso se apresentava à lei da
nobreza com «lacaios, escudeiros e pajens» (Anedotas, 1980, pp. 168-169). Assim o
notou um arguto observador estrangeiro: «São quase todos mercadores, embora se
mostrem inimigos mortalíssimos deste nome, porque querem apelidá-lo de pessoa
baixa. E, no entanto, [...] são mercadores mais baixos do que rendeiros e a maior parte
das riquezas que possuem ganharam-nas com o comércio [...]. Falando porém dos
fidalgos, eles vão e vêm das índias continuadamente com as suas mercadorias, como o
faz qualquer criaturinha» (Marques, 1987 b, pp. 230-231).
Neste jogo aparecem muitos e interessantes figurões. Jorge da Silva, filho de João da
Silva, regedor da Casa da Suplicação, enamorado da infanta D. Maria, autor de livros
devotos, acaba casado com a filha única de um contratador muito rico: porém
continuou com o trato do sogro, que «exercitou por seus caxeiros» (Anedotas, 1980,
pp. 167-169). Fidalgo de boa linhagem, D. Lopo de Almeida, neto do conde de
Abrantes, filho do contador-mor do Reino, clérigo ainda por cima, chegou ao fim da
vida em Madrid com rendimentos anuais que deviam rondar uns 10 000 cruzados (4
contos de réis). Avisado homem de negócios. Empregava avultados capitais em sedas,
especiarias e adornos preciosos. Emprestava sobre penhores de jóias, que
cuidadosamente avaliava com balança própria para pesar ouro. Ouvira Matemática
em Paris, boa preparação para usurário. Não passou de capelão régio, talvez por isso
(Brandão, 1990, pp. 110-120). Muitos outros, em pequena escala: de um vigário de
Diu se sabe que «muitas vezes ia negocear seos tratos e cousas de seus navios pela
manhã cedo e despois tornava a dizer missa» (Documentação, 1991-1992, vol. III, p.
475); um Frei Inácio de Chaves trazia dinheiro a câmbios em Vila do Conde (Miguel,
1980, p. 218); bem mais tarde (1614), Baltasar Estaço, cónego da Sé de Viseu, declara
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ter em sua posse objetos de ouro e prata, como penhores de quantias que lhe deviam
(Baião, 1936-1938, vol. I, p. 85). Seria fácil fugir a este ambiente mercantil, em que os
eclesiásticos e as próprias ordens religiosas, nomeadamente a dos Jesuítas, não
deixam de ter fundos interesses? No entanto, em 1612, ficciona-se que «a gente
nobre não tem trato» (Oliveira, 1887-1888, tomo II, p. 293).
O rei tinha de zelar pela manutenção do ordenamento social, situando-se no
centro da mobilidade social, travando-a ou propulsionando-a. Geria a abertura
para as promoções pessoais ambicionadas: concessão de comandos e viagens
(oportunidade para o enriquecimento) ou de tenças (retribuição pecuniária por atos
honrosos) ou, mais simples ainda, de moradia (reconhecimento da dignidade e honra
de pertença à casa real).
Bem trabalhosa era a vida daqueles que ambicionavam elevar-se na escala social. Da
mercancia ou dos ofícios, com um casamento bem preparado, executavam a sua
aproximação à gente nobre e fidalga. A geração seguinte estava no bom caminho.
«Deram em casamento a João Lopes, com sua mulher, duzentos mil réis, com os quais
tratou três ou quatro anos, e no cabo deles comprou o ofício de escrivão» (Frutuoso,
1977-1987, livro IV, tomo I, p. 160). Pecúlio inicial, êxito, compra de um honroso
ofício: estratégia bem montada. Conseguida a aproximação ou integração, era a vez
de ostentar, gastando o que os iniciadores do processo tinham acumulado. Pelo
contrário, «não é justiça que a filha do cavaleiro muito honrado e com muito dinheiro
case [...] com criados pobres» (Couto, 1980, p. 69). Iniciar a descida da escala social
era incapacitar-se para tornar a subi-la. E desclassificar a família. Daí a função social
conservadora dos conventos femininos.
Mercadores. Mercador parece ser um estado transitório entre mecânico e fidalgo.
Mercador empobrecido toma-se rendeiro? Mercador enriquecido acaba fidalgo? Para
a promoção dos mercadores à fidalguia exige-se habilidade e investimentos
simbólicos na terra e em comportamentos nobres. Sobretudo havia que
arredar suspeitas de sangue impuro (cristão-novo). A menos de se tratar de
grandes mercadores, ligados à casa real e que o rei entendesse premiar. Aconteceu a
Fernão de Noronha, feito cavaleiro antes de 1494, donatário da ilha que terá o seu
nome, com reconhecido brasão de armas, fidalgo de cota de armas em 1532, assim
trazido «ao conto e estima e participaçam dos nobres e fidalgos de limpo sangue»
(Espinosa, 1972, pp. 203-204). Poucas vezes encontraremos casos tão claros de
promoção (e quando ainda a pureza de sangue não contava). Porém, a prestação de
serviços, parceria em negócios ou qualquer jeito que merecesse reconhecimento
facilitavam a passagem. Sempre limitada. Os mercadores ricos esforçam-se por
casar e casar filhos e filhas com gente fidalga e nobre. E gente fidalga e nobre não
se escusará, embora prefira não se dedicar do mesmo modo aberto e público à
mercancia, mesmo que esse exercício lhe traga a fortuna para ascender ou manter o
status.
Tomava-se, por isso, notória a exceção dos moradores de Viana de Foz de Lima. Aí,
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todos «os nobres exercitam a mercancia a uso de Veneza e Génova, contra o costume
das mais terras de Portugal, que os louvam e não os seguem, invejam a felicidade e bons
sucessos do trato e não sabem imitar a indústria». Até as mulheres «vemos ir às escolas
com papel e tinta e aprender a ler e escrever e contar» (Sousa, 1946-1948, livro I, vol.
n cap. XXVI, p. 160).
Sociedade em que o comércio e os capitais desempenham papéis dinamizadores e
em que mercadores não se apresentam como detentores de valores sociais próprios,
mercantes e alternativos. Capitalismo mercantil enxertado numa sociedade em que
dominam os fidalgos que, não deixando de ser mercadores, sustentam valores de
honra e de hierarquia, na aparência estáticos, assentes numa estrutura diferenciada
pelas desigualdades dos privilégios. Que tem no rei e no absolutismo régio a
garantia do seu sustento e da sua defesa. «Ganhou-se a Índia com o sangue dos
pobres e homens pequenos, e os galardões e mercês faz El Rei aos fidalgos, por suas
valias e aderências» (Correia, 1979, vol. II, p. 912). No conjunto, nem as novas
formas políticas nem as novas dinâmicas económicas perturbaram ou
subverteram o ordenamento social. Bem pelo contrário, o peso da aristocracia
no conjunto do Reino sai acrescido e reforçado. Se a pouco espessa camada
superior dificilmente se deixa penetrar, o muito mais volumoso estrato que se
lhe subordina é bastante plástico e permeável.
Mobilidade social. A mobilidade social ascendente, a porosidade dos estratos
inferiores da aristocracia é ainda grande, pelo menos até ao conjunto de restrições de
1570. Ou por via da Igreja, dos feitos de armas ou da universidade, a promoção
social ia ocorrendo. Se o topo estava bloqueado, à posição de fidalgo e de nobre
sempre ia sendo possível o acesso de alguns. Individualizado. Por prémio de serviços
prestados (no Norte de África e no Oriente, menos no Brasil), desde que houvesse
fortuna e comportamento à lei da nobreza a sustentar essa nova condição. Ou a
nomeação para os lugares da burocracia da nova forma de Estado. E, sempre, desde
que sobreviesse o reconhecimento do rei ou, no caso da gente nobre, a inclusão nos
ofícios da governança local. Depois a estratificação parece tender para a estabilidade.
Ainda não de todo alcançada nas primeiras décadas do século XVII.
Estrutura que assenta numa base estreita dos que trabalham para sustentar o todo,
fortemente penalizados, em que os escravos são indispensáveis. E a que se foge, ou
é empurrado para a emigração. Cada vez mais dominadora e entrelaçada com o
absolutismo régio e com a aristocracia que o serve, a Igreja atacará a seu modo.
Controla a dissidência. Vai disciplinando a violência individual, pelo ritual e pela
apropriação de bens. A cristalização social, numa desejada estabilidade, é
objetivo prosseguido. A magnificência do barroco exprime, em imagem triunfante,
esse ponto de chegada.
Sociedade com uma base estreita relativamente ao conjunto (quadros V a VIII). E
em que por isso o estrato mais baixo sofre o grande peso dos que lhe estão acima. É
assim em Alenquer, Loulé ou Coimbra, ao longo do século. O que explica a
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Percentagem
14 fidalgos 26
12 cavaleiros e outros que vivem cavaleirosamente
50 escudeiros e outros que vivem limpamente 50
54 vassalos e criados de fidalgos 54
Total de senhores e casas senhoriais 130 23
29 besteiros do conto
14 ourives e moedeiros 58 10,6
15 monteiros
235 lavradores 235 42
66 mesteirais (sapateiros, barbeiros, tanoeiros, carpinteiros,
alfaiates, ferreiros, etc.) 66 12
67 moleiros, lagareiros e trabalhadores que vivem por seu
trabalho 67 12
556
in Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, II, 1978, p. 22.
Quadro VI
Loulé em 1564
Quadro VII
Composição profissional da população de Coimbra em 1610-1613
Profissões Número de indivíduos Percentagem
1 — Primário:
Agricultura, criação de gado, caça e pesca 43 2,7
2 — Secundário:
Artes e ofícios 449 28,1
Mobiliário e madeira 43 9,6
Metais 38 8.5
Vestuário, têxteis, equipamento 236 52,5
Alimentação 36 8,0
Construção civil 65 14.5
Trabalhos artísticos e de piedade 29 6,5
Diversos 2 0,4
3 — Terciário 440 27,4
Comércio e transporte 189 11,8
Administração e serviços públicos 100 6,8
Serviços domésticos 60 3,8
4: Braceiros 39 2,4
Diversos e não discriminados 627 39,2
Soma 1598 100
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