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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

José Matoso – HISTÓRIA DE PORTUGAL Vol. 3 – Edição Estampa, 1997/98.


A SOCIEDADE
Os escravos e os emigrantes - Joaquim Romero de Magalhães (pp.399 a 403)
Abaixo do ordenamento social admitido, privados de liberdade e de quaisquer
direitos, os escravos. A partir dos primeiros resgates na costa africana (1444)
começa a vir para o Reino uma grande massa, que vai aparecer a desempenhar as
mais duras tarefas. Já em 1494 o Dr. Jerónimo Münzer se espanta com a quantidade
de negros que trabalham nas ferrarias dos Armazéns de Lisboa. Não só. Para o
mesmo observador, «é verdadeiramente extraordinária a quantidade de escravos
negros e acobreados que nessa cidade [de Lisboa] existem». A vinda de escravos muito
crianças, bem como o nascimento de filhos de escravas, acrescia à população negra. E
continua a vinda de escravos: que «grande quantidade de escravos negros se trazem
todos os dias da Etiópia para Lisboa!» (Vasconcelos, 1932, pp. 27, 51 e 63.) Numa
cristandade em que a escravatura praticamente desaparecera, não era pouco original
(Marques, 1987b, p. 179).
Trabalho servil «Os escravos pupulam por toda a parte. Todo o serviço é feito por
negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Estou em
crer que em Lisboa os escravos e as escravas são mais que os portugueses livres de
condição. Dificilmente se encontrará uma casa onde não haja pelo menos uma escrava
destas. É ela que vai ao mercado comprar as coisas necessárias, que lava a roupa, varre
a casa, acarreta a água, e faz os despejos à hora conveniente.» E a mesma testemunha,
esta flamenga: «Mal pus o pé em Évora, julguei-me transportado a uma cidade do
inferno: por toda a parte topava negros» (Cerejeira, 1949, pp. 281-282 e 286).
Muitos seriam os escravos, notando-se em especial em Lisboa. Por meados do século
entrariam por volta de 1600-1700 cada ano. Que não ficavam todos na cidade. Em
1551, em 100 000 almas contavam-se 9950 escravos, aproximando-se dos 10% do
total dos habitantes (Oliveira, 1938, p. 101). Mercadores de escravos seriam, em
1552, uns 60 ou 70. Escravos e escravas (ou já forros) dedicam-se às tarefas
mais vis e penosas: descarregar navios, carregar peixe e carne, vender azeite ou
água, lazer os despejos, vender marisco, ameixas e favas cozidas, lavar e ensaboar,
calar, descarregar carvão, andar ao trapo [Brandão (de Buarcos), 1990, pp. 203-215].
O peregrino Bartholomé, por 1576, diz Lisboa «madre de negros». Duarte Nunes do
Leão refere a «multidão de escravos» como uma das razões para o aumento das
carências frumentárias (Leão, 1610,11.63 v). No Algarve não se exagerará se se
avançar com uns 10% do total da população para finais do século XVI; o que viria a
dar à volta de uns 6000 (Magalhães, 1970, p. 231). Muitos seriam por todo o Sul e
vale do Tejo, em substituição da mão-de-obra que procurava emigrar — e tentar
a sobrevivência ou um árduo enriquecimento inalcançável com o penoso trabalho a
que se podia dedicar nas terras de origem.
A chegada de escravos (mão-de-obra de substituição) acelerava o movimento de
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emigração dos naturais, a que faziam concorrência, por não receberem salário ou
qualquer remuneração. Por outro lado, a sua aquisição exigia um investimento
elevado, pelo que não seriam muitos os que os podiam ter e manter. Por isso se
encontram em Lisboa, no Sul e nas Ilhas (em especial na Madeira) ou em Santarém,
poucos em Coimbra ou no Porto. Ainda há sinal deles no Norte interior, rareando em
Viana de Foz de Lima ou em Braga (Dias, 1960, tomo n, p. 461; Norton, 1981, pp. 394-
397- Brandão, 1972, vol. n, p. 208).
É para serviço dos territórios além-mar que os escravos são mais necessários.
Começou com a produção açucareira da ilha da Madeira, entre 1466 e 1479. Depois, a
concorrência de Cabo Verde e de São Tomé faz-se sentir não apenas no açúcar, mas
na mão-de-obra, que na Madeira encarece, e com ela o açúcar, provocando a
reconversão do canavial em vinha. A colonização de São Tomé, cujo clima se tinha
por muito insalubre e, portanto, de difícil ocupação, levou a que cada degredado
pudesse ter uma escrava para dela se servir (respeitava-se a fachada da monogamia),
sendo os filhos livres (Azevedo, in A.H.P., 1903, vol. I, p. 302). Esperava-se que os
negros e mulatos resistissem melhor às difíceis condições de vida. A multiplicação
resultou, tendo provocado uma bela revolta de «muitos escravos armados e sabidos
em todo o género de guerra», em 1554, em São Tomé, e um rijo ataque de pardos
contra brancos no Príncipe, em 1566 (ibid., pp. 302-303 e 306-307).
O tráfico dos escravos aumentou a partir de cerca de 1570 com o número
crescente de engenhos no Brasil e com os lucros do próprio trato, que se dirigia
também para as índias de Castela (Godinho, 1981-1983, vol. rv, p. 176). O resgate
africano de escravos era monopólio régio, adjudicado a assentistas, individuais
ou em grupos de mercadores, que dispunham de elevados capitais e que
transportavam a mercadoria para onde mais rendesse.
Indispensáveis para lavouras e granjearias. Todos «vivem, tratam e trabalham com
esta gente». Dependência. Em 1616-1617 «ficaram muitos homens neste Estado do
Brasil de ricos pobres pela grande mortandade que tiveram nos escravos». Embora. No
Brasil se forma «um novo Guiné com a grande multidão de escravos vindos dela que
nele se acham» (Diálogos, 1956, «Diálogo II», pp. 101-125). ,
De 1575 a 1591 foram transportadas para o Brasil e índias de Castela, só de Angola,
52 053 peças (Brito, 1931, p. 30). Há que contar ainda com o golfo de Guiné ou costa
da Malagueta e Arguim, donde acaso não terão ido menos (Godinho, 1981-1983, vol.
IV, p. 172). Escalas intermédias e entrepostos, as ilhas de Cabo Verde e São Tomé e
dos Açores — estas em especial com destino ao Peru (Arquivo, 1981-1984, vol. v, pp.
136-137). Grande seria o tráfico ilegal, sobretudo para as índias de Castela,
iniciado por 1509; trato impossível de quantificar. No triénio de 1597-1600, só para
Cartagena de índias teriam sido levados 15 763 escravos, mais 3437 com outros
destinos (Ulloa, 1977,299-300 e 409-421). Não poucos africanos foram para as
conquistas da Ásia, onde desempenharam papel fundamental na organização da

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defesa militar. Escravos orientais não faltaram no Reino, muito em especial


malaios e jaus. Por volta de 1515 estava fortemente condicionado trazer escravos da
Ásia (Gavetas, tomo v, 1965, pp. 355-356) e indígenas do Brasil.
A sociedade e os escravos. Se quanto aos africanos poucas vozes se levantaram
contra a escravização — «contra a justiça, a rezão, e contra toda humanidade» sopram
os bispos nas Cortes de 1562-1563 (Santarém, Provas, parte H, 1828, p. 61) —, já
quanto aos «saltos» para apanhar índios no Brasil os Jesuítas procuram
persistentemente impedi-los. Preferem a conversão e arrebanhá-los em
aldeamentos. As vezes desesperam, quando as suas boas intenções são desmentidas.
O Padre Manuel da Nóbrega perde mesmo a serenidade quando sabe que o gentio
caité comeu o bispo (Nóbrega, 1988, pp. 177-218). A Igreja, em geral, apenas se
incomodava até ao batismo e com a imposição da monogamia. Lá ia, no entanto,
fazendo acolher esses violentados nas confrarias de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos (Azevedo, in A.H.P., 1903, vol. i, p. 303).
Os escravos, sobretudo aqueles a quem era atribuído um papel mais ligado às lidas
domésticas, vinham inserir-se numa sociedade fortemente patriarcal. Pouca
diferença fariam dos criados. Em Santarém um valenciano assiste, por 1576, a um
baile de negros e anota o fenómeno dos «casamentos que fazem cativos com cativas,
sem que os amos ousem impedi-los» (Villalba y Estana, 1889, vol. n, p. 35). Há que
supor que seriam bem melhor tratados do que os assalariados e trabalhadores
assoldadados eventuais, durante os anos em que a sua força física ou habilidade o
justificavam. Pelo que custavam, havia que os fazer render. Com frequência acabavam
integrados na larga família. Tinham-se gerado laços de convivência que não
reproduziriam a violência do estatuto legal. É comum a alforria em testamento, ou a
recomendação que proíbe a sua venda e pede o seu bom tratamento (Vieira, 1991, p.
55). A uma escrava ou um escravo que se estima proporcionam-se meios de
sobrevivência quando forro. Só assim a alforria fazia sentido e era verdadeiramente
libertadora (ibid., pp. 182-183). Alguns escravos conseguiam-na pagando-a. Às vezes,
«dando escravos por si». Não seria raro, no Brasil, que artesãos pobres conseguissem
a alforria de escravas com quem casavam (Primeira Visitação, 1984, pp. 363-367). Ou
aproveitando ocasiões excecionais. Em 1580, quando Lisboa se prepara para
responder ao avanço das tropas do duque de Alba, apregoa-se que os negros cativos
que se alistassem ficariam forros. Pelo menos 440 se juntaram de imediato, mais
outros tantos vindos de fora (Soares, 1953, vol. i pp 168-169 e 209).
Com frequência se encontram casais de escravos com casa e família,
trabalhando para os seus senhores, apesar da desconfiança que tal situação gerava
(Magalhães, 1970, p. 230). E havia quem tivesse escravos para do seu trabalho viver.
Exploração bem montada (Godinho 1981-1983, vol. iv, pp. 199-201).
Intimidades pecaminosas: «Há indivíduos que fazem bons lucros com a venda dos
filhos das suas escravas, nascidos em casa. Chega-me a parecer que os criam como

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quem cria pombas para levar ao mercado longe de se ofenderem com as ribaldias das
escravas, estimam até que tal suceda, porque o fruto segue a condição do ventre: nem
ali o padre vizinho, nem eu sei lá que cativo africano o podem reclamar», criticava o
flamengo Clenardo (Cerejeira, 1949, p. 282). Havia ocasional legitimação ou
reconhecimento de filhos — e até netos e bisnetos (Vieira, 1991 p 99). A própria
aristocracia produzirá os seus mestiços. Um bastardo de Gonçalo Vaz de Melo, Dinis
Fernandes de Melo, da armada de Tristão da Cunha à Índia, em 1505, era «pouco
conhecido e estimado, por ser homem pardo nas cores» (Barros, 1974-1992, Década
II, livro I, cap. m, p. 22). Batalhando como esforçado cavaleiro na tentativa de tomada
de Ádem, morre Diogo Estaço de Évora. Ao seu lado, não menos esforçado soldado,
fica-se Garcia de Sousa, seu irmão bastardo mulato (ibid., livro VII, cap. IX, p. 352).
Cristóvão Juzarte, fidalgo, tem dificuldade em comandar uma armada nos Açores, por
ser mestiço (Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tomo I, p. 239) Racismo com branduras
de sociedade patriarcal (Freyre, s/d).
0s maus tratos e as mortes violentas de escravos não serão raros, como os abandonos
e expulsões em momentos de pânico por peste. Foi isso sentido dramaticamente pela
Câmara de Lisboa aquando da grande crise de 1598-1603 (Magalhães, 1988, pp. 43-
60). Porém, seria melhor o destino que se reservava aos demais esfomeados errantes
que nesses momentos procuravam as cidades para escaparem de morrer à fome?
Escravos e emigrantes. A expansão portuguesa sofreu durante o século XVI com
o problema dos fracos efetivos demográficos do Reino. A introdução massiva de
escravos foi uma das soluções. A qual, por sua vez, provocava uma excessiva saída
de naturais (Godinho, 1975, p. 58). A falta de gente era por igual sentida nos reinos e
senhorios de além-mar. E abria-se sem limitações de naturalidade (sim de religião) a
entrada a homens de Castela e de outros reinos. Havia carência de oficiais mecânicos
especializados em tarefas que não eram comuns no Reino, e por isso de bom grado
se acolhiam estrangeiros. Foi o caso, que acabou mal, dos lapidários italianos idos à
Índia com Vasco da Gama, em 1502, e que, afinal, eram fundidores de artilharia
(Castanheda, 1979, livro I, cap. LXVIII, vol. I, p. 145). Em Pernambuco vamos
encontrar galegos, biscainhos, castelhanos, canarinos, florentinos, napolitanos,
alemães, flamengos, franceses e ingleses (Primeira Visitação, 1984). Para o Brasil a
carência é geral. Logo em 1550 se procuram aliciar açorianos para povoar a nova
cidade da Bahia (Arquivo, 1981-1984, vol. XII, pp. 414-415). Muitos terão ido. Duarte
Coelho busca gente de Portugal, Galiza e Canárias, onde quer que a ache, para pôr a
funcionar os engenhos, em 1549 (História, 1922-1924, vol. m, p. 320). Com a união
dinástica cresce a mistura dos portugueses com os castelhanos. Portugueses, e não
poucos, emigram para as índias de Castela, Castelhanos e outros «espanhóis» para
Portugal e para o Brasil. Artilheiros flamengos e alemães também andam por
Portugal e pelos domínios portugueses. As novas terras atraíam aventureiros e
miseráveis, na ânsia de melhores vidas.
Também se iam do Reino homens fidalgos para servir no estrangeiro. O caso de
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Fernão de Magalhães é um, entre muitos. Martim Afonso de Sousa, em 1515, está
para se passar a Castela; impede-o o duque de Bragança, advogando depois junto do
rei que não deve «deixar perder um homem de tanto serviço e de tais calidades e perdê-
lo de seu serviço». Não há argumento de traição nem se invoca apego à naturalidade
(Gavetas, 1964, tomo IV, p. 461).
A grande massa dos que emigravam vinha das populações rurais, que os meios
citadinos portugueses não conseguiam reter (Godinho, 1975, pp. 28-30). Gente sem
eira nem beira, que se alistava para tentar a sorte, que poucas vezes sorriria. Em
1609, Moncorvo diz estar muito pobre, «por causa dos ruins anos que houve até gora,
que muita gente se foi para fora do Reino por pobreza» (Oliveira, 1887-1888, tomo II
p. 222). Destes que nada tinham, muitos emigravam crianças. Abundavam os
meninos órfãos, abandonados e enjeitados, de que era preciso a sociedade (que fazia
a mãe abandoná-los) cuidar ou desfazer-se. Situação que piora no decurso do século.
Em Braga, em 1567, a câmara constata que de alguns anos a esta parte ia em grande
crescimento o número de enjeitados, que lhe davam muito trabalho e despesa, por os
«mandar criar à sua custa» e haver falta de amas («Acordos e vereações», in Bracara
Augusta, vol. XXXIII, 1979, pp. 543-544). Nas mesmas aflições se vê a Câmara de
Coimbra, em 1579 (Loureiro, 1964, vol. II, p. 67). O aumento de enjeitados revela o
efeito conjugado de crescimento populacional e de maior fiscalização da Igreja depois
de Trento? Os que sobreviviam engrossavam a massa miserável. Em Lisboa, o «pai de
velhacos» tinha a obrigação de lhes arranjar amo (Oliveira, 1620, fl. 97 v). Ou seriam
empurrados para a Índia e para o Brasil. Destes meninos se irão aproveitar não
pouco os filhos de Santo Inácio na sua missão evangélica. À Índia «vêm todos os anos
nas naus duzentos meninos». Recolhidos pelos fidalgos, criam-se e fazem-se
«soldados e honrados» (Couto, 1950, p. 187). As órfãs eram muito pretendidas para a
Índia e para o Brasil, a fim de lá casarem. Evitar-se-ia que os povoadores tivessem
«não só uma concubina, mas muitas». Quaisquer mulheres convinham, «ainda que
sejam erradas, que seguro era encontrarem marido» (Nóbrega, 1988, p. 109). A
marginalidade do centro aproveitada nas periferias.
Muitos dos emigrados não regressavam ao Reino. Como não regressavam os que
se iam instalando pelos portos da Ásia, fora do domínio dos Portugueses. Por isso as
populações fixadas eram muito menores do que seria de esperar. Em 1561 o
arcebispo de Goa informa: «Haverá nesta cidade [de Goa] ao menos 4343 vizinhos dos
quaes são portugueses 1478 e mistiços 145; os mais são da terra. No termo da cidade e
suas aldeias há 7025 vizinhos», não entrando soldados. O total seria de apenas 80 000
cristãos (Gavetas, 1963, tomo III, 1963, p. 190). Cinco mil homens foi o máximo que,
pelos números oficiais, se conseguiu reunir para o socorro de Diu, em 1538. E só
nesse ano, após 40 anos de presença, tinham ido na armada 2000 (Correia, 1975, vol.
IV caps. I e XXI, pp. 10-60).

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Origem dos portugueses em Goa, em 1514 (mapa I, Cartas, 1884-1915, tomo VI), em Ormuz (1522)
(mapa II, Farinha, 1991), em Pernambuco, em 1591-1595 (mapa III, Primeira Visitação, 1984).

Ligar migrações e recursos alimentares é fácil: em 1555 Simão da Gama de Andrade é


encarregado de levar gente de São Miguel para o Brasil. Não «foi o número tanto como
parecia que nas ilhas se poderia achar, a razão porque se não quisessem então
embarcar foi por a terra estar muito abastada de todos os mantimentos principalmente
pão» (História, 1922-1924, vol. m, p. 380). Um simples acidente conjuntural e há
mudanças imediatas de comportamentos. A fome leva à emigração. Como podem os
lavradores portugueses semear em estreituras e curralejos, sendo Portugal na maior
parte de penedos, areias e campos alagados? Por isso, «constrangidos de fome», a
«esse mundo se vão». A peste seria até uma necessidade para Portugal, porque a
«gente se multiplicava em tanta maneira que us com outros se comiam» (Costa, 1983a,
p. 59).
Também há os que procuram melhor fortuna. E que arriscam. Com 10 ou 12 anos,
fugindo da «miséria e estreiteza da pobre casa» de seu pai em Montemor-o-Velho, em
1521, vai servir para Lisboa uma senhora. Daí passa a casa de um fidalgo. Como o que
ganhava não era suficiente para a sua sustentação embarca então para a Índia, em
1537 (Pinto, 1974-1984, caps. I-II vol. I, pp. 4-7). Destino comum a muitos, o de
Fernão Mendes Pinto. Emigram os pobres como soldados e servidores, emigram os
filhos de ricos que não contam com heranças. Diferente era o caso dos mercadores,
que com grande agilidade mudavam de residência, na busca das melhores
oportunidades. Veja-se um Gaspar Lopes Homem, natural de Ponte de Lima, donde
se vai para o Funchal, saltando para Lisboa em fins do século, quando o negócio do
açúcar entra em depressão: na ilha já nenhum homem podia «dar remedeo a seus
filhos, porque se ficam ahi, ficam vivendo pobres». Fina-se em Amesterdão, embora
cristão, depois de penitenciado pelo Santo Ofício (Salomon, 1983, pp. 44-45 e 67). As
voltas dos mercadores pelo Mundo têm a ver com a conjuntura dos mercados e
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não obedecem às necessidades dos emigrantes esfaimados.


De início, para o Oriente há emigrantes provenientes de todo o Reino, especialmente
das cidades (mapas I e II). Ao contrário da Índia, onde encontramos naturais de todo
o Reino, para o Brasil dirigem-se os de Entre Douro e Minho (Viana de Foz de Lima e
Porto) e os de Lisboa (mapa III). A região mais ocupada e as cidades maiores (Lisboa
e Porto) têm de expulsar gente? A população de Entre Douro e Minho crescera mais,
por melhor alimentada? Efeito conjugado do milho grosso e do bacalhau?
Uns chamam outros. O crescimento do comércio entre Pernambuco e o Norte de
Portugal — Viana, Vila do Conde, Porto e Aveiro — era possível porque o açúcar não
fazia parte do monopólio régio nem tinha de ir despachar a Lisboa. Assim se amplia
esta ligação, que continua o trato com as Ilhas (Cortesão, 1940, pp. 70-76). Facilidade
legal e técnica. Para a viagem a Pernambuco não eram necessárias as grandes naus de
vultoso investimento e de custosas tripulações. Circulação menos ariscada, além de
muito mais rápida. A capitania de Pernambuco foi «a mais frequentada de navios
deste Reino por estar mais perto dele que cada ũa das outras» (Gândavo, 1984, cap. 3,
fl. 11 V).
Está montada para durar a estrutura de um Portugal repulsor de naturais e gerador
de emigrantes (Godinho, 1978).

AS ESTRUTURAS DA PRODUÇÃO AGRÍCOLA E PASTORIL - Joaquim Romero de Magalhães


O cultivo da terra (pp. 219 – 220)
Os lavradores «Nós somos vida das gentes/ morte de nossas vidas/ a tiranos-
pacientes,/que a unha e a dentes/ nos têm as almas roídas.» Assim explode em Gil
Vicente o sentir de um lavrador comum em princípios do século XVI. Lavrador
comum, nem melhor nem pior do que a maioria, fazendo a sua trapaçazita com os
dízimos, mudando os marcos para aumentar a área de terra que explora, sem ter
«tempo nem lugar/ nem somente d 'alimpar/ as gotas do seu suor» (Vicente, 1852,
tomo I, p. 249). Esse lavrador comum é sobretudo dramaticamente transmitido como
explorado pelos senhores da terra, pelos clérigos, por todos aqueles que, não a
trabalhando, vivem de rendas: «Pois para que é o vilão?», exclama, em jeito de
evidência, o diabo vicentino... Para sustentar os privilegiados, como bem estava à
vista, e a pergunta só fazia sentido no palco, para acentuar a crítica que exprimia.
Os lavradores têm de prosseguir um trabalho infindo, que depende, ainda e
sobretudo, de um enorme esforço físico e do querer de Deus, que lhes pode, de um
momento para o outro, estragar toda a produção. Dá «chuvas em Janeiro,/ e geadas
em Abril, / e calmas em Fevereiro,/ e névoas no mês de Maio,/ e meado Julho pedra»
(Vicente. 1852, tomo II, p. 494). O dramatismo dos anos de seca ou de excesso de
chuvas revela-se sobretudo nas dificuldades alimentares, que às vezes afetam sem
remédio as populações. Fome, organismos debilitados, campo propício para a difusão
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de doenças, que podem desencadear epidemias, a que nem os próprios reis


conseguem escapar. Assim se finaram D. Afonso V e D. Manuel. Reis e responsáveis
locais têm de estar atentos e de providenciar a vinda de pão, pois a fome pode causar
ou abrir o caminho a tremendos desastres. «Ordinária consequência é da secura do
céu e fome da terra, corrupção de humores, novidade de doenças, que param em peste.
Porque a falta do bom mantimento faz lançar mão do mau e extraordinário de ervas do
campo e raízes mal conhecidas, que, sendo por si nocivas, como lhes falta a mistura do
pão, mantimento natural e salutífero, ficam fazendo nos corpos efeito de veneno.»
Clareza de um grande prosador. Frei Luís de Sousa (1938, p. 67).
Bons motivos tinha João Murtinheira, lavrador queixoso de Deu, para querer fazer
seu filho Bastião «rapaz d’lgreja;/não com devassão sobeja,/ mas porque possa viver/
como mais folgado seja» (Vicente, 1852, tomo II, p. 495). Aparicianes, comparsa da
mesma tragicomédia, bem se queixa que com «fortes temporais,/ são as novidades
tais,/ que não chegam para os foros./ E os padres verdadeiros/ cartuxos de santa vida,/
apanham-me os travesseiros/ com mais ira que os rendeiros/ sem me razão ser ouvida»
(Vicente, tomo II, pp. 513-514). Rendeiros, supõe-se que seriam especialmente duros
os dos dízimos, que arrendavam as cobranças dessa parte devida a Deus para a
manutenção do clero (que os reis, através das comendas, também foram distraindo
para a aristocracia). É que o produto final que os lavradores penosamente
conseguiam obter estava, ainda por cima, sujeito a descontar os dízimos a Deus
(10% para as dioceses e para outras instituições religiosas que tinham esse privilégio
e para os comendadores rapaces). Some-se um sem-número de direitos reais e
senhoriais que resultavam de velhas dependências, antigos direitos em vigor, e das
novas incorporações de contratos privados como públicos nos forais manuelinos, e
teremos um quadro nada idílico dos trabalhos e dos dias dos que fazem a terra (Neto,
1991, pp. 213-215 e 430).
Às condições naturais, já de si não satisfatórias, somam-se as engrenagens de uma
sociedade em que os lavradores têm de manter uma boa parte dos aristocratas e dos
eclesiásticos. «A Agricultura, por direito, é e deve ser muito favorecida, porquanto per
os lavradores se soporta o estado da terra e a mantém per suas lavras e criações,
servem com pam, cabritos, galinhas, carneiros, palha e cevadas e outras cousas; e com
todo é uma gente a que todos fazem mal e pouco favor», ouviu el-rei D. João II nas
Cortes de Évora de 1481-1482 (Barros, 2.ª ed., s/d, vol. IX, p. 198). Os lavradores
são e serão ainda os mantenedores. Dificuldades naturais, deficiências sociais.
Convergentes.
Como evitar as irregularidades e calamidades naturais? Pedindo a Deus chuva,
rogando-lhe para que a chuva cessasse. Uma dependência dos fatores naturais, e
divinais, contra os quais escassa defesa haveria, numa total ou pouco menos que total
dependência da Natureza. Natureza que não se mostrava pródiga, pela difícil e não
poucas vezes contraditória interinfluência do Mediterrâneo e do Atlântico na terra
portuguesa, em que o relevo torna ainda mais complexa e irregular a variedade
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climática (Ribeiro, 1986, pp. 131-164). A um Norte áspero e montanhoso liga-se um


Sul de planície, a um Norte com bastante pluviosidade e alguma fartura de águas
corresponde um Sul em que as secas são comuns. Terras montuosas para o Norte e
mesmo para o Centro, onde o maciço calcário estremenho se eleva, estéril e
imponente, separando o vale do Tejo das terras do litoral oeste. Litoral que a norte da
foz do Mondego também só é fértil numa estreita faixa entre as areias da costa e a
montanha áspera do interior beirão, por terras de difícil aproveitamento, salvo em
alguns vales mais férteis. Quão penosa era a produção em algumas terras, como as do
Douro, que os homens iam fazendo. As «fragas altas levam terra às costas, pera
plantarem as parreiras, e figueiras, pereiras, ameixieiras, e todo outro arvoredo»
(Collecção de Inéditos, 1936, vol. V, p. 589).

A forte presença dos mesteres - Joaquim Romero de Magalhães (pp. 278 – 280)
Nas cidades e vilas do Reino não faltavam em geral obreiros para as tarefas de
alimentar, vestir e calçar as gentes, bem como fornecer os produtos, básicos ou de
luxo, para as necessidades do tempo e recursos das populações. Por vezes com
vocações locais. Trabalha-se em tecelagem por toda a parte, embora só em algumas
regiões se atinjam volumes e qualidades comercializáveis: panos e cobertores de lã e
panos de linho. Tanto como a tecelagem, o trabalho com o ferro: facas, tesouras,
navalhas, espadas, candeeiros, esporas, ferraduras e fechaduras (Oliveira, 1620, fl.
158 V) «Fazem aqui nesta cidade (do Porto) boas facas e é a sua especialidade, mas são
caras», nota um italiano («Viaje», 1964, pp. 232-233). Não menos a olaria, mais ou
menos decorada... E como estas outras transformações com que a habilidade e o
gosto dos homens de Quinhentos satisfaziam os seus contemporâneos. Sem que
faltassem outros artesãos, os que sabiam executar objetos de luxo ligados ao
vestuário e adornos, em especial na Lisboa de Quinhentos. Tanto quanto nos
permitem ver os arrolamentos de meados do século — de João Brandão (de Buarcos)
e de Cristóvão Rodrigues de Oliveira — e de 1620 — de Frei Nicolau de Oliveira.
Variedade imensa de ofícios. Mas com matérias-primas que se importavam ou com
pequena incorporação de produção e transformação internas.
Fiscalização e representação política. Desde finais do século XV que a realeza e os
concelhos procuram fiscalizar a atividade mesteiral, por vezes aproveitando as
organizações de assistência que a solidariedade profissional ou de moradia já tinham
ido instituindo. Associações de entreajuda, que haviam elaborado os seus
compromissos e que obrigavam livremente os seus membros. Vem agora a
autoridade régia ou camarária e fixa rígidos regimentos de ordenamento do
trabalho (Caetano, in Langhans, 1943-1946, pp. XXXIXL-XI). Confina-se o grupo
mesteiral aos aspetos puramente profissionais. As confrarias que se mantêm ou
criam têm funções de sociabilidade e religiosas e não mais assistenciais, ou pelo
menos não na antiga amplitude. A assistência é regulamentada de outro modo e

SOCIEDADE - 9
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

controlada pelas grandes unidades, como o Hospital de Todos-os-Santos, no caso de


Lisboa. Criam-se e desenvolvem-se as misericórdias, numa dependência íntima
de todo um processo de solidariedade regido de cima. As confrarias de base
profissional e os hospitais por elas criados e administrados vão sendo agregados para
com os seus bens se financiarem as grandes unidades. Não apenas em Lisboa, mas
por todo o Reino. Recorde-se a Misericórdia do Porto ou o Hospital de Jesus Cristo, de
Santarém. Outros, onde as tutelas mais ou menos claras dos municípios ou dos
senhorios se tinham antecipado, levaram mais tempo antes da integração nas
misericórdias (Beirante, 1981, p. 240). A ligação às primitivas organizações
assistenciais mantém em Coimbra o costume de as eleições se fazerem no hospital
(Oliveira, 1971 -1972, vol. l, p. 417).
A representação política local dos oficiais mecânicos tinha encontrado forma em
Lisboa bons anos antes, em fins do século XIV (Caetano, in Langhans 1943-1946, pp.
LXI-LXIX). A exemplo da Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa outras se foram
organizando. Mesmo quando não se apresentaram com esta configuração, ficou o
modelo aproximado. Muitas delas não parecem espontâneas. Todas o rei vai
regulamentar com minúcia a partir de 1539 (ano do novo regimento da de Lisboa).
No Porto, em Coimbra, em Évora ou em Tavira, em Guimarães ou em Ponta Delgada.
Os mesteres passam a ter a sua representação junto das vereações. Mesmo quando
não havia associações dos vários ofícios, a obrigatoriedade da participação vai-se
estendendo. Com exceções: a aristocrática Évora resiste e consegue não os acolher na
sua câmara.
As vereações procuravam controlar e fiscalizar as atividades mecânicas. Muito em
especial pelo que tocava a preços dos artefactos e tarefas a executar. Para essa
fiscalização da qualidade, preços e condições de fabrico e venda as câmaras
minuciosamente regulamentavam o exercício dos ofícios. Para isso elaboravam e
faziam aprovar regimentos e taxas, reformulados quando necessário. Cada um dos
oficiais mecânicos, ajuramentados e afiançados perante as vereações, ficava
enquadrado nos ofícios e estreitamente vigiado. Eram as câmaras que passavam as
cartas de examinação ou de confirmação (mesmo quando havia juízes dos ofícios),
depois de os oficiais mecânicos prestarem fiança e juramento. Só assim podiam
exercer o seu mister.
A participação camarária dos mesteres tinha uma função de controlo social
evidente: prevenir a permeabilidade desta gente miúda, vil e mecânica às
conjunturas adversas, que podiam descambar em agitação. No caso de Lisboa isso
também se mostrava como resultando de precauções políticas e sociais. Não
convinha nada que se abrisse caminho a amotinações e manifestações de desagrado
pelo que o rei e os poderosos iam fazendo. O tanoeiro de 1383, forçando o Mestre de
Avis a uma revolucionária fuga para a frente, não estava esquecido.
Diferenciação social. No entanto, as vereações em vias de enobrecimento
SOCIEDADE - 10
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

procuravam arredar os mesteres de muitas das votações em que deviam participar,


arguindo que apenas lhes competia apresentar requerimentos em nome do «povo
metido» e que não eram oficiais do concelho. Nas Cortes de 1481-1482, Elvas atira
com a autoridade de Aristóteles para mostrar que «os maiores na República devem
reger e governar e os meãos obedecer e ajudar e os mais baixos trabalhar e servir». Os
mesteres, gente baixa, não deviam, pois, assistir ou participar nos governos locais
(Santarém, 1828, Provas, parte II, p. 171). O rei e os tribunais, como provavelmente
os senhores, tinham mais avisada perceção dos equilíbrios sociais e lá iam repondo as
situações, distinguindo sempre o que deveria ou não ser do foro mesteiral (Beirante,
1981, pp. 232-233).
A relevância social dos mesteres imprime-se nesta preocupação régia de os
incluir nas vereações, onde têm voz e voto em todas as matérias que lhes
interessam. E as vereações, por mais que lhe custe, têm de contar com eles, ouvi-los
e aturá-los. Sob pena de conflito. Seguro. O rei tinha bem a perceção de que para o
bom governo local a associação dos mesteres às soluções encontradas se tomava
fundamental. O exclusivismo e falta de tino político dos mais importantes das
oligarquias locais levou tempo a interiorizar quanto essa participação era decisiva
para que os poderes dos concelhos fossem alargados, como convinha ao monarca.
Com o decurso dos anos esse comportamento vai mudando. A importância das
terras vê-se também na presença e variedade dos ofícios que figuram
obrigatoriamente nas procissões do Corpo de Deus e outras procissões oficiais, a que
têm de comparecer com suas bandeiras e insígnias, como parte do todo social da
cidade ou vila. Cabe-lhes, naturalmente, a parte da frente, organizando-se a procissão
dos mais humildes para os mais ricos. Porque o espaço nobilitante, junto da gaiola do
Santíssimo ou de andor de santo, calha aos clérigos e aos cidadãos (depois ditos
«gente nobre da governança»), E essas mesmas vereações também iam
regulamentando e fiscalizando a eleição de juízes e examinadores dos mesteres.
Assim se comporta Viseu, confessadamente imitando as cidades notáveis do Reino.
Mesmo só havendo por lá pedreiros, barbeiros, tosadores, alfaiates, carpinteiros,
alveitares e ferradores, oleiros, ferreiros e serralheiros e caldeireiros. É a vereação
que de motu proprio promove a regulamentação do exercício desses ofícios em 1534
(Vale, 1945, pp. 170-171).
Mesteres, oficiais mecânicos, gente baixa, não toda igual nessa vileza do trabalho. Há
ricos e pobres, há importantes e desprezíveis. Há ofícios que conseguem aproximar-
se da cidadania e obter a consideração de nobre. Como um escol de entre os mesteres
se destacam, logo em 1508, os impressores de livros, considerando a necessidade da
«nobre arte da impressam». Ofício perigoso. Das honras de cavaleiro da casa real
gozariam os que tivessem as qualidades que pressupunham afastamento das
suspeições sociais: cristãos velhos, ricos e não hereges (Oliveira, 1887-1888, tomo II,
p. 70). Boticários, ourives e escultores conseguem ir sendo considerados «gente do
meio» e penetram por vezes no grupo dos cidadãos, deixando de ser tidos por vis
SOCIEDADE - 11
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

(Oliveira, 1982, pp. 72-73). Eram como que a camada aristocrática do povo (Oliveira.
1971-1972, vol. I, pp. 403-404).

Os eclesiásticos - Joaquim Romero de Magalhães (pp. 411 – 414)


Em primeiro lugar, por tradição e por função de mediador para com Deus, o clero.
Grupo demasiado vasto. Muitos eram os que, recebiam ordens menores, habilitando-
se a privilégios e foro de clérigo. Bastante menos os de ordens sacras. Em Coimbra,
em 1537, foram 1737 os primeiros, apenas 269 os segundos. Subdiácono pediram 23,
diácono 24, presbítero 14. Nesse ano receberam ordens ainda mais 1091. Em 1524
ordenaram-se 1963, em 1529 ficaram-se pelos 1708 (Vasconcelos, 1915, pp. 834-
835). Antes da criação dos seminários (com o Concílio de Trento) era fácil ser clérigo.
Das 40 freguesias de Lisboa, em 1620, se lê serem servidas por 300 clérigos; nos
conventos há 1365 frades e 1832 freiras — contando as mulheres que servem as
religiosas (Oliveira, 1620, fls. 66-71). Em 1513, em Caminha, 0,2% da população, em
Valença, 1,5% (Oliveira, 1976, p. 11). Não se conclua coisa alguma.
São muitos os lugares de pároco (mais de 3000), a que se acrescentam os benefícios
em cabidos e colegiadas e os conventos de religiosos ainda em expansão. A maioria
dos lugares de curas de almas não traria, só por si, especial consideração. O pároco de
uma pequena aldeia não se distingue no seu viver e nos seus recursos dos demais
vizinhos. É um deles, com funções específicas. Muitas vezes pobre e vigiado de perto
por vereações e confrarias e pelos patronos que lhe limitavam a ação e zelavam por
que não distraísse objetos de culto ou se apropriasse do que à comunidade pertencia.
Ser pároco, sem mais, não era elevada posição social; dependia da importância
económica da paróquia. Onde não havia velhos direitos, o rei fixa ordenados baixos:
20 000 a 30 000 réis em 1568 nos Açores (Arquivo, 1981-1984, vol. VI. pp. 184-192).
A completar com o pé de altar (missas, batizados, casamentos, enterros).
Bons lugares, sim, nas colegiadas e cabidos. Cónegos, meios-cónegos e outros
prebendados instalavam-se muito acima do eclesiástico comum. Além das rendas
próprias das sés e colegiadas, recebiam os dízimos, a meias com o prelado. Esses
vultosos benefícios encontravam-se reservados para os filhos das famílias mais
importantes, que assim colocavam alguns dos seus ao abrigo de dificuldades de
sobrevivência, sem que a unidade do património familiar se visse ameaçada por
partilhas. E, como é natural, procuravam fazer com que os lugares se mantivessem
para membros da mesma família na geração seguinte. Cediam-se, compravam-se e
vendiam-se lugares, com a devida aprovação papal, régia ou episcopal (Brandão,
1990, pp. 10-12). Até à travagem tridentina não seria sequer incomum a passagem de
lugares de pais para filhos (Dias, 1960, tomo I, pp. 36-38). E eram pingues rendas. O
rei e os bispos e o longínquo papa, todos, tinham parte na nomeação de benefícios, o
que implica um cuidadoso equilíbrio entre os padroeiros (pontuado por
conflitualidades).
SOCIEDADE - 12
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

Os próprios reis reservavam os melhores lugares da Igreja para os seus filhos


legítimos (D. Manuel para os infantes D. Afonso e D. Henrique) e ilegítimos (D. João III
para D. Duarte). Os lugares de apresentação ou padroado real eram duramente
disputados. Um lugar vago era uma ocasião para se moverem influências,
desencadeando «combates fortíssimos». As influências contavam (Sousa, 1946-1948,
vol. I, livro I, cap. VI, p. 42). Braga valia um bom esforço. Em 1558 o mais forte
postulante era irmão do duque de Aveiro, nada menos (Anedotas, 1980, p. 141).
De entre os grandes cargos eclesiásticos, havia uma ordem de rendimentos, que
dava o sinal da importância relativa de cada um (Góis, 1945, p. 98) (quadro II).
Quadro 11
Rendimentos dos bispos, estimados
em ducados, cerca de 1529
Arcebispo de Braga 24 000
Bispo de Évora 20 000
Arcebispo de Lisboa 16 000
Bispo de Coimbra 12 000
Arcebispo do Funchal 8 000
Bispo de Viseu 8 000
Bispo de Lamego 6 000
Bispo da Guarda 5 000
Bispo do Porto 4 000
Bispo de Silves 4 000
Bispo de Ceuta 2 000

A criação dos novos bispados, a partir de 1540, empobrece as dioceses de onde se


separam: Miranda, Leiria, Portalegre e Eivas. Acresce a mobilidade de alguns bispos,
que vão sendo como que promovidos: do Algarve para Évora ou Coimbra, de Lamego
para Lisboa, de Portalegre para o Porto...

O Concílio de Trento. Até ao Concílio de Trento, padres e bispos, e mesmo monges,


eram celibatários, sem que isso de Trento obrigasse sequer a uma aparência de
castidade: o próprio capelão-mor, bispo de Lamego e depois arcebispo de Lisboa, D.
Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos, é pai de filhos, um dos quais cónego
na mesma Sé de Lisboa (Maurício, in Ordens, 1991, p. 262). Os frades eram «menos
recolhidos do que devem e mais soltos do que a religiosos pertence», escreve com
elegância a Câmara de Angra em 1541 (Arquivo, 1981-1984, vol. V, p. 163).
A partir de 1564 (e mesmo antes), o ser eclesiástico já não deve ser apenas um modo
de vida como qualquer outro. No interior da própria organização eclesiástica as
coisas começam a mudar. Passa a exigir-se uma dedicação pastoral e disciplinadora
que deixa de se limitar à fruição pacata dos bens terrenos. Começa a exercer-se uma
forte pressão sobre as populações, vigiadas e controladas a cada passo. São os
registos de batismos, casamentos, e enterros (decretados, mas pouco cumpridos até
então). São os róis de confessados. São as visitas pastorais, com os seus exames ao
comportamento social e sexual dos fregueses.
Na primeira fornada de bispos da escolha de D. João III surgem D. Manuel de
SOCIEDADE - 13
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

Noronha, fidalgo (Angra), o Dr. Brás Neto, desembargador e diplomata (Santiago de


Cabo Verde), D. Diogo Ortiz, deão da capela real (S. Tomé), e o Dr. Francisco de Melo,
das melhores linhagens, matemático ilustre (Goa); D. Martinho de Portugal, cortesão
e parente do rei, filho de um arcebispo de Évora, passa a arcebispo do Funchal
(Relações, 1937, pp. 103-110). Prelados de corte, que nem sequer tentaram conhecer
as dioceses cujos titulares eram. Depois os bispos deixam, em princípio, de ser
sobretudo homens do serviço régio, ou filhos de grandes e de fidalgos encaixados na
fruição de chorudas rendas. Alguns dos nomeados vêm das ordens religiosas, de
entre os esperadamente virtuosos, não sem que se movam influências (Dias, 1960,
tomo l, p. 75) — um núncio refere intrigalhadas de frades para afastar os clérigos
seculares (De Witte, 1980-1986, vol. II, p. 152). D. Miguel da Silva, que conhecia bem
o rei, aconselha o papa a nomear um frade português para o substituir em Viseu
(ibid., vol. II, p. 501). Naturalidade e disciplina regular. Outros vêm do Santo Ofício,
tirocínio de fé e rijeza doutrinária.
Pastores, em princípio virtuosos, devem residir nas suas dioceses e nelas exercer o
seu múnus. O que não deixa de acarretar dificuldades, nem de encontrar obstáculos
vindos de dentro, pois a administração das dioceses estava montada para bispos
absentistas. D. Frei Bartolomeu dos Mártires, promotor da Contra-Reforma, em cuja
definição teve parte, vai debater-se mais que tudo com a dificuldade de visitar as
freguesias dependentes do seu cabido. Querem impedi-lo de entender na «vida dos
eclesiásticos, dos ricos, dos poderosos da cidade» de Braga, sem curar de «vícios e
culpas, de que a liberdade e riqueza são fonte certa» (Sousa, 1946-1948, livro II, cap.
III, vol. II, p. 61, e Soares, 1990). O confronto com o cabido em Braga não teria sido
diferente do de quantos bispos que começaram a tomar a sério a sua missão pastoral.
Conflitos internos. Por toda a parte os cónegos eram gente poderosa, fazendo
amargar a doçura episcopal. Os lugares que detinham eram definitivos e era também
normal a sua residência junto da catedral. Estabilidade e presença, o que ainda com
frequência não ocorria com os bispos. Com não poucos conflitos internos, bandos
alimentando sanhas pouco edificantes (Arquivo, 1981-1984, vol. VI, pp. 198-199). Ao
longo de 1612-1614 o cabido de Coimbra sustenta uma «guerra» com o bispo. Entre
outras coisas, em causa as visitas ao padroado do cabido (Acordos, 1973, pp. 148-
178). Também eclesiásticos e leigos se chocam nos seus interesses. D. Álvaro da
Costa e os seus amigos fazem negra a vida do bispo do Salvador, por 1555,
prendendo um cónego e impedindo o castigo de opositores ao prelado (História,
1922-1924, vol. III, pp. 368-369). O bispo, por seu lado, que também não era manso,
manda espancar inimigos seus e entra em guerra declarada com o governador e seu
rebento (ibid., vol. III. pp. 373-374).
Os bispos que tinham cargos na corte concediam não pouca facilidade de
movimentos aos cabidos, esquecendo-se de visitar as suas ovelhas. O Funchal e
Angra, dada a distância, tarde receberam os primeiros prelados residentes. Em troca
dessa liberdade, os cabidos, bem à solta, não obstariam à saída das rendas das
SOCIEDADE - 14
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

dioceses em que eram cobradas, mesmo quando sentiam a injustiça de as verem


distraídas para fora. D. Frei Amador Arrais, bispo de Portalegre, em conflito com o
cabido, renunciou. Foi-se com uma bela pensão para Coimbra, «onde fez um galhardo
templo e capela pera sua sepultura, em que gastou sessenta mil cruzados ganhados em
Portalegre, onde puderam ser milhor gastados, que não em Coimbra» (Sotto Maior,
1984, p. 86). Outras lutas entre bispos e cabidos levaram à renúncia de prelados,
como o de Leiria, D. Brás de Barros (Brandão, 1972, vol. I, p. 240). Pior: o deão da
Guarda consegue a excomunhão do próprio bispo D. Jorge de Melo (Dias, 1960, tomo
II, pp. 629-633; De Witte, 1980-1986, vol. II, pp. 525-527). Ao invés, D. Afonso de
Castelo Branco, bispo-conde, excomungou o seu cabido de Coimbra (Teixeira, 1895-
1902, p. 126)... Os começos da residência dos bispos e o arranque das ações pastorais
diretas terão de passar, depois de 1564, por partilha de poderes. Porém, não foi
imediata esta presença dos bispos nas suas dioceses, e mesmo entrado o século XVII
algum absentismo se mantinha (Dias, 1960, tomo I, p. 75).
Religiosos e laicos. Há uma perniciosa promiscuidade entre laicos e religiosos.
Instituíram-se formas de desviar para os grandes laicos uma parte dos rendimentos
eclesiásticos. Antes de mais, a administração perpétua para o rei das ordens
militares, em 1551. Rendas de conventos, algumas muito apetecíveis, como Alcobaça
ou Santa Cruz de Coimbra, jorravam para as mãos de abades e priores
comendatários. Não se elegiam os superiores de entre os membros das comunidades.
O próprio papa Júlio II impôs um sobrinho seu como prior-mor de Santa Cruz, o que
incomodou D. Manuel, que conseguiu, em 1507, a revogação do breve apostólico de
nomeação (Loureiro, 1964, vol. II, pp. 189-191). Aproveitando depois a situação em
benefício dos seus. A D. Afonso e D. Henrique, a D. Luís e D. Duarte — estes laicos —
souberam bem rendimentos eclesiásticos. E por aí abaixo. Nos capítulos das Cortes
de 1562 os eclesiásticos protestam em vão; o regente estava implicado como
administrador de Alcobaça (Santarém, Provas, parte I, 1828, p. 38).
Uma das formas desta promiscuidade consiste na fundação de casas religiosas com
reserva do padroado para os instituidores. Assim agem o rei e os infantes, senhores e
homens da nobreza local. Brás Pires do Canto, homem muito aparentado em Angra,
«tem feito um mosteiro em que é padroeiro perpétuo e come todas as rendas do dito
mosteiro e tem suas filhas abadessas e vigairas por sua nomeação de modo que tem um
morgado pera dar a seus filhos das fazendas das pobres freiras»: isto em 1561
(Arquivo, 1981-1984. vol. VI, p. 197).
Já de muito antes se caminhava no sentido de favorecer a disciplina e bom
desempenho dos frades e das freiras. Boas intenções, não concretizáveis. D. João III,
apesar de estimar muito os frades, negoceia concessões com o papa como «antre
mercadores» (Gavetas. 1961, tomo l. pp. 721 -725). E o mesmo continua depois de
Trento.
Muitas destas casas ditas de religião serviam para a colocação de filhos e filhas

SOCIEDADE - 15
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

dos grandes e fidalgos. Elvas, em 1498, requer ao rei esmola para fazer um mosteiro
de freiras, por haver «muitas filhas de fidalgos e honrados homens e as nom podem
casar como a suas honras comprem». Por isso se perdiam e cobravam má fama
(Santarém, Provas, parte I, 1828. p. 78). Outros, ansiosos por promoção social,
metiam filhas em conventos, e escolhiam-nos entre os que mais enobreciam. Em
famílias de nação era corrente fazê-lo. A violência sexual do celibato sem vocação
dava depois resultados sabidos? Não importava.
Em 1532-1533 o abade de Claraval tem de vencer graves obstáculos para se impor na
mundanidade claustral de Almoster e de São Bento de Évora. Em Almoster a
abadessa, uma tia do marquês de Vila Real e irmã do conde de Linhares, regia o
convento como se de bem seu se tratasse. Os ilustres parentes sentiram-se ofendidos
com as intromissões (De Bronseval, 1970. vol. I, pp. 376-381). São Bento de Évora
pareceria tudo menos uma casa de religiosas (ibid., vol. I, pp. 418-427). A abadessa
de Lorvão, D. Filipa de Eça, emprenhou já reclusa (De Witte, 1980-1986, vol. II, p.
524). Ainda em 1602, o bispo de Coimbra, D. Afonso de Castelo Branco, prefere que
uma freira de Semide saia do convento para não ensinar (ao vivo) as outras a parir
(Veiga. 1988, p. 280). Justas e pecadoras. Se há as exemplares freiras de Odivelas, há
as desgraçadas de Évora, para quem o convento era solução para a falta de dote.
Conscientes disso, alguns escolhiam para as filhas conventos «largos», onde a
observância se não tivesse instalado, «por me não darem ao demo tantas vezes»,
escreve, desabusado, António de Saldanha, em 1547. Filhas para o convento, filhos
para a Índia (Costa. 1987. p. 13).
A Igreja e o rei coniventes. Aquela para aumentar o património e relevo social, este
para não se lhe multiplicarem os servidores e respetivos encargos. Nunca os reis
acederam a limitar os dotes que os fidalgos podiam dar às filhas, como lhe pediram
nas Cortes de 1490 ou de 1581 (Santarém. Provas, parte II, 1828, pp. 70 e 83). Se os
morgados se destinavam a garantir rendimentos com que o administrador devia
«emparar irmãos e parentes» (Costa, 1983b. p. 267), o sustento das jovens excedentes
ia em pequeno dote para onde as faziam professar.
Há, ao longo do século, esforços de reforma, em especial por uma estrita
observância das regras. Esforços com algum êxito, que não atacam o fundo da
questão: mantendo-se a mistura de leigos e clérigos na administração e fruição dos
bens, não poderia haver nunca cumprimento rigoroso das disposições estatutárias.
Nem por indisciplinada, embora em vias de reforma, a Igreja deixa de desempenhar o
lugar que lhe estava conferido. E que aumenta com D. João III: o núncio papal
constata que o rei se preocupa em prioridade com negócios eclesiásticos, esquecendo
todos os outros, «por maiores e utilíssimos que sejam» (De Witte, 1980-1986, vol. II, p.
512).
Os eclesiásticos e religiosos não formam um bloco coeso. Longe disso. Há ricos e
pobres. Seculares e frades. Conflitos, não raros nem pouco violentos. Em 1490, D.
SOCIEDADE - 16
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

João II faz avançar tropas para serenar Coimbra, onde se guerreavam os partidários
do bispo e os de Santa Cruz (Loureiro, 1964, vol. I. p. 315). As questões das
precedências das ordens religiosas nas procissões podiam degenerar em desacatos,
promovidos pelos próprios frades (BNL, F. G.. n.° 5426). O número de frades e
clérigos ia em crescimento, de tal modo que no século XVII se pôde escrever que
«se comem uns aos outros». Tantos que não se podiam sustentar. Entretanto faltava
gente para as armadas (Oliveira, 1887-1888. tomou, pp. 323-324). A fundação de
novos conventos passou a ser fortemente contestada pelos povos e o próprio
rei teve de impor limitações (Silva, 1985, pp. 278-300). O Reino transbordava de
frades e freiras.

Grandes, títulos e fidalgos - Joaquim Romero de Magalhães (pp. 415 – 421)


Fidalgo nascia-se. Ou uma mercê do rei concedia essa qualidade e condição: 1) moço-
fidalgo; 2) escudeiro-fidalgo; 3) cavaleiro-fidalgo; 4) fidalgo-escudeiro; 5) fidalgo-
cavaleiro (graduação de 1572). Acima, os fidalgos de solar, os títulos e os grandes.
Não era forçosa a progressão enumerada e as designações variaram (Albuquerque,
1988, pp. 31-34). O rei declarava filhar e tomar alguém como seu criado (de criação).
Com isso uma forma de tratamento, o reconhecimento de honra e respetivos
privilégios. O que implicava assentamento nos livros régios. O fidalgo transmitia a
qualidade e condição aos seus herdeiros. Mesmo descendentes enviesados, após
reconhecimento de paternidade e concordância régia, obtinham esse estatuto.
D. João II faz Pêro d’Alcáçova fidalgo, com carta de brasão de armas, e declara:
«Separamos e removemos do número geral dos homens e conto plebeio e os reduzimos e
trazemos ao conto, estima e participação dos nobres fidalgos de limpo sangue» (Brito,
1991, p. 242). Limpo sangue não significa ainda livre de ascendência judaica ou
moura, obsessão no último terço do século. Na carta de privilégios se continham
isenções que se estendiam à casa (parentes e servidores) do novo membro do grupo
dominante. Ninguém era feito fidalgo se se lhe não reconhecesse riqueza e status no
estilo de vida que o fazia sobressair do conjunto (Arquivo, 1981-1984, vol. X, pp. 506-
508). Para se ser cavaleiro da Ordem de Santiago encontrava-se mesmo estatuído ser
rico (Olival, 1988, vol. I, p. 109).
A honra. O sangue ilustre mais obriga (Lobo, 1945, p. 297). A honra, ponto central
da sociedade aristocrática, consiste «na virtude, valor, magnanimidade e esforço
próprio». Por ela se deve o fidalgo «aventejar do vulgo e não os que fazem dela tão
pouco cabedal que empregam o seu ânimo e saber em cousas indinas de homens bem
nacidos, ocupando-os em latrocínios, forças, traições, maldades, enganos e infâmias»
(ibid., p. 307). Honra como recompensa, como aparência e como excelência
(Chauchadis, 1984, p. 111). Merecê-la, receber o correspondente tratamento e ter as
qualidades que a justificam, eis a que devem os homens aspirar. Os Portugueses
preocupam-se «mais com o fumo do que com passado», diz um crítico (De Witte, 1980-
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

1986, vol. II, pp. 492-495). Peitam-se os cronistas da Índia para que relatem os feitos
gloriosos — lubrificação de que nem Afonso de Albuquerque se esquece (Barros,
1974-1990, Década II, parte II, livro II, cap. I, p. 312). O conde de Tentúgal polemiza
com Damião de Góis, negando as traições da família de Bragança a D. João II (Góis,
1926, vol. I). Honra e desonra por herança.
Honra obtida por feitos militares. Honra alcançada na corte com o cultivo de outras
qualidades: «modéstia, prudência, discreção, conselho e habilidade para tudo». O
fidalgo perfeito, além de esforçado cavaleiro, será «mui afábil, cortês e humilde com
todos» (Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tomo III, p. 121). A um fidalgo muito honrado,
com o hábito de Cristo, gabam-se as «boas partes e discreção», o «ser honroso pera os
homens, bem inclinado, de muito respeito, grande amigo de seus parentes e desejoso de
acrescentar na dita geração, gentil-homem, gracioso, alegre, liberal, virtuoso e temente
a Deus, de muita verdade, desinteressado em falar o que entende, sem ter de ver com
pessoa alguma». E, essencial, «por tal é conhecido de todos» (ibid., livro VI, p. 29).
Para este reconhecimento conviria que o apelido familiar fosse usado, denotando
linhagem (Brito, 1991, p. 271). Garcia de Resende dispõe que quem suceder no seu
morgado se «chame sempre de Rezende» (Ribeiro, s/d, p. 336). Como, em 1600, Aires
de Saldanha e sua mulher, D. Joana de Albuquerque, determinam que os
administradores do seu morgado guardem os apelidos de Saldanha e Albuquerque e
lhes usem as armas (Costa, 1983b, p. 262).
Formas de tratamento. A autorrepresentação desta gente passava também pelas
formas de tratamento. «Dom» é parcimoniosamente concedido. Tinha o efeito
imediato de dar a conhecer o seu portador como pertencendo à alta fidalguia. O
regedor da justiça, João da Silva, sentia-se «fidalgo razo» por não o ter (Carvalho,
1926, p. 228). Nas mulheres era mais vulgar o uso de «dona» (Brito, 1991, p. 274). No
tratamento pronominal, um «vós» podia resultar ofensivo, se o chamado se achava
com direito a mais: «vossa mercê», «vossa senhoria» ou «vossa excelência». A lei
previa as aplicações. Se assim não fosse, reconhecia o rei em 1597, gerar-se-iam
«grandes desordens e abusos». É que todos tentavam conquistar um tratamento
superior (Cintra, 1972, pp. 25-29). Confusões muitas, e não apenas na corte. O
regresso da universidade a Coimbra levou a que, em 1558, a rainha regente
mandasse que três pessoas da cidade e três da universidade se juntassem e
chegassem a um acordo. Senão ela própria decidiria (Livro 2.º 1958, pp. 108-109).
A conjugação de tão complicadas teias de relações degenerava por vezes em
conflitos internos. Alguns insolúveis, como os assentos de D. António, prior do
Crato, e do Senhor D. Duarte nas Cortes de 1562 (Relações, 1937, pp. 319-320). Já
antes, em 1556, se acertara a precedência dos condes, ordenada pela antiguidade da
carta de mercê do título (ibid., p. 405). A coexistência dos bispos e cabidos com
governadores e capitães representando o rei teve de ser também regulada nos
lugares de África e ilhas, em 1588, após trabalhoso estudo pela Mesa da Consciência e

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

Ordens (Arquivo, 1981-1984, vol. X, pp. 307-308). Nos começos do século XVII, o
aparato protocolar reafirmador das posições sociais reforça-se. A sociedade barroca
exibe-se. Em 1611, o rei proíbe a novidade de os bispos entrarem nas terras a modo
de reis, debaixo de pálio levado por pessoas da governança a pé (Livro 2.º, 1958, p.
231).
Os nobres. O fidalgo era nobre. Nem todo o nobre era fidalgo. Em fins do século XV, a
expressão «nobreza» ainda pouco aparece como designando o todo do grupo
aristocrático, sendo muito corrente como adjetivo. A expressão «nobres homens de
linhagem» significa fidalgos, pois nobre qualifica linhagem. Nas mesmas Cortes de
1481-1482 se propõe ao monarca que faça «certo número de vassalos e homes fidalgos
e de nobre criaçom em que bem caiba tal honra» (Santarém, Provas, parte II, 1828, p.
136). Porém, em 1513, D. Manuel, ao estabelecer uma imposição sobre o consumo do
vinho, refere haver em Lisboa pessoas particulares que «ganham muito dinheiro, e
assim algus cristãos novos, mercadores, [...] homes ricos, e abastados e nobres»
(Oliveira, 1887-1888, tomo I, p. 416). Nobre, simplesmente, refere os que têm um
comportamento que os aproxima da fidalguia, pela vida que podem levar, por ricos.
Nobre é aquele que mostra qualidades de nobreza, que sabe agir de um modo
honroso e socialmente prestigiante. Que tem um comportamento grave. Ou ocupa
cargos que, à partida, estava convencionado serem reservados a pessoas com essas
qualidades, virtudes e vida compatível.
Nobre, como substantivo comum, só é corrente mais tarde, embora seja difícil, por
vezes, limitar a extensão do conceito, que remete para os melhores e mais honrados
(Santarém, Provas, parte n, 1828, pp. 170-173). De que havia que dar sinais: a
«generosidade para com seus iguais e dependentes, a autoridade sobre a família e
servidores, a hospitalidade e o senso de honra pessoal e familiar» (Schwartz, 1988, p.
230). O homem designado só como nobre ficava numa zona indefinida e difusa de
transição entre o plebeu e o fidalgo. Deste se vai aproximando. Aparência, influência
e eficácia em acrescido reconhecimento de superioridade correspondendo a um
comportamento. Que ou seria aceite pela sociedade e pelo rei, e integrado, ou se
quedava pelo exterior, eventualmente próximo, sem pertença ao grupo.
De um postulante a um colégio de Salamanca, natural de Campo Maior, se apura ser
«de casta d’escudeiros, cavaleiros e fidalgos», que «governam e sempre governaram a
terra e serviram os ofícios nobres dela, de juízes e vereadores, sem terem raça nenhua
[nem] mácula de cristãos novos», «pessoas nobres que se tratavam a lei da nobreza,
com moços e escravos e cavalos, como cavaleiros» (Marques, 1988, p. 26). Para finais
do século chamava-se-lhe viver (ou aparentar viver) à lei da nobreza. «E todos os de
Portugal e desta ilha [São Miguel] são de grandes espíritos e viveram e vivem sempre à
lei da nobreza, abastados com cavalos de estado, e criados e escravos de seu serviço»
(Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tomo I, p. 50). Um tal Francisco Veloso solicita o
hábito de Santiago invocando que vive «bem e honradamente», tem escravos e

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

escravas e moços que o servem, serve ele mesmo o rei no trato de Guiné e é rico;
além disso, não vem de casta de judeus nem de mouros nem anda homiziado. Vive
«limpamente à lei de cavaleiro». Depois de 1572 convinha acrescentar que nem pai
nem avós tinham sido oficiais mecânicos (Olival, 1988, vol. I, pp. 112-220, n.° 11). E
juntar qualidades morais de pai-patriarca. Rui Gago da Câmara era «de tal condição e
tão nobre, que nunca agravou soldado seu, nem usou de condenação, e prendendo-os e
tratando-os com muito amor, como filhos e assim é pai de todos e da mesma vila [da
Ribeira Grande], acudindo primeiro que ninguém a todas as pressas e necessidades
dela, e fora dela, com sua pessoa e fazenda» (Frutuoso, 1977-1987, livro IV, tomo I, pp.
143-144).
Comportamento. Se o fidalgo não tinha de se cuidar, pois não perdia a qualidade que
detinha por linhagem ou por mercê régia, já o nobre não podia esquecer-se disso. O
reconhecimento da sua honra passava pela aparência. Rui Brandão Sanches, dos
principais que governavam a cidade do Porto, testa que no seu morgado não pode
suceder gente não nobre nem cuja linhagem não seja antiga — a menos de um dote
que valha quanto as terras vinculadas (Brito, 1991, p. 211). A riqueza compensava a
falha da linhagem. Ao nobre não convinha ter próximo uma ascendência de oficiais
mecânicos (ou não devia saber-se). Uma boa fortuna acabaria por elevar, sobretudo
os que conseguissem um hábito numa ordem militar.
O exagero com que os grandes, fidalgos, cavaleiros e escudeiros (e quantos se querem
mostrar como vivendo à lei da nobreza) se apresentavam em público levou D.
Sebastião a dispor uma séria limitação. «Que nenhũa pessoa de qualquer stado &
qualidade que fosse, pudesse trazer consigo mais que ate dois pages a pé, & dois homes
de esporas, & um escravo em pelote com mandil sem capa.» Além destes, podiam
acompanhá-lo outros, desde que fossem portadores de tochas (Leis Extravagantes,
1569, quarta parte, tít. I, Lei VI, 11. 116). Uns anos antes, e com o exagero próprio dos
cultores das letras humanísticas, Nicolau Clenardo escrevera que homens famélicos
se envergonhavam «de mostrar que se sabem servir das mãos». Apresentam-se na
rua com nove criados: «dois caminham adiante; o terceiro leva o chapéu; o quarto o
capote, não adregue de chover; o quinto pega na rédea da cavalgadura; o sexto é para
segurar os sapatos de seda, o sétimo traz uma escova para limpar os pelos do fato; o
oitavo um pano para enxugar o suor da besta [...] o nono apresenta-lhe o pente»
(Cerejeira, 1949, p. 288). Na corte de Filipe III, em Valhadolid, os Castelhanos
zombavam da soberba e vaidade dos Portugueses: «não cuida um fidalgo português se
não em que entrando na Corte, a hão-de assombrar» com os seus lacaios, «mais rica e
custosamente vestidos do que nunca seus bisavós o fizeram nas suas vodas» (Veiga,
1988, p. 175). Quem se aproxima do rei e tem mais posses pode e deve alardear
grandeza. Assim o capitão de São Miguel, Manuel da Câmara, sustentava na corte seu
filho D. Rui Gonçalves da Câmara, «gravemente acompanhado». Trazia consigo «oito,
nove homens de esporas e outros tantos pajes». Era «tão grandioso [...] que o que tinha
era muito pouco para o gastar todo em uma hora». Gastar sem tino. Retirar-se quando

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

em atrapalhação com dívidas vultosas. Juntar para tomar a gastar (Frutuoso, 1977-
1987, livro IV, tomo III. pp. 114-118). Assim o exigia a manutenção do status social.
Tinham de se mostrar liberais, para não serem mal vistos. «Do povo cego [...] é
murmurado que ajunta muito dinheiro», diz-se de pessoa principal dos Açores.
Frutuoso desculpa: não «é pecado ajuntar sem dano para gastar a seu tempo devido,
antes é prudência e virtude» (ibid., pp. 122-123). A sovinice cheira a riqueza recente.
Desqualifica.
Os títulos. Os titulares tinham mesmo de ostentar e os rendimentos que lhes
atribuem não parecem muito elevados. Antes de 1530, talvez por 1529, um siciliano
apresenta rendas anuais dos títulos portugueses, em ducados (Marineo Sículo, 1530,
fl. XXV; Pereira, 1986, p. 813, n.º 51 e 52) (quadro III).
Faltam alguns, como o conde de Vidigueira, o visconde de Vila Nova de Cerveira e o
barão de Alvito. Do duque de Aveiro o autor confessa que não alcançou saber o
rendimento. Este perceberia anualmente quase 11 contos, sendo o segundo senhor
do Reino (Pereira, 1986, p. 798). Grande diferença entre os cerca de 16 contos
(tomando o ducado a 400 réis) para o duque de Bragança e um conto e duzentos mil
réis para os condes menos afortunados. A estes o rei tinha de prestar ajuda, não fosse
ficarem incapacitados de assistir aos serviços da corte que a titulação impunha.
Viver junto do rei saía caro. Fará mesmo parte de uma política deliberada de
domesticação dos grandes tê-los amarrados a grandes despesas. Diz-se que Filipe II
«foi o que fez endividar os Grandes de Espanha, para que com a falta de dinheiro lhes
não fervesse o sangue» (Veiga, 1988, p. 218). A ausência de rei em Lisboa a partir de
1583 teria contribuído para o reforço da aristocracia portuguesa, que nas cortes de
aldeia sempre ia poupando ostentações e espalhafatos. E aumentando a pressão
sobre os que lhes pagavam as rendas.
Quadro III
Rendimentos estimados
em ducados, cerca de 1529

Duque de Bragança 40 000


Marquês de Vila Real 15 000
Conde de Marialva 12 000
Conde de Tentúgal 8 000
Conde de Portalegre 5 000
Conde de Vimioso 5 000
Conde de Redondo 5 000
Conde de Monsanto 5 000
Conde de Penela 4 000
Conde do Prado 3 000
Conde de Abrantes 3 000
Conde da Feira 3 000
Conde de Linhares 3 000

Comendas. Sociedade de forte e visível poder senhorial, intensamente contaminada


por comportamentos financeiros de uma natureza bem diversa. Os próprios
heroísmos querem-se convertidos em mais do que honra. Um ato valoroso, ou pelo
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

menos com essa fama, uma vez a valentia pessoal evidenciada e reconhecida,
justificava uma tença, um casamento, um hábito numa ordem militar, no melhor dos
melhores, uma comenda.
As comendas, que transitavam para os laicos parte dos rendimentos e dos
tributos pagos à Igreja, são ainda mais apetecidas depois de 1496, quando D.
Manuel consegue acabar com a obrigação do celibato (Góis, 1926, parte i, cap. XVII,
pp. 34-35). Aumentar o número das comendas de Cristo, que D. Manuel consegue do
papa (comendas novas), era indispensável para mais servidores galardoar, sem que a
Fazenda régia sofresse.
Em especial as comendas são concedidas por feitos em combate contra os
Mouros pois pertencem às ordens militares de Cristo, Santiago e Avis. A dois
filhos de D. Nuno Manuel, seu guarda-mor, sem fortuna, manda D. Manuel «que
fossem a África vencer comendas», o que implicava estarem por lá uns anos
(Anedotas, 1980, pp. 68-69). O segundo filho do conde de Sortelha, D. Simão da
Silveira, era fidalgo muito pobre, a quem D. João III propõe que vá a África «servir
uma comenda» (ibid., p. 75).
O próprio rei tem de justificar a distribuição dessas rendas em troca de
serviços prestados. Além do mais porque se trata de converter «as rendas da Igreja
e o património dos pobres em rendas e patrimónios dos leigos e ricos» (Dias, 1960,
tomo II, p. 482). A Ordem de Cristo dispunha, em 1611, de 456 comendas, com o
rendimento anual de 90 090 258 réis; a de Santiago 85 comendas, no valor de 35 684
000 réis; e as 45 de Avis, 24 963 000 réis (Falcão. 1959, pp.209-212).
Muitas vezes o rei não cumpria as suas promessas de tenças. O que era mau,
porque delas dependiam as vidas «dos fidalgos e pessoas principais [...] e além disso é o
mais barato soldo por que se podem achar soldados» (Sousa, 1938, vol. II, p. 316).
Havia-os que esperavam anos sem se verem premiados. Francisco de Sousa Tavares,
que recebera por casamento uma comenda, bem desesperou. Deveria ser, no mínimo,
de 100 000 réis, «que é a valia das mais baixas comendas que se dão a fidalgos» — o
valor médio, em 1611, era de 197 566 réis (Costa, 1980, p. 120).
O rei, para assegurar o necessário fluxo de ambiciosos, servidores e aguerridos para o
serviço de ultramar, tinha de encontrar formas de compensação equilibrada. Por isso
vai conceder os comandos das fortalezas apenas por três anos, numa rotação que a
bastantes permitia esperar pela apropriação de riquezas ou que atestados atos de
bravura se convertessem em recompensas embora com o defeito de mal tratadas,
como se «vinhas de renda» (Costa, 1983a, p. 49). D. João III dá um posto de capitão-
mor para a Índia a D. Francisco Rolim, para que não tivesse de vender a sua vila da
Azambuja. Fê-lo a pedido do conde da Castanheira, que bem poderia ter beneficiado
com a compra desse senhorio. Comportamento de ajuda a um fidalgo em apuros, que
remete para a solidariedade horizontal entre privilegiados (Anedotas, 1980, pp. 124-
125; Atienza Hernández, 1987, p. 16). Porventura de um mesmo «partido» na corte. A

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

concessão de viagens também permitia acrescentar riqueza.


O rei nem sempre atendia aos requerimentos de tenças e mercês, em especial sendo
criticado pelos soldados velhos que as pediam e as viam escusadas (Couto, 1980).
Fica a honra: os «serviços feitos aos reis de Portugal eram os mores morgados dos
reinos», na empáfia pelintra de Francisco Pereira Pestana (Costa, 1983a, p. 81). Não
esquecia outros. A António da Silveira, o herói de Diu, coube a capitania do Machico,
que a vendeu mais tarde, por não coar dinheiro nas suas mãos. D. Álvaro de Castro,
filho de D. João de Castro, recusa a capitania do Faial e Pico, preferindo Fonte Arcada
e seu termo, com jurisdição cível e crime (Arquivo, 1981-1984, vol. IV, pp. 220-225).
Morgados e capelas. Com aquilo que obtinham, procuravam os fidalgos terras onde
instituir morgados. É o que está no centro dos esforços destes ambiciosos que
arriscavam à Índia e aos seus trabalhos. Com a instituição de morgado promovia-se
a «conversação do nome, família e nobreza das pessoas que as instituíram e a
vincularam os bens que com mais renda e posse os pesuidores pudessem ilustrar a
família que decendiam e servir a seu rei na guerra e na paz» (Costa, 1983b, p. 260). Um
ou outro consegue, como Martim Afonso de Sousa, «um arrazoado morgado» (Couto,
1777-1788, Década V, parte II, cap. XI, p. 458). Morgados que se desejava terem
por base a propriedade rústica (a mais honrosa e procurada) e urbana (Brito,
1991, p. 197). Também se vinculavam padrões de juros, como o morgado constituído
por Francisco de Sousa Tavares, bravo capitão de Calecut, Cananor e Diu, num padrão
de 200 000 réis anuais que recebia na alfândega de Aveiro (Costa, 1980, p. 120). Por
dificuldade de instituir um vínculo imobiliário em terras de bom rendimento?
Em Entre Douro e Minho já em 1512 se entesourava em taças de prata, «porque a
terra é muito apertada e não terem onde [...] empreguem seus dinheiros porque os três
coartos da terra são eclesiásticas e do rei e dos fidalgos que se não poderão vender»
(«Uma descrição», 1959, p. 457). Muitos anos depois «acontesse poucas vezes se
achar renda de herdades» para instituir vínculos. Por isso, em 1565, Francisco
Pereira de Miranda, que fora capitão em Chaul, investe 280 000 réis a 16 por milheiro
num padrão de juros, que vincula a um futuro morgado, enquanto aguarda por uma
oportunidade de adquirir bens de raiz (Brito, 1991, p. 187). Seria uma situação a
generalizar-se? Estava a tornar-se rígida a propriedade da terra, com a extensão de
bens da Igreja, de morgados e de capelas, o que tornava normais (e pouco visíveis) os
morgados instituídos sobre valores em papel? Morgados ou reserva de capital até ao
investimento no vínculo? Ou ambas as soluções? Em vão os fidalgos requereram nas
Cortes de 1581 que os bens de raiz herdados pelos mosteiros e igrejas fossem
vendidos. O que permitiria uma maior mobilidade da propriedade da terra
(Santarém, Provas, parte II, 1828, p. 83).
Em 1619 quase todos os bens de raiz em Entre Douro e Minho estariam em mosteiros
e igrejas. Neles se iam incorporando ainda bens não vinculados, impedindo a
constituição de novos morgados (Silva, 1985, pp. 271-272). Sobre a propriedade

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

recaíam encargos variados. Encontrar um alódio seria difícil. E os morgados devem


instituir-se sobre «bens de raiz forros, livres e desembargados» (Costa, 1983b, p. 261).
Daí também as dificuldades e a preferência pelos padrões de juros? A procura
aumentaria em muito o preço da terra, como é de supor (Costa, 1983a, p. 60), mais
difícil se tomando a sua aquisição?
A construção de casas apalaçadas, mostrando uma nova riqueza, talvez tivesse
consumido parte dos tesouros da Expansão. Mesmo quem não saía do Reino (embora
com interesses no ultramar) se esforçava por marcar a sua posição social. Garcia de
Resende dispõe no seu testamento que na sua casa grande haverá uma «torre
honrada» com as suas armas em pedra mármore (Ribeiro, s/d, p. 336).
Muitas riquezas foram enterradas nas igrejas e conventos, para maior glória de Deus.
A religiosidade exacerbada, conjugada com a ostentação glorificadora do nome num
local imperecível, leva à entrega dos bens aos templos. A instituição de capelas era
uma forma comum de articular sepultura, alimentavam-se mais uns quantos clérigos,
havia segurança de que o capital ficava a coberto de tentações mundanais. Miguel de
Moura, tarimbeiro da corte e partidário afortunado de Filipe II amealhou larga
riqueza; não tendo filhos, gastou tudo quanto tinha em relíquias e em um convento
que com elas dotou (Chronica, 1840, pp. 107-144). De doações aproveitaram os
Jesuítas alguma coisinha, ficando com os engenhos de açúcar que tinham sido de
Mem de Sá (Documentos, 1954-63, vols. II e III). Os agostinhos da Graça de Lisboa
viraram-se para os bens vinculados por Afonso de Albuquerque (Azevedo, in A.H.P.,
vol. I, 1903, p. 158)... Porque as corporações religiosas também tinham as suas
estratégias de engrandecimento patrimonial. Em 1522, as clarissas de Santarém
aproveitaram a tremenda crise do ano anterior, comprando pequenas courelas
alodiais — nada menos de 44 —, que depois aforaram aos que as venderam (das
grandes crises beneficiavam «senhores e homens possantes») (Costa, 1983a, p. 60). E
conventos.
Sá de Miranda preferira os tranquilos agros de Basto à tumultuosa vida da corte. Esta
«moda» europeia de retiro (Huppert, 1983, pp. 265-290), que em Portugal também
se manifesta, é canalizada depois sobretudo para os conventos. Para finais do século
a vida religiosa toma-se um atrativo para os que já nada esperam de honras
mundanais: muitas viúvas professam, os próprios titulares (como os condes de
Vimioso) não escapam a essa necessidade de pacificação interior. Com o refúgio na
religião vão-se algumas fortunas. Com dinheiro fresco da Índia mais se enriquecem
essas casas de devoção.
Clientelas. Os poderosos são centros de distribuição de poder e riqueza. Em seu
redor constituem-se grupos de parentelas e clientelas. A cada mudança dos titulares
de cargos, de que se esperavam favores, tudo tem de recomeçar. «Senhor, os homens
da Índia são já enfadados de sempre servir com muitos trabalhos, e grande pobreza, de
que vem a morrer no esprital, os que não morrem no mar ou na guerra. E quando

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

esperam mercê de satisfação, então se vai o Governador com que serviram, e tornam a
começar de servir de novo com o Governador que vem; e assi são velhos no serviço e
novos no merecer» (Correia, 1975, livro IV, cap. IV, p. 19). Mercês e favoritismos.
Afonso de Albuquerque falha a primeira instalação em Ormuz, entre outros motivos,
por inábil proteção aos sobrinhos (Barros, 1974-1990, Década II, livro II, cap. V, p.
72). Logo o primeiro vice-rei, D. Francisco de Almeida, levara o filho D. Lourenço
como uma espécie de número dois. O mesmo fariam muitos outros, como D. João de
Castro. D. Duarte de Meneses atua em conjunto com seu irmão D. Luís. De um outro,
D. Duarte de Meneses, em fins do século, se diz que quem governava era um tio, Rui
Gonçalves da Câmara. Irmãos, filhos, tios, sobrinhos, parentes, redes de seguidores...
Um governador nomeado é um grupo familiar que entra na exploração de um posto.
O velho D. Pedro Mascarenhas foi vice-rei, em parte por não ter filhos. Afinal tinha
sobrinhos, que souberam aproveitar-se (Couto, 1777-1788, Década VII, livro I, cap. I,
pp. 30-33, e cap. IV, p. 40). O mesmo se passou no Brasil, com nota especial para D.
Duarte da Costa.
Vice-reis, governadores e capitães de fortalezas, se sabiam ser liberais, atraíam
outros fidalgos, nobres e soldados ao seu serviço. Os fidalgos endinheirados dão
alimentação (mesas) aos soldados durante os períodos em que não há combates,
juntando assim clientelas fiéis, ou pelo menos gente agradecida e de sua obrigação.
Enriquecer dependentes e servidores dá dignidade ao cargo e à pessoa (Couto, 1980,
p. 39).
As clientelas tomam a peito as vaidades e prosápias dos senhores cujos homens
eram. Fernão Mendes Pinto narra como no interior da China prisioneiros discutem
sobre a maior ou menor moradia na casa real de Madureiras e Fonsecas (que
estariam bem longe), «nacida de ua certa vaidade que a nossa nação portuguesa tem
consigo, a que não sei dar outra razão senão ter por natureza ser mal sofrida nas
cousas da honra» (Pinto, 1974-1984, cap. CXV, vol. III, pp. 3-4). Todo o imaginário
coletivo das linhagens transferido e assumido pelas respetivas clientelas. São estes
pontos de vaidade de honra «matéria de toda a paixão da nação Português» (Barros,
1974-1990, Década III, parte I, cap. VI, p. 16).
A manutenção de clientelas das grandes casas também era uma obrigação do
monarca. D. Manuel, para acrescentar a já enorme fortuna e prestígio dos Braganças,
pede ao papa que 15 igrejas passem a comendas de Cristo, a serem providas como
padroado pelo duque, em conjugação com o monarca, que concederia o respetivo
hábito da ordem (Gavetas, 1962. vol. II, p. 513). Apoio e sustentação do status dos
aristocratas, mas não sempre, nem quando as rendas do próprio rei eram postas em
causa (ibid., pp. 627-632).
Nesta sociedade fortemente aristocrática, o rei atua em simultâneo como pai da
grande família dos súbditos e como primeiro dos senhores. A todos deve alguma
coisa, para mostrar a sua autoridade. Crítica de um italiano: «Todos vivem com o rei,

SOCIEDADE - 25
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

todos recebem rendas das rendas do rei e todos roubam o rei» (Marques, 1987 h, pp.
212-213). «Os reis por acrescentar / as pessoas em valia, / por lhe serviços pagar, /
vimos a uns o dom dar / e a outros Fidalguia», assinala Garcia de Resende (Resende,
1902, vol. III, p. 213).
Nobrezas e fidalguias «são us meros acidentes» que se perpetuam «na substância das
terras em que existem; e que tem por fundamento a riqueza, sem a qual não
permanecem as calidades das pessoas» (Maldonado, vol. I, 1989, p. 168). O que
contava era ser fidalgo: «Homem que não é fidalgo não é chamado pera nada» (Couto,
1980, p. 90). A menos de ser rico, que a fidalguia poderia vir a obter. Dizia-se na corte
de D. João III que a felicidade de um português consistia «em chamar-se Vasconcelos;
logo ter uma quinta; depois seiscentos mil réis de renda». Nome de família ilustre, bens
de raiz, bom rendimento.
A ascendência fidalga, mesmo que por bastardia, devia ser tida como honrosa.
Espantado ficou D. Constantino de Bragança quando um bastardo de D. Teodósio,
duque de Bragança, recusou o reconhecimento da paternidade, com as
preeminências, postos e lugares que se lhe abriam. Não queria pôr em causa o bom
nome da mãe (Anedotas, 1980, pp. 140-141). Manifestação de dignidade
desorientadora para os aristocratas, para quem a honra não passava pelo respeito da
virtude da gente miúda.
A elasticidade social e a possibilidade de mudança de estado e condição estavam
abertas, desde que o rei assim o entendesse e o comportamento individual a isso
desse acesso. Nem de outro modo a Expansão teria representado um atrativo. O
indivíduo contava, e o individualismo dos comportamentos revela essa abertura.
Gente nobre da governança da terra e oficiais régios - Joaquim Romero de Magalhães (pp.
421 – 427)

«Todalas nações tem seus termos de nobreza, e honra, causa dos maiores trabalhos da
vida», sentencia João de Barros (Barros, 1974-1990, Década I, livro III, cap. IX, p.
103). Também os estratos sociais se diferenciam pelos conceitos centrais
motivadores da sua atuação. Por 1570, o procurador d’el-rei no Porto, Francisco Dias,
regista quais «as honras de que os homens mais prezam nesta cidade do Porto»; «serem
vereadores», «levarem tochas no dia de Corpus Christi» e «levarem as varas do páleo
em as procissões e festas do ano». Como pessoa honrada que era, o nosso informador
regista que foi vereador, que levou tocha e varas de pálio. No entanto, ser vereador
mais de uma vez «não é de boa suspeita». Poderia querer dizer que andava metido em
alguns negócios e que influenciaria demasiado pelo lugar ocupado. Também era
honroso ser guarda-mor e superintender na defesa da saúde da terra, com não pouca
autoridade. O que permitia muitos abusos, pelos degredos e impedimentos de
entradas por que eram responsáveis. Não menos honrada era a escolha para eleitor,
ou seja, arrolar os que tinham qualidade e condição para ocupar os lugares nas
câmaras. Francisco Dias acrescenta, como desabafo: «Estes Deus sabe se por afeição se

SOCIEDADE - 26
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

por bem da República elegem; eles o sabem» (Dias, 1937, p. 102). A honra para os
cidadãos não se confundia, pois, com a que mereciam, exibiam e superiorizava
os fidalgos.
Os estratos superiores da sociedade encontravam-se desde há muito delimitados. Um
grupo que lhe é inferior ganha importância no decurso do século XVI: o da gente
nobre da governança das terras. Designação que vai substituindo a anterior de
cidadãos e homens-bons que regiam as câmaras (embora persista na lei). Cidadãos
que se vão aproximando dos fidalgos (Carvalho, 1922, pp. 22-23). Por 1570, no Porto,
já se distinguem apenas dois grupos: nobres e mecânicos (Cruz. 1967, p. XXI). De
algum modo essa elevação na linguagem das honras resulta de o rei assentar sobre as
câmaras delegações várias de poderes, num neomunicipalismo querido e a ganhar
força. Com acrescidas responsabilidades, as oligarquias que dominam as câmaras, os
principais das terras, firmam um imenso poder efetivo de mando (potestas). Os que
detinham os ofícios concelhios eram olhados, pela sua presença e papéis
sociais, como os que mandavam — sem que isso afetasse o poder real, a auctoritas.
Apesar de filtrarem e canalizarem, quando não condicionarem, o exercício do poder
régio. Os mais honrados, os principais, os cidadãos que andavam na governança
da terra, dispunham de um mando efetivo e acatado: guardas-mores da saúde,
ocupando (desde 1569-1570) importantes postos militares nas ordenanças,
controlando o processo de cobrança de sisas, fintas e outros tributos, decidindo das
taxas dos oficiais mecânicos e fixando as jornas dos trabalhadores (e outras funções),
sendo sempre chamadas às mais importantes decisões das comunidades locais,
deviam viver «limpamente de sua fazenda» (Livro 2°, 1958, p. 112).
De um modo geral, esta gente tem bens de raiz e rendimentos da terra. Não
obsta a que alguns, em núcleos urbanos de movimento comercial, como Viana de Foz
de Lima ou o Porto, fossem mesmo mercadores. Em geral não o eram. E gozando os
privilégios da sua qualidade de cidadãos, não a perderiam se se dedicassem a
negócios. Não de um modo ostensivo, de tenda aberta. Mercadores de grosso trato,
não vendendo e comprando pelo miúdo, vivendo à lei da nobreza, acabavam por
conseguir elevar-se a nobres (Silva, 1985, pp. 329-331). Os mercadores de profissão,
em geral, ficavam numa posição marginal, indefinida e mal delimitada, não figurando
nas vereações. Muitos deles afazendados, alguns mesmo ricos e muito ricos,
constituem uma «classe» poderosa que se não exprime numa «ordem» (ou
«estado») jurídica (Mousnier, 1988; Burke, in Bush, 1992). Alguns acabariam
promovidos à cidadania e até à fidalguia. Questão de tempo e de uma estratégia
bem montada. Mais difícil de subir para os provenientes de ofícios mecânicos. No
entanto, o rei podia conceder-lhes privilégios de cidadãos. Entre 1521 e 1527
receberam essa «cidadania» três ourives de Coimbra (Loureiro, 1964, vol. II, p. 236).
Pela sua riqueza? Por prestarem serviços com dinheiros, funcionando um pouco
como se fossem banqueiros (Autos, 1989, p. 219)?
A aristocracia local dos cidadãos e homens-bons enobreceu-se, criou os seus
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

próprios pergaminhos, que a lei acrescentou, ao dispor que os que tivessem sido
juízes e vereadores passassem a ser isentos de pena vil por duas vidas e os que
tivessem sido procuradores apenas por uma vida. Ora a pena vil era a grande
distinção entre peões e gente de mor qualidade, decisiva fronteira social
(Godinho, 1975, pp. 75-78). Enobrecimento como reforço ao status aberto pelos
privilégios dos capitães das ordenanças, que as câmaras escolhiam entre os seus,
desde 1570, e que davam a categoria de cavaleiros aos que tais postos tivessem,
mesmo que o não fossem.
A distinção legal diferenciadora para os que andavam nos governos municipais
aparecia, embora de modo menos claro, nas Ordenações Manuelinas. Aí se dispunha
que vereadores e juízes de alguma cidade não seriam metidos a tormento «em algum
caso» (livro V, tít. LXIV), o que já vinha do tempo de D. João I (Ordenações Afonsinas,
livro V, tít. LXXXVII). É de crer que as vilas (pelo menos as notáveis) fossem obtendo
os mesmos privilégios. E o seu desrespeito podia causar complicações. Em 1521, em
Viana de Foz de Lima, o juiz de fora procede à prisão de Femão Pais, pondo-o a ferros
d’el-rei. Protestos imediatos junto do corregedor da comarca de Entre Douro e
Minho, que repôs as coisas no são: «Todo o homem que entrava numa vila nas
enleições dos juízes e vereadores e procurador não era preso a ferros, salvo sobre sua
menagem, e esto nas cousas em que o eram os cavaleiros fidalgos» (Moreira, 1986, p.
86). Mais grave ocorreu no Porto, em 1602, quando os vereadores foram presos «na
Cadea pública desta cidade sem lhe guardar menagem nem qualidade de suas pessoas».
E que gozavam dos privilégios de «infanções que tem os vereadores desta cidade e
cidadãos dela» (Cruz, 1943, p. 36). Pertencer à gente nobre da governança,
expressão que começa a generalizar-se pelos anos de 1570, era honroso e
vantajoso.
Um dos privilégios mais estimados era o de cidadão do Porto. Considerava-se uma
espécie de nobilitação. Mesmo para alguém que por lá não vivesse. Um morador na
Terceira sentir-se-ia muito honrado se o rei lhe concedesse os privilégios de cidadão
do Porto (Arquivo, 1981-1984, tomo V, p. 137). Não podia ser preso na cadeia
pública, mas em sua casa, sob menagem; podia vestir sedas, ostentando assim uma
supremacia evidente (Privilégios, 1987, pp. 217).
A gente nobre tem de se apresentar publicamente como a mais importante da terra.
Há momentos em que estes poderosos se mostram ao todo da população que regem
de um modo especialmente brilhante: maxime as procissões do Corpus Christi. Cada
grupo profissional está encarregado de uma parte de um conjunto complexo, que
culmina com os principais da terra levando tochas e pegando às varas do pálio.
Mesmo entre estes as precedências são minuciosamente fixadas. A sociedade mostra-
se arrumada na sua forma ideal. Sem confusões possíveis («Acordos e vereações», in
Bracara Augusta, tomo XXXI, 1977, p. 548).

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

Os nobres respeitam as posições hierárquicas. Para a repartição das sisas, como de


outros encargos, procediam à escolha dos responsáveis em atenção aos estratos
representativos. Em Coimbra, em 1567, para a sisa, foram nomeados «por parte dos
cidadãos o doutor Jorge de Sá e Gonçalo Leitão cidadãos desta cidade e por parte dos
mercadores e tratantes João da Fonseca e Heitor Fernandes e por parte do povo
Afonso Nunes, ourives e Domingos Lopes, luveiro» (Sisa de 1567, 1970, p. 2). Trinta e
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

dois anos passados a câmara escolhe «Fernão Soares Pais e Bento Arrais cidadãos
para os nobres, e António Fernandes mester da mesa e Estêvão Francisco para os de
baixa condição e Pero Enriques e Pero Serrão, mercadores para os mercadores» (Sisa
de 1599, 1973, p. 1). Diferença sensível: o cidadão passou a significar nobre,
abrindo-se mais ainda a distância em relação ao povo, que agora se diz de baixa
condição. Os mercadores, que vinham em seguida aos cidadãos, passam a último
lugar, numa evidente despromoção.
As limitações introduzidas ao disposto nas Ordenações de 1603 pela provisão de 23
de Março de 1605 e pelo Alvará de 12 de Novembro de 1611 facilitam um processo
velho de ligações familiares que se pode qualificar de endogâmico. Os elegíveis são
todos parentes (Magalhães, 1988, pp. 323-334; Brito, 1991, pp. 12-15). O que por
vezes torna o apuramento das câmaras difícil. O que tinha de estar previsto: dos três
vereadores da Praia, permanecia o mais velho para o ano seguinte. Se acertava a que
um dos outros estivesse familiarmente muito próximo do que ficava, elegiam outro
(Arquivo, 1981-1984, vol. V, p. 371). Era comum que isto acontecesse, pois os
elegíveis cada vez mais escasseavam.
De fora do poder exercido localmente por esta gente nobre vai ficar a de Lisboa, sem
acesso ao governo municipal a partir de 1572 (Coelho e Magalhães, 1986, p. 31). Nem
por isso os antigos cidadãos de Lisboa dispensam a designação de nobres e cavaleiros
do leal povo de Lisboa (Soares, vol. I, 1953, p. 48). Restava-lhes participar na eleição
dos procuradores às cortes e, a partir de 1596, constar da pauta dos almotacés
(Oliveira, 1887-1888, tomo I, p. 90). Força política reivindicativa tinham aí os
mesteres, em representação da Casa dos Vinte e Quatro. Dos eleitos anualmente,
quatro serviam como procuradores junto da vereação, dos restantes dezoito um era o
juiz e outro o escrivão (Oliveira, 1620, fl. 143 r-v). A hereditariedade chegará. Retira-
se a pena vil de açoutes, baraço e pregão aos que tiverem servido na Câmara de
Lisboa em 1524, o que D. Sebastião alarga em 1575 aos filhos, «por honra e
autoridade do dito ofício e trabalho continuo que nele tem». Aproximação ao
enobrecimento, que D. Manuel já equiparara a escudeiro, enquanto em funções
(Langhans, 1948, p. 129-139).
Servir de almotacé permitia a expectativa de uma ascensão social ao grupo dos
cidadãos. Nem sempre. Em 1543 Coimbra fica autorizada a escolher almotacés entre
os que fossem escudeiros, dizendo-se que estavam abaixo de cidadãos, não obstante
terem cavalo e armas (Loureiro, 1964, vol. II, p. 163). Alguns, por via de servirem de
almotacés, arrogavam-se o privilégio de cidadãos. Ora o rei vai fechar expressamente
essa porta em 1605, ano da provisão que também inibe o alargamento a possíveis
vereadores e em dispositivo em que também se encontra a mão do aristocrático
desembargador Damião de Aguiar. O rei determina que só sejam escolhidas pessoas
idóneas, netas e filhas de cidadãos (Livro 2º, 1958, pp. 216-217). Mas logo a seguir,
em 1611, entende o Desembargo do Paço que não devem ser almotacés os
vereadores, mas os de uma qualidade mais baixa, que servem de procuradores, desde
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

que «vivam à lei da nobreza» (ibid., pp. 235-236). Cidadãos, mas um pouco menos
qualificados. E entraram alguns filhos e netos de mecânicos, obrigando a nova
provisão, em que se vedava a escolha de almotacés dessa origem (ibid., p. 253). O que
fica legislado para todo o território por um alvará de 5 de Abril de 1618, em que se
fixa que os almotacés seriam da gente nobre «e dos milhores da terra», que neles se
deviam perpetuar os cargos e «nunca neles entrarem descendentes de oficiais
mecânicos». Muito menos de nação infecta (Repertório, 1815-1819, n.° 611, e
Magalhães, 1985, p. 28). É o fecho contra aventuras permissivas. Todavia, na
sociedade ainda se sentia alguma vibração social.
Privilégios por ascendência ou mercê régia, defendidos publicamente por um
continuado estilo de vida prestigiante. O reforço e limitação numérica dos agora
homens nobres convergiu para dar consistência à aristocratização concelhia em
marcha. A ligação entre os eleitos para os cargos municipais e o conjunto dos
vizinhos atenua-se, se é que não se perde. Cada vez menos se assiste…

Quadro IV
Média anual das matrículas realizadas na Universidade de Coimbra por quinquénios
Faculdades
Anos lectivos Total
Teologia Cânones Leis Medicina

1573-1579 99 414 238 59 810


1579-1584 54 523 248 52 877
1584-1589 54 718 232 45 1049
1589-1594 83 817 240 61 1201
1594-1599 98 730 200 81 1109
1599-1604 74 601 172 66 913
1604-1609 68 640 212 68 988
1609-1614 69 705 200 62 1036
1614-1619 56 781 210 66 1113
1619-1624 43 678 286 66 1073

Estatística das matrículas realizadas na Universidade de Coimbra em cada quinquénio, desde o ano de 1573 até
1624

Faculdades
Anos lectivos Total
Teologia Cânones Leis Medicina

1573-1579' 296 1242 713 179 2430


1579-1584 271 2614 1240 263 4388
1584-15892 214 3874 928 180 4196
1589-1594 414 4085 1202 306 6007
1594-1599 490 3648 1001 407 5546
1599-1604 371 3004 859 333 4567
1604-1609’ 273 2561 847 271 3952
1609-1614 343 3524 1004 312 5183
1614-1619 278 3907 1050 329 5564
1619-1624 213 3389 1431 333 5366

1 Estes números abrangem apenas três anos letivos, os de 1573-1574, 1577-1578 e 1578-1579: não existem os livros
de matrícula dos três anos letivos de 1574 a 1577.
2 Falta o livro de matrícula do ano letivo de 1584-1585, referindo-se, por isso, a quatro anos apenas os números aqui
registados.
3 São relativos a quatro anos estes números, pois não há registo da matrícula do ano de 1606-1607. Segundo
Vasconcelos, 1988, vol. N. II, pp. 120-122

Porém, a formação dos magistrados não os levaria desde cedo a sentir a divisão dos
SOCIEDADE - 31
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

privilégios como alguma coisa de profundamente injusto, muito em especial a


fiscalidade? Fugiriam os legistas e canonistas à tentação de imaginar uma sociedade
em que a justiça fosse menos desigual? É interrogação que deve ficar. Talvez a
perceção de alguma iniquidade explique por que a Câmara de Lisboa propõe, em
1609, que «pessoa algua, de qualquer calidade e condição que seja», fique escusa de
pagar na finta geral para a vinda do rei (Oliveira, 1887-1888, tomo II, pp. 216-228).
Aliás, nunca como anteriormente há sinais de tanta preocupação das câmaras com os
«clamores no povo miúdo». Em aparente defesa deste vêm os vereadores e pessoas
que costumam andar na governança. Até os eclesiásticos de Braga, escusos de pagar,
o fizeram voluntariamente, para evitar uma finta geral (ibid., pp. 313-314 e 318).
Aliança momentânea, ou sentimento geral de repugnância por uma contribuição que
parecia demasiado pesada e que poderia acarretar desagradáveis perturbações?

A arquitectura política do absolutismo assenta, em boa parte, nos tribunais


régios e nos poderes locais (Amaral, 1945, p. 47), como parte constitutiva essencial
do novo ordenamento do corpo da República. A estrutura social que o vai definindo
também se lhe vai ajustando.
Mobilidade e cristalização social - Joaquim Romero de Magalhães (pp. 427 – 433)
As alterações de comportamento e ideais (que se afastam entre si) e a mobilidade das
pessoas neste «mundo tão mudado», de que fala Garcia de Resende, embaraçam
uma acatada velha arrumação. A dinâmica social subvertia e não respeitava a
desejada estabilidade? Numa sociedade fortemente estratificada, que possibilidades
se abriam à promoção social? Como ascender na consideração dos contemporâneos?
Ascensão individual e, por arrastamento, da família a que se pertence?
Não são muitas as abertas por onde furam os que se propõem ir além da qualidade e
condição de nascimento. As saídas mais comuns, de fins do século XV a princípios do
século XVII, ainda são as da Igreja e a das armas. E as universidades, fornecedoras da
burocracia régia e eclesiástica. As alianças matrimoniais jogam de forma decisiva em
pretendidas ascensões e, sobretudo, na consolidação de posições alcançadas.
Bispos. O humilíssimo dominicano D. Frei Bartolomeu dos Mártires foi arcebispo de
Braga por indicação de Frei Luís de Granada a D. Catarina, regente. Mas, depois, será
obra do acaso a nomeação de seu sobrinho D. Diogo Correia para bispo de Ceuta
(Sousa, 1946-1948, livro v. cap. XXBII, p. 178)? Também não deixa de escolher para
alcaide-mor da sua Braga um primo, cidadão de Lisboa. Sabidas virtudes as desse
sortudo: fidelidade, lealdade, esforço e limpeza. Resulta inesperadamente enobrecido
depois, com as leis das ordenanças de 1569 e 1570, ao passar a ser, por inerência, o
capitão-mor das companhias da cidade («Acordos e vereações», in Bracara Augusta,
vol. XXXVI, 1982, pp. 592-593, e vol. XXXVII, 1983, pp. 570-571). Manuel Pereira,
homem da família de D. Frei Bartolomeu, compra o cargo de alcaide-pequeno de
Braga e seu termo, em 1572 (ibid., vol. XXXVIII, 1984, p. 398). As famílias dos
prelados (os que vivem com eles; além de parentes, os criados e outros servidores)
SOCIEDADE - 32
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

catapultavam os seus para os lugares disponíveis. Nas terras onde se instalam


procuram as melhores posições. Em volta da «família» de D. Fernão Martins
Mascarenhas, em Faro, de 1596 a 1615, giram alguns conflitos que perturbam a
Inquisição (Magalhães, 1981). Como estes todos os prelados, não tão santos como D.
Frei Bartolomeu, não tão corruptos como acaso D. Fernão.
Ter um filho bispo faria parte das ambições de grandes, títulos e fidalgos. Sobre isso
não poderiam montar uma estratégia, a não ser depois de ocorrida a escolha. A
estratégia passa por confinar a transmissão de bens a um só filho morgado e dote a
uma só filha — dote generoso, para alcançar um marido abastado. O descendente
mais velho, a quem caberia a administração dos bens vinculados, alijava irmãos e
irmãs que não podiam casar no meio de origem por falta de rendimentos. Fazê-lo fora
arriscava a uma desonra que afetava toda a família — solução afastada.
Fidalgos. Nos altos escalões da sociedade apenas contava o interesse familiar e não
os sentimentos individuais: os filhos de António de Saldanha e de Rui Lourenço de
Távora tiveram casamento concertado com 12 e 8 anos (Anedotas, 1980, p. 70). Não
se considerava apenas a fortuna. O conde de Marialva persegue e afasta o marquês de
Torres Novas, rico sucessor no ducado de Coimbra e Aveiro, e obsta ao seu
casamento com a sua filha única e herdeira, em benefício do pobre infante D.
Fernando, filho de rei, que precisava dos bens do prometido sogro (Sousa, 1938, livro
I, vol. I, cap. VIII, pp. 49-54). A junção das casas de Aveiro, Marialva e Loulé seria um
exagero. O rei tinha de evitar alianças que pudessem prejudicar o Reino «ou ser causa
em algum tempo de revolução» (De Witte, 1980-1986, vol. i, p. 493). Avaliavam-se as
ligações matrimoniais para não desequilibrar as posições relativas das famílias. Por
isso nos consórcios de grandes, altos funcionários e mesmo simples fidalgos, o rei
tinha sempre uma palavra a dizer. A sua autorização era indispensável, sob pena de
afastamento da corte e de desgraça, de recusa de tenças e, aquando da sucessão, não
atribuição de títulos e de mercês. Matrimónio sem licença significava quebrar o
respeito devido ao monarca. D. Jaime, duque de Bragança, foi desterrado da corte por
ter casado sem dar conta ao rei (Anedotas, 1980, p. 85); ato mais grave do que ter
assassinado a primeira mulher... Erro político castigado, desvario pessoal perdoado.
A aproximação de famílias preparava-se devidamente. Luís Alvares de Távora
desespera ao saber que uma filha casara pobre com um primo: nem fazenda, nem
novos parentes (ibid., p. 76). Porém, a estratégia de manutenção de um capital
simbólico de superioridade passa, em casos de uma filha morgada, por casá-la na
família. Que o nome se mantenha ligado ao vínculo, para «memória e conservação e
aumento» dos descendentes (Costa, 1983b, p. 267).
Para consolidar posições na corte e para se incorporarem no estrito grupo de
grandes e títulos, os altos funcionários viram-se para o matrimónio dos filhos nessas
famílias. A sua posição no aparelho central da governação dava-lhes uma especial
nobilitação aos olhos do comum. O património, o poder de intervenção junto do rei e
os rendimentos o resto.
SOCIEDADE - 33
HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

Só o rei podia conceder a alguém um título: duque, marquês, conde, visconde e


barão. E esses títulos não se transmitiam obrigatoriamente aos herdeiros, pois se
consideravam honras pessoais. Ter título implicava um estadão que só com boa
fortuna se podia sustentar. Numa historieta se lê que D. Aleixo de Meneses recusara o
título de conde de Vila de Rei, arguindo «que era pobre pera título» (Carvalho, 1926,
p. 233). Poucos foram os contemplados: cerca de 25 titulares em 1550-1580, para 34
em 1590 e 46 em 1620 (Marques, vol. II, 10.ª ed. 1984, p. 112). Amigos e leais
servidores, sempre.
Soldados. A expansão veio abrir novas vias de sobrevivência e de ascensão social (ou,
pelo menos, de manutenção de status). Primeiro foram as praças do Norte de África.
Era fácil ascender a cavaleiro e a escudeiro. Enxamearam. Mas logo um comando já
não era para todos, e depressa algumas famílias se instalaram no quase exclusivo
desses postos, como os Meneses. Depois abre-se o campo bem mais vasto do Oriente.
Não são os filhos e herdeiros das grandes famílias que se arriscam por estas
paragens. Em 1537 os fidalgos velhos e ricos recusam a ida dos seus morgados ao
socorro de Diu, apesar de se preparar uma expedição com o próprio infante D. Luís à
cabeça. Escusam-se «porque a Índia fora descoberta pera comércio, e trato» (Couto,
1777-1788, Década V, parte V, livro m, cap. VIII, p. 271). As obrigações militares
dos grandes senhores, além-mar, paravam em Marrocos.
Nem sequer, pelo menos de início, os filhos segundos da aristocracia titulada vão à
Índia. Soldados e diplomatas, os primeiros capitães-mores (Vasco da Gama, Pedro
Álvares Cabral, João da Nova, Duarte Pacheco Pereira, Francisco e Afonso de
Albuquerque ou Tristão da Cunha) são servidores diretos do rei, de boas linhagens,
mas sem títulos. Quando muito, filhos de senhores de terras ou de alcaides-mores.
Com a nomeação de D. Francisco de Almeida, em 1505, as coisas começam a mudar.
Logo, e por causa disso, o seu embarque será o mais solene que até então se fizera.
Neste caso até se compreende, porque iria tomar o título de vice-rei (Barros, 1974-
1990, Década I, livro VIII, cap. III, p. 295). Honrarias e título que Afonso de
Albuquerque não mereceu... Boa parte destes capitães e agentes do primeiro desenho
da arquitectura imperial portuguesa no índico provinha do círculo pessoal de D. João
II e de D. Manuel, gente que se fizera na nova configuração mercantil do Reino no
Atlântico.
A enxurrada de fidalgos, cavaleiros e escudeiros segue-se à decisão de estabelecer o
domínio militar como forma de assegurar o comércio asiático. Na armada do
comando de Lopo Soares de Albergaria (1503) — também ele apenas filho de alto
funcionário — seguem 12 000 homens, «muita parte deles fidalgos, e criados d’El-Rei,
toda gente muito limpa, e tal, que com razão se pode dizer, que esta foi a primeira
armada, que saiu deste Reino de tanta, e tão luzida gente» (ibid., livro VII, cap. IX, p.
275). Em crescendo são necessários fidalgos e cavaleiros para comandar as
expedições de honroso roubo e vigilância na entrada do estreito do mar Roxo, nas
costas do Malabar, Cambaia e Arábia, nas paragens de Ceilão e Bengala, em Malaca e
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

Maluco. Largo espaço. Muita gente. Os primeiros resultados mostraram que valia a
pena. Se o enriquecimento não era garantido, pelo menos abriam-se boas
expectativas. Em que contavam o valor pessoal e a sorte. A maioria dos primeiros
portugueses na Ásia, que atua não poucas vezes de maneira temerária e sem sentido
estratégico, quereria simplesmente «ganhar honra» (ibid., cap. IV, p. 258).
Boa parte desses fidalgos, cavaleiros e escudeiros foi-se ficando pelo caminho.
Morria-se muito. Também as fortunas ganhas em um momento se perdiam no
seguinte. Alguns obtiveram êxito, não apenas no alcançar das riquezas, mas na sua
transferência para o Reino. E, naturalmente, engrossaram o poderio do grupo dos
fidalgos bem instalados e da gente cavaleirosa. Sem alterar a ordem social
estabelecida. Cada fidalgo ou cavaleiro enriquecido contribuía para reforçar a
estrutura social preexistente. Melhorava a fazenda dos que já pertenciam às camadas
superiores e que nelas melhor se instalavam, ou delas não viriam a desmerecer.
Nem todos. Havia muitas perdas. Como se assinala, «nós não lhes vemos morgados,
nem contos de juro de tantos milhões de cruzados, como tiram de suas fortalezas, nem
sabemos por onde se lhes consumem todos, porque eles não se logram» (Couto, 1777-
1788, Década V, parte I, livro II, cap. VIII, p. 197). Nem 2 em 100 dos que de lá vêm
têm de comer ou com que instituir morgados (Couto, 1980, p. 25). E um outro azedo
afirma: «Com a boca cerrada se poderão contar os morgados e lucros que viso-reis e
capitães deixassem a seus herdeiros» (Memórias, 1987, p. 147). Bem menos do que se
deveria esperar.
A Índia destina-se aos que, à partida, não herdariam riqueza. Abre-se aos que pouco
ou nada têm, visível o número de bastardos da fidalguia que aparecem por lá. Talvez
por isso não caia bem que herdeiros não necessitados partam para o Oriente. Em
1545 fora muito estranhada a ida de D. Jerónimo de Meneses, o Bacalhau, filho e
herdeiro de D. Henrique de Meneses, irmão do marquês de Vila Real, pois «tinha de
comer, e era filho mais velho de seu pai» (Couto, 1777-1788, Década VI, parte l, livro I,
cap. I, p. 7). Contra a vontade de irmãos e parentes se embarcara em 1538 D. João
Manuel, o Alabastro, que tinha mais de um conto de renda (ibid. Década V, parte I,
livro III, cap. VIII, p. 280). Aventureiros, fugindo a comportamentos esperados,
desequilibravam arrumações familiares? Não se gastam os rendimentos dos
morgados no serviço real. Constata um soldado que «nenhum que tenha de comer em
Portugal quer passar» à Índia (Memórias, 1987, p. 172).
E normal irem filhos segundos, vergônteas de gente de primeira plana. Com as
nomeações para a Índia o rei proporciona promoções que no Reino já não eram
possíveis, por escassearem riquezas para redistribuir.
Contudo, não se encontrava facilitada a passagem individual de um estrato a outro.
Em simultâneo, a mistura social para fidalgos e nobres sem grandes ambições e suas
filhas, na Índia, não seria invulgar, embora não trouxesse, por si só, elevação social.
Nas periferias a incerteza do status originário põe a riqueza no centro da arrumação
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

social. Dela decorre a posição: sociedade de classes a que se adapta, sem


hipocrisias, a sociedade de ordens.
Colonos. Se o Oriente abria, em especial para a fidalguia e para os nobres, as
possibilidades de um enriquecimento que no Reino já se encontrava bloqueado,
diferente será no Brasil. Parte dos donatários iniciais das capitanias tinha estado na
Índia, e depois investira nessas novas terras. Todavia, apenas Duarte Coelho,
transferindo para Pernambuco os seus interesses e aí metendo o muito que ganhara
no Oriente, faz figura de homem com êxito (Sousa, 1987, pp. 57-58). Previamente
contratara a montagem dos engenhos de açúcar (História, 1922-1924, vol. III, p. 199),
não desdenhando as ligações comerciais. Conhecedor dos mecanismos financeiros,
queixa-se em 1549 de não achar no Reino quem lhe «empreste nem dê tanto dinheiro
a caimbos» quanto precisava (ibid., p. 318).
A falta de capitais e de ligações entre os donatários e os mercadores poderá
explicar as dificuldades de arranque da colonização do Brasil. Capitais de que
dependia, em conjugação, a aquisição da técnica e da mão-de-obra escrava africana.
Por terem capitais, ou julgarem saber como obtê-los, vemos aparecer como
donatários homens ligados aos tratos ultramarinos: o escrivão da Fazenda, Jorge de
Figueiredo Correia, o feitor e tesoureiro das Casas da Índia e Mina, João de Barros, e o
tesoureiro-mor do Reino, Fernão Álvares de Andrada. Por isso também um banqueiro
como Lucas Giraldes comprou a capitania de Ilhéus: nela «meteu grande cabedal, com
que a engrandeceu, de maneira que veio a ter oito ou nove engenhos». O rico mercador
Afonso de Torres está associado a Francisco Pereira Coutinho na exploração de terras
na Bahia. Martim Ferreira, em Lisboa, é sócio de Pedro de Góis, donatário da
capitania de São Tomé (ou da Paraíba), tendo entrado nessa «companhia» com
muitos mil cruzados para instalar engenhos de açúcar (Sousa, 1987, caps. XXXI e
XLIV, pp. 78 e 95).
O Brasil proporcionava enriquecimento a aventureiros com sorte, arrojados e
persistentes. Outros, e não donatários, arranjaram boas fortunas, como o governador
Mem de Sá (Documentos, 1954-1963, vol. III). Atentos a estas novas fortunas os
grandes do Reino. As herdeiras podiam dourar brasões pálidos. D. Filipa de Sá, filha
de Mem de Sá, sem pergaminhos de linhagem, casa com o herdeiro do conde de
Linhares. E com ela dois engenhos de açúcar, um no Rio de Janeiro (Sergipe) — com
282 peças de escravos — e outro em Ilhéus — com 130 peças e mais de 500 cabeças
de gado vacum, em 1573 (ibid., pp. 315-316).
Diferente é a aplicação dos capitais reunidos na Índia e no Brasil. Os «homens da
Índia, quando de lá vem para o Reino trazem consigo toda quanta fazenda tinham [...] e
como todo o seu cabedal está empregado em cousas manuais embarcam-nas consigo, e
do preço porque as vendem no Reino compram essas rendas e fazem essas casas; mas os
moradores do Brasil toda a sua fazenda têm metida em bens de raiz, não é possível
serem levados para o Reino, e quando algum para lá vai os deixa na própria terra [...] e

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

assim não lhes é possível deixarem cá [no Brasil] tanta fazenda e comprarem lá [em
Portugal] outra, contentando-se mais de a terem no Brasil pelo grande rendimento que
colhem dela» (Diálogos, 1956, «Diálogo III», p. 157).
Cavaleiro-mercador. Diferença de fundo: política de transporte, política de fixação
(Sérgio, 1929, pp. 69-109). Com os distintos interesses se ligam os respetivos
comportamentos. Enquanto no Brasil domina o patriarca rural fidalgo (ou com fumos
de fidalguia) — se bem que associado a mercadores, para escoamento do açúcar —,
no Oriente modela-se e radica-se o cavaleiro-mercador, tão atento à guerra quanto ao
preço da especiaria. Cavaleiros-mercadores que também se encontram instalados, e
bem, em Lisboa — e de que o rei não é o menor (Godinho, 1975, pp. 89-94). Assim,
«nem o marinheiro, nem o mercador, nem o soldado, nem ainda o fidalgo querem que
lhe pergunte senão pelos preços das fazendas que correm na terra, pelo que valerá em
Ormuz, e em Malaca» (Couto, 1777-1788, Década V, parte II, livro VIII, p. 202). Nos
soldados da índia é corrente esta «mecânica e vil subtileza de adquirir dinheiro»,
sendo os capitães das fortalezas tanto mercadores como militares. O comércio não
somava prestígio na sociedade aristocrática, que, contudo, não o dispensava, porque
lhe dava a riqueza. Um cavaleiro não desprezava o trato mercantil de que tirava
lucros, exercitando-o por si ou por seus caixeiros. Com isso se apresentava à lei da
nobreza com «lacaios, escudeiros e pajens» (Anedotas, 1980, pp. 168-169). Assim o
notou um arguto observador estrangeiro: «São quase todos mercadores, embora se
mostrem inimigos mortalíssimos deste nome, porque querem apelidá-lo de pessoa
baixa. E, no entanto, [...] são mercadores mais baixos do que rendeiros e a maior parte
das riquezas que possuem ganharam-nas com o comércio [...]. Falando porém dos
fidalgos, eles vão e vêm das índias continuadamente com as suas mercadorias, como o
faz qualquer criaturinha» (Marques, 1987 b, pp. 230-231).
Neste jogo aparecem muitos e interessantes figurões. Jorge da Silva, filho de João da
Silva, regedor da Casa da Suplicação, enamorado da infanta D. Maria, autor de livros
devotos, acaba casado com a filha única de um contratador muito rico: porém
continuou com o trato do sogro, que «exercitou por seus caxeiros» (Anedotas, 1980,
pp. 167-169). Fidalgo de boa linhagem, D. Lopo de Almeida, neto do conde de
Abrantes, filho do contador-mor do Reino, clérigo ainda por cima, chegou ao fim da
vida em Madrid com rendimentos anuais que deviam rondar uns 10 000 cruzados (4
contos de réis). Avisado homem de negócios. Empregava avultados capitais em sedas,
especiarias e adornos preciosos. Emprestava sobre penhores de jóias, que
cuidadosamente avaliava com balança própria para pesar ouro. Ouvira Matemática
em Paris, boa preparação para usurário. Não passou de capelão régio, talvez por isso
(Brandão, 1990, pp. 110-120). Muitos outros, em pequena escala: de um vigário de
Diu se sabe que «muitas vezes ia negocear seos tratos e cousas de seus navios pela
manhã cedo e despois tornava a dizer missa» (Documentação, 1991-1992, vol. III, p.
475); um Frei Inácio de Chaves trazia dinheiro a câmbios em Vila do Conde (Miguel,
1980, p. 218); bem mais tarde (1614), Baltasar Estaço, cónego da Sé de Viseu, declara

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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

ter em sua posse objetos de ouro e prata, como penhores de quantias que lhe deviam
(Baião, 1936-1938, vol. I, p. 85). Seria fácil fugir a este ambiente mercantil, em que os
eclesiásticos e as próprias ordens religiosas, nomeadamente a dos Jesuítas, não
deixam de ter fundos interesses? No entanto, em 1612, ficciona-se que «a gente
nobre não tem trato» (Oliveira, 1887-1888, tomo II, p. 293).
O rei tinha de zelar pela manutenção do ordenamento social, situando-se no
centro da mobilidade social, travando-a ou propulsionando-a. Geria a abertura
para as promoções pessoais ambicionadas: concessão de comandos e viagens
(oportunidade para o enriquecimento) ou de tenças (retribuição pecuniária por atos
honrosos) ou, mais simples ainda, de moradia (reconhecimento da dignidade e honra
de pertença à casa real).
Bem trabalhosa era a vida daqueles que ambicionavam elevar-se na escala social. Da
mercancia ou dos ofícios, com um casamento bem preparado, executavam a sua
aproximação à gente nobre e fidalga. A geração seguinte estava no bom caminho.
«Deram em casamento a João Lopes, com sua mulher, duzentos mil réis, com os quais
tratou três ou quatro anos, e no cabo deles comprou o ofício de escrivão» (Frutuoso,
1977-1987, livro IV, tomo I, p. 160). Pecúlio inicial, êxito, compra de um honroso
ofício: estratégia bem montada. Conseguida a aproximação ou integração, era a vez
de ostentar, gastando o que os iniciadores do processo tinham acumulado. Pelo
contrário, «não é justiça que a filha do cavaleiro muito honrado e com muito dinheiro
case [...] com criados pobres» (Couto, 1980, p. 69). Iniciar a descida da escala social
era incapacitar-se para tornar a subi-la. E desclassificar a família. Daí a função social
conservadora dos conventos femininos.
Mercadores. Mercador parece ser um estado transitório entre mecânico e fidalgo.
Mercador empobrecido toma-se rendeiro? Mercador enriquecido acaba fidalgo? Para
a promoção dos mercadores à fidalguia exige-se habilidade e investimentos
simbólicos na terra e em comportamentos nobres. Sobretudo havia que
arredar suspeitas de sangue impuro (cristão-novo). A menos de se tratar de
grandes mercadores, ligados à casa real e que o rei entendesse premiar. Aconteceu a
Fernão de Noronha, feito cavaleiro antes de 1494, donatário da ilha que terá o seu
nome, com reconhecido brasão de armas, fidalgo de cota de armas em 1532, assim
trazido «ao conto e estima e participaçam dos nobres e fidalgos de limpo sangue»
(Espinosa, 1972, pp. 203-204). Poucas vezes encontraremos casos tão claros de
promoção (e quando ainda a pureza de sangue não contava). Porém, a prestação de
serviços, parceria em negócios ou qualquer jeito que merecesse reconhecimento
facilitavam a passagem. Sempre limitada. Os mercadores ricos esforçam-se por
casar e casar filhos e filhas com gente fidalga e nobre. E gente fidalga e nobre não
se escusará, embora prefira não se dedicar do mesmo modo aberto e público à
mercancia, mesmo que esse exercício lhe traga a fortuna para ascender ou manter o
status.
Tomava-se, por isso, notória a exceção dos moradores de Viana de Foz de Lima. Aí,
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

todos «os nobres exercitam a mercancia a uso de Veneza e Génova, contra o costume
das mais terras de Portugal, que os louvam e não os seguem, invejam a felicidade e bons
sucessos do trato e não sabem imitar a indústria». Até as mulheres «vemos ir às escolas
com papel e tinta e aprender a ler e escrever e contar» (Sousa, 1946-1948, livro I, vol.
n cap. XXVI, p. 160).
Sociedade em que o comércio e os capitais desempenham papéis dinamizadores e
em que mercadores não se apresentam como detentores de valores sociais próprios,
mercantes e alternativos. Capitalismo mercantil enxertado numa sociedade em que
dominam os fidalgos que, não deixando de ser mercadores, sustentam valores de
honra e de hierarquia, na aparência estáticos, assentes numa estrutura diferenciada
pelas desigualdades dos privilégios. Que tem no rei e no absolutismo régio a
garantia do seu sustento e da sua defesa. «Ganhou-se a Índia com o sangue dos
pobres e homens pequenos, e os galardões e mercês faz El Rei aos fidalgos, por suas
valias e aderências» (Correia, 1979, vol. II, p. 912). No conjunto, nem as novas
formas políticas nem as novas dinâmicas económicas perturbaram ou
subverteram o ordenamento social. Bem pelo contrário, o peso da aristocracia
no conjunto do Reino sai acrescido e reforçado. Se a pouco espessa camada
superior dificilmente se deixa penetrar, o muito mais volumoso estrato que se
lhe subordina é bastante plástico e permeável.
Mobilidade social. A mobilidade social ascendente, a porosidade dos estratos
inferiores da aristocracia é ainda grande, pelo menos até ao conjunto de restrições de
1570. Ou por via da Igreja, dos feitos de armas ou da universidade, a promoção
social ia ocorrendo. Se o topo estava bloqueado, à posição de fidalgo e de nobre
sempre ia sendo possível o acesso de alguns. Individualizado. Por prémio de serviços
prestados (no Norte de África e no Oriente, menos no Brasil), desde que houvesse
fortuna e comportamento à lei da nobreza a sustentar essa nova condição. Ou a
nomeação para os lugares da burocracia da nova forma de Estado. E, sempre, desde
que sobreviesse o reconhecimento do rei ou, no caso da gente nobre, a inclusão nos
ofícios da governança local. Depois a estratificação parece tender para a estabilidade.
Ainda não de todo alcançada nas primeiras décadas do século XVII.
Estrutura que assenta numa base estreita dos que trabalham para sustentar o todo,
fortemente penalizados, em que os escravos são indispensáveis. E a que se foge, ou
é empurrado para a emigração. Cada vez mais dominadora e entrelaçada com o
absolutismo régio e com a aristocracia que o serve, a Igreja atacará a seu modo.
Controla a dissidência. Vai disciplinando a violência individual, pelo ritual e pela
apropriação de bens. A cristalização social, numa desejada estabilidade, é
objetivo prosseguido. A magnificência do barroco exprime, em imagem triunfante,
esse ponto de chegada.
Sociedade com uma base estreita relativamente ao conjunto (quadros V a VIII). E
em que por isso o estrato mais baixo sofre o grande peso dos que lhe estão acima. É
assim em Alenquer, Loulé ou Coimbra, ao longo do século. O que explica a
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HISTÓRIA DE PORTUGAL MODERNO - TEMA 2 – A Organização Social.

estabilidade e a incapacidade real dos «vis» de procurarem uma alteração profunda.


Quadro V
Distribuição da população de Alenquer em finais do século XV (1497)

Percentagem

14 fidalgos 26
12 cavaleiros e outros que vivem cavaleirosamente
50 escudeiros e outros que vivem limpamente 50
54 vassalos e criados de fidalgos 54
Total de senhores e casas senhoriais 130 23
29 besteiros do conto
14 ourives e moedeiros 58 10,6
15 monteiros
235 lavradores 235 42
66 mesteirais (sapateiros, barbeiros, tanoeiros, carpinteiros,
alfaiates, ferreiros, etc.) 66 12
67 moleiros, lagareiros e trabalhadores que vivem por seu
trabalho 67 12
556
in Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios, II, 1978, p. 22.

Quadro VI
Loulé em 1564

l.° Braceiros a 7000 réis 38%


2.º 8000 réis a 45 000 réis 43%
3.º 46 000 a 100 000 réis 13%
4.º 110 000 réis a 900 000 réis 6%

In Magalhães, 1970. p. 219.

Quadro VII
Composição profissional da população de Coimbra em 1610-1613
Profissões Número de indivíduos Percentagem

1 — Primário:
Agricultura, criação de gado, caça e pesca 43 2,7
2 — Secundário:
Artes e ofícios 449 28,1
Mobiliário e madeira 43 9,6
Metais 38 8.5
Vestuário, têxteis, equipamento 236 52,5
Alimentação 36 8,0
Construção civil 65 14.5
Trabalhos artísticos e de piedade 29 6,5
Diversos 2 0,4
3 — Terciário 440 27,4
Comércio e transporte 189 11,8
Administração e serviços públicos 100 6,8
Serviços domésticos 60 3,8
4: Braceiros 39 2,4
Diversos e não discriminados 627 39,2
Soma 1598 100

Distribuição por classes de valor da contribuição de Coimbra (1610-1613)


Réis Número de indivíduos Percentagem

Menos de 100 714 44,7


De 101 a 250 365 22,8
De 251 a 500 268 16,8
De 501 a 1000 137 8,6
De 1001 a 5000 99 6,2
Mais de 5000 15 0,9
Soma 1598 100
José Albertino Rodrigues, Travail et société urbaine au Portugal dans la seconde moitié du
XVI* siècle, Paris, roneotipado, 1968, pp. 188-192. Ap. V. Magalhães Godinho, A Estrutura
da Antiga Sociedade Portuguesa, Lisboa. Arcádia, 1975.

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