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Nota preliminar: No primeiro semestre de 2023 o LASInTec passou por uma reformulação que
implicou mudanças na composição do grupo, na coordenação (Joana Barros passou a ser vice
coordenadora) e nas atividades de pesquisa e extensão, sobretudo com a curricularização da extensão
em uma UC Eletiva do curso de Relações Internacionais que incorporou o LASInTec. Em meio a essas
reformulações, mudamos de site, passando a abrigar nossas produções no domínio da UNIFESP, e,
por isso, interrompemos a produção de boletins por um semestre. Agora, com site novo, os boletins
voltam em junho com periodicidade mensal e nova edição e as coleções anteriores serão reunidas por
ano em formato de e-book.
“Tu suportarias ficar mais um juíza foi a de retirar a criança da guarda da mãe
pouquinho?”1. Essa foi a pergunta feita pela e enviá-la a um abrigo, impedindo-a de
juíza Joana Zimmer a uma criança de 11 anos interromper a gestação.
que buscava acesso a um aborto legal após ser Nessa perspectiva, a “defesa da vida” é
violentada sexualmente, um caso trazido a a defesa de dispositivos jurídicos punitivistas.
público em junho de 2022. Na vigésima semana Para além da covardia de se negar acesso ao
de gestação, os médicos que receberam a procedimento a uma criança violentada, está
menina no hospital se recusaram a realizar o presente na criminalização do aborto um
procedimento, encaminhando o caso ao dispositivo governamental que intensifica a
Judiciário, que também recusou o pedido. (in)gerência alheia sobre a vida da mulher2,
Apesar do alto risco da gravidez, a decisão da performando um arranjo biopolítico de controle
1
GUIMARÃES, P. DE LAURA; B. DIAS, T. Vídeo: em <https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiz a-sc-
audiência, juíza de SC induz menina de 11 anos grávida menina-11-anos-estupro-aborto/>.
após estupro a desistir do aborto legal. Disponível em: 2
Vale ressaltar que o uso do termo “mulher” reside na
conexão da questão do aborto com padrões históricos de
2
e repressão sobre seu corpo. Além disso, sexualidade. Busca-se também a adequação dos
observa-se um padrão de maternidade sujeitos a papéis sociais específicos, os quais
compulsória como definidora da identidade servem à reprodução de um modelo social que
feminina. Ambos os fatores sequestram da preza pela funcionalidade dos indivíduos a
mulher sua autonomia, capacidade de partir de sua capacidade produtiva
autodeterminação e liberdade sexual e (FOUCAULT, 1989 apud COSTA; SOARES,
reprodutiva. 2022).
Propõe-se aqui a urgência em desafiar Não é surpresa que a autoridade sobre
esses mecanismos de disciplinarização do as instituições que produzem tais discursos de
corpo que agem em nome da manutenção de verdade, como escolas, igreja e Estado, seja
uma estrutura social profundamente misógina e fundamentalmente masculina, logo, é
racista, cujo objetivo principal é a otimização presumível imaginar que os valores propagados
da funcionalidade (re)produtiva do sujeito e de por elas corroborem com a manutenção de uma
sua docilidade frente à dominação que o ordem social em privilégio dos homens. A
reprime. partir dessa premissa, analisa-se a maternidade
compulsória como elaboração discursiva
Maternidade compulsória à luz da marcadamente masculinista que visa garantir a
biopolítica: reprodução de sujeitos economicamente
funcionais, além da perpetuação de uma
A noção foucaultiana de biopolítica divisão de papéis sociais que subjuga a mulher
pode ser compreendida como um conjunto de e restringe sua sociabilidade ao espaço privado,
dispositivos que operam a partir da inclusão da quadro agravado pela espoliação do controle
vida biológica na gestão política. Diante disso, sobre sua capacidade reprodutiva.
delineiam-se moldes comportamentais e táticas Diante disso, a histórica
de gestão da vida e de corpos governáveis, responsabilização da mãe pelo cuidado com as
intervindo assim em suas condutas individuais crianças e a sacralização da maternidade como
e coletivas. algo intrínseco à mulher resgatam influências
Essa abordagem analítica evidencia, diretamente conectadas à religiosidade e à
assim, o controle que se estabelece sobre o cultura patriarcal, em reforço de uma
corpo, perpassando sua expressão de gênero e identidade limitante e repressora sobre o corpo
atenta a tais especificidades de classe e raça já 2004, p. 75). Mas, evidentemente, essa escolha
são amplamente discutidos pelo movimento é racista, classista, misógina e opera no sentido
negro. Davis (2016) é categórica ao afirmar a de ampliar uma exclusão já vigente.
facilidade com a qual essas demandas Novamente, tendo em vista a questão do
assumiram, no início do século XX nos EUA, aborto, é a mulher negra o principal alvo desses
um caráter eugênico e racista que culminou na dispositivos de controle.
disseminação de políticas institucionalizadas Condenar a interrupção da gravidez,
de esterilizações forçadas. Não é de se seja por sanções penais ou constrangimento
surpreender que os alvos desse projeto fossem social, além de não reduzir sua ocorrência, é
majoritariamente mulheres negras, indígenas e parte fundamental de um arranjo de poder que
latinas. Assim, em suas palavras, o movimento impõe a instrumentalização funcional e
da “maternidade voluntária” passa a defender dominação sobre o corpo feminino, suprimindo
“não o direito individual das pessoas de a liberdade das mulheres de realizar escolhas de
minorias étnicas ao controle de natalidade, e acordo com suas convicções individuais.
sim a estratégia racista de controle
populacional” (DAVIS, 2016, p. 227).
O acesso aos direitos reprodutivos por “Não vamos parar!”: a revolta como
essas minorias é perpassado por bem mais transformação.
violências do que seria possível tratar neste
texto. Porém, vê-se como as questões relativas Apesar desse conjunto de elementos
ao aborto são bem mais profundas e difusas do que tentam inserir a mulher à condição de
que a simples “defesa da vida”. Sua “vítima” e subjugada, diversos focos de revolta
criminalização constitui-se como outro eixo irrompem ao redor do planeta. Nos EUA, em
importante da biopolítica, que seleciona a maio de 2022, a decisão da Suprema Corte
proteção de corpos considerados desejáveis e a Dobbs v. Jackson Women’s Health
eliminação daqueles que não o são. Organization derrubou o direito constitucional
Cabe aqui também comentar sobre a à interrupção da gravidez, conforme
escolha do sistema penal como meio para tratar previamente entendido em Roe v. Wade, de
juridicamente o aborto. Formado por uma 1973, culminando em ações diretas contra
seleção de condutas sociais tornadas crimes, clínicas falsas, centros de gravidez e
esse sistema se caracteriza pela instituições anti-aborto conhecidas como pró-
“instrumentalização do exercício do poder, em vida. Em meio às janelas quebradas e
sua expressão punitiva, de forma a escombros, lia-se, em vermelho: “if abortions
proporcionar uma disciplina social” (KARAM,
5
aren’t safe then you aren’t either”3, um breve O Chile, em setembro de 2021, passou a
aviso a quem contribui para a morte de permitir o aborto em casos de risco à vida da
mulheres que abortam. mulher, estupro ou má formação fetal em até 14
Já na América Latina, a “marea verde” semanas de gestação. A Suprema Corte do
(maré verde), como se denominou as México, também em setembro 2021, decidiu
conquistas recentes pelo direito ao aborto que a interrupção da gravidez pela vontade da
impulsionadas pelas lutas feministas, inundou mulher deixava de ser crime no país. Contudo,
as ruas na última década, defendendo a na medida em que a legislação penal mexicana
capacidade das mulheres de decidirem se, é de competência estadual, criou-se uma
quando, como e com quem querem ter filhos. situação em que estados como Oaxaca,
Até então, somente no Uruguai, Guiana, Veracruz, Hidalgo e a Cidade do México
Guiana Francesa e Cuba o aborto não era legalizassem a prática, mas que permaneceu
considerado crime quando realizado pela com condicionamentos em outras regiões. E na
vontade da mulher até certo período da Colômbia, em fevereiro de 2022, a Suprema
gestação, mesmo que ainda visto com estigmas, Corte descriminalizou o aborto em até 24
havendo clínicas e profissionais que se negam semanas de gestação4.
a realizar o procedimento. Porém, com os Apesar de ainda ser necessário e quase
levantes a partir de 2017, principalmente na inevitável envolver o judiciário para avanços na
Argentina com a “Campanha Nacional pelo descriminalização do aborto, principalmente
Direito ao aborto legal, seguro e gratuito”, no em países que ainda continuam proibindo a sua
Chile com o grito “Um estuprador em seu prática (mesmo com os casos excepcionais de
caminho” e no México exigindo respostas aos aborto legal), como Brasil, Bolívia e
altos índices de feminicídio no país, os Venezuela, é importante que a luta não se limite
movimentos feministas conseguiram fazer a isso. Daí vem a potência das ondas verdes e
pressão e tiveram avanços no que tange aos roxas que inundaram a América Latina, a
direitos e liberdade reprodutiva. reafirmação de autonomia e decisão sobre o
A Argentina, em dezembro de 2020, próprio corpo e revolta a tudo que tente ir
aprovou uma lei que permite o aborto seguro e contra a isso, e a construção de redes de apoio
gratuito no país em até 14 semanas de gestação.
3
Tradução livre: “se abortos não são seguros, você EL PAÍS. Maré chilena puxa protestos e milhões de
também não está”. mulheres mostram sua força nas ruas da América Latina.
4
Para mais informações: 09/03/2020.
EL PAÍS. Argentina legaliza o aborto e se põe na
vanguarda dos direitos sociais na América Latina.
29/12/2020.
6
Referências:
COSTA, Marli; SOARES, Etyane.
BIOPOLÍTICA E CONTROLE DOS
CORPOS FEMININOS: um debate sobre
maternidade compulsória e aborto. Revista
Húmus, v.12. n.35, p. 369-386, 2022.