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LASINTEC/UNIFESP EDITORIAL

BOLETIM (ANTI)SEGURANÇA N.27

Este Boletim é um projeto de pesquisa e extensão do Departamento de Relações Internacionais


da EPPEN-UNIFESP Osasco

Coordenação: Acácio Augusto, professor do Departamento de Relações Internacionais da EPPEN-


UNIFESP)
Vice-coordenação: Joana Barros, professora no Instituto das Cidades (UNIFESP, Campus Zona
Leste)
Pesquisa e Redação: Acácio Augusto, Ana Clara Mata, Bruna Ghirardello, Fabíola Fanti, Gabriella
de Biaggi, Helena Wilke, Ivo Ferreira, João Paulo Gusmão, Joana Barros, Júlia Tibiriçá, Mariana
Janot, Matheus Marestoni, Milena Cunha, Pedro Lázaro, Renato Ortega, Thaiane Mendonça e
Yasmin Teixeira

Edição e Formatação: Milena Cunha e Renato Ortega


Capa: Marea verde na Argentina

EPPEN UNIFESP Osasco


Rua Oleska Winogradow, n° 100 – Sala 313 – Jd. das Flores -Osasco – SP
CEP: 06110-295
Telefone: (11) 2284-6900
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As disputas em torno do corpo da mulher:


descriminalização do aborto, autonomia e liberdade sexual e reprodutiva

Nota preliminar: No primeiro semestre de 2023 o LASInTec passou por uma reformulação que
implicou mudanças na composição do grupo, na coordenação (Joana Barros passou a ser vice
coordenadora) e nas atividades de pesquisa e extensão, sobretudo com a curricularização da extensão
em uma UC Eletiva do curso de Relações Internacionais que incorporou o LASInTec. Em meio a essas
reformulações, mudamos de site, passando a abrigar nossas produções no domínio da UNIFESP, e,
por isso, interrompemos a produção de boletins por um semestre. Agora, com site novo, os boletins
voltam em junho com periodicidade mensal e nova edição e as coleções anteriores serão reunidas por
ano em formato de e-book.

Pero no voy a ser la que obedece


Porque mi cuerpo me pertenece
Yo decido de mi tiempo,
Cómo quiero y dónde quiero
Independiente yo nací, independiente decidí
Yo no camino detrás de ti,
Yo camino de la par a ti.
Ana Tijoux, Antipatriarca.

“Tu suportarias ficar mais um juíza foi a de retirar a criança da guarda da mãe
pouquinho?”1. Essa foi a pergunta feita pela e enviá-la a um abrigo, impedindo-a de
juíza Joana Zimmer a uma criança de 11 anos interromper a gestação.
que buscava acesso a um aborto legal após ser Nessa perspectiva, a “defesa da vida” é
violentada sexualmente, um caso trazido a a defesa de dispositivos jurídicos punitivistas.
público em junho de 2022. Na vigésima semana Para além da covardia de se negar acesso ao
de gestação, os médicos que receberam a procedimento a uma criança violentada, está
menina no hospital se recusaram a realizar o presente na criminalização do aborto um
procedimento, encaminhando o caso ao dispositivo governamental que intensifica a
Judiciário, que também recusou o pedido. (in)gerência alheia sobre a vida da mulher2,
Apesar do alto risco da gravidez, a decisão da performando um arranjo biopolítico de controle

1
GUIMARÃES, P. DE LAURA; B. DIAS, T. Vídeo: em <https://theintercept.com/2022/06/20/video-juiz a-sc-
audiência, juíza de SC induz menina de 11 anos grávida menina-11-anos-estupro-aborto/>.
após estupro a desistir do aborto legal. Disponível em: 2
Vale ressaltar que o uso do termo “mulher” reside na
conexão da questão do aborto com padrões históricos de
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e repressão sobre seu corpo. Além disso, sexualidade. Busca-se também a adequação dos
observa-se um padrão de maternidade sujeitos a papéis sociais específicos, os quais
compulsória como definidora da identidade servem à reprodução de um modelo social que
feminina. Ambos os fatores sequestram da preza pela funcionalidade dos indivíduos a
mulher sua autonomia, capacidade de partir de sua capacidade produtiva
autodeterminação e liberdade sexual e (FOUCAULT, 1989 apud COSTA; SOARES,
reprodutiva. 2022).
Propõe-se aqui a urgência em desafiar Não é surpresa que a autoridade sobre
esses mecanismos de disciplinarização do as instituições que produzem tais discursos de
corpo que agem em nome da manutenção de verdade, como escolas, igreja e Estado, seja
uma estrutura social profundamente misógina e fundamentalmente masculina, logo, é
racista, cujo objetivo principal é a otimização presumível imaginar que os valores propagados
da funcionalidade (re)produtiva do sujeito e de por elas corroborem com a manutenção de uma
sua docilidade frente à dominação que o ordem social em privilégio dos homens. A
reprime. partir dessa premissa, analisa-se a maternidade
compulsória como elaboração discursiva
Maternidade compulsória à luz da marcadamente masculinista que visa garantir a
biopolítica: reprodução de sujeitos economicamente
funcionais, além da perpetuação de uma
A noção foucaultiana de biopolítica divisão de papéis sociais que subjuga a mulher
pode ser compreendida como um conjunto de e restringe sua sociabilidade ao espaço privado,
dispositivos que operam a partir da inclusão da quadro agravado pela espoliação do controle
vida biológica na gestão política. Diante disso, sobre sua capacidade reprodutiva.
delineiam-se moldes comportamentais e táticas Diante disso, a histórica
de gestão da vida e de corpos governáveis, responsabilização da mãe pelo cuidado com as
intervindo assim em suas condutas individuais crianças e a sacralização da maternidade como
e coletivas. algo intrínseco à mulher resgatam influências
Essa abordagem analítica evidencia, diretamente conectadas à religiosidade e à
assim, o controle que se estabelece sobre o cultura patriarcal, em reforço de uma
corpo, perpassando sua expressão de gênero e identidade limitante e repressora sobre o corpo

submissão de gênero, pensando um contexto performativas de gênero e de suas interseccionalidades,


heteronormativo binário. Porém, evidencia-se a tendo em vista a garantia desse direito a todas as pessoas
importância de se ampliar esse debate ao reconhecimento que engravidam.
de uma variedade mais ampla de categorias
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feminino (COSTA; SOARES, 2022, p. 370). possibilidade do livre exercício de sua


Esse comportamento normalizado passa a sexualidade e o aprisionamento à maternidade
configurar um discurso de verdade responsável como fato inevitável e, consequentemente,
por enclausurar esses corpos à expectativa forçado. Nesses termos, a capacidade de gestar
funcional contínua de reprodução da mão de se torna um símbolo de coerção e violência,
obra, sob os mesmos mecanismos disciplinares supressor da individualidade e da capacidade
de obediência e resignação que os acometem. de autodeterminação sobre o próprio corpo.
Mais objetivamente, trata-se de
enfrentar: a responsabilização exclusiva pela Proibido para quem?
criação e cuidado dos filhos e pelas tarefas
domésticas – apoio que falta tanto na sua vida A prática do aborto no contexto de
pública quanto privada; a discriminação no gravidez indesejada é um fato que não se altera
mercado de trabalho e dificuldade de conciliar com a criminalização. O efeito prático imediato
ambas as atividades; além da imagem arraigada da proibição, portanto, é a precarização do
de como uma mãe deveria se comportar, que acesso de grupos sociais vulnerabilizados a
geralmente reside na abnegação absoluta de sua esse serviço.
individualidade em função das necessidades É evidente o encadeamento da falta de
dos que estão ao seu redor. recursos financeiros com a busca por formas
O aborto é o confronto mais direto a tais inseguras e arriscadas na realização do
instituições, padrões da maternidade e ao papel procedimento. Ainda, denuncia-se a
social que se impõe à mulher, de forma que, em precarização sistemática, quando não a
defesa de tal sistema, passam a criminalizar e ausência, do acesso a serviços de saúde básicos
penalizar o acesso a tal prática. E claro, fala-se por alguns grupos sociais, em especial pessoas
de uma ordem majoritariamente dominada por pobres e racializadas. Assim, soma-se o risco
homens, que assume a tutela sobre o corpo da de se submeter a um procedimento ilegal à
mulher e se recusa com unhas e dentes a dificuldade posterior de receber assistência
restituí-la. Sua norma é a da instrumentalização médica em caso de complicações. Esse debate
desses corpos em prol do interesse alheio, revela outra face da criminalização do aborto
reificados como incubadoras e passíveis de para além da imposição de uma tecnologia
serem violentados, rechaçados, avaliados, disciplinar ao comportamento feminino: a
estigmatizados e censurados. eliminação de corpos considerados
Entre tantos outros mecanismos, ao se indesejáveis.
privar a mulher da escolha sobre sua vida Os diversos riscos de se empreender
reprodutiva, restringe-se também a uma luta pela autonomia reprodutiva que não se
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atenta a tais especificidades de classe e raça já 2004, p. 75). Mas, evidentemente, essa escolha
são amplamente discutidos pelo movimento é racista, classista, misógina e opera no sentido
negro. Davis (2016) é categórica ao afirmar a de ampliar uma exclusão já vigente.
facilidade com a qual essas demandas Novamente, tendo em vista a questão do
assumiram, no início do século XX nos EUA, aborto, é a mulher negra o principal alvo desses
um caráter eugênico e racista que culminou na dispositivos de controle.
disseminação de políticas institucionalizadas Condenar a interrupção da gravidez,
de esterilizações forçadas. Não é de se seja por sanções penais ou constrangimento
surpreender que os alvos desse projeto fossem social, além de não reduzir sua ocorrência, é
majoritariamente mulheres negras, indígenas e parte fundamental de um arranjo de poder que
latinas. Assim, em suas palavras, o movimento impõe a instrumentalização funcional e
da “maternidade voluntária” passa a defender dominação sobre o corpo feminino, suprimindo
“não o direito individual das pessoas de a liberdade das mulheres de realizar escolhas de
minorias étnicas ao controle de natalidade, e acordo com suas convicções individuais.
sim a estratégia racista de controle
populacional” (DAVIS, 2016, p. 227).
O acesso aos direitos reprodutivos por “Não vamos parar!”: a revolta como
essas minorias é perpassado por bem mais transformação.
violências do que seria possível tratar neste
texto. Porém, vê-se como as questões relativas Apesar desse conjunto de elementos
ao aborto são bem mais profundas e difusas do que tentam inserir a mulher à condição de
que a simples “defesa da vida”. Sua “vítima” e subjugada, diversos focos de revolta
criminalização constitui-se como outro eixo irrompem ao redor do planeta. Nos EUA, em
importante da biopolítica, que seleciona a maio de 2022, a decisão da Suprema Corte
proteção de corpos considerados desejáveis e a Dobbs v. Jackson Women’s Health
eliminação daqueles que não o são. Organization derrubou o direito constitucional
Cabe aqui também comentar sobre a à interrupção da gravidez, conforme
escolha do sistema penal como meio para tratar previamente entendido em Roe v. Wade, de
juridicamente o aborto. Formado por uma 1973, culminando em ações diretas contra
seleção de condutas sociais tornadas crimes, clínicas falsas, centros de gravidez e
esse sistema se caracteriza pela instituições anti-aborto conhecidas como pró-
“instrumentalização do exercício do poder, em vida. Em meio às janelas quebradas e
sua expressão punitiva, de forma a escombros, lia-se, em vermelho: “if abortions
proporcionar uma disciplina social” (KARAM,
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aren’t safe then you aren’t either”3, um breve O Chile, em setembro de 2021, passou a
aviso a quem contribui para a morte de permitir o aborto em casos de risco à vida da
mulheres que abortam. mulher, estupro ou má formação fetal em até 14
Já na América Latina, a “marea verde” semanas de gestação. A Suprema Corte do
(maré verde), como se denominou as México, também em setembro 2021, decidiu
conquistas recentes pelo direito ao aborto que a interrupção da gravidez pela vontade da
impulsionadas pelas lutas feministas, inundou mulher deixava de ser crime no país. Contudo,
as ruas na última década, defendendo a na medida em que a legislação penal mexicana
capacidade das mulheres de decidirem se, é de competência estadual, criou-se uma
quando, como e com quem querem ter filhos. situação em que estados como Oaxaca,
Até então, somente no Uruguai, Guiana, Veracruz, Hidalgo e a Cidade do México
Guiana Francesa e Cuba o aborto não era legalizassem a prática, mas que permaneceu
considerado crime quando realizado pela com condicionamentos em outras regiões. E na
vontade da mulher até certo período da Colômbia, em fevereiro de 2022, a Suprema
gestação, mesmo que ainda visto com estigmas, Corte descriminalizou o aborto em até 24
havendo clínicas e profissionais que se negam semanas de gestação4.
a realizar o procedimento. Porém, com os Apesar de ainda ser necessário e quase
levantes a partir de 2017, principalmente na inevitável envolver o judiciário para avanços na
Argentina com a “Campanha Nacional pelo descriminalização do aborto, principalmente
Direito ao aborto legal, seguro e gratuito”, no em países que ainda continuam proibindo a sua
Chile com o grito “Um estuprador em seu prática (mesmo com os casos excepcionais de
caminho” e no México exigindo respostas aos aborto legal), como Brasil, Bolívia e
altos índices de feminicídio no país, os Venezuela, é importante que a luta não se limite
movimentos feministas conseguiram fazer a isso. Daí vem a potência das ondas verdes e
pressão e tiveram avanços no que tange aos roxas que inundaram a América Latina, a
direitos e liberdade reprodutiva. reafirmação de autonomia e decisão sobre o
A Argentina, em dezembro de 2020, próprio corpo e revolta a tudo que tente ir
aprovou uma lei que permite o aborto seguro e contra a isso, e a construção de redes de apoio
gratuito no país em até 14 semanas de gestação.

3
Tradução livre: “se abortos não são seguros, você EL PAÍS. Maré chilena puxa protestos e milhões de
também não está”. mulheres mostram sua força nas ruas da América Latina.
4
Para mais informações: 09/03/2020.
EL PAÍS. Argentina legaliza o aborto e se põe na
vanguarda dos direitos sociais na América Latina.
29/12/2020.
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e centros de acolhimento para mulheres com


gravidez indesejada.
E ao fazer isso, somar ao coro:
“Educacación sexual para decidir,
anticonceptivos para no abortar; aborto legal
para no morir”.

Referências:
COSTA, Marli; SOARES, Etyane.
BIOPOLÍTICA E CONTROLE DOS
CORPOS FEMININOS: um debate sobre
maternidade compulsória e aborto. Revista
Húmus, v.12. n.35, p. 369-386, 2022.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São


Paulo: Boitempo, 2016.

KARAM, Maria Lúcia. “Pela abolição do


sistema penal”. In: PASSETTI, Edson (org.).
Curso livre de abolicionismo penal. Rio de
Janeiro: Revan, 2004, p. 69-107.

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