Você está na página 1de 7

Resenha do artigo “La República Rio-Grandense y el retorno de

la “Pátria Grande” (1838-1843)”

Ricardo Cechin Bergamaschi


20 de novembro de 2023

O artigo “La República Rio-Grandense y el retorno de la “Pátria Grande” (1838-


1843)” é de autoria de Cesar Augusto Barcellos Guazzelli, professor titular no
Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi publicado
em 2015 na revista Pasado Abierto, periódico científico da Universidad Nacional de Mar
del Plata.

O artigo apresenta um panorama do complexo emaranhado de alianças e


relações diplomáticas entre caudilhos da região platina que transcendiam as fronteiras
do que hoje são os Estados nacionais de Brasil, Uruguai e Argentina. A base para a
análise do artigo são cinco tratados firmados entre o caudilho oriental Fructuoso Rivera,
a República Rio-Grandense, e governadores das províncias argentinas de Corrientes,
Entre Ríos e Santa Fé.

Ao final do artigo, os textos dos acordos estão anexados em sua íntegra. Sua
leitura permite a percepção de entrelinhas e nuances interessantes.

A análise parte desses acordos não para analisar o panorama político regional
em si, tarefa que demandaria um estudo mais extenso e complexo, mas tem por objetivo
contribuir para uma discussão historiográfica que estude o tema dos conflitos platinos
transcendendo os limites das histórias nacionais. Segundo o autor, “No esforço de
superar as práticas comuns das “histórias nacionais”, este artigo procurará enveredar por
temas transversais às fronteiras que existiram entre os Estados nacionais e “regiões-
províncias” que se formaram no espaço platino.” (pg 156).
Após a explicitação da proposta do artigo, o autor apresenta alguns aspectos das
relações de poder político nas províncias platinas no contexto das independências das
Províncias Unidas do Rio da Prata e do Império Brasileiro.

Parte do fato de que na bacia do Prata as “regiões-províncias” do antigo Vice-


reinado do Rio da Prata se tornaram unidades políticas atravessadas por diversas
disputas sobre qual deveria ser o futuro daquele conjunto de regiões que estavam se
independizando, tendo como protagonistas dessas disputas os caudilhos regionais que
aspiravam maior autonomia e os partidários de uma unidade centralizada que favorecia
os grupos exportadores de Buenos Aires.

A repercussão dessa dinâmica política não se restringia às áreas do antigo Vice-


reinado, já que a província luso-brasileira do Rio Grande do Sul não só tinha uma
proximidade geográfica com fronteiras pouco definidas, como possuía uma formação
econômica e política similar e ocorria um grande fluxo tanto de mercadorias como de
agentes econômicos e políticos entre a província rio-grandense e as demais “regiões-
províncias” do espaço platino. Também era similar o conflito de interesses entre os
estancieiros castelhanos e rio-grandenses em relação às oligarquias exportadoras de
Buenos Aires e do Rio de Janeiro, respectivamente.

Essa relação foi intensificada pela invasão luso-brasileira da Banda Oriental,


onde caudilhos rio-grandenses cumpriram importante papel econômico e institucional na
então Província Cisplatina, criando relações também com caudilhos orientais que
continuaram atuando naquele espaço. Tais relações, fossem de rivalidade ou
colaboração, não se apagaram com a derrota imperial na Guerra da Cisplatina e a
independência do Uruguai, especialmente porque as próprias fronteiras ainda não
estavam bem delimitadas.

Sobre o Rio Grande do Sul, o autor aponta que toda essa relação com as
províncias platinas possibilitou a penetração de noções federalistas e aspirações à
autonomia política, que posteriormente serviram como argumento político para a
proclamação da República Rio-Grandense.
O autor também comenta algumas linhas historiográficas que abordam a história
do Rio Grande do Sul e a característica de ser um espaço de fronteira, começando pela
tradicional “matriz lusa” que interpreta o papel dos caudilhos riograndenses na
manutenção das fronteiras brasileiras como uma “adesão” à nação, numa clássica
interpretação nacionalista e patriótica da história.

Outra linha historiográfica mencionada é a que vê as fronteiras como espaços


abertos resultantes de disputas políticas condicionadas pela forma como se estruturaram
as relações de propriedade e poder na região, portanto, questionando a concepção de
fronteira proposta pela historiografia nacional.

A interpretação que o autor parece julgar como a mais avançada é a que propõe
a fronteira como um espaço manejável, de intersecção de relações de poder, na qual
existem atores políticos que atuam em ambos os lados da fronteira. Nessa lógica a
fronteira não seria aberta, mas tampouco é uma fronteira bem delineada, que mesmo
com a característica de ser um marco divisório, também é um espaço no qual circula de
tudo: ideias, pessoas e mercadorias. Nesse sentido, não há uma oposição em admitir o
Rio Grande do Sul tanto como uma província luso-brasileira como parte da esfera política
da região do Rio da Prata.

Desde antes da secessão rio-grandense de 1835, a província já estava sendo


agitada pelas disputas travadas nas regiões vizinhas do “litoral” Argentino, assim como
pelas disputas no recém independizado Uruguai. O jogo de alianças entre caudilhos, que
transcendia as fronteiras nacionais, desde a década de 1810 já preocupava as
autoridades imperiais. Inclusive porque era fato conhecido o interesse das lideranças da
Revolução de Maio em contagiar o Rio Grande do Sul com os ideiais revolucionários e
fomentar a secessão por essas bandas.

A partir de 1835 até 1845, com a existência da República Rio-Grandense, esse


jogo de alianças evoluiu com a elaboração de tratados oficiais entre Estados e
autoridades políticas. Num momento em que a região platina estava em chamas,
convinha aos atores envolvidos a busca de auxílio nos países vizinhos. No caso dos
farroupilhas, era importante não só a possibilidade de auxílio material em seu conflito
com o Império, como também o próprio reconhecimento da República Rio-Grandense
como Estado soberano e independente.

Outro traço relevante do cenário é a participação de potências europeias,


nomeadamente Inglaterra e França, que também tomaram iniciativas militares e
diplomáticas na região para tensionar o conflito em direções mais favoráveis a seus
interesses comerciais, especialmente em relação à navegação no Rio da Prata. Essa
participação europeia não é objeto de análise no artigo mas é um importante
apontamento feito pelo autor.

O jogo de alianças chama atenção por sua complexidade. A primeira alternativa


dos farroupilhas para buscar apoio internacional foi com o governador bonaerense Juan
Manuel de Rosas, oriundo do partido federalista e rival dos unitários argentinos. Seria
uma aliança intuitiva, já que os farroupilhas tinham posições opostas ao projeto de um
Estado centralizado que defendiam. No entanto Rosas, que governava a Confederação
com mão de ferro, não demonstrou tanto interesse em prestar apoio aos farrapos para
não se indispor com o Império, poderoso rival regional da Argentina. Da mesma forma
Fructuoso Rivera, antigo seguidor de Artigas, teve os unitários argentinos como aliados
em sua rivalidade com Rosas.

É nesse complexo cenário que são assinados os diversos tratados abordados no


texto, que culminam na Reunião de Paysandú, que congregou os orientais, os rebelados
argentinos e, extra-oficialmente, os farroupilhas; trazendo à região o fantasma da patria
grande de Artigas.

O primeiro tratado abordado é o Tratado de Cangüé, de 1938, firmado entre a


República Rio-Grandense e o caudilho oriental Fructuoso Rivera, que naquele momento
ainda travava um conflito interno para tentar conquistar o poder. Mesmo não sendo um
tratado entre dois Estados, Cangüé legitimaria tanto as pretensões de Rivera, tido como
interlocutor legítimo pelo Estado dos farroupilhas, como legitimaria a República Rio-
Grandense que teria sua soberania reconhecida pelo Uruguai assim que Rivera se
elevasse ao poder.
Houve também o tratado entre Rivera e a província de Corrientes, também em
1938, na qual o chefe oriental e o governador da província rebelada firmaram uma aliança
política e militar visando a derrubada de Juan Manuel de Rosas do poder na
Confederação Argentina. Esse tratado se insere nas disputas sobre os rumos tanto da
Confederação como da República Oriental, já que Rosas também prestava apoio militar
aos rivais de Rivera no Uruguai.

Em 1941 há um novo tratado entre os farroupilhas e Rivera, dessa vez com


Rivera já no poder na República Oriental. O Tratado de San Fructuoso tinha implicações
mais concretas do que o tratado de Cangüé, já que previa a repatriação de desertores de
ambos os lados que se encontrassem no país vizinho, assim como o fornecimento de
tropas farroupilhas para uma incursão de Rivera em território Argentino e o fornecimento
de milhares de cavalos por parte do Uruguai à República Rio-Grandense.

Em 1842 foi firmado um tratado secreto entre a República Rio-Grandense e a


província de Corrientes. Este tratado garantia livre comércio entre a província e a
República e, da mesma forma que o tratado de San Fructuoso, comprometia ambas as
partes a combaterem em seu território os inimigos da facção aliada. Além disso,
assinalava a intenção de que “quando fosse possível” as duas partes colaborassem
militarmente em seus conflitos, demonstrando que nenhuma das partes tinha força
suficiente para despender recursos em auxílio aos seus aliados.

Chama atenção no texto deste tratado, anexado ao final do artigo (Anexo IV), a
referência à República Rio-Grandense como uma “nação”. Novamente colocando em
xeque a historiografia nacionalista ao demonstrar que a ideia de nação era algo ainda
indefinido e em disputa.

O tratado de Galarza, em 1842, consolidaria a aliança entre Rivera e as


províncias do litoral argentino. Tratava da criação de um Exército Unido dessas províncias
com o Estado Oriental, tendo Fructuoso Rivera como seu comandante em chefe.
Segundo o autor, a partir deste último tratado “Todos os elos de uma cadeia idealizada
por Rivera pareciam estar consolidados” (pag. 171), consolidando uma espécie de
coalizão, ainda que débil, das facções dos farroupilhas no Rio Grande do Sul, dos
colorados de Rivera no Uruguai e dos unitários e das províncias rebeldes na Argentina.

A “coalizão” ainda tentou uma aproximação com o Paraguai, que não se


interessou e declarou neutralidade em relação aos conflitos para não se indispor com as
duas principais potências do Cone Sul.

Todas essas articulações se plasmaram na Reunião de Paysandu, a qual


oficializou uma coalizão militar entre a República Oriental do Uruguai e as províncias
argentinas de Corrientes, Entre Rios e Santa Fé. Contou ainda com a presença de Bento
Gonçalves que, apesar de não ser signatário da ata final da reunião, foi convidado por
Rivera e saudado na reunião como chefe de um Estado independente.

A presença de chefes políticos de todos esses territórios da bacia do Prata


alarmou tanto o Império como a Confederação, que viam seus principais inimigos se
unindo no que soava como o rascunho de uma confederação destas províncias,
ameaçando as pretensões de ambas as potências na região. Foi um fato que repercutiu
fortemente na política e na diplomacia de todos estes países.

Esses tratados, apesar de limitados e por vezes sem efeito prático, e no fim das
contas nulos diante da posterior derrota de todos os envolvidos, mostram como os
projetos políticos de nação ainda estavam sendo disputados de forma intensa. Foram
articulações que poderiam ter ensejado a formação de Estados nacionais diferentes dos
quais conhecemos hoje e que alterariam completamente a paisagem geopolítica da
região.

Tais Estados que não se consolidaram, mas que foram ensaiados, tampouco
eram pré-existentes. Nas hipóteses de se consolidarem, também teriam de desenvolver
seus próprios mitos de fundação e identidades nacionais.

Todas essas articulações políticas, militares e diplomáticas explicitam como o


estudo da história do Rio Grande do Sul, assim como de toda região do Prata, pode ser
um campo de estudos fértil para historiadores críticos que questionem a historiografia de
viés nacionalista e teleológico, a qual parte das fronteiras hoje estabelecidas para afirmar
uma pré-existência das nações.

Referência Bibliográfica

GUAZZELLI, Cesar Augusto. La República Rio-Grandense y el retorno de la


“Pátria Grande” (1838-1843). Pasado Abierto. Nº 2. Mar del Plata. 2015. Pag. 153-196.

Você também pode gostar