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Ernesto Schoo

mi
b u eno s ai res
q ueri do

Prefácio de Carlos Quevedo

Tradução de Carlos Vaz Marques

coordenador da colecção
carlos vaz marques

lisboa
tinta­‑da­‑ china
MMXIV
Obra editada no âmbito do Programa «Sur» de Apoio a Traduções índice
do Ministério das Relações Exteriores, Comércio Internacional
e Culto da República Argentina

Obra editada en el marco del Programa «Sur» de Apoyo a las Traducciones del
Ministerio de Relaciones Exteriores, Comercio Internacional
y Culto de la República Argentina

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
Nesta edição manteve-se o título na língua original, por se tratar de uma expressão
que conquistou carácter idiomático, reconhecível em todo o mundo
Quando te voltar a ver
através do tango interpretado por Carlos Gardel.

A minha cidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
© 2014, Edições tinta­‑da­‑china, Lda.
Rua Francisco Ferrer, 6A Árvores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21
1500­‑461 Lisboa Gropius . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27
Tels: 21 726 90 28/29/30
E­‑mail: info@tintadachina.pt O Jardim Botânico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
www.tintadachina.pt Ornitologia fantástica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
Título original: Mi Buenos Aires Querido Cavaleiros de bronze 45
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

© Ernesto Schoo, 2011 Os pintores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53


Publicado por acordo com Editorial Pre-Textos.
Todos os direitos reservados.
O Jardim Zoológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
Traduzido por acordo com Recantos 71
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Silvia Meucci Agenzia Letteraria – Milão.


Sonhado ou vivido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
Título: Mi Buenos Aires Querido Opiniões 85
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Autor: Ernesto Schoo


A cidade pegajosa 89
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Coordenador da colecção: Carlos Vaz Marques
Prefácio: Carlos Quevedo Ao luto portenho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93
Tradução: Carlos Vaz Marques A Recoleta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .97
Revisão: Tinta­‑da­‑china
Composição: Tinta­‑da­‑china A Chacarita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105
Capa: Tinta­‑da­‑china (Vera Tavares) As águas correntes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
1.ª edição: Março de 2014
A herança dos ballets russos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
Outra opinião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
isbn 978­‑989‑671-204‑4
Depósito Legal n.º 372049/14
A herança britânica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
Romantismo alemão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Adolescência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
«Ao Colón! Ao Colón!» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 prefácio
Coda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151 Quando te voltar a ver

Nota biográfica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157

Uma vez, alguém que nunca tinha ido à Argentina disse­


‑me que não conhecia ninguém que depois de ter ido a
Buenos Aires tivesse voltado de lá desiludido. Parece que,
por muito altas que fossem as expectativas, nenhuma
superava a realidade. Felizmente ou infelizmente, nun-
ca passei por essa experiência. Nasci em Buenos Aires e
Buenos Aires foi sempre o meu padrão, a minha referência
para avaliar outras cidades. Poucas vezes encontrei uma
cidade que fosse mais feia ou menos interessante do que
Buenos Aires.
Por exemplo, como muito bem observa Ernesto Schoo,
a maior parte dos rios que atravessam ou limitam outras
cidades são sempre mais belos e amáveis do que o lodoso
e enorme Rio da Prata, descoberto em 1517 pelos espan-
hóis e só em 1990 pelos argentinos. Até esse ano pouco in-
terferira na vida dos portenhos, excepto por ser porto de
entrada e local popular para pesca ou passeios de fim­‑de­
‑semana. Mas quem vem de barco do delta do Tigre, a norte
de Buenos Aires, e começa a vislumbrar a cidade, perceberá

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frivolamente que só por essa imagem o Rio da Prata justifi- lendárias. No fim de contas, a história também é literatu-
ca a sua existência. ra.
Este livro, escrito com sabedoria e muito amor, pro- Todos nós, os portenhos, temos a nossa Buenos Aires
voca­‑me ciúmes. Ciúmes, porque a Buenos Aires que Schoo própria, às vezes contraditória, mas sempre verdadeira e
ama tem pontos em comum com a Buenos Aires que eu infalível, como são as recordações, por mais antigas e im-
amo. Ciúmes, porque há coisas que Schoo nos revela que prováveis. Ernesto Schoo tem o certificado indiscutível
me fazem ter vergonha de não as saber. E, para acabar com de qualidade, por ser quem foi e porque nunca deixou de
este ataque de ciúmes, porque Schoo não fala de outras amar Buenos Aires até à sua morte, em 2013, com a idade
partes da cidade que ele devia amar como eu amo. admirável de 87 anos.
A sua Buenos Aires querida é tão maravilhosa quanto Tal como a minha Buenos Aires, a Buenos Aires queri-
a minha, mas muito mais bem escrita. Nem todos somos da de Ernesto Schoo, por maiores que sejam as vossas ex-
Schoo. Era seu leitor quando Schoo escrevia na Primera pectativas, não desilude.
Plana e depois em La Opinión, um jornal obrigatório no iní-
cio dos anos 70, mas que durou pouco e acabou mal. Depois Carlos Quevedo
de um intervalo, voltou a escrever no La Nación. Era um dos
poucos conservadores democratas, e a sua perspectiva libe-
ral a respeito da cultura fazia estremecer os conservadores, P.S.: Consegui escrever este texto sem mencionar
quer fossem ou não democratas. Jorge Luis Borges. Oh, não…
Ernesto Schoo, com a resignação dos sábios, percebe
que a cidade muda connosco, apesar de nós e muitas vezes
contra nós. Mas, mesmo assim, aquela nunca deixa de ser
a nossa cidade. Aliás, por que carga de água o que já não
existe tem de ser mais importante do que aquilo que ficou?
Não é impossível a ausência definitiva conviver com a pre-
sença efémera das coisas. Não será afinal apenas a isso
que chamamos memória? Talvez a mudança irreversível
da realidade, como a transformação impiedosa de uma ci-
dade, torne as nossas lembranças ainda mais fantásticas e

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a minha cidade
Não me importam os desaires
com que me trata a sorte;
argentino até à morte:
eu nasci em Buenos Aires.

E ste não é um rio amável, nem generoso. Os rios amá-


veis atravessam as cidades — Sena, Tamisa, Tibre,
Arno, Moldava, Ródano — ou flanqueiam­‑nas com bene-
volência, como o Reno, reflectindo nas suas águas, em geral
tranquilas, as pitorescas povoações ribeirinhas. O Prata aí
está, indolente, prolongamento líquido, cor de terra, da mo-
nótona planície da pampa, essa «vertigem horizontal», na
aguda definição de Drieu La Rochelle. Nós, os portenhos,
somos acusados de não amar o nosso rio, ao qual desde sem-
pre virámos as costas. O que acontece, creio, é que descon-
fiamos dele: suspeitamos que é uma massa de água muito
esperta, repleta de maldade e de astúcia. Astúcia crioula,
claro. Na realidade, viria a ser um mar, um braço de mar
disfarçado de rio: não foi por acaso que o seu descobridor,
D. Juan Díaz de Solís, lhe chamou Mar Doce. Parece tran-
quilo e um pouco distraído, sempre como que à espera de
algo — algo esplêndido, prodigioso, que dará por fim sen-
tido às vidas daqueles de nós que vivem à sua beira —, algo
que nunca acontecerá. As suas fúrias são temíveis: o Prata

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não só inunda os bairros ribeirinhos e até aqueles que o não bón, já na província de Buenos Aires), o Prata tem a mesma
são mas que albergam nas suas profundezas cursos de água sorte dos bairros da zona meridional. Torna­‑se proletário,
habitualmente tranquilos, cujo caudal aumenta e transbor- fica turvo, apodrece — literalmente — no Riachuelo, seu
da com as grandes chuvadas, como além disso, em períodos fiel tributário e também votado ao abandono, cemitério de
de tempestade, as suas ondas são capazes de provocar nau- barcos semiafundados e esgoto das instalações industriais
frágios e de matar. Em contrapartida, não abundam nele os fronteiriças. Nele já não há peixe, apenas miasmas e pestes
suicídios: é raro alguém decidir afogar­‑se voluntariamente várias. Houve um magnífico passeio costeiro, a Costanera
no nosso rio. Talvez porque as suas águas sujas não sejam Sur, mais conhecido no seu apogeu como Balneário Muni-
atraentes e sugiram tédio, em vez de exaltação romântica. cipal. Demorou mais de vinte anos a construir, entre as dé-
As pessoas sensatas dirão: «O que acontece é que é um cadas de 1910 e de 1930: uma avenida larga, baptizada com
estuário.» E citarão o Tejo em Lisboa ou o Pó na sua vasta o nome de Tristán Achával Rodríguez*, com uma alameda
planície melancólica. Sim, é um estuário. Mas falta­‑lhe en- central realçada por esbeltos álamos, belos monumentos
canto, pelo menos aqui, no contacto directo com a cidade. e uma pérgula sobre o rio da qual pendiam na Primavera
Seguindo para norte de Buenos Aires, ao longo das peque- cachos de glicínias. Os portenhos podiam ali desfrutar do
nas cidades costeiras (Vicente López, Olivos, San Isidro, até Prata, relativamente limpo, por ser dragado com frequên-
chegar ao Tigre), ganha um aspecto mais agradável, torna­ cia: um pontão culminava com a estátua dedicada à façanha
‑se pitoresco. E, quando o dia começa a declinar e a tarde do aviador espanhol Ramón Franco (irmão de Francisco),
avança, o Prata adquire uma cor lilás que se torna malva e que em 1926, com dois co­‑pilotos, percorreu pela primeira
por fim roxa, embelezando­‑o extraordinariamente. Victo- vez, no seu aeroplano Ultra, o trajecto desde Espanha até à
ria Ocampo*, a partir de cujo casarão em San Isidro se avista cidade de Buenos Aires, onde foi recebido por multidões
o rio, destaca­‑o nos seus Testimonios: diz que, ao entardecer, em delírio.
o Prata transforma a sua cor diurna de café com leite em Nas noites de Verão dos anos 30, a Costanera acolhia
lilases e violetas de refinados matizes. essas mesmas multidões, ansiosas por se refrescarem e por
Isto para norte. Na sua deriva para sul, muito antes de se sentirem, momentaneamente, a salvo do pegajoso e in-
se fundir por fim com o Atlântico (na baía de San Borom- suportável Verão portenho: Ortega y Gasset dizia que em

* Victoria Ocampo (1890­‑1979) foi uma influente escritora e editora argen- * Tristán Achával Rodríguez (1843­‑1887) foi um político, advogado e jorna-
tina, descrita por Jorge Luis Borges como «a mais argentina das mulheres». lista argentino, de tendência católica, célebre pela sua oposição ao ensino
(N. do t.) laico. (N. do t.)

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Buenos Aires, no Verão, é impossível pensar. Havia restau- mulação ser vista sem rubor pelos habitantes da cidade, por
rantes: um «Munique» (nome genérico dado aqui aos res- volta de 1900? O clero e as senhoras piedosas, num clamor,
taurantes especializados em comida alemã) muito elegante, ergueram de imediato as mãos ao céu e o município não
uma obra­‑prima datada de 1929, do arquitecto húngaro An- quis contrariá­‑los. Vénus, as nereidas, os cavalos e os seus
drés Kálnay, uma mistura de art déco e fantasia orientalis- ágeis domadores foram parar a um canto onde poucos pu-
ta; havia também várias churrasqueiras e os inesquecíveis dessem vê­‑los e ainda lá estão. Desde há quarenta anos que
tablados, com grinaldas de lâmpadas coloridas, onde co- surgem propostas para recolocar, num lugar central, a mag-
mediantes de rua davam rédea solta à mais grosseira vulga- nífica fonte barroca, que não ficaria mal em Roma ou em
ridade. E, no entanto, nesses lugares bastante sórdidos for- Paris. Mas o clima, a usura do tempo e a falta de manuten-
maram‑se alguns dos mais destacados actores de comédia ção adequada tornaram­‑na, segundo parece, extremamen-
das décadas seguintes. te frágil, e movê­‑la representaria um risco fatal. É melhor
Afastada desse bulício, abandonada num canto pouco deixá­‑la onde está e peregrinar para ir vê­‑la: quem o fizer
acessível da Costanera, embora a poucos passos da Escola não regressará defraudado.
Superior de Belas­‑Artes, uma belíssima fonte de mármore A meio desta Costanera Sur, hoje tão estragada, sur-
sobrevivia — sobrevive — exilada, devido à hipocrisia dos ge no rio a Reserva Ecológica. Uma verdadeira raridade
portenhos do princípio do século xx. É a obra­‑prima de urbana, filha em partes iguais do improviso e da preguiça.
uma notável escultora argentina, Lola Mora (Dolores Mora O Club Atlético Boca Juniors, um dos maiores clubes do
de Hernández), formada, elogiada e premiada em Itália, futebol argentino e talvez o mais popular de todos, tentou
onde concebeu e esculpiu a sua famosa fonte. Mais famosa, criar ali, sobre o rio, uma Cidade Desportiva, um colossal
talvez, devido ao escândalo que suscitou por ser colocada empreendimento imobiliário e desportivo, com as suas ins-
no centro da cidade, perto da sede do governo. Jovens atlé- talações próprias e habitações de luxo. Já lá vão uns trinta
ticos nus dominam uns esplêndidos cavalos, encabritados, anos: as obras iniciaram­‑se e, como acontece com frequên-
de crinas revoltas, enquanto, mais acima, as nereidas (nome cia na Argentina, devido a imprevisíveis circunstâncias po-
oficial do monumento), tão escassamente vestidas como os líticas e económicas, foram abandonadas. Os terrenos que
rapazes, erguem Vénus, deusa do amor, que sorri, benevo- lhes estavam destinados e as poucas paredes que haviam
lente, e estende um braço, numa bênção àquele tumulto de sido erguidas foram abandonados às intempéries. A nature-
corpos entrelaçados. Como podia uma tal exibição de be- za, como é sua obrigação, avançou sobre eles. Lentamente,
leza física e de alvoroço erótico sem qualquer tipo de dissi- como quem volta atrás na leitura ou atrasa os ponteiros do

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relógio, a flora e a fauna próprias da região do Prata volta- figurões da televisão, do desporto, das passerelles de moda e,
ram a gozar de condições propícias. Regressaram as plantas naturalmente, os funcionários públicos encantados por po-
típicas, as aves e os pequenos mamíferos que Charles Da- derem acotovelar­‑se com toda esta fauna e fazer alarde da
rwin, que nos visitou em 1833, descobriu na sua agradável sua flamejante riqueza, mudaram­‑se para Puerto Madero,
Viagem do Beagle. A Reserva Ecológica é hoje uma emara- que é como se chama o novo bairro, de acordo com a topo-
nhada selva em miniatura, reclinada na margem do passeio nímia tradicional da zona.
costeiro. É visitada por turistas e, frequentemente, também Para os velhos portenhos como eu, Puerto Madero é
por incendiários que talvez sejam simplesmente gente des- agora algo de tão exótico como o Bairro Chinês incrustado
cuidada, ou talvez (esta é a hipótese mais difundida) mal- na parte baixa de uma zona tradicional, Belgrano, outro-
feitores enviados por quem cobiça estas terras, na perspec- ra uma pequena cidade independente e anexada a Buenos
tiva de fabulosas operações imobiliárias ao mais alto nível. Aires em 1884. Igualmente exótico e muito menos quente.
O fogo poderia abrir caminho a investimentos vultuosos. Porque, tirando os velhos armazéns de alfândega, com o
Porque, temos de reconhecer, para não pecar por in- belo tom acobreado dos tijolos, Madero (do apelido do en-
justiça, que na última década Buenos Aires começou a genheiro que o desenhou) é hoje uma colecção de edifícios
reconciliar­‑se com o rio. Junto a ele, nos antigos depósitos brancos, altíssimos e impessoais. Todos eles «inteligentes»,
dos diques portuários (um porto, hoje, quase obsoleto), sur- segundo dizem. Tudo funciona com botões ou pressio-
giu, em tijolo tipicamente inglês, o bairro mais importante nando uma placa. Quase não há presença humana visível.
da cidade, do ponto de vista monetário. Tal como aconte- Desde que se entra num elevador, as vozes descarnadas e
ceu em Londres nas margens do Tamisa, os armazéns foram monótonas, como de dobragem cinematográfica, vão­‑nos
convertidos em lojas caríssimas, em restaurantes de luxo, guiando por corredores alcatifados, intermináveis e labirín-
entre jardins bem cuidados e ruas amplas onde se pode pas- ticos, ladeados por portas herméticas. Não há um resquício
sear tranquilamente e circular de automóvel sem proble- de luz natural. E isto de orientar o forasteiro é uma forma
mas, ou quase. Rapidamente surgiram torres altíssimas e es- de dizer. Àquele que escreve estas linhas, pelo menos, sem-
beltas, tanto para habitação como para escritórios: tudo em pre lhe foi impossível, até hoje, chegar a um apartamento
edifícios «inteligentes». As mais prestigiadas marcas hote- (cá, dizemos «departamento») ou a um escritório, neste
leiras do «primeiro mundo» instalaram ali as suas sucursais, bairro, sem se perder várias vezes. Falta de hábito, dir­‑se­
há casinos flutuantes e uma belíssima ponte desenhada pelo ‑á, com razão. Como a falta de pátina do tempo: ainda não
arquitecto Santiago Calatrava. As figuras, as figurinhas e os pode existir, demorará várias gerações a aparecer. Ou talvez

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e rn e s t o s c ho o

as gerações futuras não se interessem de todo pela pátina


do tempo e prefiram viver empilhadas nesses túneis, a car-
regar em botões. A visão destas avenidas vazias, ainda sem
lojas, nem montras, nem farmácias antigas, é deprimente. árvores*
Os faustosos hotéis internacionais, o casino flutuante, as
fortunas recentes e o poder político ocuparam quase por
completo Puerto Madero. Que lhe façam bom proveito.

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É preciso amar­‑te, Buenos Aires,
para se ser árvore e não morrer de medo.
Silvina Ocampo

N ão se sabe se imploram ou ameaçam. Ou uma coisa


e outra, à vez. Confesso que não sei o nome destas
árvores, tão características de Buenos Aires. No Inverno,
nuas como estão, e negras, os seus ramos curvam­‑se numa
caligrafia trágica. Parecem rasgar o céu cinzento; parecem
mãos como ganchos, daquelas que os malvados, os bruxos
e os monstros ostentam nas historietas e nos desenhos ani-
mados. Uma personagem d’ A Prisioneira, um drama do ita-
liano Ugo Betti (tão famoso na década de 50, tão esquecido
hoje), diz que, se morresse e lhe fosse possível regressar à
sua cidade, a reconheceria de imediato pelas árvores. Creio
que o mesmo se passaria comigo. À excepção do centro, rei-
nam em quase todos os bairros de Buenos Aires os plátanos*
e os freixos**. Os plátanos, em especial, são tão altos e es-
plêndidos como os do Cours Mirabeau, a avenida central de
* O tradutor agradece à Dra. Ireneia Melo, investigadora do Jardim Botânico
da Universidade de Lisboa, o contributo científico para a correcta tradução Aix­‑en­‑Provence. Os freixos, de tão bela folhagem no início
dos nomes comuns e científicos das plantas referidas neste capítulo. Certos do Outono — ouro puro —, ao perderem a folha aborrecem
nomes, como plátano, freixo e eucalipto, aplicam­‑se, em português, a muitas
espécies dos géneros Platanus, Fraxinus e Eucalyptus. As espécies referidas nas * Platanus orientalis. Variante acerifolia. (N. do t.)
** Fraxinus borealis. (N. do t.)

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os porteiros e as donas de casa, que protestam pela desme- variedades, branca e rosa. O seu grande concorrente é o ipê­
surada quantidade de folhas que têm de varrer das calçadas. ‑roxo, também originário do noroeste argentino. Mais alto
Abundam também os jacarandás* e as tipuanas**, ambos e esbelto e menos difundido do que a sumaúma, supera­‑a
de folha perene. Foi sem dúvida um notável paisagista quem em esplendor floral. Não há muitos espécimes na cidade,
os colocou em parques e avenidas, onde as suas florações mas, quando florescem, é impossível não nos rendermos ao
alternam de Novembro a Março, aproximadamente. As flo- tom rosa­‑púrpura das suas enormes copas, da cor dos ocasos
res do jacarandá são lilases («quase azul não é azul, quase em fogo. Um em especial, na esquina da avenida Figueroa
violeta não é violeta», assim as definiu essa grande amiga das Alcorta, desperta tanta admiração ao florescer na Primave-
plantas que foi Silvina Ocampo), as das tipuanas são amare- ra que excursões de curiosos e de turistas vão reverenciá­‑lo,
las. As primeiras pousam sobre as copas como nuvens, qua- como a um antigo deus pagão vegetal que tivesse perdurado
se como galáxias azuis, vaporosas. Os seus ramos (porque nestes tempos de descrença.
pendem dessa forma) duram pouco, mas aguentam­‑se isola- Nunca soube ao certo se é um salgueiro­‑chorão* ou
dos até perto do Outono, altura em que caem. Um mês mais uma pimenteira­‑bastarda**: de repente aparece um, insólito,
tarde, na verde cascata da folhagem das tipuanas abrem­‑se que deixa cair as suas farripas verdes junto a uma calçada
as flores, que têm um inconveniente: exsudam gotas de um urbana, quando sabemos que o seu lugar natural é na borda
líquido incolor e transparente, pegajoso, pronto a escorrer. dos regatos e dos tanques, onde reflecte a sua melancolia.
Originária do noroeste argentino, a sumaúma*** chegou a Não há muitos em Buenos Aires, e talvez por isso surpreen-
Buenos Aires há meio século e adaptou­‑se sem problemas. dam quem passeia, destacando­‑se entre as espécies mais
Hoje, vemo­‑la em quase todos os passeios e praças da cida- comuns, aquelas em que o portenho distraído nem repa-
de: é o principal — e muito belo — ornamento da avenida ra ao passar, porque as árvores não lhe interessam muito.
Nove de Julho, cujas várias faixas atravessam o centro de Também há poucos eucaliptos***, excepto nos bosques de
Buenos Aires, de norte a sul. Como a sumaúma vem de um Palermo. Tenho com um deles uma relação especial, uma
clima seco, armazena água no ventre robusto: é um túnel verdadeira amizade. Nasci num prédio situado na esquina
verde­‑escuro, repleto de espinhos curtos. As flores são be- das calles Juncal e Bustamante; três quarteirões acima, na
líssimas, muito semelhantes a orquídeas, e há­‑as em duas direcção do rio, seguindo por Bustamante, entre Melo e a

* Jacaranda mimosifolia. (N. do t.) * Salix babylonica. (N. do t.)


** Tipuana tipu. (N. do t.) ** Schinus molle. (N. do t.)
*** Ceiba speciosa. (N. do t.) *** Eucalyptus camaldulensis. (N. do t.)

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avenida Las Heras, erguem­‑se os pavilhões do velho hos-


pital Rivadavia. No cruzamento de Melo com Bustamante,
o muro do hospital é guardado por um altíssimo eucalipto
que já era gigante na minha remota infância. E, agora que
vivo perto de onde nasci, cada vez que saio para uma cami- gropius
nhada ou para passear o cão, ali está ainda a sentinela co-
lossal, cada vez mais alta. Imagino que nos saudamos como
velhos conhecidos. Temo por ele, porque o tronco, embora
imponente, é frágil, e a magnificência da sua folhagem aro-
mática tem um peso que poderia derrubá­‑lo em caso de for-
te ventania. Contudo, já lá vão mais de oitenta anos desde
que nos conhecemos, e ele deve ultrapassar em muito essa
idade.

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nota biográfica

Ernesto Schoo nasceu em Buenos Aires em 1925 e foi jor-


nalista desde 1948, tendo-se especializado em cultura, artes e
espectáculos. Colaborou com os principais jornais e revistas
da Argentina — por vezes, dirigindo os suplementos culturais.
Em 1988, foi bolseiro da Fundação Guggenheim. Exerceu fun-
ções como director artístico do Teatro San Martín, em Buenos
Aires (1996-1998), e foi membro da direcção do Fondo Nacio-
nal de las Artes (2000-2004). Foi reconhecido como Cavaleiro
da Ordem das Artes e Letras do Ministério da Cultura francês
e como Oficial da Ordem de Mérito da República de Itália.
Traduziu Henry James e Franz Kafka, entre outros. Es-
creveu vários romances — Función de gala (1976), El baile de
los guerreros (1978), El placer desbocado (1988), Ciudad sin noche
(1989) —, um livro de contos, um ensaio e um livro de memó-
rias. Recebeu vários prémios pelo seu percurso ao serviço da
cultura, tendo-se tornado uma das figuras mais destacadas da
literatura e da crítica na Argentina.
Ernesto Schoo morreu em Buenos Aires, em 2013. Mi Bue‑
nos Aires Querido é o seu primeiro livro traduzido e publicado
em Portugal.

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foi composto em caracteres Hoefler Text e
impresso na Guide, Artes Gráficas,
em papel Coral Book de 90 g,
em Março
de 2014.
nesta colecção

Morte na Pérsia A Viagem dos Inocentes Os Primos da América


Annemarie Schwarzenbach Mark Twain Ferreira Fernandes
(trad. Isabel Castro Silva) (trad. Margarida Vale de
Gato) Cadernos Italianos
Uma Ideia da Índia Eduardo Pitta
Alberto Moravia Viva México
(trad. Margarida Periquito) Alexandra Lucas Coelho Um Gentleman na Ásia
Somerset Maugham
Paris Jerusalém — Ida e Volta (trad. Raquel Mouta)
Julien Green Saul Bellow
(trad. Carlos Vaz Marques) (trad. Raquel Mouta) Mais Um dia de Vida —
Angola 1975
O Japão é Um Lugar Estranho Caminhar no Gelo Ryszard Kapuściński
Peter Carey Werner Herzog (trad. Ana Saldanha)
(trad. Carlos Vaz Marques) (trad. Isabel Castro Silva)
Vai, Brasil
Veneza Cartas do Meu Magrebe Alexandra Lucas Coelho
Jan Morris Ernesto de Sousa
(trad. Raquel Mouta) Dicionário de Lugares
Viagem de Autocarro Imagináros
Caderno Afegão Josep Pla Alberto Manguel e Gianni
Alexandra Lucas Coelho (trad. Carlos Vaz Marques) Guadalupi
(trad. Carlos Vaz Marques
Disse­‑me Um Adivinho O Colosso de Maroussi e Ana Falcão Bastos)
Tiziano Terzani Henry Miller
(trad. Margarida Periquito) (trad. Raquel Mouta) Hav
Jan Morris
Nova Iorque O Murmúrio do Mundo (trad. Raquel Mouta
Brendan Behan Almeida Faria e Vasco Gato)
(trad. Rita Graña)
Viagem a Tralalá Mi Buenos Aires Querido
Histórias Etíopes Wladimir Kaminer Ernesto Schoo
Manuel João Ramos (trad. Helena Araújo) (trad. Carlos Vaz Marques)

Na Síria Histórias de Londres


Agatha Christie Enric González
(trad. Margarida Periquito) (trad. Carlos Vaz Marques)

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