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Dito isto, o livro é genial. E caberia acabar o texto aqui. Justamente para não se
correr qualquer risco de, ao acrescentar uma palavra mais à série, se perder por mínimo
que fosse de vista a força desta afirmativa, atenuando por pouco que fosse a sua marca.
O livro é genial. E é genial a despeito do que gasta de energia rebatendo ou ponderando
sobre assertivas de sua época que tanto e pobremente sustentavam a impertinência da
relação psicanalítico-pedagógica. Alegações que eram nitidamente levianas, embora
talvez só tenham se tornado tão nitidamente enganosas após a análise preciosa e genial
que a nossa autora realizou aqui – provavelmente isso também justificando a
genialidade mencionada: isto é, é genial ao fazer isso, mesmo que isso seja uma
desgaste e que haja coisa até mais genial para além do tanto disso. Portanto, vale o friso
de lamento: lamento que custou muito tempo para demonstrar certos óbvios, porque
poderíamos ter tido já aqui ainda mais menos óbvios. Outrossim: quem é que vai querer
resolver tudo de uma só vez? De fato, não faz sentido. Do absoluto ao absolvido há
importante caminho.
Mas haveria que retornar Freud ao atual da época, recapitulando algo do que ele
pensou, do que ele considerou que fosse Psicanálise, Educação, Psicanálise Aplicada e
Psicanálise Aplicada à Educação, para então demarcar algo desta relação. Pois a relação
importa. Relação deveras negada, seja tida na dimensão de uma impossibilidade, de
uma Educação Impossível (MANNONI, 1977), seja encarnada na pele de um Freud
Anti-pedagogo (MILLOT, 1987): não havia saída. Os que liam Freud, o liam assim,
terminantemente irrelacionado, desistido e desiludido de um desejo não realizado, ou
seja, não sonhado. Não sonhado? Foi exatamente a tais coisas que Cifali (1982)
respondeu com esta pergunta: será mesmo? Historicamente, será mesmo que não
sonhou? Ou mesmo que sonhou, mas despertou? Como se psicanaliticamente não se
soubesse que só se acorda para se continuar sonhando acordado. Não, muita gente
queria apenas a não relação, o não sexo. A isso a autora rebateu bem. A isso, a essas e a
tantos mais. Foi atrás do enredos, das tramas, das trocas, das cartas, das relações de
Freud, dos interlocutores diretos, dos acontecimentos indiretos, sempre montando uma
panorama riquíssimo dos desenlaces e dos momentos-chaves.
Bem, houveram também aqueles que fundiam a psicanálise à educação. Cifali
(1982) bem remontou a Pfister (1913) e à sua Pedanálise, embora nele houvesse mesmo
uma união de psicanálise, educação e religião até. Freud de fato ‘aplicou’ a sua
psicanálise à arte, à educação, à religião e mesmo à história; e, de fato, como bem
salienta a autora (CIFALI, 1992, p. 18), ele “não fez nenhuma teoria da aplicação” – e,
aliás, nesse sentido, consideraremos um fracasso completo o nosso trabalho aqui se não
conseguirmos teorizar minimamente o que seria uma aplicação, realizar e defender uma
tese sobre ‘psicanálise aplicada’ (tamanha a nossa prepotência; ou bem mais seria
seriedade? Responsabilização por um desfalque, arranjo mínimo para um entrevero,
embora, talvez, apenas um esforço de oferecer algo que, por força de expressão, não
necessariamente há de ser bom) – muito embora tenha aventado de tudo, sim:
psicanalista-pedagogo como profissional, psicanalista atuando psicanaliticamente
noutro campo, etc. E bem se poderia dizer que assumir a psicanálise como uma
pedagogia, bem poderia ser uma forma de eliminar a relação, o hífen (psicanálise-
educação). Mas isso poderia ser útil?
No ano de 1992, MD Magno (1993, orelha do livro) realizou um seminário onde
bem podemos ler “A psicanálise é uma Pedagogia”, prontamente acrescentando “Desde
Freud, trata-se de inquirir que Pedagogia é a psicanálise (e não apenas de estabelecer
suas (não)relações com a educação)”. É o início mesmo assim, daquele seu seminário:
“Intitula-se, este ano, Pedagogia Freudiana, apesar de tantos fazerem a suposição de
que a pedagogia nada tem a ver com o freudiano. Tentarei mostrar que, muito pelo
contrário, tem tudo a ver” (MAGNO, 1993, p. 1). E logo marcará: “A psicanálise, que
diabo é isso? Lacan a definia como sendo esta pergunta” (MAGNO, 1993, p. 2). Para
ele, a pedagogia tem a ver com o singular, e lembrará Lacan mencionando em seu 21°
Les non-dupes errent que haveria o “resultado da boa pedagogia”, no caso, uma
pedagogia do nó borromeano, inobstantemente Magno (1993, p. 10) demarcando que:
“Não é o meu caso. O nó borromeano me serve muito, mas quero constituir uma
Pedagogia do Revirão”, ao que de fato dedicar-se-á longa e novamente.
Magno provoca bem, e posso finalizar a sua lembrança com isso aqui:
Terei tempo mais adiante de comentar – de novo, porque já fiz isso
uma vez – esses autores que querem que a psicanálise nada tenha a ver
com a pedagogia. O que me parece demissão, se não mesmo entrega
do ouro ao bandido. Ao contrário, quero dizer que a psicanálise é uma
pedagogia, nada mais. O último livro de Gilles Deleuze – junto com
Félix Guattari , o qual não tenho que necessariamente seguir em seus
passos – mas, contra a vontade de assassinato no campo do saber e da
universidade, é preciso tirar o chapéu e fazer reverência a quem existe
pensadamente –, Qu’est-ce que la philosophie?, na página 17, diz
alguma coisa que serve para ilustrar muito bem o espírito, se não a
carne, pelo menos, do que quero vir a colocar como pedagogia
freudiana: “Os pós-kantianos giravam em torno de uma enciclopédia
universal do conceito, que remetia sua criação a uma pura
subjetividade, em vez de se darem uma tarefa mais modesta, uma
pedagogia do conceito, que devesse analisar as condições de criação
como fatores de momentos que restam singulares. Se as três idades do
conceito são a enciclopédia, a pedagogia e a formação profissional
comercial, só a segunda pode nos impedir de cair dos cimos da
primeira no desastre absoluto da terceira, desastre absoluto para o
pensamento, quaisquer que sejam, é claro, os benefícios sociais do
ponto de vista do capitalismo universal” (MAGNO, 1993, p. 7).
Michel de Certeau
Cifali se encontrou com Certeau quando Michel foi à Genebra, entre 1977-1978
para ensinar na seção das Ciências da Educação. Ela lhe pediu que orientasse a sua tese
sobre ‘Elementos para uma abordagem psicanalítica no campo da educação’ (Éléments
pour une démarche psychanalytique dans le champ éducatif) que fora defendida em
1979 e que fora parcialmente publicada em 1982 sob o título “Freud Pedagogo?
Psicanálise e Educação”. Portanto, se trata de alguém que deu boa mirada no trabalho e
no percurso1. E, então, foi ele que prefaciou o livro, teceu-lhe um perspicaz prólogo. E o
que ele diz ali?
1
“Michel de Certeau certamente me autorizou a realizar uma tese e, à sua maneira, me acompanhou.
Mas nesse tempo que passei esporadicamente com ele, "adquiri" - para o meu modo de ensinar e de
compreender - uma ética, uma postura com relação à investigação, uma seriedade no riso, e também a
confirmação de meu gosto pela escritura. Aprendi dele, sem que ele soubesse, até o momento de sua
morte. Ou seja, estou muito ligada a este homem, me reconheço em dívida com ele e trato de reduzi-la a
cada dia. Ele nunca quis ser mestre. E nem fundou uma escola. Privilegiou um lugar em que o importante
era permitir aos outros, a mim mesma, que desenvolvessem o seu pensamento, o seu caminho. [...] Me
lembro de ir a Square d'Allery, onde ele vivia em Paris, para falar de minha tese. Ele me recebia, vinda de
Genebra, estudante curiosa e um pouco prolixa. Eu me sentava. Tínhamos fragmentos de conversações.
Eu lhe dizia onde estava e ele me animava a continuar, afirmando que estava bom. Saía à praça, aturdida
pelas histórias que ele me contava, com as poucas referências suplementares que deveria buscar, mas
“A psicanálise ‘aplicada’ é o centro deste duro e afiado livro. É também o seu
alvo e, em última instância, o seu ponto cego” (CERTEAU, 1992, p. 7).
Há como ser mais certeiro? Preciso? Necessário?
“Toda vez que há ‘colonização’ ou ‘aplicação’ de uma ciência à sua vizinha,
ocorre de o terreno de chegada compensar este movimento com interrogantes
dificilmente sustentáveis no campo base, revelando também o que lhes serve de
antídoto” (CERTEAU, 1992, p. 8). Quem aplica recebe ‘aplicação’ de volta. Não há
aplicação neutra, tampouco objetiva e incólume, mais que tudo, o aplicado sendo
transformado, no melhor dos casos, tendo devolvida a insuficiência da aplicação, o
questionamento da inserção. O que se insere é questionado, potencialmente botado em
xeque. Mostra onde não vale? Onde não passa? Onde não se aplica? Enfaticamente:
“não vai haver nenhuma pedagogia psicanalítica sem uma boa crítica daquilo que há de
pedagógico na psicanálise” (CERTEAU, 1992, p. 8) – Mireille o mostra genialmente.
“A pedagogia vai sendo reveladora à medida que, ao modo de um lapsus, ela acaba
manifestando o conservadorismo social que anima o campo freudiano e que ainda segue
o organizando inconscientemente” (CERTEAU, 1992, p. 8). O que há de pedagógico na
psicanálise? O que não há de pedagógico nela?
Certeau (1992) nomeia seu prefácio, brincando com fogo, de ‘Brincar com
fogo’, jogando com a metáfora utilizada por Freud (bem explorada por Cifali no
decorrer do livro) em carta a Pfister de 9/2/1909 (metáfora ícone e até definidora de
‘aplicação’): “Esperamos que a centelha, que no nosso chão protegemos com tão penoso
esforço, na sua terra [a pedagogia] possa tornar-se um incêndio no qual nós, então,
poderemos ir buscar uma brasa flamejante” (FREUD, apud CERTEAU, 1992, p. 9).
Quem brinca com fogo acaba se queimando! Faz xixi na cama e muito mais. O sonho é
bonito, de poder buscar uma brasa até mesmo no caso de meu fogo apagar aqui – ter
dado a você me permitirá ir aí buscar de volta para mim. E fogo tem dessas, quanto
mais se divide, mais tem e não o perde no processo. Não perco a minha tocha ao
acender ao sua. Relacionaram isso ao ‘conhecimento’.
No livro se questiona tal propósito incendiário. Agressivo ou mortífero. Quer-se
tacar fogo! Estaria disposto a se queimar? É um voto de esperança, mas não se sabe bem
sobretudo com um sentimento de liberdade em minha escrita e em meu projeto. Não me recordo das
palavras exatas, mas era algo assim: "É a tua tese, o teu objeto, o teu modo de levá-lo adiante", e que não
pensava em intervir a esse respeito. Também me repetia: "Está bom". Eu não tinha o costume de escutar
este tipo de afirmação. Cresci mais comumente com outros estímulos, com um padre que raramente
achava que eu fazia bem as coisas, que geralmente considerava meu desempenho ruim. A confiança que
ele me dava me autorizava a correr riscos e a elaborar o meu projeto” (CIFALI, 2012, p. 324-325).
se o fogo beneficiaria mesmo a ambos. E, mais obviamente: por que é que não o
contrário? O fogo que a pedagogia cultivou poderá ser recolhido na psicanálise a quem
se passou a tocha? Pode a psicanálise ser hospedeira, hospitaleira com o fogo amigo?
Fogo amigo. Sempre é fogo amigo. De onde não se o esperava.
O que esta obra carrega à praia? A experiência educacional seria a experiência
psicanalítica fracassada, ou aquilo que nela sempre fracassa? Há que se pensar. Mas
para pontuar e marcar: “há no livro uma grande ausência, a saber, a da instituição
pedagógica. Sem problemas tal tema ficar de fora, posto que a obra esteja debruçada no
exame da posição freudiana”, mas, porém, “quando se identificam em Freud os efeitos
de uma dogmatização ou de uma defesa da instituição psicanalítica”, – o que é corrente
– “não nos veríamos remetidos àquilo que funciona nesta precisamente como instituição
pedagógica: o ensino do mestre, a transmissão do pai, a defesa da ordem?” (CERTEAU,
1992, p. 11).
É como Cifali (1992) inicia a sua pré-face livresca. Por que dói tanto esse calo?
“Ser médico e psicanalista evidentemente não evoca maiores problemas, o antagonismo
é até memorável” (CIFALI, 1992, p. 15), mas ‘pedagogo e psicanalista’ é coisa de
louco, fusão monstruosa, desastrosa, que agride aos olhos e aos ouvidos de quem
capitaliza (Freud e Ferenczi eram médicos. Bion e Lacan foram psiquiatras. Winnicott e
Dolto foram pediatras. Anna Freud fora pedagoga. Melanie Klein não teve formação em
ensino superior. Filósofo, bioquímico, antropólogo, artista, assistente social, linguista,
psicólogo: tudo isso houve. O que estava em jogo? O que qualifica? Analisantes?).
Outrossim, para Cifali, eis duas perguntas que a guiam fundamentalmente:
Seria possível, por exemplo, estabelecer modalidades de um trabalho
analítico em outro campo sem querer professorá-lo com uma teoria
que, assim, só poderá estar convertida em mestre de ignorantes,
certamente induzindo mais resistências do que potencialidades
criativas? [...] Poderíamos empreender tal tarefa sem nos iludirmos
com um sonhado lugar de “plenitude” desde o qual a psicanálise se
exportaria, sem por tal sonho cedermos a uma definição de “pureza”,
o que não poderia não levar a uma nova caça às bruxas? (CIFALI,
1992, p. 19)
Realmente parece muito difícil não se ser um animal moral, condenador por
vocação, colonizador por impulso e destruidor por debilidade. Estupidez e maldade não
costumam se separar. Martelo das feiticeiras, guia completo.
É certo que Freud deseja honestamente contribuir, desejava que outros tirassem
proveitos de sua contribuição, sabendo mesmo que havia contribuído com a
humanidade. Mas como criar e diferenciar um vínculo inédito e ainda reinseri-lo no
resto velho? Definitivamente a psicanálise altera, mas, ainda mais recém-primeva, já
poderia suportar ser também adulterada? Ela não poderá ser mais a mesma. Como ela
era mesmo? Mal era. Nem era. Empreendimento fadado ao abrupto. Freud o sabia, não
era burro. Mesmo assim, o fez. Fez o que pode, como pode e com o que pode. Aplicou
aplicando-se junto. Definitivamente ele não foi mais o mesmo. Era um psicanalista
efeito de seu sonho, sonhado por seu sonho, efeito de sua causa e coisa.
Ele a defendia de ser assimilada a outras práticas, como a médica. Defendia sua
laicidade, seu traço. Seu corpo? Então ela o tem?
Psicanálise versus Cultura. É sempre o risco de ser mastigada, engolida, digerida
e cagada como nada, completamente absorvida pelo Corpo Social – o que lhe tornaria
potencialmente ineficiente. Ela que pretenderia dissolver a Cultura, as culturas, que são
sintomas, facilmente poderia ser psicologia, se domesticada, de solvente passando a
sorvida, servida de bandeja e como bandagem. Passe Merthiolate e ponha um curativo
analítico por três dias e ficará bem.
Escutar não é qualquer escutar e não cabe em qualquer lugar. Seria bonito que
todos cultivassem escutas, escutas variadas. Seria necessário fazê-lo. Seria humano e
civilizatório. Sonho de eliminar os sintomas? Sonho de higienizar o povo? Saneamento
básico é questão de saúde pública. Escutamento básico também. Isso não acabará com
escuta ‘própria’ e ‘apropriada’ – sempre difícil não ser privada e latrina. A psicanálise
que saiu da pedagogia não fez a pedagogia desaparecer com a sua existência. Tampouco
tornou os pedagogos psicanalistas.
Agora, amadorismo é um negócio. Psicanalista se meter noutro campo ou
Profissional de outro campo se meter no analítico é sempre um negócio. Freud foi falar
de arte: o chamaram de amador. Foi falar de história: o chamaram de amador. Se
médico se metesse a falar ou a fazer psicanálise ‘selvagem’, era chamado de amador. Se
professor lançasse mão de interpretação, era amador. Lacan se metendo com lógica ou
matemática é chamado de amador. Psicanalista se metendo com psicanálise, Lacan
chama de amador. Oskar Pfister, pastor, pedagogo e ‘psicanalista’: Cifali (1992, p. 131)
o considera, se não amador, ao menos alguém cujos comprometedores antecedentes
‘filosóficos e religiosos’ bem limitaram a visão e a atuação, sempre tentado a “modelar”
um paciente ou estudante aos seus ideais moralmente elevados. O filósofo e inveterado
amador da psicanálise (nunca deitado ao divã) Badiou foi parafrasear um primeiro-
ministro francês (Clemenceau, Ministro da Guerra em 1917, dizia que a guerra era
importante demais para ficar nas mãos dos militares) dizendo que a psicanálise era
importante demais para ficar “nas mãos apenas dos psicanalistas” (BADIOU &
ROUDINESCO, 2012, p. 95), iconicamente dizendo também:
BADIOU - ... Nunca tive vontade de ser psicanalista. E acho –
voltamos ao início de nossa discussão – que a psicanálise é uma
necessidade para o filósofo. Já expliquei por que – aliás, a relação com
a psicanálise. Mas acho, também, que não é necessariamente bom para
o filósofo ser psicanalista. Não é a mesma coisa. Acho que, quando se
é psicanalista, tem-se uma certa relação com a psicanálise que é
também uma relação prática, profissional, um engajamento pessoal
etc. E é totalmente particular, e acho que não é necessário e nem
sequer é produtivo para o filósofo ter essa relação com a psicanálise.
Acho que se deve ter uma relação com o que eu chamaria de
intelectualidade da psicanálise. Suas propostas, seus conceitos, seu
pensamento. Mas a psicanálise prática, real, organizada é outra coisa.
Então eu sempre disse: eu gosto de psicanálise, acho-a fundamental,
acho que é uma grande invenção na história humana, mas não tenho a
necessidade de me tornar psicanalista. Eu posso encontrar, na história
da psicanálise, todas as lições de que preciso. Posso ler Freud, posso
ler Lacan, posso ler colegas psicanalistas. Mas não acho que haja
necessidade, para o filósofo, de ser psicanalista, porque inclusive isto
pode ser um obstáculo, ele vai ficar até um pouco incomodado, um
pouco perturbado. Há razões de perturbação entre as duas disciplinas
se você é psicanalista de fato. E, em particular, porque neste ponto, o
que se torna prioritário é a prática, e a prática psicanalítica é muito
exigente, muito particular. E, assim como Lacan falava muito dos
filósofos, de Hegel, de Heidegger, de Descartes etc., e, ainda assim,
era um pouquinho antifilósofo, da mesma maneira eu falo muito da
psicanálise…
HORENSTEIN - … sendo um pouquinho antipsicanalista…
BADIOU - (risos) Exatamente! Em simetria!
HORENSTEIN - É um tipo de vingança… Você nunca pensou em
fazer análise?
BADIOU - Não
HORENSTEIN - E alguns filósofos trabalham com conceitos
psicanalíticos como Zizek, Laclau, você… Quais as principais
diferenças que você encontra entre seu estilo, seu modo de pensar e
seu modo de usar ferramentas psicanalíticas para pensar, e o que
fazem Zizek e Laclau?
BADIOU - Acho que quando estamos muito próximos à psicanálise,
ou muito próximos à subjetividade do psicanalista… há sempre uma
pequena forma de ceticismo no psicanalista. Ceticismo filosófico.
Quero dizer com isto que a psicanálise é também uma disciplina que
reúne um certo número de construções intelectuais ao redor de uma
raiz neurótica. Não sempre, mas frequentemente. Quer dizer: os
psicanalistas sabem ver a pequenez que há em tudo o que é grande,
enquanto o filósofo busca ver o que é grande em tudo o que é
pequeno. Não é exatamente a mesma coisa. E quero dizer, em
cumplicidade, que compreendo, às vezes, a maneira com que a
psicanálise é capaz de ver, em uma construção importante, intelectual,
criadora, o trabalho do sintoma. Há um lado redutor, mas em um
sentido racional, um sentido que eu compreendo. E é interessante.
Mas eu, filosoficamente, funciono mais no outro sentido. Isto é, eu
busco a promessa de grandeza que existe no que é pequeno.
HORENSTEIN - Não o ceticismo, mas a promessa.
BADIOU - A promessa. E isso não é uma crítica. Acho que é normal
que o psicanalista seja assim. Mas não aprecio aqueles que tentavam
demais jogar nos dois times ao mesmo tempo: ser, ao mesmo tempo,
psicanalista e filósofo. Porque, aí, não se distingue mais muito bem
entre a crítica e a idealização. Entre a crítica e a ideia, no sentido de
Platão. Não se sabe mais muito bem… Há uma desordem. Na minha
opinião, é isto o que sempre impediu Zizek de ser completamente
filósofo. Gosto muito dele, mas, aos meus olhos, ele não é
completamente filósofo(risos).
HORENSTEIN - Sobre sua amizade com Zizek, ele disse, acho que
em um diálogo que vocês tiveram: “Badiou e eu nos jogamos flores,
mas na realidade nos odiamos”. (risos) … É uma brincadeira.
BADIOU - Acho que para mim isto não é verdade. Eu não odeio o
Zizek de maneira alguma.
HORENSTEIN - Penso que ele não o odeia.
BADIOU - Uma vez, em um colóquio em Londres, Zizek disse:
“Badiou é o pai de todos nós. Ele é como Parmênides para Platão.
Mas Platão, em O sofista, mata o pai. Ele matou Parmênides. Então,
talvez o que eu vou dizer possa matar Badiou.” E eu disse, depois,
discutindo com ele: “Não é tão fácil matar o pai.”
HORENSTEIN - Ele se defende.
BADIOU - Isso. Claro! (HORENSTEIN, 2023, n. p. – grifos nossos)
Vale nos debruçarmos sobre os que nisso se debruçam, nas interfaces entre
campos, entre psicanálise e outras áreas, campos, disciplinas, discursividades. É sempre
difícil dizer se a psicanálise é uma área mesmo, se é um campo ou só uma praga, erva
daninha ou ciência. Como é que pego um gato e um cachorro para compará-los? Pior
ainda, pegando-os para dizer qual é o melhor cachorro – há quem o faça.
HORENSTEIN - A psicanálise tem uma história curta, cem anos, e a
filosofia tem milhares de anos… [...]
BADIOU - Acredito que possamos fazer uma comparação da
psicanálise com a filosofia. O problema é que o lugar do psicanalista é
mais do lado da medicina. Enquanto o lugar da filosofia é mais do
lado do ensino.
HORENSTEIN - Mas em ambos os casos são práticas marginais.
BADIOU - Concordo. O psicanalista é um estranho, um estrangeiro na
medicina, ao mesmo tempo que é um médico também. E o filósofo
não é exatamente um professor, mesmo se é professor. Então o lugar
deles é sempre um lugar ao lado (HORENSTEIN, 2023, n. p.).
Jogar nos dois times impediria distinção entre uma coisa e outra, se ficaria
afogado transferencialmente, positiva ou negativavente – somente um não analista para
dizer algo assim? Isto é, alguém que nunca fez análise, que nunca cuidou da
transferência.
No Roda Viva de 2009, Maria Rita Khel se referiu ao filósofo Zizek como
psicanalista, ao lhe dirigir uma pergunta, ao que este lhe respondeu:
Zizek - E primeiro lugar, deixe-me esclarecer uma coisa: sou
psicanalista, mas apenas num sentido teórico. Não tenho paciência ou
habilidade para tratar de pessoas reais. Olhe para mim, sou todo
nervoso e agitado. Coloque a mão em seu coração e pergunte a si
mesma: se você tivesse problemas psíquicos graves, você se
imaginaria me procurando como analista? (risadas) Provavelmente
não... (ZIZEK, 2023, n. p.)
Zizek que, bem ou mal, trabalhou a sua transferência em um divã. Disse mesmo
em uma outra entrevista, de 2014:
PERGUNTA - O senhor reescreve o idealismo de Hegel com Lacan.
Meno di niente é um livro de "autoajuda" psicanalítica?
ZIZEK - Sim. Mas para entender melhor o mundo, não para viver
melhor. A minha filosofia é scary, perturbadora, destrói as ilusões. Eu
não acredito no conhecimento de si mesmo: a psicanálise salvou a
minha vida quando, depois de uma decepção amorosa, eu queria me
matar, porque me ajudou a dilatar o desejo de autodestruição através
da relação burocrática com o analista (ZIZEK, 2022, n. p.).
Ele dizia que o simples ter a seção após a outra ajudava muito, dia após dia. Vale
não esquecer que Jacques-Alain Miller fora seu analista – embora na sua biografia,
escrita por Tony Myers (2003), se possa ler que:
Miller também conseguiu uma bolsa de ensino para Zizek e tornou-se
seu analista. Foi durante estas sessões analíticas com Miller, que
muitas vezes duravam apenas dez minutos, que Zizek descobriu a
verdade da sua afirmação frequentemente divulgada de que pacientes
instruídos relatam sintomas e sonhos apropriados ao tipo de
psicanálise que estão recebendo. O resultado da invenção de Zizek foi
que as sessões com Miller muitas vezes terminavam em um jogo
intelectual de gato e rato. Este jogo terminou num impasse quando
Zizek completou o seu segundo doutoramento em artes (desta vez em
psicanálise) na Universite Paris-VIII em 1985 (MYERS, 2003, p. 9).
Pensando bem, talvez não tenha ajudado muito (apesar de o ‘caso Zizek’
oferecer alguma lição ‘histórica’, ‘institucional’ ou ‘política’). Talvez ouvir ‘filósofo-
psicanalista’ não seja lá das melhores opções. O conceito lhes é sempre muito caro, o
intelectual. Tentaríamos psicanalistas-artistas, sócio-psicanalistas, historiadores-
psicanalistas? Certamente resultados análogos seriam encontráveis. O caso Freud, bem
analisado pela analista e historiadora Cifali, elucida muitas nuances das investiduras
pessoais do psicanalista em suas aventuras e desventuras noutros campos –
especialmente para aqueles que seguirem os rastros que a autora aponta nas cartas e
interlocuções do velho maestro. Transferências? Difícil encontrar uma elaboração das
transferências, talvez, em forma de queda liquefeita.
Cifali (1992, p. 30) nos lembra de que “falta em saber” não é problema,
psicanalista seria entusiasmado nisso até, obrigatoriamente: “não seria mesmo o
psicanalista sempre tomado como um amador pisando em um terreno no qual não foi
formado pelas instâncias institucionais reconhecidas e validadas socialmente?”. Não
seria mesmo p psicanalista sempre um amador em cada novo atendimento que se
propõe? Saber menos, estar um passo atrás, sempre. Lacan frisou para não nos
apressarmos em entender, Bion enfatizou o sem memória e sem desejo (sem conhecer
também), sem mencionar o próprio Freud enfatizando largamente o timing de uma
antecipação que só poderia acelerar a resistência. Winnicott se regozijava de anotar
interpretações que, na realidade, retinha para si, tendo como recompensa por tal
retenção a ocasião de quando a própria paciente fazia a mesma interpretação para si
mesma uma hora ou dias depois. Não há que saber demais e analista sabichão empaca
análise. Não era burro que empacava? Psicanálise é campo subverso mesmo. Os não-
burros erram e empacam. Só faltava essa de um elogio a burrice. Natureza sempre
peculiar a desse ‘campo’. Frutos estanhos. Mas é fato que valeria estar sempre fresco,
disposto à surpresa, achando-a ao invés de buscá-la. Deveria favorecer o arvorecer
noutros terrenos, então. Só que o como importa.
E a recíproca será complicada. O amador estrangeiro à análise, provavelmente
não se beneficiará tanto desta ‘falta em saber’. Trabalho do negativo não é moleza.
Suportar não saber, uma ignorância metódica, sem acabar com tudo. Mais fácil seguir
receita de bolo enciclopédica, informação fácil e rápida, de preferência pela qual nem
devo me implicar ou comprometer e facilmente chegar rápido onde quero – que será
sempre mercadorial.
A psicanálise só pode ser ferramenta estranha, disfuncional se não “sabe” de
pronto. Pode levar tempo. Pode não ser. Pode não funcionar. Ou, o que seria funcionar
aí? Ferramenta que nas mãos de uns só fica irreconhecível, mesmo. Antes apenas não se
reconhecesse – o duro é a função. ‘Eu mesmo’ usando chave inglesa é meio ridículo.
Outro dia o mecânico riu do modo como peguei uma peça lá do fusca. Nas mãos dele,
as coisas até faziam sentido.
Tem ferramenta que molda a mão de quem a sustenta. Ferramenta que já até
ensina a usar. Um revolver é anatomicamente feito para acomodar o polegar opositor
com indicativo de tiro, muito instintivo, ou melhor, intuitivo. Isso não quer dizer que a
mão relaxa, ainda mais se tiver noção do estrago, ainda que o uso possa bem moldar um
caráter. Caneta Bic, tesoura, cola tenaz. Controle de videogame. Pincel e broca. Até o
dente pode ter funções e permitir alcances. Agora, de novo, não adianta querer apertar
um parafuso de philips com chave allen. Ou usar chave de fenda para escrever em folha
de papel. Há ferramentas diferentes para trabalhos distintos. Para quê serve uma
ferramenta de não-saber? Como usa um balde furado quando se quer carregar água?
“O dilema em si não é novo: é a ferramenta que condiciona o movimento da mão
ou é a mão que transforma a ferramenta a seu bel-prazer?” (CIFALI, 1992, p. 33) “Ser
um ‘pau para toda obra’: Freud honestamente almeja preservar a psicanálise disso”
(CIFALI, 1992, p. 35). Utilitarismo filosófico, científico, democrático ou capitalista não
ofereceria guarida. Arte não precisa de dever, basta expressar. Mas pode ser mesmo que
ao ser levada a outro setting a ferramenta perca o uso, mude o uso. Impune não restará.
Até onde perder o fio da navalha? Corte cego pode servir de martelo.
Psicanálise na educação, sem interpretação?
Ora se pode ser filósofo, ora se pode ser psicanalista. Os dois ao mesmo tempo,
não. Quando estou receitando um remédio, medicando, não estou psicanalisando.
Quando estou ensinando, não estou sendo psicanalista. Ou poderia ser um psicanalista
fazendo outra coisa (e qual é o problema), o melhor que pensei caber naquela situação e
momento? Talvez seja o caso de assistência social. Ou simplesmente de dar um pouco
de comida a alguém. Ainda que existam fomes psíquicas, sim.
É Catherine Millot (1987, p. 119) que vai macetar: “Não existiria educação
‘analítica’ no sentido de aplicação da psicanálise à educação. Mas educador e educando
podem se beneficiar de uma cura analítica”. A única saída é cada macaco no seu galho.
Um pode até se beneficiar do descobrimento alheio, mas não se mistura.
Multidisciplinar não é Interdisciplinar. Mannoni não dista:
Freud, com efeito, retira duas lições da experiência positiva de
Aichhorn: a primeira se refere à formação analítica dos educadores; e
a segunda, escreve Freud, “soa mais conservadora”, acrescentando: “o
trabalho da educação é algo sui generis, que não pode ser confundido
com a influência mediante a psicanálise nem ser substituído por ela”.
Disso Freud deduz que “a psicanálise infantil pode ser utilizada pela
educação como recurso auxiliar; mas não tem condições de tomar o
lugar dela. Não somente razões de ordem prática o impedem, mas
também considerações teóricas o desaconselham”, Freud assegurando:
“A relação entre educação e tratamento psicanalítico será
provavelmente objeto de exame aprofundado num futuro pouco
distante”. Maud Mannoni conclui desta passagem que Freud separou
de uma vez por todas os dois processos (CIFALI, 1992, p. 134).
Leitoras fieis e dignas? Fecha a conta e passa a régua: caso encerrado. Ou Cifali
(1992, p. 79) seguiria correta em insistir no pensar: “o que é que um trabalho
psicanalítico em outro terreno envolve?” – embora seja dela, ali também, a ponderação:
E se não for possível à psicanálise se consumar sem morrer?
Enunciemos em alto e bom tom: E se a psicanálise não for mais do
que uma escuta viva, nunca garantida ante as ininterruptas derivas
humanas pelos confins de um reprimido, de uma coisa rechaçada por
todos os outros discursos oficializantes, na direção de um
encabestramento do corpo e da palavra, por um enfoque selvagem do
desejo? E se a psicanálise não existisse mais do que à custa de nunca
submeter-se, de não se conformar à ordem do discurso científico ou de
uma teoria, mesmo que fosse a sua própria teoria? E se...? Quer dizer,
talvez ela tenha a capacidade de provocar uma modificação sempre
revigorante no registro de uma aplicação, onde está mantida e onde
segue se atualizando a relação das ciências humanas com o campo da
educação: provocar uma comoção por meio do acréscimo atualizado
de um saber sobre a criança e por meio de uma reintegração mediante
a elaboração de uma pedagogia (CIFALI, 1992, p. 94-95).
Freud não vacila, não titubeia, afirma e assenta, aplica e replica. Mas seria esse o
mesmo Freud (2011, p. 92) que tantas e tantas vezes nos disse que “com conceitos é
perigoso retirá-los da esfera em que surgiram e evoluíram”? Que prevenia quanto aos
que buscavam a libido ou a pulsão em uma experiência imediata e empírica, que avisava
para que não se levasse de bate-pronto um diagnóstico à cultura, dizendo não ser fácil
transferir algo da psicologia individual para a psicologia de grupo, ou que dizia que o
inconsciente tal qual se trabalha em psicanálise não seria o mesmo filosoficamente
abordado, dizendo igualmente que entendimentos ‘psicanalíticos’ não tornariam um
artista mais artista ou criativo – seria o mesmo? Na aplicação à arte, à religião, à
ciência, à história, à mitologia, (à ‘linguística’) pareceu haver algum outro cuidado,
certa cautela ou aviso prévio de extrapolação. “Dito de outro modo, nestas ‘aplicações’,
Freud respeita uma diferença; o saber produzido na retroação de uma investigação
teórica não se confunde com aquele que nasce em um sujeito via transferência no
espaço de uma cura” (CIFALI, 1992, p. 108). Já na educação, sem qualquer educação,
se assegura que a adoção dos esclarecimentos conceituais garantirão melhoramentos; e
logo um Freud que sabia inclusive que a instalação de um princípio de realidade, em seu
sentido mais pleno, é mesmo algo da ordem de um impossível, sem fim, sempre em luto
– “a passagem do p.p. ao p.r. não se realiza nem de uma só vez e nem de maneira
definitiva [...]. ... Freud revela em contrapartida que o p.r. não é mais do que um p.p.
disfarçado: sua meta seria igualmente o prazer, mas um prazer postergado, atenuado
(CIFALI, 1992, p. 87) –. Enfim, afinal, em psicanálise, se aplica conceito? Fazer
dedução de seus conceitos noutros lugares é aplicação (nada mais colonizante)? Qual é
o conceito de conceito em psicanálise, mesmo?
É nesse mesmo quinto capítulo que se inicia o que bem se poderia dizer que é a
discussão mais importante do livro, quer seja: a contraposição entre duas formas
completamente distintas de ‘saber’ – uma vez que é cabalmente tal distinção que
potencialmente singularize a psicanálise em sua dinâmica e função, essencialmente
maior fruto de sua arvoração. Que tipo de saber está em jogo em uma análise? Que tipo
de saber é o da psicanálise? Qual a natureza do seu corpo (de conhecimentos?)? Que
tipo de ciência seria a tal da psicanálise? Ou, mais bem, se o inconsciente existe (se a
psicanálise tem razão e razão de ‘ser’), o que é que é a ciência (o que é que a ciência
pode ser?)? Bye bye episteme?2
2
As concepções psicanalíticas “se situam no nível de uma ficção, no sentido de fingere: construir, recriar.
Em Os dois princípios, Freud qualifica a sua elaboração de Fiktion, mas é em Análise terminável e
interminável que ele lhe fará a designação clara através do termo “construção”. Dizer que a teoria
psicanalítica se sustenta em um registro fictício não retira nenhuma parcela de seu valor e nem de seu
potencial de verdade. Ficção não se opõe nem a realidade nem a discurso objetivo, tal como uma certa
concepção científica quer fazer crer. Simulacro, reconstrução, este é o terreno preciso de toda a
investigação científica, quando esta não cede a certas seduções positivistas” (CIFALI, 1992, p. 92).
Cifali (1992) parte genialmente da comum e corriqueira ideia que se faz de que
‘todo atendimento psicanalítico é já uma aplicação da psicanálise’. É com conceito que
se atende? Aplica-se conceito?
Agora nos resta dar conta destas afirmações, e o faremos
primeiramente mediante o absurdo; imaginemos que fosse verdade
isso que acabamos de negar, quer seja, que uma interpretação seria
uma dedução direta de um saber prévio que se restituiria através de
uma interpretação ao analisante. Vou usar aqui um exemplo bem
burro, mas existem os mais sutis: o psicanalista poderia dizer ao
analisante: “Você está vivendo o seu Édipo”, ou “É uma resistência do
seu p.p.”; a teoria, aí, é tomada como um saber imutável e utilizada
como uma régua de leitura para decifração da história de um sujeito,
um analisante a quem se escutaria por meio deste saber e que acabaria
por servir-lhe de exemplo, igualmente havendo um psicanalista preso
na cilada de uma posição de ensino, instalando-se no lugar de mestre
do saber psicanalítico. Assistiríamos a um duplo encerramento,
justamente por um se aprisionar na própria grade delimitante,
tornando-se incapaz de produzir novas hipóteses: da teoria ao
analisante e do analisante à teoria, num círculo fechado para sempre.
Em suma, este uso dos enunciados teóricos na cura, por confusão, se
aproximaria do procedimento de uma aplicação. Mas esse foi só um
raciocínio pelo absurdo - ao menos assim esperamos -, a pergunta
prosseguindo: se uma interpretação não tem que ver com uma
aplicação, como ela se dá? Não responderemos de imediato, posto que
sequer contemplamos a diferença entre um saber nascido
transferencialmente em uma cura de um saber reconstituído a partir
de uma elaboração teórica (CIFALI, 1992, p. 96 – grifos nossos).
Não vai haver aí, nesse terreno, um partir de um saber prévio para se extrair
consequências práticas. Pior, ‘nesse campo’:
É o caso de reconhecermos, a psicanálise tem como objeto de estudo o
psiquismo inconsciente; isto faz com que seja improvável que o
investigador tenha uma perspectiva exterior; mas esta proximidade
não é um inconveniente, é a condição de um descobrimento. Como o
escreve O. Mannoni: “O saber sobre a doença não nasce de um
observador com boa saúde que observa a doença, senão que nasce da
própria doença”; para isso seria necessário que, “de um modo ou de
outro – transferencial –, se participe dela”. Sem esta participação não
há conhecimento possível, ainda que o perigo desta participação seja
mesmo o de cair em um delírio (CIFALI, 1992, p. 103).
3
Talvez valha a menção mais longa desta passagem, esta intervenção a respeito da experiência do passe e
de sua transmissão, a 3 de novembro de 1973, na parte da tarde (Congrès de La Grande Motte,
Montpellier - Lettres de l’École Freudienne de Paris, nº 15), porque nela Lacan distingue saberes
também: “Eis o que obtenho após haver proposto esta experiência. Obtenho algo que não é absolutamente
da ordem do discurso do mestre, e ainda menos do magister. Seria preciso que se soubesse notar coisas de
que não falo – eu nunca falei de formação analítica, falei de formações do inconsciente. Não há formação
analítica. Da análise tira-se uma experiência, que se qualifica muito erroneamente de didática. A
experiência não é didática. Por que vocês pensam que tentei apagar inteiramente esse termo didática e
falei de psicanálise pura? Dei-lhes uma aula, no ano passado, sobre o que está em jogo na experiência
pretensamente interrogativa com relação ao animal. Colocam-se pequenos animais em pequenos
labirintos, onde são apanhados como ratos, é o caso de dizê-lo, e tenta-se ensinar-lhes a aprender. Não é
de todo manifesto que isso seja conforme à sua índole e que sejam capazes disso, como acontece conosco.
Ora, vendo as coisas sob esse ângulo, umanálise implica certamente na conquista de um saber que está ali
antes que o saibamos, ou seja o inconsciente, e o sujeito pode certamente aprender aí por que truque isso
se produziu. É neste sentido e apenas neste sentido que uma análise é didática. Mas se ele não fez mais do
que aprender a ensinar a apertar os botões necessários para que isso se abra no inconsciente, pois bem,
permitam-me dizer-lhes, ele não aprendeu grande coisa. Ele não aprendeu que desse saber que eu defino
como articulado – é essa a essência daquilo sobre o qual eu insisto, quando digo que o inconsciente é
estruturado como uma linguagem – cada um, à sua maneira, e num ponto inteiramente local, é o efeito. A
pura e simples dependência. Se ele não fez mais do que aprender a ensinar como fazer para que outros
além dele se apercebam disso, é pouca coisa diante do que se desvendou a ele na experiência analítica.
Ele não aprendeu de modo algum, o que quer que o analista pense disso, mas isso se desvendou a ele.
Essa dimensão é bem diferente da de aprender. Seu primeiro movimento é de não saber por onde tomá-la”
(LACAN, 1995, p. 57-58).
4
Bion enfatiza a diferença entre um saber intelectual sobre uma coisa e um saber com experiência,
inclusive privilegiando a própria psicanálise (saber sobre a psicanálise é diferente de viver uma
experiência psicanalítica). “Duvido que alguém, a não ser o psicanalista, entenda este livro, embora tenha
feito o máximo para torná-lo simples. O militante percebe o que digo, pois, diferente dos que apenas leem
ou escutam acerca de psicanálise, experimenta em si o que, no livro, apenas represento por palavras e
enunciados verbais que se destinam a outro interesse” (BION, 1991, p. 11). Mas o avanço aprofunda,
complexificando em camadas, não sendo bem tão somente uma questão de “experiência” ou empiria,
embora o kantismo não possa ser negado: “Os eventos psicanalíticos não se enunciam de modo mais
direto, indubitável ou irretocável que os de outra pesquisa científica. Recorro ao signo O para denotar
realidade última que se representa por expressões como realidade última, verdade absoluta, deidade,
infinito, a coisa-em-si”. Não está na esfera do saber ou do aprender, salvo de maneira eventual; é-se
‘tornado O’, dele entanto não se ‘sabe’. Insondável e informe ... se sabe a seu respeito, por conhecimento
Mas aqui também pedirei a licença de alongar a citação por demais valiosa na
exposição desta ideia chave, demonstrando que diferença há entre ‘formas de saber’ –
para só então só-depois discutirmos mais detidamente o ponto com outras palavras
(embora já mais prontamente encaminhando encerramento desta resenha):
Freud não deixa de pôr em ato esta diferença ao longo de toda a sua
obra. Mas ele a aborda de um modo muito particular em 1938, em seu
texto “Análise terminável e interminável”, no qual responde a
Ferenczi e à sua concepção de uma psicanálise ativa. O
questionamento levantado é o seguinte: por que não preparar o
paciente para enfrentar os conflitos futuros que ele encontrará? Uma
prevenção deste tipo teria como vantagem um ganho de tempo. Ele
estaria advertido, sabendo o que o aguarda por meio de uma
informação que o psicanalista sacou de seus próprios conhecimentos,
uma informação referida aos perigos vindouros que vão se
aproximando do paciente, de modo que ele poderá enfrentá-los de
antemão. Uma vez informado, seria como se já estivesse vacinado.
Pois bem, Freud se sente obrigado a constatar que tal resultado não é
alcançado. Ao invés disso, observa que: “O paciente escuta, sim, a
novidade, mas não há eco algum. É como se lhe passasse assim na
cabeça: ‘Isso é muito interessante, mas não registro nada disso’. Se
terá aumentado o conhecimento do paciente, sem alterar nada mais
nele. A situação é muito semelhante à que acontece quando as pessoas
leem trabalhos psicanalíticos. O leitor é ‘estimulado’ apenas por
aquelas passagens que sente que se aplicam a si próprio — isto é, que
interessam a conflitos que estão ativos nele na ocasião. Tudo o mais o
deixa frio”[ "Análisis terminable y interminable", op cit., t. XXIII, p.
236]. Pode até fazê-lo se mexer, mas mesmo assim é só muito
raramente que terá o poder de estremecer a constelação de seu desejo.
Freud vai falando de maneiras distintas sobre o quão pouco efeito tem
um ensino teórico naqueles a quem se dirige: “Eles absorvem”,
observa Freud, “as teorias da análise tão friamente quanto outras
abstrações com as quais são alimentados” [¿Pueden los legos ejercer
el análisis?, op. cit., t. XX], e nada muda, mesmo quando se está
sabidamente advertido. É por isso que Freud é intransigente quando
menciona os especialistas de outras ciências no sentido de aplicarem
os métodos e pontos de vista psicanalíticos às questões que possam
lhes interessar: seria necessário ter feito uma psicanálise, pois não
basta “ater-se aos resultados consignados pela literatura psicanalítica”
[ibid.]. O saber que se aprende assim não terá efeito, mas haveria um
outro, interior, que surgiria no espaço da cura e que este sim teria o
poder de uma transformação. Esta diferença não é habitual aos dados
comuns da investigação científica e tem que ver com uma
particularidade do trabalho analítico, sendo deduzido de seu modo de
construção de conhecimentos e, de maneira ainda mais primitiva,
Freud é elegante, ficando ainda mais nítida a sua sagacidade do que é freudiano
nas plumas de Cifali.
O caso é que se carece de enunciar detidamente tal distinção precisamente por
sua participação na própria ideia de uma ‘aplicação’. A natureza, a essência, o
fundamento, a qualidade, a estrutura, o eixo singular e singularizante deste saber, o que
implica na impossibilidade de sua assimilação ou execução, sendo mais próximo de
uma forçação, um forçamento – um saber-forçamento, um saber que é um forçamento.
Ideia de uma ética? Ética de uma ideia? E voltamos à oposição teoria x prática.
Pensamento x sensação. Mente x corpo? Psique x soma? Continente e conteúdo?
Representação e representado? Empiria x racionalismo, realismo x idealismo,
pragmatismos e ceticismos. Filosófico demais, ludibriosamente epistemofílico e clichê
batido.
‘Saber que não se sabe e com estrutura ficcional’, tal seria a exploração mais
lacaniana desta ‘observação’ – desenvolvida com amplitude em trabalho prévio (SILVA
FILHO, 2021), cabendo conferência, já que lá se joga com ‘conhecimento x saber’ em
consequência homóloga.
Vale igualmente apontar que no campo pedagógico discussão próxima também é
profundamente desenvolvida, por exemplo, nos trabalhos de Jarbas Novelino Barato,
que em livros como “Escritos sobre Tecnologia Educacional & Educação Prosfissional”
(BARATO, 2002) e “Educação Profissional: saberes do ócio ou saberes do trabalho?”
(BARATO, 2004), enfaticamente trabalha ‘informação x conhecimento x desempenho’,
em sugestão direta de que se abandone o par ‘teoria & prática’, considerando-se
‘técnicas e habilidades como uma das dimensões do saber, como tipos específicos de
conhecimento mesmo’ (tecnologia é saber fazer, know-how) e não meros elementos
práticos que subordinam-se a uma teoria, cabendo-lhes ‘status epistemológico próprio’:
‘um conhecimento técnico é uma dimensão do saber e o saber é inerente ao fazer, não
uma decorrência de conhecimento estruturado por proposições logicamente
concatenadas’. Caracteristicamente, ‘definir antes de experimentar é um engano que
acabou sendo incorporado ao nosso modo de pensar’; E, ‘se aprendemos fazendo e
fazemos para aprender, sendo raras as coisas que de fato conseguimos definir’, importa
salientar que o intercâmbio e o fluxo na dimensão do saber é no mínimo múltiplo e de
mão-dupla, indo e voltando, mais precisamente se produzindo conhecimento tanto do
fazer (prática) quanto da informação (teoria), mas aí justamente se marcando
delicadamente a distinção ‘conhecimento x informação’, para evitar os dessabores de se
mirar numa ‘transferência de informações’ enquanto intuito da educação (algo que
literalmente matou a escola – pelo menos desde os anos 70), ou mesmo o brutalmente
danoso dogma de que conhecimento é mercadoria, como se ele fosse um bem de
consumo que se poderia armazenar, processar e distribuir, como se ele pudesse ser
comprado e vendido – acreditar neste último, segundo Barato (2002, p. 72) “é uma
forma sutil (e cruel) de perpetuar ignorância”. Conhecimento e saber é processo de
elaboração, facilmente de lenta maturação, precisamente alimentado pela paixão (com
mistério, prazer e motivação de ingredientes), impreterivelmente decorrente de
convivência: “o saber é, necessariamente, compartilhado. Mais que isso, o saber,
necessariamente é um tecido de significados históricos e socialmente construídos”, cuja
dinâmica é interativa (BARATO, 2002, p. 110). Educar não é facilitar acesso à
informação, nem tampouco há grupo homogêneo e seriado, sendo que “a acumulação de
grandes quantidades de informação (muitas delas irrelevantes e inúteis) não é condição
necessária para a elaboração do saber” (BARATO, 2002, p. 72). Com Anderson (1977
apud BARATO, 2002, p. 69):
Predomina, nas escolas, uma visão ingênua que pressupõe que os
efeitos da experiência podem ser considerados como conhecimentos,
que o conhecimento é consciente, e que o conhecimento pode ser
traduzido em palavras. Simetricamente, as palavras podem ser
traduzidas em conhecimento e, assim, as pessoas podem aprender, ou
seja, podem adquirir conhecimento por meio de instruções verbais.
Por razões importantes na história cultural do Ocidente e importantes
para sustentar uma sociedade tecnológica, essa visão ingênua está
embutida no texto escrito. Supõe-se que o texto é completamente
transparente, mantém um significado fixo em qualquer contexto e
permanece autônomo, sem necessidade de intérpretes especiais ou, até
mesmo, de uma referência interpretativa.
Teoria da aplicação
Mas talvez ainda reste retomar um pouco do que Cifali (1992) enunciou em seu
livro, de modo a redesenhá-lo – sem perder de vista que a autora segue trabalhando a
temática em maior ou menor grau até hoje, com muitos trabalhos (CIFALI, 2020).
À época, Cifali (1992) já considerava a “psicanálise ‘aplicada’, não como um
acréscimo de saber ensinável, senão que muito mais como uma saber que cria, entre um
e outro terreno, um espaço transferencial cujos efeitos ... tornam-se fonte ... de
interpretação e de conhecimento” (CIFALI, 1992, p. 97). Ela exige mesmo que se
escolha entre aplicar ou interpretar, como condição para um trabalho em outro campo,
de modo que o psicanalista que lá for, terá de se colocar como Je e não Moi, em um
corpo a corpo transferencial. Sua hipótese é mesmo a de que uma “psicanálise
‘aplicada’” é a “criadora de um espaço no qual um investimento de desejo e uma
tomada de risco são justamente as condições de uma produção de conhecimentos
novos” (CIFALI, 1992, p. 100). Freud em outro campo é o seu paradigma: lá “ele se
converte verdadeiramente em um psicanalista em outro campo, quando o objeto de sua
investigação se apodera de seu saber interior, com ele aceitando o seu lugar de locutor
na elaboração de seu trajeto” (CIFALI, p. 107). Ou seja: há outro campo e é lá que se
atuará, deixando-se tomar por aquilo que o outro campo suscitar, afetando-se de modo a
poder interpretar, o que no caso seria bem com o intuito de promover novidades,
descobertas, para lá. É certo que ao longo do livro a autora mostra como Freud falhou
nisso no campo educacional, sempre tomado por dimensões transferenciais massivas e
desnorteantes – o que gerou um curioso quase “contradito” do tipo: é para criar um
espaço transferencial, mas a transferência pode levar tudo abaixo. Não é nada profundo,
mas um tratamento disto seria cabível, embora talvez a ideia da manutenção do jargão
transferencial tenha sido um equivocante. Ela diz que Freud, na aplicação à educação, se
esquece da diferença entre naturezas de saberes, caindo no lapso de aplicar conceitos ao
invés de suscitar conhecimentos. E no oitavo capítulo ela repetirá assim: “não se trata de
aplicar um saber pré-existente de modo a assinalar ao outro campo o que ele deve ser,
senão que abrir pistas que, de modo sempre particular, se possa perseguir” (CIFALI,
1992, p. 127).
Sua tese é mesmo a de criar vãos, veredas ou conheceres, embora, mais que
outro, o seu intento é menos o de circunscrever uma teoria da aplicação do que mostrar
que ‘psicanálise & educação’ não é uma insanidade ou uma aberração – mais que tudo,
é algo claramente articulado e articulável, tendo se mostrado diálogo importante ao
longo de quase todo o percurso de Freud. Um Freud que cunhou mesmo o termo
“educador analista” (der analysierende Erzieher), ponderando sobre tal atuação
(CIFALI, p. 136) – bem se encontrando na pedanálise de Pfister explícita tentativa de
descrição ampla da atuação, direitos e deveres, limites e competências –.
E a autora sempre retoma a discussão que demonstra o seu maior ponto: “Se a
perspectiva de que um analista também seja em certas circunstâncias um educador – um
analista pedagogo – já é inconcebível para muitos, o fato de um educador poder ser um
psicanalista – um pedagogo analista –, então, beira a provocação”, bem não se vendo “o
mesmo desgosto quando um médico coloca em seu cartão de visitas ‘médico e
analista’” (CIFALI, 1992, p. 145). Pergunta enfaticamente: “Por que é que os
pedagogos perderam nos dias de hoje todo e qualquer poder sobre a psicanálise?”
(CIFALI, 1992, p. 150) – frisando-se que os ‘dias de hoje’ eram no início dos anos 80.
Diz ela lá: “A verdade é que a psicanálise, hoje, não passa de uma teoria ensinada como
outra qualquer, dentro de uma acumulação de conhecimentos acerca do que se imagina
que seja uma prática educativa mais racional. É certo que é uma teoria como qualquer
outra” (que não é superior a nenhuma – não há hierarquia), “mas em contrapartida
acabaram mesmo com a sensibilidade ao inconsciente que lhe é peculiar” (CIFALI,
1992, p. 151). Ao que Voltolini (2020), em atuais ‘dias de hoje’ devolverá:
Normalmente se espera sua participação [da psicanálise], como
dissemos acima, ao lado de outras contribuições teóricas sobre os
fatores psíquicos que estão em jogo na formação de professores, mas,
se ela aparece aí, será como ideologia psicanalítica e não como
psicanálise. Essa diferença é crucial fazer quando nos damos conta
que foi sob a forma de ideologia psicanalítica – incorporada após a
pasteurização de seus conceitos à ideologia psicológica mais geral –
que a pedagogia englobou o saber psicanalítico em seu campo
(VOLTOLINI, 2020, p. 90).
Pergunta - Vamos voltar aqui para a sua pesquisa. Quando fiz um sobrevoo nela, como
disse, fiquei interessadíssimo... mas... quando você falou de 'ciência dura' e 'ciência onírica', foi
uma criação e uma provocação. Como é que a comunidade acadêmica recebeu a sua pesquisa e
essa provocação? Fiquei muito curioso, pensei que você tinha apanhado um pouco.
Emir Tomazelli - Apanhei... [risada], como disse o Rocky Balboa, 'não importa o
quanto você bate, importa o quanto você consegue apanhar’ [risadas]. O meu, orientador no
dia da defesa do meu doutorado, disse para todos que foi muito sofrido para ele ter que me
aguentar porque... [risadas] 'O Emir é muito desobediente...' Eu já tinha feito 46 anos, e ele
reclamando da minha desobediência, do trabalho que eu dei, do jeito que eu escrevi, das coisas
que eu escrevi... foi engraçada a cena. (TOMAZELLI, 2023, n. p.)
O modo como vou chegar a essa tal Pedagogia Freudiana é muito particular e,
certamente, para acompanhar meu procedimento, aqueles que ainda não estão acostumados
com minha maneira de existir dentro do campo do saber e adjacências terão que fazer algumas
adaptações comportamentais e intelectuais. Em primeiro lugar, uma questão de estilo. Na
medida em que o que interessa fundamentalmente é o que possa acontecer no nível disso que se
chama Inconsciente, em todas as suas manipulações, em qualquer lugar que compareça, minha
linguagem não está necessariamente subdita à censura, a não ser que eu queira, que me
interesse. A expressão acadêmica não é meu forte, não porque eu não a consiga, mas porque
não quero. Na tensão entre o Saber e a Verdade, que é o lugar onde podemos surpreender
melhor o que se chama de Inconsciente, em nossa prática cotidiana, isso faz borbulha, e há
grande diferença entre um discurso regrado estritamente pelo saber e outro acossado pela
verdade. Este tem que se deixar mais ou menos à vontade no sentido de colher a expressão
freqüentemente tal qual ela aparece. Mesmo naqueles que dizem acreditar que há Inconsciente,
e até nalguns que supõem que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, porque
Lacan queria assim, não posso reconhecer os indícios de uma prática compatível com essa
estada, na sua relação com o Inconsciente, quando o que apresentam é uma fala regrada pela
censura do saber e do academicismo. Em termos de expressão, no que o Indiscernível me faz
faltar aqui e ali no que diz respeito à minha palavra, a expressão me chama a dizer, em níveis
mais ou menos misturados, o que me pareça compatível com a necessidade dessa expressão.
Então, palavrão para mim é termo técnico. Para um analista, palavrão é termo técnico
(MAGNO, 1993, p. 2).
Não quero, nem sei se consigo, escrever um texto acadêmico. Pretendo apenas sugerir,
num tom de conversa, algumas pistas para a reflexão (BARATO, 2002, p. 64)
Sobre seu livro originado de sua tese – descrito como um ‘livro de discussões, de
encrencas, de estados de fúria e de tempestades, contendo também grandes vales de
beleza poética. É um livro de voos e de atrevimentos, experimentando uma forma
coloquial para se discutir mais a fundo a questão da cognição humana, da educação e da
transmissão da psicanálise’ –, diz Tomazelli (2003, p. 179) que “É uma ‘tese-colagem’,
feita com material apropriado no cotidiano de minhas leituras, contatos, discussões e
tropeços”, potencialmente justificando o antes dito5:
Assim, nesse ver de minha singularidade agindo, é a academia que
precisa dar conta de creditar, mais uma vez, à subjetividade do “seu”
pesquisador, seu lugar de ciência. Mesmo tendo sido, essa
subjetividade, uma vez expulsa da academia – com justa razão –, hoje
necessita ser novamente recebida e compreendida de modo menos
assustado (paranoico), menos desconfiado, menos “duvidante”, para
colocar mais uma vez o dedo nas ilusões de Decartes! (TOMAZELLI,
2003, p. 82)
Não dá pra jogar fora que inconsciente é ‘linguagem’. Com que língua você fala
inconsciente? Tem língua que não diz. Por exemplo, “a linguagem científica mesma, se
fazendo de esteira sobre a qual repousará o histérico, não para fazer ciência, exatamente,
mas para se apoiar na ciência, e assim não se mancar de sua histeria” (MELLO, 1987, p.
72). Psicanálise é essa linguagem da operação do objeto-que-não-existe através do saber
do inconsciente. É psicanalista que é sabido pelo que é feito. Que se lembra da fantasia
antecedendo a metodologia, mais sintomaxiomática do que nunca. Que no fim das
contas, é só a sintomática que será encontrada no final da pesquisa, embora precise
haver a pesquisa toda para isso.
Denunciando, quase desesperadamente, obsessivo desejo dos donos
da verdade de substituir o mitológico pelo arquivório dos laudos
periciais, origem de todo movimento de imbecilização sustentado
pelos diaristas às teses financiadas por instituições comprometidas
com a uniformização do mundo; mostrando-lhes que todo o vertido
pelos grandes autores, entre eles o principal, a saber, a Alteridade, que
comparece até pelo anônimo do de antes da escrita, que tudo isso vem
sendo desvirtuado pelos adestrados metodistas das seitas universitárias
(MELLO, 2001, p. 13).
5
É possível haver conhecimento sem envolvimento? É a teoria que deve subsidiar a técnica, sem permitir
que deduções subjetivas participem, a não ser quando vertidas em equação matemática? “Psicanalistas,
porém, levantam as suas hipóteses usando como suporte empírico os impasses que nascem do cotidiano
da clínica em meio à condução de uma cura, e por isso erram ao teorizar a partir da experiência; fazem só
teoria do passado sem nenhuma potência previdente, antecipatória. Assim, aos olhos da precisão e do
conceito que ainda vige do que pode ser ciência, a psicanálise não passa de salvação religiosa que formula
teoria com o que já foi. Curandeiros, menos cientistas. Se quisessem verdadeiramente suas imagens no
panteão da sabedoria científica, saberiam prever o acontecimento mental antes mesmo de acontecer na
realidade, e, aí sim, se trabalhássemos amparados pelos olhos ‘antevidentes’, portanto proféticos, da
ciência, poderíamos intervir e com certeza curar, dada a exatidão matemática e a precisão e superioridade
do conceito sobre a realidade. Mas psicanálise não é capaz de prever. Adivinha, mas não prevê. Que dirá
fazer ciência!?” (TOMAZELLI, 2003, p. 80).
Exemplo ímpar de como saber se me produz, n’À busca de Édipo pessoa-física,
de Humberto Haydt de Souza Mello, substancializando o processo ao vivo:
O acme de toda a indecência está, pois, precipitado sobre a pergunta a
respeito de Édipo pessoa-física – esta pergunta é o máximo da
obscenidade, porque se coloca como epitáfio sobre o desejado
sepultamento de uma questão individual, uma tal que cada um de nós
não a conhecerá senão com ajuda da análise pessoal, sobre o que disso
resta, e o que resta fica insepulto – fica insepulto o próprio analisante,
que aí é o coveiro enquanto universitário, depois perguntador. Entre o
coveiro e o cadáver, entre o sepultador e o sepultado, está o fantasma
– é este quem, devidamente tratado – e este tratamento é a própria
psicanálise – quem pode nos dar alguma explicação (MELLO, 2001,
p. 20).
Post-mortem
Cadáver desadiado, cadáver falante, cova rasa pra caveiro. Cegueira sobre um
ensaio, vivamente. Por mera extensão literária, que é aplicação, também.
Foi Harold Bloom que avançou a ‘repressão’ noutro lugar, fazendo dizer o que
queria dito a partir do dito de Freud. Pouco importa. O que vale é a aula de anatomia. É
nela – em especial na de Bloom – que vemos o canto do cisne que fez valer o cunhado
de Walter Pater: ‘A crítica literária é a única forma aceita de autobiografia’. Emulação,
disputa e traição. Imolação e amolação também. Ela o encarnou.
Faríamos: A crítica psicanalítica é a única forma aceitável de autoanálise.
‘Crítica psicanalítica’, eis outro palavrão para que não se fique a pagar ou
apegado. A paga do dízimo e a pega do Sísifo – resta sempre mais um indício de senso a
ser pego noutro lugar, noutra relva, campo de centeio e cultura de grãos.
Sobre decência e o corpo docente, Bloom (2013, p. 12) asseverou por aí,
expondo a condução infantil e a guia para fora, como se fora houvesse: “Os 55 anos em
que lecionei em Yale me ensinaram melhor do que eu mesmo sou capaz de ensinar aos
outros. Isso me entristece, mas seguirei lecionando enquanto puder, pois me parece que
o ensino compõe uma tríade com ler e escrever”. Esporte radical pra porcos
disparatados. A tristeza vem na frente. Disse Tomazelli (2003, p. 73): “Sempre triste,
sempre com pouca esperança e com muita reserva, segue o psicanalista em sua jornada
de conhecedor miúdo, construindo no garimpo de objetos emocionais da mente alguma
forma para observar”, já que só faz leitura na posteridade do acontecido, “no seu
momento máximo de luto”, não obstante seja “que toda ciência investiga o cadáver de
uma experiência emocional”, escondendo “o medo do vivo e do luto na formulação
científica”. Educar (ensinar e conhecer, isto é, cienciar), analisar e reinar se arruínam
borromeanamente. Ou, por avesso, somente quando desiste de um os outros são
possíveis? Fato é que se pode imputar a todos os campos o tripé tripeiro. Tudo e cada
verdade traz a tripartição em potencial leitura. Cada verbo e versão, cada verme e
vergalho, cada veredicto e vereda, cada veraneio e verão, cada verve e cada vertente,
cada verme e cada verniz, tudo isso em uma sanha explicacionista na qual sou coveiro
de mim mesmo, e que faço sem me dar a conta, cobrada e paga sempre ao afinal, desde
que consiga, ufa e enfim, afinalar. Corre sempre o risco de nascer o humano imortal
para sonegar toda a impostura.
Freud queria aplicar créditos para colher porfundos. Ex-aplicação, com retorno
garantidor. Feira das veleidades e mercado de pulgas. Vestimenta enrolada como
alíngua de iguanoronte. Camaleão, lula e raposa-do-ártico tão mais quentes nas
sequências infinitas de identificações e projeções seguidas. Fenótipo estendido?
Certamente o cão faz parte do humano, parte do Self-service do mobiliário onírico da
realidade (A Batalha de Mylae, em 260 a.C., fora uma disputa pelo controle da ilha da
Sicília e pelas rotas comerciais do Mar Tirreno. Luta travada entre a cidade africana de
Cartago e a cidade europeia de Roma, saudosas guerras púnicas – uma galera com três
ou cinco remos podia carregar até 250 remadores, 50 marinheiros e 100 soldados):
Tu que estiveste comigo nas galeras de Mylae!
O cadáver que plantaste ano passado em teu jardim
Já começou a brotar? Dará flores este ano?
Ou foi a imprevista geada que o perturbou em seu [leito?
Mantém o Cão à distância, esse amigo do homem,
Ou ele virá com suas unhas outra vez desenterra-lo!
Tu! Hypocrite lecteur! – mon semblable -, mom [frère!
(ELIOT, 2014, p. 109).
Autocrítica é fundamental. Nos falta muito. Já Pau no Joelho teria dito, ainda,
coisa como ‘Guardian diz que insultei leitores de Ulysses. E meus leitores, insultados
todos estes anos?’, indignadamente. Há muito razão nisso tudo, sempre sendo útil
utilizá-la para se enlouquecer-se. E, azar, você é o que você come, isto é, lê, isto é,
critica. Freud? É, “existe uma crítica psicanalítica de obediência freudiana”
(BARTHES, 2013, p. 158). E é verossímil que “o papel do crítico contemporâneo é,
portanto, tradicional”, havendo que se “recordar à crítica sua função tradicional, e não
inventar para ela alguma nova função que esteja na moda”, tal como algum vislumbre
ocidental pudesse executar, como se se tratasse de designar, aí, “um campo dentro do
qual se congregam muitas preocupações distintas: semiótica, psicanálise, estudos
cinematográficos, teoria cultural, representatividade sexual, textos populares e, sem
dúvida, a convencional apreciação dos textos mais antigos” (EAGLETON, 1991, p.
115). Saber disciplinar, foucaultianamente, vigilante e punitivo, sempre. Saberes
constituídos, saberes da experiência e saberes da Alteridade, disse Cifali:
A complexidade do ofício acarreta mais de uma armadilha, como a de
uma totalidade por justaposição das “visões” disciplinares: sociologia,
história, psicologia cognitiva, psicanálise, didática, etc. Como afirma
Morin, a divisão das disciplinas científicas é necessária, assim como é
necessária a vontade de superar suas clivagens, trabalhando nos
interstícios, desconfiando das hegemonias (CIFALI, 2001, p. 109).
Complementando a autora que “o procedimento clínico não pertence a uma
única disciplina, nem é um terreno específico” (pedagógico é clínico também), sendo
que, ainda, “o desafio das ciências humanas seria, como escreveu o sociólogo Norbert
Elias (1993), ‘desafetizar’ um pouco nossa relação com o outro e consigo” (CIFALI,
2001, p. 102). Dialética de tirar o sujeito, depois voltar com ele, depois desafetizar, e
depois? Nada de dialética para além de diálogo. Menos síntese que é esfíncter. Menos
que nada, em geral. Processo civilizatório haveria de não ser saber vigiar e saber punir.
Outromais, arrisquemos: seria a Psicanálise Aplicada de Freud apenas um
correlato da ideia de Interdisciplinaridade pedagógica? Transdisciplinaridade abolindo
limites campestres? Por grosseria, disciplinaridade fora este modo de agregar
conhecimentos e procedimentos de conhecer com características aproximáveis. Em
multidisciplinaridade ou pluridisciplinaridade a separação é mantida, mas utilizada em
proveito conjugado, do tipo ‘faça a sua parte que eu faço a minha, cada um no seu
quadrado’, e tudo segue, como num time de futebol americano em que atacante é
atacante e defensor é defensor, ou como abordagens comuns em hospitais ou de
atendimento à saúde, onde o fisioterapeuta faz o seu sem falar com o farmacêutico que,
por sua vez, nunca nem viu o médico e, apesar do enfermeiro conhecer a todos, apenas
administra o contato, por vezes convocando o psicólogo, mas, enfim, valendo o
recuperar do doente que também deve possuir uma cartomante, um professor de libras e
um cachorro (o exemplo de disciplinas de escola divididas e que não se conversam é
bom também: matemática, português, história, biologia, etc., professor entra e sai na
mesma sala, mas um não fala com o outro). Em interdisciplinaridade já haveria que
haver diálogo imediato, com apropriação conjugada dos ‘conheceres’, isto é, coesão ou
busca por ela, talvez justamente em postura distinta da mera multidiversidade, por
exemplo, um perito criminal que necessitará dos conhecimentos da química conjugados
aos da biologia e do direito na apreciação de um cenário de crime: por mais que cada
disciplina tenha a sua contribuição, o caminhar do processo necessitará do olhar e da
conversa, compilando-se e montando-se uma peça única mais ou menos indivisível, na
medida em que separada não funciona (o todo é mais do que a soma das partes). Gostar-
se-ia de uma transdisciplinaridade que abolisse a segmentação disciplinar, com a
diversidade de saberes desenquadrada de hierarquia, num para além do que se produz
por disciplina, integrado holismo sempre complicado pelo vale tudo que se precipita,
ainda que belo denunciador dos limites e anomalias do sistema de saber vigiar e saber
punir – o biopsicossocial ainda é pouco para o complexo esforço cooperativo e
sinérgico exigidos (embora hajam os temas que facilmente atravessam qualquer
disciplina, como ‘sustentabilidade’ que pode ser atingida desde diversos olhares
disciplinares concomitantemente, caleidoscopicamente agindo).
Freud mantém separação disciplinar, mas busca interação, quando não invasão.
Quer que conhecimentos gerados num campo sejam aproveitados em outro, mais
especificamente, que os conhecimentos psicanalíticos – pois acreditou na existência
deles quando sugeria aplicar, se esquecendo do ‘saber transferencial’ (CIFALI, 1992) –
sejam apropriadamente utilizados noutros campos, para o proveito destes outros
campos. Ele não desenvolveu bem a apropriação que a psicanálise faz de conhecimentos
diversos, embora fizesse uso disso – paradigmaticamente, no modo como mitou. Nunca
fez um uso imediato e incólume, ao contrário, sempre deslendo e deturpando, de Darwin
a Goethe, de Charcot a Da Vinci. Conhecimentos, ali inseridos, nessa sopa analítica,
adquiriam qualidades distintas das que possuíam em campos de origem. Mas Freud
descreveu pouco a transformação que o psicanalítico teria ao incorporar-se para além –
justo ponto crucial de observância de Cifali (1992). Criticamente, cobria com a sua
linguagem, numa profunda desespistemologização não transdisciplinar – ainda que a
sua retórica nunca tenha sido outra que a interdisciplinar (e a prática tenha sido mesma a
de a psicanálise vir na frente). Outrossim, Lacan (2003) não errou em dizer que o seu
significante não era o da linguística, ou que não fazia filosofia, mas psicanálise – falava
com psicanalistas –, sendo a sua ‘lógica’ não a mesma que a dos lógicos e lógicas.
Benjamin contra o fascismo? “O crítico, enquanto flâneur ou bricoleur, perambulando
sem compromisso por paisagens sociais diversas, nas quais está sempre à vontade”
(EAGLETON, 1991, p. 14), mais escutando (GURSKI, 2019) que ajuizando veredictos
que tendem ao imortal. Psicanalista não estratifica saber, não estratifica linguagem:
tamanha é sua aplicação, seco e armadurado que sabe o conhecimento, esquecido
esqueleto no jardim. Finda a vida a pós e a morte.
REFERÊNCIAS