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FACULDADE DE CIÊNCIAS APLICADAS DR.

LEÃO SAMPAIO

INSTITUTO BRASILEIRO DE ACUPUNTURA E PSICOLOGIA

PRINCÍPIOS DA TRADIÇÃO TAOÍSTA FUNDAMENTAIS PARA A

MEDICINA TRADICIONAL CHINESA

Wilson Roberto Emiliani Júnior

São Paulo

2007
WILSON ROBERTO EMILIANI JÚNIOR

PRINCÍPIOS DA TRADIÇÃO TAOÍSTA FUNDAMENTAIS PARA A

MEDICINA TRADICIONAL CHINESA

Monografia apresentada à Faculdade de Ciências


Aplicadas Dr. Leão Sampaio e ao Instituto Brasileiro de
Acupuntura e Psicologia para a conclusão do curso Latu
Sensu “Ciências Clássicas Chinesas”

Orientador: Ms Orley Dulcetti Júnior

São Paulo

2007
Agradecimentos

Ao mestre, professor e amigo Orley pela oportunidade, disponibilidade,

atenção e carinho.

À professora e amiga Silvana pelo companheirismo e aconselhamento.

Aos colegas e amigos de curso Élson, Mercedes, Mauro, Mariela, Karen,

Karla, Rosane, Baldan, Fábio, Ruas, Marcelo, Malulei e Lylian por me acolherem e

me ajudarem no que me era vago.

A Luciana pelo amor nos bons e maus momentos.

A meus pais pela retaguarda e base sempre estável e disponível.

A Estela pela dedicação, atenção e paciência.

Aos que eu, porventura, possa ter esquecido.

Aos que não é possível nomear...


Dedicatória

À Luciana...
Resumo

PRINCÍPIOS DA TRADIÇÃO TAOÍSTA FUNDAMENTAIS PARA A


MEDICINA TRADICIONALCHINESA

Wilson Roberto Emiliani Júnior

A Medicina Tradicional Chinesa (MTC) possui uma origem milenar ligada


diretamente ao pensamento chinês antigo. No mundo ocidental, ao poucos vai
passando de medicina alternativa para prática reconhecida, em especial a
modalidade da acupuntura. Entretanto, esse crescimento de popularidade e
cientificismo faz com que a MTC se afaste de sua origem na Tradição chinesa,
tornando-a, como se diz, híbrida, até pelos próprios chineses da atualidade. Esse
estudo objetiva demonstrar a importância da MTC embasada na Tradição chinesa
(taoísta), através de autores tradicionais e dos próprios textos clássicos traduzidos.
Essa importância reside no fato de que, (1) A MTC surgiu da Tradição (distinguindo-
a de doutrina, filosofia, história, religião, superstição, cultura, folclore e ciência
moderna) e esta possui um modo especial de “pensar”, o qual é metafísico, bem
diferente do modo de pensar puramente racionalista enfatizado desde a infância, em
especial no ocidente; (2) os símbolos e conceitos tradicionais e metafísicos
presentes na MTC são os mesmos do taoísmo e compreendê-los racionalmente e
intuitivamente (de forma tradicional) é essencial para o entendimento da fisiologia e
fisiopatologia energética da MTC, tanto no que diz respeito aos textos clássicos
como na própria sintomatologia; e (3) os ensinamentos contidos na MTC visam não
só a cura e manutenção da saúde do paciente, mas também do médico tradicional,
uma vez que não cria uma dicotomia na relação médico-doente. Assim, quando
estuda e compreende a Tradição, o médico tradicional já está na Mutação que o leva
o mais próximo do Caminho do Centro, de viver em harmonia com o Todo. Essa
Transformação compreende a valorização da intuição (supra-racional), o
desobscurecimento da Virtude (De), o enraizamento no Shen e a postura do ”Não-
Agir” (Wu Wei). Desta forma, o médico tradicional, quando estuda e pratica a MTC
embasada na Tradição, chega na eficácia não só no atendimento ao paciente, mas
no seu próprio modo de viver.

Palavras chave: Medicina Tradicional Chinesa; Taoísmo; Tradição; Metafísica;


Transformação.
Abstract

PRINCIPLES OF TAOIST TRADITION FUNDAMENTAL TO THE


CHINESE TRADITIONAL MEDICINE

Wilson Roberto Emiliani Júnior

The Chinese Traditional Medicine (CTM) has a millenary beginning directly


linked to ancient Chinese thought. In Occidental world, slowly it goes turning of
alternative medicine to recognized medical practices, especially acupuncture
modality. Although, this growing of popularity and scientifically makes the CTM move
away from its origin in Chinese Tradition, becoming itself, like it says, hybrid, even by
the Chineses at present. This study aims to demonstrate importance of CTM based
on Chinese Tradition (taoist), through traditional authors and the traduced classical
texts. That importance is: (1) CTM arises from Tradition (different of doctrine,
philosophy, history, religion, superstition, culture, folklore and modern science) and
this one has a unique way to ”think”, that is metaphysic, very different of that purely
rationalist emphasized since childhood, specially in occident; (2) symbols and
traditional and metaphysical concepts presents in CTM are the same of taoism and
compressing them rationally and intuitively (in traditional form) is essential to
understand CTM´s energetic physiology and physiopatology, so in the classical texts
as in sintomatology; and (3) the knowledge of CTM aims not just the cure and
keeping health of patient, but also the traditional doctor, because it does not create a
dichotomy in the relationship doctor-patient. So, when he studies and understands
the Tradition, traditional doctor is already in the Mutation that brings him closer to the
Way of Center, to living in harmony with the Whole. Valorizing intuition (supra-
rational), des-obscuring Virtue (De), rooting in Shen and getting posture of ”Non-Act”
(Wu Wei) are some aspects of that Transformation. This way, traditional doctor, when
studies and practices CTM based in Tradition, gets at the efficacy, not just in care of
patient, but in your own way of living.

Key words: Chinese Traditional Medicine; Taoism; Tradition; Metaphysics;


Transformation.
Sumário

1. Introdução 10

1.1 Motivação 10

1.2 Justificativa 10

2. Revisão De Literatura 15

2.1 Primeira Parte: Sabedoria Tradicional, Base Metafísica Da


Medicina Tradicional Chinesa E Potencializadora De Transformações 15

2.1.1 Tradição, Metafísica E Ciência: O Modo De Pensar 15


Tradicional E Moderno

2.1.2 A Tradição Taoísta: A Tradição Dos Chineses 23


2.1.2.1 O Tao: Princípios Da Tradição Chinesa 29

2.1.3 Medicina Tradicional Chinesa E Transformação 46

2.2. Segunda Parte: Transformações Que Proporcionam Eficácia Na


Prática Da Medicina Tradicional Chinesa 58

2.2.1 A Intuição 58

2.2.2 A Virtude (De) 63

2.2.3 Enraizamento Nos Espíritos 67


2.2.3.1 Os Espíritos (Shen) 67
2.2.3.2 Os Sopros (Qi) 75
2.2.3.3 As Essências (Jing) 78
2.2.3.4 Os Três Tesouros (San Bao) 82

2.2.4 O “Não-Agir” (Wu Wei) 87

3. Conclusões 91

4. Referências Bibliográficas 97

5. Referências Bibliográficas Chinesas 100


Lista de Figuras

1. O círculo e o quadrado representando, respectivamente, o Céu e a


Terra. 35

2. Moeda chinesa antiga simbolizando o Céu e a Terra, inscrita ainda


com pictogramas. 35

3. O Tai Ji, a Grande Unidade. 37

4. A cruz da Tradição chinesa. 42

5. Os cinco movimentos ou elementos (pentagrama) 43

6. O ideograma Zhong, o Centro ou Meio. 44

7. O ideograma Hua, a Transformação. 51

8. O ideograma De, a Virtude. 64

Citação
“... as volúveis opiniões dos homens já não mais me
impressionam; os pensamentos dos velhos mestres
são mais valiosos para mim que os preconceitos
filosóficos da mente ocidental”

C. G. Jung (1949).
10

1. INTRODUÇÃO

1.1 MOTIVAÇÃO

Atualmente, a Medicina Tradicional Chinesa (MTC), em especial a


modalidade da acupuntura, se difundi de forma rápida por todo o chamado “mundo
ocidental”. Sua forma peculiar, não só de diagnosticar e tratar, mas, principalmente,
de entender o ser humano, a torna ao mesmo tempo fascinante e perturbadora.
Isso é de fato verdadeiro quando se parte do pressuposto de que o modo
puramente racional adotado como referência desde o período do Renascimento, e
base do método científico atual, é a única e real fonte de conhecimento.
Por outro lado o modo de pensar, não apenas o ser humano, mas todo o
Universo, na MTC, divergente com o atual, abrange aspectos tanto objetivos como
subjetivos da vivência, dando lugar especial ao que se denomina intuição supra
racional (Guenón, 1981, p.23-25).
A base da MTC é um tipo de pensamento próprio de conceber o Cosmo.
Portanto, a maneira da MTC de enxergar o Homem também o será. A dúvida é se a
eficácia nas práticas de medicina tradicional dos chineses permanece a mesma, se
sua base de entendimento for a do “mundo ocidental”.
Neste estudo, busca-se compreender se a base tradicional na medicina
chinesa é realmente importante (e essencial) para sua eficácia.

1.2 JUSTIFICATIVA

O pensamento chinês tradicional remonta há milênios, podendo-se dizer que


a Tradição chinesa, propriamente dita, teve origem há aproximadamente 3700 anos
antes da Era Cristã, curiosamente, coincidente com a origem da Era Hebraica. A
história da China inicia-se propriamente com Fo Hi (Fu Xi) (10000 – 6000 a.C.), seu
primeiro Imperador, embora este nome sirva, em realidade, para designar um
período de vários séculos e um conjunto de conhecimentos que são a essência
mesma da Tradição chinesa. É atribuído a ele o Yi Jing (I Ching), o “Livro das
Mutações” (Guenón, 1973, p.50-51).
Este “modo de pensar”, comum a diversas sociedades antigas, de origens
milenares e bases bastante diversas do modo de pensar científico atual é chamado
11

de Tradição, e na China de Tradição chinesa. Alguns autores defendem que a


Tradição chinesa é a taoísta englobando-a como todo o conjunto de conhecimento
tradicional (Dulcetti Júnior, 2004, p.19) e outros que o taoísmo limita-se a ser apenas
uma das Escolas ou Seitas, surgidas no século VI a.C., época da sistematização do
conhecimento clássico, assim como o confucionismo (Granet, 2004, p.190). Adiante
ficará mais claro o por quê de se utilizar, neste trabalho, a primeira hipótese.
A MTC não deixa de ser, então, uma especificação deste conhecimento
milenar chinês, ou taoísmo. Em relação a ela, um dos documentos mais antigos que
se possui é o Nei Jing Su Wen, atribuído a Huang Di (o Imperador Amarelo) escrito
há 2797 anos a.C. (Lavier, 1981, p.5; Dulcetti Junior, 2001, p.25).
A Tradição – concebida numa época remota, de Homens sábios e em
harmonia com o cosmo – com a deterioração da consciência espiritual dos séculos
recentes, mesmo no próprio Oriente, encontra-se confinada a poucos redutos
espalhados, e às vezes até mesmo escondidos, pelo mundo.
A MTC foi primeiro introduzida na cultura Ocidental pelos padres jesuítas
franceses desde o século XVII, após retornarem de missões científicas em Pequim,
a mando de Luis XIV. É atribuído ao reverendo padre Harvieu (1671) o neologismo
“acupuntura” que quer dizer acus (agulha) + punctura (picada), no primeiro tratado
de acupuntura ocidental “Os Segredos da Medicina dos Chineses Constituindo no
Perfeito Conhecimento da Pulsação, Enviados da China por um Francês – Homem
de Grande Mérito”. Entretanto, até o século XIX, apesar de várias publicações
européias a respeito, a MTC havia ganhado pouco interesse pelos ocidentais
(Dulcetti Junior, 2001, p.28).
Apenas no início do século XX este conhecimento se tornou mais bem
difundido no Ocidente através da França, em especial, a modalidade da acupuntura,
por mérito de George Soullié de Morant (1878-1955). Sinólogo, e não médico
(porém, médico tradicional), traduziu inúmeros textos clássicos chineses,
interpretando seus conceitos e ideogramas, colocando-os de forma aproximada da
medicina ocidental. Por exemplo, foi o introdutor do termo “meridiano” que designa
os “condutores de energia vital” e organizou a relação alfa-numérica dos pontos,
sendo este último fato tão importante que até os próprios chineses atualmente
ensinam a acupuntura desta maneira. Não se limitando aí, procurou difundi-la o que
levou a ser considerado um dos “primeiros” mestres da terapêutica chinesa no
12

ocidente, estando entre seus primeiros discípulos o Dr. Paul Ferreyrolles (Lutaif,
2005, p.10-48).
Além disso, desenvolveu uma fonética própria do idioma chinês para
transmitir o conhecimento aos franceses, a qual é seguida pela maioria dos
acupunturistas ocidentais, realizou as primeiras pesquisas científicas sobre a
eletricidade da pele nos pontos de acupuntura, em co-autoria com Dr. Niboyet e
inventou o disparador de agulhas (Dulcetti Junior, 2001, p.29).
Segundo Lavier (1981, p.6), tratando-se de medicina chinesa, o ocidente
sofrendo pela falta de acesso direto às fontes, e por traduções imperfeitas e até
mesmo erradas de textos chineses, a partir de 1930, inicia aos poucos sua
“reconstrução” – pela invenção de novos instrumentos e novas técnicas – por
autores sem nenhum conhecimento do idioma chinês, levando-a a sua conseqüente
deturpação e às vezes até a sua incompreensão. Hoje, na moda, classifica-se a
medicina chinesa de medicina esotérica sob um “aspecto pseudofolclórico de
orientalismo barato”.
Hoje, a acupuntura no Ocidente, aos poucos vai se transformando de
Medicina Alternativa, Exótica ou Esotérica para prática corriqueira dentro do
universo médico alopata, conforme vai se comprovando cientificamente (Lin et. al,
2006). Tanto é realidade que existe uma forte corrente almejando que sua prática se
torne especialidade exclusiva da classe médica. Em alguns países da Europa, a
exceção de Inglaterra, Alemanha, Dinamarca, Países Baixos, Finlândia e Noruega
onde já é oficializada a sua prática por médicos e não-médicos, a classe médica
reivindica a exclusividade para médicos, dentistas e veterinários (Dulcetti Júnior,
2001, p.31).
No Brasil, não é diferente, embora já haja resolução em conselhos de classe,
oficializando sua prática por biomédicos, educadores físicos, enfermeiros,
farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, psicólogos e terapeutas
ocupacionais.
A título de curiosidade, antes de ser tida como especialidade médica em
1995, o Conselho Federal de Medicina havia declarado em 1972 que a acupuntura
não era prática médica (Dulcetti Junior, 2001, p.32).
Alguns autores justificam a prática acupuntura exclusiva para médicos
baseados na capacidade exclusiva de diagnosticar. Mas estes mesmos autores
reconhecem que a MTC possui uma fisiopatologia peculiar e o exame é bastante
13

distinto daquele praticado pela medicina ocidental atual (Lin et. al, 2006) embora
subjuguem o conhecimento tradicional substituindo-o pela explicação físico-química
dos efeitos da acupuntura.
A medicina ocidental moderna, procurando se legitimar socialmente (e excluir
tudo o mais que não interessa), aproximou-se do discurso científico, fonte clara de
poder em nossa sociedade. Assim, a medicina científica, ou a “ciência médica”
permanece como norma institucional e como modelo ideal, e tudo mais que a
contraria (ou simplesmente não a segue como regra, por ser subjetivo, por exemplo)
é tido como curandeirismo, sendo posto de lado, até mesmo na ordem jurídica,
sempre em nome da “Ciência”. A argumentação é substituída pela autoridade dos
cientistas (Camargo Júnior, 2003, p.55, 63 e 77),
A ciência moderna tem demonstrado, entretanto, de modo comprobatório,
alguns aspectos energéticos concebidos pela MTC, em especial na acupuntura,
embora, as experiências científicas se realizem hoje sob rígidos critérios
acadêmicos, de modo reducionista afastando a acupuntura, por exemplo, de sua
base filosófica original, transformando-a numa espécie de “terapia de agulhas” ou
“nova acupuntura ocidentalizada”, senão híbrida (Dulcetti Junior, 2001, p. 16).
Segundo Lutaif (2005, p.36), a acupuntura científica, ensinada para a comunidade
médica atual (inclui-se aqui para todos os profissionais da área da saúde), possui
uma abordagem mais sintomática, não tendo muito por objetivo o restabelecimento
da energia vital e a regulação dos meridianos.
Segundo Camargo Júnior (2003, p.107) a medicina atual, enraíza suas bases
de conhecimento na física clássica, generalista, mecanicista e analítica. Busca isolar
componentes discretos, reintegrando-os a posteriori em seus “mecanismos originais”
(mecanicista). O todo destes mecanismos é necessariamente dado pela soma das
partes (analítica) e eventuais inconsistências devem ser creditadas ao
desconhecimento de uma ou mais “peças”. Paradoxalmente, a medicina “atual”
absorve muito pouco – à exceção de alguns equipamentos hospitalares – dos
desenvolvimentos (não muito recentes) desta mesma física, como a teoria da
relatividade de Einstein, ou a teoria quântica de Plank.
E não é preciso muito para concluir que a física moderna, com ressalvas, está
muito mais próxima do conhecimento tradicional do que a física clássica.
Adverte-se que, embora os chineses tenham estabelecido primariamente um
modelo energético qualitativo, secundarizando seu valor quantitativo, nada impede
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que sejam realizadas pesquisas científicas e verificações quantitativas deste modelo


oriental, à maneira ocidental. O que não se deve é ocidentalizar ou hibridizar a MTC,
tentar entendê-la sob a ótica ocidental (Dulcetti Junior, 2001, p.38). É o
conhecimento Yin e o conhecimento Yang os quais devem se complementar.
Por esta difusão das práticas médicas da Tradição Chinesa, e sua crescente
“cientificidade” e “tecnicidade”, a probabilidade de má interpretação e conseqüente
deturpação do conhecimento tradicional ali embutido aumenta consideravelmente.
Busca-se neste estudo, portanto, entender a importância de um retorno às
bases tradicionais para fundamentar a prática da MTC, hoje tão profanada e
corrompida pelo comodismo da facilidade do pensamento cartesiano dualista e por
interesses de minorias, patrocinadas pela vaidade e que a justificam pela busca da
verdade absoluta.
Assim, o objetivo deste trabalho é inicialmente demonstrar, ou não, a
importância da compreensão do conhecimento clássico chinês, o qual fundamenta a
MTC, segundo diversos autores ocidentais, sinólogos ou não, e segundo trechos dos
próprios textos clássicos chineses.
Em seguida, não se restringindo em só elucidar (parcialmente) alguns
conceitos taoístas fundamentais para o entendimento da fisiologia energética
chinesa, visa-se, principalmente, proporcionar uma visão deste mesmo mecanismo
no interior do próprio terapeuta, potencializador de sua inspiração e intuição, a fim
de que este, seguindo seus Princípios, se torne eficaz na conduta clínica e em sua
função própria que é a de viver bem.
15

2. REVISÃO DE LITERATURA

2.1 PRIMEIRA PARTE: SABEDORIA TRADICIONAL BASE DA MEDICINA


TRADICIONAL CHINESA E POTENCIALIZADORA DE TRANSFORMACÕES

2.1.1 TRADIÇÃO, METAFÍSICA E CIÊNCIA: Modo de pensar tradicional e


moderno

Antes de tudo, é preciso apresentar ao leitor, leigo ou não do assunto, o


conceito de “Tradição” associado à suas bases de conhecimento, e diferenciá-la de
Ciência, esta como freqüentemente é concebida no ocidente moderno.
O termo Tradição corresponde à “ciência” dos Ancestrais da humanidade,
(contrapondo-se à ciência racionalista do ocidente moderno). Possui metodologia
diferente da científica atual, utilizando-se dos meios para atingir o conhecimento e
transmitindo-os através de símbolos (visuais e sonoros), rituais e iniciações
(Guenón, 1951).
A Tradição não utiliza somente os meios discursivos e racionais para a
produção de conhecimento, mas também processos intuitivos. A experiência pessoal
e subjetiva é tão ou mais valorizada que a objetiva e generalista. Guenón (1993,
p.107) define o que é racional como aquilo que está sob o exercício das faculdades
individuais humanas.
O termo Tradição diz respeito ao conhecimento coletado pelos Antigos sobre
a natureza e além da natureza, baseado em sua observação e em indícios
presentes nela, levando a uma sabedoria transcendental (elevado, superior, anterior
à experiência, conhecimento que transpassa, ascende) através de processos de
elevação e atenção para aspectos subjetivos e pessoais da vivência.
Um caráter comum às doutrinas tradicionais é que todas elas contêm em si
mesmas a origem e as possibilidades de todos os desenvolvimentos concebíveis,
compreendidos em uma infinidade variada de ciências, (muitas as quais o ocidente
não faz a menor idéia), e nas adaptações que podem ser requeridas pelas
circunstâncias ulteriores (Guenón, 1973, p.52).
O conhecimento comum e básico para todas as ciências das sociedades
tradicionais é a metafísica. Etimologicamente, metafísica significa “além da física”.
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Física, em seu sentido mais amplo, para os antigos, é a ciência da natureza, daquilo
que pertence ao seu domínio. Assim, a metafísica é o estudo do que está além
disso, portanto não é um conhecimento humano, racional. Por isso, não se trata de
ciência (como concebido no ocidente moderno) nem filosofia, estes aquém da
metafísica. É o conhecimento por excelência, o único absolutamente digno deste
nome, não se tratando apenas de simples abstrações, mas o conhecimento da
verdade tal qual é (Guenón, 1981, p.14-23).
A metafísica costuma ser negada e ignorada por alguns e até considerada
produto da imaginação por outros. Para a Tradição é o conhecimento dos princípios,
significando “além da física”, ou “por de trás da física”. Física no sentido de natureza
e da essência das coisas ou substâncias. Metafísica então é o além da substância,
de toda natureza, que é material, imaterial, humano, divino etc. (Gilles, 1988, p.34-
35).
Trata-se do conhecimento da união, da interação sujeito e objeto,
denominando-se assim de conhecimento imediato, intuitivo, cognitivo e espiritual ao
mesmo tempo (Dulcetti Junior & Sichero 2004, p.46). A Tradição será distinguida de
religião no decurso no texto.
A metafísica é um conhecimento supra-racional e intuitivo. Porém, não
intuição infra-racional (infra-cortical), denominada de sensível, a qual apreende
apenas o mundo da mudança e do devir, a natureza ou uma ínfima parte dela. A
intuição que interessa à metafísica, geralmente, confundida com a anterior, é a
intuição intelectual, além da razão, no domínio dos princípios eternos e imutáveis.
Este intelecto transcendente não pode ser considerado uma faculdade individual,
pois, não está nas possibilidades do indivíduo ultrapassar seus próprios limites. A
razão é própria da humanidade, mas aquilo que está além é verdadeiramente “não-
humano” (Guenón, 1981, p.23-25).
É desta forma que o homem vai atingir tal conhecimento, não como humano
que é um de seus estados, mas como algo mais, quando toma consciência efetiva
de estados supra-individuais, absolutamente independente de qualquer
manifestação transitória, o “Si Mesmo”, ligado ao centro principial (Guenón, 1981,
p.23-25). Principial é um neologismo deste autor para designar a ordem dos
princípios eternos e imutáveis. A distinção entre o “Eu” e o “Si Mesmo” será
abordada mais adiante.
17

Adiante também, será discursado a respeito desta concepção na Tradição


chinesa. No decorrer do texto, será retomado também que o conhecimento por si só,
que é o que busca a metafísica foge ao entendimento literal e só pode ser
vivenciado ou concebido.
O conhecimento tradicional não é exclusivo ao oriente. No ocidente, este
conhecimento já esteve presente, uma vez que ele é possível a todo ser, se se
entender que todos possuem a mesma origem metafísica. Ou, ainda mais
condizente, não há uma origem humana deste conhecimento, suscetível de ser
determinada no tempo. Ele é eterno, por isso, sempre houve seres que puderam
conhecê-lo real e totalmente. Crê-se, portanto, que já existiram doutrinas puramente
metafísicas e completas, na Antigüidade e na Idade Média, para uso de uma elite
(Guenón, 1981, p.21, 26 e 42-43).
Alguns pensadores, entretanto, embora fazendo metafísica, a conceberam de
forma incompleta, imperfeita. A exemplo, Aristóteles que encarava a metafísica
como o estudo do ser enquanto ser, identificando-a assim a ontologia, tomando a
parte pelo todo. É preciso ir além do ser, é aí que está aquilo que realmente importa
(Guenón, 1981, p.21, 26 e 42-43).
À diferença da ciência ocidental, na Tradição não se comprovam os fatos e
princípios “cientificamente”, apenas se demonstram logicamente. Comprovam-se
apenas seus princípios menores, suas manifestações – a exemplo da comprovação
da eficácia de sua medicina – não seus princípios maiores.
Granet (2004, p. 26-27) afirma que a explicação lógica dos princípios
encontra-se em sua aplicação social. Primeiramente de forma arbitrária, a
organização social serviu de modelo para a ordenação do espírito, “num esforço
perseverante de adaptação experimental”. Ou seja, ainda que não haja
comprovação experimental dos princípios, não se pode dizer que sejam mal
fundamentados, já que têm como modelo a organização social eficaz.
Guenón (1993, p.48) já nos adverte sobre o cuidado que se deve ter com
interpretações “sociológicas” dos conceitos e ensinamentos taoístas, a exemplo
deste autor, o qual inverte a relação real das coisas, já que não é a ordem cósmica
que foi concebida sobra o modelo das instituições sociais, e sim o contrário, estas
foram estabelecidas em correspondência com a ordem cósmica.
É provável que Guenón baseie esta conclusão em afirmações de Granet, tais
como:
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“Há muito se observou que toda sabedoria chinesa tem fins políticos.
Especifiquemos isso, dizendo que todas as Seitas ou Escolas se
propuseram realizar um arranjo da vida e das atividades humanas,
tomadas em sua totalidade: ou seja, na totalidade de seus
prolongamentos, não apenas sociais, mas cósmicos” (Granet, 2004,
p.20).

Quando fala das “Seitas ou Escolas”, refere-se às que se formaram na época


dos Reinos Combatentes, as quais sistematizaram, através da escrita, o saber
chinês, há tempos transmitidos por via oral. Se estes conhecimentos são anteriores
a estas escolas, como generalizar “toda a sabedoria chinesa” referindo-se a apenas
este período?
Retomando a questão da comprovação “científica” ou experimental dos
saberes da Tradição, Guenón (1981, p.20) pensa de outra forma: muitos podem
questionar sobre a ausência de provas a respeito dos estudos metafísicos, comuns
às Tradições. Explica que é estranho alguém buscar provas da possibilidade de um
conhecimento, em vez de inteirar-se desse conhecimento por si mesmo, fazendo o
trabalho necessário para adquiri-lo. Quem possui esse conhecimento não se
interessa por discussões deste cunho. “O fato de substituir a ‘teoria do
conhecimento’ ao conhecimento mesmo é talvez a mais bela declaração de
impotência da filosofia moderna”.
Como Eyssalet (2003, p.61) afirma: “O que chamamos de saber é apenas
meio saber, ou seja, uma ‘ignorância instruída’”.
A distinção fundamental entre o modo de proceder moderno e o pensamento
tradicional é que no primeiro, os diferentes conhecimentos são resultados de
experimentação objetiva que conduzem a hipóteses de caráter individual ou
particular. No outro, todo conhecimento infere-se do Conhecimento Principial, numa
“inspiração” de origem divina, transmitido ao homem pela Tradição, veículo entre
uma ordem supra humana, universal e o homem. Em todas as civilizações antigas
busca-se esse reencontro com o Princípio. A diversidade de filosofias e teorias
dentro da civilização moderna se explica por esta falta de princípios, culminando em
polêmicas sem fim onde cada um defende o aspecto que lhe privilegia, ao invés de
permitir uma síntese unificante sobre a realidade (Gilles, 1988, p.33-34).
19

Atualmente, há um crescente distanciamento entre quem faz o discurso


corrente sobre a realidade, relato muitas vezes esquemático, normalizador, ou
ativista, e essa mesma realidade, entremeada de inúmeras nuanças, tanto mais
determinantes quanto sutis para a vida, isto é, “vagas no que dela se pode dizer e
extraordinariamente precisas no que se pode viver...”. É o preço que se paga por
tentar explicar precisamente as qualidades da experiência vivida individual,
chegando-se ao paradoxo de que quanto mais se adquire a precisão dos dicionários,
minimizando e ocultando a vida com fórmulas impessoais, limitadas e angustiantes,
menos as palavras servem para qualificar a vida em si e seus movimentos (Eyssalet,
2003, p.XXXVIII).
Os Grandes Mestres da Antigüidade sabiam que nomear o que se vive
deveria, ao contrário, nos ajudar a conhecer mais e “tornar tolerável a angústia de
viver”. Por isso, reservavam às “Grandes Palavras” o aspecto de imprecisão e o
poder de adaptação às diferentes circunstâncias. As primeiras palavras escritas da
Antigüidade, pois, são os pictogramas ou os ideogramas, símbolos que possuem a
“força intuitiva da imagem” (Eyssalet, 2003, p.XXXVIII). Estes símbolos, aliados a
outras formas de transmissão, são essenciais para a perpetuação do conhecimento
tradicional entre as gerações.
A História, assim como a Ciência atual, baseada na metodologia científica,
apóia-se em elementos concretos e observáveis, transmite os fatos reais procurando
reconstituir os encadeamentos. Tenta ser exata. Na Tradição, a via essencial de
transmissão é a oral, sendo confiada à escrita apenas após longos períodos. Porém,
se os fatos e conceitos tradicionais fossem transmitidos de geração em geração da
forma que é feita pela História, o conhecimento se perderia (Larré, 2004, p.20-21).
Por isso, na Tradição utiliza-se geralmente os meios da alegoria e do símbolo
(lendas e mitos que sintetizam os conhecimentos provenientes do passado) os quais
“tocam o ser em seu próprio âmago e suscitam em sua consciência impressões e
idéias inspiradoras”, sendo assim um meio de transmissão que comunica o espírito
das coisas e não as coisas em seus detalhes. A Tradição deixa assim uma parte
considerável à interpretação humana, desta forma, mesmo à disposição de todos,
ela permanece, no que diz respeito à compreensão, inacessível à grande maioria
(Larré, 2004, p.20-21).
É essa grande maioria que, muitas vezes, subjuga o conhecimento
tradicional, taxando-o de folclore, superstição, misticismo, religião etc.
20

Na própria escrita, por exemplo. Granet (2004, p.36-37) afirma que no idioma
chinês antigo (tradicional) falado (utilizado pela Tradição) não importa que duas
expressões possam ser confundidas por seres pronunciadas de forma semelhante.
Cada nome possui uma “essência individual” a qual é convocada para a realidade
quando é pronunciada. A fala, associada à mímica, possui o poder particular de
sugestão. Não exprimiam apenas idéias, mas vinham embutidas de um poder afetivo
e prático.
O objeto de estudo na Tradição é a Realidade Absoluta anterior à existência
do cosmo, a qual absolutamente não é produto de hipóteses e teorias científicas que
se constroem apenas pela experimentação no domínio sensível (sensorial) e que se
modifica em função das observações. O conhecimento metafísico é eterno, imediato,
fusional, aparentemente inacessível e se estende a todas as sociedades
tradicionais. Fusional é definido como o conhecimento sem diferenciação entre
sujeito e objeto, ao contrário da dualidade do conhecimento científico objetivo
(Gilles, 1988, p.37).
A Tradição chinesa não propõe exatamente um saber, no sentido
contemporâneo do termo, mas um “acionamento global e sem ruptura” de tudo que
se pressente representando um sistema aberto de completa adaptabilidade, o qual
ajuda, aliás, a compreender também os próprios conhecimentos tecnicistas
contemporâneos:

“Os pontos de apoio, as palavras chave não se referem


essencialmente a objetos e fatos externos, mas a qualidades
específicas da experiência humana, das famílias de impressões
associadas a lugares do corpo, a tempos fortes, a momentos
alternados que existem em todos nós desde os nossos mais antigos
ancestrais e cujo conteúdo vivo, diferente a cada vez, deve ser, por
cada um, reconsiderado” (Eyssalet, 2003, p.XXXII).

Uma sociedade ou civilização é dita tradicional quando segue a Tradição.


Guenón (1981, p.15) vai além, dizendo que uma civilização que não segue tal base,
onde há o predomínio da razão e da lógica sobre os princípios transcendentais, e
onde o homem sai do centro da importância e entram outros interesses, como o
material, é uma civilização anormal e excepcional. A civilização ocidental moderna
21

se enquadra assim neste parâmetro, muitas vezes nem suspeitando da existência


de tal conhecimento. (Guenón, 1981, p.46-47).
Segundo Larré (2004, p.19), as Tradições de cada povo são apenas o
aspecto mais externo, a aparência visível de um centro invisível que é sua essência.
Essa essência, ou coração local está em relação e harmonia com o “Grande
Coração” que é o que se chama de “Tradição Primordial”, ou seja, a origem ou a raiz
de todas as Tradições. Essa origem constitui-se de um enigma para a historiador ou
antropólogo que se baseia apenas em parâmetros demonstráveis, que se priva da
liberdade de pensamento que é a única que lhe permite penetrar no mundo das
Tradições.
De tempos em tempos, as civilizações tradicionais sofrem processos de
degeneração mais ou menos avançados. As formas e a aparência mantêm-se
tradicionais, mas sem seu conteúdo, seu interior, seu princípio original, às vezes
esquecido, às vezes perdido. Isso explica porque alguns costumes populares,
ligados à Tradição, existentes também no ocidente, são reduzidos pelo modernismo
a folclore (Gilles, 1988, p.15). Na religião, esta quase sempre ligada a dogmas, os
ritos e símbolos das Tradições estão presentes, porém sem a plena consciência de
seus significados – assim como nos costumes – porém de forma institucionalizada.
Por ser a base das Tradições um tipo de conhecimento que foge ao
convencional no ocidente moderno, é normal deduzir que, após anos de estudos
baseados no cientificismo, o qual ignora a metafísica verdadeira, um indivíduo que
inicia seu estudo em MTC necessita de um suporte básico para compreender, ainda
que parcialmente, algumas de suas práticas.

“Nos dias de hoje, em que florescem todos os tipos de saber,


conhecimentos práticos em todos os gêneros, explicações
mecânicas do Universo e o corpo cuja imagem é destilada desde a
tenra infância por uma ideologia fundamentalmente dualista, sobram
muito pouco espaço e ainda menos palavras para exprimir e
participar de uma vivência global de intuições, de experiências
discretas, sem a intermediação das interpretações oficiais de todas
as origens, as ortodoxas do corpo e da “matéria”, as que se tornaram
mais ou menos ortodoxas, do psiquismo” (Eyssalet, 2003, p.XXXIV).
22

Ressalta-se a importância do estudo da metafísica oriental (a metafísica, de


fato, é universal, pois a verdade é una, mas o autor adota esta caracterização, pois,
este conhecimento no ocidente encontra-se perdido e esquecido, mas no oriente
ainda é objeto de conhecimento efetivo) procurando-se enxergá-la como fazem os
orientais mesmo, e não se entregando a interpretações mais ou menos hipotéticas, e
às vezes inteiramente fantasistas (Guenón 1981, p.14, 25-26 e 28-29).
Alerta-se ainda que o conhecimento teórico, que ainda não é mais que um
conhecimento indireto e de certo modo simbólico e virtual, é apenas uma preparação
para o verdadeiro conhecimento. O conhecimento teórico é o único comunicável,
apesar de não o ser completamente. Assim, toda forma de exposição, por mais que
abrangente que seja, é apenas um meio de abordar o conhecimento real, que deve
ser realizado efetivamente. Para a metafísica, o que mais importa é que o ser
conheça aquilo que é, e de conhecê-lo de tal modo que ele mesmo seja, realmente e
efetivamente, tudo aquilo que conhece (Guenón 1981, p.14, 25-26 e 28-29).
23

2.1.2 TRADIÇÃO TAOÍSTA: A Tradição dos chineses

Pode-se afirmar que a Tradição chinesa é a taoísta, desde a época mais


remota de sua civilização (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.19). Neste estudo,
sempre que se apresenta o termo taoísmo, fala-se do taoísmo tradicional (referente
à Tradição) e não de outro, como o taoísmo: doutrina, escola, seita, religião, filosofia,
folclórico etc.
Este conhecimento tradicional foi sendo transmitido oralmente desde seus
primórdios na China, até meados do século VI a.C., época dos Reinos Combatentes
ou Estados Belicosos (Cleary, 1988, p.13) quando houve a sistematização das
escolas filosóficas da época e a transcrição, na forma escrita, dos ensinamentos
taoístas, principalmente por Lao Zi em seu Dao De Jing (Tao Te King), o “Tratado da
Via e da Virtude” (Bueno, 2004). Embora, Granet (2004, p.304-306) o defina como
um “breviário destinado a iniciados” com “máximas curtas que (...) destinavam-se,
aparentemente, a servir de temas para meditação”.
Admite-se que o primeiro Imperador da China foi Fo Hi (Fu Xi) em 3000 a.C.,
segundo Bueno (2004) ou 6000 a.C. segundo o Dicionário Ricci (1990, p.04-07),
dando-se início assim a história da China. Fo Hi, “pai da civilização chinesa”, foi o
inventor da escrita, dos trigramas e dos hexagramas (Ba Gua) (Dulcett Junior, 2001,
p.25).
Guenón (1973, p.50-51) considera que este nome, em realidade, está
vinculado a um conjunto de conhecimentos que são a própria essência da Tradição
chinesa servindo para designar todo um período de vários séculos. Compreende-se
daí três livros escritos através de trigramas (traços horizontais) correspondendo,
respectivamente, ao Céu, ao Homem e à Terra, os quais possuem aplicações em
desde o conhecimento puro metafísico até os de ordem cósmica e humana.
Dos três livros, o único que chega até nós é o Yi Jing (I Ching), o “Livro das
Mutações”. Este livro é de tal forma sintético que pode ser entendido de muitas
formas diferentes, todas concordantes entre si (pois seguem um princípio único).
Além de seu domínio na metafísica pura, pode ser aplicado a várias outras ciências
tradicionais como a lógica, a matemática, a astronomia, a fisiologia, a ordem social e
até mesmo na adivinhação, sendo esta considerada inferior em relação às outras
(Guenón, 1973, p.53). Pinto (1972) concorda com isso quando afirma que seu
24

aspecto oracular é irrelevante quando confrontada com a riqueza de sabedoria


contidas em seus símbolos.
Cordeiro (1994), encontra aplicações do Yi Jing ainda na psicologia, na
genética e no desenvolvimento do sistema binário, pedra fundamental da moderna
cibernética, “cientificamente descoberto” apenas em 1769 por Leibniz.
O Yi Jing é considerado pelos chineses como a obra mais antiga de sua
literatura (Philastre, 1992), e uma das mais importantes da literatura mundial
(Wilhelm, 1982, p.3). Tal qual nos chegou, é obra de numerosas pessoas. Fo Hi, ser
celeste e mitológico, o qual “assistiu a separação do Caos de onde nasceram Céu e
Terra completando a gênese...”, compôs a substância primitiva da obra, uma série
de 64 hexagramas formados com duas espécies de traço: um traço pleno e um traço
interrompido (Philastre, 1992).
Em seguida, segundo Philastre (1992), os primeiros comentários foram
tecidos por Wen Wang, ou Rei Wen, que redigiu uma fórmula de poucas palavras
para cada um dos 64 hexagramas expressando seu valor geral, e por seu filho
Tsheou Kong, ou Duque de Chou, o qual compôs uma fórmula para cada traço de
cada hexagrama. Ambos os comentaristas com valor mais simbólico do que
histórico. O primeiro comentador realmente histórico, segundo este autor, é Kong Zi,
ou mais comumente conhecido como Confúcio (Philastre, 1992).
Wilhelm (1982, p.10) resume então que quatro sábios são considerados com
autores deste livro: Fo Hi, Rei Wen, Duque de Chou e Confúcio.
O Dicionário Ricci (1990, p.4-7) traz a cronologia chinesa geral sob o ponto de
vista das bases científicas em comparação com a cronologia segundo a Tradição.
Dentro das Dinastias Legendárias da Tradição, coloca Fo Hi (Era Pastoral) entre
10000 e 6000 a.C. no Neolítico Anterior (Mesolítico). Em seguida, o segundo
Imperador, sucessor do primeiro, segundo a Tradição chinesa, Shen Nong (Era
Agrícola) entre 6000 e 3000 a.C. no Neolítico Central. O terceiro Imperador Huang
Di (2697-2599 a.C.), pai da cultura chinesa, no Neolítico Posterior, entre 3000 e
1850 a.C.
São atribuídas a Huang Di e a Shen Nong obras de extrema importância de
medicina tradicional chinesa e de alquimia taoísta (Dulcetti Junior, 2001, p.25).
Huang Di é considerado ainda o Patrono Supremo do taoísmo (Granet, 2004, p.
306).
25

Quando se fala de Tradição chinesa, surge a necessidade de se falar de


Confucionismo, uma das escolas com influência mais longa e mais profunda da
história da humanidade (Vallée, 2004), e sobre suas “distinções” em relação ao
taoísmo em si.
No século VI a.C., o taoísmo e o confucionismo se constituíram como duas
formas doutrinais novas, ou dois ramos da mesma doutrina, dentro da linha
Tradicional chinesa, os quais seus fundadores são respectivamente Lao Zi e Kong
Zi. Não se deve considerar as duas como escolas rivais, pois ambas possuem seu
domínio próprio e distinto. Não há em sua coexistência nada que não seja normal e
regular (Guenón, 1973, p.53-54).
O confucionismo surge na China, no século VI a.C., quando nasce Confúcio
(Kong Zi, Mestre Kong). Contemporâneo de Lao Zi, funda uma escola para ensinar a
todos, não apenas a filhos de príncipes, sobre temas ancestrais (tradicionais
taoístas) de elevação espiritual individual como: o Sentido Humano/Virtude da
Humanidade/Benevolência (Ren), o Justo (Yi), a Lealdade (Zhong), a Reciprocidade
(Shu), a Fidelidade (Xin), a Autenticidade (Cheng) entre outros mais (Vallée, 2004).
Faz isso a fim de restaurar a moral e a ordem social, por meio da ordem
cósmica (modelo da ordem social), numa época marcada pela degradação da antiga
ordem. Nesta antiga ordem, o homem participava da harmonia universal por meio da
boa conduta e o imperador era o símbolo e a garantia da continuidade dessa ordem
cósmica na sociedade. Porém naquele momento, o imperador tornara-se não mais
do que um poder teórico e grandes vassalos exerciam o real poder, em meio a lutas
sem trégua, a moral perecendo, o cinismo substituindo o temor religioso, a
desordem ameaçando por todos os lados (populações bárbaras, não chineses)
(Vallée, 2004).
A boa conduta harmonizada com o universo – em harmonia com o todo, com
o natural, não no sentido de universo manifestado, mas englobando-o com o
universo metafísico pré-existente – consiste num estado quando o homem,
enraizado dentro de sua realidade humana, sob trabalho incessante sobre si
mesmo, acalmando seus pensamentos e equilibrando suas emoções, ouve seu
íntimo mais profundo, recebendo e seguindo as indicações do caminho a seguir, a
fim de se moldar à vontade desse Todo, da natureza, a retidão da conduta (Vallée,
2004).
26

Assim, o confucionismo, a partir da educação e também dos ritos e


procedimentos preparatórios e iniciáticos, visava reintegrar o homem nessa
harmonia com o universo (seguirá melhor explanação a respeito deste assunto) com
o objetivo de restabelecer a ordem social. Através da ética, reformar as condutas
sociais e levar a um bom governo.
Os ensinamentos do taoísmo (tradicional), tratados neste estudo, fazem parte
daqueles que possibilitam e embasam os ritos, símbolos e processos iniciáticos, e
este retorno à posição “central”, focando mais o indivíduo e sua transcendência. O
confucionismo, por outro lado, prega sua prática para o restabelecimento da ordem
social, desta forma, enfatizando por último a sociedade.
Após a descrição dos princípios Yin e Yang, poder-se-ia associar
confucionismo a Yin e o taoísmo a Yang, um mais exteriorizado e o outro mais
interiorizado (Guenón, 1973, p.51).
Relevante dizer que não se pode atribuir com toda certeza a Confúcio a
abordagem mais social do que espiritual, já que este nada escreveu. Seus
ensinamentos, orais, foram redigidos bem depois por seus discípulos, Lunyu, entre
outros (Vallée, 2004).
Além disso, para se atingir o conhecimento verdadeiro (metafísico), palavras,
símbolos, ritos, processos preparatórios, considerados imprescindíveis no
confucionismo, são apenas suportes, não mais que meios acidentais que colocam o
ser nas disposições para que este chegue mais facilmente ao resultado. São meios
para se chegar ao um fim, a uma causa. Desta forma, na ênfase que se dá em ritos
religiosos para os sacramentos, por exemplo, há uma desproporção entre os meios
e os fins. É preciso ter em mente que estes procedimentos não produzem o
conhecimento verdadeiro em si, este já é pré-existente de uma maneira permanente
e imutável, fora de sucessão temporal, e o ser apenas toma consciência dele. A
única preparação de fato indispensável é o conhecimento teórico (Guenón, 1981,
p.29-31).
Segundo Vallée (2004), durante a dinastia Han (206 a.C. a 220 a.C.) a qual
unificou o Império, o confucionismo foi elevado ao grau de doutrina, acarretando
perda da profundidade dos significados dos ensinamentos de Confúcio e, mais
tarde, no decurso dos séculos, à esclerose e renovação de idéias, onde a mais
conhecida é o movimento de sincretismo sob a dinastia Song (960 d.C. a 1127 d.C.).
27

No ocidente, quando se fala em China e suas doutrinas, se pensa quase que


exclusivamente em confucionismo, e nem sempre da maneira correta. Admite-se
que seja um “positivismo oriental”, o que não se justifica, pois, o confucionismo, além
de possuir um caráter tradicional, é uma aplicação dos princípios superiores, os
quais são negados pelo positivismo. Quanto ao taoísmo, é renegado ao silêncio e
muitos ignoram sua existência, ou admitem que já desaparecera há muito tempo e
possui apenas interesse histórico e arqueológico (Guenón, 1973, p.55).
O taoísmo, mesmo na China, jamais teve ou terá uma ampla difusão, mesmo
porque, sempre se absteve de toda a propaganda, atitude esta de sua natureza
própria, o “não-agir”, o qual será discutido posteriormente. Esta “doutrina”, muito
fechada e essencialmente “iniciática” está destinada a uma elite, sendo que não
poderia ser proposta a todos indistintamente, pois, nem todos estão preparados para
compreendê-la ou “realizá-la”. Lao Zi, por exemplo, não teve mais do que dois
discípulos (Guenón, 1973, p.58-62), enquanto Confúcio inúmeros, dos quais 72
compreenderam perfeitamente os ensinamentos do Sábio (Granet, 2004, p.331).
Ao contrário, a “doutrina” que pode ser comum a todos, os quais devem
estudá-la e pô-la em prática é o confucionismo, o que, envolvendo tudo que
concerne às relações sociais, é plenamente suficiente para as necessidades da vida
ordinária. Sendo o taoísmo fonte dos princípios, o confucionismo não é de certo
modo, mais do que a aplicação prática destes princípios, a ação manifestada
exterior e visível. A ação do taoísmo é invisível, uma atividade transcendente e
inteiramente interior, embora sua influência tenha sido, e ainda o é, eficaz e
extremamente importante, mas no sentido de direção invisível, “dominando os
sucessos no lugar de tomar uma parte direta dos mesmos” (Guenón, 1973, p.58-62).
Desta forma, os modos de comunicação desta influência escapam
necessariamente aos que vêem não mais do que o exterior das coisas, inteligíveis
assim ao espírito ocidental (Guenón, 1973, p.58-62).
Lao Zi escrevera um único livro, porém extremamente conciso chamado de
Dao De Jing (Tao Te King), o “Livro da Via e da Retidão” (ou Virtude). Todos os
demais textos taoístas posteriores são seus comentários ou redações de algumas
idéias complementares, que primeiramente, eram passadas apenas de forma oral
(Guenón, 1973, p.55).
Inclue-se aí no século IV a.C. Zhuang Zi (369-286), que, segundo Larre (1982,
p.2), fora contemporâneo de Platão já velho, de Aristóteles, de Epícuro e de Zenón.
28

Granet (2004, p.14) o considera o mais original dos escritores chineses. E em III a.C.
Lie Zi com o “Tratado do Vazio Perfeito”, talvez uma imitação de Zhuang Zi (Granet,
2004, p.304).
É importante dizer que o taoísmo, devido a sua pobre compreensão entre a
maioria, posteriormente ramificou-se em setores limitados como o religioso e o
filosófico, embora o taoísmo tradicional tenha-se mantido em redutos espalhados e,
muitas vezes escondidos pelo mundo, uma vez que seus Princípios vão de encontro
a dogmas e leis em alguns regimes políticos.
Segundo Bueno (2004), durante a dinastia Han, nos séculos II e I a.C., a
variedade de textos clássicos da época levou a uma geração de pensadores
chineses a formular propostas filosóficas que condensassem os saberes das antigas
escolas (confucionista, taoísta, cosmogonita, entre outras), levando a criação de
textos que continham explicações complementares para a compreensão dos escritos
mais antigos. São dessa época Huainan Zi de Liu An e Chunqiu Fanlu de Dong
Zhong Shu.
A partir daí, a degradação dos conhecimentos tradicionais só se fez
aumentar, e os que tratam de MTC não ficaram excluídos deste processo.
Dando um salto para os dias atuais, em 1914, a declaração do Ministério da
Educação chinesa aboliu a MTC, deixando de utilizá-la assim como os remédios
chineses. No governo de Chiang Kai Sheik, o lema era: “O Ocidente é o melhor”,
retirando-se assim o apoio financeiro destinado ao ensino da MTC, levando a sua
prática se reduzir por todo o país. Mas, com a ascensão comunista, ela ressurgiu,
talvez pelos resultados obtidos no tratamento de um câncer em Mao Tse Tung, e em
1958 declarou-se que a medicina chinesa era “uma grande casa do tesouro”
(Dulcetti Junior, 2001, p.27-28).
Assim, ela foi sistematizada e simplificada de maneira a torná-la possível para
sua utilização em massa como medicina preventiva (como se já não a fosse). Desta
forma, as bases tradicionais foram reduzidas e ajustadas ao pensamento atual. Em
países vizinhos, como Japão, Coréia, Taiwan, a ênfase nos conceitos tradicionais é
mais adequada do que em seu próprio país de origem, a China. Lá, portanto, a
qualidade e a eficácia da medicina chinesa, com a sua hibridação com a medicina
ocidental, encontram-se comprometidos (Dulcetti Junior, 2001, p.27-28).
29

“Mas não nos enganemos, há menos distância entre os egípcios, os


chineses, os celtas ou os indianos da Tradição, que entre os
chineses da Antigüidade e os da China atual!” (Eyssalet, 2003,
p.XXIX).

“A mina parece esgotada, mas na realidade é o gênio de um povo


que está engordurado. Os Chineses não buscam mais, eles
conservam; eles fixam-se com grampos à tradição admitida e sua
única preocupação é a de se manter sempre de acordo com ela”
(Philastre, 1992).

Pôde-se concluir desta forma que, o conhecimento tradicional (original) chinês


foi a base de conhecimento para o desenvolvimento da MTC. O Nei Jing, o “Clássico
de Medicina Interna do Imperador Amarelo”, ícone das obras de MTC foi escrito por
Huang Di há quase cinco mil anos, época em que o conhecimento puramente
racionalista não era predominante. Viu-se também que o conhecimento tradicional,
na MTC ou não, sofrera um processo de deturpação e profanação crescente. Será
demonstrado que desde a época de Huang Di isso já ocorria.
Se os ensinamentos de MTC surgiram deste conhecimento tradicional,
reconhecer os emblemas e os significados (metafísicos) destes ensinamentos exige
uma base tradicional. Esta base permite que o médico tradicional reconheça e
compreenda a simbologia sintética contida tanto nos livros, textos e ideogramas,
quanto no próprio doente.
Assim, serão tratados a seguir, alguns princípios desta Tradição, a fim de que
a base tradicional seja (re) tomada pelo médico tradicional.

2.1.2.1 O TAO: Princípios da Tradição chinesa

É de extrema importância salientar, antes do início deste item, que os


conceitos do taoísmo a serem explanados adiante possuem definição vasta, são
abstratos, vagos, e ao mesmo tempo muito sutis.
Dulcetti Junior (2001, p.19) já previa que a “ausência de definição caracteriza
o pensamento chinês e, por conseguinte, a ação e a existência no mundo”. Corre-se
o risco de se tentar entendê-los de forma concreta ou de vê-los como entidades
físicas, às vezes até mesmo, materiais.
30

Um dos motivos seria a própria linguagem ocidental conceptual. Por exemplo,


Eyssalet (2003, p.273) atribui a isso o fato da dificuldade do pensamento moderno
em não “substancializar (o conceito de) a Energia, sobretudo assim que ela é
especificada”. Explica ainda que os aspectos de móvel, adaptável, misterioso, vago
e intuitivo de uma palavra entediam, revoltam, provocam insegurança e surge no
leitor então o desejo de especificação, definição, para garantir-lhe um cercado que,
como função geral, lhe conceda um status de “quase objeto” (Eyssalet, 2003,
p.XXXV).
Os princípios apresentados aqui são metafísicos e utilizam a dialética sintética
como lógica, e sua compreensão depende de um relativo entendimento geral de
vários conceitos correlatos. Ainda assim, restam aspectos destes em que não há
como se compreender de forma objetiva e racional, são obscuros. Para Eyssalet
(2003, p.3), na visão de mundo transmitida pelas Tradições, há sempre a intuição,
um pressentimento de algo que jamais poderá ser descrito, inapreensível e
insituável.
Guenón (1981, p.22) explica que, o conhecimento tradicional baseado na
metafísica verdadeira sempre reserva uma parte ao inexprimível, pois sua
compreensão avança além do ser em sua individualidade. Tudo o que pode se
exprimir não é nada em comparação ao que ultrapassa toda expressão, tal qual o
finito, por maior que seja sua grandeza, é nulo em face do infinito. Todas as
palavras, as formas de expressão são sugestões, um suporte, um ponto de apoio
para nos elevarmos a possibilidades de concepção que as ultrapassam
consideravelmente.
Lao Zi começa:

“A Via de que se fala


Não é a Via
O nome que se pronuncia
Não é o Nome

O inominável
Fez aparecer o Céu Terra
O Nominável
É Mãe dos Dez Mil seres
31

O Sem desejo
Contempla suas secretas maravilhas
O desejo
Considera seus aspectos manifestos

O Desejo e o Sem desejo têm a mesma origem


Dois nomes diferentes
Mas uma denominação comum
O Mistério” (Lao Zi, cap.1, traduzido para o francês por
Larre, 1972).

Vallée & Larre (2004, p.86) explicam que o que é maravilhoso “não é objeto
de consideração, é a face sempre oculta dos Seres”.

“Seu alto não é luminoso


Seu baixo não é tenebroso
Isso serpenteia indefinidamente indistintamente
Até o retorno ao Sem coisa alguma
Qualificasse-o
Forma daquilo que não tem forma
Imagem daquilo que não é coisa alguma
Qualificasse-o
Obscura claridade e claro-escuro“ (Lao Zi, cap.14,
traduzido para o francês por Larre, 1972).

Importante dizer também, que o que se segue neste sub item, é uma breve
descrição de alguns dos conceitos do taoísmo essenciais para a compreensão do
restante do estudo. A explicação e os comentários mais abrangentes de cada um
destes conceitos requereriam um trabalho à parte.
Taoísmo vem de “Tao” (embora a forma fonética adotada neste estudo seja
“Dao“, será utilizada “Tao“ por ser mais reconhecida). O Tao, por certo, é o conceito
mais árduo de se tentar explicar. Primeiro por sua ampla abrangência de aspectos e
depois pela dificuldade de agrupá-los e visualizá-lo em conjunto. Gilles (1988, p.35)
já adverte que quando se descreve o Princípio, utiliza-se mais as qualificações
negativas, a exemplo, expressões como “não é isso, não é aquilo”. As qualificações
positivas, geralmente são limitantes. Aqui, eis uma tentativa de definição, antes de
tudo, vaga.
32

O Tao é o Princípio Supremo ou Princípio de Totalidade. Este Princípio é uma


Origem ou causa transcendente de todas as coisas. É auto-suficiente, ilimitado, pré-
existente, se tratando, portanto, de uma Possibilidade Universal. Manifesta-se
através de seus próprios princípios secundários. Possui função geradora, criativa,
infinita (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.46-47).
O Tao é a totalidade das coisas, manifestadas e não manifestadas, que
podemos perceber ou não. “Todo” este em constante movimento e Transformação,
ambos dentro de um padrão cíclico, uma ordem universal, eterna e imutável. O Tao,
portanto, não é só o Universo, mas também tudo que está antes e por trás dele, não
manifestado, além de suas próprias Transformações. A origem e o destino de tudo.
Para Dulcetti Junior & Sichero (2004, p.48) significa o Caminho, ou a Via, sendo
regente dos ciclos naturais do Universo.
Na cosmogênese taoísta, antes da existência do Universo (relativa à matéria
e à energia), havia apenas o Tao não manifestado, o Sem Forma, o inominável. Este
é o Um Inicial, o princípio unitário. Tudo sai do Um e retorna ao Um.

“Olha-se, mas sem ver denomina-se de o Invisível


Escuta-se sem ouvir e chama-se de o Inaudível
Apalpa-se sem atingir e chama-se de o Imperceptível
Eis três coisas inexplicáveis
Que confundidas fazem a Unidade” (Lao Zi, cap.14,
traduzido para o francês por Larre, 1972).

Por ser inominável, invisível, inaudível, imperceptível, a descrição e


explicação de alguns de seus pontos de vista se tornam impossibilitadas, são
possíveis apenas algumas aproximações para este termo intraduzível até para os
chineses.

“Por mais que a fitemos, ela nada deixa transparecer”


(Lao Zi, cap.5, citado por Vallée & Larre, 2004, p.86).

“Escuta o Tao de manhã, e poderá morrer feliz à noite” (Lunyu,


cap.4, citado por Vallée, 2004).
33

“O Tao, por sua própria natureza, não pode ser definido – eis porque
surgem as distinções entre as palavras” (Zhuang Zi, cap.2, citado por
Bueno, 2004).

Comentaristas do Dao De Jing do século VII d.C. atribuem o Invisível ao


Princípio Vital, o Inaudível aos Espíritos e o Imperceptível aos Sopros (Eyssalet,
2003, p.245). Estes três conceitos serão abordados adiante.
Este aglomerado do todo, ainda não existente, “ser por excelência, estado
indiferenciado e tudo-inclusivo” (Eyssalet, 2003, p.3), mas contendo todo o potencial
para existir, chamamos de Caos Primordial (Hun Dun). Utiliza-se freqüentemente
neste estudo alguns termos que comumente designam noções de tempo, porém o
Caos Primordial inclui também o próprio tempo dentro de si. Guenón (1993, p.14)
explica que não se trata, portanto, de anterioridade temporal, nem de sucessão num
modo qualquer de duração, quando discorre sobre o “Grande Extremo” ser anterior à
manifestação.
Qual então a diferença entre Caos e Tao? Larre et al. Citado por Eyssalet
(2003, p.5) explicam:

“O Caos assinala a fusão, enquanto o Tao que, naturalmente,


também contém a fusão, a contém num nível ainda mais elevado”.

Para outros autores (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.47) o Tao é a causa
dessa mistura energética matricial que amadurece, autotransforma-se e libera as
energias de seu conteúdo.
Por isso, no capítulo 25 do Dao De Jing, Lao Zi diz:

“Há alguma coisa num estado de fusão


Antes da criação do Céu e da Terra
Silenciosa, inefável! Ela existe só e não muda. Ela circula e não
detém
Pode-se considerá-la a mãe de tudo o que está sob o Céu
Mas eu ignoro seu nome. Eu o chamo de Tao
E se me obrigar a lhe dar um nome, chamo-o de grande...” (Lao Zi,
cap.25, citado por Eyssalet, 2003, p.4-5).
34

Este Caos, diferentemente da concepção ocidental de desordem, constitui


para os chineses uma confusão, mas no sentido de uma mistura de tudo o que em
potencial pode vir a existir, ou seja, o Universo pré-existente num estado difuso, em
potencial e de modo indiferenciado (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.47).
Quando inicia sua autotransformação, condensa-se em um pólo – no alto – o
que há de mais sutil e puro e noutro pólo – em baixo – o que há de mais denso e
espesso.

“A Unidade é a gênese da transformação das formas; o aspecto claro


e leve em ascensão forma o Céu, (o aspecto) obscuro descendente
forma a Terra” (Lie Zi, cap.1, citado por Eyssalet, 2003, p.24).

Tem-se agora dois níveis, e não apenas um, o Céu (Tian) e a Terra (Di). Este
é o princípio binário. Ao Céu, expansivo, cabe tudo que há de mais claro e leve e a
Terra, de densificação, o que há de mais confuso e pesado. O primeiro sendo o nível
dos princípios e o segundo o nível das elaborações, das realizações concretas
(Eyssalet 2003, p.25). Ou ainda, as energias leves ao Céu e os Sopros pesados a
Terra (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.47).
Céu na Tradição taoísta, também pode se compreender como a própria
totalidade, ou Tao, já que o Céu surge do desprendimento das energias Yang do
Caos Primordial, sendo de qualidades leves e superiores. Já a Terra agrega para si
a potência que reúne o movimento de crescimento e ascensão dos Seres que
surgem nela (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.53).
A representação geométrica, que representa o Céu e a Terra, mais comum na
Tradição extremo oriental, incluindo a taoísta chinesa, distingue as formas circulares
ao Céu e as quadradas à Terra. Parte-se da forma menos “especificada” de todas,
com caráter mais dinâmico, ativo, a esfera (círculo, quando em duas dimensões);
para, ao contrário, a mais “fixada”, com caráter mais estático ou passivo, o cubo
(quadrado, quando em duas dimensões). A forma da moeda chinesa (originalmente
de tábuas ritualísticas) mostra um quadrado, com ação centrípeta inserido num
círculo de ação centrífuga. Entre ambos, um espaço onde, nas moedas se
inscrevem os caracteres, corresponde-se ao Cosmos, onde se situam os “Dez Mil
Seres”: “O Céu cobre, a Terra suporta”. Ressalva-se que apesar deste símbolo, a
interioridade refere-se ao Céu e a exterioridade à Terra (Guenón, 1993, p.18-22).
35

Fig.1 – O círculo e o quadrado representando, respectivamente, o Céu e a Terra.

Fig.2 – Moeda chinesa antiga simbolizando o Céu e a Terra, inscrita ainda com pictogramas.

O Céu sendo fonte dos princípios e a Terra fonte das realizações, esta
aparece como receptora dos influxos celestes sendo a potencialidade das
manifestações. Este complementarismo é simbolizado também por uma linha vertical
como o termo ativo (Céu) perpendicular a uma linha horizontal como o termo passivo
(Terra), pois, o símbolo do Céu deve ser situado inteiramente sobre o símbolo da
Terra como um raio luminoso sobre um plano de reflexão (Guenón, 1993, p.19 e 72).
Vale lembrar que Céu e Terra são conceitos abstratos e transcendentais e
não dizem respeito à abóbada celeste nem ao solo em que se pisa. Guenón (1993,
p.50) adverte ainda que Céu e Terra em si mesmos não são de modo algum
mensuráveis, visto que não pertencem ao domínio da manifestação.

“A Via é grande
O Céu é grande
36

A Terra é grande
O Rei também é grande
No meio, há portanto quatro coisas grandes
Mas o Rei é o único visível” (Lao Zi, cap.25, citado por Guenón,
1993, p.97).

Os conceitos Yin e Yang referem-se a Terra e Céu, respectivamente, apesar


de não serem a mesma coisa. Yin e Yang são princípios formados das emanações
da Terra e do Céu. O Princípio Yang é o princípio da luz, da vida, do crescimento, e
o Princípio Yin, o das trevas, da morte, do decrescimento.
Para Dulcetti Junior & Sichero (2004, p.49), Yin e Yang são modalidades
energéticas manifestadas pelo Tao realizando Transformações num movimento
cíclico, contínuo de revolução energética. Conforme um se expande, se transforma
no outro. Céu e Terra foram os dois primeiros aspectos naturais surgidas do Tao.
Dialeticamente, Guenón confirma que Yang é o princípio que provém do Céu
e Yin o princípio que procede da Terra, visto que deste primeiro complementarismo
Céu/Terra, derivam todos os demais complementarismos. A Yang refere-se tudo que
é ativo, positivo ou masculino. Tudo que é passivo, negativo ou feminino é Yin.
Vinculados, simbolicamente, também à luz e sombra, ou a iluminado e obscuro,
respectivamente. Mas muito mais que opostos (aspecto externo), são melhor
definidos como complementares (aspecto interno). O Yang nunca está sem o Yin,
nem o Yin sem o Yang (Guenón, 1993, p.23-33).
Para Granet (2004, p.88) a antítese Yin e Yang não é a de duas substâncias,
forças ou Princípios, mas a de dois emblemas de riquíssimo poder sugestivo, os
quais servem para evocar todos os outros contrastes de forma exata. A partir de Yin
e Yang pode-se apreender a base de toda antítese, pois, a totalidades destes
contrastes, alternantes e complementares, compõe o Universo de forma cíclica.
Estes dois princípios se alternam num ciclo: quando há excesso de um,
naturalmente, o outro surge de seu interior, desenrolar este que compreende todas
as modificações dos Seres. Trata-se de uma predominância alternante do Yin e do
Yang, a evolução e a involução, o desenrolar e o enrolamento, a catálise e análise, a
marcha ascendente e a marcha descendente, saída ao manifestado e volta ao não
manifestado (nos Seres individuais, o nascimento e a morte), a condensação e a
dissipação, ou na terminologia hermética, a coagulação e a solução. Os dois
37

princípios se encontram em fases correspondentes em todo o seu ciclo de


existência, posto que, são a expressão mesma da lei que rege todo o conjunto da
manifestação universal (Guenón, 1993, p.23-33).
Este ciclo é representado pelo símbolo do Tai Ji, a Grande Unidade, ou
Grande Pólo ou ainda, Unidade Metafísica para Guenón (1993, p.62). Este símbolo
por sua sinuosidade sugere a idéia de movimento constante e dentro de um todo (a
Unidade).
O Tai Ji mostra a união do Yin e do Yang no momento em que produzem os
Dez Mil Seres (Granet, 2004, p.177).

Fig.3 – O Tai Ji, a Grande Unidade.

“Cada qual pelo mundo decreta o que há de belo


E eis que chega o Feio
Cada qual pelo mundo decreta o Bem
E eis que chega o Mal

O Ter e o não Ter nascem um do outro


O compacto e o sutil se formam um do outro
O longo e o curto se medem um pelo outro
O alto e o baixo e viram um para o outro
Notas e sons concordam uns com os outros
O antes e o depois seguem um ao outro” (Lao Zi, cap.2, traduzido
para o francês por Larre, 1972).

Entre Céu e Terra há um centro onde ocorre sua síntese. Este nível é
denominado nível Homem. É um vazio, chamado de Vazio Mediano, um espaço
virtual de onde surgem os Seres (ou Dez Mil Seres), entendidos, segundo Dulcetti
38

Junior & Sichero (2004, p.32) como tudo e todos que existem neste intervalo,
incluindo o ser humano, principal representante, ou “toda a manifestação universal”
para Guenón (1993, p.18).

“A Via
Escorre no vazio mediano
Assim é o seu emprego
No entanto jamais transborda” (Lao Zi, cap.4, traduzido para o
francês por Larre, 1972)

Quando Céu e Terra aparecem, entra-se no plano da dualidade, mais próximo


da manifestação, do que se poder nomear, pois, está ao alcance de nossa
compreensão, do nível em que o Homem se encontra. Por isso, “o nominável é Mãe
dos Dez Mil Seres”:

“A Via (Tao) de que se fala não é a Via


O nome que se pronuncia não é o Nome
O inominável fez aparecer o Céu Terra
O nominável é Mãe dos Dez Mil Seres” (Lao Zi, cap.1,
traduzido para o francês por Larre, 1972).

O Vazio também possui uma conotação diferente para o taoísmo. Refere-se


não a uma simples ausência de “coisa”, mas uma ausência potencial e/ou relativa:
pode tornar-se cheia/plena e/ou já estar plena de algo de que não se dá conta.
“Se alguma coisa está vazia, é que ela foi esvaziada, o que havia dentro
desapareceu”. Compara-se a uma cena de teatro que está vazia num momento, mas
que seguramente logo vai estar cheia (Schatz et al., 1979).
O Vazio (Xu) está associado ao Tao, antes da formação do Céu/Terra, como
sentido de conteúdo do Tao. Na formação do Céu/Terra pode significar a própria
manifestação. “É a unidade invisível da verdadeira natureza interior de cada um que
mantém tudo e todos interligados” (Dulcetti Junior, 2005).

“Trinta raios se juntam dentro dum único meio”.


Este vazio no carro de boi permite o seu uso
Com uma bolota de argila, molda-se um vaso
Este vazio no recipiente permite o seu uso
39

Dispõe-se de portas e janelas um cômodo


Este vazio na peça permite o seu uso
O ter faz a vantagem
E o não ter faz o uso” (Lao Zi, cap.11, traduzido para o francês por
Larre, 1972).

“É como se o Vazio do Vazio fosse exatamente o Céu Anterior” (Lu


Dong Bing, citado por Eyssalet, 2003, p.327).

”No homem vivente, e ainda bem mais, é por meio do vazio e do


escoamento dos sopros no vazio que a vida opera suas mudanças.
Assim por toda parte, no Céu sobre a Terra, no Homem, o pleno faz
o visível da estrutura, mas o vazio estrutura o uso” (Claude Larre,
comentário ao Dao De Jing, 1972, citado por Dulcetti Junior, 2005).

Associado à noção de Centro ou Meio (Zhong) – o qual o ideograma remete à


imagem de um tiro de arco e flecha atingindo bem no centro do alvo quadrado, a
justeza do lançamento, a retidão (Schatz et al., 1979) – leva o Vazio à noção de
origem, a própria expressão natural da vida, repleto de Sopros (energia). Neste
Centro Vazio ocorre o equilíbrio das energias da Terra e do Céu que o preenchem
(Dulcetti Junior, 2005). “O Vazio é a sede da vida” (Schatz et al., 1979).
O Vazio é o espaço preenchido pelas energias que se movimentam em
equilíbrio no Meio (Zhong) que recebe harmoniosamente os influxos do Céu e da
Terra (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.60).
Para Bueno (2004), Vazio e matéria são opostos básicos e complementares
Yang e Yin, respectivamente. Só existe matéria por causa do Vazio e vice-versa.

“O Grande Começo produziu em sucessão o vazio, o cosmo, o Qi


(Sopro), o Yin e o Yang, e, finalmente, a forma material” (Huainan Zi,
cap.3, citado por Bueno, 2004).

O número “Dez Mil” relacionado a “Seres”, segundo Granet (2004, p.95 e


127), refere-se à “totalidade das coisas”, significando mais exatamente, as “dez mil
realidades emblemáticas”, ou as 11.520 realidades Yin e Yang representadas pelos
64 hexagramas do Yi Jing. “Dez Mil”, portanto, é um “Grande Total popular”. O 10,
ainda para este autor (2004, p.101, 109 e 111), a unidade plena, é o número do Sol
40

o qual rege o Homem (é por isso que todo homem nasce no 10º mês de gestação).
Além disso, a primeira dezena possui o caráter de ciclo, através da progressão dos
números que o antecedem. Para Guenón (1993, p.18), o número “dez mil”
representa simbolicamente o indefinido.
Os Seres surgem então do “acasalamento” entre Céu e Terra. Acasalamento
porque cada um sede um pouco de si para a formação de um terceiro. O encontro
Yin-Yang da Terra e do Céu simboliza uma concepção, segundo Schipper, citado
por Eyssalet (2003, p.53). O Homem está no nível do meio, dos Seres. Este é o
princípio ternário: Céu/Homem/Terra, ou Tríade.

“O Céu e a Terra são Pai-Mãe dos Dez Mil Seres. Reunidos,


completa-se então a substância corporal. Dispersos, completa-se,
então, o retorno à origem (a morte)” (Zhuang Zi, cap.19, citado por
Eyssalet 2003, p.114).

Nos Seres, o aspecto Yang corresponde ao essencial ou espiritual, ao que


age mais interiormente, e o Yin se relaciona com a substância indistinta, estado de
pura potencialidade. A Terra, então nos Seres, é a raiz obscura de toda a existência.
Por serem mais exteriores, as influências terrestres (Yin) são as únicas sensíveis. A
celestes (Yang) escapam aos sentidos e não podem ser apreendidas (Mistério –
secretas maravilhas). O Homem é o símbolo do Centro, pois, sintetiza em sua
integralidade as influências recíprocas do Céu e da Terra, sendo sua resultante
(Guenón, 1993, p.17 e 24-25).
O taoísmo se expressa, geralmente, em duplas de valor Yin e Yang (Dulcetti
Junior, 2005). Yang e Yin são princípios que, muitas vezes, são atribuídos por
comparação e não de forma estanque. As Essências, por exemplo, há pouco
relacionadas a Yang, podem ser Yin se comparadas à energia (Sopros), uma vez
que, do ponto de vista aristotélico e escolástico, Yang refere-se a tudo que esteja
“em ação” e Yin tudo que esteja “em potência”, visto que estes dois aspectos se
encontram reunidos necessariamente em tudo que é manifestado (Guenón, 1993,
p.24).
O ciclo: surgimento do Yang (Yang no Yin), aumento do Yang seguido de sua
plenitude (Yang no Yang), surgimento do Yin (Yin no Yang), aumento do Yin seguido
de sua plenitude (Yin no Yin), constitui o princípio quaternário, ciclo energético
41

evolutivo pela ocorrência de movimentos energéticos e Transformações constantes.


Manifesta-se nos ritmos celestes, terrestres e humanos. A exemplo as quatro
estações do ano ou quatro estágios lunares (temporal), e as quatro direções
(espacial) (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.89).
Um outro exemplo de símbolo referente ao princípio quaternário – o primeiro é
o Tai Ji – é a cruz da Tradição chinesa. Nela há a noção de que em seu centro há o
Homem Equilibrado e orientado para os pólos cardinais formados pelos dois eixos,
um vertical (celeste, associado ao tempo) e um horizontal (terrestre, associado ao
espaço). A extremidade esquerda do eixo horizontal (de quem observa o símbolo)
simboliza o surgimento da Energia Yang até sua plenitude no pólo celeste
(extremidade superior do eixo vertical). A extremidade direita do eixo horizontal
designa o surgimento da Energia Yin até sua plenitude no pólo terrestre
(extremidade inferior do eixo vertical) (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.89-91).
Nesta cruz, a plenitude do Yang possui a noção de Fogo (quente e sutil sobe
ao Céu) e a plenitude do Yin possui a noção de Água (espessa e fria, pesada em
relação ao fogo, desce à Terra). Nas outras duas extremidades, ou no eixo
horizontal, à esquerda (de quem observa o símbolo) a Madeira, com a noção de
início do crescimento vegetal que se desprende do solo e cresce em sentido do Céu,
o início do Yang e do ciclo energético. À esquerda, o Metal, possuindo a noção de
pesado, inerte, voltando à Terra, o início do Yin. O centro é ocupado pelo
observador, ou agente orientador no tempo-espaço, correspondendo à terra
(elemento ou fase, não ao princípio Terra) equilibrador dos outros quatro elementos
ou noções (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.94-102).
Esta ordem (Madeira, Fogo, Metal e Água) corresponde à “ordem de
produção” ou de “geração” contida no Yue Ling explicada por metáforas: a Madeira
produz o Fogo alimentando-o; o Fogo produz o Metal que ele separa do mineral; o
Metal produz a Água já que pode liquefazer-se; e a Água produz a Madeira dando-
lhe a seiva. Esta ordem se complementa à “ordem de triunfo” proposta pelo Hong
Fan, a saber: Água, Fogo, Madeira, Metal e Terra (Granet, 2004, p.157 e 193).
A chamada “ordem de produção” dos Elementos está em plena conformidade
com à ordem das Estações e às regras da morfologia sazonal dos chineses.
Associando-se esta ordem com a chamada “ordem de dominância/triunfo”, a qual
dispõe os Elementos em cruz, evidencia-se a “ordem de produção” e a das Estações
(Granet, 2004, p.194).
42

Fig.4 – A cruz da Tradição chinesa.

O Ming Tang, ou a Casa do Calendário, era na Tradição, o palácio do Rei,


representação do Universo (base quadrada e teto redondo), dividido em salas
representativas das Estações (Tempo) e dos Pontos Cardeais (Espaço). Durante o
ano, ele circula por estas salas inaugurando as Estações e garantindo a “harmonia”
em todas as regiões do Mundo. Entre o fim do Verão e início do Outono, o Rei
retorna ao Centro como uma espécie de repouso para recuperar “as insígnias que
correspondem ao Centro”. Este “tempo de repouso” de duração indeterminada
equivale ao ano todo e contém o motor do ano (Granet, 2004, p.75 e 117).
“Insígnias do Centro”, provavelmente dizem, respeito a retornar ao Centro ou
Meio já discutido. Este é um dos significados do Elemento Terra, postado no Centro,
ficar entre o Fogo e o Metal.
Ou ainda, a Terra fica entre o Fogo (plenitude do Yang) e o Metal (início do
Yin), pois o ciclo energético inicia-se na Madeira (Dulcetti Junior & Sichero, 2004,
p.94-102). Do ponto de vista metafórico, o Fogo produz a Terra, pois, o fogo das
matas reduz a madeira a cinzas, e a Terra produz o Metal, pois, os minerais
encontram-se na terra (Granet, 2004, p.194).
Estes cinco “elementos”, Madeira, Fogo, Terra, Metal e Água correspondem
ao princípio quíntuplo (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.94-102). De forma alguma
estes “elementos”,”fases” ou “movimentos” correspondem ao material. As insígnias
“Madeira, Fogo, Terra, Metal e Água” são metáforas relacionadas ao ciclo energético
Principial (do Tao) se manifestando de forma quíntupla, evidenciado pelos
fenômenos naturais como as estações do ano, os ciclos do Sol e da Lua, as
43

manifestações corporais (naturais e patológicas) e a própria evolução da


humanidade, tanto no aspecto social como no espiritual.

Fig.5 – Os cinco movimentos ou elementos (pentagrama).

O Homem acha-se fincado na Terra, possui intelectualidade, objetividade,


racionalidade, sensações e exterioridade, mas também está aberto para o Céu com
sensibilidade, subjetividade, intuição, interioridade e vivências metafísicas. Segundo
Dulcetti Junior (2001, p.39), o Homem é a imagem do Céu/Terra e recebe as
energias do Céu, cósmicas, atmosféricas, solares, sazonais, conjugadas às energias
da Terra, alimentação de sólidos e líquidos.
Na época primordial, o homem estava perfeitamente equilibrado quanto ao
complementarismo Yin-Yang: era Yin em relação ao Princípio e Yang em relação ao
Cosmo, ou ao conjunto de coisas manifestadas. Ao contrário, o homem das épocas
ulteriores, por conseqüência da degeneração espiritual (marcha descendente do
ciclo) encontra-se Yin em relação ao Cosmo, a medida em que sai do Centro
(interior) e ruma para o exterior. É mais filho da Terra, do que do Céu e da Terra
(Guenón, 1993, p.53-59).
Distingue-se assim o Homem Verdadeiro do Homem Ordinário. O primeiro
que pode e deve, do ponto de vista tradicional, ser considerado o homem normal,
possui verdadeiramente a plenitude da natureza humana, desenvolvido nele a
integralidade das possibilidades que estão implícitas nela. Sintetiza tudo em sua
humanidade plenamente realizada. O Homem Ordinário, não tem em suma, se pode
44

dizer, mais que uma potencialidade humana mais ou menos desabrochada em


alguns de seus aspectos (e sobre tudo, de uma maneira geral, no aspecto que
corresponde à simples modalidade corporal, em detrimento da espiritual), mas em
todo caso está mais longe de estar inteiramente “acionado” ao predominar nele seu
caráter de potencialidade (Guenón, 1993, p.53-59).
O Centro ou Meio (Zhong), já citado anteriormente, possui um ideograma
simbolizando um alvo quadrado atravessado por uma flecha no centro. Significa,
segundo Schatz et al. (1979), a justa medida necessária para a eficácia e para o
resultado.

“...atingir corretamente, não quer dizer ter em particular mirado o


ponto a ser atingido. È ter feito mil e um vezes o movimento de
relacionar a visão com o centro do alvo para poder atirar sem olhar”
(Schatz et al., 1979).

Fig.6 – O ideograma Zhong, o Centro ou Meio.

O Centro é o espaço compreendido entre o Céu e a Terra, reunindo, num


fluxo harmonioso, o Yin e o Yang, e uma percepção justa da realidade equilibrada
(Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.60). Portanto, o Homem Verdadeiro ocupa o
centro e o Homem Ordinário sua periferia.
Para o Homem que chega ao centro de sua manifestação, não há acima e
abaixo, direita e esquerda, a frente e atrás, está mais além de todas as oposições
contingentes que resultam das vicissitudes do Yin e do Yang. Desta forma, também
não há sucessão temporal, transmutada em simultaneidade no ponto central e
primordial do estado humano, não há passado e futuro. Assim, o centro é o todo,
45

pontual. A Via é, verdadeiramente, um ponto único mesmo, central (Guenón, 1993,


p.144). Por isso, Lao Zi afirma:

“A via que é uma via (que pode ser percorrida) não é a Via
(absoluta)” (Lao Zi, cap.1, citado por Guenón, 1993, p.144).

Importante ainda apresentar dois termos que, segundo Eyssalet (2003,


p.125), apesar de não possuírem origem na Tradição mais antiga, são interessantes
didaticamente para o seu entendimento. São eles o Céu Anterior e o Céu Posterior.
Segundo este mesmo autor, a utilização de ambos foi pregada por – Shao Yong -
inspirado no taoísmo e também no budismo – para descrever: o mundo das formas,
das manifestações efetivas, das formas, lugar dos Dez Mil Seres como sendo o Céu
Posterior; e o plano do ser indiferenciado, dos germes e sementes invisíveis,
precedente e subjacente a toda manifestação, reservatório inesgotável dos
princípios criadores e vitais não atribuídos, mas precursores de todo ser, como o
Céu Anterior.

“Céu Anterior é o Yang puro; o Céu Posterior é o Yin puro. Parece


um alto e um baixo, um anverso (externo) e um reverso (interno) e
isto (constitui) um ser humano” (Xuan Ji Kou Jue Xiu Zhen Bi Zhi,
obra taoísta dos Song, citado por Eyssalet, 2003, p.142).
46

2.1.3 MEDICINA TRADICIONAL CHINESA E TRANSFORMACÃO

A MTC, como ciência Tradicional, foi desenvolvida pela revelação e


compreensão do Tao pelos antigos sábios (tradicionais) chineses (Dulcetti Junior &
Sichero, 2004, p.160). Ela é a expressão clínica deste conhecimento tradicional.
Submetida e realizada sob os princípios do Tao chega a ser quase um pleonasmo. A
MTC surge dos princípios da totalidade produzindo a partir daí, resultados eficazes
(no sentido de Virtude e potência manifestadas) (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.9
e 17).

“A MTC é um presente inestimável de seres visionários e generosos,


que a destinam aos Espíritos enfermos dos homens ainda
desprovidos de ”Coração” (Xin), isto é, de Consciência, e que pagam
(ou fazem pagar) caro pelos distúrbios psíquicos, energéticos ou
corporais” (Eyssalet, 2003, p.XLI).

Os conceitos e práticas das medicinas tradicionais são a maneira pelo qual a


Tradição propicia os Seres a retornarem ao Centro. As medicinas tradicionais devem
precipitar uma Transformação que é o retorno do Homem ao Justo Meio, tanto
quanto cuidador como Ser cuidado. Mas absolutamente, elas devem ser vistas como
separadas, tal como é feito no Ocidente Moderno, de outras ciências clássicas como
a lógica, a astronomia, a matemática, a ordem social. Todas são sempre concebidas
e aplicadas de forma concomitante e conjunta, pois, todas obedecem a um mesmo
princípio.
A medicina chinesa não se enquadra, portanto nas teorias aristotélicas,
cartesianas ou kantianas. É necessário compreender o pensamento chinês aplicado
a sua própria medicina, o qual segue princípios e axiomas orientados por uma
dialética alinear, analógica e sintética, seguindo uma maneira própria de pensar e
atingir o conhecimento (Dulcetti Junior, 2001, p. 16).
É atribuída a Huang Di (o Imperador Amarelo) a descoberta da acupuntura
em 2797 a.C. Trata-se de fato de um símbolo, pois, o calendário chinês inicia-se na
data de nascimento deste patrono da MTC, ou seja, a origem da acupuntura (e de
47

toda a MTC) confunde-se com o início da civilização e da cultura dos chineses


(Dulcetti Junior, 2001, p. 25).
A Tradição transmitida oralmente de mestre a discípulo, foi condensada num
livro tradicional – o Nei Jing (“O Clássico de Medicina Interna do Imperador
Amarelo”) – dividido em duas partes, o Su Wen (“Questões Básicas”) e o Ling Shu
(“Pivô Espiritual”), o qual não trata somente de acupuntura, mas também de
fitoterapia, dietética, massagem, Tao Yin (exercícios de flexibilidade baseada em
animais) e métodos de nutrir a força vital (Yang Sheng) e de atingir a longevidade
(Dulcetti Junior, 2001, p. 25). Segundo Granet (2004, p.309), o Yang Sheng é uma
espécie de “higiene santificadora”, a arte de alimentar (ou de aumentar) a vida,
baseada em diversas técnicas alimentares, sexuais, respiratórias e de ginástica.
Todo procedimento clínico do médico tradicional chinês trata-se de um ato ou
expressão ritualístico em conformidade com a Tradição taoísta, o qual na
Antigüidade era considerado sagrado e hoje se encontra profanado. Atualmente,
com interesse de transformar a sabedoria milenar dos antigos em conhecimento
científico acadêmico, há uma deturpação dessa Tradição, promovida,
principalmente, pelas universidades (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.19 e 43).
Para Schatz et al. (1982), a acupuntura atua na regulagem dos Sopros
(energia) constitutivos e animadores do homem no seio dos Sopros constitutivos e
animadores do aglomerado primordial. Esta regulagem não é eficaz sem o
conhecimento e domínio de conceitos intermediários da Tradição, como o Caos
Primordial, o Um Inicial, o Sem Forma, o Céu, a Terra e os Seres.
Conhecer e absorver os conceitos tradicionais demanda tempo e dedicação,
mas segundo muitos autores, são essenciais para a eficácia da prática da MTC. A
questão é como este conhecimento atua na vida do praticante tradicional.
O pensamento chinês é um pensamento global, de espantosa coerência, que
convida o leitor, através de referências dinâmicas, correlacionadas e hierarquizadas,
a compreender, ordenar, fazer circular de modo diferente tudo que já sabe, e em
particular o que constitui a sua experiência mais vital, profunda e qualificativa. Incita-
o a reexaminar as qualidades específicas de sua experiência humana nas
referências naturais de seu sentimento de ser (Eyssalet, 2003, p.XXXI-XXXII).
O estudo aprofundado e a compreensão dos conceitos tradicionais, não
excluindo os de MTC, permitem obter e manter excelente qualidade de vida e
desenvolver as potencialidades inatas, através de regras transmitidas através da
48

Tradição. Para Dulcetti Junior & Sichero (2004, p.160) o objetivo principal da MTC
consiste em encontrar a essência da natureza e da existência da vida,
desenvolvendo-as e transmitindo-as oralmente – de mestre para discípulo – ou na
forma escrita. Ou ainda como “virtuoso terapeuta tradicional ao ocupar-se desta
digna tarefa”.
Para Guenón (1981, p.20) ninguém atinge um conhecimento qualquer sem
um esforço estritamente pessoal, e tudo que um outro – um mestre, por exemplo –
pode fazer para ajudar é mostrar-lhe a ocasião e os meios de chegar lá. Símbolos,
ritos, procedimentos preparatórios e até condições exteriores (ambientais)
favoráveis, elementos comuns a todas às Tradições, embora possam ajudar na
busca pelo conhecimento metafísico, não são essenciais. O único requisito
necessário é o conhecimento (da Tradição). Toda aquisição que se faz neste
caminho, mesmo não atingindo toda a potencialidade do ser humano, é definitiva,
pois todo conhecimento teórico (conhecimento este legítimo, verdadeiro, por
excelência, ao contrário de especulações filosóficas ou psicológicas a seu respeito)
traz seu fruto em si mesmo.
Guenón (1973, p.58) considera importante distinguir este conhecimento
tradicional, autêntico e metafísico (já discutido anteriormente) do conhecimento que
chama de “ordinário e profano” “relacionado com o saber exterior das letras”,
referindo-se ao conhecimento racionalista, comum à mente ocidental.
Os chineses da Antigüidade desenvolveram a MTC a partir da procura de
uma melhor qualidade de vida, o qual chamavam de busca da longevidade. No
Clássico do Imperador Amarelo são citados os princípios de manutenção da
vitalidade (Yang Sheng) os quais constituem práticas de MTC para se evitar
doenças (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.161), e não necessariamente apenas
curá-las, como comumente feito na medicina ocidental. Aliás, Guenón (1993, p.23)
julga profana a Medicina que se limita a tratar apenas sintomas mais ou menos
exteriores e superficiais, praticada por ocidentais modernos, ao invés de buscar suas
causas últimas.
Cleary (1988), tradutor para o inglês do Sun Zi Bin Fa, ou mais conhecido
como a “Sun Tzu - Arte da Guerra”, nos conta sobre uma lenda da antiga China, em
que certa vez um nobre perguntou a seu médico, membro de uma família de
terapeutas, qual dos seus familiares era mais hábil na arte da medicina. O médico
era dono de uma reputação tão difundida que seu nome era sinônimo da própria
49

ciência médica na China. Respondeu que seu irmão mais velho percebia o espírito
da doença e o removia antes mesmo que pudesse assumir qualquer forma, e por
isso seu nome não saia de casa. Seu segundo irmão mais velho curava a doença
quando ela era bem pequena, e por isso seu nome não saia da vizinhança. Quanto a
ele, dizia que perfurava veias, prescrevia poções e massageava a pele e que por
isso, seu nome cruzava as fronteiras chegando ao ouvido dos nobres.
Isso capta de forma bastante precisa a essência do livro de Sun Zi, sendo
referência não só para médicos, mas para estrategistas e líderes de governo: a
maior das habilidades é vencer os exércitos inimigos sem lutar, por tornar o conflito
totalmente desnecessário. O espírito superior faz malograr as maquinações
inimigas; a segunda melhor coisa a fazer é minar suas alianças; em seguida atacar
suas forças armadas; o pior de tudo é sitiar suas cidades. Por analogia, manter-se
saudável, resistindo às doenças; evitar o contágio; tomar medicação; e por último
realizar uma operação cirúrgica (Cleary, 1988, p.10).

“Conhecimento profundo é ter percepção da desordem antes da


desordem, do perigo antes do perigo, é ter consciência da destruição
antes da destruição, e da calamidade antes da calamidade. Ação
resoluta é treinar o corpo sem ficar sobrecarregado pelo corpo, é
exercitar a mente sem ser usado por ela, é atuar no mundo sem ser
afetado pelo mundo, é realizar as atividades sem ser por elas
absorvido.
Pelo conhecimento profundo do princípio, pode-se transformar a
desordem em ordem, o perigo em segurança, a destruição em
sobrevivência, a calamidade em prosperidade. Pela ação resoluta no
Caminho, pode-se levar o corpo ao reino da longevidade, conduzir a
mente à esfera do mistério, proporcionar paz ao mundo e chegar à
realização plena das atividades” (Zhongho Ji, o “Livro do Equilíbrio e
da Harmonia”, citado por Cleary, 1988, p.11).

Quem tem boa saúde, não sabe disso, até a doença chegar, que é quando se
toma consciência de que alguma coisa não vai bem (Schatz 1979), ou seja, a
doença é apenas um alarme sinalizando um desequilíbrio interior maior. Vallée &
Larre (2004, p.185) já ressaltavam que conduzir o paciente devolta ao Caminho, à
Via vale mais que uma boa poção ou punturar pontos comprovados. Toda terapia e
toda puntura devem orientar o paciente em direção à Via, ao Centro.
50

Para Vinogradoff (2000), a acupuntura trata, mas também previne a doença


por poder evitar os desequilíbrios ajudando a pessoa a manter sua harmonia interna,
adequando-a com as mudanças que ocorrem no macrocosmo. Permite a sua
adaptação às modificações naturais.

“No tratamento de doenças, pulsos e medicamentos têm importância


primordial que não se deve negligenciar; mas quem procura perceber
as disposições naturais profundas precisa, pouco a pouco, chegar à
compreensão das mutações” (Zhang Jie Bin, citado por Vallée &
Larre, 2004, p.185-186).

Camargo Júnior (2003, p.77-79, 110-114), discursando sobre os paradoxos


da clínica, descreve as rotinas diagnósticas como uma conduta mecanizada de
localização de lesões e doenças, e os esquemas terapêuticos, baseados no bulário
e na propaganda da indústria farmacêutica, como raramente indo além do método
ensaio-e-erro da prescrição de sintomáticos. Isto porque todo o trabalho médico está
voltando para identificação e eliminação, quando possível, das doenças e das lesões
que as causam. Tudo o mais é secundário, até mesmo o indivíduo, que,
incidentalmente, traz a doença.
A doença assim torna-se um objeto com existência autônoma, traduzíveis
pela ocorrência de lesões. O corpo humano, então, é dividido em sistemas e a
medicina em especialidades, segmentando o ser humano e a prática clínica, ao
invés de integrá-lo num todo sistêmico. Boa parte dos equívocos desta medicina se
deve ao fato de que se deixa de lado tudo que seja subjetivo, mutável, complexo,
infinitamente variável (por não ser científico), precisamente os atributos que melhor
caracterizem nossa humanidade (Camargo Júnior, 2003, p.77-79, 110-114).
Eyssalet (2003, p.XXIX) descreve sobre as deficiências de uma formação
médico-hospitalar clássica, a qual aprofunda a separação radical entre o corpo do
homem e o que se chama, com termos vagos, de espírito, onde se encontra tudo
que não é diretamente quantificável, ou seja, as emoções, afetos ou o conjunto do
psiquismo.
Na MTC entende-se que não só essa separação quando é vivida e defendida
como uma realidade é a primeira e principal causa de todas as doenças (Eyssalet,
2003, p.XXIX), como a dualidade objeto/sujeito ou paciente/doente também contribui
para a perda da eficácia no tratamento.
51

Por isso, o praticante taoísta, incluído o que atua em MTC, deve nutrir as
energias do corpo para nutrir as do espírito, a fim de atingir a plenitude eficaz,
reforçando-se o princípio da totalidade. Práticas respiratórias, nutricionais, posturas,
gestos e exercícios energéticos nutrem o corpo, proporcionando o equilíbrio, pela
nutrição do espírito, através de concentração, visualização e meditação (Dulcetti
Junior & Sichero, 2004, p.162).
Através dessa nutrição e corpo e espírito é que se atinge a Transformação
Individual. Ou seja, o estudo da Tradição, vinculado à compreensão profunda de
seus princípios conduz a uma natural mudança de hábitos e conseqüente
Transformação.

Fig.7 – O ideograma Hua, a Transformação.

Transformação ou metamorfose são nomes que dizem respeito ao conceito


chinês Hua. Etimologicamente, o ideograma remete à idéia de um homem de pé
diante de um homem caído, morto. Este “entre-dois” lembra que seu sentido mais
profundo não se acha na justaposição do homem de pé vivo e do homem caído
morto, mas antes no intervalo, no vazio que os separa (Eyssalet, 2004, p.69 e 89).

“A vida do homem, no intervalo entre Céu e Terra, é como o salto de


um corcel branco...
... que transpõe o barranco de repente e eis que já o transpôs
penetrando, agitando-se...
... nada que saia dali... refluindo aos borbotões, derramando-se de
repente, nada que não volte assim...” (à morte) (Zhuang Zi, cap.22,
traduzido por Eyssalet, 2004).
52

Para Larre (1982, p.7), Hua corresponde à Transformação constante que se


opera de forma visível. Através de Hua, o Sopro Primordial se especifica nos Sopros
animadores os quais constituem a morfologia do Ser. Uma “nova apresentação
morfológica” surge a cada instante, graças a Hua.
No plano celeste, Hua relaciona-se a Jing, as Essências, ao plano indivisível,
indistinto. No plano terrestre, da diversidade das formas e de suas ilimitadas
combinações nos “Dez Mil Seres”, relaciona-se aos Sabores, geradores de todas as
formas. Como emanação direta do Tao, está ligado diretamente à criação e a
destruição, é uma mudança de estado radical, como o dia que passa para a noite.
Num sentido mais restrito, significa digestão. Bian, outro conceito chinês, que
comumente está associado a Hua, diz respeito às Mudanças, quando uma situação,
um ser, um conjunto energético, após atingir o apogeu de seu movimento, podem
apenas mudar de direção (decrescer), predominando a modificação de dinamismo
sobre a Mudança de aparência (Eyssalet, 2004, p.89, 186, 272 e 307).
Para Granet (2004, p.204), Bian dá a idéia de uma transformação cíclica e
Hua registra a alternância das formas.
Assim:

“O Yin Yang... ... é o Caminho do Céu... é o Princípio com as regras


(corda principal de uma rede de pescar com suas malhas), portanto
dependente dos Dez Mil Seres... é o Pai e a Mãe das mudanças e
das metamorfoses... ... é o primeiro fundamento da criação e da
destruição... ... é o palácio da clareza dos Espíritos formadores”
(Huang Di Nei Jing Su Wen, cap.5, citado por Eyssalet, 2004, p.185).

“A criação dos seres é a Metamorfose. O pleno desenvolvimento (a


extremidade, o apogeu, o máximo) dos seres chama-se a mudança”
(Huang Di Nei Jing Su Wen, cap.66, citado por Eyssalet, 2004,
p.186).

Bian e Hua, possuindo o sentido de Mudanças e Transformações contêm o


significado analógico dos movimentos das energias constantemente transformadas
no organismo humano, de acordo com o ritmo Yin/Yang no universo (Dulcetti Junior,
2001, p. 23).
53

A Mutação, tratada no Yi Jing, envolve Bian Hua, as Mudanças e


Transformações. É, em parte, a contínua transição de uma força em outra, e em
parte um ciclo fechado de acontecimentos complexos interligados entre si. A
Mutação assim, nunca é desprovida de sentido (Wilhelm, 1982, p.9).
Eyssalet (2003, p.11) explica que a Mutação, embora seja expressa por um
caractere mais “doce” do que Hua, não deixa de ser “um processo abrupto, uma
mudança radical”.
Será visto adiante que, como Pinto (1982, p.XII) afirma, o que há é apenas a
Mutação, ou seja, ela não incide sobre as coisas ou sobre os seres, ou senão em
contrapartida estes seres estariam fora da Mutação, apenas sofrendo sua ação.
Para Vinogradoff (2000), no Yi (Mutação), “a Mudança é a regra. Nada é fixo, nem
bloqueado”.
Os Espíritos são o pivô destas Transformações, Mudanças e Mutações, as
quais conduzem os Princípios do Céu Anterior, para o mundo da manifestação, o
Céu Posterior. Tudo assim é uma eterna Mutação. Para Larre (1982, p.7), os Sopros
animadores “são nada a não ser as especificações passageiras do Sopro
Primordial”.
O ser vivo é considerado como um conjunto de Sopros, e este aglomerado,
mais ou menos denso (Yin-Yang) está em Mutação constante num espaço que é
limitado pelas próprias funções destes Sopros. Esta concentração de Sopros que
constitui o Ser está em interdependência com a totalidade de Sopros que formam o
universo (que também estão em Mutação constante). A organização interna é uma
imagem da organização de toda a realidade (Vinogradoff, 2000).
Desta forma, jamais o homem, ocupando o centro entre Céu e Terra, pode
considerar-se como um ser concluído, livre de Transformação (e Mutação), mesmo
na idade adulta. Hua é uma concepção permanente, inclusive na morte (Eyssalet,
2004, p.207), e é ela que garante que o homem possa ocupar dinamicamente o
Centro.
A morte é apenas uma metamorfose, uma passagem a outra forma, cuja
qualidade pode depender da maneira pela qual, enquanto vivendo, se utilizou
Essências e da qualidade daquele que se libertou no momento do último Sopro
(Eyssalet, 2003, p.113).
“A vida e a morte são fases opostas e inseparáveis de uma mesma
modificação do ser”. No sentido hermético, transmutação consiste em “dissolver” o
54

que estava “coagulado” e “coagular” o que estava “dissolvido”, operações


aparentemente inversas, porém mais que dois aspectos complementares de uma só
e mesma operação (Guenón, 1993, p.35).

“O Yin-Yang é a via do Céu-Terra, pai e mãe das mudanças e


transformações.
O batimento de Yin-Yang traduz-se por mutações” (Huang Di Nei
Jing Su Wen, cap.5, citado por Vinogradoff, 2000).

“No Céu, chamam-no de Mistério (o Obscuro)


No Homem, chamam-no o Tao
Na Terra, chamam-no de a Metamorfose” (Huang Di Nei Jing Su
Wen, cap 66, citado por Eyssalet, 2003, p.189).

Através de uma adaptação, que é uma Mudança, uma Transformação, uma


Mutação contínua, o homem Santo, (que ocupa o Centro) cuida de sua saúde, pauta
seu comportamento de acordo com a Ordem Universal, pois apenas ela garante sua
constância e perenidade (Vallée & Larre, 2004, p.176).
Embora o termo Hua, assim como outros termos tradicionais chineses,
possua uma abrangência bem maior, envolvendo todo o funcionamento do universo,
restringir-se-á neste estudo, a Transformação apenas de atitude e pensamento, e
por que não de seu “Eu”, a que o terapeuta é submetido ao adentrar do estudo da
Tradição chinesa.

“Havendo-se diferenciado as duas modalidades do ser (Yin-Yang) no


Ser primordial (Tai-Chi), começou sua revolução, e dele se seguiu a
modificação cósmica. O apogeu do Yin (condensado na Terra), é a
passividade tranqüila; o apogeu do Yang (condensado no Céu), é a
atividade fecunda. Da passividade da Terra oferecendo-se ao Céu,
da atividade do Céu exercendo-se sobre a Terra, de ambas
nasceram todos os seres. Força invisível, a ação e reação do
binômio Céu-Terra produz toda modificação (...) A ação e a reação
do Céu e da Terra são o único motor deste movimento” (Zhuang Zi,
cap.21, citado por Guenón, 1993, p.111).

Para Philastre (1992), no chinês a palavra nunca toma um sentido


absolutamente definido e limitado. Seu sentido geralmente é resultado de sua
55

posição na frase, mas antes de tudo, de seu emprego em determinado livro mais
antigo e de sua interpretação admitida neste caso.
Os sábios chineses da Antigüidade, não tão ávidos a definições, souberam
dar nome às intuições que apreendiam da experiência vivida, através de ideogramas
e pictogramas. Assim, as palavras-funções na Tradição chinesa, ao contrário do
pensamento analítico conceptual no qual cada nome é uma “coisa”, são de fato
invocações ao território interior, proporcionando sempre a uma perspectiva global,
colorida pela qualidade, a nuança infinita de viver à qual a palavra dá apenas uma
referência. A palavra falada é um convite a uma investigação interrogativa no
silêncio, uma abertura na Metamorfose. A palavra escrita refere-se à trama do ser,
ao pano de fundo, à imobilidade, ao Vazio indefinido que simboliza um papel branco
(Eyssalet, 2003, p.XXXIV e XL).
A “intenção” da palavra, do ideograma, não é indicar uma experiência
sensorial facilmente identificável, mas é de indicar uma direção que ainda falta ser
vivida, e por cada um de forma diferente. É uma função secreta de ordem intuitiva,
aglutinando aspectos, reflexos da mesma natureza, comuns a todas as experiências
aparentemente diferentes, separadas, não correspondendo a nenhum objeto externo
e tangível. A frase chinesa constitui-se de um instrumento absolutamente
privilegiado para se aprender a penetrar em si mesmo (Eyssalet, 2003, p.XXXIV e
XL).
Desta forma, através da Mudança, Transformação e Mutação o Ser expande
sua sabedoria sobre aquele conhecimento que já adquiriu, através da Tradição oral
e escrita. Buscando o significado tradicional para cada conceito, atinge seus
significados mais profundos, potencializando sua eficácia e sua Virtude.
Por exemplo, Gilles (1999), enfatiza a necessidade do médico tradicional
entender de forma mais geral a apresentação de uma sintomatologia que aparenta
ser meramente orgânica, mas que de fato faz referência a uma história mitológica,
mesmo que isso pareça ser aberrante para o pensamento ocidental. Explica que se
deve entender o que há por trás de cada sintoma que serve apenas de símbolo ou
ao menos de emblema de uma alteração num nível mais profundo.
Ainda aqui, falta fazer uma distinção entre o “Si mesmo” a que Eyssalet
(2003) se referiu, citado há pouco, e o “Eu” ou a “Personalidade”. O “Si mesmo”
corresponde ao Princípio transcendente e permanente de que o ser manifestado, o
ser humano, por exemplo, não é mais que uma Mudança transitória e contingente,
56

modificação esta que não poderia de nenhuma forma afetar o Princípio. O “Si
mesmo” compreende todas as possibilidades de manifestação de um ser. O “Eu”,
correspondendo à individualidade, o indivíduo em si, não constitui uma unidade
absoluta e completa, fechada e bastada em si mesma (lógica do sujeito), mas sim
um estado particular de manifestação de um ser dentre a infinidade de estados do
ser total, submetido a certas condições especiais e determinadas da existência. Isso
é o que se define como a multiplicidade dos modos de manifestação ou dos estados
do ser, de fato uma verdade metafísica fundamental (Guenón, 1931, p.08-12).
Cabe a cada um realizá-la segundo as condições que lhe são próprias. A
multiplicidade indefinida dos graus de existência implica, para um ser qualquer
considerado em sua totalidade, uma multiplicidade igualmente indefinida de estados
possíveis, dos quais cada um deve realizar-se em um grau determinado de
existência (Guenón, 1931, p.08-12).

***

Desta forma, o estudo da Tradição chinesa para o praticante de MTC se faz


necessário pelas seguintes razões:
(1) o tipo de pensamento tradicional é bastante distinto (mas complementar)
daquele do ocidente moderno;
(2) a MTC surgiu deste tipo de conhecimento tradicional e as bases para o
entendimento da simbologia e da fisiologia energética dentro de sua dialética alinear,
analógica e sintética, estão nos textos clássicos e em seus comentaristas e;
(3) este conhecimento em si, verdadeiro, diverso do ocidental da atualidade,
precipita uma Mudança e uma Transformação (e este é seu objetivo) do terapeuta,
em sua forma de pensar e agir sobre tudo que já aprendeu e sobre o que está por
vir. Incita-o a penetrar e a descobrir, ainda que inicialmente de forma parcial, o “Si
mesmo”.
De forma dialética, se este for seu tempo, e o terapeuta seguir seu Espírito, a
Mutação ocorrerá sutilmente. Ou seja, o estudo da MTC dentro dos Princípios da
Tradição não é a causa efetiva da mutação, mas faz parte dela. Isso se explica pelo
fato de que na Tradição não se dá tanta importância, como no pensamento ocidental
moderno, às relações de causa e efeito.
57

Segundo Granet (2004,p.205-210), o conceito de mutação neutraliza a


importância de se estudar a natureza como uma série de fatos, diferenciando
antecedentes e conseqüências. Ao invés disso, eles registram a alternância (Yin
Yang) de aspectos contidos nos acontecimentos concretos. Ou seja, pela sua
natureza cíclica, os fatos são entendidos como interdependentes e não dentro da
idéia de sucessão.
Os fenômenos não são medidos em sua grandeza quantitativa, pois, tratam-
se apenas de sinais concretos. A Tradição chinesa busca entendê-los como
emblemas e rubricas as quais servem para compreender o Todo: “O símbolo faz as
vezes do real”. Quando um acontecimento parece evocar a aparência de outro, os
chineses os entendem como dois sinais coerentes os quais evocam um ao outro por
ressonância: ambos mostram um mesmo estado ou um mesmo aspecto do
Universo. O que explica os detalhes de aparência nos sinais concretos não poderia
ser outro senão o próprio Tao. Assim, para os chineses, ao invés do raciocínio e da
experimentação, puramente lógicos, eles buscam “registrar concretamente os sinais
e repertoriar suas ressonâncias” (Granet, 2004, p.205-210).
Desta forma, não importa se o estudo da Tradição leva à Transformação ou
se a Transformação prévia levou o estudante ao caminho da Tradição. De forma
metafísica, ambos são apenas sinais de uma mesma mutação.
A seguir, serão aprofundados aspectos dessas Transformações, como
médico tradicional evolui rumo a eficácia original.
58

2.2 SEGUNDA PARTE: TRANSFORMAÇÕES QUE PROPORCIONAM EFICÁCIA


NA PRÁTICA DA MEDICINA TRADICIONAL CHINESA

2.2.1 A INTUIÇÃO

Como abordado anteriormente, a Tradição chinesa, muito mais do que


simples conjunto de superstições e misticismos é de fato fonte infinita de
conhecimento autêntico sobre o Universo e sobre o Homem. A MTC constitui-se
apenas de uma natural “especificação” deste conhecimento, destinada a
proporcionar a longevidade, colocando o Ser em seu lugar próprio que é o do Justo
Meio.
Desta forma, é de se concluir que os primeiros médicos tradicionais que
contribuíram na propagação deste saber, na forma oral ou escrita, foram pessoas
iniciadas na Tradição e que possuíam conhecimento aprofundado sobre ela. Estas
pessoas desenvolveram a MTC na busca da autenticidade e procurando viver
segundo o Tao, pelos próprios ensinamentos contidos na Tradição.

“Os Sábios da Antigüidade


Sutis maravilhosos iniciados no Mistério
Duma profundidade que não se saberia compreender
É apenas se for possível evocar sua aparência
(...)
Eles como ninguém podia lentamente
Passar do turvo à limpidez
Eles como ninguém podia lentamente
Passar do repouso à atividade

Os observadores dessa Via


Recusavam de deixar ficar cheios
Assim nunca ficavam cheios
Podiam eles fenecer
E escapar à renovação” (Lao Zi, cap.15, traduzido para o
francês por Larre, 1972).

Segundo Dulcetti Junior & Sichero (2004, p.153) os homens autênticos na


Antigüidade eram pessoas “Simples”, e viviam em harmonia com o Tao do Céu, da
59

Terra e do Homem, respeitando os ciclos cronobiológicos do Yin/Yang, como nas


estações do ano, o ciclo solar e da lua. Ainda para este autor (2004, p.150)
atualmente, respeita-se muito pouco as leis imutáveis do Tao, esgotando-se assim a
Vitalidade (Qi) e as Essências (Jing). Esvaziando-se as Essências do organismo –
Vazio (Xu) patológico – permite-se a entrada das energias (Sopros) perversas (Xie).
No Nei Jing Su Wen, Qi Po responde a Huang Di definindo o que é ser
“Simples”:

“Os Homens da alta Antigüidade


Foram os sábios que obedeciam ao Tao
E se regulavam pelo Yin/Yang
E se harmonizavam através de práticas taoístas e pela numerologia
tradicional

Comiam e bebiam moderadamente


Descansavam e trabalhavam regularmente
Não se fatigavam com atividades desmedidas
(...)
Os Sábios da alta Antigüidade nos deixaram os ensinamentos
Esses aqui:
Evitar o Vazio perverso e o Vento Patogênico
Tendo as estações como referência
Os sábios eram calmos, tranqüilos e no Vazio
Os sopros autênticos se mantinham
As essências e os espíritos guardados internamente

As doenças lhes eram inacessíveis.


Sim, a Vontade contida e os desejos diminuídos
O Coração calmo e sem receio
O corpo trabalha sem se esgotar
Os sopros seguem o curso regular
E cada um poderia seguir o seu desejo
Num contentamento geral

Assim, se alimentavam bem


Satisfeitos com as suas vestimentas
Contentes com o que têm
Sem ciúmes entre pequenos e os grandes
Essas pessoas eram denominadas de “Simples”
60

Nenhuma cobiça perturbaria seus olhos


Nada poderia corromper seus corações
Os ignorantes e sábios
Sábios ou não
Não temeriam nada
Isto porque os sábios da Antigüidade estavam em harmonia com o
Tao” (Huang Di Nei Jing Su Wen, citado por Dulcetti Junior &
Sichero, 2004, p.136-138).

Vê-se aí que “Homem Simples” para os chineses não significa sem


complicação, sem luxo, ignorante ou humilde. Adiante, será discutido mais sobre os
conceitos de Essências, Espíritos, Sopros, Coração e demais pensamentos contidos
neste trecho.
Pode-se dizer que o “Homem Simples” que Qi Po descreve, Guenón (1993,
p.54) chamou de “Homem Verdadeiro”. Este é verdadeiramente filho do Céu e da
Terra, nele o “ato” é igual à “potência”, a qual implica a realização integral de sua
humanidade, ou seja, a condição mesma do “Homem Verdadeiro”, perfeitamente
equilibrado na relação do Yin e do Yang, tendo ao mesmo tempo, a natureza celeste
e a natureza terrestre, realizados em igual medida. É Yang em relação ao Cosmo,
podendo desempenhar de maneira efetiva o seu papel Central que lhe cabe.
Nos processos iniciáticos das Tradições busca-se o retorno do indivíduo a
essa posição “Central” entre o Céu e a Terra, que atinja o “estado primordial”
(Guenón, 1993, p.56 e Apercepções sobre a Iniciação).
É válido afirmar também que este equilíbrio Yin e Yang não é só estático, mas
dinâmico segundo padrões de mudança e Transformação. O Sábio chinês
reconhece estes padrões de mudança da natureza dirigindo suas ações segundo
eles. Importante citar que esse natural, a natureza de que se trata aqui se refere,
não apenas ao mundo físico perceptível ou a physis aristotélica, mas sim à ordem
sagrada do universo, a “garantia de continuidade da vida” (Vallée, 2004) ao Tao não
manifestado.
Viver segundo o Tao é seguir o que há de autêntico, natural, inato si, mesmo
que isso seja, às vezes, muito pouco objetivo. Basta que se compreenda, ainda que
subjetivamente e sem palavras para expressar. Praticar, portanto, a MTC segundo o
Tao inclui dar importância a isso durante a intervenção.
Para Dulcetti Junior & Sichero (2004, p.122) para o diagnóstico preciso
61

através dos pulsos, na MTC, é necessária percepção aguçada e fina durante a


palpação, incluindo-se a “intuição no nível do Vazio mediano ou Mental”, quer dizer,
sob os influxos integradores da Terra e do Céu. Não só durante a terapêutica, mas
durante toda a vida: “O Vazio se emprega para qualificar o estado original que deve
possuir todo ser” (Dulcetti Junior, 2005).
Ainda para Dulcetti Junior & Sichero (2004, p.114 e 115), durante o
diagnóstico, o grande acupuntor – “sábio de Coração generoso iniciado nos
mistérios da Tradição” – utiliza-se, principalmente, da “inspiração de seus Espíritos”
a qual o permite determinar excessos e insuficiências no desequilíbrio da relação
Essências/Espíritos. Examinando o paciente, sua mão dirige-se aos locais de
reunião de energias do corpo, onde “os Espíritos assumem a base total da
vitalidade”.
Os Espíritos, segundo Vallée & Larre (2004) são os mensageiros do Tao do
Céu que conduzem a Virtude até nós. Não só na situação clínica como na vida em
geral, a intuição é inseparável do Shen (Espírito) (Eyssalet, 2004, p.251).
O acupunturista da Antigüidade, sendo um homem autêntico que reunia os
princípios da totalidade humana, tinha a abertura do consciente (Lavier) e tinha
plena ciência de tal sabedoria (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.159).
Vinogradoff (2000) equipara a utilização da acupuntura com a do Yi Jing,
afirmando que para ambas, é necessário um certo estado de espírito. Não se trata
apenas de uma atitude ou um hábito, ou ainda uma máscara, mas é preciso uma
disposição interna que será propícia à uma resposta adequada.
Mas para compreender melhor o que é a “inspiração dos Espíritos” e como
aprender a ouvi-la, deve haver uma Transformação do próprio médico tradicional.
Como dito antes, por não ser uma ciência puramente objetiva, não basta receber o
conhecimento da prática clínica em si. É necessário que este conhecimento
promova uma Transformação - para que o conhecimento torne-se sabedoria - e
então colocá-lo em prática.
De fato, todo o conhecimento gera uma mudança no indivíduo, mas é preciso
que esta seja orientada a fim de que a prática seja a ideal. O que se busca, então, é
que através dos conhecimentos transmitidos pela Tradição, o médico tradicional,
durante o diagnóstico e o tratamento, esteja o mais próximo possível do Homem
Simples, ou Verdadeiro. Sob as influências celestes e terrestres, aprenderá a utilizar
melhor sua intuição, ou inspiração, e combiná-la com o raciocínio lógico (apreensão
62

dos sinais e sintomas de forma objetiva), levando a eficácia.


Como lembra Vinogradoff (2000):

“O sentido de uma tirada (puxada), sendo do domínio do Shen, deve


ser apreendido de maneira simbólica. O intelecto vem seguidamente
pôr em ordem o que a espontaneidade da intuição permitiu revelar”.
63

2.2.2 A VIRTUDE (DE)

Importante ressaltar que o conceito chinês de Virtude, assim como os outros


termos que serão tratados aqui, possuem uma definição ampla, profundamente
abstrata, mas ao mesmo tempo muito sutil. Este termo foi largamente tratado em
clássicos taoístas como no Dao De Jing:

“Deixe ser, ajuda a crescer


Deixe ser, não monopolizar
Manter e não sujeitar
Presidir à vida e não fazer morrer
Eis o Mistério da Virtude” (Lao Zi, cap.10, traduzido por Larre, 1972).

Guenón (1973, p.55) traduz De por “Retidão”, justificando que o termo


“Virtude” pode trazer uma conotação moral no conceito, o qual de modo algum está
no espírito do taoísmo. Para ele De é uma especificação do Tao a um ser
determinado, a direção que se deve seguir para que sua existência seja segundo a
Via, ou em conformidade com o Princípio.
Granet (2004, p. 191) aproxima-se desta explicação. Para este autor, o De
“designa a ‘Eficácia’ quando esta tende a se particularizar-se, (...) a Eficácia que se
singulariza ao se realizar”
Etmologicamente, segundo Vallée & Larre (2004, p.64), a Virtude é uma
conduta orientada pelo Coração capaz de remeter-se àquilo que autêntica e
celestialmente, de forma profunda, constitui seu ser. Assim a Virtude é uma
qualidade, um Dom que vem do Céu (recordando que este Céu refere-se ao Tao
interno, dentro de cada um) que permite ao Ser agir de forma autêntica, seguindo o
natural, o Tao.
Esse agir é ser capaz da atitude e ação justos, que convêm a cada um e a
cada situação dada, sem definições precisas, nem critérios de conduta, nem
dogmas, mas através de uma exata percepção e uma pertinência de julgamento,
que vêm daquilo que se baseia na realidade do seu ser, ou seja, percebe em si e
sabe o que deve fazer (Vallée, 2004). Não apenas agir, mas ser. Virtude é a
presença do Céu que lhe dá ao Ser sua natureza própria, seus princípios naturais.
Eyssalet (2004, p.227 e 363) traduz De como Virtude, como eficácia e até
64

como autêntico. Atribui-lhe um aspecto dinâmico (pela parte esquerda do ideograma,


um homem que caminha, uma progressão “partindo do pé esquerdo”), e um aspecto
autêntico (pela parte direita do ideograma, Dez olhos afirmaram a retidão em sua
alma e consciência, o Coração). O sopro manifesta a unidade em movimento de
tudo o que existe (que possui vida, os Seres) através da Virtude.

Fig.7 – O ideograma De, a Virtude.

Entende-se assim que a Virtude flui de forma autêntica, e junto aos Sopros,
proporciona a vida (tudo o que existe, manifestado). Tudo que o Tao produz é
Virtude. Obviamente então, não se pode limitar a associação da Virtude apenas com
o homem.
A Virtude está presente na criação de todos os Seres. Na cosmogênese, do
Céu vem o grande princípio e a Terra recebe-o provendo as formas para o
acabamento dos seres. Assim, tudo o que se concebe sob o Céu são a irradiação da
Virtude celeste (Vallée & Larre, 2004, p.61-65):

“O Céu em mim é virtude


A Terra em mim é sopros
A virtude flui, os sopros se espalham e há vida” (Huang Di, Nei Jing
Ling Shu Su Wen, cap.8, citado por Vallée & Larre, 2004, p.57).

O Coração (Xin) para o taoísmo não é apenas aquilo que enxergamos como
uma bomba que faz com que o sangue circule pelo corpo. Este conceito será melhor
explicado adiante.
Ainda para Vallée & Larre (2004, p.61-64) a Virtude, possibilitando a posse de
65

nós mesmos e o encontro conosco, torna autêntico o agir daquele que a possui. Se
se é capaz de seguir o caminho, evolução que vai além dos limites humanos, atinge-
se a eficácia e a infinita perspicácia. Esses autores são taxativos também ao
afirmarem que “o saber, sem a Virtude, não serve para nada”.
Não é necessário apenas o conhecimento, a instrução. É preciso que este
conhecimento seja aplicado pela Virtude para que se tenha eficácia, já que é assim
que se segue o natural. “Encontro conosco” significa identificar a origem verdadeira
do Homem, o Tao, dentro de cada um, e, portanto a “posse de nós mesmos” deixar
fluir o Tao, o natural, através dos Espíritos. Isso é a Virtude. Como diz Huainan Zi:

“Quando falamos em ‘posse de nós mesmos’, entendemos a


preservação da integridade. Pela ‘preservação da integridade’ somo,
então, Um com o Tao” (Huainan Zi, cap.1, citado por Vallée & Larre,
2004, p.48).

“A virtude do homem de bem é poderosa como o vento, a do homem


que não é, é fraca como a erva que sob o vento se curva e deita”
(Lunyu, cap.12, traduzido para o francês por Cheng, 1981 e citado
por Vallée, 2004).

“Nosso corpo não pode ser produzido senão pela Via e nossa vida
não pode resplandecer senão por meio da Virtude. Aquele que se
mantém vivo e atinge a plenitude de seus dias é aquele que,
fundamentado na virtude, fez resplandecer a Via. Não será isto a
suprema Virtude? Majestosamente, ele emerge do Indistinto, avança
cheio de força e os Dez Mil Seres seguem seus passo” (Zhuang Zi,
cap.12, citado por Vallée & Larre, 2004, p.68).

“Ah! A Virtude do Mistério, como ela vai profundo,


Como ela vai longe,
Como ela traz os seres de volta
E finalmente os pauta pela Ordem Universal. (Lao Zi, cap.65, citado
por Vallée & Larre, 2004, p.176).

Apenas na Transformação individual através da Tradição, o praticante de


MTC adquire eficácia e perspicácia (pela Virtude desobscurecida) suficientes para
ser capaz de seguir a “inspiração de seus Espíritos” durante o diagnóstico e
66

tratamento. Isto porque a Virtude é o Céu, o Tao dentro de nós – conduzido pelos
Espíritos – que reconhecem a justeza e a autenticidade de nossas condutas (Vallée
& Larre, 2004, p.64 – 65), e a Terra em nós são os Sopros que admitem a forma
dada pela Virtude.
Segundo estes autores ainda:

“Os caminhos dos meridianos são, dentro de nós, uma imagem da


retidão e da constância que as formas e as animações adquirem, sob
o impulso da virtude do Céu. Mas tanto as formas quanto as
animações poderão manifestar-se somente através da ação própria
da Terra”.

Para Vinogradoff (2000) “é a Retidão (Virtude) mediana que corrige os


excessos e insuficiências”. Este autor explica que o médico tradicional, de pé,
representa o eixo vertical, a relação Céu-Terra, a ação que, sob influências celestes
e terrestres, vai se exprimir. O doente, deitado, é o eixo horizontal, simbolizando o
espaço onde os Sopros interagem (cruz taoísta). Assim como o prático (médico) que
deve estar centrado nele mesmo, justo e em equilíbrio entre Céu-Terra, o doente,
por sua disposição interna, deve estar pronto para acolher esta modificação de seus
Sopros. Deve haver uma adequação entre os dois estados internos.
Assim, para reconhecer insuficiências e excessos de Sopros no paciente (que
são manifestações da Virtude obscurecida) o médico tradicional precisa da Virtude
em si, desbloqueada. Esta é a ligação – que permite a eficácia – entre paciente e
médico tradicional: o próprio Tao e os elementos Virtude (Céu) e Sopros (Terra) em
cada um. Essa ligação se dá través dos Espíritos.
67

2.2.3 ENRAIZAMENTO NOS ESPÍRITOS

2.2.3.1 OS ESPÍRITOS (SHEN)

“Os Espíritos” é um conceito que, para os chineses da Tradição, possui uma


definição ampla e bastante distinta daquela adotada comumente pela mentalidade
ocidental. Na Tradição, não existe dualismo cartesiano corpo-espírito, o qual,
imposto de certo modo a todo pensamento ocidental não poderia corresponder de
maneira alguma à realidade.
Na Tradição distingue-se também Espírito de Alma, comumente tidos como
sinônimos na mentalidade moderna, que credita a alma apenas como sendo o
aspecto psíquico do Ser. Adverte-se que os aspectos corporal e psíquico apenas
fazem parte do mais superficial e exterior do Ser manifestado, apenas ao plano
horizontal em relação ao vertical. Para os alquimistas, Espírito e corpo não são outra
coisa que o aspecto “essencial” (celeste) e o aspecto “substancial” (terrestre) do Ser
(Guenón, 1993, p.36, 61 e 73-74).

“Fixando as suas almas espirituais no nível carnal


Estreitando a Unidade
Você pode impedir a separação das mesmas
Concentrando os seus sopros
Atingindo o que é suave
Você pode ser uma Criancinha
Com um olhar nítido e puro
Contemplando o Mistério
Você pode chegar a ser sem falhas” (Lao Zi, cap.10, traduzido por
Larre, 1972).

“Fixando as suas almas espirituais no nível carnal” pode significar a não cisão
no homem do Espírito e do corpo, do Céu e da Terra, sob influência equilibrada e
constante de ambos: “Estreitando a Unidade”.
O Espírito, ou Os Espíritos, se se quiser levar em conta seus inúmeros
aspectos, são apenas algumas traduções para o termo chinês Shen. Além destas,
encontra-se em textos taoístas Deus ou Deuses, “Influxo sutil recebido do Céu” a
exemplo de Pierre Grison, e “Força Configuradora” de Manfred Porkert (Eyssalet,
68

2003, p.164). Granet (2004, p.198 e 307) traduz Shen por poder, deuses ou
divindades.
Os Espíritos surgem da passagem e transição – mas regendo-a e
conduzindo-a – do plano não manifestado, indistinto, imperceptível, o Céu Anterior,
reservatório inesgotável dos princípios criadores e vitais não atribuídos, mas
precursores de todo ser; para o mundo das manifestações passíveis de percepção e
consideração, o Céu Posterior. É o Mistério, a influência que governa esta transição
criadora de todos os Seres, que age a todo instante e em todos os espaços. Está
associada à concepção e à organização inata e adquirida do desenvolvimento,
determinando todos os níveis de surgimento do indivíduo até os mais concretos
(Eyssalet, 2003, p.163, 165 e 255).
É o ponto criador Vazio e não localizável, lugar de uma constante
metamorfose (que é sua própria função) entre Céu Anterior e Céu Posterior. Ao
mesmo tempo testemunhando e agindo no movimento cósmico, como seu ser
personificado, espectador e ator em relação a tudo que se transforma e antes de
tudo em si mesmo (Eyssalet, 2003, p.163, 165 e 255).
Diferentemente do conceito de que estamos no plano concreto desde nossa
concepção e que, na morte, passamos ou retornamos para o mundo indiferenciado
ou para a origem, na Tradição estamos, todos os Seres, em contato com os dois
níveis que se sobrepõe, no mesmo instante, a todo instante.
No homem, os Espíritos são constituídos quando os produtos genéticos,
paterno e materno, se conjugam. Os fluidos parentais que os carregam, portam
também as Essências de cada um. Na união destas Essências, surgem os Espíritos
ou o Espírito do novo Ser. Aliás, sendo os Espíritos a relação entre as Essências,
antes delas se confluírem, o Shen já está presente conduzindo sua união.
Obviamente isto foge à lógica formal, porém é aí que os Espíritos mostram seu
mecanismo secreto frente às leis da dualidade (Eyssalet, 2003, p.171-173).

“Assim, do qual provém a vida se chama Jing, o Princípio Vital...


quando os dois Jing se encontram (estabelecem uma troca mútua),
chamam (isto) de Shen...” (Huang Di Nei Jing Ling Shu, cap.8, citado
por Eyssalet, 2003, p.169).

“A Metamorfose do Princípio Vital é (faz) o Espírito Individual” (Shang


Qing Jiu Dan Shang Hua Jing Zhong Ji Jing citado por Eyssalet,
69

2003, p.384).

Este autor traduz Jing com Princípio Vital, que, neste estudo, possui o mesmo
significado de Essências, como será discutido adiante.
Os Espíritos são o produto dinâmico do encontro das Essências, paterna e
materna, na concepção e do encontro das Essências inatas (Pai e Mãe) e adquiridas
(Respiração, Alimentação, Sentimentos) antes, durante e, sobretudo a partir da
concepção. O encontro das Essências é a manifestação dos Espíritos, sendo estes
a criação permanente do indivíduo, a cada instante renovada e adquirida, geradora
dos movimentos, das Energias e dos substratos que produzem, sustentam e
transformam o corpo físico, emocional e “espiritual”. É o poder de organização,
crescimento, elaboração e de Transformação do ser humano (Eyssalet, 2003, p.172
e 204-206).
Representam a fusão das Essências (do Céu e da Terra) indiferenciada em
cada um. Por isso guiam a vida, dando-lhe a mais profunda orientação, que é a de
seguir o natural (Vallée & Larre, 2004, p.94-96). Os Espíritos são a expressão do
Céu, a emanação do Tao indiferenciado em nós. São eles que nos governam e nos
guiam, através do caminho natural, que é o caminho do Tao.
No corpo cada órgão caracteriza-se por ancorar um tipo de Espírito, local
onde ocorre a setorização das atividades psíquicas que se encarregam de organizar
as energias (Sopros) do corpo e proteger o organismo das invasões dos “perversos”
ou “demônios” (Gui), causadores das doenças externas (Dulcetti Junior, 2001, p.20).
No capítulo 66 do Huang Di Nei Jing Su Wen, encontra-se uma passagem
interessante sobre Shen:

“O insondável do Yin Yang chama-se Espírito (Shen)


O uso do Espírito, sem recurso das receitas, se chama santidade
Assim, as mudanças e as Metamorfoses (constituem) o que chama
de a Função” (citado por Eyssalet, 2003, p.188).

Eyssalet (2003, p.190) comenta, distinguindo três níveis de Shen. O nível


Céu, sendo um princípio metafísico insondável. O nível Homem, princípio
organizador de nosso psiquismo, de nossas emoções e de nossa Transformação
espiritual, o centro ativo, do Vazio mediano do Coração, o Tao que permite a
70

inteligência verdadeira (Zhi) e a sabedoria na ação. O nível Terra, como princípio


organizador de nossa forma corporal, das realizações concretas, a metamorfose,
fator de redistribuição das formas do mundo.
Por Yin Yang serem a expressão própria do Shen, esses não podem justificá-
lo. Shen se exprime por Yin Yang, mas vai além. Em relação a outros conceitos,
Shen pode ter uma conotação Yin ou Yang, mas em si está além deste princípio.
O Shen é o elemento que está além da dialética Yin-Yang, a entidade que
age sobre o múltiplo, sendo ligado ao Princípio, ao Um (Vinogradoff, 2000).
Os Espíritos (Espírito Criador individual) no Céu são a articulação, o pivô
(Shu) das Transformações. É um ponto de apoio giratório, o eixo da relação Yin-
Yang condicionando todas as modalidades, de certo ponto de vista, do ser
individual, ao mesmo tempo criado e destinado a morrer. Yin Yang sendo o primeiro
fundamento da criação e destruição permite a expressão concreta da clareza
iluminante do Shen, mas não a fixa, não se confunde aí (Eyssalet, 2003, p.187-189 e
373):

“Não mensurável pelo yin-yang, ele é nomeado Espírito” (Huang Di


Nei Jing Su Wen, cap.66, citado por Vinogradoff, 2000).

“Uma vez o yin, uma vez o yang, e eis o que é nomeado Tao” (5º
parte da 5º Asa do Yi Jing, citado por Vinogradoff, 2000).

“O que se chama Espírito Criador, no Céu, é o pivô (a articulação)...


... é o verdadeiro Mestre... é, no coração do silêncio, o movimento
dos ciclos (cósmicos) (...) ... é o (próprio) fundamento da vida dos
seres...” (Lu Dong Bing, citado por Eyssalet, 2003, p.371-372).

Eixo, pivô ou Centro referem-se ao conceito Zhong já explanado


anteriormente.

“Qualquer movimento vital, do mais físico ao mais sutil, depende da


rotação, sempre progredindo, dos Espíritos. Imprimem qualquer
movimento, e giram mas sem regressão, e nunca duas vezes se
representa a mesma situação” (Huang Di Nei Jing Su Wen, cap.15,
citado por Vinogradoff, 2000).
71

Embora acima do Yin Yang, os Espíritos apresentam em si aspectos Yin e


aspectos Yang:
- Os Hun, aspecto/movimento Yang dos Espíritos, são responsáveis pela
inteligência, conhecimento, sensibilidade, espiritualidade, imaginação,
sonhos e devaneios, contemplação, tendendo sempre a elevação às
alturas (na morte, tornam-se almas gloriosas no Céu). O fígado, guardião
do sangue, os entesoura para que seu impulso em direção ao Céu não se
torne prematuro, um enraizamento Yin. A Reflexão também é relacionada
ao fígado. Ela é o Pensamento que se expande e se dirige em direção ao
futuro a fim de realizar o que ainda não ocorreu.
- Os Po, aspecto/movimento Yin dos Espíritos, possuem a tendência a se
afundar nas profundezas, responsáveis pelos nossos movimentos vitais,
pelas sensações, pelas reações, pelos impulsos instintivos (na morte,
responsáveis pela decomposição corporal). São mais corporais. Por isso
precisam de um enrazaimento Yang para que seu impulso em direção à
Terra não se conclua precocemente. Assim o pulmão, mestre dos Sopros
e de sua distribuição e mestre dos ritmos instintivos da vida os entesoura
(Vallée & Larre, 2004).

Ainda em relação à citação do capítulo 66 do Huang Di Nei Jing Su Wen,


quando diz ao “uso dos Espíritos, sem recurso das receitas” está se referindo ao que
é aprendido, que se contrapõe ao Zhi que Eyssalet (2003, p.190) traduz como a
inteligência ou sabedoria verdadeira e Vallée & Larre (2004, p.148) como o Saber-
fazer ou Saber-viver. Assim, só a vida conduzida pelos Espíritos, não entravada
pelas ações resultantes de medos, paixões ou cálculos, levada por si mesmo, pela
inspiração, pela escuta interior, só assim se conduz ao natural, ao Tao.
Dialeticamente, só a boa conduta, com Sabedoria Verdadeira (Zhi) mantém
os Espíritos presentes e as Essências em abundância (Vallée & Larre, 2004, p.147).
O apego e a busca incessante às paixões que os sentidos nos proporcionam
leva a uma redução da nossa reserva de vitalidade com conseqüente afastamento
da longevidade, pois nos afasta da Via do Céu. As paixões afetam a vontade e
desequilibram o eixo da vida (Vallée & Larre, 2004, p.165).

“As Cinco cores cegam o olho


72

As Cinco notas ensurdecem o ouvido


Os Cinco sabores estragam a boca
Corridas e caçadas enlouquecem o coração
O amor pelo objetos raros afasta a boa conduta

Os Santos, eles
Existiam para o ventre e não para o olho
Eles rejeitavam o exterior
E se mantinham em relação a si mesmos” (Lao Zi, cap.12, traduzido
por Larre, 1972).

Quando nos deixamos guiar pelos Espíritos, a vida segue como deveria.

“No vazio (Xu) que reina entre Céu/Terra o sopro harmonioso circula
livremente e os dez mil Seres nascem deles. Quando o homem é
capaz de estar sem paixões, renunciar ao prazer, tornar puras as
vísceras, então os Espíritos podem habitar pacificamente” (Ho Chang
Kong, comentarista do Dao De Jing, citado por Dulcetti Júnior, 2005).

Portanto, como mensageiros da Virtude, se nos conduzem, trazem livremente


a Virtude até nós. Para Vallée & Larre (2004, p.91) quando os Espíritos encontram a
Virtude, fazem-na brilhar e como resultado há a conduta virtuosa e eficaz, olhos
claros e brilhantes, tez rosada e fresca.
O Shen irradia-se pelos nove orifícios do corpo. Mas, segundo Gilles (1999)
há um décimo orifício, o umbigo:

“É esse o único orifício que está fechado e que está prestes a abrir,
porque é ele que nos faz comunicar com o Shen e permite assim
reencontrar nosso estado de imortalidade”.

A abertura e a irradiação do Shen pelo umbigo é algo a ser alcançado,


portanto. Assim, isso faz referência a práticas de alquimia taoísta que invocam a
atenção para esta região do corpo.
No homem, os Espíritos estão primeiramente no Coração. Esta é sua “casa”.
Quando serena e tranqüila emanam sua luminosidade, através da Virtude, para todo
o ser. Do Coração, os Espíritos iluminam e governam todas as partes do indivíduo
(Vallée & Larre, 2004, p.95).
73

“O Coração tem o cargo de Senhor e de mestre.


Daí procede a radiância luminosa dos Espíritos“ (Huang Di Nei Jing
Su Wen, cap.8, citado por Vallée & Larre, 2004, p.118).

“O Coração é o abrigo do Espírito Individual”


(Huang Di Nei Jing Ling Shu, cap.80, citado por Eyssalet, 2003,
p.112).

Os Espíritos vindos do Céu, só conseguem habitar o homem, quando seu


Coração está sereno e Vazio como o próprio Céu. Vazio de paixões, preocupações,
desejos, sentimentos intensos (alacridade ou cólera), não se abstendo deles, mas
sutilmente manter a linha da vida na temperança e na sinceridade, no acordo
profundo com a natureza humana e no bom senso que a razão dos Espíritos mostra
(Vallée & Larre, 2004, p.23 e 181). O Homem, posturando-se no Centro, faz habitar
dentro de si os Espíritos sutis e ligeiros que o mantém ligado ao Tao, sua verdadeira
origem (Dulcetti Junior, 2005).

“Na presença de objetos exteriores, o homem tem a faculdade [ou o


desejo] de conhecê-los; ao conhecê-los, ele experimenta
sentimentos de atração por uns e sentimentos de repulsa por outros.
Se ele não dominar esses sentimentos, deixar-se levar para as
coisas exteriores e tornar-se incapaz de voltar para dentro de si [e
regular os movimentos do seu Coração]; ele perde as boas
disposições que ele recebe do Céu” (Livro dos Ritos, tradução para o
francês Couvreur II, p.52, citado por Vallée & Larre, 2004, p.125).

“Quem se entrega aos prazeres da visão se corrompe pelas cores;


quem se entrega aos prazeres da audição, se corrompe pelos sons;
quem ama a bondade em demasia perturba sua virtude; quem ama a
justiça em demasia, guerreia contra a razão; quem se deixa fascinar
pelos ritos peca por minúcia; quem se fascina pela música cai na
devassidão; quem se fascina pela santidade desenvolve artifícios;
quem quer saber tudo cata ninharias. Quem se mantém serenamente
dentro dos limites de sua natureza e de duas disposições originais
pode entregar-se ou não a esses oito gêneros de atividade. Mas
quando a pessoa sai de sua natureza e de suas disposições
próprias, essa atividades transtornam tudo que está sob o Céu”
74

(Zhuang Zi, cap.11, traduzido por Vallée & Larre, 2004, p.181-182).

“A água tranqüila reflete nitidamente os pêlos da barba e as


sobrancelhas; sendo perfeitamente estofa, seu nível é o modelo que
serve de referência ao Mestre carpinteiro. Que dizer então do
Espírito vital, já que, em descanso, o Coração do santo é o espelho
do Céu / Terra, o refletor dos Dez Mil Seres” (Zhuang Zi, cap.13,
citado por Vallée & Larre, 2004, p.124).

“O vazio é a morada natural dos Espíritos sutis e leves” (Schatz et


al., 1979).

Como dito anteriormente, Coração no taoísmo, não se refere apenas à bomba


que impulsiona o sangue através do corpo, mas a morada dos Espíritos no corpo.
Os Espíritos não permanecem todo o instante no Coração, mas se originam, se
emanam para todo o corpo, e retornam para lá. A partir do Coração surgem outras
instâncias que se ligam aos outros órgãos (Zang) do corpo: o Propósito (Yi) do Baço,
a Vontade (Zhi) do Rim, o Pensamento (Si) também do Baço, a Reflexão (Lu) do
fígado, e o “Saber-Fazer” ou “Saber-Viver” (Zhi) (Vallée & Larre, 2004).
O Coração também é a consciência, a inteligência (não só racional, mas
supra-racional ou intuitiva), sendo o pensamento e a reflexão seus prolongamentos
dinâmicos, e a Sabedoria (Zhi) e a perspicácia representam a elaboração e o remate
da reflexão. A bondade exprime a qualidade resultante de uma consciência
(Coração) radiante e global. A função dos Espíritos só é ativada pelo equilíbrio e
saúde do corpo físico, emocional e psíquico (Eyssalet 2003, p.380 e 389).
Gilles (1999) acrescenta que há dois corações: um Coração do céu posterior,
o sentimento, e um Coração do céu anterior que, à imagem do Tai Ji – “que não é
outra coisa que o Tao, prestes a entrar em ação” (Gu Mei Sheng 1 apud Gilles,
1999), é a natureza original pronta para entrar em ação.
Os Espíritos guiam e dirigem a vida conduzindo os Sopros através do corpo,
pela Virtude, orquestrando suas formas e trajetórias, que surgem a cada instante.

2.2.3.2 OS SOPROS (QI)

Eyssalet (2003, p.269) já previa que não há definição possível para Sopros
75

(Qi), por suas circunstâncias serem tão “vastas e incontáveis”. Mas arrisca dizendo
ser os Sopros o “movimento da própria vida, o dinamismo por excelência”, o que nos
forma, transforma, atravessa, obstrui, agride e metamorfosa por toda parte e desde
sempre.
A fonética chinesa (T’chi, Qi) cunha o sopro que sai pela boca ao ser
pronunciado. Por isso, além de outros motivos, é que a sua tradução é Sopros Vitais
ou simplesmente Energia. Esta energia é única e é o constituinte fundamental do
Universo, sendo que os fenômenos ocorrem devido ao seu movimento e suas
transformações (Qi Hua) (Dulcetti Junior, 2001, p.37).
Os Sopros são a força, a potência que tanto geram, animam e preenchem as
formas. Por natureza, não possuem forma, mas são a entidade que pode se tornar
qualquer uma, não só sendo como a animando. As transformações sofridas por
estas formas também são promovidas pelos Sopros. A geração e Mutação são
incitadas pelo Céu, pelos Espíritos que trazem a Virtude do Céu. Desta forma, a
definição (ou tentativa de) de Sopros ganha uma perspectiva tanto estática quanto
dinâmica.

“Os sopros, por natureza sem forma, produzem, animam e mantém


todas as formas. Retiram força e renovação do trabalho que se
efetua (graças a eles) sobre as substâncias transformáveis” (Vallée &
Larre, 2004, p.70).

“Um ser humano deve sua vida a uma condensação de Qi. Quando
Qi se condensa há vida, quando se dispersa há morte” (Zhuang Zi,
cap.22, citado por Bueno, 2004).

A função da energia (Sopro) é exprimir o intervalo entre duas situações, uma


passada e uma por acontecer, duas fases, duas realidades. É o Vazio, o intervalo
entre o homem vivo de pé e o homem morto caído que caracteriza o sentido
profundo do caractere Hua, a Metamorfose ou a Transformação, “entre dois”.
Quando há uma parada desse dinamismo, deste movimento, a energia ou o Sopro
se extingue. Se ainda há vitalidade no Ser, é que o Sopro voltou à Essência, ou ao
Princípio Vital, tanto como reserva ancestral individual, como pano de fundo para a
Manifestação. Veremos mais adiante que para o Qi dinâmico e móvel, há o Jing
imóvel e sem tensão (Eyssalet, 2003, p.89, 269 e 366).
76

“O sopro, quando se apega, se chama Princípio Vital” (Shang Qing


Jiu Dan Shang Hua Jing Zhong Ji Jing, citado por Eyssalet, 2003,
p.384).

Para Schatz et al (1982) os Sopros são a expressão mais real do trabalho que
o Tao gera em nosso corpo. Os Sopros específicos, de cada ser, surgem do Tao
ainda indiferenciado (Caos). Ainda para este autor, apesar desta diferenciação em
Sopros específicos, estes ainda mantêm-se ligados ao aglomerado primordial de
Sopros (Tao). Eyssalet (2003, p.270) afirma: “Os Sopros são a metamorfose se
exercendo no centro do Principio Vital” (Princípio Vital e Essência possuem o
mesmo significado neste estudo).
Os Sopros quando bem distribuídos pelo corpo promovem a manutenção da
saúde do ser. Ou seja, não é o quanto se tem de Sopros, mas sua distribuição
harmoniosa é o que mais importa (Vallée & Larre, 2004, p.70). Estes são os Sopros
autênticos, perfeitos.
Tanto excesso como escassez são prejudiciais e causas de moléstias
(Soullié, 1990, p.133-134). Segundo Schatz et al (1982) quando os Sopros estão
fora das normas ou quando agem desfavoravelmente, diz-se que são Perversos (Xie
Qi). Nos textos de MTC e do “Arte da Guerra” (Sun Zi Bin Fa), é freqüente o uso do
termo Xu (Vazio) para expor a idéia de uma fraqueza ou falta de coesão dos Sopros.
O estado de Vazio (Dulcetti Junior, 2005).

“O movimento harmonioso no vazio pleno de sopros promove a


condição de vida em plenitude ou na perfeição dos sopros” (Dulcetti
Junior, 2005).

A perversão do Vazio e do pleno produz uma instabilidade no equilíbrio, num


tipo de comportamento excessivo ou reduzido dos movimentos dos Sopros no corpo:
a distorção do Vazio, o Vazio patológico ou o Vazio dos Sopros nos meridianos, ou o
pejorativo do pleno, a plenitude patológica ou a plenitude do meridiano (Dulcetti
Junior, 2005). Por isso, citando novamente:

“Os sábios da alta antigüidade deixaram os ensinamentos seguintes:


Evitar o vazio perverso e o vento patogênico” (Huang Di Nei Jing Su
77

Wen, citado por Dulcetti Junior, 2005).

Soullié (1990) chega a ser mais sucinto ainda quando cita o Nei Jing contido
no Da Cheng (As Grandes Regras de Acupuntura e da Moxa):

“As enfermidades que aparecem se manifestam todas por plenitude


ou vazio. A necessidade de distinguir entre plenitude ou vazio é tal,
que não há nada mais importante para as agulhas”.

Conclui dizendo ser a plenitude a abundância de energia que é causa de


moléstias enquanto a insuficiência, ou o Vazio, sempre são anomalias perigosas.
Vendo de outra forma, em vários textos chineses, alguns deles anedotas,
mostra-se que quem sai “vencedor”, ou eficaz, é aquele que deixou vir a si seu
Espírito, seu Coração, uma espécie de justa percepção das coisas, da realidade, e a
realidade fundamental para os chineses são os Sopros. Então, jamais aquilo que
está Vazio estará sem Sopros, mas se estes estiverem plenamente equilibrados e
harmonizados, irão praticamente desaparecer (Sopros autênticos). É este Vazio
médico (não o patológico, mas o harmonioso) que os chineses se interessam. Este
Vazio só ocorre quando os Sopros perfeitos, que fazem menos ruído, estão lá, no
organismo, no mundo. O Vazio é a perfeição dos Sopros (Schatz et al., 1979).
Para Vallée & Larre (2004, p.46), citando o “Livro dos Ritos”, quando o
Coração perde o controle e o domínio sobre as atrações e repulsões, os meros
acasos do cotidiano podem desorganizar a vida, os Sopros exteriores perversos
introduzem-se nos Sopros corretos “invertendo-os”.
Assim sendo, o homem que não domina – ou, ao menos, não tenta dominar –
suas paixões, seus desejos, sua cobiça, suas repulsas permite a entrada dos Sopros
perversos. Ou, sob outra perspectiva, os Espíritos deixam de conduzir os Sopros
(que se tornam perversos) e se vão, e o indivíduo perde ser enraizamento. Uma
pessoa plena de Sopros perversos não será eficaz na regulagem de Sopros de uma
outra, pois, seus Espíritos, que se contactariam com os Espíritos do paciente, não
estão mais presentes governando sua vida.
O acupunturista, conduzido por seus Espíritos, detecta durante o diagnóstico
por onde os Espíritos do paciente não estão se emanando, por onde os Sopros não
estão indo ou onde estão se acumulando. Enraizado nos Espíritos, percebe nítida e
78

eficazmente onde os Espíritos do outro não estão soberanos, onde o natural não se
segue. Segundo Vallée & Larre (2004, p.43) “os Espíritos comunicam-se livremente
entre si”, basta sabermos ouvi-los.
Na acupuntura – assim como em qualquer prática de medicina tradicional – o
fundamento é tratar a raiz, ou ao menos chegar, à fonte de toda desregulação. Esta
abordagem de vida é baseada na intuição, sentido, na troca de Espírito com Espírito
(Vinogradoff, 2000).
No entanto, como dito anteriormente, os Espíritos são o Céu indiferenciado
em nós. Como então cada ser se expressa de forma distinta, mesmo quando
enraizado nos Espíritos?

2.2.3.3 AS ESSÊNCIAS (JING)

Assim como todas os outros termos da Tradição chinesa, Essências (Jing), ou


ainda Princípio Vital segundo Eyssalet (2003, p.65), possui uma definição imprecisa,
porém necessária à sua compreensão. Como Eyssalet (2003, p.91) diz:

“A própria falta de precisão é uma necessidade inerente à imensidão


e à variedade das funções reagrupadas sob a palavra Jing”.

Vallée & Larre (2004, p.86) afirmam ainda que as Essências pertencem às
“Secretas Maravilhas” citadas no capítulo 1 do Lao Zi Dao De Jing, por isso
representarão sempre uma face oculta dos Seres, intransponível.
No Nei Jing, Qi Po responde ao Imperador Huang Di:

“O Céu em mim é virtude


A Terra em mim é sopros
A virtude flui, os sopros se espalham e há vida.
Que viventes surjam revela as Essências
Que as duas Essências se abracem, revela os Espíritos” (Nei Jing
Ling Shu Su Wen, cap.8, citado por Vallée & Larre, 2004, p.57).

No que diz respeito às Essências, o deslumbramento frente à afirmação


acaba sendo maior que o esclarecimento em si “certamente porque nem todos nós
somos iniciados!” (Vallée & Larre, 2004, p.80). Por isso, recomenda-se “modesta e
79

pacientemente” apreender a verdadeira abrangência e buscar seus profundos


significados.
Eyssalet (2003, p.99-100) discorda da tradução comumente utilizada para
Jing, Essências, justificando que esta introduz uma controvérsia ligada à própria
história da humanidade. Cita Aristóteles que define Essências como “a parte mais
sutil, mas também a mais determinante, característica, dos seres, das coisas”.
Embora Jing sendo sutil, constitui, de fato, o aspecto dos Seres menos diferenciado
que existe. Apesar disso, manteremos o termo “Essências” pela sua larga utilização
nos textos ocidentais sobre a Tradição chinesa.
As Essências, para este autor são como um pano de fundo sem limite (noção
espacial) do Céu Anterior, que origina não só a vida, mas toda sua existência e seus
ritmos, ou seja toda a manifestação. Uma trama (noção temporal) onde se exprimem
todas as trajetórias possíveis sob o impacto direto e constantemente renovado de
Hua, sem o qual não são energia. Não possuem forma, sendo não determinadas e
não específicas. Também não são energia, pois, não tem potencial nem dinamismo
próprios. São responsáveis pela origem, estruturação de base e manutenção das
formas vivas. (Eyssalet, 2003, p.65, 76, 115 e 279).
As propriedades das Essências de modelos de cada forma de vida
(estruturação de base) referem-se às Essências do Céu Anterior e as de base de
sua manutenção às do Céu Posterior (Vallée & Larre 2004, p.78).
Eyssalet (2003, p.354) nos mostra outra relação complementar a de Vallée &
Larre, de Jing com a tríade Céu/Homem/Terra: no Céu, as Essências são origem
das qualidades (Han); na Terra são o reservatório nutritivo e de vitalidade; e no
Homem é a natureza própria, o Destino, o que subentende o viático da vida, o que a
suporta e a possibilita.
As Essências são o que liga a vida, os Seres, ao Tao. Essa ligação é igual
para todas as formas de vida, para todos os Seres, embora todas as características
qualitativas das formas e dos Sopros (das manifestações) sejam distintas. Ele é a
origem das qualidades. Elas são o aspecto mais sutil dos Seres. Por isso mesmo é o
menos diferenciado que existe, pois, toda a vida está ligada e sustentada no plano
indistinto (Eyssalet, 2003, p.100).
Se da massa indistinta surgem seres vivos, há uma instância (as Essências)
que unem a origem peculiar e a natureza específica (Vallée & Larre 2004, p.80). É o
que permite vidas diferentes no seio do Um. Por isso “Que viventes surjam revela as
80

Essências” (Nei Jing Ling Shu Su Wen, cap.8, citado por Vallée & Larre, 2004, p.57).
E todas as vidas – para Dulcetti Junior & Sichero (2004, p.60) segundo os
chineses, tudo no Universo tem vida, sendo o Homem seu representante – são fiéis
à sua natureza, sua origem.

“Grande Virtude revela a natureza íntima


De uma seguidora da Via
A Via coisa vaga indistinta
Tão indistinta e tão vaga
Nela estão os símbolos
Tão vagos e tão indistintos
Nela estão os Seres
Tão secretos tão ocultos

Nela estão as Essências


Essências muito puras [autênticas]
Nela está a fidelidade
Da Antigüidade aos nossos dias elas mantêm seu Nome
Presidindo à sucessão de todos os Seres” (Lao Zi, cap.21, citado por
Vallée & Larre, 2004, p.82).

Segundo o Su Wen, cap.4, “as Essências são o enraizamento do ser” no Céu.


Não que as Essências sejam diferenciadas, mas são o aspecto que possibilita
e dá estrutura de base para a diferenciação dos Sopros e das formas. Encontra-se
no termo “Essências” um significado no fato de existirem tantos Seres diferentes
com uma origem comum. “O que existe, existe com e pelas Essências. Ao
particularizarem-se, elas revelam as características da espécie” (Vallée & Larre,
2004, p.84 e 86).
Levando-se em conta que todos os Seres, incluindo é claro o Homem, são
filhos do Céu e da Terra – o que significa dizer que possuem um aspecto Yin e um
Yang, um lado “em ação” e um lado “em potência”, um “interior” e um “exterior” –
nesta participação as influências celestes e terrestres podem se combinar de muitas
maneiras diferentes e em muitas proporções diferentes, que é o que faz sua
diversidade infinita (Guenón, 1993, p.53).
As Essências, como já citado, dão origem à vida e estruturam sua base
(qualidades diferenciadas dos Seres), possibilitando a manifestação diferenciada no
81

Um, através de sementes e produtos genéticos. Ou seja, cada indivíduo reúne em si


as Essências de seus antepassados.
A vida nasce do encontro das Essências do homem e da mulher levadas nos
líquidos internos e no sangue, respectivamente. De fato, esperma se chama Jing Ye
(Princípio Vital, ou Essências, dos líquidos internos) e o poder procriador feminino
Jing Xue (Princípio Vital, ou Essências, do sangue) (Eyssalet, 2003, p.77, 78, 86,
115 e 171).
Ao longo da vida, até a morte, os Seres assimilam o que lhes é apresentado,
incorporando novas Essências do ambiente (nas sensações e sentimentos, na
respiração e na alimentação). Nas Artes da Longa Vida, recomenda-se reforçá-las e
acumulá-las. Respiração inclui aqui todas as vias de absorção pela pele (água, ar,
sol, irradiações cósmicas etc) ligadas ao clima, às atividades e às formas de vida, e
os sentimentos compreendem os sentimentos de belo, geradores de plenitude e de
harmonia interna. (Eyssalet, 2003, p.77, 78, 86, 115 e 171).
Segundo Vallée & Larre (2004, p.80) as determinações da espécie,
manifestadas em variedade e indivíduos distintos, fundamentam um Ser, presidindo
ao seu desenvolvimento e lhe permitindo conservar-se fiel à sua identidade.
Possibilitam, ainda, a autonomia do Ser, favorecendo a afinidade e autorizando a
assimilação, com as necessárias ressalvas à compatibilidade. Assim, as Essências
funcionam como um pano de fundo para a vida, de uma forma bastante dinâmica
que é a manutenção diferenciada das formas vivas, de cada Ser.
Por isso elas regulam as condições de vida para cada um, do nascimento à
morte, o aparecimento ao desaparecimento (Vallée & Larre, 2004, p.85).
Os Sopros (Qi, a energia) são dependentes das Essências. Originam-se delas
e retornam a elas. Assim, as Essências, recebidas na concepção dos pais, e
adquiridas na natureza (alimentos, respiração, sentimentos e relações humanas)
originam os Sopros (subentendidos aqui como todas as funções do organismo) que
circulam pelo corpo. Da mesma forma, os Sopros produzem (retornam) Essências
numa forma de reserva, condensação ou para reutilização, por exemplo, nos
processos de procriação (Eyssalet, 2003, p.68-75).

“O Princípio Vital (Essências) com a Metamorfose fazem os Sopros”


ou “A Metamorfose do Princípio Vital faz os Sopros” (Huang Di Nei
Jing Su Wen, cap.5, citado por Eyssalet, 2003, p.75).
82

Com os Sopros, as Essências possuem uma reciprocidade Yin/Yang. As


Essências são Yin, o repouso, a conservação, o interior, e os Sopros Yang, a
atitude, a expressão, o exterior. Mesmo não sendo energia nem possuindo forma, é
anterior e necessária a ambas (Eyssalet, 203, p.115).

2.2.3.4 OS TRÊS TESOUROS (SAN BAO)

“Assim, portanto, no ser humano, um corpo é apenas o Princípio Vital


sutil (Jing), o Sopro (ou Energia Vital Qi) e o Espírito Criador
individual (Shen)...
Estes Jing, Qi e Shen, são chamados de os Três Tesouros...” (Lu
Dong Bing, citado por Eyssalet, 2003, p.320).

Este mestre taoísta do século VIII d.C., deixa claro quais são, para a Tradição
chinesa, os Três Tesouros. São “três fases inseparáveis de uma mesma realidade,
no centro da experiência humana”, experiência esta de Transformação constante do
Céu Anterior para o Posterior. São três modulações do mesmo princípio. São a
mensagem do Céu Anterior para o nível da manifestação. Não levá-los em conta ou
simplificá-los seria perder a “relação exata” com o Céu Anterior, perder a “Escuta
fundamental” ou o “Não-Agir”. As Essências são a origem, a matéria prima; os
Sopros o movimento, agente de transmissão e da Transformação; e os Espíritos a
potência que cria, integra, conduz, engloba e transborda os dois primeiros. As
Essências, levadas pelos Sopros transformados, se põem a serviço dos Espíritos
(Eyssalet, 2003, p.291, 293, 325 e 380).
Poder-se-ia relacioná-los ainda ao princípio ternário, ou Tríade,
Céu/Homem/Terra. Os Espíritos como o Céu, gerador dos princípios, as Essências
como a Terra, receptora dos impulsos celestes, provedora das formas com as
potencialidades à manifestação, e os Sopros, como o nível Homem integradora dos
comandos celestes dos Espíritos e produzidos através da Transformação das
Essências. Os Espíritos, agindo sobre as Essências mobilizam os Sopros através da
metamorfose conduzindo-os no Ser
Para o retorno ao Vazio unindo-se ao Tao, objetivando não só a eficácia na
puntura, mas a própria busca da saúde e da longevidade, à vida “Simples”,
83

aconselha-se a purificar os Três Tesouros:


- Através da intuição e escuta interna, proporcionar o encontro e
cruzamento das Essências inatas (ancestrais) e adquiridas (respiração,
alimentação e sentimentos), e destes com o Princípio Vital Original,
autêntico, do Céu Anterior, indeterminado, não apegado, sem desejo,
ligado “pano de fundo”. Não desperdiça e procura acumular Essências.
Isso leva a...
- Deixar aparecer o movimento, a energia autêntica do Céu Anterior,
ajustando-se ao fluxo espontâneo criador, rendendo-se a ele, deixando o
Sopro do Céu Anterior conter e guiar espontaneamente o do Céu
Posterior. Isso só é possível...
- Através da abertura da consciência, no recolhimento ou na meditação, ao
Espírito Criador autêntico. Através do encontro dos Espíritos Original
(intuição sem limites) com o Espírito Discursivo (mental e reflexivo). Da
integração do último com o “pano de fundo”, não o eliminando, o detendo
ou criando o Vazio, mas deixando-o encontrar o lugar certo e sua relação
adequada com a luz do Espírito Original, de onde se origina (Eyssalet,
2003, p.292, 296-302).

Assim, para os três, é preciso ligar seus aspectos do Céu Posterior com a sua
origem, o Céu Anterior. Mas para este retorno, não se pode se desvincular das
funções no Céu Posterior: Essências (equilíbrio de consumo vital, da expressão
sexual), Sopros (equilíbrio da inspiração e expiração e de tudo que se resulta disso,
do movimento da vida) e Espíritos (equilíbrio da função intelectual). Assim, para a
obtenção dos Três Tesouros é necessário a conclusão (Cheng) do Céu Posterior a
partir do Céu Anterior. (Eyssalet, 2003, p.345 e 308).
As Essências, como “pano de fundo” e origem da vida, indiferenciado, não se
pode distingui-las, vê-las. Os Espíritos, orquestrantes desta vida, deve-se apenas
ouvi-los, mas através da escuta interna. Então, para o sensorial, são inaudíveis. Os
Sopros, princípios da forma, gerando-a, alimentando-a, transformando-a, são
impalpáveis, imperceptíveis por serem seu movimento em si.

“Olha-se, mas sem ver denomina-se de o Invisível


Escuta-se sem ouvir e chama-se de o Inaudível
84

Apalpa-se sem atingir e chama-se de o Imperceptível


Eis três coisas inexplicáveis
Que confundidas fazem a Unidade” (Lao Zi, cap.14,
traduzido para o francês por Larre, 1972).

Desta interpretação, tudo que é passível de percepção sensitiva, a luz


unificante da vida, seus ritmos, rumos e formas, referem-se ao Céu Posterior, e o
que é imperceptível ao Céu Anterior. Antes de tudo, essa noção – saber os sinais no
mundo manifestado que o plano dos princípios nos envia – é imprescindível para se
atingir o Vazio do Céu Anterior, o Wu Wei.

“O Santo consumado não age. Tudo é obtido a partir disso...


... o ser destes Três Tesouros, embora provenha do Céu Posterior,
os homens sabem muito pouco (sobre ele)!...
É impossível (percebê-lo) pelo pensamento, (muito menos), discuti-
lo; contudo, em outro plano, o Céu Anterior, não é possível perdê-lo...
Perder estes Três Tesouros é perder a capacidade do não-agir, é
ignorar o Céu Anterior...” (Lu Dong Bing, citado por Eyssalet, 2003,
p.320).

O praticante de MTC só terá capacidade de diagnosticar e tratar o paciente se


sua Virtude estiver desobstruída, se estiver enraizado em seus Espíritos e se se
deixar governar por eles. Deixar fluir a Virtude para que o Espírito conduza nosso
saber. No Nei Jing, Huang Di inicia seu questionamento ao Qi Po afirmando:

“Para toda puntura, o médico consiste, antes de tudo, em não


falhar quanto ao enraizamento nos Espíritos” (citado por
Vallée & Larre, 2004, p.31).

Para Vallée & Larre (2004, p.43) o autor de Nei Jing Ling Shu sempre trata do
Grande acupunturista, que, no diagnóstico, chega até os Espíritos do paciente. “Os
Espíritos se comunicam livremente entre si”.

“Espíritos vêem Espíritos e falam com Espíritos. Somente eles


podem dizer-me algo sobre mim mesmo e ir ao encontro íntimo dos
outros” (Vallée & Larre, 2004, p.107).
85

A puntura só é realmente eficaz quando parte de um acupunturista cujo


Espírito consegue alcançar o âmago da animação, que são os Espíritos do paciente
(Vallée & Larre, 2004, p.27).
Os Espíritos, por serem testemunhas e agentes das mudanças e
metamorfoses, a ação sobre eles resulta na Transformação espiritual (nível Homem)
e corporal (nível Terra) no paciente. Mas saber atingí-los requer que os Espíritos de
quem medica possam, livremente, agir. Segundo Eyssalet (2003, p.214) movimentos
ginásticos conscientes, realizados em horas propícias, a alimentação, o clima, o
local de habitação facilitam e intensificam o encontro das Essências com os
Espíritos e um conseqüente aperfeiçoamento energético. Leva a uma escuta interior,
que deixa surgir as forças de mudança que se acham incluídas em nós, abrindo
nossa consciência, de forma cada vez mais vasta e sutil.
Assim, se o médico tradicional não estiver enraizado nos Espíritos, se não
tiver atingido um elevado nível de Espírito Vital (acumulando Essências), não poderá
diagnosticar nem tratar, de modo profundo, ou seja, não chegará ao enraizamento
nos Espíritos do paciente.
Espírito Vital são as Essências apreendidas pelo Espírito. No exame do
paciente, deve-se observar a situação e a indicação da tendência que se manifesta
em aumento ou diminuição dos Sopros e/ou do Espírito Vital (Vallée & Larre 2004,
p.37). Ou seja, determinar os excessos e insuficiências quando a relação
Essências/Espíritos esta desequilibrada e verificar os Sopros autênticos quando há
equilíbrio (Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.115).

“Para retificar o Espírito (do doente)...


a gente o examina direto nos olhos
(Assim que se fixa seu Espírito), se controla seu Shen...
para que os Qi circulem mais facilmente” (Huang Di Nei Jing Su Wen,
cap.54, citado por Eyssalet, 2003, p.213).

“(estabelecido na) tranqüilidade da intenção (dirigida), observa-se o


que se deve (ou ‘os signos’) e examinam-se as mudanças do que
chega...
é o que se chama no próprio coração do Obscuro, não lhe
reconhecer a forma...
(mas) ver (a chegada do Sopro) (se estendendo) como o vôo de
corvos, observar-lhes o agrupamento, como as espigas de milho de
86

grãos comprimidos...
Dirigir sua observação a essa revoada (de corvos), sem saber do que
(ela) se trata...” (Huang Di Nei Jing Su Wen, cap.? citado por
Eyssalet, 2003, p.286).

“O prático põe-se em certa disposição interna, pela boa disposição


das circunstâncias externas, assim como pela sua vida interna, e
facilita a mesma disposição no doente, para chegar à esta
deslocação dos Espíritos, que é o objetivo procurado” (Huang Di Nei
Jing Ling Shu, cap.27, citado por Vinogradoff, 2000).
87

2.2.4 O “NÃO-AGIR” (WU WEI)

O não-agir (Wu Wei) constitui um dos objetivos a serem alcançados pelos


seguidores da Tradição taoísta incluindo os médicos tradicionais. O não-agir não se
trata de uma passividade, de “não fazer” simplesmente, de deixar tudo como está. É
um “não fazer” ativo, consciente. Alguns autores o descrevem como o Agir não Ativo
(no caso Wei Wu Wei) (Eyssalet, 2003, p.207) ou ainda “não-interferir” (Vallée &
Larre, 2004, p.164) com a natureza, com os ciclos cronobiológicos. É saber
conhecer esses ciclos e não interferir e sim saber viver de acordo com eles.

“A saúde, a vitalidade e a longevidade são obtidas por aquele que


não nada contra a correnteza, mas, sim, mergulha e se funde na
corrente da vida ao seu redor, manifesta neste instante, neste tempo.
Saber atravessar as tempestades, resistir à umidade tenaz e
penetrante é uma proteção sem igual: poupam-se as forças; os
Espíritos, serenos, mantém seu controle, tudo continua a circular e a
regenerar-se, sem dano para o mecanismo sutil da vida” (Vallée &
Larre, 2004, p.175).

Segundo Vinogradoff (2000), o Wu Wei está relacionado com o conceito de


Shun, o qual dá a idéia de “deixar-se levar pelo fluxo natural da existência (...) casar
com o movimento, não intervir sem razão”. Complementar a Shun está Ni o qual
veicula-se a idéia de rebelar-se contra a ordem das coisas. O adoecimento, portanto,
é um estado de Ni, por não conformidade com a ordem cósmica.
O Homem Verdadeiro, descrito no início deste estudo, ao passar da
circunferência ao centro, do “exterior” ao “interior”, desempenha em relação a este
mundo a função de “motor imóvel” cuja ação de presença imita em seu domínio, a
atividade “não atuante” do Céu. O Homem que ocupa o centro é um representante
do Céu e por ele deixa fluir a “Atividade do Céu” (Guenón, 1993, p.56 e 104). O não-
agir, portanto, está na posição central, de pivô, idêntica à dos Espíritos. É a postura
de manter-se no Centro.
O não-agir é deixar agir através de si mesmo, de não entravar a ação
universal que se exprime na ação própria dos Espíritos, por ações resultantes de
medos e cálculos. A gestão correta pela escuta (dos Espíritos) faz de cada um Rei, e
88

a completude do Céu Posterior depende da justiça desse governo, formado antes de


tudo pelo não-agir (Eyssalet, 2003, p.166 e 345).

“A ação repousa inteiramente na unidade central, o


desencadeamento da ação se encontra nos dois olhos. Os dois olhos
são como o timão da grande carruagem, que faz girar toda a criação;
eles põem em movimento os pólos da luz e da obscuridade” (Tratado
da Flor de Ouro, p.103, citado por Eyssalet, 2003, p.113).

É relativamente fácil relacionar os dois olhos da citação acima com os


princípios opostos Yin e Yang, os quais complementarmente, agem a todo instante
sobre os Seres através das mudanças e metamorfoses. Mais estritamente, os dois
olhos poderiam ser relacionados também aos dois olhos da figura do Tai Ji.
Ocupar o Centro, entretanto como foi visto, não é fácil. É o Caminho de maior
exigência ética e prática. Ocupar o Centro não é um estado, é um dinamismo, que
mantém tudo junto, em equilíbrio e sinergia. O Justo Meio não é uma posição de
fraqueza prudente ou de neutralidade temerosa e sim, como ressalta Anne Cheng,
uma “exigência extrema” (Vallée, 2004).

“ O oco do Céu/Terra acolhe a vida. É a idéia do centro que vive,


local da composição dos influxos, da trocas. Nesse nó vital, que se
mantém em repouso, que põe em movimento, o Santo cumpre
perfeitamente. Para viver como convém, não é a Benevolência que é
preciso viver: é suficiente ocupar o centro” (Larre, 1972, citado por
Dulcetti, 2005).

“Os Santos, adotavam a prática do não agir


Eles se entregavam ao ensinamento sem palavras

Dez Mil seres se manifestam eles não os rejeitavam


Fornecendo às suas necessidades sem monopolizar
Colocando-os ao seu serviço sem se impor
Desempenhando a sua tarefa sem tardar

Não tardando, eles permaneciam para sempre” (Lao Zi, cap.2,


traduzido por Larre, 1972).
89

O Wu Wei tem a mesma significação do “Motor Imóvel” de Aristóteles


(embora este pareça jamais ter aplicado plenamente suas conseqüências). O não-
agir não é a inércia, mas ao contrário, a plenitude de atividade, mas uma atividade
interior e transcendente, não manifestada (Guenón (1973, p.57):

“O sinal exterior desse estado interior é a impertubabilidade; não a do


bravo que se agita só, pelo amor e pela glória, sobre um exército
disposto na batalha; e sim a do Espírito que, superior ao Céu e à
Terra, a todos os Seres, habita no corpo ao qual não se atem, não
faz nenhum caso das imagens que seus sentidos lhe provém,
conhece tudo pelo conhecimento global em sua universalidade
imóvel. Esse Espírito, absolutamente independente, é senhor dos
homens...” (Zhuang Zi, cap.5, citado por Guenón, 1973, p.57).

Deste estado interior, pleno de atividade que se reflete pela


“impertubabilidade” externa, o sábio, “Senhor dos Homens” proporciona o
reequilíbrio e a harmonia ao seu redor, pela “simples” atividade de seu Espírito:

“O Céu físico se adaptaria docilmente aos movimentos de seu


Espírito; todos os Seres seguiriam o impulso de sua intervenção,
como o povo segue o vento. Por que esse homem iria aplicar a
manipulação do Império, quando deixar ir basta?” (Zhuang Zi, cap.5,
citado por Guenón, 1973, p.58).

O não-agir na clínica é uma extensão natural da atividade daquele que,


praticante de MTC, busca seguir o natural, o Caminho do justo meio. É um estado
sutil de possibilitar, pela atividade interior, o doente voltar ao equilíbrio de seus
Sopros, o mais próximo do Meio. A ação externa na medicina tradicional deve refletir
um estado interior do médico.
O auge de sua eficácia é “percebe o Espírito da doença e o remove antes que
possa assumir qualquer forma, e por isso seu nome não sai de casa” (Cleary, 1988,
p.9).

“Tem alcançado a impassibilidade perfeita; tem chegado à verdade


imutável, ao conhecimento do Princípio universal único. Deixa os
Seres evoluírem segundo seus destinos, e se tem, ele, no centro
imóvel de todos os destinos...” (Zhuang Zi, cap.5, citado por Guenón,
90

1973, p.2).

Remontando à origem da vida do paciente, onde seus Espíritos estão


enraizados, o acupunturista é eficaz sem violentar o organismo e sem violar o
indivíduo (Vallée & Larre, 2004, p.37).
Segundo Granet (2004, p.324), o Santo, assim como o Tao, limita-se a
“irradiar uma vacuidade propícia ao desenvolvimento espontâneo de todos os
seres”.
91

3. CONCLUSÕES

Conclui-se assim que, a importância da prática da MTC baseada na Tradição


reside no fato de esta é a fonte daquele conhecimento, o qual é intuitivo, supra-
racional e metafísico, muito distinto do pensamento ocidental moderno que em geral
se aprende desde o nascimento.
Na Tradição chinesa constam os mesmos símbolos e emblemas sintéticos
contidos na MTC, pois, todos surgem dos mesmos Princípios. Reconhecer e
compreender estes Princípios é essencial para se atingir o conhecimento verdadeiro
(metafísico) e para a eficácia na MTC.
Além disso, os ensinamentos da MTC e da própria Tradição propiciam, e esta
é uma de suas principais diferenças, uma Transformação especial no médico
tradicional.
A MTC, dentro dos Princípios da Tradição, é dirigida não só ao doente ou
paciente, mas também ao médico tradicional e, principalmente, na relação entre os
dois, no Vazio que os separa, ou que os une.

“Se a relação não for estabelecida corretamente no prático, no


doente e entre os dois, ou ainda assim o doente recusar-se a querer
viver a sua vida, os seus Espíritos não se atualizam e não realizam
os efeitos do tratamento. Este último não pode operar, é inútil tentar-
se” (Huang Di Nei Jing Su Wen, cap.14, citado por Vinogradoff,
2000).

Quando o médico se dedica, e dá atenção merecida à base tradicional da


MTC, ele aprende, através de “regras de vida” transmitidas nos ensinamentos, a
ouvir mais claramente sua intuição, sua inspiração, o que há de inato e autêntico em
si mesmo. Faz isso se transformando, desobscurecendo sua própria Virtude.
Enraíza-se em seus Espíritos, deixa-se governar por eles, os quais então, trazem a
Virtude. Passa a “ouvi-los” e, de certa forma, “entendê-los” melhor.
Diagnostica de forma precisa, buscando a profundidade e procurando o
significado de cada sinal observado, enxergando os Espíritos do doente. Atinge
finalmente seu Espírito vital. Daí a eficácia e perspicácia, na busca dos Sopros
autênticos. Não que a intuição seja exclusiva do estudante tradicional, mas este a
92

entende melhor e a enxerga não simplesmente como um auxiliar, mas como um pré-
requisito para sua prática.

“(...) Com cautela, mas sem hesitação, controla o modo e a


intensidade de seu gesto. É o que lhe dá a possibilidade de chegar,
com seus Espíritos, até os Espíritos. Há no seu agir a qualidade de
obra-prima: uma realização sem erro, de inspiração infalível” (Vallée
& Larre, 2004, p.43-44).

Aquele que realmente compreendeu e absorveu os conhecimentos recebidos


(Céu Posterior), e aprende a colocá-los sob os influxos celeste (Céu Anterior) se
transforma como convém e busca a viver segundo o Tao, em harmonia com o todo,
acumulando Essências e pondo-as a serviço dos Espíritos.
A única forma de se obter resultado está na delicadeza da mão do acupuntor,
a semelhança da delicadeza dos próprios textos chineses clássicos. Não se trata de
um simples refinamento, mas um pré-requisito para a eficácia (Schatz, 1982).
O conhecimento e compreensão das Ciências Tradicionais permitem a
integração do corpo com a mente/espírito (o Céu no Homem) obtendo-se a cura de
doenças e proporcionando experiências diretas e conscientes levando a soluções
simples dos problemas do cotidiano. Isso pode conduzir a uma vida “saudável,
próspera e feliz”. O praticante de MTC, como Ciência Tradicional, segue o caminho
interno e subjetivo, podendo experimentar, vivenciar e ampliar suas capacidades
mentais, da consciência e energéticas corporais, permitindo viver a realidade com
discernimento, compreensão e atingir a origem das coisas (Dulcetti Junior & Sichero,
2004, p.160).
Como Larre (1972) diz, “para viver como convém, não é a Benevolência (Jen)
que é preciso viver: é suficiente ocupar o centro”.
O médico tradicional que busca o conhecimento apenas para a sua prática
clínica assemelha-se ao do pensamento confucionista, que através da Benevolência
visa a transformação social através da educação do outro. Aquele que busca o
conhecimento para sua própria vida é o taoísta do Wu Wei, lhe interessa seguir o
Caminho e isso lhe basta.
As Transformações e Mudanças, Bian Hua, ocorrem a todo instante e por
toda parte, não apenas no ser humano, mas em todo o universo, do não
93

manifestado para o manifestado, sob o comando dos Espíritos, a qual é sua função
própria. Os Seres, então, são a mutação, pois, não estão contidos no universo
manifestado, mas o são.
A Transformação que o médico tradicional “sofre” enquanto busca o
conhecimento teórico – única via indispensável para se atingir a Transcendência
segundo Guenón (1939/1981 – Metafísica) não é isolada, não é uma Transformação
apenas, mas aquela que o faz retomar o Caminho do Centro.
Ou ainda, a Transformação prévia é o que o conduz ao caminho do
conhecimento. Embora isso pareça contraditório ou dois caminhos inversos e duais,
seu Princípio é mesmo, é atemporal e surge antes no não-manifestado.
Aquele que ocupa o centro e que já alcançou a plenitude do estado humano é
definido como Homem Verdadeiro. O Homem Transcendente, que às vezes pode
ser chamado de Homem Divino ou Homem Espiritual, está um pouco mais além
deste estado. Já atingiu a plenitude, a realização total e a Identidade Suprema, já
não sendo propriamente um Homem no sentido individual desta palavra, pois já está
totalmente liberado de suas condições específicas assim como de todas as
condições limitativas de qualquer estado de existência (Guenón, 1993, p.102-106 e
136-137).
O Homem Verdadeiro é apenas virtualmente um Homem Transcendente, pois
não pode atingir nenhum outro estado que se possa distinguir, posto que já está no
centro, embora não de maneira efetiva. O Homem Verdadeiro ocupa o centro do
estado humano (pólo terrestre) e o Homem Transcendente o centro do Universo
total (pólo celeste). O pólo terrestre é um reflexo do pólo celeste, por isso a
virtualidade do Homem Verdadeiro. Porém, a posição central deste é a mais próxima
da transcendência. Antes disso, até se atingir a “graduação” de Homem Verdadeiro,
existem três sub-graduações (Guenón, 1993, p.102-106 e 136-137) descritas no Nei
Jing Ling Shu Su Wen:

“Na alta Antigüidade viviam os homens autênticos (Zhen ren)


Mestres do Céu/Terra controlavam o Yin/Yang
Respirando as essências e os sopros vitais
Estabilizando-se livres pelos espíritos
Em suas carnes realizando a unidade
Assim podiam
Atingir a longevidade do Céu/Terra
94

Sem conhecer o declínio


Pois, eles viviam o Tao.

No tempo da média Antigüidade


Viviam os homens perfeitos (Zhi ren)
Pureza na virtude
Perfeitos no Tao
Viviam em harmonia com o Yin/Yang
Regulavam-se pelas quatro estações
Retirados dos afazeres profanos
Reservariam as essências na manutenção da integridade dos
espíritos
Caminhavam livres no intervalo Céu/Terra
Capazes de perceber pelo olhar e pela audição
O que estava além das oito fronteiras do mundo perceptível.
Assim, acrescentavam e intensificavam a sua longevidade natural
Até atingir e tornarem-se homens autênticos.

Em seguida havia os sábios (Sheng ren)


Que se harmonizavam com o Céu/Terra
Seguindo a ordem universal dos oito ventos
Amavam caminhar nos afazeres profanos
Abandonaram dos seus corações a aversão e o ódio
As suas condutas os liberavam dos desejos.
Com hábitos de elegância
Buscavam se diferenciar
No exterior, evitavam esforços do corpo
No interior, não se afligiam com preocupações.
Buscavam o contentamento e a serenidade
Com o organismo em perfeito estado
Evitando perder essências e os espíritos
Atingindo a idade dos cem anos (Huang Di Nei Jing Su Wen, cap.1,
citado por Dulcetti Junior & Sichero, 2004, p.142-143).

Não se tem a pretensão de que apenas com este breve estudo, o leitor torne-
se um Homem Verdadeiro ou ainda um Homem Transcendente. O que se busca
aqui é ressaltar a importância deste estudo, ou ao menos, dar a devida relevância
para o conhecimento tradicional para que este não seja profanado na tentativa de
seu embasamento racional.
95

Importante precaver ainda que o poder de diagnóstico e de cura durante a


intervenção não é do médico tradicional. Como dito várias vezes, o ato perfeito, o
“Saber-Fazer” vem do enraizamento nos Espíritos, que são o celeste em cada um. O
poder então vem do próprio Tao. Sob este olhar, o médico tradicional é um
instrumento, um veículo de ação.
O Homem que ocupa o Centro é um representante do Céu, o qual se
manifesta através dele de certo modo, já que sua ação, ou melhor, sua influência,
imita a “Atividade do Céu”. Esta influência que é não-atuante implica em nenhuma
ação exterior. O Homem central funciona como um “motor imóvel”, ordenando as
coisas sem intervir (Guenón, 1993, p.104-105). Este é o Wu Wei, o Não-Agir:

“Os antigos soberanos, abstendo-se de toda ação própria, deixavam


o Céu governar por eles... No teto do Universo, o Princípio influencia
ao Céu e à Terra, os quais transmitem a todos os seres esta
influência, que, vinda ao mundo dos homens, faz manifestar os
talentos e as capacidades (...) Por isso é porque, os antigos
soberanos não desejavam nada, e o mundo estava em abundância;
não atuavam, e todas as coisas se modificavam segundo a norma;
permaneciam abismados em sua meditação, e o povo estava na
ordem mais perfeita“ (Zhuang Zi, cap.12, citado por Guenón, 1993,
p.105).

O erro inicia-se quando o homem tenta tomar este poder para si, quando
tenta manipulá-lo de forma profana, simplificando-o ao extremo. Neste momento,
deixa de ouvir seus Espíritos, não consegue deixá-los governar, pois está movido
por suas paixões. Falta-lhe humildade para enxergar que o inominável, o
indiferenciado, o Misterioso, o indistinto não está ao alcance do homem. Pode-se,
até certo ponto, tentar compreendê-lo e agir segundo suas leis imutáveis, mas
jamais subjugá-lo.

“(...) Um homem que não age segundo seu Coração e pretende


organizar os Sopros do mundo sob o Céu lembra o indivíduo com
ouvido musical pouco apurado que pretende afinar uma bateria de
sinos e tambores, ou o cego pretendendo dedicar-se à decoração.
(...) O Império sob o Céu é vaso sagrado que não se pode manipular.
Quem o manipula fracassa; de quem o agarra ele escapa” (Huainan
96

Zi, cap.1, citado por Vallée & Larre, 2004, p.127-128).

“Quanto ao Céu Anterior (que está fora de questão querer conhecê-


lo...), nada, contudo, nos é mais próximo, nada, do qual sejamos
mais intimamente!... Não podendo conhecê-lo, podemos apenas sê-
lo!...” (Eyssalet, 2003, p.324-325).

“Indo-se ao seu encontro não se vê sua face


Marchando à sua retaguarda não se vê seu traço
E no entanto
Quem tivesse nas mãos a Via antiga
Poderia conduzir o presente.
Chegar ao conhecimento da Antiga gênese
É a isso que se chama
Desenrolar da Via” (Lao Zi, cap.14, traduzido por Larre, 1972).
97

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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chi-chuan, psiquismo, homeopatia, ioga, i king, macrobiótica, astrologia
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14. _____. El simbolismo de la cruz (1931). http://www.hermanubis.com.br. Acesso


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31. WILHELM, Richard. I ching o livro das mutações. Trad. Alayde Mutzenbecher e
Gustavo Alberto Corrêa Pinto. São Paulo: Pensamento, 1982. Título original: I
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1956.
100

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHINESAS

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• Traduzido para o alemão e comentado por WILHELM, Richard. I ching o livro das
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• Citado por DULCETTI JUNIOR, Orley & SICHERO, Pérola Goretti. Medicina
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• Citado por VALLÉE, Elizabeth Rochat de la & LARRE, Claude. Os movimentos


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• Citado por VINOGRADOFF, Michel. Yi Jing e acupuntura, um mesmo estado de


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• Citado por EYSSALET, Jean-Marc. Shen ou o instante criador. Trad. Gilson B.


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• Traduzido para o francês e comentado por LARRE, Claude. Tao te king. Trad.
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102

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• Citado por EYSSALET, Jean-Marc. Shen ou o instante criador. Trad. Gilson B.


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• Citado por VALLÉE, Elizabeth Rochat de la & LARRE, Claude. Os movimentos
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Esmeralda Madureira. Belo Horizonte: s. e., 2004.

ZHONGHO JI. (Livro do equilíbrio e da harmonia). Obra taoísta medieval.

• Citado por CLEARY, Thomas. A arte da guerra. São Paulo: Pensamento, 1988.

ZHUANG ZI. Livro de zhuang zi. Obra taoísta do século IV a.C.

• Citado por BUENO, André (2004). A estrutura do pensar chinês.


http://criticanarede.com/his_chines.html – História da filosofia. Universidade
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• Citado por EYSSALET, Jean-Marc. Shen ou o instante criador. Trad. Gilson B.


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• Citado por GUENÓN, René. A grande tríade. São Paulo: Pensamento, 1993.

• Citado por VALLÉE, Elizabeth Rochat de la & LARRE, Claude. Os movimentos


do coração – psicologia dos chineses. Trad. Nicole Mir; revisão Alice B. Arns e
Esmeralda Madureira. Belo Horizonte: s. e., 2004.

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