Você está na página 1de 15

A VERDADE MIDIÁTICA E A VERDADE JUDICIAL

THE MEDIA´S TRUTH AND THE JUDICIAL´S TRUTH

Stanley Botti Fernandes

RESUMO
O presente trabalho tem por objeto o estudo da produção de verdades divergentes por parte da mídia e da
justiça relativamente a fatos considerados como crimes. Partindo da conceituação de verdade como um
conjunto de enunciações discursivas que se pretendem verdadeiras, o trabalho investiga a constituição da
mídia e da justiça como instituições de verdade e as estratégias empregadas para a legitimação de seus
respectivos discursos. Estabelecidas essas bases, o trabalho analisa como a mídia passou a compartilhar com
a instituição judicial o direito de dar “veredictos” sobre crimes e quais conseqüências se verificaram a partir
da perda desse monopólio outrora detido pela justiça. Em seguida, procede-se à análise das disjunções entre
a lógica da ação midiática e a lógica da ação judicial propostas por Boaventura de Sousa Santos que
permitem explicações possíveis sobre as divergências entre as verdades produzidas pela mídia e pela justiça
sobre crimes cometidos.
PALAVRAS-CHAVES: Mídia; Justiça; Verdade; Crime.

ABSTRACT
This paper aims at studying the production of diverse truths produced by the media and the justice related to
those facts deemed as crimes. Starting from the definition of truth as a set of discourse statements which are
taken as true, the paper looks into the composition of the media and the justice as bodies holding the truth
and the strategies used to legitimate their respective discourses. Having established such basis, the paper
analyzes how the media began to share with the legal institution the right to give “verdicts” about crimes and
which consequences have been verified from the moment of the loss of such monopoly by the justice on.
Next, it analyzes the disjunctions between the logics of the media action and the justice action as proposed by
Boaventura de Sousa Santos, which allow for possible explanations about such divergences between the
truths, produced by the media and by the justice, over committed crimes.
KEYWORDS: Media; Justice; Truth; Crime.

Aqui está o passaporte; bem se vê que é amarelo e que serve para fazer expulsar-me de toda parte
onde chego. Quer ler? Ouça o que diz o passaporte: ‘João Valjean a...) condenado liberto, esteve
dezenove anos nas galés; cinco pelo crime de roubo, com arrombamento, catorze por quatro
tentativas de fuga. É homem perigoso’”.
(Victor Hugo, Os Miseráveis)

1. Introdução
No final do século XIX nascia um personagem da ficção literária britânica até hoje reverenciado por
seus admiradores. Criado por Sir Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes, o famoso detetive da Scotland
Yard, era capaz de desvendar os crimes mais inextrincáveis utilizando a lógica dedutiva e o método
científico.
Do outro lado do Canal da Mancha, no início do século XX, vem a lume o romance policial O
Mistério do Quarto Amarelo, de Gaston Leroux. Menos conhecido, porém não menos eficaz, o jornalista
Joseph Rouletabille – também um personagem fictício – é capaz de desvendar uma misteriosa tentativa de
assassinato. A partir de suas investigações o repórter do L’Époque consegue impedir não só a condenação
de um inocente, como também apontar o responsável pela tentativa de assassinato: o detetive que conduzira
a investigação.
Sherlock Holmes e Joseph Rouletabille são dois arquétipos. O primeiro, das instituições de justiça,
da verdade oficial sobre o crime, da verdade estabelecida com base nos sistemas predominantes de produção
de verdade[1] (no caso de Holmes, o método científico). O segundo, um arquétipo da mídia, da verdade não-
oficial sobre o crime, da verdade destemida, que se opõe à verdade oficial e que, inclusive, pode incriminá-la,
denunciar seus erros e abusos. Ambas estabelecem uma verdade sobre um crime: por vezes coincidente, por
vezes colidente. Como afirma Henri Leclerc, mídia e justiça “concorrem num campo: o da verdade” (Leclerc
e Théolleyre, 2007, p. 18).
Embora mídia e justiça concorram no campo da verdade, nem sempre chegam às mesmas
conclusões acerca de fatos considerados como crimes. Tendo isso em mente, como explicar os diferentes
veredictos entre mídia e justiça? Por que mídia e justiça chegam a produzir verdades diferentes sobre um
mesmo fato? Que conseqüências decorrem da produção divergente de verdades pela mídia e pela justiça?
Nosso objetivo com o trabalho é fornecer respostas possíveis a estas indagações, analisando inicialmente
como mídia e justiça se constituíram como instituições de verdade e, posteriormente, analisando as
disjunções entre a lógica de funcionamento da mídia e a lógica de funcionamento da justiça.
É preciso advertir que, ao empregarmos o vocábulo verdade, não queremos nos referir ao conceito
ontológico de verdade, isto é, “que uma afirmação é verdadeira ou falsa se o que é dito corresponde
realmente ao que é” (Klautau Filho, p. 23). Utilizamos o termo verdade para exprimir uma enunciação
discursiva que se pretende verdadeira. A palavra verdade só foi empregada em seu conceito
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4011
ontológico quando grafada entre aspas. Por fim, embora o termo mídia tenha conotação mais ampla, ao
utilizá-lo neste trabalho, o fizemos com o intuito de nos referirmos à atividade jornalística.
2. A Constituição da Mídia como Instituição de Verdade
A etimologia da palavra “mídia” nos fornece algumas pistas sobre sua relação com a verdade:
“mídia” deriva do termo latino media, que significa neutro;media é também o plural de medium, que significa
meio, instrumento mediador, elemento intermédio (Houaiss, 2001). Assim, a mídia seria apenas uma
instituição neutra, mediadora, que não interferiria na comunicação da informação. Por conseguinte, o
produto de sua atividade seria uma “verdade”.
Com o triunfo das democracias liberais como sistema político predominante no Ocidente, a
informação passou a ser considerada conditio sine qua nonpara o exercício da cidadania. Desde Aristóteles
já se afirmava que “o poder da palavra tende a expor o conveniente e o inconveniente, assim como o justo e
o injusto” (1999, p. 146). Como é consabido, o “poder da palavra” aludido por Aristóteles, embora restrito a
um grupo de indivíduos, era exercido publicamente na democracia grega. Da mesma forma, Hannah Arendt
argumenta que a esfera pública é um espaço comum e visível e defende que sem o direito à informação
“abre-se uma margem incontrolada para a mentira e os segredos conservados pelos governantes nas arcana
imperii” (Lafer, 1997, p. 63).
Como veremos, pode-se afirmar que, além da construção dos mitos da neutralidade e da
objetividade da mídia, a revelação pela imprensa dos segredos, das arcana imperii e dos escândalos políticos
durante o século XIX, foi um fator de grande contribuição para a constituição da mídia como instituição de
verdade, pois como afirma Paulo Klautau, o segredo “é usualmente utilizado para impedir o acesso à
verdade. Daí seu parentesco próximo com a mentira” (2008, p. 28). Partindo da idéia de visibilidade oriunda
da reconfiguração da natureza do “público”, veremos como a formação do ethos da profissão de jornalismo
contribuiu para a constituição da mídia como instituição de verdade.
A idéia de visibilidade é trabalhada por John B. Thompson (2005) em A Mídia e a
Modernidade quando faz a distinção entre o “público” e o “privado”. Thompson afirma que esses termos
podem ser compreendidos por meio de dois sentidos principais utilizados nas sociedades ocidentais desde o
final da Idade Média. No primeiro sentido, “público” diz respeito ao domínio político institucionalizado, a
tudo o que é ligado ao Estado, ao passo que “privado” passou a ser compreendido em termos antitéticos ao
que era “público”, isto é, o domínio privado incluía relações pessoais e familiares e a existência de
organizações econômicas que operavam no mercado econômico visando ao lucro. Thompson também
explica que, situadas entre os domínios privado e público, estavam organizações intermediárias, como
organizações sem fins lucrativos, partidos políticos, associações, instituições de caridade etc.
Todavia, os termos “público” e “privado” também podem ter outra conotação. Assim, público pode
ser compreendido como aquilo que se torna do conhecimento de muitos ou de todos, ao passo que privado
pode ser considerado como aquilo que é restrito ao domínio de poucos. Nas palavras de Thompson,
a dicotomia tem a ver com publicidade versus privacidade, com abertura versus
segredo, com visibilidade versus invisibilidade. Um ato público é um ato visível,
realizado abertamente para que qualquer um possa ver; um ato privado é invisível,
realizado secretamente atrás de portas fechadas. (Thompson, 2005, p. 112).
Thompson (2005) explica que embora na Grécia Clássica a política estivesse restrita a um grupo de
cidadãos, o exercício do poder político era relativamente visível, já que os indivíduos se reuniam em locais
públicos e seus debates, argumentações e decisões podiam ser ouvidos e vistos por todos que estivessem
presentes. Desse modo, a publicidade era um elemento constitutivo do exercício político na Grécia Clássica.
Diferentemente, nas monarquias ocidentais da Idade Média, as decisões políticas eram baseadas nas arcana
imperii, de sorte que os negócios do Estado eram decididos em círculos relativamente restritos de pessoas.
Nesse período, apenas algumas decisões eram estrategicamente tornadas públicas e, ainda assim, diz
Thompson, a “publicidade dizia respeito, não ao exercício do poder, mas à sua exaltação” (2005, p. 113).
Por fim, o desenvolvimento do Estado constitucional moderno conferiu maior visibilidade ao exercício
político, sujeitando as instituições políticas a maior controle e conferindo aos cidadãos direitos e garantias.
Nesse contexto, a doutrina das arcana imperii ganhou contornos excepcionais, restrita a questões
consideradas vitais para a segurança do Estado.
Segundo Thompson (2005), o mundo de hoje foi moldado por um conjunto de transformações
institucionais desencadeadas a partir do início da Idade Moderna. Entre elas, menciona as mudanças nas
relações econômicas, a emergência dos Estados-nação, a pluralização dos sistemas de valor e a correlata
fragmentação da autoridade religiosa, além do declínio das formas “tradicionais” de vida. Não obstante a
relevância de cada um desses aspectos, Thompson confere destaque ao impacto da invenção e do
desenvolvimento dos meios de comunicação e de difusão da informação na vida das pessoas, mais
especificamente sobre os tipos de ação e interação.
Antes do desenvolvimento dos meios de comunicação existia uma “publicidade tradicional de co-
presença”, isto é, a publicidade de um evento ou de indivíduos estava relacionada ao compartilhamento de
um lugar comum (Thompson, 2005, p. 114). Essa publicidade, afirma Thompson, tinha um caráter dialógico,
já que possibilitava a interação dos espectadores.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4012
Todavia, o desenvolvimento dos novos meios de comunicação permitiu o surgimento de interações
sociais que prescindem da co-presença, isto é, do compartilhamento de contextos espaciais e temporais
comuns, surgindo, assim, o que Thompson chama de “publicidade mediada”: “a característica fundamental
dessas novas formas”, afirma Thompson, “é que, com a extensão da disponibilidade oferecida pela mídia, a
publicidade de indivíduos, ações ou eventos, não está mais limitada à partilha de um lugar comum” (2005, p.
114). A conseqüência disso foi o surgimento de um “público sem um lugar”, já que não se podia localizar no
tempo e no espaço os indivíduos que haviam tomado conhecimento dos acontecimentos transmitidos pela
imprensa. Portanto, um evento passou a ser considerado público não em função da pessoas presentes que o
testemunhassem, mas em virtude da possibilidade de este evento chegar ao “público sem um lugar”. Assim, o
desenvolvimento dos meios de comunicação social desempenhou um importante papel de transformação na
natureza da publicidade, que deixou de estar necessariamente associada ao compartilhamento de tempo e
espaço.
Essa transformação, por conseguinte, trouxe conseqüências para o campo político. Com efeito,
antes do desenvolvimento da imprensa, a visibilidade dos líderes políticos estava restrita a contextos de co-
presença. Dessa forma, os governantes podiam restringir sua visibilidade a círculos restritos de pessoas,
ampliando sua audiência apenas em determinados contextos com finalidades estratégicas. Nessas ocasiões, os
rituais de visibilidade permitiam ao governante um distanciamento proposital de seus súditos: “a manutenção
da distância atestava o caráter sagrado do poder” (Thompson, 2005, p. 122). Isso explicaria a razão pela
qual raramente se via o monarca ou imperador.
Todavia, com o desenvolvimento dos meios de comunicação social, os governantes passaram a
dedicar maior atenção à sua visibilidade, já que a imprensa, como vimos, permitia a existência de um “público
sem um lugar”. Nesse sentido, a imprensa passou a ser utilizada não somente para veicular atos de governo,
como também para a projeção de uma imagem pessoal do governante. Thompson explica que a publicidade
proporcionada pela mídia permitiu que líderes políticos se dirigissem aos cidadãos sem a mediação dos
partidos políticos, dando origem ao que chama de sociedade da automanifestação. A maior proximidade dos
líderes políticos com o público criou laços de familiaridade e de intimidade, que contribuíram para
dessacralizar a aura que pairava sobre aqueles. “Em síntese, os líderes políticos adquiriram a capacidade de
se apresentarem como um de nós” (Thompson, 2002, p. 69).
Ao mesmo tempo em que a sociedade da automanifestação aproximou políticos e cidadãos, ela se
tornou problemática para muitos políticos. Com efeito, ao se apresentarem como pessoas comuns, os
políticos passaram a ser avaliados menos por sua atuação política do que por seu caráter pessoal. “Embora o
emprego da auto-revelação fornecesse aos líderes políticos e a outros novas maneiras de apelar ao público e
procurar conquistar seu apoio, isso acarretou também novos riscos” (Thompson, 2002, p. 70), uma vez que
não detinham total controle sobre o fluxo de imagens e informações veiculados pela imprensa.
Assim, Thompson explica que no fim do século XVI e início do século XVII proliferaram na
Inglaterra panfletos e corantos (jornais regulares de notícias) ligados a facções políticas que atacavam os
líderes políticos e o rei. A fim de desestimular esse tipo de publicações, o governo britânico impôs pesadas
taxas sobre os jornais e criou leis que fixavam severas penas contra calúnias.
Mas a partir do final do século XVIII e durante o século XIX uma série de mudanças começou a
ocorrer. Essas mudanças são responsáveis, segundo nosso entender, pela constituição da mídia como
instituição de verdade. Essa concepção está diretamente relacionada com um fenômeno denominado por
Thompson de escândalo midiático:
Ao final do século XIX um tipo específico de acontecimento se tornou uma característica
comum da vida social e política. Esse tipo de acontecimento foi o escândalo midiático:
isto é, um acontecimento que implica revelação através da mídia de atividades que
fossem previamente ocultadas (ou conhecidas por apenas um círculo de pessoas),
atividades de caráter moralmente ignominioso e que, ao se tornarem públicas desse
modo, poderiam acabar trazendo implicações prejudiciais aos indivíduos implicados
(Thompson, 2002, p. 87).
Três mudanças principais seriam responsáveis por essa nova configuração. A primeira delas diz
respeito à relação entre o desenvolvimento tecnológico no início do século XX e a expansão da publicação
de periódicos. Thompson explica que durante os séculos XVII e XVIII a produção jornalística era feita em
pequena escala e voltada para públicos seletos. Os custos da produção eram altos e a manutenção da
atividade dependia não só das vendas e dos anúncios, mas também de subsídios fornecidos por partidos
políticos. Contudo, no início do século XIX, o desenvolvimento tecnológico possibilitou a produção de
periódicos por um custo muito menor, permitindo a publicação de maiores tiragens. Além disso, a redução
do índice de analfabetismo e a extinção da cobrança de taxas sobre a circulação de jornais fez crescer a
circulação de periódicos na Inglaterra (Thompson, 2002, p. 81).
Em segundo lugar, o desenvolvimento tecnológico e a correlata diminuição dos custos de produção
jornalística repercutiram na relação da imprensa com os partidos políticos. Com efeito, a imprensa passou a
depender menos dos partidos políticos e “em certos casos eles [os jornais] proclamavam explicitamente sua
neutralidade política. Relatavam notícias políticas, mas não se identificavam necessariamente com a defesa de
interesses partidários” (Thompson, 2002, p. 81).Entrementes, Thompson afirma que muitos jornais criaram

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4013
os conhecidos editoriais com o intuito de demarcarem as fronteiras entre notícia e a opinião.
Ao demarcar a fronteira entre a opinião e a notícia é como se a imprensa estivesse afirmando,
respectivamente, a existência de uma verdade subjetiva e de uma verdade objetiva, esta última independente
da pessoa que a enunciava. Como vimos, o termo media pode conotar sentidos como “neutro” e
“instrumento mediador”. Como afirma Antoine Garapon, “a mídia desperta a ilusão da democracia direta,
quer dizer, o sonho de um acesso à verdade livre de qualquer mediação” (Garapon, 1999, p. 75). Assim, a
desvinculação do apoio financeiro dos partidos políticos à imprensa no início do século XIX e a demarcação
das fronteiras entre notícia e opinião contribuíram para a formação do mito da neutralidade jornalística, o
qual visa a legitimar as verdades produzidas pela mídia.
A terceira mudança descrita por Thompson – intimamente relacionada com a segunda – é a
emergência do jornalismo como uma profissão. O pensador britânico explica que foi formado
um ethos profissional que relacionava a atividade jornalística ao factual: “À medida que o corpo de escritores
e repórteres se expandia, começou a emergir um ethos profissional que definia os princípios da boa prática
jornalística. Esse ethos enfatizava acima de tudo a obrigação de descobrir e apresentar os fatos” (Thompson,
2002, p. 82). Em 1856 o correspondente em Washington da Associated Press afirmou: “O meu trabalho é
comunicar fatos: as minhas instruções não permitem qualquer tipo de comentários sobre os fatos, sejam eles
quais forem” (apud Traquina, 1993, p. 167).
A formação do ethos jornalístico de descobrir e de revelar fatos levou à publicação de periódicos
contendo a narração de atividades previamente ocultadas e consideradas moralmente vergonhosas
(Thompson, 2002, p. 82). Na Inglaterra, editores como W. T. Stead do Pall Mall Gazette, Henry
Lacouchere do Truth e Ernest Parke do North London Press se dedicaram à publicação de reportagens
combatendo a corrupção, abusos e injustiças sociais, com destaque para W. T. Stead que revelou a existência
de um comércio sexual de crianças na Inglaterra, o que culminou com a criação de uma lei criminal batizada
de Stead´s Act. Em 16 de novembro de 1889 o North London Press publicou uma reportagem intitulada Os
Escândalos de West End, em que mencionava que o Lord Somerset e o Duque de Euston freqüentavam uma
casa de prostituição masculina. Nos Estados Unidos, editores como Joseph Pulitzer e E. W. Scripps
dedicaram-se à publicação de periódicos combatendo a corrupção no governo. Transcrevemos, abaixo, um
excerto da conferência A Imprensa e o Dever da Verdade, proferida por Rui Barbosa, narrando um
acontecimento que reflete as idéias aqui trabalhadas:
Durante a campanha da Criméia, em 1854, o Times, o jornal dos jornais europeus, não
hesitou em romper na mais tremenda hostilidade contra a administração militar da Grã-
Bretanha, sustentando que o seu serviço era “infame, infamous”, que os soldados
enfermos não achavam nem camas, onde jazessem, que o exército, gasto, desmoralizado
e miserando, não tinha, em Balaclava, nem onze mil homens, capazes de entrar em
combate.
Russell, o famoso correspondente desse jornal britânico no teatro da guerra, perguntava,
em carta, a Delane, o célebre diretor do grande órgão: “Que hei de fazer? Dizer estas
coisas, ou calar?” Mas o interrogado não hesitou na resposta. As instruções, em que lha
deu, recomendaram-lhe, com energia, “falar a verdade, sem indulgência, nem receio”. O
Times, declaravam elas, o Times não admitia “véus”. (...)
Sabeis com que resultados, senhores? A Câmara dos Comuns acabou por mandar abrir,
em 1855, um inquérito sobre a situação do exército em Sebastópol. O gabinete caiu
demolido pela campanha do terrível órgão londrino. As mais eminentes autoridades
militares declaravam, afinal, que ele, “narrando com fidelidade ao público os
padecimentos da tropa, salvara o resto do exército inglês”. O governo da Rainha Vitória,
pela voz de Gladstone, agradeceu a Delane “o valioso apoio” (palavras suas), “o valioso
apoio” do Times, subscrevendo, sem reservas, o princípio, seguido por ele, de que “nunca
se deve encobrir ao público circunstância alguma, quaisquer que sejam os
inconvenientes de sua divulgação”. (BARBOSA, 1990, p. 37-38).
“Falar a verdade, sem indulgência, nem receio”. Este passou a ser o ethos da atividade jornalística,
uma atividade que não passaria a admitir “véus”, independentemente dos “inconvenientes de sua divulgação”.
Pedimos a indulgência do leitor, mais uma vez, para citarmos outro trecho da conferência proferida
por Rui Barbosa, por considerarmos suas palavras um retrato fiel da imagem idealizada da imprensa no
século XIX:
A imprensa é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao
perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe
o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alveja, ou nodoam, mede o que lhe
cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que a ameaça.
Sem vista mal se vive. Vida sem vista é vida no escuro, vida na soledade, vida no medo,
morte em vida: o receio de tudo; dependência de todos; rumo à mercê do acaso; a cada
passo acidentes, perigos, despenhadeiros. Tal a condição do país, onde a publicidade se
avariou, e, em vez de ser os olhos, por onde se lhe exerce a visão, ou o cristal, que lha
clareia, é a obscuridade, onde se perde, a ruim lente, que lhe turva, ou a droga maligna,
que lha perverte, obstando-lhe a notícia da realidade, ou não lha deixando senão
adulterada, invertida, enganosa. (BARBOSA, 1990, p. 20-21).
Portanto, é possível perceber que, para Rui Barbosa, a imprensa livre confere visibilidade à “nação”.
Uma vez avariada essa publicidade, a realidade se torna adulterada, invertida e enganosa. Além disso, no
discurso do jurista e jornalista baiano, a visibilidade está em clara oposição ao segredo, que, como vimos,
impede o acesso à “verdade” e, portanto, está próximo da mentira. Assim, ao divulgar escândalos políticos,

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4014
as arcana imperii e as mazelas da sociedade, o jornalismo proporcionaria acesso à “verdade” oculta,
escamoteada, obliterada; seria um mediador entre as “verdades” ocultas e o leitor. “Este tipo de estilo
informativo, crítico e investigativo, em que a busca de atos ocultos se combinava com as idéias que os
jornalistas tinham de uma responsabilidade moral de erradicar o mal e mostrar as enfermidades sociais,
passou gradualmente a definir parte do ethos profissional do jornalismo” (Thompson, 2002, p. 88).
Mais tarde, nos anos 20 e 30 do século XX, a relativa falta de convicção nos fatos em virtude do
surgimento das relações públicas e da eficácia da propaganda durante a Primeira Guerra Mundial fez com
que fosse conferida grande importância às regras e procedimentos para a apuração dos fatos, surgindo,
assim, o mito da objetividade jornalística: “A metáfora, habitualmente evocada no campo jornalístico, do
jornalista como ‘espelho’, reflete bem esse conceito do jornalista como simples mediador cuja existência se
suprime quando o acontecimento é ‘reproduzido’ na mídia” (Traquina, 1993, p. 168). Assim, a verdade
acerca do fato não seria contaminada caso o jornalista seguisse regras e métodos objetivos de apuração e
narração.
Em nossos dias, percebe-se como a verdade ainda é cara ao ethos da profissão jornalística. O art. 2º,
II do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros considera que o direito à informação é um direito
fundamental, portanto, “a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade dos fatos
e ter por finalidade o interesse público”. Além disso, o art. 4º dispõe que “o compromisso fundamental do
jornalista é com a verdade no relato dos fatos, deve pautar seu trabalho na precisa apuração dos
acontecimentos e na sua correta divulgação”. Caso este preceito não seja observado, o art. 12, VI do Código
estabelece que é dever do jornalista “promover a retificação das informações que se revelem falsas ou
inexatas (...)”.
Como se sabe, sucessivas publicações inexatas ou motivadas por interesses de toda a ordem
deslustraram a atividade jornalística. Sabemos que motivações econômicas e políticas de toda ordem
circulam nas redações e que mesmo o jornalista mais desinteressado está sujeito a cometer erros. Não
obstante, as notícias permanecem como um “índice do real”: “Lemos as notícias acreditando que os
profissionais do campo jornalístico não irão transgredir a fronteira que separa o real da ficção” (Traquina,
1993, p. 168).
Assim, com a reconfiguração da atividade jornalística a partir da formação de um ethos profissional,
o jornalismo passa a trabalhar com fatos e, portanto, a produzir verdades. Verdades inicialmente
contrapostas ao sigilo e às arcana imperii; verdades que buscavam se legitimar por meio dos mitos da
neutralidade e da objetividade. Verdades que, não obstante a derrubada de tais mitos, ainda constituem
“índices do real”.
3. Constituição da Justiça como instituição de verdade
Na presente seção, tentaremos mostrar como o sistema judicial passou a ser considerado como uma
instituição de verdade, isto é, uma instituição que se constituiu como produtora de verdade. A reflexão sobre
um termo utilizado nos tribunais expressa bem a idéia que pretendemos desenvolver aqui: o termoveredicto,
isto é, a palavra final do julgador acerca do caso submetido ao seu conhecimento, revela a íntima ligação que
deve existir ou supostamente existe entre o julgamento e a verdade. Com efeito, veredicto origina-se do
termo latino veredictum (composto por vere e dictum), que literalmente dá o sentido de “dito de forma
verdadeira” (Houaiss, 2001). Assim, o último ato do complexo ritual judiciário resultaria em um “dizer
verdadeiro” a respeito dos fatos.
Além disso, é interessante observar como cotidianamente nos valemos de metáforas extraídas do
sistema judicial para convencer alguém da veracidade de nossas enunciações ou para dar a elas “efeito de
verdade”, como, por exemplo, quando afirmamos que “Fulano testemunhou o acidente” e “eu
posso provar que você está erradoa”. Estas colocações dão apenas algumas pistas sobre a produção judicial
da verdade. Nas linhas que se seguem pretendemos mostrar como a relação entre verdade e as instituições
judiciais se constituiu historicamente.
No livro A verdade e as formas jurídicas, fruto de cinco conferências proferidas na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro em 1973, Michel Foucault (2002) pretende desenvolver o que
chama de “história da verdade”, isto é, como, a partir das formas jurídico-penais de investigação da verdade,
se desenvolveram outras formas de verdade – as ciências – e como elas estão relacionadas com o exercício
de poder. Nesta seção, reproduziremos o que Foucault expôs sobre a constituição do sistema judicial como
instituição de verdade sem necessariamente extrair das idéias do pensador francês as mesmas conclusões a
que chegou sobre a relação entre saber e poder, pois que tais reflexões transbordariam os limites da
investigação realizada neste trabalho. O que nos interessa é a exposição que faz acerca da constituição do
sistema judicial como instituição que produz verdade.
Segundo Foucault (2002), a história da produção da verdade judicial nos remonta aos gregos. Para
o pensador francês é na Ilíada que encontramos o primeiro testemunho sobre a pesquisa da verdade no
procedimento judiciário grego. A narrativa que Homero faz da disputa entre Antíloco e Menelau, por
ocasião dos jogos que se realizaram em função da morte de Pátroclo, revelaria uma forma arcaica de
produção judicial da verdade por meio de um desafio de prova.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4015
O jogo, que gerou a disputa entre Antíloco e Menelau, consistia numa corrida de carros em um
circuito de ida e volta. Os jogadores deveriam contornar o mais próximo possível de um marco, perto de
onde ficava uma testemunha com a função de fiscalizar a regularidade da disputa. Segundo Homero,
Antíloco vence a disputa, mas Menelau contesta a vitória de Antíloco afirmando que ele teria cometido uma
irregularidade. Antíloco, por sua vez, contesta a acusação de Menelau, afirmando que não cometera
irregularidade alguma. “Como estabelecer a verdade?”, se questiona Foucault. A solução que julgamos óbvia
seria recorrer ao depoimento da testemunha que estava próxima ao marco. Entretanto, Homero narra que
Menelau fez o seguinte desafio a Antíloco: “Põe tua mão direita na testa do teu cavalo; segura com a mão
esquerda o teu chicote e jura diante de Zeus que não cometeste irregularidade”. Antíloco se nega a fazer tal
juramento, reconhecendo, assim, que cometeu a irregularidade denunciada por Menelau.
Assim, a pesquisa da verdade jurídica na sociedade grega arcaica estava diretamente relacionada
com manifestações sobrenaturais das divindades. Em último caso, a verdade seria desvelada pelos deuses,
que inexoravelmente castigariam o perjúrio. Portanto, ao faltoso não restaria outra saída senão a adotada por
Antíloco, a saber, a renúncia ao desafio. “Eis uma maneira singular de produzir a verdade: não se passa pela
testemunha, mas por uma espécie de jogo, de prova, de desafio lançado por um adversário a outro. Um lança
um desafio, o outro deve aceitar o risco ou a ele renunciar.” (Foucault, 2002, p. 32).
Segundo Foucault (2002), é a partir da tragédia de Édipo, narrada por Sófocles, que o sistema de
produção da verdade jurídica passa a se modificar na sociedade grega. Embora a tragédia revele certas
reminiscências do modelo anterior – o modelo do desafio, do jogo de prova – prevalece um mecanismo
diferente de pesquisa da verdade. Esse mecanismo é chamado de “lei das metades”: “É por metades que se
ajustam e se encaixam que a descoberta da verdade procede emÉdipo” (idem, 34). Assim, “a verdade” seria
descoberta a partir da junção das diversas peças que a compõem. Em Édipo Rei a verdade é construída a
partir de fragmentos dos relatos de cada um dos personagens: Apolo, o adivinho de Tirésias, os escravos de
Políbio e de Citerão, Jocasta e o próprio Édipo.
A partir dessa tragédia, Foucault (2002) menciona dois olhares: o olhar de Apolo e do divino
adivinho que tudo sabem a respeito do passado, do presente e do futuro; e o olhar dos escravos, o olhar do
testemunho, do que viram e se lembram. Este olhar, afirma Foucault, não estava presente em Homero, na
narração do conflito entre Antíloco e Menelau. “Podemos dizer, portanto, que toda a peça de Édipo é uma
maneira de deslocar a enunciação da verdade de um discurso de tipo profético e prescritivo a um outro
discurso, de ordem retrospectiva, não mais da ordem da profecia, mas do testemunho” (idem, p. 40).
Em Édipo Rei surge, assim, um novo ator, a testemunha que viu e se opõe aos poderosos, “a verdade sem
poder contra o poder sem a verdade”, como afirma Foucault (idem, p. 54). Segundo o filósofo francês,
pode-se dizer que “houve na Grécia, portanto, uma espécie de grande revolução que, através de uma série de
lutas e contestações políticas, resultou na elaboração de uma determinada forma de descoberta judiciária,
jurídica, da verdade” (idem, p. 55). Em outra passagem afirma que “a tragédia de Édipo é, portanto, a
história de uma pesquisa da verdade” (idem, p. 31).
Foucault explica que essas noções de pesquisa da verdade jurídica foram perdidas durante a alta
Idade Média, período no qual predominou o direito germânico. Este direito, em muitos pontos semelhante ao
direito arcaico grego, tinha três características principais. Em primeiro lugar, não havia uma ação pública, ou
seja, a resolução dos conflitos se dava à base da autotutela, pois não havia um terceiro representando uma
autoridade para mediar o litígio. Em segundo lugar, o direito representava uma forma regulamentada de
guerra entre os indivíduos, pois a prática da vingança judiciária era desenvolvida segundo determinados ritos
e formalidades. Por fim, Foucault explica que havia a possibilidade de as partes chegarem a um acordo,
elegendo um árbitro para estipular o ressarcimento pelo dano causado, mas não pela falta cometida
(indenização em vez de punição). Portanto, não havia um procedimento para a busca da verdade, pois a
ênfase estava na luta ou na conciliação. Esse sistema, explica Foucault, “era uma maneira de provar não a
verdade, mas a força, o peso, a importância de quem dizia” (idem, p. 59). Em outra passagem, afirma que “a
separação da verdade e do erro entre os indivíduos não desempenha nenhum papel; existe simplesmente
vitória ou fracasso (idem, p. 61).
Foucault explica que o indivíduo poderia ser absolvido ou condenado se acertasse ou errasse
determinado número de fórmulas que tinha de repetir. A condenação ou absolvição, portanto, não era fruto
da pesquisa da verdade, mas da capacidade do acusado. Havia também as provas mágico-religiosas
semelhantes à narrada por Homero e, ainda, as provas corporais conhecidas como ordálias, mediante as quais
o acusado poderia ser absolvido ou condenado, dependendo dos efeitos que os suplícios causavam sobre seu
corpo.
Esse cenário começa se alterar por volta dos séculos XII e XIII. Foucault explica que as guerras
judiciária e extra-judiciárias eram os principais meios de circulação de bens durante a Idade Média. Assim,
ter-se-ia verificado uma dupla tendência: a de concentração das armas e do controle sobre os litígios judiciais
nas mãos dos indivíduos mais poderosos.
A partir de então, passa a existir um poder judiciário que se impõe, do alto, aos litigantes. Estes, por
sua vez, não poderão mais regular seus litígios segundo provas e desafios estabelecidos entre si. Ademais,

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4016
surge um novo ator – o procurador – que passa a representar os interesses do soberano, pois, com efeito, o
crime deixa de ser visto simplesmente como um dano à vítima e passa a ser interpretado como uma infração:
“A infração não é um dano cometido por um indivíduo contra outro; é uma ofensa ou lesão de um indivíduo
à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano (idem, p. 66). Em decorrência disso, além da
reparação devida à vítima do delito, as confiscações se tornaram o instrumento do soberano para exigir a
reparação pela infração. Assim, Foucault explica que, com a criação da noção de infração e do ofício de
procurador, desaparecem os desafios de prova, pois o soberano e seu representante não podiam arriscar suas
vidas ou bens em tais disputas.
Foucault explica que nesse período perdurou um instituto jurídico do direito germânico: a prisão em
flagrante. Com efeito, o indivíduo surpreendido cometendo um delito poderia ser detido pela população e
conduzido às autoridades. O problema é que a maioria dos crimes cometidos não era surpreendida em estado
de flagrância, surgindo, assim, a necessidade de um modelo de investigação para a apuração do delito.
É justamente para reconstituir, para reatualizar os fatos delitivos que surge o procedimento de
inquérito: “O inquérito vai ser o substituto do flagrante delito. (...) Tem-se aí uma nova maneira de prorrogar
a atualidade, de transferi-la de uma época para outra e de oferecê-la ao olhar, ao saber, como se ela ainda
estivesse presente. (idem, p. 72). O inquérito, portanto, passa a ser um flagrante indireto, um mecanismo
através do qual se pode reconstituir o passado e, assim, condenar o infrator.
Segundo Foucault, o inquérito teria uma dupla origem: administrativa e religiosa. A origem
administrativa do inquérito está relacionada a práticas que se desenvolveram durante o Império Carolíngio.
Nesse período, problemas relacionados a impostos, costumes e propriedades eram resolvidos por meio de
um procedimento ritualizado: a inquisitio. Esse procedimento consistia na convocação de pessoas notáveis
que conheciam os costumes e que jurassem dizer a verdade sobre o que tinham visto ou sobre o que sabiam
por terem ouvido dizer. Estas pessoas deliberavam livremente e, ao final, davam a solução aos funcionários
do Império Carolíngio.
A origem religiosa está relacionada a uma prática – denominada visitatio – desenvolvida durante a
Alta Idade Média pela Igreja Merovíngia e Carolíngia. O método consistia na visitação que um bispo fazia à
sua diocese indagando às pessoas sobre fatos que tinham ocorrido durante sua ausência (inquisitio
generalis). Se alguém relatasse algum delito, o bispo passava a um segundo estágio – a inquisitio specialis –
investigando qual a natureza do ato e quem o havia praticado.
É a partir dessas práticas que a sentença passa a ganhar importância no campo jurídico. Segundo
Foucault, a sentença “consiste na enunciação por um terceiro, do seguinte: certa pessoa tendo dito a verdade
tem razão; uma outra, tendo dito uma mentira, não tem razão” (Foucault, 2002, p. 61). Assim, a decisão
judicial – a sentença, o veredicto – se legitima porque simboliza apenas a culminância de um processo, um
ritual que reproduziu, reatualizou, através de sucessivos atos, um fato pretérito qualificado como crime.
Assim, a noção de verdade é constitutiva da decisão judicial. Por isso que, para Foucault, “o inquérito era o
poder soberano que se arrogava o direito de estabelecer a verdade através de um certo número de técnicas
regulamentadas” (2007, p. 185).
A constituição da Justiça, através do inquérito, como instituição de verdade é demonstrada com
clareza meridiana por Foucault:
O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício do
poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura
ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como
verdadeiras e de as transmitir (2002, p. 78).
Desde que a Idade Média construiu, não sem dificuldade e lentidão, a grande procedura
do inquérito, julgar era estabelecer a verdade de um crime, era determinar seu autor, era
aplicar-lhe uma sanção legal. Conhecimento da infração, conhecimento do responsável,
conhecimento da lei, três condições que permitiam estabelecer um julgamento como
verdade bem fundada. (2007, p. 20)
Cabe assinalar, também, a contribuição do mito da neutralidade judicial como ideologia legitimadora
das verdades produzidas pelas instituições de justiça. Como afirmou Foucault, a apropriação do controle
sobre os litígios judiciais pelo soberano foi vislumbrada como um meio de enriquecimento, visto que, durante
um longo período, as penas tinham caráter pecuniário. Assim, não é de estranhar que fosse empregado um
sistema inquisitivo, caracterizado pelo sigilo dos procedimentos, pela ausência de contraditório, pelo
exercício de uma defesa ritualística e pela aplicação de suplícios para arrancar a todo custo a confissão do
acusado. Como afirmava Cesare Beccaria, em fins do século XVIII, “o juiz, estabelecido para apurar a
verdade com ânimo imparcial, não era mais do que o advogado do fisco” (Beccaria, 1999, p. 97).
Assim, muitas vozes se somaram à de Beccaria contra o sistema inquisitivo. Por esses tempos,
levantou-se Montesquieu com sua conhecida teoria da separação de poderes, a fim de defender a
independência dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Com isso, acreditava-se que a independência
do Judiciário em relação aos demais poderes lhe garantiria a imparcialidade necessária para estabelecer a
“verdade” e julgar o caso com justiça. A partir de então, a inquirição judicial da verdade passou a ser
diretamente relacionada com o mito da neutralidade judicial.
Cabe aludir, ainda, a um processo descrito por Foucault de apropriação pelo judiciário de
conhecimentos do campo científico para subsidiar seusveredictos. Este é um processo interessante, pois
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4017
também a ciência se havia constituído como campo oficial de uma verdade, a verdade acerca do
conhecimento. Logo, ao se apropriar de tais conhecimentos, a decisão judicial ganharia mais legitimidade no
campo da “verdade”. Segundo Foucault, o juiz já não julgaria mais sozinho, pois participariam do processo e
da execução penal uma série de “juízes anexos”, que seriam peritos, médicos, psiquiatras etc (Foucault,
2007, p. 22). Assim, a verdade judicial também seria uma verdade científica, a qual emprestaria àquela o
prestígio e a credibilidade que já gozava.
É interessante observar como as instituições de justiça sempre se apropriam do sistema produtor de
verdade predominante em um determinado contexto social para dar legitimidade à sua verdade. Como vimos,
durante a Idade Média, o predomínio da fé fez com que as ordálias – “os julgamentos de Deus” – fossem
métodos de estabelecimento da verdade judicial. A partir do Iluminismo e sua “deificação” da razão humana,
a ciência se constituiu como sistema predominante de produção de verdades, e acabou por emprestar seu
prestígio e credibilidade às instituições de justiça, como dissemos acima.
Assim como ocorre no jornalismo, a verdade também é um elemento caro aos tribunais,
especialmente ao processo penal, que consagra o Princípio da Verdade Real. Por esse princípio, são
atribuídos ao juiz criminal diversos poderes de instrução a fim de chegar o mais próximo possível da
realidade (Nucci, 2008, p. 105). Segundo Nucci, o magistrado tem “uma crença segura na verdade que
transparece através das provas colhidas e, por tal motivo, condena ou absolve” (idem, p. 104).
Assim, é possível perceber que a constituição da justiça como instituição de verdade se processou
através da criação e do desenvolvimento de métodos e rituais de apuração de fatos – o inquérito, geralmente
se apropriando de verdades predominantes em determinados contextos sociais – fossem elas de caráter
mágico-religioso ou científico – atribuindo a si também um caráter neutro e imparcial, bem como
estabelecendo princípios de atuação legitimadores de seuveredictum (“dizer verdadeiro”), de tal sorte que,
como diz Foucault, “julgar passa a ser estabelecer a verdade de um crime” (2007, p. 20).
4. Disjunções entre a Verdade Midiática e a Verdade Judicial
Em sua acurada capacidade de assimilar a característica peculiar do Estado na emergência da
modernidade, Max Weber (1979) assinala que a coação física passou a ser o meio específico do Estado, isto
é, o Estado passou a deter o monopólio sobre o uso legítimo da violência. Trata-se daquilo que, em Direito
Penal, é conhecido como jus puniendi, isto é, o direito-dever de punir. A partir de então, a vingança privada
passou a ser proibida, permitindo-se o uso individual da força tão-somente em situações excepcionais para
repelir ameaça iminente a direitos, como a legítima defesa, por exemplo.
Embora os processos judiciais nem sempre tenham sido públicos, prezava-se para que os rituais de
punição dos condenados o fossem. Com efeito, uma das principais finalidades da pena era infundir nos
demais cidadãos o temor pelas conseqüências advindas da prática de um delito. Por essa razão, era preciso
que os castigos fossem infligidos em um local público para que o maior número de pessoas presenciasse os
efeitos da condenação.
Mas não bastava que a pena fosse pública. Era preciso também que fosse de tal modo negativa que
o pensamento da vantagem obtida pelo crime fosse logo afastado, como se em um juízo de vantagens e
desvantagens a escolha pelo crime fosse sempre deficitária. Nesse sentido, o sistema de justiça produzia
verdadeiros espetáculos punitivos, responsáveis pelas atrocidades que estão entre as que mais horrorizaram a
humanidade. Michel Foucault (2007, p.12) explica, porém, que a partir do século XIX dois processos
modificaram o estado de coisas que até então reinara. O primeiro desses processos foi a supressão do
espetáculo punitivo. A punição tornou-se cada vez mais velada e deixou de ser vista simplesmente como
retribuição a um mal provocado, passando a ser também um meio de corrigir e reeducar. O segundo
processo é a extinção do domínio sobre o corpo. Segundo Foucault (2007, p.14), “o castigo passou de uma
arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos”. Desse modo, segundo o pensador
francês, estaríamos vivendo na época da “sobriedade punitiva”.
Segundo Leclerc, o caráter exemplar e pedagógico da pena passaria a ser compartilhado pela mídia:
“Hoje o pelourinho já não existe mais. A multidão não se reúne mais na praça para se distrair com as
desgraças dos outros. Olha a televisão, escuta o rádio ou percorre apressadamente o jornal no metrô”.
(Leclerc, 2007, p. 43). Assim, embora o Estado ainda detenha o monopólio do poder legítimo sobre os
corpos, passou a compartilhar o poder simbólico-punitivo com a mídia. O sistema de justiça deixou de ser o
produtor exclusivo de “Joãos Valjeans”[2]. A mídia também fornece “passaportes amarelos” aos indivíduos,
não necessariamente condenados na esfera judicial.
A chave para a compreensão da perda do monopólio do poder simbólico-punitivo pelas instituições
de justiça reside na perda de outro monopólio: o de dizer a verdade sobre o crime. Assim, como vimos no
capítulo anterior, não obstante mídia e sistema judicial idealisticamente concorram no mesmo campo – a
saber, o da verdade –, as disjunções entre mídia e justiça, por vezes levam tais instituições a conclusões
diferentes, muitas vezes antagônicas.
4.1 A perda do monopólio da verdade judicial sobre o crime
O fato de o Judiciário ter por missão principal julgar, estabelecer a justiça diante de um caso que lhe
é apresentado, conferiu um caráter aurático aos magistrados. É dizer, esse caráter sagrado, que

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4018
supostamente pertencia à sua missão, acabou se transferindo à própria instituição[3].
A sacralidade da instituição judicial era reforçada, em grande parte, devido ao distanciamento
estratégico do poder judiciário em relação à população. Como vimos, Thompson afirma que “a manutenção
da distância atestava o caráter sagrado do poder” (2005, p. 122). Assim, a publicidade do ofício judicial só se
dava em ocasiões estratégicas, para reafirmar seu poder: as punições eram públicas, não os procedimentos de
apuração.
Entretanto, vimos que a constituição do ethos da profissão jornalística no século XIX, impulsionada
por um compromisso moral informativo, resultou na busca por transparência e visibilidade da sociedade e,
principalmente, das instituições oficiais (Thompson, 2002, p. 88). Essa busca por transparência e visibilidade
invadiu os arcanos das instituições judiciais: “Hoje tudo entra nos lares: os dramas e as misérias do mundo,
as guerras e as festas, o esporte e as missas, até os debates do Parlamento. Por que, então, a justiça deverá
ser o único lugar sagrado?” (Leclerc e Théolleyre, 2007, p. 73).
A visibilidade conferida às instituições de justiça não se resumiu à exposição pura e simples das
decisões judiciais e dos respectivos condenados ou absolvidos. A formação do ethos da profissão jornalística
instigava o jornalista a não se contentar com a verdade oficial. Conforme afirmou Orlando Afonso no VI
Congresso dos Juízes Portugueses,
Os media não se contentam, hoje, em informar o que se passa na Justiça, ou em exercer a
sua crítica sobre o papel desta. Eles copiam os métodos da Justiça. Eles substituem-se ao
Ministério Público e aos Juízes de Instrução. Interrogam testemunhas se possível antes da
Justiça, confrontam testemunhos, procedem a inquéritos formais, perfunctórios,
subjectivos, procuram o testemunho surpresa, o rumor, a conversa de café, as delações,
as hipóteses plausíveis e ainda o cidadão não está acusado ou pronunciado e já está
sentenciado pela Comunicação Social (Afonso, 2001).
Um caso emblemático, em fins do século XIX, se nos afigura assaz significativo. Em 1894, Alfred
Dreyfus, um oficial de artilharia do exército francês, havia sido condenado por alta traição. Dreyfus foi
acusado de ser o autor de uma carta suspeita, a qual havia sido encontrada em uma embaixada alemã
localizada em Paris. Em 13 de janeiro de 1898, o escritor francês Émile Zola publicou no
período L’Aurore uma carta aberta ao Presidente da República intitulada J’accuse, na qual demonstrava que
Dreyfus era inocente e que o processo havia sido conduzido sigilosamente e com provas fraudulentas:
“Como poderias querer a verdade e a justiça, quando enxovalham a tal ponto todas as tuas virtudes
lendárias?”. Um ano depois, Cavaignac, o ministro da Guerra, resolveu tornar públicas as supostas provas
irrefutáveis da culpabilidade de Dreyfus, as quais, entretanto, revelaram-se inconsistentes. Em 1906, Dreyfus
foi libertado da Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, onde ficara preso.
Assim, o desenvolvimento do ethos da profissão jornalística, da verdade não-oficial sobre o crime,
da verdade destemida, que se opõe à verdade oficial e que, inclusive, pode incriminá-la, denunciar seus erros
e abusos, implicou no desmoronamento do monopólio, detido pelas instituições de justiça, de dizer a verdade
sobre um crime. Quando a verdade judicial e a midiática não coincidem, nunca se sabe se a instituição judicial
chegou realmente à “verdade”. É como diz Garapon:“De um tempo estruturado pelo direito e ritmado pela
justiça, chega-se a um tempo estranhamente imóvel. O processo não consegue andar, quer dizer, não conduz
a uma decisão considerada convencionalmente como verdadeira” (1999, p. 83).
Portanto, a mídia também passa a ser uma produtora de verdades sobre um crime. Ouve
testemunhas, reconstitui as cenas do crime por meio de infográficos/animações, investiga o perfil dos
acusados, cita trechos de exames periciais, ouve especialistas, transmite imagens de câmeras de segurança,
enfim, colige diversos elementos probatórios ou indiciários a fim de contar a sua verdade e permitir o
julgamento por um júri popular não-oficial: o leitor, o ouvinte, o telespectador ou o internauta.
Entretanto, como já dissemos em outros trechos deste trabalho, nem sempre a verdade judicial e a
verdade midiática coincidem. Aliás, muitas decisões judiciais chegam mesmo a frustrar as expectativas
punitivas do cidadão: acusados supostamente envolvidos em escândalos de corrupção e em crimes bárbaros
são absolvidos pela justiça. Por quê? Corrupção de magistrados, prescrição de crimes e brechas nas leis são
situações que podem ocorrer. Que outras explicações possíveis podem ser dadas além destas?
Boaventura de Sousa Santos (2007, p. 83) aponta para as disjunções entre a lógica da ação
midiática e da ação judicial e sugere que estas disjunções ocorreriam em vários níveis, entre os quais
menciona a disjunção a nível dos tempos e das gramáticas discursivas. Trabalharemos estas duas disjunções
como uma explicação possível das discrepâncias entre a verdade judicial e a verdade midiática.
4.2 Disjunções entre a lógica da ação midiática e da ação judicial
4.2.1 Tempo
O tempo da mídia e o tempo da justiça são tempos diferentes. E isto por peculiaridades inerentes a
cada um dos campos. O tempo da mídia é o tempo do imediato, um tempo mais próximo possível do
acontecimento criminoso, ao passo que o tempo da justiça é um tempo mais lento, ainda mais se comparado
ao da mídia. Por que as temporalidades da mídia e da justiça são diferentes e como essa diferença pode
produzir verdades díspares é o que pretendemos analisar nas linhas que se seguem.
Henri Leclerc acredita que o imediatismo da mídia está associado ao fato de cumprir uma função
simbólico-punitiva, haja vista que somente após um demorado ritual processual as instituições judiciais

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4019
puniriam o acusado em caso de condenação. Para ele, o povo
tem pressa em ver julgado o criminoso para que a ferida do crime seja enfim curada pelo
anúncio do castigo. O povo associa-se à vítima que espera esse instante de reparação
simbólica. (...) Para o povo o silêncio é insuportável. Não aceita ficar com o peso do
crime impune assim que este lhe é revelado. (Leclerc e Théolleyre, 2007, p. 12)
Assim, por não ter que seguir um processo formal, a mídia chegaria muito antes ao seu veredicto, à
sua verdade, podendo, assim, quebrar o “silêncio insuportável” da revelação do crime[4]. Os jornalistas
seriam mediadores entre a justiça e o povo e prenderiam o suspeito a um moderno pelourinho (Leclerc e
Théoleyrre, 2007, p. 13).
A despeito dessas considerações hipotéticas, embora plausíveis, é preciso lembrar que
muitos jornais, revistas, canais de televisão, estações de rádio e portais da internet pertencem a organizações
comerciais (Thompson, 1998, p. 253). Sendo assim, tais organizações estão sujeitas às leis do mercado, entre
as quais a da concorrência. Se, por um lado, diz-se que a concorrência pode ser saudável para a
diversificação de versões – o que nem sempre corresponde à realidade, dada a multiplicação de
conglomerados de mídia e a formação de oligopólios – por outro, ela conduz à busca pela exclusividade na
divulgação de notícias. Com efeito,
deve-se ressaltar, para começar, que o jornalismo não é uma profissão liberal. É um
trabalho assalariado. O assalariado depende de um patrão que não tem vontade alguma de
obedecer a um código, qualquer que seja. A primeira lei que conhece é a da concorrência,
que leva a buscar o furo jornalístico, ou seja, a exclusividade de uma matéria (Leclerc e
Théolleyre, 2007, p. 141).
A busca pela exclusividade (pelo “furo”), decorrente da competição mercadológica, teria por
conseqüência a compressão do tempo midiático. É claro que cada meio de comunicação (a internet, a TV, o
rádio, a revista e o jornal, por exemplo) tem a sua peculiaridade, a sua lógica própria de funcionamento e,
por conseguinte, a sua temporalidade específica. Contudo, em geral, o tempo de apuração é reduzido pela
pressão da divulgação, o que pode resultar em imprecisões na apuração dos fatos. Como afirma Roberto
Müller Filho,
Fica caro fazer as coisas direito no Brasil. Você tem que investir tempo, dinheiro, tem que
ter bastante gente para fazer uma matéria, para apurar, investigar, levantar. A falta de
recursos, articulada com uma competição voraz, leva a essa perda de qualidade, de
precisão e de rigor na informação (apud Abreu et alli, 2003, p. 261).
Foi exatamente isso que aconteceu no conhecido caso “Escola Base” (Ribeiro, 1995). Em 1994, os
donos e alguns funcionários da Escola de Educação Infantil Base, localizada em São Paulo, foram acusados
de cometerem abusos sexuais em alunos da instituição. É bem verdade que a imprensa, de um modo geral,
baseou-se nas declarações precipitadas do delegado Edélcio Lemos e na conclusão de um laudo preliminar
que apontava a prática de atos libidinosos em um dos alunos. Entretanto, não havia provas concretas que
apontavam a autoria do suposto delito aos acusados, a não ser o depoimento de alunos de quatro anos de
idade. A cobertura da imprensa identificou os acusados como monstros e, assim, inflamou a opinião pública.
Alguns dos seis acusados foram presos preventivamente e populares depredaram a escola. Dois meses
depois, o inquérito foi arquivado e o laudo conclusivo apontava que as lesões verificadas no aluno
examinado eram decorrentes de problemas intestinais. O veredicto midiático foi dado antes de concluída a
investigação: a revista Veja publicou uma matéria intitulada “Uma escola de horrores” (edição nº 1334 de
06/04/1994). Na edição seguinte publicou uma matéria com o título “O drama em silêncio dos inocentes”
(edição nº 1335 de 13/04/1994), sobre abuso sexual de crianças, fazendo menção ao caso da Escola Base.
Esse caso exemplar revela como a lógica de mercado e a competição por exclusividade exercem
pressão sobre a produção de notícias, resultando, por vezes, em conclusões açodadas, em verdades que,
posteriormente, se mostram incompatíveis com a verdade judicial, porque esta, mais lenta, acaba conhecendo
provas posteriores que muitas vezes desfazem as primeiras impressões. Segundo Afonso, “há uma
impaciência nos ‘media’ agravada pela obsessão da oportunidade, da hora do fecho que torna desinteressante
tudo o que não possa ser difundido a tempo” (Afonso, 2001). O problema é quando “as exigências do direito
à informação destroem os homens antes mesmo de serem julgados” (Leclerc e Théoleyrre, 2007, p. 43),
como ocorreu no caso Escola Base.
Uma segunda explicação possível para a compressão do tempo da mídia estaria relacionada a uma
característica do discurso midiático – que, todavia, não está necessariamente desvinculada da concorrência
do mercado. Segundo Adriano Duarte Rodrigues (2002), o funcionamento do discurso midiático é
intermitente, isto é, sem interrupções, sem pausas. Ao passo que os discursos cotidianos são marcados por
hesitações, rupturas e silêncios, o discurso midiático se apresenta como intermitente e acabado. “No discurso
midiático, os silêncios são insuportáveis e intoleráveis, uma vez que assinalam a perda da relação com o
público e são, por conseguinte, encarados como um risco letal para o próprio funcionamento do seu
dispositivo de enunciação” (Rodrigues, 2002, p. 218). De igual modo, Garapon observa que “a mídia sabe
fazer de tudo, menos esperar e calar-se. Impondo a todos uma reação em tempo real, ela acaba por se
converter no disjuntor simbólico do tempo” (Garapon, 1999, p. 79).
Assim, quando a notícia de um crime de grande repercussão [5] eclode na mídia, verifica-se a
veiculação de sucessivas matérias sobre o crime, seus atores e personagens, seguidas por matérias de cunho
mais reflexivo, geralmente sobre as instituições judiciais e policiais, sobre alterações legislativas ou sobre o
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4020
comportamento dos acusados. Por exemplo, para a cobertura do caso João Hélio, a Folha de São
Paulo dedicou dez edições sucessivas (09-19/02/2007) contendo notícias sobre o crime e reflexões sobre
propostas de alteração legislativa sobre a maioridade penal.
Essa “pressa” em tudo falar, sem hesitações, rupturas e silêncios revela o objetivo de chegar a uma
verdade antes da verdade judicial. Para Leclerc, a mídia quer “revelar a verdade para que a opinião pública
julgue antes que a justiça seja capaz de levar sua decisão a público, com todas as precauções, as formas
processuais e o ritual de julgamento”. (Leclerc, 2007, p. 53). Todavia, ressalta que desenvolve-se nas mídias
uma espécie de debate falsamente contraditório, “quando o assunto não está em estado de ser julgado e ainda
faltam peças no quebra-cabeça. O jornalista toma, assim, o lugar da justiça”. (Leclerc, 2007, p. 54).
Com efeito, por mais elevadas que sejam as intenções e por melhor que seja a divulgação da
conclusão de um inquérito policial, ainda assim a situação é problemática. Primeiramente, o inquérito policial
apenas conclui pela existência de indícios de autoria e materialidade. Além disso, é consabido que o inquérito
é um procedimento administrativo de caráter inquisitivo que não permite a ampla defesa. As provas
produzidas durante o inquérito policial só são passíveis de contestação durante o processo penal. Portanto,
ao enfatizar a fase de investigação, a mídia deixaria de cobrir certas provas produzidas durante o processo
penal, as quais podem derrubar as realizadas durante o inquérito policial.
Entretanto, ao passo que a verdade produzida no inquérito policial assume ar de provisoriedade no
processo penal, por outro lado, ela recebe outra conotação na mídia, já que as matérias publicadas pela
imprensa adotam técnicas discursivas que produzem “efeitos de verdade” – por exemplo, “Uma escola de
horrores” e infográficos/animações que revelam “o crime passo a passo”. Além disso, Pesquisadores do
Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente
(ILANUD), afirmam que, “como na maioria das vezes ficamos sem conhecer o resto da história (...), ou
então, quando finalmente conhecemos já não associamos com os primeiros fatos, o que fica guardado na
memória é esse primeiro retrato, por mais distorcido ou incompleto que seja (apud Andrade, 2007, p. 255).
Como diz Leclerc, “quando, enfim, o processo se abre e a justiça aparece em todo o seu esplendor, o povo,
entretanto, não está mais presente” (Leclerc e Théoleyrre, 2007, p. 13).
Portanto, as disparidades entre a verdade midiática e a verdade judicial podem ser resultado da
supervalorização midiática da investigação em detrimento da cobertura dos rituais do processo penal, pois,
com efeito, as provas divulgadas pela mídia são, muitas vezes, apenas fragmentos das provas com as quais
trabalha um juiz, um júri ou uma Corte para proferir uma decisão. É dizer, pelo fato de a imprensa privilegiar
a investigação em detrimento da cobertura do processo penal, o público tem em seu conhecimento apenas
recortes dos fatos levados ao conhecimento de um juiz ou tribunal.
Ao contrário da temporalidade midiática, a temporalidade judicial é lenta. Embora as instituições de
justiça estejam inseridas em um contexto de mercado, dele não dependem diretamente – o que não quer dizer
que não sejam por ele influenciadas –, isto é, a lógica de funcionamento da justiça no âmbito criminal não é
necessariamente regida pelas leis de mercado e por sua temporalidade.
Além disso, as garantias processuais construídas ao longo de anos tornaram o processo penal
complexo, cheio de formalidades que devem ser observadas para se chegar à decisão. É esse conjunto de
formalidades, que torna o processo penal mais lento e, como pretendem alguns, mais seguro. Sem se realizar
uma fase anterior não se pode passar à subseqüente. Como afirma Afonso, “a Justiça é uma obra complexa.
Tem necessidade de tempo, de formalismo, de regras, de prova judicial, de debate contraditório, de
publicidade de audiência, de vias de recurso, garantias elementares do Estado de direito” (Afonso, 2001).
A temporalidade do processo penal também pode produzir verdades diferentes da verdade
midiática. O art. 155 do Código de Processo Penal estabelece que “o juiz formará sua convicção pela livre
apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão
exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”. Suponhamos que uma testemunha-
chave tenha sido ouvida durante as investigações e que as revelações desta testemunha tenham sido
veiculadas pela imprensa. Se esta testemunha falecer antes de ser ouvida durante o processo penal, e não
houver outras provas da acusação, a justiça não poderá utilizar o seu depoimento prestado na investigação
para condenar ou absolver o réu.
Portanto, é possível perceber que mídia e justiça possuem tempos diferentes em virtude da lógica de
funcionamento de cada uma destas instituições. Além disso, a diferença entre o tempo judicial e o tempo
midiático influencia na produção de suas respectivas verdades.
4.2.2 Gramática discursiva
Um importante aspecto relativo à disjunção entre as lógicas de ação midiática e de ação judicial diz
respeito à seleção de provas. É com base nos “autos do processo midiático” que o “júri popular não-oficial”
– o público – forma a sua convicção. Por outro lado, é com base nas provas presentes nos autos do processo
judicial que o juiz, o júri popular ou o tribunal darão o veredicto. Portanto, a verdade midiática e a verdade
judicial dependem, em grande parte, das provas que constam nos seus respectivos autos. Como, pois, mídia e
justiça selecionam as provas que vão formar as suas respectivas verdades?
O processo penal brasileiro é informado pelo princípio da ampla defesa, segundo o qual devem ser

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4021
concedidos ao acusado amplos e extensos métodos e oportunidades de se defender das acusações que sofre.
Além deste princípio, o processo penal brasileiro também consagrou o princípio do contraditório, pelo qual o
processo deve permitir a contraposição de provas e idéias das partes litigantes. Estes princípios têm extrema
relevância no processo penal, já que possibilitam às partes a oportunidade de exporem ao julgador suas
versões e argumentos.
Como a acusação já conta com as provas produzidas durante o inquérito policial, o art. 41 do
Código de Processo Penal estabelece que a denúncia deve especificar o rol de testemunhas, caso julgue
necessário. Por outro lado, o momento processual adequado para a defesa indicar as provas que pretende
produzir é o da apresentação da defesa escrita, oportunidade em que pode “oferecer documentos e
justificações, especificar as provas pretendidas e arrolar testemunhas, qualificando-as e requerendo sua
intimação, quando necessário” (art. 396-A e art. 406, § 3º). As testemunhas, os peritos e o réu serão ouvidos
em uma única audiência, após a qual abre-se novamente a oportunidade para ambas as partes requererem
diligências para esclarecer circunstâncias ou fatos apurados na instrução (art. 402).
Entretanto, não são só as partes que podem produzir provas no processo penal. O Código faculta
ao juiz, embora em bases excepcionais, a possibilidade de requisitar a realização de diligências para
esclarecer dúvidas sobre ponto relevante (art. 156). Além disso, também é permitido aos jurados
inquirir o réu e as testemunhas durante o júri (art. 474, § 2º).
Portanto, percebe-se que as partes são os principais agentes de produção probatória no processo
penal. Parte deles a iniciativa e a escolha de que provas produzir. Todavia, o art. 401, § 1º do Código de
Processo Penal dispõe que “as provas serão produzidas numa só audiência, podendo o juiz indeferir as
consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias”. Assim, a escolha das provas a serem produzidas
pelas partes passa por um crivo judicial.
Este, todavia, não é de todo discricionário e não-sujeito a controle, pois, com efeito, o art. 93, IX
da Constituição Federal dispõe que todas as decisões judiciais devem ser públicas e fundamentadas. Assim,
ao indeferir a produção de uma prova, o juiz deve expor os motivos que o levaram a tanto. Com base nessa
decisão, a parte que se sentir prejudicada pode recorrer. Deste modo, acusação e defesa assumem papéis
protagônicos na produção das provas que vão formar a convicção do julgador.
Diferentes procedimentos de produção probatória ocorrem na mídia. A imprensa é o protagonista
na seleção de provas que constituirão os “autos do processo midiático”. Os envolvidos em um crime podem
até expor suas provas e versões na mídia, mas é esta última quem escolhe quando, o quê e como essas
provas e versões irão a público, pois detém espaço estratégico na esfera pública, portanto, é ela quem dita as
regras desse jogo discursivo. Adriano Duarte Rodrigues, em uma feliz colocação, observa que “o discurso
não é uma das funções entre outras da instituição midiática; é o seu principal produto e o resultado final do
seu funcionamento” (Rodrigues, 2002, p. 217).
Assim, as provas e indícios que chegam ao conhecimento do público passaram por uma seleção
prévia. Como afirma Afonso, “a selecção das informações e dos espectáculos escapam ao nosso controlo.
Vemos o que nos querem mostrar” (Afonso, 2001). Em sentido semelhante, Garapon observa que “há toda
uma diferença entre o ‘olhar despido’ do espectador numa sala de audiência e o ‘olhar aparelhado’ do
telespectador, que só descobre o processo através de um enquadramento e uma montagem que guiam sua
compreensão” (Garapon, 1999, p. 89).
As técnicas de edição, as pessoas entrevistadas, o enquadramento da câmera, as fotos,
infográficos/animações e o próprio texto verbal, todos eles, entre outros, produzem significações capazes de
“guiar a compreensão” do público, para utilizarmos a expressão de Garapon. “Guiar a compreensão” não no
sentido behaviorista da Teoria da agulha hipodérmica – como algo inexorável, mas no sentido de que o
público forma a sua compreensão a respeito do crime a partir do modo como este lhe é transmitido pela
mídia.
A seleção probatória pela mídia é inerente à sua própria lógica de funcionamento. A mídia não tem
por objetivo a formação de um dossiê que contenha detalhadamente todas as provas. O rádio e a televisão
possuem apenas alguns minutos – às vezes segundos – o jornal impresso, alguns parágrafos; a revista,
algumas folhas e, mesmo a divulgação pela internet, encontra limites; limites estes que não são decorrentes
necessariamente do aparato técnico, mas de sua gramática discursiva.
Entretanto, a gramática discursiva das instituições de justiça não segue a mesma gramática da mídia.
Rios de tinta podem ser vertidos para lavrar o depoimento de um acusado ou de uma testemunha. Vários
volumes podem compor os autos do processo e muitas páginas são empregadas contendo informações
técnicas sobre perícias.
Não obstante, a mídia quer dizer sua verdade sobre o crime e, se possível, antes do judiciário, como
vimos anteriormente. É possível, portanto, que parte do que consta nos autos de um processo judicial não
chegue aos autos do processo midiático: “Vemos o que nos querem mostrar” (Afonso, 2001). Por
conseguinte, é de se esperar que mídia e justiça possam chegar a verdades distintas, visto que podem não
trabalhar com as mesmas provas. Aludindo à cobertura jornalística de julgamentos nos tribunais, Théoleyrre
observa que
fragmentos desses discursos confusos passarão à mídia, tipos diferentes de processos, em
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4022
que as regras do adversário são criticadas, e o jornalista escolhe suas testemunhas, seus
momentos e suas frases. Após essas proposições imprecisas e confusas, o julgamento da
opinião pública resulta inconsistente, pois algumas proposições insignificantes no tribunal
se tornam vedetes. Pobre justiça de opinião pública tecida com esses fios esgarçados e
muitas vezes adulterados (Leclerc e Théoleyrre, 2007, p. 73).
Além disso, para Garapon, mesmo a publicação na íntegra de um determinado documento do
processo não oferece condições para avaliação, posto que despojado de seu contexto simbólico: “Ela [a
imprensa] publica a íntegra do relatório. Mas uma peça – mesmo integral – só tem significado quando faz
parte do conjunto do dossiê” (Garapon, 1999, p. 87).
Portanto, disjunções entre a verdade midiática e a verdade judicial podem ser decorrentes da não-
coincidência de provas que cada instituição leva a seus julgadores: o juiz julga com base nas provas presentes
no processo; o público “julga” com base no que é publicado pela imprensa.
A possibilidade contrária também é verdadeira. Isto é, as gramáticas específicas de mídia e justiça
também permitem a produção de verdades distintas pelo fato de que certas provas são apresentadas na mídia,
mas não são utilizadas no processo penal. Por exemplo: tem sido freqüente a utilização, por jornalistas, de
câmeras escondidas para flagrar autoridades corruptas, estelionatários, falsos profissionais, farmácias que
vendem remédios proibidos etc. Utilizando disfarces e portando câmeras escondidas, jornalistas de
investigação surpreendem sujeitos praticando crimes. Todavia, denúncias deste tipo não podem ser utilizadas
judicialmente.
Assim, ao passo que um crime pode parecer cristalinamente comprovado quando divulgado na
mídia, é possível que a instituição judicial absolva o acusado por falta de provas, em função de a evidência
cabal veiculada pela imprensa não gozar de caráter lícito no ritual judiciário, não podendo, portanto, ser
utilizada. Deste modo, verdade judicial e verdade midiática podem diferir porque a justiça – em função de
sua gramática discursiva – está impedida de utilizar a prova empregada pela mídia, quando fica caracterizada
a falta de autorização judicial para gravação de sons e imagens.
Além disso, a gramática discursiva da justiça poderia dificultar, inclusive, a comprovação por meio
de provas lícitas. Ao depor em juízo, uma testemunha tem seus dados pessoais colhidos, além de ter seu
nome vinculado ao processo até seu termo. Embora possa receber proteção do Estado, os inconvenientes
muitas vezes não compensam. Por outro lado, no que diz respeito à mídia, a testemunha pode abrigar-se sob
o manto do sigilo da fonte, assegurado ao exercício da profissão jornalística. Assim, o formalismo do
processo penal pode, por vezes, obstar que o judiciário chegue à mesma verdade a que chegou a mídia.
Embora não se detenha especificamente nas relações entre mídia e justiça, Adriano Duarte
Rodrigues discorre sobre uma característica peculiar do discurso midiático que é valiosa para as análises aqui
feitas. Segundo Rodrigues, o que singulariza o discurso midiático é que o seu âmbito de legitimidade não é
delimitado “pelas fronteiras de um domínio restrito da experiência”, pelo contrário, sua legitimidade é
“transversal ao conjunto de todos os domínios da experiência moderna” (Rodrigues, 2002, p. 220).
Rodrigues entende que o discurso de certas instituições é esotérico por conter representações
simbólicas próprias, com as quais os integrantes da instituição já estão familiarizados, como por exemplo, a
medicina, o direito e a política. Já o termo exotérico é utilizado para caracterizar as modalidades discursivas
que não exigem conhecimentos especializados, portanto, permitem que determinadas informações sejam
dirigidas a todos indiscriminadamente.
Desse modo, instituições demarcadas por um domínio restrito da experiência – como as instituições
de justiça, por exemplo – seriam opacas, pois suas enunciações discursivas não seriam compreensíveis para
aqueles que não fazem parte do seu corpo legítimo. Por outro lado, a transparência indiscriminada
(visibilidade universal) pretendida pela mídia, requer enunciações discursivas exotéricas. “É por isso que, ao
contrário da natureza sacralizada do lugar de fala autorizado das outras instituições, a cena sobre o fundo da
qual se recortam os lugares de fala dos enunciadores autorizados do discurso midiático é um lugar simbólico
dessacralizado” (Rodrigues, 2002, p. 221).
Segundo Rodrigues, cada uma das instituições teria uma componente esotérica e outra exotérica, a
saber, a primeira permaneceria reservada no domínio das instituições e a segunda seria destinada a um
público indiferenciado. A conseqüência disso seria a perda da sacralidade dos discursos especializados: “O
fato de o discurso midiático se apropriar exclusivamente da componente exotérica do discurso das outras
instituições tem como conseqüência uma reelaboração dessacralizante dos diferentes discursos institucionais”
(Rodrigues, 2002, p. 223).
No que concerne ao objeto deste trabalho, pode-se dizer que, além de dessacralizar o discurso
judiciário, por só tomar-lhe a componente exotérica, a mídia deixa de abarcar a componente esotérica,
imprescindível para a compreensão das decisões. Isto porque, nos julgamentos, são realizados raciocínios
não só sobre os fatos, mas também sobre as normas jurídicas. As idéias contidas nesses raciocínios – por
fazerem parte da componente esotérica do discurso judicial – não são publicadas na mídia, perdendo-se
parcela da verdade judicial. Afonso afirma que
a televisão não transmite abstracções, nem raciocínios complexos. Os princípios de
direito, a jurisprudência, as regras do processo judicial não se traduzem em imagens.
Existe o símbolo da Lei mas não a imagem da Lei. As imagens televisivas dos processos
judiciais fora do contexto jurídico e judicial podem dar uma falsa ideia de Justiça”
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4023
(Afonso, 2001).
Embora Afonso só mencione a televisão, acreditamos que seu raciocínio é aplicável a outras mídias.
Com efeito, a despeito de sua visão relativamente preconceituosa sobre a imagem – pois há imagens que são
mais abstratas e demandam mais raciocínio que muitas decisões das Supremas Cortes – sua idéia é aplicável a
outras mídias dado que se trata de uma característica do discurso midiático e não da televisão
especificamente: vimos que a pretensão de visibilidade universal perseguida pela mídia confere-lhe uma
natureza exotérica, a qual só se apropria da componente exotérica dos diferentes discursos institucionais.
Isto está intimamente relacionado com a supervalorização da cobertura de investigações em detrimento de
decisões: o espaço que estas ganham na mídia é exíguo.
Portanto, é possível perceber que a verdade judicial e a verdade midiática podem ser colidentes tendo em
vista duas disjunções entre a lógica de ação da justiça e da mídia. Estas disjunções ocorrem a dois níveis: dos
tempos e das gramáticas discursivas. Cabe ressaltar que tais disjunções não são estanques, mas foram
trabalhadas em momentos diversos aqui apenas com a pretensão de expor as idéias de forma mais ordenada.
A nível dos tempos, vimos que a temporalidade midiática deriva tanto de sua relação com o mercado
como de seu caráter intermitente. A temporalidade midiática é a do imediato, dos acontecimentos mais
próximos temporalmente do crime, valorizando os procedimentos de investigação em detrimento do
desenvolvimento do processo. Por outro lado, o formalismo do processo penal torna a temporalidade judicial
lenta, possibilitando o desaparecimento de provas.
Além disso, vimos que diferenças na gramática discursiva da mídia e da justiça também podem contribuir
para a produção de verdades distintas. Em primeiro lugar vimos que, enquanto na justiça as partes assumem
papéis protagônicos escolhendo quais provas produzir, na mídia a seleção probatória pertence à imprensa,
devido à sua lógica peculiar de funcionamento, de sorte que existe a possibilidade de tais instituições
trabalharem com provas diferentes. Ademais, vimos que o contrário também é possível, isto é, a mídia
apresentar provas que não podem ser empregadas no processo penal devido à gramática discursiva judicial,
gramática esta que pode operar também como fator limitador de produção de verdade, não pela ilicitude da
prova, mas pelas conseqüências advindas de sua produção. Por fim, vimos que a natureza exotérica da mídia
não capta a componente esotérica do sistema judicial, deixando de capturar parte – muitas vezes
considerável – de sua produção de verdade.
5. Considerações Finais
A perda, pela justiça, do monopólio de dizer a verdade sobre o crime pode trazer conseqüências não
só aos personagens envolvidos nos delitos, como também às instituições. Com efeito, a divulgação apressada
de indícios – que mais tarde mostram-se inconsistentes – pode “inflacionar” as expectativas de justiça do
público. Essas expectativas, em certos casos, podem ser frustradas menos pelo açodamento na divulgação
midiática de crimes e pela má-fé de parte da imprensa, do que pelas próprias limitações inerentes às
instituições legais e judiciárias do país, como afirma Weltman:
É difícil imaginar qual pode ser o resultado de frustrações produzidas quando se
instauram processos de caça às bruxas e de exploração sensacionalista da indignação
popular através de denúncias que, mesmo quando comprovadas, raramente se traduzem
em punições exemplares. Seja por deficiências da lei ou de investigações e diligências mal
conduzidas, ou ainda por vicissitudes da composição social e da estrutura internas do
Poder Judiciário. Ao denunciar sem maiores cuidados e ao tratar tais acontecimentos
como verdadeiras cruzadas morais, a mídia pode “inflacionar” as expectativas de justiça
do público, de tal modo que qualquer resgate satisfatório desses “títulos” de indignação
moral torna-se potencialmente frustrante, quando não simplesmente impossível (Lattman-
Weltman, 2002, p. 159).
Esse déficit de punibilidade pelas instituições de justiça é agravado pela natureza exotérica da mídia.
Assim, ao não expor com mais clareza ou ao não dedicar espaço mínimo às decisões judiciais de crimes que
noticiou, a mídia não contribui para o debate acerca das instituições judiciais e da legislação. Com efeito,
frases lacônicas como “absolvido por falta de provas”[6] – quando a imprensa supostamente apresentou
tantas – dão a impressão de que tudo no Brasil acaba em “pizza” ou impunidade, como se estas fossem
resultado somente da ação de pessoas que ocupam as instituições punitivas. Chavões como esses são fáceis
de serem “digeridos” e dispensam maiores reflexões sobre as instituições e suas deficiências, promovendo o
que Wolff chama de o esquecimento da política (Wolff, 2007).
Por fim, acreditamos que o perigo maior nas relações entre a verdade judicial e a verdade midiática
não está tanto na produção midiática de “monstros”, como os da Escola Base, ou na absolvição escancarada
de corruptos, facínoras ou criminosos de toda a ordem, inobstante a farta presença de provas e indícios.
Embora esses fatos sejam gravíssimos, acreditamos que ao se apropriar somente de parte da gramática
discursiva da justiça, a mídia impede que o público faça reflexões mais aprofundadas sobre as instituições de
justiça e sua lógica de funcionamento. Portanto, o maior perigo nas relações entre a verdade midiática e a
verdade judicial relativamente a crimes cometidos, estaria no apagamento de uma cultura cívica que conheça
suas instituições – tanto privadas quanto públicas – e que seja capaz de avaliar a verdade judicial e a verdade
midiática e, assim, propor mecanismos que as aperfeiçoem.
6. REFERÊNCIAS
ABREU, Alzira Alves de; LATTMAN-WELTMAN, Fernando; ROCHA, Dora (org.). Eles mudaram a
imprensa: depoimentos ao CPDOC. Rio de Janeiro: FGV, 2003.
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4024
AFONSO, Orlando. Poder judicial e opinião pública. In: VI Congresso dos Juízes Portugueses. Justiça e
opinião públicaa tribunais e comunicação social: o olhar dos juízes portugueses. Disponível
em: http://www.asjp.pt/ vicongresso/not0024.html.2001. Último acesso em 29 de outubro de 2009.
ANDRADE, Fábio Martins de. Mídia e poder judiciário: a influência dos órgãos de mídia no processo
penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
BARBOSA, Rui. A imprensa e o dever da verdade. São Paulo: Com-Arte; Editora da Universidade de São
Paulo, 1990.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Flório de Angelis. Bauru, SP: Edipro, 1999.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e
Eduardo Jardim Moraes. Rio de Janeiro: Nau, 2002.
_______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 34ª Ed. Petrópolis:
Vozes, 2007.
GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução de Maria Luiza de
Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999. Capítulo III.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
KLAUTAU FILHO, Paulo. O direito dos cidadãos à verdade perante o poder público. São Paulo:
Método, 2008.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. In: Estudos
Avançados. 1997, vol.11, n.30.
LATTMAN-WELTMAN,Fernando. Mídia e transição democrática: a (des)institucionalização do pan-óptico
no Brasil. In: ALVES DE ABREU, Alzira (org.).Mídia e Política no Brasil. Rio de janeiro, Fundação
Getúlio Vargas, 2002.
LECLERC, Henri; THÉOLLEYRE, Jean-Marc. As mídias e a justiça: liberdade de imprensa e respeito ao
direito. Tradução de Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru, SP: Edusc, 2007.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5ª Ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008.
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base: os abusos da imprensa. São Paulo: Ática, 1995.
RODRIGUES, Adriano Duarte. Delimitação, natureza e funções do discurso midiático. In: PORTO, Sérgio
Dayrell (Org.). O jornal: da forma ao sentido.Brasília: Unb, 2002. p. 217-235.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os tribunais e as novas tecnologias de comunicação e de informação.
In: Sociologias, Porto Alegre, ano 7, nº 13, jan/jun 2005, p. 82-109.
_______. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2007.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação
de massa. 2ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
_______. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Tradução de Pedrinho A. Gaureschi.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
_______. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. 7ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
TRAQUINA, Nelson (Org.). Jornalismo: questõesa teorias e “estórias”. Portugal, Lisboa: Vega, 1993.
WEBER, Max. Economia e Sociedade. 3ª ed. Portugal, Lisboa: Editorial Presença, 1979.
WOLFF, Francis. Esquecimento da política ou desejo de outras políticas. In: NOVAES, Adauto (org.). O
esquecimento da política. Rio de Janeiro: Agir, 2007, p. 55-82.

[1] Mais adiante esclareceremos o que entendemos por sistema predominante de produção de verdade. Por ora, basta esclarecer que
este sistema está relacionado com o contexto social, podendo ser, por exemplo, a religião ou a ciência.
[2] Alusão à epígrafe deste trabalho.
[3] Veja-se, por exemplo, a utilização corriqueira do termo justiça, que tanto pode conotar um valor, um ideal, quanto a instituição
judiciária.
[4] Leclerc afirma, todavia, que muitas vezes a justiça adere à temporalidade midiática ao decretar cautelarmente a prisão do acusado
visando dar um lenitivo à “ferida aberta pela revelação do crime”. “A detenção provisória se tornou uma semipena aplicada a um
meio-culpado” (Leclerc, 2007, p. 41).
[5] Utilizou-se aqui a expressão crime de grande repercussão para diferenciar determinados crimes daqueles diariamente veiculados
em páginas policiais.
[6] Matéria da revista Veja que noticiou a absolvição do ex-ministro Antônio Palocci. Consultar: CABRAL, Otávio. Palocci de volta
ao jogo. In: Veja. São Paulo, edição nº. 2128, p. 80-84, 02 de setembro de 2009.

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010 4025

Você também pode gostar