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Cl) Maria Alice Proença

Sumário
Diretor editorial Conselho editorial
Marcelo Duarte rosca Ailine Baroukh
Marcello Araujo
Diretora comercial
Shirley Souza
Patth Rachas
Projeto gráfico
Diretora de projetos especiais
Marcello Araujo
Tatiana Fulas
Ilustração de capa
Coordenadora editorial 7 Introdução
Vanessa Sayuri Sawada Veridiana Scarpelli

Assistente editorial Diagramação


13 Saberes e fazeres pedagógicos
Olívia Tavares Vanessa Sayuri Sawada
13 Formar, transformar, recriar
Preparação
Telma Baeza Gonçalves Dias 15 A formação do professor e Piaget
Revisão 25 Outros olhares sobre a formação de professores
Beatriz de Freitas Moreira 32 E agora? Qual a ideia de formação a que chegamos?
Impressão
Lis Grdfica 43 Instrumentos metodológicos
45 Planejamento: organização do cotidiano
49 Observação
CIP — BRASIL CATALOGAÇAO NA PUBLICARAO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RI 51 Registro
53 Reflexão
Proença, Maria Alice 53 Avaliação
Prática docente: a abordagem de Reggio Emilia e o trabalho com
projetos, portfólios e redes formativas / Mana Alice Proença. — L ed.
— Soo Paulo: Panda Educação, 2018. 160 pp. 55 O trabalho com projetos
60 Como cheguei ao trabalho com projetos
ISBN 978-85-7888-720-9
63 O trabalho com projetos: de sua origem a Malaguzzi
1. Educação Infantil. 2. Professores de Educação Infantil— Formação. 80 Como desenvolver os projetos
3 Prática de ensino. I. Título.
Biblioteca Meri Gleice R. deSouza — CRB-7/6439
86 Registro em portfólios
86 Mas... o que é um portfólio?
18-59x6o COO: 370]1
CDU: 37 026 90 A montagem do portfólio
104 O ponto de observação

2019 110 Redes formativas: a cultura de grupo


Todos os direitos reservados à Panda Educação.
113 O conceito de rede/mapa conceituai
Um selo da Editora Original Ltda.
Rua Henrique Schaumann, 286, cj. 41 121 Redes/mapa conceitua) como metodologia
05413- 010 — São Paulo —SP 129 Redes individuais e redes coletivas
Tel./Fax: (si)3088-8444
edoriginal@pandabooks.com.br
140 Projetos, portfólios e redes na formação dos professores
www.pandabooks.com.br
Visite nosso Facebook, Instagram e Twitter. 141 O que move o sujeito-educador?
143 Reflexões finais
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou compartilhada por qualquer meio
ou Forma sem a prévia autorização da Editora Original Ltda. A violação dos direitos autorais
151 Referências bibliográficas
é crime estabelecido na Lei ne 9.61o/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
INTRODUÇÃO

[...] vivo o momento mágico do ato de criar, de


inovar, que somente a pesquisa pode proporcionar...
esse processo de maravilhar-se!
Ivani Fazenda

Este livro tem como foco relatar um processo de forma-


ção de professores de Educação Infantil e séries iniciais do
Fundamental I, com os quais trabalhei, tanto como coorde-
nadora e diretora pedagógica quanto como professora de
cursos de pós-graduação e assessoria pedagógica nas redes
pública e particular de ensino nos últimos 25 anos.
A contemporaneidade trouxe diversos desafios para os
percursos formativos individuais e coletivos de professores
e coordenadores pedagógicos, público-alvo do livro, em es-
pecial a rapidez com que as informações circulam no dia a
dia das instituições e a falta de tempo para elaborá-las; o
excesso de modismos a que são expostos; a rotatividade das
equipes de trabalho nas escolas; a construção de novos va-
lores em relação à diversidade, ao multiculturalismo e ao
trabalho coletivo.

Introdução 7
Diante desse contexto, o livro narra um percurso de- algo que não é feito PARA a criança por considerá-la in-
senvolvido na formação de professores, destacando: capaz de agir, mas que torna visíveis suas investigações e
seus conhecimentos construídos.
• o papel do grupo na construção do conhecimento, a
A formação de professores segundo essa concepção é
cultura do coletivo;
vista como uma busca coletiva e permanente de possibili-
• os registros reflexivos como documentação de aprendi-
dades, escolhas, pesquisas e desafios, a fim de enriquecer o
zagens, fonte de planejamento e material de avaliação;
ambiente escolar. Desta forma, experiências podem aconte-
• a reflexão como instrumento de integração entre teo-
cer de maneira cada vez mais enriquecedoras, tanto para as
ria e prática a fim de tornar a práxis cada vez mais
crianças e suas famílias quanto para os adultos, integrando
qualificada;
o espaço da instituição ao seu entorno, formando uma co-
• e os projetos interdisciplinares como uma metodolo-
munidade educativa e uma cultura de grupo.
gia de trabalho potente para a efetivação de apren-
A abordagem metodológica de projetos proposta por
dizagens significativas no contexto de formação de
Malaguzzi requer dos educadores práticas instrumentais
educadores nas instituições, tanto nas escolas quanto
que caminham para uma reflexão intencional, além de fle-
nas faculdades.
xibilidade para trocar experiências, observações e relatos,
Em busca de caminhos para que as aprendizagens ti- que viabilizam a tomada de consciência de uma nova visão
vessem sentido para todos os envolvidos no processo de de criança na contemporaneidade: um sujeito potente, pro-
construção e ressignificação de conhecimentos — crian- tagonista de suas buscas, pesquisador de seus interesses,
ças, professores, gestores, famílias e comunidade, tanto na produtor de cultura e coautor do trabalho realizado no dia
Educação Infantil quanto nas séries iniciais do Fundamen- a dia da escola.
tal I —, fiz a opção metodológica pela abordagem italiana Esta obra discute a potencialidade da articulação en-
para a educação, baseada na filosofia de Loris Malaguzzi tre os fazeres e saberes,essenciais aos professores/educado-
(1920-1994). Nessa abordagem, projetos, registros reflexi- res de Educação Infantil e séries iniciais do FundamentalI
vos como a documentação pedagógica e relações humanas para auxiliar a (trans)formação da prática docente de acor-
complementam-se na construção de percursos formativos do com as demandas da sociedade atual.
da cultura da infância. Esta abordagem aponta um olhar di- Busca configurar um campo de ação a partir de reper-
ferenciado para uma imagem de criança, que é vista como tórios coletivos e das matrizes individuais de atuação dos
um sujeito potente e forte, rica em possibilidades, prota- professores/educadores, capazes de produzir reflexões e
gonista de suas investigações para conhecer e apropriar- mudanças nas práticas pedagógicas, tendo como base pro-
-se da cultura à qual pertence. É uma cultura DA infância, jetos, registros e questionamentos diários para reelaborar a

8 Prática docente Introdução 9


forma de agir cotidiana. Entre o ideal e o real, quais são as professor, após uma revisão do conceito de projeto de tra-
possibilidades formativas? balho ao longo da história da didática.
Este livro está organizado em seis capítulos, que se O quarto capítulo discorre sobre os portfólios, mostran-
mesclam, são interdependentes, e sintetizam-se em saberes do o registro de alguns projetos que foram realizados com as
e fazeres essenciais à construção de um "currículo em ação" crianças e de outros direcionados à formação de professores.
para a (trans)formação da prática pedagógica de professo- O quinto capítulo aprofunda o trabalho de formação
res/educadores. com projetos, relata a pesquisa-ação colaborativa desen-
O primeiro capítulo está centrado na definição da volvida, os registros e as redes interativas, considerando-os
concepção de formação de professores, referendada, em como espaços reflexivos de socialização da autoria do pro-
especial, na filosofia construtivista de Jean Piaget (1896- fessor e de formação de grupo.
-1980), que entende as estruturas internas do sujeito O último capítulo sistematiza a metodologia utilizada
como capazes de ressignificar informações e experiên- como um dos possíveis caminhos de formação de educado-
cias vividas com sentido, aliadas aos conflitos cogniti- res de Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Funda-
vos provocados pelo grupo, desestabilizando hipóteses mental I na consolidação de uma cultura de grupo. Além
previamente construídas. O pensamento piagetiano, as disso, traça características de um "currículo em ação", que
ideias de Wallon, Nóvoa, García, Sacristán, Morin e Ma- contribua para uma educação de melhor qualidade para as
laguzzi, bem como os conceitos de diálogo, criticidade e crianças brasileiras. Afinal, nada valerá a pena se não se
trabalho em equipe de Paulo Freire, complementam o re- transformar em ações eficazes para uma Pedagogia da In-
ferencial teórico. fância capaz de promover aprendizagens com sentido.
O segundo capítulo define, caracteriza e exemplifica Um processo de formação, seja do professor/educa-
o uso de instrumentos metodológicos — observação, regis-
dor, seja do coordenador/diretor, ou de um artista-criador,
tro, planejamento, avaliação e reflexão — como as cinco
é sempre um desafio: como seguir a circularidade de um la-
ferramentas essenciais ao trabalho do professor/educador/ birinto e enfrentar os diferentes aspectos relacionados ao
coordenador compromissado com aprendizagens signifi- tempo? O tempo de cada um, o tempo do grupo, o tempo
cativas pessoais e das crianças, de acordo com o olhar de do relógio, da elaboração e apropriação de conhecimentos.
Paulo Freire (1921-1997) e Madalena Freire. O uso de algumas imagens ao longo desse processo for-
O terceiro capítulo apresenta uma definição conceitua) mativo criou um diálogo com as palavras em busca da inte-
da metodologia utilizada na formação de professores: deta- gração das linguagens expressivas, da mesma forma com que
lha o trabalho com projetos, trazendo o processo de cons- trabalho com professores e alunos dos cursos de pós-gradua-
trução do conceito de postura metodológica e autoria do ção. As linguagens, escrita e visual, estabelecem conexões e

10 Prática docente Introdução 11


uma relação de interdependência, expressando múltiplos sig- SABERES E FAZERES
nificados aos sujeitos-aprendizes, que buscam os SENTIDOS
da formação docente e dos projetos de vida pessoais e cole-
PEDAGÓGICOS
tivos nos quais se reconheçam e se identificam: "O que me
move? O que move o professor em (trans)formação? Qual o
sentido da docência para a Educação Infantil?".
Vamos descobrir?
Este livro narra um percurso vivido por múltiplas vo-
zes — professores, coordenadores, diretores e formadores
O meu trabalho é uma sucessão de notas e
em geral — que se envolveram no fortalecimento de uma
de guias. A invenção de uma linguagem vai,
cultura de grupo. A construção de um repertório em co- justamente, com a invenção de uma cidade.
mum, de caminhos compartilhados no dia a dia e deci- Cada uma das minhas intervenções é outro
sões coletivas, apontam para a possibilidade de mudanças fragmento de história que eu estou a inventar,
na postura do grupo quando todos se sentem pertencen- da cidade de mapeamento que eu sou. Eu
tes ao processo de transformação da/na escola: todos os procuro com obstinação o momento em que o
sujeitos são considerados agentes de mudanças! A possi- que eu chamo de experiência de vida coincide
com a consciência da experiência.
bilidade de atuar de um jeito diferente, inovador, requer
uma cultura de coletivo, uma coprodução com objetivos Francis Alys
em comum para potencializar aprendizagens significati-
vas de adultos e crianças.
Formar, transformar, recriar
Vamos começar a pensar sobre o conceito de formação
refletindo sobre o significado da palavra "forma".
De acordo com o Grande dicionário etimológico prosódi-
co da Língua Portuguesa, de Silveira Bueno (1965), o teimo-
"forma", pronunciado com "o" aberto, refere-se a "notas in-
dividualizantes que distinguem um corpo de outro, um ob-
jeto de outro, à disposição das partes de um todo de que
surge a aparência externa".

12 Prática docente Saberes e fazeres pedagógicos 13


Já o termo "forma", pronunciado com "o" fechado, faz FORMA.
FORMA
referência a "molde, modelo pelo qual se fazem outros", di-
construção, criação,. molde, enquadramento;
ferenciando-se, originalmente, com a grafia do acento cir-
autoria, pesquisa receita, reprodução
cunflexo: forma e fôrma.
Ao pesquisar a origem dessas palavras, constatei que a HETERONOMIA
diversidade de significados poderia ser associada à diferen-
ça de olhares em relação à formação de professores. Responsabilidade individual.AÚTOFORMAÇÃO.
Neste livro abordo a formação de professores como es-
paços de criação, de singularidades, de autoria de sujeitos
Ampliando esse pensar, a formação do professor envolve:
que optaram pela docência como projeto de vida, ao mes-
mo tempo em que se fortalece uma cultura comum a um • (Trans)formação
grupo com referências quanto à concepção de criança, es- • Ressignificação
cola, mundo. • "Reelaboração"
O verbo "formar" (do latimformare) significa: • Refletir sobre a própria ação
Criar, modelar, constituir, reunir os elementos, as • "Recriação", enquanto movimento contínuo de bus-
partes de um todo, dando-lhes a aparência, o exte- ca e de constituição de uma identidade pessoal e
rior; imaginar, criar o seu estilo, a sua maneira de profissional.
expressar; dar a alguém os conhecimentos necessá-
rios para o desempenho de uma carreira, um ofício.
[...] formar-se é constituir-se, completar-se nos estu-
A formação do professor e Piaget
dos, nas técnicas necessárias a seu oficio, educar-se,
criar-se. (BUENO, 1965, p. 1.443) Alguns conceitos-chave da filosofia construtivista pia-
getiana são usados como referenciais teóricos, que movem
Formar-se é buscar a própria identidade, enquanto su-
a formação dos educadores: ação, investigação, autono-
jeito e membro de um grupo, fortalecendo o sentimento de
mia e relação interativa são descritos ao longo das obras de
pertencimento àquela realidade institucional.
Jean Piaget, apontando conexões possíveis entre o constru-
Entendo, então, a diferença entre "forma" e "fôrma" da
tivismo e a pedagogia.
seguinte maneira:
A multiplicidade e a complexidade dos atores e fatores
envolvidos no processo possibilitam estabelecer relações en-
tre a singularidade do sujeito e a pluralidade do grupo.

14 Prática docente Saberes e fazeres pedagógicos 15


O QUE É UM GRUPO?
Ação
Grupo é... grupo.
A cada encontro: imprevisível. O conceito de ação, descrito por Piaget, é associado aos
A cada interrupção da rotina: algo inusitado.
fazeres do educador que, a partir da própria prática peda-
A cada elemento novo: surpresas.
A cada elemento já parecidamente gógica, construída com experiências anteriormente vividas,
conhecido: aspectos desconhecidos. tem a sua matriz de atuação problematizada. O confronto
A cada encontro: um novo parto, novo
entre o "fazer de agora" e suas experiências prévias pode
compromisso fazendo história.
A cada conflito: rompimento do transformar-se em um material de reflexão eficaz pelo sig-
estabelecido para a construção da mudança. nificado que contempla: a sua própria história enquanto su-
A cada emoção: faceta insuspeitável.
jeito-educador.
A cada encontro: descobrimentos de terras não
desbravadas...
Para o biólogo, psicólogo e filósofo suíço, a inteligência
Grupo é grupo! (FREIRE, 2002, p. 3o) nasce da ação: desde os primeiros atos motores e aparente-
A concepção que adoto para grupo baseia-se nas ideias de mente desconexos de um bebê até as abstrações reflexivas,
Pichon-Rivière: um grupo tem a intenção de construir, forta- que podem ser extremamente complexas na vida adulta, há
- tecer e
valorizar o sentimento e as atitudes de cooperação, um longo caminho a ser percorrido na construção das es-
'. solidariedade, parceria, coletividade, convívio respeitoso e
_ prazeroso. truturas de pensamento e de atuação do sujeito-aprendiz.
Da mesma forma que uma criança estranha algo des-
Quando um conjunto de pessoas movidas por necessi-
dades semelhantes se reúnem em torno de uma tarefa conhecido e se espanta com o inusitado, o educador pode
específica. No cumprimento de desenvolvimento das ta- ter dois tipos de reação diante do novo: curiosidade e dese-
refas, deixam de ser um amontoado de indivíduos, para
jo de conhecer, ou afastamento e manifestação de resistên-
cada um assumir-se enquanto participante de um grupo
com um objetivo mútuo. (1994, p. 34). cia por "não saber".
Ao sentir-se desafiado a se apropriar do que desconhe-
A formação docente é um percurso formativo que en- ce — ou para que possa agir de outro modo — "experimenta"
cadeia um elo a outro de um diálogo estabelecido entre as a potencialidade do objeto em questão, explora-o em todas
partes de um todo, de tal forma que se mesclam em seus as suas variáveis e usa suas estruturas internas previamente
percursos e recompõem a sintonia do conjunto, como em construídas, além das informações de que dispõe para atri-
uma orquestra. Vamos olhar de perto esses elos. buir-lhe algum sentido.
Em contrapartida, a atitude de resistência também pode
se manifestar em função da falta de respostas para lidar com
o objeto em foco e do incômodo de se expor diante do outro.

16 Prática docente
Saberes e fazeres pedagógicos 17
Quando isso ocorre em um processo de formação Nesse contexto, a pesquisa é um poderoso aliado do
pode gerar um distanciamento da proposta realizada professor em constante processo de formação, pois ofere-
pelo formador. ce instrumentos para buscar respostas às suas curiosidades
Quanto mais as ações de formação envolverem o tra- e às faltas detectadas, preparando-o para lidar com situa-
balho do professor na escola, mais condições ele terá de ções imprevisíveis e com as novas informações que circu-
qualificar a sua prática pedagógica e de planejar uma inter- lam a cada dia.
venção com qualidade, passando do fazer por fazer para o Na sociedade do conhecimento e da incerteza, que ca-
fazer intencional, a que Paulo Freire chamava de "práxis". racteriza a pós-modernidade, a pesquisa e a investigação
da própria prática, quando aliadas à teoria, apontam novas
QUEM É O FORMADOR?
possibilidades para a qualificação da docência e revelam o
Ao longo do livro, chamo de "formador" todo sujeito envolvi- compromisso de quem se profissionaliza com competência,
`. do em situações de ensino-aprendizagem, nas quais ele é o
principal responsável, tais como: o coordenador pedagógico, o responsabilidade e envolvimento.
professor universitário, o professor e seu grupo, independen- Em um processo de formação, a ação investigativa do
temente da faixa etária de atuação.. formador se concretiza na elaboração de perguntas desafia-
doras e na colocação de situações-problema que promovam
novas aprendizagens, por meio da ressignificação das ma-
trizes de atuação daqueles em processo de fouuação e do
A investigação é outro conceito central em Piaget. À próprio formador.
medida que o sujeito-aprendiz age sobre o mundo ao seu Mas... quais são as boas perguntas?
redor, vivencia a possibilidade de se transformar em pesqui- São as que tiram o sujeito de sua zona de conforto, pro-
sador de seus fazeres. A familiaridade com determinados movem a apropriação de novas alternativas para pensar de-
aspectos de sua prática propicia a oportunidade de trans- terminado episódio e o Confronto de diferentes pontos de
formá-la em matéria-prima de sua própria pesquisa. vista. São perguntas que geram outras perguntas, outras in-

Como todo pesquisador compromissado com o rigor dagações sob óticas diversificadas, outras possibilidades de
científico de sua investigação, o uso de instrumentos meto- apropriação do objeto. A formação do professor é um pro-
dológicos é fundamental para a qualidade do trabalho de- cesso interativo baseado em sucessivos movimentos de idas
senvolvido: observação, planejamento, registro, reflexão e e vindas ao objeto pesquisado, o que potencializa um novo

avaliação são ferramentas essenciais ao processo de cons- olhar do sujeito, que busca um sentido para suas matrizes
trução de novos conhecimentos. de atuação e a ampliação de seu repertório.

18 Prática docente Saberes e fazeres pedagógicos 19


O conceito de autonomia na visão piagetiana baseia- Outro conceito fundamental em Piaget a ser conside-
-se na capacidade do sujeito de se autogovernar e é uma rado em relação à formação do educador é o de interação.
das metas da formação do professor. A autonomia é decor- Para ele, o processo de aprendizagem é decorrente da in-
rente de uma construção, que evolui da heteronomia (go- teração desenvolvida na relação entre o sujeito e o objeto,
verno de outrem) ao gerenciamento dos próprios atos e mediada por outros sujeitos e pela cultura.
decisões com consciência e respeito ao bem-estar coletivo. Piaget enfatizou o processo de aprendizagem como
São escolhas intencionais, responsáveis, pensadas e repen- uma construção decorrente da adaptação do sujeito ao
sadas, que possibilitam aprendizagens significativas para meio a que ele pertence, da forma como o sujeito-aprendiz
todos os membros do grupo, com ética e respeito às rela- capta o mundo que o cerca e das relações que estabelece
ções humanas. entre sujeitos e objetos na superação de conflitos e desafios
No contexto da formação do professor, o conceito de que surgem no dia a dia.
autonomia deve ser discutido à luz da visão de (des)centra- O conflito cognitivo é um caminho essencial à aprendi-
lização da proposta de coordenação e de gestão de grupo. À zagem: o sujeito só percebe suas faltas e interesses no con-
medida que se considera a distribuição de papéis e funções fronto com os demais, e na ausência de respostas diante de
dos integrantes de um grupo, como uma meta a ser alcan- situações inusitadas, além de se certificar de suas crenças
çada, há uma coordenação de responsabilidades e diálogos e valores.
de diferentes pontos de vista em prol de um objetivo comum, Para Piaget, educar é "provocar" a ação/atividade do su-
uma integração de sujeitos, um trabalho de coprodução de jeito, ou seja, oferecer o estímulo essencial para desafiar o
novos conhecimentos e não uma subordinação de todos a sujeito em busca do conhecimento, da investigação, da pes-
uma figura central. quisa de novas possibilidades de atuação na qualificação
A autonomia deve ser considerada, também, em rela- docente. O questionar é um processo contínuo: "O que me
ção às consequências do processo, pois na mesma proporção move? Qual o sentido da docência na primeira infância?".
em que todos estão envolvidos no processo de aprendiza- Aprender é "re-significar" os objetos e as relações hu-
gem, a responsabilidade, os "ônus" e os "bônus" de todo o manas, atribuindo-lhes sentido, posicionando-se diante
percurso formativo também são compartilhados, tornando- do mundo, construindo e reconstruindo fazeres-saberes
-se uma construção compartilhada pedagógicos, constituindo-se como professor/educador,
formando-se e buscando espaços de identidade individual
e coletiva.

20 Prática docente Saberes e fazeres pedagógicos 21


Nessa abordagem, compreender é "re-significar", in- aquilo que desejávamos. Compreendi, então, que
ventar e reinventar o objeto de conhecimento — tanto do educar é fazer sonhar. Aprendi a ser índio, pois
adulto quanto das crianças —, estabelecendo conexões e aprendi a sonhar ("viajar", na linguagem do não
criando uma teia de relações que vão "recriar" as informa- índio). Ia para outras paragens. Passeava nelas,
ções, as vivências e as experiências iniciais. aprendia com elas. Percebi que, na sociedade indí-
gena, educar é arrancar de dentro para fora, fazer
No discurso de abertura da Organização das Nações
brotar os sonhos e, às vezes, rir do mistério da vida.
Unidas (ONU), relatado no livro Para onde vai a educação?,
(1996, p. 38)
Piaget afirmou que:
Piaget e Munduruku voltam seus olhares para as suas
[...] o principal objetivo da educação é criar homens
origens, europeia e indígena, respectivamente, atribuindo
capazes de fazer coisas novas, não simplesmente de
repetir o que outras gerações fizeram: homens criati- um sentido singular às questões internas e culturais do su-
vos, inventivos e descobridores. (1977, p. 53) jeito-aprendiz, educador ou educando.
Somente uma experiência de fato significativa e de
Dessa forma, enfatiza o papel da "ressignificação" do acordo com inquietações pessoais pode se configurar como
conhecimento historicamente acumulado na transforma-
um incômodo capaz de proporcionar mudanças nos habi-
ção da sociedade. Para o filósofo, a construção, a apro-
tas do educador.
priação e a validação do conhecimento se dão por meio de Para provocar mudanças, a formação do docente deve
um longo processo, composto por sucessivas idas e vindas
basear-se em um processo criativo, flexível, gradativo e sin-
a questões essenciais ao sujeito-aprendiz, na tentativa de
gular, que dê voz a seus atores e, em especial, desenvolva
significar os objetos.
o sentimento de pertencimento e cultura de grupo, pois só
há validade de saberes e fazeres a partir de similaridades e
confrontos com as ideias alheias, que criem um "código" de
O que trapo em mim e como
referência aos que fazem parte de um grupo.
interajo com a realidade
HABITUS
Complementando o pensamento piagetiano para defi-
nir "educação", cito aqui o escritor Daniel Munduruku, ao Pierre Bordieu, sociólogo francês, discute o conceito de habitus
como uma matriz de atuação do indivíduo que, na maioria das
refletir sobre suas raízes culturais:
situações cotidianas, age sem refletir sobre seus atos, apenas
reproduzindo estruturas anteriormente bem-sucedidas, ou com
Educação para nós [povo indígena] se dava no si-
recursos suficientes para "dar conta" de uma situação..
lêncio. Nossos pais nos ensinavam a sonhar com

22 Prática docente Saberes e fazeres pedagógicos 23


com os alunos e com os demais parceiros, como produz co-
nhecimentos no exercício da docência, no ambiente de cons-
EXPLORAR trução de conhecimentos, um sujeito invetigador.
OBJETOS
A formação em serviço, efetivada no lócus de atuação
do sujeito-educador, a escola, pode se transformar em um
VIVENCIAR espaço central de reflexão e melhoria qualitativa do traba-
RELAÇÕES
lho realizado por um grupo que se percebe como agente de
mudanças significativas no contexto institucional, a partir
de trocas interativas de fazeres e saberes da prática peda-
gógica cotidiana.

Outros olhares sobre a formação de professores


A aprendizagem é considerada por Piaget como um
espaço de busca, de vivências, confrontos, verbalizações, O pensamento de Piaget e sua proposta de formação
tomada de consciência dos fazeres e saberes pessoais na de professores têm sido a base do exposto neste livro. Além
construção de experiências que deixam marcas. Em espe- dele, outros pensadores dialogam com essas ideias, am-
cial, experiências que ampliam o repertório de atuação do pliando-as, propondo caminhos, referenciando teoricamen-
sujeito -educador, transformando habitus e matrizes em ma- te esse processo contínuo.
neiras criativas e diferenciadas de agir e de ser professor,
autor de sua história.
O professor em constante processo de formação de- Desenvalvlmento proíflsslan€d e pessoal
veria manter a capacidade infantil de se encantar dian-
António Nóvoa (1995, 2002), especialista português
te de eventuais descobertas e estranhar a ausência
de em formação de professores, afirma que há uma relação en-
respostas momentâneas para determinadas situações,
tre o desenvolvimento profissional e pessoal do professor.
convertendo-as em objeto de pesquisa e busca de novos
A escola não pode mudar sem o empenho dos professores
conhecimentos.
que, por sua vez, não podem mudar sem a transformação
O ponto de partida e de chegada da proposta formativa,
da escola como um todo: o desenvolvimento profissional
que objetiva a qualificação docente, é o professor/educador,
dos docentes tem de estar articulado com seus projetos pes-
elemento central do processo. a forma como atua, interage
soais, pois fazem parte do mesmo contexto.

24 Prática docente
Saberes e fazeres pedagógicos 25
Nóvoa introduz o conceito de "pertença" ao contexto E de que forma deve se dar esse desenvolvimento pro-
formativo, com o intuito de fortalecer a relação de grupo fissional e pessoal?
de docentes, no qual os professores possam se sentir par- Segundo Sacristán (1999, 2000, 2002, 2007), que tam-
te integrante do processo, identificar-se com uma cultura bém compartilha o pensamento de Nóvoa e García, o mo-
em comum, que seja capaz de referendar a sua atuação e delo de desenvolvimento deve ser evolutivo e continuado,
possibilitar ajuda mútua. sempre referendado no projeto pedagógico de cada escola
Às ideias de Nóvoa aliam-se as do formador espanhol que, do seu ponto de vista, é a base para a mudança da pro-
Carlos Marcelo García (1999) sobre a relação existente en- fissionalização e do aperfeiçoamento dos professores. É no
tre o desenvolvimento pessoal e profissional dos professo- convívio diário, diante de situações reais problematizadas e
res no contexto da escola. de trocas, que se configura o espaço de transformações dos
Para o autor espanhol, todos aqueles que fazem parte sujeitos e da instituição como um todo.
do cenário institucional têm responsabilidade na sua me-
lhoria e estão implicados no processo de mudanças.
O desenvolvimento profissional baseia-se na formação Urna AAá& Si ira da formação
contextualizada, organizada e orientada para mudanças
Coll (1996, 1998) defende que o processo formativo
pessoais, profissionais e institucionais, integrando a escola,
envolve fatos, ações, opiniões, crenças e conhecimentos
o professor e a pessoa que exerce a função docente. Essa vi-
que, em maior ou menor intensidade, acabam se associan-
são implica melhores condições de trabalho, valorização da
do à profissão. Para ele, "ser professor" está pautado não só
carreira docente e do status profissional.
na formação acadêmica do sujeito, mas também na história
García e Nóvoa partilham do mesmo pressuposto de que
pessoal, na trajetória profissional e na experiência docen-
a formação é um processo contínuo para a mudança e para a
te, representando uma visão sistêmica de interdependência
qualificação da escola como um todo, que busca melhorar a
dos fatores que influenciam o processo de formação de do-
prática profissional daqueles que fazem parte da instituição e
centes voltado à construção da identidade dos professores.
envolve qualquer atividade, individual e coletiva, que desen-
volva o professor, seu pensamento e suas ações pedagógicas. Falar de educação representa referir-se a um mundo de
De acordo com essa visão, a formação requer conhe- significados variados: obtenção de qualidades ou esta-
cimentos práticos e teóricos dos formadores e dos profes- dos subjetivos nas pessoas, processos que conduzem
a eles, aspirações sociais compartilhadas, atividades
sores, o que também contribui para um novo olhar para as
familiares, políticas para educação, atividades profis-
reuniões pedagógicas e demais espaços de formação de pro-
sionais e institucionais. (SACRISTÁN, 1999, p. 18)
fessores para a colaboração do grupo em tarefas escolares.

26 Prática docente Saberes e fazeres pedagógicos - 27


Edgar Morin (2000, 2002, 2004) agrega um olhar inter- íntimo" que, ao estabelecer um diálogo interno, respalda, au-
disciplinar à founação de professores, além de atribuir impor- toriza e valida o pensar individual, questiona-o, confronta-o
tância à relação que o sujeito estabelece com o seu grupo de
com ideias divergentes das que dispõe. Portanto, quanto mais
pertencimento, numa concepção sistêmica, que vê o professor "outros" o indivíduo tiver, haverá mais possibilidades para
como um articulador da cidadania local e mundial. Para o fi- estruturar o seu psiquismo e refletir sobre determinadas ques-
lósofo francês, o conhecimento vai além da informação, que tões, já que necessita de "outros" pares para se constituir.
precisa ser analisada, refletida e vivenciada com sabedoria. O A multiplicidade de contatos favorece a possibilidade
professor é visto como um articulador de significados, um me- de o "eu" fazer esses dois movimentos estruturantes pes-
diador ativo da tarefa permanente de reinterpretar as aqui- quisados por Wallon: o de projetar-se no outro e o de intro-
sições históricas da humanidade, pois a informação requer jetar o outro em si, estabelecendo uma relação dialética de
questionamento e contextualização social, histórica e cultural aprendizagem e ampliando o referencial pessoal.
para ser apropriada, para ampliar a visão de mundo pessoal e A relação eu-outro (professor-aluno, professor-profes-
transformar-se em novos conhecimentos (sabedoria). sor, professor-coordenador, professor-diretor, professor-fa-
Na busca pelo conhecimento, Morin mostra que a se- mília) é o conceito central do pensamento walloniano, uma
paração nas diversas áreas do saber impede que o sujei- vez que o ser humano não sobrevive sem o outro.
to estabeleça inter-relações entre diferentes informações e O duplo movimento de projeção e introjeção aproxima
vários temas, propondo a interdisciplinaridade como um o sujeito de outros teóricos, com os quais se familiariza e
paradigma a ser vivido para a construção de novos olha- compartilha uma intimidade de ideias e pressupostos teóri-
res para um mundo marcado pela complexidade, por uma cos, a partir dos quais elabora, fundamenta, amplia e con-
visão sistêmica de interdependência em diferentes aspec- fronta as suas referências teóricas. No processo de ensino
tos, sujeitos e áreas do conhecimento. e aprendizagem é fundamental que o sujeito se identifique
com o outro para encontrar respaldo em sua concepção de
mundo e em seus pensamentos, construindo matrizes teó-
A iinterartivkiaade e 42 (trans)formoçáuo ricas que embasam seus fazeres e saberes pedagógicos, ou
A formação docente, segundo Wallon (1989), é estabe- que possibilitem a construção de caminhos diferenciados.
lecida por relações interativas que, por sua vez, constituem o Wallon também enfatiza a importância da visão edu-
sujeito, pois para o autor "o ser humano é geneticamente so- cacional de conjunto, criticando a concepção positivista vi-
cial": o "outro" tem um papel fundamental na construção do gente na época, que fragmenta o individual do grupai, pois

conhecimento do sujeito, podendo ser considerado um "sócio "trata-se de integrar os dois poios entre os quais a educa-
ção sempre oscilou — a formação da pessoa e sua inserção

28 Prática docente Saberes e fazeres pedagógicos 29


na coletividade, de maneira a assegurar a sua plena realiza-
Wallon considera a escola lócus privilegiado de cons-
ção". (ALMEIDA e MAHONEY, 2000, p. 72)
trução e ampliação de conhecimento, por favorecer ex-
Segundo Wallon, a formação psicológica dos professores
periências com diferentes grupos e instrumentalizar o
[...] não pode ficar limitada aos livros; deve ter uma indivíduo para participar de outros meios diferenciados da
referência perpétua nas experiências pedagógicas família. Enfatiza o conteúdo e a cultura como elementos de
que eles próprios realizam cotidianamente. O pro- expansão de mundo e desenvolvimento de potencialidades
fessor precisa conhecer as teorias de desenvolvimen-
formativas, que transitam do social para o individual em re-
to, de aprendizagem, de personalidade que os livros
lações que o sujeito vivencia desde o nascimento.
ensinam, mas precisa ter uma atitude permanente
de investigador do ser em desenvolvimento ao pes- A tomada de consciência de que o processo de aprendi-
quisar a própria prática. E o conhecimento que aí ad- zagem está pautado em relações interativas, no autoconhe-
quire — na prática — volta para enriquecer as teorias cimento e na complexidade do contexto grupal é um dos
[...J. (in ALMEIDA e MAHONEY, 2000, p. 86) desafios para a formação docente na contemporaneidade.
Para Jung (1963), o verdadeiro adulto é responsável
Dessa premissa é possível destacar a importância do
por sua própria formação, pois não se contenta em repetir,
uso dos registros como um instrumento de reflexão e de
deseja produzir cultura a partir de seu próprio desenvol-
formação contínua dos educadores para transformar a prá-
vimento e, ao expandir-se no contato com o outro, trans-
xis, revelando a intencionalidade da própria ação, qualifi-
forma-se e transforma o outro. Para assumir uma postura
cando-a em outro patamar de atuação capaz de promover
potencialmente transformadora, é preciso que o sujeito
aprendizagens significativas para si e para o grupo.
busque se conhecer e, com ousadia, rompa a barreira da
Na perspectiva das relações interativas, a autoria do
consciência para se defrontar com aspectos criativos e som-
professor é um processo de "re-construção" e "re-criação",
brios do inconsciente, emergentes de símbolos, sonhos e
que o sujeito faz a partir das conexões que estabelece na
imagens. A conexão estábelecida entre aspectos objetivos
"re-leitura" de parceiros teóricos e na articulação que esta-
da realidade com a subjetividade do mundo interno, por
belece com a própria prática pedagógica, à luz de suas in-
meio de trocas interativas, viabiliza a formação integral do
tervenções cotidianas, mediado pelo(s) outro(s).
sujeito-educador.
Ao "inter-agir", o sujeito relaciona-se com o meio a que
Quem educa quem? Quais aspectos devem ser con-
pertence e com os demais sujeitos que dele fazem parte, vi-
templados? A formação de professores na sociedade con-
venciando um processo que se caracteriza pela dialética da
temporânea deve se basear na circularidade das interações
integração e da contradição, requerendo autoconhecimen-
entre as polaridades — visão dos extremos de um mesmo
to e posicionamento.
fato/dado —, pois da forma como é feita atualmente, segun-

30 Prática docente
Saberes e fazeres pedagógicos 31
do Ecleide Furlanetto (2003), perpassa por conhecimentos
mar a formação do docente em uma reflexão crítica sobre a
teóricos e técnicos que são insuficientes.
própria prática pedagógica?
A educação, para Jung (1963), deve ser considerada um
Uma abordagem metodológica coerente com essa
espaço para criar seres autônomos, que possibilite a configu-
concepção de sujeito e de educação, que será desenvol-
ração do indivíduo como um ser único, capaz de destacar-
vida neste livro, é o trabalho com projetos, instrumen-
-se da consciência coletiva, revelando a sua singularidade.
tos metodológicos, redes e portfólios focados no trabalho
De acordo com Furlanetto (2003), a educação é um proces-
coletivo, buscando estruturar uma cultura de grupo de
so sem término, que solicita tempos-espaços adequados para
educadores da Educação Infantil e das séries iniciais do
acontecer e apropriados aos adultos egressos dos cursos ini-
Ensino Fundamental I.
ciais preparatórios para o exercício da docência.
A formação de professores perpassa pela definição ini-
Segundo Jung (1963), a aprendizagem está profun-
cial do termo, a fim de explicitar a concepção de sujeito, de
damente imbricada nos processos existenciais vividos pelo
mundo e de educação que a norteia:
adulto na ampliação de sua consciência — o que permeará
a relação estabelecida com os alunos — e esses • O que é formar(-se) na contemporaneidade?
movimen-
tos não ocorrem sem que o adulto assuma seus próprios • Como lidar com desafios cotidianos?
processos de (trans)formação. Esse movimento implica vas- • Como produzir interativamente aprendizagens signi-
culhar "nichos", a essência de cada um, o que articula con- ficativas?
teúdos criativos, mas também bastante defensivos pelas • Como investigar a metodologia da formação docen-
emoções que despertam nos outros e em si. te no sentido epistemológico que Piaget conferiu à
Refletir, para Furlanetto (2003, p. 23), aprendizagem do sujeito?

não é um exercício linear. Envolve, além da razão, a Segundo Piaget,


nossa emoção; articula conteúdos inconscientes — cria-
[...] para fazer uma epistemologia de uma manei-
tivos e defensivos — que ora nos possibilitam, ora nos
ra objetiva e científica, não é preciso tomar o co-
dificultam os movimentos de ampliação da consciência.
nhecimento com C maiúsculo, como um estado sob
suas formas superiores, mas achar os processos de
formação. E...] O estudo destas transformações do
conhecimento, o ajustamento progressivo do saber,
E agora? Qual a ideia de formação a que chegamos?
é o que eu chamo de Epistemologia Genética L••]•
Diante das ideias discutidas a partir dos autores citados (1970, p. 68)
neste capítulo, chego ao questionamento: Como transfor-

32 Prática docente
`~t Saberes e fazeres pedagógicos 33
kih©s ~ny
• Qual a forma mais adequada para manifestação de sa-
~ docente? Q€mak os
beres e fazeres dos educadores que, simultaneamente,
que ,a ronsf(fealrianrm? possibilite a expressão dos sujeitos envolvidos no pro-
A partir do conceito piagetiano de "sujeito-cognoscen- cesso de aprendizagem (professores e crianças)?
te", minha escolha por trabalhar com projetos de acordo
re[açãa interativa
com o pensamento de Loris Malaguzzi aponta para uma APRENDER ENSIN
união de princípios em sintonia, propostas similares, visões
compartilhadas.
PALAVRAS EM REGISTRO

SUJEITO- COGNOSCENTE TEÓRICOS


PARCEIROS
É alguém que procura ativamente conhecero mundo PESQUISA BUSCA
ao seu re- r.
dor para tentar resolver os desafios que lhe são FORMAÇÃO DE
apresentados;
alguém que aprende por meio das próprias ações sobre os LINGUAGENS PROFESSORES ... SER 1 SABER 1
ob-
jetos e constrói as suas próprias categorias de MU LTIPLAS FAZER 1 CONVIVER
pensamento, ao
mesmo tempo em que as utiliza para organizar o seu mundo..

BRINCAR: EU PROCESSOS SENTIDOS:':


A clareza das respostas na construção dos projetos
(veja a página 141) — O quê? Por quê? Como? Para quê? - HISTÓRIAS DESCONSTRUÇAO te GRUPO
Para quem? Quando? — explicita a intencionalidade da ação
docente, a tomada de consciência da prática pedagógica PALAVRAS
SÍGNIFICADOS RECONSTRUÇÃO
EM lOGO
para se tornar uma prática intencional, a coerência inte-
rativa entre o fazer e o saber pedagógicos constituintes do MEMÓRIA MATRIZ I MOTRIZI : PO RTFÓ LIOS
"ser professor".
Para "re-significar", contudo, outras perguntas preci-
EMOÇÃO [ VÍNCULO COMPARTILHAR
sam embalar as ações de formação:

• Qual o percurso de "re-criação" de características, hábi-


OQUEÉ SER PROJETOS
'=FAZERES~,~~
tos e costumes marcantes que identificam um grupo de PROFESSOR INTERDISCIPEINARES
DA INFÂNCIA?
professores de Educação Infantil compromissado com a
4-I: SABERES
qualidade da ação docente? O QUE UNE
• Como contemplar e valorizar a cultura da infância? CONSTRUÇÃO O QUE MOVE?

34 Prática docente
Saberes e fazeres pedagógicos 35
Mais uma vez, encontro inspiração nas palavras de s ria s
fd u céu É r c€ç
Quatl
Munduruku:
adequado para propk ar reS,s
[...] não escolhi ser índio... mas escolhi ser professor, mudanças nos sujeitos de ação
ou melhor, confessor de meus sonhos. Desejo narra-
-los para inspirar outras pessoas a narrar os seus, a Apesar da ampla divulgação pela mídia contemporânea
fim de que o aprendizado aconteça pelas palavras e de cursos, palestras, seminários, congressos, oficinas e litera-
pelo silêncio. É assim que "dou" aula: com esperança„ tura especializada para "reciclagem" e "capacitação" de pro-
e com sonhos [...]. (1996, p. 39) fessores, termos que são inadequados à complexidade do
tema por desconsiderarem, na maior parte das propostas, a
A formação docente, vista como um processo de atri-
experiência vivida pelo educador até o momento, acredito
buição de sentido "ao que se faz", "como se faz", "para que
que a formação em serviço deva ser feita no local de traba-
se faz" determinadas intervenções é um movimento con-
lho do sujeito: na escola ou em grupos de estudo para apro-
tínuo de busca e "re-criação" dos elementos centrais que
x fundamento em longo prazo.
constituem o sujeito-educador: com responsabilidade, envol
Justifico a opção da escola por ser o ambiente real de
vimento, autonomia e compromisso qualifica-se, dá-se uma
atuação dos professores/coordenadores/diretores e crian-
forma, cria-se uma imagem como profissional de educação.
ças, contexto no qual as situações de conflito acontecem, em
No grupo, formas de agir e de pensar são discutidas e
especial, por contemplar a presença do grupo como um todo.
construídas coletivamente, sem receitas ou moldes de atua-
Nessa perspectiva, é de fundamental importância a con-
ção, mas com questionamento crítico e reflexão permanente
figuração de tempos e espaço de formação, como as reuniões
sobre possibilidades diferenciadas de ação em determinadas
pedagógicas com este objetivo e o respaldo da escolha de
situações, ampliando o repertório dos docentes e a clareza
teóricos que compartilham os princípios propostos, que de-
de justificativas para as intervenções a serem feitas.
vem ser explicitados no projeto pedagógico institucional.
O termo "sujeito" designa o indivíduo consciente e
E por mencionar as reuniões pedagógicas voltadas à
capaz de agir autonomamente, alguém que não se dei-
formação de professores, considero que devem se constituir
xa manipular por outrem, que não reproduz imposições
como um espaço privilegiado de encontro entre os sujei-
e prescrições como se fossem receitas e "formas" de atua-
tos e a cultura. Precisam ser devidamente planejadas pelo
ção apresentadas como planejamentos, previamente ela-
coordenador, com objetivos específicos, pautas explícitas
borados e disponíveis no mercado editorial, que podem
com o foco do encontro, socializadas com o grupo; dinâmi-
ser pontos de partida, aquecimento de discussões e deci-
cas, tarefas e atividades estreitamente relacionadas ao que
sões compartilhadas.
se pretende tratar; avaliação da proposta feita; e registro,

36 Prática docente -
Saberes e fazeres pedagógicos 37
não só do trabalho proposto/realizado, mas também das
os habitus locais se constituam em valores característicos
decisões tomadas pelo grupo.
do grupo de Educação Infantil e da instituição, atribuindo-
Só há possibilidade de transformação, de fato, na atitu-
-lhes uma identidade genuína, modificando determinados
de dos docentes se houver, por parte do grupo, compreen-
padrões que precisam de alterações para se adequar a no-
são do que está sendo feito, do por que (motivo) e do para
vas exigências/necessidades.
que (objetivo) está sendo feito, num movimento coletivo de
Ao se repensar uma determinada situação, os profes-
atribuição de sentido à proposta realizada pela coordenação, sores se deparam com a problematização de suas práticas,
ou pelos professores de acordo com suas reais necessidades. articulando-as à discussão realizada, podendo conservá-
As reuniões pedagógicas nas quais sejam vivenciadas
-las ou modificá-las com consciência, autonomia de de-
trocas de experiências significativas podem se converter em cisão e envolvimento com o conflito: Como estabelecer
espaços (trans)formadores, como nas experiências que re- conexões entre o modo de agir/pensar de cada um e do
gistrei ao longo do livro. grupo como um todo?
Reuniões em que o diálogo possa ser estabelecido, em O desafio de organizar o pensamento para expor ao
que as vozes dos educadores tenham espaço; que promo- outro uma experiência vivenciada na sala de aula, isolada-
vam escuta por parte do grupo, compartilhando dúvidas, mente, caracteriza a socialização como um percurso for-
conflitos e conquistas; que incentivem o respeito à diversi- mador trabalhado nas reuniões pedagógicas: trocas de
dade dos sujeitos que participam e a elaboração coletiva de experiências, relatos e diálogos sobre o dia a dia dos gru-
diferentes soluções; que fortaleçam a cultura do grupo, os pos possibilitam a reflexão sobre a ação pedagógica ao mes-
sentimentos de pertencimento e a parceria entre seus mem- mo tempo em que se mostram como novas possibilidades
bros; que reforcem a identidade do grupo e oportunizem aos integrantes do grupo.
aprendizagens significativas para as crianças — objetivo fi-
nal de todo o processo educativo. • Como construir coletivamente novas respostas a pa-
drões predeterminados de ação?

Como provocar o pensar sobre o que se faz?
A troca de experdêncP s que transformo • Como transformar matrizes construídas ao longo da
trajetória do educador?
Segundo García, as mudanças implicam transforma- • Quais ações têm sentido para o professor?
ções nos modos de agir e pensar padronizados e na organi-
zação escolar como um todo. Portanto, requerem a presença Como vimos, de acordo com Piaget, o desenvolvimento
de todos os envolvidos no processo educacional para que se dá de acordo com as estruturas internas do sujeito, que
vão, gradativamente, se tornando mais complexas à medi-

38 Prática docente Saberes e fazeres pedagógicos 39


da que são desestabilizadas por outros
sujeitos e por ob-
jetos culturais. A falta de respostas aos desafios já configurado de uma determinada maneira, já lido
propostos e, portanto, ilegível E...]. (1999, p. 10-1)
pelo meio provoca a ação do sujeito em busca
de respostas
diferentes das que ele dispõe. As matrizes significadas e validadas pelo grupo de per-
O coordenador pedagógico deve trabalhar
com o for- tencimento autorizam o professor a favor de expressar seu
talecimento e a ampliação das formas de agir e pensar
dos modo de ver/estar na docência, qualificando-o no exer-
professores, a fim de que eles possam, da mesma
forma, cício da profissão, pois a pessoa e o profissional da edu-
gerenciar experiências de cidadania entre as
crianças de cação são inseparáveis, assim como para Nóvoa (1995) e
seus grupos, construir valores e instrumentos García (1999).
que auxiliem
a atuação na sociedade, com autoconfiança,
respeito ao ou-'
tro e à diversidade, com sentimento de
coletividade e per
tencimento a determinado grupo com o qual se
identifique. O que é necessárk para a rdarrio pedkgógka?
A escola ocupa posição central na
construção e no A competência docente habilita o educador para aspec-
exercício da cidadania, da vida em grupo, na
elaboração tos básicos do exercício da relação pedagógica destacados
de conhecimentos centrais que sejam
traduzidos em sa- por Lino de Macedo (2009):
beres e fazeres a serviço do desenvolvimento de
compe-
tências e habilidades, que favoreçam o
ser/estar/fazer do . Domínio das múltiplas linguagens, escrita e visual,
sujeito no mundo contemporâneo. que dê recursos ao educador para saber dizer/escrever o
Cabe ao professor/educador em formação que pensa, comunicando-se, tornando presente o pensa-
permanen-
te pensar sobre os desafios, os novos mento em seu discurso, desenvolvendo a capacidade de
conhecimentos e as
práticas diferenciadas na perspectiva do que "faz X argumentar seu ponto de vista e dialogar com o do outro.
sentido"
e pode se tornar um instrumento pessoal
para a tomada 2. Domínio na compreensão de fenômenos coletivos,
de decisões: a vivência significativa transformada
em expe- desenvolvendo a capacidade de trabalhar as infor-
riência, algo que deixou marcas, que se agregou à
memória mações recebidas, questionando-as e atribuindo-lhes
da matriz do sujeito, sem esquecimento.
sentido de acordo com os conhecimentos prévios e as
Segundo Larrosa:
atrizes pessoais.
L.•]a experiência entendida como uma expedição em
3. Domínio para enfrentar situações-problema e aprender
que se pode escutar o "inaudito" e em que se pode ler
o não lido, isto é, um convite para romper com os com elas, superando o conflito inicial e transformando-o
sis-
temas de educação que dão o mundo já interpretado em fonte de aprendizagem.

40 Prática docente
Saberes e fazeres pedagógicos 41
4. Domínio para elaborar propostas
diferenciadas, ava
liando-as e concretizando-as em novas ações.
INSTRUMENTOS
Diante deste cenário, complemento as ideias
METODOLÓGICOS
descritas
por Macedo com os quatro pilares da
Educação para o sé-
culo XXI, citados no Relatório Delors para a
Unesco (1999):
aprender a fazer, a conhecer, a ser e a conviver
destacando
a relação estabelecida pelas quatro
aprendizagens.
O texto do relatório enfatiza a
importância do con-
vívio, da vida em grupo e da construção de í...] A segunda coisa é achar o caminho...
objetivos em
comum entre grupos de pessoas, concluindo
ser preciso não desisto... É isso que dá o curiosismo...
"aprender a aprender" como uma das metas da Mas mesmo assim, esta vida não deixa de
educação
para o novo milênio. ser curiosa f...].
Para fechar a reflexão desenvolvida até Lewis Carroll
aqui, deixo
um quadro que sintetiza o
desenvolvimento profissio-
nal do professor/educador em relação aos
vários aspec-
tos abordados neste capítulo e que serão A partir da concepção de formação do professor, descri-
desenvolvidos ao
longo do livro: ta no capítulo anterior, surgem algumas questões:

DESENVOLVIMENTO
Qual metodologia contempla a proposta expressa nes-
DE CARREIRA
CONHECIMENTO E te livro?
COMPREENSÃO DE 51
(AUTOCONHECIMENTO)
DESENVOLVIMENTO • O que é metodologia?
PEDAGÓGICO
DESENVOLVIMENTO • Quais as suas possibilidades?
PROFISSIONAL DO • De que maneira elas seriam efetivadas?
PROFESSOR
DESENVOLVIMENTO
• O que é (trans)formar por meio de uma metodologia
DESENVOLVIMENTO
COGNITIVO
TEÓRICO de trabalho?
INVESTIGAÇÃO • Qual a relação entre metodologia e a postura de edu-
---família cador?
- currículo e inovação
ensino • E as conexões estabelecidas entre os saberes e fazeres
- professores
do educador?

42 Prática docente Instrumentos metodológicos 43


O significado da palavra
direção, coordena-
Grande dicionário etimológico
"metodologia", segundo a os envolvidos no processo educacional:
prosódico da Língua Portuguesa. comunidade.
de Silveira Bueno (1965), ção, professores, crianças, famílias e
remete à ideia de que cada ciência, é con-
tem o seu método próprio de E esse processo de construção do conhecimento
lidar com situações de ensino-. do
-aprendizagem, à arte de dirigir tínuo, nasce das interações processadas com os outros,
o espírito na investigação dal
diálogo estabelecido consigo mesmo e da exploração dos
verdade; contempla, também, o
processo utilizado para sej objetos oferecidos pelo meio cultural, que envolve angús-
atingir um determinado fim, um
modo ordenado de proce- tias, ansiedades, frustrações, desafios, reflexões, mas que
der, um conjunto de regras e
procedimentos técnicos e cien- oportuniza conquistas, realizações, satisfação, crescimento
tíficos utilizados para o ensino de
uma ciência ou arte. e aprendizagens com sentido. O educador busca a autono-
Enquanto o "método" tem uma
abrangência mais am- ia da própria ação como sujeito do processo de constru-
pla, um caráter mais
disciplinar e regulador dos proces- ção de conhecimento.
sos educacionais, a
"metodologia" tem como foco uma
maneira mais eficaz de atingir
determinado objetivo cul- 1 Experiências
tural ou científico. CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO,
DE SUJEITO E DE MUNDO significativas
A "arte de ensinar" é um dos
desafios assumidos pe-
los educadores, que têm a seu
favor alguns instrumentos
metodológicos auxiliares no EiAMENTO . OBSERVAÇÃO
desenvolvimento de seu pa-
pel de professor, que apoiam a
construção de uma prática
AVALIAÇÃO --<
pedagógica compromissada com REGISTRO
aprendizagens significa-
tivas pessoais e para o grupo
com o qual o professor/edu- REFLEXÃO

cador trabalha.
Esses instrumentos
metodológicos são: planejamento Planejamento: organização do cotidiano
observação, registro, reflexão e
avaliação.
O objetivo do uso desses Esse instrumento metodológico é o ponto de partida e
instrumentos é facilitar e or-
ganizar a ação pedagógica, de chegada de todo e qualquer trabalho referente à educa-
documentá-la, planejá-la, re-
fletir sobre ela, registrá-la para ção pois é responsabilidade do professor organizar como
poder avaliar e replanejar.
Assim, a história vai sendo ele pretende trabalhar com os objetivos e conceitos propos-
construída; a trajetória do pro-
cesso vai fluindo e tomando tos ao seu grupo.
corpo; a formação contínua de
educadores vai se processando por Desenvolvi uma pesquisa sobre formação de professo-
meio do fio da meada
que é tecido no cotidiano da es em serviço com um grupo de Educação Infantil durante
escola, em parceria com todos

44 Prático docente
Instrumentos metodológicos 45
quatro anos. A partir da leitura
dos registros das professo Fixar remete a pôr em prática descobertas e conhecimen-
ras com as quais trabalhei o grupo pos-
nesse período, vou subdividir
ene os construídos em diferentes situações, para que
Para que isso
três as fases de planejamento,
pois pude confirmar o que". sa fazer uso e dele se apropriar cada vez mais.
possa acontecer, é essencial a sistematização, a organização
já havia constatado como
grupo.
professora: nem sempre a aula; e o compartilhamento de informações socializadas no
transcorre do modo como foi planeada
, o que implica ou-M
tra forma de registro.
com base na ex-
2. Planejamento posterior (realizado):
Planejamento: s.m. (planejar + mento) 1 periência concretizada, registra-se o que, de fato, acon-
Var. pia-r;
está
neamento. 2 Ato de projetar um
trabalho, serviço; teceu. Por ser uma construção do grupo, o processo
ou mais complexo
empreendimento. 3 Determina- sujeito a imprevistos, situações emergentes a serem con-
ção dos objetivos ou metas de
um empreendimento,,, sideradas. É preciso fazer uma reconstrução reflexiva dos
como também da coordenação
de meios e recursos interesses-necessidades- faltas dos participantes, refletin-
para atingi-los; planificação de
serviços. 4 Depen-
dência de uma indústria ou do sobre o percurso desenvolvido, seus fazeres e saberes
repartição pública, comì9.
o encargo de planejar pedagógicos cotidianos. Ao registrar o que foi vivido pelo
serviços. (Dicionário Michaelis
on-line) grupo, revela-se o fio condutor da proposta e os ajustes
1. Planejamento antes da realizados ao longo do processo.
atividade (prévio): realizado
com base em experiências
anteriores e na leitura de re- 3. Replanejamento dos passos seguintes (ajuste da pro-
gistros sobre o trabalho
desenvolvido; tem como função posta): é a construção da continuidade do planejamen-
nortear o fazer cotidiano, de
acordo com as observações to prévio articulado ao que foi vivido na ação do grupo.
e as avaliações articuladas
aos objetivos propostos. É um Algo, vivo, um currículo conectado à realidade, com ca-
ponto de partida para o
trabalho a ser realizado e deve racterísticas individualizadas, que tem como referência
contemplar o tempo de evocação
(retomada) e de fixação os conteúdos do projeto pedagógico da escola. Ao re-
(sistematização e apropriação) para que planejar, o professor-autor, mediador da construção de
o conhecimento
seja referendado e memorizado, conhecimentos, deve estar atento para possibilitar que
adequando o currículo em
ação às propostas previamente seus aprendizes signifiquem informações e vivências,
estabelecidas.
ransformando-as em aprendizagens contextualizadas,
EVOCAÇÃO E FIXAÇÃO com sentido. Esse tipo de planejamento/registro não só
Evocar significa lembrar, buscar o fio pode transformar o ato de ensinar em investigação cria-
que está sendo feita em torno de condutor da pesquisa
um determinado objeto para tiva, mas também propiciar que o professor se trans-
dar continuidade, indo além das
informações iniciais. forme em autor da produção de conhecimentos sobre o

46 Prática docente
Instrumentos metodológicos 47
ensino a partir da pesquisa em relação à dia a dia
própria ação, o planejamento é construído no registro do
visando o contínuo aperfeiçoamento e à das a dia
adequação das,do grupo, adequado a necessidades e interesses et
atividades curriculares pedagógicas ao
construir um ;ças, mas'tem'opapel de manter a coesão a proposta inicial
"currículo em ação".

Há sempre aspectos dos âmbitos de


I
do educador para não cair em uma
distanciar dos objetivos propostos.
atitude "espontaneísta"

experiências doa e se
projeto pedagógico institucional a serem
"ensinados
-aprendidos", e é fundamental que o professor
tenha a
clareza do que pretende atingir em cada
proposta feita.,Observação
Mas há, também, os conteúdos dos
sujeitos que precisamI o objetivo deste instrumento metodológico é o de apu-
ser contemplados de acordo com a
faixa etária, ritmo do Irar o olhar e a escuta do professor, permitindo-lhe fazer a
grupo, características individuais de seus
membros, inte- leitura do que acontece em seu grupo — tanto de fatos ex-
resses, ansiedades, frustrações, medos,
articulando-se a plícitos quanto implícitos, muitas vezes nebulosos —, detec-
todo instante a relação eu-outro, as
singularidades dos tando necessidades, desejos, faltas e interesses dos sujeitos
integrantes do grupo com o que é coletivo e de
interes- envolvidos no processo de aprendizagem.
se comum.
É fuml
pelosquaisnda oenta a dosobservação dos momentossilênciodeconfli-
Independentemente da fase do planejamento é fun- grupo passa, momentos de , de
to
damental que ele seja flexível, pois o professor
deve ter desinteresse, de agitação e de ansiedade, pois eles fazem
abertura para considerar os interesses
momentâneos emer- parte do aprender. Sem situações-problema interessantes e
gentes no grupo e os acontecimentos
inusitados, que tam- instigantes, dúvidas, ansiedades e a consciência do não sa-
bém fazem parte do cotidiano,
contextualizando-os com o ber, enfim, sem a vivência do conflito cognitivo, as crianças
percurso do trabalho realizado.
não se sentirão suficiente}nente desafiadas para conhecer.
No planejamento, o tempo, o espaço, os
materiais a se
rem utilizados e as interações passíveis CONFLITO COGNITIVO
de acontecer são
quatro fatores determinantes. Por exemplo:
há limites do O'termo "conflito cognitivo", na visão de Piaget, refere-se às
espaço físico real, que está à disposição do divergências de hipóteses entre o sujeito e seu interlocutor,
professor, assim
como há limite do tempo necessário para a desafios que os objetos provocam e a situações -problema
pôr em prática o
que planejou. É preciso considerar os para as quais a criança se depara com a falta de respostas..
ritmos individuais de
aprendizagem e o tempo que o grupo leva para
construir e O professor precisa certificar-se do que realmente vê,
socializar o conhecimento.
contrapondo-se ao que ele acha que sabe sobre o grupo.

48 Prática docente
Instrumentos metodológicos 49
Para observar é fundamental conhecer as
características
egistro
faixa etária com a qual se trabalha, para poder
criar d
material de escrita, fru-
safios pertinentes e possibilitar que os alunos
superem O registro é definido como um
que já sabem. Para haver aprendizagem é preciso vividas pelo professor. Uma forma de
ir ale o das experiências
da zona real do sujeito, do que ele já conhece e do cotidiano, além de ser uma fonte
trabalha"estudo e organização
na sua zona de desenvolvimento proximal, pois a criançde memória. O ato de registrar possibilita um estudo refle-
pode assimilar todo o entorno do ambiente escolar relação ao seu grupo e à sua prática
ao qutxivo do professor em
está exposta. Segundo Vygotsky (1989), no processo distanciamento
de déri pedagógica, pois lhe
senvolvimento cultural, a criança assimila não somente sobre fatos, sujeitos, praticas culturais do contexto observa
conteúdo da experiência cultural, como também os ~ conhecimentos produzidos.
prol do e
que está au-
cedimentos da conduta cultural e do pensamento;
doma O registro permite comunicar ao elemento
na os meios culturais particulares criados pela (coordenação, outro professor do grupo, professores
humanidad sente
no processo de desenvolvimento histórico, por trabalho desenvolvido, além de constituir
exemplo, em formação) o
professor
idioma, os símbolos aritméticos etc. uma forma de documentação da trajetória do
Para que a observação não se perca, e o olhar não se grupo — que é único, singular —, transformando-o
dis com o seu
perse diante da multiplicidade de fatos para
observar é fu em uma fonte viva de história.
damental que se estabeleça um foco, ou seja, o
planejamen Ao escrever, o professor deixa marcas, que são muito
da prioridade de trabalho para direcionar o olhar e comprometedoras do que as palavras, que se perdem
a escuta mais
Isso só é possível se houver um planejamento de esvaziam O fato de escrever é fonte de dificuldade no
pon e se
tos de observação, elaborados previamente. Esse processo de aquisição do hábito de registrar, dada a comple-
planeja
mento parte do objetivo proposto: a partir dele é xidade da escrita formal, pelo fato de as palavras exigirem
feita
escolha do que será observado — interesse, posicionamentos e responsabilidades consequentes. Esse é
participação, en-
voIvimeno, t dinâmica utilizada, aprendizagem do grupo ti um dos, obstáculos a serem transpostos o que só acontece
outi
de alguns membros. com a familiaridade e a constância do ato de registrar.
Feita a observação das práticas culturais do O registro contém aspectos objetivos e subjetivos,
grupo, o
professor tem em mãos a matéria-prima para seu pois lida com a forma particular/individual de quem o re-
registro,
gue pode ser feito no ato da observação ou digiu — ele tem um caráter pessoal e único, que precisa ser
posteriormen
te. O registro simultâneo à observação garante a mantido. Não há uma receita, uma forma, pois cada sujei-
memórias
de comentários das crianças, curiosidades ou o tem assuas características, a sua história de vida e as
eventuais fa-
lhas, que são pistas essenciais à reflexão sobre o suas peculiaridades.
percurso.

50 Prática docente 51
Instrumentos metodológicos
O registro escrito pode ser ampliado e se
mandest
também, por meio de diferentes linguagens:
visual, auditiv
ato sobre o que foi visto,
estética, escrita, plástica, ente outras. Ao
registrar busca- A partir do registro feito no
o ser integral, total, pois os aspectos o educador deve refletir
cognitivos e afetivos s tuído, aprendido e observado,
inseparáveis; tudo o que se refira ao sujeito, educador e pedagógico cotidiano, ressignificando-o,
ed obre o seu fazer
aprendizagens.
cando, deve ser considerado dentro de um
contexto. eorizando-o e transformando-o em novas
reflexiva oportunizam a
O ato de registrar é um momento de pausa
para refl O distanciamento e a escrita
xão, tomada de consciência da realidade e de conhecimentos já existentes, à luz de novas
escolha dos c mpliação dos
minhos a serem seguidos. É a hora de fazer um os respaldem. O professor reflexivo
recorte n arcerias teóricas que
própria
prioridades do trabalho, tendo a clareza das perdas que
ca consciente do seu papel profissional constrói a
pedagógico, tor-
opção envolve. É o momento de assumir
posicionamento "teoria, que revela o seu "ser-saber -fazer"
comparti-
construindo os próprios caminhos, individualizando q
o ando-se autor do seu processo de crescimento
foi construído e aprendido com o grupo ao
qual pertença. ~lhado no grupo ç associativa entre
evidenciando a relação
O registo, segundo Madalena Freire (1995), consciente, fundamental à formação do
passa po teoria e prática
dois momentos diferenciados: num
movimento inicial, el professor reflexivo.
é feito no ato, tendo como apoio os
pontos de observação',
princípio propostos, quando se registram
palavras-chave qu
remetam ao conteúdo central, frases marcantes,
sensaçõe Avaliação
rotina, tarefas, material suficiente para
reconstrução do pro A avaliação como instrumento metodológico é consi-
cesso vivido e posterior análise; numa etapa
seguinte, na qu derada com um novo olhar, diferenciado do enfoque tra-
o sujeito se encontra distanciado do
contexto, o registro deidicional de caráter seletivo, autoritário e excludente de
ser refeito sob um novo olhar, articulando
a situação vivida: julgamento. Ela passa a ser vista sob a ótica da formação,
com as experiências anteriores do sujeito,
transformando-s!como um diagnóstico do que se passou até o momento no
em material de reflexão, de ampliação das
matrizes pedagógi processo'de ensino-aprendizagem, com a intenção de "che-
cas e transformação da prática pedagógica do
educador. car" o que o grupo construiu como aprendizagem, indi-
O ato de registrar é um exercício diário sobre
o cotidian vidual e coletivamente. Ela é decorrente dos registros do
da sala de aula, que envolve treino e
disciplina, além de fazer professor, das observações, da reflexão posterior, do plane-
o sujeito educador operar diversas
habilidades mentais, tais jamento proposto e das experiências vivenciadas.
como: observar sintetizar, priorizar, agrupar,
selecionar, ana- A avaliação é fonte de replanejamento, pois prioriza
lisar, optar ao se apropriar das experiências
vividas. e estabelece os passos seguintes do trabalho, verifica se os

52 Prática docente Instrumentos metodológicos 53


objetivos iniciais foram atingidos e qual
aprendizagem
ou poderia ter sido, construída pelo grupo.
Como função final, a avaliação tem um papel de
autoa
liação do educador, pois ele se analisa em relação ao
trab
desenvolvido, buscando as mudanças é os ajustes
necessãri
Os instrumentos metodológicos têm a função de
a
liar e organizar o trabalho do professor na
construção df,
sua competência e na apropriação de uma
prática pedagi.
gica comprometida com a sua aprendizagem
permanente - produção
a de seus alunos, com qualidade e Se concebermos os projetos como uma
responsabilidade. professor;
investigadora, mediadora e contextualizada do
Concluindo, a familiaridade com o uso dos instrumei privilegiado em
e os considerarmos como um momento
tos metodológicos possibilita ao educador significado de
crescimento pra; seu processo de formação contínua, o
fissional, prazer da conquista, superação dos isto faz
obstáculo: um registro em um projeto é ampliado E...1 e
em
iniciais e manutenção do desejo de ser um educador
cont diferença, porque implica na construção de significados
alimento
petente, ou seja, um sujeito que busca o "ser-saber nossa prática pedagógica que funcionam corno
-fazer;' particular é
com qualidade, autonomia e comprometimento para novos projetos E...1 cada situação
com a rei.
lidade a que pertence! julgada no sentido de tornar relevante o que é para ser
vida de um
visto, conhecido e comentado E...3 não éfácil a
projeto, mas tem algo especial...

Mirian Celeste Martins

• O que me move?
• O que move a formação do outro?
• O que é projeto?
• O trabalho configura-se como uma metodologia? Ou
é uma postura do educador compromissado com a
aprendizagem pessoal e do outro?
• Quais teóricos referendam esta abordagem?
• Quais as etapas de trabalho?

54 Prática docente o trabalho com projetos 55


Essas são algumas das questões centrais sobre
as quifr, O tema de cada projeto traduz o seu eixo central, como
refletiremos ao longo a ser
g deste capítulo.
P %.
fim "útero" gestacional, que norteia toda a pesquisa
Os projetos — atitude, postura
interdisciplinar de eng4ealizada pelo grupo ao redor de um objeto ou questão que
no-aprendizagem, concepção de educação
pautada no d 9 espertou o interesse das crianças ou um conflito a ser su-
senvolvimento do ser humano — desvelam uma partida e de che-
abertin erado; é, ao mesmo tempo, ponto de
do educador para redefinir um currículo de
integração e>¿ada, que conduz o grupo para um determinado fim. O
tre áreas do conhecimento e âmbitos de
experiências d aspecto da chegada é importante, pois, tomando-se a vi-
crianças. São conhecimentos que se
complementam; prdjjão como exemplo, temos que, sem foco, o olhar humano
cedimentos específicos para a organização do
trabalho, eido vê, e em nada se fixa; portanto, o tema do projeto é fio
fatizando a cada etapa do percurso o papel do elemen-
grupo Jeondutor da narrativa e do trabalho realizado, um
construção do conhecimento de cada um de seus membroto aglutinador que orienta o olhar do educador para o foco
e a visão de escola como um espaço de
trocas e de Portal em questão, como um mapa de possibilidades para a cons-
cimento de uma atitude investigativa, crítica e significativas.
cooperaJtn ção de aprendizagens
va do cidadão no mundo, que interpreta a O trabalho com projetos é uma atitude, uma postura,
realidade pare
atuar e provocar mudanças necessárias, com pro-
convívio res<-uma concepção que vai além de uma metodologia;
peitoso na diversidade e na solidariedade. move a reflexão do educador sobre o seu "ser-saber-fazer"
Os projetos têm um caráter de agregação, 11
de trance '"pedagógico, contribui para desabrochar um sujeito sensí-
dência das várias áreas do conhecimento e suas disciplinasiivel, capaz de ver o(s) outro(s) em si, seus parceiros "mo-
de busca de confluências e estabelecimento
de conexões bilizadores" da ação: alguém que reflete sobre a própria
associações que produzam sentido para os permanen-
sujeitos-aprendIPrática e pesquisa o seu sentido em uma busca
zes envolvidos no processo. Portanto, uma
atitude interdisl te de autoconhecimento.
ciplinar no sentido abordado por Ivani Fazenda Ao grupo, promove á mediação entre o conhecimento
(2008),
postura interdisciplinar abrange um significado
interacìonai" formal acumulado pela cultura ao longo da história da hu-
e um caráter de interdependência entre as
disciplinas e área: manidade e organizado disciplinarmente, e o não formal,
do conhecimento, refere-se às questões da
estética do ato dal que abarca a curiosidade da criança, traduzida em suas per-
apreender, ao espaço do apreender, ao design do
projetar aá guntas espontâneas, que são fontes genuínas de aprendi-
tempo de apreender e à importância simbólica
do apreendery zagem criativa e significativa por terem a possibilidade de
Mas, qual seria esse ponto de interseção, o
elemento "fazer sentido" a seu autor
de ligação entre os conceitos a serem Fernando Hernández (1998), um estudioso do traba-
explorados em cadJ
projeto? lho com projetos, os considera um processo de inovação,

56 Prática docente O trabalho com projetos 57


uma renovação da sala de aula e o fio condutor para a postura do educador que vai
enode ser definido como uma
dança do currículo, que contempla interesses,
necessid de de uma metodologia. É um "vir a ser", um processo
des e faltas do grupo, integrando conteúdos do sujeito e comum, a serem atingidos
cue tem por base objetivos em
matéria — áreas do conhecimento envolvidas na inves éinidual e coletivamente, procedimentos e ações a serem
4ue
ção do conteúdo temático central do projeto. Além disso, pautado em relações
realizadas e, principalmente, que está
projetos proporcionam um trabalho contextualizado no
Interativas com os membros do grupo.
nário cultural, como se fosse uma história a ser construí: do trabalho com
Como síntese, os pontos fundamentais
no grupo, uma narrativa coletiva. ricamente àsnumafun-
pprojetos podem ser relacionados línguatafo
me
O desenvolvimento curricular se concebe, não portuguesa,
lineat os- es dos sinais de pontuação da
mente e por disciplinas, mas pelas interações em
espirEriação de sentidos:
que oportunizam um currículo interdisciplinar em ação'.
refere-se à capacidade de
um espaço de escuta, com sensibilidade e flexibilidade par.4 ? o ponto de interrogação
ajustes necessários. A escola que adota essa postura m 2 questionar;
exclamação relaciona-se à capacidade de es-
todológica de trabalho valoriza a autonomia pessoal era., I o ponto de
quanto capacidade do sujeito de se autogovernar, conceit: pantar-se diante do mundo e de buscar a informação;
continuidade;
baseado nas ideias de Piaget e Kamü, no senso crítico der a vírgula refere-se à capacidade de dar
entre os
tacado por Paulo Freire (1996), entendido como criticidadf o ponto e vírgula busca um encadeamento
e ação no mundo e no sentido de democracia, visto comi<. fatos, ideias e hipóteses, reconstruindo a dimensão
participação de todos em torno de objetivos comuns, d&=' do todo;
marcados pelo critério de atualização cultural. : dois-pontos referem-se à capacidade de afirmar hipó-
"A aprendizagem se baseia em sua significatividad teses e conclusões;
que, junto à globalização, são dois aspectos essenciai . o ponto-final, à capacidade para concluir, mesmo que
momentaneamente;
dos projetos" (HERNÁNDEZ, 1998, p. 63). Essa
caractéz
reticências rementem à possibilidade de ir além, su-
rização dos projetos como metodologia, vista como uno- ... as
"saber-fazer" determinado por passos predefinidos, quê: perando a proposta inicial.
pouco altera a concepção de currículo e o potencial dl; O quadro reproduzido a seguir sintetiza os elementos
aprendizagem do grupo, foi superada e ampliada pela vi M centrais dos projetos integrados, traduzindo na forma de
são de atitude/postura proposta por Malaguzzi, confor mapa conceitua) a visão de "currículo em ação", que carac-
me veremos mais adiante. teriza o trabalho com projetos.
O trabalho com projetos, tal como atitude do professor;

58 Prática docente 0 trabalho com projetos 59


provocava certo "engessamento" na
PROFESSOR ALUNO 1 SOCIEDADE s grupos da instituição,
desenvolvia-se um "currículo
roposta de trabalho. Assim,
cada um dos grupos, cujo fio con-
"VIR A SER" + CONHECIMEN culto", real, de acordo com
PLANEJAMENTO PRÉVIOS narrativas que organizavam fazeres e
utor era uma história:
SITUAÇÕES- %aberes dos professores e mobilizavam a atenção
das crianças.
ETAPAS
PROBLEMA
registro do que acontecia no
PROJETOS EM AÇÃO
'-- Paralelamente, eu fazia o
conjunto de atividades - me distanciar dos conteúdos
:ilteu grupo, tanto para não
INOEPENOÉNC
articuladas entre si
inicialmente previstos no plane-
lime tl seriam explorados —
para ter elementos a fim
ta
_ INTERESSE
CURRÍCULO EM DO GRUPO amento institucional —, quanto
REFLEXÃO E REGISTRO Aos poucos, percebi
postura metodológica
AÇÃO: PROJETOS
le construir os relatórios das crianças.
INTEGRADOS z ganhava forma e, a convite da
SOCIEDADE que uma nova metodologia
to em uso.
;Ëcoordenação, modifiquei o planejamen
CONTÍNUA REVISÃO DO realidade poderia
PROJETO PEDAGÓGICO CONHECIMENT Novo desconforto... Como a minha
de forma bem-suce-
ser "imposta" às demais professoras
E CULTURA

poderia ser estendido


dida? Como o pulsar do meu grupo
APRENDER A APRENDER A ENSINAR to cotidiano seria di-
;aos outros? Novamente, o planejamen
concretizando a
ferente do que estava traçado no papel,
separação teoria e prática.
o, com a certe-
Como cheguei ao trabalho com projetos . Em 1996, quando fui para a coordenaçã
uma revisão e de
za de que o planejamento vigente exigia
O trabalho com projetos surgiu, no meu percurso pr®-que esta só seria eficaz se fosse feita coletivamente por to-
fissional, do desconforto que vivi como professora de EM( dos os envolvidos, comecei a propor a leitura coletiva de
cação Infantil no período 1974-1995. Os planejamen4 todos os objetivos até então prescritos, para que pudessem
institucionais prescritos pela coordenação da época nã[', ser validados, ajustados ou retirados do planejamento.
4
contemplavam interesses, necessidades e faltas emergente A base do trabalho realizado semanalmente com os pro-
do grupo: estabelecidos a priori, desconsideravam todo 1 fessores foi a releitura dos planejamentos vigentes, a dos Re-
potencial de aprendizagem da criança quando ela se identi ferenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil,
ficava com a proposta pedagógica. recém-elaborados em uma versão preliminar, que foi pos-
Além disso, um planejamento distribuído em quinze ta a consulta pública pelo Ministério da Educação (MEC),
nas, previamente estabelecidos da mesma forma para todos publicados em 1998, e de vários textos, por mim seleciona-

60 Prática docente O trabalho com projetos 61


dos, para a ampliação do olhar sobre determinadas autoria
grupos, e que possibilitasse a
questõni as de cada um dos
como o trabalho com arte, a construção da rotina e o uso vivi como aluna do Espaço
o sujeito (realidade que
instrumentos metodológicos no dia a dia do educador. Maternal), o grupo da Edu-
ógico e como professora do
Após um ano de acaloradas e enriquecedoras discú "engatinhar" na apropriação do
acção Infantil começou a
sões de grupo, um novo ponto de partida para
planejaabalho com projetos.
cotidiano da sala de aula foi elaborado: o caderno de obje
vos das diferentes áreas de conhecimento, contendo algü
textos de base, que serviam como orientação para o prol j
trabalho com projetos:
r
e sua origem a Malaguzzi
sor. Confirmou-se a certeza de que o professor só atua,
fato, quando se sente representado na produção a ser efe
vada, quando reconhece a sua voz entre as demais, quanã
atribui sentido ao planejamento a ser realizado. Mas ain primeiras Mei l tl nd «
existiam perguntas: De que forma os objetivos e os contei pedagogia de roretos
dos estabelecidos pelo grupo se transformariam em u
metodológica remete às matri-
proposta metodológica? A origem da proposta
Sócrates (469 399 a.C.) registrada por
No fim de 1996 e início de 1997, eu atuava cotpzes da maiêutica de
a.C.), por co 69-3 á-la a base da relação
coordenadora do grupo de Maternal, com crianças de mgPlatão (427-347
"a arte de dar à luz", no sentido de
a quatro anos. Propus a discussão do trabalho com proj:',pedagógica interativa:
elaboradas para fazer o sujeito pensar
tos a partir do que vivia como aluna de Madalena Fre'á",que perguntas são
questões que, aos poucos, multiplicam-se
e Mirian Celeste Martins, coorientadoras da pesquisa q em suas próprias
vez mais complexas, produzindo novos
realizei no Espaço Pedagógico a respeito dos registros d.ix e tornam-se cada
conhecimentos. Platão defendia a ideia socrática um dos
educadoras com as quais eu trabalhava (1998). Projetrf:
que regem a metodologia de projetos —
de intervenção e de pesquisa mesclavam-se e caminhava. princípios básicos
não é possível ou desejável transmitir conhecimen-
simultaneamente, gerando frutos e atendendo às necessig de que
t- to aos alunos, mas deve-se levá-los a procurar respostas
dades de cada uma das 15 integrantes
g do grupo ao qual e
pertencia (turma número 5, 1996-1998). que satisfaçam suas inquietações. Para Platão, as crianças
ficar à vontade para se desenvolver livremente,
E por que não nos apropriarmos dessa metodologia (n teriam de
acordo com seus interesses, em busca de suas verdades.
época era apenas uma metodologia) na Educação Infantil de
Professor e aluno deveriam pensar sobre o próprio pensar,
Nessa busca contínua por uma metodologia de qual?"
o que também se configura como princípio do trabalho com
dade, que atendesse aos interesses, necessidades e carênsj

62 Prática docente O trabalho com projetos 63


projetos: "aprender a aprender", em especial, a form deveriam aprender brincando.
ma educacional vigente, con-
boas perguntas: a sociedade para uma nova
al afirmação despertou
à palmatória dominante nas
L••] e o Mestre? E...] Ele só pode operar como epção de criança, contrária
braço auxiliar da razão, que, uma vez ativada, thmituações de ensino da época.
projetos... "age idiotamente
em si o princípio que a faz produzir, isto é, coni Como na metodologia dos
cer. Interferir nesse processo, colocando na al aos alunos não quanto eles po-
quele que pretende ensinar
do outro um saber que não nasceu alie uma o" ele próprio deseja" (Comenius).
converse m aprender, mas quanto
ção pelo fracasso. Ele não promove a à educação em mui-
A maior contribuição de Comenius
ele não opera o "milagre" que leva a agir. Ou, s projetos: a
às premissas do trabalho com
fizer, a conduta assim provocada terá a qualidao se assemelha
social para a sala de aula, fazen
das imitações, e bastará uma circunstância ne&B_, ideia de trazer a realidade
ç da construção de no-
tiva para desviá-la de seu verdadeiro fim [...] selo uso de meios tecnológicos a favor
beres transplantados têm a leveza das plantas q dos conhecimentos.
não têm raízes — apenas o encadeamento prom
vido dialeticamente pela razão pode aprofundá-1
e, consolidando-os, torná-los fixos [...]. (BARROS
d propostos
2000, p. 143)
ógicas na modernidade
Outra contribuição significativa à construção do co inspirador do movi-
Friedrich Frõebel (1782-1852),
ceito da metodologia por projetos foi de Jan Comem primeiro Kindergar-
ento a favor do Jardim de Infância — o
(1592-1670), considerado "o pai da didática moderna". 1840, em Blankenburg,
ten foi fundado em 28 de junho de
sua obra Didática magna, ele sistematiza ações educativ mostrar como as coisas
na Alemanha —, preocupava-se em
teorias didáticas e práticas cotidianas da sala de aula. o sistema euro-
estão inter-relacionadas, em contraste com
Como no trabalho com projetos, Comenius preconiz forma, indicava um
peu vigente na época que, de nenhuma
va as relações entre professor e aluno, considerava os int da mesma ma-
todo unificado, dissociando a escola da vida,
resses das crianças, a organização do tempo e do currícul
neira que na época de Comenius.
real, levando em conta os limites do corpo e a necessidadR fomentar na
Para Frõebel a prática pedagógica deve
de mudança de atividade, tanto por parte dos alunos qua criação, me-
criança o desejo de atividade, movimento e
to do professor. educa-
diante jogos e brincadeiras, criando uma proposta
Para o filósofo tcheco, todas as crianças, inclusive a mundo
cional que, rapidamente, se espalhou por todo o
com necessidades especiais e as meninas, excluídas do sisa
e persiste até hoje, inclusive na metodologia dos projetos.

O trabalho com projetos 65


64 Prática docente
Além dessas, outras ideias frõebelianas podem ser metodologia
imento, agregou contribuições essenciais à
sociadas ao trabalho com projetos: a parceria escola-farp problematização
los projetos, em especial os conceitos de
lia; o valor da experiência e da brincadeira na construd~`" questionamento da rea-
uma determinada situação, de
do conhecimento; a valorização do trabalho coletivo;
idade, de articulação entre a teoria e a prática.
especial, a importância atribuída à formulação apropriar configura-se a
Em tomo de suas ideias pedagógicas
de problemas reais antes que a sua solução pudesse ser( • projetos como uma me-
imeira versão do trabalho com
cançada; e a observação da criança, a fim de desvelar s
odologia pedagógica. Dewey definiu o projeto como um
reais interesses.
rabalho construtivo, realizado por meio de uma atividade
Frõebel, contrariando a visão dominante na época,
i koerentemente ordenada, na qual cada passo prepara para
a criança como uma "pessoa" com direitos próprios,
necessidade seguinte, acrescentando algo ao anterior e o
igualdade de valor ao adulto, portanto, alguém que co
panscendendo de modo acumulativo.
ticipasse do trabalho realizado:
Para Dewey, o pensamento tem a sua origem na reso-
Os jardins de infância eram instituições onde titução de uma situação-problema, solucionada por meio de
crianças eram instigadas às atividades de expio a ma série de atos voluntários. Os quatro princípios elenca-
ção, observação e verificação; encorajadas a f ~, os por Dewey referentes à aprendizagem são essenciais:
mular perguntas ao invés de prover respost
auxiliadas a estabelecer regras ao invés de obe • o interesse do aluno;
terem a ordens de outros; onde a brincadeira • o tempo necessário ao aprender;
considerada o mais alto grau de desenvolvime • o objetivo da proposta;
humano na fase infantil e o pensamento criativ • e a sua relação com a atividade planejada.
independente mais importante que a conformada
(HADDAD, 1999, p. 182-93) Desta forma, Dewey introduz a ideia de rede, de en
adeamento sistêmico de' ideias e atividades, essência do
tx_trabalho com projetos na visão relatada neste livro.
As ideias de Dewey foram divulgadas pelo professor
01
tra~all~a c®m prsz8e1'os e novos
3m°irrt~íra

norte-americano William Kilpatrick (1871-1965) que, por vol-


contribuições para o í%Eetodol®gie
I ta de 1918, criou o "método de projetos", com o objetivo
O filósofo norte-americano John Dewey (1859-1952 de aproximar as atividades escolares da vida cotidiana dos
caracterizado na história da educação como o pensador qt alunos, a partir da noção de atividade, princípio regente da
enfatizou a importância da prática na construção do conhO. Nova.

66 Prática docente O trabalho com projetos 67


ESCOLA NOVA
construção de conhecimento: "é fazendo que se aprende",
A Escota Nova constituiu um movimento mundial, que che numa abordagem similar ao construtivismo piagetiano, que
gou ao Brasil na década de 1930, quando ganhou força a parãfi;
será citado mais à frente neste capítulo.
tir do documento publicado porAnísioleixeira, Lourenço Filhof'
Fernando de Azevedo e Cecília Meireles: o Manifesto dos Pi4. Freinet também pode ser associado à metodologia dos
neiros da Educação Nova (1932). A intenção era destacar aq`; projetos pela iniciativa das reuniões cooperativas com o
educação não como uma preparação para a vida, mas como objetivo de organizar a vida em grupo: planejar, informar,
própria vida, um eixo norteador de experiências e aprendiza
gens, com igualdade de oportunidades a todos.. decidir, avaliar, ajudar a resolver conflitos, "re-planejar"...
etapas essenciais às duas propostas. Destaca, também, a
O método de Kilpatrick opõe-se à visão de uma esco) importância do grupo para a aprendizagem, desenvolven-
la compartimentada, com o conhecimento descontextual do valores, tais como: respeito, tolerância, solidariedade
zado e explorado a partir de matérias isoladas. O métod e alegria, que são determinantes nos projetos, caracteri-
de projetos era baseado na criação de uma situação-proble zando as duas metodologias como organizações coopera-
ma, que possibilitasse um processo de aprendizagem vinctí tivas e coletivas.
lado ao mundo fora da escola e que integrasse as matéri Outras contribuições características da pedagogia de
do currículo escolar. Freinet ao trabalho com projetos são: as rodas de conver-
As ideias de Dewey e Kilpatrick somam-se as de Cá sa como espaços de expressão e escuta do pensamento do
grupo; as aulas-passeio com o objetivo de trazer motivação,
lestin Freinet (1896-1966) e Ovide Decroly (1871-1932
ação e vida para a escola; e os álbuns da vida, que podem
O pensamento de Freinet pode ser associado ao trabalh
ser considerados documentação do processo realizado e os
com projetos pelo seu empenho como educador em elab
primeiros registros em portfólios.
rar princípios e meios para fazer da educação não um mo
A pedagogia de Freinet preocupou-se com a construção 11,
delo de escola, mas uma obra de vida que contemplasse
de uma escola ativa e dinâmica, simultaneamente contex-
criatividade, a descoberta, o interesse e o prazer infantil.
tualizada do ponto de vista social e cultural, aproximando-se
Para Freinet, como na metodologia dos projetos, o
da definição de projetos tal como este livro pretende fazê-lo.
pontos de partida e de chegada são as crianças, as pessoa?
Do pensamento de Decroly associo aos projetos de tra-
envolvidas na aprendizagem, cuja realização de desejos
balho a sua premissa central de que as crianças devem vi-
interesses é o motor do processo. Ele utiliza o método na
ver seus primeiros anos com toda a intensidade, bem como
tural, que tem como base o "tatear" experimental para
resolver dificuldades compatíveis com o seu momento; ca-
criança avançar em sua aprendizagem, pois ela investig
beria ao educador explorar ao máximo a riqueza de possi-
com autonomia, suas hipóteses iniciais como caminho d
bilidades derivadas da curiosidade infantil.

68 Prática docente O trabalho com projetos 69


entre o indivíduo e o ambiente
Para Decroly, a sala de aula está em toda
parte e, do"- tiza o processo de interação
conhecimento. Esse movimento
mundo que circunda a criança, podem
emergir centros dek como fonte de construção de
que depende do conhecimento e
interesse do grupo, como ele denominou
os temas cotidia'=
1,4. é uma adaptação ao meio,
o mundo que o cerca: aprender
nos que se transformam em objet os de inves tigaç ão, tais 45 da forma de o sujeito captar
es em interação com objetos
quais nos projetos. é construir saberes e habilidad
os quais se convive cotidia-
Seu método foi nomeado "centro de inter
esse", pois co~ culturais e outros sujeitos com
sentavam-se associa*' namente.
nhecimentos e interesses infantis apre Piaget era a elaboração
o meio em que el O foco central das ideias de
dos e surgiam do contato da criança com que pudesse explicar como
e expressão carac de uma teoria de conhecimento
se encontrava. Observação, associação uma realidade externa ao
de Decroly, q o organismo conhece o mundo,
terizavam-se como etapas da metodologia presença dessa realidade
s, aproximando- sujeito do conhecimento; e é a
também eram registradas e documentada e ajusta o desenvolvi-
projetos nas última que desafia, regula, gera conflitos
e confundindo-a com o trabalho com o. Segundo Rappaport
mento do conhecimento adaptativ
décadas do século XX. to para Piaget não con-
(1981), a função do desenvolvimen
realidade exter-
siste em produzir cópias internalizadas da
que permitam ao
nto na, mas em produzir estruturas lógicas
Pi€mnet e e construção do conhecime vez mais fle-
indivíduo atuar sobre o mundo de forma cada
Piaget, e
Premissas conceituais fundamentais de Jean xível e complexa.
nvolvimento d Os projetos de trabalho também têm como objetivo
dar
suas diversificadas pesquisas sobre o dese
do trabalh a qual per-
criança, transformaram-se em eixos centrais instrumentos para o sujeito agir na sociedade
ia e interação ene, atuando de forma consciente, crítica e significat
iva,
com projetos: construção, processo, autonom
do sujeit ibi-
Piaget destacou a importância da autonomia de acordo com estruturas pessoais ressignificadas, poss
adulto fizer p litando a autoria de seus percursos formativos.
-aprendiz ao afirmar que toda vez que o
de fazer sozi A criança, na visão piagetiana, é concebida como um
uma criança aquilo que ela tenha condições
o pesquisador ser dinâmico, que a todo momento interage com a reali-
nha, estará privando-a de aprender. Para
o exercitar -s dade, operando ativamente com objetos e pessoas, o que
espírito infantil é essencialmente dinâmico e
a inteligênc propicia a construção de conhecimentos por ela ressignifi-
livremente é essencial à aprendizagem, pois
nasce da ação. cados; diferentemente de uma apropriação por transmissão
teoria ps de outrem, é algo construído de acordo com suas estrutu-
A metodologia dos projetos, assim como a
to aprende, enfa as internas, algo que faz sentido para o sujeito-aprendiz.
cogenética piagetiana sobre como o sujei

O trabalho com projetos 71


70 Prática docente
Eu,, o outrcy e o ç f ¢i e t: o i,pro tn t1 ieflvo praaessor-pnsqulso or no
erteto &lo iO de pro eto
Da obra de Henri Wallon (1879-1962) é possível des-
tacar uma contribuição fundamental à visão de projeto: á' Stenhouse (1926-
A contribuição da obra de Lawrence
também merece
importância do papel do outro na constituição do eu, enfatj-1982) para a metodologia dos projetos
zando a importância do grupo na construção da aprendiza' destaque, pois cabe a ele a visão de professor-pesquisador,
gem: "Somos geneticamente sociais" (1989), como afirmava=; alguém que investiga o próprio fazer como justificava em
os pro-
o médico, psicólogo e filósofo francês. suas afirmações. Para ele, a técnica e os conheciment
Além dessa ideia central em seu pensamento, WaI fissionais podem ser objeto de dúvida, isto é, de saber e,
lon destacou a importância da formação integral da criai consequentemente, de pesquisa, atitude essencial ao edu-
ça, apontando a complementaridade entre corpo, mente cador compromissado com a metodologia de projetos.
emoções, que têm papel preponderante no desenvolvimen, Todo professor deve assumir seu lado "experimenta-
to da pessoa, pois é por meio delas que a criança exterioriza dor", tal e qual a criança que busca avidamente desvelar as
seus desejos e vontades, posicionando-se diante do munds características de um objeto que desconhece, transforman-
O trabalho com projetos abre um espaço genuíno parï `. do a sala de aula em um laboratório permanente ou em um
uma cultura mais humanista, que considera as pessoas com; ateliê de arte, como afirmava Stenhouse.
um todo e valoriza as manifestações corporais entre as múi Para o educador inglês, todos deveriam ser capazes
tiplas linguagens, considerando-as como canais de expressa de criar o próprio currículo, em conformidade com a rea-
e comunicação da afetividade e do pensamento da criança. lidade e as necessidades de seu grupo de trabalho. Por-
Segundo Dantas (1990), Wallon considerava que "o in. tanto, o educador seria autor de sua história, como na
víduo é social não como resultado de circunstâncias extern. s' metodologia dos projetos, alguém que assume uma postu-
mas em virtude de uma necessidade interna", o que justific. ra reflexiva, analisa a própria prática, busca adequações e
o trabalho coletivo proposto pela metodologia dos projetos. qualifica-se profissionalmente.
No momento em que a pergunta de um membro dü Todo educador deve assumir a postura de aprendiz, o que
grupo, professor ou aluno, mobilizar interesses indi identifica a atualidade do pensamento de Stenhouse, em es-
duais, constela-se a possibilidade de uma investigação c6 pecial no que se refere aos conceitos de autonomia, pesquisa
letiva. O conceito de contágio proposto no pensamento e descoberta como fontes de qualificação da prática docente.
walloniano mostra o poder de determinadas manifesta Merece ênfase, também, o olhar para o grupo em foco,
ções individuais no grupo, pois a sua repercussão podo a noção de coletivo no trabalho realizado, o que introduz
propiciar a construção do tema de um projeto. o conceito de pesquisa-ação — metodologia utilizada em

72 Prática docente -e: 0 trabalho com projetos 73


meus estudos e práticas que resultaram neste livro —, so, O QUE É ABORDAGEM?
referência pela
bre formação de professores. De acordo com Stenhouse,'' Malaguzzi considera uma abordagem, uma
contrapo ndo-se à metodolo-
"os professores que se destacam transformam o ensino nat, abertura que o termo oferece,
no decorrer do proces-
gia, que prevê etapas-fases -estágios
aventura da educação. Outros podem adestrar-nos!". so de aprendizagem. Abordag em se refere a possibili dades,
podem ser experime ntadas,
versões, teorias provisórias, que
ão do conheci-
significadas por adultos e crianças na construç
ressigni ficação. .
mento e que estão sujeitas à
As erav,?mrãb e lwlcïi~guzz~
"ferramenta" para o
A obra pedagógica de Loris Malaguzzi complementa a A arte, para Malaguzzi, é uma
mente e mãos
ideias dos teóricos aqui citados e fundamenta essa visão d" pensamento, uma linguagem que entrelaça
meio de uma apren-
Projeto. O pedagogo italiano atribuiu às cem linguagens dar. com alegria criativa e libertadora, por
capítulo "Redes
criança o caminho para a construção do conhecimento. dizagem real, tal e qual será discutida no
papel das re-
Afirma que o trabalho desenvolvido com as crianças formativas: a cultura do grupo", referente ao
intitulado Pedagogia da Escuta, é uma abordagem, n des do conhecimento na formação dos professores.
o
uma metodologia, caracterizada pelo desenvolvimento d Arte e estética são fatores essenciais à maneira como
que per-
projetos focados na arte, na estética e na ética das relaçõe sujeito-aprendiz compreende e concebe o mundo a
de ex-
humanas, além de uma vasta documentação que registra tence, não só,a criança, mas também o adulto, canais
percurso realizado. pressão e comunicação.
Como humanista e simpatizante das ideias de Wallo Para Malaguzzi, as relações pedagógicas devem estar
e Piaget, Malaguzzi valoriza as relações interpessoais pautadas nas interações estabelecidas entre sujeitos, cul-
construção da identidade do sujeito-aprendiz, e as lingua tura, objetos e espaços que configuram o processo edu-
gens expressivas como uma possibilidade de integraçã cativo: crianças, professores, funcionários da instituição,
mente-corpo-emoções na exploração e na aprendizagem d pais, comunidade, conceitos e valores explorados de acor-
objeto a ser conhecido. do com o interesse que move o grupo. Essas interações,
Para ele, a documentação que os projetos requerem baseadas em trocas afetivas e no fortalecimento de víncu-
uma estratégia que garante a visibilidade da aprendizage los, são construídas em uma relação de confiança mútua e
e a sua socialização, não só para os envolvidos no proces na crença de que a ação coletiva é um desafio a ser supe-
so, mas também como material de formação para os de- rado na contemporaneidade.
mais interessados e de divulgação das práticas vivenciad
pelo grupo.

O trabalho com projetos 75


74 Prática docente
; PEDAGOGIA DA INFÂNCIA
considera a criança
Em uma viagem feita a Reggio Emilia em 2008 — nor4 Remete à abordagem de Malaguzzi, que
cem linguagens — para des-
:: com infinitas possibilidades — as com adul-
da Itália, região da Emilia Romagna — para um curso no Ceny entrar em contato
cobrir e se apropriar do mundo ao
do experiências. Difere de
tro Internacional Loris Malaguzzi e visitas às escolas da ref. e. tos e outras crianças, compartilhan Dessa for-
para as crianças.
gião, pude comprovar na prática a realização dos princípios uma pedagogia feita por adultos for-
de um dos objetivos da
- ma, contribui para a consecução
da abordagem italiana para Educação Infantil e a abrangên;_ da cultura de grupo..
mação docente: o fortalecimento
cia dos projetos realizados. O trabalho que presenciei tem es
treita relação com os que serão relatados neste livro, não s um planejamento
A intervenção do adulto — baseada em
atitude das
aqueles que envolvem crianças, mas também adultos em fo minucioso decorrente da observação constante da
e à docu-
mação contínua. A abordagem italiana das escolas da infân crianças, aliada a um amplo conhecimento cultural
dia — oportuni-
cia e das creches, afetivamente chamadas de "ninhos", é itn mentação detalhada do processo vivido dia a
envolvidos no
exemplo singular da Pedagogia das Relações. za uma educação para a autonomia dos sujeitos
da
Como expus, o projeto pedagógico de Malaguzzi mos processo. A proposta tem, como meta, o desenvolvimento
tra que as relações humanas, os projetos e a documentaçã autonomia e a responsabilidade das escolhas, além da par-
são eixos centrais do trabalho realizado. O conceito de rela. ticipação de toda a comunidade a partir das múltiplas pos-
ção parte do pressuposto de que a escola, vista como um es sibilidades decorrentes das interações com seus parceiros e
paço de encontros entre sujeitos e cultura, deve proporcion com os objetos de conhecimento.
situações de convívio espontâneo entre todos que habita Vale a pena destacar a proibição de fotografias e filma-
lugar — cozinheiros, cuidadores, atelieristas, coordenadores gens durante as visitas a creches e escolas. Isso provoca uma
pedagogos, famílias e todas as crianças, independentement nova relação de aprendizagem nos educadores visitantes.
da faixa etária. O convívio cotidiano, o "estar-junto" no me Ao nos vermos desprovidos dos recursos digitais da moder-
mo espaço, desenvolve no sujeito que o habita o sentiment nidade para registrar impressões, os sentidos transformam-
de pertencimento e identidade com o contexto, do qual el -se em fonte de informações: ver, sentir, escutar, tocar,
se sente parte integrante e se reconhece como protagonist apalpar, provar alguns alimentos e sentir diferentes aromas.
do cenário criado. No decorrer do curso e nas visitas realiza Isso nos convida ainda a usar o corpo como memó-
das às escolas de Reggio Emilia foi possível perceber a impo ria de uma experiência vivenciada, tal e qual a criança,
tância da relação entre sujeito e ambiente cuidadosamen que tem o corpo como principal fonte de informações
planejado, considerado como um elemento formador por ex- e conhecimento de mundo. Os sentidos registrados com
celência na Pedagogia da Infância. palavras e desenhos reapresentam, no papel, experiên-

76 Prática docente O trabalho com projetos 77


criança
cias vivenciadas de relações significativas, possibilitando nhecimentos, do próprio sujeito e do mundo a que a
processo se dá em diferentes
a ampliação da memória. e o adulto pertencem. Esse
do
As relações estabelecidas entre adultos e crianças, e ene-: dimensões: na constância da ação; na disponibilidade
tre as próprias crianças, desvelam a concepção de crian e interagir com a criança; na
adulto para observar, registrar
perguntas e hi-
como sujeito potente, capaz de agir, com direito de se e sensibilidade da escuta de suas afirmações,
pressar nas múltiplas linguagens, e de ser protagonista da no olhar atento e direto
póteses iniciais acerca do entorno;
situações do cotidiano. Alguém que desperta o interesse d do tempo necessário para
aos olhos da criança; na espera
determinado objeto;
adulto, que compartilha o encantamento em conhecer atender aos interesses da criança por
ante da vida do grupo; na
mundo ao seu redor, capaz de se maravilhar com palavr na organização da rotina estrutur
desafiar e criar no-
gestos e descobertas, momentos mágicos da infância. Des busca de intervenções adequadas para
transparência do equilí-
sa relação interativa desenvolve-se uma confiança mútua vas situações de aprendizagem; na
regras preestabelecidas
um repertório comum, espaços de identidade dos sujeit brio entre limites de segurança das
criança em particular.
de um determinado contexto. à vida em grupo e o que move cada
m
Um dos espaços de destaque nessas escolas é a coz Nessa perspectiva interativa, as relações produze
À me-
nha, local onde crianças e pais têm livre acesso, devido transformações em todos os envolvidos no contexto.
postura
importância atribuída à alimentação saudável, à explor dida que o adulto se disponibiliza e se apropria da
r.
ção dos sentidos e à construção de conhecimentos que descrita, há uma ressignificação de seu papel de educado
culinária proporciona. Na mesma proporção, a criança apreend
e os objetos de co-
e
Como nas palavras da coordenadora, que recebeu nhecimento, gerando novas aprendizagens, que integram
grupo de educadores da América Latina na Escola Arcobale agregam novos valores humanos, possibilitando a ação em
no (2008), o cheiro contagia, o perfume embriaga, o pala. um novo patamar.
dar é estimulado, os olhos brilham diante de cestas de pa Quando a criança começa a frequentar uma creche ou
repletas de verduras, legumes e frutas, maços de espinafre uma escola de Educação Infantil, é fundamental que a rela-
tangerinas disponíveis no ambiente, que as crianças pega ção amorosa desenvolvida com seus pais e cuidadores seja
quando têm vontade. As jarras de chá espalhadas em me reconstruída, por meio de um processo de adaptação/acolhi-
nhas, nas quais as crianças se servem com desembaraço mento ao novo grupo, ao espaço e às pessoas com as quais
total autonomia, comprovam na prática o papel educado irá conviver. Isso requer tempo e investimento do adulto
que o ambiente exerce nessa estrutura. para fortalecer vínculos de respeito, alegria e pertencimento.
Os vínculos afetivos decorrentes das relações significa À medida que as relações se fortalecem em um ambien-
tivas podem favorecer a construção de aprendizagens e co- te acolhedor, lúdico, alegre e prazeroso, que permita a cir-

O trabalho com projetos 79


78 Prática docente
cularidade de todos os seus integrantes, como ocorre nas, to não se define o tema de interesse ou os
conceitos nortea-
escolas de Reggio Emilia, o diálogo tem a potencialidad-s: dores das propostas de trabalho. Esta definição
demanda
de se estabelecer. Em seu transcurso, cada um expõe as pró "=` tempo, muita observação, registros minuciosos do
cotidia-
prias ideias e interage com as do outro, criando um espaç no, que relatem palavras e ações das crianças que
possam
fluido de comunicação e expressão de relações mais estrei dar "pistas" de interesses que se mantêm.
tas, significativas e de novas aprendizagens. Para aprender é preciso ressignificar o mundo, nas pa-
O conceito de relação também abrange o de transp lavras de Piaget (1977) e, para tal, o sujeito-aprendiz deve
rência, tanto do espaço habitado pelos sujeitos da açã fazer uma leitura com as próprias palavras. Paulo Freire
quanto dos diálogos estabelecidos. Todas as escolas (1996) completa: o trabalho com projetos transforma-se em
Reggio Emilia têm amplos espaços abertos, muitas parede uma postura investigativa de aprendizagem e atribuição de
de vidro, para que todos possam se ver no dia a dia e ci sentido ao mundo que cerca os envolvidos no processo; isso
cular conforme seus interesses, um convite à participação, ocorre por meio de múltiplas linguagens expressivas de co-
A abordagem italiana para a Educação Infantil ap unicação, tais como: música, arte, literatura, corpo-movi-
senta-se como uma pedagogia de relações humanas cap mento, brincar, tempos e espaços da infância, sonhos, ações
de produzir uma educação de qualidade para as crianç que viabilizam a apropriação cultural do sujeito que vive
e um currículo diferenciado na Educação Infantil. Nela, em sociedade com seus pares.
vínculos afetivos desenvolvem-se a partir da escuta e d Aos poucos, o uso dos instrumentos metodológicos ex-
diálogo, potencializando a construção de novos conhec postos no capítulo anterior — observação, registro, planeja-
mentos, a ressignificação do convívio em grupo, o trab mento, reflexão e avaliação — alia-se à intervenção de um
lho com projetos interdisciplinares, o exercício da arte, d parceiro próximo, quer seja outro professor, o diretor ou
ética, da estética e o uso das múltiplas linguagens expres o coordenador pedagógico, ou uma determinada situação-
sivas, como uma concepção de aprendizagem e de integra -problema, ou um conteúdo recorrente — e, então, começa
ção do ser humano. a se configurar e nasce o tema de um projeto.
É preciso a avaliação de sua pertinência em relação aos
conteúdos propostos à faixa etária no projeto pedagógico
Como desenvolver os projetos institucional e às possíveis integrações aos campos de expe-
riência (Base Nacional Comum Curricular, 2018) com pos-
O trabalho com projetos parte de um incômodo inici sibilidades de experiências nos mais diferentes âmbitos, e
do educador de "não saber" qual o percurso a ser delineado às diversas
linguagens expressivas. Caso contrário, pode-
com o seu grupo de crianças no início de cada ano, enquan ria haver a falta de foco explícito e um
empobrecimento do

80 Prática docente ,`11 O trabalho com projetos 81


trabalho, pautado apenas em fragmentos de
interesses que ZONA DE DESENVOLVIMENTO PROXIMAL (ZDP)
k<
não seriam suficientes para sustentar um projeto. • Segundo Vygotsky, esse é um espaço ótimo de aprendizagem,
A partir do momento em que o tema é
definido e a suai no qual tanto o educador quanto os colegas mais experientes
contribuem para futuras aprendizagens, como uma zona em-
adequação validada, é necessário garantir condições essen-t' • brionária que, momentaneamente, requer auxílio externo e po-
ia do grupo"
ciais e estimulantes à construção da consciênc ;" derá ser apropriada pelo sujeito "aprendente", à medida que
sobre a pertinência da proposta e das aprendizagens decor-
, se exercita em relação a conteúdos atitudinais, procedimen-
criação de unis tais e conceituais (COLL, 1998)..
rentes. A etapa seguinte gira em torno da
de "ba
nome para o projeto, o que eu costumo chamar
entre seu O projeto, considerado um "vir a ser", um recorte que
tismo", fruto de muita negociação e conversa
o educador faz sobre um tema em foco, segue o seu percurso
participantes. Há votações, sugestões, enfim, uma busc
fase e em um processo dinâmico que requer registros diários como
democrática por um consenso, transformando essa
negociações si forma de planejamento do passo seguinte, avaliação sobre a
um exercício de cidadania ao se vivenciar
re escolha feita, ajustes e busca de "nutrição" para a ampliação
nificativas. Como exemplo, alguns nomes de projetos
e "Bo da proposta inicial, tais como: livros, contadores de histó-
lizados: "Mar de sentidos", "Piscototo, um avião"
rias, obras de arte, visitas que oportunizem o contato com o
mágica".
projeto, que se estuda, e outros procedimentos, como passo a passo.
Definido o tema e criado um nome para o
previ O conhecimento é recriado, coletiva e individualmente, ins-
educador deve começar a levantar os conhecimentos
tigando a curiosidade, estimulando a imaginação, a verba-
intervenções:
do grupo sobre o assunto para planejar suas lização de hipóteses e a ampliação do repertório de atuação
• O que cada um sabe sobre a questão? no mundo, transformando o que inicialmente era ordinário,
• O que gostaria de saber? comum, em uma pesquisa extraordinária, de encantamen-
• O que poderia saber? to e de muitas descobertas. Como dizia Louis Malaguzzi em
proximal
• Como atuar na zona de desenvolvimento seus discursos, "transformar o ordinário em extraordinário"
cada um? move aprendizagens significativas e únicas.
• O que está nas entrelinhas? A eficácia de um projeto se traduz no enriquecimen-
to da postura consciente do aprendiz "ser-estar-fazer-sa-
s po
A investigação ativa sobre as questões destacada ber-conviver" no mundo, atitude referendada no Relatório
crianç
acontecer por meio de conversas, desenhos das Delors, citado anteriormente, construindo uma relação de
difere
pesquisas, vivências com materiais relacionados... nterdependência, na qual possa se sentir atuante e com au-
o
tes possibilidades para coletar dados e ir além do que onomia responsável, vinculando-se a espaços diversos de
po já sabe.

0 trabalho com projetos 83


82 Prática docente
produção de informação e fenômenos significati
vos den
do contexto cultural a que pertence. o educadores quanto educandos e suas famílias, criando
Os encaminhamentos pertinentes de ações a comunidade "aprendente": um grupo que se abre e
e proced
mentos, ora sugerido pelo grupo, ora pelo 'vencia novas experiências.
educador, d
vem ser registrados em todas as etapas para A última etapa do trabalho com projetos deve ser a
a memória
trajetória percorrida, com imagens, desenhos elaboração final dos portfólios, que reúne as etapa
, palavras d s signi-
crianças, fotos, textos narrativos, músicas, ficativas do processo e materializa as aprendizagens
enfim, explor sig-
do as múltiplas linguagens contempladas nificativas do grupo. Além de portfólios, uma
no processo s exposição,
tetizadas na documentação pedagógica. painel, maquete, livros das crianças também são cons
idera-
Além do uso dos instrumentos metodológicos dos como produto final produzido pelo grupo, que
citad sociali-
é fundamental a reflexão com os demais zam as aprendizagens construídas.
educadores,
to informalmente, no dia a dia, como form
almente em re
niões pedagógicas ou com assessores espe
cialistas nas áre
envolvidas. A reflexão também deve propiciar
a busca de
ferencial teórico não só das informações
a serem trabalh
das, mas também dos teóricos que poss
am ser associad
às questões emergentes do grupo, viab
ilizando o que Sch
(2001) chamou de reflexão sobre a reflexão
— uma relaç
teoria e prática resultante de um "curr
ículo vivo" em aça"
conforme ilustrado no esquema do início
deste capítulo.
O trabalho com projetos deve contemp
lar parcer
significativas entre as famílias do grupo
de crianças e
escola, pois múltiplas mãos vão se unir
para escrever
história, que é coletiva. Esta nova form
a de organizar
conhecimento escolar agrega sujeitos em
torno de um o
jetivo em comum, o tema do projeto
e as questões que
mobilizam, que valoriza todas as contribui
ções do gru
e respeita a diversidade, principalmente
ao atuar na zo
de desenvolvimento proximal de cada
um. Cada indi
duo aprende a aprender a seu tempo
e a seu modo, ta

84 Prática docente
O trabalho com projetos
85
REGISTRO EM PORTFÓLIOS "Portfólio", de acordo com a grafia que é utilizada neste
livro, pode ser definido como um instrumento de constru-
ção de conhecimentos no processo de ensino-aprendizagem
— uma ferramenta do professor, que complementa a meto-
dologia de formação abordada.
É uma forma de trabalho que, da mesma maneira que
os projetos e as redes, está referendada no coletivo, na reu-
nião de sujeitos que compartilham informações e aprendi-
[...] para escrever não importa o quê, o meu matei.'h zagens em uma cultura específica: a da Educação Infantil.
básico é a palavra. Assim é que esta história será fel' É um álbum, uma pasta, um caderno, um arquivo,
de palavras que se agrupam em frases e destas se evot que pode ser escrito, fotografado, filmado, gravado, docu-
um sentido secreto que ultrapassa palavras e fras mentando o percurso de um processo na sua totalidade: o
Clarice Lispec trabalho realizado durante o ano escolar, um projeto des-
tinado a um fim específico, o trabalho com projetos, deter-
minada pesquisa sobre um tema escolhido pelo professor...
Os registros em portfólios são registros reflexivos con todos esses registros podem compor o portfólio. Na Educa-
derados como espaços da memória, documentação da p ção Infantil há um leque de possibilidades para organizar o
pria prática, caminhos de reflexão, fonte de planejameni material coletado, que pode variar conforme a proposta e a
da continuidade dos projetos desenvolvidos em cada g intenção do professor.
po, marcas da identidade de um educador compromisso
com a qualidade de seu trabalho.
A origem do trabalho com portfwlios
Historicamente, o trabalho com portfólios remete a
Mas... o que é um portfólio? Freinet, que difundiu a importância do testemunho
coti-
Portfólio é um instrumento do professor para do diano das atividades vivenciadas pelo grupo,
documenta-
mentação e avaliação do trabalho realizado no decorrer das em um grande álbum/caderno exposto na
entrada da
sala de aula.
um determinado período, como um ano escolar. Há al
mas designações diferenciadas para nomeá-lo, como "pe Para o pedagogo francês, a relação entre a
escola e a vida
era de fundamental valor: o registro de
ta-fólio" ou "portfolio" (sem acento). sentimentos, impres-

86 Prática docente
Registro em portfólios 87
sões, experiências vividas no grupo, em sintonia com as ali criança em particular. É, também, um material de comuni-
vidades realizadas na comunidade. O "livro da vida", com, cação entre a escola e a família que, diante da visibilidade
chamava o álbum, que registrava, tanto pelo professor quan das informações contidas no álbum, se apropria e participa
to pelas crianças, as marcas deixadas pelo trabalho realizado, do trabalho realizado com seus filhos.
impressões, sentimentos, conquistas, desafios, descobertas... Os portfólios remetem à ideia de coleção, de reunião,
O livro da vida freiniano era uma forma primária de ré de agrupamento, de conjunto, de algo que é construído de
gistro da livre expressão dos componentes do grupo, compo- acordo com critérios preestabelecidos e selecionados pelo
to por conquistas e descobertas coletivas e por contribuiçõ•'~ protagonista da ação: o professor, a partir da leitura dos
pessoais, numa dimensão interativa do trabalho realizad®g teresses das crianças com as quais compartilha decisões.
em parceria com a comunidade. Um dos aspectos conte As coleções são fornias genuínas do sujeito "reunir"
piados no livro era o "painel das manifestações", organizadei (unir novamente), agrupar, reapresentar objetos, textos, in-
por títulos como "eu sugiro", "eu critico", "eu felicito". formações, trechos de leituras realizadas em busca de res-
Da mesma forma, os portfólios devem abranger os co paldo teórico às suas dúvidas e curiosidades, documentos
teúdos das práticas pedagógicas e dos sujeitos que faz significativos à reconstituição do processo de aprendiza-
parte dessa história. É um documento da "vida" do grup®;', gem, anotações e registros das experiências cotidianas, de
redigido, ilustrado, organizado por um responsável p (! tal forma que fiquem evidentes os passos dados e o produ-
grupo — no caso específico da Educação Infantil, o professo to elaborado em função dos momentos de aprendizagem.
responsável pela coordenação do trabalho realizado —, O portfólio do professor é uma ferramenta de traba-
por uma criança do grupo, o que possibilita a identificação, lho, um diário de aprendizagem, no qual os registros de
a emergência do sentimento de pertencimento de cada dúvidas, conquistas e atividades são feitos constantemente,
ao grupo como um todo, em parceria com o coordenador. acompanhados de amostras de trabalhos. É uma estratégia
pedagógica que leva à descoberta de novos conhecimentos,
tanto para o seu autor quanto para seus leitores, como o
Tipos de portfóiios coordenador pedagógico ou o professor auxiliar do grupo.
Os portfólios das crianças são feitos por adultos quan-
Há dois tipos de portfólios: o do professor, que é, do elas são bem pequenas, a fim de reconstituir o percurso
multaneamente, pessoal e coletivo, e o de cada criança, q formativo de cada uma delas, suas conquistas e experi-
representa a memória do ano que ela viveu com seu grup mentos realizados na tentativa de construção de novos co-
No caso da Educação Infantil, é uma elaboração do prof- nhecimentos. As crianças procuram em seus portfólios a
sor a partir dos materiais produzidos pelo grupo e de ca econstituição da própria história escolar, como uma me-

88 Prática docente Registro ern portfólios 89


mória viva do percurso. À medida que as crianças vão se
o percurso de construção de conhecimentos do seu grupo,
apropriando da construção dos portfólios, cada vez mais-
identificando etapas essenciais à composição do processo:
devem ser convidadas a participar da sua elaboração, em-*
um "memorial" do projeto realizado.
penhando-se no registro de suas aprendizagens. Nas sé-
A abrangência do registro em portfólios é de tal gran-
ries iniciais do Ensino FundamentalI apropriam-se e usam
deza que, segundo Gardner (1995), a nomeação mais
espontaneamente essa ferramenta de trabalho. O uso do-
adequada do instrumento é "processo-fólio", diante das
portfólio pelas crianças favorece o sentimento de prazer
possibilidades de conexão com outras situações vividas an-
alegria ao rever fotos, desenhos que elaboraram, fotocópias?.
teriormente, ou imaginadas, tanto na escola quanto fora
de capas de livros de histórias que foram lidas para ela, fôl,
dela. Os portfólios são construídos ao longo do projeto,
deres de visitas extraescolares que o grupo fez para alimen-
tanto como registro do que foi vivido pelo grupo quanto
tar os projetos, entre outros registros — fragmentos que lhe
apontando caminhos a serem explorados de acordo com os
dão dados/pistas para recuperar fatos que, ao serem ressig interesses emergentes das crianças.
nificados, transformam-se em novas aprendizagens. As escolhas indicam as prioridades estabelecidas pelo
professor durante o projeto e, também, os recortes selecio-
nados para documentá-lo e socializá-lo no portfólio, o que
A montagem do portfólio varia de acordo com o olhar de cada professor, seus objeti-
O trabalho com portfólios caminha em sintonia com vos e concepção de criança e de mundo. Ele pode focar as
concepção construtivista de educação, pois o conhecime suas escolhas tomando o grupo como um todo ou selecio-
to é tecido no sentido que o sujeito atribui à interação co nar algumas crianças em particular; concentrar-se na sua
objetos e pessoas, e a sua construção se efetiva por me atuação ou, ainda, nas tarefas propostas.
de experiências vividas por ele, as quais refletem, ou nã Na montagem de um pottfólio há uma conexão entre o
a realidade na sua perspectiva de mundo e da relação qú que é coletivo (produto do grupo) e o que é individual (do
estabelece entre fazeres e saberes pedagógicos. O portfól professor e de cada membro de seu grupo) por meio da se-
é um meio, não um fim em si mesmo, facilitador de inter leção de materiais/textos/palavras/imagens para ilustrá-lo,
ções e relações formativas, constituído por sujeitos de caracterizando-o como fruto de relações interativas de pro-
dução de conhecimentos compartilhados.
determinado grupo.
A opção do professor na elaboração de seu portfólio ofe-
Cabe ao professor escolher o fio condutor da elabo
rece à coordenação fontes significativas de
ção de seu portfólio de estudo, de tal forma que retrate pa observação e aná-
lise reflexiva do "ser-saber-fazer" do
o leitor (coordenador, demais professores, pais e criança educador, pois aponta
indícios, sinaliza como o sujeito concebe a própria
prática

90 Prática docente
Registro era portfólios 91
pedagógica, faz suas escolhas, e quais os possíveis caminhos Há "receitas" para a sua construção? Há um percur-
para modificar as intervenções de pouco sucesso. Ao manu- so de elaboração que acompanha a trajetória do professor?
sear o material é possível intermediar um diálogo a partir da para quem ele se destina? Memória, documento ou espa-
ação documentada que, devidamente questionada pelo lei-. ço de socialização e reflexão sobre a própria prática? Como
tor, pode provocar a tomada de consciência da falta de clare- torná-lo um espaço de busca individual e de grupo?
za de habitas adquiridos e reproduzidos mecanicamente no Os portfólios não devem ser formatados a priori, com
cotidiano, fazendo emergir a necessidade de mudanças ou y. prescrições da instituição ou da coordenação pedagógi-
:t
de aprofundamento do porquê de determinadas ações. ca quanto à maneira de serem feitos. Isso é válido tanto
Os portfólios representam, também, uma forma genuí-;4 para o portfólio do professor quanto para o das crianças,
na de organização que o professor faz do material a ser pois perderiam a sua identidade e se tornariam reprodu-
arquivado/colecionado, não só em relação aos conteúdos ções de ordens dadas, esvaindo a oportunidade de sua
que irão compor o álbum, mas também no modo como se confecção transformar-se em uma situação de aprendi-
rão dispostos, compondo um diálogo estético entre forma,; zagem significativa.
conteúdos conceituais, recursos materiais, distribuição es- A construção de um portfólio desvela o modo como o
pacial, uso de imagens e outros aspectos ligados à sua com- professor aprende a aprender; o que ele conhece sobre o
posição. É interessante notar que o termo "portfólio" ve seu grupo, o que gostaria de conhecer; seus desejos, pre-
da área da Arte - "dossiê" com amostras de produções are,. ferências e faltas; a opção que faz em seus registros, o que
tísticas; book de um designer; pasta do artesão -, o qu prioriza em sua rotina diária; as parcerias que estabeleceu
justifica seu uso associado ao processo de criação do sujei com os teóricos e com os demais professores; a reflexão
to-professor ao narrar a trajetória de seu grupo. que faz, ou não, sobre suas práticas pedagógicas; e, princi-
Além disso, o trabalho com portfólio é uma forma d palmente, qual o foco de seu olhar: as tarefas propostas, a
avaliação inicial ou diagnostica, e também a avaliação con- construção da rotina de trabalho, a participação e o interes-
tínua e processual do trabalho realizado com as crianças se do grupo como um todo ou em um caso em especial; in-
por meio do qual se pode verificar e problematizar hipój dica se ele integra e conecta todos os elementos da relação
teses sobre as ações docentes nas mais variadas situações pedagógica, contextualizando-os; a maneira como lida com
convertendo-se em um instrumento de formação de profe conflitos emergentes no cotidiano escolar.
sores em reuniões pedagógicas. O álbum pode ser usad Ao narrar a história pessoal e coletiva, o professor se com-
como um pretexto para questionamento e conscientizaça promete com o que registra e com o enigma da criação de um
de fazeres dos professores, ressignificando saberes pedag memorial, com a arte da estética e a responsabilidade dos
gicos do grupo como um todo. significados de cada palavra. Segundo Nélida Piíïon:

92 Prática docente s., Registro em portfólios 93


[...] escrever alarga o sentido da vida [...] e que, ao permeavam a trajetória de cada professora. Foi então que
criar à revelia certas metáforas, percebe-se que, en- iniciei o projeto de construção da pergunta "existencial" de
tre uma história e outra, cria-se uma vasta relação cada professor. Pergunta que refletisse sua pesquisa, sua
com o mundo e os seres [..•] sei que a escritura é a busca pessoal, e que será relatada no próximo tópico.
residência secreta do escritor na terra [...1 que vive e Os portfólios, além da documentação dos projetos, re-
morre em meio às palavras [...] e sob esse mito, alo-
presentam um instrumento de comunicação de ideias, valo-
ja-se a sua estética, assim como a consciência da arte
res, crenças, fazeres e saberes dos professores. Constituem
[...] além de compatibilizar as narrativas históricas
com a própria arte de contar. (2008, p. 23-4) um olhar ético e estético do professor sobre a própria práti-
ca pedagógica, registrando a síntese do projeto desenvolvi-
Portanto, criador e criatura, professor, sujeitos de seu do com as crianças e as aprendizagens construídas.
grupo e as tarefas realizadas fundem-se em um contexto ~ As palavras escolhidas pelo professor para narrar a sua
formador, dialógico, "aprendente" e "ensinante". trajetória, as imagens por ele selecionadas, as preferências
por citações de teóricos que respaldam a ação, a organiza-
ção por ele feita do material arquivado, as opções de re-
Pcprff6[á o de preleves corte das atividades desenvolvidas a serem relatadas dão a
No caso do portfólio como registro de projeto, por ser um: esse instrumento metodológico intitulado "portfólio" o po-
tencial transformador da prática pedagógica docente. A fer-
álbum concreto, um memorial do grupo, possibilita sucessivas
ramenta destaca-se por seu valor como acompanhamento
idas e vindas a seus conteúdos conceituais e aprendizagens:
e avaliação formativa do projeto realizado, como planeja-
É uma fonte de consulta, que viabiliza ajustes nos planeja-
mentos subsequentes a partir das reflexões deflagradas e a vi-[ mento da sequência de trabalho, registro e documentação
de conquistas e aprendizagens.
são da totalidade do trabalho: como o projeto começou, as'
etapas principais, as contribuições que nutriram a discussãoi Os portfólios favorecem a autorreflexão e a autonomia
do professor, metas da proposta construtivista, uma das re-
as aprendizagens vividas, o produto final. Portanto, um espa:
ferências teóricas norteadoras do processo de formação de
ço de relação entre registrar, planejar e construir intervenções:]
oportunas, etapas interdependentes do processo pedagógico. professores aqui abordado: o desenvolvimento da capaci-
dade de autogovernar-se almejada por Piaget. Como nas
Em meu cotidiano como coordenadora pedagógica,
palavras de Hernández:
medida que o trabalho com portfólios se constituía comi
uma poderosa ferramenta para a formação de professo:µ [...] O portfólio estimula o pensamento reflexivo,
res, um elemento constituinte da cultura do grupo, perceba oportuniza a documentação, o registro e a estrutu-
como formadora e pesquisadora, que questões individua °•

Registro em portfólios 95
94 Prático docente
em (...1 Para fechar nossa reflexão, apresento a seguir alguns
ra, os procedimentos e a própria aprendizag
estimula o processo de enriquecimento conceituai, dos registros do portfólio pessoal desenvolvido pela profes-
fundamenta os processos de reflexão para a ação, sora CHS, organizados tematicamente:
garante mecanismos de aprofundamento conceitua)
continuado, estimula a criatividade e a originalida- A MEMÓRIA DE UM GRUPO DE 16 CRIANÇAS
de, garante o desenvolvimento da identidade e faci- COM TRÊS ANOS DE IDADE (2007)
lita a aprendizagem [...]. (1998, p. 47) Adaptação do grupo no início do ano
material co- É no período de adaptação, quando as crianças estão iniciando
Do arquivo inicial à seleção reflexiva do o ano escolar, que começam a se estabelecer vínculos entre to-
passado-pre-
letado há um percurso formativo que integra dos os membros desse novo grupo: funcionários, professores,
aprendizagens crianças e pais. Nesse processo, a participação das "antigas"
sente-futuro na construção da autoria e de
professoras, associada à ambientação já existente pelo espaço
significativas para o professor e seu grupo. previamente conhecido por todos, favorece, e muito, os primei-
avaliação,
O portfólio, visto como um instrumento de ros contatos e, assim, as relações entre eles se iniciam e, gradati-
e das
planejamento, reflexão e registro da ação do professor
vamente, vão se tornando cada vez mais estreitas e sólidas. Para
todo que isso, muitas atividades e materiais são oferecidos, além de as-
crianças, permite a visualização da dimensão do suntos propostos e abordados, a fim de que as crianças tenham
a integra-
abrange um processo de formação, contemplando a possibilidade de se expressar, de se manifestar, e, ao mesmo
suas dimen- tempo, de demonstrar qual é o interesse geral da classe, o que
lidade do desenvolvimento humano em todas as
"[.•.] não será., nos levará à definição do tema do projeto a ser desenvolvido com
sões. Como nas palavras de Coll et al. (1996): o grupo. Dentre as várias atividades propostas, a da leitura de his-
a avaliação
exagero afirmar que o currículo, a instrução e tórias foi uma das mais solicitadas pelas crianças. Os livros apre-
portfólio". sentados inicialmente foram: 77co e os lobos moas; Ariel; livro em
que são feitos pelo professor se interceptam no
marcas inglês sobre fundo do mar: Commotion in the oceon...
As vivências experienciadas com sentido deixam A brincadeira do trem também as atraía bastante, especial-
profes-
significativas nas matrizes da docência e na pessoa do mente porque, aproveitando para inserir alguns conteúdos da
aprendizagens°; matemática, fui gradativbmente complementando-a com "cur-
sor: possibilidades de mudanças por meio de
Zabalza,: vas malucas", "retas certinhas e compridas ou curtas". Além
significativas. De acordo com as palavras de Miguel disso, o deslocamento do grupo se tornou cada vez mais orga-
nizado e "unido", já que, passado o período de adaptação à
o próprio fato de escrever", de escrever sobre a pró-
da. brincadeira/rotina, todas as crianças passaram a formá-lo, até
pria prática, "leva o professor a aprender através mesmo as mais reservadas.
sua narração. Ao narrar a sua experiência recente,
professor não só a constrói linguisticamente, com A leitura de interesses, desejos, necessidades do grupo
também a reconstrói ao nível do discurso prático A enorme vontade demonstrada pela maioria delas por "puxar" o
narraçaï
da atividade profissional [...]. Quer dizer, a 4. trem nos levou a uma ideia: a de sortearmos diariamente um aju-
constitui-se em reflexão. (1994) dante para que ele pudesse me auxiliar nas tarefas do dia, inclu-

",f:., Registro em portfólios 97


96 Prática docente
ateliê onde pintaram seja, após eu ter repassado todos os símbolos desenhados na
sive para conduzir o trem. Assim, foram ao
dentre as primárias lousa, para representar a rotina, em pedaços de papel, cons-
tiras de papel A3 (cada um escolheu sua cor
foram, posterior- truímos pequenos cartazes onde a imagem do símbolo e a pa-
oferecidas: azul, vermelho e amarelo). Nelas
guardá-las, pinta- lavra que o definia na rotina foram agrupados.
mente, colados os nomes das crianças. Para Depois de prontos, eles eram colocados diariamente na lou-
mesmo dia, também
ram uma caixa pequena de papelão. No sa, com ou sem a ajuda das crianças. Aos poucos, depois de
"cesta dos materiais (trazidos) de casa" e um cesto de
pintaram a
da limpeza da cal- se apropriarem da rotina, passei a colocá-los antes mesmo de-
lixo para que todos pudessem cuidar melhor las chegarem à escola ou, em outras situações, a sequência a
do dia passou
çada da nossa escola. Posteriormente, o ajudante
e sua represen- ser seguida era descrita oralmente durante a conversa na roda.
a escolher a música cantada na dança da roda
do nome (tabela).
tação simbólica passou a ser exposta ao lado
envolventes para as crian- O início de um projeto: a leitura dos interesses do grupo por
Nas aulas de culinária, bastante
aguardavam an-
ças (já que, após a primeira proposta feita, um tema
começaram preparando e A constante solicitação do grupo para que se contasse a história
siosas a chegada da próxima aula),
gosta. Essas
manipulando o macarrão, alimento que a maioria do fundo do mar, o interesse pelos animais que lá moram, além
de matemática,
aulas possibilitam também abordar conteúdos do enorme envolvimento demonstrado pelas brincadeiras pro-
quantidades, e ativida- postas sobre o tema, nos levaram à descoberta e à definição do
como noções de espaço (dentro/fora),
propostas feitas.
des manuais com colagens, desenhos e outras tema do projeto da classe, intitulado: "Nosso fundo do mar". A
vivência de diversas situações, a possibilidade de enfrentar me-
fonte de segu- dos, de experimentar diferentes emoções, sensações e de criar
A preocupação com a construção da rotina:
e dos símbolos novos instrumentos para serem inseridos nas brincadeiras tor-
rança, regras de organização da vida coletiva
naram as experiências ainda mais valiosas. Como se sabe, a
orientadores do grupo
dos cartazes dos. brincadeira, especialmente nesta fase do desenvolvimento da
Na mesma época, iniciamos a confecção
pelas pró- criança, é um rico canal de exploração do espaço, de experimen-
"combinados" da nossa classe — regras definidas
todos do grupo. Os... tação dos comportamentos e de vivência das várias situações do
prias crianças para orientar a conduta de
levantados e" cotidiano. Enfim, um valioso canal de expressão, de linguagem,
assuntos/temas descritos nos cartazes foram
cada itens de comunicação da criança. Por isso, brincamos incessantes ve-
discutidos pelo grupo, em conjunto, tornando assim
primeira etapa, zes de "barco", de "tubarão" etc., com ou sem música, sempre
bastante significativo para as crianças. Nessa
cuidar dos I buscando ampliar os desafios e as informações dadas para que
mencionaram apenas o que achavam "LEGAL":
brinquedos; cuidar dos ir- pudessem construir, por meio de vivências, novos aprendiza-
vros; cuidar dos amigos; cuidar dos
dos. A questão do grupo também foi trabalhada nas diferentes
mãos; cuidar da classe; cuidar da roupa.
crianças, nesta dinãmicas de trocas de papéis nas brincadeiras. Diferentes mú-
Ainda dentro da construção da rotina, as
foram amplamente sicas também foram muito tocadas e o grupo introduziu-as nas
etapa do ano, pintaram quatro objetos que
ou no espaço escolar: "dramatizações" das várias brincadeiras, inclusive conferindo a
utilizados em sala de aula
dos "ajudantes'. elas nomes e atribuições como a "música do tubarão", a do "fun-
• caixa para guardar faixas com os nomes
trazidos de casa pelas crianças; do do mar" e a "do baile da Ariel". Para completarmos ainda mais
• cesta de materiais
aventais do ateliê; as brincadeiras, resolvemos construir animais do fundo do mar
• caixa para guardar os
pendurada na árvoi com massa de jornal. As crianças ajudaram a picaro papel, o mo-
• cesta de lixo que posteriormente foi
lharam, misturaram a cola, moldaram e, para finalizar, pintaram
em frente à porta da escola.
cartazes da rotina, ou ? as peças, cada um a sua, com tinta guache e cola.
No mesmo período, montamos os

:.:?. Registro em portfólios 99


98 Prática docente
conhecimento de mundo cada indivíduo do grupo e a colaboração entre eles para novas
O trabalho corporal como fonte de conquistas passou a ser um gesto natural e espontâneo.
Por acreditar que a utilização do corpo, principalmente das
mãos, na confecção dos materiais e também que a proposta de
trabalhos coletivos favorece, de forma prazerosa, espontãnea e A construção do grupo e o respeito às individualidades
lúdica, a construção do grupo, incentivei e sugeri quase que dia- As imagens de roda também possibilitam muitas discussões
riamente este tipo de atividade. Tanto dentro do ateliê, quanto sobre as relações dentro do grupo. Desde a observação dos in-
linguagem corporal e as re- divíduos que fazem parte da figura apresentada, da percepção
fora dele, foi dado espaço para a
foram intensam ente esti- de suas diferenças e semelhanças, até a expressão de suas
lações entre os membros do grupo
exemplo, se transform aram impressões a respeito do que é analisado, tudo é interioriza-
muladas. Os dedos das mãos, por
as crianças criaram verda- do, ao modo de cada um, o que com certeza se refletirá nas
em "pincéis mágicos" e, com eles,
"pincel mágico" se suas atitudes e maneira de perceber não só a si mesmo, como
deiras "obras de arte". Em outros casos, o
e, assim, as mãos foram a sua relação com o outro e os demais. O mais gratificante é,
tornou ainda maior, mais volumoso,
Igualmen te, foram suge- já na primeira conversa sobre o assunto, ouvir de uma crian-
usadas como instrumento de criação.
de perceber as suas par- ça: "Cada um é de um jeito e tem seu jeito!". Pronto, a propos-
ridas atividades corporais no sentido
sensaçõe s que podem ta já valeu!
tes, o espaço que ocupam e as várias
podem realizar. Para isso, Baseados nas observações feitas sobre a imagem de roda
sentir, além dos movimentos que
e estilos musicais, sem- apresentada ao grupo, decidimos criar a nossa própria roda,
foram oferecidos diferentes materiais
brincadei ras propostas . Toda mas dentro do tema trabalhado, ou seja, o fundo do mar. Por-
pre contextualizados dentro das
estimulad a, buscando assim tanto, as crianças iniciaram a pintura de círculos usados para
essa exploração foi amplamente
crianças, o que lhes representar as pérolas, conchinhas para representar suas ca-
aumentar o repertório de vivências das
do seu próprio corpo, sas e uma roda de círculos para representar nosso encontro
deu mais recursos para a compreensão
em que vivem. diário na escola. Cada item trabalhado foi pintado de uma
de suas possibilidades e do ambiente
forma diferente: cotonete com tinta guache para as pérolas,
canetinha para as conchas e rolinho com água e corante para
Aatenção à faixa etária o painel coletivo. O mais interessante é que desde o início do
crianças percebessem
[..1 com o intuito de fazer com que as ano até o momento todas as decisões a serem tomadas pelo
"consciente" as dife•-:
e explorassem de forma mais concreta e grupo são feitas por votação. A intenção de utilizá-la nas es-
oferecend o apenas três delas
rentes cores, iniciei os trabalhos colhas coletivas não é a de ensinar o que é ou como é uma
primárias ). Num primeiro
azul, vermelho e amarelo (as cores votação, mas sim fazer com que percebam e compreendam
escolha pessoal, apenas:
momento, utilizaram, de acordo com a como funciona quando as decisões dependem de outras pes-
de trabalho e da ne
uma delas; aos poucos, dentro da proposta soas. Aceitam com mais naturalidade as decisões contrárias
introduzi o branca
cessidade de descoberta de novas cores,
tonalidades diferentes. às suas, começam a aprender a dividir o "poder de ação", a
o preto, que nos possibilitou encontrar respeitar a vontade do outro, a esperar que as suas possam
solicitada s pelas crianças:;
Vale mencionar que todas as cores ser aplicadas. A votação continuará a ser utilizada para a to-
partir das que tinha•.'
passaram a ser derivadas, encontradas a
necessári as várias expel, mada de decisões em grupo até o fim do ano.
mos disponíveis, e, para isso, foram
de troca, tentativas f-
riências conjuntas, excelentes momentos
e emociona ntes, -- A integração das áreas... o olhar interdisciplinar, que une
novas descobertas, enfim, momentos ricos
as pelas crianças;_ O tema do projeto "Nosso fundo do mar" também foi aprovei-
Essas conquistas, naturalmente apropriad
de informações d tado para trabalharmos conteúdos de matemática. Foi possível
passaram a fazer parte do novo repertório

Registro em portfólios 101


100 Prática docente
propor exercícios de continuação de sequências, a cópia de- o fundão!). As próprias crianças prepararam suas tonalidades
las, e em brincadeiras como a da "construção da moreia", ou a de azul de acordo com suas vontades e pintaram o painel. De-
do "trem das conchas". Na quinzena do projeto da professora, pois de seco, ele foi plastificado e, a cada chefão trabalhado,
a cor azul foi utilizada na pintura do cartaz da criança, onde fo- colamos nele, com velcro, o animal ou coisa do mar que foi es-
ram registradas suas preferências. Música: como uma criança colhida pelo protagonista da quinzena.
ficou bastante indecisa quanto à escolha de uma música, su-
gerimos fazer uma votação e ela aceitou. Dessa forma, a músi-
O planejamento do projeto: um "vir a ser" cotidiano e coletivo
ca intitulada pelo grupo como a "do tubarão" venceu e com ela
Resolvemos montar um envelopão para guardar todas as lições
desenvolvemos muitos trabalhos.
dentro. Então, pintamos um pedaço grande de papel Kraft, mas
ao percebermos que seu tamanho era exagerado para o que
O aproveitamento de situações emergentes a favor da constru- queríamos, deixamos a pintura para ser usada como cenário
ção de novos conhecimentos pelas crianças em nossas brincadeiras coletivas e decidimos que pintaríamos
A partida de Julie para o Japão, associada ao prazer musical de- uma caixa de papelão forrada de Kraft com isso, cada criança
monstrado pelo grupo, me levaram a pesquisar um pouco sobre ocupou um espaço da caixa encontrada na sucata. A maioria de-
músicas de ninar daquele país. Assim, no momento em que es- las quis fazer um desenho sobre os animais do fundo do mar,
tivessem relaxando, perto do momento da saída, poderiam não tornando o trabalho ainda mais rico, já que o que foi desenha-
só conhecer e ampliar seu repertório musical, como também en- do diz respeito ao tema do trabalho desenvolvido com o gru-
trar em contato com o som de uma nova língua, possibilitando po. Definimos algumas regras para o sorteio do chefão, mas a
que se aproximassem um pouco mais da cultura do país de des- principal delas é: sempre será o chefão anterior quem deve-
tino da amiga, "diminuindo a distância (sic) entre eles". rá sortear o próximo, e para isso seguimos um ritual. O chefão
deve dar duas voltas ao redor dos envelopes que estarão vira-
A lida com o inusitado e a flexibilidade do planejamento dos para baixo, deverá parar no local de onde partiu e, aí sim,
Como outra criança esteve doente e se ausentou por um certo retirar um envelope do chão. Como neste caso seria a primeira
tempo, decidimos ampliar nosso trabalho, construindo o nos- vez, pedimos a ajuda de uma servente da escola, que nos aju-
so fundo do mar. Durante as exposições orais feitas sobre o dou na utilização do banheiro e troca de roupas.
peixe-palhaço, mostrei-lhes uma página dupla onde havia a re- Logo após o sorteio, sentado ao meu lado, um menino, a
presentação do fundo do mar em três níveis: seu modo, respondeu às perguntas da lição de casa que já ha-
• a parte "alta" do mar, onde está a superfície; via feito e respondido eom sua mãe. Fomos comparando sua
• o "meio do mar", onde o tom de azul é mais intenso; e, "resposta atual" com a que havia relatado a sua mãe no início
por último, do ano, e ele decidia qual iria valer. Todas as questões deve-
• o "fundão" do mar, onde a tonalidade de azul quase che- riam ser trabalhadas, e assim ele definiu a sua: bicho ou coisa
ga ao preto, tamanha a escuridão. do mar preferida = "Nemo", ou melhor, o peixe-palhaço.
O encantamento foi tanto, que me pediram, várias vezes, Ao longo da quinzena, confeccionamos um peixe-palhaço,
para que o mostrasse novamente. Depois de muita observa- cada criança o seu, com meias-calças finas trazidas de casa.
ção, decidimos construí-lo para que pudéssemos ter o nosso, Vale lembrar que, antes de começarem a elaboração do bicho,
na nossa classe, com os nossos animais. Montei, então, um eu levei informações curtas, porém bastante significativas
enorme painel na parede do pátio e, no centro dele, havia qua- para a compreensão e conhecimento do animal. Normalmen-
tro folhas de papel A3 (o céu, a parte azul-clara da superfície, a te, eram trazidas curiosidades, o que tornava a discussão com
azul normal do meio do mar, e a última, quase preta, onde era o grupo muito dinâmica e envolvente..

102 Prática docente "` ': Registro em portfólios 103


Vale destacar que todas as crianças tiveram sua quin- neamente, seja interessante, desafiador, prazeroso e traga
zena como protagonistas do projeto. Apenas ilustrei o texto novas contribuições, como, a meu ver, se dispõem os proje-
com a liderança do menino de três anos, que chamei de Pe- tos e os registros das pesquisas realizadas pelos docentes.
dro. Suas preferências — cor, forma, alimento, música, his- Segundo Stenhouse, não pode haver desenvolvimento
tória, brincadeira — foram exploradas e conhecidas por seus curricular sem desenvolvimento profissional dos professo-
colegas, o que fortaleceu as relações de grupo. O professor res, o que está de acordo com Nóvoa (1995), que também
vivenciou o exercício diário de construção de um planeja- destaca a impossibilidade de separação entre a formação
mento, de acordo com interesses, necessidades e faltas das pessoal e profissional do docente. A integração entre fa-
crianças em sintonia com os conteúdos e os objetivos pre- zeres e saberes pode promover a qualificação pessoal e
vistos no planejamento da instituição para essa faixa etária: profissional dos docentes do grupo e a construção de um
aprendizagens para todos os sujeitos envolvidos no projeto. currículo em ação capaz de promover as aprendizagens ne-
cessárias às crianças na Educação Infantil.
Cada projeto tem desafios particulares a serem trans-
O ponto de observação postos, conteúdos a serem explorados, objetivos a serem
trabalhados, pesquisas a serem realizadas, parcerias teóri-
A primeira direção na construção das redes para a for-
cas a serem definidas: todo projeto é uma "aposta" de que
mação em serviço, que abordarei no capítulo "Redes forma-
muitas expectativas podem ser alcançadas e aprendizagens
tivas: a cultura do grupo", foi a continuidade do trabalho
significativas irão acontecer.
realizado com os cadernos de registro das professoras, e a
O investimento na formação para o trabalho com pro-
"provocação" desafiadora de que cada uma delas elegeria
jetos se dá no sentido de subsidiar o olhar do professor na
uma pergunta essencial a ser perseguida no decorrer do ano.
construção do foco do seu olhar, pois "quem tudo olha,
O ponto de partida para a proposta foi a premissa cen-
nada vê". Portanto, como definir o foco do próprio olhar e
tral de Stenhouse, de que o professor-investigador tem a
relacionar buscas com o tema de interesse do grupo?
possibilidade de se tornar autor de sua história. Stenhou-
Cada professor foi desafiado a construir um "ponto de
se defendia a ideia de que a técnica e o conhecimento pro-
observação", uma questão para a observação de sua própria
fissionais podem ser objetos de dúvida, isto é, de saber e,
prática pedagógica cotidiana. O objetivo era direcionar/fo-
consequentemente, de pesquisas. Para o autor, essa postu-
car o olhar docente para determinada situação, construindo,
ra investigativa daria, aos professores que se destacassem
disciplinadamente, sua atuação/intervenção junto ao grupo.
na busca de questões pedagógicas, a transformação do en-
O ponto de observação serve como diagnóstico do gru-
sino em aventura da educação, ou seja, algo que, simulta-
po, como uma fotografia da realidade, que integra aspec-

104 Prático docente Registro em portfófios 105


tos objetivos e subjetivos, que possibilita a elaboração de trução social, pois depende de outros, o que leva tempo, e
intervenções adequadas e o planejamento da continuidade está inserida em um contexto histórico-cultural. O registro
do trabalho, além de avaliar a atuação de todos os envolvi- escrito do foco do olhar constitui-se em um mediador signi-
dos na construção do conhecimento. O ponto de observa- ficativo para a ação docente, pois:
ção estrutura-se via o uso de instrumentos metodológicos [...] é no processo de redação de um texto que nos-
— planejamento, observação, registro e avaliação —, orienta so pensamento caminha, encontrando soluções que
as propostas para atingir os objetivos centrais das aprendi- dificilmente aparecerão "antes" da textualização dos
zagens das crianças e explicita a intencionalidade da ação dados provenientes da observação sistemática. (OLI-
docente, segundo Madalena Freire. VEIRA, 1996, p. 56)
Em Lev Vygotsky encontro a fundamentação, a im-
A construção do ponto de observação, segundo Mada-
portância e a função desse olhar em foco, como sendo a
lena Freire, caminha em tripla direção, referindo-se:
materialização da zona de desenvolvimento proximal do
sujeito-aprendiz. Retomo a explicação do autor, que con- • às aprendizagens individuais e coletivas;
sidera o ponto como um espaço de interseção entre o que • à dinâmica trabalhada na aula; e
o sujeito já sabe e é capaz de fazer sozinho (zona real), e • à atuação da coordenação como responsável pelo grupo.
o que ele aprende a fazer, e faz quando desafiado, com a
Os três fatores são interdependentes e constituem a es-
ajuda de um parceiro mais experiente, algo que tem a pos-
sência de uma proposta pedagógica: três focos que dialo-
sibilidade de se transformar em conhecimento e aprendiza-
gam para favorecer a construção de novas aprendizagens.
gem, deixando de ser potencial, tornando-se real.
Conteúdos conceituais explícitos e latentes transformam
A intervenção do educador-coordenador se dá no sen-
o ponto/foco em elemento de percepção e leitura da realida-
tido de conscientizar o educador-professor de seu papel de
de, desde que seja formulado com base em dados observados
pesquisador em relação às metas de aprendizagens a serem
anteriormente, clareza de onde se quer chegar, intencionali-
atingidas, conforme o objetivo a que se propôs inicialmente
dade e justificativa. Na definição e escrita do foco, o profes-
(seu foco). Desta maneira, contribui para o amadurecimen-
sor apropria-se de si mesmo, de suas inquietações, do seu
to de funções ainda embrionárias no seu grupo/classe e na
pensar e agir, da autoria da própria história, propositor cons-
ampliação de seu universo conceitual, por meio da indica-
ciente do percurso pedagógico, que é único em cada grupo.
ção de teóricos que pensaram sobre as mesmas questões.
Do registro reflexivo da observação à sua comunica-
A elaboração do ponto de observação/foco é fruto de
ção, o professor elabora uma síntese das ideias principais
relações interpessoais que se processam na vida em grupo e
a serem socializadas no grupo, ao redigir o seu portfólio
do que elas provocam no sujeito-pesquisador. É uma cons-

106 Prática docente Registro em portfólios 107


que o au- 6. Começar a narrar, a seu modo, não há "receitas": o diá-
ou documentação pedagógica. É na socialização
lidar logo que você estabeleceu com os teóricos, o seu caderno
tor pode rever seu texto, revisar, aprofundar, ilustrar,
de registros sobre a sua prática e a voz das crianças. Como
com faltas e com escolhas do que quer expor.
nas palavras de Piaget, "só se aprende a fazer, fazendo".
Acredito que há desafios a serem transpostos para que
es-
o uso do ponto/foco seja eficaz, como a dificuldade da 7. Ilustrar com fotos/desenhos/circulares o que achar
crita, a busca por palavras que contemplam o que se pre- marcante na evolução do projeto.
tende atingir, a objetividade e a sutileza do questionamento
8. Ler textos dados, como ampliação de conhecimentos.
nele contido, a sintonia do seu conteúdo com o projeto pe-
dagógico. Dentre os recursos utilizados como facilitadores 9. Estabelecer articulações entre a sua pesquisa e os as-
para a aprendizagem da metodologia docente, escolhi a re- sessores com os quais você convive no decorrer do ano:
dação de um texto a partir do roteiro que segue: quais as relações possíveis, ou não? Que tipo de conheci-
mento desencadearam?

10. Lembrar de que todo projeto é único, uma "aposta"


Roteiro For ttizo or
criativa na construção do conhecimento e contempla toda
Sugestão de elaboração do projeto de intervenção in- a subjetividade do professor-autor, que investiga a pró-
dividual. pria prática educativa.

1. Definir o tema de seu projeto. Bom trabalho, e mãos à obra!

2. Dar um título a ele ("batize-o" com um nome que o


represente).

3. Definir a pergunta da pesquisa de intervenção e re-


gistrá-la.
o
4. Começar a escrever, contextualizando o leitor sobre
seu grupo e de que lugar você fala (professora titular ou
auxiliar) .

5. Descrever a justificativa do projeto: um incômodo,


uma falta, um desafio.

Registro em portfálids 109


108 Prática docente
E...] a palavra humana é mais que um simples
REDES FORMATIVAS: bulário. É palavra e ação Falar não é um ato
voca-
verda-
A CULTURA DE GRUPO deiro se não estiver ao mesmo tempo associado ao
direito à autoexpressão e à expressão da realidade,
de criar e recriar, de decidir e eleger, e, em última
instância, de participar do processo histórico da so-
ciedade E...]. (1996, p. 67)

A leitura da afirmação freiriana no livro Pedagogia


da autonomia me instigou a buscar, no projeto de inter-
Uma imagem vale mais do que mil palavras. venção para a formação de professores, um caminho no
Confúcio qual se estabelecesse, de forma estética, um diálogo in-
terativo entre palavras e ações, que se complementam e
Se uma imagem vale mais do que mil palavras, o que se integram, por meio da participação do educador numa
não dizer quando a imagem está associada às palavras? ação coletiva.
Luis Cancel A construção de redes favorece a comunicação do pen-
samento do sujeito-educador, a expressão concreta de seus
Devemos recorrer à arte para captar o sentido pensamentos por escrito e a busca da síntese de suas ideias
da forma e da cor. Só assim se descobre a principais pela produção ou eleição de uma palavra-chave
verdadeira essência do homem. ou de uma imagem que a represente. Um exercício que po-
Rudolf Steiner tencializa o raciocínio, a escolha de palavras/imagens sig-
nificativas que apoia a tomada de consciência da prática,
da concepção pedagógita que a orienta e o posicionamen-
A opção de trabalhar a formação dos professores por to diante do grupo.
meio de redes de palavras e de imagens conectadas a pro- O trabalho com redes, por seu aspecto coletivo e socia-
jetos e portfólios partiu da necessidade de ampliar a me- lizador, oportuniza a clareza e a concretização do papel do
todologia utilizada na formação em serviço, no sentido de professor na construção da Pedagogia da Infância, assim
socializar avanços realizados por alguns professores, divul- como propicia o contato com a diversidade de pensamen-
gar conquistas, "provocar" a percepção de outros, e forta- tos e a ampliação de referenciais individuais.
lecer a aprendizagem do grupo como um todo. Segundo Para construir as redes, o sujeito busca, em seu re-
Paulo Freire: pertório pessoal, as palavras e/ou imagens que sintetizam

110 Prática docente Redes formativos: a cultura de grupo 111


seus saberes e se posiciona diante do questionamen- O conceito de rede/mapa conceitual
to que lhe foi feito pelo coordenador -pesquisador-orien-
O termo "rede" (do latim retem) refere-se ao
tador e demais membros do grupo, o que significa uma
possibilidade de novas aprendizagens. O outro, segundo [...] utensílio de pesca, feito de tecidos ou malhas de
variável largura que retém o peixe, ou a todo e qual-
a abordagem de Wallon, traz em suas palavras e ações a
quer objeto que tenha malhas, fios entrelaçados, se-
possibilidade de contato com a diversidade de pontos de
jam de tecidos, sejam de metais; entrelaçamento de
vista, bem como com o inusitado de algumas descober- vasos sanguíneos, de nervos, de músculos, de fibras;
tas, situações desafiadoras de novas aprendizagens para o conjunto de rios de uma região; [e, em especial, ao]
grupo como um todo. grupo de pessoas que executam movimentos coor-
As palavras de Madalena Freire embasam e comple- denados para a obtenção de um mesmo objetivo.
mentam essas ideias, justificando o uso da metodologia das (BUENO, 1965, p. 3.410)
redes em grupo: Em todas as definições é possível destacar caracterís-
[...] enquanto humanos somos incompletude, con- ticas comuns que configuram o conceito como algo que é
vivemos permanentemente com a falta [...] é da coletivo; que forma um conjunto; que produz um entrela-
falta que nasce o desejo... por sermos incomple- çamento de fios inicialmente dispersos, e que são retidos
tos, no convívio permanente com a falta, somos numa malha; a união de tecidos que, reunidos, constituem
sujeitos desejantes... enquanto humanos "somos
uma forma... e todas as variáveis subsidiam a construção do
uma inteireza", e ao mesmo tempo "seres inacaba-
conceito de pertencimento ("parte de"), de objetivo em co-
dos" como nos diz Paulo Freire, somos constituí-
dos de cognição, razão, inteligência, mas também, mum, de relação do todo com as partes e de cultura de gru-
de afetividade, amorosidade [...] só aprendemos e po, metas essenciais à formação docente.
ensinamos por amor ou por ódio, nunca na indife- Mas... de que modalidade de rede eu falo? Entre as
rença, mas construindo vínculos [...] dependemos possibilidades metodológicas de formação em equipe, a op-
do grupo, vivemos em grupo, onde aprendemos, ção que fiz foi por construir redes formativas com palavras
trabalhamos... dependemos sempre do outro, que
e imagens, que concretizam a "lógica do E", isso "e" aquilo,
nos completa, nos amplia, nos esclarece, nos li-
lógica da inclusão, da diversidade, dos diálogos interativos,
mita, nos retrata no que somos, no que nos fal-
ta, porque somos incompletude e unicidade [...]. que enfatizam elos e conexões entre diferentes autores. As
(2008, p. 24-5) redes acrescentam elementos que favorecem novos olha-
res, adicionam propostas diferenciadas às experiências pre-
viamente vivenciadas pelos sujeitos e unem uns aos outros,

112 Prática docente Redes formativos: a cultura de grupo 113


É essa referência coletiva que possibilita aos sujeitos
diferentemente da busca de uma única resposta-padrão,
do grupo transcender saberes-fazeres iniciais; ao serem res-
previamente traçada pela coordenação.
e paldados, vão além em suas indagações, constroem novos
Acredito na potencialidade mediadora de palavras
atribuídos por significados... Por sua vez, ao compartilhar práticas ressig-
imagens para expressar ideias e significados
mundo, de nificadas, ampliam o olhar do grupo como um todo... uma
seus emissores, que desvelam a concepção de
pedagógicas. ciranda interativa que fortalece a Educação Infantil na voz
criança e educação norteadoras de práticas
em um de seus sujeitos, enquanto grupo de profissionais de edu-
Palavras e imagens que se integram e se completam
professores, cação compromissados com a aprendizagem pessoal e, em
diálogo metafórico, que sintetizam saberes dos
consciên- especial, com a das crianças de zero a cinco anos de idade,
desafiados a se expor diante do grupo e a tomar
referendam. explicitando em palavras e imagens o que move a docência.
cia das práticas cotidianas e dos autores que as
sujeito- Como dizia Nietzsche (in HÉBERT-SUFFRIN, 1991,
As palavras desvelam a leitura de mundo do
interpre- p. 89), "como é agradável ouvir palavras e sons! Não se-
-professor e registram percepções, indagações,
documentando rão as palavras e os arco-íris as pontes ilusórias entre as
tações sobre os objetos de conhecimento,
palavras cor- coisas eternamente separadas?".
fazeres e saberes do sujeito e do professor. As
con-
respondem a conhecimentos, faltas, necessidades,
além de
quistas, conflitos, ampliações e muitas emoções,
referendadas Redes de palavras e º agens
traduzirem marcas significadas pelo sujeito e
a partir do grupo. Parti da premissa de que a exploração de palavras e ima-
que ela
Como a palavra toca o sujeito? Qual o sentido gens poderia se transformar em um motor de mudanças e
e das mar-
traduz da leitura de mundo que o sujeito faz de crescimento para o grupo, tanto no que se refere aos co-
sinônimos ou com-
cas que deixa? Vivência e experiência: nhecimentos da cultura quanto à sensibilidade de olhar, e o
fala, voz...
plementos? Palavra, termo, assertiva, afirmação, fortalecimento de vínculos afetivos e relações interpessoais
palavras-
identidade de educador que, ao se expressar por decorrentes do convívio entre os sujeitos: "as palavras somos
grupo, ao
-chave, projeta seus pensamentos no/para o nós", como afirma Gabriel Perissé em sua obra A arte da pa-
para den-
mesmo tempo em que os introjeta, trazendo-os lavra. As palavras, ao serem expressas, criam pontes entre
parceiros
tro de si, apropriando-se da contribuição de seus o que o sujeito pensa e o que concretiza, articulam o pen-
Trocas interati-
e internalizando diferentes pontos de vista. samento entre os sujeitos e criam um contexto que, inicial-
a cultura do
vas que nutrem, ampliam, reforçam e validam mente imaginário e idealizado, pode ser real e é capaz de
criar e refe-
grupo de professores de Educação Infantil, ao provocar mudanças nos saberes pessoais. Considero que o
rendar um repertório em comum.

Redes formativas: a cultura de grupo 115


114 Prática docente
a ampliação ta existencial de cada um", com o olhar sensível, acolhedor,
uso de imagens associado a palavras possibilita
Na sociedade instigante e integrador da interdisciplinaridade, como defi-
de significados e relações em diferentes óticas.
ne Ivan Fazenda: que reúne e dá sentido ao que move o ser
contemporânea, as imagens comunicam ideias, despertam
reflexões. humano... encontro de humanos que compartilham expe-
pensamentos e transformam-se em material para
riências e ressignificam aprendizagens uns com os outros!
O trabalho em rede também é visto como "uma conste-
PALAVRAS EM REDE: A INTENCIONALIDADE DA AÇÃO PEDAGÓGICA lação sistêmica, um espaço temporal da realidade formada
"O QUE NOS MOVE?" 1"O QUE NOS UNE?"
por conexões que se codeterminam" (HOYUELOS, 2006, p.
autoria emoção corpo vínculo
41), como na abordagem italiana dos projetos descrita por
desejos
Alfredo Hoyuelos em sua obra, portanto, complementar à
criança
significados metodologia pesquisada.
escolhas
pesquisa saberes Para Loris Malaguzzi, cujo trabalho Hoyuelos seguiu in
e busca loco, durante muitos anos, em Reggio Emilia para a elabo-
sujeito projeto
aprender teoria e ração de sua tese de doutorado, a escola deve seguir uma
e ensinar prática
relação visão ecológica que

instrumentos lúdico fazeres [...] constrói um contexto estrutural e organizativo


metodológicos grupo entre diversos elementos que situam o ser humano,
acolhendo-o numa rede de relações que supõem um
escuta necessidades rede
trocas campo de possibilidades criativas de expressão e de co-
municações múltiplas [...]. (HOYUELOS, 2006, p. 41)
reconstrução diálogo memória "nichos"
Há uma interdependência dos elementos envolvidos na
construção do conhecimento, o que caracteriza a visão de
rede
A pergunta exlstenclal e o trabalha em formação como um processo sistêmico, globalizados, eco-
"Qual lógico e "simplesmente complexo", difundido por Morin
Mas... "O que me move?", "O que move o outro?",
busco?"... como interdisciplinar,
o sentido da docência na infância?", "O que eu
palavras-cha-
A mobilização do sujeito em busca de [...] o complexo requer um pensamento que capte
inquietação inter- relações, inter-relações e implicações mútuas, os fe-
ve e de imagens que representem uma
significados. nômenos multidimensionais, as realidades que são
na envolve a pesquisa pessoal e a procura de
"pergun- simultaneamente solidárias e conflitivas, E...] que res-
Aponta percursos de formação ao reapresentar a

Redes formativos: a cultura de grupo 117


116 Prática docente
peite a diversidade, ao mesmo tempo que a unidade A escola, além de um espaço de encontros e trocas in-
[...] um pensamento organizador, que conceba a rela- terativas, é também um local de reflexões e aprendizagens
ção recíproca de todas as partes C..1. (2000b, p. 14) compartilhadas, que gera e difunde reconhecimentos forma-
dores e transformadores para os cidadãos que a habitam e,
Dessa forma, o pensamento do educador, pouco a
consequentemente, propicia a consolidação do sentimento
pouco, abstrai-se das impressões iniciais e "dá asas à ima-
de pertencimento à realidade. É fundamental aos professo-
ginação" em busca de respostas às questões internas, ou
res de determinado grupo ter consciência do que se espera,
se move em direção ao que seus parceiros trouxeram
com que propósito, qual a fundamentação de cada uma das
como inusitado e, pela percepção da falta, sente-se pro-
solicitações feitas, os caminhos a serem percorridos, as me-
vocado a conhecer.
tas a serem atingidas, para que possam aderir à proposta pe-
Na rede, a exploração do objeto de conhecimento pos-
dagógica da instituição e da formação em serviço.
sibilita a reestruturação do pensamento do sujeito-apren-
É essencial a clareza, para cada integrante do grupo,
diz que, desejoso de participar e contribuir com relatos de
da sua contribuição, identificação com os objetivos propos-
seus fazeres e saberes, move-se, com autonomia, para supe-
tos à formação e participação nas ações e decisões, cada
rar suas faltas momentâneas, ou se retrai e se isola do gru-
qual na função que exerce; só há adesão quando se percebe
po, numa atitude de silêncio e profunda resistência diante
o sentido da proposta e se sente parte do contexto de ação.
do não saber, postura algumas vezes agressiva, em outras
Quando um argumento de inovação é proposto ao gru-
resignada e indiferente. Nesses casos específicos, cabe ao
po de professores com coerência e sentido, ou se estabelece
coordenador/pesquisador encontrar soluções para mobili-
uma relação entre os fatores já existentes no trabalho reali-
zar o grupo como um todo e cada um de seus participantes.
zado, cria-se um complexo de relações flexíveis, abertas a um
horizonte de variedades enquadradas em um limite, o que fa-
vorece uma disponibilidade interna de adesão às novas pro-
Formação em serviço: vida de grupo
vocações. A metodologia do trabalho em redes mostra-se
A visão de rede segue, também, a abordagem de Mala- adequada aos objetivos e concepções destacados, mapeando
guzzi, descrita por Hoyuelos, pela concepção de que o con- conceitualmente o pensamento e as possibilidades do grupo.
texto de formação em serviço se mescla com a própria visão É essencial que o grupo perceba a sequência da pro-
de escola: um espaço de encontros e trocas interativas, que posta na formação, o fio condutor que orienta o percurso
requer determinados eixos de orientação — um norte para os pedagógico. Caso contrário, a visão sistêmica ficará trun-
sujeitos que a ela pertencem —, assim como a explicitação e a cada, ou pouco explicitada, rompendo a possibilidade de
identificação da cultura vigente no grupo em questão. compreensão e concordância do grupo como um todo, tor-

118 Prática docente Redes formativos: a cultura de grupo 119


nando-se uma imposição ao invés de uma participação es- durecimento de ideias e ações, que requer ajuda momentânea
pontânea. A todo instante, durante todo o processo de de parceiros mais experientes, como o coordenador, os demais
formação de professores, é necessário que se recupere a professores, os teóricos que respaldam saberes pessoais.
trajetória do que foi feito, de que forma e para que fim, cla- Há, também, o aspecto democrático da metodologia
reando a estrutura que conecta os acontecimentos e a inter- das redes, que envolve a negociação de todos os envolvidos
dependência entre sujeitos e conteúdos envolvidos. a fim de formar um consenso para a montagem do painel
O acolhimento a todos os integrantes e a parceria na su- que represente o grupo: argumentar, elaborar ideias, prio-
peração do estranhamento inicial diante do desconhecido é rizar, confrontar... tempo de espera, de tomar a iniciativa,
uma atitude intencional de formação, ante a certeza de que de ceder... de ser protagonista da ação, liderar as escolhas
requer tempo tornar familiar a metodologia adotada, e in- do grupo e de concordar com a vontade alheia... vivenciar,
cluir todos os participantes, antigos e novos membros. participar com respeito, cooperação e ética, sentimentos
O trabalho com redes viabiliza a possibilidade de ex- decorrentes dos conflitos vividos... vida de grupo em to-
pressão do sujeito -professor, o confronto de diferentes pon- das as suas dimensões, exercício de cidadania, cooperação
tos de vista, a comunicação entre os integrantes do grupo, e solidariedade, que considera a inteireza do ser humano:

o posicionamento diante das questões colocadas, o com- sujeito que é afeto, cognição e emoção, que se mesclam na
prometimento com a aprendizagem pessoal e com a dos tessitura de novos conhecimentos, como dizia Paulo Freire.
parceiros, a união de braços, vozes e repertório coletivo:
histórias e experiências da vida de grupo... "bocas que mur-
muram... palavras... enquanto se procuram..." e formam Redes/mapa conceituai como metodologia
uma teia formativa e uma cultura coletiva de profissionali- As redes remetem a imagens formadas por palavras,
zação docente. ou por figuras, desenhos, abras de arte que, juntas, confi-
No grupo, a escuta do outro agrega novas palavras aos guram uma mensagem a ser compreendida, interpretada,
repertórios de cada um, que ficam "armazenadas", à espera "lida" nas entrelinhas pelos membros do grupo, incluindo
de significação, como se estivessem em um espaço embrio- a coordenação. A percepção do que foi dito, e do que foi
nário, latente, um `vir a ser" dos projetos. representado, aponta para valiosas fontes de informação
Como vimos no capítulo "Redes formativas: a cultura de interesses, necessidades e faltas do grupo: caminhos de
de grupo", Vygotsky nomeava este espaço intermediário en- (trans)formação da prática docente, desde que sejam recu-
tre o que o sujeito sabe (conhecimento na sua zona real) e o perados em planejamentos posteriores com o olhar sensí-
que ele virá a se apropriar (zona potencial), como zona vel, aberto e flexível do coordenador.
de desenvolvimento proximal: uma área de gestação e ama-

120 Prática docente t Redes formativas: a cultura de grupo 121


As imagens que se formam nas redes remetem a dese- \p
VÍNCULO
OB
\VERS PpE
nhos muito próximos a mandalas, cirandas, ou àquilo que
o grupo queira dizer por um caminho metafórico, no senti-
do de que são símbolos convergentes, que se dirigem a um
"centro", um eixo de referência no espaço disponível, e que
dão a ideia de uma releitura do objeto em questão, uma
vlsa3N3 3ptlZIWd
manifestação simbólica da psique humana. 0~
OB~iS

01N3
rA70eN3z 0134V

A palavra "mandala" refere-se a uma imagem organizada ao re-


dor de um ponto central, que restabelece e conserva a ordem É interessante notar que palavras inicialmente dis-
psíquica do ser humano, no sentido de convergiro olhare a lem- persas, sem um pré-projeto de organização, vão, lenta-
brança interna para um ponto em comum, algo que reúne, ree-
mente, agrupando-se e constituindo-se em uma forma,
quilibra, organiza emoções e pensamentos de seus autores.
uma narrativa, construindo um circuito/percurso de sig-
"Mandala" é uma palavra sânscrita (antigo idioma india-
no), que significa círculo, circuito, uma representação geo-
nificados variados, que ressignificam seu sentido original;
métrica da dinâmica relação entre o homem e o cosmo. no agrupamento da palavra de cada um dos participan-
Em geral, designa toda figura organizada ao redor de um tes configura-se um novo sentido coletivo para a temáti-
centro, sejam quadrados, triângulos ou outros. Não que-
ca em questão.
ríamos traduzir o vocábulo "mandala" porque seu alcance
transcende a noção de forma circular. De fato, toda man- Como dizia o poeta Mario Quintana (2007, p. 115),
dala é a exposição plástica e visual do retorno à unidade "o verdadeiro fruto da árvore do conhecimento é a sim-
peta delimitação de um espaço sagrado e atualização de
um tempo divino. É um símbolo universal. Em todas as cul-
plicidade", a que Morin se refere como "simplesmente
turas do mundo as mandalas guiam pesquisas e criações, complexo". Portanto, requér um olhar sensível e reflexi-
tanto do sábio como do artista. (PRÉ, 2007, p. 45) vo sobre linhas e entrelinhas do "texto" elaborado pelo
grupo, não só sobre o processo de elaboração, gestos, pa-
Em uma tarefa individual, desenvolvida com o grupo de lavras, olhares, discussões, mas também sobre o produto
formação de professores, uma professora desenvolveu uma final: uma produção coletiva, fruto da relação entre sujei-
rede que buscou recompor a discussão a partir da imagem de tos de determinado contexto com um objetivo (consigna,
uma mandala: uma integração de palavras-síntese numa ci- proposta) em comum. A leitura atenta do coordenador do
randa representativa do movimento pedagógico... que flui, grupo pode subsidiar a construção da hipótese: "O que
que gira, que cria e se expande... sujeito que aprende enquan- move o educador?".
to ensina, como nas palavras de Paulo Freire.
Redes formativos: a cultura de grupo 123
122 Prática docente
vorecem o ato de criação para transformar as matrizes dos
educadores e alimentar saberes e fazeres pedagógicos: ações
intencionais que favoreçam as aprendizagens das crianças...
Outra consideração sobre o trabalho com redes é o valor
atribuído por Winnicott ao objeto transicional: algo que in- O ato de criação [...] é o processo de dar forma e
vida aos nossos desejos [...] assim, é necessário estar
termedeia uma relação e possibilita a ligação entre cognição
concentrado — com corpo e alma presentes — para
e afetividade do sujeito, portanto, favorável à construção de desenvolver o esforço, na educação, do desejo que
novos conhecimentos. traz o germe da paixão... paixão que precisa ser edu-
Uma situação nova e desconhecida, o desafio de se co- cada [...] (FREIRE, 2008, p. 63)
locar diante do outro, o constrangimento do "não saber"
Segundo Fayga Ostrower (1987), criar é um proces-
determinadas solicitações feitas pelo coordenador podem
so existencial. Não lida apenas com pensamentos, nem so-
suscitar medos, ansiedades e insegurança nos participantes
mente com emoções, mas se origina nas profundezas do
do grupo. Essas emoções precisam ser consideradas como
nosso ser, onde a emoção permeia os pensamentos ao mes-
algo esperado nesta situação e devem, na medida do possí-
mo tempo em que a inteligência estrutura, organiza as
vel, ser trabalhadas.
emoções. A ação criadora dá forma, torna inteligível, com-
Com esse olhar, os objetos transicionais cumprem o pa-
preensível o mundo das emoções.
pel de mediar a ação do sujeito, como se fossem um "ante-
Ao pesquisar na ação, ao fazer uma "pesquisa-ação"
paro", uma "defesa", uma "proteção" à exposição pública
da própria ação, movimento que, metaforicamente, pode
do sujeito-professor. Esses objetos são: lápis, papéis dos
ser associado a "pôr as mãos na massa" para apropriar-se
mais variados tamanhos, barbantes, fitas coloridas, cane-
do "fazer-saber pedagógico", o sujeito-autor cria, faz arte
tas hidrográficas de cores variadas, fita-crepe, cola, cartões
com corpo e alma, "valoriza a estética em sua prática edu-
recortados em papel-cartão colorido, imagens recortadas e
cativa ao lidar com o imaginário e o inusitado cotidiano":
xerocadas, painéis feitos com papel Kraft, pincéis, tintas co-
situações potencialmente (trans)formadoras. "A ação cria-
loridas, e outros mais...
dora envolve o estruturar, dar forma significativa ao conhe-
A exploração/manipulação desses materiais, que inter-
cimento", pois "toda ação criadora consiste em transpor
medeiam a expressão dos saberes dos professores, cria um
certas possibilidades latentes para o campo do possível, do
clima favorável à busca, à imaginação e um ambiente de
real" (FREIRE, 2008, p. 64).
fluência de ideias, que fortalece não somente os vínculos,
Portanto, ao construir a rede, o sujeito estabelece re-
mas também a cultura do grupo. O toque no objeto, a sensa-
lações entre o real e o ideal, aprende na ação, com a ação,
ção perceptiva que os sentidos proporcionam ao sujeito, fa-

124 Prático docente Redes formativos: a cultura de grupo 125


e arquiteta uma nova visão pedagógica ao criar conexões formação, socialização de ideias, espaços de tomada de
que podem ser cada vez mais complexas sobre o objeto consciência do que se sabe, uma busca de síntese de pala-
em estudo. vras que condensam conteúdos referentes ao que move o
sujeito-educador em pleno exercício de seus fazeres e sa-
beres da docência.
Estauturc çãar da rede As redes caracterizam-se como um espaço democrático
de documentação e reflexão pedagógica e da construção de
Na elaboração da rede, o tema é destacado por escrito
novos conhecimentos, a fim de qualificar a intervenção
no centro do papel. Acima dele, os objetivos centrais da fai-
do professor no cotidiano da sala de aula.
xa etária ganham evidência, como um rumo a que se deve
O registro em redes formativas transforma a história do
olhar o tempo todo. Ao seu redor, as áreas do planejamen-
grupo em memória individual e coletiva, marca a singularida-
to são distribuídas e ganham os seus espaços à medida que
de de palavras e imagens selecionadas pelos sujeitos que fa-
o trabalho é desenvolvido no grupo, gerando novas ramifi-
zem parte dessa história, e potencializa a atribuição de novos
cações. O professor atento percebe, nesse mapa/rede, suas
sentidos à prática pedagógica, ao se refletir sobre a própria
faltas e preferências junto ao grupo, obtendo material para
ação no dia a dia da regência docente; constitui a identidade
planejar os passos seguintes, da mesma forma que o utiliza
dos educadores da infância... rede que forma, transforma e re-
para avaliar o trabalho realizado.
cria a autoria da docência... ensina e aprende com autonomia
As redes, assim como os projetos, são construções diá-
e inteireza do ser humano, como dizia Paulo Freire.
rias, contínuas, analíticas e sintéticas, registros do educa- -
dor de uma história de grupo que é feita passo a passo, com
múltiplas abrangências de socialização e documentação, di-
As redes e a arte
ferentes testemunhos da memória.
A organização das redes favorece o diálogo entre dife- Segundo Madalena Freire,
rentes áreas do conhecimento, de tal forma que se mesclam [...] no processo de educar, o educador faz arte,
e se complementam em um olhar interdisciplinar. ciência e política. Faz política, quando alicerça seu
Se interpretar é compreender, desvelar e se pôr no fazer pedagógico a favor ou contra uma classe so-
lugar do outro para ouvir o não dito, ler o que está con- cial determinada. Faz ciência, quando estrutura sua
tido em gestos, "meias palavras" e perguntas que não fo- ação pedagógica, apoiado no método de investiga-
ção científica. Faz arte, porque se defronta com seu
ram feitas, as redes, tanto em sua vertente coletiva quanto
processo de criação, porque valoriza a estética na
na individual, configuram-se como caminhos genuínos de
sua prática educativa ao lidar com o imaginário e

126 Prática docente Redes formativos: a cultura de grupo 127


o inusitado cotidianamente. A ação criadora envol- jetividade e subjetividade do sujeito-professor e do grupo
ve o estruturar, dar forma significativa ao conhe- como um todo, pois as imagens dos painéis/mapas cons-
cimento. Toda ação criadora consiste em transpor tituem uma possibilidade de "leitura" singular: metáforas
certas possibilidades latentes para o campo do pos- da prática pedagógica.
sível, do real E...]. (2008, p. 64-5)

Pensando na forma de articular as ações políticas, cien-


tíficas e estéticas, que caracterizam o papel do educador Redes individuais e redes coletivas
ao ensinar e aprender com o próprio ensinar, a construção Embasada nessa concepção, a metodologia de traba-
de painéis coletivos mostrou-se desafiadora e adequada aos lho com redes desenvolveu-se em duas direções, caracteri-
objetivos propostos à formação, em especial, por explorar zando-se numa dupla tipologia: as redes individuais, vistas
um "fazer" em grupo: algo que articula os sujeitos partici- como um "mapa conceituai" do projeto de cada profes-
pantes em torno de um objetivo em comum, proposto pela sor, e as redes coletivas, espaços estéticos de socialização e
coordenação, com uma finalidade específica. aprendizagem de grupo.
Lembrando Morin (2000, p. 103), "o papel da educação
é de nos ensinar a enfrentar a incerteza da vida... é o de ins-
truir o espírito a viver e a enfrentar as dificuldades do mun- As redes individuais
do"; portanto, a construção das redes, individuais e coletivas,
pode ser uma possibilidade para o professor configurar alter- As redes individuais abrangem a dimensão referencial
nativas significativas às questões pedagógicas cotidianas. e organizacional para o educador, no sentido de que os pro-

A construção de redes aponta caminhos e soluções fa- jetos possam garantir a integração dos diferentes conteúdos
cilitadoras para os encaminhamentos dos projetos, subsi- das áreas do conhecimento e âmbitos de experiências pro-
diando intervenções criativas dos professores. postos no planejamento institucional para cada faixa etária.
As redes, vistas como objetos transicionais na concep- Se pensarmos no tema do projeto — considerado um
ção winnicottiana anteriormente citada, apontam para a to- elemento aglutinador de conteúdos e atividades, um eixo
mada de consciência do percurso formativo do grupo de de integração de objetivos a serem atingidos —veremos que
crianças, tornando-se uma ferramenta auxiliar de impor- ele possibilita idas e vindas entre os diversos conteúdos a
tância considerável na qualificação da docência. serem pesquisados, a interligação de possibilidades des-
Aliada ao planejamento, à observação, à avaliação e cobertas pelo educador à medida que caminha com o seu

à reflexão, essa forma diferenciada de registro abre uma grupo, mas requer, para a organização do percurso, a cons-
outra dimensão à ação dos docentes: a conexão entre ob- trução de uma rede, como um mapa conceitual que guia o

Redes formativas: a cultura de grupo 129


128 Prática docente
caminho transcorrido e configura o percurso realizado na de mapear sua prática cotidiana. Em especial, ele se depa-
construção de novos conhecimentos. ra com o desafio de articular pensamento à ação, fazeres e
As redes individuais transformam-se em planejamento saberes da prática pedagógica voltados para a realidade do
prévio e documentação dos projetos, registros que narram seu grupo.
ao professor e aos demais membros do grupo, deforma di- A rede apresentada a seguir foi elaborada no decorrer
ferenciada, a história vivida pelo grupo: sintetizam em pa- de um ano, e ilustra o projeto desenvolvido com um grupo
lavras-chave um processo de construção de conhecimento de 15 crianças de um a dois anos de idade, descrito no ca-
que, visualmente, informa e convida à participação. pítulo "Redes formativas: a cultura de grupo". O foco foi a
Na dimensão individual, a intenção é que cada profes- construção de conhecimentos por meio da exploração dos
sor registre seu planejamento, para que tenha em mãos os sentidos e das percepções corporais. O tema do projeto era
conteúdos conceituais explorados e a abrangência dos âm- o fundo do mar, que foi denominado "Mar de sentidos".
bitos de experiências ou das áreas envolvidas nas diferentes
atividades de seus projetos, de tal forma que todas sejam atividades...
brincadeiras 5
atividades coletivas
~
contempladas e conectadas ao redor do tema proposto. O corporais diversas
P
tema, como fio condutor e elemento aglutinador de conteú- I'. higiene relacionamento i
dos específicos das áreas prescritas no Projeto Pedagógico A
institucional, para cada faixa etária, referenda o percurso
do projeto de cada grupo, garantindo sua função como o
mundo físico - mundo social 4

eixo de integração da proposta de trabalho.


A construção da rede de cada professor possibilita su- desenhos musicas
0
cessivas idas e vindas ao "mapa" do trabalho, um planeja- A
mento vivo do projeto, referência do que foi e do que será rodas de histórias'~.
conversas brinquedos
feito, uma carta de intenções da temática explorada, que,
ao ser documentada, se torna um memorial da trajetória
realizada. Para elaborá-la, o professor recorre ao seu pla- A rede seguinte ilustra um projeto realizado com 18
nejamento e busca uma organização criativa dos conteúdos crianças de três anos de idade, intitulado "Bola mágica" — ci-
tado na página 82 —, cujo foco era a exploração de formas
em conexão com o tema do projeto, de acordo com o inte-
resse, as necessidades e as faltas de seu grupo. circulares: dos movimentos humanos, de objetos da nature-
za e da cultura.
Ao dispor conceitos centrais de investigação, o profes-
sor constitui um espaço de criação e uma forma particular

130 Prática docente Redes formativas: a cultura de grupo 131


As redes €defi

A proposta de trabalho coletivo, desenvolvido com os


professores do projeto de intervenção, baseou-se na preocupa-
• roda • exploração do espaço
• bola • cores ção de compartilhar vivências e conhecimentos no/com/para
• rolamento • jogas livres
• massagem • tatu-bola • tamanhos o grupo. À medida que os avanços individuais dos professo-
• relaxamento •teRa • posições
• tempo • classificação: res foram sendo notados, a opção pela forma de elaboração
• plantação; •culinária medidas
BOLA
semente
MAGICA
de painéis coletivos veio ao encontro da preocupação de que
• expenenazs
construções individuais fossem socializadas, a fim de que to-
•• livros dos participassem do pensamento de cada um: cultura de gru-
• parlendas
• alimentaçaoll. •masonha • fotos po, rede de conhecimentos, teia de saberes... aprendizagens
Família • Frisas
• vestis rio
~~ • papel com cola
• terra • vídeos e slides ressignificadas a partir da contribuição de uns para os outros.
• histórias
• pessoal
• argila
• conversas iaForm
Outra consideração favorável ao trabalho em/com re-
• pintura
• do ambiente'. •dramatização
• dentista
• colagem
•btmadelm
des é a possibilidade de conexão com os bastidores do ser
i•alnnentaçao • Finge humano, observar as pessoas, como agem, como tecem
saudavel •::barbante
suas escolhas, o jeito como se organizam, argumentam, es-
cutam, se colocam diante do outro, o silêncio momentâneo,
GUSTATIVA o olhar distante e reflexivo, a feição fechada da desconfian-
• alimentos
ORIENTAÇAO PERCEPÇOES ça resistente, a liderança emergente e validada pelo grupo,
ESPACIAL..:: TÁTIL
as perguntas espontâneas que refletem curiosidades...
• alimentos
• partes do corpo
• localização • espaço • consistência A observação de falas, silêncios, e atitudes do grupo
• temperatura
• nomeação • posições
• imitação • trem
• peso oferecem ao coordenador pistas importantes de como os
• textura
• dramatização • cantiga sujeitos-educadores pensam, agem, projetam fazeres-sa-
• instrumentos. VISUAL
COORDENAÇÃO
• roda
• cores
beres pessoais e pedagógicos no exercício do oficio de ser
• tamanho
MOTORA
• tapete mágico
"professor da infância".
• mágica
A "re-união" de palavras, que estão por toda parte, vis-
VISO -MOTORA GERAL MANUAL OLFATIVA
lumbra uma postura docente que, devidamente identificada
• quebra-cabeça • educação física • massinha, argila • alimentos
• material, prateleira • percurso, jogos • colagem, desenho pelo coordenador do grupo, oferece um caminho significa-
• labirinto • andar, correr • manuseio AUDITIVA
• trabalho pessoal • pular, rastejar • terra, frutas, sementes
• música
tivo para encaminhamentos, intervenções e propostas, de
• engatinhar • bola
• brincadeiras
• sons
fato, "transformadoras": o embrião de mudanças.

Prática docente Redes formativas: a cultura de grupo 133


132
O registro, a reflexão, a avaliação diagnóstica de cada • Arte e/é linguagem: um diálogo contextualizado.
uma delas e sua conexão com o contexto de trabalho são • Arte é a experiência do sujeito sobre os objetos a par-
"pistas" para a escrita do planejamento da formação: as vo- tir das sensações/percepções do próprio corpo.
zes que se unem e se sentem pertencentes ao projeto peda-
gógico como um todo. • Arte é a experiência de vivenciar tudo forma para
O ponto de partida foi a leitura e discussão, em uma reu- se expressar e comunicar pensamentos.
nião de professores, sobre "O que é criar?", "O que caracteriza • O coordenador do grupo deve observar, registrar, pla-
o processo de criação?", "Qual o percurso de criação indivi- nejar o ambiente, avaliar as etapas do processo para
dual?". Como texto de apoio, trabalhei Criatividade e processos preparar o espaço de acordo com interesses e necessi-
de criação, de Fayga Ostrower, e um texto que escrevi sobre a dades do grupo.
palestra de Anna Marie Holm, cujo tema era Arte para bebês
(Baby-Art), quando esteve no Brasil em 2007 para lançar, no • Tempo e Espaço são elementos constituintes da cons-
Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), seu livro homô- trução do conhecimento, que marcam a identidade
nimo. O objetivo era explorar características genuínas do pro- do grupo.
cesso de criação, com as variáveis da especificidade de cada • A experiência artística para a criança é PERCEBER e
uma das faixas etárias (adultos e crianças).
ESCOLHER os caminhos para realizar uma atividade;
Algumas ideias centrais, que foram norteadoras do
para o adulto é organizar o ambiente, escolher o local
projeto de formação, estão sintetizadas a seguir: e observar o que a criança/bebê faz... ser capaz de se-
• Arte é um encontro: um momento mágico em que o guir o seu processo de criação!
sujeito aprende com o outro; um encontro é o equilí-
Após muita discussão em tomo das ideias centrais dos
brio entre Arte e Estética! textos e suas possíveis articulações com a prática pedagógi-
Há duas formas de pensar, que podem ser excludentes ca dos professores, pedi às professoras que começassem a
ou interdependentes: no objeto em si ou no contexto — vivenciar o processo teórico por meio da manipulação de di-
tudo o que está ao redor do objeto, contextualizando-o. ferentes materiais dispostos no chão: canetas coloridas para
desenhar em acetato, tinta guache e pincéis variados, argila,
Eu + Você + o Entorno: no relacionamento interati-
painéis de papel Kraft dispostos no chão e na parede...
vo, o processo artístico se constitui ♦ surgem formas,
Explorar sensorialmente o material, além de descontrair
cores, linhas, esboços; o foco não é o momento, mas o
as professoras, "convidou-as" a, literalmente, pôr "as mãos
caminhar do processo de exploração do objeto.
na massa" e vivenciar o processo de criação da mesma forma

134 Prática docente Redes formativas: a cultura de grupo 135


que as crianças: através dos sentidos e do próprio corpo. A LIBERDADE DESCOBERTAS VINCULO
N
arte cumpriu o papel de organizar e comunicar ideias, abrir • Educar para rotina, ao contrário
do que possa crer, é uma forma
O
E
Oferecer as crianças pra-.
espaço para a expressão de sentimentos e diferentes pontos de gear liberdade
• Reimplantara noção de rot
fisslancis qualificados ca'.
E
pazes:de acompanhá-los:'.
de vista: criação de repertório comum ao grupo. na como ponto de apoio indis-
Reconhecimento
na descoberta de sie do N
D
pensável. Pode ser visto hoje mundopela brincadeira,
Aos poucos, na reunião seguinte, as imagens foram sen- ate como um ato revolucionário, E
N
do ampliadas com palavras, estabelecendo-se uma relação de SEGURANÇA NDISPENSÁVEL INDIVIDUALIDADE C

proximidade de sentidos entre os diferentes símbolos e seus B


C
O
A

significados pessoais e culturais, ampliando o repertório das R T

educadoras. Nesse momento, as professoras foram convida- N


C
D
1
das a escrever as palavras-chave sobre o trabalho realizado A
R
A
N
e desafiadas a completá-las com alguma caracterização, ou O

COMPARTILHAR
explicação do conceito, construindo um mapa conceituai so-
bre os saberes do grupo explicitados a partir da ação estética:
Solicitei, em seguida, que registrassem em seus cader-
INTENÇÃO:.. nos a rede elaborada pelo grupo, que pesquisassem os ter-
PERCEBER COMUNICAÇÃO mos conceituais utilizados e escrevessem em tiras de papel
• Distinta da sensação •Trarramissão e recepção de mensa- uma reflexão sobre alguns deles.
• Processo construtivo gem entre emissor e receptor.
•Organizando e captando Transmiasão de significação em A montagem da rede do grupo seguiu um percurso mui-
conjuntos ou produzis vários níveis
do buscando sentidos. to interessante: o encontro foi marcado por uma intensa
REPRESENTAÇAO
discussão, argumentação embasada em pesquisas pessoais,
SOBREVIVER ^Artificia para acessarcomeúdo con-
to de pensamento, em busca de palavras que articulassem pontos de vista di-
*Signos revelam ou representam cai
CONHECIMENTO'.
sasser as caisas:da fato versificados e fundamentassem um consenso do grupo, por
•Causar a conhecimento ao serapre
sentado, meio de muita negociação.
er a begera o a reprodução de'.
CULTURA uma imagem. O painel construído pelo grupo ficou exposto na sala dos
EXPRESSÃO
professores durante todo o semestre para que a reflexão se
IMAGEM
• Figura ou representação
• Relação de tensão (mtsno(extemo) aprofundasse nos encontros posteriores. O envolvimento com
• Imitação de realidade,
• G imaginado
a proposta foi intenso e urna das professoras trouxe uma ima-
INTERPRÉTAÇAO

Sombrai • Processo criatao. gem para complementar a rede de palavras: a escultura'víncu-


• A mensagem sese co rpleta om a
interpretação. los afetivos" (autor desconhecido) foi posta ao lado do painel
Oesenvotvimento E re ação efl
Hva da compreensão com os bordados sobre "projetos" e da rede de palavras... um

136 Prática docente Redes formativas: a cultura de grupo 137


convite a "dialoga?', refletir e relacionar... formas de pensar e A interatividade com os trabalhos expostos fez grande
agir em interação uns com os outros: ciranda formativa! diferença na produção final.
Todas as intervenções planejadas para o processo de Gerou a criação de um vínculo entre escola e família,
formação dos professores articularam os movimentos indi- entre os professores da escola e o próprio grupo, além
viduais com os coletivos, conforme os objetivos propostos. de incluir a comunidade no processo educativo.
A cada nova tarefa para trabalho em rede havia a demanda
de uma reflexão individual, para que cada sujeito-profes- Oportunidade de trocas com os colegas.
sor se apropriasse dos conteúdos trabalhados a seu modo, Prazer e alegria.
no seu ritmo e de acordo com as suas estruturas internas e
possibilidades de significação dos conteúdos abordados em • Sucesso.
atividades diferenciadas com as crianças. • Fortalecimento da coletividade: união.
No fim da discussão sobre o processo de criação, soli-
citei uma avaliação verbal do trabalho realizado, com o le- • Comprometimento e consistência.
vantamento de ganhos e aprendizagens, que se encontram
• Identificação das crianças com o trabalho.
a seguir, na voz das professoras participantes:
As produções artísticas, aliadas às palavras-chave es-
• O trabalho sobre "processo de criação" e dos projetos colhidas pelas professoras, serviram como elemento gera-
realizados em cada grupo.
dor de reflexões posteriores. Ambas se mostraram eficazes
• Trabalho em equipe: trocas e parcerias. e produtivas como instrumentos de expressão e comunica-
ção, não só para as professoras, mas também para as crian-
Grande motivação de todos. ças, que "falam" por meio de brincadeiras, teatro, pinturas,
O vínculo construído propiciou um ambiente acolhe- instalações, jogo simbólic6, música, artes visuais e pala-
dor, agradável e aconchegante, que faz toda a diferen- vras... símbolos da leitura de mundo feitos pelos sujeitos.
ça para trabalhar. Em um mundo imagético, que caracteriza a contempo-
raneidade, trabalhar imagens e palavras, em síntese, possi-
• O trabalho incentivou a ação com as crianças, que se in- bilita a integração da ação, da emoção e do pensamento dos
teressaram pelas propostas e gerou resultados positivos.
seus protagonistas, adultos e crianças, transformando-se em
Grande disponibilidade dos pais, que se contagiaram aprendizagens significativas: "experiências" e memórias vi-
com o interesse das crianças pelo trabalho com Arte. venciadas em toda a dimensão da inteireza humana.

138 Prática docente Redes formativos: a cultura de grupo 139


O esquema a seguir apresenta uma síntese dos eixos
PROJETOS, PORTFOLIOS essenciais à compreensão da ação pedagógica intencional:
E REDES NA FORMAÇÃO
PARA QUÊ? POR. QUÊ?
DOS PROFESSORES (finalidade) (justificativa)

ONDE? O QUÊ?
(espaços) (conteúdos)
QNALIDADE
AÇÃO
COMO? QUANDO?
(dinâmica) (campo)
Sabemos também que mais importante
do que formar é formar-se; que todo o COM QUÊ? COM QUEM?

conhecimento é autoconhecimento e que (materiais) (sujeitos envolvidos)

toda a formação é autoformação. Por isso,


a prática pedagógica inclui o indivíduo, A opção metodológica aponta para o valor do rigor
com suas singularidades e afetos. disciplinado da ação docente e o compromisso ético e es-
tético com a aprendizagem pessoal e das crianças: "apren-
António Nóvoa
der a aprender a ensinar" na Educação Infantil. A escola,
vista como espaço de encontros e trocas cognitivas e afe-
tivas, pode possibilitar o reconhecimento de seus sujeitos
O trabalho com redes, projetos é registros em portfólios
e a participação ativa do grupo na construção do conhe-
reapresentou a importância da metodologia na formação
cimento de cada um: marcas de identidade e aprendiza-
dos professores que, ao se apropriarem desses instrumentos
gens significativas.
e/ou dessas ferramentas, qualificaram-se profissionalmen-
te e fortaleceram o grupo como um todo.
O avanço qualitativo da formação se dá, portanto, em
um movimento de conexão de saberes e fazeres pedagógi-
O que move o sujeito-educador?
cos, por meio da relação que o sujeito estabelece entre a A metodologia trabalhada apontou para a articulação
compreensão do que faz, a verbalização justificada dos sa- entre o que o professor faz, o que pensa fazer, o que sabe,
beres e a vivência significativa de práticas que tenham a o que pensa saber, o que gostaria de saber e o que falta...
intenção explícita e consciente de provocar novas aprendi- "forças motrizes" da ação docente. Há uma interdepen-
zagens nas crianças. dência entre esses aspectos na construção da ação docente,

140 Prática docente Projetos, portfólios e redes na formação dos professores 141
que são seus referenciais e que, se forem devidamente 5. O uso dos instrumentos metodológicos: observação,
problematizados pelo coordenador e pelos demais mem- registro, planejamento, avaliação e reflexão.
bros do grupo, podem ser altamente transformadores da
6. O questionamento pessoal e do outro como elemento
prática pedagógica.
de transformação — relação teoria prática: ação refle-
O sujeito-educador, visto na integralidade do humano,
xão gift ação intencional (práxis)
move-se baseado na forma como pensa e concebe o mundo
que o cerca, pautado em emoções, percepções corporais e 7. A visão dialética e sistêmica da relação pedagógica: a
sensoriais, que referendam ações práticas, fazeres e saberes lógica da inclusão (isto "E" aquilo).
da docência. As matrizes individuais, os "nichos" de identi-
8. O trabalho com projetos: a construção do conceito e
dade de cada um, como nas palavras de Furlanetto (2003),
da postura metodológica.
ao encontrarem "ecos" na cultura do grupo de trabalho,
referendam a ação coletiva e individual, o sentido de "ser 9. Os portfólios como fonte de documentação, memória,
professor" da infância, com todo o encantamento do "bri- reflexão, registro, coautoria e coprodução do grupo, além
lho nos olhos" da constância dos "porquês" da criança na de matéria-prima para a formação em serviço.
Educação Infantil.
10. As redes como espaço coletivo de síntese, registro e
O produto/resultado da reflexão sobre o processo de
socialização de saberes.
formação é a síntese abaixo, que elenca fazeres saberes
essenciais à docência, que constituem o "currículo em ação" 11. O papel formador da Arte no conhecimento de si, do
para a (trans)formação de professores de Educação Infantil: outro e da cultura.

1. O trabalho coletivo: a construção do grupo, o fortale- 12. A interdependência entre fazeres +4 saberes: a cons-
cimento do sentimento de pertencimento ("pertença") e trução do currículo em ação.
dos vínculos afetivos e cognitivos.

2. A autoria e a autonomia do professor como elementos


de transformação da prática pedagógica.
Reflexões finais
Cada um de nós, professores, colabora com um
3. A socialização das práticas pedagógicas na "voz" do
pequeno espaço, uma pedra, na construção dinâmica
autor: reconhecimento e validação do trabalho. do "mosaico" sensorial-intelectual-emocional de
cada aluno. Ele vai organizando continuamente
4. As trocas interativas como fortalecimento de vínculos
seu quadro referencial de valores, ideias e atitudes
do grupo e ampliação de repertórios individuais.

142 Prática docente Projetos, portfólios e redes no formação dos professores 143
a partir de alguns eixos fundamentais comuns à riências realizadas, fortalecer a cultura de grupo "apren-
liberdade, à cooperação, à integração pessoal. dente/ensinante" e de uma rede de parcerias de trabalho
José Manuel Moran foram algumas das conquistas desta experiência para todos
os sujeitos que dela participaram, direta ou indiretamente.
Quem conta um conto, ou registra uma experiência, Ainteração das singularidades das vozes dos educa-
constrói um ponto de partida para a documentação de outras dores viabilizou a consolidação de uma cultura de coleti-
histórias pedagógicas pessoais e para seu grupo de trabalho. vidade, na qual o diálogo estabelecido deu visibilidade aos
A relevância da qualificação profissional de docentes da indivíduos em suas diferenças, em sintonia com a proposta
primeira infância, considerando pressupostos teóricos da fi- metodológica do grupo de Educação Infantil, no qual a di-
losofia do Piaget e a premissa central de Wallon sobre a versidade é um valor promotor de aprendizagens.
importância do outro na constituição do sujeito, foi com- A metodologia utilizada no processo de formação de
provada pelos relatos de experiências desenvolvidas ao lon- educadores e das crianças — o trabalho com projetos e os re-
go de anos com professores em serviço. gistros em portfólios e redes — que reapresentam palavras-
Compreender como a criança aprende, vivenciar ex- -chave e imagens significativas para o professor, configuram
periências relacionadas às múltiplas linguagens expres- uma possibilidade eficaz à construção de um currículo em
sivas e ao uso de instrumentos metodológicos, definir ação para a formação de professores em serviço, pautada na
possibilidades de metodologias que contemplassem os in- ação/reflexão/uma nova ação intencionalmente planejada.
teresses da faixa etária e, a meu ver, o maior de todos, À medida que a proposta vai sendo apropriada pelo gru-
fortalecer uma cultura coletiva, que consolidasse a impor- po de professores, o trabalho com projetos e registros em re-
tância de cada um no grupo, a partir de um referencial em des e portfólios vai ampliando o repertório de atuação dos
comum, traçando referenciais de identidade da Educação docentes, despertando um interesse cada vez maior nas crian-
Infantil/Primeira Infância. ças pelas propostas de trabalho e envolvendo todos os parti-
A formação dos educadores da infância, vista como um cipantes: professores, coordenação, crianças e suas famí ias...
espaço de trocas entre sujeitos que se mobilizam para arti- um currículo vivo, capaz de "fazer brilhar" os olhos de seus au-
cular objetivos propostos no projeto pedagógico institucio- tores diante da criação de seus projetos pessoais e de trabalho:
nal, com os desejos e as faltas das crianças é o motor desta "feito por... NÓS", superando "nós"/conflitos inerentes à cons-
formação. Formar(se), transformar(se), ampliar repertó- trução do conhecimento e à vida em grupo.
rios de atuação, socializar descobertas pessoais, ter contato A metodologia de projetos, registros em redes e port-
com a prática dos profissionais parceiros, registrar expe- fólios propicia a apropriação de fazeres e saberes das
práticas pedagógicas dos professores que, ao se conscien-

144 Prática docente Projetos, portfólios e redes na formação dos professores 145
tizarem de seus atos, de suas crenças e de seus valores têm ao mesmo tempo em que consolida a rede de educado-
a clareza do que mobiliza as escolhas feitas na organiza- res da infância.
ção do seu cotidiano. A intencionalidade da ação docen- A construção de novos conhecimentos se dá no grupo,
te fortalece a postura do educador diante dos princípios com o grupo, pelo grupo, para o grupo e, principalmente,
da docência, ampliando a metodologia para uma postura para o próprio sujeito-educador, o que comprova a máxima
profissional do grupo. walloniana de que o ser humano é, geneticamente, social e
Mas o que me move? O que move os demais educa- constitui-se a partir do outro, em sucessivas trocas intera-
dores? A pergunta central aponta para a importância da tivas. Interagir, trocar, expor, dialogar, compartilhar, plane-
tomada de consciência da relação entre questões motiva- jar, observar, agir, escutar, registrar, refletir e avaliar são, de
doras do sujeito-educador, a observação dos interesses e fato, objetivos que norteiam a transformação da ação pe-
desejos do grupo de crianças com o qual trabalha, as ne- dagógica de quem ensina enquanto aprende, e vice-versa,
cessidades da faixa etária e a satisfação decorrente da como nas palavras de Paulo Freire.
autoria de um projeto de trabalho. O que mobiliza o sujei- A ação do educador compromissado com a aprendiza-
to, independentemente do lugar que ele ocupa na relação gem pessoal e dos indivíduos com quem convive mobiliza
pedagógica, é a possibilidade de perceber-se como parte in- o grupo como um todo a vencer desafios, a buscar respos-
tegrante do processo de construção de conhecimento, de tas às situações-problema do dia a dia, a compartilhar con-
apropriação de saberes e fazeres da cultura a que ele per- quistas, contradições e conflitos, a ter objetivos em comum,
tence. Um sujeito com uma autoestima fortalecida ao vi- a cooperar a favor do bem-estar coletivo, enfim, a viver a
venciar a autoria do processo, em parceria com um grupo vida de grupo com toda a sua intensidade, afetiva, emocio-
de referência, com quem tenha um repertório em comum: nal e cognitiva, como apontam os relatos das professoras.
"o brilho nos olhos" de quem é validado a apresentar algo Além do compromisso e do desejo de novas aprendi-
feito com sentido para o sujeito que, de fato, "põe a mão zagens, a curiosidade, como a da personagem Alice, de
na massa" no dia a dia da sala de aula e promove aprendi- Lewis Carroll, também é um motor para a formação, pois
zagens consistentes para todos os envolvidos, afetando-se o interesse pela pesquisa sobre a própria prática tornou-
com as conquistas alcançadas e desafios superados. -se um diferencial no currículo que foi construído a partir
A socialização articulada de fazeres pedagógicos dos da ação de seus integrantes. A paixão pela Educação In-
integrantes do grupo, articulados a saberes que justificam fantil e pela competência profissional também motivam a
e referendam essas práticas, viabiliza o fortalecimento e busca de potenciais metodologias para compor um currí-
a apropriação, individual e coletiva, da intencionalida- culo de formação de professores que, realmente, atenda
de da ação docente, ampliando as conquistas de todos às características da criança de zero a cinco anos de ida-

146 Prática docente Projetos, portfólios e redes na formação dos professores 147
de (objetivo final da formação) que, avidamente, quer co- nessa área. Como o processo pedagógico é fruto de uma
nhecer o mundo que a cerca. relação interativa, ao mesmo tempo em que o formador
O trabalho com projetos, um `vir a ser" diário, vai ao propõe metodologias (que ampliem repertórios de fazeres
encontro da concepção de professor que planeja o seu fa- docentes, evoquem a discussão de saberes dos teóricos e
zer, que registra suas ações para refletir e documentar o seu dos professores e os pautam em confronto com os pensa-
percurso, que observa o seu entorno como matéria-prima mentos/ideias dos demais), ele lida com saberes e fazeres
do processo pedagógico e avalia cada passo realizado para pessoais, experiências significativas vivenciadas em sua tra-
propor novas intervenções; portanto, usa instrumentos me- jetória e conflitos decorrentes da falta de algumas respostas
todológicos como ferramentas fundamentais à qualificação às questões que desconhece.
da docência. Nesse movimento, constrói-se uma comunidade apren-
A riqueza das interações e dos vínculos afetivos con- dente e ensinante, forma-se e transforma-se um ciclo inte-
solidados no exercício da docência aponta para uma va- rativo, que gesta novas aprendizagens e consolida matrizes
riedade de possibilidades formativas, não só por meio das de atuação do sujeito-educador; e no pulsar do próprio fa-
múltiplas linguagens expressivas utilizadas como percurso zer, tece o saber pessoal, que alimenta a prática, entrela-
formativo, mas também pelo espaço de diálogo, de escuta çando os fios da "cadeia pedagógica", que se realimenta
e fala que os professores tanto necessitam para lidar com a cada nova experiência significativa, firmando pontos, te-
seus conflitos pessoais, incertezas e conquistas. De acordo cendo nós de sustenção e nós coletivos da rede educacio-
com o poema "Infância", de Drummond (2005): "E eu não nal. Formar e transformar: verbos da ação pedagógica, que
sabia que minha história era mais bonita que a de Robin- interagem e propiciam os múltiplos sentidos do aprender
son Crusoé"! a ensinar... a ressignificação dos objetos culturais e da pró-
(Trans)formar(-se) no convívio-parceiro com o outro, pria vida de professor da infância!
adultos compartilhantes do ambiente escolar e crianças do O que é ser professor dá infância? Um sujeito capaz de
grupo de trabalho, requer tempo de apropriação das ex- ensinar e aprender a encantar-se com o "curiosismo" infan-
periências vivenciadas, espaço para acolhimento e identifi- til que o move, em busca de novos caminhos promotores de
cação com a proposta feita pela coordenação pedagógica, aprendizagens significativas para si mesmo e para a crian-
além de práticas de rotinas estruturantes que validem a sin- ça, com a paixão de quem se maravilha com as descobertas
tonia entre o que se pensa e o que se faz no cotidiano da es- transformadoras da docência. É nesse sentido que este livro
cola, lócus genuíno de formação de professores. considera o exercício da docência como um país semelhante
A formação de professores de Educação Infantil é uma ao que abrigou Alice em suas aventuras: com conflitos, como
meta desafiadora para os que se prontificam a trabalhar os desmandos da Rainha de Copas, mas com as belezas das

148 Prática docente Projetas, partfólios e redes na formação das professores 149
descobertas de si e dos outros. Sou professora por opção, me
Referências bibliográficas
fiz professora ao longo de minha vida, com desejo de acertar
e buscar a competência para qualificar o sentido da docên-
cia... Com certeza, as crianças agradecem!
Termino o texto com as palavras de uma das professo-
ALARCÃO, Isabel. Formação reflexiva de professores: estratégias de su-
ras que participou do projeto de formação:
pervisão. Porto: Porto Editora, 1996.
[...] é assim, portanto, que entendo uma participa- . Professores reflexivos em uma escola reflexiva. São Paulo:
ção ativa: uma forma de realizar, de transformar, de Cortez, 2003.
mobilizar, de criar, abraçar causas, atuar com res- ALMEIDA, Laurinda; MAHONEY, Abigail. Afetividade e aprendizagem:
ponsabilidade, recorrer com humildade, `socorrer' contribuições de Henri Wallon. São Paulo: Loyola, 2000.

com o coração, decidir com razão, viver em comu- ANDRÉ, Marli Eliza. Etnografia da prática escolar. 33 ed. Campinas,
SP: Papirus, 1995.
nhão, existir nessa imensidão.
(org.). O papel da pesquisa na formação e na prática dos profes-
A professora ilustrou o texto com uma imagem de roda: sores. Campinas: Papirus, 2001.
BACHELARD, Gaston. O direito de sonhar. São Paulo: Difel, 1986.
uma grande ciranda formada por crianças de alguma escola
BARBIER, René. A pesquisa-ação. Brasília: Liber Livro, 2004.
deste imenso país chamado Brasil.
BARBOSA, Maria Carmen Silveira. Por amor e por força: rotinas na
Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed, 2006.
; HORN, Maria da Graça Souza. Projetos pedagógicos na educa-
ção infantil. Porto Alegre: Artmed, 2008.
BARROS, Gilda Naécia Maciel de. Sócrates — raízes gnosiológicas do
problema do ensino. São Paulo: Faculdade de Educação da Uni-
versidade de São Paulo, 2000. (Texto da conferência proferida na
Escola de Aplicação para os alunos da pós-graduação.)
BION, W. R. Experiências em grupos. Buenos Aires: Paidós, 1994.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org.). O educador: vida e morte. Porto
Alegre: Graal, 1982.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular
(BNCC). Disponível em: <http://basenacionalcomum.mec.org.
br>. Acesso em ago. 2018.
. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação
Fundamental. Referencial Curricular Nacionalpara a Educação In-
fantil (RCNEI). Brasília: MEC/SEF, 1998.

150 Prática docente Referências bibliográficas 151

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