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136, 2000)
Ver o apartheid como um discurso significa que ela não reduz a sua especificidade a
uma "objectividade" espúria, e permite-lhe analisar o seu "horizonte mutável de significados,
convenções e práticas, e os modos de subjectivação instituídos por ele" (Norval 1996 : 7).
Enquadradas nestes termos, as questões de investigação de Norval centram-se em
como e em que condições o projecto do apartheid, e não outros projectos com diferentes
modos de divisão social, foi capaz de hegemonizar o campo da discursividade na África do
Sul. Ela tenta responder a estas questões analisando os vários elementos que constituíram o
discurso do apartheid, com vista a descobrir a sua gramática e modus operandi subjacentes.
Isto inclui um levantamento histórico da propaganda do Partido Nacional, uma análise dos
discursos e declarações feitas pelos “intelectuais orgânicos” do nascente movimento
nacionalista Afrikaner, e uma consideração dos principais documentos oficiais, como as
várias Comissões de Inquérito, que forneceram o quadro intelectual para o surgimento do
programa do apartheid. Isto implica a laboriosa tarefa de recolher informações de fontes de
arquivo em grande parte não utilizadas, a fim de construir um inventário das principais
declarações do projecto do apartheid. Embora a forma dos dados seja em grande parte textual,
Norval pretende mostrar como esses textos funcionaram para criar, interpelar e mobilizar
sujeitos, e seu relato enfatiza os efeitos práticos deste discurso na construção de significados
sociais, identidades e divisões sociais no contexto sul-africano.
Ao fazê-lo, Norval traça as lógicas interactivas de equivalência e diferença pelas quais
as fronteiras políticas do apartheid foram traçadas e redesenhadas. Contrariamente aos
discursos segregacionistas das décadas de 1920 e 1930, que se baseavam numa clara fronteira
entre preto e branco, o apartheid complicou esta divisão básica, sobrepondo-a a um discurso
de diferença étnica e nacional. Ela mostra como, na década de 1940, o discurso do apartheid
foi o meio para estabelecer uma identidade africânder distintiva e particularista. Assim, a
unidade do fragmentado Afrikaner volk (povo) foi forjada por referência a uma série de
outros (os swart gevaar ou “perigo negro”, os imperialistas britânicos, os capitalistas de
língua inglesa) que foram representados como negando e impedindo a criação de uma
identidade africâner. Durante as décadas de 1960 e 1970, Norval mostra como esta lógica
discursiva mítica foi estendida a todos os grupos étnicos e nacionais na África do Sul, de tal
forma que todos os volkere (povos) foram acomodados como posições diferenciais no
sistema de apartheid. Este período do Grande Apartheid testemunhou a predominância de
uma lógica de diferença, uma vez que aos vários grupos étnicos e nacionais foram atribuídas
identidades separadas e concomitantes formas políticas de identificação. Foi só com o
renascimento da resistência política ao sistema de apartheid nas décadas de 1970 e 1980,
especialmente após a desorganização das revoltas de Soweto, que novas fronteiras políticas
foram instituídas em torno de diferentes divisões, nomeadamente, entre “brancos” e “negros”
e entre 'apartheid' e 'o povo' (ver Howarth 2000).
O valor do estudo de Norval é que ele fornece uma nova interpretação do discurso do
apartheid, que contesta os relatos teóricos e empíricos existentes. Ela localiza uma
“indecidibilidade” crucial nas fronteiras políticas pelas quais o apartheid foi construído e
funcionou, nomeadamente as lógicas de simultaneamente excluir e incluir aquilo que era
“outro” no discurso, e oferece novas descrições das suas práticas, políticas e ideias. Os seus
argumentos também desafiam os “paradigmas” subjacentes evidentes no chamado “debate
raça/classe que estruturaram as discussões académicas e políticas sobre a política sul-
africana. Contudo, como o estudo de Norval se concentra exclusivamente no discurso do
apartheid, os cientistas sociais podem levantar questões sobre a possibilidade de fazer
inferências e generalizações maiores a partir de um único estudo de caso. Em resumo, será
que o seu relato da política sul-africana – e, por extensão, outros relatos discursivos de casos
isolados se restringe a fornecer descrições e análises apenas desse caso? Será que esta
restrição enfraquece o seu poder explicativo global e impede a análise de fenómenos
comparativos?
Estas são questões importantes e legítimas que os analistas do discurso deveriam ser
capazes de responder. A resposta de Norval é sublinhar o estatuto exemplar do caso sul-
africano para uma exploração de divisões e identificações raciais e étnicas, que tem
afinidades claras com o que Harry Eckstein (1975: 127) chama de “estudos de caso cruciais”
que podem por vezes “ marcar um nocaute limpo sobre uma teoria'. Na verdade, muitos
teóricos do discurso selecionam casos exemplares ou cruciais precisamente para que possam
explorar lógicas mais gerais de formação de identidade e prática hegemónica (ver Campbell
1998: ix-xi). Além disso, as lógicas e descrições que são “descobertas” em cada caso
particular podem ser “testadas” em diferentes contextos. Isto leva, claro, a questões sobre o
método comparativo (ver Landman 2000). Os teóricos do discurso podem fazer uso do
método comparativo? Embora acredite que a resposta seja um claro “sim”, há duas
advertências que precisam de ser acrescentadas a este respeito. Para começar, os casos a
serem comparados devem inicialmente ser descritos, analisados e interpretados em seus
próprios termos, como instâncias singulares com especificidade própria e única. Em segundo
lugar, o ponto de comparação é aprofundar a nossa compreensão e explicação de diferentes
lógicas de formação de identidade e práticas hegemónicas em diferentes conjunturas
históricas, e não construir leis de comportamento social e político geralmente aplicáveis.