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UM CONTO DE LUZ E TREVAS

Durante a história do mundo, enquanto as Eras começam e terminam, impérios


ascendem e colapsam sob o peso da própria ganância, alguns feitos podem ditar o
ritmo da grande roda de eventos que rege a nossa existência. Para aqueles que têm a
sorte ou o azar de vivenciar alguns desses momentos cruciais na escrita de nossa
história, cabe a cada um decidir o papel que irá assumir quando os deuses parecem
tecer suas vontades e seus caprichos sobre o mundo, como uma tentativa de matar o
tédio da eternidade ou testar os limites de suas criações. Por vezes os protagonistas
desses eventos podem surgir de locais inesperados, pessoas que carregam perdas e
tragédias em suas vidas, sem ocupar grandes postos entre os homens, trajar belas e
brilhantes armaduras ou ostentar bênçãos explícitas. Enquanto os grandes reis estão
ocupados demais em suas intrigas políticas e maquinações de guerra contra inimigos
visíveis, eventos silenciosos encontram aí uma brecha para ganhar forças estrondosas
a fim de mudar drasticamente a vida de todas as criaturas, das mais simplórias até as
mais sábias e poderosas. Nesses momentos, os papéis podem ser assumidos por
aqueles que de algum modo, seja por desígnio dos deuses ou circunstâncias gerais,
conseguem enxergar os sinais e enfrentar a realidade improvável. Essa resiliência pode
vir sob a forma da fria angústia de uma jovem atormentada, aquecida apenas pela
fúria indomável de um leal filho de dragão; ou sob a força de vontade daqueles que,
apesar de perder pessoas as quais lhes devem a vida, continuam buscando um caminho
para recomeçar e trazer um pouco de justiça ao mundo. Voltando ao ponto da sorte e
azar dos que vivem tempos críticos, às vezes só é possível enxergar o privilégio de
presenciar tais eventos vencendo a dor da perda e a frustração da impotência. Pelo
tempo que me foi dado, compartilhei da angústia e redenção de uma tecelã de almas;
da luta diária de uma serva da vida que havia perdido a fé em si mesma, além do apoio
da implacável lâmina resoluta daquele que viria a escrever seu traço de história na
volátil Era dos Homens.

- Gregory, dos Contos Infinitos.


Capítulo 01 – O Sonho de Liana

Fazia muito frio naquela região das Colinas do Quebranto, mesmo sendo
relativamente próximas ao litoral e incrustadas entre as ilhas do Mar do Leste, descer
as encostas rochosas, ainda que não escarpadas, era como avançar entre uma chuva
de navalhas na medida em que o vento soprava contra a pele. O soar dos sinos vindos
do topo das colinas ainda anunciava a coragem e ousadia dos fugitivos. Descendo
rapidamente entre rochas e árvores solitárias que encontraram espaço entre o
substrato rochoso, ouvindo o rápido assobio de flechas que cortam o ar cegamente em
busca do alvo, o decidido e robusto draconato carrega, além de seu pesado machado,
sua mochila improvisada com alguns mantimentos que conseguira reunir pouco depois
de ceifar as vidas das sentinelas da dispensa próxima às celas do claustro subterrâneo.
Os anos como prisioneiro, submetido a condições miseráveis e constantes torturas por
parte dos asseclas, tornaram a chance de obter boa comida uma oportunidade quase
sagrada. Mesmo enquanto a região do calabouço ardia em chamas e o barulho
metálico de armas e botas apressadas anunciava a chegada de reforços decididos a
reaver sua condição de prisioneiro de alta prioridade. Através de sua pele escamosa e
seu sangue quente de dragão, ainda era possível sentir o vento gélido que parecia
estar do lado de seus caçadores ao soprar com tanta força naquela noite, dificultando
a descida rápida. Podia ouvir gritos à montante e o galope de cavalos sendo guiados
para alcançá-lo, pois eles não desistiriam tão facilmente de um valioso prisioneiro,
conseguido ao custo de algumas vidas e de um atrito irreparável com os bárbaros do
norte. Ele olha para o céu estrelado enquanto continua sua corrida e sorri para si
mesmo, lembrando-se das noites em que passava acordado fazendo rondas em sua
antiga aldeia, pensando em algum dia deixá-los livres o suficiente de inimigos para que
pudesse sair pela vastidão dos Sete Reinos para descobrir coisas novas. Ele desejava
mais liberdade àquela época e naquela noite, após passar anos tentando manter o que
restara de sua sanidade e força de vontade, a sede por liberdade encheu o seu coração
de súbito como uma torrente incontrolável. O seu sorriso discreto tomou maior
proporção, irrompendo numa gargalhada quase nervosa que escapa de sua boca. Ele
se entrega à excitação de sua fuga e ao vislumbre de uma vida fora das paredes
úmidas e silenciosas dos calabouços, que serviram como sua casa nos últimos seis ou
sete anos.

A ajuda viera do modo mais inesperado possível: alguém da própria


organização que o mantivera preso. Uma jovem arcana de expressão distante e de
poucas palavras, de algum modo notou a sua existência entre as celas do claustro
quando ela ainda era algo mais que uma criança e, ao longo dos últimos quatro ou
cinco anos, eles mantiveram um contato discreto de modo que quase se assemelhava
a uma tímida e proibida amizade. Se havia alguma dúvida sobre a sua relevância em
relação à jovem, sua prova estava ali, sob o céu estrelado, pedregulhos, árvores e
flechas sedentas. Ela havia possibilitado a sua fuga, ele devia sua vida a ela, pois bem
sabia que cedo ou tarde seria executado; fosse por decorrência das torturas físicas e
mentais ou por deliberação dos seus carrascos, uma vez que ele preferia morrer a
colaborar com quaisquer que fossem os planos sombrios daqueles que julgava serem
não mais que fanáticos e assassinos vis.
A floresta se apresenta à vista, sinalizando o final da sua íngreme corrida rumo
à liberdade. Eu poderia arrancar suas cabeças, pensa consigo mesmo, mas ele sabe
que não há necessidade de um confronto direto e correr o risco de mais asseclas o
alcançarem, jogando fora a oportunidade única que lhe fora oferecida. Ele aperta
firmemente o cabo de seu machado, herança dos Ahikahakore, sentindo o suave calor
que emana de seu interior. Por um momento se permite o prazer de perceber que
recuperara o artefato que lhe fora confiado quando do ataque à sua aldeia pelos
bárbaros de Marduk, sendo ele um dos poucos sobreviventes da batalha e um dos
maiores guerreiros de seu clã. Ele deveria proteger aquele machado com sua própria
vida, pois sabia do seu significado para os seus iguais e do valor que teria aos olhos dos
ambiciosos inimigos. Durante os anos que passara nos calabouços do claustro,
amargava a decepção de perder a posse de sua herança confiada pelos seus irmãos e a
ideia de nunca mais poder brandir o machado o consumia por dentro a cada dia ao
longo dos anos. Foi quando descobrira por meio de sua improvável amiga, que o
artefato jazia guardado no Salão de Espólios, onde dividia espaço com outros itens
obtidos através das incursões impiedosas de seus carrascos. Ele mesmo havia
presenciado anos antes, enquanto era transportado como prisioneiro, um dos ataques
visando à obtenção de artefatos poderosos que serviriam a algum propósito futuro
daquela organização. Ao ver a sua cela finalmente aberta para sua fuga, já sabia o
caminho que devia percorrer a fim de reaver o seu machado e com ele mesmo tratou
de arrancar a vida de todos os tolos lacaios que entraram em seu caminho.

A sua vontade era de poder cessar a corrida e voltar-se sedento contra os


inimigos que lhe perseguiam colina a baixo, onde poderia desfrutar dos gritos
desesperados dos lacaios ao perceberem o quão imprudente era a ideia de enfrentá-lo
ignorando toda a sua fúria acumulada ao longo dos anos. Ele afasta o pensamento
impulsivo da mente, lembrara-se da possibilidade dos malditos feiticeiros estarem em
seu encalço também. Sabia que eles eram fortes e lidar com magia ali não era uma
opção. Se conseguisse chegar até a floresta teria uma chance, era o combinado desde
o início. Tinha a sua preciosa arma em mãos novamente e perdê-la não estava em seus
planos, apesar da fúria interior. Pouco a sua frente ele se dá conta das primeiras
árvores da floresta e entre elas uma pequena luz de tocha revela a silhueta de alguém
que parece aguardar sua chegada. Lá está ela – pensa consigo. Avançando entre
pedaços de madeira e raízes espalhadas pelo chão ele rapidamente se lembra do
plano. Ao passar pelos obstáculos num salto determinado ele se volta rapidamente
para a barricada e toma fôlego enquanto a fumaça começa a sair de sua garganta.

- Guarde suas forças. Isso não é necessário. – diz a jovem mulher vestida de
negro tal como a noite, enquanto passa com a tocha em mãos e a arremessa contra a
barricada embebida com óleo inflamável.

As chamas rapidamente se alastram e ganham altura. É possível ouvir os avisos


e pragas rogadas pelos perseguidores que agora têm o ritmo interrompido pelas
chamas uma vez que os cavalos se recusam a seguir entre o fogo. Rapidamente os dois
correm para dentro da floresta, ganhando cobertura sob as árvores, sabiam que o fogo
não iria segurar a investida dos inimigos por muito tempo. Eles se aproveitam da
penumbra gerada pelas chamas para seguir caminho entre os primeiros metros de
floresta e logo se perdem entre a escuridão da noite. A jovem sabe o rumo que devem
tomar, passara dias planejando os passos da fuga e a floresta era para ela como a
palma de sua mão. Durante os anos que viveu sob os olhos da Liga, teve oportunidade
de andar por toda a região adjacente ao claustro, tomando conhecimento de cada
metro de floresta, estradas, vilas e plantações que existiam ali. Enquanto correm entre
as árvores, ela sussurra calmamente algumas palavras e esfrega uma mão sobre a
outra de modo suave e aos poucos uma pequena luz fraca começa a emanar em forma
de esfera, clareando o caminho com força suficiente apenas para que vejam o que vem
à frente dentro da escuridão profunda da floresta fechada.

Enquanto seguem na fuga, o robusto draconato dá um breve sorriso,


reconhecendo a perspicácia da jovem companheira. - Você é bastante ousada,
pequena Liana. – ela olha rapidamente para ele e comprime os lábios no que poderia
ser um esboço de sorriso para os mais otimistas – ainda não é tempo de contarmos
vantagem. – ela responde enquanto os olhos percorrem as silhuetas de árvores
retorcidas e úmidas que parecem julgar seus passos apressados dentro da floresta
silenciosa.

- Se chegarmos ao riacho, poderemos apagar os rastros e quem sabe despistá-


los – diz Liana enquanto guia o caminho com sua mão estendida à frente para abrigar a
pequena esfera de luz.

- Aqueles malditos lacaios não vão desistir tão rápido de nós. Certamente vão
nos procurar até o alvorecer sem descanso. Eu posso dar cabo deles sem muito
esforço! – responde o draconato ainda experimentando a fúria dentro de si, ávido por
uma punição àqueles que o mantiveram cativo por tanto tempo.

- Balthus, o tolo impaciente... – a jovem Liana responde em um tom que quase


abriga algum humor. Ele sorri, sabendo que aquele era o jeito da pequenina – como
gostava de chamá-la - esboçar alguma brincadeira. Ao longo dos pouco mais de quatro
anos que passara sob custódia da Liga, ele havia criado certa conexão que permitira
alguma abertura da inescrutável Liana e, de algum modo, ela se sentira confortável
com a companhia temperamental e ameaçadora do enorme guerreiro filho de dragão.

Eles finalmente conseguem alcançar o riacho que ela havia comentado e


rapidamente buscam correr entre as margens mudando de direção, seguindo o sentido
contrário da correnteza. Balthus nada conhecia da floresta e menos ainda dos
arredores, passara todo o tempo dos últimos anos isolado dentro das celas e o pouco
que via da luz do sol era nas ocasiões em que o obrigavam a fazer trabalhos braçais de
manutenção das estruturas do claustro, junto com outros prisioneiros, sempre sob
uma forte vigilância e com pesadas correntes. Ele continua seguindo o passo de Liana,
mas estranha a decisão de tomar uma direção que os mantém ainda próximos dos
arredores do claustro ao invés de seguirem o rio em direção ao litoral.

- Estamos mesmo na direção certa? – ele indaga enquanto olha pra trás,
checando a retaguarda.

- Sim, faremos um caminho diferente. Vamos atravessar a margem do rio em


um ponto mais profundo e seguiremos para um esconderijo. – Nesse ponto a luz da lua
penetra razoavelmente na floresta, ao longo do leito do rio, refletindo suavemente nas
águas. Liana fecha rapidamente sua mão e desfaz o seu globo de luz enquanto segue
em frente, apressando a corrida. Balthus se pergunta como uma jovem arcana
consegue correr tanto através da densa floresta sem esboçar sinal de cansaço. Talvez
seja a tensão da fuga, ele pensa; talvez ela esteja tão determinada quanto ele a se
livrar do alcance dos outros que não há espaço para medo e cansaço em sua mente.

Avançando por mais alguns metros, ela identifica o ponto de passagem que
planejara. Não apenas o vento frio castigava naquela noite, mas também as águas do
rio pareciam cravar espinhos na pele ao atravessar o leito. Balthus sente a sua bolsa de
trapos improvisada molhar-se acidentalmente durante a travessia, e pensa na comida
que roubara do claustro provavelmente encharcada agora. Ele pragueja consigo
mesmo enquanto segue cruzando as margens, ajudando também Liana entre as
pedras do leito. Chegando ao lado oposto eles olham para trás em busca de algum
sinal dos inimigos, mas não há qualquer barulho que os revele.

- Por aqui, estamos próximos. – ela diz enquanto guia o caminho entre algumas
árvores menos densas. Alguns metros adiante, o caminho torna-se mais difícil na
medida em que avançam, algumas raízes molhadas começam a fazer obstáculos junto
com o musgo e a terra úmida e um deslize poderia custar uma torção no pé,
comprometendo o avanço desejado.

Balthus pode ouvir o vento fraco que penetra entre as árvores agora mais
adensadas, assoviando suavemente ainda com seu toque gélido, embora ele soubesse
que Liana estava mais vulnerável ao frio do que ele. Mesmo sob as condições de fuga,
ele saboreia aquele momento de liberdade, olhando ao redor e observando os galhos
que se opõem à passagem e o céu estrelado entre as brechas do dossel; além do uivo
distante de algum lobo e o coaxar de sapos emaranhados entre as raízes e a
serapilheira encharcada por alguma chuva recente. O cheiro da floresta molhada
fornece a ele uma dose de vitalidade a cada inspiração, dentro das celas do claustro
não era possível saber quando chovia ou quando era tempo limpo. O aspecto úmido,
infiltrado e mofado das paredes era perene, de modo que ele havia se esquecido do
prazer que era sentir o frescor da natureza após uma chuva.

Finalmente uma pequena clareira se revela entre as árvores, um tímido


descampado com alguns troncos velhos derrubados e uma pequena cabana de pedra e
madeira muito antiga, castigada pelo tempo e povoada por cogumelos, alguns
arbustos e ervas. Apesar da aparência decadente, ainda sustentava bravamente parte
do telhado feito de ripas e palha ressecada, suas janelas de madeira tinham um
aspecto apodrecido e algumas estavam quebradas, segurando-se desesperadamente
às velhas dobradiças enferrujadas. A luz prateada do luar derrama sobre a cabana um
aspecto mal-assombrado e silencioso, onde a própria floresta parecia temer que algo
sobrenatural pudesse habitar seu interior. Balthus olha ao redor do terreno e não vê
qualquer sinal de vida recente, além de uma ossada gasta e coberta por musgo de
algum animal devorado ou morto por qualquer coisa que houvera passado por aqui
antes deles algum dia.

Antes que ele pudesse perguntar se aquele era um local seguro, observa Liana
seguir em direção à porta e abri-la com a certeza de quem vivera ali há tempos. Ela
olha brevemente pra trás, em sua direção e entra na cabana, sendo engolida pela
escuridão do interior. Balthus se dirige à porta, ainda olhando ao redor e para trás em
busca de algum sinal de risco, não queria ser surpreendido, aquele parecia um local
fácil para ser atacado. Ao abrir a porta, ele escuta o rangido desdenhoso da madeira e
por um momento acha que ela irá desmontar-se. O ar úmido do interior da cabana já
não desperta nele a sensação agradável de outrora enquanto cruzava a floresta. Pelo
contrário, sentia uma triste brisa mofada que parecia tentar expulsá-los dali, como se
ninguém fosse bem vindo àquela velha cabana. Olhando ao redor, agora com a
pequena luz mágica de Liana acesa no chão, ele consegue vislumbrar alguns móveis
desgastados pelo tempo e a umidade, alguns sacos rasgados com pedras, palha
apodrecida e sementes mofadas que provavelmente serviram de alimento por algum
tempo para os animais da floresta após a morte ou abandono de quem quer que tenha
habitado aqui no passado; agora apenas aranhas, besouros e lagartas vagavam por ali.

- Temo que não seja a melhor das estalagens. – diz Liana enquanto observa a
sombra de Balthus crescer no cômodo ao caminhar em direção aos fundos da cabana
para checar as coisas. – Ainda é mais aconchegante do que a minha antiga cela. Além
disso, eu não sou uma pessoa de luxos. – responde ele ironicamente. Percebe que a
cabana servira de fato como casa para alguém no passado. Havia um quarto e uma
cama velha que entregara suas forças ao tempo e colapsou, se restringindo agora a um
amontoado de madeira podre onde os insetos fazem morada. Ele retorna para a sala
onde Liana está sentada olhando fixamente para o seu pequeno globo de luz.

- Realmente acha que é uma boa ideia ficarmos aqui, pequena? – indagou
desconfiado. Temia que a decisão de ficar ali fora óbvia demais, e a qualquer momento
dezenas de lacaios iriam surgir por entre as árvores e os emboscariam naquele local
fácil.

- Eles não virão aqui. Seguirão o curso do rio imaginando que tomaríamos a
decisão óbvia no calor da fuga. – Ela responde sem tirar os olhos da esfera de luz. –
Esse local não me parece muito escondido e afastado dos arredores do claustro. Ainda
estamos dentro da floresta que o circunda. – Balthus definitivamente não gostava da
ideia de ser capturado novamente. Por sua vontade, continuaria correndo sem parar
até o nascer do sol quando, talvez, sentisse que havia se afastado o bastante dos
inimigos.

- Eles são novatos. Ainda não tiveram tempo de percorrer e conhecer toda a
floresta. – Liana responde, finalmente voltando o olhar para ele. – Além disso, a noite
não é nossa aliada aqui. Apesar de você provavelmente pensar o contrário. – continua
ela com um tom enigmático. Aquela afirmação de fato não fazia sentido na cabeça de
Balthus. A cobertura da noite era obviamente um recurso valioso para quem pretendia
fugir.

- O que quer dizer com isso?! Será mais difícil para eles seguirem nossos rastros
dentro da escuridão da floresta. – Ele rebate com equivocado grau de certeza. –
Undara... – ela sussurra como que falando para si mesma, enquanto olha para o teto,
certificando-se de estar acobertada pela estrutura. – Eles têm servos de Undara entre
os seus membros... – Balthus ouve aquelas palavras e tenta entender o que aquilo
significava exatamente. Sentiu-se confuso e Liana percebeu isso. – A noite é aliada dos
servos de Undara. Dentro da floresta também há aqueles que colaboram com os
arcanos do claustro, escondidos às vistas. Saia do alcance da lua... – Ela diz quase como
uma ordem, percebendo que Balthus estava logo abaixo de uma das aberturas do
telhado remanescente da cabana. Ele se afasta mesmo sem compreender o motivo.

- Não entendo o que isso significa. – Ele responde enquanto olha por uma das
brechas da parede para o lado de fora em busca de inimigos. – Eles já devem ter
informado os clérigos sobre a nossa fuga e se passou tempo suficiente para que eles se
preparem. Precisamos ficar ocultos ao Oráculo da Noite. – Liana explica ao
companheiro enquanto desenha algum símbolo desconhecido para Balthus no chão da
velha cabana e suavemente derrama uma poeira brilhante sobre o símbolo, ao mesmo
tempo em que sussurra palavras para si. Em alguns segundos a poeira e o símbolo
emitem uma fraca luminosidade e uma pequena lufada espalha a fina poeira cintilante
pelo ambiente e logo se decompõe no ar. – espero que não seja muito tarde. – conclui
enquanto se levanta com a ajuda da mão pesada de Balthus.

- O que você fez? – ele indaga enquanto ajuda a jovem a se erguer. – Dificultei a
ação deles. Torcendo pra que tenha sido a tempo. Usarão a visão da lua para nos
encontrar, além das vozes da floresta noturna. Se ainda estivéssemos correndo por aí,
seriamos localizados em algum tempo. – Ela segue em direção a uma pequena mochila
encostada ao lado de uma velha estante úmida e vasculha qualquer coisa dentro dela.

- Cheia de truques, hein?! Sempre soube que você era bastante esperta. –
Balthus responde disfarçando o sentimento de ingenuidade com relação aos inimigos.
Por um momento se dá conta de que se estivesse sozinho, agindo conforme imaginara,
correndo e lutando ao longo da floresta, seria capturado eventualmente. O
conhecimento arcano da garota era um recurso essencial naquela situação. Desde os
primeiros anos de contato entre eles, quando ela ainda era pouco mais que uma
criança, aprendiz daqueles arcanos soturnos que o aprisionaram, ela mostrara uma
perspicácia notável. Apesar de usar poucas palavras, observava tudo que ocorria ao
seu redor e parecia enxergar algo no interior das pessoas, como se soubesse algo
daquilo que se quisera esconder. Apesar de ter o mesmo ar sombrio dos outros
membros do claustro, Balthus sentia que a pequena Liana não trazia consigo a
crueldade e inclinação para o mal daqueles que ele nutria apenas um forte desejo de
vingança e morte. Durante os anos do que pode se chamar de amizade, descobrira que
ela havia sido trazida para os domínios da Liga após ter sido resgatada em alguma
floresta de Maarsth, após perder os seus pais anos atrás e posteriormente o seu tutor
que a acolhera no momento de dor. A garota trazia consigo uma enorme carga de
angústia após tantas perdas, e jazia agora entre aqueles malditos cultistas e
corruptores sombrios. Balthus sentia que havia uma frágil ternura dentro do coração
da jovem despedaçada e aquilo fez com que ele de algum modo se tornasse aberto à
sua companhia e visitas escondidas, quando buscava saber mais histórias sobre os
filhos de dragões.

- Se ficarmos aqui dentro da cabana, teremos mais chances de passarmos


despercebidos aos olhos do Oráculo. Lembre-se de não se expor à lua, mesmo com
meu encanto não podemos correr riscos. – Liana diz enquanto retira um pequeno livro
escondido em sua mochila. Ela se livra de parte de suas pesadas roupas negras ainda
encharcadas pela travessia do rio e procura algum lugar onde possa se recostar e
descansar um pouco. O ímpeto da fuga e da corrida dentro da floresta passara e agora
as dores vinham ao seu corpo, não estava acostumada a esforços tão prolongados e
explosivos e aquilo lhe custava muito de sua energia.

Balthus observa e percebe que o frio causado tanto pela noite quanto pelo
contato do vento e as roupas molhadas castigam o corpo de Liana. Os tremores são
visíveis, embora ela pareça não se importar enquanto abre o livro e procura algo entre
as páginas. Ele segue em sua direção, arrastando seu enorme machado de modo
despreocupado pelo chão até que se abaixa e o apoia na parede próxima ao seu corpo.

Ela olha com o canto dos olhos para a mão enorme do companheiro draconato
e o aspecto rochoso e levemente incandescente da herança dos Ahikahakore, o
Machado da Purificação Ígnea. Sabia que aquele era o maior tesouro de Balthus, que
daria sua vida para protegê-lo de cair em mão erradas. O artefato, contara-lhe Balthus
ao longo de suas conversas quase secretas, pertencia ao seu clã, os Ahikahakore, há
muitas gerações. Forjado por meio da antiga magia dracônica, mergulhado inúmeras
vezes no coração de vulcões eternamente ativos, adquiriu sua estrutura rochosa e
magmática que representa a purificação pelas chamas para o seu clã. Liana havia
procurado saber mais sobre o machado e descobrira que a Liga ainda o guardava e
tinha grande interesse em fazer uso dele – o que explicava muito do motivo de Balthus
ser prisioneiro ali - junto com outros itens recolhidos e guardados no Salão dos
Espólios do claustro; sempre vigiado e com acesso restrito apenas aos superiores. Ela
bem sabia que se algo estava dentro daquele lugar, não se tratava de algo comum.
Descobrira isso havia algum tempo e a invasão do Salão estava diretamente ligada à
sua fuga em curso.

- Creio que esses tremores não sejam por medo de alguns malditos fanáticos. –
diz Balthus em tom sarcástico enquanto repousa o machado na parede. – Você sabe
que eles não são de nada. – Conclui. Ela sorri timidamente e aos poucos começa a
sentir o calor que emana do machado ao seu lado. Balthus era um guerreiro de uma
tribo bárbara de draconatos no coração da Estepe Sanguinária. Ele tinha pouco mais de
dois metros de altura e pesava mais do que qualquer guerreiro humano; suas escamas
e seus olhos traziam consigo os traços dos dragões vermelhos, representação pura da
fúria e da destruição. Era um verdadeiro monstro de batalha. Ainda assim, lá estava ele
oferecendo sua fiel e quase sagrada ferramenta de morte incandescente, de modo a
amenizar o frio que a sua relativamente pequena companheira tentava disfarçar.

- Eu creio que devo a minha vida a você, garota. Já havia perdido qualquer
esperança de sair daquelas malditas celas e mais ainda de ter a minha herança de
volta. – Ele diz tentando sentar-se de um modo menos desajeitado possível próximo a
Liana. – Bom, eu não teria conseguido sem a sua ajuda, também. Você permitiu que eu
fugisse na frente, comprando tempo. Acredito que estamos quites. – Ela responde
olhando fixamente para os olhos de um vermelho vítreo daquele que seria uma
ameaça para qualquer outra pessoa.

- Independente do que você pensa, eu devo agradecer pela chance de ter uma
vida livre novamente. Eu jamais imaginei que aquela criança um dia devolveria minha
liberdade e meu maior tesouro, também. Você tem a minha lealdade, pequena. –
Balthus tece as palavras com sua bruta sinceridade e ao mesmo tempo uma áspera
humildade. Ele sabia que a vergonha por ter falhado em sua missão como herdeiro do
clã o consumira durante os anos e agora uma nova chance havia sido concedida por
uma criatura que ele normalmente julgaria fraca e irrelevante. – É claro que tenho.
Você acha que eu simplesmente libertaria você pra lhe deixar fugir como um louco por
aí arrancando cabeças? – ela responde com um olhar sério e decidido. – Embora isso
também seja de grande valia... – conclui. Ambos se entreolham ironicamente e sorriem
com cumplicidade.

Por um instante ele recorda dos primeiros anos de prisão, onde resistira
ferozmente às tentativas de conversa com a jovem que o visitava no claustro com os
olhos vazios e ao mesmo tempo com uma curiosidade velada. Na medida em que sua
desonra destruía o seu espírito, ele se tornara cada vez mais furioso e ameaçador a
qualquer um que ousasse uma aproximação. Diversos guardas já haviam sido mortos
ou gravemente feridos por não prestarem a devida atenção aos próprios passos e se
colocarem ao alcance das mãos de Balthus. Até o dia em que aquela jovem persuadiu
as sentinelas do turno a deixarem-na entrar na cela, carregando uma grande tigela de
ensopado quente e sem demonstrar qualquer sinal de medo em relação ao
brutamonte acorrentado. Conte-me sobre os orgulhosos filhos de dragões. Ele
lembrava as palavras despreocupadas e do barulho da tigela de madeira sendo
oferecida, arrastada pelo chão de rocha úmida e o vapor que subia do ensopado que
preenchera suas narinas naquele dia, além da imagem da jovem aprendiz sentada no
chão gelado daquelas celas solitárias. Ele podia arrancar sua cabeça sem muito
esforço, pois ela estava ao alcance de suas mãos. Mas ele também se lembra do olhar
fixo e penetrante da garota que parecia ver em seu interior toda a sua fúria, angústia e
vergonha e de algum modo aquilo não o inflamou contra ela. Pelo contrário, era a
primeira vez nos últimos anos em que ele sentira uma espécie de compreensão
incômoda vinda daqueles olhos. Foi quando ele aproximou as mãos da tigela no chão e
fitou a menina com os olhos como chamas vivas alimentadas em sua fúria constante,
mas ela sequer esboçou reação, olhando-o fixamente. Ele se lembra de sorrir
ironicamente para a pequena e corajosa garota que lhe devolveu o mesmo gesto. Foi
quando ele virou boa parte do ensopado fervente na boca e começou a falar sobre
fogo, bárbaros e dragões.

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