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TEXTO 4
MERCANTILISMO E UTOPIA NA ÉPOCA DO RENASCIMENTO da latitude (para a longitude será necessário esperar pelo século
Henri Denis XVIII).
Bartolomeu Dias contorna o cabo da Boa Esperança em 1487;
1 - O DESENVOLVIMENTO DO CAPITALISMO. A CRISE onze anos mais tarde, Vasco da Gama atinge a Índia (1498)
SOCIAL NOS SÉCULOS XV E XVI contornando a África e abre uma nova rota marítima para o comércio
Nos séculos XV e XVI prosseguiu o desenvolvimento com o Leste. Cristóvão Colombo descobre a América (1492). A
comercial. Também a indústria se desenvolveu, em relação com o Espanha conquista rapidamente o México e o Peru: os tesouros
desenvolvimento das necessidades (indústria mineira, metalurgia, artísticos e as minas fornecem grandes quantidades de ouro e prata,
industria têxtil). Formou-se uma classe capitalista que se compõe que asseguram a supremacia espanhola na Europa durante um
de industrias que fazem trabalhar assalariados (agrupados ou século. As primeiras colônias européias são espanholas. Um século
mais freqüentemente trabalhando no domicílio), poderosos mais tarde, imigrantes ingleses, holandeses franceses, estabelecer-
mercadores e banqueiros. Escapa às regulamentações se-ão mais ao norte e criarão plantações (tabaco), pescarias e
corporativas dos ofícios e às autoridades municipais. Tem muitas benfeitorias para o comércio de peles.
vezes ligações com o reis, a quem empresta dinheiro. A sua Mercadorias inteiramente novas são introduzidas na Europa: o
atividade consiste unicamente na procura do lucro. Pertencem a chá, trazidos pêlos holandeses em 1606; o café, quase ao mesmo
esta classe, por exemplo, os Fugger na Áustria dos séculos XV e tempo; o índigo, vinho do Leste; o cacau, da América Central; o
XVI, ou em França Jacques Coeur, no século XV. tabaco, introduzido em Espanha em 1558; o tomate, o milho, a
Este último efetua frutuosa operações exportando para o batata, a baunilha.
Oriente a prata das minas da Boémia e importando ouro no O comercio das outras mercadorias aumenta
retorno. Adquire a concessão das minas da Coroa no Lyonnais e consideravelmente. O açúcar, os melaços e o rum são os artigos
no Beaujolais. Nomeado tesoureiro da casa real, empresta ao rei principais do tráfego com as Índias Ocidentais, assim como os
Carlos VII somas consideráveis a 12 e a 50 por cento. Possui sete escravos negros, cujo comércio inaugurado em 1510, se
navios de alto mar, trezentas sucursais em Famagusta, Bruges e desenvolveu rapidamente.
Inglaterra, um palácio em Bourges, casas em paris, Tours e A extensão do capitalismo tem como efeito desencadear na
Montpellier. O rei enobrece-o. Quando caiu em desgraça, em Europa, nas regiões mais avançadas, uma nova crise social.
1451, possuía uma fortuna equivalente a 22 milhões de francos O ouro e a prata, importados em grandes quantidades da
atuais. América permitem multiplicar a moeda posta em circulação. Sendo
Desenvolvem-se novas cidades, como Antuérpia, reduzido o custo dos metais preciosos, os preços sobem. Entre
praticando uma política liberal em relação aos mercadores 1462e 1602, o poder de compra da moeda em França reduz-se em
estrangeiros. A marinha holandesa organiza-se fora de todo o 80 por cento.
sistema de monopólio. Em França, Lyon desenvolve-se rompendo Esta alta dos preços engendra mudanças consideráveis na
com a política do corporativismo. situação das diferentes classes sociais.
Todavia, no final do século XV são realizados grandes Nos misteres urbanos, os companheiros, reduzidos agora à
progressos na arte da navegação. Os navegadores utilizam as condição de simples assalariados, perdem uma grande parte de seu
descobertas astronômicas. A invenção do telescópio leva à medida poder de compra. Os trabalhadores da indústria rural, empregados
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pelos manufatureiros, estão isolados e têm de aceitar condições Este período de miséria cresce do povo é também aquele em
de vida cada vez mais miseráveis. Estalam greves e motins que o poderio dos estados modernos se estabelece na Europa
populares. Em 1539, o edito de Villers-Cotterets proíbe em França ocidental.
as coalizões operárias. A invenção do canhão, no século XIV, desempenhou um
Todavia, as perturbações mais importantes, pelo menos em grande papel , pois permitiu aos reis forçar as defesas dos castelos
certas regiões, produzem-se no campo. A alta dos preços arruina a feudais. Mas o desenvolvimento comercial favoreceu também
antiga nobreza, que vivia em grande parte de rendas em dinheiro, poderosamente a unificação das nações.
fixadas por um longo período de tempo e por vezes a título A unidade da Inglaterra só se realizou verdadeiramente sob o
perpétuo (era o caso em França). A burguesia compra terras, quer reinado de Henrique VII (1485-1509). A monarquia inglesa apoia-se
para colocar os fundos em segurança, quer numa intenção no Parlamento, que contém numerosos representantes da classe
especulativa (porque o preço da terra aumenta). Mistura-se assim média e nomeadamente dos fabricantes de panos.
à nobreza, porque a posse de certas terras confere títulos Em França, a unidade nacional firma-se a partir do reinado de
nobiliárquicos. Luís XI (1461-1483). Em Espanha, a unidade é realizada em 1469
O afluxo de capitais à agricultura leva por vezes a com o casamento de Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Os
mudanças importantes nos modos de exploração. Na Flandres, o países Baixos protestantes conquistaram a sua independência dos
hábito de deixar as terras em pousio desaparece. O Pousio é Espanhóis em 1609.
substituído pela pradaria artificial. Em França, são introduzidos a A abundância das matérias-primas e o desenvolvimento das
cultura da amoreira e do bicho-da-seda. Mas a mudança mais letras de câmbio como meio de pagamento, e depois as notas de
importante produz-se em Inglaterra. As terras são monopolizadas banco, permitem aos soberanos lançar impostos em moeda, edificar
por capitalistas enriquecidos na exportação de lã. Para estender a palácios, pagar soldados. Contraem nos bancos empréstimos de
criação dos carneiros, transformam as terras cultivadas em somas consideráveis .
pastagens e obtêm do Parlamento o direito de comprar as Nos estados nacionais, a guerra é o estado normal. De 1494 a
comunais, até aí à disposição dos camponeses, e cercá-las. Estas 1559, houve guerra na Europa quase todos os anos; no século XVII,
duas práticas expulsam do campo uma grande parte dos há apenas sete anos de paz completa; a Inglaterra está em guerra
camponeses. Ao mesmo tempo, aumenta a população global. durante 84 anos entre 1656 e 1815.
Contam-se cerca de 4 200 000 habitantes na Inglaterra do século As causas de guerra são cada vez mais freqüentemente o
XVI, e 18 milhões em França. Há um excedente considerável de ataque contra os monopólios comerciais, as tentativas feitas para
mão-de-obra. A miséria do povo aumenta. mudar a política comercial de um outro estado para lhe roubar as
Na Flandres, no início do século XVI, um professor suas possessões coloniais.
espanhol, Vives, cria a assistência pública às crianças. Na
Inglaterra, são promulgadas leis, a partir de 1551, para obrigar os
pobres a trabalhar, mesmo nas casas de trabalho, onde perdem a
sua liberdade. A vagabundagem e a medicidade são ferozmente
reprimidas. 2 - O MOVIMENTO GERAL DAS IDÉIAS. RENASCIMENTO E
REFORMA
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Em relação estreita com o desenvolvimento do comércio e o invenções essenciais contribuem para acelerar a difusão do
desenvolvimento econômico, processa-se na Europa um poderoso movimento: A invenção da imprensa, em 1440 e a substituição dos
movimento intelectual. pergaminhos pelo papel, à imitação da China. O principal
Ainda desta vez, a redescoberta das obras antigas vai representante da nova escola, no início do século XVI, é o humanista
desempenhar um papel decisivo. É feita, no século XIV, por Erasmo de Roterdã (1467-1536).
grandes escritores italianos, encorajados e ajudados Em França, a Renascença é mais tardia; manifesta-se
financeiramente pelos mercadores e pelos príncipes. nomeadamente nas obras de Rabelais (morto em 1555) e de
Petrarca (1304-1374) reencontra na biblioteca da Catedral Montaigne (morto em 1592).
de Verona um manuscrito das Cartas de Cícero, depois os seus Na Inglaterra, Tomás Moro (1478-1535) publica uma obra
Discursos. Aprende o grego, todavia, nunca o saberá o bastante famosa, a Utopia, inspirada na República de Platão.
para conseguir ler um exemplar das obras de Homero que lhe O Renascimento abriu, desde o seu início, um período de crise
remete de Avinhão um nobre bizantino. intelectual no Ocidente. Na verdade, os novos pensadores tem diante
Boccaccio (1313-1375), filho de negociante, manda vir um dos olhos grandes obras antigas, estranhas ao cristianismo, e muito
grego para a sua residência e em breve está em condições de ler diferentes, aliás, das obras de Aristóteles. Os espíritos afastam-se do
Homero no original. sistema de Santo Tomás, adaptado pela Igreja, que é
Em 1395, um bizantino, Manuel Chrysoloras, fixa-se em simultaneamente aristotélico e cristão.
Florença como professor de Grego. Estabelecem-se contatos Em matéria científica, afastam-se de aristóteles e tentam
regulares entre a Itália e a Grécia e afluem os manuscritos das apoiar-se em idéias encontradas em Platão e seus discípulos.
obras gregas antigas. Em 1423, chegam a Veneza 238 volumes. Aristóteles ensinava que o mundo era feito de seres imutáveis, entre
Era tempo, porque os Turcos iam destruir em breve tudo o que os quais não havia comunicação. Tenta-se agora, em sentido oposto,
podia restar na Grécia de monumentos antigos. É desta época transmutar as coisas, nomeadamente em vista a fabricar ouro. É a
(início do século IV) que data a redescoberta no Ocidente das época do grande desenvolvimento da alquimia, e também da
obras de Platão. Mas debruçam-se igualmente com paixão sobre astrologia e da magia.
as obras dos epicuristas e dos estóicos. São feitas tentativas para construir uma nova concepção do
Em 1453, os Turcos apoderam-se de Constantinopla. É o mundo. Por vezes conduzerm à rejeição aberta das crenças cristãs.
fim do Império Romano do Oriente. Um grande número de letrados Pomponazzi publica em 1516 um Tratado da Imortalidade da Alma,
gregos refugiam-se em Itália e dá um novo impulso ao movimento no qual estende provar que são ficções os castigos e as
de retorno aos modelos antigos nas letras e nas artes, movimento recompensas no outro mundo.
conhecido sob o nome de Renascimento. Em todos os domínios, as concepções medievais são, pois,
Este movimento alia-se a uma nova curiosidade no domínio submetidas a uma crítica implacável. Todavia, com os humanistas,
científico. Leonardo da Vinci (1452-1519) é simultaneamente um está-se perante letrados ou sábios que não têm uma larga audiência.
artista genial e um espírito inovador em todos os domínios da Por isso lhes permite uma grande liberdade. Muitos foram protegidos
ciência. pelo Papado, que quer dar à Corte Romana um brilhantismo superior.
Depois da Itália do Norte, os Países Baixos, outro centro Em contrapartida, vê-se desenvolver, paralelamente ao
comercial poderoso, são atingidos pela Renascença. Duas humanismo um movimento que levanta problemas inteiramente
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novos porque se apodera das massas: é o movimento a favor da servo cristão possui a liberdade cristã” e que não é preciso procurar
reforma religiosa. transformar “o reino espiritual num reino terrestre e exterior”. Os
No século XVI, apareceu em Inglaterra um movimento príncipes católicos e luteranos associam-se de fato para vencer os
anticlerical e revolucionário. Num poema escrito em 1362, revoltados e efetuar um terrível massacre em 1525.
Guilherme Langland queixa-se da avidez da Igreja e lembra o O desenvolvimento das seitas herético-revolucionárias
princípio cristã segundo o qual o que trabalha deve poder viver . prossegue, contudo, na Alemanha, nos Países Baixos e nas margens
Wiclef (1320-1384) lança o movimento que a reforma da vida do Báltico. Os seus partidários recebem o nome de anabaptista,
religiosa na base da leitura da Bíblia. Em 1381, o Padre John porque reclamam que os cristãos, chegados à idade adulta, recebem
Ball, seu discípulo, amotina os camponeses. É o movimento dos um segundo batismo. Em 1534, João de Leida institui na cidade de
Lollards, cuja divisão é: Munster um regime cristão-comunista. Mas a experiência degenera
Enquanto Adão cavava rapidamente em desordem. O bispo retoma a cidade em 1535.
e Eva fiava Todavia, o movimento para a reforma religiosa tomou também
quem era então o senhor? uma grande extensão na Suíça e na França. Encontra um novo
A revolta dos Lollards é afogada em sangue. Mas o doutrinário na pessoa de João Calvino, nascido em Noyon em 1509,
movimento transmitiu-se à Boémia, por intermédio de intelectuais que publica em Brasileia em 1536 A instituição Cristã e aplicará a sua
que tinham vindo estudar em Oxford. É dirigida por João Huss, doutrina principalmente na cidade de Genebra.
pregador e professor em movimento hussita, Uma delasm a seita Depois de Lutero, afirma que só a fé justifica e que os
dos Irmãos Boémios, prega um programa social muito avançado, indivíduos estão de antemão predestinados à salvação ou à
comportando nomeadamente a igualdade completa de condições. condenação, sem que nada possam fazer para mudar o seu destino.
Todavia, em 1517, um monge alemão, Lutero, começou a Todavia, o calvinismo distingue-se em vários pontos do luterismo. É
sua pregação contra a corrupção da Igreja, e acima de tudo contra um movimento que se espalhou principalmente nas cidades
a venda da indulgências. Entende suprir as próprias fontes de mercantis. Não adapta as mesmas concepções de Lutero sobre
corrupção do dinheiro sustentado que só a fé salva ou justifica, e questões econômicas. E, de uma maneira mais geral, a sua atitude a
que as obras (nomeadamente as dádivas em dinheiro à Igreja) não respeito da atividade social é original e marca de maneira muito
podem ter qualquer eficácia. É em breve apoiado, e até clara o nascimento e o desenvolvimento de uma mentalidade nova
impulsionado, por um grande número de senhores alemães hostis no Ocidente.
à Igreja, cujas propriedades não deixam de crescer. Lutero, Lutero condenava vigorosamente o comércio e o empréstimo a
condenado pelo papa em 1520, reclama então a supressão do juros. O novo reformador adapta uma atitude bastante diferente.
Papado. Calvino levanta a si próprio o problema que encontramos em
A revolta contra Roma toma uma feição revolucionária. Em Santos Tomás: se a maldade de uma ação é uma questão de
1520, Tomás Munzer começa a pregar o próximo advento de uma intenção, não será possível que o comércio e as atividades
ordem social sem a opressão dos pobres e com uma religião sem financeiras sejam aceitáveis em certas condições?
padres. A esta pergunta é dada uma resposta positiva, e Calvino é
Em 1524 sublevam-se os camponeses de numerosas muito mais generoso em Santo Tomás. O juro do capital será sempre
regiões da Alemanha. Lutero condena a revolta dizendo que “um legítimo desde que seja moderado e honesto. Por outro lado, o
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comércio será uma atividade lícita na medida em que o a estas concepções, forma-se uma visão do homem que exalta o
comerciante não alcance ganhos exagerados, que seriam valor absoluto do Estado, por um lado, e o da riqueza, pelo outro.
contrários à caridade e levariam a uma vida de pecado. Desde o final da Idade Média que se viam aparecer no
Assim, a filosofia econômica do calvismo aparece, antes de Ocidente obras que afirmavam a autonomia do estado em face da
mais, como um desenvolvimento da filosofia tomista. Se bem que Igreja. Dante Alighieri (1266-1321), autor da Divina Comédia, mas
a teologia calvinista recuse, diferentemente de Santo Tomás, também do De Monarchia, considerava a política como a mais alta
confiar na natureza humana, conduz, na prática, a fazer das ciências e pensa que ela deve fundamentar-se na observação
concessões muito maiores a essa natureza. Isto explica-se, dos fatos. Exige que o papa seja desapossado de todo o poder
evidentemente, pelo desenvolvimento da história , que está em temporal, para que o imperador receba a plenitude do comando
vias de assegurar o triunfo do comércio. E esta pressão do sobre toda a Europa. Este espírito laico em matéria política
acontecimento histórico é tal que o calvinismo não se contenta encontra-se no Breviloquium do franciscano inglês Guilherme de
com tolerar o comércio. Chega a exaltá-lo e a fazer do sucesso Ockham, composto entre 1339 e 1341.
comercial um sinal da eleição divina. No domínio das idéias políticas, o Renascimento é marcado
Apoiando-se em certos aspectos da doutrina protestante, o principalmente pela influência do epicurismo e do estoicismo. A teoria
sociólogo alemão Max Weber defendeu que a Reforma fora um aristotélica do Estado como ser natural é cada vez mais abandonada
fator decisivo do ponto de vista do advento do modo de produção em proveito da teoria epicurista do contrato social. É o ponto de vista
capitalista. Cita, por exemplo, este texto de Richard Baxter, pastor que defende, nomeadamente, o florentino Nicolau Maquiavel
puritano não conformista (1615-1691): (1469-1527), autor da famosa obra O Príncipe (1516). Aliás, esta
Se Deus vos designa tal caminho no qual podeis legalmente doutrina leva-o a enaltecer um governo forte e sem escrúpulos
ganhar mais que em tal outro ( isso sem dano para a vossa alma, morais, porque o entendimento entre os homens é precário e estes
nem para a de outrem) e recusais o mais vantajoso para escolher procuram constantemente rompê-lo.
o caminho que o é menos, contrariais um dos fins da vossa Certamente um governo livre é preferível à sujeição a um
vocação, recusais fazer-vos o intender de Deus e aceitar os seus príncipe. Mas a liberdade que os Romanos possuíram na vigência da
dons e empregá-los no seu serviço se ele o exigir. Trabalhai, pois, sua república exige que os cidadãos fossem virtuosos. Quando os
por ser ricos para Deus, não para a carne e o pecado. homens são corruptos (e são-no as mais das vezes, parece, segundo
Há aí, com toda a evidência, uma inversão surpreendente Maquiavel), é impossível manter ou restabelecer um regime
da atitude cristã em face da riqueza. Mas outros autores republicano.
mostraram que ela se produz também, e muito rapidamente, entre De resto, mesmo numa república, é necessário que os
os católicos. governantes não sejam de qualquer modo escrupulosos nos meios
de manter a ordem. Maquiavel permanece como o campeão do
3 - A DOUTRINA MERCANTILISTA realismo político, na aurora dos tempos modernos. Este realismo
A época em que entramos é marcada essencialmente por alimenta-se essencialmente da admiração pelo poderio de Roma, da
um vigoroso movimento de emancipação em relação à Igreja e às adesão à filosofia materialista de Epicuro e de Lucrécio e de uma
concepções medievais da primazia do sobrenatural. Em oposição hostilidade marcada em relação ao cristianismo. “As religiões
antigas”, diz ele, “eram muito superiores, porque só atribuíam as
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honras divinas aos mortais ilustrados pela glória, como os capitães toma rapidamente grande importância - a doutrina mercantilista, que
famosos ou os chefes da República; pelo contrário, a nossa se apoia numa concepção original dos fins da sociedade.
religião só santifica os humildes e os homens mais entregues à
contemplação do que à vida ativa. A) A NOVA CONCEPÇÃO DOS FINS DA VIDA SOCIAL
A nova filosofia política é, pois, diametralmente oposta à Maquiavel escrevia que “num governo bem organizado, o
concepção católica do Estado defendida na Idade Média, porque Estado deve ser rico, e os cidadãos, pobres”. Esta doutrina é
faz do Estado uma força autônoma, e não uma realidade desmentida pelos fatos, dado que a época do renascimento assiste
subordinada à Igreja. a um desenvolvimento paralelo do enriquecimento da burguesia
Mas esta negação de subordinação do Estado à Igreja mercantil e do crescimento do poder dos estados europeus, Opondo-
encontra-se também em Lutero, de maneira que, de forma se à concepção de Maquiavel, o mercantilismo vai desenvolver a
bastante paradoxal, o cristianismo luterano favorece o tese segundo a qual o Estado acrescenta a sua força favorecendo o
desenvolvimento da nova filosofia do Estado. enriquecimento dos cidadãos.
Lutero não quer que a Igreja se preocupe a Os autores que defendem esta tese são freqüentemente
regulamentação a vida social. Mas exalta o papel do Estado como mercadores, financeiros, manufatureiros. Aparentemente, a sua
meio de reprimir a maldade humana, o que é, apesar de tudo, uma grande preocupação é o poder do Estado. Mas a maior parte deles
maneira de reconhecer o valor das instituições políticas. Exorta os defendem o Estado porque considera que a prosperidade do
príncipes e reprimirem sem piedade a revolta dos camponeses, comércio de uma nação está estreitamente ligada à expansão do
porque, se é certo que a vida espiritual é puramente interior, poder político do soberano e ao sucesso das suas campanhas
convém, todavia, que os indivíduos sejam obrigados a respeitar, militares em terra e principalmente no mar. Passa-se assim da
nas suas relações sociais, a aparência de uma vida conforme ao concepção do Estado fim supremo da vida humana à concepção da
ideal cristão. A concepção luterana favorece, assim, o riqueza valor supremo.
desenvolvimento de uma doutrina do poder absoluto dos Todavia, os mercantilistas não encaram, pelo manos
príncipes. diretamente, a possibilidade de a totalidade dos membros de uma
Todavia, os teóricos do absolutismo encontram uma forte nação enriquecer. Crêem, antes de mais, ma possibilidade de
oposição. Não podem apoiar-se já, como no tempo de Aristóteles, enriquecer a classe dos comerciantes. E propõem-se traçar um
na tese do caráter espontaneamente, está definitivamente quadro da sociedade mostrando como esse fim pode ser atingido.
ultrapassada. Maquiavel, como que é na realidade uma tese É assim que pela primeira vez teremos diante de nós uma
individualista. No século XVI, os direitos do indivíduo em face do teoria da sociedade que se desenvolve essencialmente no âmbito da
soberano são energicamente afirmados por pensadores como La economia dado que o fim da vida social é concebido com um fim
Boétie (Le Contr’un, 1552) e Théodoro de Bèze (Do Direito dos econômico e que, como veremos, os meios encarados para realizar
Magistrados sobre os Seus Súditos, 1575). esse fim são também meios econômicos.
Por conseqüência, a partir deste momento a concepção Para dar imediatamente uma idéia da concepção mercantilista
absolutista do Estado é atacada no próprio terreno da filosofia da vida social, pode-se escolher, por um lado, uma das primeiras
política. Mas enquanto se desenvolve a controvérsia sobre a obras do mercantilismo inglês, a de John Hales (século XVI) e, por
noção do poder político, uma doutrina propriamente econômica
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outro, uma obra francesa, a primeira no mundo que leva o título de comerciante. Faz parte da “comissão de tapadas”, criada em 1548, e
Tratado da Economia Política, de Antoine de Montchrestien (1615). assiste de perto à extensão dos danos causados pela transformação
Mas as idéias que encontraremos nestes dois textos do regime agrário. Todavia, não será possível sustar o movimento. Já
encontrar-se-iam, com algumas variantes, num grande número de então lhe parece indispensável desenvolver a industria nacional,
outros. porque lhe permitirá manter, ou mesmo aumentar, a população do
Entre os mercantilistas espanhóis, pode citar-se Ortiz, que reino, apesar do despovoamento dos campos. O interesse do rei
publica em 1588 em Memória do Rei para Impedir a Saída do exige, diz ele, que a população seja numerosa, para que o Estado
Ouro. possa dispor de um exército importante. Por outro lado, é necessário
Os mais célebres mercantilistas são Botero (1540-1617), que a população esteja ocupada, para que seja mantida a paz social.
secretário do príncipe Carlos Barromeu, e Serra, médico calabrês Sabeis [ escreve] que bastam já alguns criados de gado para
que publica em 1641 uma obra intitulada Breve Tratado das ocupar todo um condado; também, com a continuação, a grande
Causas Que Fazem Abundar o Ouro e a Prata Num País onde massa dos súditos do rei achar-se-á arruinada e não restará mais
não Há Minas. que um número restrito de senhores de rebanhos e seus pastores,
Em França, Barthélemy Laffemas, que desempenha cargos cuja quantidade será insuficiente para servir o rei, em caso de
importantes junto ao rei Henrique IV, publica em 1597 um necessidade, e para defender o reino contra os seus inimigos.
Regulamento para Estabelecer as Manufaturas do reino, e em Portanto, é o interesse do Estado que é posto em primeiro
1602, um opúsculo intitulado como se deve Permitir a Liberdade lugar por Hales. Todavia, a sua obra exprime igualmente de maneira
do Transporte do Ouro e da Prata fora do Reino e Conservar por muito clara a idéia nova segundo a qual o enriquecimento é o
Tal Meio o Nosso e Atrair o dos Estrangeiros. verdadeiro fim da vida humana.
Na Inglaterra, no século XVII, o mais célebre representante Os indivíduos que se entregam ao negócio, diz, formam uma
da doutrina mercantilista será Thomás Mun, autor de um Discurso república (common weal) cujo cimento é o interesse econômico,
sobre o Comércio inglês com as Índias Orientais (1621). sendo a procura da riqueza por parte de cada um favorável ao
1º - John Hales - Uma das primeiras obras que exprimem a enriquecimento dos outros:
filosofia econômica do mercantilismo é a de um nobre inglês, Cada indivíduo é membro da república [escreve], e todo o
membro do Parlamento, John Hales, intitulado Discurso sobre a mister lucrativo para um pode sê-lo também para quem o quiser
Prosperidade Pública Deste Reino da Inglaterra. A obra parece ter exercer; o que é vantajoso para um sê-lo-á também para o seu
sido escrita em 1549; circulou primeiramente sob a forma de vizinho, e consequentemente para toda a gente.
manuscrito e só foi impressa em 1581, depois da morte do autor. Essa idéia de solidariedade dos interesses econômicos é
Hales escreve no momento em que as “etapas” e o certamente expressa de maneira primitiva. Hales contenta-se com
desenvolvimento da criação de gado em detrimento do cultivo afirmar que se um membro da comunidade encontra uma nova
levavam em Inglaterra a um importante êxodo rural e a um maneira de enriquecer, permite também aos outros enriquecer-se, se
crescimento do pauperismo. Certamente não ignora que esta fizerem como ele. Mas o que importa é a aparição da própria noção
transformação dramática é devida à monopolização das terras de uma república na qual o elo entre os indivíduos não é de natureza
pelos novos ricos, principalmente comerciantes, que querem fazer política, nem de natureza religiosa, mas de natureza econômica.
frutificar ao máximo o seu dinheiro. Hales, esse, não é um
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A que ponto é nova esta concepção (não, certamente, na torna má a sua reputação. Tratam-no como moedeiro falso. Coloca-
prática, mas como concepção filosófica) vê-se quando Hales se então ao lado dos huguenotes revoltados contra o rei, sem que
afirma que a sociedade econômica está, até a um certo ponto, possamos estar certos de que tenha abraçado a religião reformada.
acima das regras morais válidas para o indivíduo. Alguns meses depois, foi surpreendido numa hospedaria e morto de
Se rejeitarmos o nosso ouro e a nossa prata por causa do arma na mão (1621).
mal que causam, não pela sua própria natureza, mas pelas Montchrestien partilha as idéias políticas de Jean Bodin, que,
conseqüências do mau uso que deles se faz, enfraqueceremos, a despeito do seu desejo de se opor à imoralidade de Maquiavel,
nós, e aumentaremos em muito o poder dos outros. Se é pensa, como ele, que a ordem social exige a submissão aos mais
recomendável para o homem singular, do ponto de vista fortes. O autor do Tratado da Economia Política retoma por sua conta
puramente moral, evitar, na medida do possível, o uso da moeda nomeadamente, a idéia, largamente desenvolvida na República de
para a república não é necessário que toda a gente aja da mesma Bodin, segundo a qual a guerra contra o inimigo externo é útil à paz
maneira, tal como não é obrigatório para todos permanecerem interna.
castos, conquanto individualmente isso seja preferível. Agora, que a França esta desenganada [escreve] e já não
É certo que o doutor que assim se exprime no diálogo de pode, graças a Deus, ser induzida a temperar a ponta das suas
Hales (é um pastor da Igreja de Inglaterra) proclama ainda que armas no seu próprio sangue... é necessário pensar dar-lhe um bom
“não se deve fazer do seu haver um uso abusivo que prejudique e honesto exercício... porque deixá-la estagnar num lânguido
a comunidade”. Mas algumas linhas mais adiante o mesmo doutor repouso seria o seu mal... É necessário impedir inteiramente que se
declara que “o homem se volta para o lado onde está a sua maior deixe extinguir essa generosidade natural dos vossos povos , para a
vantagem” e que as leis contra a transformação das terras de qual as dificuldades são como incentivos, os perigos como rastilho.
cultivo em pastagens serão sempre importentes enquanto essa Todavia, diferentemente de Jean Bodin, Montchrestien
transformação for vantajosa para os proprietários das terras. conhece um segundo meio de manter os súditos na obediência: é
Admite, portanto, e o autor com ele, que a procura do ganho permitir-lhes enriquecer.
individual deve ser reconhecida como a própria base desta Indubitavelmente, é um feliz acaso quando todos os súditos
comunidade econômica que os membros de uma nação formam. tem meios suficientes para as suas necessidades, ou, não os tendo,
2º - Antoine de Montchrestien - Montchrestien era filho de os podem adquirir. É o mais seguro freio para suster esse Tifeu de
um boticário que se chamava realmente Mauchrestien. Mais tarde, vários braços e várias cabeças (o povo), o qual, quando se zanga e
tomou o título de senhor de Vasteville. Nascido aborrece por nada ganhar, se agita, e, agitando-se, provoca algumas
em 1576 em Falaise, faz-se conhecer principalmente como autor vezes tremores de terra.
de tragédias e freqüenta a nobreza . Em 1605 tendo matado num Eis-no por conseguinte, no coração da doutrina mercantilista.
duelo o seu adversário, é obrigado a fugir para Inglaterra; faz Na verdade, se Montchrestien atribui ao enriquecimento do povo a
igualmente uma viagem à Holanda. Regressando a França, mesma eficácia da guerra, é que dá como fim supremo da atividade
desposa uma viúva rica e nobre. Graças à fortuna da sua mulher, humana a procura da riqueza.
monta uma fábrica de utensílios e de ferramentas. Em 1616, Ele explica com muita clareza e até (o que é incrível) tenta
apresenta o seu Tratado da Economia Política ao guarda dos invocar Aristoteles em apoio da sua tese.
Selos. Pouco depois recebe o título de barão. Todavia, cedo se
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Na verdade, a vida contemplativa [escreve] é a primeira e a Donde se pode concluir que os mercadores são mais que úteis
mais próxima de Deus; mas sem a ação ela é imperfeita e pode no estado e que a sua preocupação do lucro, que se exerce no
ser mais prejudicial que útil às repúblicas... Aristóteles diz com trabalho e na indústria, faz e causa uma boa parte do bem público.
razão daquele que se separa dos homens: ou que é mais que Que, pois, se lhes deve permitir, por esta razão, o amor e a procura
homem... ou que é menos que homem... Segue-se daí que o maior do lucro, creio que toda gente concordará...
feito que se pode praticar no Estado é não sofrer nenhuma parte Todavia, não estamos muito afastados do tempo em que cada
ociosa... qual devia pensar que a procura do lucro é censurável. Também
“O Homem”, escreve ainda, “nasceu para viver em contínuo Montchrestien se vê obrigado a responder às objeções dos homens
exercício e ocupação”. da tradição:
Mas para que trabalhar, pensa Montcherestien, senão para Enganam-se aqueles que medem a felicidade de um Estado
produzir riquezas? Atividade e produção de bens parecem-lhe unicamente pela virtude simplesmente considerada e pensam que a
inteiramente assimiláveis, dado que, diferentemente dos antigos vida, assim atormentada pelo apetite do ganho, lhe é inteiramente
filósofos, opôs a atividade à contemplação. A conclusão decorre, contraria, já não estamos no tempo em que nos alimentávamos da
pois, muito naturalmente e é claríssima: glande caída dos carvalhos sacudidos, em que os frutos que a terra
A felicidade dos homens, para falarmos a nosso modo, produzia e a água pura eram as grandes delícias... Eis porque todas
consiste principalmente na riqueza, e a riqueza, no trabalho. estas belas contemplações dos filósofos não passam de idéias e
Uma vez empenhados neste caminho, iremos longe na destinadas a uma república onde não se tivesse de trabalhar e agir.
mudança das perspectivas tradicionais. Tudo o que precede não é mais que a primeira a firmação da
Primeiramente, Montchrestien, sem monosprezar celebrar o tese moderna da importância primordial das atividades econômicas
trabalho da agricultura, lança-se num elogio da indústria, das de produção e distribuição dos bens na vida social. Lógicamente,
manufaturas, o que dá uma nota inteiramente nova. E Montchrestien deduz daí esta tese, igualmente muito moderna: que o
principalmente não teme colocar o mercado acima de todos na Estado deve ocupar-se, antes de mais, em estimular a produção e as
sociedade. “O seu papel no corpo social”, diz, “é semelhante ao trocas. Muito conscientemente, derruba a tese aristótelica da
cérebro no corpo do indivíduo”. E chega a defender que o independência e da superioridade da vida propriamente política
comércio é uma atividade superior, dado que a indústria trabalha sobre essa parte da vida que é consagrada à produção e de que trata
para ele. a econômica ou ciência da família. E eis porque forja a expressão
Como os filósofos dizem que o fim é a causa das causas, o economia política, que permaneceu na língua francesa e que os
comércio é de alguma maneira o fim principal das diferentes artes, países estrangeiros adotaram também para designar a ciência da
a maior parte das quais só por seu intermédio trabalham para produção e da distribuição dos bens.
outrem; donde se segue que há algo mais requintado, em matéria Pode-se defender com muita propriedade [escreve], contra a
de honra e de lucro, que as próprias artes , tanto na medida em opinião de Aristóteles e de Xenofonte, que se não poderia separar a
que estes se empregam para ele como porque o próprio fim não é economia da política sem desmembrar a parte principal do todo, e
apenas o último ponto da coisa, mas o melhor. que a ciência se adquirir bens, como eles lhes chamam, é comum
Se a atividade do mercador, é a mais excelente, segue-se quer às repúblicas, quer às famílias.
que é louvável o seu desejo de lucro.
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B) AS CONDIÇÕES DE CRESCIMENTO DA RIQUEZA Mas o ritmo de expansão deste mercado próximo é insuficiente. As
Tendo defendido que a riqueza é para o homem o valor empresas capitalistas (principalmente as empresas industriais na
supremo, os mercantilistas preocupam-se com analisar as Europa de então) encontram mercados nas regiões longínquas, que
condições do seu desenvolvimento. pedem os seus produtos porque os produzem em condições mais
A sua época é, na Europa ocidental, a implantação do onerosas. A conquista destes mercados exige o apoio do Estado.
capitalismo, que leva algumas nações a um passo decisivo em Esta necessidade aparece da maneira mais evidente no caso da
frente no caminho do que nós chamamos o “desenvolvimento conquista dos mercados coloniais.
econômico”. E principalmente o comércio longínquo que abre inicialmente
Antes de examinar as opiniões dos mercantilistas sobre o os mercados à produção capitalista e engendra o seu
crescimento, é indispensável lembrar o que a análise econômica e desenvolvimento. Mas, desenvolvendo-se a produção capitalista, os
a história podem hoje ensinar-nos sobre a natureza real do rendimentos distribuídos pelas empresas (salários, rendas agrárias e
processo que levou ao enriquecimento da Europa Ocidental. lucros) são cada vez mais importantes e os mercados no mercado
O capitalismo desenvolve a riqueza na base da empresa próximo (ou nacional) encontram-se aumentados por este fato.
privada agrícola, industrial e comercial. Pessoas ricas ordenam Neste complexo processo, o comércio longínquo desempenha um
uma propriedade fundiária com vista a melhorara sua papel inicial insubstituível. Mas este fato não impede que, no curso
rentabilidade, instalam uma unidade de produção industrial (nessa do desenvolvimento, uma massa crescente de mercadorias seja
época uma manufatura) ou finalmente lançar uma operação também absorvida pelo mercado próximo.
comercial que, quando pertence ao domínio do comércio Tal é, cremos, o processo que levou algumas nações da
longínquo, exige fundos importantes. São realizadas operações Europa Ocidental principalmente a partir do século XVI ao caminho
de investimento com vista a retirar um lucro tão grande quanto de um desenvolvimento econômico rápido, ao passo que no resto do
possível . mundo a economia continuava estagnada. Tal é, pois, o processo
No comércio, o lucro depende da diferença entre o preço que os escritores mercantilistas viram desenrolar-se sob os seus
que se deve pagar para obter a mercadoria e o preço a que se olhos. Eles aperceberam-se com bastante clareza de certos elos,
pode revendê-la noutro lugar. O comércio frutuoso consiste na sem todavia os chegarem a analisar no seu conjunto. Assim se
compra de uma mercadoria numa região em que é facilmente explica que as suas análises sejam freqüentemente ambíguas e
produzida, em que o seu preço é portanto baixo, para a revenda contraditórias, enquanto as suas conclusões práticas são por vezes
numa região em que o seu preço é elevado, porque é difícil de contestáveis.
produzir ou porque se não pode produzir. Os mercantilistas fazem da riqueza o fim da vida social. Mas
Na agricultura e indústria, o lucro da empresa capitalista não entendem atacar frontalmente a idéia da primazia do Estado.
depende da possibilidade que lhe é dada de vender a massa de Pelo contrário, esforçam-se por mostrar que uma tal concepção está
produtos que regulamente obtém. Para isso, necessita de em perfeita harmonia com a que vê no poder do Estado o fim
mercados. Encontra-os em parte na sua vizinhança imediata, supremo da atividade humana.
porque a baixa dos custos de produção engendrada pelo emprego A riqueza, pensam eles, é antes de tudo o lucro dos
de novas técnicas permite-lhe vender mais barato que os mercadores e dos manufatureiros, que se acumula e engendra
agricultores ou os artesãos tradicionais, e portanto suplantá-los. novos lucros.
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A massa dos lucros depende do desenvolvimento das indústria e do comércio de exportação, portanto o aumento dos
exportações e das indústrias exportadas. lucros. Mas, reciprocamente, o desenvolvimento do comércio, da
Mas a condição deste desenvolvimento é a abundância dos indústria, permite ocupar um maior número de homens, o que
homens no mercado do trabalho e a abundância do dinheiro, que favorece o desenvolvimento da população, vantajoso para o Estado.
permite emprestar facilmente para financiar as operações Os chefes dos novos estados nacionais mostram-se muito
industriais e comerciais. cedo preocupados com aumentar o número das pessoas ocupadas
Ora a abundância dos homens e do dinheiro é na produção de bens. Para este fim, vários regulamentos reais
precisamente o fim que o Estado visa, dado que o seu poder surgiram, os mais célebres dos quais são os regulamentos ingleses.
dependa das facilidades que lhe são dadas para formar exércitos O estatuto dos artesãos (artificers) de 1563, que permanecerá
e constituir tesouros de guerra. em vigor até 1813, comporta a obrigação do trabalho, regulamenta a
A riqueza dos mercadores obtém-se, portanto, pelos aprendizagem e as condições do trabalho e defende o princípio
próprios meios que asseguram o poder do Estado. Se bem que os segundo o qual os salários devem estar em relação com o custo de
fins visados pelos mercadores e pelo Estado não sejam os vida.
mesmos, estes fins estão, todavia, ligados no âmago do processo A famosa lei dos pobres (161) reprime ferozmente a
social. A sociedade, tal como existe, orientada inteiramente para a vagabundagem e obriga as paróquias a socorrerem os indigentes.
realização de um crescimento ilimitado do enriquecimento da As preocupações que inspiram esta legislação encontram-se
classe dos mercadores, não contém contradições fundamentais. na pena dos autores mercantilistas.
Esta primeira teoria das harmonias econômicas poderia ser O que se procura obter de todas as maneiras é o trabalho
resumida dizendo que o desenvolvimento da indústria e das abundante e barato. Evidentemente, uma solução é obrigar os
exportações, que é para os mercadores o fim a atingir (é isso que populares a trabalhar. É o que é preconizado por Montchrestien. Mas
dá lucros), é o meio para o Estado atingir o seu próprio fim: a considera-se também como desejável que a população seja
abundância em homem e em dinheiro; enquanto, reciprocamente, numerosa, para que os salários não subam. Esta relação de causa a
a abundância em homem e em dinheiro, fim para o Estado, é o efeito é levantada com clareza por Josiah Child e por Bernard
meio que permite aos mercadores atingirem o seu próprio fim. Mandeville.
Em nenhuma obra mercantilista se encontra este raciocínio Aliás, os baixos salários, a pobreza dos trabalhadores, não
de forma tão rigorosa. Todavia, ele resume corretamente, cremos, são apenas um meio de baixar os custos de produção e de aumentar
o conteúdo da doutrina. os lucros. São também, pensam os mercantilistas, o meio de obrigar
Examinaremos primeiramente as teses relativas à o povo a trabalhar mais. Sir William Petty propõe mesmo que se
abundância dos homens, concebida simultaneamente como um mantenham elevados os preços do trigo nos anos de boas colheitas,
meio e como um fim; depois, as teses relativas à abundância da a fim de evitar que os trabalhadores se alimentem com demasia
moeda. facilidade e façam má cara ao trabalho. Os mercantilistas
1º - O Populacionismo dos mercantilistas - Os pronunciam-se de igual modo, às vezes, contra a educação do povo,
mercantilistas são populacionais, isto é, favoráveis ao aumento da que ariscaria exaurir as fontes de mão-de-obra.
população no país. Este aumento, pensam, permite obter Igualmente muito característica é atitude adotada em relação
facilmente a mão-de-obra e favorece o desenvolvimento da ao trabalho das crianças. Colbert declarava que “a ociosidade dos
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primeiros anos é a fonte das desordens do resto da vida” e fazia preços. Numerosos especialistas atribuem-na às mutações
trabalhar nas suas manufaturas crianças de 6 anos. Numa das sua monetárias, que reduzem muitas vezes o conteúdo metálico das
obras, Barthèlemy Laffemas louva as invenções que permitem moedas. Mas em 1568, Jean Bodin, celebre jurista angevino,
fazer trabalhar as crianças. combate esta opinião num opúsculo intitulado Respostas aos
Contudo, se o aumento da população favorece de várias Paradoxos do Sr. Malestroit sobre o Encarecimento de Todas as
maneiras o desenvolvimento dos negócios, inversamente, este Coisas. Atribui as altas dos preços principalmente ao afluxo dos
desenvolvimento favorece o povoamento dos estados e, por metais preciosos provenientes do Novo Mundo e tenta formular uma
conseqüência, o aumento do seu poder. lei segundo a qual o poder de compra das moedas de ouro e de
Encontramos esta tese no ponto de partida das análises de prata é inversamente proporcional à quantidade de ouro e prata
Hales. Rara vezes será afirmada depois de maneira tão clara. existente num país.
Todavia, temos de pensar que, em geral, é implicitamente Este foi o ponto de partida de uma longa controvérsia que
admitida, dado que os mercantilistas permanecerão as mais das levou no século XIX ao que se chamou a teoria quantitativa da
vezes favoráveis ao crescimento da população, a despeito da moeda, teoria segundo a qual o valor de uma moeda, qualquer que
situação extremamente miserável da maior parte do povo. seja a sua natureza é determinada pela quantidade em circulação,
2º - As teses monetárias do mercantilismo - O sendo o seu valor inversamente proporcional à sua quantidade.
desenvolvimento do comércio exige o desenvolvimento da massa Este fato, Bodin tenha razão em ligar a alta dos preços do
monetária em circulação. Este princípio foi constantemente século XVI ao afluxo dos metais preciosos à Europa; mas errava não
reconhecido pelos autores do mercantilistas. vendo que o valor dos metais preciosos em geral é determinado pelo
Todavia, não basta que a moeda seja abundante. É seu custo de produção e que, se os metais preciosos se tornam
necessário também que seja boa, isto é, que tenha um poder de mais abundantes em tal ou tal momento, é que acontecimentos tais
compra constante num circulo tão largo quanto possível. Nesta como a descoberta de novas jazidas, mais fáceis de explorar,
época, isso significa que as peças metálicas devem conservar um baixam o seu custo. Esta relação entre o valor dos metais preciosos
peso constante. e o seu custo só será enunciada em 1662 pelo inglês Willim Petty.
Numerosas discussões ocorreram, desde o final da Idade A tese desenvolvida por Bodin será admitida quase
Média, sobre os efeitos da alteração das moedas, isto é, da universalmente no século XVII. Mas isso não impedirá que se
diminuição, decidida pelos poderes públicos , da quantidade de mantenha a idéia, fundamental em todos os mercantilistas, segundo
metal que contém. No século XIV, vários escritores anônimos a qual a riqueza de uma nação está ligada à posse de uma grande
formulam a lei segundo a qual “a má moeda expulsa a boa”. Esta abundância de moedas.
lei é igualmente enunciada nesta época por Nicolau Oresme (bispo Isso pode explicar primeiramente pelo fato de que a alta dos
de Lisieux, morto em 1382) no seu Tratado da Primeira Invenção preços permite finalmente ao mercador aumentar os seus lucros.
das Moedas. Será retomada, nomeadamente, no século XVI, pelo O mercantilista Gerard Malynes declara que vale mais pagar
inglês Thomas Gresham (1519-1579) e conhecemo-la hoje pelo caro as subsistências se ao mesmo tempo se vender caro ao
nome de lei de Gresham. estrangeiro, porque os lucros dos mercadores serão também mais
Depois da descoberta do Novo Mundo, um fenômeno elevados. Um outro autor do século XVII, Fortrey, declara que nada
econômico que se impõe à atenção da Europa é o da alta dos deve ser barato a não ser a moeda. Child escreve em 1668: “Quando
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os aprovisionamentos são caros, as pessoas estão ricas; quando aumento de quantidade de moeda, não valendo nada as leis
são baratos, as pessoas estão pobres”. Finalmente, o autor positivas em face das leis de natureza.
anônimo de um opúsculo sobre os Usos e os Abusos da Moeda Por conseguinte, a abundância da moeda surgiu de várias
pretende mostrar que os preços altos são vantajosos porque maneiras como o meio de favorecer o comércio longínquo e a
baixam o nível de vida dos trabalhadores e tornam estes mais realização dos lucros particulares. Mas, por outro lado, a abundância
laboriosos. de moeda é para o Estado um fim em si, porque lhe dá o poder. E
Mas, por outro lado, para compreender como, a despeito da atinge esse fim precisamente por meio do desenvolvimento das
adesão à teoria quantitativa da moeda, os mercantilistas são exportações, que enriquece os mercadores. A harmonia dos
favoráveis à abundância monetária, é necessário ver que eles interesses dos mercadores do Estado é, assim, segundo os
estabelecem um elo entre esta abundância e as condições de mercantilistas, absolutamente garantida também neste domínio.
financiamento das operações comerciais. Eles pensam que O poder do estado depende da possibilidade que lhe é dada
havendo muito dinheiro em circulação é mais fácil emprestar, e por de constituir reservas monetárias para sustentar nomeadamente a
conseqüência realizar negócios frutuosos. sua política externa. E esta possibilidade depende da abundância de
Thomas Culpeper (pai) publica em 1621 um Manifesto moeda no país. Esta tese é já claramente posta por Hales.
contra a Usura, que será várias vezes reimpresso no século XVII. Se Sua Graça [escreve] tivesse necessidade em tempo de
Nesta obra, expõe que, se o juro for a 10 por cento, todos os guerra de um tesouro destinado a pagar as armaduras, as armas, os
negócios que não rendam pelo menos 10 por cento serão aprestos dos navios, os canhões e a artilharia que se usam durante
abandonados. Além disso, uma taxa elevada de juro desencoraja as hostilidades, não poderia, de nenhuma maneira, tirar dos seus
os melhoramentos fundiários, os trabalhos de preservação das súditos com que comprar tudo isto. Em que situação se encontraria
florestas, a realização das descobertas além-mar, o então o reino? Seguramente num passo perigoso. E eis por que a
estabelecimento de plantações. Em contrapartida, a baixa da taxa moeda e os tesouros são chamados pelos sábios nervi bellorum, isto
de juro aumenta o valor das terras. Pronuncia-se, pois, pelo é, o nervo da guerra.
abaixamento da taxa de juro legal. Defendeu-se muitas vezes, desde o advento da doutrina
Este abaixamento foi de fato realizado. O juro legal, por liberal, que o desejo dos mercantilistas de atrair os metais preciosos
volta de 1650, desceu para 6 por cento. assentava numa concepção errada da origem da riqueza nacional e
Sir Josiah Child felicita-se por isso num opúsculo de 1668 e dos rendimentos do Estado. Isto só é parcialmente verdadeiro,
defende que esta medida é uma das causas da propriedade da porque, no século XVI, para fazer face às suas despesas
Inglaterra. Mas afirma também que isso se tornou possível excepcionais em caso de guerra, o Estado deve contar
graças à abundância de moeda: a natureza, segundo ele diz, essencialmente com stocks de metais preciosos que detém. Na
preparou o caminho para a intervenção do legislador. O mesmo medida em que queriam mostrar quais eram os meios do Estado de
autor, respondendo a contraditores, afirma novamente estas aumentar o seu poder, os mercantilistas não erravam, por isso
concepções em 1690 no seu Discurso sobre o Comércio. mesmo, em insistirem na necessidade de fazer entrar os metais
No mesmo ano aparecia a obra póstuma de Sir William preciosos.
Petty: A Aritmética Política. Indo mais longe que Child, o autor O que se deve censurar a certos mercantilistas é chegarem a
defendia que a baixa a taxa de juro era unicamente devida ao confundir as moeda ou os metais preciosos com a própria riqueza,
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esquecendo a lenda do rei Midas, que, porque mudava em ouro para a venda ao exterior, que nos permitisse adquirir outras
tudo o que tocava, foi ameaçado de morrer de fome. comodidades e um tesouro.
Esta confusão encontra-se em Hales, mas seguidamente a No século XVI, os príncipes esforçavam-se geralmente por
maior parte dos mercantilistas evita-a com cuidado. Montchrestien, manter e aumentar o stock de metal precioso por medidas como a
por exemplo, escreve que “nunca é abundância do ouro ou da proibição da exportação do ouro e da prata, o alteamento das
prata, a quantidade de pérolas e de diamantes, que fazem os moedas (que consistia em atribuir às moedas estrangeiras um poder
estados ricos e opulentos; é a acomodação das coisas de compra superior no país aquele que lhe dava o seu conteúdo
necessárias à vida e próprias do vestuário.” metálico), a obrigação imposta às indústrias de pagar as suas
Todavia, a preocupação essencial do autor do primeiro compras no estrangeiro em mercadorias e de trazer para o país as
Tratado da Economia Política é ainda procurar “os meios de atrair moedas estrangeiras obtidas pelas suas vendas no estrangeiro.
ao país os metais preciosos”. Hales é dos primeiros que compreendem que estes processos não
podem ser realmente eficazes e que o metal precioso sairá
Pode afirmar-se agora [escreve] que não vivemos tanto pelo necessariamente do reino se os súditos tiverem de pagar no
comércio do gêneros como pelo ouro e pala prata; são dois estrangeiro compras mais importantes que as suas vendas.
grandes e fiéis amigos. Suprem as necessidades de todos os Seguidamente, os escritores mercantilistas analisam de maneira
homens. cada vez mais precisa o mecanismo em virtude do qual o excedente
E mais adiante conclui: das dividas a liquidar no estrangeiro arrasta uma baixa do curso das
É necessário dinheiro, e não o tendo da nossa lavra, é letras de câmbio formuladas em moeda nacional e uma saída de
necessário buscá-lo no estrangeiro. metais preciosos.
Para obter dinheiro é preciso desenvolver as exportações; Mas para desenvolver as exportações de um país é
isto é claramente indicado por Hales, que escreve: necessário haver mercados. Logicamente, os mercantilistas pregam
Dado que nos ocupamos momento dos artesãos, vou fazer a conquista das colônias. É o caso, nomeadamente, de
a sua classificação. Há os que fazem sair o dinheiro do país, Montchrestien.
outros despendem o que ganham na região, e a terceira categoria O nosso autor não deixa de sublinhar que a colonização tem
é constituída por aqueles que fazem entrar dinheiro no reino... por fim “fazer conhecer o nome de Deus, nosso criador, a tantos
Também nós devemos dar a nossa preferência à terceira classe, povos bárbaros, privados de toda a civilização, que nos chamam,
que é composta por tecelões, tanoeiros, obreiros de bonés, que nos estendem os braços, que estão prontos a sujeitar-se a nós a
cardadores de lã, os únicos que eu saiba que, pelo seu mister e fim de que, por santos ensinamentos e por bons exemplos, os
pelo seu trabalho, nos atraem dinheiro... As vilas e cidades encaminhamentos na via da salvação”. Mas, por outro lado, não
deveriam encher-se de toda a espécie de artesãos... de tal esquece que as colônias estão na origem do desenvolvimento do
maneira que não só tivéssemos com que aprovisionar o reino comércio, e, portanto, da riqueza do estado e dos cidadãos:
unicamente da sua produção e assim impedir que somas Como o próprio Deus promete aqueles que procuram o seu
importantes de dinheiro fugissem, como presentemente acontece, reino acrescentar de cogulo o seu bem, não se pode duvidar de que,
mas ainda pudéssemos ter uma reserva completamente pronta além da benção de Deus, que viria a este grande e poderoso estado
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por empresas tão piedosas, tão justas e tão caritativas..., se igualmente toda a espécie de medidas a favor do desenvolvimento
inesgotáveis fontes de riquezas. da indústria.
O círculo da demonstração mercantilista encontra-se assim É favorável aos regulamentos que garantam o valor
fechado no domínio monetário. Não se pode deixar de pensar aqui profissional dos artesãos:
nesta declaração que fazia, há alguns anos um ministro Não posso admirar-me bastante do erro a que podem ter dado
americano: “O que é bom para a General Motors é bom para os lugar as cartas de bula neste reino, por meio das quais é permitido,
Estados Unidos”. O mesmo tipo de afirmação está contida na dando algumas somas, fazer profissão de um mister qualquer que se
doutrina mercantilista. Vimos quais os argumentos que foram pretenda... sem ter feito a obra-prima e muitas vezes mesmo a
carreados em apoio desta afirmação. É necessário sublinhar aqora aprendizagem.
que os nossos autores deduzem daí toda uma série de Pode, por outro lado, que se criem manufaturas do Estado:
recomendações que dirigem aos princípios, recomendações que Vossa Majestade [escreve] permitirão, se acharem bem, que
constituem uma política econômica relativamente coerente e que se estabeleçam nas diferentes províncias de França várias oficinas
corresponde, aliás, numa larga medida, à prática do tempo. de misteres que são os mais necessários, universalmente falando,
A política econômica recomendada tende, antes de mais, a dando a superintendência e a direção daqueles, com privilégios e
favorecer o aparecimento de um excedente na balança comercial honrados, a espíritos capazes e plenos da inteligência requerida a
do país. cada um segundo a sua espécie, a fim de que repartam
“Creio”, escreve Hales, “que não saem menos de cem mil judiciosamente as tarefas e labores entre os artífices, segundo o seu
libras por ano dos nossos cofres em troca de objetos sem nenhum alcance e capacidade adquirida ou natural.
valor intrínseco a não ser o do trabalho dos seus E se, o cuidado de precisar que “este trabalho público não
confeccionadores, os quais conseguem ter que fazer à nossa prejudicará de modo algum o particular, porque apenas suprirá a sua
custa. Que estupidez a nossa ! Suportamos isto, deixarmo-nos falta e será introduzido no lugar do estrangeiro, que não pode ser
despojar continuamente dos nossos bens e do nosso dinheiro por admitido senão com grande dano de todo o país”.
meios semelhantes e especialmente permitirmos que as nossas
matérias-primas deixem o país, se tornem uma ocasião de C) O MERCANTILISMO, EXPRESSÃO DA ALIENAÇÃO NA
trabalho para os estrangeiros, a quem seguidamente as RIQUEZA
compramos !” A doutrina mercantilista é importante, antes de mais, porque
Em França, na sua República, Jean Bodin preconiza que o contém o primeiro esboço de uma ciência da economia.
conjunto das medidas que formam o arsenal clássico da época Efetivamente, no quadro desta doutrina já se procura estabelecer, de
mercantilista: proibição da saída das matérias-primas necessárias maneira bastante ampla, relações de causa e efeito entre diferentes
à indústria nacional, limitação da entrada dos produtos fenômenos da vida econômica. Deste ponto de vista, a tese segundo
estrangeiros manufaturados, com exceção de certas matérias úteis a qual as variações da quantidade de moeda são as causas da
à indústria nacional. variação dos preços, por contestável que seja, e inteiramente típica.
Montchrestien insiste particularmente na necessidade de O estabelecimento de uma relação precisa entre os movimentos
reservar o comercio aos nacionais e impedir que os mercadores internacionais da moeda e a situação da balança comercial dos
estrangeiros façam sair o ouro e a prata do reino. Mas preconiza diferentes países resulta igualmente de uma análise cientifica dos
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fenômenos econômicos, no sentido moderno deste termo. Estas criações sociais alienantes encontram-se
Poderiam ser citadas outras leis econômicas formuladas nesta nomeadamente na esfera das relações econômicas dominadas pela
época. É, por exemplo, um mercantilista, Gregory King, que procura do ganho no mundo da riqueza.
formula, no final do século XVII, a relação a que se dá hoje o nome Os mercantilistas estudam este último e revelam-nos
de lei de King, defendendo que o preço global da clheita de trigo efetivamente alguns dos seus caracteres. Mas estão muito longe de
num país europeu diminui quando a quantidade de trigo colhido revelar os fatores de alienação humana que encobre. É o que faz a
aumenta. fraqueza das suas análises.
Todavia, a importância do mercantilismo reside também no Os mercantilistas dão-se por tarefas pôr em evidência as
fato de ele exprimir de maneira particularmente clara espirito da solidariedades de interesse que se criam no interior do seu mundo:
época, que vem desde o Renascimento e que é ainda o nosso: solidariedade dos interesses privados entre si ou solidariedade dos
espírito dos tempos modernos. interesses privados e do interesse do príncipe. Mas, por um lado, as
O homem dos tempos novos, na medida em que reflete no solidariedades que invocam surgem como extremamente precárias.
sentido da sua vida, não acredita, como o cidadão da cidade E, por outro lado, as suas próprias análises mostram que no mundo
antiga, que o seu destino seja o de assegurar a permanência e a capitalista os antagonismos entre os homens têm efetivamente um
irradiação da comunidade de homens livres à qual pertence. lugar muito mais importante do que as solidariedades.
Pensa que a sua missão é ganhar dinheiro. Os mercantilistas apresentam os mercadores e
Este homem que quer antes de mais “fazer dinheiro” é o manufatureiros de uma mesma nação como um corpo unido cujos
burguês cujo o retrato foi muitas vezes desenhado. É incontestável interesses seriam sempre idênticos e em harmonia com o interesse
o responsável pela revolução econômica que tão prodigiosamente do príncipe. Ora é bem evidente que este quadro não corresponde à
desenvolveu as forças produtivas de uma parte da humanidade e realidade. Os mercadores estão longe de estarem sempre de acordo
que engendrou a civilização industrial moderna. Não podemos entre si e com o Poder Público.
imaginar que tivesse podido não existir. Mas é igualmente Os mercadores e manufatureiros de uma mesma nação fazem
importante compreender que o desenvolvimento das forças concorrência uns aos outros. A cada momento os mercadores são
produtivas se realizou numa época em que a consciência humana limitados; cada qual luta por se apoderar deles. A caça `a riqueza, no
está profundamente alienada e despedaçada. quadro do capitalismo, implica, pois, um antagonismo fundamental
A partir do Renascimento, o homem retomou a confiança entre os membros da classe que tem possibilidade de se enriquecer.
em si próprio. Ultrapassou essa atitude desesperada que Por outro lado, é claro que os interesses dos mercadores e os
caracteriza o mundo e a Idade Média. Mas não renasce do mesmo do Estado estão de ser sempre concordantes. Os mercantilistas
modo a comunidade espiritual da cidade antiga. Os indivíduos querem demonstrar que uma certa política econômica
permanecem radicalmente separados uns dos outros. As é favorável simultaneamente aos mercadores e ao Estado. Mas na
realidades sociais que vão nascer surgem, pois, como entidades realidade essa política não convém a todos os mercadores.
estranhas a cada indivíduo, dominando a sua consciência pessoal, Podem realizar-se lucros importantes exportando materias-
se bem que não sejam mais que criações humanas. primas, mesmo que sejam indispensáveis à indústria nacional, ou
importando produtos fabricados, embora entrem em concorrência
com a indústria nacional. É precisamente por isso que os
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mercantilistas reclamam medidas de proibição ou de limitação do Os conquistadores europeus da primeira vaga colonial
comércio. Mas o fato de estas medidas serem necessárias prova entregaram-se, antes de mais, à pilhagem sistemática dos territórios
precisamente que os interesses em presença não são descobertos. Quando chegaram a tentar uma exploração mais
convergentes. regular dos recursos dos recursos desses territórios, debateram-se
Aliás, ainda que as teses dos emrcantilistas fossem válidas, com o problema da penúria da mão-de-obra. Para o resolver, não
a sua visão da harmonia social na procura do lucro seria encontraram nada melhor que a escravatura, e organizaram o vasto
inaceitável. Na verdade, na sociedade capitalista nascente, só um e frutuoso tráfico de escravos, que povoou de negros uma parte da
pequeno número de pessoas beneficia do desenvolvimento América.
econômico: os próprios mercadores e a pobreza, na medida em Na América, os Espanhóis arrogaram-se o direito de reduzir à
que participa da prosperidade do Estado. Mas a massa do povo vê escravatura “os indigenas que resistem à conquista, à propagação do
geralmente a sua situação agravar-se, de maneira que se cria um Evangelho ou ao estabelecimento de um comércio regular”.
antagonismo crescente entre as camadas inferiores e superiores Utilizaram também diferentes formas de trabalho forçado. Mas, não
da sociedade. bastante isso, recorreram aos escravos negros importados da África.
Para nos cingirmos à lembrança de alguns fatos relativos à Como não possuíam estabelecimento em África, o tráfego
história da França, pode notar-se que, na primeira metade do negreiro foi organizado pelos Holandeses, pelos Ingleses e pelos
século XVII, as revoltas populares lavram em França em estado Franceses. Foi assim que em 1702 a Companhia Francesa de Guiné
endêmico. Estalam em 1630 em Caen, Lyon e Angers, em 1631 fechou um contrato com o rei de Espanha para o fornecimento de 38
em Lyon e na Provença, em 1632 em Lyon novamente, em 1635 000 negros por ano. Depois da vitória da Inglaterra sobre a França e
na Guiana. Os anos seguintes assistem ao lavramento dos do Tratado de Utrecht, os Franceses tiveram de rescindir o contrato
croquants do Poitou e do Limousin. Em 1639, 20 000 camponeses em proveito dos Ingleses.
põem o campo em armas sob a direção de Jean Va-nu-pieds et Como se sabe, a mão-de-obra negra foi utilizada assim de
Bras-nu. Em 1641, 4000 homens apoderam-se de Avranches, etc. maneira maciça nas Antilhas e no Sul da América do Norte pelos
Para completar o quadro do capitalismo nascente, é colonos franceses e ingleses.
necessário, evidentemente, sublinhar que este se caracteriza pelo Estes diferentes aspectos da história real do mundo na época
desenvolvimento do antagonismo entre os principais estados do mercantilismo mostram, com bastante clareza, que as novas
avançados da Europa ocidental e pela extensão da tentativa de criações do espírito no domínio político e econômico são criações
denominação brutal da Europa sobre o resto do mundo. alienantes, nas quais os homens se perdem e são esmagados.
Seguramente, esses objetivos não são dissimulados pelos O homem da Europa ocidental, que mostra um tal poder
mercantilistas, mas estes não parecem suspeitar das alienações criador no domínio técnico e cultural, parece incapaz de criar uma
que a eles se ligam, em particular a alienação dos povos sociedade política verdadeiramente humana, isto é, correspondendo
colonizados, conseqüência da luta que é conduzida contra as suas ao ideal antigo da paz e da amizade entre os cidadãos. Existe, assim,
instituições e a sua cultura própria, assim como dos processos de uma contradição radical no seio da civilização ocidental moderna, de
valorização dos recursos dos seus territórios (comportando que certos pensadores muito cedo tomaram consciência.
nomeadamente a implantação de um sistema esclavagista de Enquanto os mercantilistas louvam sem reservas os costumes
produção em várias regiões do Mundo). do tempo, levantam-se também protestos: os mais notáveis são os
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dos grandes utopistas do Renascimento, que vão dar uma vida do Estado e torna-se chanceler da Inglaterra. Todavia, o rei Henrique
nova à idéia da comunidade dos bens. VIII está em dificuldades com o papa, que lhe recusa a anulação do
casamento que permitiria desposar a amante, Ana Bolena. O rei
4 - O COMUNISMO DE MORO E DE CAMPANELLA decide então passar à ofensiva e faz-se reconhecer pelo clero como
Entre as obras da Antigüidade, os homens do o chefe supremo da Igreja da Inglaterra. Moro tomara já posição com
Renascimento encontram a República de Platão e entusiasmaram- a maior energia contra a revolta de Lutero; não hesita também
se freqüentemente com a sua descrição de uma sociedade quando se trata do seu próprio soberano, e demite-se das suas
comunista. funções de chanceler em 1532. Dois anos depois, o Parlamento
Vêem-se espíritos brilhantes cultivarem novamente a idéia rejeita formalmente a autoridade do papa e declara culpados de alta
de um regresso a uma idade de ouro ou a um estado de pura traição aqueles que recusarem aceitar este ato. Intimado a prestar
natureza, estado no qual a integração perfeita dos indivíduos na juramento, o antigo chanceler recusa com uma tranqüilidade
sociedade era inteiramente realizada, nomeadamente porque se admirável; é aprisionado, julgado e finalmente decapitado a 6 de
ignorava a propriedade. Julho de 1535. A Igreja Católica declarou-o beatificado; depois
Erasmo comenta nos seus Adágios o provérbio citado por recentemente, canonizou-o; de maneira que conta, no número dos
Platão: “Entre amigos tudo é comum”, e admira-se de que os seus santos, ao lado de Santo Tomás de Aquino, o apologista da
cristãos mostrem uma tal desconfiança a respeito do regime da propriedade privada, S. Tomás Moro, o apologista do comunismo.
comunidade dos bens. Na verdade, afirma, “nunca filósofo pagão Além dos opúsculos religiosos, dos poemas e das crônicas,
disse alguma coisa que se aproximasse mais do pensamento de Tomás Moro escreveu um pequeno livro no qual preconiza o regime
Cristo”. Um outro grande humanista, Giordano Bruno, queimado comunista, livro que teve uma repercussão notável, dado que nele se
como herético em 1600, declarava-se igualmente a favor do inspirarão todos os reformadores sociais dos séculos seguintes:
comunismo. Publicado em Lovaina, em 1516, em latim, o seu título completo é o
Os dois grandes sucessores de Platão, no início dos seguinte: Libellus vere aureus nec minus salutaris quam
tempos modernos, foram Tomás Moro e Tommaso Campanella. festivus de optimo reipublicae status, deque nova insula Utopia.
Todavia, se devem a Platão a idéia central das suas teses sociais, Mais brevemente, chamar-lhes-emos a Utopia.
a filosofia que os inspira não é apenas a filosofia platônica. A obra contém duas partes bem distintas, uma parte crítica e
1º A sociedade comunista de Thomás Moro - Tomás uma parte construtiva.
Moro, filho de um juiz de Londres, nasceu nesta cidade em 1478. Num primeiro livro, o autor faz uma crítica acerba do regime
Estudou grego em Oxford, depois Direito em Londres. Foi um político e social do seu tempo; ou antes fá-la fazer por diferentes
cristão de uma fé profunda e de uma grande piedade. Esteve personagens, porque, pondo de lado as distinções escolásticas
quase a ordenar-se padre, mas receou não poder respeitara subtis, adota o método platônico do diálogo.
obrigação da castidade; casou-se pois, e teve vários filhos das Alguém louva a severidade da legislação inglesa a respeito
suas duas sucessivas mulheres. É o primeiro advogado de dos ladrões. Mas um outro responde que seria muito preferível suprir
Londres; entra no Parlamento, depois torna-se vice-presidente da as causas do latrocínio, que são de ordem econômica. Efetivamente,
capital. Infelizmente, em 1518, o rei põe nele os olhos e fá-lo por que é que se vêem tantos vagabundos incapazes de ganhar a
entrar no seu conselho privado; em 1529, aceita o mais alto posto sua vida ? Primeiramente, porque os nobres “não só passam a vida
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sem fazer nada... como arrastam consigo escolta de vadios”, que, conquistas, contra a alteração das moedas, enfim contra os
à morte do seu mestre, não terão outro recurso senão a rapina. princípios do absolutismo.
Seguidamente, porque os proprietários fundiários atraídos pelo Preocupa-se, finalmente, com refutar a tese segundo a qual a
engodo do ganho, “não satisfeitos com viverem larga e pobreza dos súditos seria garantia do soberano:
preguiçosamente sem nada fazerem para a comunidade”, Enganam-se [escreve] quando pensam que a miséria do povo
apressam-se a transformar os seus campos em pastagens e a é uma garantia de paz; senão onde é que há mais questões do que
expulsar os camponeses que se tornam inúteis. A causa da entre os mendigos ?
miséria e do latrocínio está nos carneiros, “os vossos carneiros tão Porque é então necessário que exista uma tal distância entre a
mansos, tão fáceis de alimentar com pouca coisa, mas que, política real e a política ideal ? É Hitlodeu, o navegador português,
segundo me dizem , começam a ser tão glutões e tão indomáveis que nos vai responder agora. O seu discurso, que termina o primeiro
que devoram os próprios homens”. É necessário acrescentar, livro da Utopia, é talvez a parte mais importante:
finalmente - Moro não tem medo de o fazer -, a proliferação Meu caro Moro [diz], para te dizer o fundo do meu
excessiva dos monges medicantes. pensamento, onde todos medem todas as coisas segundo o dinheiro
A situação econômica é tanto mais funesta quanto as é quase impossível que a justiça e a prosperidade reinem na coisa
mercadorias são mantidas a preços elevado pelas manobras pública... Este homem sapientíssimo vira que existe um só e único
daqueles que as detêm e que são em pequeno número. Para a caminho para a salvação pública, a saber, a igualdade, que não me
venda da lã, particularmente, senão há exatamente um parece poder ser realizada onde os bens pertencem aos
monopólio, existe pelo menos um oligopólio, que engendra a particulares... Estou, pois, convencido de que os bens não podem ser
carestia. É ao conjunto destes males econômicos que é repartidos eqüitativa e racionalmente, que os interesses dos homens
necessário declarar guerra. Em lugar de enforcar os miseráveis, é não podem ser administrados acertadamente, se não se suprimir
necessário suprimira miséria. totalmente a propriedade.
O conjunto desta discursão é relatado por uma personagem É então que vai começar, com o livro II, a parte construtiva da
que intervém agora num novo diálogo. Aborda-se desta vez o obra, consagrada ao relato, feito pelo navegador, da sua visita à ilha
governo: pergunta-se se, para melhorar a sociedade, se pode bem-aventurada da Utopia, que, como o nome indica, não existe em
contar com a sabedoria dos reis, esclarecida, pelos filósofos. nenhuma parte (u-topos = sem lugar).
Estava aí, como sabemos, a esperança de Platão. Aqui, no início, A ilha contém 54 cidades, cujos habitantes dispõe, para se
as opiniões dividem-se, mas o ceptismo acaba por levar a melhor. alimentarem, de um território suficiente. Instalam-se por turnos no
É que existe uma distância muito grande entre as máximas campo para cultivar a terra e, além disso, no tempo da colheita,
seguidas habitualmente pelos princípios e as verdadeiras regras fornecem-se ao campo todos os trabalhadores que são necessários.
de um bom governo. Ao estabelecer o paralelo de umas e doutras, Na cidade, como nos campos, tudo pertence a todos; as casa
o autor da Utopia levanta um requisitório contra a política que mudam de habitantes por tiragem à sorte todos os dez anos; e aliás
Maquiavel sistematiza pela mesma época. Precedentemente, as suas portas não têm fechadura.
ergue-se contra a manutenção de um exercito como remédio para Homem e mulher, cada qual deve aprender a trabalhar a terra
o desemprego, dizendo que “é necessário ter muito mais em conta e ainda um mister urbano à sua escolha. Suprimida a ociosidade,
a paz do que a guerra”. Agora insurge-se contra as alianças e as pode-se assegurar-se o bem-estar de todos com um dia de trabalho
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de seis horas; e isto tanto mais facilmente quanto o gosto de luxo se vê aí nem pobre nem mendigo, e, ainda que ninguém tenha nada
não tem possibilidade de se desenvolver. de seu, todavia, toda a gente é rica...
São fixadas as horas do trabalho, do sono e das refeições; Não é iníqua e ingrata a sociedade que prodigaliza tantos bens
há a possibilidade de cada um tomar as refeições em sua casa, àqueles a que chamam nobres, aos joalheiros, aos ociosos ou aos
mas todos preferem tomá-las em comum, porque as refeições artesãos de luxo, que só sabem adular e servir as voluptuosidades
coletivas são bem preparadas, toca-se música e queimam-se frívolas? Para mais quando ela, por outro lado, não tem coração,
perfumes. Os lazeres são livres; a maioria emprega-os no estudo. nem pensamento, para o trabalhador, o carvoeiro, o servente de
A organização política das cidades da Utopia assenta na pedreiro, o carreteiro, o operário, sem os quais não existiria a
família, que nunca compreende menos de 40 pessoas. Cada sociedade. No seu cruel egoísmo, abusa do vigor da sua juventude
grupo de 30 famílias elege os funcionários, uma determinada para tirar deles o maior trabalho e lucro; e, logo que enfraquecem sob
categoria dos quais escolhe o príncipe numa lista de quatro nomes o peso da idade ou da doença, então, quando tem falta de tudo,
estabelecida pelo povo. esquece as suas numerosas vigílias, ou seus numerosos e
A grande tarefa do governo é dirigir a produção e a importantes serviços, recompensa-os deixando-os morrer de fome.
repartição dos bens. Uma vez repartido os gêneros nos celeiros Come se vê, a sociedade encarada por Moro é muito diferente
públicos em proporções convenientes, “cada chefe de família vem da republica de Platão. A família é conservada, o trabalho manual é
procurar tudo de que tem necessidade e leva-o sem pagamento, obrigatório para todos, não há mais classes sociais, e o regime da
sem compensação de qualquer espécie. Por que recusar alguma comunidade dos bens é estendida a todos os cidadãos. Não se trata
coisa a alguém, dado que tudo existe em abundância e ninguém já de uma sociedade aristocrática, como a de Platão, mas de uma
teme que o vizinho peça mais do que necessita? Senão, porque sociedade ultrademocrática. A generalização do trabalho e a
reclamar demais quando se sabe que nada será recusado? O que supressão da propriedade são as condições estreitamente ligadas da
nos faz ávidos e repaces é o terror de faltar...” igualdade e da liberdade cívicas. Assim é já desenhado de maneira
Depois de ter encarado, em vários capítulos, os problemas muito precisa o ideal moderno de uma sociedade livre de
particulares da escravatura (que restaurada num sistema de trabalhadores.
trabalhos forçados para os criminosos), da guerra, da religião, o Este ideal deriva de uma concepção do mundo que não é
autor conclui invocando as vantagens de uma tal sociedade exatamente a de Platão, mas que associa estreitamente os princípios
relativamente à que tem sob os olhos. do cristianismo e a doutrina moral de Epicuro.
Aliás, por toda a parte [escreve] os que falam de interesse Com toda a evidência, o espirito de caridade e de
geral só pensam no seu interesse pessoal; ao passo que onde desinteresse, próprio do cristianismo, é a grande fonte de inspiração
nada se possui de próprio toda a gente se ocupa seriamente das de Moro. Vemos isso também numa carta a um monge, publicada em
coisas publicas, dado que o bem particular se confunde realmente 1520, onde lemos:
com o bem geral... Para a maioria nada é santo a não ser o que eles próprios
Na utopia... onde tudo pertence a todos, ninguém tem falta fazem. A Providência de Deus revelou-se quando instituiu todas as
de nada, uma vez que estão cheios os celeiros públicos. Porque a coisas em comum e Cristo esforçou-se por conduzir novamente os
fortuna do Estado não é injustamente distribuída neste país: não homens do particular ao comum. Ele sentiu muito quanto a natureza
a nossa natureza mortal e corrompida tem necessidade de se
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submeter às coações da comunidade para alcançar o mortifica-se “por um vão fantasma de virtude” é “ato de estúpida
desprendimento: é o que nos ensina a realidade em todas as loucura”.
circunstâncias. Efetivamente, ninguém se contenta ao amar a sua Esta tentativa de conciliação de uma moral fundada na idéia
propriedade ou o seu dinheiro, nem ao servir a sua espécie ou o da bondade da Natureza com as idéias cristãs é extremamente
seu grupo: mas, como cada uma destas coisas pode ser chamada característica do humanismo do Renascimento. Não se pode dizer
nossa num certo sentido, segue-se daí que as nossas afeições se que tenha tido um grande sucesso, dado que, nos séculos seguintes,
libertem do respeito devido aos bens comuns. os partidários da bondade da Natureza e da reforma social se oporão
A inspiração cristã está aqui claramente visível. E não há aos representantes das igrejas cristãs.
que duvidar de que esta mesma inspiração esteja presente na 2º - Os fundamentos filosóficos do comunismo em
Utopia. Todavia, na sua última obra, é certo que também se Giovanni Campanella - O segundo dos grandes escritores
manifesta uma convicção da bondade natural do homem, que vem comunistas do Renascimento nasceu em Calábria em 1568. Entrado
de Epicuro. na Ordem dos Dominicanos com 14 anos, começa muito cedo a
No capítulo sobre “As viagens dos Utopianos”, Moro escrever e a fazer-se notar pela sua independência de espirito. De
explica-se largamente sobre este ponto: “Se a volúpia”, escreve, 1591 a 1598, é perseguido várias vezes e encarcerado por crime de
“não é, segundo eles o único elemento da felicidade, é um dos heresia. Em 1599, organiza uma conjura que visa liberta Calábria do
mais essenciais”. Expõe, aliás, que os Utopianos preferem os jugo espanhol com a ajuda dos Turcos e fundar um sociedade
prazeres da alma aos dos corpos, sem desprezarem estes. “De regenerada. Tendo falhado a conspiração, é aprisionado, submetido
resto”, acrescenta, “em toda a espécie de satisfações sensuais, quatro vezes à tortura, e permanece encarcerado durante
os Utopianos nunca esquecem esta regra prática: fugir da volúpia 27 anos. Compõe na prisão cerca de sessenta obras filosóficas e
que impede de fruir uma volúpia maior ou que é seguida de políticas e poemas muito belos. Em 1629, é agraciado pelo papa.
qualquer dor”. É a razão, nomeadamente, pela qual “se não deve Saído da prisão, toma a defesa de Galileu, inquietado pelas suas
fazer grande caso das volúpias carnais, senão na medida em que teorias cientificas. Perdido o favor do papa, dirige-se a França, onde
são necessárias e úteis”. goza do favor do rei Luís XIII e de todos os grandes espíritos.
Tudo isso esta bastante próximo de Epicuro. Todavia, Moro Fervente adepto da astrologia, tira o horóscopo do delfim no seu
tanta alargar a concepção epicurista da felicidade, afim de a tornar nascimento. Morre em Paris em 1639.
conciliável com o cristianismo. Declara que os Utopianos tem uma Campanella escreveu em 1602, na prisão, um opúsculo que
religião natural que os leva a acreditar na imortalidade da alma e será publicado em 1623, intitulado A Cidade do Sol. É uma descrição
a repudir o materialiamo. Assim, o homem pode, sem abandonar a da sociedade comunista do futuro, menos precisa e interessante que
procura da felicidade aceitar certos sacrifícios nesta vida. “O a de Tomás Moro. Diferentemente do seu predecessor, o dominicano
homem que tem fé nas verdades religiosas deve estar firmemente preconiza a supressão da família e a organização pelo Estado das
persuadido de que Deus recompensa a privação voluntária de um relações entre os sexos. Visto que estamos na presença de um
prazer efêmero e ligeiro com alegrias inefáveis e eternas”. E mais filósofo, é particularmenteimportânte ver quais podem ser nesta
longe Moro expõe que privar-se na esperança de uma época os fundamentos filosóficos de uma doutrina comunista.
recompensa futura é um ato “de religião sublime”, enquanto Campanella proclama-se naturalmente discípulo de Platão.
Todavia, as suas concepções filosóficas, ligadas às dos principais
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pensadores do século XVI - Telesio, Pomponazzi, Giordano Bruno homem não é, portanto, atingida com a renúncia mas com o exercício
-, estão longe de ser puramente platônicas. Devem muito ao bem regulado das faculdades naturais.
pensamento de Mestre Eckhart, que logo no século XIII afirma a Quanto à religião, ela é nos homens apenas a forma superior
unidade de Deus e do Mundo, e ao de Nicolau de Cusa de uma religião natural, comum a todos os seres e que os leva a
(1401-1464), que rejeita o princípio de contradição, levantado por render homenagem ao princípio da sua existência. Por exemplo, os
Aristóteles, e afirma a unidade dos contrários. animais prestam homenagem aos astros, que são seres mais
A primeira obra filosófica de Campanella é dirigida contra elevados em dignidade e mais próximos de Deus do que eles
Aristóteles. Para este, como sabemos, a realidade compõem-se próprios. O elefante, por exemplo, ajoelha-se diante da lua. Só o
de matéria e forma. A matéria é passiva, só é ativa a forma, que é homem presta um culto direto a Deus.
um princípio intelectual, uma idéia. O estoicismo quis socavar esta Do cristianismo, Campanella retém particularmente a doutrina
doutrina proclamando que a realidade não é mais que matéria , milenista dos primeiro séculos e, num poema, pede que se
mas que, apesar disso, o mundo material é um conjunto ordenado represente Cristo antes na sua glória de ressucitado do que no
e vivo. Campanella, depois de ter adotado as concepções estóica drama da sua Paixão.
desenvolvidas por alguns filósofos do Renascimento, verifica que Estas concepções afastam-nos muito do cristianismo
esta concepção ignora o fato primordial de que a consciência de tradicional. Certamente não poderiam ser aceites por Tomás Moro.
si esta evidentemente no homem e de que não é possível reduzi- Todavia, é certo que na Utopia se encontra também esta confiança
la à matéria. Esforça-se então por associar a idéia de fecundidade na bondade natural do homem, assim com a adesão à idéia de um
da mateira com a afirmação da presença universal da consciência religião natural.
ou do espírito. “Dado que todos os seres”, expõe Campanella, “são criados
“Todos os seres da natureza”, diz, “são, pois, dotados de pelo Amor de Deus, que é o seu princípio, o movimento histórico não
consciência. Há entre eles comunicações múltiplas, por isso é mais que o retorno do mundo à unidade donde saiu na origem dos
mesmo, que participam da alma do Mundo. Nos seres ditos tempos.
inanimados a consciência está apenas velada. Mas o sábio sabe O amor deve combater e vencer todas as formas de divisão,
descobrir as interações de todos os seres. Sabe, por exemplo, de dispersão, de oposição. A diversidade das religiões deve
como os astros agem sobre os homens e comandam a sua desaparecer, assim como a diversidade das nações. A humanidade
existência. E o sábio é também um mágico, visto que pode deve formar uma monarquia universal, governada por um chefe
comunicar com todos os seres e fazê-los agir no sentido que único, simultaneamente rei e sacerdote. Assim reencontrará o seu
deseja”. estado primitivo, natural e divino.
A causa profunda da atividade de todos os seres é o Amor, Mas neste estado natural deverá sunsistir que encadeie a
que é simultaneamente Amor de Deus e amor de si, dado que atividade na procura de um lucro ou de um bem-estar pessoal. Só o
Deus não quer outra coisa senão a realização das virtualidades amor deverá guiar os indivíduos. Eis por que a propriedade privada
que existem na Natureza. O homem, como todos os outros seres, desaparecerá, bem como o uso da moeda. Eis porque a família será
é movido por esse instinto fundamental e divino. O instinto de finalmente abolida. Tendo desaparecido o amor-próprio, fica, apesar
reprodução, a sede da glória, a inclinação para a vida social, não de tudo, o amor da comunidade.
são mais que suas manifestações particulares. A perfeição do
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A idéia comunismo assenta, por conseguinte, numa filosofia


que rejeita a oposição entre a matéria e o espirito. Comporta uma
verdadeira divinização da Natureza, que fundamenta um otimismo
absoluto quanto ao futuro da humanidade e leva a encarar a
possibilidade de uma integração perfeita e geral do indivíduo na
sociedade, fazendo desaparecer toda a contradição entre os
interesses privados e o interesse social. Platão apenas encarava
esta integração para indivíduos de escol. Moro sonhava com isso,
mas sem o crer inteiramente possível, dado que mantém a idéia
de uma compensação na outra vida dos sacrifícios aceites nesta
pelo indivíduo. Campanella foi talvez o primeiro a afirmar a
necessidade da elevação da humanidade a uma vida social
perfeita na base de uma confiança absoluta na bondade da
Natureza.
Vemos, por conseqüência, que o naturalismo, que
caracteriza a época do Renascimento, se manifesta novamente
aqui. Certamente, não se trata já de afirmar que as relações
sociais, tais como existem de fato, são harmoniosas, dado que são
naturais; admite-se que estas relações, porque são naturais,
devem tornar-se harmoniosas.
As concepções dos grandes utopistas do Renascimento
foram retomadas e desenvolvidas nos séculos seguintes;
desempenharam um papel decisivo a partir do século XVIII;
vamos encontrá-las quando abordarmos o estudo da formação das
doutrinas socialistas modernas.
Apesar disso, os autores de que acabamos de falar ficam como
figuras excepcionais no seio do seu próprio mundo, que vê
expandir-se o culto da riqueza.
Temos, pois, de voltar ao estudo dos autores que quiserem
edificar uma ciência das relações econômicas, para verificar que
vão tentar agora criticar a política preconizada pelos
mercantilistas.

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