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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Carnelutti, Francesco
Arte do direito / Francesco Carnelutti ; tradução Amilcare Carletti. --
São Paulo : Editora Pillares, 2007.
Título original: Arte del diritto.
ISBN 978-85-8183-024-7
1. Direito – Filosofia 2. Direito e arte I. Título.
07-6878 CDU-340.11

Índices para catálogo sistemático:


1. Direito : Introdução 340.11
© Copyright 2007 by Editora Pillares Ltda.
Título original da obra: “Arte del Diritto”
Conselho Editorial:
Armando dos Santos Mesquita Martins
Gaetano Dibenedetto
Ivo de Paula
José Maria Trepat Cases
Luiz Antonio Martins
Wilson do Prado
Produtor editorial:
Luiz Antonio Martins
Tradução:
Amilcare Carletti
Revisão:
Luiz Antonio Martins
Editoração e capa:
Triall Composição Editorial Ltda.
Produção do e-book:
Schäffer Editorial

Editora Pillares Ltda.


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diversas (Lei no 9.610, de 19-02-98).
Sumário

Apresentação do tradutor

Prefácio à Edição Italiana

Introdução

O Que é o Direito?

O Que é a Lei?

O Que é o Fato?

O Que é o Juízo?

O Que é a Sanção?

O Que é o Dever?
Apresentação do tradutor

C arnelutti declara que, na viagem para a Argentina, quis fazer exercício


escrito da língua espanhola e que depois resolveu desenvolver tratando o
assunto deste livro, que foi originalmente escrito em espanhol.
Carnelutti, excelente escritor no campo do direito, nesta obra entrou no
campo filosófico e especulativo, entendendo-se por “especulativo” o exame
interior do indivíduo na forma mais profunda possível e, dissemos
especulativo, dando a este termo a origem latina de speculum (espelho), ver,
espelhar o que está dentro.
Entusiasta da matéria penal, estudou o relativo direito, com paixão e
interesse, e entrou no campo nebuloso do espírito humano, procurando pôr
em luz aspectos individuais, generalizando-os a todos os inquilinos das
prisões e aos não-inquilinos.
Mistura, com uma análise toda particular, a arte no sentido clássico da
expressão (pintura, escultura, música, poesia, literatura, etc.) com a arte de
quem emite uma lei.
O legislador escreve uma lei que deverá ser obedecida, caso contrário,
transgredindo-a, incorrer na pena, portanto ele pensa e analisa a conduta do
homem na sociedade para permitir a convivência pacífica entre os indivíduos.
Nessa tarefa jurídica, o legislador é frio, nele domina o rígido espírito da lei,
que, como se costuma dizer, é cega. O legislador pensa com o cérebro e
escreve sem emoção. Dura lex, sed lex.
O artista sente com a alma, com o espírito no qual domina o estro que lhe
faz criar a obra de arte. Dando essa qualidade a quem escreve um código, é o
mesmo que equiparar quem escreve um livro de culinária ao cozinheiro que
deve realizar a fórmula de maneira que, quem come, possa gozá-la e saboreá-
la. A arte culinária não entra no Éden das artes sumas: aquela é material, estas
são espirituais.
Ao abordar o problema do amor, que Carnelutti generaliza em todo o
campo da atividade do indivíduo, dando como exemplo a conduta de Jesus na
Terra entre os homens, o que para ele seria o mundo ideal, entra quase num
mundo utópico, como as personagens do famoso livro crítico “Cândido” de
Voltaire.

Amilcare Carletti
2007
Prefácio à Edição Italiana

Q uando comecei a escrever aquelas que se tornaram as páginas deste


pequeno livro, na primavera passada, a bordo do Gritti, rumo à América
do Sul, não tinha, na verdade, outro propósito do que aquele de um exercício
da língua espanhola. Lia os lindíssimos Ensaios de Miguel de Unamuno;
olhava a exterminada expansão do mar e balouçava a sonoridade da língua
quase desconhecida. Mas que nunca sabe a terra do mistério, que cumpre
quando a semente está para brotar no seu seio?
Agora lembro que poucos dias antes veio me visitar Riccardo Orestano,
ainda todo vibrante da perene juventude espiritual de Riccobono, com o qual
pouco antes tinha tido a ocasião de conversar; a conversa caiu sobre a
definição celsiana (do jurisconsulto romano Celso Publio Juvêncio) do
direito, cuja admirável intuição Riccobono ilustrava num opúsculo, então no
prelo. Roga-se ao jovem amigo para deixar comigo os esboços que tinha nas
mãos, para gozar deles durante a longa viagem.
Riccobono demonstrou, com o pathos próprio da sua natureza de
pensador, como o bonum et aequum seja verdadeiramente a substância do
direito; mas Celso atribui a esta substância do direito a forma da ars.
Também esta palavra será o fruto de um extraordinário poder intuitivo? Tinha
ouvido, a respeito, velhos motivos, de quando, na comemoração de Vittorio
Scialoja, percebia nele um artista, sem porém saber bem o que seria a arte.
Não quero dizer, com isto, que nem agora eu o saiba bem. Mas nos
muitos anos transcorridos desde então, pensei muito nela. A Estrada, as
Meditações, a História e a fábula, os Diálogos com Francisco, livros
clandestinos queridos, justamente ignorados pelos filósofos porque são
escritos por um jurista bem como ignorados pelos juristas porque não são
livros de direito. Agora, na minha concepção de vida, também a arte
encontrou o seu lugar. Não me preocupo com outra coisa a não ser da
coerência desta concepção. Para viver em paz preciso colocar em ordem os
meus pensamentos. Quando alguém destaca um pedaço em separado e não
lhe agrada, como acontece com freqüência, uma certa indiferença minha à
contradição pode parecer orgulho, mas não é, ao invés, é uma confissão da
inutilidade de um debate parcial; para ser útil, a discussão deveria empenhar
todo o sistema; mas como se poderia fazer?
Também este livro, afinal, é escrito para poucos. Nele são ditas alguma
coisas, já acenadas nas minhas obras mais recentes; mas o passo para frente
está na coordenação e na formação, finalmente alcançada, do conceito do
dever. Para esta coordenação e a correlativa fundação do direito sobre o
dever, a coerência lógica da minha concepção da vida agora se consolidou.
Igualmente consolidou-se pelas relações, que assim consegui esclarecer,
entre arte e direito. Aquele estender-se da arte do belo ao bom, que é o núcleo
surpreendente da intuição de Celso, verdadeiramente me repousa.
Pode ser, dizia, que a alguém traga o mesmo benefício. Relativamente a
tal possibilidade publico estas meditações também em língua italiana.
E dedico a edição italiana à Cedam, a querida casa editora dos meus
primeiros anos; por ela a Marzio Milani, humilde e simples alma cristã.
Introdução

F azem muitos anos que adotei a fórmula arte do direito como título da
comemoração de Vittorio Scialoja, o maior dos juristas italianos dos
últimos tempos. Então a qualidade de artista me pareceu se dar a medida da
sua grandeza.
Daquela época até hoje, esta idéia de uma relação entre a Arte e o Direito
não me abandonou mais. Quando uma idéia é concebida, seu
desenvolvimento não depende mais do poder do pensador. Um livro nasce
como nasce uma árvore, porque o vento leva a semente para a terra, porém
antes que a semente se torne uma árvore deve passar muito tempo.
Desde então, passou-se muito tempo. No entanto continuei estudando o
direito. Depois, num determinado momento, senti a necessidade de ordenar as
minhas idéias em matéria de arte. Ficavam, todavia, arte e direito, dois
objetos separados das minhas meditações. Sua união, realizada por um
instante fugaz na reconstrução da vida de um jurista, voltou logo a se
esconder dos meus olhos. Uma surpresa foi apenas que os mesmos conceitos
serviam para representar um e outro fenômeno, do direito e da arte. Tal
surpresa manifestei no primeiro volume de uma pequena obra, que se chama,
justamente, Meditações.
Sobreveio o tempo do meu aventuroso trânsito do direito civil para o
direito penal. Sobre este último terreno o drama do direito aparece com
caracteres muito mais cortantes e o nó do drama se manifesta, como veremos,
na luta entre a lei e o fato. Não existe na ciência jurídica civil um duelo como
se combate entre os dois padrinhos do fato e da lei, Enrico Ferri e Arturo
Rocco; nem poderia ter existido porque não se dão, nele, as condições
idôneas para exaltar os combatentes. Precisava a luz de um céu tropical para
iluminar essa luta e o seu resultado.
Finalmente percebi que estudar o direito ou a arte significa agredir de
dois lados diversos o mesmo problema. Por quanto desconcertante possa ser
esta afirmação, chegou para mim o momento de fazê-la. O mesmo problema,
digo, sob o perfil da função e da estrutura.
A arte, assim como o direito, serve para ordenar o mundo. O direito, bem
como a arte, estende uma ponte do passado para o futuro. O pintor, quando
escrutava o vulto da minha mãe para pintar o retrato, mais do que qualquer
outra obra revelou-me o segredo da arte, não fazia outra coisa do que
adivinhar. E o juiz quando escruta no rosto do imputado a verdade da sua
vida para saber o que a sociedade deve fazer com ele, não faz outra coisa, por
sua vez, que adivinhar. A dificuldade e a nobreza, o tormento e a consolação
do direito como da arte não podem ser representados melhor do que com esta
palavra. Adivinhar indica a necessidade e a impossibilidade para o homem de
ver o que somente Deus vê.
Embora sinta profundamente a verdade dessa idéia, não desconheço as
dificuldades e os perigos que representa o seu desenvolvimento. Porém,
dificuldades e perigos sempre me tentaram. E me seduz, antes de tudo, o
desejo de dedicar aos juristas da América latina e às Faculdades de direito
(onde os nossos irmãos, deste que nós europeus continuamos a chamar o
novo mundo, se unem com forças juvenis ao nosso antigo trabalho) algumas
páginas, inspiradas pela eterna beleza do direito.
Peço indulgência pelo atrevimento de ter escrito estas páginas,
originariamente em língua castelhana, embora não conheça o idioma de Dom
Quixote, submetendo o manuscrito somente às correções ortográficas e
gramaticais.
Duas razões podem talvez desculpar a minha temeridade. A primeira se
refere ao perigo das traduções. Por quanto seja a habilidade e o cuidado do
tradutor, uma perda da força expressiva é inevitável quanto uma dispersão na
transformação da energia. Embora, então, o estilo deste livrinho infelizmente
não possa ser aquele de um escritor espanhol, é, todavia, o meu estilo.
Esta é verdade, mas não toda a verdade. Devo acrescentar, sob pena de
não ser sincero, que tendo começado a escrever em castelhano por exercício,
continuei por prazer. Algo semelhante me aconteceu quando durante o
refúgio suíço, escrevi La guerre et la paix. Não se pode contar facilmente
uma semelhante aventura. Parece acontecer uma expansão da personalidade.
Milagre da palavra! Não se fala tanto sem pensar quanto não se pode falar
senão pensando. Até que não se encarna, o pensamento não é pensamento.
Por isso, não tanto se fala quanto se pensa em italiano ou espanhol. Agora
quem conhece a voluptuosidade do pensar compreende a tentação.
Porque não soube resistir, pequei. E para apagar o pecado não existem
mais que dois remédios: a pena ou o perdão.
O Que é o Direito?

A primeira entre as perguntas, que podem servir para conhecer um jurista,


é esta, naturalmente: O que é o direito? Suponho que meus amigos
americanos tenham também, a respeito, tal curiosidade e me preparo para
satisfazê-la. Exatamente na transformação das minhas idéias sobre esse tema
a minha vida de jurista alcançou o seu pleno significado.
Uma vez, quando era ainda jovem e, como se costuma dizer, os meus
estudos eram ainda frescos, a uma pergunta semelhante teria respondido com
uma definição exata; porém, muitas coisas mudaram no decorrer da minha
vida. Talvez a definição, que me ensinaram na universidade, ainda não
esqueci; mas o que enfraqueceu dentro de mim é a fé no objeto a ser definido.
Agora não acredito mais poder responder à pergunta sem recorrer a uma
comparação. O mal é que não presumo saber, melhor do que eu sabia o que é
o direito, nem que seja propriamente uma comparação; ou, pelo menos, qual
seja a função de uma comparação. Portanto, não consigo explicar-me a não
ser por meio de uma comparação. Uma comparação da comparação?
Estranho, mas é assim. O homem quando pensa faz como quando caminha.
Há estradas planas; há estradas montanhosas. E todos sabem como se
desenvolvem as estradas montanhosas. Na planície a estrada pode andar reta,
mas na montanha se adapta naquilo que em francês é chamado de tourniquets
(torniquete). Essa é uma comparação. Também no terreno do pensamento há
uma planície e uma montanha. Ora, a via que leva ao conceito do direito é
uma rude vereda alpina. Daqui, ao menos para mim, que não sou um famoso
alpinista, a necessidade das viradas ou das comparações.
O conceito do direito, como todos sabem, liga-se estritamente ao
conceito de Estado. Provavelmente, para saber o que é o direito, devemos nos
perguntar, a nós mesmos, o que é o Estado.
Na verdade, a palavra Estado é mais transparente do que direito. Uma
vez ouvi dizer por um crítico que Miguel de Unamuno foi um “quebrador de
palavras”. Não sei se este é um juízo exato; todavia, não acredito que haja
necessidade de quebrar as palavras, ou pelo menos certas palavras quando
deixam ver, como um vaso de cristal, o que contém. Estado é
verdadeiramente uma palavra cristalina. O que se vê dentro dele é o verbo
estar; com ele transparece uma idéia de firmeza daquilo que está. O povo,
enquanto alcança uma certa firmeza, se torna Estado. Entre povo e Estado
encontra-se a mesma diferença que entre os tijolos e o arco de uma ponte. O
Estado é verdadeiramente um arco; veremos, mais adiante, como se chamam
as beiras que o arco une.
Há, certamente, uma força que mantém unidos os tijolos no arco. Mas
essa força não opera até que o arco seja terminado. Agora como se faz para
terminá-lo? Esse é o problema. Os engenheiros sabem que o arco, enquanto
se constrói, precisa da armação. Sem a armação o arco resiste quando
concluído; mas antes de então, se a armação não o sustentasse, precipitaria.
O direito é a armação do Estado. O direito é necessário para que o povo
possa alcançar a sua firmeza.
Agora também a palavra direito começa a deixar transparecer o seu
conteúdo. O cristal estava um pouco embaçado; poucas reflexões serviram
para torná-lo transparente. Talvez uma palavra mais clara é o latim ius.
Acredito que o latim seja a mais transparente entre as línguas do mundo. Os
glotólogos ainda não descobriram o vínculo entre ius e iungere; todavia, não
tenho dúvida que na mesma raiz dessas duas palavras se manifeste uma das
mais maravilhosas intuições do pensamento humano. O ius liga os homens
como o iugum liga os bois ou a armação os tijolos.
Um pouco menos clara é a palavra direito; ela também pode expressar a
idéia do vínculo; a reta, na verdade, não une dois pontos? Os pontos são os
homens, que formam o povo; e a linha, propriamente, o vínculo, que os tem
unido num só complexo.
Sei bem agora que uma grave objeção pode me ser oposta; porquanto a
comparação entre o Estado e o arco da ponte seja agradável, não pode todavia
ser exata porque a armação é destinada a cair quando o arco estiver
concluído; ao passo que o direito é destinado a durar. O direito existe desde
que o mundo é mundo; e até que o mundo for mundo, durará.
É verdade? Devo confessar a minha dúvida; aliás, mais claramente, a
minha objeção. Acredito na eternidade do Estado ou, com maior prudência, à
duração do Estado até o fim do mundo; Estado e direito não são a mesma
coisa, pelo menos se na segunda dessas palavras se entende o significado
mais amplo e puro; o Estado é o arco que pode ficar com ou sem a armação;
jurídica se chama aquela forma de Estado que precisa do direito; porém, não
se deve acreditar que essa necessidade valha para o Estado mais do que para
o arco e portanto que o Estado jurídico seja a forma única e perfeita do
Estado; somente o nosso orgulho de jurista nos permite ver no Estado, como
atualmente existe, algo que equivale ao arco perfeito.
Há, portanto, uma possibilidade do Estado puro, isto é, do Estado sem o
direito? Como não? Não fica firme, quando está concluído, o arco sem a
armação? É possível, todavia, que a comparação me ponha para fora da
carreira? Certamente, é possível; agora verificar se estou ou não bem
orientado não conheço outro meio de fazer do que como o capitão do navio,
quando interroga as estrelas. Duas estrelas podem me indicar o bom caminho:
a experiência e a razão.
Um arco sem armação é, segundo a minha comparação, um Estado sem o
direito. A história, dir-se-á, não conhece nada de semelhante. Poderia
contestar que a história apresenta, todavia, Estados que precisam e outros que
não precisam do direito; e também essa é uma experiência de certo valor;
entre outro, Inglaterra e Alemanha poderiam ser confrontadas sob esse perfil.
Trata-se porém de um germe de desenvolvimento não suficientemente
maduro para fundamentar uma conclusão certa.
Mais útil é considerar as formas microscópicas do Estado, que são pois
as formas originárias, das quais teve vida. A forma originária e microscópica
do Estado se chama família. “Prima societas in coniugio est”, disse Cícero;
talvez mais próprio seria “prima respublica”; respublica, efetivamente, e não
societas, significa Estado. A família romana era verdadeiramente um Estado
em miniatura; porque não dizer a semente do Estado? O pater familias tinha
na figura mais do que um pai, de um chefe; muito menos o poder criador do
que o poder jurídico, na sua forma mais rigorosa, como ius vitae et necis, era
o seu atributo. Mas então se o verdadeiro caráter da familia é o poder
jurídico, também aqui há o direito; e o arco da família precisa da armação.
Para a família romana, é assim; e também para as famílias modernas, se é
uma família pagã; não são, infelizmente, incompatíveis modernidade e
paganismo. Todavia, ao lado da família romana e outros tipos de família
antiga, há também a família cristã, aquela que não se caracteriza pela
presença, e sim, ao contrário, pela ausência do direito; quando as relações
entre marido e mulher ou entre genitores e filhos se regulam pela força do
direito, a família não merece o nome de família cristã; não basta ser chamado
de cristão para saber o significado desse adjetivo. Pode ser que nem todas as
famílias cristãs de nome sejam cristãs de fato; mas não se pode negar a
existência de famílias unidas dessa forma sem pedir a armação do direito, no
cristianismo e às vezes, também fora dele. Os arcos sem armação não são
ainda muitíssimos; mas o pensador deve observá-los com atenção e ver neles
o princípio puro do Estado.
Atenção, disse; é maravilha. Também o camponês, quando olha os
pedreiros que estão tirando, depois de concluído, a armação do arco, fica
maravilhado porque não vê o que tem no lugar do sustento exterior e acredita,
na sua ignorância, que não existe nada, se os homens não podem ver. Esse
não é homem de ciência; todavia, sob um certo perfil, não há uma diferença
profunda entre trabalhadores da terra e aqueles do direito. Onde está, de fato,
o jurista que se tenha perguntado como um complexo de homens pode estar
unido sem o apoio da armação, isto é, sem o sustento do direito? Acabo por
temer que nós juristas, deste lado, valhamo-nos até menos do camponês, o
qual, se não sabe o que é que tenha unido sem armação os tijolos do arco,
pelo menos sabe que aquela foi tirada; mas quantos são os juristas que
consideraram, sob esta luz, a estrutura ou, poderia dizer, os segredos dos
complexos sociais? Também pela maioria de nós, não pode existir,
infelizmente, o que não se vê. Contudo, não precisa muito para desvendar
esse segredo.
Porque pai e filho cristãos, para regular suas relações, também as mais
importantes, não precisam do direito? Não por outra coisa senão porque o pai
ama o filho e é amado por ele. A sabedoria do povo traduz amar em querer
bem, isto é, querer o bem do amado, o que não se explica de outra forma
senão reconhecendo que o bem do amado é o bem do amante e o bem deste é
o bem daquele. Por isso, o bem de um e o bem do outro são o bem de uma
mesma pessoa. Como os tijolos ficam unidos, depois que o arco foi
construído em virtude de uma força interna, assim uma força interior une os
homens e converte a multidão em unidade: universum, diziam os romanos,
para significar o milagre da versio in unum, ou seja, das partes que formam o
todo. Quem não escuta, nesse momento, a suave oração, que para seus
discípulos o Mestre dirige ao seu Pai: ut unum sint?
Não me parecem necessárias outras palavras para explicar a comparação:
o direito é a armação do Estado. Até que falte a força interior ou, claramente,
até que falte o amor, a vida do Estado está em perigo sem o direito, como a
existência do arco sem a armação. No Estado de direito não podemos ver a
forma perfeita do Estado. Os juristas são vítimas, nesse ponto, de uma
singular ilusão. O Estado de direito não é o Estado perfeito mais do que
quanto possa ser o arco antes que os pedreiros o tenham acabado de construir.
O Estado perfeito será, ao contrário, o Estado que não precisa do direito;
uma perspectiva, sem dúvida, distante, imensamente distante, mas certa
porque a semente é destinada a se transformar na árvore cheia de folhas e de
frutos.
A primeira verdade, que as minhas reflexões conseguiram esclarecer, se
refere à natureza do direito. Os juristas modernos, que quer dizer juristas
positivos, têm o costume de conceber o direito como ordenamento do povo;
propriamente esse conceito condiciona a corrente identificação do direito e do
Estado. É suficiente, porém, um pouco de atenção para que percebam o
equívoco; quando o direito se concebe como ordenamento jurídico, se
confunde o que qualifica com o que é qualificado; jurídico não significa mais
do que atinente ao direito pelo que não podem ser a mesma coisa o
substantivo e o adjetivo.
O direito, na verdade, não consiste no ordenamento mas naquilo que
ordena, ou seja, que une ou, com uma fórmula mais realística, que liga; é,
portanto, uma força. Com a finalidade de descobrir como ela funciona e,
assim, de onde vem, o primeiro passo está em descobrir essa verdade.
Dúnamis, diziam os gregos. O contraste da estática com a dinâmica
ilumina sempre mais a relação entre direito e Estado. O primeiro não pode
ser, como acreditam os modernos, a mesma coisa do segundo, exatamente
porque não se podem confundir a causa e o efeito. Força não significa outra
coisa do que idoneidade de algo para transformar o mundo. E o direito
significa por sua vez essa idoneidade. O meu propósito seria conhecer o seu
curso e a sua fonte.
O direito é uma força, mas não uma força original. Pelo contrário, uma
espécie daquilo que os alemães chamam Ersatz. Mas o original? Aqui os
juristas devem olhar a verdade cara a cara. Quando numa família o direito
chega a ser supérfluo, isto é, quando a armação pode cair sem que desabe o
arco, o que tem no lugar do direito é o amor. Uma verdade, afinal, que como
o sol, ilumina as coisas, mas ofusca os nossos olhos. Por isso os juristas
olham as coisas, não o sol; se o olhassem saberiam como se deve chamar o
original daquele sub-rogado. Até que os homens não saibam amar, terão
necessidade do juiz e do policial para ficarem unidos. Em outras palavras: até
que os homens não saibam amar não há outro meio do que obrigá-los.
Eis outra palavra que não há necessidade de quebrar para que deixe ver o
seu conteúdo: um homem obrigado é um homem ligado e um homem ligado
não tem liberdade. É preciso submeter o homem, que não consegue fazer o
bem; e o verdadeiro bem não pode ser o bem somente dele, mas de todos os
outros. Os homens, também os juristas, falam continuamente de liberdade
sem escrutar no fundo dessa imensa palavra. Quando conseguimos vê-lo,
mais uma vez as idéias viram de cabeça para baixo e liberdade, em lugar de
fazer o que se gosta, é poder fazer o que não se gosta. Entre dois homens, que
não têm alimento suficiente para ambos, o mais forte, quando mata o mais
fraco para comer sozinho, não é livre, mas um criado; não tem força para
matar, mas aquela de sustentar o outro, malgrado a própria fome, merece o
nome de liberdade. A liberdade, em suma, não é poder sobre os outros, mas
sobre si mesmo: não dominium alterius, mas sim dominium sui. Por isso o
antigo aforismo: ubi societas ibi ius, convém acrescentar: ubi libertas ibi non
ius.
Finalmente a comparação do arco começa a esclarecer um pouco o valor
do direito. Um arco. Uma ponte. Como se chamam as beiras, pedi no
começo, que não estão unidas? Voltamos a considerar o caso dos dois
homens, que não têm alimento suficiente para nutrir ambos. O mais forte, que
mata o adversário para comer sozinho, é o homem econômico, que deixa o
outro fora dos seus interesses. A esquerda da ponte a terra se chama,
portanto, economia. O mais forte, que deixa o alimento para o mais fraco, é,
ao contrário, o homo moralis, o qual não pode separar o próprio do bem
alheio. À direita da ponte o nome da terra é moralidade.
Dois opostos, que podemos representar com as figuras expressivas do
lobo e do carneiro: homo homini lupus ou homo homini agnus. A humanidade
não pode superar o abismo que separa as duas beiras, sem uma ponte
estendida de uma para a outra. Essa atrevidíssima construção toma o nome de
direito. Uma linha reta, exatamente, que une dois pontos.
Porém, os dois pontos representam duas terras ou, para melhor dizer, a
terra e o seu oposto. Ora, o oposto da terra como se chama? Os homens
simples já compreenderam: o direito ajuda o homem a percorrer seu fatigante
caminho, que ascende da terra para o céu.
Esse é então o direito? E esse é o jurista, o qual pretende saber como é o
direito? Não sabe, no fim, nada de exato. Se expressa, em suma, mais do que
como douto, como um poeta.
Justamente nisso está a diferença entre a minha juventude e a minha
velhice de jurista. O jovem tinha fé na ciência; o velho a perdeu. O jovem
acreditava saber; o velho sabe não saber. E quando ao saber se acrescenta o
saber de não saber, então a ciência se converte em poesia. O jovem se
satisfazia com o conceito científico do direito; o velho sente que nesse
conceito se perde o seu ímpeto e o seu drama e, portanto, a sua verdade. O
jovem procurava os contornos decisivos da definição; o velho prefere os
matizes de uma comparação. O jovem não acreditava naquilo que se vê; o
velho não acredita mais senão naquilo que não pode ver. O jovem estava na
esquerda, o velho passou para a direita da ponte. E com o escopo de
representar essa terra, onde os homens se amam e amando-se alcançam a
liberdade, serve pouco até a poesia; o jurista gostaria de ser músico para fazer
com que os homens pudessem sentir o seu encanto.
O Que é a Lei?

O s juristas de outrora não conheciam nenhuma diferença entre direito e


lei. Certamente esses dois conceitos têm indiscutivelmente um elemento
comum: a idéia do vínculo. Contudo, qualquer um que tenha uma certa
cultura sabe que, enquanto o direito é um conceito exclusivamente jurídico, o
mesmo não se pode dizer da lei, posto que não somente os juristas mas
também os cultores de outras ciências e, em primeiro lugar, das ciências
naturais, usam essas mesmas palavras; naturalistas, físicos, químicos,
astrônomos, antes de tudo.
O primeiro perfil, portanto, do qual o problema da lei deve ser
examinado, concerne a relação entre lei jurídica e lei natural: tratam-se de
duas espécies de um mesmo gênero ou, ao invés, lei jurídica é um conceito
totalmente diferente da lei natural?
Os juristas de agora consideram a lei jurídica não somente como um
conceito diverso, mas até como um oposto da lei natural. Em particular, a
reine Rechtslehre quis purificar antes de tudo o conceito da lei jurídica,
opondo-se àquele da lei natural: esta última se refere àquilo que é, aquela ao
que deve ser: o primeiro se diria um conceito ontológico e o segundo,
deontológico.
Propriamente a lei natural exprime um vínculo entre um prius e um post;
os naturalistas, depois de Newton, a concebem como uma consecutio
necessaria de dois estados da natureza: um anterior e outro imediatamente
posterior. Nesses termos, a lei natural se identifica com a causalidade ou, pelo
menos, serve para descobrir a causalidade: quando dois estados da natureza
são, necessariamente, consecutivos, basta a existência do primeiro para que
se possa estabelecer a existência do segundo. Entende-se assim o sumo valor
da descoberta de uma lei natural; quando possui uma destas leis, o homem
pode abrir uma janela para o futuro. Mas se, portanto, suposta a existência de
um estado da natureza, podemos estabelecer o estado consecutivo antes que
esta venha a existir, como não ver também que a lei natural exprime não tanto
o que é quanto o que deve ser?
A maioria, todavia, pensa que o mundo natural seja dominado da
causalidade e não da finalidade; não há nada de deontológico na natureza.
Sob tal aspecto são totalmente diferentes, aliás, são opostos o mundo das
coisas e o mundo dos homens, a matéria e o espírito. Porém, embora a escola
do direito puro não seja certamente antiga, muita água passou debaixo da
ponte desde que essas idéias foram concebidas e a maioria dos juristas as tem
docilmente acolhidas. A verdade é que a evolução das ciências naturais nos
últimos tempos foi mais uma revolução. De um lado, o próprio conceito da
lei como consecutio necessaria de dois estados da natureza mudou,
substituindo-se a necessidade com a probabilidade e tendo desmoronada,
portanto, a fé na infalibilidade da lei; do outro, a diferença, ou melhor, a
oposição entre a causalidade e a finalidade acaba por desaparecer e cada dia
mais os naturalistas descobrem, nos setores mais diversos, que aquela que
parecia uma pura consecutio causalis é, na verdade, uma consecutio finalis,
ou seja, que a causa e o fim se distinguem somente na mente limitada dos
homens, os quais dizem porque somente porque não conseguem ver a fim de
que, escondido dos seus olhos.
Hoje não se falta o respeito a Kelsen e à sua escola se sobre o primeiro
termo da definição opositiva da lei jurídica à lei natural, começa-se a ficar
perplexo.
O que se pode dizer, sem reservas, da lei jurídica, é que ela esclarece
melhor a relação de finalidade em lugar da causalidade entre os dois termos
do complexo. Esse caráter se deve ao fato que a lei jurídica é constituída
pelos homens; por isso a lei jurídica se opõe à lei natural como uma lei
artificial.
Apesar disso, do ponto de vista da estrutura, a lei jurídica e a lei natural
se assemelham como duas gotas de água. Há numa como noutra um prius e
um post e a lei exprime o vínculo entre eles. Quando o naturalista diz: posto
que um homem nasceu deve morrer, é o mesmo que se o jurista declara:
posto que um homem matou, deve ser morto. Porém, o problema, quanto à lei
jurídica, se refere à razão, pelo que os homens têm necessidade de construir
leis jurídicas ao lado das leis naturais.
Quanto a mim, acredito ter meditado sobre esse problema ao longo de
toda a minha vida. Ora, no ponto em que cheguei, ousaria dizer que a razão é
a mesma pela qual os pintores e os poetas representam a natureza em seus
quadros e em seus versos. Essa proposição, sem dúvida, apresenta um
aspecto paradoxal, ou pelo menos problemático, e merece alguns
esclarecimentos.
Enquanto os naturalistas cumpriram progressos admiráveis no campo das
leis naturais, o mesmo não aconteceu com os moralistas no que concerne à lei
moral. Naturalmente, uma tal diferença não pode ser sem razão; agora esta se
encontra na dificuldade, muito mais grave, que se opõe ao conhecimento do
espírito em confronto com o do corpo. Um meio necessário para conhecer é a
análise; ora, se a causalidade natural deixa-se separar numa multidão de leis,
de maneira que os naturalistas nunca falam de lei, mas sim de leis naturais,
para o moralista não parece possível um trabalho análogo; por isso ele
continua quase sempre a falar de lei e não de leis morais.
De resto, a inferioridade do estudo da moralidade em confronto com a
causalidade se manifesta muito mais claramente naquilo que os moralistas
não chegam a conceber a sua lei como consecutio necessaria de dois estados
do espírito: um prius e um post. O moralista se limita a tomar a conclusão e
deixa as premissas na escuridão.
Explico-me. O dever existir da lei natural é exatamente a ilação de duas
premissas: uma, como diriam os naturalistas, de direito, e a outra de fato: o
fato, que constitui o prius, e o vínculo, que constitui a lei: o fato é que um
homem tenha nascido; a lei estabelece que os homens, quando nasceram,
morrerão; portanto, esse homem, porque nasceu, deve morrer. Ao contrário, o
dever existir da lei moral falta de premissas; essa estrutura é, no fundo, o que
Kant, sem saber explicar claramente a dificuldade, quer evidenciar falando da
categorização do seu imperativo.
Ora, a falta de premissas constitui verdadeiramente um caráter da lei
moral ou, ao invés, deve-se atribuir a um fenômeno de miopia dos
moralistas? Não é uma repreensão, naturalmente, que me permito dirigir a
essa ilustre classe de filósofos; mas somente, mais modestamente, uma
tentativa de estimular suas meditações. Provavelmente, a situação do jurista é
mais cômoda para observar os fatos do espírito e, assim, as relações entre
eles. Entre os juristas, o criminalista dispõe, para tal fim, maiores
possibilidades.
Eis, talvez, uma afirmação surpreendente. O que o criminalista trata não
é o homem, cujo espírito se deixa dominar pelo corpo? Justamente por isso o
criminalista observa a reação do espírito a essa opressão. Acredito que o
estudo do espírito faça tanto melhor quanto mais o homem se afasta da
mediocridade; somente os dois opostos, os santos e os canalhas, oferecem
para quem os observa sua alma nua. Aqueles são a luz, estes as trevas; mas é
necessário ter estado nas trevas para apreciar a luz. De propósito falei da
reação do espírito à opressão do corpo. Pode existir quem não saiba como se
chama essa reação? Remorso é uma palavra estupenda. Um cão morde. Um
cão morde o homem, depois que ele lhe fez mal. Se aquele que fez um mal
sofre um mal, começa a se mostrar as premissas da conclusão dos moralistas.
Também no setor espiritual como naquele da natureza, o dever existir
exprime a consecutio necessaria de um fato a um fato; ao delito segue,
naturalmente, o remorso; em outras palavras, quando existe o delito deve
existir também o remorso. Por isso, se o homem não quer sofrer os tormentos
do remorso não deve cometer o delito.
Essa do remorso é a mais conhecida, mas não a única nem a mais
importante entre as conseqüências necessárias do delito e, portanto, entre as
manifestações da lei moral. Seja permitido reportar-me algumas linhas de um
breve estudo sobre Moral e Direito, por mim esboçado em 1944, durante o
refúgio suíço: “se existisse somente a lei penal no mundo, a vida seria muito
mais fácil para os delinqüentes do que é na realidade. Na verdade, aquele que
cometeu um crime ou terá ou não terá dele remorso: se o tem, eis uma pena
pela qual sofrerá muito mais do que com a prisão; se não o tem, o que é
sempre possível, as coisas serão ainda pior para ele porque, nesse caso, ele
cometerá ainda mais delitos; essa é a mais terrível e ao mesmo tempo a mais
simples entre as conseqüências do crime. Se deveria conhecer o suplício do
assassino, o qual, tendo matado um homem, deve, para escapar da justiça,
matar ainda! O primeiro delito, como a primeira guerra, pode agradar; porém
o que diremos do último delito ou da última guerra?” A minha conclusão foi
que “a mais alta descoberta da ciência, cujo valor supera todos os méritos de
todos os homens de ciência do mundo, é essa humilde verdade: que o bem
procura o bem e o mal procura o mal. Porém, não conheço o nome de
nenhum grande homem ao qual essa descoberta seja atribuída. O inventor,
quando muito, deve ter sido aquele que usou a mesma palavra, bem ou mal
para significar o que se faz e o que se tem, o benefício ou o malefício, a
felicidade ou a infelicidade” (La crisi dei valori, Roma, Partenia, 1945).
Assim aparece a fundamental unidade de todas as leis, sejam naturais,
sejam morais; e a moral se revela por meio da natureza. Nem acredito que
essa possa se chamar uma descoberta se desde séculos e séculos os conceitos
da moral e da natureza contaminaram-se na fórmula do direito natural.
Que o mal cause o mal e o bem cause o bem é uma lei que não pode
errar; mas é preciso de muito tempo para que aconteça. Aqui está a razão da
admoestação do Mestre: “nolite iudicare”. O objeto do juízo é, em última
análise, a qualidade, boa ou má, de uma coisa, e para conhecer tal qualidade é
preciso ver até o fundo. Ora, como os nossos olhos não podem ver até o
fundo, o juízo do bem e do mal é o fruto proibido.
Todavia, os homens, os quais não têm o tempo necessário para julgar,
têm também a necessidade de julgar. Não conheço um aspecto mais trágico
da vida. Não podemos saber o que é bem ou mal e, apesar disso, devemos
fazer o bem e não o mal. Como se supera essa contradição? Não há, para esse
fim, outro meio senão obedecer. A língua italiana, como as outras línguas
neolatinas, ofuscou a transparência dessa palavra. É preciso voltar à forma
latina original (ob audio) para saborear a sua pureza; a parcela ob, anteposta a
audire, significa a espontaneidade em ouvir ou, mais exatamente, do escutar.
O que se escuta? O povo, na sua simplicidade, diz que uma voz se
escuta; e, para indicá-la, acrescenta que todos os homens a levam consigo:
consciência não significa mais do que uma ciência, quae est cum nobis, e
como toda ciência se adquire ouvindo, o seu pressuposto não pode ser outra
coisa do que uma capacidade de ouvir. O que se ouve não é, no fundo,
diferente daquilo que os meninos ouvem dizer ao pai quando estão para fazer
algo: faz ou não faz porque é bem ou é mal, isto é, porque a conseqüência do
teu fazer será boa ou má.
Não é por outra razão que por essa capacidade de ouvir o homem é
homem: uma verdade que ainda uma vez a divina palavra nos descobre,
embora os homens não abram os olhos para olhá-la, se chamam também
sujeitos e se comprazem desse nome e se opõem como sujeitos aos animais,
os quais são somente objeto e não sujeito; mas não refletem que sujeito é
alguém que está debaixo e não sobre um outro (sub jacet)! Obedecer, então,
nada mais é do que submeter-se, o que não exige outra coisa do que ter
consciência da nossa natureza.
Infelizmente, nem todos os homens sabem escutar. Não são a mesma
coisa escutar e ouvir. Ouvem-se as palavras, o silêncio se escuta.
Infelizmente, quase sempre acredita-se que o silêncio, em lugar de tudo, seja
nada. O nosso trabalho perturba o silêncio com uma multidão de sons e a voz
da consciência fica sufocada. Não temos tempo de silenciar; as necessidades
da vida nos constrangem a bater o martelo; e, por outro lado, nossa soberba
inverte a posição do sujeito. Ora, quando no depois se atua a conseqüência do
antes e um mal recebido segue ao mal feito, já a primeira é esquecida e
portanto, mesmo se não a Deus, ao invés de a nós mesmos, se amaldiçoa a
casualidade.
Há, todavia, entre os muitos que fazem rumor, alguém que escuta. O
mais trágico dos povos da Terra, cujo drama consistiu em se encontrar mais
perto de Deus sem sabê-lo alcançar, os chamou profetas. Não há de que
maravilhar-se de que os seus profetas somente tenham profetizado mal,
porque o povo somente fazia o mal. Todavia, mesmo sem chegar a esses
exemplares extraordinários, um homem que exorta os outros a fazer o bem e
não a fazer o mal, não pode não ser um homem, o qual tem uma possibilidade
maior do que os outros de escutar ou, voltando ao mesmo ponto, de ver no
futuro. Assim a humanidade sempre se dividiu numa pequena minoria, que
olha ou que escuta o que a multidão não pode ver nem escutar, e na multidão,
que olha e que escuta, não o que esses homens conseguiram ver e ouvir mas o
que eles contam ter visto e ouvido. Da mesma forma, entre alguns cegos, um
que tem vislumbre de visão, toma pela mão o outro e procura guiar o seu
caminho.
Aquilo que fazem esses poucos homens não é nada de diferente da obra
do poeta ou do pintor: em suma, arte. Nem devemos acreditar que um ou
outro descreva somente o que vê ou ouve fisicamente, ou em outras palavras,
o que existe no passado; aquele que não descreve a não ser o passado pode
ser um fotógrafo ou um cronista, não um poeta ou um pintor. O artista, na
verdade, narra aquilo que seus olhos vêem e não o que os olhos da multidão
chegaram a ver no fundo da realidade, onde se unem o passado e o futuro.
Arte é, portanto, aquela dos homens que procuram representar aos outros as
leis do espírito como as leis da natureza; pelo que, se o conceito da arte fosse
bem claro, Roma se reconheceria, por obra de seus jurisconsultos, uma
excelência artística não inferior àquela de Atenas.
O meio de representação da lei moral, que se faz dessa forma, é a
palavra. O praeceptum é um conceptum, ou, mais propriamente, um discurso
ou conceito discursivo. Ora, enquanto representam a lei, os juristas podem ser
chamados praeceptores, propriamente porque agarraram (ceperunt) antes
(prae) o que contam aos outros. Sob esse aspecto a lei jurídica, como
representação da lei moral, é palavra.
Mas infelizmente não é suficiente para guiar os homens ao longo do
caminho da vida como não seria suficiente ao pastor para guiar o rebanho se
não acrescentasse nele o cão e o cajado. Portanto, a representação das
conseqüências do fato, bom ou ruim, não pode se limitar ao anúncio do bem
ou do mal que naturalmente mais tarde seguirá. Se ao filho, que não tem
vontade de estudar, o pai não fizesse outra coisa do que prever as lágrimas
futuras que isto lhe fará verter, em noventa por cento dos casos, o rapaz riria
disso porque não acredita: o pai deve converter as lágrimas futuras em
lágrimas presentes se o quer persuadir. Eis, ao lado da palavra, o bastão. Por
isso a lei jurídica, ao invés de se limitar ao anúncio da lei moral e assim da
conseqüência futura do mal passado, se estende a antecipá-la, isto é, a
transformar em presente o mal futuro; mas converter o presente em futuro,
como o passado, não é representar?
Porquanto arrisco de ultrapassar a medida, como não parar para gozar
também a transparência dessa palavra? Se não obtivesse outra vantagem
desse meu encontro com os companheiros de trabalho americanos do que
aquele de comunicar a eles o meu amor para as palavras, já a longa viagem
seria justificada. Filósofos e juristas, quando falam distraidamente de
representação e de representar, se assemelham ao vilão, o qual, tendo
achado uma moeda debaixo da terra, não observa suas figuras e não avalia o
seu valor. Veremos mais adiante o valor do presente; mas desde já se
entende, refletindo, que a representação implica uma ampliação do presente,
ou seja, a sua extensão a algo que, não estando presente, outra coisa não pode
ser senão passado ou futuro. Veremos, digo, como se possa explicar esse
milagre. Por enquanto fiquemos contentes em observar a palavra como uma
espécie de religião. Pode ser que a potência representativa da lei jurídica e
portanto da arte do direito supere aquele de qualquer outra arte e ao legislador
caiba o nome de artista ainda mais propriamente do que ao poeta ou ao pintor
não somente porque descreve ao público o que se seguirá naturalmente ao
bem ou ao mal, que fez o homem, isto é, explica a ele a lei moral, como
sobretudo porque adianta a conseqüência futura do bem ou do mal, juntando
à conseqüência natural, consegue, ainda melhor do que fazer ver, fazer gozar
ou fazer sofrer o futuro.
Assim faz o legislador porque o homem teme mais o próprio homem do
que teme a Deus. O mal, que naturalmente seguirá ao mal, freqüentemente
tarda a chegar porque Deus (que, segundo a sabedoria do povo, não paga no
sábado) é der Künstler des Wartens, como se lê numa página inesquecível de
Lippert; e a insuficiência do homem se resolve antes de tudo em defeito de
paciência. Sem a impaciência, para determinar a necessidade da lei jurídica,
não bastaria a incredulidade.
Uma diferença, então, se tem certamente entre as duas leis, natural e
jurídica: mas não se pode formular nos termos que, entre nós, se tornaram
quase tradicionais. Assim, uma como a outra lei representam, juntos, o que é
e o que deve ser. Também a lei jurídica representa uma consecutio necessaria
do futuro para o passado. Não há diferença entre elas sob esse aspecto. A
diferença deve ser procurada em outra parte. E para procurá-la mais uma vez
as palavras nos devem dirigir.
Uma dessas palavras, no binômio corrente, é o adjetivo natural. O
contrário de natural não é artificial? À natureza se opõe a arte. A arte se
acrescenta à natureza para enriquecer o mundo. Enriquecer o mundo é tarefa
do homem. O legislador, como o pintor com seus quadros ou o escultor com
suas estátuas, cumpre essa tarefa com suas leis. O pintor ou o escultor, para
adimplir isso, constrói uma coisa nova tendo debaixo dos olhos um modelo.
Também o mecânico é, ao lado do pintor ou do escultor, um artista, quando
fabrica o fantoche automático estudando o homem como o estuda o escultor
ou o pintor. E a lei jurídica em confronto com a lei natural se assemelha ao
fantoche.
Mas eis, pela segunda vez, uma comparação. Ainda em lugar de ciência,
um limbo de poesia. Assim. A comparação, como a poesia, chega mais no
fundo do que a definição, isto é, do que a ciência. Já o conceito de artifício,
em confronto com a natureza, contém um pouco de pessimismo; mas temo
que não seja suficiente. Até que se trate de representar um estado do mundo,
a arte pode aproximar a natureza e às vezes, consegue até superá-la; mas a lei
jurídica não se assemelha ao retrato do homem, que não fala e não se move,
mas sim ao fantoche, que quer se mover e falar. Para conhecê-la não basta
explicar a sua função sem acrescentar que a esta ela é irremediavelmente
inadequada. O homem pintado pode parecer a verdade do homem; o homem
mecânico é sempre uma marionete. E essa é a utilidade, para não dizer a
necessidade, da poesia. O culto da ciência, depois de ter composto, repousa,
comprazido, olhando-o. O poeta contempla a distância que separa o artifício
da natureza, e suspira.
O Que é o Fato?

N os tempos longínquos da minha juventude, um dos primeiros clientes,


sobre a pele dos quais consumou-se aos poucos a minha ignorância da
lei e, o que mais conta, da vida, foi um engenhosíssimo larápio cubano, o
qual um dia, discorrendo comigo da sua causa (processo), aplicou o princípio
da divisão do trabalho entre nós e essa fórmula: “o direito o faz o advogado;
mas o fato o sabe o imputado”. Assim se manifestava na mente de um
profano a oposição do direito ao fato, familiar a todos os juristas; e melhor se
diria a todos aqueles que com uma palavra mais compreensível, tal de não
deixar fora nenhum daqueles que trabalham, também materialmente, com o
direito, os alemães chamaram Rechtswahrer.
Porém, se queremos falar rigorosamente, a oposição não pode ser posta
entre o direito e o fato, mas sim entre o fato e a lei. Formulada em termos
tradicionais, a distinção contém o costumeiro erro, relativo à confusão entre
direito e lei: o direito, como temos dito e como veremos melhor daqui a
pouco, mais do que a lei, representa a síntese da lei e do fato; é provável que
essa síntese seja a mais difícil para explicar.
Por isso, depois de ter conhecido a lei, o fato deve chamar a nossa
atenção.
Fato: há uma palavra de uso mais comum? Acredito que somente o que
possa disputar-lhe o primado. Uma e outra se assemelham a certas moedas
nas quais, de tanto circular, não se distingue mais nem a cabeça nem a cruz.
Todos se valem dela acreditando conhecer seu significado; contudo, se
alguém pergunta o que querem dizer, não sabem a resposta com a desejada
presteza.
Sem dúvida uma curiosidade da ciência do direito está nisso de que todos
os juristas, os quais falam continuamente de fato jurídico, ninguém se
preocupa em explicar, além do adjetivo jurídico, o substantivo fato, que o
sustenta. O fato em si mesmo é uma espécie de ilha misteriosa no reino do
direito. Somente nos últimos anos alguém entre nós ousou violar seu segredo.
O primeiro passo para a meta consiste, se não me engano, no confronto
entre os dois termos enunciados pouco antes: fato e coisa. Freqüentemente
um e outro são usados indiferentemente; mas uma tal superficialidade, se
queremos superar a esfera do empirismo, não se deveria tolerar.
A confrontação compreende, juntos, unidade e diferença. O que devemos
procurar pode-se chamar, na linguagem escolástica, o genus proximum e a
differentia specifica entre os dois termos: factum e res.
Por pouco que vale a minha cultura, não conheço um só filósofo ou
jurista moderno o qual tenha sentido a necessidade de estabelecer esse ponto
de partida para suas pesquisas.
Coisa e fato são duas espécies ou, melhor, dois aspectos de um mesmo
conceito, cuja fórmula é objeto.
Linda palavra! Aliquid jacet ob. Algo está na frente. O objeto se refere ao
sujeito; tivemos já ocasião de ver que no entanto o homem merece o nome de
sujeito, enquanto é capaz de observar. Mas o que lhe está na frente?
Responder-se-á, o mundo. Certamente. Porém, o mundo é grande demais
para podê-lo ver. Os sentidos do homem se assemelham às janelas de uma
casa, onde o mundo todo não consegue penetrar. O quadro que se apresenta
diante das janelas: este é, propriamente, o sujeito.
Tanto vale dizer que o objeto se determina mediante a atenção. Esse sim
é um conceito que a filosofia moderna há com requinte elaborado; aludo,
sobre todos, a Heidegger, sob o aspecto lógico, e a Bergson, do lado
fisiológico. O paradigma da atenção é a atitude do caçador quando fecha um
olho para mirar. Com a finalidade de ver uma coisa, é preciso não ver as
outras. O mundo se divide, assim, numa multidão de objetos. Objeto é aquilo
que no mundo podemos ver.
Ora, entendeu-se o caráter principal do objeto como relatividade: um
objeto é, além da terra, o céu para o astrônomo ou, ao invés, o micróbio para
o biólogo que o observa.
Um objeto pode ser observado imóvel ou em movimento. Assim,
formula-se simplesmente a diferença entre os termos que estamos
observando: fato é a coisa que se move; coisa, o fato quando está parado.
Quem não percebe, todavia, que essa simplicidade esconde algum dos
mais graves problemas da filosofia? Estar imóvel ou mover-se, que quer
dizer? O problema do movimento é, em primeiro lugar, o problema da vida.
Assim o estudo do direito, como de qualquer outra matéria, nos conduz,
insensivelmente, ao limiar do mistério.
O problema do tempo é um daqueles que a filosofia antiga não teve a
possibilidade de resolver. Também para a filosofia moderna permanece, até o
último século, a dificuldade. Kant tem o grandíssimo mérito de nos ter dito o
que o tempo não é, mas também não o que é; sabemos, depois dele, que o
tempo não é realidade; mas não como se explica que não seja realidade. Até o
último século, disse; mas então o que aconteceu, no último século, que nos
possa ajudar a superar a dificuldade? Bergson teve uma admirável intuição
quando percebeu o serviço que o processo cinematográfico poderia dar para a
investigação do pensamento. Enquanto à pergunta: que um quid esteja parado
ou se mova, que quer dizer? É relativamente difícil, para não dizer
impossível, responder com uma definição; a dificuldade se pode superar
recorrendo à comparação: o fotograma é imóvel e o filme se move. A coisa se
assemelha ao fotograma e o fato ao filme.
Queremos parar, um momento, nesse ponto?
Como se chama aquilo que no mundo se vê com um olhar? A palavra
que os latinos usaram para essa finalidade é, como quase sempre,
esquisitamente expressiva: espécies, que significa, exatamente, o que se vê,
vale dizer o objeto de uma visão instantânea, fora do tempo. Justamente, o
fotograma.
Como se chama, por outro lado, o contrário da espécie? A palavra latina
genus é ainda mais interessante: genus é o que gignit e generatur; gere e se
gera. O mundo, assim, não está mais fora, mas dentro do tempo. O aspecto
temporal distingue a espécie do gênero, a coisa do fato. A espécie é, o gênero
se torna. A espécie, como o fotograma, é um momento; o gênero é um
desenvolvimento, como o filme. Expressão geométrica da segunda é a linha;
da primeira, o ponto.
Agora podemos voltar àquilo que descobrimos a propósito da lei. A lei
representa a consecutio necessaria de dois fatos: um que nasceu deve morrer.
Nascimento e morte: eis os dois fatos. Mas representar é fazer com que o fato
esteja presente; e não pode estar presente o que não se pode apanhar com um
olhar; presente, então, não pode ser a espécie; o gênero, ao contrário, se
desenvolve, além do presente, do passado para o futuro.
Por isso a lei, para adimplir a sua tarefa, deve comprimir o fato numa
espécie. Entende-se agora porque a mesma ciência do direito converte o
binômio latino species facti numa só palavra: fattispecie (caso concreto)? Na
linguagem corrente, essa palavra pode-se traduzir com fato em questão;
porém, assim se perde a acuidade do seu significado, que se refere à redução
do gênero à espécie: o fato, para o fim de ser representado, deve reduzir-se a
uma coisa.
Nada é mais significativo do que o cinema para nos explicar esse
fenômeno. A maior vantagem que a observação do processo cinematográfico
oferece a quem investiga o segredo do pensar, consiste naquilo que se chama
encurtar ou alongar o passo da projeção. Quem não viu representar o
nascimento de uma flor de uma forma tão acelerada, que permite contrair em
alguns instantes um longo desenvolvimento? Dir-se-ia que o cinematógrafo
tem o poder de abreviar ou de alongar o tempo. Mas esse poder é um original
ou uma cópia? Não há nada de original naquilo que o homem consegue
fabricar. A mais original das invenções não pode deixar de ser uma invenção.
E encontrar significa achar. O original do cinematógrafo é o pensamento.
Justamente o pensamento possui uma faculdade de abreviar ou de alongar o
passo infinitamente maior: a borboleta não pode voar sem se mover; mas o
pensamento transforma em imobilidade o seu vôo.
Assim aflora no discurso a conversão do movimento em imobilidade. E
assim se opõe o fato à lei. O eterno contraste entre o ser e o mover-se se
apresenta também ao jurista sub specie da oposição da lei ao fato. A lei está;
o fato se move. A lei é um estado; o fato é um desenvolvimento. A lei é o
presente; o fato não pode ser passado ou futuro. A lei está fora do tempo, o
fato está dentro do tempo.
E assim se entende não tanto que para o direito se luta, como nos
ensinou um dos maiores juristas da Alemanha, quanto que o direito é luta. O
direito vive sob o sinal da contradição. O segredo da sua vida é a luta da lei e
do fato. A lei procura frear o fato e o fato procura escapar à lei. Veremos
mais tarde como essa luta se conclui no juízo.
Mas geralmente a luta do direito reproduz num de seus aspetos mais
dramáticos o esforço do homem para fugir do tempo. Mais do que qualquer
outra coisa o homem precisa de eternidade. Não por outro motivo que para
satisfazer essa necessidade se representa, isto é, se acresce o presente,
problemática contaminação do passado e do futuro, que uma vez chamei no
man’s land entre um e outro; o que pode ser nem passado nem futuro que não
seja eterno?
Não há, se não estou enganado, outra experiência mais eficaz do que
aquela do direito para que os homens sintam a necessidade de superar o
tempo, para fugir da tempestade do volver e permanecer na quietude e na paz
do ser.
O fato se desenvolve; por isso escapa à lei. Mas escapa, mais ou menos,
segundo a sua velocidade. Existem desenvolvimentos lentos, como o
movimento do ponteiro que marca as horas sobre o quadrante do relógio;
existem os rápidos, como o ponteiro que marca os segundos. Também as
montanhas se movem; mas como os homens não podem, no breve giro de sua
vida, perceber a mudança, dizem que as montanhas estão paradas e o homem
se move.
Ora, o proprium da lei jurídica é que ela liga os fatos aos homens. Uma
lei física diz: uma vez que o sol nasceu, deve morrer; uma lei jurídica, ao
invés: uma vez que um homem matou outro, deve ser morto. Trata-se de
entender como o dado da lei jurídica seja dotado de uma maior, aliás, máxima
capacidade de desenvolvimento, pelo que a tarefa da lei se torna
extremamente difícil em seu confronto.
Um homem: carne antes de tudo. Entre a carne e a pedra corre a máxima
diferença, quanto à mudança, entre os dois ponteiros das horas e dos
segundos. Todavia, como carne e pedra, assim há carne e carne. Carne é a
cabeça do animal como o rosto do homem. Vultus, disseram os latinos para
indicar a face. E como não lembrar: “risum colligit ac ponit temere et mutatur
in horas”? Vultus, de volvere, exprime maravilhosamente a mudança;
nenhuma outra parte do corpo, como o rosto, de um momento para outro,
muda.
Nesse ponto já se começa a entender a dificuldade da tarefa da lei
jurídica em confronto com a lei física, uma vez que os fatos, que devem
representar, não deixam comprimir seu desenvolvimento numa species; o
nome latino vultus, enquanto exprime com a mudança o caráter do homem,
fornece o paradigma da dificuldade.
Porém, a investigação do fato, sob o problema jurídico, não se pode
cumprir sem procurar a razão da mutabilidade ainda exasperada quanto aos
atos humanos.
O rosto do homem difere do focinho do animal justamente em razão da
sua mutabilidade. O rosto, não o focinho, é um espelho. Aqui, outra vez,
atingimos a insuficiência da razão e a necessidade da poesia. Sem dúvida no
rosto algo se reflete que o faz mudar. A alegria, a dor, a esperança, a
preocupação, o temor, o sorriso, o choro, a serenidade, o desespero.
Banalidades? Se não houvesse mais que isto, teriam certamente razão. Porém,
o que acontece, para representar o ato do homem, isto é, um homem que age,
é colocar junto a tempestade e o sereno, o pranto e o sorriso, o desespero e a
esperança. Nisso está a diferença entre o fotógrafo e o pintor. Na fotografia
um homem chora ou sorri; mas o pintor pode, se é verdadeiramente pintor,
encontrar a síntese do sorriso e do pranto.
A verdade é que o homem é espírito, não somente carne; e no rosto se
reflete seu encontro misterioso. Por isso o retrato está no vértice da pintura.
Ora, quando do corpo se passa para o espírito não se acresce tanto quanto se
dobra o movimento ou a mudança no sentido que, enquanto o corpo nada
mais faz do que avançar rumo ao futuro, o espírito vai para frente ou volta
atrás, movendo-se em direção do passado ou em direção do futuro, pelo que
não é sujeito à irreversibilidade do tempo. O corpo vive dentro, o espírito
vive fora do tempo. Não só entre os homens comuns, mas também os cultores
da ciência e até os filósofos e os teólogos acham tão fácil separar o espírito
do corpo que costumam referir-se a um ou ao outro, indiferentemente, a
irreversibilidade ou, em palavras mais simples, o tempo; nem em tal confusão
param nem diante de Deus. Não existem talvez que os juízes, os quais trazem
de suas experiências pelo menos a impressão que verdadeiramente o espírito
tem a possibilidade de fazer no avesso o caminho pelo que a sua vida é mais
vida do que a vida do corpo. Por isso, segundo representa a natureza ou o
homem, o pintor pinta o tempo ou a eternidade.
O legislador (é) um artista? Um pintor? Ou onde estão seus retratos?
Quando, num daqueles livrinhos, que estendem em torno da minha obra
jurídica um alo de poesia, descrevi os códigos, em primeira linha o código
penal como uma galeria de figuras, a minha razão não se deixou tomar a mão
da fantasia? Não se acha, verdadeiramente, na lei civil um retrato do
vendedor ou do comprador, como na lei penal um retrato do homicida ou do
ladrão: dizendo que a venda é o acordo entre duas pessoas para trocar uma
coisa com uma quantia de dinheiro ou o homicida é um homem que matou
outro não se deixa ver nada nem do vendedor nem do comprador nem do
matador nem do morto; que retrato seria este, no qual não se vê o retratado?
Isso quer dizer somente que a arte do legislador é mais pobre do que
aquela do pintor. Mas somente o pintor é um artista. Se a pintura está num
extremo, a música está no outro cabo da arte: entre as duas, uma graduação
da riqueza à pobreza ou, se poderia também dizer, da corpulência à
incorporeidade. Todavia, se à definição do legislador como pintor se substitui
aquela do músico, o discurso não se torna ainda mais extravagante?
O pintor não precisa de nenhuma colaboração para que o público goze de
suas obras. Mas para o músico a coisa é diversa. Eis avançar-se uma figura
para os juízes muito familiar. Quem de nós não fala de intérprete e de
interpretação? Se interpreta a lei, se interpreta o contrato, se interpreta o
testamento. Interpreta o juiz, interpreta o acusador, interpreta o defensor.
Existe a interpretação autêntica, a interpretação doutrinal, a interpretação
jurisprudencial, declarativa, extensiva, restritiva, analógica e assim por
diante. Certamente o conceito de interpretação é um dos fundamentos da
nossa ciência.
Mas não se interpreta somente no campo do direito. A figura do
intérprete tem um lugar de primeiro plano também na fenomenologia da arte;
porém, não de qualquer arte, que deveria se chamar discursiva em oposição à
arte figurativa, segundo a distinção elementar das duas formas do conceito,
discurso e figura. Eleonora Duse ou Ermete Zacconi, Paganini ou Toscanini,
grandíssimos intérpretes de música ou de poesia, têm em Vittorio Scialoja ou
em Paolo Emilio Bensa dois irmãos. A interpretação jurídica e a interpretação
artística não são duas coisas diversas, mas uma coisa só. Se o direito não
fosse arte, a interpretação não teria nada para fazer. A interpretação jurídica e
a interpretação artística; se não fosse tal, não seria interpretação.
Interpretar. A palavra exprime a idéia de uma mediação e com ela de
uma conjunção. O intérprete une o produtor ao consumidor da arte. Uma
outra ponte. Não pode nascer a dúvida se o intérprete seja um artista. Mas o
sentido comum se rebela à sua solução negativa. Toscanini ou Scialoja não
seriam artistas? Mas como, por outro lado, podem ser tais se a poesia ou a
música não brotam de sua fonte? O problema, porém, é achar a fonte. Como
no declamador ou no concertista, nem no músico ou no poeta pode-se
reconhecer a fonte da música ou da poesia. O homem, o maior entre os
homens não cria a menor entre as coisas. A sua tarefa e o seu mérito é
somente inventar. Não existe artista que não seja um trovador. O engano
daqueles que concebem a arte como criação é o mesmo de quem ouvindo
fluir a melodia do aparelho radiofônico o toma pela fonte do som.
Portanto, nem tanto o intérprete é um artista, quanto o artista não é o
intérprete. A diferença entre Beethoven e Toscanini não é que também
Beethoven não seja uma ponte, mas somente que uma das ribeiras unidas por
essa ponte não se deixa ver. E quando ouvimos uma de suas músicas
encantadoras uma ponte se acrescenta à outra para que possamos chegar à
ribeira desconhecida.
Um código se assemelha então a uma partitura?
Ao invés de sorrir, é preciso refletir. As notas musicais, ao profano que
as observa, não dizem nada. Mas também de um artigo do código é a mesma
coisa. Um homem não é senão uma história. O irmão afunda o punhal no
peito do irmão. E antes? E depois? Quem era o matador? E quem é o morto?
Duas histórias. “Quem mata um homem” implica todo o problema do
passado. E como a noção do delito implica o problema do passado, assim a
noção da pena abre o problema do futuro. Passado e futuro. Tudo. Toda a
vida. Toda a história.
Cada uma das artes procura transferir no presente o passado e o futuro.
Não há nem pintor nem escultor que esteja contente em reproduzir o que vê
no seu modelo; ele quer exprimir o que adivinha, e essa é a unidade do
homem; do que era antes e do que será depois. Mas nenhuma outra arte como
a música representa nada mais do que o futuro e o passado, isto é, o fluir do
tempo; seu objeto, mais do que essa ou aquela coisa, é a infinita riqueza da
vida. Nem há outra arte, a qual, quanto a música, consiga representar essa
infinita riqueza com uma franciscana pobreza. A mais humilde das artes é a
mais alta. Outra vez, remontando o curso da minha história, reconheci que
não foi uma casualidade se, antes de encontrar São Francisco, encontrei
Beethoven. A semelhança da arte do direito com a arte musical, denunciada
pela necessidade do intérprete, está confirmada pela oposição entre o
ilimitado do fim e o limitado do meio representativo; nem o conhecimento do
direito pode conseguir-se sem descobrir como se resolva essa contradição.
Todavia, mesmo se os fantoches do direito tivessem um rosto, e assim a
arte do direito pudesse assemelhar-se mais do que à música e à pintura,
quantos foram e ainda são os juristas, os quais ignoram a diferença entre o
homem e o fantoche, tendo ensinado e ainda ensinando como se o homicídio
e o furto fosse o que se lê no código e não o que se sofre na vida!
O mérito de Enrico Ferri foi de se ter rebelado a essa confusão pelo que a
sua vitória celebrou-se, embora ele não sabia disso, no campo da
metodologia. O progresso da escola clássica para a escola positiva e desta
para a escola técnica jurídica, é propriamente metodológico; e o
Methodenstreit, embora a maioria dos juízes não costuma prestar atenção
nisso, teve maior ressonância no direito penal do que no direito civil. Ferri
reivindicou o fato contra a lei: aqui está o significado da sua obra e o limite
da sua ciência de jurista. O grande penalista italiano escancarou as janelas do
museu. “O homem, não o fantoche”, foi o seu grito.
Todavia, o mundo contém também os fantoches. E o direito não pode
deixar de considerá-los. Sem eles a lei não conseguiria governar o homem.
Por isso, se a ciência jurídica começou com o estudo do fantoche, não se
pode repreendê-lo por não ter estabelecido o justo ponto de partida. Em
suma, o problema não é nem aquele do homem nem aquele do fantoche, mas
sim de um e de outro juntos.
O fantoche é como a mão da lei. Sem as mãos, como a lei poderia agarrar
os homens? Os fantoches procuram arrestar os homens e os homens escapar
dos fantoches. Essa é a luta, sem observar a qual não se conhece o direito.
Por isso, quando, como resultado do estudo da lei e do fato, os penalistas
mais recentes formulam a distinção entre delito – instituto jurídico e delito –
fato, o problema do direito não é mais do que proposto: se apresentam assim
os dois termos, um contra o outro; mas o conhecimento do direito não se
obtém sem ver como a luta entre eles se desenvolve e se compõe.
O Que é o Juízo?

O direito é luta. À famosa fórmula de Ihering: der Kampf um’s Recht, ousaria
acrescentar: der Kampf im Recht. Certamente, uma contradição! Não deveria
o direito procurar a paz? Assim é a vida. Fé e dúvida parecem se contradizer;
todavia bem disse Unamuno que “fe que non duda es fe muerta”. Assim é a
pureza e o pecado; assim a luz e a sombra. Logicamente o problema se
resolve desvelando o equívoco entre oposição e negação e, por isso,
esclarecendo que a negação é insuficiência: não o contrário, mas o defeito da
luz é sombra como o defeito da pureza é o pecado. Por isso, não há oposição
entre a guerra e a paz; também a guerra é uma insuficiência dos homens, os
quais devem superá-la para alcançar a paz. Justamente porque no direito se
combatem o fato e a lei, o direito não pode limitar-se à luta entre eles, mas
deve superá-la.
Aqui se descobre o erro não somente dos juristas da escola penal positiva
mas de todos aqueles cuja ciência detém-se na oposição da lei e do fato: no
lugar da antiga indistinção coloca-se hoje entre os dois termos uma distinção
bem exata; mas a ciência não continua além. Lei e fato; todos os nossos
sistemas, incluída na primeira edição da minha Teoria geral do direito,
apóiam-se sobre uma estrutura binária. Quer dizer que, como observei há
pouco, a ciência se limita a separar os elementos do direito e não continua
pedindo como se devam combinar.
Nos últimos tempos o princípio da divisão do trabalho, que se afirma
cada dia mais no campo científico, empurrou essa orientação ao grau extremo
pelo que acabou descobrindo o princípio do remédio. Os penalistas mais
rigorosos distinguem, como temos visto, o delito – instituto jurídico do delito
– fato com o resultado de limitar a ciência deles no estudo do primeiro; o
crime-fato é deixado às indagações dos criminologistas e subtraído aos
juristas. Esse movimento em direção à purificação da ciência jurídica
percebe-se menos claramente na matéria civil; todavia, também os civilistas
começam a deixar aos cultores da técnica mercantil o estudo de seus fatos
principais e, em primeiro plano, do contrato. Assim, a ciência jurídica,
enquanto se separa da sociologia, tende a se isolar na nomologia.
O que gostaria de mostrar nessa meditação é não tanto a insuficiência de
tal concepção, quanto a maneira de superá-la.
Iudicium. A mesma raiz de ius. Se os glotólogos não admitem o
parentesco entre ius e iungere, a reconhecem pelo menos entre ius e iudicium
ou iudex. O iudex dicit ius (ius – dicium); e o ius se revela dizendo. Corre
entre ius e iudicium a mesma diferença (que corre) entre espírito e corpo:
iudicium é a encarnação de ius. Podemos, depois disso, nos iludir de conhecer
o pensamento sem estudar a palavra, que o encarna? E, da mesma forma, o
ius sem o iudicium?
Certamente a ciência jurídica alemã do século passado merece a gratidão
do mundo antes de tudo pela distinção, que devemos a ela, entre direito
material e direito processual. Nos tempos de Roma esses dois aspectos do
direito não se podiam separar porque o primeiro era quase totalmente
enredado no segundo. Mais tarde, quando a figura do juiz perdeu o primado
sobre a cena do direito, cedendo-o ao legislador a obscuridade, na qual viveu
longamente o processo, não permitiu aos juristas de concebê-lo nem como
direito, nem como objeto do direito; o sinal dessa inferioridade se deu na
fórmula francesa da procédure civile ou pénale, que se opunha ao direito civil
ou penal. Justamente por merecimento da ciência alemã o processo superou a
crise convertendo-se a procédure civile ou pénale no Prozessrecht, isto é,
alinhando-se o direito processual ao lado do direito material e perfilando-se
essa distinção como um dos fenômenos para o estudo do direito. Sobretudo
por esse mérito o pensamento alemão dominou ao longo de todo o século
oitocentos e por poucos anos depois a ciência jurídica do mundo todo.
Naturalmente, nos primeiros tempos da exportação dessas idéias, os
povos importadores não tiveram plena possibilidade de crítica. Os alemães
dominavam e os outros eram dominados. Mas, aos poucos, como sempre
acontece, o entusiasmo cedeu lugar a uma avaliação mais justa dos
merecimentos e dos defeitos. Finalmente, foi possível perceber que a ciência
processual alemã fica, malgrado tudo, na superfície. O seu avançar sobre a
fase precedente foi, sem dúvida, de grande importância; todavia, faltam os
fundamentos. Naturalmente, os fundamentos da ciência jurídica, como de
qualquer outra, estão fora dela; por isso se constroem com pesquisas
metajurídicas ou, em geral, metacientíficas; mas aqui se encontram as
dificuldades mais graves pelo pesquisador. De qualquer forma, a ciência não
pode achar um terreno sólido debaixo de si sem essa fadiga.
Provavelmente o sinal da superficialidade da ciência moderna processual
está na sua denominação. Uma vez se falava, na Itália, de direito judiciário.
Hoje esse adjetivo não parece de bom gosto; a moda alemã não admite outra
fórmula que não seja aquela do direito processual. O próprio jurista que vos
fala adaptou-se nela sem nenhuma profunda reflexão. A insipidez da palavra
processo em confronto com juízo passou-me completamente despercebida;
igualmente, o parentesco entre iudicium e ius. Somente quando, mais tarde,
acreditando agora exaurido o meu interesse para o direito, comecei, em
particular, nas meditações genebrinas, a olhar além, no juízo, me pareceu, ao
mesmo tempo, a semente do direito e do pensamento e então entendi que o
fundamento do primeiro é o mesmo fundamento do segundo. Poder-se-á
apreciar, mais adiante, o valor dessa observação.
Não há dúvida que a palavra juízo expresse a idéia de uma união. Já
observei que se as experiências dos glotólogos não valeram para descobrir as
patentes de parentescos entre ius e iungere, o raio da inteligência chega mais
longe: que faz o juiz senão unir as partes? Mas esse é um argumento a ser
tratado mais tarde. Parece-me suficiente, por enquanto, a observação que
justamente a idéia fundamental da sociologia kantiana (e, provavelmente, o
seu erro mais grave) cresceu à sombra dessa palavra: o juízo sintético seria,
exatamente, o efeito de uma força unitiva imanente no espírito humano; nem
é necessário que eu explique a reserva relativamente a essa idéia, a qual
reconhece ao homem o que é próprio de Deus. Todavia, existe a necessidade
de unir; e o problema não é senão o de saber de onde vem a força unitiva e
como age para com os homens. Pode ser que os juristas tenham uma posição
privilegiada para ver um pouco mais distante.
Todos entendemos, mais ou menos, que o juízo é a semente do
pensamento. Porque não dizer da célula? Certamente, se aos discípulos
incultos o Mestre não podia dar outro exemplo do que aquele do grão de
mostarda, os modernos conhecimentos biológicos permitem que a parábola
seja modificada.
Mas a condição da descoberta da célula é o microscópio; e nada de
semelhante têm os lógicos a sua disposição. Essa predileção da natureza para
os cultores das ciências físicas poderia, todavia, ser somente uma aparência.
Um microscópio lógico, certamente, não existe; todavia, a natureza fabricou
um tipo de juízo gigante, que os homens podem observar, comodamente, sem
necessidade de nenhum sacrifício. Agora vem o momento para falar do
processo. O que é então o processo na realidade, senão um juízo visto com a
luneta? Se há uma razão para falar do processo ao invés do juízo, não é senão
aquela que o juízo assim ampliado perde a sua fisionomia. É preciso observá-
lo de longe para recompor sua linhas e penetrar a sua natureza.
Na verdade, o que fazem o juiz e as partes nesse complexo de atos, que
chamamos processo, civil ou penal, senão julgar? Bem aventurados os
juristas, os quais podem observar um mecanismo que seus companheiros de
trabalho nos outros campos da ciência não têm à disposição. Bem
aventurados e ingratos porque, pior do que os outros, habent oculos et non
vident; se não o microscópio, é preciso pelo menos a atenção; mas essa é tão
rara qualidade de um pensador!
Juiz e partes. A primeira surpresa que o espetáculo do processo causa
refere-se a essa pluralidade. As partes deveriam ser, logicamente, objeto, não
sujeito do juízo; em suma, quem é julgado, não quem julga. Porém, quem é
julgado tem de suportar o juízo; as partes, ao contrário, antes de sofrê-lo,
agem diante do juiz. Como agem e porque? Lutam: essa é a palavra. Lutam
para convencer o juiz. Uma diz branco, a outra diz preto. Muitas vezes gritam
ao invés de falar. E o juiz escuta antes de julgar.
Branco ou preto. Sim ou não. Cara ou coroa. O dúbio. Dubium tem a raiz
em duo, como duellum. O duelo das partes, personificando o dúbio, mostra o
nascer do juízo. Não logicamente, mas praticamente o juízo se gera do dúbio.
Mais dúbio, melhor juízo. Tanto necessário é o dúbio para o juízo quanto
naquela forma do processo, onde o contraste das partes naturais pode faltar, o
direito cria duas partes artificiais (chamei-as de instrumentais nas Lezioni sul
processo penale), acusador e defensor, cuja função não é outra senão cultivar
o dúbio, aliás exasperá-lo.
O juízo assume assim a forma geométrica de um triângulo. A tríade
hegeliana? Certamente; mas não sobre o plano metafísico e nem sobre o
plano lógico, mas somente com a finalidade de explicar a história do juízo,
bem como a sua natureza se, nos ensinamentos de Vico, natureza de uma
coisa é modo do seu nascimento.
Prestamos atenção, agora, ao juiz, deixando as partes. O que faz quando
julga? Talvez o fundo se enxerga melhor em matéria penal.
Interroga o imputado. Interroga as testemunhas. Interroga as partes.
Interroga as coisas. Gostaria de chamar, se pudesse, o mundo todo debaixo de
seus olhos.
Debaixo de seus olhos. Me vem à memória uma frase do mais trágico
pensador da Alemanha moderna, Martin Heidegger, quando diz, para explicar
o conceito do presente: “algo está na frente”. Quando li essa frase, finalmente
entendi, depois de tantos anos de pesquisas, o que é a prova. O presente (o
mais problemático dos aspectos do mais problemático dos conceitos, que é
aquele do tempo) nada mais é do que a zona iluminada diante do homem, que
procede com o lume da lanterna. Assim faz o juiz: procura iluminar quanto é
possível a estrada diante dele. Assim faz qualquer um, quando deve formar
um juízo.
Em rigor, pode-se formar um juízo, sem dúvida, mas não se forma sem
provas. Porém, na maioria dos casos, a prova é tão microscópica que não se
enxerga a olho nu. O mérito daquele juízo gigante, que se chama processo, é,
entre outro, aquele de deixá-la ver. Esse espetáculo nos permite o trânsito do
campo histórico ao campo lógico do juízo.
Até que o juiz interroga, procura ampliar o presente. Porém, num certo
momento, termina de interrogar. O presente se alarga até os limites do
possível; e depois?
O juiz não pode parar naquele ponto. Ouviu o imputado. Ouviu as
testemunhas. Viu as pegadas do delito. Mas o delito não o viu. Aquelas
coisas estão na zona da luz; esta na zona das trevas. Todavia, o juiz deve ir
adiante. Trata-se de saber o que significa essa continuação.
Passa-se assim, do noto ao ignoto. E o ignoto se divide em dois setores: o
passado e o futuro. É preciso entender em torno dessa distinção. O passado,
na verdade, não pode ser ignorado porque passou da possibilidade para a
existência; e não existe (não ex-stat), isto é, não vem fora o que não se
conhece. Todavia, pode ser que o passado seja passado para um e não para
outro homem. Nesse sentido, o passado pode ser parcialmente ignoto. O
futuro, pelo contrário, é ignorado por todos os homens. Ora, o juiz deve
marchar numa e na outra direção. Numa se encontra o delito; na outra a pena.
Falo, como avisei, do processo penal para exemplificar; o mesmo, de resto, se
pode dizer quanto ao processo civil: a conclusão da venda e a entrega da
coisa pertencem ao passado, enquanto o pagamento do preço pertence ao
futuro.
O juízo, dessa forma, é um pulo na escuridão: do noto para o ignoto; do
passado do juiz ao passado do imputado e, depois, ao futuro. Ora, a sua
natureza unitiva começa a desvelar-se: o juízo une, mediante o presente, o
passado ao futuro. Uma tarefa sobre-humana. Por isso, a explicação filosófica
do juízo, se pode encontrar no campo lógico o seu princípio, não pode ser
completado sobre o terreno metafísico; e nada mais do que essa sobre-
humanidade quis expressar o Mestre com o enigmático: nolite iudicare.
Um pulo para o passado. O contrato no processo civil que verte sobre a
sua execução, ou o delito no processo penal, que tende à sua punição, é o
passado; e, como passado, é história. Portanto, esse juízo exatamente se
chama histórico.
Aqui está o ponto de conjunção entre o historiador e o juiz. O juiz e o
historiador é o título de um dos estudos subjetivos de Piero Calamandrei.
Certamente o juiz, assim como o historiador, faz da história, ou melhor, da
historiografia. Somente, na maioria dos casos, enquanto o historiador se
ocupa dos grandes fatos, o juiz se ocupa dos pequenos. Essa, porém, não é
uma regra absoluta: dão-se obras históricas para procurar as coisas pequenas
do passado; e há juízes, aos quais o destino impõe o peso de castigar um
povo; os últimos tempos nos apresentaram tal possibilidade; nem deveria
existir um jurista abalizado, o qual ignore, entre outras coisas, que o
problema atual da Alemanha é, em dimensões enormes, o problema da pena.
Essa, por isto, da importância dos fatos não constitui entre o juiz e o
historiador uma diferença essencial.
O historiador, quase sempre, limita-se a julgar do passado. Aliás,
segundo o positivismo ou o idealismo (cara ou coroa da mesma moeda), deve
parar aqui. Induzir do passado o futuro lhe é proibido. A história magistra
vitae parece uma superstição dissipada pela ciência moderna, como neblina
ao sol. Será, não será; agora não me interessa. Certamente também quando o
historiador tenha possibilidade de continuar depois do juízo sobre o passado,
não tem o dever. Quem não pode parar nesse ponto é, ao invés, o juiz. Para
ele o juízo histórico não é uma etapa. O juiz se assemelha a um pulador, que
toma o arranque para alongar o pulo. O juízo histórico é para ele meio, não
fim. Quando se trata de direito, conhecer o passado é uma passagem
obrigatória para conhecer o futuro. Vem assim, depois do juízo histórico, o
juízo crítico, como se costuma dizer.
Juízo crítico parece uma tautologia. Como céu celeste, sem dúvida. Se
diz “céu celeste” todavia; e uma vez que se diz, deve ter a sua razão. Com
efeito céu celeste quer dizer céu como deve ser para ser verdadeiramente
céu; a verdade do céu, em suma. Igualmente, juízo crítico significa a verdade
do juízo: o juízo que verdadeiramente serve para julgar. Descobre-se nessa
fórmula a intuição que o juízo sobre o passado não interessa senão com o
escopo de preparar o juízo sobre o futuro. Em si mesmo o juízo histórico,
mais do que um juízo consumado, não é senão uma tentativa de julgar. O
passado não tem outro valor do que aquele de preparar o futuro.
Porém, não parece que sejam a mesma coisa o juízo crítico e o juízo
sobre o futuro. O que se entende por juízo crítico é o juízo do bem e do mal;
mas quando não se refere absolutamente ao futuro; que aquele que eu disse
seja bem ou seja mal é coisa do passado, não do futuro. Sério? Porque, então,
essa ânsia do homem, o qual quer conhecer se o que fez era bem ou era mal,
pelo que dessa qualidade da sua ação não dependesse a sua vida futura? Não
somente o que é bem ou mal reage sobre o futuro mas, verdadeiramente, o
futuro reage sobre o que é bem ou mal no sentido que se algum fato seja bom
ou ruim não se pode julgar sem conhecer o futuro; outro círculo lógico, que
somente a metafísica pode resolver; até o pecado pode ser uma benção se,
através do arrependimento, nos guia à liberdade! Portanto, somente a razão
que o homem tem de julgar a si mesmo ou um outro homem, é aquela de
regular a sua vida futura. Assim, o problema do bem e do mal se identifica
com o problema do futuro. Há outro perfil do qual a função do direito e a
figura do juiz consiga mais vivamente iluminada? Quando disse, algum
tempo atrás, que o direito introduz o sobrenatural na natureza, não me parece
ter exagerado.
Mas o juiz, pelo menos atualmente, não pode julgar como acredita. Já o
juízo histórico e o juízo crítico ou, poderíamos dizer, regularmente o segundo
e por exceção também o primeiro seguem uma via obrigatória. Aqui se
apresenta o problema, que os juristas denotam com a fórmula da aplicação da
lei ao fato ou propriamente concerne a combinação do abstrato e do concreto.
Dever-se-ia, antes de tudo, delinear o conceito do juízo segundo quando
o juiz que julga é livre na sua fadiga. O juízo, dissemos, consiste na união do
presente ao passado e ao futuro; para ele, o presente é alargado. Se o leitor
lembra como no começo propus distinguir entre o gênero e a espécie, poderá
também pensar que o juízo converte a espécie em gênero; e assim indaga
aquilo que o fato foi antes e o que será depois; da sua criação, em suma,
como criado e como criador. O presente forma uma parte daquilo que se
procura como cada fotograma é uma parte do filme. O juízo se resolve,
portanto, dada uma parte em procurar a outra parte. Não deveria acontecer
outra coisa para desencantar a lenda do juízo sintético; para ser sintético o
juízo, dadas as partes, deveria procurar o todo. Isso quer dizer que o todo
constitui o meio para julgar, não o resultado de ter julgado; uma parte não se
pode determinar sem conhecer os dois termos: a outra parte e o todo. Mas
como se pode conhecer o todo? Assim se reafirma a necessidade da
prudência praticada pelo Mestre: quem de nós saberá julgar? Ele nos disse
todavia: “como pode um cego guiar outro cego?”. Não obstante, a fonte do
juízo é o sentido do todo; o melhor sentido do que o conhecimento porque do
todo não se pode ter mais do que a intuição. A ordem, poderia dizer, em lugar
do todo, para indicar a sua qualidade, que é a sua bondade, pelo que cada
causa tem a sua própria conseqüência e não há nenhuma outra que tenha a
mesma conseqüência assim como não há outra conseqüência que seja devida
à mesma causa. Nem outro é o sentido da ordem senão o sentido do bem ou,
de outra forma, o bom senso; tal é a disposição do espírito indispensável para
o fim de julgar.
Assim se desenvolve a fadiga do juiz quando não está com as mãos
amarradas. A liberdade de julgar nada mais é do que faculdade de se regular
segundo o bom senso. Quando o juízo histórico sobre a existência do delito
alcança um resultado positivo, o juiz, por quanto não esteja por dentro do
mecanismo lógico e metalógico, nada mais faz que procurar o segundo termo
da fórmula algébrica, que veremos dentro de pouco: d (delito) + p (pena) = 0.
Em outras palavras, determina a pena que, na mesma medida do bom senso,
equivale ao delito; mas como se obtém, dada uma quantidade, a quantidade
equivalente sem conhecer o todo? O bom senso constitui o pressuposto e, ao
mesmo tempo, o segredo do juízo.
Se, ao contrário, as mãos do juiz estejam amarradas e, portanto, ele não
seja livre de julgar segundo o seu bom senso, quer dizer que em lugar da
ordem a lei age no juízo.
Nesse ponto o jurista ou, em geral, o pensador, não pode evitar o
problema da relação entre a ordem e a lei. Naturalmente, ainda uma
comparação. O que é o todo: a luz ou as cores? As leis estão na ordem como
as cores à luz ou como os sons ao silêncio. Da mesma forma que os homens
não podem descobrir todas as leis, nas quais a ordem se decompõe, eles não
chegam a ouvir todos os sons e a ver todas as cores, que resultam da
decomposição do silêncio e da luz. Seria suficiente para fundar essa verdade
a experiência que não há lei sem exceção. A exceção não é uma lei que, como
o infravermelho ou o ultravioleta – os nossos olhos não conseguem ver.
Os juristas, uns mais outros menos, intuíram desde o começo essa
verdade distinguindo o ius da aequitas e concebendo essa última como uma
justiça, que não se deixa formular numa lei. O juiz, portanto, quando deve
julgar segundo a lei, não pode adaptar exatamente a conseqüência à causa,
mas deve atribuir à causa uma conseqüência que não é a sua conseqüência e à
conseqüência uma causa que não é a sua causa. Nesses termos a análise do
juízo explica o drama do direito. O direito tem necessidade da lei para guiar
os homens; mas a lei, fazendo desviar o juízo, desvia o direito do seu fim.
Dessa forma o juízo descobre a luta, que se esconde no seio do direito. A
descobre somente ou também a compõe? Tal é o fundo do problema.
Teoricamente é permitido ser otimista. Sobre o papel do juiz está um
servidor da lei. O legislador está acima e o juiz está debaixo. Dura lex sed
lex. Assim é a teoria.
Mas também a vida? Na realidade da vida a luta do fato contra a lei se
converte na luta entre o juiz e o legislador. Ora, que o legislador domine e o
juiz seja dominado é mais aparência que realidade. Na realidade, como o
direito culmina no juízo, assim o juiz acaba por julgar também o legislador.
Quantas vezes, sobretudo nos processos penais, a minha imaginação colocou
diante do juiz o legislador ao lado do imputado! Ora, quando o legislador não
consegue se desculpar, o juízo implica a sua condenação. Há, naturalmente,
juízes e juízes; nem cada um deles tem hoje o coração do pretor romano:
todavia, um juízo que não contenha uma dose, grande ou pequena, de
correção à lei, é muito raro. Se esse santo abuso não se descobre quase nunca
a olho nu, é fruto da costumeira camuflada, às vezes até sem conhecimento,
do juízo crítico nos panos do juízo histórico; não podendo rebelar-se à lei, o
juiz acaba por se rebelar à história.
Assim, o direito culmina no juízo não tanto porque sem juízo a lei não
poderia agir, quanto porque somente no juízo a luta da lei e do fato se
compõe. O legislador tem as insígnias da soberania; mas o juiz possui suas
chaves. Tanto é certo que a ciência do direito não se pode reduzir à
nomologia.
O Que é a Sanção?

P rocurando explicar a diferença entre leis naturais e leis jurídicas,


percebeu-se que estas últimas não se limitam à representação da lei
moral, se engenham para acrescentar à conseqüência natural do fato uma
conseqüência artificial; o homem que mata outro homem não sofrerá somente
os tormentos da consciência, mas outro mal, que se chama pena. Portanto, o
juiz, quando constata que um delito existiu, estatui a pena. Mas o estatuir não
é suficiente, pelo menos na grande parte dos casos; depois de tê-la estatuída,
a pena deve ser infligida. Não basta, em suma, a condenação à morte se o
assassino não é morto.
Se o direito culmina no juízo, não acaba porém, ou pelo menos parece
que acabe com ele; o exemplo da condenação à morte perfila, ao lado do juiz,
a escura figura do carrasco. Assim o direito, depois que com o juízo nos
parece ascender para as serenas regiões da luz, parece afundar-se nas trevas.
Vem na memória a descida de Jesus ao inferno depois da ressurreição.
Suspeito que a tristeza da pena não seja mais do que uma aparência,
aflora ainda uma vez da mesma palavra. Sanção, dizem os juristas. A raiz de
santo! Há um senso de mistério nessa coincidência. Antigamente, o réu se
chamava sacer: uma coisa consagrada a Deus. Pensava-se então na vingança
divina; e o carrasco aparecia como o representante de Deus, que se vinga do
direito. O erro não era misturar Deus com essas coisas; virá mais tarde Jesus
para se ocupar dos pecadores; mas o que se inverteu, desde então, é o
conceito de Deus. O argumento é assim grave, que aqui convém fazer uma
pausa.
É preciso parar para considerar a sanção como uma medida que garante o
juízo, se a boa vontade abundasse no mundo, de nenhuma outra coisa haveria
necessidade além do juízo; aliás, o mesmo processo seria supérfluo se todos
os homens soubessem aquilo que devem saber. A balança não serve a outra
coisa senão remediar no defeito do pensamento; e no defeito da vontade a
espada. Uma representa o animus, a outra o corpus do direito.
Os juristas, ao tempo do meu noviciado, conheciam dois tipos de sanção;
as chamavam execução e pena. Naquela tentativa de teoria geral, que se
delineia no primeiro volume das minhas Lezioni di diritto processuale civile e
serviu como armação do edifício que deveria construir mais tarde, não soube
fazer outra coisa do que seguir tal classificação. Contudo, não precisava
muito para perceber que de execução se fala também quanto à pena; nem
outra coisa teria acontecido para entender que o binômio, formulado assim,
não pode ser exato. Chegou, por isso, o momento no qual entendi que no
lugar da execução deve colocar-se a restituição: restituição e pena são
propriamente as duas espécies fundamentais do gênero sanção. Mas essas
palavras não contém mais do que uma intuição, que deveria desenvolver para
poder aí entender, junto, o genus proximum e a differentia specifica desses
conceitos.
Sobre esse terreno estou trabalhando pelo menos há trinta anos. O
primeiro passo foi a distinção estrutural, que se lê nas minhas lembradas
Lezioni e se funda sobre o interesse: a restituição sacrifica o mesmo interesse
que o direito tutela e a pena, ao invés, submete um interesse diverso daquele.
Um primeiro degrau; mas, na verdade, ficava ainda distante. Para tocá-lo, era
preciso escavar de outra parte.
Quando mais tarde entendi também que em relação a esse tema a função
prevalece sobre as estruturas, não soube dizer outra coisa a não ser que o
caráter da restituição é satisfatório e aflitivo, ao invés, o caráter da pena; uma
maneira de pensar tanto corrente quanto artificial. Porque, na verdade, essa
dificuldade? A razão não pode ser descoberta até que se continue a observar a
restituição mais do que a pena. Não esquecemos que aportei na praia do
direito penal depois de um longo vaguear através da terra do direito civil;
algo como a chegada do velho para o novo continente! Um dia, a mais
estranha das aventuras acadêmicas fez com que brotasse de repente sobre a
árvore do meu pensamento uma jóia que brotou ao tempo da minha
juventude; desde então, o problema do direito penal dominou a minha mente
e o meu coração. Agora está claro para mim que até que eu considerava a
sanção do lado da sombra, essa não podia me revelar seu segredo.
A pena pode então estar do lado da luz? Antes que noutro lugar, na Itália
mais de um jurista acolheu essa afirmação com ironia. Como não, se o setor
da pena pode considerar-se o inferno do direito? Nós somos ainda dominados
por uma concepção otimista do direito civil bem como por uma concepção
pessimista do direito penal. Quando os juristas pensam na restituição não
pensam e não vêem senão a alegria do credor, que recupera seu dinheiro;
quanto à pena, que outra coisa pode haver senão a cruz sobre os ombros do
condenado?
Que essa não seja mais uma observação superficial não demorei a
perceber, quanto à sanção civil, desde a primeira tentativa de teoria geral, há
quase trinta anos, refletindo que, se o credor goza, o devedor sofre quando
está constrangido a restituir: o dinheiro que alguém recebe é tirado do outro;
não há somente sorrisos, mas também lágrimas na execução civil, uma vez
que sem tirar não se pode dar. Mas porque os juristas olham somente um lado
da moeda? Não será a complacência, observando, ao invés do lado passivo, o
lado ativo do fenômeno, de poder celebrar um sucesso do direito? Sucesso
pleno quando o credor consegue a mesma coisa que lhe era devida; o
ressarcimento do dano não é, muitas vezes, mais do que um meio sucesso;
todavia, são raros os casos nos quais o credor fica totalmente de mãos vazias.
As coisas aparecem muito diversas no outro setor, onde não há lágrimas
e nada de sorrisos; enquanto o condenado sofre, quem goza? Nesse caso a
moeda não parece ter a cruz; daqui o modo corrente de apresentar a distinção;
função satisfatória da função civil e aflitiva da sanção penal.
Disso se deduz que no campo civil o direito chega ao início da
dificuldade, na maioria dos casos, restabelecendo a situação segundo suas
normas; mas o direito penal não tem os mesmos recursos. Em suma, o civil
parece ganhar e o penal perder a sua partida. Mas se o nosso olhar não
pudesse chegar mais longe, também a partida da ciência do direito seria
perdida.
Nessa altura da caminhada a situação seria a seguinte: em matéria civil a
sanção opera em via preventiva e repressiva, mas é, por outro lado, somente
preventiva em matéria penal.
Os civilistas, como disse, concentram a atenção sobre o lado expressivo,
que se manifesta tirando a coisa de quem não deve tê-la, para entregá-la ao
outro que a deve gozar. Assim, o direito reprime o ato contrário às suas
normas acordando o que existe com aquilo que deve existir. O acordo, porém,
não é e não pode ser perfeito por causa da irreversibilidade do tempo, que
quer dizer da impossibilidade que o fato não seja fato: não podendo a
restituição ser retroativa, com o ressarcimento do dano se procura o remédio
para essa imperfeição. Ao lado da função repressiva, mais ou menos plena, se
coloca porém a função preventiva da restituição, afirmada com maior ou
menor clareza sobre o plano científico, mas sempre reconhecida pelo senso
comum: o temor do ressarcimento do dano opera inevitavelmente como
contra estímulo ao adimplemento da obrigação e a mesma restituição, na sua
pureza, enquanto implícita a inutilidade do esforço cumprido para procurar-se
o que se deve restituir, desaconselha no futuro outro esforço de tal natureza.
Por outro lado, parece que a matéria penal não consinta à sanção a tarefa
de restabelecer o status quo ante e por isso exerce uma função repressiva.
Aqui vale a admoestação de Sêneca: nemo prudens punit quia peccatum est
sed ne peccetur. O pecado quando foi cometido não se pode apagar do
mundo. Tudo o que se pode obter é que não exista um novo pecado. As
coisas podem ser objeto de restituição, não os atos. Não se dá restituição
nesse aspecto da vida. Por isso a função repressiva da sanção civil se
contrapõe a função preventiva da sanção penal. E os juristas se acalmam
nessa contradição.
Possível? O direito civil serve não somente para prevenir mas também
para reprimir o mal e o penal somente para preveni-lo? Uma cruz sem cabeça
não é uma moeda. Se diria que o direito impotente à repressão não seja
direito; ou pelo menos não direito total.
Por isso o pensamento de Sêneca encontra uma invencível resistência no
sentido comum. Aqui provavelmente separaram-se a ciência e a sabedoria. A
ciência, se diz, essencialmente positiva, não acredita naquilo que não vê; ora,
aquilo que se vê é que factum infectum fieri nequit: o que existiu não pode
não existir. A restitutio in integrum tem o caráter da função, não da realidade.
É um fato que os seguidores da escola positiva não teriam podido ultrapassar
os limites da prevenção sem renegar o seu positivismo. Todavia, está nessa
limitação seu calcanhar de Aquiles. Contra a concepção puramente
preventiva da pena o sentido comum opõe que, se um homem pudesse matar
a humanidade toda e, portanto, ficasse sozinho, a sua impunidade seria uma
intolerável injustiça. E não é de pouco peso que a esse propósito o sentido
comum seja representado nada menos que por Emanuel Kant.
Todavia, depois de Kant, podia aguardar-se além da formulação, a
explicação de tal exigência. O homem, tendo ficado sozinho sobre a Terra,
deve ser castigado. A tarefa do filósofo é de nos esclarecer o porquê. Para
extinguir a humanidade? Se o desaparecimento de todos os outros é um mal
que até o último deva desaparecer, aumentará o mal ao invés de diminuí-lo.
Esse é o defeito da fórmula groziana: malum passionis ob malum actionis;
dois males são mais mal do que um só mal; nem se pode demonstrar que o
mal seja um remédio contra o mal. Maldita superstição, fundada sobre o
equívoco em torno do valor da negação, que tem tanta parte nos erros do
raciocínio; quando a negação é negada, duas negações se somam e a soma de
dois números negativos não dá um número positivo. Se a matemática dissesse
o contrário teria razão quem sustentou que uma coisa é o número, outra é
raciocinar.
Igualmente, se a eficácia repressiva da pena se deve explicar, um dos
dois termos, delito e pena, deve ser contrário ao outro na ordem da
positividade ou da negatividade. Se o primeiro se indica com d e o segundo
com p, a repressão, ou, mais claramente, a anulação do delito não se pode
representar com o símbolo de uma das fórmulas seguintes: (+d) + (–p) = 0,
ou de outro modo: (–d) + (+p) = 0.
O problema está no escolher entre a primeira de tais fórmulas e a
segunda.
Logicamente, o problema não se resolve sem estabelecer onde está a
negação, entre delito e pena. Em outras palavras: onde está o ser e onde o não
ser.
Ninguém duvida que o delito seja um mal. Nem é preciso de outra
premissa para se saber orientar depois que Santo Agostinho definiu o mal
com o não ser. Ao primeiro dos dois termos do binômio cabe então o caráter
negativo. O que o delito nega é a liberdade, se a tal augusta palavra se
reconhece o seu verdadeiro significado: livre não é o homem, quando pode
fazer o que gosta, mas somente consegue fazer o que não gosta. Ora,
representado o delito com um número negativo, a fórmula algébrica da
função repressiva da pena não pode ser senão a seguinte: (–d) + (+p) = 0.
Portanto, a proposição de Grozio, melhor do que retificada, deve ser
invertida: em lugar de malum passionis ob malum actionis a pena pode se
definir como bonum passionis propter malum actionis?
Aqui se agarra a diferença entre o tempo de Sêneca e o nosso: in medio
stat Christus.
Sem dúvida a pena é dor. Se não fosse dor não seria pena. Porém, se mal
e dor fossem a mesma coisa, como se poderia explicar que o pai, o qual ama
o filho, querendo o seu bem, com o castigo lhe procure um mal? Parece
impossível que o equívoco de Grozio tenha dominado e continue dominando
o pensamento de tantos juristas relativamente ao problema da pena. Pode ser
que às vezes a ciência falte de humildade? O argumento do pai e do filho e da
dor e da utilidade do castigo talvez não têm a dignidade de uma austera
reflexão científica; vejamos, todavia, se não serve para desatar um nó, que
somente a imperícia das nossas mãos pode ter deixado não resolvido.
A dor da pena pode ser física ou espiritual. Certamente, o progresso do
direito penal se desenvolve do primeiro ao segundo. Portanto, o sistema
punitivo é orientado sempre mais seguramente para a reclusão como forma
essencial da pena. Porque os penalistas não estudam a dor da reclusão?
Infelizmente o estudo da pena e, em particular, dessa espécie de pena nos
deixa uma espécie de ciência inferior, que costumamos chamar disciplina
penitenciária: algo de meio termo entre a ciência e a técnica; e aquela se
limita, geralmente, a uma descrição do ordenamento carcerário sem nenhuma
tentativa de penetrar o seu problema espiritual. Contudo, não se revela por
essa via o segredo do direito penal.
Quando a reclusão é considerada do lado da estrutura, nos aparece antes
de tudo como uma medida de isolamento. Cortam-se as comunicações entre
os outros e o recluso. Os outros, entende-se que formam o ambiente da sua
vida: seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus amigos. Quem reflete
que a mulher é, como se diz, a metade do marido, e os filhos muito mais do
que a metade do pai, acabará por pensar em uma mutilação. Da mesma forma
na qual o mutilado sente a dor do membro perdido, o recluso sente a dor de
seus queridos, dos quais não pode mais gozar. Nada melhor do que o
afastamento para aproximar ao espírito aqueles aos quais queremos bem.
O segundo aspecto da reclusão é a humilhação. O recluso cessa de se
sentir um homem. O sinal do homem é o nome; e o recluso não tem mais
nome. A essência do homem é a individualidade; e o recluso não tem mais
individualidade. A necessidade do homem é falar; e o recluso deve calar.
Refletimos. O delito é falta de amor; para com os outros e para consigo
mesmo. Também para consigo mesmo, a propósito de que se deveria apreciar
o profundo significado do charitas incipit ab ego. Tira-se do réu tudo o que
não amou: os outros e ele mesmo. Portanto, o recluso é um mutilado, até de si
mesmo. E pouco a pouco, sempre mais, sempre mais, acaba por amar o que
não possui mais, os outros e a si mesmo.
Assim, portanto, enquanto a restituição não tira algo de um homem senão
para entregá-lo a outro, que a pena não faça outra coisa do que tirar, sem dar,
se revela uma falaz aparência. A verdade é que a pena tira somente para dar.
A diferença se refere, porém, se o beneficiado, com a restituição, é outro
homem e com a pena o mesmo homem, submetido à sanção. Entende-se
agora o valor das palavras, que formam a manchette do meu livrinho sobre o
problema da pena? A pena é destinada não a tirar, mas a dar a liberdade.
Se, portanto, a pena serve para procurar aquela plenitudo hominis, que é
a liberdade, não precisa insistir sobre seu caráter essencialmente positivo.
Não o contrário, embora a negação da liberdade é a necessidade no seu
significado originário e puro de insuficiência e, portanto, de não ser (nec
esse). Assim, a forma penal, sem confronto melhor do que a forma civil da
sanção, descobre a função e, com ela, a natureza do direito como ponte para
superar o abismo que separa a economia da moral, das quais a primeira é o
reino da necessidade, a segunda o reino da liberdade.
Essa é certamente uma visão otimista do direito no seu aspecto mais alto,
que é o direito penal. A função da pena, como expliquei, se refere mais ao
direito como deveria ser do que ao direito como é. Faço, como se diz entre
nós, do ius condendum mais do que do ius conditum. De acordo. Por
enquanto, não somente o Estado não se pode reger sem armação, mas essa é
infelizmente sumamente imperfeita. À esquerda, perto da praia da economia,
o trabalho está mais avançado: a direita, no sentido da praia da moral, está
ainda atrasado. Os homens cuidam sempre mais do haver do que do ser; por
isso o mecanismo penal é sem confronto menos progredido do que o
mecanismo civil.
A razão do retardo concerne, infelizmente, a nossa ignorância sobre a
função penal. Se a evolução da pena se desenvolve no sentido de substituir ao
sofrimento físico o sofrimento espiritual, os instrumentos penais, na segunda
fase, são ainda os mesmos da primeira. Numa palavra, o problema da pena,
que deveria resolver-se naquele da reclusão, continua sendo considerado
como um problema zoológico ao invés de um problema espiritual. A prisão
se concebe muito mais como a jaula de uma besta do que como a cela de um
monge. E os custódios acreditam em boa-fé de ter cumprido sua tarefa
quando impediram a fuga ou a morte dos reclusos, sem nem suspeitar que o
alimento necessário a esses desgraçados é o pão do espírito muito mais do
que o pão do corpo.
A quem não virá na mente, nesse ponto, o sacramento que consagra o
amor de Deus na forma do mais puro alimento corporal? Assim, a sanção
punitiva, na aparência severa e cruel, revela a sua verdade supremamente
misericordiosa. O direito deve castigar; mas não como o carrasco, que goza
vendo sofrer o condenado, mas sim como o pai que toca, procurando a dor do
filho, o cume do amor. E a treva do direito que parece ser o reino da pena, se
veste pouco a pouco com as suaves cores da aurora.
Ora, eis que a pena, a qual foi e infelizmente continua sendo a
inferioridade do direito, vem se colocando no seu ponto mais alto. Todos os
aspectos do mundo acabam por se revirar quando os homens conseguem
olhar. Enquanto o civil manifesta a corporeidade do direito, o penal revela a
sua espiritualidade. E a humanidade, também nesse setor da vida, ascende
lentamente o caminho que leva da terra para o céu.
O direito, dissemos, é um sub-rogado da liberdade. Como tal, deveria
procurar aos homens, dentro dos limites do sub-rogado, o mesmo bem da
liberdade. Esse bem é a paz. Mas a paz procurada mediante o direito não é
mais que um sub-rogado da verdadeira paz. Esse caráter de sub-rogado se
manifesta particularmente quando o direito opera, em matéria civil, com a
restituição: se o devedor constrangido a deixar tomar seus bens em favor do
credor abaixa a cabeça, freqüentemente não vê o momento de podê-lo
levantar novamente e assim recomeçar a guerra. Sobre o terreno da
economia, o que acreditamos ser paz merece mais verdadeiramente o nome
de trégua. Aqui, a natureza da sanção nada mais é do que a força; se no
brasão do direito a espada está ao lado da balança, a representação não falta
de verdade.
Quando, por outro lado, se passa para a região da pena, a paisagem muda
de aspecto. Falo, infelizmente, não do direito como é, mas como deve ser.
Enquanto a restituição procura dinheiro, qual é ou pelo menos qual deveria
ser o resultado da pena? Nessa pergunta culmina o problema da sanção. A
diferença se expressa opondo o pão do corpo ao pão do espírito. Assim, em
lugar de precipitar na sombra, o direito ascende para a luz. E em lugar da
força algo de diferente serve para garantir o juízo.
Tentaremos agora fixar o olhar no fogo dessa luz para ver o que ao invés
da força opera no direito. Mas até agora é lícito duvidar se no estudo do
direito ao lado da balança a espada não represente mais o direito do passado
do que o direito do porvir.
O Que é o Dever?

O que são o direito, a lei, o fato, o juízo, a sanção? Algo foi respondido a
essas interrogações. Algo mais, todavia, permanece desconhecido; sob a
consecutio necessaria de um segundo fato ao primeiro, como é descoberta
pela lei, o que se esconde? A lei não tem, em última análise, mais do que um
conteúdo descritivo do que acontece; mas porque acontece? Não precisa mais
do que a impressão dessa última pergunta para advertir que com ela deveria
tocar-se, se é possível, o fundo da pesquisa.
Porém, a lei não diz apenas que dois fatos se subseguem, mas que se
subseguem necessariamente. Como a primeira, a última dessas meditações
oferece ocasião de contemplar uma das palavras mais carregadas de força
intuitiva, que possua a língua latina ou qualquer uma de suas filhas
neolatinas. Necessidade deriva, sem dúvida, de nec esse. Não ser. Ao
primeiro olhar não se vê nada. Assim acontece sempre quando a luz é por
demais viva. O ser, também quando se apresenta sob o aspecto de não ser,
resplandece poderosamente para podê-lo olhar.
Devemos, todavia, para entender, ter a coragem de fixar o sol. Deus,
quando Moisés perguntou-lhe: “como se chama, Senhor?”, respondeu: “Eu
sou Aquele que é”. Aquele que é. Cada um de nós é aquele que é. Verdade?
Cada um de nós é aquele que é e não é aquele que não é. Um homem é aquele
homem, não outro homem. Não o ser, mas sim o ser é a verdade do homem e,
de resto, de todas as coisas. Um cavalo não é um cão. Uma rosa não é uma
violeta. Eu não sou tu. Somente Deus é sem não ser. Somente Deus é não
somente toda a criação, mas sim toda a criação e o não criado. Isso quer
dizer: Deus é o todo e o homem ou qualquer outra coisa é uma parte.
Necessidade é a condição da parte.
Parte. Uma outra palavra que, antes de todos, os juristas usam
continuamente, mas não parecem ter o tempo de considerar. Parte se chama
por nós o vendedor ou o comprador, o credor ou o devedor, o marido ou a
mulher, o acusador ou o defensor. Essa noção parece tão natural que seria
tempo perdido aquele usado para esclarecê-la. Mas porque o vendedor e o
comprador, o credor e o devedor, o marido e a mulher, o acusador e o
defensor se chamam partes?
Não sei o que pensam os glotólogos em torno da origem dessa palavra.
Segundo as minhas poucas notícias, nem o parentesco entre pars e pario, tal
como aquela entre ius e iungo, foi ainda descoberta com a ajuda do
microscópio ou do telescópio. De qualquer forma, a razão me guia a entender
que, sendo a parte o resultado de uma divisão do todo, o todo a engendra
(parit); pela mesma razão é pouco (parum) ou pequena (parva) em confronto
do todo. Porque, se o homem não fosse criado do todo, se chamaria parte?
Uma coisa é parte enquanto tem uma outra parte diante de si. Sozinha
uma parte não pode existir. As partes são duas. Não há credor sem o devedor
nem o marido sem a mulher nem deve existir acusador sem defensor. Não
somente as partes são duas, mas são opostas. Uma contra a outra. O contraste
parece o seu destino. Falando, todavia, com maior prudência, diremos, mais
uma vez, no sentido viquiano, que é a sua natureza.
E porque tal natureza? Um estudioso não pode parar com seus porquês.
Uma diante da outra. Há, então, uma fronteira entre elas? Ah, como se
saboreia agora esse conceito! Itália e França, França e Alemanha, Alemanha
e Rússia; no meio, as fronteiras. Defesa e sofrimento? A natureza da parte é o
limite; mas o seu destino é de superá-lo. A parte, numa palavra, está na
prisão. E o prisioneiro anseia a liberdade.
Eis, para o momento, um sopro de liberdade, no ar viciado da
necessidade.
A necessidade é a condição da parte. Ser e não ser. Uma parte é ela
mesma e não a outra parte. Porém, necessita não ser somente ela mesma. O
que ela precisa é, propriamente, a outra parte. O sentido de angústia, que dá
um sabor de amargor a essa palavra, descobre o sofrimento da parte por não
ser tudo.
Agora se entende o dever ser, no qual consiste a relação dos dois fatos
unidos na lei. Ligando os dois fatos, a lei atenua a insuficiência da parte. O
dever ser expressa a tendência da parte ao seu cumprimento.
Os homens são partes. Se aqueles que cultivam outras regiões da ciência,
incluídos os filósofos, podem iludir-se sobre esse sujeito, isso não acontece
com os juristas, pelo menos se prestarem atenção no seu modo de falar. Nem
os biólogos nem os filósofos mesmos chamam os homens de partes; ao invés,
para o jurista essa é a palavra.
Contudo, ser parte é a infelicidade do homem. Expressar, sem reservas,
essa infelicidade é o mérito verdadeiro da filosofia mais moderna, a qual
justamente porque existência não significa outra coisa senão o ser da parte,
dá-se o nome de existencial, mas mais do que o seu erro, a sua culpa está em
cultivar o desespero em lugar da esperança. O homem está fechado na prisão;
mas não há prisioneiro que não possa evadir. O caminho da evasão se chama
dever.
A última surpresa! O dever, até hoje, é concebido como uma submissão,
não como uma libertação. O vínculo aparece como elemento fundamental da
obrigação, segundo a famosa definição romana. De acordo. Os homens não
podem ver o mundo a não ser no avesso. Assim é o ver no espelho, como
intuiu São Paulo, porque o espelho reflete as imagens reviradas. No fundo,
essa é a verdade, que procurei expressar no capítulo precedente,
demonstrando que a pena serve não para tirar mas para dar a liberdade.
Então os homens se prendem com a finalidade de libertá-los? Tal é a
sublime contradição do direito. O prisioneiro, que não consegue evadir-se
sozinho, é libertado com a força dos amigos. A constrição para a liberdade:
que paradoxo! Mas um paradoxo é apenas uma dose excessiva de verdade;
infelizmente aos homens, também a verdade, aliás a verdade antes de tudo
deve ser ministrada em gotas. É preciso confessar que os juristas, ao longo de
séculos e séculos, entenderam muito pouco de direito. Os homens navegaram
séculos e séculos antes de ter descoberto o segredo da navegação. Eles viam
o navio boiar, porquanto fosse carregado e navegavam. Da mesma forma
viam que amarrando as mãos daqueles que não eram amarrados, brigavam
uns contra os outros, podia obter-se algo semelhante à paz; e as mãos foram
ligadas. O jurista soube que amarrando-as se obtinha esse resultado como o
navegante tinha sabido que sobre o navio, podia atravessar o mar. E os
juristas, como os navegadores, não preocuparam-se em outra coisa.
Assim formou-se o conceito do dever como compressão ao invés de
expansão da personalidade. Em outros termos, o dever concebeu-se como a
projeção do comando. Ao invés do conceito da moral dominar o conceito do
direito, foi o segundo que dominou o primeiro. E como os homens formaram
a idéia de Deus com a idéia de si mesmos, assim submeteram a moral a um
processo de juridicidade. O clássico exemplo de tal necessidade, porém de tal
insuficiência do nosso espírito, se pode observar na Crítica da razão prática,
onde nada menos que Kant não pode conceber sem o imperativo categórico o
dever moral; nem por esse grandíssimo pensador dever e comando puderam
se separar; pela única razão que o comando determina uma restrição, o dever
moral, como o dever jurídico, se resolve nas mãos amarradas. Falta entender
como essa concepção pode acordar-se com a liberdade.
Assim o dever é elemento fundamental do direito, porque é o seu
elemento unitivo. E a diferença entre direito e moral se refere à força de onde
procede o dever: ab extra ou ab intra. Justamente porque também para os
filósofos a moral está na esfera jurídica, fala-se, no seu campo, de autonomia,
que quer dizer de auto-comando; o imperativo categórico representa o
protótipo dessa figura.
Agora, enquanto o direito, não podendo deixar que o dever se
desenvolva espontaneamente, o impõe, pelo direito e não pela moral ao dever
corresponde o poder. Uma tal correlação se encontra somente no reino do
direito. O dever jurídico depende, ao passo que o dever moral não depende
absolutamente do poder.
Historicamente, isto é, causalmente, precede o poder. Por isso, o
primeiro saber jurídico reconhece ao poder o primado. Ao centro da
jurisprudência romana se encontra, sem dúvida, o ius concebido não como
união das leis e dos juízos, mas sim como o poder de comandar. E como o
que os antigos chamavam inércia domina sobretudo o campo do saber, até
nos nossos tempos o sistema continua a fundar-se sobre um pretenso binômio
de direito objetivo e de direito subjetivo.
O que aqui interessa, prescindindo da unilateralidade dessa concepção,
que conhece o direito subjetivo como única espécie do poder jurídico, é que a
consideração histórica deve sobrepor-se à consideração lógica do fenômeno,
isto é, ao plano da causalidade deve sobrepor-se o plano da finalidade.
Quando, dessa forma, o olhar se desloca de um para outro plano, vemos
revirar a relação entre dever e poder; se causalmente o dever deriva do poder,
do lado final o dever domina o poder porque somente para estabelecer o
dever é estabelecido o poder. Noutras palavras, o poder é meio e o dever é
fim. Somente porque os homens não têm em seu espírito mais do que um
átomo de liberdade, não conseguem conceber seu dever se alguém não
providencia a comandar e a castigar.
Assim se perfila a relação entre dever e poder: a história reconhece o
primado a este último e a lógica ao primeiro. É possível entre lógica e história
um tal contraste?
Porque não? Exclamarão os leitores, educados no moderno historicismo.
De minha parte acredito ingenuamente na história magistra vitae; uma
história ilógica não poderia ensinar nada. Penso que quando a história nos
parece contrária à lógica, o defeito é dos historiadores e não da história. E o
que veremos logo a propósito da história do direito confirma a minha ingênua
convicção.
Quando os juristas e, em particular, os filósofos perguntam-se como
nasceu o direito, a resposta comum é que, num determinado momento, um
homem começou a comandar aos outros. Exatamente como acontece para a
pergunta relativa ao nascimento de um homem, à qual costuma-se responder
que, num determinado momento, uma mulher pariu. Cômoda maneira de
fazer a história! E porque pariu? O problema se desloca do nascimento do
filho à concepção. Nem, no fundo, seria estranho que se falasse de uma
concepção do espírito. Porém, como não se vê outra coisa que forma a dupla,
se diria que a concepção do direito deva ser imaculada. Talvez nem essa seria
uma idéia muito distante da verdade.
Quando o direito se concebe como uma mistura de justiça e de força,
com a balança e com a espada no brasão, parece que a força da espada seja a
força do direito, isto é, a sua fonte. Refletindo, porém, não tarda a se
esclarecer o equívoco entre a força que o direito produz e a força que produz
o direito; a primeira é o trabalho do mecanismo, não a energia que a move. A
procura se refere não ao porquê as partes devem obedecer ao legislador e ao
juiz, mas sim ao porque estes e aqueles podem e devem comandar. Quis
custodiet custodes? A um certo momento a corrente da força quebra; em
outras palavras, não se consegue achar nem um primeiro que comanda nem
um primeiro que é comandado. Há, no começo, um que comanda sem que
nenhum outro homem lhe tenha concedido o poder e imposto o dever de
comandar. Quer dizer que o direito tem a sua raiz na obediência e não a
obediência tem sua raiz no direito. Mais uma vez o mundo está revirado.
De qualquer forma é a verdade. O chefe comanda porque obedece e os
cidadãos obedecem não tanto porque ele comanda quanto porque
comandando obedece. Em suma, o medo pode ser um meio do direito, mas
não a sua fonte. Acontece com o direito algo semelhante à transformação da
energia: o ordenamento jurídico é análogo às grandes centrais hidroelétricas,
que se vêem nos vales de altas montanhas, a cavalo do curso de um rio: a
corrente elétrica não é aquilo que entra no mecanismo, mas o que sai dele. O
problema se reduz, em última análise, em procurar a natureza da força
original, que o direito não cria mas transforma.
Há, num certo ponto da corrente, um homem que se ocupa dos outros
não porque deve, mas porque quer. Os espanhóis dizem: no porque debe sino
porque quiere. Confesso que me encanta essa agudíssima intuição da língua
castelhana, que chega à identidade do verbo para expressar o amor e a
vontade. Aquele artista anônimo e excelso, que é a multidão, o povo,
entendeu, sem a necessidade de nenhuma filosofia guia, que se a vontade é o
cume do espírito, o amor é o seu fundamento. O mesmo povo, sobre a
bigorna dos séculos, modelou a fórmula: ou por amor ou por força, para
significar a autonomia ou a heteronomia da ação. Se o chefe, para que
comande os outros, é preciso que não seja comandado por ninguém, Deus lhe
pergunta: fórmula com a qual Deus, segundo a milagrosa definição de São
João, charitas est. Tal é a fonte do direito, isto é, do dever. O rio que corre no
fundo do vale da alta montanha, através do qual se instala a grande central do
direito, não é outra coisa senão o amor.
Somente porque os homens não sabem amar, é necessário o medo. Mas
quanto pouco amor há ainda no mundo! O direito se alimenta mais com as
águas de um riacho do que de um rio majestoso. Não existe outra razão da
ignorância dominante em torno das relações entre o dever e a moral, que quer
dizer entre o dever e o amor. Para remediar essa exigüidade, e também, a
descontinuidade da fonte, os engenheiros precisam acumular a força, nada
mais do que essa acumulação nos dá a impressão que o direito nasça de si
mesmo. Porém, a um certo ponto, quando falta o alimento, a força fornecida
pelo acumulador se extingue. Nós, italianos, em particular, temos sofrido essa
experiência fecunda: as forças do medo não são infinitas. Se os juristas
entendessem que a revolução, longe de ser fora do direito, é um de seus
fundamentos, suas idéias sobre o problema primeiro da ciência jurídica
seriam mais claras. Sobretudo, seria clara que o imperativo categórico se
resolve no comando extremo de Jesus quando deixou seus discípulos para
encaminhar-se para o suplício.
Nesse ponto é possível que a lei jurídica, a qual, como temos visto, não
pode ser explicada sem a lei natural, serve, por sua vez, para explicar a lei
natural. A ciência do direito, devedora de seus fundamentos para a ciência
natural, está talvez em condições de satisfazer seu débito?
No fundo, as ciências naturais não têm mais do que um valor descritivo.
Depois do sol ter surgido, deve desaparecer; o que há nisso que não seja pura
descrição? E porque desaparece? Quando o astrônomo responde que a terra
gira em volta do sol, nada mais faz do que mudar as palavras. O porquê o sol
fica imóvel e a terra se move? O sol deve desaparecer como o homem deve
morrer, o que fica incógnito é a razão do dever. Porque se deve? Os
naturalistas não somente não respondem mas nem formulam essa
interrogação.
Naturalmente, o mesmo acontece com os filósofos, cuja filosofia se
funda sobre as conquistas das ciências naturais. Entre outro, não convém
esquecer que a física de Newton constitui o sub-fundo da filosofia de Kant.
Se os homens não se envaidecessem com essas conquistas, nem o criticismo
kantiano nem o idealismo hegeliano nem o existencialismo heideggeriano
teriam vindo ao mundo; mas simplesmente a euforia dos positivistas e dos
idealistas não seria precipitada na filosofia da angústia, que é depois a
angústia da filosofia. Kant, antes de todos, com o seu imperativo categórico,
deixa o problema não resolvido: e porquê o homem deve comportar-se como
se a sua conduta fosse lei para todos? O dever, em outras palavras, é para ele,
como para o naturalista, o término primeiro. Assim se conhece a força, que é
produzida na central, não aquela que a produz.
O dever une os fatos, como os homens, os quais são já unidos. Nossos
pobres olhos, que não conseguem ver a união, se ajudam com o dever. O
dever, como o direito, é um sub-rogado. A verdade, aquela verdade que
poderemos ver no rosto se seremos dignos, enquanto por agora não podemos
senão vê-la no espelho, revirada, é a unidade, não a divisão. O dever é o
meio, que se oferece aos homens para que a divisão se converta em unidade.
E a unidade do mundo se chama amor. O amor une as estrelas do céu como
os homens da terra para que possam formar a ordem do mundo. Se o sol fica
imóvel e a terra gira em volta dele, a razão disso é a mesma pela qual a
borboleta gira sobre as flores do jardim. O mundo é lindo e a sua beleza é o
sigilo do amor.
O mundo é lindo e a tarefa do homem é fazer com que seja sempre mais
lindo. Uma tarefa que o converte, verdadeiramente, em colaborador de Deus.
Mas em lugar de fazer o quanto pode, para agradecê-lo, o homem acaba por
se acreditar senhor. A verdade do pecado cometido ao nascer do mundo é
confirmada, se precisasse, pelo pecado cometido ao renascimento, quando o
homem mais uma vez quis nutrir-se do fruto proibido. A nossa soberbia
encontra a fórmula na confusão entre criação e invenção. Infelizmente,
considerando-se criador, o homem violou a ordem do mundo. Os homens se
assemelham às estrelas, as quais, desviando do caminho, desordenaram o
firmamento. Para reconduzi-los sobre a justa via, a bondade de Deus permitiu
que inventassem o direito.
Assim também a investigação do direito ab intra, como a procura ab
extra, nos revela os lineamentos da arte.
Quando consideramos a lei e o fato, foram os conceitos da representação
e da interpretação que nos guiaram para descobrir a analogia entre o
legislador ou o juiz e, mais do que o pintor, o músico ou o intérprete de suas
melodias.
Mais adiante, procurando penetrar o segredo do juízo e da sanção, e,
portanto, eliminar a casca para descobrir o miolo do direito, abriu-se mais
claramente aos nossos olhos a maravilha do amor, inesperada e, todavia,
inegável substância de um e do outro. Ficava ainda não resolvido o problema
do como e por quê essa substância se transforma em direito; a essa última
pergunta, a resposta foi dada pela análise do dever.
O direito nos pareceu, enfim, como uma das formas que toma o amor
para que possa operar entre os homens. E não é a mesma coisa da arte? Faz
muitos anos, falando de um dileto discípulo perdido, tive ocasião de intuir as
relações da arte com a caridade. Mais tarde apresentou-me uma ocasião
análoga quanto às relações da graça com a justiça. Naturalmente a primeira
impressão foi que a graça esteja fora, aliás, sobre a justiça da mesma forma
que sobre a arte está a caridade. Porém, a estrada ainda é continuada, com o
guia de uma mão invisível e abençoada. E um dia, que foi o dia estrelar da
minha vida (segundo uma frase de Werfel, lembra-me numa carta deliciosa,
de Eduardo Couture), Deus permitiu-me ver, a minha maneira, que o pintor
não ama seu modelo, o retrato não vale nada e se o juiz não ama o imputado
em vão acredita alcançar a justiça. Então entendi que nem a caridade está fora
da arte nem a graça fora do direito.
Pode ser que o problema da arte, como o problema do direito, desde
então, ao invés de resolver-se, tenha se tornado um mistério, todavia o meu
espírito alcançou, finalmente, a paz.

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