Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Arte Do Direito - Francesco Carnelutti
Arte Do Direito - Francesco Carnelutti
Carnelutti, Francesco
Arte do direito / Francesco Carnelutti ; tradução Amilcare Carletti. --
São Paulo : Editora Pillares, 2007.
Título original: Arte del diritto.
ISBN 978-85-8183-024-7
1. Direito – Filosofia 2. Direito e arte I. Título.
07-6878 CDU-340.11
Apresentação do tradutor
Introdução
O Que é o Direito?
O Que é a Lei?
O Que é o Fato?
O Que é o Juízo?
O Que é a Sanção?
O Que é o Dever?
Apresentação do tradutor
Amilcare Carletti
2007
Prefácio à Edição Italiana
F azem muitos anos que adotei a fórmula arte do direito como título da
comemoração de Vittorio Scialoja, o maior dos juristas italianos dos
últimos tempos. Então a qualidade de artista me pareceu se dar a medida da
sua grandeza.
Daquela época até hoje, esta idéia de uma relação entre a Arte e o Direito
não me abandonou mais. Quando uma idéia é concebida, seu
desenvolvimento não depende mais do poder do pensador. Um livro nasce
como nasce uma árvore, porque o vento leva a semente para a terra, porém
antes que a semente se torne uma árvore deve passar muito tempo.
Desde então, passou-se muito tempo. No entanto continuei estudando o
direito. Depois, num determinado momento, senti a necessidade de ordenar as
minhas idéias em matéria de arte. Ficavam, todavia, arte e direito, dois
objetos separados das minhas meditações. Sua união, realizada por um
instante fugaz na reconstrução da vida de um jurista, voltou logo a se
esconder dos meus olhos. Uma surpresa foi apenas que os mesmos conceitos
serviam para representar um e outro fenômeno, do direito e da arte. Tal
surpresa manifestei no primeiro volume de uma pequena obra, que se chama,
justamente, Meditações.
Sobreveio o tempo do meu aventuroso trânsito do direito civil para o
direito penal. Sobre este último terreno o drama do direito aparece com
caracteres muito mais cortantes e o nó do drama se manifesta, como veremos,
na luta entre a lei e o fato. Não existe na ciência jurídica civil um duelo como
se combate entre os dois padrinhos do fato e da lei, Enrico Ferri e Arturo
Rocco; nem poderia ter existido porque não se dão, nele, as condições
idôneas para exaltar os combatentes. Precisava a luz de um céu tropical para
iluminar essa luta e o seu resultado.
Finalmente percebi que estudar o direito ou a arte significa agredir de
dois lados diversos o mesmo problema. Por quanto desconcertante possa ser
esta afirmação, chegou para mim o momento de fazê-la. O mesmo problema,
digo, sob o perfil da função e da estrutura.
A arte, assim como o direito, serve para ordenar o mundo. O direito, bem
como a arte, estende uma ponte do passado para o futuro. O pintor, quando
escrutava o vulto da minha mãe para pintar o retrato, mais do que qualquer
outra obra revelou-me o segredo da arte, não fazia outra coisa do que
adivinhar. E o juiz quando escruta no rosto do imputado a verdade da sua
vida para saber o que a sociedade deve fazer com ele, não faz outra coisa, por
sua vez, que adivinhar. A dificuldade e a nobreza, o tormento e a consolação
do direito como da arte não podem ser representados melhor do que com esta
palavra. Adivinhar indica a necessidade e a impossibilidade para o homem de
ver o que somente Deus vê.
Embora sinta profundamente a verdade dessa idéia, não desconheço as
dificuldades e os perigos que representa o seu desenvolvimento. Porém,
dificuldades e perigos sempre me tentaram. E me seduz, antes de tudo, o
desejo de dedicar aos juristas da América latina e às Faculdades de direito
(onde os nossos irmãos, deste que nós europeus continuamos a chamar o
novo mundo, se unem com forças juvenis ao nosso antigo trabalho) algumas
páginas, inspiradas pela eterna beleza do direito.
Peço indulgência pelo atrevimento de ter escrito estas páginas,
originariamente em língua castelhana, embora não conheça o idioma de Dom
Quixote, submetendo o manuscrito somente às correções ortográficas e
gramaticais.
Duas razões podem talvez desculpar a minha temeridade. A primeira se
refere ao perigo das traduções. Por quanto seja a habilidade e o cuidado do
tradutor, uma perda da força expressiva é inevitável quanto uma dispersão na
transformação da energia. Embora, então, o estilo deste livrinho infelizmente
não possa ser aquele de um escritor espanhol, é, todavia, o meu estilo.
Esta é verdade, mas não toda a verdade. Devo acrescentar, sob pena de
não ser sincero, que tendo começado a escrever em castelhano por exercício,
continuei por prazer. Algo semelhante me aconteceu quando durante o
refúgio suíço, escrevi La guerre et la paix. Não se pode contar facilmente
uma semelhante aventura. Parece acontecer uma expansão da personalidade.
Milagre da palavra! Não se fala tanto sem pensar quanto não se pode falar
senão pensando. Até que não se encarna, o pensamento não é pensamento.
Por isso, não tanto se fala quanto se pensa em italiano ou espanhol. Agora
quem conhece a voluptuosidade do pensar compreende a tentação.
Porque não soube resistir, pequei. E para apagar o pecado não existem
mais que dois remédios: a pena ou o perdão.
O Que é o Direito?
O direito é luta. À famosa fórmula de Ihering: der Kampf um’s Recht, ousaria
acrescentar: der Kampf im Recht. Certamente, uma contradição! Não deveria
o direito procurar a paz? Assim é a vida. Fé e dúvida parecem se contradizer;
todavia bem disse Unamuno que “fe que non duda es fe muerta”. Assim é a
pureza e o pecado; assim a luz e a sombra. Logicamente o problema se
resolve desvelando o equívoco entre oposição e negação e, por isso,
esclarecendo que a negação é insuficiência: não o contrário, mas o defeito da
luz é sombra como o defeito da pureza é o pecado. Por isso, não há oposição
entre a guerra e a paz; também a guerra é uma insuficiência dos homens, os
quais devem superá-la para alcançar a paz. Justamente porque no direito se
combatem o fato e a lei, o direito não pode limitar-se à luta entre eles, mas
deve superá-la.
Aqui se descobre o erro não somente dos juristas da escola penal positiva
mas de todos aqueles cuja ciência detém-se na oposição da lei e do fato: no
lugar da antiga indistinção coloca-se hoje entre os dois termos uma distinção
bem exata; mas a ciência não continua além. Lei e fato; todos os nossos
sistemas, incluída na primeira edição da minha Teoria geral do direito,
apóiam-se sobre uma estrutura binária. Quer dizer que, como observei há
pouco, a ciência se limita a separar os elementos do direito e não continua
pedindo como se devam combinar.
Nos últimos tempos o princípio da divisão do trabalho, que se afirma
cada dia mais no campo científico, empurrou essa orientação ao grau extremo
pelo que acabou descobrindo o princípio do remédio. Os penalistas mais
rigorosos distinguem, como temos visto, o delito – instituto jurídico do delito
– fato com o resultado de limitar a ciência deles no estudo do primeiro; o
crime-fato é deixado às indagações dos criminologistas e subtraído aos
juristas. Esse movimento em direção à purificação da ciência jurídica
percebe-se menos claramente na matéria civil; todavia, também os civilistas
começam a deixar aos cultores da técnica mercantil o estudo de seus fatos
principais e, em primeiro plano, do contrato. Assim, a ciência jurídica,
enquanto se separa da sociologia, tende a se isolar na nomologia.
O que gostaria de mostrar nessa meditação é não tanto a insuficiência de
tal concepção, quanto a maneira de superá-la.
Iudicium. A mesma raiz de ius. Se os glotólogos não admitem o
parentesco entre ius e iungere, a reconhecem pelo menos entre ius e iudicium
ou iudex. O iudex dicit ius (ius – dicium); e o ius se revela dizendo. Corre
entre ius e iudicium a mesma diferença (que corre) entre espírito e corpo:
iudicium é a encarnação de ius. Podemos, depois disso, nos iludir de conhecer
o pensamento sem estudar a palavra, que o encarna? E, da mesma forma, o
ius sem o iudicium?
Certamente a ciência jurídica alemã do século passado merece a gratidão
do mundo antes de tudo pela distinção, que devemos a ela, entre direito
material e direito processual. Nos tempos de Roma esses dois aspectos do
direito não se podiam separar porque o primeiro era quase totalmente
enredado no segundo. Mais tarde, quando a figura do juiz perdeu o primado
sobre a cena do direito, cedendo-o ao legislador a obscuridade, na qual viveu
longamente o processo, não permitiu aos juristas de concebê-lo nem como
direito, nem como objeto do direito; o sinal dessa inferioridade se deu na
fórmula francesa da procédure civile ou pénale, que se opunha ao direito civil
ou penal. Justamente por merecimento da ciência alemã o processo superou a
crise convertendo-se a procédure civile ou pénale no Prozessrecht, isto é,
alinhando-se o direito processual ao lado do direito material e perfilando-se
essa distinção como um dos fenômenos para o estudo do direito. Sobretudo
por esse mérito o pensamento alemão dominou ao longo de todo o século
oitocentos e por poucos anos depois a ciência jurídica do mundo todo.
Naturalmente, nos primeiros tempos da exportação dessas idéias, os
povos importadores não tiveram plena possibilidade de crítica. Os alemães
dominavam e os outros eram dominados. Mas, aos poucos, como sempre
acontece, o entusiasmo cedeu lugar a uma avaliação mais justa dos
merecimentos e dos defeitos. Finalmente, foi possível perceber que a ciência
processual alemã fica, malgrado tudo, na superfície. O seu avançar sobre a
fase precedente foi, sem dúvida, de grande importância; todavia, faltam os
fundamentos. Naturalmente, os fundamentos da ciência jurídica, como de
qualquer outra, estão fora dela; por isso se constroem com pesquisas
metajurídicas ou, em geral, metacientíficas; mas aqui se encontram as
dificuldades mais graves pelo pesquisador. De qualquer forma, a ciência não
pode achar um terreno sólido debaixo de si sem essa fadiga.
Provavelmente o sinal da superficialidade da ciência moderna processual
está na sua denominação. Uma vez se falava, na Itália, de direito judiciário.
Hoje esse adjetivo não parece de bom gosto; a moda alemã não admite outra
fórmula que não seja aquela do direito processual. O próprio jurista que vos
fala adaptou-se nela sem nenhuma profunda reflexão. A insipidez da palavra
processo em confronto com juízo passou-me completamente despercebida;
igualmente, o parentesco entre iudicium e ius. Somente quando, mais tarde,
acreditando agora exaurido o meu interesse para o direito, comecei, em
particular, nas meditações genebrinas, a olhar além, no juízo, me pareceu, ao
mesmo tempo, a semente do direito e do pensamento e então entendi que o
fundamento do primeiro é o mesmo fundamento do segundo. Poder-se-á
apreciar, mais adiante, o valor dessa observação.
Não há dúvida que a palavra juízo expresse a idéia de uma união. Já
observei que se as experiências dos glotólogos não valeram para descobrir as
patentes de parentescos entre ius e iungere, o raio da inteligência chega mais
longe: que faz o juiz senão unir as partes? Mas esse é um argumento a ser
tratado mais tarde. Parece-me suficiente, por enquanto, a observação que
justamente a idéia fundamental da sociologia kantiana (e, provavelmente, o
seu erro mais grave) cresceu à sombra dessa palavra: o juízo sintético seria,
exatamente, o efeito de uma força unitiva imanente no espírito humano; nem
é necessário que eu explique a reserva relativamente a essa idéia, a qual
reconhece ao homem o que é próprio de Deus. Todavia, existe a necessidade
de unir; e o problema não é senão o de saber de onde vem a força unitiva e
como age para com os homens. Pode ser que os juristas tenham uma posição
privilegiada para ver um pouco mais distante.
Todos entendemos, mais ou menos, que o juízo é a semente do
pensamento. Porque não dizer da célula? Certamente, se aos discípulos
incultos o Mestre não podia dar outro exemplo do que aquele do grão de
mostarda, os modernos conhecimentos biológicos permitem que a parábola
seja modificada.
Mas a condição da descoberta da célula é o microscópio; e nada de
semelhante têm os lógicos a sua disposição. Essa predileção da natureza para
os cultores das ciências físicas poderia, todavia, ser somente uma aparência.
Um microscópio lógico, certamente, não existe; todavia, a natureza fabricou
um tipo de juízo gigante, que os homens podem observar, comodamente, sem
necessidade de nenhum sacrifício. Agora vem o momento para falar do
processo. O que é então o processo na realidade, senão um juízo visto com a
luneta? Se há uma razão para falar do processo ao invés do juízo, não é senão
aquela que o juízo assim ampliado perde a sua fisionomia. É preciso observá-
lo de longe para recompor sua linhas e penetrar a sua natureza.
Na verdade, o que fazem o juiz e as partes nesse complexo de atos, que
chamamos processo, civil ou penal, senão julgar? Bem aventurados os
juristas, os quais podem observar um mecanismo que seus companheiros de
trabalho nos outros campos da ciência não têm à disposição. Bem
aventurados e ingratos porque, pior do que os outros, habent oculos et non
vident; se não o microscópio, é preciso pelo menos a atenção; mas essa é tão
rara qualidade de um pensador!
Juiz e partes. A primeira surpresa que o espetáculo do processo causa
refere-se a essa pluralidade. As partes deveriam ser, logicamente, objeto, não
sujeito do juízo; em suma, quem é julgado, não quem julga. Porém, quem é
julgado tem de suportar o juízo; as partes, ao contrário, antes de sofrê-lo,
agem diante do juiz. Como agem e porque? Lutam: essa é a palavra. Lutam
para convencer o juiz. Uma diz branco, a outra diz preto. Muitas vezes gritam
ao invés de falar. E o juiz escuta antes de julgar.
Branco ou preto. Sim ou não. Cara ou coroa. O dúbio. Dubium tem a raiz
em duo, como duellum. O duelo das partes, personificando o dúbio, mostra o
nascer do juízo. Não logicamente, mas praticamente o juízo se gera do dúbio.
Mais dúbio, melhor juízo. Tanto necessário é o dúbio para o juízo quanto
naquela forma do processo, onde o contraste das partes naturais pode faltar, o
direito cria duas partes artificiais (chamei-as de instrumentais nas Lezioni sul
processo penale), acusador e defensor, cuja função não é outra senão cultivar
o dúbio, aliás exasperá-lo.
O juízo assume assim a forma geométrica de um triângulo. A tríade
hegeliana? Certamente; mas não sobre o plano metafísico e nem sobre o
plano lógico, mas somente com a finalidade de explicar a história do juízo,
bem como a sua natureza se, nos ensinamentos de Vico, natureza de uma
coisa é modo do seu nascimento.
Prestamos atenção, agora, ao juiz, deixando as partes. O que faz quando
julga? Talvez o fundo se enxerga melhor em matéria penal.
Interroga o imputado. Interroga as testemunhas. Interroga as partes.
Interroga as coisas. Gostaria de chamar, se pudesse, o mundo todo debaixo de
seus olhos.
Debaixo de seus olhos. Me vem à memória uma frase do mais trágico
pensador da Alemanha moderna, Martin Heidegger, quando diz, para explicar
o conceito do presente: “algo está na frente”. Quando li essa frase, finalmente
entendi, depois de tantos anos de pesquisas, o que é a prova. O presente (o
mais problemático dos aspectos do mais problemático dos conceitos, que é
aquele do tempo) nada mais é do que a zona iluminada diante do homem, que
procede com o lume da lanterna. Assim faz o juiz: procura iluminar quanto é
possível a estrada diante dele. Assim faz qualquer um, quando deve formar
um juízo.
Em rigor, pode-se formar um juízo, sem dúvida, mas não se forma sem
provas. Porém, na maioria dos casos, a prova é tão microscópica que não se
enxerga a olho nu. O mérito daquele juízo gigante, que se chama processo, é,
entre outro, aquele de deixá-la ver. Esse espetáculo nos permite o trânsito do
campo histórico ao campo lógico do juízo.
Até que o juiz interroga, procura ampliar o presente. Porém, num certo
momento, termina de interrogar. O presente se alarga até os limites do
possível; e depois?
O juiz não pode parar naquele ponto. Ouviu o imputado. Ouviu as
testemunhas. Viu as pegadas do delito. Mas o delito não o viu. Aquelas
coisas estão na zona da luz; esta na zona das trevas. Todavia, o juiz deve ir
adiante. Trata-se de saber o que significa essa continuação.
Passa-se assim, do noto ao ignoto. E o ignoto se divide em dois setores: o
passado e o futuro. É preciso entender em torno dessa distinção. O passado,
na verdade, não pode ser ignorado porque passou da possibilidade para a
existência; e não existe (não ex-stat), isto é, não vem fora o que não se
conhece. Todavia, pode ser que o passado seja passado para um e não para
outro homem. Nesse sentido, o passado pode ser parcialmente ignoto. O
futuro, pelo contrário, é ignorado por todos os homens. Ora, o juiz deve
marchar numa e na outra direção. Numa se encontra o delito; na outra a pena.
Falo, como avisei, do processo penal para exemplificar; o mesmo, de resto, se
pode dizer quanto ao processo civil: a conclusão da venda e a entrega da
coisa pertencem ao passado, enquanto o pagamento do preço pertence ao
futuro.
O juízo, dessa forma, é um pulo na escuridão: do noto para o ignoto; do
passado do juiz ao passado do imputado e, depois, ao futuro. Ora, a sua
natureza unitiva começa a desvelar-se: o juízo une, mediante o presente, o
passado ao futuro. Uma tarefa sobre-humana. Por isso, a explicação filosófica
do juízo, se pode encontrar no campo lógico o seu princípio, não pode ser
completado sobre o terreno metafísico; e nada mais do que essa sobre-
humanidade quis expressar o Mestre com o enigmático: nolite iudicare.
Um pulo para o passado. O contrato no processo civil que verte sobre a
sua execução, ou o delito no processo penal, que tende à sua punição, é o
passado; e, como passado, é história. Portanto, esse juízo exatamente se
chama histórico.
Aqui está o ponto de conjunção entre o historiador e o juiz. O juiz e o
historiador é o título de um dos estudos subjetivos de Piero Calamandrei.
Certamente o juiz, assim como o historiador, faz da história, ou melhor, da
historiografia. Somente, na maioria dos casos, enquanto o historiador se
ocupa dos grandes fatos, o juiz se ocupa dos pequenos. Essa, porém, não é
uma regra absoluta: dão-se obras históricas para procurar as coisas pequenas
do passado; e há juízes, aos quais o destino impõe o peso de castigar um
povo; os últimos tempos nos apresentaram tal possibilidade; nem deveria
existir um jurista abalizado, o qual ignore, entre outras coisas, que o
problema atual da Alemanha é, em dimensões enormes, o problema da pena.
Essa, por isto, da importância dos fatos não constitui entre o juiz e o
historiador uma diferença essencial.
O historiador, quase sempre, limita-se a julgar do passado. Aliás,
segundo o positivismo ou o idealismo (cara ou coroa da mesma moeda), deve
parar aqui. Induzir do passado o futuro lhe é proibido. A história magistra
vitae parece uma superstição dissipada pela ciência moderna, como neblina
ao sol. Será, não será; agora não me interessa. Certamente também quando o
historiador tenha possibilidade de continuar depois do juízo sobre o passado,
não tem o dever. Quem não pode parar nesse ponto é, ao invés, o juiz. Para
ele o juízo histórico não é uma etapa. O juiz se assemelha a um pulador, que
toma o arranque para alongar o pulo. O juízo histórico é para ele meio, não
fim. Quando se trata de direito, conhecer o passado é uma passagem
obrigatória para conhecer o futuro. Vem assim, depois do juízo histórico, o
juízo crítico, como se costuma dizer.
Juízo crítico parece uma tautologia. Como céu celeste, sem dúvida. Se
diz “céu celeste” todavia; e uma vez que se diz, deve ter a sua razão. Com
efeito céu celeste quer dizer céu como deve ser para ser verdadeiramente
céu; a verdade do céu, em suma. Igualmente, juízo crítico significa a verdade
do juízo: o juízo que verdadeiramente serve para julgar. Descobre-se nessa
fórmula a intuição que o juízo sobre o passado não interessa senão com o
escopo de preparar o juízo sobre o futuro. Em si mesmo o juízo histórico,
mais do que um juízo consumado, não é senão uma tentativa de julgar. O
passado não tem outro valor do que aquele de preparar o futuro.
Porém, não parece que sejam a mesma coisa o juízo crítico e o juízo
sobre o futuro. O que se entende por juízo crítico é o juízo do bem e do mal;
mas quando não se refere absolutamente ao futuro; que aquele que eu disse
seja bem ou seja mal é coisa do passado, não do futuro. Sério? Porque, então,
essa ânsia do homem, o qual quer conhecer se o que fez era bem ou era mal,
pelo que dessa qualidade da sua ação não dependesse a sua vida futura? Não
somente o que é bem ou mal reage sobre o futuro mas, verdadeiramente, o
futuro reage sobre o que é bem ou mal no sentido que se algum fato seja bom
ou ruim não se pode julgar sem conhecer o futuro; outro círculo lógico, que
somente a metafísica pode resolver; até o pecado pode ser uma benção se,
através do arrependimento, nos guia à liberdade! Portanto, somente a razão
que o homem tem de julgar a si mesmo ou um outro homem, é aquela de
regular a sua vida futura. Assim, o problema do bem e do mal se identifica
com o problema do futuro. Há outro perfil do qual a função do direito e a
figura do juiz consiga mais vivamente iluminada? Quando disse, algum
tempo atrás, que o direito introduz o sobrenatural na natureza, não me parece
ter exagerado.
Mas o juiz, pelo menos atualmente, não pode julgar como acredita. Já o
juízo histórico e o juízo crítico ou, poderíamos dizer, regularmente o segundo
e por exceção também o primeiro seguem uma via obrigatória. Aqui se
apresenta o problema, que os juristas denotam com a fórmula da aplicação da
lei ao fato ou propriamente concerne a combinação do abstrato e do concreto.
Dever-se-ia, antes de tudo, delinear o conceito do juízo segundo quando
o juiz que julga é livre na sua fadiga. O juízo, dissemos, consiste na união do
presente ao passado e ao futuro; para ele, o presente é alargado. Se o leitor
lembra como no começo propus distinguir entre o gênero e a espécie, poderá
também pensar que o juízo converte a espécie em gênero; e assim indaga
aquilo que o fato foi antes e o que será depois; da sua criação, em suma,
como criado e como criador. O presente forma uma parte daquilo que se
procura como cada fotograma é uma parte do filme. O juízo se resolve,
portanto, dada uma parte em procurar a outra parte. Não deveria acontecer
outra coisa para desencantar a lenda do juízo sintético; para ser sintético o
juízo, dadas as partes, deveria procurar o todo. Isso quer dizer que o todo
constitui o meio para julgar, não o resultado de ter julgado; uma parte não se
pode determinar sem conhecer os dois termos: a outra parte e o todo. Mas
como se pode conhecer o todo? Assim se reafirma a necessidade da
prudência praticada pelo Mestre: quem de nós saberá julgar? Ele nos disse
todavia: “como pode um cego guiar outro cego?”. Não obstante, a fonte do
juízo é o sentido do todo; o melhor sentido do que o conhecimento porque do
todo não se pode ter mais do que a intuição. A ordem, poderia dizer, em lugar
do todo, para indicar a sua qualidade, que é a sua bondade, pelo que cada
causa tem a sua própria conseqüência e não há nenhuma outra que tenha a
mesma conseqüência assim como não há outra conseqüência que seja devida
à mesma causa. Nem outro é o sentido da ordem senão o sentido do bem ou,
de outra forma, o bom senso; tal é a disposição do espírito indispensável para
o fim de julgar.
Assim se desenvolve a fadiga do juiz quando não está com as mãos
amarradas. A liberdade de julgar nada mais é do que faculdade de se regular
segundo o bom senso. Quando o juízo histórico sobre a existência do delito
alcança um resultado positivo, o juiz, por quanto não esteja por dentro do
mecanismo lógico e metalógico, nada mais faz que procurar o segundo termo
da fórmula algébrica, que veremos dentro de pouco: d (delito) + p (pena) = 0.
Em outras palavras, determina a pena que, na mesma medida do bom senso,
equivale ao delito; mas como se obtém, dada uma quantidade, a quantidade
equivalente sem conhecer o todo? O bom senso constitui o pressuposto e, ao
mesmo tempo, o segredo do juízo.
Se, ao contrário, as mãos do juiz estejam amarradas e, portanto, ele não
seja livre de julgar segundo o seu bom senso, quer dizer que em lugar da
ordem a lei age no juízo.
Nesse ponto o jurista ou, em geral, o pensador, não pode evitar o
problema da relação entre a ordem e a lei. Naturalmente, ainda uma
comparação. O que é o todo: a luz ou as cores? As leis estão na ordem como
as cores à luz ou como os sons ao silêncio. Da mesma forma que os homens
não podem descobrir todas as leis, nas quais a ordem se decompõe, eles não
chegam a ouvir todos os sons e a ver todas as cores, que resultam da
decomposição do silêncio e da luz. Seria suficiente para fundar essa verdade
a experiência que não há lei sem exceção. A exceção não é uma lei que, como
o infravermelho ou o ultravioleta – os nossos olhos não conseguem ver.
Os juristas, uns mais outros menos, intuíram desde o começo essa
verdade distinguindo o ius da aequitas e concebendo essa última como uma
justiça, que não se deixa formular numa lei. O juiz, portanto, quando deve
julgar segundo a lei, não pode adaptar exatamente a conseqüência à causa,
mas deve atribuir à causa uma conseqüência que não é a sua conseqüência e à
conseqüência uma causa que não é a sua causa. Nesses termos a análise do
juízo explica o drama do direito. O direito tem necessidade da lei para guiar
os homens; mas a lei, fazendo desviar o juízo, desvia o direito do seu fim.
Dessa forma o juízo descobre a luta, que se esconde no seio do direito. A
descobre somente ou também a compõe? Tal é o fundo do problema.
Teoricamente é permitido ser otimista. Sobre o papel do juiz está um
servidor da lei. O legislador está acima e o juiz está debaixo. Dura lex sed
lex. Assim é a teoria.
Mas também a vida? Na realidade da vida a luta do fato contra a lei se
converte na luta entre o juiz e o legislador. Ora, que o legislador domine e o
juiz seja dominado é mais aparência que realidade. Na realidade, como o
direito culmina no juízo, assim o juiz acaba por julgar também o legislador.
Quantas vezes, sobretudo nos processos penais, a minha imaginação colocou
diante do juiz o legislador ao lado do imputado! Ora, quando o legislador não
consegue se desculpar, o juízo implica a sua condenação. Há, naturalmente,
juízes e juízes; nem cada um deles tem hoje o coração do pretor romano:
todavia, um juízo que não contenha uma dose, grande ou pequena, de
correção à lei, é muito raro. Se esse santo abuso não se descobre quase nunca
a olho nu, é fruto da costumeira camuflada, às vezes até sem conhecimento,
do juízo crítico nos panos do juízo histórico; não podendo rebelar-se à lei, o
juiz acaba por se rebelar à história.
Assim, o direito culmina no juízo não tanto porque sem juízo a lei não
poderia agir, quanto porque somente no juízo a luta da lei e do fato se
compõe. O legislador tem as insígnias da soberania; mas o juiz possui suas
chaves. Tanto é certo que a ciência do direito não se pode reduzir à
nomologia.
O Que é a Sanção?
O que são o direito, a lei, o fato, o juízo, a sanção? Algo foi respondido a
essas interrogações. Algo mais, todavia, permanece desconhecido; sob a
consecutio necessaria de um segundo fato ao primeiro, como é descoberta
pela lei, o que se esconde? A lei não tem, em última análise, mais do que um
conteúdo descritivo do que acontece; mas porque acontece? Não precisa mais
do que a impressão dessa última pergunta para advertir que com ela deveria
tocar-se, se é possível, o fundo da pesquisa.
Porém, a lei não diz apenas que dois fatos se subseguem, mas que se
subseguem necessariamente. Como a primeira, a última dessas meditações
oferece ocasião de contemplar uma das palavras mais carregadas de força
intuitiva, que possua a língua latina ou qualquer uma de suas filhas
neolatinas. Necessidade deriva, sem dúvida, de nec esse. Não ser. Ao
primeiro olhar não se vê nada. Assim acontece sempre quando a luz é por
demais viva. O ser, também quando se apresenta sob o aspecto de não ser,
resplandece poderosamente para podê-lo olhar.
Devemos, todavia, para entender, ter a coragem de fixar o sol. Deus,
quando Moisés perguntou-lhe: “como se chama, Senhor?”, respondeu: “Eu
sou Aquele que é”. Aquele que é. Cada um de nós é aquele que é. Verdade?
Cada um de nós é aquele que é e não é aquele que não é. Um homem é aquele
homem, não outro homem. Não o ser, mas sim o ser é a verdade do homem e,
de resto, de todas as coisas. Um cavalo não é um cão. Uma rosa não é uma
violeta. Eu não sou tu. Somente Deus é sem não ser. Somente Deus é não
somente toda a criação, mas sim toda a criação e o não criado. Isso quer
dizer: Deus é o todo e o homem ou qualquer outra coisa é uma parte.
Necessidade é a condição da parte.
Parte. Uma outra palavra que, antes de todos, os juristas usam
continuamente, mas não parecem ter o tempo de considerar. Parte se chama
por nós o vendedor ou o comprador, o credor ou o devedor, o marido ou a
mulher, o acusador ou o defensor. Essa noção parece tão natural que seria
tempo perdido aquele usado para esclarecê-la. Mas porque o vendedor e o
comprador, o credor e o devedor, o marido e a mulher, o acusador e o
defensor se chamam partes?
Não sei o que pensam os glotólogos em torno da origem dessa palavra.
Segundo as minhas poucas notícias, nem o parentesco entre pars e pario, tal
como aquela entre ius e iungo, foi ainda descoberta com a ajuda do
microscópio ou do telescópio. De qualquer forma, a razão me guia a entender
que, sendo a parte o resultado de uma divisão do todo, o todo a engendra
(parit); pela mesma razão é pouco (parum) ou pequena (parva) em confronto
do todo. Porque, se o homem não fosse criado do todo, se chamaria parte?
Uma coisa é parte enquanto tem uma outra parte diante de si. Sozinha
uma parte não pode existir. As partes são duas. Não há credor sem o devedor
nem o marido sem a mulher nem deve existir acusador sem defensor. Não
somente as partes são duas, mas são opostas. Uma contra a outra. O contraste
parece o seu destino. Falando, todavia, com maior prudência, diremos, mais
uma vez, no sentido viquiano, que é a sua natureza.
E porque tal natureza? Um estudioso não pode parar com seus porquês.
Uma diante da outra. Há, então, uma fronteira entre elas? Ah, como se
saboreia agora esse conceito! Itália e França, França e Alemanha, Alemanha
e Rússia; no meio, as fronteiras. Defesa e sofrimento? A natureza da parte é o
limite; mas o seu destino é de superá-lo. A parte, numa palavra, está na
prisão. E o prisioneiro anseia a liberdade.
Eis, para o momento, um sopro de liberdade, no ar viciado da
necessidade.
A necessidade é a condição da parte. Ser e não ser. Uma parte é ela
mesma e não a outra parte. Porém, necessita não ser somente ela mesma. O
que ela precisa é, propriamente, a outra parte. O sentido de angústia, que dá
um sabor de amargor a essa palavra, descobre o sofrimento da parte por não
ser tudo.
Agora se entende o dever ser, no qual consiste a relação dos dois fatos
unidos na lei. Ligando os dois fatos, a lei atenua a insuficiência da parte. O
dever ser expressa a tendência da parte ao seu cumprimento.
Os homens são partes. Se aqueles que cultivam outras regiões da ciência,
incluídos os filósofos, podem iludir-se sobre esse sujeito, isso não acontece
com os juristas, pelo menos se prestarem atenção no seu modo de falar. Nem
os biólogos nem os filósofos mesmos chamam os homens de partes; ao invés,
para o jurista essa é a palavra.
Contudo, ser parte é a infelicidade do homem. Expressar, sem reservas,
essa infelicidade é o mérito verdadeiro da filosofia mais moderna, a qual
justamente porque existência não significa outra coisa senão o ser da parte,
dá-se o nome de existencial, mas mais do que o seu erro, a sua culpa está em
cultivar o desespero em lugar da esperança. O homem está fechado na prisão;
mas não há prisioneiro que não possa evadir. O caminho da evasão se chama
dever.
A última surpresa! O dever, até hoje, é concebido como uma submissão,
não como uma libertação. O vínculo aparece como elemento fundamental da
obrigação, segundo a famosa definição romana. De acordo. Os homens não
podem ver o mundo a não ser no avesso. Assim é o ver no espelho, como
intuiu São Paulo, porque o espelho reflete as imagens reviradas. No fundo,
essa é a verdade, que procurei expressar no capítulo precedente,
demonstrando que a pena serve não para tirar mas para dar a liberdade.
Então os homens se prendem com a finalidade de libertá-los? Tal é a
sublime contradição do direito. O prisioneiro, que não consegue evadir-se
sozinho, é libertado com a força dos amigos. A constrição para a liberdade:
que paradoxo! Mas um paradoxo é apenas uma dose excessiva de verdade;
infelizmente aos homens, também a verdade, aliás a verdade antes de tudo
deve ser ministrada em gotas. É preciso confessar que os juristas, ao longo de
séculos e séculos, entenderam muito pouco de direito. Os homens navegaram
séculos e séculos antes de ter descoberto o segredo da navegação. Eles viam
o navio boiar, porquanto fosse carregado e navegavam. Da mesma forma
viam que amarrando as mãos daqueles que não eram amarrados, brigavam
uns contra os outros, podia obter-se algo semelhante à paz; e as mãos foram
ligadas. O jurista soube que amarrando-as se obtinha esse resultado como o
navegante tinha sabido que sobre o navio, podia atravessar o mar. E os
juristas, como os navegadores, não preocuparam-se em outra coisa.
Assim formou-se o conceito do dever como compressão ao invés de
expansão da personalidade. Em outros termos, o dever concebeu-se como a
projeção do comando. Ao invés do conceito da moral dominar o conceito do
direito, foi o segundo que dominou o primeiro. E como os homens formaram
a idéia de Deus com a idéia de si mesmos, assim submeteram a moral a um
processo de juridicidade. O clássico exemplo de tal necessidade, porém de tal
insuficiência do nosso espírito, se pode observar na Crítica da razão prática,
onde nada menos que Kant não pode conceber sem o imperativo categórico o
dever moral; nem por esse grandíssimo pensador dever e comando puderam
se separar; pela única razão que o comando determina uma restrição, o dever
moral, como o dever jurídico, se resolve nas mãos amarradas. Falta entender
como essa concepção pode acordar-se com a liberdade.
Assim o dever é elemento fundamental do direito, porque é o seu
elemento unitivo. E a diferença entre direito e moral se refere à força de onde
procede o dever: ab extra ou ab intra. Justamente porque também para os
filósofos a moral está na esfera jurídica, fala-se, no seu campo, de autonomia,
que quer dizer de auto-comando; o imperativo categórico representa o
protótipo dessa figura.
Agora, enquanto o direito, não podendo deixar que o dever se
desenvolva espontaneamente, o impõe, pelo direito e não pela moral ao dever
corresponde o poder. Uma tal correlação se encontra somente no reino do
direito. O dever jurídico depende, ao passo que o dever moral não depende
absolutamente do poder.
Historicamente, isto é, causalmente, precede o poder. Por isso, o
primeiro saber jurídico reconhece ao poder o primado. Ao centro da
jurisprudência romana se encontra, sem dúvida, o ius concebido não como
união das leis e dos juízos, mas sim como o poder de comandar. E como o
que os antigos chamavam inércia domina sobretudo o campo do saber, até
nos nossos tempos o sistema continua a fundar-se sobre um pretenso binômio
de direito objetivo e de direito subjetivo.
O que aqui interessa, prescindindo da unilateralidade dessa concepção,
que conhece o direito subjetivo como única espécie do poder jurídico, é que a
consideração histórica deve sobrepor-se à consideração lógica do fenômeno,
isto é, ao plano da causalidade deve sobrepor-se o plano da finalidade.
Quando, dessa forma, o olhar se desloca de um para outro plano, vemos
revirar a relação entre dever e poder; se causalmente o dever deriva do poder,
do lado final o dever domina o poder porque somente para estabelecer o
dever é estabelecido o poder. Noutras palavras, o poder é meio e o dever é
fim. Somente porque os homens não têm em seu espírito mais do que um
átomo de liberdade, não conseguem conceber seu dever se alguém não
providencia a comandar e a castigar.
Assim se perfila a relação entre dever e poder: a história reconhece o
primado a este último e a lógica ao primeiro. É possível entre lógica e história
um tal contraste?
Porque não? Exclamarão os leitores, educados no moderno historicismo.
De minha parte acredito ingenuamente na história magistra vitae; uma
história ilógica não poderia ensinar nada. Penso que quando a história nos
parece contrária à lógica, o defeito é dos historiadores e não da história. E o
que veremos logo a propósito da história do direito confirma a minha ingênua
convicção.
Quando os juristas e, em particular, os filósofos perguntam-se como
nasceu o direito, a resposta comum é que, num determinado momento, um
homem começou a comandar aos outros. Exatamente como acontece para a
pergunta relativa ao nascimento de um homem, à qual costuma-se responder
que, num determinado momento, uma mulher pariu. Cômoda maneira de
fazer a história! E porque pariu? O problema se desloca do nascimento do
filho à concepção. Nem, no fundo, seria estranho que se falasse de uma
concepção do espírito. Porém, como não se vê outra coisa que forma a dupla,
se diria que a concepção do direito deva ser imaculada. Talvez nem essa seria
uma idéia muito distante da verdade.
Quando o direito se concebe como uma mistura de justiça e de força,
com a balança e com a espada no brasão, parece que a força da espada seja a
força do direito, isto é, a sua fonte. Refletindo, porém, não tarda a se
esclarecer o equívoco entre a força que o direito produz e a força que produz
o direito; a primeira é o trabalho do mecanismo, não a energia que a move. A
procura se refere não ao porquê as partes devem obedecer ao legislador e ao
juiz, mas sim ao porque estes e aqueles podem e devem comandar. Quis
custodiet custodes? A um certo momento a corrente da força quebra; em
outras palavras, não se consegue achar nem um primeiro que comanda nem
um primeiro que é comandado. Há, no começo, um que comanda sem que
nenhum outro homem lhe tenha concedido o poder e imposto o dever de
comandar. Quer dizer que o direito tem a sua raiz na obediência e não a
obediência tem sua raiz no direito. Mais uma vez o mundo está revirado.
De qualquer forma é a verdade. O chefe comanda porque obedece e os
cidadãos obedecem não tanto porque ele comanda quanto porque
comandando obedece. Em suma, o medo pode ser um meio do direito, mas
não a sua fonte. Acontece com o direito algo semelhante à transformação da
energia: o ordenamento jurídico é análogo às grandes centrais hidroelétricas,
que se vêem nos vales de altas montanhas, a cavalo do curso de um rio: a
corrente elétrica não é aquilo que entra no mecanismo, mas o que sai dele. O
problema se reduz, em última análise, em procurar a natureza da força
original, que o direito não cria mas transforma.
Há, num certo ponto da corrente, um homem que se ocupa dos outros
não porque deve, mas porque quer. Os espanhóis dizem: no porque debe sino
porque quiere. Confesso que me encanta essa agudíssima intuição da língua
castelhana, que chega à identidade do verbo para expressar o amor e a
vontade. Aquele artista anônimo e excelso, que é a multidão, o povo,
entendeu, sem a necessidade de nenhuma filosofia guia, que se a vontade é o
cume do espírito, o amor é o seu fundamento. O mesmo povo, sobre a
bigorna dos séculos, modelou a fórmula: ou por amor ou por força, para
significar a autonomia ou a heteronomia da ação. Se o chefe, para que
comande os outros, é preciso que não seja comandado por ninguém, Deus lhe
pergunta: fórmula com a qual Deus, segundo a milagrosa definição de São
João, charitas est. Tal é a fonte do direito, isto é, do dever. O rio que corre no
fundo do vale da alta montanha, através do qual se instala a grande central do
direito, não é outra coisa senão o amor.
Somente porque os homens não sabem amar, é necessário o medo. Mas
quanto pouco amor há ainda no mundo! O direito se alimenta mais com as
águas de um riacho do que de um rio majestoso. Não existe outra razão da
ignorância dominante em torno das relações entre o dever e a moral, que quer
dizer entre o dever e o amor. Para remediar essa exigüidade, e também, a
descontinuidade da fonte, os engenheiros precisam acumular a força, nada
mais do que essa acumulação nos dá a impressão que o direito nasça de si
mesmo. Porém, a um certo ponto, quando falta o alimento, a força fornecida
pelo acumulador se extingue. Nós, italianos, em particular, temos sofrido essa
experiência fecunda: as forças do medo não são infinitas. Se os juristas
entendessem que a revolução, longe de ser fora do direito, é um de seus
fundamentos, suas idéias sobre o problema primeiro da ciência jurídica
seriam mais claras. Sobretudo, seria clara que o imperativo categórico se
resolve no comando extremo de Jesus quando deixou seus discípulos para
encaminhar-se para o suplício.
Nesse ponto é possível que a lei jurídica, a qual, como temos visto, não
pode ser explicada sem a lei natural, serve, por sua vez, para explicar a lei
natural. A ciência do direito, devedora de seus fundamentos para a ciência
natural, está talvez em condições de satisfazer seu débito?
No fundo, as ciências naturais não têm mais do que um valor descritivo.
Depois do sol ter surgido, deve desaparecer; o que há nisso que não seja pura
descrição? E porque desaparece? Quando o astrônomo responde que a terra
gira em volta do sol, nada mais faz do que mudar as palavras. O porquê o sol
fica imóvel e a terra se move? O sol deve desaparecer como o homem deve
morrer, o que fica incógnito é a razão do dever. Porque se deve? Os
naturalistas não somente não respondem mas nem formulam essa
interrogação.
Naturalmente, o mesmo acontece com os filósofos, cuja filosofia se
funda sobre as conquistas das ciências naturais. Entre outro, não convém
esquecer que a física de Newton constitui o sub-fundo da filosofia de Kant.
Se os homens não se envaidecessem com essas conquistas, nem o criticismo
kantiano nem o idealismo hegeliano nem o existencialismo heideggeriano
teriam vindo ao mundo; mas simplesmente a euforia dos positivistas e dos
idealistas não seria precipitada na filosofia da angústia, que é depois a
angústia da filosofia. Kant, antes de todos, com o seu imperativo categórico,
deixa o problema não resolvido: e porquê o homem deve comportar-se como
se a sua conduta fosse lei para todos? O dever, em outras palavras, é para ele,
como para o naturalista, o término primeiro. Assim se conhece a força, que é
produzida na central, não aquela que a produz.
O dever une os fatos, como os homens, os quais são já unidos. Nossos
pobres olhos, que não conseguem ver a união, se ajudam com o dever. O
dever, como o direito, é um sub-rogado. A verdade, aquela verdade que
poderemos ver no rosto se seremos dignos, enquanto por agora não podemos
senão vê-la no espelho, revirada, é a unidade, não a divisão. O dever é o
meio, que se oferece aos homens para que a divisão se converta em unidade.
E a unidade do mundo se chama amor. O amor une as estrelas do céu como
os homens da terra para que possam formar a ordem do mundo. Se o sol fica
imóvel e a terra gira em volta dele, a razão disso é a mesma pela qual a
borboleta gira sobre as flores do jardim. O mundo é lindo e a sua beleza é o
sigilo do amor.
O mundo é lindo e a tarefa do homem é fazer com que seja sempre mais
lindo. Uma tarefa que o converte, verdadeiramente, em colaborador de Deus.
Mas em lugar de fazer o quanto pode, para agradecê-lo, o homem acaba por
se acreditar senhor. A verdade do pecado cometido ao nascer do mundo é
confirmada, se precisasse, pelo pecado cometido ao renascimento, quando o
homem mais uma vez quis nutrir-se do fruto proibido. A nossa soberbia
encontra a fórmula na confusão entre criação e invenção. Infelizmente,
considerando-se criador, o homem violou a ordem do mundo. Os homens se
assemelham às estrelas, as quais, desviando do caminho, desordenaram o
firmamento. Para reconduzi-los sobre a justa via, a bondade de Deus permitiu
que inventassem o direito.
Assim também a investigação do direito ab intra, como a procura ab
extra, nos revela os lineamentos da arte.
Quando consideramos a lei e o fato, foram os conceitos da representação
e da interpretação que nos guiaram para descobrir a analogia entre o
legislador ou o juiz e, mais do que o pintor, o músico ou o intérprete de suas
melodias.
Mais adiante, procurando penetrar o segredo do juízo e da sanção, e,
portanto, eliminar a casca para descobrir o miolo do direito, abriu-se mais
claramente aos nossos olhos a maravilha do amor, inesperada e, todavia,
inegável substância de um e do outro. Ficava ainda não resolvido o problema
do como e por quê essa substância se transforma em direito; a essa última
pergunta, a resposta foi dada pela análise do dever.
O direito nos pareceu, enfim, como uma das formas que toma o amor
para que possa operar entre os homens. E não é a mesma coisa da arte? Faz
muitos anos, falando de um dileto discípulo perdido, tive ocasião de intuir as
relações da arte com a caridade. Mais tarde apresentou-me uma ocasião
análoga quanto às relações da graça com a justiça. Naturalmente a primeira
impressão foi que a graça esteja fora, aliás, sobre a justiça da mesma forma
que sobre a arte está a caridade. Porém, a estrada ainda é continuada, com o
guia de uma mão invisível e abençoada. E um dia, que foi o dia estrelar da
minha vida (segundo uma frase de Werfel, lembra-me numa carta deliciosa,
de Eduardo Couture), Deus permitiu-me ver, a minha maneira, que o pintor
não ama seu modelo, o retrato não vale nada e se o juiz não ama o imputado
em vão acredita alcançar a justiça. Então entendi que nem a caridade está fora
da arte nem a graça fora do direito.
Pode ser que o problema da arte, como o problema do direito, desde
então, ao invés de resolver-se, tenha se tornado um mistério, todavia o meu
espírito alcançou, finalmente, a paz.