Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
OS REGULAMENTOS E AS EXIGÊNCIAS DA
LEGALIDADE: ESTUDO SOBRE A VIABILIDADE
DOS REGULAMENTOS DELEGADOS NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
PUC-SP
2007
II
OS REGULAMENTOS E AS EXIGÊNCIAS DA
LEGALIDADE: ESTUDO SOBRE A VIABILIDADE
DOS REGULAMENTOS DELEGADOS NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
PUC-SP
2007
III
Banca examinadora:
____________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
IV
RESUMO
ABSTRACT:
À Carol
BREVES AGRADECIMENTOS
Sou também muito grato à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e aos
professores André Ramos Tavares, Celso Antônio Bandeira de Mello e Paulo de Barros
Carvalho, com os quais tive a satisfação e o privilégio de muito aprender. De maneira muito
especial, agradeço ao Professor Doutor Sílvio Luís Ferreira da Rocha, que não só ofereceu sua
orientação, mas também sua amizade, que não só engrandece seus alunos com lições sobre
Direito, mas oferece, com o exemplo de sua conduta, lições de fraternidade.
VIII
SUMÁRIO:
1. INTRODUÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
5. CONCLUSÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213
ÍNDICE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 229
PARTE 1: OS PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO DE
PODERES E DA LEGALIDADE
1. INTRODUÇÃO
1
Transformações no Direito Administrativo. Boletim de Direito Administrativo. São Paulo, NDJ, fev.,
1999, p. 82. A lição de Hartmut Maurer é no mesmo sentido: "os pressupostos para um direito administrativo no
sentido moderno nasceram somente quando, no decorrer do século 19, se produziu a vinculação à lei da
administração. Motivo para isso foi a divisão de poderes, que requereu regulações de competência, assim como o
reconhecimento de direitos fundamentais, que pedia regulações legais para intervenções na liberdade e
propriedade do cidadão. (...) Somente com a juridicização da administração pôde também se formar uma ciência
do direito administrativo". Direito administrativo geral. Trad. Luís Afonso Heck. Barueri: Manole, 2006, § 2, 8
e 9, pp. 17-8, o destaque é do original.
2
Manual de direito administrativo. Revista e atualizada por Diogo Freitas do Amaral. Coimbra:
Almedina, 10ª edição, 1973, 7ª reimpressão, 2001, vol. I, p. 45.
-2-
3
A teoria do "desvio de poder" em direito administrativo [1ª parte]. Revista de direito administrativo.
Rio de Janeiro, out.–dez., 1946, vol. 6, p. 47, nota 24.
4
Gustavo Binenbojm. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e
constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 9-17 e 301.
5
Idem, p. 312, o destaque é do original.
6
Cf. Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto. Regulação estatal e interesses públicos. São Paulo:
Malheiros, 2002, pp. 63-4.
7
Cf. Sílvio Luís Ferreira da Rocha. A irrelevância da vontade do agente na teoria do ato
administrativo. Revista trimestral de direito público. São Paulo, 1999, n. 25, 1999, p. 49.
8
Luís Solano Cabral de Moncada. Lei e regulamento. Coimbra: Coimbra editora, 2002, p. 33.
-3-
9
Tratado de derecho administrativo. Belo Horizonte: Del Rey e Fundación de derecho administrativo,
7ª edição, Tomo 1 (parte geneneral), 2003, p. I-10.
10
Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 20ª edição, 2006, p. 42.
11
Marcelo Figueiredo. As agências reguladoras: o Estado democrático de direito no Brasil e sua
atividade normativa. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 5.
12
Afonso R. Queiró. A teoria... cit. [1ª parte], p. 47.
13
Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 2ª edição, 1993, 6ª tiragem,
2003, p. 11.
-4-
14
Fábio Konder Comparato. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, p. 263.
15
O espírito das leis. Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1747, 3ª edição da
tradução, 2005, Livro XI, Capítulo IV, p. 166.
16
Nesse sentido, as considerações de Rui Cirne Lima são emblemáticas: "No presente, porém, a
significação do regulamento é apagadíssima (...). Inoperante contra legem ou sequer praeter legem, o
regulamento administrativo endereçado como vimos, à generalidade dos cidadãos, nenhuma importância, como
direito material possui. Avulta nele, certamente, o cometimento técnico. Cumpre-lhe resolver o problema da
execução da lei — problema técnico jurídico, por excelência" (Princípios de Direito Administrativo, 5ª ed., São
Paulo, RT, 1982, p. 40, apud Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., p. 318, nota 4, o grifo não consta
do original).
17
Sobre o significado emotivo das palavras, v. Genaro R. Carrió Notas sobre derecho y lenguaje.
Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 4ª edição, 1990, pp. 2-4. Também Karl Olivecrona, ao tratar das funções da
-5-
linguagem, fala das propriedades emotivas das palavras (Linguagem jurídica e realidade. Tradução de Edson L.
M. Bini. Prefácio de Alaôr Caffé Alves. São Paulo: Quartier Latin, 2005, pp. 50-2).
18
Cf. Arnold Wald. Novas tendências do direito administrativo: a flexibilidade no mundo da
incerteza. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro, out.–dez., 1995, vol. 202, 1995, p. 44.
19
Cf. Sérgio Varella Bruna. Agências reguladoras: poder normativo, consulta pública, revisão
judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp. 68-9.
20
Ob. cit., p. 156.
21
As novas tendências direito constitucional. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1933, p. 295, apud
Marcelo Figueiredo, ob. cit., p. 51, nota 2.
22
Cf. Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto, ob. cit., passim, e Gustavo Binenbojm, ob. cit.,
especialmente, pp. 23 e segs.
23
Cf. Sidnei Turczyn. O sistema financeiro nacional e a regulação bancária. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, pp. 363-5, e Sérgio V. Bruna, ob. cit., pp. 15-7.
-6-
24
Eros Roberto Grau. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 6ª edição, 2005,
pp. 232-3.
25
Cf. Marcelo Figueiredo, ob. cit., pp. 298-9.
26
Cf., além dos autores já citados, Caio Tácito. Comissão de valores mobiliários. Poder regulamentar
[parecer]. In: Temas de direito público: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, vol. 2, pp. 1.084-6.
27
Cf. Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 17-23 e pp. 148-57
-7-
28
Ob. cit., p. 220, o grifo não consta do original.
29
Sobre a importância da atividade regulamentar, já em 1965, muito antes das agências reguladoras,
Fábio Comparato já questionava: "Nossos centros de cultura jurídica poderão continuar ignorando a profunda
influência das instruções da extinta SUMOC, hoje Banco Central da República, sôbre a vida jurídica privada, ou
os problemas postos pela regulamentação do câmbio ou o estatuto do capital estrangeiro?" (O indispensável
direito econômico. Revista dos tribunais. São Paulo, mar., 1965, vol. 353, pp. 14-5). Ainda sobre a importância
dos regulamentos, Almiro do Couto e Silva assenta que "nenhum de nós ignora o significado e o poder dos
regulamentos, resoluções, circulares, portarias etc., pelas quais de um só golpe, como ocorre com as Resoluções
do Conselho Monetário Nacional ou com as circulares do Banco Central, altera-se o desenho de
importantíssimos setores da Nação. O problema, aliás, não é só nosso e encontra símile na maioria dos países
democráticos do nosso tempo" (Princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no
estado de direito contemporâneo. Revista de direito público. São Paulo, out.–dez., 1987, n. 84, p. 52). Mais
recentemente, v. Gustavo Binenbojm: "Apesar do alto grau de constitucionalização do direito administrativo e de
a lei ser histórica e classicamente sua fonte por excelência, cada vez mais os regulamentos são a fonte
quantitativamente mais importante do direito administrativo. Pode-se afirmar que, atualmente, os regulamentos
são a fonte mais importante do direito administrativo, do ponto de vista prático" (ob. cit., pp. 152-3). Na doutrina
estrangeira, Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández destacam que os regulamentos, na
atualidade, passou a ser "la parte más significativa del ordenamiento jurídico-administrativo" (Curso de derecho
administrativo. Madrid: Civitas ediciones, 12ª edición, 2004, reimpresión, 2005, vol. 1, p. 185). O parecer de
Agustín Gordillo, embora não deixe de enfatizar os riscos do poder regulamentar, também é nesse sentido: "En
la inmediatez diaria de la vida administrativa, el reglamento es la norma de mayor importancia momentanea"
(ob. cit. loc. cit., p. VII-20). V., ainda, Caio Tácito. Comissão... cit. [parecer], pp. 1.085-6.
-8-
30
Almiro do Couto e Silva explica que as principais notas do Estado de Direito em seu aspecto formal
são: a) direitos e garantias fundamentais; b) divisão de funções do Estado; c) legalidade da Administração
Pública; e d) proteção da boa-fé ou da confiança que os administrados têm na ação do Estado. Já no seu aspecto
material, seus elementos estruturantes são a justiça e a segurança jurídica (Princípios... cit., p. 46). Sobre os
princípios do Estado de Direito, v., ainda, Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Estado de direito e Constituição.
São Paulo: Saraiva, 3ª edição, 2004, pp. 23-39.
- 10 -
Uma questão preliminar, no entanto, se impõe: definir, ainda que em linhas gerais, o
que se entende por princípio jurídico. A questão levantada na epígrafe, logo se vê, não é
simples. A distinção entre princípios e regras suscita debate acalorado na doutrina. No
entanto, na seqüência, vamos tratar de dois princípios — separação de poderes, neste tópico, e
legalidade, no seguinte ―, assim, não é possível deixar de anotar o que significa princípio
neste trabalho.
No constitucionalismo contemporâneo, podemos falar que existe consenso na
definição de princípio como norma, especialmente porque na atualidade os princípios gerais
de direito estão constitucionalizados. Os princípios não são mais, pois, fontes subsidiárias31.
Paulo Bonavides esclarece que, uma vez constitucionalizados, os princípios tornam-se a chave
de todo o sistema normativo. Não se trata mais de princípios gerais, mas de princípios
constitucionais. Assim, na fase que ele define de pós-positivista, os princípios já não exercem
uma função secundária no ordenamento, sendo invocados tão-só para o preenchimento do
vazio legislativo. As constituições contemporâneas, explica, convertem os princípios "em
31
Assim ensina Oswaldo Aranha Bandeira de Mello sobre os princípios gerais de direito: "A
aplicação desses princípios se faz ante a lacuna da lei, e mesmo do costume, por inexistir norma especifica
regendo a hipótese. Não envolve, portanto, qualquer derrogação de norma positiva e da sistemática do direito
positivo, mas a sua complementação". Princípios gerais de direito administrativo. São Paulo: Forense, 2ª edição,
1979, vol. I, p. 407.
- 11 -
pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas
constitucionais"32.
Entretanto, já não podemos constatar esse mesmo consenso no que se refere à
diferenciação entre regras e princípios, espécies do gênero norma. Embora seja um debate
polêmico, que ganhou força na atualidade com a publicação das obras de Ronald Dworkin e
Robert Alexy33, na doutrina nacional, ganha destaque a posição original de Humberto Ávila.
A sua proposta defende que tanto as regras quanto os princípios podem ser ponderados.
Segundo seu entendimento, não há uma necessária correspondência entre texto e norma.
Logo, a norma é fruto de uma interpretação34. Os textos não possuem, pois, um significado
intrínseco, é o uso que lhes confere sentido. Mas há significados ou sentidos partilhados ou
intersubjetivados pela comunidade que funcionam como limites ao intérprete. Interpretar,
assim define, é construir a partir de algo, é reconstruir35. Daí sua conclusão no sentido de que
não se pode afirmar, a priori, se certo texto constitucional possui um princípio ou uma regra
porque essa definição dependerá da atitude do interprete36.
Ainda segundo Humberto Ávila, o princípio é uma norma que estabelece como dever
imediato a promoção de um estado ideal de coisas e como dever mediato a adoção da conduta
necessária para a promoção desse fim; já as regras estabelecem como dever imediato a adoção
de uma conduta descrita e como dever mediato a manutenção de fidelidade à finalidade
subjacente. Assim, se o interprete focar a interpretação nas finalidades, ou seja, nos bens
32
Paulo Bonavides. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 11ª edição, 2001, pp. 231-
2 e 237. Cf., ainda, José Roberto Pimenta Oliveira. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no
direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2006, pp. 27-9.
33
Cf. Luís Virgílio Afonso da Silva. Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção.
Revista latino-americana de estudos constitucionais, Belo Horizonte, jan.–jul., 2003, vol. 1, p. 609, e Fábio
Comparato. Ética...cit., p. 510.
34
Também Eros R. Grau defende que a norma é o produto da interpretação: "A interpretação é
atividade que se presta a transformar disposições (textos, enunciados) em normas; é meio de expressão dos
conteúdos normativos das disposições, meio através do qual o juiz desvenda as normas contidas nas disposições
(...) Por isso, as normas resultam da interpretação e podemos dizer que elas, enquanto disposições, não dizem
nada — elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem" (ob. cit., pp. 39 e 95, os destaques são do
original). Bem por isso, Eros Grau sustenta que a interpretação é expressão de poder. Logo, interpretação e
aplicação não são atividades autônomas, mas são atividades que se superpõem (ob. cit., pp. 207-8).
35
Em sentido algo diverso, v. a doutrina de Karl Larenz: "o que caracteriza o processo de
interpretação é que o intérprete só quer fazer falar o texto, sem acrescentar ou omitir o que quer que seja.
Evidentemente que sabemos que o intérprete nunca se comporta aí de modo puramente passivo (...) Não quer dar
a sua interpretação ― se bem que naturalmente seja sempre também a sua ―, mas a que é requerida com base
na norma e na cadeia de regulação". Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1991, 4ª edição, 2005, pp. 441-2.
36
Humberto B. Ávila. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São
Paulo: Malheiros, 4ª edição, 2004, pp. 23-6.
- 12 -
jurídicos ou estados de coisas que se pretende preservar, o texto se revela como princípio; ao
contrário, se mirar o foco de sua interpretação nas condutas, revela-se o texto como regra37.
Embora possamos aceitar como corretos os pressupostos do pensamento de
Humberto Ávila acerca da diferenciação entre texto e norma, não seguimos a definição de
princípio jurídico por ele proposta. Logo, no texto, não nos preocupamos em apurar se o
princípio em estudo determinava ou não, como mandamento imediato, a manutenção de
fidelidade a uma finalidade subjacente. O cerne de nossa preocupação foi, sim, revelar o
princípio como uma norma fundamental à configuração do ordenamento jurídico. O termo
princípio foi empregado com a intenção de destacar o caráter fundamental da norma, isto é, o
seu caráter nuclear. Assim, dizer que é uma norma é fundamental ao nosso ordenamento
constitucional é dizer que o sistema constitucional seria outro na hipótese de sua retirada. O
princípio é, pois, uma norma de natureza estruturante. É destacar, enfim, o caráter essencial
dessa norma para a configuração do sistema constitucional. Afinal, não se deve ignorar que o
primeiro sentido que a palavra princípio evoca em nossa mente é o de início, de começo,
revelando sua origem latina no termo principium38. Efetivamente, aquilo que é o fundamento
de um ordenamento jurídico vem em primeiro lugar, possui, pois, preeminência nesse
ordenamento. Nesse sentido, além da lição de Paulo Bonavides, já referida, calha a transcrição
do ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello:
"Princípio — já averbamos alhures — é, por definição, mandamento nuclear de um sistema,
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-
lhe o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir
a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido
37
Humberto B. Ávila, ob. cit., pp. 61-70. O autor ainda destaca um terceiro tipo de norma: os
postulados normativos. Os postulados são metanormas ou normas de segundo grau, são normas que estruturam a
aplicação de outras normas, são deveres estruturantes de aplicação de outras normas (ob. cit., pp. 87-90).
Contudo, não interessa tratar deles mais detidamente aqui. Ainda sobre a compreensão de princípio, v., do
próprio Humberto Ávila. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade.
Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro, jan.–mar., 1999, vol. 215, pp. 154-8 e 160-8, e Princípios,
teoria dos [verbete]. In: Vicente de Paulo Barreto (coord.). Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo:
Editora Unisinos, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 659-61. Críticas às teses de Humberto Ávila podem ser
encontradas no texto de Luís Virgílio Afonso da Silva, no qual destaca "'ser passível ou carente de 'sopesamento'
é característica exclusiva dos princípios" (Princípios... cit., p. 617). Destaca, no entanto, Luís Virgílio Afonso da
Silva que "Rebater os argumentos de Humberto Ávila, não significa, contudo, ignorar a importância de seu
trabalho. Ao contrário do que freqüentemente acontece nos casos de recepção de teorias estrangeiras, Humberto
Ávila não se limita a meramente reproduzir acriticamente algo recebido, mas expõe, com argumentos, o que
entende ser problemático na distinção entre regras e princípios" (ob. cit., p. 608, nota 2). Outros critérios,
usualmente utilizados pela doutrina para a distinção entre princípios e regras, são indicados por J. J. Gomes
Canotilho. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 7ª edição, 2005, 2ª reimpressão,
pp. 1.160-1.
38
Cf. Humberto Ávila, última ob. cit., p. 657, e Fábio K. Comparato. Ética... cit., pp. 484-5.
- 13 -
harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes
componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo"39.
E não podemos deixar de destacar a importância concedida aos princípios no Direito
Administrativo pela obra de Celso Antônio Bandeira de Mello, na qual destaca que os
princípios, em seu conjunto, formam o regime jurídico-administrativo, e, assim, funcionam
como guia e orientam a compreensão dessa disciplina. A preocupação do jurista deve, pois,
ser revelar tais princípios consagrados40.
Também Fábio Comparato41, ao tratar dos princípios éticos (a ética, na compreensão
desse autor, envolve o direito, a moral e a religião), destaca que a diferenciação entre
princípios e regras se pauta numa consideração de superioridade hierárquica dos princípios.
Bem por isso, é que os princípios têm função diferente das demais regras em razão de sua
fundamentalidade: eles funcionam como critério de interpretação e integração do texto.
Assim, ainda que as normas estejam localizadas no mesmo texto não se verificando
verdadeira hierarquia normativa, porque estão no mesmo plano, é nos princípios que estão os
critérios para a compreensão e integração das demais normas, bem como daquelas que nelas
se fundam42.
A proposta de definição de princípio não quer fugir da prática juridica brasileira, que
reserva o termo princípio para conferir a devida importância ao conceito43. Em razão de sua
equivocidade, o termo princípio, tal qual grande parte dos conceitos jurídicos, exige um
cuidado adicional: o de manter a fidelidade ao conceito inicialmente proposto e averiguar se a
doutrina que se invoca também utiliza o termo no mesmo sentido e assim manter uma postura
coerente. Esse é o pertinente alerta de Luís Virgílio Afonso da Silva44, que procuramos seguir.
Na doutrina estrangeira, Eduardo García de Enterrría e Tomás-Ramón Fernández45
também destacam a importância maior dos princípios gerais de Direito, quando
constitucionalizados, e asseguram que, na atualidade, eles não se limitam a suprir as fontes
39
Discricionariedade administrativa e controle judicial. Revista de direito público. São Paulo, nov.–
dez., 1974, n. 32, 1974, p. 18, e Curso... cit., pp. 902-3.
40
O conteúdo do regime jurídico-administrativo e seu valor metodológico. Revista de direito público.
São Paulo, out.–dez., 1967, n. 2, pp. 56-8, e Curso... cit., pp. 78-83.
41
Ética... cit., pp. 509-13.
42
Cf., nesse sentido, Sílvio Luís Ferreira da Rocha. Função social da propriedade pública. São Paulo:
Malheiros, 2005, pp. 149-51.
43
Cf. Luís Virgílio Afonso da Silva. O proporcional e o razoável. Revista dos tribunais. São Paulo,
abr., 2002, vol. 798, p. 26 e nota 13, e Princípios... cit., p. 612.
44
Princípios... cit., em especial, pp. 613-4.
45
Ob. cit., pp. 91-2. Os autores espanhóis citados destacam na obra a produção de cada autor, mas se
solidarizam pelo conjunto, pois participam ativamente da redação de todo o texto (ob. cit. p. 8), razão pela qual,
em todas as citações dessa obra, atribuímos o texto aos dois autores.
- 14 -
escritas, mas dão sentido e presidem a interpretação de normas escritas. Isso porque,
explicam, gozam da superioridade normativa formal da constituição que lhes consagra.
Assentada essa idéia, convém consignar que, por óbvio, não se trata de uma opção
arbitrária ou subjetiva a indicação de certa norma constitucional como fundamental: é o
próprio texto da Constituição que a define como fundamental. Assim, é a Constituição que
define o princípio da separação de poderes como fundamental porque o incluiu no seu Título
I, cuja epígrafe é "Dos princípios fundamentais". Não só: o ordenamento constitucional
qualifica esse princípio como norma irrevogável, pois veda qualquer emenda tendente a abolir
a separação de poderes (Constituição, art. 60, § 4º, III). Ou seja, compreende que o
ordenamento jurídico seria outro caso fosse possível sua retirada.
Também é a Constituição que coloca o principio da legalidade como o primeiro
princípio da Administração Pública. Ademais, ainda no seu Título I, a Constituição estabelece
que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Com
efeito, não se compreende um Estado de Direito sem sujeição à legalidade46. Afora isso, uma
das facetas do princípio da legalidade constitui direito e garantia fundamental do cidadão,
assegurado pelo art. 5º, II, da Constituição da República. Logo, também é norma que não
pode ser revogada por emenda à Constituição (art. 60, § 4º, IV).
Ao destacar, portanto, que a separação de poderes e a legalidade são princípios,
queremos destacar, tão-somente, que essas são normas essenciais; são verdadeiros vetores
interpretativos do texto constitucional, sem preocupação de enquadrá-los como regra ou
princípio por alguma nota diferenciadora inerente à sua estrutura. Em síntese: dizemos que
são princípios porque são normas fundamentais e irrevogáveis de nosso ordenamento
constitucional.
46
Cf., por todos, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 88-9.
2. O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES DO ESTADO NA
CONSTITUIÇÃO DE 1988
Vale advertir, já de início, que não há intenção de esmiuçar por completo a obra de
Montesquieu, especialmente porque tal empreitada fugiria aos objetivos do estudo proposto.
Também não há pretensão de indicar, de maneira original e definitiva, o seu pensamento.
Não, a intenção é, tão-só, traçar um esboço geral de suas idéias sobre o tema da separação de
poderes, pois se trata do grande sistematizador desse tema, embora muitos autores assegurem
que a sua idéia não era original, buscando as origens teóricas da tripartição de poderes nas
obras de Aristóteles (384-322 a.C.) ou de John Locke (1632-1704)1. Miguel Seabra Fagundes
lembra, inclusive, que Montesquieu não chegou sequer a usar o termo "separação de
poderes"2. Não se deve deixar de anotar, ainda, que existem autores que sustentam que não
são três as funções ou poderes do Estado, mas não há como negar que o sistema tripartido é o
mais consagrado nas atuais constituições do mundo ocidental, como nos assegura Celso
Antônio Bandeira de Mello3.
Ademais, a obra de Montesquieu, O espírito das leis, vai muito além da trilogia dos
poderes. O objetivo dela era demonstrar as relações que as leis devem ter com o clima, o
número de habitantes, a religião, o governo e a constituição de cada povo, entre outros
fatores. São essas relações juntas que formam o espírito das leis. As idéias Montesquieu
apóiam-se, convém registrar, numa concepção liberal de Estado4. Bem por isso, Eros R. Grau5
afirma que a separação de poderes constitui um dos mitos mais eficazes do Estado liberal,
coroado na afirmação escrita no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
1
A bibliografia sobre a questão é vasta. Cf., entre outros, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit.,
p. 28; J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 578-81, Marcelo Figueiredo, ob. cit., pp. 50 e segs., Almiro do Couto e
Silva. Princípios... cit., pp. 48-9, Eros Grau, ob. cit., pp. 226-8, Fábio Comparato, ob. cit., pp. 218-9 e 670 e
segs., Simone Lahorgue Nunes. Os fundamentos e os limites do poder regulamentar no âmbito do mercado
financeiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pp. 86 e segs., e André Ramos Tavares. Curso de direito
constitucional. São Paulo: Saraiva, 2ª edição, 2003, pp. 859-60.
2
Miguel Seabra Fagundes. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. Atualizado por
Gustavo Binenbojm. Rio de Janeiro: Forense, 7ª edição, 2005, p. 3, nota 2.
3
Curso... cit., p. 28. Este autor traz, ainda, uma nota (nota 2) na qual sintetiza os argumentos de
alguns juristas que negam o sistema de tripartição, dentre os quais se inclui Oswaldo Aranha Bandeira de Mello
(Princípios... cit., pp. 24-33).
4
Cf. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit., p. 28.
5
Ob. cit., p. 225.
- 16 -
de 1789, segundo o qual não há Constituição sem separação de poderes e garantia dos
direitos6.
Cabe frisar ainda que as idéias de Montesquieu revelam uma forte inspiração
jusnaturalista, sendo emblemática, a propósito, a sua definição de lei: "A lei, em geral, é a
razão humana, enquanto governa todos os povos da terra; e as leis políticas e civis de cada
nação devem ser apenas casos particulares onde se aplica esta razão humana"7.
O tema da tripartição aparece, nesse contexto, quando ele trata Das leis que formam
a liberdade política em sua relação com a constituição (Livro XI), em especial ao descrever o
que chamou de Constituição da Inglaterra (Capítulo VI). Assim, essa liberdade política só
existe quando não se abusa do poder8. E, para não se abusar desse poder, "é preciso que, pela
disposição das coisas, o poder limite o poder"9, pois os que têm poder são propensos a dele
abusar, só parando quando encontram limites.
Portanto, segundo Montesquieu, existem três poderes em cada Estado: o poder
legislativo, o poder executivo e o poder de julgar, que são assim definidos: o primeiro poder é
o de criar leis e de corrigir e anular as que foram feitas; já o poder executivo consiste em fazer
a paz, declarar a guerra, enviar ou receber embaixadas, instaurar a segurança e prevenir
invasões; por fim, o poder de julgar envolve punir os crimes e dirimir os conflitos entre os
súditos.
O autor defende, então, que esses poderes não podem estar unidos no mesmo órgão,
sob pena de não existir liberdade onde aconteça essa união. Para assegurar a liberdade, é
preciso que o poder, separado em órgãos distintos, limite o poder. Profere, enfim, suas
advertências mais graves:
"Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido
ao poder executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo
senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de
6
"Toute siciété, dans laquelle la garantie des droits n'est pas assuré ni la séparation des pouvoirs
détérminée, n'a point de constitution". Article 16. Déclaration des droits de l'homme et du cityoen du 16 Août
1789.
7
Montesquieu, ob. cit., Livro I, Capítulo III, p. 16. Manoel Gonçalves Ferreira Filho explica que "A
existência de um Direito superior à lei positiva está presente no Espírito das leis, que lhe deve um fulgor
extraordinário" (ob. cit., p. 11). Luís Solano Cabral de Moncada destaca ainda Montesquieu como um dos
precursores da causalidade científica nas ciências sociais, pois sua noção de lei é "ancorada na idéia de relação
necessária aberta à causalidade, subvalorizando-se os elementos éticos, decorrentes da livre opção" (ob. cit., p.
45, nota 23).
8
Para Montesquieu "a liberdade política não consiste em se fazer o que se quer (...) A liberdade é o
direito de fazer tudo o que as leis permitem". Assim, define que "A liberdade política, em um cidadão, é esta
tranqüilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha esta
liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão" (ob. cit., Livro XI,
Capítulo III, p. 166, e Capítulo VI, p. 168).
9
Ob. cit., Livro XI, Capítulo IV, p. 166.
- 17 -
julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o
poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz poderia ter a força de um
opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo de principais, ou dos nobres, ou
do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar
os crimes ou as querelas entre os particulares"10.
Não obstante o contexto jusnaturalista em que a tripartição de poderes é apresentada
por Montesquieu, a separação de poderes, em verdade, não decorre da essência ou da natureza
das coisas. Ela não é intrínseca à idéia de Estado. Na realidade, ela é uma criação do homem
com um firme propósito ideológico: assegurar a liberdade por meio da cisão do poder. O
princípio da separação quer assegurar a existência efetiva de um sistema de garantia de
liberdades11. Não é a natureza das coisas que determina a cisão dos poderes do Estado. Em
verdade, ela é uma opção por um modelo de Estado com a finalidade de assegurar, desse
modo, a liberdade12. Os poderes são divididos em órgãos distintos a fim de garantir que poder
limite poder, preservando, então, a liberdade dos súditos. É o que ensina Celso Antônio
Bandeira de Mello:
"Esta trilogia não reflete uma verdade, uma essência, algo inexorável proveniente da natureza das
coisas. É pura e simplesmente uma construção política invulgarmente notável e muito bem sucedida,
pois recebeu amplíssima consagração jurídica. Foi composta em vista de um claro propósito
ideológico do Barão de Montesquieu, pensador ilustre que deu forma explícita à idéia de tripartição. A
saber: impedir a concentração de poderes para preservar a liberdade dos homens contra abusos e
tiranias dos governantes."13.
Ora, se a tripartição não decorre de uma essência, se ela não está amparada na
natureza das coisas, então, é preciso que ela esteja assegurada pelas leis. Daí se poder afirmar
que a separação de poderes vale porque é, quando é, e na forma como é positivada pela
Constituição. Aliás, é o próprio Montesquieu14 quem parece sugerir isso ao afirmar que seu
10
Ob. cit., Livro XI, Capítulo VI, p. 168.
11
Marcelo Figueiredo, ob. cit., p. 54.
12
Também Agustín Gordillo (ob. cit., Tomo 1, IX-1-2), Simone Nunes (ob. cit., p. 89) e Eros Grau
(ob. cit., p. 226) destacam a liberdade como finalidade da separação de poderes. Uma proposta um pouco
diferente, mas no mesmo sentido, encontramos no ensaio de Bruce Ackerman. Para esse autor, os ideais
legitimadores da separação de poderes são a democracia, o profissionalismo administrativo e a proteção dos
direitos fundamentais, sem o quê tem-se o motor da tirania (The New separation of powers. Harward Law
Review. Cambridge, jan., 2000, vol. 113, n. 3, pp. 639-40). Aliás, o seu texto instiga a questionar se a mera
separação de poderes é capaz de garantir a liberdade contra o autoritarismo. Ao defender a proposta de separação
de poderes no modelo parlamentarista contido (constrained parliamentarianism) destaca: "Generations of Latin
liberals have taken Montesquieu's dicta, together with America's example, as an inspiration to create
constitutional governments that divide lawmaking power between elected presidents and elected congress —
only to see their constitutions exploded by frustrated presidents as they disband intransigent congress and install
themselves as caudillos with the aid of military and/or extraconstitutional plebiscites" (ob. cit., p. 645)
13
Curso... cit., p. 31, os destaques são do original.
14
Ob. cit., Livro XI, Capítulo VI, p. 178.
- 18 -
propósito era apenas de demonstrar que a liberdade estava estabelecida nas leis da Inglaterra e
não assegurar que os ingleses formavam uma nação livre.
Também não se deve imaginar que Montesquieu quis uma perfeita e completa
separação de poderes, sem nenhuma forma de interferência de um poder em outro poder. Essa
proposta consistiria em mito, como explica J. J. Gomes Canotilho. O autor português explica,
invocando a lição de Ch. Eisenmann, que essa teoria rígida da separação nunca existiu em
Montesquieu: mais do que separação, ele quis uma combinação de poderes. Ademais, explica
Gomes Canotilho, na obra de Montesquieu os poderes legislativo e executivo estavam
divididos entre três potências: o rei, a câmara alta e a câmara baixa, isto é, entre a realeza, a
nobreza e a burguesia, respectivamente. O problema político era combinar essas potências15.
A conclusão do citado autor português é que a separação de poderes "não é um esquema
rígido mas apenas um princípio organizatório fundamental. Como tal não há que perguntar
pela sua realização estrita nem há que considerá-lo como um dogma de valor intemporal"16.
Com efeito, como destaca Simone L. Nunes17, Montesquieu pretendeu uma atuação
equilibrada dos poderes, bem por isso ele admitia expressamente certas interpenetrações entre
os poderes. Também Eros Grau destaca, além dessa interpenetração entre os poderes, o fato
de Montesquieu admitir expressamente que o Poder Executivo participa da legislação por
meio do veto, ou seja, com o poder de impedir. Assim, Eros Grau conclui que Montesquieu
não quis estabelecer uma separação, mas uma distinção entre os poderes18. Não obstante a
distinção ou cisão, os poderes deveriam atuar em clima de equilíbrio.
Importante anotar, ainda, que Simone Nunes e Eros Grau sublinham o fato de que
Montesquieu afirmou que o Poder Executivo se exerce sobre as questões momentâneas,
enquanto o Poder Legislativo trata das coisas não-momentâneas, mas estruturais19. Esse fato,
15
Ob. cit., pp. 114-5. A obra de Ch. Eisenmann referida por Gomes Canotilho é a seguinte: L'Esprit
des lois et la sepáration des pouvoirs, Mélanges Carré de Malberg, Paris, 1933.
16
Ob. cit., pp. 556-7.
17
Ob. cit., pp. 92-3.
18
Eros Grau, ob. cit., pp. 229-30.
19
Cf. Simone L. Nunes, ob. cit., p. 94, e Eros Roberto Grau, ob. cit., pp. 230-1. Os autores citados se
referem aos seguintes trechos da obra de Montesquieu: "O poder executivo deve estar nas mãos de um monarca,
porque esta parte do governo, que precisa quase sempre de uma ação instantânea, é mais bem administrada por
- 19 -
argumentam, revela que a ordem jurídica deve diferenciar as normas conjunturais das normas
estruturais. É essa distinção que viabiliza a atuação normativa da Administração Pública para
tratar das coisas momentâneas ou conjunturais. Portanto, essa atuação normativa não se
incompatibiliza, assim concluem, com a doutrina postulada por Montesquieu.
Em verdade, contudo, tais considerações também podem ser tomadas como releituras
da obra de Montesquieu, eis que ele propõe uma visão de autonomia de cada poder no
exercício de sua função20. Ademais, na obra de Montesquieu não há, de forma clara, uma
distinção entre função e órgão21, e essa identificação de função e órgão implica a
impossibilidade de um órgão exercer mais de uma função.
Não obstante, não há nada de equivocado em procurar novas formas de compreensão
de textos clássicos, como o de Montesquieu, para contextualizá-los aos desafios de nossos
tempos. Como bem alerta Bruce Ackerman: "We honor Montesquieu and Madison best by
seeking new constitutional forms to master these challenges, even at the cost of transcending
familiar trinitarian formulations"22.
Assim, podemos chegar a duas conclusões prévias. A primeira assenta-se na
afirmação de que a separação de funções do Estado serve à garantia da liberdade nesse
Estado. A segunda se relaciona com a primeira para afirmar que, se a separação de poderes
não advém da própria essência do Estado, ela só vale na medida em que posta pela
Constituição do Estado. Daí se afirmar que o princípio da separação dos poderes vale porque
é norma posta pela Constituição da República23. Então, somos impulsionados a analisar em
que termos nossa Constituição colocou a separação de poderes. É o objeto do próximo tópico.
um do que por vários; ao passo que o que depende do poder legislativo é com freqüência mais bem ordenado por
muitos do que por um só (...) Mas não é preciso que o poder legislativo tenha reciprocamente a faculdade de
limitar o poder executivo. Pois, sendo a execução limitada por natureza, é inútil limitá-la: além do que o poder
executivo exerce-se sempre sobre coisas momentâneas" (ob. cit., Livro XI, Capítulo VI, pp. 172 e 174). Além
dos autores referidos, também Eduardo Salomão Neto destaca a impossibilidade de absoluta separação de
poderes, preliminarmente a sua análise do poder regulamentar do Banco Central do Brasil e do Conselho
Monetário Nacional (Direito bancário. São Paulo: Atlas, 2005, pp. 79-80).
20
Cf., nesse sentido, Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 222 e nota 308.
21
Cf. Victor Nunes Leal. Lei e regulamento (1945). In: Problemas de direito público. Rio de Janeiro:
Forense, 1960, p. 67.
22
Ob. cit., p. 727.
23
Cf., a propósito, as considerações de Gustavo Binenbojm: "O que se quer destacar, portanto, é que o
princípio da separação de poderes merece releitura diante de um novo Estado, entendendo-se que tal preceito,
muito mais que postulado da ciência política, é norma jurídica, e como tal deve ser interpretada" (nota de
atualização à M. Seabra Fagundes, ob. cit., p. 6). Também expressiva é a seguinte ementa de julgado do
Supremo Tribunal Federal: "O princípio da separação e independência dos Poderes não possui uma fórmula
universal apriorística e completa: por isso, quando erigido, no ordenamento brasileiro, em dogma constitucional
de observância compulsória pelos Estados-membros, o que a estes se há de impor como padrão não são as
concepções abstratas ou experiências concretas de outros países, mas sim o modelo brasileiro vigente de
separação e independência dos Poderes, como concebido e desenvolvido na Constituição da República". STF,
- 20 -
Pleno, Ação direta de inconstitucionalidade 98-5/MS, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 7.8.1997, DJ 31.10.1997,
v.u.
24
Sobre o art. 2º da Constituição de 1988, é preciso referir, ainda que em breve nota, ao triste e
recente episódio no qual o Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e Ex-constituinte, Sr. Nelson de Azevedo
Jobim, confessou aos repórteres do Jornal O Globo que o art. 2º — entre outros — foi incluído no texto
constitucional sem ter sido votado em Plenário na Assembléia Nacional Constituinte. Afora o fato de que o
princípio da separação de poderes não se resume àquela declaração, cabe destacar dois pontos: (i) o texto já
constava da Constituição "votada em Plenário", mas no seu Título IV Da organização dos poderes e não no
Título I Dos princípios fundamentais; e (ii) o Presidente da Assembléia Nacional Constituinte exigiu a votação
nominal da redação final do texto: o regimento previa votação simbólica. Assim, o lamentável episódio não
autoriza qualquer pretensão de se afastar a aplicação do princípio da separação de poderes. Cf.
CONSTITUIÇÃO 15 anos. O Globo, Suplemento Especial Constituição Cidadã, Rio de Janeiro, 10.7.2003, pp.
2-3; e JOBIM diz que pedido de renúncia é 'loucura'. Folha de S. Paulo. São Paulo, 6.11.2003, caderno Brasil, p.
A-9.
25
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit., p. 21.
26
Eros R. Grau, ob. cit., pp. 230-1; e Simone L. Nunes, ob. cit., p. 94.
27
Nesse sentido, mas referindo-se à Constituição portuguesa, cf. Fernando Alves Correia. Alguns
conceitos de direito administrativo. Coimbra: Almedina, 2ª edição, 2001, pp. 13-4. Também assim no
ordenamento constitucional argentino, segundo Agustín Gordillo. Este autor destaca a impossibilidade de um
critério exclusivamente material, mas também não poupa críticas a um critério exclusivamente orgânico. Propõe,
assim, um critério que chamou de misto (ob. cit., Tomo 1, pp. IX-3 e 8)
- 21 -
órgãos não exerce, de modo exclusivo, a função que nominalmente lhe corresponde, e sim
tem nela a sua competência principal ou predominante"28.
Logo, é tranqüila a doutrina quando assenta que não há uma separação rígida de
funções. Há, em verdade, uma separação formal, que justificaria um critério formal para
separação de poderes, vale dizer, um critério guiado pelas características que são vinculadas
pelo Direito a uma dada função29. Efetivamente, é inviável a tríplice separação material das
funções do Estado justamente porque não se faz a tripartição de poderes "em atenção às
funções consideradas de naturezas diversas, e sim por precauções governamentais de freios e
contrapresos, ou por exigência do princípio da divisão de trabalho"30.
Com efeito, a definição que se segue pauta-se na diferença de valor formal de cada
ato, ou seja, tem por critério o significado que o ordenamento atribui ao ato. E em atenção ao
valor formal dos atos de cada função, sem pretensões de apresentar um conceito definitivo ou
original, é possível distinguir três funções diferentes para cada um dos Poderes da República.
Assim, os atos do Poder Legislativo, no exercício da função legislativa,
caracterizam-se por inovar inicialmente — vale dizer, a partir exclusivamente da Constituição
— a ordem jurídica, sobrepondo-se às demais manifestações do Estado e submetidos a
controle de constitucionalidade.
Os atos do Poder Judiciário, por sua vez, no exercício da função jurisdicional,
possuem o valor próprio das sentenças, qual seja, de resolver em definitivo as controvérsias
por meio da interpretação do direito.
Por fim, os atos do Poder Executivo ou da Administração Pública31, praticados no
exercício da função administrativa, caracterizam-se pela instrumentalidade à realização dos
28
Ob. cit., p. 4.
29
Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 35-6.
30
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit., p. 31. Diante da impossibilidade de uma tripartição
material, o referido autor propôs uma divisão bipartida. Sua proposta separa função administrativa e
jurisdicional. Ambas realizam o bem comum, mas a primeira objetiva realizar ou integrar a ordem social,
enquanto a segunda objetiva reintegrar e preservar a ordem jurídica (ob. cit., pp. 24-5). Daí sua definição de
função administrativa, que engloba o exercício de atividades legislativas e executivas: "A função administrativa
se expressa através do poder político normativo de estabelecimento da regra jurídica objetiva e do poder político
executivo de sua efetivação. Constituem dois momentos sucessivos e necessários, de planos verticalmente
superpostos, para a realização da utilidade pública de maneira direta e imediata" (ob. cit., p. 27). Já a função
jurisdicional, segundo o mesmo autor, se expressa através do poder jurídico de julgar e tem como objeto o
próprio direito e realiza apenas indiretamente a utilidade pública.
31
Com apoio no texto constitucional, podemos definir que o Poder Executivo é aquele exercido pelo
Presidente da República com o auxílio de seus Ministros de Estado (Constituição, art. 76). Já o termo
Administração, explica José Cretella Júnior, é equívoco. "Pelo critério negativista ou residual, Administração é
toda atividade do Estado que não se reduz à esfera legislativa nem à esfera jurisdicional (...) Pelo critério
subjetivo, formal ou orgânico, Administração é o 'complexo de órgãos' aos quais se confiam funções
administrativas. Pelo critério objetivo, material ou substancial, Administração é 'a atividade concreta' do Estado
dirigida à consecução das necessidades coletivas de modo direto e imediato, ou a atividade pratica que o Estado
desenvolve para tratar de modo imediato dos interesses públicos que lhe competem nos próprios fins"
- 22 -
(Dicionário de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 3ª edição, 1978, pp. 20-1). Contudo, na realidade,
devemos assentar, com apoio nas lições de M. Seabra Fagundes, a inutilidade da diferenciação entre Poder
Executivo e Administração Pública: "Administração Pública é expressão de uso freqüentíssimo na terminologia
do nosso direito significando o conjunto de órgãos do Poder Executivo. É equivalente a este, e ambos equivalem
à expressão governo, no sentido mais corrente. Pretender distingui-lo é criar sutilezas inúteis, sem nenhuma
utilidade prática e sem assento sólido na doutrina" (ob. cit., p. 33, nota 20, os destaques são do original).
32
V., a propósito, Oswaldo Bandeira de Mello (ob. cit., p. 23), que não adota o critério formal de
distinção das funções, mas realça o valor formal dos atos jurídicos e sua força. Ainda sobre essa diferenciação,
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández (ob. cit., pp. 33-5) explicam que as manifestações do
Legislativo são do Povo que esse Parlamento representa. Já no Judiciário, há uma relação direta entre a lei e as
suas decisões (iuris dictio). E na Administração há uma relação de subordinação à lei. Por isso, a Administração
não é representante da comunidade, mas uma organização posta a seu serviço. Também por isso, só a
Administração — e não o Estado — é personificada porque só ela é instrumental.
33
Discricionariedade administrativa e controle judicial... cit., p. 26, o destaque não é do original. O
mesmo autor, em outra oportunidade, já havia salientado que "a Administração e a pessoa administrativa,
autarquia, têm caráter meramente instrumental". O conteúdo do regime jurídico-administrativo... cit., p. 49.
34
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 36, o destaque não é do original.
- 23 -
e graça, a adesão aos tratados internacionais, a declaração de guerra e estado de sítio, bem
como as atividades dos tribunais de contas, entre outras, esbarrariam em dificuldades para se
enquadrar em alguma das funções antes descritas. Essas atividades, segundo Celso Antônio
Bandeira de Mello, comporiam a função política ou de governo, mas alerta o autor para a
cautela de se dissociar completamente essa nomenclatura da impossibilidade de apreciação
judicial da atividade35.
Porém, os critérios propostos neste estudo são capazes de sistematizar a maior parte
da atividade ordinária do Estado. A sistematização proposta revela-se, portanto, extremamente
útil porque explica o sentido ou o significado que o Direito atribui a essas atividades. Os
critérios são, ademais, simples e bastantes para o propósito de nosso estudo.
A proposta também não tem a pretensão de excluir por completo uma diferenciação
material de funções. Não se deve ignorar, quando menos, o valor heurístico da diferenciação
material. Assim, não se pode admitir, com fundamento exclusivamente numa divisão formal
de funções, que um poder deturpe sua função típica e invada o núcleo essencial de função de
outro poder. Assim, explica J. J. Gomes Canotilho36, o princípio da separação de poderes não
admite que, a pretexto de interpenetração entre poderes, se interfira no núcleo essencial dos
limites materiais de competência. Quer-se dizer, a compreensão formal das funções do Estado
apresenta limites: não se admite um transbordamento desse núcleo essencial, embora se
reconheça as dificuldades inerentes à definição do que compõe esse núcleo essencial. Assim,
por exemplo, há um limite para que a Legislação veicule "ato administrativo" na forma de lei,
bem como há um limite para a edição de atos materialmente legislativos na função
administrativa. Qual é esse limite? É aquele que a doutrina de Gomes Canotilho chama de
núcleo essencial da função.
Nesse passo, cumpre esclarecer, parenteticamente, o termo função. O que é função?
É o poder voltado ao atendimento de uma finalidade no interesse de outrem. Esta é a
definição de Celso Antonio Bandeira de Mello: "Existe função quando alguém está investido
no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para
tanto, manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais"37. O
autor citado reafirma seu entendimento em outro trecho para destacar que o poder só se
justifica como meio para o atendimento do dever de satisfazer o interesse alheio: "Para
desincumbir-se de tal dever, o sujeito de função necessita manejar poderes, sem os quais não
35
Curso... cit., pp. 36-7.
36
Ob. cit., pp. 251-2 e 551.
37
Curso... cit., pp. 60.
- 24 -
teria como atender à finalidade que deve perseguir para a satisfação do interesse alheio"38.
Função, portanto, "é conceito que se opõe ao de autonomia da vontade, tal qual concebido no
direito civil"39.
Atualmente, é segura a doutrina ao afirmar que o titular do poder soberano é o povo.
Assim também nossa Constituição: "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição" (art. 1º, parágrafo
único). Logo, o mais apropriado é referirmos às funções e não aos Poderes, quando tratamos
das atividades do Legislativo, do Judiciário e da Administração, muito embora o próprio texto
constitucional consagre a expressão Poderes (Constituição, Título IV, Capítulos I, II e III). A
leitura atenta do texto constitucional, porém, revela que, em verdade, o constituinte apenas
ateve-se às expressões consagradas historicamente, mas efetivamente criou funções, pois os
poderes não estão à disposição de quem os exerce, mas são instrumentais, isto é, são
exercidos no interesses do povo para atingir finalidades públicas. Daí o uso do termo função,
mais apropriado ao nosso contexto constitucional.
Em nosso estudo, pretendemos destacar as relações entre as funções legislativa e
administrativa, especialmente as possibilidades e os limites da produção de atos normativos
pela Administração. Então, cabe destacar algumas das distinções entre as atividades
legislativas e administrativas, bem como a impossibilidade de delegação de poderes em nosso
contexto constitucional.
A característica principal da atividade legislativa é ser tributária tão-somente da
Constituição. Por se tratar do órgão representativo da vontade popular, suas manifestações são
expressões da vontade popular (Constituição, art. 45). Não se pauta, pois, por leis anteriores,
embora também deva ter em conta a correta advertência de Seabra Fagundes: "enquanto não
usar de sua faculdade de alterar o direito ordinário, deve o Legislativo a ele se ater, se houver
de praticar ato de natureza pessoal"40. Deve obediência tão-somente ao texto constitucional,
sujeitando-se, portanto, ao princípio da constitucionalidade41.
38
Idem, p. 86. V., ainda, do mesmo autor, Discricionariedade e controle jurisdicional... cit., pp. 13-4.
Também no sentido indicado, Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 453, e Afonso
R. Queiró, ob. cit., pp. 52-3. Eros Grau também se aproxima dessa definição: "Entenda-se por função estatal a
expressão do poder estatal, enquanto preordenado às finalidades de interesse coletivo e objeto de um dever
jurídico — tomada a expressão poder estatal, então, no seu aspecto material" (ob. cit., p. 237, os destaques são
do original).
39
Carlos Ari Sundfeld. Direito administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 1993, 3ª tiragem,
2003, p. 63.
40
Ob. cit., p. 117, nota 8. Cf., neste estudo, Parte 2, item 1.2., infra.
41
Sobre o princípio da constitucionalidade, v. José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional
positivo. São Paulo: Malheiros, 23ª edição 2004, p. 122, André Ramos Tavares, ob. cit., p. 442, e, ainda, Vicente
- 25 -
Ráo. O direito e a vida dos direitos. Atualizada e anotada por Ovídio Rocha Sandoval. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 6ª edição, 2004, pp. 330-2.
42
Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello indica a impossibilidade de ato discricionário no
exercício da função administrativa em atendimento à dispositivo constitucional quando indica as características
do ato administrativo em sentido amplo, ou seja, um conceito que "Abrange, pois, atos gerais e abstratos, como
costumam ser os regulamentos, as instruções (e muitas resoluções) e atos convencionais, como os chamados
contratos administrativos" (Curso... cit., p. 359).
43
Cf. Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 441.
44
Em sentido contrário, v. Luciano Leite. A partir da preeminência da lei, esse autor identifica uma
preeminência do próprio Legislativo. Ele destaca a impossibilidade de situar no mesmo plano todos os órgãos (O
regulamento no direito brasileiro. Tese de doutorado aprovada pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 1982, pp. 76-7). A alegada preeminência envolve certa confusão entre Legislativo e lei, entre emissor e
ato emitido, respectivamente: "Evidentemente, quem produz um dado ser não se confunde nem total nem
parcialmente com o ser produzido", explica, em outro contexto, Celso Antônio Bandeira de Mello (última ob.
cit., p. 369).
45
Manual... cit., p. 29.
46
Ob. cit., p. 565.
- 26 -
47
Ob. cit., p. 673.
48
Marcelo Figueiredo, ob. cit., p. 14, nota 12. A obra de Sampaio Dora, citada por Marcelo
Figueiredo, é Direito Constitucional. São Paulo: São Paulo: Cia. Nacional, 1953, 3ª ed., pp. 268-9.
- 27 -
49
Cf. Itiberê de Oliveira Rodrigues. Fundamentos dogmático-jurídicos da história do princípio da
legalidade administrativa no Brasil. In: Humberto Ávila (org.). Fundamentos do estado de direito: estudos em
homenagem ao Professor Almiro do Couto e Silva. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 66-7, 71 e 73.
50
Cf. Victor Nunes Leal. Lei... cit., p. 88.
51
V., por exemplo, o disposto no art. 164, § 3º, da Constituição da República: "As disponibilidades de
caixa da União serão depositadas no banco central; as dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos
órgãos ou entidades do Poder Público e das empresas por ele controladas, em instituições financeiras oficiais,
ressalvados os casos previstos em lei" (o grifo não é do original).
- 28 -
52
Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., p. 331.
53
Cabe o registro, ainda que em breve nota, de que a Constituição da República admite uma espécie
de delegação interna corporis em favor das comissões parlamentares para a votação e aprovação de projetos de
leis, possibilidade sem maior relevância para o tema em discussão (Constituição, art. 58, § 2º, I). Cf. Sérgio
Varella Bruna, ob. cit., p. 70.
54
O prazo referido foi prorrogado, sucessivamente, no âmbito do Sistema Financeiro Nacional, por
diversas medidas provisórias, de duvidosa constitucionalidade, até a promulgação da Lei 9.069, de 29.6.1995,
cujo art. 73 prorrogou dito prazo até a promulgação da lei complementar prevista no art. 192 da Constituição da
República. Cf. Eduardo Salomão Neto, ob. cit, p. 111-3. O referido dispositivo constitucional transitório coloca
em pauta, ademais, uma segunda questão: a da razoabilidade da permanência de disposições de delegação de
competência após tantos anos da promulgação da Constituição. Essa questão foi levantada em voto vencido em
julgamento do Supremo Tribunal Federal. Com efeito, o Min. Marco Aurélio, em voto vencido — embora tenha
recebido a adesão do Min. Carlos Britto —, assentou a inconstitucionalidade de disposições da Lei 4.595, de
31.12.1964, que estabelecem a competência do CMN para a fixação das taxas de juros bancárias: "Admita-se que
o artigo 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias não haja delimitado a prorrogação do prazo nele
previsto – de 180 dias. Todavia, há de se dar interpretação ao texto a partir da razoabilidade. Em síntese, não se
coaduna com o citado princípio a sucessividade de leis elastecendo um prazo de 180 dias de forma
indeterminada. Hoje, passados mais de 16 anos da vigência da Carta de 1988, tem-se, ainda a competência do
Conselho Monetário Nacional a partir de extravagante delegação, porquanto contrária aos ditames
constitucionais. Há de se proclamar a supremacia da Carta da República, predicado que apanha não apenas os
preceitos situados no corpo permanente, mas também no Ato das Disposições Transitórias". STF, 1ª Turma,
Recurso Extraordinário 286.963-5/MG, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 24.5.2005, DJ 20.10.2006, por maioria,
trecho do voto vencido. Sobre o art. 25 do ADCT, cf., além da obra já citada, Geraldo Ataliba. Delegação
normativa (limites às competências do CMN e BACEN) [parecer]. Revista de direito público. São Paulo, abr.–jun.,
1991, n. 98, em especial, p. 59. No trecho, o autor destaca, inclusive, que as resoluções do CMN, anteriores à
Constituição da República de 1988, desde que materialmente constitucionais, foram recepcionadas, tese
sufragada pelo acórdão referido, que, assim, dispensou a análise da constitucionalidade da delegação prevista na
Lei 4.595, de 1964, para o julgamento do caso.
- 29 -
55
Função normativa regulatória e o novo princípio da legalidade. In: Agassiz Almeida Filho et
Francisco Bilac Moreira Pinto Filho (org.). Constitucionalismo e estado. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 401-
3.
56
Diário do Congresso Nacional, 24.2.1959, p. 1.296, apud Caio Tácito. As delegações legislativas e
o poder regulamentar (1953). In: Temas de direito público: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 1997,
vol. 1, p. 507, e Comissão... cit., p. 1.078.
57
Delegação de poderes. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro, jul.–set., 1951, vol. 25, p.
3.
58
Delegações legislativas (1946). In: Problemas de direito público. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p.
93.
59
Idem, pp. 98-9.
60
Diário da Assembléia, 17.8.1946, p. 4.176, citado por Caio Tácito. As delegações... cit., p. 507.
- 30 -
61
Ob. cit., Tomo 1, pp. IX-11-13.
- 31 -
62
Cf. Gustavo Binenbojm, ob. cit., pp. 262-7.
- 32 -
63
Idem, pp. 243-4.
64
Caio Tácito. O retorno do pêndulo: serviço público e empresa privada. O exemplo brasileiro.
Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro, out.–dez., 1995, vol. 202, 1995, pp. 1-10, e Agências
reguladoras da administração. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro, jul.–set., 2000, vol. 221, pp. 1-3.
65
Sobre a questão, cf. Gustavo Binenbojm, ob. cit., pp. 248-9 e 268-9. V., ainda, Paulo Todescan
Lessa Mattos. Agências reguladoras e democracia: participação pública e desenvolvimento. In: Calixto Salomão
Filho (coord.). Regulação e desenvolvimento. São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 190-1, Elival da Silva Ramos. A
valorização do processo administrativo. O poder regulamentar e a invalidação dos atos administrativos. In:
Carlos Ari Sundfeld et Guillermo Andrés Muñoz (coord.). As leis de processo administrativo: Lei federal
9.784/99 e Lei paulista 10.177/98. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 77, e Carlos Ari Sundfeld. Introdução às
agências reguladoras. In: Carlos Ari Sundfeld (coord.). Direito administrativo econômico.São Paulo: Malheiros,
2000, 2ª tiragem, 2002, p. 24.
- 33 -
66
Cf. Caio Tácito, última ob. cit., p. 5.
67
Cf. Carlos Ari Sundfeld. Introdução... cit., pp. 19-22.
68
Alexandre Santos de Aragão. Atividades privadas regulamentadas. In: Alexandre Santos de Aragão
(coord.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 221.
69
Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Limites da função reguladora das agências diante do princípio da
legalidade. In: Maria Sylvia Zanella Di Pietro (coord.). Direito regulatório: temas polêmicos. Belo Horizonte:
Ed. Fórum, 2ª edição, 2004, p. 22, e Omissões na atividade regulatória do Estado e responsabilidade civil das
agências reguladoras. In: Juarez Freitas (org.). Responsabilidade civil do Estado. São Paulo: Malheiros, 2006, p.
252.
- 34 -
70
Cf. Carlos Ari Sundfeld. Introdução... cit., pp. 23-5. Também em outros ordenamentos a
independência é tão-só relativa. Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández (ob. cit., pp. 435-6)
explicam que também na Espanha, as chamadas autoridades independentes não possuem uma independência
total. Assim, não há independência em sentido próprio ou mesmo ruptura com a Administração central; há
apenas um reforço da autonomia de gestão. A exceção, no caso espanhol, fica por conta do Banco de España,
cuja autonomia tem fundamento no Tratado da União Européia.
71
O poder normativo das agências reguladoras à luz do princípio da eficiência. In: Alexandre Santos
de Aragão (coord.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, p. 273.
72
Sobre a questão, cf. Marcelo Figueiredo, ob. cit., pp. 252-61. Há autores, inclusive, que não
restringem o termo agência aos órgãos da Administração dotados de independência funcional. É o que faz, por
exemplo, Sérgio Varella Bruna, quando assenta a idéia de agência na função de zelar pelo interesse coletivo e,
assim, amplia o sentido do termo para abrigar qualquer agente público (ob. cit., pp. 44-9 e nota 51).
- 35 -
do Brasil, Conselho Federal de Medicina, por exemplo), dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios, outras autarquias etc.73. O fundamental é procurar encontrar o adequado
assento constitucional dessas hipóteses.
Contudo, parte da doutrina vislumbra, não sem razão, dificuldades no ajuste desse
modelo regulatório ao nosso modelo constitucional de separação de poderes porque essas
agências reguladoras exercerem funções que, materialmente, são assemelhadas às exercidas
pelo Judiciário e pelo Legislativo. Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto sustenta que
essas agências não se ajustam à clássica tripartição de Poderes. Assegura que esses órgãos, no
desempenho da atividade regulatória, "têm de exercitar atividades constitucionalmente
reservadas a cada um dos Poderes"74.
Realmente, a atividade de regulação envolve a decisão de conflitos e a normatização,
ou regulamentação, do setor regulado. Essas são atividades materialmente assemelhadas
àquelas desenvolvidas no exercício da função legislativa e jurisdicional. Essa dificuldade em
enquadrar as agências reguladoras no modelo de tripartição de poderes decorre do apego aos
critérios materiais para definição de funções do Estado. E essa dificuldade ocorrerá não só nas
agências, mas também em outras atividades que materialmente se assemelham à legislação e à
jurisdição, como a expedição de regulamentos e a resolução de processos disciplinares.
No entanto, essas atividades estão longe de possuir o valor formal conferido
constitucionalmente às funções legislativa e jurisdicional. Vale dizer, a decisão do conflito
pela autarquia em regime especial não é sentença e a sua normatização não é lei em sentido
técnico-jurídico (o que não deve levar à conclusão de que tais atos são necessariamente atos
administrativos em sentido estrito. Cf., neste estudo, Parte 2, item 2.3., infra).
Nesse sentido, cabe a referência à doutrina de Agustín Gordillo, quando analisa as
autoridades independentes, no sistema constitucional argentino, assemelhadas às nossas
agências reguladoras. Ainda que sem se fundar numa separação formal das funções do Estado,
mas num critério que chama de misto, Gordillo não vislumbra possibilidade de exercício da
função legislativa fora do Parlamento, bem como da função jurisdicional fora do Judiciário.
Bem por isso, sustenta, sobre as funções de tais autoridades independentes, que: "Su función
no es dictar normas generales con fuerza de ley ni resolver contiendas con autoridad de cosa
73
Cf. Geraldo Ataliba. Poder regulamentar. Delegação de podêres. Previdência dos congressistas.
Jurisdição administrativa [parecer]. Revista de direito público. São Paulo, abr.–jun., 1970, n. 12, p. 85.
74
Regulação... cit., p. 204, e, do mesmo autor, A nova regulação estatal e as agências reguladoras. In:
Carlos Ari Sundfeld (coord.). Direito administrativo econômico. São Paulo: Malheiros, 2000, 2ª tiragem, 2002,
p. 92.
- 36 -
juzgada, por lo tanto no legislan ni juzgan: administran, pero en forma independiente de los
otros poderes del Estado"75.
Cabe anotar que o autor argentino referido é um entusiasta das autoridades
administrativas independentes, assim, longe de ver nessas agências uma ruptura da separação
de poderes, assegura que quanto maior a divisão no exercício do poder, melhor. Sustenta,
ainda, que "los excesos no han venido nunca de manos del poder judicial o legislativo, sino
siempre del ejecutivo; por ello es a éste que se trata de quitar poder y transferirlo a
autoridades independientes de su control"76.
As considerações de Marcelo Figueiredo também indicam a impossibilidade de se
ver sentença e lei nas atividades de regulação. Reconhece, assim, que o poder regulamentar
atribuído às antigas autarquias não é muito diferente do que hoje se faz a pretexto de "poder
regulador". Invoca, assim, textos de Francisco Clementino de San Tiago Dantas e Francisco
Campos, que já em meados do século passado, insistiam na expansão da atividade
regulamentar. Segundo o autor, os argumentos hoje apresentados são os mesmos de outrora,
apenas "um pouco mais envernizados"77. Mais a frente, destaca que não vê qualquer novidade
no termo regulação, pois o Estado sempre foi regulador. Trata-se, na verdade, de um novo
paradigma de intervenção do Estado na economia que reflete a perda de importância do setor
empresarial do Estado78. Daí sua conclusão de que a atuação das agências reguladoras é "um
poder administrativo (função administrativa)"79. Também essa é a compreensão de Egon B.
Moreira: "Trata-se de uma autoridade administrativa, que, por isso mesmo, só pode ser
investida de funções administrativas"80.
A lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro confirma a correção desse entendimento.
A professora explica que a atividade regulatória abrange basicamente os conceitos, já bem
conhecidos de Direito Administrativo, de fomento, de intervenção no domínio econômico e,
em especial, de polícia. Suas colocações evidenciam que não há qualquer exceção à separação
de poderes na capacidade de as agências possuírem competências normativas, de fiscalização
e aplicação de sanções, porque assim também faz a Administração quando exerce seu poder
de polícia. Assim, explica a autora, podem ter se alterado as terminologias para ajustá-las aos
tempos de globalização, as atuações são mais intensas, mas os pressupostos dela ainda são os
75
Ob. cit., Tomo 1, p. IX-33.
76
Idem, p. IX-3.
77
Marcelo Figueiredo, ob. cit., pp. 191-5.
78
Idem, pp. 196-202.
79
Idem, pp. 273, 256 e 264, o destaque é do original.
80
Egon Bockman Moreira. Os limites à competência normativa das agências reguladoras. In:
Alexandre Santos de Aragão (coord.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense,
2006, p. 178.
- 37 -
81
Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Limites... cit., pp. 26-9, e Omissões... cit., pp. 250-3.
82
Ob. cit., p. 269.
83
Omissões... cit., p. 252.
84
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit.., pp. 154 e 159, e Caio Tácito. As agências...
cit., pp. 3-5.
- 38 -
Ainda assim, segundo parte da doutrina, o mandato dos dirigentes dessas agências
deveria se ajustar ao período governamental e garantir a estabilidade apenas no período
governamental em que os dirigentes foram nomeados, ou seja, deveria ser inviável mandato
de dirigente de agência reguladora superior a um mesmo período governamental85. A
propósito, as Súmulas 25 e 47 da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,
respectivamente, dispõem que: "A nomeação a termo não impede a livre demissão, pelo
Presidente da República, de ocupante de cargo de dirigente de autarquia" e "Reitor de
Universidade não é livremente demissível pelo Presidente da República durante o prazo de
sua investidura". Não obstante, o enunciados dessas súmulas, é mister anotar que o Supremo
afastou-se, em decisão cautelar, desse entendimento86. A Corte admitiu, então, a
constitucionalidade de dispositivo de lei estadual mediante o qual se restringiu a possibilidade
de demissão de dirigente de agência reguladora por Governador de Estado. Por se tratar de
decisão cautelar e por maioria não convém imaginar que estão superadas as súmulas referidas,
embora seja bastante revelador da tendência do tribunal, especialmente por se tratar de
decisão em sede de controle abstrato de constitucionalidade.
Outra questão complexa — e que pretendemos enfrentar em tópicos próprios (cf.,
neste estudo, Parte 2, itens 3.1.1. e 3.2., infra) — refere-se à forma de conciliar a atividade
normativa de regulação das agências com a atribuição privativa do Presidente da República
para expedir regulamentos (Constituição, art. 84, IV).
1
Carlos Ari Sundfeld. Direito... cit., p. 9.
2
Le Droit Administratif Allemand, 1903, p. 31 apud Afonso R. Queiró. A teoria... cit. [1ª parte], p. 42.
3
Cf. Afonso R. Queiró, ob. cit., p. 43, que parece discordar dessa tese, mas indica vários autores nesse
sentido.
4
Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Discricionariedade técnica e discricionariedade administrativa. In:
Marcelo Figueiredo et Valmir Pontes Filho (org.). Estudos de direito público em homenagem a Celso Antônio
Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 481, e Gustavo Binembojm, ob. cit., p. 193.
5
Última ob. cit., p. 47. A doutrina, no entanto, também faz distinções claras entre o pensamento de
Montesquieu e Rousseau. É que o primeiro pretendeu repartir o poder político entre vários estratos sociais,
enquanto nas concepções do segundo, a soberania tem um só titular, a nação. Cf. Luís S. Cabral de Moncada, ob.
cit., pp. 119-21.
- 41 -
6
Essa é a hipótese que verificamos quando o Congresso se limita a apreciar as medidas provisórias
editadas pelo Presidente da República. Sobre a questão, Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso... cit., p. 93,
nota 10) lembra que o Governo Fernando Henrique Cardoso, do início de seu mandato até agosto de 1999,
expediu quase três medidas provisórias por dia útil, período no qual o Congresso foi responsável por pouco mais
de um quarto das "leis" promulgadas. Dalmo de Abreu Dallari lembra que o Governo procurou dificultar a
indicação exata do abuso que cometia e, assim, para disfarçar, usou uma técnica de numeração confusa. Ainda
assim, o prof. Dallari estima que foram editadas, em treze anos, cerca de dez mil medidas provisórias (Estado de
direito e direitos fundamentais. In: Marcelo Figueiredo et Valmir Pontes Filho (org.). Estudos de direito público
em homenagem a Celso Antônio Bandeira de Mello. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 231). Para se ter uma idéia
do assombro desse número, basta lembrar que o Presidente Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, em pleno
regime ditatorial editou 8.964 decretos-leis; já durante o regime militar instaurado em 1964, entre outubro de
1965 a março de 1985, foram editados "apenas" 2.272 decretos-leis (cf. Itiberê de Oliveira Rodrigues, ob. cit., p.
78). É necessário registrar, ainda, que a Emenda Constitucional 32, de 11.12.2001, embora tenha reduzido muito,
não foi capaz de coibir a sanha legislativa do Executivo, limitando-a aos seus pressupostos constitucionais de
relevância e urgência. Desde sua promulgação até 11.12.2006, foram editadas trezentas e trinta e duas medidas
provisórias, dessas, vinte e três foram rejeitadas pelo Congresso Nacional, dez perderam a eficácia pelo decurso
do prazo constitucional e outras doze ainda estavam em tramitação, aguardando a apreciação do Congresso
Nacional, as restantes foram convertidas (conforme dados obtidos a partir do sítio da Presidência da República:
<http://www.planalto.gov.br>). Cf., a propósito, as considerações postas neste estudo na Parte 1, item 3.6., infra,
quando se evidencia que, além do abuso de medidas provisórias, o Executivo controla a pauta de votações do
Congresso Nacional.
7
Cf. Simone L. Nunes, ob. cit., p. 49.
8
O Prof. Fábio Comparato, ao comentar a obra de Rousseau, explica a origem da cláusula
constitucional referida, relacionando-a com o fim do feudalismo e, por conseqüência, da cobrança das corvéias:
"As corvéias eram serviços materiais gratuitos, que os servos eram obrigados a prestar aos senhores em cujas
terras viviam, na Europa feudal. A Revolução de 1789 aboliu, com o feudalismo, todas as imposições de
- 42 -
legalidade, que determina que somente com fundamento em lei formal, editada segundo as
regras do processo legislativo, é que se pode validamente impor obrigação ou conceder direito
ao indivíduo. Embora o dispositivo constitucional use a expressão "será obrigado", também os
direitos precisam estar contemplados na lei. É que qualquer direito reconhecido envolverá, ao
menos, a obrigação de todos de respeitar o direito assegurado9.
Celso Antônio Bandeira de Mello, externando um justificável receio do caráter
autoritário da Administração Pública, adverte que no dispositivo constitucional está escrito
"em virtude de lei", e não em virtude de decreto, regulamento, resolução ou portaria10. Essa
correta advertência não significa, entretanto, que esses atos, em hipótese alguma, poderão
impor qualquer obrigação ou deferir direito ao administrado. Vale dizer: o princípio da
legalidade não implica que o administrado não seja obrigado ou não lhe seja deferido direito
algum por atos da Administração porque estes não são leis formais. Basta lembrar que a
executoriedade e a exigibilidade são atributos do ato administrativo discricionário para
verificar que não se deve obediência somente ao que decorre diretamente e exclusivamente do
texto da lei. O princípio determina, tão-só, que esses atos da Administração serão válidos
quando amparados na lei formal. São válidos enquanto são atos de execução da lei, ou são
válidos porque encontram seu fundamento na lei. Ao revés, é inválido — e, portanto, não é
capaz de obrigar a nada — o ato da Administração que, originariamente, ou seja, sem
respaldo em lei anterior, tente impor obrigação ou deferir direito. Nesse sentido, é a proposta
de Eros Grau ao assentar a inexistência de ofensa ao princípio da legalidade de imposição ao
administrado veiculada em regulamento para fazer ou deixar de fazer algo, "desde que isso
decorre, isto é, venha, em virtude de lei"11.
O princípio da legalidade garante, portanto, ao administrado que, antes de qualquer
obrigação que lhe seja imposta pela Administração, primeiro virá a disciplina da lei. Trata-se
de um pressuposto de segurança jurídica, uma vez que não haverá ato da Administração sem
amparo em processo legislativo12. Nesse contexto, fica simples compreender porque o Prof.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello concebia que a ação legislativa e a ação administrativa
prestações pecuniárias ou de serviços, não determinados por lei. Daí a norma, constantemente repetida nas
Constituições, de que 'ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei'
(Constituição Federal brasileira de 1988, art. 5º – II)" (Ética... cit., p. 239, nota 34). Em nossa história
constitucional, só a Constituição de 1937 não contava com cláusula constitucional semelhante à do art. 5º, II, da
Constituição vigente (cf. Itiberê de Oliveira Rodrigues, ob. cit., p. 78), ainda assim era considerada implícita ao
regime de legalidade (cf. Victor Nunes Leal. Lei... cit., p. 61).
9
Nesse sentido, André Ramos Tavares, ob. cit., p. 445.
10
Curso... cit., p. 91.
11
Ob. cit., p. 247.
12
Como já anotamos anteriormente, segundo a doutrina, o ato administrativo que, excepcionalmente,
aplica diretamente a Constituição é ato plenamente vinculado.
- 43 -
(ou executiva) eram duas expressões da mesma faculdade do Estado. Segundo sua proposta,
eram dois momentos sucessivos de uma mesma função: a programação e a execução da
ação13.
A lei, entretanto, não é capaz de ditar todos os delineamentos e minúcias dos direitos
e obrigações que serão vigentes na complexa sociedade contemporânea. Seria exigir o
impossível querer um legislador capaz de ditar todas as regras vigentes na sociedade. Por isso,
muitas vezes, a lei trará um delineamento estrutural da matéria sem, no entanto, ditar as
contingências da matéria, para usar o léxico de Eros Grau. É nesse espaço que atuam a
discricionariedade administrativa e, por conseqüência, o regulamento. A lei, portanto, poderá
autorizar ao administrador a apreciação das circunstâncias — que certamente envolvem juízos
de conveniência e oportunidade política — para ditar a melhor regra para regular o caso, ou
até mesmo, autorizará ao regulamento que dite, de forma geral e abstrata, a melhor forma de
aplicação da lei. Essa atividade, contudo, não se traduzirá em ilegalidade ou exceção ao
princípio da legalidade. É que ela sempre estará voltada ao cumprimento das finalidades
públicas previstas na lei, sob pena de invalidade.
A Constituição, com efeito, em algumas hipóteses, estabelece uma completa e
absoluta reserva em favor da lei. São hipóteses nas quais não admite que a legislação autorize
qualquer juízo da Administração, sequer admite ato normativo da Administração que pretenda
complementar o sentido da lei, eis que até os pormenores deverão estar previstos em lei. São
os casos de reserva absoluta da lei ou de exigência de densificação total da previsão
legislativa, isto é, casos em que toda a disciplina será prevista em lei. São exemplos de
reserva absoluta de lei as garantias constitucionais da exigência de tipicidade penal e
tributária14. Assim também nas hipóteses em que a Constituição afasta a possibilidade de
regulação da matéria pela via da medida provisória, que é ato normativo cujos efeitos são
equiparados aos da lei15, bem como também não admite lei delegada16. Nesses casos, o
13
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit., p. 24.
14
Essas garantias estão previstas nos seguintes dispositivos constitucionais: "Art. 5º, XXXIX — não
há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (...) Art. 150. Sem prejuízo de
outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios: I — exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça".
15
Sobre as medidas provisórias entendemos conveniente a transcrição dos seguintes dispositivos
constitucionais: "Art. 62 (...) § 1º - É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I – relativa a: (...) b)
direito penal, processual penal e processual civil; (...) d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento
e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º; (...) § 2º Medida provisória que
implique instituição ou majoração de impostos, exceto os previstos nos arts. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só
produzirá efeitos no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o último dia daquele em
que foi editada".
16
Constituição da República. Art. 68: "1º. Não serão objeto de delegação os atos de competência
exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal,
- 44 -
a matéria reservada à lei complementar, nem a legislação sobre: I – organização do Poder Judiciário e do
Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; II – nacionalidade, cidadania, direitos individuais,
políticos e eleitorais; III – planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos".
17
J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 728-30.
18
Curso... cit. p. 775, nota 13.
19
A Constituição dispõe que: "Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: I — importação de
produtos estrangeiros; II — exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados; (...), IV —
produtos industrializados; V — operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores
mobiliários; (...) § 1º. É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e limites estabelecidos em lei,
alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V".
- 45 -
uma reserva relativa. Eros Grau conclui, assim, que: "Não tivesse o art. 5º, II, consagrado o
princípio da legalidade em termos somente relativos, e razão não haveria a justificar a sua
inserção no bojo da Constituição, em termos então absolutos, nas hipóteses referidas"20.
Também Gustavo Binenbojm acolhe as distinções entre reserva absoluta e relativa de
lei. Esclarece, ainda, que a Constituição estabelece certas reservas qualificadas de lei no bojo
da teoria dos direitos fundamentais. Com tal designação pretende indicar as hipóteses nas
quais a Constituição não só exige a intervenção legislativa para a restrição de um direito
fundamental, mas lhe determina a finalidade a ser perseguida pelo legislador ao exercer sua
competência. Basta o exemplo do sigilo das comunicações telefônicas (Constituição, art. 5º,
XII): admite-se a restrição ao direito de sigilo, por ordem judicial, na forma prevista em lei,
para fins de investigação criminal ou instrução processual penal21.
Podemos, então, assentar que o princípio da legalidade, enquanto garantia do
administrado, assegura-lhe que qualquer obrigação imposta e qualquer direito reconhecido
por atos da Administração deverão ser precedidos das disposições legais pertinentes, sob pena
de invalidade desses atos. Mas essa garantia não assegura que todo direito e toda obrigação
decorre exclusivamente dos termos do texto da lei formal, eis que o quadro normativo-legal
poderá ser integrado por ato da Administração nas hipóteses em que não há exigência
constitucional de densificação total da previsão legal. Mas cabe anotar que essas hipóteses só
obrigam porque decorrem da lei, porque são alguma forma de execução da lei formal. Essas
primeiras colocações, por óbvio, merecem maiores achegas e, por isso, serão retomadas no
curso do estudo. Agora, é mister dissertar sobre a outra face correlata da legalidade: a
legalidade como exigência e pressuposto de validade da atuação da Administração.
20
Ob. cit., p. 247. V., também nesse sentido, a tese de Sérgio Varella Bruna, ob. cit., pp. 113 e segs.
21
Gustavo Binenbojm, ob. cit., pp. 149-52.
- 46 -
de Direito, pois toda atuação estatal dependerá de autorização legal. A legalidade deve, pois,
para a Administração, ser compreendida como estrita legalidade.
Essa já tradicional forma de compreender a legalidade, como explica Itiberê de
Oliveira Rodrigues, deve-se, em nossa doutrina, provavelmente, aos estudos de João Barbalho
e sua análise da primeira Constituição republicana. Segundo o texto da Constituição de 1891
(art. 72, § 1º), "ninguém pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma cousa senão em
virtude de lei".
"Foi provavelmente por vez primeira João Barbalho quem, ao interpretar esse dispositivo
constitucional [art. 72, § 1º, da Constituição de 1891], estabeleceu como que de modo definitivo no
direito público brasileiro os efeitos do princípio da reserva legal geral não somente em relação aos
indivíduos, mas, também, em relação à Administração Pública. Assim, na pena desse autor: 'ao
individuo é reconhecido o direito de fazer tudo quanto a lei não tem prohibido, e não póde elle ser
obrigado sinão ao que ella lhe impõe. Com a autoridade, porém com funccionarios publicos, dá-se
justamente o contrário, só podem fazer, nessa qualidade, o que a lei autoriza' (JOÃO BARBALHO,
Constituição Federal brasileira, p. 189). Essa interpretação dialética do princípio da reserva legal
geral vem ainda hoje, com ou sem citação de sua fonte original, repetida pela quase unanimidade dos
autores pátrios quando da conceituação do princípio da legalidade"22.
No Estado de Direito, conforme a concepção de legalidade antes exposta, portanto,
sequer a competência discricionária da Administração significa liberdade de atuação ou
possibilidade de prescindir de autorização legislativa. Qualquer comportamento
administrativo sem base legal configura arbítrio intolerável23. Na expressão de Carlos Ari
Sundfeld:
"A ligação da Administração Pública com a lei é, portanto, extensa e inafastável, podendo ser
resumida como segue: a) seus atos não podem contrariar, implícita ou explicitamente, a letra, o
espírito ou a finalidade da lei; b) a Administração não pode agir quando a lei não autorize
expressamente, pelo que nada pode exigir ou vedar aos particulares que não esteja previamente
imposto nela"24.
Com efeito, essa compreensão da legalidade da Administração é necessária porque a
Administração se coloca em posição de supremacia nas suas relações com o particular. É que,
por atuar como instrumento de realização do interesse público, a Administração poderá
invocar a supremacia desse interesse, postando-se em posição de superioridade na relação25.
22
Itiberê de Oliveira Rodrigues, ob. cit., p. 70.
23
Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade e controle jurisdicional... cit., p. 13.
24
Direito... cit., p. 30.
25
Recentes trabalhos doutrinários, no entanto, tentam, de alguma forma, negar o princípio da
supremacia do interesse público. Convém analisar a questão, ainda que brevemente e em nota. Gustavo
Binenbojm (ob. cit., pp. 81 e segs.), por exemplo, constrói sua tese a partir do pressuposto da preeminência dos
direitos fundamentais: "os direitos do homem ocupam posição de proeminência, no plano axiológico, em relação
a qualquer projeto coletivo utilitário; no plano jurídico, tal proeminência decorre de seus status constitucional e
- 47 -
Daí, portanto, a necessidade de sua atuação exigir sempre expressa autorização legal, que
defina esse interesse, e não mera inexistência de proibição de atuação. Por isso, já ensinava
Caio Tácito em excelente síntese "que não é competente quem quer, mas quem pode, segundo
a norma de direito"26.
Também se justifica a legalidade estrita em razão da indisponibilidade do interesse
público pela Administração. Como já enfatizamos, os poderes do Estado são instrumentais,
servem à realização do interesse público fixado em lei. Logo, os órgãos estatais são veículos
da vontade estatal consagrada na lei, só podendo atuar na medida em que a lei lhe autoriza. A
legalidade estrita é, pois, uma "decorrência natural da indisponibilidade do interesse
público"27. É a legalidade, portanto, a "tradução jurídica de um propósito político: o de
submeter os exercentes do poder em concreto — o administrativo — a um quadro normativo
que embargue favoritismos, perseguições e desmandos"28.
da sua condição de cláusulas pétreas da Constituição" (ob. cit., p. 85). Logo, segundo essa concepção, a
prevalência de um dado interesse deve "ser feita mediante uma ponderação proporcional dos interesses em
conflito, conforme as circunstâncias do caso concreto, a partir de parâmetros subjetivos erigidos pela própria
Constituição (...). O que se chamará interesse público é o resultado final desse jogo de ponderações..."
(Binenbojm, ob. cit., p. 86). Já Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto não propõe o abandono do
pressuposto de supremacia do interesse, mas sua colocação em novas perspectivas, eis que já não haveria
monopólio do Estado (Administração) na definição do interesse público e, a partir daí, defende a compreensão
do Estado não como autoridade, mas como mediador (Regulação... cit., em especial, pp. 144 e segs.). Entretanto,
não vemos como negar, no regime de Direito Administrativo brasileiro, a prevalência do interesse público. O que
não se admite, contudo, é a invocação em abstrato e a priori desse interesse pela Administração: a identificação
do interesse público não se faz por meio de sua titularidade (José Roberto Pimenta Oliveira, ob. cit., p. 237), mas
sua qualificação, em cada caso, é oferecida pelo Direito positivo, isto é, pela Constituição e, a partir dela, pelo
legislador e, finalmente, pelos órgãos administrativos, nas hipóteses e no limite de discricionariedade que lhe foi
atribuído pela lei (Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., p. 57). Na síntese de José Roberto Pimenta
Oliveira, "não há interesse público prévio ao Direito, senão como manifestação abstrata insuficiente para
determinar uma solução definida" (ob. cit., p. 240). A tese da invocação da preeminência dos direitos individuais
também deve ser recebida com certa cautela. Não se deve esquecer que o homem está imerso na sociedade,
assim, também é possível outra compreensão dos direitos do homem, como a que faz Léon Duguit: "Não são os
direitos naturais individuais, imprescritíveis do homem que fundamentam a regra de direito que se impõe aos
homens em sociedade. É, pelo contrário, porque existe uma regra de direito que obriga cada homem a
desempenhar um certo papel social, que cada homem goza de direitos — direitos que têm assim por princípio a
missão que devem desempenhar (...) Tem, por conseguinte, o direito de desenvolver sua atividade; mas ao
mesmo tempo, só possui esse direito na medida em que consagra a sua própria atividade à realização da
solidariedade social" (Fundamentos do direito. Trad. e notas de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN
Editora, 2003, p. 21). Ou seja, os direitos fundamentais se justificam na medida em que favorecem toda a
sociedade. O exemplo da função social da propriedade evidencia essa relação. Quanto à possibilidade de
vislumbrar no Estado um mediador, é preciso compreender que as fronteiras entre o Direito Público e Privado
são maleáveis. Não obstante isso, "é impossível adotar-se exclusivamente o regime de coordenação comutativa
entre as partes, porque seria impossível a autoridade, elemento da coexistência social. Tampouco, seria possível
reduzir-se tudo à subordinação, porque seria eliminar a liberdade, elemento definidor do homem, ser racional e
livre, razão da vida social" (Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit., p. 20). Logo, podem se ampliar os
espaços negociados com o Estado, mas sempre haverá uma parcela autoritária e unilateral.
26
O princípio da legalidade: ponto e contraponto (1996). In: Temas de direito público: estudos e
pareceres. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, vol. 1, p. 339.
27
Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit. , p. 64.
28
Idem, p. 89.
- 48 -
29
"Administração de intervenção existe quando a administração intervém na esfera jurídica do
cidadão e limita sua liberdade e propriedade, quando ela, portanto, impõe ao cidadão obrigações e agravamentos.
Administração de prestação, ao contrário, deve ser aceita, quando ela concede ao cidadão prestações ou outras
vantagens. No primeiro caso, a administração apresenta-se ordenadora e, em caso de necessidade, impõe suas
ordens com coerção, no segundo caso, a administração oferece-se auxiliar e fomentadora". Hartmut Maurer, ob.
cit., § 1, 20, p. 8.
30
Cf., nesse sentido, a lição de J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 730-2, e Hartmut Maurer, ob. cit., §
6, 13-6, pp. 129-33.
31
A obra de Santi Romano citada pelos autores espanhóis é Poderes, Potestades in Fragmentos de un
Diccionario Jurídico. trad. esp., Buenos Aires, 1964, pp. 297 e segs.
- 49 -
32
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 449-53.
33
Idem, pp. 446-7. Cf. também Binenbojm, ob. cit., pp. 139-41.
34
Léon Duguit, ob. cit., pp. 51-4.
- 50 -
em lei. Assim, dentro de certos limites a lei concede alguma liberdade à Administração ou
certa discricionariedade, porque incapaz de traçar todos os pressupostos da atividade
administrativa. "O poder discricionário aparece, assim, como necessário elemento na gradual
formação do direito ou das normas jurídicas; é êle que as torna sucessivamente mais
concretas"35.
O Estado de Direito e a discricionariedade não são, portanto, termos necessariamente
contraditórios. É que existem limites naturais e lógicos à viabilidade de se regular toda a
atuação administrativa, daí a lei conceder certa margem legal de apreciação sobre a melhor
forma de atender ao interesse público. A atuação discricionária viabiliza um espaço de
atuação administrativa de escolha e decisões responsáveis36. Mas o reconhecimento de um
espaço de atuação da competência discricionária não significa admitir, especialmente em
nosso ordenamento constitucional, atividade da Administração alheia à lei. Afinal, se a lei
concede a discricionariedade, ela a regula em alguma medida.
Tais considerações implicam também a insindicabilidade total da atividade
administrativa. Ora, se a lei reconhece a Administração como agente competente para a
definição de determinados aspectos não solucionados por ela é porque, sobre tais pontos ― e
somente sobre tais pontos ―, não quer seja possível um controle total dessa atividade. Nesse
sentido, a lição de Luís S. Cabral de Moncada:
"A legalidade é perfeitamente compatível com a só parcial sindicabilidade da actividade
administrativa, o que só favorece, por um lado, uma visão equilibrada e nivelada da divisão de
poderes, colocando a administração no seu lugar certo como agente conformador e concretizador do
direito, vocacionada para uma relativa autonomia perante o legislador e o juiz e por outro lado impede
a redução do Estado-de-Direito ao controlo judicial, esquecendo outros dos seus elementos
constitutivos. A porta de acesso a esta compreensão das coisas é a visão do acto administrativo como
instrumento de uma decisão política querida pelo legislador, a pedir outro tipo de controle para além
do judicial mais consentâneo com a responsabilidade que recai sobre a administração pela tomada de
decisão que o acto corporiza"37.
Segundo o autor português citado, essa parte insindicável não é resquício de períodos
passados de autoritarismo da Administração. Em verdade, tais pontos não-interpeláveis
judicialmente são expressão da maior aptidão funcional da Administração para responder
àquela política definida em lei. Assim, o controle judicial completo não implica o fim da
discricionariedade, mas sua transferência para o Judiciário, que não é órgão funcionalmente
apto e também não é politicamente responsável. Logo, o contrário de discricionariedade,
35
Afonso R. Queiró. A teoria... cit. [1ª parte], p. 44.
36
J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 734.
37
Ob. cit., p. 857.
- 51 -
explica, não é controle judicial, mas densidade da previsão legal. Mas essa previsão completa
da lei sobre todos os aspectos do ato não é possível sempre38.
Não obstante não se caracterize como atividade discricionária — e, portanto, é
atividade totalmente acessível ao controle judicial —, também a atividade de interpretação e
concreção do direito implica, em certo sentido, algum esforço de criação ou recriação do
órgão aplicador, ainda que bastante reduzido e limitado pelo próprio texto da norma e pelo
contexto de aplicação. Aquele que aplica concretamente o texto precisa recriar para si a ordem
legal para tal fim, eis que é incapaz de reproduzir à perfeição a ordem que lhe é trazida pela
lei39. Daí muitos autores afirmarem, com inteira razão, que a atividade administrativa não se
resume à atividade peã ou mecanicista de aplicar a lei. Ou seja, não vale mais aquela
concepção segundo a qual o poder executivo é nulo e que nada pode acrescentar a lei40.
Numa perspectiva histórica41, o princípio da legalidade da administração, explica
Luís S. Cabral de Moncada, "é um corolário do modelo de Estado do liberalismo monárquico-
constitucional, nomeadamente na Alemanha, onde este princípio sofrera uma evolução
particularmente rica de significado e conteúdo"42. Revela-se, nesse período, a preferência
absoluta da lei parlamentar na definição dos direitos subjetivos fundamentais (liberdade e
propriedade), ficando a Administração subordinada. Aliás, a preocupação maior dessa
primeira fase da legalidade era o controle dos atos normativos e não dos atos concretos da
Administração. "Assim é que só na fase final do constitucionalismo monárquico se admitia na
Alemanha a reserva de lei para os actos administrativos em condições análogas às já exigidas
para os actos normativos da administração"43. Mas não se cuidava, ainda, de uma legalidade
estrita; admitia-se, pois, à Administração a escolha dos fins, bastava que a atividade da
Administração não fosse contrária à lei. A lei era, portanto, apenas limite da atuação. Só na
fase mais tardia desse constitucionalismo será concebida a legalidade em seu sentido estrito.
38
Idem, pp. 857-63.
39
V., a propósito, Afonso R. Queiró. A teoria... cit. [1ª parte], p. 61, nota 53, trecho no qual diferencia
essa contribuição individual necessária à interpretação da discricionariedade. Sobre a reconstrução da norma
pelo intérprete, v. também Humberto Ávila. Teoria... cit., pp. 23-6, e Eros Grau, ob. cit., pp. 38 e segs.
40
Cf., nesse sentido, entre outros, Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 21 e segs., Gustavo
Binenbojm, ob. cit., pp. 34-5, Marcelo Figueiredo, ob. cit., pp. 292-3, Caio Tácito. Comissão... cit. p. 1.078, e
Almiro do Couto e Silva. Poder discricionário no direito administrativo brasileiro. Revista de direito
administrativo. Rio de Janeiro, jan.–jun., 1990, vol. 179/180, pp. 51-2.
41
Cabe destacar que não pretendemos discorrer sobre a história da legalidade. O parágrafo é apenas
um breve comentário indicativo do momento histórico em que se passou a exigir da Administração uma
atividade plenamente vinculada à lei. Sobre a evolução histórica do princípio da legalidade administrativa,
remetemos à obra de Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., na qual há um longo capítulo, o primeiro, dedicado
exclusivamente a esse tema. Uma perspectiva histórica da legalidade no Brasil é dada por Itiberê de Oliveira
Rodrigues, ob. cit., em texto no qual analisa o caráter dogmático da legalidade desde o Brasil colônia até a
Constituição de 1967.
42
Ob. cit., p. 70.
43
Idem, p. 72, nota 76.
- 52 -
"Poderá assim afirmar-se que é só neste contexto que a lei é para administração não só o seu
limite mas também o seu pressuposto"44.
Ao fim deste item, não podemos deixar de referir que o ordenamento consagra,
contudo, hipóteses excepcionalíssimas de restrições à legalidade, as quais não admitem
qualquer possibilidade de ampliação, ainda que por interpretação, porque são exceções, e as
exceções são restritivamente interpretadas. Como o princípio da legalidade tem estatura
constitucional, por óbvio, que tais restrições são exclusivamente previstas na Constituição da
República. As hipóteses são as seguintes: as medidas provisórias (Constituição, art. 62), o
estado de defesa (Constituição, art. 136) e o estado de sítio (Constituição, arts. 137 a 139). Em
nenhuma hipótese, contudo, se cogita a inviabilidade de controle jurisdicional para apurar se
presentes os pressupostos constitucionais que autorizam tais medidas45.
44
Idem, p. 79.
45
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 113-23.
46
Manual... cit., p. 30.
47
Idem, p. 83.
48
Idem, p. 82.
- 53 -
49
As leis espanholas se referem expressamente ao costume como fonte de Direito Administrativo (cf.
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 76-7).
50
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 442-3 e 447. Sobre a
compreensão da legalidade no ordenamento espanhol, v. ainda Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 733 e
segs. O antecedente histórico, vale lembrar, da previsão constitucional de submissão da Administração "à lei e ao
Direito" é o art. 20 da Constituição alemã de 1949. Cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Discricionariedade… cit.,
p. 483.
- 54 -
51
Eros R. Grau, ob. cit., pp. 168-74 e 179-90.
52
M. Seabra Fagundes, ob. cit., p. 115, nota 6.
53
Nota de atualização à M. Seabra Fagundes, ob. cit., pp. 118-20, e Gustavo Binenbojm, 2006, pp. 34-
5.
54
Literalmente o seu texto diz: "Barthélemy e Duez (Traité élémentaire de droit administratif, 13ª ed.,
p. 671) fazem sentir a inexistência atual de um sistema de controle da lei em face dos princípios gerais de direito.
Nesse particular, o legislador é discricionário, estando o único controle contra o abuso na sua consciência
jurídica. A lei obriga, ainda que antijurídica" (ob. cit., p. 115, nota 6). Ainda sobre a possibilidade de a
autoridade administrativa superior se recusar a executar o comando da lei, Seabra Fagundes admite essa
possibilidade, desde que fundada em razões de interesse público, mas sendo responsabilizável pelos seus atos
(ob. cit., p. 122, nota 11).
55
Ob. cit., p. 237.
- 55 -
56
Diógenes Gasparini. Poder regulamentar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª edição, 1982, pp.
37-8. Em sentido contrário, Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 1, p. VII-40.
57
Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 10ª edição, 2005, p. 27.
58
O conteúdo do regime jurídico-administrativo... cit., p. 50. Cf., do mesmo autor, Curso... cit., pp.
65-6 e nota 51.
59
Nesse sentido, cf. Gustavo Binenbojm. Diz o seu texto que: "Assim, o agir administrativo pode
encontrar espeque e limite diretamente em regras ou princípios constitucionais, dos quais decorrerão, sem
necessidade de mediação do legislador, ações ou omissões da Administração. Em outros casos, a lei será o
fundamento básico do ato administrativo, mas outros princípios constitucionais, operando em juízos de
ponderação com a legalidade, poderão validar condutas para além ou mesmo contra a disposição legal. Com
- 56 -
efeito, em campos normativos não sujeitos à reserva de lei, a Administração poderá atuar autonomamente, sem
prévia autorização legislativa" (ob. cit., pp. 70-1, os destaques são do original).
60
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 219.
61
Idem, pp. 729-30, 797-8 e 1.144.
62
Idem, p. 1.008.
- 57 -
Não fosse suficiente esse argumento, seria ainda possível alegar que a ordem
hierárquica fundamenta e impõe a primazia de validez da Constituição, no entanto, não
autoriza uma primazia de aplicação63. Logo, em sua atuação, a Administração deve primeiro
aplicar a lei, que é mais concreta e pormenorizada, sem invocar, de imediato, a aplicação de
princípios constitucionais ou direitos fundamentais para desculpabilizar atuações autônomas
ou contrárias à lei, pois, assim, dá sentido à vinculação da Administração à lei, exigência da
própria Constituição da República (art. 37, caput).
E não cabe buscar também fundamento para uma atuação autônoma da
Administração na complexidade de nossa sociedade contemporânea. Já na introdução
destacamos que não há fundamento para esse argumento, pois não há evidência de que a
atuação administrativa seja mais eficiente quando mais tênues são seus vínculos com a
legalidade. A eficácia administrativa e a otimização da função administrativa não passa
necessariamente pelo reconhecimento de funções autônomas da Administração. Ainda
segundo Cabral de Moncada, essas exigências permitem, quando muito, o reconhecimento "de
certas liberdades de actuação no quadro da lei parlamentar, de modo a dar azo a critérios de
eficácia"64. A complexidade das tarefas estatais pede um modelo de cooperação e
coordenação entre os poderes, que procure "retirar da capacidade operativa de cada um dos
poderes estaduais o contributo específico, necessário e insubstituível, para a realização e a
concretização da ordem juridica"65.
Ademais, o princípio democrático (Constituição, art. 1º, parágrafo único) coloca o
Parlamento como órgão de direção política global. Por isso, o princípio ou regime jurídico da
Administração deve ser o da legalidade e não o da ilegalidade ou da autonomia, sob pena de a
Administração usurpar essa posição de direção política do Parlamento66.
Também não há razão para justificar uma atuação autônoma, no exercício de função
administrativa, em nosso ordenamento constitucional, com fundamento na necessidade e na
urgência para a resolução da questão. A Constituição da República já garante ao chefe do
Executivo a possibilidade de editar medida provisória para os casos em que a hipótese
demandar urgência e for relevante para o atendimento do interesse público. Portanto, não há
sequer um critério de necessidade ou de urgência que justifique o distanciamento da
Administração da lei com fundamento no princípio da salus populi suprema lex esto.
63
Sobre tais conceitos, cf. Hartmut Maurer, ob. cit., § 4, 42, pp. 88-90.
64
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 836.
65
Idem, p. 864.
66
V., em sentido semelhante, Marcelo Figueiredo, ob. cit., pp. 132-8.
- 58 -
67
Em sentido contrário, Marcelo Figueiredo, ob. cit., p. 151, que não admite qualquer direito da
Administração negar aplicação à lei inconstitucional sem amparo em decisão judicial.
- 59 -
princípio da motivação. Isso porque somente se poderá apurar se a determinação legal foi
devidamente obedecida, isto é, se atuou de acordo com a finalidade legal com razoabilidade e
proporcionalidade, caso a Administração indique as razões de fato e de direito em virtude das
quais desempenhou sua função. Ainda, em razão da legalidade, concebe-se a ampla
responsabilidade do Estado porque tal responsabilidade implica incorrer em sanções previstas
no caso de infringência à legalidade. Enfim, a legalidade justifica os princípios da
impessoalidade e da publicidade: é tratamento na forma da lei que deve a Administração
dispensar para todos administrados indistintamente, sem favoritismos ou perseguições,
ademais sem transparência não há como apurar a estrita obediência à lei. Todas essas
considerações têm por base a doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello68.
Além desses princípios jurídicos expressamente referidos, não podemos deixar de
assentar que a legalidade implica, necessariamente, o controle de legalidade por um Judiciário
independente. É que, como explica Montesquieu, ao tratar dos meios de se favorecer a
democracia, "Nada dá maior força às leis do que a extrema subordinação dos cidadãos aos
magistrados"69. O princípio da legalidade justifica, portanto, o princípio da inafastabilidade do
controle judicial, seu correlato (Constituição, art. 5º, XXXV). Sem controle jurisdicional, a
garantia da legalidade é inócua porque faleceria competência a um órgão para verificar o
cumprimento do princípio da legalidade70. Também Marcello Caetano destaca que em todos
os países onde vige o princípio da legalidade estão previstos meios específicos de garantir sua
observância71. Sem possibilidade de apelação não vige o princípio da legalidade. Não por
outra razão, Seabra Fagundes sustentou com pertinência a impossibilidade de violação da
legalidade pelo Judiciário, pois a ordem jurídica vige conforme ele a define72.
68
Curso... cit., pp. 66-9 e 88-103 e 112.
69
Ob. cit. Livro V, Capítulo 7, p. 61.
70
André Ramos Tavares, ob. cit., p. 444.
71
Marcello Caetano. Princípios fundamentais do direito administrativo. Coimbra: Almedina, 1977, 2ª
reimpressão, 2003, p. 440.
72
Ob. cit., p. 117, nota 8.
73
Eros Grau, ob. cit., p. 168.
- 60 -
seqüência. Assim, nesta parte de nosso estudo, serão indicados, ainda que de forma breve,
algumas das críticas proferidas pela doutrina contra a legalidade. A intenção é apenas ressaltar
algumas das insuficiências das leis formais.
Nesse sentido, um dos pontos de destaque é o problema da representação
parlamentar. A deficiência nessa representação pode dar à lei a condição de instrumento de
legitimação de uma classe dominante. A propósito, Fábio Comparato, ao estudar a obra de J.
J. Rousseau, destaca a deturpação da obra desse pensador como fator de legitimação da classe
dominante. Funcionaria, assim, a legalidade como forma de dominação legitimada da classe
burguesa. Esse é um dos paradoxos da obra de Rousseau:
"Enfim, um não menor paradoxo foi o fato de que a concepção social igualitária desse inimigo
figadal da civilização burguesa tenha sido adotada pela burguesia triunfante. Ela serviu não só como
justificação teórica para a supressão dos antigos privilégios estamentais, que a prejudicavam, mas
também para a instituição de um regime de igualdade puramente formal dos cidadãos, perante uma lei
que, votada não pelo povo, mas por seus pretensos representantes, em lugar de exprimir a vontade
geral, nada mais faz do que consagrar o interesse e a vontade particular da classe dominante"74.
Diante da lei formal, portanto, muitas vezes, somos levados a questionar sua
legitimidade como manifestação soberana do Estado, especialmente quando os parlamentos
não funcionam, efetivamente, como caixa de ressonância dos anseios populares75. Ora, se a lei
formal já não pode ser qualificada de expressão da vontade geral, fácil concluir pela
insuficiência da lei formal para a produção de resultados socialmente desejados76.
Mas ainda pior é a constatação de que a lei pode veicular injustiças e servir de
fundamento à barbárie: uma concepção exclusivamente formalista sobre a validade das leis
acabou por legitimar as maiores iniqüidades do século passado. Com efeito, só a compreensão
de que a validade da lei independe de seu conteúdo poderia autorizar o regime nacional-
socialista na Alemanha. Tais ocorrências, implicaram a dessacralização da lei formal77. Fábio
K. Comparato explica que aos positivistas:
"Nunca lhes interessou o conteúdo moral ou político das normas de direito: se elas servem para o
funcionamento de um Estado democrático ou totalitário, se elas legitimam ou não a criação de
74
Ética... cit., pp. 268-9.
75
Não pretendemos aqui defender a democracia direta como única forma de poder legítimo. Não só
pela inviabilidade da proposta em países de proporções continentais (cf. Fábio K. Comparato, Ética... cit., pp.
263-4). A proposta de Rousseau, ainda, pressupõe uma completa cisão entre vontade geral e individual, aquela é
redutível a esta, "o que tem valido a Rousseau, como se sabe, a sua identificação como pai do totalitarismo
moderno" (Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 116-7). Ademais, como anota Bruce Ackerman, além de
inviável, a proposta não é factível também porque o cidadão moderno tem coisas mais "interessantes" a fazer do
que discutir questões de interesse público: "Whatever may have been true in Athens, modern citizens generally
have better things to do with their time than to debate public issues in the forum (even when the forum is the
Internet)" (ob. cit., p. 664).
76
Cf. Eros Grau, ob. cit., pp. 110 e segs.
77
Cf. Gustavo Binenbojm, ob. cit., pp. 128-9.
- 61 -
quaisquer instituições, ou a prática de quaisquer atos, ainda que contrários à dignidade da pessoa
humana"78.
Não se questiona, pois, a moralidade ou a justiça de uma lei, simplesmente ela vale
porque é reconhecida como norma pelo ordenamento jurídico. Vale o aspecto formal, não o
aspecto substancial.
Esse entendimento acerca do positivismo jurídico é confirmado pela gravidade dessa
conhecida observação de Hans Kelsen que não podemos deixar de reproduzir:
"Segundo o Direito dos Estados totalitários, o governo tem o poder para encerrar em campos de
concentração, forçar quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça
indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é
considerá-las como situando-se fora da ordem jurídica desses Estados"79.
No entanto, as conseqüências nefastas de um Estado criminoso, como o Estado
nacional-socialista alemão, inviabilizaram a continuidade desse processo de completa
desconsideração acerca da justiça ou da moralidade da lei80. É o que nos explica Chaïm
Perelman. Segundo este autor, o raciocínio jurídico pós-1945 já compreende que a
conformidade exterior às leis não esgota a justiça: o direito, portanto, não se identifica com a
lei. Esclarece, entretanto, que não se trata de um retorno às concepções de direito natural, mas
certamente de uma reação ao positivismo jurídico81.
Também Eros Grau registra um resgate da ética no universo jurídico. Ele destaca que
o direito formal, quando dissociado de uma justiça substancial, produziu resultados
socialmente insatisfatórios. Daí um clamor da sociedade pelo ético. Contudo, para evitar
particularismos — afinal, não se deve simplesmente abrir mão da legalidade que é um
patrimônio da humanidade —, propõe uma ética de princípios jurídicos, já que não há uma
ética universalmente válida82.
78
O procedimento administrativo e o procedimento judicial [parecer]. Boletim dos procuradores da
república. Brasília, abril, 2002, ano IV, n. 48, p. 11.
79
Hans Kelsen. Teoria pura do direito (1960). Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 6ª edição, 1998, p. 44.
80
Fábio Comparato explica que os acontecimentos do pós-guerra implicaram o fim do Estado Liberal
clássico, cabendo ao Estado garantir aos cidadãos a inviolabilidade de sua dignidade: "A discussão teórica
[refere-se ao formalismo do positivismo jurídico] começou a mudar, após a 2ª Guerra Mundial, com o advento
do Estado Social, em substituição ao Estado Liberal Clássico. As ruínas da guerra e a descoberta da situação de
subdesenvolvimento em que jaziam os latino-americanos, asiáticos, e africanos mostrou, com irrefutável
persuasão, que as funções do Estado não podiam limitar-se, apenas, à manutenção da ordem e da segurança (law
and order), ficando os particulares, na sociedade civil, submetidos à lei do mais forte e do mais rico. Percebeu-se,
com clareza, que a reconstrução do pós-guerra e o desenvolvimento nacional exigiam um Estado cuja função
legitimadora não é simplesmente a manutenção da ordem pública e da segurança externa, mas a realização de
políticas públicas ou programas de ação governamental, visando a dar a todos e a cada um em particular o que é
próprio de todo ser humano: a dignidade da pessoa" (O procedimento... cit., p. 11).
81
Chaïm Perelman. Lógica jurídica: nova retórica (1979). Trad. de Vergínia K. Puppi. São Paulo:
Martins Fontes, 2004, 2ª edição, pp. 95 e segs.
82
Eros Grau, ob. cit., pp. 110 e segs.
- 62 -
83
Gustavo Binenbojm, ob. cit., pp. 135-6.
84
Cf. EXECUTIVO define agenda legislativa do Congresso. Folha de S. Paulo. São Paulo, 28.9.2006,
caderno Congresso Eleições 2006, p. 2.
- 63 -
85
É importante encarecer essa procedimentalização dos atos da Administração como uma faceta das
exigências da legalidade, especialmente hoje em que se exige uma atuação bastante dinâmica da Administração.
Cf., neste estudo, Parte 2, item 4.1.3., infra. Pertinente, no caso, a lembrança dessa advertência de Marcello
Caetano: "Aquilo que tantas vezes exaspera o público na burocracia — a lentidão das resoluções — pode ser
apenas degenerescência das cautelas úteis exigidas a bem da ponderação das decisões e do respeito dos
interesses de terceiros. Todos quantos possuem experiência política e administrativa conhecem os riscos das
resoluções expeditas, tomadas no calor do entusiasmo de pôr termo a uma demanda, de rematar, num gesto de
pública eficiência, uma questão que se arrasta...Vai-se a ver depois e havia razões sérias a considerar, que o
desejo de atender reclamações veementes — e quantas vezes pérfidas — num contacto entre os governantes e o
público, deixou injustamente de lado. Por isso, se não é de alimentar a lentidão dos métodos da burocracia,
também não devemos condenar sumariamente os cuidados, as cautelas e o formalismo com que a lei e a praxe
mandam ter em conta os graves interesses públicos e privados tantas vezes em risco nas decisões
administrativas" (Princípios... cit., p. 407).
86
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 21-6.
87
Exemplar, nesse sentido, é o art. 105, letra a, da Constituição da Espanha. Esse dispositivo exige a
audiência dos cidadãos afetados pelas disposições regulamentares durante o seu procedimento de elaboração:
"La ley regulará: a) La audiencia de los ciudadanos, directamente o a través de las organizaciones y asociaciones
reconocidas por la ley, en el procedimiento de elaboración de las disposiciones administrativas que les afecten".
- 64 -
brasileira, abre espaço para o autoritarismo pela Administração, exigindo maior cautela de
nossos legisladores na concessão de maior discricionariedade administrativa.
Entre nós, a necessidade de oitiva dos administrados e de efetiva participação
popular, especialmente nas agências reguladoras, foi reclamada, entre outros, por Floriano
Peixoto de Azevedo Marques Neto88, Sérgio Varella Bruna89 e Paulo Todescan Lessa
Mattos90. Este autor, a propósito, realizou uma pesquisa sobre as consultas públicas realizadas
pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) no período de 1997 a 2000, na qual
constatou que, se por um lado, houve relevante aumento da utilização das consultas públicas,
por outro lado, houve pouca participação de segmentos da sociedade civil que não
representassem os interesses das empresas de telecomunicação91.
Destarte, é preciso, ainda, cuidado para não tornar a consulta pública em mecanismo
de captura do regulador. As alternativas ao princípio da legalidade, em nossa realidade,
portanto, não autorizam uma dispensa da legalidade.
Analisados os princípios da legalidade e da separação de poderes, seguimos com o
estudo para tratar, de forma mais específica, do tema da atividade normativa da
Administração Pública.
88
Ob. cit., pp. 206 e segs.
89
Ob. cit., passim.
90
Ob. cit., passim.
91
Idem, p. 228. A pesquisa de Egon B. Moreira. Os limites... cit., pp. 203 e segs., em três diferentes
agências (ANEEL, ANATEL e ANVISA), também detectou que os procedimentos participativos promovidos pelas
agências vêm provocando uma "democratização seletiva".
PARTE 2: A LEI, O REGULAMENTO, O ATO
ADMINISTRATIVO E AS EXIGÊNCIAS DA
LEGALIDADE
1
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello. Princípios... cit., pp. 236-7.
- 66 -
2
Cf. Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández. Curso... cit., p. 116.
3
Cf. M. Seabra Fagundes. O controle... cit., p. 25-6, e Hartmut Maurer. Direito... cit., § 4, 8, p. 69.
4
Cf. André Ramos Tavares. Curso... cit., p. 904.
5
Cf. M. Seabra Fagundes, ob. cit., p. 22, e Hartmut Maurer, idem, ibidem.
6
André Ramos Tavares, ob. cit., p. 905.
7
J. J. Gomes Canotilho. Direito... cit., p. 715.
8
Ob. cit., pp. 236-7.
- 67 -
realidade, o sentido orgânico de lei. Mas é a identificação da lei pelo seu conteúdo formal, ou
seja, o sentido material de lei, que tem justificado uma aproximação entre regulamento e lei.
Essa aproximação, contudo, não é desejável.
A exigência de generalidade e abstração da lei explica-se historicamente pela força
do pensamento liberal em sua luta contra os privilégios então existentes. É revelador da força
da lei como garantia à livre vontade individual. Entretanto, no Estado Social a lei não cumpre
apenas a função de garantia, mas é instrumento de implantação de política pública: a lei não
perde sua função de garantia, mas ganha novas funções9. Embora boa parte da doutrina ainda
se mantenha apegada às idéias de abstração e generalidade, deve-se salientar que em nosso
sistema não se admitem que sejam criados deveres senão em virtude de leis formalmente
aprovadas, o que diminui a importância da diferenciação formal e material de lei10. A
tendência hoje é uma conceituação de lei vazia no plano material, enfatizando-se a
caracterização da lei por meio de sua forma, procedimento e força jurídica11.
9
Luís S. Cabral de Moncada. Lei... cit., pp. 941-2.
10
Cf., nesse sentido, André Ramos Tavares, ob. cit., p. 905.
11
Cf., nesse sentido, J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 553.
12
Cf. J. J. Gomes Canotilho, pp. 717-8, Almiro do Couto e Silva. Princípios... cit., pp. 53-4, e Eros
Grau. O direito... cit., pp. 254-5.
- 68 -
que essa lei equivale a um ato administrativo comum. Basta lembrar que a Administração
pública poderia — caso se tratasse de um ato administrativo ordinário — revogá-lo fundada
exclusivamente em razões de conveniência e oportunidade. No entanto, como o ato tem a
forma de lei, somente à lei cabe assim fazer. Não se cogita de revogação de ato com forma de
lei por outra forma que não a lei formal.
Portanto, não se pode determinar a priori qual é o conteúdo possível da lei. Nesse
sentido, forma e conteúdo de lei se identificam. Não há conteúdo ou matéria de lei sem forma
de lei13. Vale advertir que a Constituição de 1988 estabelece a competência do Congresso
Nacional para legislar sobre todas as matérias de competência da União. Não se pode falar,
portanto, de um conteúdo reservado à lei formal, ou então, se deve falar em reserva total em
seu favor.
Chegar a essas conclusões implica admitir a inexistência de limites à pratica de atos
administrativos — concretos, portanto — pelo Legislativo? A resposta deve ser negativa sob
pena de incidirmos em uma tirania legislativa, pois não estaria mais esse Poder obrigado a
criar regras iguais para todos.
A questão dos limites à pratica de atos administrativos via legislação formal foi
analisada por Francisco Clementino de San Tiago Dantas, em estudo no qual, inspirado pela
regra do due process of law norte-americano, conclui pela vedação da prática desses atos em
dissonância com as leis de regência da matéria. Em meados do século passado, San Tiago
Dantas já se preocupava com a intervenção do Estado nas relações econômicas e a
necessidade da expedição de atos legislativos de conteúdo concreto. Assim, asseverou a
necessidade de reconhecermos (a) a natureza ilimitada da atividade legislativa ou, então, (b)
firmamos a "doutrina sobre os limites constitucionais da função legislativa, excluindo dela as
leis que não podem ser feitas, e que, se o forem, não podem lograr aplicação"14.
Demonstrou, assim, a impossibilidade de leis formais com conteúdo concreto
dissonantes da regra geral prevista para a matéria, tudo por força da consagração da igualdade
perante a lei, nota do Estado de Direito. Vale conhecer trecho de seu estudo:
"Quer isto dizer que ao parlamento é lícito reservar para sua esfera de competência certos atos
administrativos, como a declaração de utilidade pública e todos os outros que dizem com a sua
competência constitucional relacionada com a gestação financeira [refere-se às leis orçamentárias].
13
Nesse sentido, mas referindo-se ao ordenamento constitucional espanhol que, contudo, se aplica no
ponto também ao nosso ordenamento constitucional, v. Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández,
ob. cit., pp. 124-5.
14
Francisco Clementino de San Tiago Dantas. Igualdade perante a lei e due process of law (1948). In:
Problemas de direito positivo: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1ª edição, 1953, 2ª edição, 2004, p.
24, os destaques são do original.
- 69 -
Esses atos administrativos são formalmente leis, mas sendo atos in concretu, dependem para sua
validade de serem conformes as leis gerais preexistentes. Se assim não fosse, estaria atingido o
princípio da igualdade, e do mesmo passo se comoveriam os fundamentos do Estado de Direito"15.
Em outra oportunidade, San Tiago Dantas declarou a dificuldade para análise dessa
matéria, fruto da distinção entre leis formais e materiais. Se o ato, porque revestido na forma
de lei, obriga a todos e imobiliza o Judiciário, "a ordem jurídica não disporá de critérios
dogmáticos capazes de repelir os atos de arbítrio que atribuam a um o que a todos é vedado ou
que contrariamente privem alguém do que a lei geral manda reconhecer a todos"16. Encontrou
apoio ao seu entendimento nas lições de Carl Schmitt17, que destacou a necessidade de se
vincular o legislador às leis antes produzidas para a prática de atos concretos, pois a
inexistência dessa vinculação tornaria sem sentido a legalidade para aqueles que estão
autorizados a fazer "leis arbitrárias"18.
É com fundamento nessas considerações de Santiago Dantas que M. Seabra
Fagundes vai destacar a impossibilidade de o Legislativo abster-se do respeito às normas
abstratas e gerais na expedição de lei de sentido individual. Se assim não fosse, conclui
Seabra Fagundes, os direitos subjetivos do administrado ficariam "à mercê de restrições e
discriminações capazes de mutilá-lo de morte, ou mesmo extingui-lo"19.
Também no entendimento de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello "afigura-se
inconstitucional qualquer lei individual, isto é, em favor ou contra alguém
determinadamente"20. Tal possibilidade feriria o princípio da igualdade de todos perante a lei.
Assevera, assim, que será perfeitamente constitucional a lei cujo conteúdo formal revele
norma geral, abstrata e impessoal. A Constituição portuguesa de 1976, bem por isso,
estabelece no seu art. 18.3 que "As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de
revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e
o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais".
Não se deve deixar de anotar que o mesmo argumento se aplica, com maior razão, às
medidas provisórias expedidas pelo Poder Executivo com conteúdo concreto. Não se lhes
15
Idem, p. 40
16
Francisco Clementino de San Tiago Dantas. Ato administrativo sob forma de lei [parecer]. In:
Problemas de direito positivo: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1ª edição, 1953, 2ª edição, 2004, p.
55.
17
A obra de Carl Schmitt citada por F. C. de San Tiago Dantas é Teoría de la Constitución, ed. Rev.
Dir. Privado, § 13, pp. 161-2.
18
F. C. de San Tiago Dantas. Igualdade... cit., p. 41, e Ato... cit., pp. 55-6. Cf., ainda, também com a
invocação da obra de Carl Schmitt, Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Estado..., pp. 26-7, trecho no qual sustenta
que a igualdade se impõe como limite ao próprio legislador.
19
M. Seabra Fagundes, ob. cit., p. 257, nota 11.
20
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit., p. 244.
- 70 -
21
F. C. de San Tiago Dantas. Igualdade... cit., pp. 43-4.
22
Celso Antônio Bandeira de Mello. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo:
Malheiros, 3ª edição, 1993, 8ª tiragem, 2000, pp. 37-8 e 47.
23
Ob. cit., p. 252 e nota 17, os destaques são do original. Na nota o autor português destaca que se
deve ter em conta justamente a vigorosa polêmica no direito constitucional brasileiro acerca das medidas
provisórias.
- 71 -
Com efeito, como bem explica outro autor português, cada vez que o legislador desce
às minúcias do caso concreto ele perde parte de sua própria condição de legislador, o que
explica porque, muitas vezes, não completa totalmente o quadro normativo, e, assim, entrega
certa discricionariedade à Administração. Vale dizer, o legislador pode eliminar toda a
discricionariedade da Administração, "mas para isso tem de sacrificar a sua própria qualidade
de legislador"24.
Já indicamos nesse estudo que não existe uma reserva de matérias entregue à
deliberação da Administração. Não existe, portanto, uma reserva dogmática da
Administração, o que não significa dizer que, com fundamento numa distinção material de
funções, não se possa sustentar uma reserva funcional da Administração Pública ou do
Executivo. A lição de Luís Cabral de Moncada explica a compreensão dessa reserva funcional
de administração, que não configura uma área livre da intervenção legislativa, mas defere uma
preferência à Administração no trato da questão:
"A não existência de limites institucionais à competência parlamentar não invalida, porém, que
possam existir limites de outra natureza, desde logo funcionais e que a partir deles se não possa
construir um novo espaço de manobra do executivo, dentro, claro está, das estruturas constitucionais
actuais e só para elas valendo. É por esta via que o problema parece capaz de apresentar soluções: se o
parlamento pode efectivamente legislar sobre qualquer assunto, isso não significa que ele o deva
fazer, a querer respeitar o estatuto constitucional do executivo, dotado claramente de um âmbito
razoavelmente alargado de competência, que lhe não estão reservadas, no sentido formal em que o
estão a favor do parlamento, mas que cabem no raio de acção do executivo, mas que estão
funcionalmente adstritas"25.
Com efeito, se não é possível declarar que determinada matéria está dogmática ou
constitucionalmente reservada à deliberação discricionária do Executivo, isso não significa
que o Legislativo é livre para aniquilar, mediante a reiterada prática de atos concretos, o
núcleo essencial da função executiva. Isso, por óbvio, gera inconstitucionalidade por
infringência à separação de poderes, eis que o caso infringe o núcleo essencial da função
típica da Administração e equivale à aniquilação de um órgão de soberania por outro.
É certo também que a hipótese é de difícil caracterização, porque o conteúdo
específico da reserva funcional de administração depende justamente do que a legislação lhe
defere. A hipótese, portanto, só se verificaria numa situação de anormalidade constitucional,
mas fica delineada a hipótese, ao menos no plano abstrato. Também não se pode imaginar —
e fique isso bem claro — que caiba ao Executivo o direito de conter a densidade da previsão
24
Afonso R. Queiró. A teoria... cit. [1ª parte], p. 59.
25
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 370.
- 72 -
legislativa26, afinal é a conveniência da lei que fixa os limites do que cabe à função
administrativa: o que se justifica, portanto, é só uma diretriz de autocontenção do Legislativo.
A conclusão, portanto, é no sentido de que a prática reiterada e contínua de atos
concretos pelo Legislativo encontra limites não só no princípio da igualdade, mas também
numa compreensão material do princípio da separação de poderes. Esta hipótese, contudo,
não garante nenhuma espécie de reserva dogmática ou formal, mas configura mera diretriz de
autocontenção do Legislativo. Logo, cuida-se de uma reserva relativa e precária porque
depende do quadro legal. Em síntese: não é uma reserva propriamente dita.
26
Cf., nesse sentido, J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 739-40.
- 73 -
regulamento deve ser compatível com a lei. Trata-se do princípio da preferência da lei"27. Em
verdade, o princípio da primazia da lei tem um alcance mais amplo do que a relação entre a lei
e o regulamento. Assim, esse princípio determina a primazia ou supremacia da lei sobre todos
os demais atos infraconstitucionais, dentre os quais o regulamento. Referido princípio implica
uma dimensão positiva e outra negativa em sua compreensão: a primeira dimensão impõe a
observância da lei e a segunda estabelece a proibição de violação da lei28. Assim, dito
princípio determina não só que a Administração não deve contrariar a lei, mas também que
não deverá substituir os comandos da lei por suas próprias decisões: deve sempre atuar em
conformidade da lei.
Advertimos, mais uma vez, que todas as matérias de competência da União estão
reservadas à lei. A contrario sensu, não há em nosso ordenamento constitucional uma zona de
reserva em favor do regulamento. Logo, o regulamento não pode pretender prevalecer sobre a
lei em nenhuma circunstância. O regulamento é limitado e condicionado pela lei. O
regulamento pode, pois, complementá-la, mas não pode contrariá-la, excluí-la, limitá-la ou
revogá-la. O contrário, sim, pode se verificar. É usual a afirmação de que o campo próprio do
regulamento são as questões internas à Administração, mas mesmo nessa hipótese, a lei pode
disciplinar por completo a questão retirando toda a possibilidade regulamentar da
Administração.
Para Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández essa primazia ou
preferência se justifica porque a lei é a manifestação da comunidade, enquanto o regulamento
é expressão da vontade subalterna da Administração. Assim, essa subordinação do
regulamento revela o caráter instrumental da Administração e de seus produtos normativos
em relação ao soberano, isto é, ao povo, cujo representante é o Parlamento. Assim como no
Brasil, na Espanha não há qualquer reserva em favor do regulamento, o que também autoriza
a conclusão desses autores no sentido de que a lei pode disciplinar toda a matéria, retirando
todas as possibilidades antes deixadas ao regulamento29.
27
André Ramos Tavares, ob. cit., p. 447.
28
J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 722.
29
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 238.
- 74 -
O princípio da reserva material da lei estabelece que somente a lei pode regular
determinadas matérias. O principio se desenvolve com amparo na doutrina filosófica de John
Locke e J. J. Rousseau para assegurar que a liberdade e a propriedade só serão limitadas por
meio de lei formal. As limitações à liberdade e à propriedade somente serão possíveis,
portanto, por força da vontade geral30.
Sobre o ponto vale lembrar o cuidado em não confundir limitações à liberdade e à
propriedade com limitações ao direito de liberdade e ao direito de propriedade. Como explica
Celso Antônio Bandeira de Mello, com apoio em Alessi31, os direitos são expressões da
configuração que o sistema normativo confere à liberdade e à propriedade. Descabe, portanto,
falar em limitações aos direitos. As limitações ao exercício da liberdade e da propriedade
correspondem à configuração de sua área de atuação legítima32. As leis, portanto, delineiam o
âmbito da liberdade e da propriedade, dando forma ou dimensão aos direitos. Bem assim os
atos administrativos e regulamentos de polícia, ao executarem tais leis, não devem interferir
nos direitos à liberdade e à propriedade, mas se limitam a ajustar o exercício do direito aos
seus limites legais33.
Em nosso ordenamento constitucional, contudo, a questão da reserva tem contornos
mais amplos que os antes assinalados, não se restringindo, pois, exclusivamente à questão da
liberdade e da propriedade. É que todas as matérias de competência da União já estão
reservadas à lei formal por força do art. 48 da Constituição da República, que estabelece a
competência do Congresso Nacional para dispor sobre todas as matérias da competência da
União. Não há limites materiais à atuação da legislação: há reserva total da lei. Essa forma de
reserva, aliás, segundo o registro de Agustín Gordillo34, é uma característica dos
ordenamentos jurídicos latino-americanos. Ademais, essa espécie de reserva é
tradicionalíssima em nosso direito. É o que nos explica Itiberê de Oliveira Rodrigues. Assim,
30
Idem, p. 241-2.
31
A obra de Renato Alessi citada por Celso Antônio Bandeira de Mello é Sistema Istituzionale del
Diritto Amministrativo Italiano, 1960, p. 533.
32
Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 768-71.
33
Não se pode deixar de anotar, ainda que em breve nota, que a expressão poder de polícia é objeto de
críticas por parte da doutrina. Uma das mais conhecidas, em nossa doutrina, é a de Carlos Ari Sundfeld. Sua
proposta passa pela substituição da noção de poder de polícia pela de administração ordenadora, o que não se
trata apenas de uma mudança de rótulos, mas de postura metodológica (Direito...cit., pp 17-8). Assim, seria
preciso compreender que a Administração não possui a faculdade de limitar os direitos individuais, mas apenas
disciplina a vida privada como forma de aplicação da lei. Daí o conceito de Administração ordenadora: "é a
parcela da função administrativa desenvolvida com o uso de poder de autoridade, para disciplinar, nos termos e
para os fins da lei, os comportamentos dos particulares no campo de atividades que lhes é próprio" (Idem, p. 20).
34
Tratado...cit., Tomo 1, p. VII-7.
- 75 -
35
Itiberê de Oliveira Rodrigues, ob. cit., p. 65.
36
Cf. Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 251.
37
Cf. J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 836-7 e 841-2.
38
Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei 4.657, de 4.9.1942): "Art. 2º. Não se destinando a
vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue" (o destaque não é do original).
39
Cf., nesse sentido, Victor Nunes Leal. Lei... cit., pp. 81-2 e nota 22.
- 76 -
O regulamento não é uma lei em sentido material. A lei é inovadora, suprema, desde
que obedecido o princípio da constitucionalidade, e representa a vontade da comunidade. O
regulamento não representa a vontade da comunidade pela simples razão de que a
Administração não representa a comunidade, mas é uma organização a serviço da
comunidade. Enquanto a lei tem esse caráter inovador completo, o regulamento é executivo
ou complementar ao sentido da lei. A lei é suprema e inovadora, já o regulamento é inferior,
subalterno, secundário e complementar, gozando exclusivamente da presunção de
legitimidade. Daí a correta conclusão de Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón
Fernández de que: "El reglamento tiene de común con la Ley el ser una norma escrita, pero
difiere en todo lo demás"40.
Algo próximo desse entendimento é o de Marcello Caetano. Para o autor português,
o regulamento é "norma jurídica de carácter geral e execução permanente dimanada de uma
autoridade administrativa sobre matéria de sua competência"41. Assim, o regulamento tem
afinidade com a lei pela generalidade. Contudo, enquanto a lei é um ato político pelo qual se
firma a ordem jurídica superior do Estado, o regulamento é um ato de administração (não
confundir com ato administrativo). Portanto, o regulamento não apresenta a característica da
novidade no que toca à limitação dos direitos individuais: suas normas apenas desenvolvem
ou aplicam outras normas que são, sim, inovadoras. Inclui-se, pois, o regulamento na função
executiva. Em verdade, ele disciplina a função executiva dos órgãos que exercem essa função.
Por ele se procura coordenar e disciplinar a aplicação da lei, garantindo maior eficiência e
certeza do direito42.
Já Agustín Gordillo preocupa-se em enfatizar a impossibilidade de se relacionar lei e
ato do Poder Executivo. Invoca, inclusive, a definição de lei proposta pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos:
"La CORTEIDH define pues como leyes 'la norma jurídica de carácter general, ceñida al bien
común, emanada de los órganos legislativos constitucionalmente previstos y democráticamente
elegidos y elaboradas según el procedimiento establecido por las constituciones de los Estados partes
para la formación de las leyes', pues 'El principio de legalidad, las instituciones democráticas y el
estado de derecho son inseparables', es la legislatura electa y no otra la tiene la potestad legislativa"43.
40
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 182.
41
Manual... cit., p. 95, destaque do original.
42
Idem, pp. 97-8, e Princípios... cit., pp. 80-1.
43
Ob. cit., Tomo 1, pp. VII-5 e I-12. Ele transcreve trecho das opiniões consultivas n. 6 e n. 8 da
CIDH, respectivamente.
- 77 -
Na doutrina nacional, não é difícil encontrar autores que assentam a diferença entre a
lei e o regulamento no fato de que apenas a primeira "cria direito". Exemplo disso, é a tese de
Luciano Ferreira Leite, na qual propõe o desprezo pelo critério tanto subjetivo como material
"para se afirmar que a única forma possível para se estabelecer a distinção [entre lei e
regulamento], consiste na circunstância de que o ato legislativo se constitui em criação do
direito"47. Também Miguel Seabra Fagundes afirmava em tom categórico que os
regulamentos "Não acarretam, não podem acarretar qualquer modificação à ordem
vigorante"48. Assim também, Geraldo Ataliba destacava que "O regulamento não inova a
ordem jurídica; vale dizer: nada cria de nôvo"49.
44
Idem, p. IX-10.
45
Idem, p. VII-5.
46
As agências... cit., pp. 85-8.
47
O regulamento... cit., p. 15.
48
Ob. cit., p. 23, nota 3.
49
Decreto... cit., p. 32. Em outra oportunidade, já sob a vigência da Constituição da República de
1988, o autor reafirmou que "O Executivo só tem competência regulamentar (art. 84, IV, 2ª parte, art. 87, II),
- 78 -
Em verdade, parece que essa afirmação pouco explica a diferença entre lei e
regulamento quando desacompanhada da explicação acerca do que se entende por criação do
direito. Afinal, o enunciado "os regulamentos não criam direito" é ambíguo e não se presta
para pautar um critério seguro de diferenciação entre lei e regulamento. Como se evidenciará
em seguida, colocar o debate nesses termos pode se revelar contraproducente.
Com a finalidade de evidenciar essa questão, vamos cotejar esse debate com a
polêmica acerca da possibilidade de os juízes criarem direito, que foi objeto dos estudos de
Genaro Carrió. O professor argentino explica que o enunciado "os juízes criam direito" é um
enunciado altamente ambíguo. Nenhum dos termos do enunciado apresenta significação
precisa, especialmente o verbo "criar" e seu objeto "direito": a expressão "criar direito" tem
um forte significado emotivo, denotando algo grave para a liberdade individual. Dessa forma,
a frase pode ser tomada em vários sentidos. O enunciado é, na realidade, pseudodescritivo de
uma situação de fato, pois muitos dos desacordos doutrinários desapareceriam caso o
enunciado fosse posto em termos mais claros, como nos seguintes exemplos: (a) "em certas
circunstâncias, os juízes proclamam sentenças que não são o resultado de uma mera dedução a
partir de normas gerais pré-existentes"; e (b) "não é correto que os juízes, seja
individualmente, seja como corpo, editem leis". Carrió oferece ainda outros exemplos, que
nos dispensamos de repetir. Contudo, não se deve imaginar que toda essa polêmica se deve a
um simples desacordo verbal. Quando se declara ou se rejeita o enunciado em questão,
explica Carrió, os doutrinadores têm a finalidade de externar um "desacordo de atitude", ou
seja, uma oposição de propósitos, aspirações ou desejos. Cuida-se, pois, de um desacordo de
atitude sobre (i) o que devem fazer os juízes e (ii) o que devem fazer os juristas ao teorizar
sobre a atividade jurisdicional. Assim, aqueles que dizem que "os juízes criam direito",
querem destacar que os juízes devem empenhar mais decididamente o plexo de suas
atribuições e atuar com clara consciência da importância de sua função; já os juristas
deveriam estar mais atentos aos fatos e problemas concretos que surgem na jurisprudência e
dedicar menos atenção ao irreal mundo das normas. Os juristas que negam a sentença em
questão querem destacar a atitude oposta50.
Algo próximo do estudado por Genaro Carrió acontece no debate sobre a
possibilidade de criação do direito pelo regulamento. É claro que a aproximação aqui proposta
jamais inovadora". Delegação... cit., p. 58. Não obstante, em texto anterior, admitiu que o regulamento poderia
ser inovador, nas hipóteses mediantes as quais criasse deveres e obrigações para os subordinados do editor do ato
ou dos órgãos submetidos à sua tutela, "desde que esses deveres e obrigações sejam instrumentais do 'fiel
cumprimento' das leis". Poder regulamentar do Executivo. Revista de direito público. São Paulo, jan.–jun., 1981,
ns. 57-58, p. 191.
50
Genaro Carrió. Notas... cit., pp. 105-14.
- 79 -
51
Almiro do Couto e Silva. Poder... cit., p. 53.
52
A obra de Charles L. Stevenson citada por Carrió é Ethics and Language, Yale University Press.
53
Diógenes Gasparini. Poder... cit., pp. 13-4.
- 80 -
54
Idem, p. 15.
55
Caio Tácito. Lei e regulamento (1956). In: Temas de direito público: estudos e pareceres. Rio de
Janeiro: Renovar, 1997, vol. 1, p. 477, o grifo não é do original.
56
Sérgio Ferraz. Regulamento. In: 3 estudos de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p.
118, o destaque é do original.
57
Cf., a propósito, Afonso R. Queiró, A teoria... cit. [1ª parte], p. 61, nota 53, trecho no qual
diferencia essa contribuição ou consideração individual da discricionariedade. Sobre a reconstrução da norma
pelo intérprete, cf. Humberto Ávila. Teoria... cit., especialmente, pp. 23-6, e Eros Grau. O direito... cit., pp. 38 e
segs.
58
Hans Kelsen. Teoria... cit., p. 261.
59
Weida Zancaner. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. São Paulo, 2ª edição,
1993, 3ª tiragem, 2001, p. 15.
- 81 -
estava virtualmente prevista na lei, como faz Oswaldo Aranha Bandeira de Mello60, não será
possível negar que o regulamento traz sempre algo novo para o ordenamento, isto é, algo que
não estava ainda expresso no texto da lei. Afinal, o regulamento não serve para repetir o que
já está disposto na legislação. Se assim fosse, seria um regulamento inútil: se não há um quid
novum para que se dita a norma? Incisiva, nesse sentido, é a tese de Sérgio Varella Bruna,
segundo a qual:
"Assim, podemos concluir, como parece fazer Kelsen, que a edição de regulamentos ou cria
direito novo, por prescrever comportamento não previsto em lei preexistente (ao menos não
disciplinado em todos os seus contornos), ou é redundante e desprovida de efeitos, por determinar um
comportamento já antes estabelecido"61.
Além disso, no atual regime constitucional, sequer a lei ordinária traz um conteúdo
totalmente original ou totalmente novo, em verdade, seu conteúdo deve ser reflexo dos
valores constitucionais. Segundo Luís S. Cabral de Moncada, a lei, dessa forma, "assume um
conteúdo constitucionalmente necessário"62. Ou seja, o que disse Oswaldo Bandeira de Mello
sobre o regulamento também cabe, em menor medida, claro, para a lei: sua inovação na
ordem jurídica já estava virtualmente prevista na Constituição que a lei aplica.
Não obstante, diferentemente do que disse Diógenes Gasparini, cabe deixar claro que
somente à lei cabe inovar originariamente, isto é, com fundamento direto no texto da
Constituição. É que Gasparini, no regime constitucional anterior, admitia regulamentos
autônomos, capazes de regulamentar disposição constitucional63. No entanto, é mister lembrar
que, na atual sistemática constitucional, quando a doutrina admite, excepcionalmente, a
aplicação direta da Constituição pela Administração para expedir ato, no exercício da função
administrativa (o que excluí a medida provisória), destaca que se trata de ato plenamente
vinculado64. Ora, onde não há espaço para juízos discricionários da Administração não há
lugar para o regulamento: se a lei já prevê o único modo de atuação possível para a
Administração em determinada hipótese, ou seja, se a competência é vinculada, não há espaço
para o regulamento65. Logo, ao regulamento cumpre intermediar a lei e o ato de aplicação. Só
60
"Segundo a matéria, a diferença está em que a lei inova originariamente na ordem jurídica,
enquanto o regulamento não a altera. Isso é verdade tanto para o regulamento executivo, que desenvolve a lei
para efeito de sua aplicação, como para o regulamento autorizado ou delegado, porquanto a modificação da
ordem jurídica, que resulta dos seus preceitos expressos, deve já estar virtualmente contida nas disposições
programáticas, que lhe dão habilitação legislativa". Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit., p. 357.
61
Agências... cit., p. 75, os grifos são do original.
62
Ob. cit., p. 921.
63
Diógenes Gasparini. Poder... cit., pp. 58-9.
64
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., p. 359.
65
Idem, p. 326.
- 82 -
66
Ob. cit., p. 449.
67
Ob. cit. pp. 235-6.
68
Victor Nunes Leal. Lei... cit., pp. 63-5.
69
Idem, p. 66, o destaque é do original.
- 83 -
70
Cf., nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 337-8, Vicente Ráo. O
direito...cit., p. 338, Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 1.040-5, Victor Nunes Leal. Lei... cit., p. 75, e
Geraldo Ataliba. Decreto... cit., p. 25.
71
Cf. J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 697.
72
Dicionário... cit., p. 401.
73
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 100.
- 84 -
dizer a palavra final. Nem mesmo a interpretação levada a efeito pelo Poder Legislativo,
chamada de autêntica, é aceita, já que é entendida como nova lei, modificadora daquela dita
interpretada"74.
Lembre-se, ainda, como já destacava Seabra Fagundes, que a violação da lei também
pode ocorrer por má interpretação da lei. Interpretar a lei é questão de legalidade e
legitimidade do ato da Administração e não constitui, pois, o seu mérito, judicialmente
insidicável75.
A interpretação expressa no regulamento, destarte, só vincula aqueles subordinados
hierarquicamente ao emissor do regulamento76.
Essa conclusão, embora correta, deve ser recebida com temperamentos,
especialmente no caso de regulamentos claramente ilegais. Imaginar a existência de um dever
de aplicação do regulamento ilegal em função da subordinação equivale a colocar o
regulamento no patamar derrogatório da lei, o que não se justifica, como explicam Eduardo
García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández77. Efetivamente, a subordinação hierárquica
não é razão suficiente para obrigar os agentes a preferir aplicar o regulamento em detrimento
da lei. Vale a pena transcrever o argumento dos autores espanhóis para a boa compreensão do
argumento:
"El deber de observancia de la Ley y de correlativa inaplicación del Reglamento que la infringe
alcanza también —es forzoso repetirlo frente a las creencias habituales— a los mismos funcionarios
administrativos. Los funcionarios no están vinculados a los Reglamentos como consecuencia de su
subordinación jerárquica, sino en cuanto que dichos Reglamentos forman parte del ordenamiento
jurídico, del Derecho objetivo. No están, pues, obligados a aplicar Reglamentos ilegales en todo caso,
porque ello supondría reconocer en los Reglamentos un deber de observancia superior al de la Ley;
otro, el que administran los funcionarios, en que esa superioridad no entraría en juego"78.
Diógenes Gasparini, no entanto, assevera a obrigatoriedade dos regulamentos ilegais
para as autoridades administrativas inferiores. O regulamento só deve, pois, ser revisto pela
autoridade que o expediu. Não obstante, assevera que o agente encarregado da aplicação de
um regulamento ilegal "deve representar ao seu superior, nos termos do art. 164, c/c o art.
194, VI, da Lei federal 1.711/52, ou nos termos da legislação estadual ou municipal"79.
74
Diógenes Gasparini. Poder... cit., pp. 64-5.
75
M. Seabra Fagundes, ob. cit., p. 185, nota 127.
76
Cf., nesse sentido, entre outros, Geraldo Ataliba. Decreto... cit., p. 32.
77
Ob. cit., pp. 226-8.
78
Idem, pp. 227-8.
79
Poder... cit., 1982, p. 70. A Lei 1.711, de 28.10.1952, citada por Diógenes Gasparini, foi revogada
pelo art. 253 da Lei 8.112, de 20.12.1990, e os dispositivos mencionados tinham a seguinte redação: "Art. 164. É
assegurado ao funcionário o direito de requerer ou representar. (...). Art. 194. São deveres do funcionário: (...) IV
– observância das normas legais e regulamentares".
- 85 -
80
Lei 8.112, de 20.12.1990: "Art. 116. São deveres do servidor: (...) III – observar as normas legais e
regulamentares; (...) IV – cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais; (...) XII –
representar contra ilegalidade, omissão ou abuso de poder. Parágrafo único. A representação de que trata o
inciso XII será encaminhada pela via hierárquica e apreciada pela autoridade superior àquela contra a qual é
formulada, assegurando-se ao representando ampla defesa" (os destaques não são do original).
81
Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 1, pp. VII-24-5.
82
Idem, p. I-36.
- 86 -
83
Antonio Carlos Cintra do Amaral. Extinção do ato administrativo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1978, pp. 61-3.
84
Hartmut Maurer, ob. cit., § 4, 44-7, pp. 90-4.
- 87 -
85
Weida Zancaner ensina que: "A maneira pela qual um ato ganha existência jurídica encontra-se
estabelecida na própria ordem normativa; assim, não é a simples exteriorização fática condição suficiente para
que um ato adquira existência jurídica, embora seja condição necessária" (ob. cit. p. 33). Cf., neste estudo, as
considerações postas na nota 70, Parte 2, item 2.3., infra.
86
Código Penal: "Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato: (...) III - em estrito
cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito" e "Art. 22. Se o fato é cometido sob coação
irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o
autor da coação ou da ordem" (os destaques não são do original). Em sentido próximo ao do texto, v. a lição de
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 982-7.
- 88 -
1
Ob. cit., p. 186, o grifo não consta do original.
- 90 -
2
"Como recuerda ALF ROSS (Sobre el derecho y la justicia, Buenos Aires, Abelado-Perrot, 1961, p.
11 y sus remissiones), pertenece al pasado la formulación de preguntas tales como qué es lo que algo 'realmente
es' (op. cit., p. 109); ello se vincula a 'la creencia de que las palabras representan objetivamente conceptos o ideas
dados cuyo significado debe ser descubierto y descripto', la que se remonta a la teoría de la definición de
ARISTÓTELES, en la cual 'el filósofo se pregunta qué «son realmente» «verdad», «belleza», «bondad», etc. y cree
posible establecer definiciones verdaderas' (Op. loc. cit.)". Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 1, p. I-18-9. Cf.,
ainda, Genaro Carrió, ob. cit., pp. 100-3 e 117-8.
3
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 349-55, e Antônio Carlos Cintra do Amaral.
Extinção... cit., pp.7-8.
4
"Nossa linguagem jurídica é substancialmente uma parte da linguagem corrente" (Olivecrona.
Linguagem... cit., p. 17). Karl Larenz, por sua vez, explica que "a linguagem jurídica é um caso especial de
linguagem geral, não é uma linguagem simbolizada, completamente desligada dela" (Metodologia... cit., p. 451).
5
Cf. Genaro Carrió, ob. cit., pp. 31-6 e 49-55.
6
Vale anotar, contudo, que essa dificuldade de definir com precisão os conceitos não é exclusividade
da ciência jurídica. Ela pode acontecer inclusive em ciências pautadas em linguagem mais rigorosa. Basta
lembrar o recentíssimo imbróglio na Astronomia envolvendo a definição do conceito de planeta. A questão
inclusive mereceu a criação de um inusitado Comitê para a Definição de Planeta montado pela União
Astronômica Internacional. O episódio revelou ainda que não só critérios exclusivamente científicos pautavam
as definições: conforme relatam as reportagens a seguir referidas, a condição de Plutão como planeta era
explicada por condicionantes históricos e também pelo lobby norte-americano, pois este era o único planeta
descoberto por um pesquisador norte-americano. Cf. SISTEMA solar pode ficar com 12 planetas. Folha de S.
Paulo. São Paulo, 16.8.2006, Caderno Ciência, p. A-14 e ASTRÔNOMOS decidem que Plutão não é mais
planeta. Folha de S. Paulo. São Paulo, 25.8.2006, Caderno Ciência, p. A-20.
7
Genaro Carrió, ob. cit., pp. 69-70, explica que não basta recorrer a novas ou mais palavras para
tentar uma definição exata, a incerteza, ainda que possa ser reduzida, é inexorável.
- 91 -
portanto, apartar o conceito de seu significado usual, o que pode gerar má-compreensão ou,
numa hipótese radical, o solipsismo8.
O realismo jurídico, por sua vez, revelou como o discurso jurídico manipula muitas
palavras sem referência semântica, isto é, sem referência a um estado de coisas: seriam
palavras "ocas", na expressão de Karl Olivecrona9. O discurso normativo utiliza-se daquilo
que Alf Ross chamou de "técnica de apresentação". Dessa forma, estabelecem, numa primeira
série de regras, os fatos que geram um determinado conceito, e, em outra série, as
conseqüências jurídicas relativas a esse conceito. Claro que as normas jurídicas poderiam se
expressar sem necessidade de utilizar essa referência: bastaria estabelecer diretamente uma
conexão entre cada fato e a sua conseqüência juridica, dispensando, assim, o recurso ao
conceito jurídico. Mas um ordenamento assim concebido seria extremamente complexo e de
dificílima manipulação diante do número assombroso de normas que seriam necessárias. Daí
a necessidade do pensamento jurídico conceitualizar as normas, de forma a reduzi-las a uma
ordem sistemática, com o fim de oferecer uma versão do direito vigente mais clara e mais
compreensível10.
Fica claro, portanto, que os conceitos não são verdadeiros ou falsos, mas valem
justamente porque são capazes de fornecer soluções para questões postas. Há certa
relatividade na conceituação, o que permite, então, uma constante revisão crítica dos
conceitos jurídicos, a fim de que possam fornecer soluções à altura do que deles se espera11.
Os conceitos não são, pois, mais do que convenções, pontos de referência, aos quais
relacionamos determinadas conseqüências que o direito lhes atribui. A cada conceito,
portanto, deve, em tese, corresponder um conjunto de normas que formam seu regime
jurídico. Por isso, "se o conceito não se cinge rigorosamente ao propósito de captar um
determinado regime ― cuja composição admite apenas as normas editadas pelo direito
positivo e os princípios acolhidos na sistemática dêle ― será desconforme com sua própria
razão de ser"12.
No entanto, não basta qualquer diferença no regime jurídico para se apontar ali a
necessidade de diferenciação e de um novo conceito. Como explica Agustín Gordillo, fazendo
8
Cf. Genaro Carrió, ob. cit., pp. 91-5, e Gordillo, ob. cit., Tomo 1, pp. I-14-21.
9
Ob. cit, pp. 47 e segs.
10
Alf Ross. Tû-Tû. Tradução de Edson L. M. Bini. Prefácio de Alaôr Caffé Alves. São Paulo:
Quartier-Latin, 2004, pp. 28-42. V. também Karl Olivecrona, ob. cit., pp. 93-5, trecho no qual analisa a função
técnica da expressão "direito subjetivo" e utiliza a figura do "entroncamento ferroviário" para retratar o papel
desempenhado pela noção de direito subjetivo: "Sem o entroncamento, seria necessário construir muitíssimas
linhas diretas para conectar os pontos terminais de ambos os grupos" (ob. cit., p. 95)
11
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 8-9.
12
Celso Antônio Bandeira de Mello. O conteúdo do regime jurídico-administrativo... cit., p. 57.
- 92 -
13
Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 1, p. I-21.
14
Idem, p. I-20.
15
Idem, p. X-1.
16
Para sua definição de ato administrativo, Diógenes Gasparini buscou arrimo na doutrina de Celso
Antônio Bandeira de Mello, dando, pois, a seguinte definição de ato administrativo: "Assim, ato administrativo é
para nós 'toda manifestação de vontade, juízo ou conhecimento, predisposta à produção de efeitos jurídicos,
expedida pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, no exercício de suas prerrogativas, e como parte
diretamente interessada numa relação jurídica, em obediência à lei e sob o fundamento de cumprir as finalidades
assinaladas no sistema normativo' (Celso Antônio Bandeira de Mello. Documento n. 50", editado para o I Curso
de Especialização em Direito Administrativo da PUCSP, 1972, p. 15)" (Diógenes Gasparini. Poder... cit., p. 6).
Em obra mais recente, define "ato administrativo como sendo toda prescrição unilateral, juízo, ou conhecimento,
predisposta à produção de efeitos jurídicos, expedida pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, no exercício de
- 93 -
Os atos administrativos, por sua vez, subdividem-se em executivo, que são os atos
concretos, e os normativos, que são abstratos. Os regulamentos, assim como as portarias,
instruções e regimentos, são, pois, atos administrativos normativos. Define, então,
regulamento como "ato administrativo normativo, editado, mediante decreto, privativamente
pelo Chefe do Poder Executivo, segundo uma relação de compatibilidade com a lei, para
desenvolvê-la ou para regular matéria a ele reservada"17.
A inclusão dos regulamentos, portarias, instruções e regimentos no conceito de ato
administrativo normativo, na obra de Gasparini, mostra uma inconsistência, quando do cotejo
desses institutos com sua definição de ato administrativo. É que o autor define ato
administrativo como manifestação da Administração como "parte diretamente interessada
numa relação jurídica". Ora, nesses atos normativos a Administração Pública não é parte
diretamente interessada numa relação jurídica. Aliás, André Gonçalves Pereira afirma que a
diferença fundamental entre regulamento e ato administrativo que justifica a distinção "É que
o regulamento é mediato em relação ao administrado, enquanto que o acto administrativo é
imediato, projectando-se directamente na esfera jurídica do administrado"18. Nessas
circunstâncias, a sua tese de que os atos normativos da Administração são atos
administrativos fica inconsistente, além de revelar a associação usual, e por vezes
inconsciente, do termo "ato administrativo" aos atos de conteúdo concreto19.
Também Luciano Ferreira Leite inclui o regulamento no conceito de ato
administrativo. Define o regulamento como ato complementar à lei de repetidas aplicações
nos quais se reiteram as hipóteses nele previstas20. O autor se preocupa, inclusive, em destacar
que "Caso não tivéssemos o cuidado de alojar o regulamento como espécie de ato
administrativo, seria possível admitir-se a expedição de ato regulamentar sem previsão
legal"21.
As considerações do autor, assim entendemos, confundem regra e ato de aplicação,
norma abstrata e norma concreta. Ora, se o regulamento é o ato cuja aplicação se repete, a
suas prerrogativas e como parte interessada numa relação, estabelecida na conformidade da lei, sob o
fundamento de cumprir finalidades assinaladas no sistema normativo, sindicável pelo Judiciário" (Gasparini.
Direito... cit., p. 60).
17
Poder... cit., p. 6, e Direito...cit., pp. 119-20.
18
André Gonçalves Pereira. Erro e ilegalidade no acto administrativo. Lisboa: Ática, 1962, p. 82, os
destaques são do original.
19
Como destaca José Roberto Pimenta Oliveira é "a concreção, e não a abstração, outra qualidade
ínsita da voz ato administrativo (Os princípios... cit., p. 239).
20
Julgamos oportuna a transcrição do trecho em questão: "Os regulamentos se constituem, tanto
quanto as demais categorias, (atos individuais quanto aos destinatários ou concretos quanto a estrutura) em
comandos complementares da lei, provendo, no entanto, ao contrário dos atos concretos, repetidas aplicações, na
medida em que se reiterarem as hipóteses nele previstas" (ob. cit., p. 12).
21
Idem, p. 15.
- 94 -
22
Idem, p. 28.
23
Curso... cit., pp. 354-60.
24
Idem, p. 360.
- 95 -
infralegal da Administração: (i) os atos unilaterais, gerais e abstratos, dentro os quais salienta-
se o regulamento; (ii) os atos unilaterais e concretos, isto é, os atos administrativos; (iii) o
processo ou procedimento administrativo; (iv) os contratos administrativos; e (vi) a licitação25.
A proposta de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello é semelhante à antes exposta. Ao
discorrer sobre o ato administrativo, explica que o conceito deste se opõe ao de ato da
Administração Pública. Este abrange qualquer ato jurídico da Administração Pública, seja
expedido no regime de Direito Privado, seja expedido no regime de Direito Público. O
conceito de ato administrativo, dessa forma, restringe-se aos atos jurídicos dos órgãos
administrativos em que há manifestação de vontade autoritária estatal. Logo, em um conceito
amplo, ato administrativo pode abrigar atos normativos — gerais, abstratos e impessoais —
como atos executivos — individuais, concretos e pessoais. Não custa anotar que esse conceito
de ato administrativo incluía também a lei, porque Oswaldo Aranha Bandeira de Mello
entendia que a atividade de legislar fazia parte da função administrativa: administrar é
programar a ação e executá-la, a cisão só se justifica por critérios de controle do exercício do
Poder, conforme sua lição. Logo, só se excluí do conceito de ato administrativo, como
manifestação da vontade autoritária do Estado, o ato jurisdicional. Contudo, o autor não deixa
de reconhecer, que o uso tradicional e comum da expressão corresponde ao ato executivo,
individual, concreto e pessoal. Bem por isso, o seu conceito de ato administrativo traz estas
características, embora o autor não deixe de externar a preferência por chamar este ato de
executivo como espécie do gênero ato administrativo26. Assim, para Oswaldo Aranha
Bandeira de Mello, em sentido material ou objetivo, o ato administrativo pode ser definido:
"como manifestação da vontade do Estado, enquanto poder público, individual, concreta, pessoal,
na consecução do seu fim, de realização da utilidade pública, de modo direto e imediato, para produzir
efeitos de direito. Já no sentido orgânico-formal, ou subjetivo, se pode conceituá-lo como ato
emanado de órgãos encarregados da Administração Pública, compreendendo integrantes do Poder
Executivo, ou mesmo dos outros, desde que tenham a mesma estrutura orgânico-formal daquele,
como sejam as Secretarias do Legislativo e do Judiciário"27.
Realmente, não é sem razão que o sentido usual e comum do conceito de ato
administrativo esteja relacionado ao ato concreto. Luís S. Cabral de Moncada explica que o
patrono do conceito de ato administrativo é Otto Mayer para quem o ato administrativo era
25
Idem, pp. 311-2.
26
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit., pp. 24-33 e 460-3.
27
Idem, p. 463.
- 96 -
um ato de execução da lei para o caso concreto, à semelhança de uma sentença. Nessa
compreensão também se assenta a caracterização da Administração como executora da lei28.
Então, será que basta conhecer as diferenças e reduzir o problema a uma questão
terminológica? André Gonçalves Pereira assevera que não. Oferece, assim, a correta
percepção do problema:
"A terminologia, precisamente porque é convencional, desempenha uma função — e essa função é
a designar com o mesmo nome coisas idênticas e com nomes diferentes coisas diferentes (...) Portanto
o problema cifra-se nisto: o regulamento e o acto administrativo concreto têm regimes jurídicos
diferentes, que justifiquem a construção de um conceito autónomo para cada um, e portanto sua
designação por nomes diversos?"29
Portanto, a sistematização mais operacional — e não a única correta — é a que nos
remete a melhor compreensão acerca da função administrativa e das peculiaridades de cada
atividade administrativa. Daí a proposta de diferenciação entre regulamento e ato
administrativo. Inclusive para facilitar a defesa contra a crescente atividade normativa da
Administração. Torna-se, pois, útil o conhecimento do regime jurídico peculiar do
regulamento em razão de sua presença mais constante em nosso cotidiano. É mister
prosseguir com estudo para tentar alinhar o pensamento daqueles doutrinadores que
professam uma sistematização da função administrativa nesses moldes.
28
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 111-2 e nota 130.
29
André Gonçalves Pereira, ob. cit., p. 81.
30
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 187.
31
"Acto administrativo sería así la declaración de voluntad, de juicio, de conocimiento o de deseo
realizada por la Administración en ejercicio de una potestad administrativa distinta de la potestad reglamentaria".
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 550.
- 97 -
32
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández destacam que não há um regime jurídico
unitário para o contrato administrativo. Por isso preferem, no lugar de apresentar uma definição do contrato
administrativo, expor os contratos previstos na legislação espanhola que formam uma pluralidade de figuras
diferentes (ob. cit., pp. 731-2).
33
A coação administrativa ou ação direta da Administração deriva da singular posição da
Administração cuja coação é coação legítima. Assim, ela pode impor por sua própria autoridade a execução
forçada de seus direitos e com isso produzir de maneira válida uma alteração da situação possessória. Cf.
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp 781-2.
34
A atividade técnica é uma atividade material que não produz efeitos jurídicos nem altera nenhuma
situação jurídica. São exemplos a vigília da polícia, a construção de estradas e o atendimento aos enfermos nos
hospitais públicos. Cf. Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 823.
35
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 493-4.
36
Marcelo Caetano, Princípios... cit., p. 97.
37
Norma de direito objetivo é a norma que disciplina a ação. É uma diretriz que vive fora da pessoa
titular da faculdade conferida. Assim, o direito objetivo, explica Vicente Ráo, forma um complexo de normas
impostas às ações humanas nas relações externas, feitas valer pela autoridade do Estado, a fim de garantir aos
indivíduos e à comunhão social a consecução de seus fins (ob. cit., pp. 215-6 e nota 1). Segundo Hartmut
Maurer, o "direito objetivo forma a soma dos preceitos jurídicos; ele fundamenta deveres jurídicos e,
eventualmente, seus direitos subjetivos" (ob. cit., § 8, 3, p. 175). Direito objetivo, em síntese, "É a regra social
obrigatória imposta a todos (...)" (De Plácido e Silva. Vocabulário jurídico. Atualizado por Nagib Slaib Filho e
Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 25ª edição, 2004, verbete "direito objetivo", p. 474, 1ª col., destaques
do original). V., ainda, Léon Duguit: "O direito objetivo ou a regra de direito é a norma de conduta que se impõe
aos indivíduos que vivem em sociedade, norma cujo respeito se considera, em dado momento, pela sociedade,
como a garantia do interesse comum e cuja violação determina reação coletiva contra o autor de tal violação"
(Fundamentos... cit., p. 3).
- 98 -
38
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 187-189 e 554.
39
Idem, p. 204. Em sentido aproximado, Agustín Gordillo assegura que o regulamento é uma fonte
perniciosa de ilegalidade e injustiça (ob. cit., Tomo 1, p. VII-15).
40
Ob. cit., pp. 84-5.
41
Ob. cit., pp. 260 e segs.
42
Cf., nesse sentido, Antônio Carlos Cintra do Amaral. Extinção... cit., p. 36, e, do mesmo autor,
Conceito e elementos do ato administrativo. Revista de direito público. São Paulo, nov.–dez., 1974, n. 32, p. 8.
- 99 -
43
Cf. Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 494.
44
M. Seabra Fagundes, ob. cit., p. 8, nota 8, os grifos são do original.
45
Idem, p. 8. A referência indicada por Seabra Fagundes é Gabino Fraga Junior. Derecho
Administrativo, 1934, p. 55, n. 51. Vale cotejar as definições de administração e constatar a proximidade.
Segundo o autor mexicano citado por Seabra Fagundes, a administração "es una actividad del Estado que se
realiza bajo un orden jurídico y que consiste en la ejecución de actos materiales, o de actos que determinan
situaciones jurídicas para casos individuales".
46
M. Seabra Fagundes, ob. cit., p. 23, nota 3, e p. 26, nota 6.
47
M. Seabra Fagundes, ob. cit., pp. 23, nota 3, 26, nota 6, e 42, nota 45.
- 100 -
48
Idem, p. 24, nota 4.
49
Idem, pp. 256-7.
- 101 -
regulamentos não têm caráter legislativo e por isso seriam atos administrativos. É que por
razões metodológicas e didáticas se justifica a não-sobreposição dos conceitos50.
Podemos extrair da lição do autor argentino ao menos quinze diferenças entre o
regime jurídico do ato administrativo e o do regulamento. Ei-las: (1) notificação e publicação:
o ato administrativo exige conhecimento certo, salvo citação por edital, já o regulamento
adquire eficácia oito dias depois de sua publicação, o conhecimento é ficto; (2) hierarquia
normativa do regulamento sobre o ato administrativo, pois toda decisão deve estar conforme
uma regra geral, ou seja, conforme o regulamento; (3) só o ato administrativo pode gerar
coisa julgada administrativa, enquanto o regulamento pode amplamente ser revogado por
razões de ilegitimidade; (4) a exigência de motivação não é aplicada com o mesmo rigor no
regulamento; (5) a audiência prévia, na hipótese de regulamento, só se faz por meio de
audiência pública; (6) só no ato administrativo se pode cogitar de hipótese de silêncio; (7) o
poder de emissão de ato administrativo é amplo, já o poder de emitir regulamento é restrito;
(8) efeitos da interposição de recurso: a possibilidade de suspensão só se aplica ao ato
administrativo; (9) só para os atos administrativos haveria possibilidade de efeito retroativo
quando do saneamento de suas nulidades; (10) a lei admite efeito retroativo na substituição de
outro ato administrativo revogado, ou na hipótese favorável ao administrado; (11) só o
regulamento pode ser fonte de competência; (12) quanto à impugnação, ela é sine die para o
regulamento, enquanto o prazo inicia-se a partir da aplicação no caso de ato administrativo,
entre outras distinções acerca da autoridade competente para conhecer da impugnação e da
infrigência de direito subjetivo ou interesse legítimo; (13) quanto ao procedimento de
elaboração: apenas o regulamento e os "grandes projetos" exigem audiência pública; (14) o
fim do procedimento de impugnação, na hipótese de ato, geralmente dá-se pela expedição de
outra resolução concreta, enquanto é excepcional o término do procedimento pela emissão de
novo regulamento; e, finalmente, (15) só os atos administrativos são diretamente impugnáveis
na via jurisdicional, os regulamentos, em princípio, não51.
Afora a indicação dessas notas distintivas, Agustín Gordillo ainda destaca a
conveniência dessa distinção. É que muitos autores incluem o regulamento no conceito de ato
administrativo para depois indicar o regulamento como fonte de Direito Administrativo sem
50
Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 1, pp. X-7-8.
51
Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 3 (el acto administrativo), pp. IV-4-15. Cf., ainda, Celso Antônio
Bandeira de Mello. Curso... cit., p. 355, nota 8, onde enumera as diferenças entre ato administrativo e
regulamento apontadas por Agustín Gordillo em El acto administrativo, 2ª ed., Abeledo-Perrot, Buenos Aires,
1974, pp. 101 e segs.
- 102 -
52
Cf. Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 1, p. VII-19, e Tomo 3, p. IV-6.
53
Cf. André G. Pereira, ob. cit., pp. 82-3, e Daniele Coutinho Talamini. Regulamento e ato
administrativo. Revista trimestral de direito público. São Paulo, 1998, n. 21, pp. 84-6.
54
Cf., nesse sentido, Daniele C. Talamini, ob. cit., p. 85.
- 103 -
possam ocorrer no seu período de vigência55. Enfim, na síntese de Carlos Sundfeld, os atos
gerais "atingem uma pluralidade indeterminada de pessoas vinculadas à mesma situação
concreta"56. Logo, o critério de diferenciação, como explica Michel Stassinopoulos57, deve se
pautar na generalidade, mas não na generalidade numérica e sim na generalidade abstrata, que
consiste na possibilidade de aplicação em casos futuros e indeterminados.
Diógenes Gasparini explica, ainda, que o regulamento não se confunde com o ato
plural nem com o ato coletivo:
"Atos plurais são aqueles que, sob a forma única, enfeixam vários atos de conteúdo idêntico. São
simultaneamente dirigidos a vários destinatários. Poderiam ser cindidos em tantos atos quantos são os
beneficiados. Representam a soma de atos individuais que por medida prática são unificados. São
editados em um só ato pelo agente competente, que é também competente para expedi-los
separadamente. É o caso de nomeação de candidatos aprovados em concurso de ingresso ao serviço
público. Os atos coletivos são unitários e indivisíveis em relação aos destinatários. Não podem ser
cindidos em tantos atos de dissolução de uma reunião ou de uma passeata, ou ainda o ato mímico de
'pare', levada a efeito por um guarda de trânsito"58.
55
Diógenes Gasparini. Poder... cit., pp. 12-3. V. também, sobre ato geral, Celso Antônio Bandeira de
Mello. Curso... cit., p. 395.
56
Direito... cit., p. 75.
57
Michel Stassinopoulos. Traité des actes administratifs. Athénes: Librarie Sirey, 1954, p. 65. No
mesmo sentido, Sérgio Ferraz: "é correto repousar na generalidade ou na abstração a distinção entre os
regulamentos e os demais atos administrativos (...) realmente a generalidade é o dado marcante no tracejar a
distinção entre o regulamento e o ato administrativo individual. Não se trata, repise-se, da generalidade
numérica, mas da generalidade abstrata" (ob. cit., p. 112). Cabe anotar que o autor francês antes referido (ob. cit.,
pp. 65-8) também lista casos em que a diferenciação entre regulamento e ato administrativo é mais complexa.
58
Poder... cit., p. 13.
59
Cf., a propósito, a posição de Agustín Gordillo, segundo a qual o ato administrativo não notificado
não é capaz de ingressar no mundo jurídico (ob. cit, Tomo 3, pp. II-5-8).
60
Lei 9.784, de 29.1.1999 (regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública
federal), arts. 3º, II, e 26, caput e § 3º: "Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a
Administração, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados: (...) II - ter ciência da tramitação dos
processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de
documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas; (...) Art. 26. O órgão competente perante o qual
tramita o processo administrativo determinará a intimação do interessado para ciência de decisão ou a efetivação
de diligências. (...) § 3º A intimação pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso de
recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do interessado.
- 104 -
mesma forma. A vigência decorre da mera publicação, pois não há uma relação direta com o
administrado a justificar a necessidade de intimação pessoal.
A ciência do administrado interessado também revela distinções nas hipóteses de
invalidação e de revogação do regulamento e do ato administrativo61. Como não há relação
direta com o administrado, as possibilidades de invalidação e revogação do regulamento são
amplas e prescindem de intimação do administrado interessado. No caso do regulamento
basta, pois, a ciência ficta obtida mediante a publicação do ato. O que não acontece com o ato
administrativo.
Já os atos administrativos que aplicaram o regulamento, sim, exigirão ciência pessoal
do administrado nas hipóteses de invalidação e de revogação, mas não serão afetados
diretamente nas hipóteses de invalidação ou de revogação do regulamento. Como diz Celso
Antônio Bandeira de Mello: "Não se anula ato algum de costas para o cidadão, à revelia dele,
simplesmente declarando que o que fora administrativamente decidido (ou concertado pelas
partes) passa a ser de outro modo, sem a ouvida do que o interessado tenha a alegar na defesa
de seu direito"62. Entendemos que esse argumento também se aplica, com maior razão, à
revogação. A diferença entre ato e regulamento, no caso, se explica pela inexistência de
relação direta com a Administração no regulamento.
Essa inexistência de relação direta com o administrado, contudo, não significa
assentar que não existam efeitos externos à Administração decorrentes da edição de
regulamentos. A questão ainda será retomada (cf. Parte 2, item 3.3.4., infra), mas já convém
deixar assinalado o desacerto da pretensão de afastar o regulamento do conceito de ato
administrativo tendo por critério o argumento de que os regulamentos "não são comandos
dirigidos ao comportamento dos indivíduos em geral e sim apenas ao dos órgãos do Poder
Executivo"63. Ainda segundo esse argumento, "os regulamentos não produzem, diretamente,
efeitos jurídicos na esfera do particular"64. Como se evidenciará ao tratarmos dos
regulamentos administrativos, essa proposta implica o reconhecimento de poderes autônomos
à Administração na suposição de que sua regulação intestina não afeta o administrado, o que
não se mostra verdadeiro porque essa atuação normativa interna, por certo, ainda que
indiretamente, lhe atinge. Inclusive porque o ato administrativo concreto, que forma a relação
direta com o administrado e, portanto, possui efeitos externos, deverá pautar-se segundo o
61
Em síntese, revogação e anulação são formas de se retirar o ato jurídico. A primeira com
fundamento em razões de conveniência e oportunidade. A segunda fundamenta-se na desconformidade do ato
com as prescrições jurídicas. Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 417 e 429-30.
62
Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., p. 432.
63
Antônio Carlos Cintra do Amaral. Conceito... cit., p. 37.
64
Antônio Carlos Cintra do Amaral. Extinção... cit., p. 22.
- 105 -
disposto em regulamento, como reconhece o próprio Antônio Carlos Cintra do Amaral65. Por
conseqüência, também não tem procedência o argumento invocado pelo mesmo autor de que
o regulamento não se ajusta ao conceito de ato administrativo porque não diz respeito à
relação entre Administração e particular, e a teoria do ato administrativo visa a descrever essa
relação. Ora, se o próprio ato não pode contrariar o regulamento, evidente a importância para
o administrado desse regulamento. Ademais, a tese parece querer reduzir o Direito
Administrativo à teoria do ato administrativo.
Retomando o tema da revogação e invalidação, cabe destacar que também há
diferenças quanto ao objeto de invalidação ou de revogação. A revogação do regulamento tem
sempre por objeto suprimir o próprio regulamento, pois se pretende eliminar a fonte das
relações jurídicas, por razões de conveniência e oportunidade, impedindo o surgimento de
novas relações. Assim, também na hipótese de invalidação: queremos eliminar o próprio
regulamento.
Diversamente, nas hipóteses de revogação de atos administrativos já eficazes (se o
ato não é ainda eficaz a situação é semelhante a do regulamento) pretendemos encerrar a
relação jurídica decorrente do ato administrativo, permanecendo incólumes os efeitos já
produzidos. Dessa forma, muitos atos administrativos não poderão ser revogados porque a
relação não é contínua, já foram esgotados os efeitos jurídicos e já não mais o que ser
revogado.
Também na hipótese de invalidação do ato administrativo já eficaz, o objeto de
invalidação é a relação jurídica, se possível de forma retroativa. O ato administrativo já não
importa porque justamente desapareceu com sua aplicação concreta66.
Ainda sobre a hipótese de invalidação de ato administrativo, poderá se dar o caso de
decadência do direito de a Administração anular o ato, o que não acontece na hipótese de
anulação do regulamento67. Cabe acrescentar que a expressão "favoráveis para os
destinatários", usada pelo art. 54 da Lei 9.784, de 29.1.1999, corrobora essa compreensão, eis
que nos regulamentos os destinatários são futuros e incertos: não é possível identificar, pois,
os destinatários68. Ademais, a referência à data em que o ato foi praticado elimina qualquer
65
Conceito... cit., p. 38, e Extinção... cit., pp. 21-2.
66
Cf. Weida Zancaner, ob. cit., pp. 64-5, e Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 419-25
e 431-2.
67
Lei 9.784, de 29.1.1999. "Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de
que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram
praticados, salvo comprovada má-fé".
68
Nesse sentido, v. Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 3, p. IV-9, ao analisar disposição semelhante do
ordenamento jurídico argentino.
- 106 -
sobre de dúvida. Daí que não se cogita da decadência do direito de a Administração anular o
regulamento.
Há ainda mais: também não admitimos, em princípio, a convalidação de ato
regulamentar. A prática da convalidação é a atuação administrativa capaz de evitar a sanção
de anulação do ato69. Assim, o ato administrativo existente70 e inválido pode, em certas
hipóteses, admitir a convalidação, isto é, o suprimento da invalidade com efeitos retroativos71.
Já o regulamento existente e inválido, isto é, que foi capaz de ingressar no ordenamento
jurídico, mas com vício de invalidade, não admite a supressão da invalidade com efeitos
retroativos. Trata-se, em verdade, de novo regulamento, sem efeitos retroativos; apenas a
partir desse segundo ato vigerá o regulamento. Nesse sentido, a lição de Agustín Gordillo,
sobre os regulamentos, encarece que "... no parece posible concebir supuestos de saneamiento
retroactivo"72. Nesse aspecto, portanto, o ato regulamentar segue um regime jurídico mais
próximo ao da lei inválida. Aplicável, pois, à hipótese, o disposto no art. 1º, § 3º, da Lei de
Introdução ao Código Civil (Decreto-lei 4.657, de 4.9.1942), segundo o qual as correções a
texto de lei já em vigor serão consideradas lei nova. A correção da invalidade deve ser
considerada ato novo, vale a partir da correção. No caso, portanto, prevalece o princípio da
irretroatividade das normas (Constituição, art. 5º, inciso XL). Cabe ressalvar, contudo, as
hipóteses em que, normalmente, admite-se a retroatividade do regulamento com fundamento
na disposição constitucional referida, ou seja, nas hipóteses de retroatividade benéfica ao
administrado.
É mister destacar, enfim, que a impossibilidade de convalidar o regulamento não
implica necessariamente a impossibilidade de se convalidar os atos concretos de aplicação
desse regulamento inválido.
69
Antônio Carlos Cintra do Amaral. Extinção... cit., p. 70.
70
Em Hans Kelsen os planos da vigência e da existência se confundem: "Com a palavra 'vigência'
designamos a existência específica de uma norma" (ob. cit., p. 11). Confundia, portanto, os planos da existência
e da validade das normas e, bem por isso, afirmava que "uma lei inválida não é sequer uma lei, porque não é
juridicamente existente" (ob. cit., pp. 300 e segs.). O mais correto, a nosso sentir, é distinguir os planos de
pertinência ou perfeição e validade das normas (abstratas e concretas). Assim, o ato tem pertinência quando
cumpre os requisitos necessários para ingressar, ainda que invalidamente, no universo jurídico. Ele reúne, pois,
os elementos essenciais para sua definição. Já o ato válido é aquele expedido em estrita observância das normas
legais. Sobre a diferença entre existência e validade, cf. a explicação bastante didática de Celso Antônio
Bandeira de Mello. Leis originariamente inconstitucionais compatíveis com emenda constitucional
superveniente. Revista trimestral de direito público. São Paulo, 1998, n. 23, pp. 14-8, e, de forma mais sucinta,
do mesmo autor Curso... cit., p. 360 e nota 12, e Ato inexistente [parecer]. Revista de direito público. São Paulo,
out.–dez., 1983, n. 68, pp. 101-5. Ainda sobre o tema, cf. André Ramos Tavares, ob. cit., pp. 125 e segs.,
Antônio Carlos Cintra do Amaral. Extinção... cit., pp. 24 e segs., Marcello Caetano. Princípios... cit., p. 113,
além de Weida Zancaner, ob. cit., pp. 29 e segs. O que importa anotar é que o ato inexistente não admite
convalidação. Nesse sentido, por todos, Weida Zancaner, ob. cit., passim.
71
Weida Zancaner, ob. cit., p. 56.
72
Ob. cit., Tomo 3, p. IV-9.
- 107 -
Podemos salientar, ainda, uma diferença quanto ao objeto desses atos. Pressupomos,
no caso, a diferenciação entre conteúdo e objeto. Conteúdo de um ato é sua prescrição, é o
que o ato dispõe. Já o objeto do ato é aquilo sobre o que o ato dispõe73. Na hipótese de ato
administrativo cujo objeto seja materialmente impossível, o ato é inexistente74 e já não faz
sentido questionar sua validade. Já no caso do regulamento a questão oferece outras sutilezas:
é preciso, para concluir pela inexistência do regulamento, analisar se a hipótese do
regulamento é absolutamente impossível ou apenas circunstancialmente impossível ou
inocorrente. Caso o objeto seja circunstancialmente impossível ou apenas inocorrente, o
regulamento é perfeito, isto é, existe, e caberá, então, analisar sua validade. Imaginemos um
exemplo bastante simples para facilitar a compreensão. Na hipótese de o Chefe do Executivo
conceder, por ato administrativo, uma comenda ao brasileiro ganhador do prêmio Nobel. Não
existe brasileiro em tais condições, o ato administrativo é, pois, inexistente. Agora, caso o
Chefe do Executivo concedesse a comenda por ato abstrato, isto é, por regulamento, nos
seguintes termos: "será concedida comenda aos brasileiros que receberem o Nobel". Nesse
caso, o ato não é inexistente porque o objeto é apenas circunstancialmente impossível, vale
dizer, a hipótese é apenas circunstancialmente inaplicável.
É importante destacar, ainda, as diferenças quanto à forma de controle jurisdicional
do ato. É que os regulamentos sujeitam-se a controle incidental de constitucionalidade e
legalidade. Logo, quando em juízo, a parte atenta contra o ato de aplicação concreta do
regulamento e não contra o próprio regulamento. A mera publicação do ato, em princípio, não
permite o controle jurisdicional, salvo nas hipóteses de controle concentrado de
constitucionalidade. O objeto da ação não deve, portanto, discutir a constitucionalidade ou
ilegalidade do ato regulamentar de forma direta, mas como questão incidental. O administrado
carece, por certo, em razão da generalidade e abstração do ato regulamentar, de interesse
processual para impugná-lo judicialmente75. Indispensável para a propositura da ação é a
interferência direta do ato na esfera jurídica do administrado ou, pelo menos, a ameaça a essa
esfera jurídica do administrado.
73
Cf. Weida Zancaner, ob. cit., pp. 31-3, e Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 366-8.
74
Cf. Weida Zancaner, ob. cit., pp. 31-2.
75
Cf. Diógenes Gasparini. Poder... cit., pp. 88-9. O interesse processual decorre da necessidade do
provimento judicial para reparar ou evitar, no caso de ameaça, a lesão ao direito do administrado. Ademais,
exige-se que o provimento jurisdicional seja útil à proteção do interesse substancial debatido em juízo (binômio
necessidade/utilidade). Cf., a propósito, a doutrina de Arruda Alvim: "Não há interesse de agir quando do
sucesso da demanda não puder resultar nenhuma vantagem ou benefício moral ou econômico para o seu autor.
(...) Ocorre interesse processual, ou de agir, quando a satisfação do interesse substancial ou jurídico, tutelado
pelo Direito, não puder ser alcançado sem o recurso à autoridade judiciária. O mero interesse cívico na
observância da lei não legitima o exercício do direito de ação (...)". José Manuel de Arruda Alvim Netto. Manual
de direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 7ª edição, 2000, 2ª tiragem, 2001, vol. 1, pp. 411-2.
- 108 -
76
Cf. Marcello Caetano. Princípios... cit., p. 425.
77
Explica Rafael Bielsa que a ação popular tem eficácia erga omnes porque "seu objeto é restabelecer
a legalidade alterada pelo ato irregular" (A ação popular e o poder discricionário da Administração. Tradução
de Guilherme A. dos Anjos. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro, out.–dez., 1954, vol. 38, p. 50, o
destaque é do original).
78
Luciano Leite, ob. cit., p. 91.
- 109 -
79
Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 3, p. IV-16.
80
Aplicação da hipótese do art. 1º do Decreto 20.910, de 6.1.1932: "Art. 1º - As dividas passivas da
união, dos estados e dos municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a fazenda federal, estadual
ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se
originarem". Esse dispositivo também é aplicável às autarquias por força do art. 2º do Decreto-lei 4.597, de
19.8.1942. Este Decreto-lei estabelece ainda que: "Art. 3º A prescrição das dívidas, direitos e ações a que se
refere o Decreto nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932, somente pode ser interrompida uma vez, e recomeça a
correr, pela metade do prazo, da data do ato que a interrompeu, ou do último do processo para a interromper;
consumar-se-á a prescrição no curso da lide sempre que a partir do último ato ou termo da mesma, inclusive da
sentença nela proferida, embora passada em julgado, decorrer o prazo de dois anos e meio".
81
Explica Weida Zancaner que, em Direito Público, não basta a prescrição para garantir a segurança
jurídica, é preciso fazer incidir o prazo decadencial porque a Administração Pública não precisa se valer da ação
judicial para exercer o poder de invalidar o ato. Assim, explica, a prescrição seria insuficiente para pacificar a
situação (ob. cit., pp. 76-7). Sobre o critério de distinção entre prescrição e decadência, cf. Agnelo Amorim
Filho. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis.
Revista dos tribunais. São Paulo, out., 1960, vol. 300, especialmente, pp. 27-8.
82
São muitos os precedentes jurisprudenciais. Limitamo-nos ao seguinte em razão de sua clareza: "...
eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que se acha materialmente vinculado poderá
configurar insubordinação administrativa aos comandos da lei. Mesmo que desse vício jurídico resulte, num
desdobramento ulterior, uma potencial violação da carta magna, ainda assim estar-se-á em face de uma situação
de inconstitucionalidade meramente reflexa ou oblíqua, cuja apreciação não se revela possível em sede
- 110 -
Assim, admite-se o controle abstrato tão-só nas hipóteses nas quais se verifica um
caráter "autônomo" do regulamento, ou seja, naquelas hipóteses em que a verificação da
inconstitucionalidade não depende da apuração de sua compatibilidade com a lei. Em tais
hipóteses, a decisão, tem, por óbvio, efeitos erga omnes, pois retira o ato do ordenamento
jurídico83.
Os vários obstáculos colocados pelo Supremo Tribunal Federal têm gerado críticas
da doutrina acerca da inexistência de um contencioso abstrato do juízo de constitucionalidade
e legalidade dos atos regulamentares84. A cada vez mais marcante presença dos atos
regulamentares em nosso cotidiano, realmente, exige uma apreciação sem ressalvas da
constitucionalidade dos atos regulamentares em controle abstrato. Ademais, também é
perfeitamente viável a compreensão de que, em tais hipóteses, o que se verifica não é tão-só
ilegalidade e mera inconstitucionalidade indireta. Como explica André Ramos Tavares, no
caso, há, em verdade, ilegalidade e inconstitucionalidade concomitante e o ato legal é apenas
aparentemente interposto. Afinal, é a própria Constituição que determina que o regulamento
obedeça ao texto legal. Nas palavras de André Tavares:
"Nessa medida, é também a Constituição que impede que os decretos extrapolem os limites
presentes nas leis que regulamentam. Assim, um decreto ilegal seria, ao mesmo tempo,
inconstitucional, porque a própria Constituição ordena que os decretos restrinjam-se às leis"85.
A boa hermenêutica constitucional também determina que se interprete a "expressão
ato normativo federal ou estadual" constante do disposto no art. 102, I, a, no sentido de
abranger os regulamentos ilegais. É que, "na interpretação de preceitos relativos à garantia
jurisdicional da Constituição, deve ter-se em conta o interesse decisivo da lei fundamental na
jurisdicional concentrada". STF, Pleno, Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.347-5, rel. Min. Celso de Mello, j.
5.10.1995, DJ 1º.12.1995, v.u.
83
Indispensável aqui a referência à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: "Possuindo o decreto
característica de ato autônomo abstrato, adequado é o ataque da medida na via da ação direta de
inconstitucionalidade. Isso ocorre relativamente a ato do Poder Executivo que, a pretexto de compatibilizar a
liberdade de reunião e de expressão com o direito ao trabalho em ambiente de tranqüilidade, acaba por emprestar
à Carta regulamentação imprópria, sob os ângulos formal e material" STF, Pleno, Ação Direta de
Inconstitucionalidade (medida cautelar) 1.969-4, rel. Min. Marco Aurélio, j. 24.3.1999, DJ 5.3.2004, v.u.
Convém deixar claro que no precedente referido não se debateu a constitucionalidade e a possibilidade de
decreto autônomo em nosso sistema constitucional. Em verdade, ele declarou inconstitucional, em medida
cautelar, decreto do Governo do Distrito Federal regulador das possibilidades de manifestações políticas na
Praça dos Três Poderes porque a medida significou a impossibilidade do exercício de direito garantido
constitucionalmente (Constituição, art. 5º, XVI – direito de reunião).
84
Cf. Gilmar Ferreira Mendes. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na
Alemanha. São Paulo: Saraiva, 3ª edição, 1999, pp. 180-6, Sérgio V. Bruna, ob. cit., pp. 264-6 e Gustavo
Binenbojm, nota de atualização à M. Seabra Fagundes, ob. cit., p. 298. Cf., ainda, a defesa de José Roberto
Pimenta Oliveira para o controle concentrado da razoabilidade-proporcionalidade da competência normativa da
Administração, especialmente em razão da expansão dessa atribuição (ob. cit., pp. 313-4).
85
Ob. cit., p. 185.
- 111 -
86
J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 933.
87
Ob. cit., pp. 265-6 e nota 32.
88
Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., p. 328.
89
Ob. cit., p. 26.
90
Ob. cit., pp. 328 e 338-9.
- 112 -
91
Cf. Diógenes Gasparini. Poder... cit., pp. 58-9.
92
Cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Omissões... cit., p. 259.
93
"Não assiste ao Supremo Tribunal Federal, contudo, em face dos próprios limites fixados pela Carta
Política em tema de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º), a prerrogativa de expedir
provimentos normativos com o objetivo de suprir a inatividade do órgão legislativo inadimplente." STF, Pleno,
Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.458-7, rel. Min. Celso de Mello, j. 23.5.1996, DJ 20.9.1996, v. u. Vale
referir, contudo, ao Mandado de Injunção 283-5, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 20.3.1991, DJ 14.11.1991, por
maioria, com entendimento mais avançado para deferir, aos lesados pela omissão legislativa, o direito de pleitear
pela via judicial ordinária a reparação do dano sofrido. Para um precedente mais recente, v. Mandado de
Injunção 562-9, rel. para acórdão Min. Ellen Gracie, j. 20.2.2003, DJ 20.6.2003, por maioria.
94
Cf., nesse sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, última ob. cit., pp. 259-61.
95
Constituição da República: "Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: (...) V –
sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação
legislativa".
- 113 -
mediante resolução, bem como "zelar pela preservação de sua competência legislativa em
face da atribuição normativa dos outros poderes" (Constituição, art. 49, XI)96.
Há, ainda, uma segunda hipótese de controle pelo Legislativo. É o caso de ser o ato
declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em controle difuso de
constitucionalidade. Caberá, então, ao Senado Federal, por resolução, suspender, no todo ou
em parte, o regulamento inconstitucional, com fundamento no art. 52, X, da Constituição97. É
verdade que a Constituição atual, diferente da anterior98 não inclui expressamente o decreto
entre as possibilidades de suspensão. Contudo, se o Senado Federal pode suspender a lei, que
é manifestação superior do Estado, com maior razão poderá suspender o ato regulamentar,
cujo controle está sujeito ao Congresso Nacional por força do já referido art. 49, V e XI, da
Constituição da República, eis que já declarada judicialmente, em decisão definitiva, a
exacerbação da função regulamentar pelo Supremo Tribunal Federal.
Insistir na distinção entre ato administrativo também se justifica, para além das
diferenças apontadas, pela compreensão de que a função administrativa possui um conteúdo
heterogêneo e que, por isso mesmo, convém procurar explicitar as características próprias de
cada tipo de ato expedido no exercício dessa função, procurando isolar as diferentes
categorias99. É preciso, assim, evitar que o conceito de ato administrativo não se confunda
com o de função administrativa, afinal um conceito de ato administrativo equivalente ao de
função administrativa também não se justificaria.
Dessa forma, diante de tais notas distintivas e da impossibilidade de se confundir ato
administrativo e função administrativa, é forçoso concluir que não se ajusta o conceito de
regulamento ao de ato administrativo. Há distinções suficientes para justificar e tornar útil
essa diferenciação. Ademais, não se pode negar que a confusão é fruto de uma tentativa de
negar importância ao regulamento. Contudo, os regulamentos gozam, na atualidade, de uma
96
O estudo de Sérgio V. Bruna destaca que a hipótese de controle na forma do art. 49, V, da
Constituição não estabelece a competência do Congresso para avaliar de forma discricionária a exacerbação do
poder regulamentar. Assim, assistirá à Administração a possibilidade de questionar judicialmente a resolução do
Congresso Nacional caso entenda que atuou dentro dos limites legais e constitucionais de sua competência. Esse
entendimento, inclusive, encontra amparo em precedente do Supremo Tribunal Federal (RTJ 143/510), como
anota Sérgio Bruna, ob. cit., pp. 259-60. No entanto, cabe reconhecer que essa forma de controle, na prática, tem
se mostrado extremamente débil. A pesquisa de Sérgio Bruna (ob. cit., p. 260, nota 24) aponta apenas dois casos
de suspensão de ato normativo da Administração pelo Congresso Nacional, embora as propostas nesse sentido
sejam bem mais numerosas.
97
Constituição da República: "Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: (...) X –
suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo
Tribunal Federal".
98
Constituição de 1967/1969: "Art. 42. Compete privativamente ao Senado Federal: (...) VII -
suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto, declarados inconstitucionais por decisão definitiva
do Supremo Tribunal Federal". O destaque não é do original.
99
Cf., nesse sentido, Daniele C. Talamini, ob. cit., em especial, p. 73.
- 114 -
REGULAMENTARES
Uma importante nota distintiva dos regimes jurídicos dos atos administrativos e dos
regulamentos — e que merece maior detalhamento e tratamento apartado — é a
impossibilidade de derrogação singular dos atos regulamentares. É a partir desse princípio que
se compreende a diferença substancial entre regulamento e ato administrativo. Isso porque, a
partir do princípio da inderrogabilidade singular, vislumbra-se a superioridade hierárquica dos
regulamentos frente aos atos administrativos100. Evidencia-se, portanto, o regulamento como
ato ordenador, de fonte de direito, o que lhe afasta do conceito de ato administrativo,
unicamente ordenado.
Em razão do princípio da inderrogabilidade singular, na relação regulamento/ato
administrativo, não vale o argumento segundo o qual quem pode o mais também pode o
menos. Ou seja, não é porque à Administração é possível revogar todo o regulamento que ela
está autorizada a derrogá-lo na aplicação em um caso concreto.
O fundamento para essa impossibilidade reside no princípio de tratamento isonômico
(Constituição, art. 5º, caput) e, por conseqüência, no princípio da impessoalidade da
Administração Pública, bem como no princípio da legalidade administrativa (ambos
consagrados como princípios constitucionais da Administração Pública, Constituição, art. 37,
caput).
Constituiria, pois, tratamento discriminatório — que poderá ser favorável ou não ao
administrado, anote-se, desde já — admitir, em princípio, a possibilidade de derrogação
singular dos atos regulamentares. Não se deve olvidar que a função regulamentar se justifica
também para evitar tratamentos díspares na atuação da Administração. Esse é o entendimento
de Diógenes Gasparini, que vale a pena conhecer:
100
Cf., nesse sentido, Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 3, p. IV-6.
- 115 -
"O Chefe de Estado e assim também os Governadores e Prefeitos ou qualquer outra autoridade
competente, pode editar regulamento, modificá-lo, em parte ou inteiramente, e até revogá-lo. Não
possuem, no entanto, poder para editar um ato executivo, visando excepcioná-lo nos casos concretos,
face ao fato de ser necessário o oferecimento de um tratamento isonômico a que tem direito o
administrado. Quebrado o tratamento isonômico cometeriam, tais autoridades, atos inconstitucionais.
A sua competência para praticar o ato advém do próprio regulamento, nos estritos termos que suas
disposições determinam. A competência em tais casos se exaure no próprio regulamento que impede a
violação do princípio da inderrogabilidade singular de qualquer ato normativo"101.
Realmente, não faria qualquer sentido que a autoridade administrativa editasse norma
regulamentar para, ato contínuo, excepcioná-la na sua aplicação concreta. A situação
constrangeria fortemente a exigência de tratamento impessoal a ser dispensado pela
Administração Pública. O princípio da igualdade seria frontalmente violado.
Contudo, Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández consideram a
fundamentação isonômica insuficiente para justificar a regra da inderrogabilidade singular dos
atos regulamentares. É que ela remonta a uma justificativa incompleta da inderrogabilidade,
pois se preocupa apenas com o tratamento diferenciado que prejudica o patrimônio do
administrado. Entretanto, é nas hipóteses de tratamento favorável, não estendido aos demais,
que ocorrem as maiores transgressões ao Direito. Vale dizer, a regra da inderrogabilidade
singular está preocupada também, e especialmente, com a produção de efeitos jurídicos
favoráveis e injustificáveis em favor de pessoas determinadas, quando não preencham todos
os requisitos previstos nas normas regulamentares. Quanto ao princípio da isonomia,
asseveram os autores espanhóis, que ele não veda o tratamento diferenciado em todas as
hipóteses102.
Embora seja verdadeira a assertiva desses autores de que é possível, em certas
hipóteses, o tratamento diferenciado sem infringência à igualdade, consideramos que o
princípio da isonomia veda por completo a possibilidade de revogação singular. Isso porque o
princípio isonômico veda a norma que "singulariza atual e definitivamente um destinatário
determinado, ao invés de abranger uma categoria de pessoas ou uma pessoa futura e
indeterminada"103. Ademais, o fator de discrímen adotado pela derrogação deve guardar
relação de pertinência lógica com a desequiparação procedida. Ou seja, deve-se apurar se há
justificativa racional para atribuir o específico tratamento jurídico construído em função da
101
Poder... cit., p. 104. Cf., também nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., p.
326. V., ainda, Sérgio Ferraz, que considera a impossibilidade de inobservância do regulamento no caso concreto
"uma confirmação do princípio isonômico" (ob. cit., p. 113).
102
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 209-10.
103
Celso Antônio Bandeira de Mello. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade... cit., p. 47.
- 116 -
104
Idem, pp. 37-8 e 47.
105
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 210-1. A conclusão acerca da
não-vinculação do Legislativo às suas normas, contudo, deve ser recebida com certa cautela, eis que não se pode
admitir ato legislativo infrator do princípio da igualdade, como já anotado (cf., neste estudo, Parte 2, item 1.2.,
supra).
106
Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., p. 66. Também Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 1,
pp. VII-22-3, destaca a inderrogabilidade singular dos regulamentos como expressão da aplicação do princípio
da legalidade à matéria regulamentar.
107
Cf. Almiro Couto e Silva. Princípios... cit., p. 49, e J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 714 e nota 5.
108
Celso Antônio Bandeira de Mello. Regulamento... cit., p. 42. Cf., no mesmo sentido, Manoel
Gonçalves Ferreira Filho, ob. cit., pp. 26-7.
- 117 -
109
Ob. cit., p. 73.
3. CONCEITO DE REGULAMENTO
1
Diógenes Gasparini. Poder... cit., p. 18.
2
Direito...cit., p. 117. Cabe anotar que a expressão atribuição, empregada por Diógenes Gasparini, é a
consagrada constitucionalmente pelo caput do art. 84, que traz o rol de atribuições privativas do Presidente da
República.
- 119 -
egoísta de seu titular, mas devem ser exercitadas em função do interesse público3. Para os
autores citados, o poder regulamentar é o poder em virtude do qual a Administração dita
regulamentos. Trata-se de uma prerrogativa das mais intensas e graves porque implica a
participação da Administração na formação do ordenamento jurídico4.
Optamos, contudo, por definir como dever-poder com base na boa doutrina nacional
de Direito Administrativo. É que a ênfase, quando se trata de Administração Pública, deve
recair sobre o dever de curar os interesses públicos e não sobre o poder, este é apenas
instrumental. Assim, justifica-se a expressão dever-poder regulamentar "para melhor vincar
sua fisionomia e exibir com clareza que o poder se subordina ao cumprimento, no interesse
alheio, de uma dada finalidade"5. Trata-se, pois, da expressão de uma função, a função
regulamentar, de um poder instrumental voltado ao atendimento de finalidades públicas.
Assim, embora seja mais corrente na doutrina a expressão "poder regulamentar", isso
não é capaz de torná-la a mais acertada. "Melhor seria designar tal atribuição como 'dever
regulamentar', pois o que o Chefe do Executivo tem é o dever de regulamentar as leis que
demandam tal providência, e não meramente um 'poder' de fazê-lo"6. A expressão função
regulamentar, portanto, é capaz de vincular essa idéia de dever associado a um poder
instrumental.
"Poucas matérias têm sido alvo de discussão teórica tão ampla, na ciência jurídica,
quanto a do fundamento do poder regulamentar"7. É com esse alerta de Sérgio Ferraz que se
passa, com cautela, ao exame do tema posto na epígrafe.
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández esclarecem que, na França, o
poder regulamentar se justificou com base no princípio monárquico8, que fazia frente ao
3
Eduardo García de Enterrría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 449-51 e 453.
4
Idem, p. 182.
5
Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., p. 87.
6
Idem, p. 327.
7
Sérgio Ferraz, ob. cit., p. 107.
8
O princípio monárquico, como explica Luís S. Cabral de Moncada, pressupõe que "o «fürstiliche
Gewalt» (poder do príncipe) é o garante da integração dos restantes poderes estaduais numa unidade de sentido
racional e ético capaz de imprimir dignidade espiritual à acção do estado. (...) [o poder do príncipe seria o]
impulso inicial da decisão política global capaz de assinalar uma unidade de sentido a toda acção estadual em
prol de uma dimensão finalística autónoma que se distingue claramente do simples mundo dos interesses da
sociedade civil" (ob. cit., p. 59, nota 53). No Brasil, apenas a Constituição outorgada de 1824 recepcionou dito
princípio, que tomou forma político-jurídica no poder moderador do Imperador. Explica Itiberê de Oliveira
- 120 -
princípio democrático. Cada um desses princípios seria capaz de produzir norma. O primeiro
capaz de produzir regulamento, o segundo capaz de produzir a lei. Daí, então, a compreensão
de que o regulamento era fonte autônoma e independente, não carecendo, pois, de habilitação
parlamentar. Já no direito anglo-saxão, o poder regulamentar se desenvolve com a tese da
delegated legislation9. Ora, fácil ver que nenhum desses fundamentos explica a função
regulamentar em nosso ordenamento constitucional.
Hoje já não há possibilidade de se governar sem poder regulamentar, especialmente
em razão das complexidades das relações sociais. Assim, o regulamento, segundo os autores
espanhóis, passa a ser a parte mais significativa do ordenamento jurídico-administrativo. A
complexidade técnica das matérias também militou em favor do poder regulamentar. Não
obstante os riscos da normatização pela Administração, gostemos ou não, o poder
regulamentar da Administração, concluem, é hoje imprescindível10.
Os autores espanhóis referidos explicam, ainda, que a atuação da Administração,
também no campo normativo, refere-se ao contingente e ao provisório sendo o regulamento
uma norma de caráter contingente e, nesse sentido, "concreta":
"Y ocurre que la contingencia y la provisionalidad y la singularidad de las situaciones con que la
Administración ha de enfrentarse no se abordan sólo con actos que se limitan a aplicar un orden
general ya establecido, sino también, y especialmente, mediante la definición de órdenes normativos
singulares, provisionales y contingentes para afrontar las situaciones concretas contempladas. En este
sentido tan particular puede acogerse el principio rousseauniano (aunque en su autor tenga un sentido
justamente opuesto) gouvener c'est légiferer"11.
Nesse contexto, a norma perde sua antiga vinculação ao conceito de Justiça para se
justificar em razão das circunstâncias. Mudam as circunstâncias, mudam as normas. A própria
vigência da norma está igualmente condicionada à manutenção da situação com base na qual
foi ditada. Essa é "la teoría del cambio de circunstancias"12.
Diógenes Gasparini traz considerações semelhantes ao explicar os fundamentos
políticos do poder regulamentar. Fala, então, na Administração como "aplicadora dinâmica da
lei". Destaca a dificuldade de o Legislativo atender prontamente às demandas por
Rodrigues que "Segundo o princípio monárquico, a Constituição não era a base de legitimidade para o exercício
do poder estatal, antes o contrário: ela era o resultado de uma auto-limitação do poder do monarca perante os
súditos" (ob. cit., p. 61).
9
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 183-4.
10
Idem, p. 185.
11
Idem, p. 83.
12
Idem, p. 84,
- 121 -
13
Poder... cit., pp. 20-1, e Direito... cit., p. 118.
14
Eros Grau, ob. cit., pp. 25-7 e 124.
15
Idem, p. 27.
16
Eros Roberto Grau. Capacidade normativa de conjuntura [verbete]. In: R. Limongi França (coord).
Enciclopédia Saraiva do direito. São Paulo: Saraiva, 1978, vol. 13, p. 49, os grifos são do original.
17
O indispensável... cit., pp. 15-7.
18
Idem, p. 17.
- 122 -
19
Função... cit., p. 403.
- 123 -
puede, en consecuencia, crearse a sí misma derechos frente los particulares por observar
habitualmente una determinada conducta"20. Ademais, só se admite o costume constitucional
secundum constitutionem21.
Também Luís S. Cabral de Moncada, ao discorrer sobre a atual compreensão da
legalidade no Direito alemão, assevera que "não faz sentido reclamar a favor do executivo nos
nossos dias poderes implícitos ou competências não escritas de valor consuetudinário que
caiam fora da reserva de lei"22. A lei é pressuposto de toda atividade administrativa. Não se
admite, pois, função regulamentar com fundamento em costume.
Já Marcello Caetano é exemplo daqueles que defendem a tese segundo a qual a
faculdade regulamentar é inerente ao exercício da função administrativa, ou melhor, é um
corolário do poder administrativo. Assim, esse poder se explica e se justifica pelo fato de que
a Administração tem poderes para interpretar as leis que aplica. Esse seria o fundamento
teórico porque o fundamento jurídico sempre resulta da lei. Assim, em razão da dispersão dos
agentes da Administração, é preciso ordenar a aplicação da lei. Cuida-se, pois, de uma
autodisciplina, em que os regulamentos surgem para completar, desenvolver e esclarecer os
preceitos legais. O regulamento é uma autodisciplina da Administração23. Na síntese do autor:
"Em meu entender o poder regulamentar da Administração Pública é uma faculdade natural
desta, inerente à autoridade de que dispõe para executar as leis e imposta pela dispersão dos
órgãos e agentes que a compõem"24.
É possível trazer uma outra conclusão dessa fundamentação: se o poder regulamentar
justifica-se em função da dispersão de órgãos e agentes, esse fato explica inclusive a sua
centralização no chefe do Poder Executivo. O regulamento se justificaria como uma função
conatural ao exercício da hierarquia. Logo, o regulamento se limitaria aos submetidos ao
poder hierárquico e prescindiria de autorização legislativa25.
A função regulamentar como decorrência do poder hierárquico é sustentada por
Geraldo Ataliba. O autor sustenta que "o capital fundamento lógico e político administrativo
do poder regulamentar está na qualidade de condutor da administração pública do Chefe do
Executivo"26. Mas se o fundamento da função regulamentar é o princípio hierárquico, os
20
Ob. cit., Tomo 1, p. VII-44.
21
Cf., nesse sentido, J. J. Gomes Canotilho, ob. cit, p. 862.
22
Ob. cit., p. 161. Para uma análise mais detida do costume, em especial no Direito Administrativo, v.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit., pp. 367-78, e Hartmut Maurer, ob. cit., § 4, 19-22, pp. 75-7.
23
Manual... cit., p. 32, e Princípios... cit., pp. 80-2.
24
Princípios... cit., p. 81.
25
Cf. Sérgio V. Bruna, ob. cit., pp. 83-7.
26
Decreto... cit., pp. 29 e 32. Cf., do mesmo autor, Poder regulamentar do Executivo... cit., pp. 187,
189 e 193.
- 124 -
regulamentos deveriam se referir tão-só àqueles que estão submetidos ao poder hierárquico, o
que não se verifica. Assim, essa perspectiva, a nosso sentir, peca pelo fato de vislumbrar tão-
só os efeitos internos dos regulamentos, menosprezando os necessários efeitos externos da
função regulamentar. A questão ainda merecerá maiores esclarecimentos (cf. Parte 2, item
3.3.4., infra).
A lição de Diógenes Gasparini também acolhe a tese de que a função regulamentar é
inerente à função administrativa. Para ele o poder regulamentar se justifica numa atribuição
originária, inerente à capacidade de executar as leis. Essa capacidade de aplicar a lei é
atribuída ao Executivo, sendo o regulamento o primeiro passo na execução da lei. "Por esse
motivo, mesmo que silentes a lei e a Constituição, no que se refere ao Poder competente para
regulamentar, essa atribuição é do Executivo, porque fluente de sua própria função"27. Assim,
diz o autor, o Executivo não carece de autorização legislativa específica; exerce
ordinariamente seu poder quando há lei a executar, e extraordinariamente quando não há lei a
executar28.
Não vemos possibilidade de se acolher a tese segundo a qual o fundamento do poder
regulamentar reside numa atribuição originária. Isso equivaleria a colocá-lo fora dos
patamares jurídicos. Essa argumentação equivaleria à busca de uma essência material da
função administrativa no bojo da qual encontraríamos também o poder regulamentar.
Equivaleria, ademais, a desconectar a Administração Pública de seu pressuposto de atuação, a
lei, invertendo o eixo de compreensão do Direito Administrativo, ou seja, enfatiza-se o poder
em detrimento do direito do administrado.
Os poderes administrativos são poderes jurídicos, conferidos pelo ordenamento. Não
se trata, portanto, de uma decorrência natural do exercício de uma função de executar as leis.
Fundamentar a função regulamentar como decorrência da função de executar as leis poderia
justificar a presença de uma função regulamentar também no Judiciário, pela simples razão de
que também ele executa as leis. Essa tese também justificaria a possibilidade de todo agente
público — porque tem competência para a prática de ato administrativo — editar
regulamentos, o que não se confirma na prática29.
A tese da delegação também não se ajusta ao nosso ordenamento jurídico, pois, como
já destacado no início deste estudo, ela é vedada por nossa Constituição, a qual cabe a
27
Direito... cit., p. 119.
28
Poder... cit., pp. 27-8.
29
Essas considerações também se prestam para infirmar a proposta de Eros Grau. Para esse autor, a
habilitação ou autorização legal não é fundamento da função regulamentar: é mero expediente. O fundamento
estaria na "vocação do ordenamento jurídico para realizar-se como um todo" (O direito... cit., pp. 249-50).
- 125 -
atribuição de função legislativa. Ademais, o regulamento não possui força de lei, não
caracterizando, portanto, delegação.
O fundamento da função regulamentar, portanto, deve ser encontrado no
ordenamento jurídico, mais especificamente no ordenamento jurídico-constitucional. Nesse
sentido, mais uma vez, recorremos aos ensinamentos de Eduardo García de Enterría e Tomás-
Ramón Fernández: "La existencia de un poder de participación en la elaboración del
ordenamiento, la definición de una «fuente» de Derecho tan relevante, de un poder normativo
complementario del legislativo, es, por fuerza, dada su significación, una determinación
constitucional"30.
O nosso ordenamento constitucional, com efeito, atribuiu privativamente ao
presidente da República a competência para expedir regulamentos para a fiel execução das
leis (Constituição, art. 84, IV). Esse é, pois, o fundamento jurídico-constitucional de sua
função regulamentar. O texto também é bastante claro no sentido de que essa é uma atribuição
destinada à execução da lei. Vale destacar que a fórmula de somente se admitir regulamentos
para a execução das leis é tradicional em nosso direito constitucional. Já na Constituição de
1824, art. 102, somente se admitia a expedição pelo Poder Executivo de "Decretos, Instruções
e Regulamentos adequados à boa execução das leis".
Contudo, no atual regime constitucional, em face da competência privativa do
Presidente da República, falta explicar o fundamento dos atos normativos de inúmeros outros
órgãos da Administração.
O exemplo espanhol, que vive situação, nesse ponto, assemelhada, talvez ajude a
compreender essa possibilidade normativa, pois o art. 97 da Constituição espanhola atribui o
poder regulamentar apenas ao Governo31. No entanto, há regulamentos editados pelos
Ministros e outras autoridades independentes. Essa possibilidade regulamentar depende,
30
Ob. cit., p. 186. Não nos parece de todo acertada a crítica de Sérgio V. Bruna à tese de Eduardo
García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, quando afirma que exigem previsão constitucional, mas a
dispensam caso a Constituição nada diga, porque esse é um costume constitucional inequívoco. Conclui, assim,
que "Não parece também haver sentido em exigir, como fazem García de Enterría e Ramón Fernández, a
existência de previsão constitucional para o exercício do poder regulamentar, ao mesmo tempo dispensando tal
autorização pelo reconhecimento de uma 'prática constitucional inequívoca'" (ob. cit., p. 82). Na realidade, o que
os autores espanhóis destacam é que se a Constituição escrita nada diz sobre o poder regulamentar, se deveria
então localizar o costume constitucional inequívoco que autorizaria a edição de regulamentos. Assim, exige-se
sempre permissão constitucional. É o que extraímos do seguinte trecho: "(...) pero, aun si la Constitución escrita
nada precisase habría que explicar la titularidad del poder reglamentario en el Ejecutivo en la existencia de una
costumbre constitucional inequívoca" (ob. cit., p. 186).
31
Constituição española, art. 97: "El Gobierno dirige la política interior y exterior, la Administración
civil y militar y la defensa del Estado. Ejerce la función ejecutiva y la potestad reglamentaria de acuerdo con la
Constitución y las leyes".
- 126 -
então, de uma habilitação legal específica. Contudo, esses regulamentos não podem vincular
os cidadãos, sob pena de violação do art. 97 da Constituição espanhola.
Na hipótese dessas habilitações legais ultrapassarem o âmbito interno da
Administração, o conteúdo substancial e efeitos dessa norma devem estar previstos nas leis
formais32. "Serán, por ello, Órdenes ministeriales de pura ejecución, pero como tales nos son
suficientes para crear Derecho material nuevo, con directivas políticas o jurídicas propias"33.
Sobre as administrações independentes espanholas (inspiradas nas regulatory
comissions americanas), detentoras de possibilidades normativas nas áreas que regulam, a
conclusão dos autores é a mesma:
"Entendemos que estas regulaciones secundarias pueden tener valor organizativo y que en el plano
normativo externo, aparte de poder integrar como normas técnicas la remisión expresa de algunas
Leyes, tendrán normalmente valor interpretativo, que, salvo en supuesto indicado, no vinculan al juez,
por las mismas razones que han quedados expuestas al tratar de la potestad reglamentaria de los
Ministros"34.
A solução proposta pelo ordenamento jurídico argentino caminha em sentido
próximo. Assim, explica Agustín Gordillo, que a faculdade de editar regulamentos é
outorgada principalmente ao Poder Executivo e só de forma limitada ao Chefe de Gabinete.
Somente por exceção se admite essa faculdade, de maneira limitada, às entidades
descentralizadas, ressalvado o caso das autoridades independentes. Conclui, portanto, que fora
desses casos, é necessária uma norma expressa de lei que autorize a regulamentação por
órgãos diversos35.
No ordenamento jurídico português, explica J. J. Gomes Canotilho, o fundamento do
poder regulamentar reside na própria Constituição: essa é a fundamentação jurídica, a que
deve ser levada em conta e não a justificação política, material ou prática. Então como
explicar as hipóteses de regulamentos que não têm fundamento direto na Constituição? A
resposta, explica, passa pela compreensão de que a função regulamentar não compõe um
sistema fechado, mas um sistema aberto e assim autoriza a atribuição pelo legislador. É
preciso transcrever trecho da lição para sua boa compreensão:
"O fundamento constitucional dos regulamentos não deve, porém, ser compreendido em termos
análogos ao fundamento jurídico-constitucional dos actos legislativos (actos primários). O sistema
jurídico-constitucional dos actos legislativos assenta no princípio da tipicidade (é, pois, um 'sistema
32
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 191-3.
33
Idem, p. 193
34
Idem, p. 196. A exceção indicada pelos autores, refere-se ao Banco de Espanha, que teve sua
competência normativa reforçada pela Ley de Autonomia de 1994, promulgada com amparo no Tratado da
União Européia.
35
Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 1, p. VII-39.
- 127 -
fechado'), ao passo que o regime jurídico do poder regulamentar é compatível com um sistema aberto
em que o legislador, nos quadros da constituição, tem a possibilidade de atribuir e modelar poderes
regulamentares (é o que acontece, hoje, por exemplo, em relação aos poderes regulamentares das
entidades administrativas independentes)"36.
Também na Itália, conforme explica Luís S. Cabral de Moncada37, a forma normal de
expedição de regulamentos é o decreto presidencial, cuja previsão encontra-se no art. 87 da
Constituição italiana. A previsão constitucional, no entanto, não serviu para reservar-lhe a
elaboração de todos os regulamentos. A conclusão do autor, já quando analisa o ordenamento
jurídico português, é a seguinte: a atribuição de poder regulamentar pode acontecer tanto em
nível legal como em nível constitucional. Mas a fundamentação constitucional não basta para
fundamentar um regulamento, é preciso uma lei para a fundamentação de cada regulamento,
para lhe servir de parâmetro de controle38.
Entre nós, uma proposta de solução, é apresentada por Eduardo Salomão Neto. Para
o autor, os regulamentos expedidos com fundamento no art. 84, VI, da Constituição da
República independem de autorização específica em lei para sua expedição. Mas o dispositivo
constitucional não seria capaz de impedir a produção de regulamentos autorizados pelos
demais órgãos da Administração Pública39.
A solução, portanto, passaria por reconhecer que, no caso brasileiro, os atos que não
são editados pelo Presidente da República, ou seja, que não encontram fundamento no art. 84,
IV, da Constituição da República, devem buscar seu fundamento numa autorização ou
habilitação legal específica. Além disso, tais normas regulamentares deverão ter o conteúdo
substancial de suas determinações previstas na lei habilitante, sob pena de
inconstitucionalidade. A questão ainda será retomada. Cuidemos, por enquanto, da definição
de regulamento. Basta nesse ponto a consciência de que a função regulamentar pode não se
restringir exclusivamente à hipótese do art. 84, IV, da Constituição da República.
36
J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 834, os destaques são do original.
37
Ob. cit., p. 558 e nota 894.
38
Idem, pp. 1.018-20.
39
Eduardo Salomão Neto. Direito... cit., p. 110.
- 128 -
47
Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Limites... cit., pp. 41-50.
48
Idem, pp. 41-50.
49
Geraldo Ataliba. Decreto... cit., p. 32.
50
Poder regulamentar. Delegação... cit., p. 87
- 131 -
51
Idem, pp. 88-9.
52
Poder... cit., p. 109. O dispositivo constitucional citado por Diógenes Gasparini refere-se à Carta de
1967/1969, cujo teor corresponde ao do art. 87, parágrafo único, II, da Constituição vigente, como se vê: "Art.
85. Compete ao Ministro de Estado, além das atribuições que a Constituição e as leis estabelecerem: (...) II -
expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos".
53
Ob. cit., p. 181. A conceituação de Hartmut Maurer é bastante próxima da dos autores espanhóis:
"O regulamento jurídico é conceitualmente uma norma jurídica promulgada por um órgão executivo" (ob. cit., §
13, 1, p. 389, o destaque é do original).
54
Daniele C. Talamini, ob. cit., pp. 80-1.
- 132 -
atos normativos das entidades administrativas às quais a lei atribui competência normativa.
Fundamenta a constitucionalidade dessa competência normativa no art. 174, caput, da
Constituição da República, que atribuiu de forma ampla à Administração Pública a
competência normativa, desde que seja exercida na forma da lei. Invoca, ainda, as previsões
constitucionais de criação de órgãos reguladores, de autarquias, além do princípio da
eficiência administrativa (Constituição, art. 37, caput, e XIX, art. 21, XI, e art. 177, § 2º, III),
tudo em prol da tese da competência não-exclusiva do Presidente da República para expedir
regulamentos.
A diferença entre os regulamentos, segundo o autor, explica-se exclusivamente pela
pretensão de maior alcance e generalidade do regulamento presidencial, enquanto os demais
regulamentos são setoriais. Logo, as entidades reguladoras também exercem competência
regulamentar ao lado do Presidente da República. Explica, ainda, que não deve
necessariamente prevalecer o regulamento presidencial sobre o regulamento setorial. É que à
hipótese aplicar-se-ia o princípio da especialidade em favor do regulamento setorial55.
"Ademais, como a lei tem precedência sobre os regulamentos, a norma atributiva de
competência (no caso, atributiva de competência à agência reguladora) prevalece sobre o
regulamento presidencial"56. Bem por isso, classifica os regulamentos em presidenciais e
setoriais.
É mister anotar, inclusive, que, quanto ao ordenamento jurídico argentino, o parecer
de Agustín Gordillo é no sentido vedar a possibilidade de a autoridade central violar ou
descumprir as normas da autoridade independente quando são de sua competência
específica57.
Ainda na doutrina nacional, San Tiago Dantas também empregava o termo
regulamento em sentido amplo:
"O poder de baixar regulamentos, isto é, de estatuir normas jurídicas hierarquicamente inferiores e
subordinadas à lei, mas que nem por isso deixam de reger coercitivamente as relações sociais, é uma
atribuição constitucional do Presidente da República, mas a própria lei pode conferi-la, em assuntos
determinados, a um órgão da Administração pública ou a uma dessas entidades autônomas que são as
autarquias"58.
55
Gustavo Binenbojm, ob. cit., pp. 153-6 e 280-1.
56
Idem, p. 156.
57
Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 1, p. VII-24.
58
Francisco Clementino de San Tiago Dantas. Poder regulamentar das autarquias [parecer]. In:
Problemas de direito positivo: estudos e pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 1ª edição, 1953, 2ª edição, 2004, p.
153.
- 133 -
59
Ob. cit., pp. 191-3 e nota 31 e pp. 265 e 273, nota 6.
60
Comissão... cit., pp. 1.079, 1.083 e 1.088.
61
Ob. cit., p. 834.
- 134 -
outros Poderes (Constituição, art. 49, XI). Quando estabelece a reserva de plenário para a
declaração de inconstitucionalidade de "lei ou ato normativo do Poder Público" (Constituição,
art. 97). Bem como quando prevê a ação direta de constitucionalidade e inconstitucionalidade
contra lei e ato normativo federal (Constituição, art. 102, I, a). Em especial, quando esclarece
que a decisão da declaração de inconstitucionalidade por omissão deverá ser atendida por
órgão administrativo em trinta dias (Constituição, art. 103, § 2º). Assim também na previsão
da competência do Superior Tribunal de Justiça para julgar mandado de injunção quando a
norma regulamentadora for atribuição de órgão, entidade ou autoridade federal, da
administração direta ou indireta, excetuados os casos de competência do Supremo Tribunal
Federal e dos órgãos da Justiça Militar, da Justiça Eleitoral, da Justiça do Trabalho e da
Justiça Federal (Constituição, art. 105, I, h). Isso sem falar na previsão do Estado como agente
normativo e regulador prevista no art. 174, caput, além da previsão de, ao menos duas,
entidades reguladoras (Constituição, arts. 21, XI, e 177, § 2º).
Se assim é, realmente, concebe-se como legítimo o uso amplo do termo regulamento.
Essa definição seria capaz, ainda, de abrigar em seu conceito muitos dos atos infra-
regulamentares. Convém, contudo, destacar que a possibilidade de expedir regulamento,
como já destacamos, depende de uma expressa habilitação legal. Logo, não são regulamentos
os atos normativos que pretendam a regulamentação de outro ato infralegal. Ou seja, não
seriam regulamentos as normas que regulamentam outro regulamento.
Nesse ponto, cabe consignar, parenteticamente, dois esclarecimentos adicionais. O
primeiro: não se cogita de habilitação para o exercício de função regulamentar por meio de
medida provisória (Constituição, art. 62). É que a relevância e, especialmente, a urgência
requeridas para a edição do ato não se ajustam à necessidade de ulterior regulamentação da
norma. O segundo: na forma do art. 13, I, da Lei 9.784, de 29.1.1999, não pode ser objeto de
delegação "a edição de atos de caráter normativo". Logo, o órgão habilitado não tem o poder
de habilitar outro por meio de seus regulamentos.
Não obstante o reconhecimento dessa possibilidade regulamentar em sentido amplo,
não se deve olvidar que cabe ao Presidente da República o exercício da direção superior da
Administração Pública federal (Constituição, art. 84, II). Dessa forma, os atos do Presidente
da República sobrepõem-se, de regra, aos demais atos normativos da Administração. Logo,
somente na hipótese em que haja o reconhecimento legal e constitucional de autonomia para a
disciplina de determinada matéria poderá ser admitida a aplicação do princípio da
especialidade, que justificaria a prevalência da norma setorial em detrimento da norma
- 135 -
expedida pelo órgão de direção. A regra, contudo, é a prevalência das normas editadas com
fundamento na atribuição regulamentar constitucional do Presidente da República.
Assim, parece correta, em certa medida, a advertência feita por Gustavo Binenbojm,
antes referida, acerca da impossibilidade de regulamentos presidenciais revogarem ou
invalidarem norma expedida por agência reguladora. Caso fosse possível a hipótese cogitada,
toda a deferência à autonomia desses órgãos da Administração seria de pouquíssima valia.
Logo, a autonomia que lhes é deferida poderá justificar a prevalência de suas normas no setor
que lhe compete regular. Daí não parece ser correto tachar todas as normas editadas por
agências e órgãos reguladores de infra-regulamentar, pois que essa atitude desprestigia e
ignora a autonomia reconhecida a favor desses órgãos.
Estabelecido o fundamento da competência regulamentar, cabe, agora, quanto à
definição ampla de regulamento, destacar o fato de que também não basta dizer que o
regulamento é uma norma jurídica, pois a norma jurídica se define como uma prescrição, que
pode ser geral e abstrata ou individual e concreta62. Bem por isso, é preciso dizer que o
regulamento, num sentido amplo, é uma regra de direito objetivo ou norma abstrata. Cuida-se,
pois, de uma deliberação tomada, não em consideração de um caso particular e atual, mas
para regular todos os casos da mesma natureza, no presente ou no futuro, que possam ser
abrangidos pela norma e, portanto, destinada a ser aplicada a todos indivíduos nas condições
previstas pelo seu texto63.
Essa definição se justificaria para apartar os regulamentos — tanto em sentido estrito
(regulamento presidencial) como também os regulamentos em sentido amplo — dos atos
administrativos concretos. Ato administrativo e regulamento têm regimes jurídicos próximos
porque ambos são expedidos no exercício de função administrativa. Há, contudo, distinções
importantes, que devem ser conhecidas. Os regulamentos não são nem lei em sentido material
nem ato administrativo geral: são coisas diversas. E vale a pena ou é útil diferenciar para
melhor conhecer os regimes jurídicos que são próprios de cada atividade, especialmente em
razão da quantidade crescente de atos normativos produzidos pela Administração em nossos
dias, especialmente pelas chamadas agências reguladoras. Assim, já não se justifica definir o
regulamento como ato administrativo geral ou abstrato. Se antes, em razão do pouquíssimo
espaço que se reconhecia aos regulamentos não havia razão maior para a diferenciação entre
ato administrativo e regulamento, na atualidade, diante da profusão normativa e da sua
presença marcante, torna-se imperioso o conhecimento das diferenças de regime jurídico.
62
Hans Kelsen, ob. cit., em especial, pp. 260 e segs.
63
J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 715.
- 136 -
64
Cf. Marcello Caetano. Princípios... cit., p. 103.
- 137 -
tem por base a classificação usada à época para os costumes. A proposta tem por critério a
relação do regulamento com a lei. Assim, os regulamentos executivos são secundum legem, os
regulamentos independentes aproximam-se dos costumes praeter ou extra legem, e,
finalmente, os regulamentos de necessidade fazem paralelo aos costumes contra legem65.
Nessa proposta de classificação, os regulamentos delegados compõem um tipo especial de
regulamento executivo porque não são atos alheios à lei ou contrários à lei. A questão
merecerá maiores esclarecimentos quando se tratar especificamente desse tipo de
regulamento. Cuidemos, agora, de cada uma das classes de regulamentos já indicadas.
65
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 213-4.
66
Idem, p. 214.
67
Diógenes Gasparini doutrina em sentido contrário. Reconhece o autor, entretanto, que "as leis que
não serão executadas pelo Poder Executivo, carecem menos da explicitação regulamentar que as outras. São de
fato leis auto-executáveis, na sua maioria. Esta verdade, acreditamos, não é suficiente para que uma observação
parcial ou tendenciosa seja elevada à categoria de limite da atribuição, mesmo porque a prática desmente a
pretensão dos que entendem possível a restrição". Poder... cit., p. 55.
- 138 -
68
Cf., nesse sentido, Diógenes Gasparini. Poder... cit., pp. 54-5.
69
Cf., nesse sentido, Geraldo Ataliba. Decreto... cit., p. 24.
70
Diógenes Gasparini. Poder... cit., pp. 58-9.
71
Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., p. 359.
72
Cf., nesse sentido, Vicente Ráo, ob. cit., pp. 339-40, nota 116.
- 139 -
73
Diógenes Gasparini. Poder... cit., pp. 77 e 131-3.
74
Cf. Luciano Leite, ob. cit., pp. 62-3.
75
Ob. cit., pp. 247 e 342-6.
76
Cf. Gustavo Binenbojm, ob. cit., p. 160.
77
Poder... cit., pp. 134 e segs. Em obra mais recente asseverou que esses regulamentos
"desapareceram com a Constituição Federal de 1988", mas parecem voltar com a Emenda Constitucional 32, de
11.9.2001 (Direito... cit., p. 122).
78
Diógenes Gasparini. Poder... cit., pp. 145 e segs.
79
Luciano Leite, ob. cit., pp. 78-80. V., ainda, em sentido próximo ao de Luciano Leite, Sérgio V.
Bruna, ob. cit., pp. 89-91.
- 140 -
80
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 217.
81
Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 1, pp. VII-7-8.
82
Ob. cit., p. 356.
83
Carlos Ari Sundfeld. Criação, estruturação e extinção de órgãos públicos ― limites da lei e do
decreto regulamentar. Revista de direito público. São Paulo, jan.–mar., 1991, n. 97, em especial, p. 46. A redação
original do referido preceito constitucional era a seguinte: "Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da
República: (...) VI – dispor sobre a organização e o funcionamento da administração federal, na forma da lei".
- 141 -
da Constituição, cuja redação foi alterada pela Emenda Constitucional 32, de 11.9.200184. Em
sentido próprio, não são regulamentos independentes ou autônomos, isto é, na forma daqueles
previstos na Constituição francesa de 1958. Isso porque esses regulamentos não podem
revogar a lei, não gozam de uma reserva material própria e também não prevalecem diante de
uma lei formal que disponha em sentido contrário, e estas são justamente as notas do
regulamento independente85.
A doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello nos dá garantias de que a hipótese
regulamentar prevista no dispositivo constitucional citado não caracteriza regulamento
autônomo. É que a hipótese da alínea a do art. 84, VI, se traduz numa simples manifestação
do poder hierárquico, ou seja, numa mera competência para a organização exclusivamente
interna de órgãos já criados por lei; logo submetida à legalidade. Equivale dizer, o Presidente
já atua dentro de esquemas legalmente traçados e, bem por isso, na forma expressa no
dispositivo constitucional não pode criar ou extinguir cargos públicos, cuida tão-só de um
arranjo interno de órgãos previamente criados por lei86.
Não obstante, Gustavo Binenbojm anota que na doutrina formaram-se, sobre o tema
(alínea a do citado dispositivo constitucional), três correntes. A primeira continua a negar a
existência de regulamentos autônomos. A segunda, oposta a primeira, vislumbra no caso a
criação de uma reserva da Administração, imune à lei em sentido formal, com fundamento,
em especial, nas alterações sofridas no art. 48, XI, da Constituição da República pela Emenda
Constitucional 32, de 11.9.2001. A terceira — a que o autor entende correta — reconhece a
existência de uma nova espécie de regulamento, incapaz, contudo, de afastar as exigências do
princípio da preferência da lei. Vale dizer, poderá o Presidente da República dispor mediante
regulamento sobre a matéria relativa à organização e funcionamento da Administração, mas
as disposições legais posteriores, de iniciativa do próprio Presidente (Constituição, art. 61, §
1º, I), irão se sobrepor às disposições regulamentares. O autor ainda esclarece que se o
legislador constituinte reformador tentou criar uma reserva em favor do regulamento,
excepcionando os princípios da preferência e da precedência da lei, sua atuação foi, nesse
sentido, inconstitucional, com ofensa aos incisos III e IV do § 4º do art. 60 da Constituição da
84
Constituição: "Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) VI – dispor,
mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar
aumento de despesa nem criação ou extinção de cargos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos,
quando vagos" (redação determinada pela Emenda Constitucional 32, de 11.9.2001).
85
Sobre as características dos regulamentos autônomos, cf. Luciano Leite, ob. cit., pp. 51-3.
86
Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 92-3, nota 9, e pp. 316-7. Cf., também nesse
sentido, Marcelo Figueiredo, ob. cit., pp. 189-90.
- 142 -
República. É que tais princípios são garantias fundamentais dos cidadãos e desdobramentos
necessários da separação de poderes87.
Quanto à hipótese prevista na alínea b da disposição constitucional em questão,
referente à possibilidade de extinguir cargos ou funções, mas desde que vagos, cuida-se, em
verdade, de ato concreto, mais especificamente ato concreto contraposto ao que fora criado
por lei88. Gustavo Binenbojm, por sua vez, destaca a importância prática de se entender a
hipótese como ato concreto e de se evitar a confusão entre forma e substância. É que,
admitindo-se que o ato é concreto, viabiliza-se o controle pela via do mandado de
segurança89. Em verdade, viabiliza-se o controle jurisdicional difuso direto contra o ato,
inclusive por meio de mandado de segurança.
Logo, fica afastada no caso qualquer possibilidade de se classificar os regulamentos
expedidos com fundamento no art. 84, VI, da Constituição da República como autônomo, sob
pena de se interpretar como inconstitucional a Emenda Constitucional 32, de 11.9.200190.
Contudo, é preciso reconhecer que os regulamentos expedidos com fundamento no
art. 84, VI, da Constituição da República recebem a denominação de autônomo inclusive por
ato da própria Administração: v. o art. 17 do Decreto Federal 4.176, de 28.3.2002, que
disciplina as hipóteses de decretos autônomos91. Em verdade, a despeito disso, a
nomenclatura indicada no referido Decreto não é capaz de atribuir aos regulamentos as
características próprias e muito menos o valor jurídico-formal dos regulamentos autônomos.
87
Gustavo Binenbojm, ob. cit., pp. 166-170.
88
Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 316-7.
89
Gustavo Binenbojm, ob. cit., p. 166, nota 369.
90
No entanto, a leitura apressada da ementa de um recente acórdão do Supremo Tribunal Federal pode
levar à equivocada conclusão de que a tese de matéria reservada à Administração, por força da nova redação do
art. 84, VI, da Constituição da República, foi acolhida pela Corte. Na oportunidade, o Tribunal declarou a
inconstitucionalidade de vários dispositivos de lei estadual por violação à reserva de iniciativa do Chefe do
Executivo. Ainda segundo a ementa, os dispositivos da lei impugnada também seriam inconstitucionais "porque
dispõem sobre matéria que caberia ao governador regular por decreto (art. 84, VI, da Constituição)". STF, Pleno,
Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.707-7/SC, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 15.2.2006, DJ 12.5.2006, v.u. A
leitura do voto condutor, entretanto, não indica, de forma clara, que a questão é reservada à disciplina por
decreto-regulamentar. Ademais, a violação à reserva de iniciativa do Chefe do Executivo já seria razão suficiente
para a declaração de inconstitucionalidade, o que autorizaria a conclusão no sentido de que o segundo
fundamento é mero obter dictum, e não razão de decidir acolhida pelos demais ministros.
91
Decreto Federal 4.176, de 28.3.2002, que criou a denominação decreto autônomo: "Decreto
Autônomo. Art. 17. Serão disciplinadas exclusivamente por decretos as matérias sobre: I - extinção de funções
ou cargos públicos, quando vagos; e II - organização e funcionamento da administração federal, quando não
implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. § 1o O projeto de decreto que
dispuser sobre extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos, não disciplinará nenhuma outra matéria.
§ 2o O projeto de decreto que tratar da matéria referida no inciso II do caput não deverá regulamentar
disposições de lei ou de medida provisória. § 3o Quando impossível ou inconveniente a observância do disposto
no § 2o, os dispositivos que tratam da matéria referida no inciso II do caput serão separados daqueles que têm
natureza regulamentar e agrupados por meio de especificação temática do seu conteúdo."
- 143 -
Por fim, digna de nota é a posição de Marcello Caetano sobre o fundamento dos
regulamentos autônomos, inclusive porque se distancia um pouco das antes referidas. Para
esse autor, o regulamento autônomo não depende de uma lei específica, mas está disciplinado
por leis esparsas. Assim, tanto o regulamento de execução, como o autônomo servem à fiel
execução da lei porque esse é o objeto fundamental dos regulamentos administrativos.
Contudo, no caso dos autônomos "os respectivos autores exercem uma competência genérica
de providenciar sobre a dinamização da ordem legislativa, e não a competência específica
para executar certa e determinada lei"92.
Não nos parece, contudo, que tais regulamentos sejam autônomos; são, sim,
regulamentos de execução, mas para a execução de várias leis. É apenas uma medida de
economia da Administração, que prefere editar um só regulamento para regulamentar várias
leis formais; hipótese possível, conforme entendimento de Diógenes Gasparini93, desde que as
matérias tenham afinidade.
Contudo, a proposta de Marcello Caetano está longe de simplesmente admitir a
expedição de regulamentos executivos de várias leis afins. Na verdade, constitui uma forma
de desculpabilizar um regulamento genuinamente autônomo, como bem anota Luís S. Cabral
de Moncada. O fundamento desse regulamento autônomo, então, deixaria de ser a execução
da lei para se arrimar na dinamização da ordem jurídica em geral. Daí que o princípio da
legalidade fica limitado ao seu conteúdo negativo (não-violação), ou seja, o regulamento
independente fica à mercê de uma lei formal posterior, bem como não se admite sua afronta à
lei formal94. Essa redução do conteúdo do princípio da legalidade ao seu aspecto negativo não
se ajusta ao entendimento de que a lei é o pressuposto de atuação administrativa, na forma
consagrada em nosso ordenamento jurídico-constitucional.
Daí o cuidado a ser observado quando a Administração pretenda se dispensar da
indicação da lei que está regulamentando por aquele ato ou quando se limite a assentar que
regulamenta várias leis mediante ato único. Pode a hipótese configurar verdadeiro
regulamento autônomo, sem nenhum amparo em nosso ordenamento jurídico-constitucional.
O fato revela mais argumento em prol da necessidade de se exigir fundamentação expressa
dos regulamentos.
92
Marcello Caetano. Princípios... cit., p. 81.
93
Poder... cit., pp. 67-8.
94
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 681, nota 1.139, e 1.016-7.
- 144 -
95
Cf. Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 218, e Diógenes Gasparini.
Poder... cit., pp. 78-9.
96
Diógenes Gasparini. Poder... cit., p. 80.
97
Ob. cit., pp. 91-3.
98
Cf., a propósito, recente decisão do Supremo Tribunal Federal, na qual se assentou a
"constitucionalidade da adoção de medidas provisórias pelos Estados, com a condição inafastável de que esse
instrumento esteja expressamente previsto na Constituição Estadual e nos mesmos moldes impostos pela
- 145 -
Com efeito, é preciso refutar por completo essa hipótese para evitar um possível
ciclo vicioso, no qual o Executivo "resolve" a crise por meio de uma decisão unilateral. Isso
porque, noutra oportunidade, ele utiliza o precedente excepcional para justificar novo ato, e
assim prossegue até, enfim, institucionalizar a medida99.
Além da classificação pelo critério da relação com a lei, a doutrina alemã ainda se
propõe a distinguir os regulamentos em (i) administrativos e (ii) jurídicos, conforme o
regulamento tenha ou não efeitos externos à Administração Pública. Assim, os regulamentos
administrativos cuidam de disciplinar os aspectos internos de organização administrativa. Já
os regulamentos jurídicos possuiriam efeitos externos à Administração para, mediante lei de
autorização ou habilitante, condicionar a liberdade ou o patrimônio do administrado100.
Essa distinção não é adequada porque pretende retirar o caráter jurídico dos
regulamentos administrativos. Assenta-se na premissa de que as questões internas da
Administração não interessam ao Direito. Essa é uma concepção do período liberal, segundo a
qual o direito se restringe às relações dos cidadãos entre si ou destes com o Estado, fundada
num paradigma individualista101. Basta ver a valorização do procedimento administrativo para
se constatar a importância das questões internas para o Direito Administrativo.
Ademais, as origens desse dualismo, explica Luís S. Cabral de Moncada, amparado
em extensa pesquisa bibliográfica, revelam uma deturpação da concepção clássica, cuja
dogmática não pretendia negar o caráter jurídico dos regulamentos administrativos, mas tão-
só das normas que vinculassem os agentes nela integrados, as chamadas meras prescrições
administrativas, sem negar o caráter jurídico dos regulamentos administrativos de
organização. Tratava-se, pois, de uma tripartição reduzida, por uma postura de radicalização,
Constituição Federal, tendo em vista a necessidade da observância simétrica do processo legislativo federal".
STF, Pleno, Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.391, rel. Min. Ellen Gracie, j. 16.8.2006, por maioria, acórdão
ainda não publicado. Trecho do voto da relatora publicado no Informativo STF 437, de 21 a 25 de agosto de 2006.
99
Esse possível ciclo vicioso é lembrado por Bruce Ackerman quando trata das crises de
governabilidade do sistema presidencialista, "resolvidas" por decreto unilateral do Presidente, após o quê se
institucionaliza a prática ilegal. O Prof. da Yale University destaca, ainda, o seguinte: "This dismal cycle is
already visible in countries like Argentina and Brazil, which only recently emerged from military dictatorships.
A less pathological version is visible in the homeland of presidentialism, the United States". (The new… cit., p.
647).
100
Cf. Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., p. 242, e Hartmut Maurer, ob.
cit., § 13, pp. 389 e segs., e § 24, 12, p. 701.
101
Almiro do Couto e Silva. Princípios... cit., p. 50, e Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit. , pp. 62-3.
- 146 -
a uma bipartição. Bem por isso, hoje a mais moderna doutrina alemã mantém a distinção
quase tão-só para efeitos didáticos, aplicando-lhe o regime global dos demais regulamentos:
necessidade de lei prévia, controle judicial, publicação oficial e, ao menor indício de que o
regulamento afeta direitos subjetivos, ele é considerado jurídico102.
Ainda assim, é deveras difícil imaginar a hipótese de regulamento que não se projete
para além da Administração, ainda que indiretamente, seus efeitos, atingindo a esfera jurídica
dos cidadãos. "Mesmo que repugne aos mais puristas imputar efeitos externos às normas
internas, necessário é atribuir-lhes, pelo menos, efeitos jurídicos indirectos para o exterior"103.
Embora se refira, nesse trecho, especificamente ao ato administrativo, também Agustín
Gordillo repudia esse critério de classificação: "No puede hacerse diferenciación en base a
esas circunstancias; debe tormarse en cuenta solo si e lacto tiene o no efectos jurídicos
directos, prescindiendo de quiénes son alcanzados por tales efectos"104.
Aliás, o Direito italiano, explica Luís S. Cabral de Moncada, jamais permitiu,
especialmente com fundamento na questão financeira, que a organização interna ficasse à
livre disposição da Administrativa. A questão interna, segundo essa compreensão, compõe
parte do poder de direção política (indirizzo) por força do princípio democrático e em sintonia
com o regime parlamentarista. Nesse sentido, é expressa a Constituição italiana em seu art. 97
que o serviço público (pubblici uffici) será organizado segundo o disposto na lei de forma a
garantir a imparcialidade e o bom andamento da Administração. A preocupação, portanto, em
submetê-lo à legalidade transcende preocupações de garantia do administrado105.
O mais grave inconveniente dessa proposta de sistematização é a sua finalidade de
reconhecer faculdades autônomas da Administração para a edição de regulamentos sem
amparo direto na lei parlamentar, o que não se admite em nosso sistema constitucional. É a
partir desses pressupostos que se viabiliza o abuso do poder regulamentar, inclusive com
efeitos externos e de difícil controle diante de ausência de parâmetros legais de controle106.
Essa proposta de cisão é ranço de uma compreensão do Direito como a disciplina da relação
juridica entre entes autônomos, historicamente datada, que já não se justifica. É preciso
compreender que o âmbito interno da Administração não existe por si só e por isso não é
102
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 92-5 e 467-76.
103
Idem, p. 473.
104
Ob. cit., Tomo 3, p. II-17.
105
Cf. Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 592-600.
106
Idem, pp. 1.061-72.
- 147 -
indiferente ao universo jurídico107. Logo, essa forma de classificação deveria ser descartada
de plano.
O interesse, contudo, nessa possibilidade de diferenciação pode se justificar
exclusivamente para demarcar maiores exigências de audiência pública e participação popular
em atendimento ao princípio constitucional de devido processo legal (Constituição, art. 5º,
incisos LIV e LV). Dessa forma, a participação do administrado nos procedimentos de
elaboração dos regulamentos se justifica em razão da maior evidência de reflexos externos do
regulamento: maiores reflexos externos exigirão maior participação popular, sem prescindir,
no entanto, da legalidade. Mas não se deve admitir que essa classificação justifique uma
atividade regulamentar autônoma da Administração, sob o argumento de que se cuida,
exclusivamente, de questões internas, sem reflexos externos.
111
Idem, pp. 254-280.
112
Idem, p. 277.
- 149 -
113
Sobre as teses expostas, cf., a propósito, Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 83, nota 50, e
Gustavo Binenbojm, ob. cit., pp. 272-3, trechos nos quais estes autores se esforçam para explicar, de forma
sucinta, a doutrina de Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández.
114
Gustavo Binenbojm, ob. cit., p. 275.
115
Idem, pp. 275-8.
116
Poder... cit., p. 74.
117
Ob. cit., pp. 346-52.
- 150 -
seus termos, não haveria delegação para legislar. Mas se a previsão legal é restrita, de maneira
a conferir à Administração toda a obra legislativa, aí, então, há delegação proibida de poderes
para legislar. O autor, assim, cogita a possibilidade de se delegar poderes à Administração
para apurar fato e determinar estado de coisa. Tais hipóteses são exemplificadas: a
incumbência do Executivo de fixar regulamento com tabelamento de preços ou com as
indicações das zonas residenciais e comerciais de zoneamento urbano. Mais a frente, explica
que tais regulamentos são atos de execução da lei; configuram, pois, os chamados
regulamentos contingentes118.
O parecer de Caio Tácito também não é distante das considerações já postas. Após
analisar os pronunciamentos do Conselho de Estado francês na vigência da Constituição
francesa de 1946 — que também proibia a delegação de poderes — conclui que o legislador
pode se limitar a fixar as regras essenciais e deixar ao Governo o trabalho de complementá-
las. Daí conclui que:
"Não é inconstitucional, mesmo nos países contrários à delegação de poderes, a participação do
Executivo na criação do direito objetivo. Regulamentar não é sòmente reproduzir analiticamente a lei,
mas ampliá-la e completá-la, segundo o seu próprio espírito e o seu conteúdo, sobretudo nos aspectos
que a própria lei, expressa ou implicitamente, outorga à esfera regulamentar"119.
Outro autor a defender a possibilidade de regulamentos autorizados ou delegados é
Castro Nunes. O autor destaca, inclusive, que a opinião predominante, entre os juristas da
época, era pela recepção, em termos relativos, da regra da proibição da delegação. Explica,
ainda, que essa possibilidade tinha várias explicações:
"Vários fatores concorrem para a legitimação, aqui, como em tôda a parte, da legislação delegada.
Um dêles, a inaptidão dos corpos legislativos, numerosos ou heterogêneos e divididos pelo espírito
partidário para a elaboração de certas leis, que exigem preparo técnico e alta ponderação; outro, a
lentidão dos métodos legislativos que não comportam a readaptação da lei a circunstâncias novas e
imprevistas em pontos de detalhe. Outro, ainda, o caráter predominantemente econômico ou
administrativo de certas leis, a serem completadas pelo govêrno, com melhores e mais seguros
elementos de informação. Eis porque ninguém mais pregoa o princípio [da proibição de delegações]
com a rigidez da época liberal"120.
Almiro do Couto e Silva, por sua vez, esclarece que o advento do Estado
Administrativo ou Administração prestadora de benefícios justificou mudanças na
compreensão da legalidade. Assim, o Estado de nossos dias não pode prescindir de decisões
prontas, expeditas, que não podem aguardar o procedimento legislativo. Bem por isso, embora
118
Idem, p. 355.
119
As delegações... cit., pp. 509-10.
120
Delegação... cit., p. 7.
- 151 -
a delegação seja proibida (refere-se à Constituição de 1967/1969), essa proibição tem caído
em desuso, preferindo-se o recurso às leis delegadas atípicas ou disfarçada121.
Ainda na doutrina nacional, Eros Grau admite a hipótese de regulamentos
autorizados, que em muito se aproximam dos casos de remissão antes referidos. O professor
da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco propõe a distinção entre função legislativa
e função normativa. Esta é o gênero do qual a primeira é espécie. A segunda define-se por um
critério material, como a função de emanar estatuições primárias contendo preceitos abstratos
e genéricos, seja em decorrência de poder originário, seja em decorrência de poder derivado.
Já a função legislativa é definida, numa perspectiva orgânica ou formal, como a capacidade de
emitir atos sob a forma de lei. A função legislativa concentra-se no Legislativo, a função
normativa está presente nos três poderes. Logo, o Parlamento não delega atribuição sua, mas
autoriza ou mesmo determina o exercício da função normativa da Administração122.
Regulamentos autorizados, define Eros Grau, são aqueles "que, decorrendo de atribuição do
exercício de função normativa explícita em ato legislativo, importam o exercício pleno
daquela função — nos limites da atribuição — pelo Executivo, inclusive com criação de
obrigação de fazer ou deixar de fazer alguma coisa"123.
Já Tércio Sampaio Ferraz Júnior registra que, a rigor, deveríamos reconhecer e
admitir apenas a delegação nominada, prevista no art. 68 da Constituição da República. "A
doutrina, no entanto, costuma reconhecer a existência ― de fato ― de um outro tipo de
delegação, cuja natureza delegatória é, inclusive, discutível, denominada delegação
inominada"124. Esse fenômeno diz respeito à admissão de normas de implementação de
diretrizes e princípios gerais fixados em leis. O poder regulamentar, dessa forma, transcende
os obstáculos da previsão constitucional que o restringe à competência do Presidente, bem
como o delimita para mera fiel execução da lei. A configuração desse poder, explica, contraria
uma compreensão tradicional do poder regulamentar, mas exige maior reflexão com a
implantação do chamado Estado regulador. Assim, acaba por admitir o poder regulamentar
como forma de delegação inominada, com a função de editar normas de complementação de
leis-quadro, que indiquem princípios e diretrizes gerais. A delegação admitida pauta-se pela
121
Almiro do Couto e Silva. Princípios... cit., pp. 51-2.
122
Eros Grau. O direito... cit., pp. 239-42 e 252-4.
123
Idem, p. 253. V., do mesmo autor, Capacidade... cit.
124
Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Agências reguladoras: legalidade e constitucionalidade. Revista
tributária e de finanças públicas. São Paulo, nov.–dez., 2000, vol. 35,, p. 146, e O poder... cit., p. 277. Os
destaques são do original.
- 152 -
125
Agências... cit., pp. 147-51, e Poder... cit., pp. 277-82.
126
Cf., entre outros, Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto. Regulação... cit., p. 205, nota 90, e
A nova regulação... cit., p. 93, nota 48, Carlos Ari Sundfeld. Introdução... cit., pp. 27-8, e Tércio Sampaio Ferraz
Júnior. O poder...cit., p. 280. Sobre a noção de standard, cf. José Roberto Pimenta Oliveira, ob. cit., pp. 163 e
segs., e Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit., p. 413.
127
Ob. cit., pp. 139-41.
128
Ob. cit., p. 308.
129
Nesse sentido, embora tratando especificamente da questão no âmbito do Sistema Financeiro
Nacional, v. Eduardo Salomão Neto, ob. cit., pp. 111-3.
- 153 -
O termo delegação legislativa, bem como o termo autorização, aliás, são bastante
criticados pela doutrina130. É que, realmente, não tem cabimento falar em delegação se a
autorização ou habilitação concedida à Administração não é para livremente dispor sobre a
matéria com força de lei, mas sim para completar ou integrar o quadro normativo já traçado
pela lei. Nesse sentido, a doutrina de Agustín Gordillo destaca que seria preferível chamar tais
atos de "reglamento de integración"131. Não obstante, o autor argentino não deixa de indicar
os riscos dessa possibilidade normativa, eis que a Administração acaba encontrando
delegação onde ela não existe. Destaca, ainda, a expressa proibição da delegação na
Constituição argentina de 1994 — inclusive com cláusula transitória que põe fim à legislação
delegada —, ressalvada a competência das autoridades independentes132.
O termo autorização também não reflete adequadamente a hipótese. É que a
autorização, em verdade, apenas remove um obstáculo ao exercício de um direito que o
autorizado já possuía133. Ora, já refutamos a hipótese de que a função regulamentar é inerente
ao exercício da função administrativa, portanto, o termo autorização também não parece
adequado.
Daí a preferência por utilizar o termo habilitação, principalmente para a possibilidade
de regulamentos fora da hipótese constitucional (Constituição, art. 84, IV). A habilitação é ato
preliminar e necessário para que certos e determinados atos se executem validamente porque
ela outorga capacidade ou autoridade à pessoa para executá-la, segundo a lição de De Plácido
e Silva134. Analisando a constitucionalidade do Plano Salte, Afonso Arinos de Mello Franco
também destacou que não havia delegação de poderes, porque essa era proibida pela
Constituição então vigente, mas se cuidava de uma habilitação de autoridade: "O congresso
concede ao Presidente da República uma habilitação de autoridade; transfere ao Presidente da
República, especificamente, limitadamente, algumas faculdades de execução de certos
preceitos, que estão expressos na lei que ele aprovou"135.
O recurso, contudo, ao termo habilitação não resolve o problema mais grave acerca
das possibilidades e limites dessa lei de habilitação. É preciso saber se tais regulamentos são
em todos os casos meramente executivos ou se podem complementar ou integrar o sentido da
lei a ser regulamentada.
130
Cf. Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 568-9, nota 912, e Sérgio Ferraz, ob. cit., p. 122.
131
Ob. cit., Tomo 1, p. VII-32.
132
Idem, pp. VII-33-5.
133
Cf., nesse sentido, a lição de J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 762-3, ao esclarecer a natureza
jurídica da lei de autorização.
134
Vocabulário... cit., p. 672.
135
Revista de direito administrativo, vol. 17, p. 467, apud Caio Tácito. Comissão... cit., p. 1.078.
- 154 -
136
Victor Nunes Leal. Delegações... cit., pp. 98-9.
137
Idem, p. 102
138
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 569.
- 155 -
"Execução é assim sinónimo de operatividade prática da lei, o que não retira, a pretexto de uma
visão rigorosa da legalidade, certa margem de liberdade à administração, à medida das necessidades
funcionais de conferir operatividade prática a uma norma legislativa com insuficiente disciplina"139.
De toda sorte, fica excluída, em todas as hipóteses, que a lei abique toda a regulação
em favor da Administração Pública: não cabe habilitação em branco, como, com acerto,
explica Carlos Roberto Siqueira Castro ao tratar do poder normativo das agências
reguladoras. A atividade normativa da Administração Pública, como bem esclarece o autor,
não pode deixar de ser uma atividade de execução de políticas públicas já definidas pelo
Parlamento. Cabe a transcrição de seu pensamento:
"Trata-se, enfim, da distinção entre delegação normativa e abdicação normativa. Isto significa
dizer que se o Congresso Nacional, ao criar uma agência autárquica com poderes regulatórios, conferir
uma espécie de cheque em branco à nova entidade para disciplinar como bem entender o setor ou as
atividades sujeitas ao seu regramento, sem estabelecer standards mínimos ('minimum standards')
orientadores e limitadores para o exercício da função normativa delegada, tal importará em abdicação
legislativa incondizente com o princípio da separação de poderes, com o postulado da legalidade
formal e com o cânone da supremacia do Congresso em matéria legislativa. Tudo porque a agência
reguladora deixará de ser um instrumento executor de políticas públicas definidas em lei,
transformando-se indevidamente num legislador originário e livre de limitações que devem
necessariamente ser estabelecidas pelo Congresso Nacional"140.
Essa forma de compreender a legalidade, inclusive, encontra amparo em precedentes
da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como anota o próprio Siqueira Castro141.
Itiberê de Oliveira Rodrigues também destaca precedentes de nossa Corte em seu
comento à vedação de delegação legislativa durante a vigência da Constituição brasileira de
1967/1969, isto é, quando era expressa a vedação de delegação. Indispensável a transcrição do
trecho em questão:
"Por outro lado, do mesmo modo que no período imperial ou na República Velha, um número
significativo de leis e decretos-leis desse período autorizou a Administração Pública, inclusive
entidades da Administração indireta, a editar normas em variados âmbitos da vida, muito embora
inexistissem disposições constitucionais a tal respeito e, acima de tudo, no período da vigência da
Constituição de 1967, por força da cláusula geral do art. 6º, parágrafo único, somente estarem
reconhecidas as delegações expressamente previstas em seu texto. Assim, por exemplo: a Lei n.
4.595/1964 autorizou a edição de normas pelo Conselho Monetário Nacional; o mesmo fez a Lei n.
6.251/1975 em relação ao Conselho Nacional de Desportos; e também o Decreto-lei n. 73/1966 em
relação ao Conselho Nacional de Seguros Privados. Em sua jurisprudência, o Supremo Tribunal
Federal entendeu, porém, como válidas e eficazes tais autorizações para legislar. Segundo o Tribunal,
139
Idem, p. 567.
140
Carlos Roberto Siqueira de Castro. Função… cit., p. 412
141
Idem, p. 413. O autor se refere à ADI 1.668/DF (caso ANATEL).
- 156 -
142
Ob. cit., p. 85.
143
Comissão... cit., p. 1.079. O autor se refere ao Habeas corpus 30.355, publicado na Revista de
direito administrativo, vol. 21, p. 134.
144
Delegação... cit., p. 8.
145
A valorização... cit., p. 85.
146
Ob. cit., p. 762.
147
O sistema... cit. pp. 363-5.
148
Ob. cit., p. 12.
- 157 -
porque entende a autorização como disfarçada delegação de atribuição, que pode restringir a
esfera jurídica do administrado. Para esse autor, o regulamento somente se justifica
exclusivamente como um fator redutor da discricionariedade administrativa, capaz de reduzir
o número de soluções possíveis149.
Também Celso Antônio Bandeira de Mello compreende que os regulamentos
autorizados "são visceralmente incompatíveis com o Direito brasileiro"150. A crítica do autor é
ainda mais contundente porque vislumbra na hipótese de autorização uma delegação
disfarçada: "há delegação disfarçada e inconstitucional, efetuada fora do procedimento regular
toda vez que a lei remete ao Executivo a criação de regras que configuram o direito ou que
geram a obrigação, o dever ou a restrição à liberdade"151. Não obstante, o autor não deixe de
reconhecer os chamados regulamentos contingentes, quando a dicção da lei comporta
intelecções mais ou menos latas, mas alerta que se trata de um regulamento de execução, não
delegado, nem autorizado. Ou seja, embora firme na inadmissibilidade dos regulamentos
autorizados, não deixa de reconhecer os limites da lei na definição da atuação administrativa,
como se pode apurar nessa sua consideração:
"Segue-se que os regulamentos não podem aportar à ordem jurídica direito ou obrigação que já
não estejam, na lei, previamente caracterizados e de modo suficiente, isto é, nela delineados, ao
menos pela indicação dos critérios e balizamentos indispensáveis para o reconhecimento de suas
composturas básicas"152.
Em outra oportunidade, o mesmo autor destacou que:
"Mesmo que não faça com precisão capilar, a lei tem que caracterizar o direito ou a obrigação,
limitação, restrição que nela se contemplem, tanto como o enunciado dos pressupostos para sua
irrupção e os elementos de identificação dos destinatários da regra, de sorte que ao menos a
compostura básica, os critérios para seu reconhecimento, estejam de antemão fornecidos"153.
Esse tipo de compreensão da função regulamentar — ciente da propensão autoritária
da Administração, em especial no Brasil — pretende colocar as mais duras amarras ao
regulamento. Entretanto, reconhece que a previsão normativa legal apresenta seus limites e
que outras vezes essa mesma previsão, embora pudesse ser mais precisa, prefere reconhecer a
possibilidade de juízos discricionários da Administração, e autoriza, assim, o juízo subjetivo
149
Idem, pp. 35-7 e 46.
150
Curso...cit., pp. 92 e 317. Também nesse sentido, cf. José Roberto Pimenta Oliveira, admitindo,
contudo, certa relativização no que toca às relações de supremacia especial (ob. cit., pp. 291-3).
151
Curso... cit., p. 332.
152
Celso Antônio Bandeira de Mello. "Poder" regulamentar ante o princípio da legalidade. Revista
trimestral de direito público. São Paulo, 1993, n. 4, p. 75.
153
Celso Antônio Bandeira de Mello. Regulamentação profissional – princípio da razoabilidade –
desvio de poder [parecer]. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro, abr.–jun., 1996, vol. 204, pp. 346-7.
- 158 -
do administrador. A lei, portanto, cria tão-só um quadro normativo cuja objetividade varia,
explica Celso Antônio Bandeira de Mello154.
O problema, então, refere-se ao grau de objetividade da lei. Em razão da realidade de
uma presença mais marcante do Estado em vários setores que antes não lhe diziam respeito,
bem como a complexidade e heterogeneidade de interesses vigentes na sociedade de nossos
dias, impôs-se a necessidade de a lei se traduzir, muitas vezes, numa mera enunciação de
padrões normativos, cujo grau de objetividade é deveras reduzido.
Daí se vê que realmente a Administração não é uma simples executora de normas
cujo conteúdo lhe define da forma mais densa possível a sua atividade. A presença dos
regulamentos em nosso cotidiano torna-se, então, mais contundente e expressiva. A
necessidade de uma legislação mais flexível e de uma Administração mais dinâmica explica,
em grande parte, o fenômeno do surgimento da Administração reguladora, capaz de criar
direito, porque a lei não já não é capaz de suprir a demanda por normas a regular todos os
setores de atuação e intervenção do hoje chamado Estado regulador. E cabe lembrar: regular é
criar direito, como explica Sidnei Turczyn155, ou ainda, nas fortes palavras de Bruce
Ackerman: "Regulators make law, and we would not want it any other way"156. Diante desse
quadro, em que não é possível que o Parlamento atenda toda a carência de regulamentação, as
opções são o reconhecimento de atividade ordinária legislativa do Executivo ou o recurso às
figuras da autorização, da habilitação e do regulamento complementar. Captando a ironia
histórica, explica Luís S. Cabral de Moncada157 que, justamente quando se conseguiu eliminar
os vestígios de uma competência autônoma do Executivo, a realidade, com a criação do
Estado interventor, não se ajustou à dogmática jurídica.
Em verdade, não há necessária contradição entre criação infralegal de direito e a
submissão da Administração à lei formal. Como ensina Caio Tácito: "O poder normativo não
se exaure no ato emanado do Poder Legislativo. As fontes do direito se distribuem,
hierarquicamente, em categorias sucessivas, de que também participa o Executivo"158. No
mesmo texto, explica Caio Tácito, que a partilha da função normativa entre Parlamento e
Executivo é característica do Estado interventor contemporâneo e, assim, o poder normativo
da Administração vem se engrandecendo e renovando mesmo nos países em que a delegações
legislativas são proibidas.
154
Discricionariedade administrativa e controle judicial... cit., p. 20.
155
Ob. cit., pp. 307 e 359.
156
Ob. cit., p. 694, o destaque é do original.
157
Ob. cit., pp. 148-9.
158
Lei... cit., p. 477.
- 159 -
159
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 106.
160
Apud Victor Nunes Leal. Delegações... cit., p. 94.
161
Sobre legalidade e lei orçamentária, em especial no Direito alemão, cf. Luís S. Cabral de Moncada,
ob. cit., pp. 326-39.
- 160 -
162
Tomás-Ramón Fernández. Viejas y nuevas ideas sobre el poder discrecional de la Administración
y el control jurisdiccional de su ejercicio. Revista interesse público. Porto Alegre, mai.–jun., 2006, ano VIII, n.
37, p. 174.
- 161 -
restringir-se às bases gerais dos regimes jurídicos, toda a posterior actividade regulamentar será em
maior ou menor medida executiva"163.
Essa forma de compreensão da legalidade evita qualquer embaraço diante de
produtos legislativos não tão densos e que exigem da Administração um esforço para
operacionalizar sua concretização.
Ademais, o alerta dos deveres da legislação em oferecer determinada densidade
normativa em seus produtos, evita que a delegação normativa se transforme em escusa do
Legislativo para não adotar condutas necessárias e impopulares. Afinal, não se deve ignorar
que, muitas vezes, os regulamentos habilitados são utilizados pelo Legislativo como forma de
se isentar do dever de definir uma política pública impopular. Por meio da habilitação
regulamentar quer, assim, transferir para a Administração o ônus do desgaste político,
esquivando-se de seus deveres164. Daí, portanto, mais um argumento em favor da indicação
dos seus deveres, inerentes à função legislativa, não tolerando que deixe o Parlamento de ser
o órgão de direção política global, como lhe exige o princípio democrático (Constituição, art.
1º, parágrafo único).
Assim compreendidos os regulamentos habilitados poderão se ajustar ao
ordenamento jurídico constitucional porque eles compõem, como dito, um tipo especial de
regulamento executivo. O debate até esse ponto, então, implica e justifica de forma suficiente
a necessidade de discutir quais são os deveres do legislador ao habilitar a competência
normativa da Administração, ponto que será discutido em seguida.
163
Ob. cit., p. 1.037, os grifos não são do original.
164
Cf. Sérgio V. Bruna, ob. cit., p. 93, nota 59.
4. LIMITES À FUNÇÃO REGULAMENTAR
Nessa parte final, o objetivo é destacar quais são os deveres mínimos de densidade
normativa a serem atendidos pelo Legislador nas hipóteses em que lhe seja possível habilitar a
competência discricionário-normativa da Administração.
Antes, porém, é preciso deixar certo que não há hipótese em que seja possível
prescindir da legalidade no exercício da função regulamentar. Com esse propósito, serão
analisados na seqüência os principais argumentos invocados na atualidade para justificar uma
atuação autônoma da Administração, quais sejam, (i) a discricionariedade técnica, (ii) as
relações de sujeição especial de poder e (iii) os procedimentos participativos.
DISCRICIONARIEDADE TÉCNICA
Onde não há espaço para juízos discricionários da Administração não há lugar para o
regulamento. Se a lei já prevê o único modo de atuação possível para a Administração em
determinada hipótese, ou seja, se a competência é vinculada, não há espaço para o
regulamento1. No entanto, a doutrina reconhece um espaço para o exercício da função
regulamentar alheio ao exercício de uma competência discricionária. Refere-se à hipótese em
que o regulamento limita-se a enunciar as hipóteses sinteticamente já previstas na lei, ou seja,
exclusivamente interpreta a lei para a comodidade de sua aplicação2.
Eros Roberto Grau doutrina em outro sentido. Explica que os regulamentos são
estatuições primárias e vigem por força própria, ainda que não sejam expedidos no exercício
de uma atribuição originária. São derivados apenas no sentido de que a atribuição desse poder
deve estar contida na lei ou na Constituição. Logo, o fundamento do poder regulamentar "está
nesta atribuição de poder normativo — e não no poder discricionário da Administração
1
Nesse sentido, por todos, Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., p. 326.
2
Idem, p. 339, e Regulamento... cit., pp. 49-50.
- 163 -
3
O direito... cit.., p. 243.
4
Ob. cit., p. 142.
5
"Missão da interpretação da lei é evitar a contradição entre normas, responder a questão sobre
concurso de normas e concurso de regulações e delimitar, uma face às outras, as esfera de regulação, sempre que
tal seja exigível", ensina Karl Larenz. Metodologia...cit., p. 441.
6
A distinção é tirada da lição de Karl Larenz: "As «contradições de valoração» não devem ser
confundidas com as contradições de normas, que existem quando as normas ordenam para a mesma situação de
facto conseqüências jurídicas que entre si se excluem. Uma contradição de normas tem que ser eliminada, seja
porque se reconhece prevalência a uma norma, seja mediante a restrição de ambas, uma vez que é logicamente
impensável que sobrevenham conjuntamente conseqüências jurídicas que reciprocamente se excluem.
Contradições de valoração no seio do ordenamento jurídico têm que ser, decerto, aceites de vez em quando, mas
estão em conflito com o princípio de igual tratamento para o que é igual e, portanto, a valorar identicamente, e,
por este motivo, deveriam tanto quanto possível ser evitadas". Ob. cit., p. 472, os destaques são do original.
- 164 -
de tal modo que en su concreto ejercicio la Administración titular del mismo goza de una
libertad de elección, mayor o menor, para adoptar sus determinaciones"7.
Logo, entendem esses autores, que se devem aplicar, no controle dos atos
regulamentares, as técnicas de controle da discricionariedade. No entanto, há certa dificuldade
nessa aplicação. A legislação, de regra, não exige expressamente motivação da norma
regulamentar8. E a jurisprudência espanhola vacila em entender a exposição de motivos como
motivação ou, pior, a entende inexigível. Lembram, contudo, que o art. 190 do Tratado da
Comunidade Européia exige motivação nos regulamentos e diretivas9.
Também Rafael Bielsa encarece que "O poder discricionário da administração
pública se exerce não só nas decisões individuais (...) mas também, a faculdade discricionária
se aplica, com mais graves conseqüências ainda, no exercício do poder regulamentar"10.
De toda sorte, deve-se salientar que a discricionariedade não é termo equivalente de
atuação livre. A discricionariedade se justifica exclusivamente para permitir à Administração
adotar a providência ótima, vale dizer, regulamentar de forma a realizar superiormente o
interesse público indicado na lei, devendo adotar a melhor solução possível. O interesse
público é sempre o fim ou finalidade da atuação administrativa. A Administração Pública está
posta numa situação de sujeição a esse dever de atingir a finalidade. E para o cumprimento
desse dever cabe conferir-lhe certo poder instrumental. O poder, portanto, é apenas aquele
suficiente ao atendimento da finalidade legalmente definida. Então, também podemos dizer
que antes de ser poder, a competência discricionária é um dever, uma função11.
E já definimos a competência regulamentar como função, expressão de um dever-
poder. Logo, função regulamentar e atuação discricionária não são capazes de indicar suas
próprias finalidades de atuação, como ainda será analisado de forma mais detida.
A dificuldade, já bastante debatida pela doutrina e também já referida neste trabalho,
é conciliar Estado de Direito, especialmente sua exigência de legalidade estrita, e
discricionariedade. Segundo Gustavo Binembojm, "O Estado de direito curva-se ao
pragmatismo, conformando a ele o seu projeto teórico"12. Logo, explica que se generalizou a
7
Ob. cit., p. 205.
8
A exceção, no caso brasileiro, fica por conta da Lei paulista 10.177, de 30.12.1998, e o seu art. 15,
III. Ela exige que todo decreto regulamentar seja editado com exposição de motivos, que demonstre o
fundamento legal de sua edição, a finalidade das medidas adotadas e a extensão de seus efeitos. Cf. Elival da
Silva Ramos, ob. cit., p. 86.
9
Ob. cit., p. 205.
10
Ob. cit., pp. 54-5. Os destaques são do original.
11
Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 14-6 e 406, e Discricionariedade e controle
jurisdicional... cit., pp. 32-6..
12
Ob. cit. p. 196.
- 165 -
13
Idem, p. 197.
14
Ob. cit., pp. 99-100.
15
Convém assinalar que a jurisprudência alemã inicialmente propunha a completa sindicabilidade
judicial dos conceitos indeterminados, mas hoje reconhece vários espaços de apreciação próprios da
Administração. Cf. Hartmut Maurer, ob. cit., § 7, 35-45, pp. 157-63.
- 166 -
ao conceito indeterminado, terceira possibilidade não há. Isso não significa que só existe uma
solução possível para o caso, mas a necessidade de um juízo disjuntivo excludente acerca do
ato praticado, ou seja, o ato atende ou não ao conceito indeterminado expresso na lei.
Os conceitos indeterminados, assim compreendem, localizam-se no antecedente ou
suporte fático da norma, enquanto a discricionariedade está no plano da conseqüência ou dos
efeitos jurídicos16. Daí não serem expressões sinônimas discricionariedade e conceito
indeterminado, eis que a discricionariedade é a liberdade de decidir entre indiferentes
jurídicos, enquanto o conceito indeterminado é um caso de aplicação da lei.
Parte dos doutrinadores, no entanto, não deixam de reconhecer, quanto aos conceitos
indeterminados, uma "área de apreciação", que implicaria um controle jurisdicional limitado
de tais conceitos com o fim de apurar a razoabilidade da opção da autoridade administrativa.
Mas não se trataria de discricionariedade, pois o controle seria total sobre o ato da
Administração, só esbarrando na impossibilidade cognitiva sobre a questão.
Não obstante tais considerações, não parece possível, a partir dessa construção,
concluir pela inexistência, em todos os casos de conceitos jurídicos indeterminados, de
discricionariedade para a expedição do ato. Ademais, é questionável, no caso, a aplicação da
lei do terceiro excluído, pois essa lei lógica é aplicável quando os símbolos são precisos, mas
não quando os símbolos são vagos, ou seja, justamente quanto aos conceitos jurídicos
indeterminados a dificuldade reside em se poder assentar, mediante critérios objetivos, a
incidência ou não do conceito. Também é, no mínimo, questionável a distinção proposta entre
"área de apreciação" e discricionariedade. Não parece haver distinção de fundo entre os
conceitos, eis que "À medida que compete à administração um espaço de poder discricionário
ou de apreciação, ela tem o direito à 'última decisão'"17.
Mas não é só isso: o acolhimento da tese implica a virtual eliminação da
discricionariedade em todas as hipóteses, não só quanto aos conceitos indeterminados. É que
qualquer atuação da Administração estará guiada por ao menos um conceito indeterminado —
talvez um dos mais amplos deles —, o de interesse público. Logo, esse conceito, segundo essa
doutrina, incide ou não na hipótese: não haveria terceira possibilidade e, por conseqüência,
não haveria discricionariedade. Ora, já destacamos que a discricionariedade compõe uma
16
Convém anotar, ainda que em breve nota, que o conseqüente da norma também pode apresentar
conceito indeterminado em sua definição, embora a hipótese seja bem mais rara. É o que anota, com bastante
pertinência, Dinorá Adelaide Musetti Grotti. Seria o exemplo da lei que determinasse a concessão anual de
prêmios aos funcionários que preenchem certas condições sem especificar no que consistiria referido prêmio. Cf.
Dinorá Adelaide Musetti Grotti. Conceitos indeterminados e discricionariedade administrativa. Cadernos de
direito constitucional e ciência política. São Paulo, jul.–set., 1995, ano 3, n. 12, pp. 112-3.
17
Hartmut Maurer, ob. cit., § 7, 6, p. 143. Não obstante essa consideração, o autor ainda propugna que
seja mantida a distinção entre conceito indeterminado e a concessão de poder discricionário.
- 167 -
18
Assim se pronuncia Celso Antônio Bandeira de Mello quando aprecia a compreensão do termo
"urgência": "Acreditar que, em casos desta ordem, o agente está livre graças à invocação destas expressões semi-
indefinidadas corresponde a atribuir-lhes uma significação 'mágica'. Equivale a conferir-lhes aquele condão de
transformar as coisas". Controle judicial dos limites da discricionariedade administrativa: exame dos motivos ou
pressupostos do ato — a noção de "causa" como requisito de legalidade [parecer]. Revista de direito público. São
Paulo, set.–out., n. 31, 1974, p. 36.
19
Apud Afonso R. Queiró. A teoria... cit [1ª parte], p. 63.
20
Sobre a relação entre discricionariedade e conceitos indeterminados, a bibliografia é extensa, cf.,
entre outros, Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade e controle jurisdicional... cit. pp. 20-8, Eros
Grau, ob. cit., pp. 193-215, Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 465-7, Genaro
R. Carrió. Notas... cit., pp 66-9, Gustavo Binenbojm, ob. cit., pp. 224 e segs, Sérgio V. Bruna, ob. cit., pp. 121 e
segs., Hartmut Maurer, ob. cit., § 7, pp. 140 e segs., Dinorá Adelaide Musetti Grotti, ob. cit., pp. 84-115, Almiro
do Couto e Silva. Poder... cit., pp. 57-61, e Afonso R. Queiró. A teoria...cit. [1ª e 2ª partes], e, deste mesmo
autor, mas com alteração na sua compreensão sobre a matéria, Os limites do poder discricionário das autoridades
administrativas. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro, jul.–set., 1969, vol. 97, pp. 1-8,.
- 168 -
habilitação constitucional ou legal para a prática do ato porque lhe foi expressamente
atribuída essa possibilidade. É que a possibilidade de editar regulamentos pressupõe
discricionariedade como elemento necessário, mas não suficiente para a edição de
regulamentos.
Ademais, a discricionariedade que viabiliza a expedição de regulamentos não deve se
justificar no fato de que a melhor medida, isto é, aquela que melhor atende ao interesse
público definido na lei, somente poderá ser apurada diante do caso concreto. Nesse caso, não
há justificativa para a regulamentação, não há porque limitar abstratamente as hipóteses de
aplicação da norma antecipando o que não é possível antecipar, já que o exercício do juízo
discricionário pressupõe a análise do caso concreto21.
Feitas tais considerações preliminares, cumpre analisar o argumento acerca da
viabilidade de regulamentos em razão da existência de discricionariedade técnica, expressão
cunhada por Bernatzik, ainda no século XIX. No Brasil, o argumento tem sido atualmente
agitado em favor das agências reguladoras. Alega-se, assim, a necessidade da função
regulamentar ser reconhecida em favor das agências para expedir normas técnicas
indispensáveis à regulação. Exerceriam, pois, tais agências uma regulação técnica. A
discricionariedade técnica, assim, implicaria a impossibilidade de controle jurisdicional no
tocante aos aspectos técnicos da regulação, sob o argumento de que sobre administração
técnica entende a Administração em razão de sua formação técnica. A partir disso se construiu
mais um front para a defesa da "independência" das agências reguladoras22.
O essencial a ser destacado sobre o ponto é a impossibilidade de o argumento
justificar uma dispensa de legalidade.
Convém, por primeiro, explicar, com apoio na doutrina de Agustín Gordillo, a
necessidade de se distinguir as regras estritamente técnicas — que seriam, em geral,
indiscutíveis — e aspectos técnicos suscetíveis de controvérsia. Se a atividade é, fora de
dúvida, tecnicamente errada, tal fato já basta para sua ilegitimidade, ainda que não haja
normas legais ou regulamentares a regular a atividade: não há discricionariedade, mas
vinculação.
Esses casos se ajustam à idéia de estrutura do âmbito material regulado, de que fala
Karl Larenz: "são dados factuais, em relação aos quais nem o legislador pode alterar o que
quer que seja, e que ele toma em consideração de modo racional a propósito de qualquer
21
Cf., nesse sentido, Daniele C. Talamini, ob. cit., p. 84.
22
Sobre a questão, cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Discricionariedade... cit., p. 484, e Egon B.
Moreira. Os limites... cit., p. 217. Críticas quanto à existência de uma discricionariedade técnica, v. Eros Grau,
ob. cit., pp. 214-5.
- 169 -
regulação"23. A norma, explica Larenz, não é vertida autoritariamente na realidade, mas parte
dessa estrutura material, sob pena de ser materialmente inadequada24.
Já no caso de aspectos técnicos controvertidos, então, haverá certa liberdade do
administrador para eleger uma das possíveis vias técnicas de solução. Contudo, em nenhuma
hipótese há, em verdade, uma absoluta discricionariedade em matéria técnica.
Discricionariedade e técnica são termos inconciliáveis, assevera, com apoio em Renato
Alessi, Agustín Gordillo25.
Analisando a questão da discricionariedade técnica na perspectiva do Direito norte-
americano e de suas agências reguladoras, Maria Sylvia Zanella Di Pietro explica que a
ampliação de tarefas do Estado exigiu a idéia de especialização. Da especialização técnica
decorria a idéia de neutralidade política, o que demandava a não-ingerência político-partidária
nos órgãos reguladores. A partir desses pressupostos reconhecia-se ampla discricionariedade
aos agentes reguladores. Esses três pilares do direito regulatório norte-americano,
especialização técnica, neutralidade política e discricionariedade técnica começam a se
desgastar já na década de 1960. Quanto à especialização, o enfoque não é o mais o interesse
do setor regulado, mas a proteção do interesse público. Embora a idéia de neutralidade não
tenha sido abandonada, foi percebida a conexão das medidas com valorações políticas. Daí a
necessidade de ampliação das exigências procedimentais para análise da relação
custo/benefício. Já no que se refere à discricionariedade técnica, ampliam-se os mecanismos
de controle jurisdicional com a aplicação dos princípios de motivação, racionalidade e
razoabilidade dos atos normativos. Em síntese, embora se continue a reconhecer às agências
competências normativas para disciplinar aspectos técnicos em sua esfera de atuação, o
processo de elaboração tem que ser documentado com todos os dados pertinentes, além de
respeitar as exigências de razoabilidade das normas diante dos standards indicados na lei26.
O relato da experiência norte-americano e a enumeração das amplas exigências que
se ergueram para prevenir a exacerbação do poder normativo são importantes para indicar que
23
Ob. cit., p. 469.
24
Idem, pp. 470-1. Essa forma de compreender a discricionariedade técnica, inclusive, encontra
amparo em precedente do Supremo Tribunal Federal, mediante o qual não se admitiu que a discricionariedade
técnica justificasse o tabelamento de preços em nível inferior à realidade do custo de produção: "II – Fixação de
preços em valores abaixo da realidade e em desconformidade com a legislação aplicável ao setor: empecilho ao
livre exercício da atividade econômica, com desrespeito ao princípio da livre iniciativa". STF, 2ª Turma, rel. Min.
Carlos Velloso, Recurso Extraordinário 422.941-2/DF, j. 6.12.2005, DJ 24.3.2006, por maioria, trecho da
ementa.
25
Ob. cit., Tomo 1, pp. X-15-6. A obra de Alessi indicada por Gordillo é Diritto amministrativo, t. I,
Milan, 1949, p. 145. Cf., ainda, Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Discricionariedade... cit., pp. 486-7, também
com base na doutrina de Alessi.
26
Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Discricionariedade... cit., pp. 489-94.
- 170 -
não é possível uma cisão completa entre técnica e política nas atividades do Estado. Não há
neutralidade que justifique o afastamento dos parâmetros legais, ou sequer capaz de imunizar
a atividade de determinado órgão contra o controle jurisdicional27. Como destaca Marcelo
Figueiredo, com acerto, não é possível separar atividade técnica e administrativa no exercício
de atividades do Estado. Os rumos do Estado devem necessariamente ser fixados pela vontade
política expressa pelo povo e não por burocratas do Governo. A idéia de neutralidade não
justifica, portanto, poderes autônomos à Administração28.
As lições ilustram que, em verdade, sobre os aspectos nitidamente técnicos das
atividades administrativas não há discricionariedade, logo, não há um dos pressupostos
necessários para o exercício de função regulamentar29. Quando a técnica está unida a fatores
não nitidamente técnicos, já se pode falar numa competência discricionária, justamente
porque a questão foge da simples técnica. A questão não é exclusivamente técnica e, portanto,
verifica-se certa discricionariedade concedida à Administração.
O argumento da técnica, portanto, não é suficiente para justificar uma atenuação nas
exigências da legalidade, pois que é justamente quando não se apura mera técnica que se
justifica a edição de regulamentos pelas autoridades administrativas, veiculando uma opção
discricionária quanto ao ponto controvertido e, portanto, não exclusivamente técnico. Por isso
que o recurso à ciência ou à técnica só se justifica para a caracterização dos elementos ou
situações já previamente indicados na lei por conceitos indeterminados. Ou seja, recorre-se à
ciência para delimitar o sentido de conceitos legais. Como explica Celso Antônio Bandeira de
Mello30, em tais casos, verifica-se como que uma conjugação de técnica e discricionariedade,
pois entram em pauta tanto fatores técnicos quanto fatores de conveniência e oportunidade.
Daí que é falso o argumento que pretenda conferir poderes de regulamentação
autônoma à Administração porque a questão reveste-se exclusivamente de aspectos técnicos.
A técnica não é fundamento para a autonomia no exercício de atividade administrativa.
27
Cf., nesse sentido, Egon B. Moreira, ob. cit., p. 219.
28
Cf. Marcelo Figueiredo, ob. cit., pp. 300-1.
29
Cf. nesse sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Discricionariedade... cit., pp. 497-9.
30
Regulamento... cit., p. 49.
- 171 -
31
Cf. Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 432-4, e Hartmut Maurer, ob. cit., § 8, 27, p. 195.
32
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 441.
- 172 -
Assim compreendidas, tais relações são admitidas em duas hipóteses: (i) nas relações
entre o Estado e o círculo de pessoas que nele se inserem; e (ii) quando for impossível ou
inadequada a regulamentação veiculada única e exclusivamente pela lei33.
O primeiro dos casos não se refere exclusivamente à relação entre servidores
públicos e Administração, geralmente o primeiro exemplo que nos ocorre. Também se
inserem os casos de disciplina daqueles internados em hospitais públicos, manicômios,
presídios etc. Podemos referir ainda à disciplina dos estudantes da rede pública de ensino ou
ainda dos usuários de bibliotecas públicas. Incluí ainda aqueles que contratam com a
Administração Pública, recebem delegações de atividade estatais ou utilizam serviços
públicos. Segundo Carlos Ari Sundfeld tais hipóteses podem ser assim sintetizadas:
"O particular estabelece com a Administração vínculos específicos, propiciatórios de poderes
administrativos especiais quando: a) integra-se a seu aparelho burocrático; b) recebe delegação de
atividade estatal; c) contrata com a Administração; ou d) utiliza serviço público ou é beneficiado pelo
direito ao uso especial de bem público"34.
A segunda hipótese citada refere-se, além dos exemplos já citados, aos casos de
regulação técnica, nos quais a regulamentação deve acompanhar as mudanças tecnológicas ou
acompanhar contingências políticas, econômicas ou culturais. Nesses casos, não há como
negar, a regulamentação legal é substituída por uma "cláusula geral" que se justifica pela
impossibilidade de minuciosa regulamentação legal da matéria. Nesta seara, os regulamentos
precisam disposições legais com referências a "conceitos precisáveis mediante averiguações
técnicas, as quais sofrem o influxo de rápidas mudanças advindas do progresso científico",
como explica Celso Antônio Bandeira de Mello35.
Não por outra razão, é que, com fundamento na compreensão de relação jurídica de
supremacia especial, Marcelo Figueiredo36 irá justificar o poder normativo das agências
reguladoras e, por conseqüência, lhe impõe todas as limitações próprias ao exercício dessa
forma de supremacia.
Não se deve imaginar, contudo, que o fundamento em uma relação especial de
sujeição dispense, de toda forma, uma fundamentação última na lei. Logo, também se
sujeitam às limitações materiais gerais que vigoram para todos os regulamentos. Bem por
33
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., 774-9.
34
Direito... cit., p. 24.
35
Curso... cit., p. 336. Sobre supremacia especial e também sobre regulamentos em setores técnicos,
cf., na mesma ob. cit., pp. 774-9 e 336-9, respectivamente.
36
Ob. cit., pp. 282 e segs. Cf., ainda, José Roberto Pimenta Oliveira, que também admite uma
"competência normativa singular para o quadro regulativo das aludidas relações" (ob. cit., p. 293).
- 173 -
37
Ob. cit., § 8, 31, p. 198.
38
Cf., nesse sentido, Luís S. Cabral Moncada, ob. cit., em especial, pp. 446 e segs.
39
No texto, utilizamos indiferentemente os termos processo ou procedimento administrativo. Cf.
Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso... cit., pp. 455-6.
40
A obra de Niklas Luhmann citada por Sérgio V. Bruna é Legitimação pelo procedimento, UnB,
1980, p. 30.
- 174 -
41
Sérgio V. Bruna, ob. cit., pp. 180-8.
42
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 21-6.
43
Idem, pp. 1.020-3.
- 175 -
51
Idem, p. 277.
52
Agustín Gordillo, ob. cit, Tomo 1, pp. VI-33-4.
53
Nesse sentido, entre outros, Elival da Silva Ramos, ob. cit., p. 82, e Carlos Ari Sundfeld. A
importância do procedimento administrativo. Revista de direito público. São Paulo, out.–dez., 1987, n. 84, pp.
64-6.
54
Sérgio V. Bruna, ob. cit., pp. 251-5.
- 177 -
55
Os limites... cit., pp. 194.
56
Carlos Ari Sundfeld. A importância... cit., pp. 65-8.
57
Cf. Sílvio Luís Ferreira da Rocha. A irrelevância... cit., p. 54.
- 178 -
58
A propósito, dispõe a Lei 9.784, de 29.1.1999. "Art. 31. Quando a matéria do processo envolver
assunto de interesse geral, o órgão competente poderá, mediante despacho motivado, abrir período de consulta
pública para manifestação de terceiros, antes da decisão do pedido, se não houver prejuízo para a parte
interessada (...) § 2º. O comparecimento à consulta pública não confere, por si, a condição de interessado do
processo, mas confere o direito de obter da Administração resposta fundamentada, que poderá ser comum a
todas as alegações substancialmente iguais" (os destaques não são do original).
59
Sérgio V. Bruna, ob. cit., p. 276, o destaque não é do original.
60
Cabe anotar que o regulamento cogitado poderia ser adotado por qualquer órgão com competência
normativa da Administração Pública federal em atendimento às disposições dos arts. 31 a 34 da Lei 9.784, de
29.1999.
61
Cf., nesse sentido, por todos, André Ramos Tavares, ob. cit., p. 63.
- 179 -
64
Idem, pp. 269 e segs.
65
Os limites... cit., p. 3.
- 181 -
para regulamento"66. Já Geraldo Ataliba assenta que: "Só cabe regulamento em matéria que
vai ser objeto de ação administrativa ou desta dependente"67. Pode, contudo, dispor sobre
matéria de Direito privado, mas, então dirá respeito à participação do Estado nas relações
entre particulares para lhes dar garantia, como explica Oswaldo Aranha Bandeira de Mello68.
Mas essa limitação diz respeito apenas ao Presidente da República, cujo poder de
regulamentação é mais amplo. No caso de agências reguladoras, autarquias, certos conselhos
administrativos, e até os ministros de Estado, a limitação é mais ampla, justamente porque se
ocupam de uma área específica da atividade administrativa. É evidente que só lhes cabe
regulamentar a matéria que lhe diga respeito. A competência desses órgãos é mais restrita que
a presidencial, refere-se apenas ao círculo de interesses que lhes cabe tutelar. Logo, a função
regulamentar que exercem é materialmente mais estrita que a presidencial69.
Daí, então, o primeiro limite material à função regulamentar: a questão deve
envolver necessariamente uma atuação da Administração. Em se tratando de órgãos
especializados, só regulamentará matéria atinente a sua área especialização, isto é, matéria de
sua competência específica.
Ainda assim caberia questionar qual deverá ser o conteúdo da lei de habilitação e
qual o conteúdo que cabe ao regulamento tratar?
Se o conteúdo por excelência dos regulamentos, como assenta a doutrina, é a
organização interna da Administração, os regulamentos não devem, em princípio, possuir
efeitos externos. Na hipótese em que se ultrapassa o âmbito interno da Administração, o
conteúdo substancial e efeitos dessa norma devem estar previstos nas leis formais
habilitantes70.
Mas o que entender por conteúdo substancial? Uma solução rudimentar seria invocar
a teoria dos princípios e detalhes. Essa era a tese consagrada no art. 11 da Constituição
brasileira de 1937, não olvidando que se tratava de um texto de período não-democrático de
nossa História71. Nessa hipótese, cabe à lei indicar os princípios e ao regulamento cuidar
66
Curso... cit., p. 326.
67
Decreto... cit., p. 28. O entendimento do autor é reafirmado em texto posterior, cf. Poder
regulamentar do Executivo... cit., p. 191.
68
Ob. cit., pp. 352-4.
69
V., nesse sentido, referindo-se especificamente às autarquias, Celso Antônio Bandeira de Mello.
Regulamentação... cit., p. 334.
70
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 191-3.
71
Constituição brasileira de 1937: "Art. 11 - A lei, quando de iniciativa do Parlamento, limitar-se-á a
regular, de modo geral, dispondo apenas sobre a substância e os princípios, a matéria que constitui o seu objeto.
O Poder Executivo expedirá os regulamentos, complementares". Assim também faz a Constituição francesa de
1958, quanto a certas matérias: "Article 34 (...) La loi détermine les principes fondamentaux: de l'organisation
générale de la Défense Nationale;de la libre administration des collectivités territoriales, de leurs compétences et
- 182 -
apenas dos detalhes ou minudências de execução da lei. A grande crítica a essa proposta de
definição das matérias legal e regulamentar é a dificuldade em definir o que é geral e o que é
detalhe em cada caso.
Outra possibilidade de definição é apontar que cabe materialmente à lei a inovação
na ordem jurídica. Entretanto, o regulamento também traz elementos que inovam a ordem
jurídica. Não é mera repetição da lei, sob pena de ser inútil ou redundante. Mas o regulamento
não traz inovação original, o que é autorizado somente à lei formal proceder. Invocamos, pois,
aqui os argumentos já expendidos quando da diferenciação entre lei e regulamento (cf. Parte
2, item 1.4.1., supra). Essa diferenciação, então, não explica quais questões a lei pode ou não
deixar à inovação ou complementação regulamentar. Apenas deixa certo que não é permitida,
em hipótese alguma, uma norma em branco, que simplesmente trate de conferir competência
regulamentar a órgão da Administração, ou seja, não se permite a deslegalização completa da
matéria.
Ademais, como já destacado não é possível definir um conteúdo vedado à disciplina
por lei formal. Ao Congresso Nacional foi conferida a atribuição para dispor sobre todas as
matérias de competência da União (Constituição, art. 48). Daí, então, a conclusão de
Diógenes Gasparini no sentido de que "não há, portanto, em princípio, qualquer matéria só
regulável por lei, ou só disciplinável por regulamentos"72. Cabe ao legislador tudo o que ele
entender que lhe convém.
Sem embargo da impossibilidade da indicação das matérias legais e regulamentares
de forma clara e linear, é possível alinhar alguns limites substanciais, que devem ser
necessariamente disciplinados por lei e que, por conseqüência, não podem ser disciplinados
exclusivamente pelos regulamentos em razão das barreiras constitucionais ao poder
regulamentar, especialmente as decorrentes da legalidade, da separação de poderes e da
vedação à delegação de poderes.
Um passo seguinte nessa proposta seria a invocação do disposto no art. 68, § 2º, da
Constituição da Republica, segundo o qual a resolução para a expedição de lei delegada pelo
Presidente da República indicará seu conteúdo e os termos de seu exercício. Essa
consideração, no entanto, restringiria à legalidade exclusivamente ao seu aspecto formal,
limitada a uma precedência da lei. Ademais, uma proposta em termos tão simples teria o
73
Victor Nunes Leal. Lei... cit., p. 73.
74
Direito... cit., p. 36, nota 18.
75
Ob. cit., p. 1.034.
- 184 -
Portanto, ela será válida sempre como um primeiro passo para se detectar a violação dos
princípios da legalidade e da separação de poderes. Sem o atendimento desses pressupostos
dificilmente se poderá sustentar que o regulamento atende às exigências constitucionais para
sua válida edição.
Enfim, serão destacados os seguintes deveres da previsão legal de qualquer
habilitação para a atuação normativa da Administração Pública: a) indicação dos princípios
jurídicos incidentes na área de regulação da lei; b) indicação das finalidades a serem atendidas
por meio da atividade normativa; c) prescrição das possíveis restrições aos direitos
fundamentais; e d) prescrição de eventual sanção punitiva pelo desatendimento das normas
regulamentares.
76
Usa-se aqui a expressão "domínio" no sentido de «domínio da norma», expressão cunhada por
Friedrich Müller para indicar os setores da realidade para o qual está orientada a aplicação de uma norma ou
regulação. Cf. K. Larenz, ob. cit., p. 470. Não se trata, portanto, da contraposição entre o domínio da lei e
domínio do regulamento, que indicam, respectivamente, as diferentes matérias que cabe à lei e ao regulamento
disciplinar. No sentido de domínio empregado no texto, tais domínios são idênticos, pois o regulamento não
pode pretender regulamentar setor da realidade sobre o qual ainda não incidiu a lei.
77
Ob. cit., pp. 139-42.
78
Manual... cit., p. 96.
- 185 -
somente são admitidas soluções exatas. Basta ver que a teoria da essencialidade, de
construção germânica, não foi dispensada, embora ela também não ofereça um dado objetivo
exato. Segundo a compreensão dessa teoria são assuntos legislativos todos os assuntos
significativos do ponto de vista da liberdade e da existência do indivíduo, quer se trate de
restrição, quer se trate de prestação, ou seja, é essencial tudo o que é essencial para a
realização dos direitos fundamentais. Bem por isso, o "âmbito da essencialidade coincide com
o do dever legislativo do legislador"79. Cuida-se, pois, de critério de medida: quanto mais
importante for uma disciplina para o cidadão e para a comunidade, mais se justifica a sua
regulamentação por lei. Não se trata de uma grandeza científica, mas de uma medida gradual
ou de uma fórmula de escala móvel. Não oferece critério seguro, é incapaz de oferecer
resultados inequívocos, mas nem por isso foi abandonada pela doutrina alemã80.
Não se quer aqui aplicar em nosso contexto constitucional a teoria da essencialidade,
mas apenas destacar que cabe à lei definir os princípios incidentes em sua área de regulação, e
não aos regulamentos e atos inferiores a formulação desses princípios — aqui já definidos
como norma fundamental (cf. Parte 1, item 1.1., supra). Não se quer também inviabilizar a
veiculação de princípios jurídicos por regulamentos, mas destacar que não cabe aos
regulamentos criar, por iniciativa própria, um novo princípio jurídico para regulamentar a
matéria. Embora possam — e até devam — explicitar os princípios jurídicos que decorrem
necessariamente das normas legalmente previstas para a regulação da matéria. O princípio
deve, pois, decorrer da lei e não decorrer de uma norma regulamentar. Os pontos
fundamentais — embora reconheçamos a dificuldade em indicar precisamente o que seja
fundamental — devem sempre vir na lei, deixando-se as contingências aos regulamentos.
Cabe anotar que essa preocupação em determinar que os princípios sejam veiculados na lei se
ajusta às características dos princípios. É que os princípios têm função normogenética e
sistêmica, isto é, os princípios são fundamentos de regras jurídicas e eles têm idoneidade
irradiante, o que lhes permite compor um sistema normativo81.
Restringir o campo dos regulamentos à estipulação de regras e à enunciação de
princípios que decorrem necessariamente das leis que regulamentam também se justifica pelo
sentido da própria palavra princípio. Como já destacamos, a função regulamentar é parte da
função administrativa, o que equivale dizer que é uma atividade necessariamente infralegal —
princípio da precedência da lei. Ora, o primeiro sentido que a palavra princípio evoca é o de
79
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 171-2.
80
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 174-8 e 299-325, e Hartmut Maurer, § 6, 11 e 11b, pp. 126-
7.
81
Cf. J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 1.163, e José Roberto Pimenta Oliveira, ob. cit., pp. 34-7.
- 186 -
início, de ponto de partida82. Logo, os princípios jurídicos, incidentes sobre a matéria que se
quer disciplinar, devem ser formulados no exercício da função legislativa, não na função
administrativa, pois que esta é secundária. Cabe ao Legislativo indicar os princípios e aos
regulamentos dar "contextura jurídica aos princípios contidos na respectiva lei"83. A lei deve,
pois, necessariamente, já oferecer um início de regulamentação da matéria, exigência que
deverá ser cada vez maior conforme as exigências constitucionais referentes ao tema
regulamentado.
A proposta, ademais, em certo sentido, aproxima-se das teses de Eros Roberto Grau,
Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández. O primeiro destacou a questão
estrutural como matéria legal, conferindo ao regulamento, a questão momentânea ou
conjuntural. Já os dois últimos explicam que cabe à lei o direito substancial. Note-se não são
critérios absolutamente exatos, mas nem por isso devem ser, de imediato, descartados. No
entanto, a indicação dos princípios jurídicos conta com a vantagem de já ser bastante
conhecida e debatida na doutrina.
É preciso, ainda, tentar alinhar alguns pontos sobre o que é necessariamente
fundamental numa regulação e que, nesse sentido, pode compor um princípio jurídico de
regulamentação no setor sobre o qual incide a lei. Embora se deva destacar a impossibilidade
de uma proposta exata, além do que o "'fundamental', muitas vezes, somente se torna
virulento no detalhe"84, é possível alinhar algumas notas indicativas do que se deve entender
por fundamental.
Com efeito, num primeiro esforço, pode-se recorrer aos critérios da Lei Fundamental
alemã, que em seu art. 80, § 1, estabelece um critério de previsibilidade, segundo o qual a lei
não pode deixar de indicar o conteúdo, o fim e a extensão dos poderes normativos que outorga
à Administração85. Esses, então, seriam pontos fundamentais que não deveriam deixar de
constar da lei.
No entanto, tais exigências ainda não seriam suficientes para o nosso ordenamento
constitucional. É possível, assim, oferecer outros critérios para a identificação de pontos
82
Cf. Humberto Ávila. Princípios... cit. [verbete], p. 657, e Fábio Comparato. Ética... cit., pp. 484-5.
83
Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto. Regulação... cit., p. 205, nota 90.
84
Hartmut Maurer, ob. cit., § 4, 12, p. 71.
85
"Grundgesetz. Artikel 80. Erlaß von Rechtsverordnungen (1) Durch Gesetz können die
Bundesregierung, ein Bundesminister oder die Landesregierungen ermächtigt werden, Rechtsverordnungen zu
erlassen. Dabei müssen Inhalt, Zweck und Ausmaß der erteilten Ermächtigung im Gesetze bestimmt werden".
Com apoio na tradução de J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 767, nota 37: "Lei Fundamental. Art. 80. Edição de
regulamentos. (1) O Governo federal, um ministro federal ou os Governos dos Länders podem ser autorizados
por uma lei para editarem regulamentos jurídicos. A lei deverá determinar o conteúdo, o fim e a extensão das
referidas autorizações".
- 187 -
fundamentais. Nesse sentido, buscamos apoio na lição de Ferdinand Lassalle sobre qual é a
essência da Constituição. Não nos interessam aqui suas conclusões sobre a caracterização da
Lei Fundamental como mera folha de papel e a distinção entre esta Constituição escrita e
aquela real e efetiva86. O que importa são seus esclarecimentos sobre a diferença entre uma lei
e uma lei fundamental. Nessa perspectiva, são três os pontos que destaca. Primeiro: uma lei
fundamental é uma lei básica. Segundo: essa lei deve ser o verdadeiro fundamento das outras
leis e deve, portanto, engendrar e informar as demais leis. Terceiro: são leis que devem
necessariamente existir, o que é fundamental não é por mero capricho, mas assim é porque
devem ser necessariamente desse modo. Nos termos do autor: "Somente as coisa que carecem
de fundamento, que são as causais e fortuitas, podem ser como são ou mesmo de qualquer
forma; as que possuem fundamentos, não. Elas se regem pela necessidade"87.
Transportando essas idéias para o tema em questão88. A lei deve, então, por primeiro,
trazer as normas básicas. Segundo: a lei deve ser o verdadeiro fundamento dos regulamentos,
revelar capacidade de irradiar-se sobre o conteúdo dos regulamentos e constituir, assim,
diretriz das demais normas, normas essas que serão produzidas pela Administração com o fim
de dar concretização aos conteúdos legais. Por fim, as leis de habilitação devem trazer aquelas
normas que necessariamente devem ser veiculadas por lei. E a necessidade de previsão
legislativa é decorrência das exigências do ordenamento constitucional: é segundo critérios
constitucionais que se apura a necessidade de uma dada norma precisar, necessariamente, ser
veiculada por lei.
Ora, as normas com essa capacidade irradiante e fundante de outras normas são os
princípios jurídicos, porque o princípio é "disposição fundamental que se irradia sobre
diferentes normas, compondo-lhe o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão
e inteligência"89. São as normas com a função de orientar a interpretação e de integrar as
diferentes normas90.
86
Como se sabe, para Lassallle, há duas constituições, a real e efetiva e a constituição escrita: "Tenho
demonstrado a relação que guardam entre si as duas constituições de um país: essa constituição real e efetiva,
integralizada pelos fatores reais de poder que regem a sociedade, e essa outra constituição escrita, à qual, para
distingui-la da primeira, vamos denominar de folha de papel." Assim, para o citado autor, a Constituição escrita
só vale enquanto reflete com fidelidade as disposições da constituição real e efetiva, formado pelos fatores reais
de poder. Ferdinand Lassalle. A essência da constituição (1863). Com base na trad. de Walter Stönner. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 6ª edição, 2001, pp. 23 e 33 e segs., os destaques são do original.
87
Ob. cit., p. 9.
88
Também Maria Garcia faz empréstimo das idéias de Ferdinand Lassalle para explicar o que é um
direito fundamental. Cf. Maria Garcia. Mas, quais são os direitos fundamentais? Revista de direito constitucional
e internacional. São Paulo, abr.–jun., 2002, vol. 39, pp. 120-3.
89
Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade administrativa e controle judicial... cit., p. 18.
90
Cf. Sílvio Luís Ferreira da Rocha. Função... cit., pp. 150-1.
- 188 -
Não obstante essas considerações, deve ficar bastante claro que o que se argumenta
nesse trecho é a necessidade e a inexorabilidade de a lei indicar os princípios, e não o fato de
que deve limitar-se à enunciação desses princípios, deixando todo o mais aos regulamentos.
Ou seja, não se quer a volta do art. 11 da Constituição brasileira de 1937. Como explica
Itiberê de Oliveira Rodrigues, a Carta referida, inspirada na filosofia aristotélica, introduziu a
hipóstase de conceito de lei parlamentar, reduzindo, pois, sua forma jurídico-normativa à
essência da matéria regulanda91.
O que importa destacar é que não se defende um conceito de lei reduzido às
hipóstases ou à substância, ao contrário. A lei pode — se assim entender que melhor atende
ao interesse público — estipular as minúcias do setor da realidade que regulamenta, mas não
pode deixar de, ao menos, indicar os princípios jurídicos incidentes, isto é, de dar início à
regulamentação oferecendo as normas básicas, fundamentais. O domínio da lei é completo
sobre o setor da realidade que regulamenta, mas não deve, em hipótese nenhuma, deixar de
indicar as regras fundamentais incidentes. A reserva do que cabe à Administração cumpre à
lei definir.
Há, pois, uma necessidade de a lei indicar necessariamente os princípios jurídicos,
isto é, as normas fundamentais incidentes sobre o setor da realidade que regulamenta. Logo,
aos regulamentos não cabe, por força própria, estipular princípios novos. "Limita-se a
desenvolver os princípios e a complementar a sua dedução, a fim de facilitar o cumprimento
das leis; não deve estabelecer princípios novos", essa era uma das limitações dos
regulamentos indicadas por Carlos Maximiliano92.
O regulamento poderá, no entanto, enunciar aqueles princípios que decorrem
logicamente das disposições legais, bem como as normas burocráticas de aplicação daqueles
princípios. Aliás, sobre o ponto cabe invocar a seguinte passagem de Bruce Ackerman: "the
more time politicians spend on bureaucratic politics, the less they will devote to the
lawmaking function that only they can legitimately exercise: the elaboration of basic
values"93. Afinal, se, por um lado, não se deve dispensar por completo a função regulamentar
para que o legislador não seja compelido a se deter em detalhes, por outro, é fundamental a
91
Itiberê de Oliveira Rodrigues, ob. cit., p. 75. No entanto, a doutrina asseverava que a sanção para o
desatendimento pela lei da determinação constitucional era tão-só política e que não se poderia argüir de
inconstitucional lei que dispusesse sobre detalhes. O dispositivo, assim, não passava de uma recomendação. Cf.,
nesse sentido, Victor Nunes Leal. Lei... cit., pp. 83-5.
92
Comentários à Constituição Brasileira, 3ª ed., 1929, pp. 542-3, apud por Victor Nunes Leal, última
ob. cit., p. 87.
93
Ob. cit., p. 687.
- 189 -
compreensão de que apenas o legislador tem legitimidade para indicar quais são os valores
básicos.
Também se insere nessa perspectiva a inviabilidade dos regulamentos, por óbvio,
contrariarem os princípios jurídicos consagrados pelo ordenamento jurídico. É conseqüência
firme do princípio da legalidade, especialmente quando compreendido em seu sentido
amplo94. A importância e a inviabilidade de regulamentos contrariarem princípios, aliás, é que
tem possibilitado ao Conselho de Estado e ao Conselho Constitucional de França a,
gradualmente, recolocar a lei acima do regulamento, não obstante o texto da Constituição
francesa seja mais favorável ao regulamento95. Ou seja, sequer naqueles ordenamentos nos
quais os regulamentos vigem com força de lei se admite que os regulamentos contrariem os
princípios jurídicos.
Daí a importância de compreender que não pode o regulamento pretender enunciar,
por força própria, qualquer princípio jurídico. A diferenciação não é de nenhum modo
desnecessária ou sem sentido. Pode haver certa razão na crítica de Marcello Caetano, antes
referida, de que o critério é relativo, mas não há razão para se admitir que um ponto
fundamental da regulamentação seja veiculado por meio de regulamento, especialmente em
nosso ordenamento jurídico-constitucional.
94
Cf., nesse sentido, Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández, ob. cit., pp. 200-4.
95
Cf. Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., pp. 719-20.
96
Weida Zancaner explica a diferença entre fim e finalidade: "finalidade é o bem jurídico objetivado
pelo ato, distinguindo-se do fim, por ser este o interesse público geral que deve servir de norte à edição de todo e
qualquer ato administrativo" (ob. cit., p. 52). Também segundo a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello,
finalidade é o bem jurídico objetivado pelo ato (Curso... cit., pp. 377-8). No presente tópico não nos
preocupamos em diferenciar tais termos, usando-os indistintamente.
97
Ob. cit., pp. 139-42.
- 190 -
alcançadas por meio do exercício da função regulamentar já devem estar pré-definidas na lei
de habilitação.
Com efeito, se a lei a ser regulamentada não indicar as finalidades de exercício da
função regulamentar, já não se poderia compreender o regulamento como exercício da função
administrativa, ou seja, como atividade exclusivamente instrumental à realização dos
interesses coletivos indicados na lei, mas como simples poder entregue à livre
discricionariedade do administrador.
Portanto, a lei de habilitação do exercício de função regulamentar não deve, sob pena
de manifesta inconstitucionalidade, estabelecer apenas a competência para a prática de atos
normativos, deve, pois, indicar exaustivamente — e de forma explícita — as finalidades do
exercício da função regulamentar. Apenas dessa maneira não haverá fraude à vedação da
delegação de poderes e à legalidade em sentido substancial. "A primeira preocupação da
legalidade é imprimir uma orientação de sentido finalístico a toda actividade
administrativa"98.
Celso Antônio Bandeira de Mello99 explica que a atividade administrativa não causa
surpresa ao administrado porque, sempre, meios e finalidades de sua atuação estão previstas
na lei. Logo, cabe à lei, inexoravelmente, indicar, como dito, as finalidades a serem atendidas
por meio da função regulamentar. A correição dessa colocação é confirmada pela lição de
Ruy Cirne Lima, lembrada por Celso Antônio Bandeira de Mello: "Supõe, destarte, a
atividade administrativa a preexistência de uma regra jurídica, reconhecendo-lhe a finalidade
própria"100. Bem por isso, Celso Antônio Bandeira de Mello assevera que "a atividade
administrativa, para manter-se afinada com os princípios do Estado de Direito e com o
regramento constitucional brasileiro, necessita ser exata e precisamente uma atividade pela
qual se busca o atingimento dos fins pré-traçados em lei"101.
Também o pensamento de Eduardo García de Enterría e Tomás-Ramón Fernández,
em seus estudos sobre o poder discricionário, confirma a necessidade de a lei apontar, ainda
que implicitamente, qual a finalidade do exercício da prerrogativa concedida à Administração.
Os autores espanhóis destacam, ademais, que a finalidade há de ser sempre uma finalidade
pública:
98
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 364.
99
Regulamentação... cit., pp. 337-8, e Desvio de poder. Revista de direito público. São Paulo, jan.–
mar., 1989, n. 89, pp. 28-9.
100
Princípios de Direito Administrativo, 5ª ed., São Paulo, RT, 1982, p. 22, apud Celso Antônio
Bandeira de Mello. Regulamentação... cit., p. 342.
101
Celso Antônio Bandeira de Mello. Desvio... cit., p. 25, e Discricionariedade e controle
jurisdicional... cit., p. 51.
- 191 -
"porque todo poder es conferido por la Ley como instrumento para la obtención de una finalidad
específica, la cual estará normalmente implícita y se referirá a un sector concreto de las necesidades
generales, pero que en cualquier caso tendrá que ser necesariamente una finalidad pública"102.
A finalidade, portanto, deverá estar sempre presente na lei de autorização da
competência regulamentar. Bastante expressiva, a propósito da competência discricionária, é a
seguinte passagem de Marcello Caetano: "A legalidade continua a existir mesmo nos casos da
mais ampla discricionariedade na medida em que só existem os poderes discricionários
quando conferidos por lei e em que pelo menos o fim do seu exercício é pela lei fixado
também"103.
Entre nós, Caio Tácito lecionava "que a ação discricionária deve pautar-se pelo
requisito essencial da finalidade como condição da competência da autoridade pública"104.
Em outra oportunidade já havia encarecido que "Se a autoridade se desvia da finalidade legal
específica, o ato administrativo se torna viciado em elemento essencial à sua legalidade"105.
Por isso, a conclusão do autor citado de que a finalidade é elemento permanente a vincular a
conduta do agente administrativo106.
Eduardo Salomão Neto, por outro caminho, também acaba por confirmar a
necessidade de a lei indicar a finalidade de exercício da função regulamentar, quando analisa
a questão especificamente no sistema financeiro. O referido autor, embora não fale em
finalidades, mas em valores, assenta o dever da legislação de indicar os valores segundo os
quais a atuação regulamentar deverá ser exercida. Procura demonstrar, assim, a existência de
algo mais profundo do que a estipulação de direitos e obrigações como tutela do princípio da
legalidade, embora tome o cuidado de evidenciar que suas conclusões não devem levar a
completa irrelevância desse critério. Assevera que a lei formal não seria capaz de determinar
exaustivamente todos os direitos e obrigações dela resultantes107. Assim, conclui Eduardo
Salomão Neto, que "O exercício do poder regulamentar não configurará delegação de
atribuição legislativa, mesmo que importe a criação de direitos e obrigações, no pressuposto
de que se limita a concretizar valores já indicados em norma legal"108.
102
Ob. cit., p. 462.
103
Manual... cit., p. 31.
104
O princípio... cit., p. 340, o destaque é do original.
105
Caio Tácito. O desvio de poder no controle de atos administrativos, legislativos e jurisdicionais.
Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro, abr.–jun., 1992, vol. 188, p. 2, o destaque não é do original.
106
Idem, p. 13.
107
Eduardo Salomão Neto, ob. cit., pp. 106-9.
108
Idem, p. 109.
- 192 -
Optamos por falar em finalidades, e não em valores, pois são as finalidades que
indicam os valores109, fica evidenciada, assim, a relação entre fim e valor110. Ocorre,
entretanto, que os valores não são unívocos, dificultando o controle da função regulamentar.
Isso, no entanto, não permite falar em atividade livre na determinação do fim, mas caberá
dizer se a regulamentação é capaz ou não de atender à finalidade legal. É que não pode a
regulamentação escolher outros valores ou bens a proteger além daqueles já previstos na lei a
ser regulamentada porque, se assim não fosse, a regulamentação não se definiria como
função, mas simples poder.
Mesmo quando a indicação das finalidades é feita com recurso aos conceitos
jurídicos indeterminados, não haverá ampla discricionariedade administrativa porque o
conceito, embora indeterminado, tem limites para sua estipulação111.
As lições de Afonso R. Queiró confirmam essa compreensão. A sua doutrina se apóia
na diferença entre conceitos práticos e conceitos teoréticos. Os primeiros são conceitos de
valor, suscetíveis de uma série mais ou menos determinada de sentidos, mas não idênticos,
ensejando competência discricionária. Já conceitos teoréticos, próprios das ciências empírico-
matemáticas, implicam a vinculação do órgão administrativo à verificação no domínio da
realidade do fato cujos contornos são delineados por um conceito legal. "A discricionariedade
surge, assim, aos conceitos de valor utilizados na norma jurídica, aos conceitos práticos (não
teoréticos)"112.
Em sua análise sobre o desvio de poder, então, conclui pela existência de
discricionariedade, tanto no fim, quanto nos motivos (condições-de-fato). A
discricionariedade depende, enfim, da utilização pela lei de conceitos práticos, seja na
indicação do fim, seja na indicação dos motivos do agir da Administração. Mas a
discricionariedade quanto ao fim não significa a livre escolha de finalidade pela
109
Ao dissertar sobre a possibilidade de discricionariedade na finalidade da norma, Celso Antônio
Bandeira de Mello encarece que: "... a finalidade aponta para valores (...) se a finalidade é um valor — como
deveras o é — e se os valores não são unissignificativos, a fluidez da finalidade reflui sobre o pressuposto de
fato". Discricionariedade e controle jurisdicional... cit., pp. 19-20.
110
Cf. Tércio Sampaio Ferraz Júnior. A relação meio/fim na teoria geral do direito administrativo.
Revista de direito público. São Paulo, jan.–mar., 1982, n. 61, p. 29.
111
Cf. Afonso R. Queiró. A teoria... cit. [2ª parte], p. 53.
112
Última ob. cit. [1ª parte], pp. 60-1, e [2ª parte], pp. 52-3. Em texto mais recente, convém anotar,
Afonso R. Queiro deixou de relacionar a discricionariedade com a imprecisão dos enunciados dos textos legais e
limita o seu conceito de discricionariedade ao deliberado intento do legislador de atribuir certa margem de
liberdade ao administrador. O eminente autor português declarou, assim, que: "O poder discricionário não se
confunde, portanto, com tôda e qualquer margem de imprecisão, ainda a mais ampla, na formulação de
comandos legais. Noutras palavras: não se confunde com os chamados conceitos vagos ou conceitos
indeterminados". Os limites... cit., p. 2.
- 193 -
Administração, mas sim a definição do que seja aquele conceito prático num caso concreto.
Daí sua conclusão:
"o poder discricionário da Administração nunca é uma livre escolha ou uma livre atividade. É,
pelo menos, sempre limitado, dirigido, regulado, ligado, pelo fim da lei, pela ratio legis, fim que
jamais falta, contra o que pensa LAUN, pois que 'eine Rechtsnorm ohne Zweck ist ein Unding' [uma
regra de direito sem finalidade é um absurdo – em nossa tradução livre]"113.
Com efeito, a existência de certa margem de discricionariedade quanto ao fim não
desmente a necessidade de a lei indicar sempre a finalidade a que está atrelada a atuação da
Administração Pública. É que a discricionariedade, no caso, decorre da indicação de conceitos
indeterminados na definição legal da finalidade114. Mas essa equivocidade, que ocorre nas
hipóteses de indicação da finalidade legal por meio de conceitos indeterminados, não significa
que não haja limites na compreensão desse conceito. Ainda que indeterminado, o conceito
apresenta algum sentido ou significado. "Se não houvesse significado algum recognoscível,
não haveria palavra, haveria ruído"115. Daí que o conceito só é indeterminado até o limite de
sua equivocidade. Dessa forma, também cabe ao Judiciário interpretar os conceitos
indeterminados a fim de lhe fixar os contornos e limites dessa indeterminação116. Ademais,
outros fatores incidentes sobre a atuação normativa podem delimitar a compreensão do
conceito indeterminado e reduzir ou até mesmo eliminar a discricionariedade relativa à
compreensão dos conceitos indeterminados. Ou seja, é nos limites do previsto no texto da lei
e não na livre subjetividade do administrador que há certa discricionariedade quanto à
compreensão da finalidade indicada por conceito indeterminado.
Além disso, se, como já dissemos, um conceito indeterminado é conceito e não um
sem sentido, cumpre à Administração esgotar todos os meios interpretativos desse conceito
indeterminado e, só a partir do esgotamento desses recursos interpretativos, será capaz de
adotar uma decisão de sua exclusiva responsabilidade. A discricionariedade começa quando
esgotados todos os processos interpretativos disponíveis117.
Por isso, a conclusão de Antônio Carlos Cintra do Amaral no sentido de que "Em
regra, a finalidade não está prevista, pelo menos expressamente, na ordem legal"118 não parece
ser a mais acertada. Assevera o autor que "o agente estatal pode escolher qualquer finalidade",
113
A teoria... cit. [1ª parte], pp. 73-4, os grifos são do original.
114
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade administrativa e controle judicial... cit.,
p. 23.
115
Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade e controle jurisdicional... cit., p. 29.
116
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade administrativa e controle judicial... cit.,
p. 25.
117
André G. Pereira, ob. cit., p. 217.
118
Conceito... cit., p. 41.
- 194 -
mas que esta finalidade deve ser "conforme o ordenamento jurídico". Ora, para determinar se
a finalidade de sua atuação é conforme o ordenamento jurídico, cabe à Administração
observar qual é a finalidade que lhe determina a lei. A atuação administrativa não se
caracterizaria mais como instrumental, já dissemos, se pudesse ser livre na definição das
finalidades de sua atuação.
Já para aqueles que não vislumbram qualquer discricionariedade relacionada com os
conceitos indeterminados a questão, então, sequer se coloca. Por isso, quando, mudando sua
compreensão anterior, Afonso R. Queiró deixa de relacionar discricionariedade e conceitos
indeterminados conclui que: "Os órgãos da Administração não podem eleger as finalidades
públicas, os intêresses públicos específicos, ao serviço dos quais lhes cabe exercer a sua
competência subjetiva. Nesse domínio não há poder discricionário"119.
Aliás, é bastante comum encontrar na doutrina a afirmação de que a atividade
administrativa é sempre vinculada quanto ao fim. Assim, é exemplo dessa doutrina, entre nós,
a de M. Seabra Fagundes que, em crítica ao posicionamento de Celso Antônio Bandeira de
Mello, assevera que:
"(...) se tem como vinculado o agente no que diz com a finalidade. Nega-se-lhe opção entre ela (tal
como basicamente enunciada ou como pressuposto necessariamente decorrente dos textos reguladores
do comportamento) e outro fim qualquer. Se fica ao administrador, quando age, graduar a extensão da
medida (moralidade mais rígida ou menos rígida, regulação do trânsito em mão única ou mão dupla;
exigência de recipientes de madeira ou de tecido para alimentos a granel etc.), isso é aspecto que se
situa em outro ângulo, que não o da finalidade legal do ato. Esse aspecto diz com o objeto ou
conteúdo do ato, não com sua finalidade"120.
Assim, em síntese, embora se vislumbre a possibilidade de existir discricionariedade
quanto à finalidade da atuação administrativa pela decorrência de sua indicação mediante
conceitos indeterminados, a lição de M. Seabra Fagundes é valiosa como um alerta a indicar
que a atuação administrativa pode ter discricionariedade na definição desse conceito
indeterminado, mas não é livre para escolher senão aquele conceito que é indicado pela lei.
Bem por isso, quando se debate o tema da atuação discricionária — e a função
regulamentar é discricionária — não vislumbramos hipótese de escolha ou faculdade de
atendimento da finalidade legal que justifica essa atuação. O que cabe justamente é avaliar se
na regulamentação da lei houve ou não desvio de poder, isto é, se existe descompasso
objetivo entre a finalidade a que serve o regulamento e a finalidade previamente indicada na
119
Os limites... cit., p. 4.
120
M. Seabra Fagundes, ob. cit., p. 95, nota 153.
- 195 -
121
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade e controle jurisdicional... cit., pp. 73.
122
Última ob. cit., pp. 76-7, e Desvio... cit., pp. 35-6.
123
O desvio... cit. pp. 4-9.
124
Caio Tácito. O desvio... cit., p. 2.
125
Idem, p. 4.
126
Scriti minori, vol. 1, 1950. p. 199, apud Caio Tácito, última ob. cit., p. 8.
127
Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Agências... cit., p. 155, e O poder... cit., p. 292.
- 196 -
finalidades genéricas na lei, que não indicam uma reflexão madura sobre o tema por parte do
Legislativo.
Se a indicação da finalidade passa, então, pela definição de uma política legislativa,
tal resultará em importantes implicações no que toca à interpretação teleológica dos
compromissos da função regulamentar. A interpretação finalista é uma interpretação de
acordo com os fins reconhecíveis e idéias fundamentais do quadro de objetivos políticos
indicados na lei. Assim, toda a interpretação, toda construção jurídica e todas as previsões
normativas conformadoras, isto é, os regulamentos editados em obediência à lei, deverão ficar
atrás da lei, de modo que o objetivo político indicado na lei seja alcançado da melhor forma
possível128.
A função regulamentar, mediante a necessária indicação da finalidade específica de
seu exercício, se pauta, desse modo, por um critério de eficiência, extraído da relação
meio/fim, como explica Tércio Sampaio Ferraz Júnior. A idéia de legalidade não se traduz, no
caso, num controle condicional, mas antes exige um controle finalista da função
regulamentar. O que implica a vinculação do administrador, no exercício dessa função, a uma
otimização de solução para atendimento da legalidade. Justifica, pois, uma responsabilidade
do administrador de zelar pela solidariedade da relação meio/fim. Assim, estabelecendo a lei
uma programação finalista de atuação administrativa, ela torna vinculantes esses fins e com
isso os meios e modos tornam-se dependentes desses fins. Há uma legitimação de objetivos,
com fundamento no princípio da eficiência. Afasta-se a compreensão de legalidade como
bloqueio e estabelece-se a legitimidade de determinados fins129.
A relação de validação dos regulamentos, portanto, pauta-se na técnica finalista e não
numa técnica condicional130, isto é, há uma prefixação dos fins e a autoridade é responsável
por encontrar os meios adequados, responsabilizando-se por essa adequação. A imunização
finalista exige um comportamento não-automático ou mecânico da autoridade, mas sim um
comportamento ativo e participativo, pois ela deve justificar a escolha do meio, afinal não é
qualquer meio suficiente para atingir a finalidade legalmente estipulada. O controle de
validade torna-se casuístico131. E assim é porque a técnica finalista é própria dos atos
discricionários, como explica o próprio Tércio Sampaio Ferraz Júnior:
128
Cf. Karl Larenz, ob. cit., pp. 468-9.
129
Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Agências... cit., pp. 151-5, e O poder... cit., pp. 283-92.
130
Sobre tais conceitos, cf. Tércio Sampaio Ferraz Júnior. Teoria da norma jurídica: ensaio de
pragmática da comunicação normativa. Rio de Janeiro: Forense, 4ª edição, 2002, 4ª tiragem, 2005, pp. 109-13.
131
Tércio Sampaio Ferraz Júnior. A relação... cit., p. 30-2.
- 197 -
"O ato vinculado nada mais é, neste sentido, que uma decisão validada de modo condicional,
enquanto o discricionário se refere à decisão validada de modo finalista. No primeiro a imunização
ocorre pelo correto e rigoroso emprego dos meios. No segundo, a solidariedade entre meios e fins
exige a correta adequação tendo em vista os fins fixados e a atingir (...) A técnica de validação
finalista faz, portanto, do ato discricionário uma norma cuja validade jamais se liberta do juízo de
valor do seu emissor (...) Assim, a verificação de sua validade nos obriga a pensar em probabilidades e
chances, escalas móveis, proporções de valores e oportunidades condicionadas pelo tempo. Ou seja,
levam-se em conta, dada a impossibilidade de uma impessoalização neutra, o procedimento utilizado,
a competência (não jurídica) especializada e, sobretudo, as repercussões para além das conseqüências
puramente jurídicas, pois os seus resultados inesperados não são um mero agravamento possível, mas
serão tidos como não justificados"132.
Daí se percebe que, por ser uma competência discricionária, a habilitação legal deve
indicar, de forma expressa, a finalidade a ser atendida pelo exercício da função regulamentar.
Desse modo, a finalidade indicada pela lei será capaz de limitar a compreensão dos motivos
ensejadores da prática do ato. O fim, assim, delimitará os possíveis motivos porque há uma
necessária correção lógica entre motivo e conteúdo do ato em função da finalidade — isto é,
justificará um controle da causa, no sentido empregado por Celso Antônio Bandeira de Mello.
É que a finalidade indicada na lei não tolera qualquer motivo, mas somente aqueles que se
justificam em vista dessa mesma finalidade. Assim, mesmo que os motivos não sejam
indicados pela lei, será mister apurar se os motivos invocados são verdadeiros e aptos para o
atendimento da finalidade133. Motivo, finalidade legal e finalidade efetivamente atendida pelo
ato regulamentar, essas são noções inter-relacionadas. Como explica Celso Antônio, "não há
como separar o motivo (ou pressuposto de fato) da finalidade e do interesse que, pelo
cumprimento dela, se vê atendido."134. Não são, pois, quaisquer fatos suficientes para
justificar a expedição, a alteração ou a revogação dos regulamentos, bem como será nulo o
regulamento expedido sem motivo algum. Pode-se dizer que, de certo modo, a lei sempre dá o
motivo do ato, mas o concede, muitas vezes, indiretamente, pela indicação da finalidade.
Há limites, por óbvio, à compreensão do motivo, mas como a lei pode ser omissa no
ponto, cabe, muitas vezes, à autoridade administrativa estipular os pressupostos de fato de sua
atuação. Não é fundamental — como o é no caso da finalidade — que a lei esgote a indicação
dos fatos justificadores dos regulamentos. Essa não-indicação do motivo, contudo, não
implica a inexistência de controle sobre o pressuposto de fato do ato da Administração. Essa
conclusão é extraída da lição da doutrina:
132
Idem, p. 33.
133
Cf. Caio Tácito. Princípio... cit., p. 341.
134
Discricionariedade administrativa e controle judicial... cit., p. 26.
- 198 -
"Mesmo quando a lei se omite em explicitar os motivos necessários para a produção do ato, nem
por isso poder-se-ia abraçar a conclusão de que, em tais hipóteses, a Administração pode agir sem
motivos, isto é, sem apoio em fatos que lhe sirvam de base prestante para expedir o ato, ou que está
livre para calçar-se em quaisquer fatos, sejam quais forem"135.
Também nesse sentido, a lição de Tomás-Ramón Fernández:
"El quantum de la discrecionalidad depende, ciertamente, de la estructura finalista de la norma,
porque el fin que ésta propone condiciona y limita seriamente per se la libertad de elección de los
medios que la norma concede y ello aunque el texto literal de la misma parezca prima facie otorgar
una libertad total al no hacer referencia alguna a los medios, ni establecer criterio alguno para la
elección de uno concreto"136.
Dessa forma, só se prestam a justificar idoneamente o regulamento os motivos que
possam ser reputados implicitamente à lei, em vista das finalidades que necessariamente
indica137. O controle, então, dar-se-á sobre a causa do ato, isto é, na análise judicial acerca da
relação de adequação lógica entre o motivo e o conteúdo do ato (regulamentar) em função da
finalidade138. E esse exame assume especial relevo justamente nas hipóteses em que a lei é
omissa na enunciação dos motivos139. Daí que não pode a autoridade administrativa alterar
sem qualquer motivo a norma regulamentar.
Esse também é o entendimento de Sérgio V. Bruna. Esse autor encarece que a
relação meio/fim assume especial relevância porque, ao justificar a possibilidade de
regulamentos autorizados, não admite que a lei prescinda da indicação da finalidade da
atuação regulamentar. Assim, o exercício dessa competência normativa deve ser exercida "no
âmbito das diretrizes estabelecidas pelo legislador com vistas à consecução das finalidades
legais"140.
A finalidade específica indicada na lei, portanto, erige-se como uma baliza do
exercício da competência discricionária, como regra de apuração do atendimento ao princípio
da legalidade. Isso porque "quando não há satisfação da finalidade legal não há não há
satisfação real da regra de Direito, mas violação dela"141. Logo, o regulamento incapaz de
atender à finalidade prevista na lei é ilegal e deve, pois, ser invalidado.
Em razão do controle da causa justificam-se, então, controles acerca da razoabilidade
e proporcionalidade das normas regulamentares, pois estes são critérios de controle da causa,
135
Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade e controle jurisdicional... cit., pp. 93-4.
136
Viejas... cit., p. 179.
137
Cf., nesse sentido, Afonso R. Queiró. Os limites... cit., p. 5.
138
Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello, última ob. cit., pp. 94-8, e Curso... cit., pp. 380-2.
139
Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade administrativa e controle judicial... cit., pp.
28-9.
140
Sérgio V. Bruna, ob. cit., p. 177.
141
Celso Antônio Bandeira de Mello. Discricionariedade e controle jurisdicional... cit., p. 45.
- 199 -
como vem sendo destacado pela doutrina142. A indicação da finalidade do exercício da função
justifica, então, a inadmissão de regulamentos incapazes de atingir a finalidade proposta pela
lei, assim como a intolerância de regulamentos desproporcionais ou desarrazoados em vista
da finalidade indicada na lei. Deve, pois, se evidenciar a existência de uma relação lógica
entre a finalidade indicada na lei e as regras editadas pela Administração. Só assim será
possível conciliar legalidade, separação de poderes e regulamento.
Nesse contexto, fica evidente a importância de se exigir a motivação dos atos
regulamentares. Sem explicitação dos motivos justificadores do ato regulamentar fica difícil o
controle da sua finalidade, dos motivos, enfim, de sua causa. A motivação é indispensável à
prática do ato, ainda que não haja exigência expressa constitucional ou legal nesse sentido. A
necessária motivação do ato é uma exigência indispensável à viabilidade de seu efetivo
controle jurisdicional. É também corolário da incidência do princípio da razoabilidade do ato
regulamentar, pois que este implica a exigência de motivação e a necessidade de apoio nos
fatos143.
Entretanto, a Lei Complementar 95, de 26.2.1998, aplicável aos regulamentos por
força do parágrafo único do art. 1º, não traz exigência de fundamentação. Também nada diz o
Decreto 4.176, de 28.3.2002, que regulamenta a lei complementar referida144. A exceção
louvável fica por conta da já referida Lei paulista 10.177, de 30.12.1998 (art. 15), que exige
exposição de motivos de decreto regulamentar, bem como determina seja a minuta submetida
à consideração do órgão jurídico competente, entre outras exigências procedimentais.
A falta de indicação da fundamentação do ato dificulta sobremaneira a defesa,
inviabilizando o controle da discricionariedade exercida na edição da norma. Há ainda
dificuldade em utilizar os considerandos, as exposições de motivos ou mesmo o preâmbulo
como fundamentação, pois não integram a parte normativa e, geralmente, invocam razões de
conveniência e oportunidade, e não elementos jurídicos para justificar a expedição do ato.
142
Para um estudo mais detido da exigência de razoabilidade dos atos regulamentares, cf. Celso
Antônio Bandeira de Mello. "Poder"... cit., pp. 347-50, e Sérgio V. Bruna, ob. cit., pp. 142 e segs. Quanto ao
princípio da proporcionalidade no Direito brasileiro, v. Humberto Ávila. Teoria... cit., pp. 112 e segs., e, do
mesmo autor, A distinção... cit., pp. 168-78. Cf., ainda, Luís Virgílio Afonso da Silva. O proporcional... cit., pp.
27 e segs., além do trabalho de Dimitri Dimoulis et Leornardo Martins. Teoria geral dos direitos fundamentais.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 176-232. Luís Virgílio Afonso da Silva, inclusive, oferece critérios
para uma distinção entre proporcionalidade e razoabilidade. Também não se poderia deixar de referir ao estudo
de José Roberto Pimenta Oliveira, que conta com críticas a uma completa cisão entre razoabilidade e
proporcionalidade (ob. cit., pp. 192-9), bem como com uma análise específica sobre a aplicação da
razoabilidade-proporcionalidade ao exercício da competência normativa da Administração (ob. cit., pp. 287 e
segs.). Por fim, nessa forma de controle do ato regulamentar, no âmbito federal, seria interessante o recurso aos
dados colhidos em atendimentos às questões exigidas pelos Anexos I e II do Decreto 4.176, de 28.3.2002.
143
Cf., nesse sentido, Sérgio V. Bruna, ob. cit., p. 176.
144
O recurso aos dados colhidos em atendimento aos Anexos I e II do Decreto 4.176, de 28.3.2002, no
entanto, podem compensar a falta de motivação.
- 200 -
Neste tópico, convém destacar, antes de tudo, que não nos interessam divergências
terminológicas acerca da distinção entre direitos fundamentais, direitos humanos, liberdades
civis, direitos individuais e outras. Tampouco, nos preocupa a indicação precisa do que se
deve entender pela expressão "direitos fundamentais". A tarefa, além de árdua e de demandar
novos estudos, calharia melhor a um trabalho específico de Direito Constitucional, e não a um
estudo sobre regulamentos. Além disso, como registra com total pertinência Dalmo de Abreu
Dallari148, citando Bobbio, na atualidade, já não há tanta relevância em saber quais são os
direitos fundamentais ou qual o fundamento dos direitos humanos ou fundamentais, mas sim
qual é o modo mais seguro de efetivá-los.
145
Diógenes Gasparini. Poder... cit., pp. 96-7.
146
Cf. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit., pp. 277-9.
147
Discricionariedade e controle jurisdicional... cit., pp. 103-5, e Curso... cit., pp. 373-6.
148
Estado... cit., pp. 218-9.
- 201 -
149
Cf. Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, ob. cit., p. 63.
150
Maria Garcia, ob. cit., p. 115.
151
Cf. Marcelo Figueiredo, ob. cit., pp. 59 e segs.
152
Cf. J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., em especial, pp. 378-80 e 403-4.
- 202 -
153
Cf. Alexandre Santos de Aragão. Atividades... cit., pp. 228-30. Em outro sentido, cf. Dimitri
Dimoulis e Leonardo Martins, ob. cit., pp. 97-9. Segundo estes autores, a letra do nosso texto constitucional é
indevidamente restritiva no caput do art. 5º quando se refere aos "brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País" e, por isso, careceria de reforma para atender à exigência de tutela constitucional dos direitos fundamentais
das pessoas jurídicas.
154
Cf. J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 420-3, e Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, ob. cit., em
especial, pp. 141-52.
155
J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 450-1.
156
Cf. Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, ob. cit., pp. 169-75.
- 203 -
difamação, calúnia e apologia ao crime. J. J. Gomes Canotilho, no trecho citado, nos oferece
exemplo parecido: o direito de manifestação, em Portugal, é livre sem qualquer restrição
constitucional e sem autorização de lei restritiva, mas são proibidas por lei as manifestações
violentas e com armas. Ou seja, é possível a restrição legal do direito fundamental sem
expressa autorização constitucional desde que essa limitação se refira à definição do conteúdo
constitucionalmente protegido desse direito, bem como na sua eventual colisão ou
concorrência com outro bem ou direito constitucional.
Portanto, qualquer restrição a direito fundamental deve ter base constitucional. Bem
por isso, cabe tão-só à lei, desde que constitucionalmente autorizada, restringir direito
fundamental, sob pena de se colocar à disposição da Administração o que não se quer à
disposição nem mesmo da lei. Não se nega a existência de intervenções restritivas dos direitos
fundamentais — como a ordem de dissolução de uma manifestação ilegal — mas tais
restrições também deverão encontrar fundamento último numa disposição constitucional157.
"O requisito de lei formal significa também, no direito constitucional vigente, a exigência de
uma «cadeia ininterrupta de legitimidade legal» relativamente aos actos que, concretamente,
restrinjam direitos, liberdades e garantias"158.
Vale a pena registrar que mesmo em países com tradição na técnica de delegação,
como os Estados Unidos da América, não se concebe a restrição a direito fundamental não
fundada na lei. Assim, a jurisprudência da Suprema Corte norte-americana somente tem
admitido "delegações menos ricas em conteúdo se estiverem em causa objectivos legislativos
de política económica e social, mostrando-se, pelo contrário, mais exigente logo que possa ser
afectado qualquer direito fundamental"159.
Só cabe à lei parlamentar a restrição ao direito fundamental, mas também essa lei
encontra seus limites. É que, em todo caso de restrição, deve ser respeitado o núcleo essencial
do direito fundamental. Verifica-se, assim, a existência de limites aos limites dos direitos
fundamentais. A possibilidade de a legislação estabelecer hipóteses de restrição ao direito
fundamental, por óbvio, não autoriza o aniquilamento do direito fundamental e justifica um
princípio da salvaguarda do núcleo essencial. Daí também as exigências de proporcionalidade
e proibição de excesso da lei restritiva, bem como da necessária abstração a ser observada
pela lei restritiva em respeito ao princípio isonômico160.
157
J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 1.265-6.
158
Idem, p. 453.
159
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 637.
160
Cf. J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 451-61, Maria Garcia, ob. cit., pp. 116-7 e 120, e Dimitri
Dimoulis e Leonardo Martins, ob. cit., pp. 167-9.
- 204 -
161
Agustín Gordillo, ob. cit., Tomo 1, p. VII-5.
- 205 -
162
Cf. J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 1.278-9.
163
Ob. cit., pp. 1.029-31.
164
Cf. J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 463.
165
Idem, pp. 466-7.
- 206 -
cingir-se ao mínimo necessário para a prossecução de certos fins públicos, também constitucionais,
apresentando-se como verdadeiramente imprescindíveis"166.
À mesma conclusão chega também quando analisa as relações especiais de poder no
Direito português: não cabe renúncia aos direitos fundamentais em razão do contato mais
estrito com o Estado. Assim, só é possível a restrição quando constitucionalmente autorizada
e com respeito à proporcionalidade e à intangibilidade do núcleo essencial do direito
fundamental167.
Não se deve ignorar também que existem diferentes sujeições e diferentes exigências
quantos aos graus de limitação do regime geral de supremacia da Administração. Logo, não se
deve comparar, por exemplo, a sujeição de um militar a de um estudante, nem o estatuto
destes pode ser comparado ao de um preso. Tais questões devem ser consideradas quanto à
idéia de supremacia especial da Administração e quanto às exigências de legalidade dessa
sujeição.
O exemplo do direito de greve é bastante para demonstrar essa variação nas
possibilidades de restrições: (a) aos trabalhadores, a Constituição assegura o direito de greve,
mas possibilita que a lei defina os serviços essenciais; (b) no caso dos servidores públicos
civis, o exercício desse direito fundamental depende dos termos que serão fixados em lei
específica; por fim, (c) no caso dos militares, a greve é constitucionalmente proibida. Cabe
notar que, no primeiro e no segundo caso, a lei não pode ofender ao núcleo essencial do
direito de greve dos trabalhadores ou dos servidores públicos, sendo que no primeiro caso
deve se limitar à definição dos serviços ou atividades essenciais, enquanto que, no caso dos
servidores públicos civis, não há indicação constitucional da finalidade da restrição legal a ser
imposta. Por fim, no caso dos militares a restrição é total porque a Constituição simplesmente
nega o direito168.
Finalmente, cabe registrar que as considerações acima não significam que as
hipóteses de atuação administrativa de concretização e realização dos direitos fundamentais
dispensem as exigências da legalidade. Como já dissemos a legalidade também incide na
chamada Administração de prestação. "Qualquer realização, efectivação e concretização dos
direitos fundamentais tem uma dimensão legal; à lei compete definir o sentido e o fim das
166
Ob. cit., p. 448.
167
Idem, pp. 967-87.
168
Constituição da República. "Art. 9º: "É assegurado o direito de greve, competindo aos
trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.
§ 1º - A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades
inadiáveis da comunidade. § 2º - Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei. (...). Art. 37 (...)
VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica; (...) Art. 142. (...) IV -
ao militar são proibidas a sindicalização e a greve;".
- 207 -
medidas relevantes sob o ponto de vista dos direitos fundamentais"169. Nesse sentido, a
compreensão de lei não deve ser meramente de defesa: também a atividade constitutiva exige
"uma predeterminação legislativa, pois que a não ser assim, a inevitabilidade desta mesma
atividade a constituiria como o lugar privilegiado de um novo autoritarismo do executivo"170.
Ainda segundo o mesmo autor, "Juntam-se aqui os princípios do Estado-de-Direito e o
princípio democrático numa exigência de cobertura legislativa da parte nuclear da atividade
de prestação..."171. Bem por isso, em verdade, se percebe que a reserva de lei se impõe a todo
tratamento normativo com influência no conteúdo dos direitos fundamentais, pois os atos
positivos podem ser tão ou mais gravosos que a atuação agressiva e limitadora172. É que a
atuação administrativa deixaria de ser instrumental ao interesse coletivo caso dispensasse a
norma que é expressão da vontade coletiva, isto é, caso dispensasse a lei para a sua atuação.
Há, ainda, um argumento final. Só a previsão legislativa é capaz de viabilizar um
controle jurisdicional adequado do ato administrativo ou de regulamento concessivo de
benefício ao administrado. Parece bastante claro que, quanto mais a previsão legislativa for
intensa e extensa, mais tranqüilo será o reconhecimento da ilegalidade perante o tribunal.
Assim, o ato poderá ser questionado, tanto pelo beneficiário, quanto pelo seu concorrente. A
questão, portanto, relaciona-se com a efetividade do direito fundamental de acesso aos
tribunais (Constituição, art. 5º, XXXV), que exige a estipulação de parâmetros legais de
controle173.
Portanto, também é inadmissível a dispensa de legalidade também na hipótese de
concretização de direitos fundamentais.
169
J. J. Gomes Canotilho, ob. cit., p. 731.
170
Luís S. Cabral de Moncada, ob. cit., p. 102.
171
Idem, p. 247.
172
Idem, pp. 251-60 e 866-8.
173
Idem, pp. 430-1.
174
Marcello Caetano. Manual... cit., p. 105.
175
Idem, ibidem.
- 208 -
176
Poder... cit., p. 94.
177
Cf. Carlos Ari Sundfeld. Direito... cit., pp. 79-80. Não foram objeto de preocupação no texto as
chamadas sanções positivas ou de prestação.
178
Bem por isso já Montesquieu asseverava que: "Nos governos moderados, para um bom legislador
tudo pode servir como castigo. Não é bastante extraordinário que em Esparta uma das penas principais tenha
sido a de não poder emprestar sua mulher a outro, nem receber a mulher de outro, e só ficar em sua casa com
virgens? Em uma palavra, tudo que a lei chama de castigo é efetivamente um castigo". Ob. cit., Livro VI,
Capítulo IX, p. 94.
179
Cf. Diógenes Gasparini. Poder... cit., p. 93.
180
Manual... cit., pp. 105-6.
181
Em sentido contrário Diógenes Gasparini, que admitia sanção "imposta pelos regulamentos
independentes que podem criar direitos e obrigações, prevendo as sanções aplicáveis em cada caso" (ob. cit., p.
91). Contra o entendimento de Diógenes Gasparini pode ser invocado o seguinte precedente do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região que entendeu inadmissível a previsão de comportamento sancionador em ato
regulamentar: "3. O art. 44 da Lei nº 4.595/64 dispõe apenas sobre as sanções, que são indeterminadas. Os
preceitos sancionados com multa estão todos arrolados nos parágrafos do art. 44, especialmente nas letras 'a', 'b'
e 'c' do § 2º do referido art. 44. 4. A letra 'b' do § 2º do art. 44 poderia ser considerada norma penal em branco
mas, por disposição expressa, só poderia ser complementada por dispositivos contidos na própria Lei nº 4.595/64
e nunca Portarias ou Resoluções." Apelação Cível 95.04.00125-4, 3ª Turma, rel. para acórdão Juíza Luiza Dias
Cassales, j. 17.12.1998, DJU 7.4.1999, pp. 643-50, por maioria.
182
Manual... cit., p. 105.
- 209 -
183
Ob. cit., p. 344.
184
Direito... cit., pp. 80-1.
185
Curso... cit., p. 797. Cf., também nesse sentido, José Roberto Pimenta Oliveira, ob. cit., pp. 473-4.
186
Ob. cit., pp. 771-4 e 976-7.
187
Curso... cit., p. 797.
- 210 -
188
Cf. Marcelo Madureira Prates. Sanção administrativa geral: anatomia e autonomia. Coimbra:
Almedina, 2005, pp. 83-4.
189
Nesse sentido, Marcelo Madureira Prates (idem, ibidem) lembra o exemplo da Lei 9.605, de
12.2.1998: "Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras
jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente".
190
Ac. n.º 666/94 in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 29.º vol., 1994, pp. 349-57, citado por
Marcelo Madureira Prates, ob. cit., pp. 85-6, os grifos não são do original.
- 211 -
191
Ob. cit., p. 772.
192
Idem, p. 977.
193
José Roberto Pimenta Oliveira, ob. cit., pp. 475-6. Em sentido semelhante, vale a referência a texto
de Egon B. Moreira, segundo o qual "é possível a existência válida de 'normas administrativas sancionadoras em
branco': previsões normativas cuja estrutura é incompleta. A sanção é certa, porém o conteúdo do preceito é
indeterminado, devendo ser preenchido por dispositivos de legislação diversa daquela que estabelece a sanção ou
através de provimentos administrativos específicos (atos ou regulamentos)". Agências reguladoras
independentes, poder econômico e sanções administrativas (reflexões iniciais acerca da conexão entre os temas).
In: Sérgio Guerra (coord.). Temas de direito regulatório. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004, p. 196. Também
na legislação penal veiculam-se normas incompletas. É o caso do art. 33 da Lei 11.343, de 23.8.2006, cuja
constitucionalidade é questionada pela doutrina. Cf. Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, ob. cit., pp. 162-3.
- 212 -
situações censuradas pela lei, este terá de fazê-lo previamente a qualquer ato administrativo
apenador"194.
O parecer de Caio Tácito, em análise do art. 18, II, b, da Lei 6.385, de 7.12.1976, que
estabeleceu a competência da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para definir a
configuração de condições artificiais de demanda, oferta ou preço de valores mobiliários,
segue a mesma orientação. Explica que a fatispecie dever estar objetivamente prevista já na
lei. Assim, a CVM poderia especificar, caso a caso, a forma de configuração do ilícito
administrativo. No entanto, a sensibilidade do mercado de valores mobiliários não
recomendava essa conduta do regulador, antes dele exigia uma instrução — coerente com o
propósito de orientar o mercado —, que indicasse aos agentes os conceitos a adotar no
julgamento de suas condutas. Não bastava, portanto, a densidade normativa da lei, exigia-se
mais concreção a fim de tranqüilizar os ânimos do setor regulado. Daí a pertinência de sua
competência normativa. Por isso, é enfática a opinião de Caio Tácito no sentido de que a
limitação ao exercício profissional mediante previsão de sanção administrativa decorre da lei,
cabendo ao ato regulamentar interpretar-lhe o sentido e facilitar a execução195.
Logo, quanto ao tema da sanção administrativa pela infringência de regulamentos,
requer-se, por certo, a tipificação da sanção (conseqüente) na lei formal regulamentada,
admitindo-se certa remissão ao regulamento para a previsão da conduta ilícita (infração),
respeitado, no entanto, sempre o princípio da determinabilidade — não se tratando de
exigências tão rígidas quanto a da tipicidade penal. A exigência de determinabilidade explica-
se com fundamento na legalidade substancial e na segurança jurídica, pois não há como
admitir que fique a previsão da conduta infratora à livre definição por ato regulamentar.
194
Celso Antônio Bandeira de Mello. Regulamento e princípio da legalidade. Revista de direito
público. São Paulo, out.–dez., 1990, n. 96, pp. 44-5, os destaques são do original. Cf., ainda, do mesmo autor,
Curso... cit., pp. 800-2.
195
Comissão... cit., pp. 1.092-3.
5. CONCLUSÃO
não poderiam ser de outra forma senão na de lei, segundo as prescrições de nosso
ordenamento jurídico;
(ii) a enumeração das finalidades específicas de exercício da função regulamentar. A
lei deve dar o vetor finalista específico da atuação, pois só assim o exercício da função
regulamentar se ajusta à idéia de função, revelando seu caráter instrumental. Ademais, a
indicação da finalidade viabilizará diversas formas de controle quanto à causa do ato
regulamentar;
(iii) a prescrição das possíveis restrições aos direitos fundamentais. Em verdade,
como destacado, a reserva de lei incide sobre qualquer tratamento normativo com influência
sobre o conteúdo dos direitos fundamentais, seja restritivo, seja concretizador;
(iv) a prescrição das possíveis sanções pela infringência dos regulamentos. A
exigência aqui se refere a uma previsão suficientemente clara acerca da conduta a ser
observada (infração), além da tipificação do conseqüente (sanção).
Como destacado logo de início, o tema do regulamento não aceita acomodação fácil
em modelos teóricos. Não obstante as limitações de nosso estudo, esperamos ter alinhado
argumentos suficientes para contribuir para o debate sobre o tema dos regulamentos
delegados ou habilitados no ordenamento jurídico brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1. BIBLIOGRAFIA CITADA:
ACKERMAN, Bruce. The New separation of powers. Harward Law Review. Cambridge,
jan., 2000, vol. 113, n. 3, pp. 633-727.
ALVIM NETTO, José Manuel de Arruda. Manual de direito processual civil. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 7ª edição, 2000, 2ª tiragem, 2001, vol. 1.
AMARAL, Antonio Carlos Cintra do. Conceito e elementos do ato administrativo. Revista de
direito público. São Paulo, nov.–dez., 1974, n. 32, pp. 36-42.
——————. Extinção do ato administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978.
AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e
para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos tribunais. São Paulo, out., 1960,
vol. 300, pp. 7-37.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Atividades privadas regulamentadas. In: ARAGÃO,
Alexandre Santos de (coord.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, pp. 221-269.
ATALIBA, Geraldo. Poder regulamentar. Delegação de podêres. Previdência dos
congressistas. Jurisdição administrativa [parecer]. Revista de direito público. São Paulo,
abr.–jun., 1970, n. 12, pp. 82-90. Emitido em abril de 1969.
——————. Decreto regulamentar no sistema brasileiro. Revista de direito administrativo.
Rio de Janeiro, jul.–set., 1969, vol. 97, pp. 21-33.
——————. Poder regulamentar do Executivo. Revista de direito público. São Paulo, jan.–
jun., 1981, ns. 57-58, pp. 184-208.
——————. Delegação normativa (limites às competências do CMN e BACEN) [parecer].
Revista de direito público. São Paulo, abr.–jun., 1991, n. 98, pp. 50-69. Emitido em
8.1.1990.
ÁVILA, Humberto Bergmann. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever
de proporcionalidade. Revista de direito administrativo. Rio de Janeiro, jan.–mar., 1999,
vol. 215, pp. 151-79.
——————. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São
Paulo: Malheiros, 4ª edição, 2004.
- 218 -
——————. Princípios, teoria dos [verbete]. In: BARRETO, Vicente de Paulo (coord.).
Dicionário de filosofia do direito. São Leopoldo: Editora Unisinos, Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, pp. 657-61.
FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário.
Atualizado por Gustavo Binenbojm. Rio de Janeiro: Forense, 7ª edição, 2005.
FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Viejas y nuevas ideas sobre el poder discrecional de la
Administración y el control jurisdiccional de su ejercicio. Revista interesse público.
Porto Alegre, mai.–jun., 2006, ano VIII, n. 37, pp. 173-87.
FERRAZ, Sérgio. Regulamento. In: 3 estudos de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1977, pp. 105-26.
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A relação meio/fim na teoria geral do direito
administrativo. Revista de direito público. São Paulo, jan.–mar., 1982, n. 61, pp. 27-33.
——————. Agências reguladoras: legalidade e constitucionalidade. Revista tributária e
de finanças públicas. São Paulo, nov.–dez., 2000, vol. 35, pp. 143-58.
——————. Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa.
Rio de Janeiro: Forense, 4ª edição, 2002, 4ª tiragem, 2005.
——————. O poder normativo das agências reguladoras à luz do princípio da eficiência.
In: ARAGÃO, Alexandre Santos de (coord.). O poder normativo das agências
reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 271-97.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Estado de direito e Constituição. São Paulo:
Saraiva, 3ª edição, 2004.
FIGUEIREDO, Marcelo. As agências reguladoras: o Estado democrático de direito no Brasil
e sua atividade normativa. São Paulo: Malheiros, 2005.
GARCIA, Maria. Mas, quais são os direitos fundamentais? Revista de direito constitucional e
internacional. São Paulo, abr.–jun., 2002, vol. 39, pp. 115-23.
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo et FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón. Curso de derecho
administrativo. Madrid: Civitas ediciones, 12ª edición, 2004, reimpresión, 2005, vol. 1.
GASPARINI, Diógenes. Poder regulamentar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2ª edição,
1982.
——————. Direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 10ª edição, 2005.
GORDILLO, Agustín. Tratado de derecho administrativo. Belo Horizonte: Del Rey e
Fundación de derecho administrativo, Tomo 1, (parte geneneral), 7ª edición, e Tomo 3
(el acto administrativo), 6ª edición, 2003.
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 6ª
edição, 2005.
- 221 -
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. (título orignal [al.] Reine rechtslehre, 1960). Trad.
João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 6ª edição, 1998.
LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. (título original [al.] Methodenlehre der
rechtswissenschaft, 1991). Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
4ª edição, 2005.
LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição. (título original [al.] Über die Verfassung,
1863). Com base na trad. de Walter Stönner. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 6ª edição,
2001.
LEAL, Victor Nunes. Lei e regulamento. In: Problemas de direito público. Rio de Janeiro:
Forense, 1960, pp. 56-91. Originalmente publicado na Revista de direito administrativo,
jan., 1945, vol. 1.
——————. Delegações legislativas. In: Problemas de direito público. Rio de Janeiro:
Forense, 1960, pp. 92-108. Originalmente publicado na Revista de direito
administrativo, jul., 1946, vol. 5.
LEITE, Luciano Ferreira. O regulamento no direito brasileiro. Tese de doutorado aprovada
pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Orientador: Celso Antônio Bandeira
de Mello, 1982.
MONTESQUIEU, Charles de Secondant, Barão de. O espírito das leis (título original [fr.]:
L'esprit des lois, 1747). Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005, 3ª
edição.
MOREIRA, Egon Bockman. Agências reguladoras independentes, poder econômico e
sanções administrativas (reflexões iniciais acerca da conexão entre os temas). In:
GUERRA, Sérgio (coord.). Temas de direito regulatório. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
2004, pp. 160-99. Também publicado na Revista trimestral de direito público. São
Paulo, 2003, n. 41, pp. 92-115.
——————. Os limites à competência normativa das agências reguladoras. In: ARAGÃO,
Alexandre Santos de (coord.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de
Janeiro: Forense, 2006, pp. 173-220.
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica (título original [fr.]: Logique juridique,
1978). Trad. de Vergínia K. Puppi. São Paulo: Martins Fontes, 2004, 2ª edição.
PEREIRA, André Gonçalves. Erro e ilegalidade no acto administrativo. Lisboa: Ática, 1962.
PRATES, Marcelo Madureira. Sanção administrativa geral: anatomia e autonomia. Coimbra:
Almedina, 2005.
ECO, Umberto. Como se faz uma tese (título original [it.]: Come si fa una tesi di láurea,
1977). Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Perspectiva, 2005.
- 227 -
LOPES, José Reinaldo de Lima. Régua e compasso (ou metodologia para um trabalho
jurídico sensato). Cópia do autor, 200?.
MARÍAS, Julían. História da filosofia (título original [esp.]: Historia de la filosofia, 1941).
Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
MARTINS FILHO, Eduardo Lopes. Manual de redação e estilo de 'O Estado de S. Paulo'.
São Paulo: jornal O Estado de S. Paulo, 3ª edição, 1997.
3. NOTÍCIAS JORNALÍSTICAS:
ASTRÔNOMOS decidem que Plutão não é mais planeta. Folha de S. Paulo. São Paulo,
25.8.2006, Caderno Ciência, p. A-20.
- 228 -
SUMÁRIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VIII
1. INTRODUÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1
1.1. ESCLARECIMENTO PRELIMINAR NECESSÁRIO: O QUE É UM
PRINCÍPIO JURÍDICO?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
REGULAMENTARES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114
5. CONCLUSÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213