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DANIEL

SEABRA
UNIVERSIDADE
FERNANDO
PESSOA
JOANA
RODRIGUES
MESTRANDA
NA UNIVERSIDADE
DO MINHO

O texto que se apresenta procura constituir uma reflexão sobre a eventual possibilidade de perspectivação
do futebol como u m ritual. Não se pretende contudo unuz pormenorizada análise de cariz teórico sobre a
problemática relativa ao ritual. Na prossecução do objectivo proposto, serno consideradas essencialmente
três concepções básicas acerca do que poderá ser entendido como u m ritual. Cada unuz constituirá zlm
inlportnnte referencial de análise acerca da possibilidade de perspectivação do fictebol como u m importante
ritual contenrporâneo. Esta problenzática será globalniente discutida no final do presente texto.

This paper presents a reflection on the possibility of looking into football as a ritunl. A theoretical and
detailed analysis on the issues relnted to ritual is not intended here. In order to achieve the stated purpose
of this paper tke authors consider three basic conceptions of zohat can be perceived as a ritual uçing thon
as important reference points in the analysis of the possibility of looking into football as a present dny
ritual. This last problem area is broadly discussed nt the end of the paper.

que o futebol se assuma, tal como afirmou


Lawrence Kitchin, como um "idioma global"
(Kitchin, cit. in Murphy, Williams e Dunning,
1994: 5). Estes números também demonstram
Diversos foram os acontecimentos da História inequivocamente que o futebol é o desporto
da Humanidade que atraíram grandes audiências. mais popular do mundo (cf. Murphy, Wdliams
Contudo, nem a primeira viagem lunar conseguiu e Dunning, 1994: 5). Diversas são as razões que
atrair tanta gente como ... um jogo de futebol. poderão explicar tão grande popularidade.
Em Junho de 1978, mais de mil milhões de
pessoas assistiram ao jogo de futebol entre as O futebol apresenta-se como um desporto
selecções da Argentina e da Holanda para a pouco exigente ao nível do equipamento
disputa da final do campeonato do mundo (cf. necessário para a sua prática. Na verdade, é
Morris, 1981: 7). Em 1993, o presidente da bastante fácil improvisar uma bola e um espaço
U.E.F.A.' divulgou publicamente que a primeira onde se colocam duas balizas que se podem por
jornada da Liga dos Campeões foi vista por vezes reduzir a dois marcadores colocados no
mais de trezentos e cinquenta milhões de pessoas. chão. A prática de futebol exige portanto recursos
O número de espectadores que nos estádios ou materiais muito limitados e fáceis de obter em
pela televisão assistiram aos dois últimos qualquer circunstância. Eçtá assim facilitada a
Campeonatos do Mundo e da Europa manteve-se prática deste desporto. A simplicidade das regras
nesta ordem de grandeza verificando-se mesmo que orientam a prática do futebol constitui
uma tendência para o seu aumento. A F.I.F.A., também um factor conducente à popularidade
organização que superintende o futebol a nível do futebol. Este toma-se assim de mais fácil
mundial, tinha já, em 1986, cerca de cento e compreensão, não só para os praticantes, mas
cinquenta países associados. Percebe-se assim também para os espectadores. A simplicidade
das regras acrescenta-se ainda o facto de as
Union European Football Association mesmas se manterem praticamente inalteráveis
ao longo de muitos anos. Esta continuidade porânea acentuando o seu carácter de grande
facilitou a difusão do futebol por todo o mundo cerimónia religiosa ou quase religiosa. Evidente-
conferindo-lhe um certo carácter de idionza mente que a classificação do espectáculo
zl~ziversal (Murphy, Wiiiiams e Dunning, 1994: futebolístico como sendo um ritual é uma
6-7). A estas razões de cariz estrutural parecem questão controversa mas também importante.
juntar-se outras que se relacionam mais directa- Se por um lado alguns consideram esta classifi-
mente com os praticantes e espectadores e que cação aceitável, verdadeira ou pelo menos de
apelam à emotividade destes e não tanto à sua interesse analítico, outros há que negam de forma
componente racional. O futebol apresenta-se de determinada tal possibilidade de classificação.
facto como um desporto que suscita inúmeras Esta questão apresenta-se com grande pertinência
paixões pois o desenrolar do próprio jogo eviden- para a reflexão acerca do futebol. Como reconhece
cia um equiií'brio delicado entre polaridades que Desmond Morris, "Talvez o maior dilema que a
se revelam interdependentes (rigidez/elasticidade; tribo de futebol enfrenta hoje seja o de saber se
força/habilidade; desafio físico/auto-controlo; a sua principal actividade é um ritual sagrado
individual/colectivo; etc.). Por outro lado, o jogo ou um entretenimento social." (Morris, 1981: 316).
de futebol não se processa, como no teatro ou
concerto, segundo um guião. Ao invés, o Perante a importância desta questão e a
decurso do mesmo está sempre sujeito a polémica a ela inerente, o presente texto tem
espontaneidade e à incerteza não deixando, de por objectivo apresentar uma reflexão acerca da
certa forma, de encenar uma batalha entre duas possibilidade ou impossibilidade de perspedivar
facções geradora de tensões, excitações e paixões. o espectáculo futebolístico como um ritual.
O futebol proporciona então aos espectadores a Assim, este trabalho não pretende constituir
vivência controlada e socialmente aceitável destes uma análise cuidada das teorias gerais relativas
sentimentos. Contudo, este envolvimento emo- ao ritual. Este texto terá em conta os princípios
cional parece dependente da identificação do basilares de algumas teorias no intuito de atingir
espectador com uma das equipas participantes o objectivo proposto. Recorreremos ainda as
no jogo. Em consequência, os espectadores perspectivas que analisam a problemática relativa
identificados com uma das equipas sentirão ao ritual no contexto do espectáculo futebolístico.
alegria quando esta marca um golo e tristeza Para tal, começaremos por abordar as dificul-
sempre que a situação se inverte e a equipa de dades adstritas à definição de ritual. Segue-se a
sua predilecção sofre um golo (cf. op. cit., 8-9). apresentação de uma primeira concepção do
Tendo em conta o conjunto de razões apre- mesmo que remete a sua essência para os
sentadas, o futebol apresenta-se de facto como aspectos sagrados e sobrenaturais. A classificação
uma atracção única pois talvez só ele possui na do espectáculo futebolístico como ritual é
globalidade as características apresentadas. posteriormente analisado à luz desta primeira
concepção. Este texto contempla ainda a
Toda a exacerbada envolvência emocional apresentação de uma segunda concepção de
inerente ao futebol, assim como todo um conjunto ritual de certa forma resultante de um processo
de atitudes e comportamentos de praticantes e de secularização e que relativiza a ligação do
espectadores, levaram muitos a considerar o mesmo ao sobrenatural. Esta concepção admite
futebol como um ritual da sociedade contem- mesmo que um ritual possa eventualmente não
estar ligado a qualquer aspecto sobrenatural. A como um conjunto de crenças e práticas que
possibilidade de classificação do espectáculo permitem a determinado grupo enfrentar os
futebolístico como sendo um ritual é também grandes problemas da vida humana (cf. Ynger
analisada à luz desta segunda concepção. Para cit. in Rivière e Piette, 1990: 204). Numa
tal, destacam-se algumas características e funções perspectiva simbolista o ritual pode ser entendido
* adstritas ao futebol. O presente trabalho termina como um código de comunicação de tipo
com uma reflexão geral acerca da possibilidade linguístico implicando mesmo o conhecimento
e alcance da classificação do espectáculo futebo- e a aceitação, por parte dos participantes do
lístico como um ritual. mesmo, das regras do referido código. 0 s rituais
servem assim para comunicar informação. Tal
comunicação é essencialmente expressiva e
simbólica podendo ser efectuada por palavras,
gestos, vestimentas, etc. (cf. Sindzingre, 1993: 69
e Leach, 1979:385-387). Próxima desta abordagem
Definir rifual não se tem revelado uma tarefa está a perspectiva estruturalista desenvolvida
fácil para a Antropologia pois o termo tem por Lévi-Strauss. Segundo esta, o rifual pode
assumido diferentes sentidos consoante os ser entendido como um sistema de homologias,
contextos em que é empregue. A dificuldade de oposições e inversões, participante na organização
apresentar uma definição de rittlal parece surgir do significado da realidade percebida. Assim, o
em consequência de duas razões. A primeira rit~mlapresenta-se como um sistema semiológico
advém da própria utilização ambígua deste ou código articulador de signos, ou seja, uma
conceito. Por vezes o termo rifztal é empregue linguagem (cf. Baztán, 1993: 540). A perspectiva
para designar uma cerimónia, uma festa, um pragmática procura tratar as acções rituais, não
espectáculo, um costume, etc. Uma segunda como um código de comunicação, mas sim
razão prende-se com o facto de a temática como uma forma de este "fazer qualquer coisa".
relativa ao ritual ter sido estudada por diversos Esta perspectiva basea-se na ideia de que a prática
autores que elaboraram diferentes teorias de de um ritual produz determinados efeitos (cf.
análise e que propõem por isso explicações ~indzi&re, 1993: 70-71).
muito diversas para os fenómenos rituais.
Verifica-se consequentemente uma grande hete- A multiplicidade de perspectivas teóricas
rogeneidade da noção de ritzral. acerca do rifual correspondem diferentes signi-
ficados e dimensões do riftlal. Esta variedade de
Contudo, tais perspectivas não parecem ser significados parece estar também associada a
mutuamente exclusivas constituindo antes várias própria raiz etimológica do termo rito2. Este
dimensões do processo ritual. Apenas a titulo
de exemplo podemos considerar resumidamente ' Como refere Maisonneuve (1988: 3 4 , é difícil de estabelecer
uma distinção entre os termos ritlrni e rito. Um ritual poderá
as ideias centrais das perspectivas funcionalista, englobar, segundo o autor mencionado, um conjunto de ritos.
simbolista, estruturalista e pragiiática. A primeira Para clarificar a distinção, Maisomeuve toma como exemplo o
analisa o ritual segundo as necessidades humanas ritual católico que, segundo ele, é composto por um conjunto
de ritos. Apesar da distinção, o autor utiliza indistintamente os
e sociais que este satisfaz. Sob uma perspectiva dois termos. No presente trabalho a aplicação dos dois termos
funcionalista, ritual pode então ser definido não obedece também a qualquer tipo de distinção.
termo apresenta-se de certa forma como uma para o estabelecimento de relações com poderes
expressão classificatória de determinadas práticas misteriosos e capazes de suscitarem temor. Esta
que são denominadas ritos (cf. Pitt-Rivers, 1987: é portanto a ideia basilar desta concepção,
50). Esta palavra provém do termo latino ritus conferindo assim ao ritual uma dimensão
que, por sua vez, designa um culto ou cerimónia irredutivel e específica que permitirá diferenciá-lo
religiosa e ainda, numa perspectiva mais de outros fenómenos que com ele se podem
abrangente, um uso ou um costume (cf. assemelhar Esta concepção acentua portanto o
Maisomeuye, 1988: 3 e Cazeneuve, s.d.: 10). A carácter específico do ritual (cf. Rivière e Piette,
palavra latina ritus designa ainda as técnicas de 1990: 204-207). Este poderá desta forma ser
comunicação com o divino (cf. Pitt-Rivers, 1987: entendido como um sistema codificado de
50). É possível assim constatar que a raíz práticas, sob certas condições de lugar e tempo,
etimológica do termo rito remete o mesmo para que possuem um sentido e valor simbólico para
uma ligação ao religioso, ao sagrado, ao sobre- os seus actores e testemunhas e que impli-
natural, ao divino, etc. cam uma certa relação com o sagrado (cf.
Maisonneuve, 1988: 12). Esta ligação com o
Este tipo de ligação a aspectos de cariz sagrado é também admitida por Érnile Durkheim
sobrenatural constitui a ideia basilar da concepção (1985: 56) quando define rito da seguinte forma:
teórica segundo a qual o ritual tem a sua essência "les rites sont des règles de conduite qui
precisamente nos aspectos sobrenaturais consi- prescrivent comment 1' homme doit se comporter
derados. A tentativa de verificar a possibilidade avec les choses sacrées." É assim possível
ou impossibilidade de classificar o espectáculo considerar os ritos como momentos em que o
futebolístico como um ritual não passa apenas sagrado se manifesta (cf. op. cit., 31- 58). Estes
pela análise desta concepção teórica. Assim, será podem portanto assumir-se como "etiquetas do
importante considerar uma segunda concepção sagrado" que permitem desta forma uma
mais abrangente que perspectiva o ritual segundo demarcação daquilo que é classificado como
dimensões que vão para além da dimensão profano (cf. Baztán, 1993: 539 e Cazeneuve,
sobrenatural que serve de base à concepção de 1993: 64).
ritual anteriormente referida.
A íntima relação entre o ritual e o sagrado
Assim, e na persecução dos objectivos desta tem estado há muito presente na Antropologia. Já
reflexão, será importante verificar a forma como autores do século MX como Tylor (1832-1917) e
o futebol pode ser analisado segundo estas duas Frazer (1854-1941) fizeram esta associação. O
concepções acerca do ritual. primeiro relaciona o ritual com a magia e com
os encantamentos (Pitt-Rivers, 1987: 52)3. O

...
11. D o s RITUAISSAGRADOS o seeundo
volume intitulado Religion in Primitiue Culture (este é
3 Tylor, no
volume da obra Prinlitive Culture) desenvolve um
O
estudo de carácter evolutivo da religião. Para tal, elabora uma
Como foi mencionado, uma das concepqões - sequência explicativa do desenvolvimento religjoso. Assim, a
a ter em Conta acerca do ritual é aquela que vê a partir do anirnismo, a religião teria evoluido para o feiticisrno, a
idolat"a, o politeísmo, e finalmente, para o monoteísmo. A
essência deste nos aspectos sobrenaturais. ~ ~ ~ i mideia
, de um Deus único seria, para Tylor, o cume da evolução
esta concepção pressupõe que o ritual serve da religigo (cf. ~ ~1958:lvol. 2)
~ ~ ,
segundo relaciona o ritual com o personagem Mesquita, 1993: 602) "através do rito o homem
do mágico e com o rei divino servindo esta repete o gesto exemplar e primordial narrado
relação como ponto de referência para todas as pelo mito; um acto só se toma real na medida
sociedades (cf. ~indzin&e,1993: 69)4. Ambos os em que emita e repete o modelo". De acordo
autores referidos enquadram-se na perspectiva com esta perspectivação de relação entre ritual
evolucionista que se apresentava de certa forma e mito estão também as interpretações de Roger
dominante na época. Segundo esta, a presença Caillois e Mircea Eliade. Segundo estes, o ritual
de rituais constituía um indicador do carácter permite uma estruturação do tempo social na
primitivo de um grupo ou sociedade. Sob a medida em que o reconstitui simbolicamente
influência de um certo etnocentrismo, o ritual um acontecimento arquétipal recriando e anulan-
associava-se assim a uma certa pré-cientificidade do o tempo que decorreu desde o acontecimento
que se opunha a uma racionalidade onde original até ao momento presente do ritual. A
prevalecia já a cientificidade (cf. Mesquita, 1993: acção estruturante do ritual sobre o tempo social
606) Apesar da decadência do evolucionismo, processa-se ainda pela sua repetição regular e
esta ideia acerca do ritual não desapareceu em calendarizada estabelecendo-se assim ciclos de
definitivo. Max Gluckrnan continuou a defender repetição (cf. Rivière e Piette, 1995: 52-54). Mito
que apenas os primitivos possuíam rituais. Ao e ritual apresentam-se assim como duas faces
invés, "os racionais" possuíam cerimónias. Está de uma mesma moeda.
assim patente a defesa da oposição entre ritual
e racionalidade (cf. Gluckrnan in Pitt-Rivers, A analise do espectáculo futebolístico segundo
1987: 52). a concepção que remete o ritual para uma relação
privilegiada com o sagrado e sobrenatural parece
Outra questão igualmente abordada pela inviabilizar que o referido espectáculo possa ser
Antropologia desde o seu início como ciência classificado como um ritual. De facto, não se
prende-se com a relação dos rituais a determi- vislumbra qualquer relação directa e imediata
nados mitos5. Esta relação parece estar inerente entre o espectáculo futebolístico e qualquer
à concepção de ritual em análise pois esta elemento de cariz sobrenatural que lhe seja
estabelece uma relação inevitável entre ritual e intrínseco. A prática do jogo de futebol e a
o sobrenatural. O ritual pode assim ser entendido assistência ao mesmo não parecem mediatizar
como uma representação encenada de um mito por si só qualquer tipo de relação com o
que o inspira. Segundo Sironneau (cit. in sobrenatural e o sagrado. Ainda que por vezes
praticantes e jogadores façam apelo a forças
sobrenaturais e a superstições no sentido de
' James Frazer, na obra intitulada TIze Golden Bougl~,elabora um
a posição vitoriosa que
quadro comparativo onde analisa algumas das temáticas
tradicionais da Antropologia, como por exemplo a magia, o tais manifestações não provêm de qualquer tipo
totemismo, a exogamia. etc. Este autor formulou também um de essência sagrada intrínseca ao futebol pois
esquema evolutivo que tem na origem a magia, à qual se segue
a religião, e finalmente a ciência. Para o presente trabalho foi estão presentes noutras situações de incerteza
consultada a tradução castelhana da õbra mencionada. Ver da vida quotidiana. Nesta concepqão, O espectá-
bibliografia. culo fut~bolísticoparece apreSeitar-se como
Tylor e Frazer, dois autores já mencionados, estabeleceram
desde logo a relagão intrínseca d o ritual como representação de
algo vazio de qualquer tipo de sacralidade (cf.
um mito (cf. Baztán, 1993: 538). Hobsbawm e Babadzan in Mesquita, 1993: 611).
Outro aspecto fundamental é o facto de o no espectáculo mencionado não possuem
espectáculo futebolístico não parecer constituir consciência de participação num ritual.
qualquer tipo de encenação de um mito
primordial. Este é mais um elemento que parece
dificultar a classificação do futebol como um
ritual sendo este entendido no âmbito da
concepção que tem vindo a ser tratada ao longo
deste ponto do texto. Alguns procuraram A concepção de ritual que temos vindo a
encontrar a origem do futebol em mitos Astecas analisar parece apresentar-se como limitativa,
ligados ao sol. Contudo, tais ligações poderão redutora e de certa forma reveladora de algum
apenas ser encaradas como hipóteses remotas a etnocentrismo. A sua aplicação exclui todas as
considerar pois não foi ainda provada a prática manifestações que não obedeçam aos seus
de qualquer jogo semelhante ao futebol entre os critérios que definem o que é sagrado e
Astecas. Ainda que tal ligação possa vir a ser sobrenatural. Uma alternativa a esta concepção
confirmada (o que parece de facto muito difícil), prende-se com a reconceptualização e relativi-
isso não bastaria para demonstrar que o futebol zação daquilo que pode ser considerado sagrado
actual se apresenta como um ritual que encena ou sobrenatural. Este passa a não assentar
ou representa um mito Asteca que o inspirou e apenas numa transcendência, mas igualmente
fundamenta ainda hoje. A corroborar este aspecto na capacidade dos homens produzirem o extra-
está o facto de os participantes no futebol ordinário inculcando-o na memória colectiva.
(praticantes e espectadores) não reconhecerem Por sua vez, o sagrado emerge como produto
tal ligação. Por outro lado, parece estar da imaginação e sentimento do homem e não
demonstrado que o futebol actual teve a sua como uma substância ou essência do fenómeno
origem em alguns jogos tradicionais ingleses. religioso (cf. Rivière e Piette, 1990: 13-14, 60).
Claude Rivière refere mesmo o seguinte: "C'est
A classificaqão do espectáculo futebolístico la croyance qui fabrique le sacré et qui le
como ritual segundo a concepqão em análise détermine comme révélation." (op.cit., 16) Este
parece assim extremamente difícil já que o aspecto é fundamental nesta nova perspectiva
mesmo, de per si, não permite vislumbrar acerca do sagrado. Neste sentido, o que aos
qualquer ligação ao sagrado ou sobrenatural. olhos da concepção de ritual anteriormente
Mesmo Christian Bromberger (1987: 35-41), um analisada se poderia apresentar como um
dos principais defensores da ideia de que o processo de erosão do sagrado, pode agora,
futebol é de facto um ritual, reconhece no segundo esta concepção mais abrangente, ser
mesmo a ausência de exegese, ou seja, a interpretado como uma perda ou diminuição
ausência em si próprio de algo que se possa da crença nos mitos e dogrnas eclesiásticos. No
interpretar como sagrado ou sobrenatural. Este entanto, a necessidade de acreditar em algo
autor considera ainda que o espectáculo manteve-se deslocando-se contudo da noção de
futebolístico, sendo um ritual, é desprovido de Deus e de ritual regulado por um código
religiosidade dado que não possui qualquer eclesiástico para a expressão habitual e estereo-
configuração mítica que lhe confira carácter tipada de emoções individuais ou colectivas.
transcendental. Por outro lado, os participantes Em consequência desta deslocação, a relação
que se estabelecia com o mito inicial pode assim Augé, pela primeira vez na história da Huma-
ser substituída por uma relação com valores nidade, milhões de indivíduos assistem a horas
que enunciam a ordem social e não tanto a ordem e dias fixos, no estádio ou pela televisão, a uma
religiosa (cf. Rivière e Piette, 1990: 15-18, 56). celebração de um ritual (cf. Augé 1991: 120).
Na verdade as ideologias contemporâneas e a Por sua vez, Desmond Morris afirma que "A
8 pressão do saber e do conhecimento que actual- semelhança de uma assembleia religiosa, o
mente gerem os aspectos sociais acabam por se desafio de futebol não só junta um vasto grupo
3
constituir cada vez mais como sistemas de valores de pessoas em multidão visível como também
reformadores de uma ética até agora estruturada as associa a uma crença comum e extrema-
por crenças de cariz religioso. mente firme: já não a crença numa divindade,
mas a crença numa equipa." (Morris, 1981: 23)
Este processo poderá ser denominado por
çeculnriznção apresentando-se como uma faceta O espectáculo futebolístico, como refere
da modemidade. O processo de çecdarização Claude Rivière, parece assim assumir-se actual-
pode ser entendido como uma progressiva mente como uma nova religião de um povo que
emancipação da ciência, do sector económico se reúne numa catedral de betão onde experi-
com o desenvolvimento capitalista, da política; mentam um sentimento de êxtase fora do tempo
em relação as instituições religiosas. A secu- profano e quotidiano (cf. Rivière e Piette, 1995:
larização parece assim conduzir a uma 163). Os grandes jogos de futebol realizam-se
diferenciação das instituições no sentido da sua de facto num quadro espacial bem definido que
autonomização e especialização libertando-as é o estádio d e futebol. Este é por vezes
da influência do modelo obrigatório inerente a denominado de "santuário", " catedral",
religião. Todavia, a secularização parece ser "inferno", etc. A relva onde o jogo se pratica
responsável por uma série de valores idealizados pode igualmente ser denominada "relva
que conduziram a comportamento simbólicos e sagrada" (cf. Morris, 1981: 22-23). Na sua
ritualizados. Pode-se desta forma concluir que globalidade, o estádio de futebol é muitas vezes
o processo de secularização não eliminou o entendido como um lugar fechado só acessível
sagrado tendo antes originado uma deslocaqão para aqueles que querem participar no culto.
do mesmo para outros objectos, atitudes, seres Entendido desta forma, as portas de um estádio
ou instituições (cf. Maisomeuve, 1988: 64 e de futebol representam um limite entre dois
Rivière e Piette, 1990: 8,20,209). mundos. Para se ter acesso ao seu interior
(entendido como local de culto), será necessário
Algumas análises procuram demonstrar a apresentação de cartão identificativo de
precisamente uma deslocaqão do sagrado pertença à colectividade e/ou um bilhete de
(subjectivamente determinado) para o espectáculo ingresso. O acesso ao interior do estádio de
futebolístico. Consequentemente, parece ser futebol compromete qualquer indivíduo a
possível encontrar neste espectáculo dimensões aceitar as regras que vigoram no "local de
e características de um ritual que se assemelha culto". Consequentemente, a revista efectuada
aos rituais religiosos. Talvez por isso as metáforas aos indivíduos por porteiros e agentes de
religiosas sejam muito abundantes no discurso segurança procura impedir a entrada de
desportivo. De facto, e como considera Marc objectos que, presentes no contexto relativo ao
estádio de futebol, são considerados perigosos. idolatrados assemelha-se de sobremaneira a
Entrar num estádio de futebol em dia de jogo atitude face aos snlzfos nas práticas populares
representa desta forma a passagem de um fora de religião (cf. Bromberger, Hayot e Mariotti,
para dentro representando também a transição 1987: 40). Parece assim possível estabelecer uma
de um tipo de actividade para outra. Esta analogia entre a relação jogadores/adeptos de
transição opera-se também simbolicamente pela futebol e a relação santos/fiéis. Ao longo do
passagem de uma situação para outra, de um decurso do espectáculo futebolístico os fiéis
espaço para outro através de gestos executados espectadores manifestam a sua efervescência
e de objectos manipulados. O processo de emocional através de uma rigorosa codificação
entrada num estádio de futebol em dia de jogo gestual e vocal. Os espectadores reconhecem,
pode assim ser entendida como um ritzul de tal como num ritual litúrgico, os momentos em
entrada que proporciona a passagem de uma que deverão levantar-se, aplaudir, cantar, agitar
situação social a outra (cf. Gennep, 1978: 26, 35 as bandeiras e cachecóis, lançar fumos,
e Fisher, 1994: 108-181). Analisando o interior protestar, etc. Segundo Marc Augé, todos estes
da "catedral de betão", encontramos um espaço comportamentos desenrolam-se ao longo do
central inviolável para os fiéis espectadores6 espectáculo futebolístico ao ritmo de uma
que se posicionam em volta do mesmo. Este liturgia que não tem nada de metafórica.
espaço, que é o terreno de jogo, é apenas Dentro do lugar de culto que é o estádio,
acessível a árbitros e jogadores. milhares de fiéis vivem um mesmo sentimento
de efervescência e crença expressos por gestos e
Estes últimos são de certa forma idolatrados cânticos que parecem criar condições de
acabando mesmo por se constituírem nos ideais transcendência e percepção sensível do sagrado
do eu dos fiéis espectadores. Percebe-se assim a (cf. Augé, 1982: 59-67). Na verdade, das
razão pela qual os aficionados do futebol bancadas dos estádios ecoam "canções em
procuram avidamente informação acerca dos uníssono que, a despeito das palavras muitas
seus ídolos de forma a se aproximarem dos vezes obscenas, soam aos ouvidos de toda a
mesmos. A compra de camisolas, fotografias, gente como hinos entoados por meninos do
pedidos de autógrafos, etc.; parecem coro em bloco compacto. Na verdade, algumas
enquadrar-se nesta vontade de aproximação dessas canções são mesmo hinos colhidos
aos seus ídolos7. A ânsia de tocar os jogadores directamente nos livros de música religiosa."
(Morris, 1981: 23).
6 A violação deste "espaço sagrado" só de virifica normalmente
nas seguintes situações: quando O público considera a actuaçzo A obtenção de um golo por parte da equipa
do árbitro injusta e lesiva dos interesses da equipa de sua predilecta representa o clímax de todo o ritual.
pmiileçáo e invade o campo em forma de protesto contra Contudo, este objectivo nem sempre é fácil. O
aquilo que considera não ser o cumprimento da ordem e da lei;
quando se verificam tumultos nas bancadas, a entrada para o futebol é estruturalmente um jogo de incerteza
relvado constitui uma forma de escapar aos mesmos; quando pois não se sabe de antemão o vencedor de
ocorrem vitórias em campeonatos ou taças, os responsáveis qualquer jogo. Esta incerteza é ainda acentuada
pela organização dos jogos permitem, no final destes, a invasão
do terreno de jogo onde o público exterioriza então a sua por outros factores. As condições clirnatéricas,
alegria pela vitória (cf. Morriç, 1981: 21)
' Claude Rivière e Albert Piette consideram que actualmente se idolatrados são cada vez mais e com um caráter cada vez mais
verificam menos heroicizaç&s uma vez que os jogadores intermutável e transitório (cf. Rivière e Piette, 11995: 166).
as decisões controversas ou erradas do árbitro, niititos países ocidentais corneçaranr a esvaziar-se coni o
as trajectórias inesperadas da bola, etc.; declínio da fé religiosa, a populaçiio de grandes cidades e
vilas perdeu uni importante pretexto de convívio. A
contribuem para a referida incerteza estrutural. rertniiio reglilar de elevado nríniero de fiéis nas tnnnhiis
Perante esta, os adeptos de futebol recorrem a de Donzingo tinha a justificá-la algo ninis do que n prece
amuletos e mascotes para dar sorte à equipa de comunal; era tambérn irm afirmação da identidade do
sua preferência. É de assinalar que alguns dos grupo. Dava aos piedosos fiéis de onteiri uni sentido de
amuletos e mascotes são signos de religiões pertença. O serviço religioso no tenzplo repleto constitrtúi
r1111 aconteciniento social e teológico. Hoje, cotiz o seu
(dos quais a cruz constitui um exemplo). No
declitiio e tambéni com o declítiio das salas de baile e dos
que diz respeito aos jogadores, são conhecidas cinenuis e o predomínio do grande isolador social que é a
as inúmeras superstições destes no sentido de televisZo, o citadino está cada vez nzais faminto de
alcançarem os seus objectivoss. Crê-se assim na reuniões coniunitárins nas qrnis possa vêr e ser visto
interferência de aspectos sobrenaturais num conio parte de unm populafão local. O desafio defutebol
mero jogo de futebol. Os jogadores e sobreviveu, de certo niodo a estas tnudanças e
desempenfm actualniente um papel nmis significativo
espectadores de futebol têm portanto vários conto prática de fidelidade conztnitária. (Mo'rris, 1981:
procedimentos adstritos a magia e às religiões 23)
oficiais no sentido de obterem a sorte para um
jogo com um certo grau de aleatoriedade.
Alguns clubes recorrem mesmo a bruxos no
sentido destes influenciarem os resultados dos IV. OUTROS
RITUAIS
jogos (cf. Bromberger Hayot e Mariotti, 1987:
35-41 e Rivière e Piette, 1995: 167). A segunda concepção analisada neste texto
não se confina apenas à reconceptualização e
São portanto estas algumas das principais relativização daquilo que pode ser considerado
características que parecem permitir classificar sagrado ou sobrenatural. Assim, e tal como já
o futebol como um ritual secular onde se foi referido, esta segunda concepção
vislumbram algumas dimensões do sagrado, do perspectiva o ritual tendo em conta dimensões
sobrenatural e do religioso. O processo de que vão para além da dimensão sobrenatural.
secularização mencionado parece ter conferido Alguns autores que se debruçam sobre os
ao espectáculo futebolístico uma função que rituais centraram precisamente as suas análises
Desmond Morris sintetiza brilhantemente da noutras dimensões que não o carácter sagrado
seguinte forma: do mesmo. Esta posição não exclui a existência
de rituais sagrados. Confere contudo a
Talvez as comnparações que tênz sido feitas entre i ~ n i classificação de rittinl a fenómenos que não
desafio de futebol e uni servifo religioso niio sejani nssini
apresentam esta dimensão de cariz
tão disparatadas. Pelo tnetios nuni aspecto irtiportante
niio pode haver dúzrida qitanto ao significado religioso sobrenatural desde que os mesmos se
dos desafios de futebol. Estes substitrtírani de modo apresentem com determinadas características.
evidente, para grande faixa da população, os seruiços e as A presença de regras, o carácter repetitivo e
festividades religiosas de outrora. Quando as igrejas de regular de determinadas acções e a
funcionalidade das mesmas, são algumas das
R Desmond Morris (1981: 150-154) apresenta, na obra características apontadas que conferem
intitulada A tribo do futebol, um conjunto de superstiçóes
adstritas aos jogadores de futebol. extensividade à noção de ritual. Assim, e
segundo Maisonneuve (1988: 8), ritual poderá ideologia ou da esperança de unia eficicia simbólica otc
também ser entendido como: "certains usages real. (Rivière, cit. in Mesquita, 1993: 603)
ou segments de conduite présentant un
caractère routinier et stéréotypé. [...I ces Esta autonomia não exclui que aos rituais
processus concement un cycle d' opérations qui estejam inerentes valores que ele mesmo
ne se réduit pas a un prograrnme ni à une consagra (como se depreende da leitura da
habitude. En effet, iIs se référent a certaines definição de ritual apresentada por
valeurs, quelquefois contestées mais encore Maisonneuve). Será ainda importante
largement prégnantes." Esta definição de ritual considerar um aspecto fundamental destacado
não deixa de representar um afastamento da por Pitt-Rivers. Segundo este autor, o ritual é
perspectiva mais tradicional que remete o ritual dominado quase exclusivamente pela sua
para uma ligação com o mito e com o própria função. Tal facto não anula contudo o
sobrenatural. Claude Rivière e Albert Piette seu valor simbólico (cf. Pitt-Rivers, 1987: 52,65).
consideram mesmo que, para a interpretação Esta dimensão funcional dos rituais é
dos rituais do mundo contemporâneo igualmente considerada por Pierre Bourdieu
enquadrados na perspectiva em análise, a como o ponto fulcral da análise e interpretação
sacralidade não é mais do que um elemento dos mesmos dado que este autor considera que
secundário (cf. Rivière e Piette, 1995: 23) Estes o essencial a perscrutar num ritual é
autores defendem ainda a tese segundo a qual o precisamente a sua função social (cf. Bourdieu,
ritual deve ser definido como independente em 1982: 58). Parece assim importante analisar o
relação a um mito. Para tal, apresentam as nove espectáculo futebolístico segundo as dimensões
razões seguintes: valorizadas pela definição e perspectiva de
ritual em debate neste ponto do texto. A análise
I ) raraviente hrí correspondência, sequência por que se segue parece demonstrar que o futebol
sequêncin, entre o tirito e o rito; o rito pode querer dizer
iirais ou nrenos do que o tnito; 2 ) alguns povos pobres enr apresenta de facto as dimensões de ritual
tnitos têrrr ritos bastante coniplexos; 3) o mesmo mito é inerentes à perspectiva em debate.
celebrado através de ritos diversos e a tnitos análo~os
correspondem ritos diferentes consoante as populações; As regras perfeitamente definidas, enquanto
4) ritos quase idênticos dizem resweito a ttiitos totalmente
distintos; 5) nzuifos nritos não têm ritos que Ilres
uma das características do ritual segundo a
correspondam íex: Narciso); 61 enr todo o caso, o concepção em análise, são um dos aspectos
significado trnnsmitido por tínr mito não legitinm imprescindíveis para a prática do futebol
necessariamente a sua execuçáo; 7) as invençóes ou os actual. Os jogos tradicionais ingleses que
aproveitamentos de ritos já existentes nalgumns precederam o futebol, e que de certa forma
circunstâncias conjunturais graves paro a sociedade não
pressupõe unr referente rnífico, mesnio que unia estiveram na sua origem (como por exemplo o
narrativa de justi/icaçüo ou a integração nicm 'wrpus' de Campball, o Hurling e o Knappan), eram
mitos antigos os venlza justificar a posterioti 8 ) algutls regidos por um número reduzido de regras (cf.
rifoç subsistem como meras sobrevivências depois do hdurphy, Williams e Dunning, 1994: 30-31). Tal
esquecimento do seu significado inicial ou enquanto facto parece estar na origem da grande
comportamentos dessacralizados tornados hábitos senr
rqerência a um background iizítico; 9) enr n~~nzerosos violência que se desencadeava aquando da
casos, o referente do mito não é da ordenr do Iogos, do prática destes. A própria monarquia inglesa
arquétipo, da narrativa de actos iniciais, mas sim da procurava, através de legislação, proibir este
tipo de jogos. Contudo, tais proibições muito disputado dentro de um espaço (noventa a
raramente eram respeitadas. A solução cento e vinte metros de comprimento e
encontrada para este problema foi a quarenta e cinco a noventa de largura) e
institucionalização de um desporto com regras período de tempo delimitado (noventa minutos
precisas e bem definidas controladas por um divididos em duas partes de quarenta e cinco
árbitro que punia as infracções às mesmas (cf. minutos cada uma). A aplicação das regras é
op. cit., 9 e Elias, 1992: 257-278). Nascia assim o feita pelo árbitro que constitui uma autoridade.
futebol moderno, semelhante ao que Todo este conjunto de regras de futebol, a
conhecemos actualmente. A sua difusão pelo institucionalização do mesmo e os organismos
mundo teve como consequência normal que o internacionais que o dirigem conferem-lhe
mesmo fosse praticado por todos segundo as características de um ritual pois esta
mesmas regras. Estas são actualmente componente de previsibilidade das regras e o
determinadas por um organismo autónomo e rigor das instituições constitui uma importante
supra-nacional denominado International Board. dimensão para a classificaçáo de rituais
Em consequência do controlo exercido por esta entendidos sob a perspectiva em análise.
instituição as regras do futebol têm carácter
universal e portanto válidas para todos os Tal como foi referido, uma outra
países inscritos na F.I.F.A.. Esta organização, característica do ritual segundo esta perspectiva
também supra-nacional, superintende o futebol é o carácter repetitivo e regular de
a nível mundial tendo competência para decidir determinadas acções que compõem o ritual. O
em casos de conflito. espectáculo futebolístico está igualmente
submetido a uma calendarização regular de
As regras que orientam um jogo de futebol jogos que determina a ordem e a sequência dos
sofreram alguma evolução ao longo dos anos. mesmos. Tal calendarização acaba mesmo por
Actualmente são dezassete as leis que estabelecer um ciclo anual no qual se identifica
regulamentam a prática deste jogog. De uma claramente o início e o fim de uma temporada.
forma geral, tais regras determinam o que deve São assim determinados os intervalos regulares
ser feito antes do início do jogo para que este e as horas fixas a que os jogos se devem
seja possível e ainda o que deve e não deve ser realizar. A época futebolística termina
feito durante o jogo (cf. Morris, 1981: 36). normalmente com um jogo final que constitui
Verifica-se desta forma que o futebol possui uma grande celebração onde estão quase
regras muito precisas que permitem a sua sempre presentes os detentores do poder
institucionalização. O jogo terá assim que ser político do país. Como considera Marc Augé
estas são características conducentes à
As dezassete regras do htebol dizem respeito aos classificação do futebol como sendo um grande
seguintes aspectos: -Lei 1" O campo d e jogo; -Lei 2' A bola; - ritual (cf. Rivière e Piette, 1995: 169).
Lei 3" Número de jogadores; -Lei 4" Equipamento de
jogadores; -Lei 5' Arbitros; -Lei 6" Fi-ais de linha; -Lei 7'
Duração d o jogo; -Lei 8" Início de jogo; -Lei 9" Bola fora; -Lei Para além do ciclo composto pela sequência
10" Pontuação; -Lei 11" Fora de jogo; -Lei 12" Faltas e mau dos diversos jogos que constituem uma época,
comportamento; -Lei 13" Livres; -Lei 14" Grande
penalidade; -Lei 15" Lan~arnentolateral; -Lei 16"Pontapé de será importante analisar toda a trama
baliza; - Lei 17" Pontapé de canto (cf. Morris, 1981: 32-36). sequencial presente em cada jogo de futebol do
referido ciclo. Esta inicia-se na semana que fruto de uma aprendizagem simbólica (cf. op.
antecede o jogo. Os jogadores preparam-se com cit., 31).
treinos intensivos. Os adeptos e órgãos de
informação discutem e prevêm a composição É também possível verificar que o público que
das equipas que se vão defrontar. É ainda feita assiste ao futebol se comporta segundo uma
uma retrospectiva de jogos anteriormente sequência de acções. Antes do início do jogo as
disputados por cada uma das equipas. Nos dias pessoas que se deslocam para assistir ao jogo
anteriores ao jogo, os jogadores de cada equipa procuram munir-se de cachecóis, bandeiras,
entram em estágio. Isto pressupõe normalmente bonés ou outros elementos com as cores do
esforço, sofrimento e privações dado que os clube da sua preferência. Os espectadores
jogadores são retirados do normal convívio marcam desta forma a pertença a um
com a família sendo mesmo sujeitos a uma determinado grupo. Depois de entrarem para o
alimentação especial. Os estágios podem estádio (da forma já descrita) as pessoas
mesmo ser entendidos como ritos de agregação escolhem os seus lugares e aguardam a entrada
que visam uma intensificação da preparação das equipas em campo num ambiente de
colectiva de uma equipa (cf. Maisonneuve, crescente efemescência. Quando os jogadores
I
1988: 77). A partida dos jogadores para o entram em campo estabelece-se a primeira
I
estádio de futebol é feita em grupo num mesmo comunicação entre estes e o público o que leva
autocarro (onde alguns jogadores e treinadores, a uma exaltação do entusiasmo que precede o

1
I por superstição, procuram ocupar os mesmos jogo (cf. Rivière e Piette, 1995: 169, 179). Ao
lugares que ocuparam em viagens que longo deste os adeptos de cada equipa vão
antecederam jogos vitoriosos) sendo este exprimindo as suas emoções através de toda
normalmente escoltado pela polícia. Após a uma codificação gestual e vocal que determina,
chegada deste ao estádio, os jogadores são tal como já foi referido, os momentos em que se
rapidamente encaminhados para os vestiários devem agitar bandeiras, cantar, etc. Todas estas

I
I

I
onde escolhem os seus equipamentos. Esta
escolha é de tal forma pormenorizada que pode
ser mesmo entendida como um feticlzisnzo (cf.
Bromberger, Hayot e Mariotti, 1987: 39). Segue-
manifestações de apoio à equipa decorrem
assim num cenário pouco variável onde estão
sempre presentes as exibições de símbolos e
cânticos, gestos e atitudes estereotipadas. A
se o aquecimento muscular dos jogadores. Este obtenção de um golo constitui o auge das
é feito colectivamente cerca de trinta minutos manifestações dos espectadores. No final, as
antes do início do jogo. Para se proceder ao pessoas abandonam o estádio eternizando as
início do encontro os jogadores das duas discussões acerca do jogo ao longo do trajecto
equipas dispõem-se em duas filas paralelas que para caça, nos cafés e restaurantes. Em síntese,
seguem a equipa de arbitragem quando esta verifica-se desta forma que, as acções dos
entra no relvado. Chegados ao centro deste, os espectadores se desenrolam; antes, durante e
jogadores saúdam o público intensificando logo depois do jogo; segundo um esquema rítmico
de seguida os seus exercícios de aquecimento relativamente fixo (cf. Bromberger, Hayot e
até ao início do jogo. Durante este os jogadores Mariotti, 1987: 38). O público participa desta
têm gestos e atitudes estritamente codificadas forma numa actividade conjunta caracterizada
por um activismo popular que simboliza o globalidade, o espectáculo futebolístico valoriza
prazer de agir em conjunto no sentido de a espectacularidade numa sociedade de massas.
contribuírem para a vitória da equipa da sua
preferência (cf. Rivière e Piette, 1995: 170). Está Podemos ver nos aspectos considerados
assim patente outra importante dimensão de uma consagração, legitimação e instituição do
d
ritual segundo a perspectiva em debate. espectáculo futebolístico como um complexo
ritual (cf. Bourdieu, 1982: 58). As características
Esta, de acordo com a definição do mesmo, relativas ao futebol mencionadas neste ponto
não se confina apenas a acções estereotipadas e consagram e legitimam a especificidade do
a hábitos comportamentais regularmente futebol pois definem os seus limites
repetidos. O ritual evoca e reforça todo um constitutivos diferenciando-a de outros rituais.
conjunto de valores que se consideram Podemos desta forma analisar o espectáculo
importantes. Perspectivado como um ritual, o futebolístico como um ritual de instituição. Este
espectáculo futebolístico evoca também um tipo de rituais são portadores de uma grande
conjunto de valores. O respeito pelas forca simbólica e conferem uma identidade
instituições e leis que regem o futebol é um social a todos os que nele participam. A força
desses valores. O princípio de igualdade é simbólica parece resultar da utilização de um
também valorizado dado que a lei e as largo conjunto de signos exteriores. Estes
instituições, como foi mencionado, devem podem abranger as decorações, vestimentas,
tratar todos os clubes por igual. Estas procuram insígnias, etc. Este tipo de signos estão sempre
promover também as condutas desportivas nas presentes no futebol através de cachecóis,
quais se inclui o respeito pelo adversário, bandeiras, camisolas, emblemas, faixas, cores,
apesar de toda a competitividade inerente ao etc. Será ainda importante considerar os
futebol e à consequente interacção que se símbolos corporais que se referem, no caso
estabelece entre equipas de diferentes vilas, específico do futebol, a gestos, movimentações
cidades e países que se defrontam entre si. Estes colectivas dos adeptos, palavras de ordem,
valores de respeitabilidade que se procuram cânticos, etc. Estes dois tipos de signos
ver cumpridos não anulam contudo outros (exteriores e corporais) estão assim presentes no
valores essenciais ao próprio futebol enquanto espectáculo futebolístico contribuindo para
jogo pois apenas os vencedores são os conferir ao mesmo um carácter de ritual de
consagrados. Sendo este um jogo praticado instituição (cf. op. cit., 58-63). Tais rituais
entre equipas, valoriza o trabalho colectivo e o apresentam uma função e uma significação
espírito de grupo e união inerente às mesmas. social. O mesmo se verifica relativamente ao
Concornitantemente, é também valorizado o espectáculo futebolístico. Encarado como um
desempenho individual de cada jogador que, ritual, será importante destacar a função social
pela sua maior valia, constitui um importante que este espectáculo assume para os que a ele
contributo para a vitória da equipa. Verifica-se assistem.
assim uma valorização dos mêlhores jogadores,
mas também das melhores equipas em Uma das funções mais frequentemente
detrimento das piores. O futebol promove atribuída ao espectáculo futebolístico é a função
assim a importância das vitórias. Na sua de coesão social. A identificação com uma das
equipas e o respectivo apoio que é prestado a e camaradagem entre os indivíduos (cf. Tumer,
esta integra cada apoiante num grupo mais 1974: 118-120, 137-138, 152-159). Como vimos,
vasto de apoiantes verificando-se muitas vezes estas características estão também presentes no
um sentimento de fidelidade comunitária. A espectáculo futebolístico e assumem-se mesmo
identificação com um clube; normalmente como importantes funções do mesmo. Contudo,
expressa num estádio de futebol pela utilização a aplicabilidade deste conceito a temática
de bandeiras, cachecóis e outros signos de considerada não permite que se considere no
pertença, ou então por uma simples conversa futebol a existência "de um limbo de ausência
ou comentário; associa as pessoas conferindo- de 'status"' (Tumer, 1974: 120). A disposição
lhes uma identidade colectiva. Esta associação dos espectadores nos diferentes lugares do
tem evidentes vantagens ao nível do apoio da estádio de futebol não deixam de revelar uma
equipa. O exemplo mais concreto e certa diferenciação de status pois alguns lugares
institucionalizado desta associação são as são de acesso mais dispendioso do que outros.
claques organizados de apoio aos clubes de Por outro lado, e tal como destaca Desmond
futebol'o. Esta função integradora dos rituais é Morris, a vitória de uma das equipas confere
destacada por Radcliffe-Brown e Marcel Mauss aos adeptos desta uma melhoria psicológica e
(cf. Sindzingre, 1993: 69). uma elevação da sua posição social face aos
adeptos da equipa adversaria derrotada
Esta comunhão entre os espectadores é na (Morris, 1981: 20-21).
verdade um aspecto muito característico do
espectáculo futebolístico. Relativamente a esta Outra função muito apontada ao
função do ritual parece pertinente considerar o espectáculo futebolístico perspectivado como
conceito de communitas desenvolvido por Victor ritual prende-se com a capacidade deste
Tumer na obra intitulada O processo ritual. constituir um veículo libertador das tensões e
Tendo em conta o seu significado, este conceito redutor da ansiedade (cf. Rivière e Piette, 1995:
parece ter grande aplicabilidade ao caso 59-60). Na verdade, este espectáculo desperta
concreto do espectáculo futebolístico entendido emoções violentas em muitos daqueles que a
nesta perspectiva como ritual. O conceito de ele assistem sendo mesmo a oportunidade para
comnzunifas é empregue por Tumer no sentido a libertação de pulsões negativas.
de caracterizar a relação entres os sujeitos que Relativamente a este aspecto é o próprio
se encontram na segunda das três fases de um Bronislaw Malinowski que considera como
ritual consideradas por Van Gennep (separação, importante função dos rituais a capacidade
margem e agregação) (cf. Gennep, 1978: 31). Este destes para acalmar estados de ansiedade
conceito refere-se ao momento rudimentarmente psicológica e solucionar conflitos decorrentes
estruturado do ritual. Em tal momento, da instabilidade e tensão emocional (cf. Baztán,
verifica-se uma indiferenciação, uma comunhão 1993: 539). Esta função catártica" apresenta-se

Io Esta função de coesão social e integração presente no l 1 A catárse poderá ser definida como a diminuição ou
Futebol é devidamente realçada por Christian Bromberger extinção de comportamentos e sentimentos agressivos
(1987), Desmond Morris (1981) e Claude Rivière (1995). Ver devido a uma expressão prévia da agressão. A expressão da
bibliografia. agressividade poderá então conduzir a uma redução de
como bastante relevante para vários autores trabalho ou entre a fan~íliae os anzigos, depressa se veria
que se dedicaram à análise do futebollz. A etrvolvido em graves problen~as.Os insultos conz que tão
livremente fuimina autoridades, jogndores, treinadores e
importância desta funqão é magnificamente directores durante uni deçnfio provocaria de i~i~ediato a
sintetizada por Desmond Morris no texto que retaliação no contexto profissional e social. Portanto, o
se segue: jogo concede-Uie unra libertação dos controlas sociais
1: (Morris, 1981: 18-19).
Para alguns, jogar ou ver jogar futebol equivale à
satisfação de sentimentos violentos e à sun dissipação Esta importante análise demonstra que o
inofensiva. Na base desta teoria está a ideia de que todos futebol se apresenta como um contexto muito
sofrenzosfrustrações na vida quotidiana e de que vivemos
sempre coni elas sob fornia de unia opressão crescente. específico que permite ao público a adopção de
arnzazenamos esta fúria que feruillia continuamente no determinados comportamentos que, nos
nzais fundo de nós, à espera de unia oportunidade para contextos inerentes a vida quotidiana, são
explodir de unm fornza visível. Se essa oportunidade não socialmente reprováveis. A este contexto parece
surgir, poderemos dirigir a fúria para nós próprios, o que
provoca doenças neurovegetativas, úlceras e, em casos adequar-se se sobremaneira noção de
extremos, o suicídio. Se a oportunidade chega realmente e liminaridade. Esta foi utilizada por Tumer para
alguém nos irrita o bastante para despoletar a explosão, caracterizar a fase intermédia (denominada
então reaginzos de maneira selvagnn, excessiva; a fúria margem) do processo ritual já mencionado. O
armazenadn contrnria-nos o auto-domínio. Afirma-se que
se, através da participação nuni desafio de futebol - quer
espectáculo futebolístico apresenta diversas
conio jogadores, quer conio espectadores -, pudermos características adstritas à noção de liminaridade.
canalizar esta pulsão agressiva interna para unza saída Na verdade, assistir a um espectáculo deste tipo
inofensiva teremos consumido a nossa fúria de u m nzodo insere o espectador num contexto ambíguo e
nceitivel e euitado incidentes mnis graves noutras permissivo face às leis e costumes que
alturas.
normalmente regem a vida quotidiana. Tal
É esta a "teorin da válvula de segurança" do contexto parece constituir uma região selvagem
desporto conzpetitivo. Baseia-se na tradição de que é de uma certa invisibilidade e escuridão de certa
socinlnzente permitido gritar, insultar e praguejar nutri forma conducente à ausência de status,
desafio de futebol, sern que os "transgressores" tenlzani
de responder por isso em tribunal. O espectador que
propriedade, roupa de classe e papel social. É
injurin está de certo triodo "aictorizado" a fazê-lo pelo possível assim estabelecer-se mais facilmente
contexto do nconteciniento desportivo. A sua fúria deixa um clima de camaradagem que tende para uma
de ser recalcada para se libertar; as suns pulsões homogeneizafão de distinções de classes (cf.
agressivas ter-se-ão, assim, dissipado e a sua tensão Tumer, 1974: 117-118).
interior reduzir-se-á, fazendo-o sentir-se liberto de todos
os maus instintos e, enz última análise, mais tranquilo e
socialmente pacífico. Estas características remetem para uma
análise de outro aspecto importante, ligado ao
É, sem dúvida, verdade que se o espectador violento contexto do espectáculo de futebol já destacado
de futebol se conrportasse da niesrm maneira no local de
por Desmond Morris, e que se assume como
um aspecto particular e extremamente importante
tensão e a um aumento da sensação de bem estar (cf.
Leyens, 1979: 195) da funqão catártica. A presenqa num estádio de
l2 Esta fungão é destacada por autores como Christian futebol poderá representar para muitos
Bromberger, Hayot e Mariotti (1987), Desmond Moris, espectadores a satisfacão de desejos inconscientes
Claude Rivière e Albert Piette (1995), Roberto Damatta
(1986), Umberto Eco (1996), Vargas Llosa (1986), etc e a compensação de uma inferioridade pela
agressividade regulada que o contexto Estaremos assim perante uma manifestação dos
futebolístico proporciona (cf. Rivière e Piette, "poderes rituais dos fracos" constituindo estes
1995: 56, 61). Esta perspectiva de compensação um importante atributo da liminaridade
de inferioridade que o espectáculo futebolístico (Tumer, 1974: 125).
parece proporcionar aos seus espectadores
surge de certa forma associada à teorização O papel libertador e catártico de
desenvolvida por Taylor. determinados rituais mediante os quais são
exteriorizados sentimentos violentos que são
Este autor desenvolve a sua teoria tendo socialmente inconvenientes e por isso inibidos
como ponto de partida a própria evolução constitui um tema sobre o qual Max Gluckman
histórica do futebol. Como foi já mencionado centrou a sua atenção. A perspectiva
no presente texto, a institucionalização do desenvolvida por este autor revela-se de grande
futebol como desporto oficial cuja prática se pertinência para a análise da função do
baseia em regras controladas por um árbitro espectáculo futebolístico entendido como ritual.
veio colocar um ponto final na violência Max Gluckman descreve os rituais de rebelião
presente entre os praticantes dos jogos como rituais onde as normas e valores são
tradicionais e populares precursores do futebol. invertidos temporariamente. Sendo de rebelião,
Esta transformação levou ao afastamento do tais rituais dizem respeito a conflitos de
público pertencente às classes trabalhadoras interesses entre grupos e têm uma função de
dos jogos de futebol. Estes passaram a ter como catarse permitindo reafirmar de maneira
público indivíduos da aristocracia. Contudo, e periódica a coesão e valores de um grupo social
segundo Taylor, a "intemacionalização" e o atravessados pela tensão (cf. Sindzingre, 1993:
"aburguesamento" trouxeram de novo aos
69) Verifica-se desta forma que os rituais de
jogos de futebol o público pertencente às classes
rebelião, enquanto desordem mimética que são,
trabalhadoras (cf. Murphy, Williams e
permitem uma inversão temporária dos papeis
Dunning, 1994: 40-41 e Dunning, Murphy e
e estatutos (cf. Rivière e Piette, 1995: 57).
Williams, 1988: 23-31). Como consequência, tais
espectadores viram no futebol uma forma de Segundo a perspectiva desenvolvida por Max
"democracia participativa". Em conclusão, Gluckman, o futebol poderá ser interpretado
Taylor considera que a violência presente nos como um ritual de rebelião pois assume a função
estádios de futebol deve ser encarada como um deste ao constituir-se num contexto permissivo
"movimento de resistência" perpetrado pelo e conducente a manifestações reprimidas
público oriundo das classes trabalhadoras (cf. noutros contextos sociais. Esta interpretação
op. cit., 41). O contexto adstrito ao espectáculo parece coadunar-se de certa forma com a
futebolístico parece então proporcionar a este teorização de Taylor. A hipótese segundo a
tipo de público uma compensação face aos qual o público adstrito às classes trabalhadoras
múltiplos problemas da vida quotidiana tem no contexto do espectáculo futebolístico a
permitindo assim suprir um sentimento de oportunidade de conseguir; por inversão, uma
inferioridade inerente às classes baixas através superioridade temporária através de uma
de uma agressividade ritualizada (cf. Damatta, rebeldia e agressividade ritualizada; tem pelo
1986: 88-97 e Rivière e Piette, 1995: 56). menos um importante interesse analítico.
Todavia, Max Gluckman alerta para a desporto elevado no estatuto de religino Inicn, com o
possibilidade de os rifuais de rebelião terem nuiior apoio de sempre seja na realidade uni pouco menos
complicado do que os sociólogos e psicólogos nos querem
latentes os germes que poderão por vezes levar fazer supor; o futebol talvez ofereça simplesmente 2s
à passagem de uma desordem ritual a uma pessoas algo que raramente elas conseguem ter; unrn
desordem real (cf. Rivière e Piette, 1995: 31). oportunidade para se divertir, pnrn gozar, pnrn se excitar,
Y s t a possibilidade é igualmente debatida ao pnrn sentir certas onoções intensas que a rotina dirírin
nível do ritual futebolístico. Peter Marsh raramente lhes oferece.
considera que não há uma violência séria nos
Querer divertir-se, goznr, passar icm bom bocado, é
estádios de futebol sendo esta apenas de uma aspiração perfeitamente legífinm -um direito tiio
carácter simbólico e metonímico visando a vrílido como o desejo de comer e trabalhar. Por nzuitas
humilhação e a submissão dos adversários. razões, sem dúvida complexas, o futebol assumiu u m
Para este autor, a violência presente nos papel que faz dele o desporto nuiis apreciado no mundo.
estádios de futebol é ritual e sujeita a regras (cf. Vargas Llosa, 1996: 31)
que, quando transgredidas, levam à
penalização do transgressor sendo esta Esta função poderá ser questionada sempre
efectuada pelo próprio grupo a que este que a equipa com a qual alguns espectadores se
pertence (cf. Dunning, Murphy e Williams, identificam é derrotada. Em tal situação e como
1988: 19-21). Esta perspectiva apresenta alguma refere Desmond Morris, o futebol poderá não se
validade. Porém, é importante considerar que assumir como diversão e como fenómeno
se toma difícil estabelecer uma fronteira entre a libertador de tensões, mas sim um gerador
violência ritual e a violência real. Confirmando e/ou intensificador das mesmas (cf. Morris,
a opinião de Max Gluckman, a violência ritual 1981: 19).
descamba muitas vezes para a violência real tão
visível nos estádios de futebol. A derrota de
uma das equipas, erros da equipa de
arbitragem, atitudes provocatórias, etc.; poderão
desencadear este tipo de situações. Podemo-nos
assim questionar até que ponto uma certa anti- O presente texto permitiu analisar e
estrutura vigente em rituais como o futebol polemizar algumas questões relativas ao
reforçam a estrutura social dominante ou, pelo espectáculo futebolístico e à possibilidade de
contrário, são um factor desestabilizador desta. este poder ser, ou não, classificado como um
ritual. O olhar pelas diferentes perspectivas,
Uma outra função do futebol por muitos longe de fornecer uma resposta definitiva à
apontada é a capacidade que este tem de problemática em análise, adensa a
divertir as pessoas transformando-se assim complexidade da mesma.
num momento agudo numa semana crónica.
Tal função parece ser b a s e t e obvia. A É de facto possível encontrar no espectáculo
propósito desta Mario Vargas Llosa escreve: futebolístico um conjunto de funções adstritas
aos acontecimentos geralmente classificados
Talvez a e.ylicação para este extraordinário como rituais de cariz religioso. A perspectiva
fenómeno contemporâneo, a paixão pelo futebol -um que define a religião a partir das funções que
esta exerce na sociedade parece deixar este é vivido e sentido pelos seus espectadores,
pressupor que a mesma inclui outros ser classificado como um ritual secular imbuído
fenómenos que desempenham funções de uma sacralidade própria e subjectiva. Na
semelhantes à sua. Segundo a perspectiva verdade, o futebol emerge como um universo
mencionada, o espectáculo futebolístico poderia de certa forma envolvido por diversas práticas
portanto ser classificado como um ritual. mágico-simbólicas efervescentes.
Contudo, a reflexão não parece tão linear. É
legítima a seguinte interrogação: o princípio Depreende-se da análise destas perspectivas
segundo o qual um determinado fenómeno que a classificação do espectáculo futebolístico
pode ser substituído por outros que como sendo ou não um ritual está dependente
desempenham a mesma função do primeiro da prevalência que uma delas possa ter. Tal
permitirá denominar como rittial todos os facto é bem demonstrativo da complexidade da
fenómenos que revelem as mesmas funções referida classificação. Por outro lado, as
daqueles que, no sentido convencional, são Ciências Sociais têm revelado uma certa
classificados como ritual ? timidez em abordar alguns fenómenos
eventualmente classificáveis como rituais
Ainda que a funcionalidade se apresente contemporâneos talvez pelo facto de os
como um elemento relevante a considerar para mesmos se encontrarem ainda demasiado
a definição de ritual, será importante ter em próximos de nós.
conta elementos apontados por outra
perspectiva que confere à noção de ritual um Parece no entanto indiscutível que o futebol
carácter mais restritivo. Nesta, o ritual aparece apresenta todo um conjunto de características
muitas vezes associado a um mito que cria um normalmente presentes nos mais diversos
cosmos sagrado sendo este último entendido rituais. Contudo, parece faltar-lhe uma íntima
como aquilo que caracteriza um poder ligação directa e intrínseca a um mito sendo
misterioso diferente do homem, mas em relação portanto um ritual sem exegese. É todavia
com este (cf. Berger cit. in Rivière e Piette, 1990: possível estabelecer uma homologia entre o
204). A essência do ritual parece assentar, espectáculo futebolístico e os rituais
segundo esta perspectiva, na noção de sagrado. perspectivados na sua forma mais redutora, ou
O espectáculo futebolístico encontrar-se-ia seja, intrinsecamente e exclusivamente ligados
neste caso excluído da categorização ou a um mito e ao sagrado. De certa forma, o
classificação de ritual. primeiro cumpre muitas das funções dos
segundos ainda que não substitua todas. Tal
Esta exclusão certamente já não terá sentido como qualquer rifual religioso o futebol
se a noção de sagrado for de certa forma congrega uma multidão em comunhão em
relativizada. Neste caso, poderão ser tomo de uma mesma crença: a equipa de
classificados como rittial fenómenos que, futebol de determinado clube.
segundo a classifica~ãoconvencional de ritual
sagrado, estariam excluídos de tal classificação. Para esta análise será ainda importante
O futebol constitui um exemplo de um indagar se o público que assiste ao espectáculo
fenómeno que poderá, atendendo à forma como futebolístico estará ou não consciente que o
mesmo constitui um ritual. A não consciência CAZENEUVE, JEAN
parece significar que o antropólogo acaba por 1993 "Rites" in Encyclopaedia Uniuersalis, vol. 20,
ser o operador intelectual do processo de Paris, France S.A.
classificação do futebol como ritual. Se assim CAZENEUVE, JEAN
f o r , o futebol poderá ser considerado como um s.d. Sociologia do rito, Porto, Rés Editora.
r ritual, mas numa perspectiva efic. Poderemos
assim estar perante a aplicação, por parte do DAMATTA, ROBERTO
antropólogo, de categorias criadas para a 1986 Explorações. Ensaios de Sociologia
análise de outros contexto diferentes do futebol Interpretatiua, Rio d e Janeiro, Editora Rocco.
o que poderá condicionar e limitar o âmbito de
DUNNING, ERIC; MUWHY, PATRICKE WILLIAMS, JOHN
estudo do contexto f u t e b o l í s t i c o . Assim, será
1988 The roots of Football Hooliganism, London,
importante realizar um atento e minucioso Routledge.
trabalho de campo em tomo do espectáculo
futebolístico abrangendo um exame DURKHEIM, EMILE
comparativo de ordem espaço-temporal. Desta 1985 Les formes élémentaires de Ia vie religieuse,
análise poderão emergir outras importantes 7" ed., Paris, Quadrige/ Presses Universitaires d e
dimensões que poderão levar a repensar e France.
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