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Sanskrit Transliteration (I.A.S.T.). As traduções das citações das obras em sânscrito foram
realizadas pelo autor.
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2 Aspalavras “gnóstico(a)” e “gnose” serão usadas neste artigo no sentido genérico de um empreendi-
mento cognitivo-filosófico de caráter soteriológico.
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conta...” (Rosa 1976, p. 101 & 105). O dia do diálogo entre os vaqueiros
que constitui o tempo de durabilidade da narrativa é, precisamente,
o dia do retorno de Grivo. Após comunicar ao patrão o ocorrido e
entregar-lhe o tesouro consigo trazido, Grivo reparte com os demais
vaqueiros sua experiência de errâncias.
O tesouro trazido por Grivo, a “viagem dessa viagem”, o “quem das
coisas” tão obcessivamente buscado, a “moça” amada outrora abandona-
da a ser finalmente “desposada” por Segisberto – não é senão a Poesia, a
Palavra Poética que funda e reúne em si, enquanto essência, a totalidade
do mundo. Diz Guimarães Rosa: “O “Cara de Bronze”, pois, mandou
o Grivo... buscar Poesia. Que tal?” (Rosa 2003, p. 94). Em sua dimensão
maior, portanto, o conto “Cara de Bronze” visa projetar, no instante
eternalizado da Palavra Poética, a totalidade do Real, convergência de
sentido das temporalidades passada, presente, e futura – “o dia de uma
vida inteira” (Rosa 1976, p. 97) – do protagonista Segisberto. A Palavra
Poética, revelação definitiva do “quem das coisas”, constitui (re-)apresen-
tação da totalidade do mundo em seu nível profundo – o mundo tal como
ele é enquanto reunião ontológica sempre presente de todas as coisas.
A reconciliação de todas as coisas em torno da Palavra Poética tem
como requisito existencial uma mudança de perspectiva: tal qual a reali-
zação do “perto” que é “mais longe do que o fim” (Rosa 1976, p. 96), a
transmutação que se opera em Segisberto elimina o mundo fantasioso,
fragmentado e egocêntrico das “suas posses” e “suas perdas”, e faz bro-
tar, re-conhecido, o mundo real e unicista da Poesia, coexistência originária
de todas das coisas. O caminho de desapego e sabedoria, mediado pela
viagem purificadora e (re-)memorializadora de Grivo, é a profilaxia de-
finitiva de todos os males e todas as dores, a expiação do “pecado ori-
ginal” que não é senão a desconsideração pela poesia das coisas e cujo
símbolo narrativo é o (falso) parricídio de Segisberto. Grivo descreve,
com estas palavras, a beatitude alcançada por Segisberto ao receber as
instruções da Palavra Poética: “Falei sozinho com o Velho, com Segis-
berto. Palavras de voz. Palavras trazidas. De agora, tudo sossegou. Tudo
estava em ordem...” (Rosa 1976, p. 124).
É precisamente no final da frase acima transcrita, momento dramá-
tico e apoteótico da narrativa, que Guimarães Rosa insere a nota de
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3 A questão da datação dos Upaniṣads em geral é altamente controversa, ainda que não haja dúvida
da crítica, com a exceção de algumas sugestões de Suzi Sperber (1976, p. 63) e Benedito Nunes (2009,
p. 182-7). Sua identificação depende, é claro, de (i) uma familiaridade mínima com os pensares do
Oriente – fato raro na crítica literária brasileira – e (ii) uma adesão hermenêutica mais ampla a uma
perspectiva filosófico-espiritual e/ou gnóstico-soteriológica.
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de estudiosos contemporâneos pela força de sua argumentação e pelo fato de abrigar os comentários
sistemáticos mais antigos aos Upaniṣads que nos restam. Entretanto, a sistematização da escola Vedānta
data de alguns séculos antes de Śankarācārya (ver Nakamura 1990, p. 9-126).
8 É o caso da escola conhecida como “Shivaísmo da Caxemira”.
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9 No início de sua obra máxima, Vākyapadīya, Bhartṛhari afirma: “O Brahman imperecível, sem começo
nem fim, cuja natureza essencial é a Palavra (vāc), manifesta-se na forma de objetos e é a fonte da cria-
ção do universo.” (“anādinidhanaṃ brahma śabdatattvaṃ yadakṣaraṃ / vivartate’ rthabhāvena prakriyā
jagato yataḥ”) (Bhartṛhari 1971, p. 1).
10 Esses dois níveis da Palavra originária estão claramente expressos na seguinte passagem do Praśna
Upaniṣad: “Com efeito, Satyakāma, a sílaba Om [vāc] constitui tanto o Brahman superior quanto o
Brahman inferior”. “etadvai satyakāma paraṃ cāparaṃ brahma yadoṃkāra”. (5.2, p. 64). Note-se que o
mantra Om, também conhecido como udgīta – lit. “aquilo que é cantado/recitado” –, é a denominação
mais recorrente da Palavra originária (vāc).
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sódia (védica)”.
12 Ao invés de I.13.4, Guimarães Rosa menciona equivocadamente I.13.5. Pode ter sido um erro de trans-
(minha tradução)
Aquele que conhece, desta forma [anteriormente apresentada], este
Upaniṣad [i.e., meditação] sobre os sāmans [i.e., hinos ou cânticos mé-
tricos védicos], ele recebe da Palavra (vāc) o leite que constitui a Pala-
vra. Ele se torna um (co-) possuidor de alimento e um consumidor de
alimento – aquele [apenas] que conhece este Upaniṣad [i.e., meditação
sobre os sāmans].13
Segunda Citação (Chāndogya Upaniṣad 4.5.1)
(texto do “Cara de Bronze”)
“Um touro falou-lhe assim: / – Satyakāma / – Senhor? / – Já somos
mil. Reconduz-nos à casa do Mestre.”
(minha tradução)
“Em seguida, um touro lhe falou: / – Ó, Satyakāma. / Ele [Satyakāma]
respondeu dizendo: / – Sim, nobre Senhor! / O touro retrucou: / –
Meu caro, já alcançamos [um total de] mil [cabeças de gado]. Leva-nos
de volta à casa do Mestre.”14
Terceira Citação (Chāndogya Upaniṣad, 5.1.8)
(texto do “Cara de Bronze”)
“Então a palavra se afastou. Depois de uma ausência de um ano, ela
voltou e disse: – Como pudeste viver sem mim?”
(minha tradução)
“Então a Palavra (vāc) se afastou [do corpo]. Depois de viver longe por
um ano, ela voltou e perguntou: “Como pudeste viver sem mim?”15
As citações acima contêm chaves hermenêuticas privilegiadas para a
compreensão do conto “Cara de Bronze”. Isso decorre de sua articula-
ção implícita e/ou explícita com as quatro dimensões fundamentais em
quatro direções do espaço, nos três mundos, nos diversos planetas, nos
sentido externos e internos, nos cinco elementos etc.
O quadro iniciatório ilustrado pela citação upaniṣádica dá igualmente
o tom substantivo do “Cara de Bronze”. Os requisitos necessários para
a mudança radical de perspectiva sobre a natureza das coisas do mundo
encontram-se presentes, integralmente, no protagonista Segisberto, um
rico e bem-sucedido fazendeiro. Depois de uma vida de prazeres e sofri-
mentos, marcada pelos anseios egóicos próprios de um agente interes-
sado nos “relatos da campeação, do revirado da lida: as querências das
vacas parideiras, o crescer das roças, as profecias do tempo, as caças e a
vinda das onças, e todos os semoventes, os gados e pastos” (Rosa 1976,
p. 100), Segisberto, envelhecido, decidiu “tirar a cabeça para fora do doi-
do rojão das coisas proveitosas” (Rosa 1976, p. 105) e adotar, nos moldes
de Satyakāma, uma atitude de renunciante (brahmacārin/sannyāsin) às as-
pirações apropriativas, ao apego aos objetos do mundo. Essa condição
diferenciada reflete-se, simbolicamente, na situação de clausura em seu
próprio quarto e na percepção dos vaqueiros de que ele era o “homem
mais sozinho neste mundo...” (Rosa 1976, p. 79). Entretanto, ao invés
de se apartar do mundo, Segisberto desenvolveu uma vontade férrea de
empreender, aqui e agora, nesta vida, uma investigação dos mistérios
‘saturninos’ – um dos nomes de Segisberto –, um esclarecimento sobre
a real natureza desse mesmo mundo, uma busca do “quem das coisas” e
do “porquê de tudo nesta vida”. Transcurso da ignorância à sabedoria,
a expansão almejada por Segisberto de seu horizonte cognitivo assu-
miu a forma de um exercício de “imaginamentos de sentimento” (Rosa
1976, p. 86) e de uma inquirição gnóstica visando “ver o que no comum
não se vê” e “ficar sabendo o tudo e o miúdo” (Rosa 1976, p. 101). No
testemunho dos vaqueiros, a condição inquisitiva de Segisberto possuía
todas as marcas de um vitalismo atípico na velhice: “ele parece que está
pensando e vivendo mais do que todos” (Rosa 1976, p. 88).
A personalidade de Grivo é marcada por uma bissemia de sentido. De
um lado, ele é a personificação da energia dinâmica do próprio Segisberto,
filósofo-buscador. Com efeito, é sob as ordens deste último, e após um
processo de seleção criteriosa, que Grivo empreende a viagem redentora
de Segisberto. A viagem de Grivo constituiria, portanto, a contraparte
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Conclusão
Fundamento constitutivo de todos os entes, de todas as coisas, a
Palavra – Brahman dos Upaniṣads (vāc) ou, alternativamente, a Palavra
Poética de Guimarães Rosa não é ela mesma um ente, uma coisa. Ela
precede, ontologicamente, sua própria manifestação enquanto entes e
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Referências bibliográficas
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van Pillai). Delhi: Motilal Banarsidass, 1971.
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Advaita Vedānta”. The Journal of Hindu Studies (Oxford University), V.8, p. 65-96,
2015.
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