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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 02

CAPÍTULO l. DOS MÉTODOS Á PSICOGÊNESE: MUDANÇAS EM FUNDAMENTOS DA


EDUCAÇÃO 16

1.1 A metodização do ensino em síntese. 16

1.2 A metodização do ensino da leitura e da escrita : sintéticos, analíticos e mistos 18

1.3 O sujeito e o processo de aprendizagem 21

1.4 A desmetodização do ensino: a chegada da psicogênese da língua escrita.24

CAPÍTULO ll. SUBSÍDIOS PARA A ORGANIZAÇÃO DA PRÁTICA DOCENTE 30

2.1 A complexa missão do professor construtivista 30

2.2 Modalidades organizativas da atuação do professor construtivista 31

2.3 O trabalho com projetos na alfabetização inicial 32

2.4 O exercício da oralidade 34

2.5 Linguagem falada: situação conversacional 35

2.6 Linguagem escrita: A relação dos interlocutores 37

CAPÍTULO lll. PRODUÇÃO TEXTUAL NA ALFABETIZAÇÃO INICIAL: A IMPORTÂNCIA DE


ESCREVER PARA OS ALUNOS 40

3.1Ditado ao professor : por quê escrever para os alunos? 40

3.2 Componentes da produção textual 43

3.6 A importância da escrita coletiva 48

3.7 Quanto à reescrita de textos de memória 49

3.8 Escrita com sentido e transposição didática 50


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INTRODUÇÃO

Ao conhecer a vida e obra de Emília Ferreiro 1, houve um despertar pelo universo da


“Psicogênese da língua escrita”, livro publicado no ano de 1985, que trata especificamente de um
novo olhar para as práticas de alfabetização à luz da teoria psicogenética 2, juntamente com a
colaboração da também pesquisadora Ana Teberosky.

Por meio dessa obra, fruto da fusão de estudos psicolingüísticos contemporâneos 3 e da


teoria psicogenética de Jean Piaget, Ferreiro e Teberosky nortearão este livro, que tem como
objetivo estudar o processo de aquisição da leitura e da escrita durante a alfabetização inicial.

A ação do professor durante a alfabetização inicial diz respeito a um fazer pedagógico que
objetiva propor a aquisição da leitura e da escrita de forma processual,respeitosa e produtiva. Para
realizar um estudo sobre os fundamentos que possibilitam esse processo, faz-se necessário
compreender o objetivo do proposto pelas autoras, quais as possíveis intervenções e qual a sua
relevância para o processo de aprendizagem.

Durante muito tempo acreditou-se que, como pré-requisito fundamental para se produzir um
texto, seria necessário o domínio do código gráfico de escrita- ler e escrever convencionalmente.
Com a chegada da psicogênese da língua escrita essa perspectiva mudou, e como ponto de partida
para a realização deste estudo se faz necessário observar essas e outras mudanças que ocorreram
na educação. Uma dessas grandes mudanças encontra-se no fato de que as práticas pedagógicas
nem sempre conceberam a criança ativa no seu processo de aprendizagem (MORTATTI, 2000).
Tais práticas, ensinadas com respectivos métodos de alfabetização, preocupavam-se em
sistematizar o fazer docente de modo a tornar os conteúdos tecnicamente ensináveis, não
considerando os saberes do sujeito.

1
Psicolinguísta argentina , Doutora pela Universidade de Genebra, orientadora e colaboradora de Jean Piaget (1896
– 1980)
2
Teoria que apresenta a construção do conhecimento e as mudanças qualitativas que passa a criança, desde o
estágio inicial (sensório-motor) até o pensamento lógico, na adolescência (PIAGET, 1971).
3
K.Goodman, 1991; N. Chomsky, 2002 e outros.
4

Chamados de sintéticos, analíticos e/ou mistos, os métodos de alfabetização difundiram-se


no séc. XX e a disputa entre a melhor maneira de ensinar de um ou outro método colocava a criança
em posição de mera receptora dos conteúdos ensinados. Supunha-se que, como uma folha em
branco, as crianças entravam na escola “prontas” para aprender por meio de fórmulas e
metodologias sistemáticas.

As práticas não reconheciam questões de subjetividade, como a individualidade e o


pensamento da criança (FERREIRO, TEBEROSKY, 1985). Dessa forma, a pertinência da utilização
da teoria psicogenética de Piaget pelas autoras da psicogênese da língua escrita fundamenta-se
por um novo olhar da criança: um estudo dos processos do seu desenvolvimento, reconhecendo
características biológicas, bem como informações construídas que antecedem o ensino escolar. Ao
se referirem ao processo de aprendizagem, afirmam que:

Nossa atual visão do processo é radicalmente diferente: no lugar de uma criança que espera
passivamente o reforço externo de uma resposta produzida pouco menos que ao acaso,
aparece uma criança que procura ativamente compreendê-la, formula hipóteses, busca
regularidades, coloca à prova suas antecipações e cria sua própria gramática (que não é
simples cópia deformada do modelo adulto mas sim criação original)
(FERREIRO;TEBEROSKY, 1985, p.22).

Ferreiro e Teberosky (1985) ao reconhecerem a concepção de criança trazida por Piaget,


deixam claro em sua obra, que trariam sim um novo olhar para as práticas alfabetizadoras, porém
sem propor um novo método, mas uma desmetodização, algo que vai além do pensar em “como
ensinar”.

Eis então o ponto crucial da pesquisa psicogenética: “[...] tentar uma explicação dos
processos e das formas mediante as quais a criança chega a aprender a ler e escrever” (p.15).Ou
seja, Ferreiro e Teberosky intencionaram explicar a maneira como a criança aprende, algo que é
certamente ainda mais importante do que o próprio instrumento utilizado para o seu aprendizado.
Não que na prática aconteça de maneira desconexa, mas sim complementar, onde a criança é, a
partir de então, o início do planejamento dessas práticas.

Motivada por esse estudo que concebe o modo como o sujeito aprende como ponto de
partida para a atuação docente, em especial, questões relacionadas à aquisição do sistema de
escrita destaca três pontos importantes para o favorecimento do processo de alfabetização : 1.a
criança – maneira como entende-se que ela aprende; 2. a prática pedagógica - uma das condições
para potencializar esse processo; 3. os professores, pois a maneira como se pensa a criança e
como se acredita que ela aprende, fundamenta diretamente a prática docente.
5

São estes três pontos que delimitarão os caminhos percorridos: a criança como construtora
de seu conhecimento, as práticas como sendo instrumento a serviço da aprendizagem e o
professor como mediador que potencializa esse processo.

Trazer à tona questões relacionadas ao ensino da linguagem e da escrita durante a


alfabetização inicial, refere-se a um desejo de difundir a importância de se trabalhar a produção de
texto com crianças pequenas, dentre outras propostas.

A fim de compor este e-book, realizou-se um estudo sobre as mudanças que aconteceram
na educação (MORTATTI, 2000) até a chegada da psicogênese da língua escrita (FERREIRO,
TEBEROSKY, 1985), a fim de compreender as concepções de criança e aprendizagem subjacentes
aos métodos de alfabetização, até culminar em estudos psicogenéticos. Com esta fundamentação
foi possível dar início a um estudo sobre os conteúdos relacionados ao ensino da linguagem escrita
na escola (PRETI, 2003), utilizando a pedagogia de projetos como estratégia utilizada para o ensino
destas práticas, de modo significativo e similar às práticas sociais (PRADO, 2003).

Sendo assim, dividirei em capítulos:


No primeiro capítulo – Dos métodos à psicogênese: mudanças em fundamentos da
educação- são relacionadas mudanças que aconteceram na educação no que diz respeito às
práticas de alfabetização e concepção de criança, até a divulgação da psicogênese da língua
escrita (1985).
No segundo capítulo- Subsídios para a organização da prática docente – é destacado o
trabalho com projetos no desenvolvimento da linguagem oral e da linguagem escrita na escola.
No terceiro capítulo – Produção Textual na Alfabetização Inicial – Trataremos sobre as
práticas de produção textual com crianças que ainda não dominam o código.
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CAPÍTULO l. DOS MÉTODOS Á PSICOGÊNESE: MUDANÇAS EM FUNDAMENTOS DA


EDUCAÇÃO

O presente capítulo apresenta um breve histórico dos métodos de alfabetização do final do


século XlX ao século XX (MORTATTI, 2000), destacando as mudanças nos fundamentos da
educação no que diz respeito às práticas alfabetizadoras. Destaca também a importância da teoria
piagetiana como marco na evolução de uma concepção de aprendizagem e, por fim, a chegada da
psicogênese da língua escrita de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, suas contribuições para as
propostas de desenvolvimento da aquisição da linguagem e da escrita.

1.1 A metodização do ensino em síntese.

Para compreender o contexto em que a psicogênese se firmou é necessário compreender o


que se construiu ao longo do tempo, as mudanças na história dos métodos de ensino bem como
as concepções que se mantinham firmes no propósito de compreender esse processo. Mortatti em
seu livro “Os sentidos da alfabetização”(2000) analisa o período de 1876 até meados de 1994,
relacionando os principais métodos que permearam o ensino da leitura e da escrita. A autora
ressalta que esse período não define com exatidão o início e o fim deste movimento complexo, mas
serve para situar temporalmente os acontecimentos.
Acompanhar esse período traz o cenário construído com as mudanças em fundamentos que
permearam as noções sobre como se deve ensinar e como a criança aprende, frente a uma luta
entre antigas e novas concepções metodológicas impulsionadas pelo avanço da ciência, mudanças
na sociedade e na cultura, assim como desejo de mudança na educação.
O objetivo dessa reflexão histórica consiste em pontuar relações entre as diferentes
concepções de aprendizagem que se firmaram ao longo das décadas, até a chegada de pesquisas
oriundas do desenvolvimento psicogenético e de estudos da psicolinguística contemporânea.
Pesquisas tais, que nos dão subsídios para trabalhar com textos na alfabetização inicial.

Dada então, a importância da abordagem desta linha cronológica com foco em como se
pensava e como se pensa hoje o ensino da leitura e da escrita, constrói-se coesão no estudo das
práticas pedagógicas que surgiram ao longo das décadas e, que até os dias de hoje permeiam
discussões e reflexões psicológicas, pedagógicas, sociológicas e políticas.

No final do século XIX, com a proclamação da República, a educação passou a tomar lugar
de destaque no país. A escola consolidou-se como instituição cujo principal objetivo era o preparo
das novas gerações, sob o dever de contribuir para os interesses do Estado antes Império, agora
República, pautado pela busca da tão sonhada e utópica “sociedade moderna”, ressalta Mortatti
(2000, p.25):
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Desse ponto de vista, os processos de ensinar e aprender a leitura e escrita na fase inicial da
escolarização de crianças se apresenta como um momento de passagem para um mundo
novo – para o Estado e para o cidadão - : o mundo público da cultura letrada, que instaura
novas formas de relação dos sujeitos entre si, com a natureza, com a história e com o próprio
Estado; um mundo novo que instaura, enfim, novos modos e conteúdos de pensar, sentir,
querer e agir.

O país passava por mudanças importantes em sua política e na educação não seria
diferente.
Saber ler e escrever sob esse olhar dos ideais republicanos, frente a um passado onde a
leitura e a escrita eram ensinadas por meio de uma “transmissão assistemática” para poucos,
privado ao lar ou nas poucas “escolas” do Império, passava agora a ser um direito dentro de uma
sociedade onde se buscava o saber e o esclarecimento.
Segundo Ferreiro e Teberosky (1985), os princípios fundantes de uma sociedade não
carregam somente profundas concepções psicológicas, mas também influenciam as concepções
metodológicas de ensino e foi a partir dessas crenças que se fundamentaram os métodos vigentes
na época, os considerados “tradicionais”(p.19).
Mortatti (2000) explica que a ideologia presente nas políticas republicanas no final do século
XlX, orientava as políticas educacionais que concebiam o ensino da leitura e da escrita como algo
tecnicamente ensinável. Ensinar o quê, para quê e de que modo, são e sempre foram norteados
por interesses implícitos –o que ocorre até os dias de hoje- utilizando a escola como o grande e,
porque não chamarmos a principal instituição de massificação em prol do Estado vigente, em prol
da afirmação de seus interesses políticos e de seus objetivos.
Acredita-se, que a maneira como pensa uma sociedade diz muito sobre as práticas
estabelecidas dentro e fora da escola reforçam Ferreiro e Teberosky (1985). Quanto aos métodos,
as autoras os dividem em três momentos: os grupos de marcha sintética, de marcha analítica e os
chamados “mistos”. Cada um em seu momento histórico ocupou lugar não somente do “fazer
pedagógico” mas, em cada ato trazia a concepção de aprendizagem dominante na sociedade.
Estes e outros aspectos do passado se mantêm presentes até os dias de hoje, e vestígios
desses métodos podem ser encontrados ainda em vigor em nossas escolas atuais (MORTATTI,
2000 p.17).

1.2 A metodização do ensino da leitura e da escrita : sintéticos, analíticos e mistos


Foi com o objetivo de mudar este cenário que métodos como os analíticos, sintéticos e mistos
foram surgindo apontando novos modos de ensinar, contrapostos à visão tradicional de ensino
estabelecido até o fim do século XIX (MORTATTI, 2000).
O primeiro momento dessa metodização do ensino delimitado por Mortatti, traz uma disputa
entre partidários dos métodos tradicionais com um novo olhar trazido de Portugal. Tratava-se da
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chegada das cartilhas escritas pelo português João de Deus (Cartilha Maternal ou Arte da Leitura4),
pouco antes de serem difundidas em todo o território brasileiro por Antonio Silva Jardim, professor
de português da Escola Normal de São Paulo (MORTATTI, p.25).
Nelas, supunha-se que ler era decodificar e escrever codificar, de uma maneira indissociável
onde a escrita era uma transcrição da fala. Desse modo, o principal objeto de estudo dessas
cartilhas era a aquisição do domínio do código e, somente após esse domínio, eram trabalhadas
noções consideradas “mais complexas”. Ferreiro e Teberosky também as comentaram: “Na
aprendizagem, está em primeiro lugar a mecânica de leitura (decifrado do texto) que,
posteriormente, dará lugar à leitura “inteligente” (compreensão do texto lido), culminando com uma
leitura expressiva, onde se junta a entonação” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985 p.19).
Essas noções consideradas mais complexas partem desde a interpretação de um texto, até
sua produção. Trabalhar a produção textual com crianças que ainda não dominam o código era
uma proposta não valorizada, talvez nem imaginada. Nos métodos de marcha sintética, por
exemplo, pontuavam-se questões de soletração, que dizem respeito ao nome das letras. No
método fônico, o som correspondente a essas letras. Na silabação, os sons formados pela junção
silábica (ou família silábica). Posteriormente, a leitura era composta pela junção desses fatores
previamente aprendidos. Sem dominá-los, não era possível avançar para o próximo passo.
Defensores do “método João de Deus”, contrapostos pelos defensores dos métodos
sintéticos, estabeleceram então debates no âmbito educacional que perduraram durante alguns
anos, até que um novo método foi colocado em jogo. A partir de 1890, em São Paulo, com o intuito
de servir de modelo para o resto do país, mudanças foram implementadas e uma reforma
educacional era esperada com grandes resultados, a partir da adoção do método analítico
(FERREIRO;TEBEROSKY, 1985). De cunho obrigatório, o método era utilizado em todo o estado,
trazendo um novo olhar sobre a criança:
Diferentemente dos métodos de marcha sintética até então utilizados, o método analítico,
sobre forte influência da pedagogia norte-americana, baseava-se em princípios didáticos
derivados de uma nova concepção – de caráter biopsicofisiológico- da criança, cuja forma de
apreensão do mundo era entendida como sincrética (MORTATTI, 2006 p.7).

Essa aprendizagem caracterizada como sincrética, traz um olhar para o desenvolvimento


das fases do pensamento infantil. De um modo diferente dos adultos, as crianças influenciam e são
influenciados pelo meio que as cerca e é por meio dessa interação que, de fato, a aprendizagem
ocorre. Esse sincretismo infantil é apresentado por Henri Wallon5 (1879) e foi um marco para a
psicologia interacionista (GALVÃO, 1996).

4
Publicada em 1876, a cartilha servia como base para o ensino da leitura e da escrita.Propulsora de inúmeras outras publicações
semelhantes, a Cartilha Maternal é uma das obras mais reimpressas em Portugal.
5
Médico, psicólogo e filósofo francês. Sua teoria trata do desenvolvimento intelectual reconhecendo corpo e emoções da
criança.
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Com relação à alfabetização, embora também se preocupasse em partir de um todo, para


depois analisar os fonemas, o método analítico contrapunha as antigas concepções no que diz
respeito às práticas de alfabetização, apresentando em suas cartilhas de marcha analítica – a
palavração, a setenciação ou a “historieta” (p.26).
A partir dos anos 1920, passou-se a se relativizar a importância de um método alfabetizador,
visto que nessa disputa travada no âmbito educacional, não trazia mudanças significativas quanto
aos resultados esperados (FERREIRO, TEBEROSKY, 1985).
Esse momento teve início quando Lourenço Filho, em seu livro “Testes ABC6", de 1934,
apresenta sua pesquisa mediante testes de maturação, condição para ele, necessária ao
aprendizado da leitura e da escrita.
Com essa obra, abre-se um leque amplo em questões tanto práticas quando conceituais no
que diz respeito a aprendizagem da lecto-escrita no início da escolarização. Agora, concebia-se o
aprendiz como um sujeito ativo e, porque não dizer, em parte, responsável por esse processo. Ao
possibilitar a classificação dos alfabetizandos, Lourenço Filho propôs uma “alfabetização sob
medida”( MORTATTI, 2000).
Com o surgimento desse olhar para a criança que aprende (mediante esse olhar para
questões de maturidade para a aprendizagem), não se considerava relevante somente o modo
como ensinar, mas o sujeito que aprende. Essa abordagem apoiava-se em teorias psicológicas que
reconheciam aptidões e/ou habilidades básicas para a aquisição da linguagem e da escrita,
discutindo questões relacionadas a uma “maturidade para a lecto-escrita”. Trata-se de questões de
desenvolvimento da lateralização espacial, questões visuais e auditivas, questões emocionais, boa
articulação, dentre outras questões, que certamente favorecem ou não o processo de
aprendizagem da linguagem e da escrita. Ou seja, se uma criança se desenvolvia plenamente
nestas questões, certamente se sairia bem no processo de aquisição da lecto-escrita, decorrente
destes fatores (MORTTATI, 2000).
Ferreiro e Teberosky ( 1985, p.26) argumentam ser discutível que o bom desempenho na
aprendizagem da língua e da escrita esteja somente ligado a certas aptidões e habilidades. Não
deixam de considerá-las favorecedoras do processo, apenas discutem se somente elas são
necessárias para que ele de fato ocorra.
As autoras, com a publicação da “psicogênese da língua escrita” em 1985, trazem a
chamada “revolução conceitual”, mais conhecida como Teoria Construtivista: o foco agora estava
no processo de aprendizagem da criança. Processo este, entendido agora como o caminho que a
criança percorre desde o início de sua aquisição da linguagem oral, até a compreensão do sistema
gráfico convencional (até que esta aprenda de fato a ler e escrever).

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Testes destinados à verificação da maturidade necessária à aprendizagem da leitura e escrita.
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1.3 O sujeito e o processo de aprendizagem


Nas pesquisas realizadas no âmbito da língua escrita bem como de sua aprendizagem,
encontram-se basicamente dois tipos de trabalhos: “...os dedicados a difundir tal ou qual
metodologia como sendo a solução para todos os problemas, e os trabalhos dedicados a
estabelecer a lista das capacidades ou aptidões necessárias envolvidas nessa aprendizagem”
(FERREIRO; TEBEROSKY,1985 p.25) A psicogênese da língua escrita não se situa em nenhum
desses eixos.
O sujeito que ela procura refletir é um sujeito:
[...] cognoscente, o sujeito que busca adquirir conhecimento, o sujeito que a teoria de Piaget nos
ajudou a descobrir. O que isto quer dizer? O sujeito que conhecemos através da teoria de
Piaget é um sujeito que procura ativamente compreender o mundo que o rodeia, e trata de
resolver as interrogações que este mundo provoca.Não é um sujeito que espera que alguém
que possui um conhecimento o transmita a ele, por um ato de benevolência, é um sujeito que
aprende basicamente através de suas próprias ações sobre os objetos do mundo, e que
constrói suas próprias ações sobre os objetos do mundo, e que constrói suas próprias
categorias de pensamento ao mesmo tempo que organiza seu mundo
(FERREIRO,TEBEROSKY,1985 p.26).

Ferreiro e Teberosky trazem esse sujeito cognoscente para o sujeito que está em processo
de alfabetização. A teoria de Piaget não tratou de estudar os processos pelos quais a criança chega
a compreender de fato a linguagem e a escrita de maneira convencional (sua alfabetização), porém
as autoras se apoiaram em sua pesquisa psicogenética para compreender o processo de aquisição
da leitura e da escrita pela criança.
Se a criança se desenvolve por meio de um processo, por que com relação a escrita seria
diferente? Neste questão, encontra-se o mais relevante ponto comum nas duas concepções: a
aprendizagem da criança.
Ao reconhecer a aprendizagem da escrita também como um processo contínuo e carregado
de erros construtivos, não se reconhece somente uma relação com a teoria piagetiana, mas o fator
que impulsiona uma mudança na educação é exatamente uma inovação no que diz respeito às
práticas pedagógicas, como reforçam as autoras: “Tudo muda se supomos que o sujeito que vai
abordar a escrita já possui um notável conhecimento de sua língua materna, ou se supomos que
não o possui” (1985, p.23). Afirmam também, que é no mínimo estranho pensar que a criança só
terá noções da escrita a partir do momento que alguém lhe ensinar, seja em sua casa ou no
ambiente escolar. É evidente que, em um mundo letrado, uma criança ativa e questionadora faz
relação de suas ideias com o mundo que a cerca, pois é nele que há troca de experiências,
observações, indagações e crenças refutadas.
Como citam as autoras “...não se trata de transmitir um conhecimento que o sujeito não teria
fora desse ato de transmissão, mas sim de fazer-lhe cobrar a consciência de um conhecimento que
o sujeito possui, porém sem ser consciente de possuí-lo” ( 1985, p.24)
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É por meio da vivência em nosso mundo “escrito”, que a criança, vista como ativa, elabora,
ainda que de modo inadequado, hipóteses sobre o “mundo dos adultos”.
Pretendemos demonstrar que a aprendizagem da leitura,entendida como o questionamento
a respeito da natureza, função e valor desse objeto cultural que é a escrita, inicia-se muito
antes do que a escola imagina,transcorrendo por insuspeitados caminhos.Que, além dos
métodos, dos manuais, dos recursos didáticos, existe um sujeito que busca aquisição de
conhecimento, que se propõe problemas e trata de solucioná-los, seguindo sua própria
metodologia (FERREIRO, TEBERPSKY, 1985 p.11).

A teoria de Piaget traz também outro ponto importante para a psicogênese: a aprendizagem
e o desenvolvimento vistos como um processo. Processo este com dois princípios básicos, a
assimilação e a acomodação.
Um dos princípios básicos dessa teoria é que os estímulos não atuam diretamente, mas sim
que são transformados pelos sistemas de assimilação do sujeito (seus “esquemas de
assimilação”): neste ato de transformação o sujeito interpreta o estímulo(o objeto, em termos
gerais),e é somente em conseqüência dessa interpretação que a conduta do sujeito se faz
compreensível (FERREIRO, 1985 p.27).

Dessa forma, são considerados também importantes fatores das relações com o meio, de
modo a interferir também nos conhecimentos já adquiridos por suas próprias indagações. Piaget
concebe aprendizagem, como um processo de obtenção de conhecimento por meio da própria
atividade do sujeito.
Este sujeito ativo e consciente aprende mediante seus esquemas assimiladores, que tratarão
de interpretar a informação recebida. As autoras da psicogênese, porém, diferenciam dois pontos
da teoria piagetiana, e que de forma alguma devem ser olhadas de maneira distintas, mas sim
complementares: de um lado, a visão de uma teoria limitada aos processos de aquisição do
conhecimento lógico-matemático, e em contrapartida, uma teoria voltada para a interpretação geral
dos processos de aquisição do conhecimento.
Um progresso no conhecimento não será obtido senão através de um conflito cognitivo, isto
é, quando a presença de um objeto (no sentido amplo de objeto de conhecimento) não
assimilável force o sujeito a modificar seus esquemas assimiladores, ou seja, a realizar um
esforço de acomodação que tenda a incorporar o que resultava inassimilável ( e que constitui,
tecnicamente, uma perturbação) (FERREIRO,TEBEROSKY,1985 p.31)

Na teoria piagetiana, o conhecimento objetivo, portanto, não é algo como um dado inicial,
mas sim fruto de um processo de aquisição. Neste processo, como vimos, o conflito cognitivo
atuando sobre os esquemas assimiladores atua de forma a refutar ou validar hipóteses e crenças
trazidas previamente. Compreende-se então que essas reestruturações são ações
importantíssimas para este processo. Tem-se então a noção de erro construtivo trazido nessa
teoria.
Um exemplo de erros construtivos, são as indagações acerca a língua falada, que dizem
muito sobre as hipóteses que as crianças levantam. Os erros “São regularizados porque a criança
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busca na língua uma regularidade e uma coerência que faria dela um sistema mais lógico do que
na verdade é.” (FERREIRO,TEBEROSKY,1985,p.22). Ou seja, esse erro leva a uma assimilação,
e para Piaget, esses erros então, constituem pré-requisitos necessários para a aprendizagem de
fato: a “aprendizagem como uma aquisição em função da experiência, mas se desenvolvendo no
tempo, quer dizer mediata e não imediata como a percepção ou a compreensão instantânea”
(PIAGET,1959 p.53).

1.4 A desmetodização do ensino: a chegada da psicogênese da língua escrita.


Chamada de “construtivista”, a concepção apresentada por Ferreiro e Teberosky não foi
criada com o intuito de ser um novo método, mas sim gerar uma reflexão sobre o pensamento do
sujeito sobre o objeto de estudo.
As investigações que resultaram na Psicogênese da Língua Escrita (1985), fundamentalmente,
abordaram a aquisição da leitura e da escrita, partindo de dois pilares conceituais: a psicogenética
e a psicolingüística contemporânea. Trata-se de uma pesquisa realizada na Argentina,
especificamente em Buenos Aires, nos anos de 1974 a 1976.
A pesquisa iniciou-se ainda no âmbito universitário, quando as autoras estudaram juntas na
Universidade de Buenos Aires. A partir de então, caracterizou-se por ser uma pesquisa em sua
essência experimental, em escolas primárias e jardins de infância, observando crianças de 4 a 6
anos. Essencialmente experimental, embora seus pilares conceituais muito contribuísse para que
se formasse essa nova concepção acerca do processo de aprendizagem, Ferreiro e Teberosky
abordaram um campo ainda inexplorado, pois até mesmo Jean Piaget (principal epstemólogo e
psicólogo que fundamentou a pesquisa), em sua pesquisa não tratou do processo de aquisição da
lecto-escrita. Em outras palavras, a aprendizagem da leitura e da escrita fundamentadas na
psicogenética piagetiana, não havia sido colocada em questão até o momento.
Dentre os pontos mais importantes da obra, a Psicogênese da Língua Escrita de um modo geral,
apresentou uma visão da criança concebida por Piaget, com enfoque em seu desenvolvimento
escolar no campo da alfabetização, reconhecendo seus processos cognitivos, compreendendo
suas hipóteses e descobrindo especificamente os conhecimentos que a criança possui antes de
iniciar sua vida escolar (p.32).
Este sujeito (a criança), tal qual as autoras abordam, traz consigo saberes sobre o mundo escrito
muito mais complexos e bem fundamentados em suas próprias crenças e hipóteses sobre como
de fato esse código “funciona” no mundo dos adultos, “... trata-se de um sujeito que busca a
aquisição do conhecimento, e não simplesmente de um sujeito disposto ou mal-disposto a adquirir
uma técnica particular” (1985, p.11).
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As autoras interrogaram e observaram crianças em processo de alfabetização em seu ambiente


escolar, em propostas que colocassem em jogo questões e ideias trazidas por elas sobre leitura e
escrita. Ideias estas, construídas a esse respeito da leitura e da escrita, propondo relações entre
práticas escolares (aquelas próprias do ambiente de sala de aula) com as práticas sociais.
A metodologia utilizada, também oriunda das pesquisas de Piaget, concebida pelo nome de
método clínico ou exploração crítica, permite a observação das reais hipóteses das crianças
enquanto pensamento infantil e valoriza suas produções espontâneas.
O método piagetiano de exploração das noções infantis através de um diálogo, durante o
qual o experimentador elabora hipóteses sobre as razões do pensamento da criança, provoca
perguntas e cria situações para testar, no próprio momento, suas hipóteses, resulta ser –
neste campo como em muitos outros - o mais frutífero método. Este método permite distinguir
as ideias básicas sustentadas por uma grande quantidade de crianças, das reações imediatas
da criança interrogada que pensa ser necessário dizer ou fazer algo, simplesmente para
responder. Mais ainda, este método permite ao experimentador que sabe usá-lo com tanta
habilidade quanto as autoras deste livro, ver a maneira como se modificam as noções da
criança até chegar a adquirir, reconstituindo-o, um conceito que a humanidade custou tanto
a elaborar (FERREIRO,TEBEROSKY,1985 p.14).

Os resultados dessa pesquisa compõem o livro publicado em 1985, que apresenta e detalha
a maneira como as investigações se desenvolveram, e mediante seus produtos, os apontamentos
realizados pelas próprias pesquisadoras.
Para demarcar a problemática e o cenário construído historicamente as autoras trouxeram
um levantamento da situação educacional em toda a América Latina, abordando questões como o
fracasso escolar e a história dos métodos de ensino.
Já em um de seus capítulos onde apresentam resultados das pesquisas realizadas,
destacam “Os aspectos formais do grafismo e sua interpretação” (p.39), trazendo relatos de
crianças ainda em processo de alfabetização, postas à atividade de leitura. Neste capítulo, já se
evidencia claramente concepções psicogenéticas onde as autoras em suas intervenções, valorizam
os argumentos e as hipóteses de cada criança.De um modo geral, estes relatos foram transcritos
como exemplos das concepções que as autoras objetivaram propor.
Os argumentos das crianças trouxeram uma questão pertinente: quais características
formais os textos devem conter para que possam ser lidos, mesmo por crianças que ainda não
sabem ler? Os resultados alcançados encontram-se resumidos no Quadro 1.

Quadro 1 : Características de um texto :


Critério de Hipótese
classificação
-Há um número de caracteres necessários para que algo seja legível (a maioria
Quantidade de caracteres
das crianças interrogadas define um número mínimo necessário de 3 a 4
caracteres)
- artigos (el e la –o,a em português) por conterem 2 caracteres são considerados
ilegíveis.
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- Há uma variedade nos caracteres que deve aparecer para que um texto “sirva
Variedade de caracteres
para ler”
- Palavras com caracteres iguais como “MMMMM”e “AAAAAA” exemplificados
são considerados ilegíveis por conterem somente um caractere

- Seleção de um ou mais caracteres que se faz relação com algo já conhecido


Utilização de índices
pela criança, e que ela considera legível.( como a letra do seu nome, ou de sua
(referenciais) mãe)

- classificação de função entre caracteres de imprensa e cursivos (embora seja


Distinção entre caracteres
uma minoria, algumas crianças distinguem os dois tipos de escrita como legível
cursivos e de imprensa e não legível respectivamente)

Organização da autora. Fonte: FERREIRO, TEBEROSKY,1985, p.36 a 46.

As características selecionadas pelas crianças como inerentes ao ato de ler trazem uma
reflexão também a respeito da escrita. Essas mesmas crianças, que antes de compreenderem o
código e dominarem a leitura, inferem, selecionam, utilizam-se de referências para a tentativa de
uma leitura (ler sem saber ler), utilizam-se de “mecanismos” parecidos para tentar escrever
também, sem que se saiba. Suas hipóteses embora não as façam ler e escrever convencionalmente
de maneira instantânea, são pontos de partida para progredir nesse processo.
Essas hipóteses que as crianças constroem com relação à escrita foram analisadas
mediante acompanhamento e observação das crianças escrevendo de maneira espontânea, onde
as autoras puderam descobrir muito sobre o pensamento infantil durante o processo de aquisição
do sistema.
Para Ferreiro e Teberosky (1985), toda criança constrói níveis estruturais da linguagem até
que domine o sistema alfabético.

Quadro 2 : Níveis do processo de aquisição da escrita.


Níveis Características gerais
Quanto à grafia Quanto às hipóteses

Pré- Silábico - Ainda não se reconhece que a


Reprodução de traços típicos da escrita escrita pode representar a fala.
considerada a forma básica (seja escrita
de imprensa ou cursiva)

1º momento :
- Se estabelece relação do
Escrita indiferenciada
“Realismo Nominal” ou “Correspondência objeto que se escreve com sua
(Ex: presença de
Figurativa” quantidade de caracteres. (Ex:
traçados, letras e
elefante é grafado com mais
pseudoletras,
letras que formiga)
números e desenhos)
- A escrita de uma mesma
2º momento : Não há estabilidade / permanência. palavra se apresenta de
Escrita diferenciada. maneiras diferentes.
15

(Ex: presença - A escrita de uma palavra traz


somente de letras) Critério de diferenciação Intrafigural variedade de caracteres e há um
reconhecimento da estabilidade
da escrita.
- A escrita de uma palavra traz
Critério de diferenciação Interfigural variedade de caracteres, porém,
não há reconhecimento da
estabilidade da escrita.

- Para se ler algo diferente, deve


Atribuição de significados diferentes haver uma diferença
Silábico sem valor significativa nos caracteres.
sonoro
convencional - Relação entre a fala e a escrita;
Escrita silábica - Escrita de um caractere para
cada sílaba.

- Relação entre a fala e a escrita;


Fonetização -Seleção de fonemas que
Silábico com valor
correspondam a fala
sonoro - Prevalência de vogais ou
consoantes mais sonoras. ( Ex :
convencional
“K”, “D”, “P”, etc...)

- Início de acréscimos de
Alternância na escrita caracteres na composição das
Silábico Alfabético
(Transição entre os níveis: silábico com sílabas
valor sonoro convencional e alfabético)

-Reconhecimento de a junção
Maior exigência na quantidade de de duas letras forma o som de
caracteres. uma sílaba.

- Compreensão de que cada um


Escrita convencional dos caracteres da escrita
Alfabética
corresponde a valores sonoros
menores que a sílaba.

Organização da autora. Fonte: FERREIRO, TEBEROSKY,1985, p.183 a 215.

Tais hipóteses se desenvolvem durante um processo, e são validadas e/ou refutadas em


diversos momentos em que as crianças são postas para pensar sobre o sistema de escrita. O fato
de se “encaixarem” em determinada hipótese não as torna estacionadas quanto ao que já sabem.
Ao professor cabe trabalhar pontos que vão de encontro ao que as crianças já conhecem para
poderem evoluir.
De um modo geral não se objetivou uma mudança educacional somente metodológica, mas,
em suma, conceitual. Não se objetivou também, a surgimento de um novo e mais eficaz método de
ensino, mas sim uma desmetodização do modo como se ensinava, ressalta Mortatti (2006) :
Deslocando o eixo das discussões dos métodos de ensino para o processo e aprendizagem
da criança (sujeito cognoscente), o construtivismo se apresenta não como um método novo,
mas como uma revolução “conceitual”, demandando, dentre outros aspectos, abandonarem-
se as teorias e práticas tradicionais, desmetodizar-se o processo de alfabetização e se
questionar a necessidade das cartilhas (p. 10).
16

Olhar a criança como ativa em seu processo de aquisição do conhecimento não interfere
somente em questões de pesquisas acadêmicas, mas influencia diretamente questões do fazer
pedagógico, porém não de maneira metodológica mas, acima, disso, conceitual, e que implica
atitude diferenciada frente ao aluno e sua aprendizagem.
O modo como se compreende o processo de desenvolvimento de uma criança se aplica a
todas as suas áreas do conhecimento, e, com a aprendizagem da leitura e da escrita não seria
diferente.
Este capítulo, portanto, destaca a importância de compreender as mudanças em
fundamentos da educação com foco nos métodos alfabetizadores, objetivando se aproximar da
relação existente entre a concepção que se tem do sujeito e o modo como ele aprende, com as
práticas realizadas dentro da escola. O que se concebe como sujeito interfere diretamente em como
se propõe práticas pedagógicas para que ele de fato compreenda o objeto de estudo em questão.
Este é o ponto: a psicogênese da língua escrita embora não proponha um novo método, sua
concepção da criança e consequentemente de aprendizagem mostram um caminho para uma
aprendizagem significativa. Caminho este, de valorização dos conhecimentos prévios e de suas
hipóteses, tornando possível dessa forma, trabalhar dentro da escola práticas de leitura e de escrita
em que a criança leia e escreva, mesmo que ainda não as domine no modo convencional do termo.
17

CAPÍTULO ll. SUBSÍDIOS PARA A ORGANIZAÇÃO DA PRÁTICA DOCENTE

Compreendendo as mudanças metodológicas pelas quais o processo de alfabetização


passou e tem passado até hoje, tais mudanças trouxeram entre outras questões, um novo olhar
para o modo como a criança aprende. Com base nessas afirmações, estima-se que a atuação
docente esteja atrelada diretamente ao processo de aprendizagem, com foco agora no modo como
a criança aprende para, mediante isso, planejar e organizar sua prática.
É fundamentado na psicogênese da língua escrita que o presente capítulo apresentará a
complexa missão do professor construtivista, frente à necessidade de garantir propostas
adequadas e favorecedoras dos conhecimentos que os alunos já possuem. Dentre elas, destacam-
se o trabalho com projetos didáticos e o papel do professor no planejamento das atividades que
envolvam o ensino da leitura e da escrita dentro da escola.
Trará também uma diferenciação entre a oralidade trabalhada no âmbito escolar em suas
duas faces: a linguagem escrita e a linguagem falada. Faz-se importante esta diferenciação para a
compreensão daquilo que se objetiva com a proposta de produção textual na alfabetização inicial.

2.1 A complexa missão do professor construtivista

Sabe-se quão complexas são as tarefas de um professor. Frente a uma visão construtivista
de ensino, fundamentada nos estudos de Ferreiro e Teberosky (1985), a atuação do professor
passou a ser vista como uma prática não somente de transmissão de conteúdos a serem
ensinados, mas também de desenvolvimento e planejamento a partir dos conhecimentos que seus
alunos já possuem. Essas práticas estão ligadas à questões de gestão do tempo e controle dos
conteúdos, bem como o planejamento e organização das atividades a serem trabalhadas.
Na perspectiva de um docente que planeja sua prática, compreender que seus alunos são
diferentes entre si e que as propostas a serem trabalhadas nem sempre atenderão a todos, são
desafios que devem motivar o seu trabalho e que precisa haver um planejamento que considere
que nem todos aprenderão ao mesmo tempo, tão pouco compreenderão os conteúdos da mesma
maneira (LERNER,2002).
Considerando também que cada sujeito tem suas potencialidades particulares, suas
necessidades também são únicas e precisam ser valorizadas. Ter suas necessidades valorizadas
diz respeito a um fazer pedagógico que leve em conta suas hipóteses, e se utilize destas para
propor o próximo ponto a ser avançado: um conteúdo que não esteja demasiadamente além para
não desmotivar, nem aquém para não gerar desinteresse. O professor então é levado a organizar-
se de modo a partir daquilo que seus alunos já sabem e, em um trabalho em conjunto- professor e
18

aluno- situá-lo como corresponsável pelo seu aprendizado, produtor de conhecimentos. Isso implica
em possibilitar ao aluno:
[...] uma margem de liberdade intelectual muito maior do que é habitual na escola, permitir-
lhe que exponha suas conceitualizações, criar condições para que ponha em jogo suas
próprias estratégias cognitivas e que corra o risco de se equivocar, sabendo que o erro será
considerado como natural e como ponto de partida de uma nova reflexão (LERNER, 2002,
p.112).

Assumir tantas tarefas complexas é algo que exige organização e trabalho, visto que ao
passo que o professor precisa dar conta de tantos aspectos, precisa também controlar a gestão do
tempo em sala frente à uma demanda a ser atendida no que diz respeito à expectativas da
instituição escolar, pais, coordenadores e dos próprios alunos.

2.2 Modalidades organizativas da atuação do professor construtivista

Como ferramenta a serviço dessas tarefas complexas, encontram-se as modalidades


organizativas7, que visam otimizar o tempo e as tarefas trabalhadas na escola. Bräkling (2008)
discorre acerca do tema e elege três principais modalidades para utilização do professor: os
projetos didáticos, as sequências de atividades e as atividades independentes.
Quanto aos projetos didáticos, a autora considera que são: “...atividades planejadas de
maneira sequenciada, orientadas para a elaboração de um produto final destinado a interlocutores
e lugares de circulação externos à sala de aula ou à escola” (p.2). Define as atividades
sequenciadas como “a sequência de atividades organizadas para trabalhar determinado conteúdo
[...] de modo a possibilitar ao sujeito uma apropriação efetiva dos aspectos do conhecimento
implicados, de maneira progressiva” (p.1). No que diz respeito às atividades independentes, são
divididas em dois tipos: ocasionais ou habituais. As atividades independentes ocasionais seriam
aquelas tratadas de maneira não regular, segundo a autora, e são utilizadas para dar conta de
determinado conteúdo eventualmente considerado como necessário. Já as habituais e ou
permanentes, Lerner (2002) as define como atividades que “...se reiteram de forma sistemática e
previsível [...] e oferecem a oportunidade de interagir intensamente com um gênero determinado”(p.
89). Ou seja, são propostas que estão à serviço de algum conteúdo específico e que acontecem
na escola de modo sistematizado.
Nesta perspectiva de utilização de modalidades organizativas, durante a alfabetização
inicial, tais práticas estão centradas no objetivo de ensino de práticas de linguagem e escrita. O
planejamento adequado destas práticas, visa não somente a apreensão dos conteúdos passados,
mas principalmente, à tarefa de articular propósitos didáticos com propósitos sociais. Partindo
destes princípios e considerando que o foco da presente pesquisa se encontra em estudar os
19

fundamentos que possibilitam a produção textual na alfabetização inicial, o aprofundamento com


relação às modalidades organizativas terá como foco o ensino por meio de projetos didáticos.

2.3 O trabalho com projetos na alfabetização inicial


Projeto didático é um tipo de organização e planejamento do tempo e dos conteúdos que
envolve uma situação-problema. Seu objetivo é articular propósitos didáticos (o que os alunos
devem aprender) e propósitos sociais (o trabalho tem um produto final, como um livro ou uma
exposição, que vai ser apreciado por alguém). Além de dar um sentido mais amplo às práticas
escolares, o projeto evita a fragmentação dos conteúdos e torna a garotada corresponsável
pela própria aprendizagem ( MOÇO, 2011 p.1).

A importância da utilização de projetos durante a alfabetização inicial encontra-se no fato de


que por meio desta prática, torna-se possível dar sentido mais amplo às práticas escolares. Dar
sentido às práticas escolares diz respeito a um fazer pedagógico que evita a fragmentação dos
conteúdos e se utiliza de estratégias planejadas no aprendizado dos mesmos. Em outras palavras,
a utilização de projetos diz respeito a uma prática que dá sentido às tarefas realizadas, onde o
objetivo se encontra em compreender a utilização destas práticas escolares com um objetivo final,
o que comumente se chama de produto final.
É importante destacar também que o fato de se denominar projeto, não corresponde
simplesmente a uma sequência aleatória de propostas com um tema comum, mas a uma relação
significativa entre o objeto de estudo que se pretende ensinar com práticas funcionais na escola
para promover a aprendizagem.
Outro ponto importante do trabalho com projetos na escola encontra-se na possibilidade de
organização das práticas de modo flexível no que diz respeito à gestão do tempo. A depender do
objetivo estipulado, o projeto pode ter duração de apenas alguns dias, semanas, ou até mesmo
durar meses. Desse modo, o tempo é organizado em prol do objetivo proposto e das datas
definidas, possibilitando ao professor por vezes, compartilhar a gestão deste tempo com os alunos,
mediante a data prevista para a finalização da proposta.
Estima-se que durante a alfabetização inicial a organização das práticas seja utilizada em
prol de propostas que favoreçam a aprendizagem da leitura e da escrita. Quanto ao trabalho com
textos no início da alfabetização, pode-se trabalhar com projetos de reconto oral, produção textual,
escrita e reescrita de textos, produções coletivas, leituras programas, leituras em voz alta pelo
professor, roda de leitores, dentre outros. Em todas as possibilidades, o objetivo encontra-se em
proporcionar aos alunos o exercício de comportamentos leitores e escritores 8 e que favoreçam
tanto a compreensão do sistema gráfico de escrita, quanto noções de linguagem oral e linguagem
escrita (BRAKLING, 2008).
20

2.4 O exercício da oralidade na escola


A oralidade -dentre outras formas de representação -desde os primórdios da humanidade
trouxe para a vida em sociedade a possibilidade de comunicação, de interação, de transmissão
daquilo que se quer expressar.
Na escola, como expressa o PCN de língua portuguesa, há uma preocupação com a
utilização da linguagem oral pelas crianças, principalmente durante a alfabetização inicial.
Santos (2003) em um de seus artigos traz essa questão a tona: o trabalho com a linguagem
oral e escrita dentro da escola. Desde a inclusão do tema no próprio PCN, muitos professores ainda
têm dúvidas sobre como trabalhar a oralidade e a abordagem de textos orais e escritos em sala de
aula, principalmente com crianças que ainda não escrevem e lêem convencionalmente.
A autora destaca alguns pontos que justificam de certo modo, essa dificuldade dos docentes.
Um deles é o difuso entendimento da diferenciação entre essas duas faces da linguagem. Mas
afinal, como trabalhar com a produção de textos em linguagem escrita?
Os docentes precisam compreender como o processo de produção de texto em linguagem
escrita ocorre, para enfim mostrar aos seus alunos diferentes possibilidades de expressão na sua
língua. É importante também, que concebam a oralidade e a escrita não como dicotômicas, mas
como:
[...]um continuum tipológico, caracterizado, de um lado, pelas peculiaridades de cada uma dessas
modalidades e, de outro, pelas semelhanças percebidas em diversos gêneros - o que faz com que
às vezes se torne bastante difícil definir o limite entre elas. Assim, por exemplo, um bilhete, apesar
da forma escrita, guarda muitas semelhanças com uma conversa informal, e uma conferência,
embora oral, se parece com um texto formal escrito (SANTOS, 2003 p.1).

Se por um lado não se deve pensar a oralidade e a escrita como faces dicotômicas de uma
mesma linguagem, por outro, nessa situação de produção de textos por crianças na alfabetização
inicial, aquilo que foi realizado inicialmente no plano da oralidade, através do professor, pôde
materializar-se em aspecto gráfico, necessário para que a criança estabeleça relação daquilo que
se diz com aquilo que se escreve, em outras palavras, nesta prática a oralidade e a escrita são
trabalhadas simultaneamente.
Dentre tantas questões envolvendo a dificuldade de se trabalhar a oralidade e a escrita em
um contexto de alfabetização inicial, encontra-se também a dificuldade de docentes que acreditam
que debater um assunto, ou promover ao aluno momentos em que se utilize de um discurso já são
propostas que potencializarão a oralidade, visto que a fala é algo que os alunos já utilizam durante
todo o dia, e que, por esse motivo, não é algo que precisam se preocupar nesta fase da
escolaridade. De algum modo os PCN’s que devem –ou deveriam- orientá-los a trabalhar com a
oralidade, deixam um pouco a desejar, pelo falo de atribuir à escola o papel de ensinar o aluno a
21

utilizar-se da linguagem oral em apresentações teatrais, entrevistas, debates, para que faça sentido
o ensino da linguagem escrita:
[...] Trata-se de propor situações didáticas nas quais essas atividades façam sentido de fato,
pois é descabido treinar um nível mais formal da fala, tomado como mais apropriado para
todas as situações (SANTOS,2003 p.25).

Estima-se que tais propostas façam sentido para a criança. Contudo, percebe-se nesse
trecho que o exemplo de peças teatrais, debates e entrevistas não se encaixa devidamente ao
ensino da linguagem falada, visto que tais modalidades necessitam de uma escrita anterior à
atividade em si, pois agem como uma espécie de simulação da fala e não de uma oralidade
espontânea (SANTOS, 2003 p.2)
Na situação de ditado ao professor, as crianças planejam oralmente aquilo que é
materializado pelo professor em forma gráfica. Desse modo, o fato de materializar a oralidade em
escrita, é suficiente para denominar o texto escrito em linguagem escrita?
O uso de palavras e sinais gráficos seria suficiente para transformar um texto falado em texto
em linguagem escrita? Como diferenciar então linguagem falada de linguagem escrita?
Para responder a tais questões, se faz necessária a observação de alguns contextos, como
os apresentados por Preti (2003).

2.5 Linguagem falada: situação conversacional

Em uma situação onde a oralidade é apresentada de maneira espontânea, como em uma


conversa, a atividade que se dá entre os interlocutores é o diálogo, uma atividade verbal. Tais
interlocutores alternam seus papéis durante este diálogo, papéis estes diferenciados em falante e
ouvinte. Outra característica de um diálogo se encontra no fato de que os interlocutores neste caso,
é que sua atenção está voltada inteiramente para uma tarefa comum, ou seja, compartilham pontos
de um mesmo assunto.
Preti (2003) apresenta estudos sociolingüísticos para a análise de textos orais, em outras
palavras, uma linguagem oral materializada em grafia. O autor afirma:
Conversação natural, que ocorre espontaneamente no dia-a-dia, dá-se face a face, presentes
os dois falantes, ao mesmo tempo, num mesmo espaço. ...[..] Outras vezes faz-se alusão à
atmosfera descontraída em que se desenvolve a conversa pela referência a reações dos
interlocutores, como risos (p.23).

Neste caso, a face da língua apresentada é a linguagem falada. Todos esses elementos nos
mostram pontos característicos de uma conversa, tanto em suas questões linguísticas como em
paralinguísticas , como os olhares, gestuais e expressões faciais.
Estima-se que essa linguagem apresentada, no caso de ser gravada e transcrita
(materializada em grafia) em muito perderá seu real significado, pois o papel dos interlocutores
22

quanto ao tom de voz, entonação, risos e outras marcas da oralidade seriam omitidos. Por outro
lado, seu gênero certamente seria identificado como uma situação conversacional espontânea, por
conta de sua estrutura e organização dos fatos e falas dos interlocutores. É válido ressaltar que
Santos (2003) apresenta em seu artigo que, embora a linguagem falada deva ser trabalhada
adequadamente na escola: “Em nenhum momento o PCN sugere a análise da conversação
espontânea” (p.3). Estima-se que isso ocorra pelo fato de que o que se espera dentro da escola é
que as múltiplas faces da linguagem sejam propostas de maneira significativa para a criança, de
modo que o planejamento ocorra levando em conta conhecimentos que a criança traz consigo antes
de ingressar na “vida escolar”.
Certamente grande importância se encontra no desenvolvimento adequado da linguagem
falada, contudo, o foco do ditado ao professor não se encontra somente na oralidade, mas também
nas modificações cognitivas que se estruturam através da fala, como o pensamento e a
organização dos fatos que se deseja narrar. Quando se deseja ditar algo para que alguém escreva,
é necessário organizar a fala de modo que relacione o que se quer dizer, com o que se quer
escrever, pois o fato de ser elaborada oralmente, não torna a escrita uma representação em
linguagem oral, por exemplo. Em um outro caso, uma conversa espontânea analisada por Preti
(2003), mesmo quando materializada, não se encontra em linguagem escrita, pois o simples fato
de grafarmos a fala não torna o texto em linguagem escrita, pois a fala carrega consigo marcas da
oralidade, do diálogo, da relação entre os interlocutores, dentre outras questões.
Levando em conta tais estudos sociolinguísticos, conclui-se que a fala das crianças
transcritas pelo professor não necessariamente se encontra em linguagem escrita, pois o fato de
estar materializado em grafia não é fator determinante para uma linguagem falada tornar-se
linguagem escrita. Desse modo, compreende-se então, que o papel do professor não é somente
transcrever a fala de seus alunos, mas intervir de modo a perguntar-lhes: Como posso escrever o
que está me ditando? Se alguém ler nosso texto, compreenderá a mensagem que estamos
passando? Podemos escrever de outra forma? Como são escritos os livros que você conhece?

2.6 Linguagem escrita: A relação dos interlocutores

Sabe-se então, que a linguagem escrita não é simplesmente a materialização gráfica daquilo
que se diz, mas a transposição de uma fala espontânea para uma linguagem daquele que deseja
escrever.
O modo como escrevermos não corresponde ao modo como falamos. Naturalmente, essa
transposição para nós adultos ocorre a medida que pensamos a mensagem que queremos
transmitir e logo a escrevemos. Com as crianças este pensamento ocorre através de um processo
que precisa ser norteado pelo professor não somente com a aplicação de propostas que a este
23

conceito favoreçam, mas principalmente nas intervenções produtivas planejadas previamente, e


aferidas durante a produção textual. A fala e a escrita então, são conceitos dos quais exigem
conhecimentos diferentes para a sua boa e execução.
A língua escrita não é apenas a representação da língua falada, mas sim um sistema mais
disciplinado e rígido, uma vez que não conta com o jogo fisionômico, as mímicas e o tom de voz do
falante, e nesse processo de construção de noções de linguagem escrita, não se objetiva o ensino
da leitura e da escrita, mas sim exercitar essa transposição de termos, expressões e revisões que
se aproximem o texto ao máximo de uma produção em linguagem mais adequada. Teberosky
(1992) justifica que como as crianças pré-escolares podem reproduzir características da linguagem
escrita, ainda que não alfabetizadas, o ensino deve ter início nestas questões e não somente na
aprendizagem do código:
[...] estamos certos de que é mais conveniente iniciar o ensino pela linguagem escrita e não pelas
unidades de regras da escrita [...]. Tendo superado os preconceitos e em função das evidências,
pudemos também reconhecer nas crianças pré-escolares, assim como nos adultos analfabetos, a
capacidade de produzir e reproduzir de forma mais ou menos fixa as características principais da
linguagem escrita, embora não possuam a habilidade de escrevê-la materialmente (TEBEROSKY,
1992 p.41 - 42).

Diferentemente da situação conversacional, onde os interlocutores geralmente ocupam o


mesmo tempo e espaço, juntos na construção do diálogo em torno de um tema de interesse comum,
a relação dos interlocutores no caso da linguagem escrita é de distanciamento. O autor do texto e
seu leitor não se encontram em um mesmo espaço de tempo, tornando importante o planejamento
devido da mensagem que se pretende passar reconhecendo a existência do seu leitor real.
Além disso, o escritor e leitor não alternam seus papéis no decorrer da elaboração do texto escrito,
sempre a cargo de um único sujeito, seu autor. Ele se mostra sempre preocupado em produzir algo
convincente para diferentes leitores, em diferentes momentos, em diferentes lugares (CHAFE, 1985,
apud PRETI, 2003 p.31).

Este distanciamento exige planejamento do autor do texto. Por outro lado, o leitor, por não
acompanhar a produção, limita-se a compreender informações contidas e passadas através do
texto. Neste caso, não há alternância de papéis, o autor é sempre o autor, e o leitor é passivo diante
de sua produção, ele é sempre receptor.

Um lapso de tempo maior ou menor obrigatoriamente põe distância entre o ato de elaboração
do texto pelo escritor e o ato de leitura pelo leitor. Aliás, o escritor nem se pode afirmar que
ele se preocupa com tal problema; ele constrói sozinho seu texto. O isolamento do escritor
com relação ao leitor faz com que este leitor só possa dispor de informações passadas no e
pelo texto, já que não dispõe de dados do contexto situacional. A língua escrita tem de
compensar a ausência da situação, fornecendo, linguisticamente, informação a ela
equivalente, ou, em tese, precisa haver a recuperação linguística do componente situacional
( HALLIDAY, apud PRETI, 1974p.31).

A diferenciação entretanto, entre as duas faces da língua, se encontra não somente em


sua linguagem gráfica, mas também a questões de produção e planejamento.
24

Evidentemente, elas não se diferenciam apenas quanto à substância, ou à matéria-prima da


língua, substância fônica percebida pela audição, a da língua falada, gráfica ou visual da
língua escrita. Afinal, a língua escrita não constitui pura transcrição da fala. Ao mesmo tempo,
não basta que a língua seja realizada oralmente, constituindo produto perceptível pela
audição, para ser considerada falada [...]. Assim, as diferenças entre língua falada e língua
escrita são de outra natureza [...] elas resultam de diferenças entre os processos de falar e
de escrever, ou entre condições de produção de texto falado e do escrito.O ato de escrever
constitui algo solitário: o escritor não interage com seu leitor, ele elabora seu texto sozinho,
sem a colaboração do eventual leitor, e as tarefas de planejar e elaborar o texto são de sua
inteira responsabilidade. “O texto escrito não deixa marcas do processo de planejamento: ele
se apresenta como um todo coeso, acabado, com frases mais densas e sintaticamente mais
complexas” (idem p.35 – 36)

Este capítulo ao abordar a complexa missão do professor construtivista, frente a todos os


aspectos que a ele compete, destaca a importância de gerir o seu tempo em prol de práticas
significativas para a aprendizagem de seus alunos. Além de organizá-las, compete ao professor
utilizar suas práticas de modo consciente frente aos objetivos que se deseja alcançar. Torna-se
relevante tratar desses aspectos face a necessidade de estudar os fundamentos que possibilitam
a produção textual durante a alfabetização inicial, visto que além de ser uma prática que exige bom
planejamento do seu desenvolvimento e produto final, exige também intervenções possíveis que
atendam aos objetivos propostos.
25

CAPÍTULO lll. PRODUÇÃO TEXTUAL NA ALFABETIZAÇÃO INICIAL: A IMPORTÂNCIA DE


ESCREVER PARA OS ALUNOS

O desafio é formar pessoas desejosas de embrenhar-se em outros mundos possíveis que a


literatura oferece (LERNER, 2002, p.27)

Produzir um texto com crianças no início da alfabetização implica em reconhecer os


benefícios desta proposta para sua aprendizagem. A fim de destacar a importância do ditado ao
professor, o presente capítulo se apresenta em cinco seções.
A primeira e a segunda tratam da importância da proposta didática de ditado ao professor
quanto às questões de avanço no processo de aquisição da linguagem escrita e no processo de
alfabetização inicial, apresentando práticas fundamentais para a realização da proposta levando
em conta todo o processo de produção textual, enquanto planejamento, execução e revisão do
texto produzido (BARBEIRO, 2007). A terceira traz a questão da escrita coletiva como proposta
favorecedora da troca de conhecimentos entre os alunos, seguida pela quarta seção, que trata
especificamente da escrita de textos que as crianças já possuem de memória.
Por fim, destaca-se a importância de transpor o objeto que se deseja ensinar de modo a
aproximar-se do modelo social vivido fora do âmbito escolar, trazendo para a proposta um momento
de aprendizagem significativa e atendendo a uma função social (LERNER, 2002).

3.1Ditado ao professor: por quê escrever para os alunos?


Sabe-se que o ditado constitui uma das práticas sociais. Ditar é uma maneira de escrever,
mesmo que oralmente. Nucci e Isias (2004) na série “Cuadernos de Educación Y Prácticas
Sociales” definem que:
Ditar supõe então redigir oralmente um texto escrito e adequar o que se dita a todas as
restrições do tipo de texto que se está produzindo; usar as formas e o léxico próprio do
gênero, respeitar a estrutura que o caracteriza ou transgredi-la para produzir algum
efeito particular (p.3).

Por outro lado, as autoras tratam também de aspectos que dizem respeito às preocupações
que o ditante deve ter durante a produção. Quem dita deve fazer distinção entre dizer e dizer para
ser escrito. Deve também realizar o controle da extensão daquilo que se pretende ditar,
recuperando sempre a ordem sequencial daquilo que já produziu.
Este procedimento, porém, em se tratando do âmbito escolar, historicamente destinou-se
aos alunos. O ditado em voz alta feito pelo professor aferia questões exclusivamente ortográficas,
sem nenhuma relação com o processo de produção de algum tipo de texto.
Neste caso, a professora espera que seus alunos transcrevam de modo a atender
convencionalmente as regras da chamada “ortografia-padrão”. Teberosky (1992) ressalta que na
utilização do ditado escolar é possível identificar certa dissociação entre composição e apenas
26

transcrição gráfica, pois o que se observa no aluno não é sua capacidade de compositor tão pouco
de “ditador”, mas sim, sua relação com o processo de transcrição no modo convencional da escrita.
Olhando de forma inversa para essa proposta de ditado dentro da escola, crianças quando
são postas em posição de ditantes ao professor, pode-se afirmar que o que se espera neste caso
dos alunos, não é a ortografia e sim, o modo como através da fala são trabalhadas noções de
produção textual mediante a diferenciação do “dizer” e o “dizer para ser escrito”.
O ditado é uma atividade linguística que tem muitas características de produção oral (embora
se produza um texto auto-suficiente,o ditante utiliza recursos prosódicos, por exemplo, para
apontar as diferenças entre o dizer e o dizer para ser escrito , tem que ter um certo controle
do processo, de modo a respeitar as exigências do escritor) e muitas outras características
da produção escrita (o ditante tem à sua frente o escriba, mas não o orador; o texto pode ser
revisto e corrigido , e pode ser lido também para distinguir entre o que está escrito e o que
ainda está para ser escrito, o ditante tem que pensar e produzir o texto oralmente, porém
como se fosse escrito)9 (FABBRETTI,TEBEROSKY,1993, p.216).

Falar de forma planejada e sistemática, atendendo aos objetivos do texto que se quer
produzir, levando em conta o leitor real da mensagem que se quer passar não é algo simples,
principalmente para sujeito que está no início de sua alfabetização.
Por tempos, linhas metodológicas ancoradas em algumas fundamentações tradicionais,
defenderam que para produzir um texto em linguagem escrita era necessário saber ler e escrever.
A grande possibilidade do ditado ao professor encontra-se no fato de que os ditantes não colocarão
em jogo sua hipótese de escrita. Ou seja, em outras palavras, saber escrever não é requisito aferido
nesta atividade textual: “O importante do ditado do texto ao professor [..] é a diferenciação entre o
trabalho gráfico e a composição do texto” (p.16). A atenção neste caso, se encontra em possibilitar
ao aluno uma apropriação das práticas dos procedimentos de textualização, bem como valorizar
aspectos da língua escrita.
A atenção aos aspectos da língua escrita como prática social supera a preocupação de
introduzir as crianças somente ao sistema alfabético, tradicionalmente considerado a coisa
mais importante quando se trata do acesso a língua escrita (NUCCI. ISIAS, 2004 p.2).

A fim de compreender melhor essa dissociação entre trabalho gráfico e produção, Teberosky
(1992) utiliza o termo “composição escrita” e define que: “[..] a composição escrita geralmente é
associada à geração de idéias”(p.103).Dessa forma, o papel do ditante está em organizar e planejar
aquilo que se quer dizer para que a professora o manifeste em grafia:
Embora o reconhecimento e a produção da linguagem escrita sejam independentes de sua
manifestação gráfica, a intervenção do instrumento gráfico condiciona os processos de produção
de linguagem escrita, e as circunstâncias de uso influem nas variedades de discurso privilegiadas
para os enunciados escritos (Teberosky 1992,p.58).

9
Tradução nossa: El dictado es una actividad lingüística que posee muchas características de la producción oral (aunque produzca
un texto autosuficiente, el dictante utiliza recursos prosódicos, por ejemplo para señalar las diferencias entre lo que se dice
simplemente y lo que se dice para que se pueda escribir, tiene que tener un cierto control del proceso, de manera que se respeten
las exigencias de quien escribe) y muchas otras características de la producción escrita (el dictante tiene ante sí al escribiente, pero
no al interlocutor; el texto puede ser revisado y corregido, y puede leerse también para distinguir entre lo que está escrito y lo que
todavía tiene que escribirse; el dictante tiene que pensar y producir el texto oralmente pero como si fuera escrito)
27

No "Guia de Estudo para o horário coletivo de trabalho: subsídios para os coordenadores


pedagógicos" (2006), esta questão também é colocada em jogo. De fato, o documento mostra que
alguns docentes embora conheçam a proposta de produção oral de texto ainda têm dúvidas sobre
ela. Dentre as dúvidas mais frequentes, questões a respeito da autoria do texto, como também
questões da própria prática, como as intervenções possíveis.
Embora não se objetive propor um modelo didático engessado (como um método por
exemplo), o Guia apresenta os principais objetivos da produção oral e fornece subsídios para que
o docente venha a planejar e intervir produtivamente durante a proposta:
O tratamento que se dá à escrita na instituição de educação infantil pode ter como base a
oralidade para ensinar a linguagem que se usa para escrever. Ditar um texto para o professor,
para outra criança ou para ser gravado em fita cassete é uma forma de viabilizar a produção
de textos antes de as crianças saberem grafá-los. É em atividades desse tipo que elas
começam a participar de um processo de produção de texto escrito, construindo
conhecimento sobre essa linguagem, antes mesmo que saibam escrever autonomamente.
Ao participar em atividades conjuntas de escrita a criança aprende a: repetir palavras ou
expressões literais do texto original; controlar o ritmo do que está sendo ditado, quando a fala
se ajusta ao tempo da escrita; diferenciar as atividades de contar uma história, por exemplo,
da atividade de ditá-la para o professor, percebendo, portanto, que não se diz as mesmas
coisas nem da mesma forma quando se fala e quando se escreve; retomar o texto escrito
pelo professor, a fim de saber o que já está escrito e o que ainda falta escrever; considerar o
destinatário ausente e a necessidade da clareza do texto para que ele possa compreender a
mensagem; diferenciar entre o que o texto diz e a intenção que se teve antes de escrever;
realizar várias versões do texto sobre o qual se trabalha, produzindo alterações qu e podem
afetar tanto o conteúdo como a forma em que foi escrito (p.165 – 166).

De certo modo, escrevendo para seus alunos o professor os isenta de se preocuparem (ao
menos naquele momento) com o sistema gráfico de escrita. Dessa forma, as expressões literais, a
escolha das palavras, a retomada de partes que necessitam de ajustes, como também o diálogo e
a interação entre os produtores -neste caso os alunos- se tornam ainda mais propícios, visto que é
nelas e a partir deles que a atividade irá se desenvolver.

3.2 Componentes da produção textual


Planejar, textualizar, revisar mais uma vez... são os grandes comportamentos do escritor, que
não são observáveis exteriormente e que acontecem, geralmente, em particular ( LERNER,
2002, p.63).

Quem escreve tem o trabalho de realizar algumas tarefas complexas. Deve-se ter em mente
a importância de realizar tais tarefas levando em conta os elementos que constituem o ato de
escrever. Escrever implica em realizar procedimentos antes, durante, e após a produção. Desse
modo, compreende-se que a escrita não constitui somente o grafar, mas todo processo de
idealização e planejamento, culminando na materialização gráfica, e conclui-se somente ao término
de todas as revisões.
A produção textual contempla então conteúdos e práticas de leitura e de escrita em uma só
tarefa. Quando se produz se lê, retoma-se pontos, faz-se ligação com outros textos, com outros
autores, retoma-se a escrita e posteriormente, se revisa a quantidade de vezes que o autor julgar
28

necessário. Estes diversos papéis enunciativos ocupados pelo autor em prol de uma tarefa única é
o que se espera de um bom escritor (LERNER, 2002, p.62).
Ler e escrever na escola não somente para aprender a ler e a escrever, mas para fazer uso
destas práticas na vida em sociedade, participando das comunidades leitora e escritora fora do
âmbito escolar. Ler e escrever nesta perspectiva de produção textual então, corresponde a uma
prática que deve ser trabalhada na escola em prol dos comportamentos leitores e escritores (p.63).
Quanto aos componentes de uma produção textual, Barbeiro (2007) os divide em três
momentos: planificação, textualização e revisão. Tais componentes constituem o processo de
produção.
Estas atividades presentes no processo de escrita podem ser agrupadas segundo três
componentes: planificação, textualização e revisão. As atividades ligadas a cada um destes
componentes podem surgir em diferentes momentos do processo. Por exemplo, ao longo do
processo, acontecem momentos de pausa em que quem escreve procura planificar o que
ainda falta escrever. Por seu lado, a revisão pode ir sendo realizada ao longo do próprio
processo, à medida que se vai redigindo e relendo o que já se encontra escrito
(BARBEIRO,2007, p.17).

São estes componentes que devem ser realizados pelo escritor ao escrever. Pensar e
planejar o seu texto, escolher as palavras adequadas e em seguida, revisar o que foi produzido são
comportamentos inerentes ao ato de escrever. Estes e outros comportamentos como cita Lerner
(2000), devem ser trabalhados durante a vida escolar, ainda que no início do processo de aquisição
do sistema. Quando convidadas a exercerem tais comportamentos ainda quando pequenas, as
crianças experimentam a escrita enquanto processo gostoso e lúdico e são levadas a exercerem
papéis e funções que certamente se recordarão quando já estiverem alfabéticas.

QUADRO 3: Práticas dos procedimentos de textualização

Componentes
Orienta a produção

Planificação Estabelece objetivos para o processo de


O princípio da produção: escrita;

Ativa e seleciona conteúdos

Organiza informação

Estrutura previamente o texto

Programa a realização da tarefa

Organiza-se o conteúdo

Textualização Formula-se aspectos linguísticos (relação do


À medida que se escreve: que se quer escrever e como escrever).

Articula-se a linguística :aspectos temporais e


de coesão textual.
29

Revisão processual: análise do que já foi


escrito, avaliação do que foi produzido, para
enfim prosseguir com o processo.

Análise da primeira versão

Revisão posterior Reorganização e/ou reescrever trechos


Ao término na textualização:
Substituição de termos inadequados e/ou
repetidos

Avaliação da planificação

Reflexão e leitura final do texto produzido

Organização da autora. Fonte: BARBEIRO, 2007, p.17 a 19

Planificação

Segundo Barbeiro (2007), a planificação antecede a produção textual. Ainda que aconteça
previamente à textualização, caracteriza-se por ser um momento importante para a produção.
Planificar diz respeito ao ato planejar e definir questões que deverão conduzir a escrita do texto.
Ao explicitar suas ideias, o autor organiza seus pensamentos e traça um caminho para
prosseguir com a produção. É neste primeiro contato com o que se pode chamar de “esqueleto do
texto” que o autor escolhe enredos, temas, acontecimentos, personagens, fatos, palavras, tudo
conforme o objetivo do texto. O objetivo do texto está ligado à mensagem que se pretende passar,
a função do texto que se produziu, ou seja, o motivo pelo qual se escreveu e é condição para um
bom planejamento, ter em mente a razão pelo qual se escreve. Refere-se a uma produção que
valoriza o seu leitor real, e consequentemente, faz com que o autor planeje sua escrita em prol de
um objetivo real. Para designar pontos importantes para o momento de planificação, o autor
destaca o que pode-se chamar de “subsídios para uma boa planificação”:

Quadro 4: Elementos que constituem o ato de escrever


Quem escreve? Um ou mais autores?
Para quem escreve? Quem é o leitor real? Um grupo? O próprio autor?
Sobre o que escreve? Qual assunto? Gênero? O que precisa conter?
Com que/quais objetivos? Para quê se escreve? Qual a finalidade? Quais
funções esta escrita trás?
Como se escreve? Como será o processo de textualização?
Em que meios ou suportes permanecerá o texto Caderno, jornal escolar, biblioteca?
produzido?
Quais respostas se pode obter? No caso de ser uma carta, convite, ou um documento
de estudo e consulta.
Organização da autora. Fonte : BARBEIRO, 2007, p.12 a 13.
30

Barbeiro ao propor tais subsídios, tratou de conceder ao professor o papel de planejar a


proposta de produção textual aos seus alunos, tendo em mente a importância de saberem o motivo
pelo qual se escreve. Escrever para deixar guardado em uma pasta e escrever para convidar
alguém para uma festa, para alertar sobre cuidados de higiene ou para contar uma história,
certamente carregam motivações e objetivos diferentes. O fato é que quando se trabalha produção
textual na escola, certamente deve-se ter a preocupação de propor ao aluno atividades que são
exercidas em sociedade, atividades que tenham sentido ao escrever. Lerner (2000) traz à tona um
questionamento pertinente: “[...] por que e para que ensinar algo tão diferente do que as crianças
terão que usar depois, fora da escola? ” (p.33).

Textualização

Seja em roda com a turma escrevendo em uma grande folha ou na lousa para que todos
possam acompanhar, é neste momento que o ditado acontece de fato. O professor ocupa o papel
de escriba do texto produzido oralmente por seus alunos, e se torna corresponsável pelo que eles
estão produzindo.
No curso da textualização, os alunos são levados a pensar como querem que os pontos
planejados na planificação apareçam no texto, e, consequentemente, são levados a pensar em
quais palavras e termos utilizarão para transmitir a mensagem que desejam.
Neste momento é importante que o professor escriba exerça também o papel de leitor para
auxiliar seus alunos no texto que está sendo produzido. A cada trecho escrito, o professor relê o
que foi produzido para que, mediante o que está feito, possam caminhar para o que ainda resta
escrever.

Revisão

O termo “revisão” refere-se ao ato de rever algo, revisar determinado objeto. No processo
de produção textual o termo está ligado a um fazer do escritor complexo e trabalhoso. Revisar um
texto produzido é, sem dúvida, um momento que demanda atenção do autor a termos, trechos, que
ele julga inadequados e que necessitam de eventual mudança.
Ressalta-se que ao autor, seu texto lhe é próximo, íntimo e familiar. Neste ponto a produção
textual para o seu autor apresenta-se como coesa e clara, pois ele quem a produziu. No momento
da revisão é fundamental que se tenha sensibilidade quanto à importância de distanciar-se do texto
e colocar-se por vezes no papel de leitor, para compreender de modo diferente aquilo que desejou
escrever e, quem sabe, apontar trechos do texto que para o leitor, podem ter sentido ambíguo. Esta
é a grande possibilidade da revisão: avaliar a escrita e poder aperfeiçoá-la.
31

Quando à análise feita durante a revisão, estima-se que se destaque pontos de encontro
entre o texto produzido e os objetivos propostos durante a planificação. Analisar se os objetivos
foram alcançados, por exemplo, é um trabalho de rever o curso da textualização e compreender se
o caminho tomado era o esperado.
Os componentes da produção, constituem um único processo e são dependentes entre si
para que a escrita ocorra de fato no modo convencional do termo. Ir e vir no texto, escrever e
modificá-lo quando necessário, é o que se espera nessa introdução ao mundo escritor para o sujeito
que se encontra no início de sua alfabetização.

3.6 A importância da escrita coletiva


O processo de textualização se realiza, nesse caso, através de um ditado das crianças para
o professor, já que se trata de produzir um texto único. A produção coletiva permite ir
discutindo a forma como se comunicarão as ideias – as crianças ditam diferentes
possibilidades, que são discutidas e a partir das quais se vai elaborando uma versão mais
adequada- e dá lugar a uma forte intervenção do professor, que mostra para as crianças
alguns problemas que elas não detectam por si mesmas (por exemplo : frases que podem
resultar ambíguas para alguém que não leu os mesmos textos que elas, necessidade de
substituir expressões próprias da oralidade por outras que sejam mais adequadas num texto
expositivo...) Através de sucessivas revisões do que se foi escrevendo e da reflexão sobre
as relações entre o já escrito e o que se vai escrever, tenta-se assegurar a coerência do texto.
Em muitos casos, modifica-se o plano originalmente elaborado: no curso da textualização,
são detectadas relações que antes não tinham sido estabelecidas, percebe-se a necessidade
ou a possibilidade de organizar as ideias de outra maneira, mais compreensível para o leitor
(LERNER, 2002, p.85).

Escrever com o outro implica em tomar decisões consensuais durante a produção. Frente a
inúmeros obstáculos que a escrita apresenta, a produção grupal deve ser envolta por debates, por
idas e vindas no texto produzido e no planejamento do que ainda resta produzir.
Teberosky (1992) aponta que nas produções orais trabalha-se por aproximações
sucessivas, ou seja, o falante tem algo para dizer, e em seu repertório procura a palavra adequada
para dizê-lo. Muitas vezes, ao passo que dita também faz comentários sobre a adequação daquela,
que, escolhida para denominar sua fala, materializou-se em grafia. Coletivamente esse trabalho
acontece da mesma forma. O falante, em contrapartida encontra comentários favoráveis ou não à
sua fala e juntos buscam uma adequação daquilo que pretendem dizer:
A interação que ocorre na escrita colaborativa permite apresentar propostas, obter reações,
confrontar opiniões, procurar alternativas, solicitar explicações, apresentar argumentos,
tomar decisões em conjunto ( BARREIRO, 2007,p.10).

Dessa forma, o texto deve ser reelaborado sempre em conjunto, em discussões e revisões
e, caso houver a necessidade de substituir alguma palavra que se repete, alguma expressão
inadequada como “daí”, “aí”, pode ser substituída para expressões como “de repente” , “tempos
32

depois”... etc. A reelaboração do texto produzido seja coletiva ou individualmente com a mediação
do professor, faz com que a criança :

Aprenda a conceber a escrita como processo, começando a coordenar os papéis do produtor


e leitor a partir da intervenção do professor ou da parceria com outra criança durante o
processo de produção As crianças e o professor podem tentar melhorar o texto,
acrescentando, retirando, deslocando ou transformando alguns trechos com o objetivo de
torná-lo mais legível para o leitor, mais claro ou agradável de ler (TEBEROSKY,1992 p.166).

Ressalta-se, então, que é papel do professor planejar e sistematizar momentos de interação


com um objetivo comum, onde se faz necessário consultar o outro. Dessa forma, ele reconhece a
heterogeneidade da turma e se utiliza dela para favorecer a troca de informações e, com isso,
favorecer o processo de aprendizagem, onde uma criança possa exercer diferentes papéis
enunciativos, ou seja, posiciona-se ora como escritor, ora como leitor e, nesse processo
progressivo, alcançará em determinado momento autonomia para realizar a produção sozinha.

3.7 Quanto à reescrita de textos de memória


Com relação à reescrita de textos, nesse caso, o que se espera dos alunos não diz respeito
a questões de tematização ou produção do enredo. Nesta proposta, as crianças conhecem
determinada história de memória e por esta razão, devem organizar os fatos temporais, seu espaço,
personagens, acontecimentos e a ordem em que eles acontecem.
Durante a leitura do texto escolhido para a reescrita, espera-se que o professor traga à tona
questões que possam, de certa forma, passar despercebidas.
Deste modo, são levados a pensar em como reescrever um texto que já conhecem usando
suas próprias palavras, como também, se apropriando de elementos discursivos do texto fonte. De
certa forma estes termos muitas vezes são repetidos pelos alunos como forma de recordar partes
que mais chamaram-lhe atenção. Termos tais como “era uma vez”, “viveram felizes para sempre”,
ou até mesmo diálogos entre os personagens da trama. Outro ponto importante que se pode
destacar ao se pensar sobre essa apropriação, é o fato de que os alunos se utilizam destes termos
em seus textos pessoais, tornando a utilização destes mesmos termos dependente de uma reflexão
sobre todo o contexto da produção, visto que para repeti-los, certamente o aluno precisou “encaixá-
lo” de modo que tornasse o discurso coesivo.
Como afirma Brakling (2009), desta forma sua finalidade é favorecer o processo de aquisição
da linguagem escrita:
Fundamental é compreender, portanto, que a atividade de reescrita deve ser realizada com a
finalidade de possibilitar ao aluno a aprendizagem da linguagem escrita, e não do sistema de
escrita. Para a aprendizagem deste último, há que serem organizadas atividades específicas
(p.45).

Para uma proposta de escrita ou produção oral com destino escrito ser de fato interessante,
deve acontecer em um contexto de interação e contemplar de modo significativo o objetivo daquilo
33

que se pretende cumprir. Para isso, é preciso que as crianças aprendam a trabalharem juntas e,
acima de tudo, reconheçam a função daquilo que lhes foi proposto.

3.8 Escrita com sentido e transposição didática


Reconhecendo a complexidade do processo de produção em questão nesta pesquisa, sabe-
se que é uma tarefa que demanda atenção e trabalho. Quando se trabalha a escrita de forma oral
com crianças em processo de alfabetização, é importante que cada componente seja explicitado
de modo objetivo e com sentido.
O termo “escolarizar práticas sociais” (LERNER, 2000, p.33) diz respeito a essa preocupação
em manter o sentido da tarefa social que, no caso, se torna objeto de estudo na escola.
O trabalho com a produção de textos deve ser marcado por uma prática na qual escrever
tem sentido para a criança. Fazer sentido não significa somente ter um arranjo temático que ela
possa compreender, mas, além disso. Fazer sentido para a criança diz respeito a uma proposta
onde o objeto de estudo em questão se parece com sua versão social, o que, segundo Lerner,
(2002) Chevallard chama de transposição didática. Neste caso, o que se espera é que tais práticas
de leitura e escrita tenham função social, que levem a mensagem para um receptor real. Trazer
para a escola atividades que tenham significado diz respeito a um fazer pedagógico que questione
ao propor: “por quê estamos escrevendo? ”, “quem é o nosso leitor? ” e, “com qual finalidade
escrevemos?”. Quando tais questionamentos permeiam o planejamento docente, o trabalho com a
leitura e a escrita tornam o ato de ler e de escrever uma prática funcional: leio e escrevo porque
tenho um propósito real, no que diz respeito ao:
Objetivo pretendido (qual a razão da escrita?), ao espaço de circulação (em que âmbito o
texto será divulgado?), ao leitor presumido (quem o escritor tem em mente, ao produzir seu
texto?), ao suporte pressuposto (em que suporte o texto será disponibilizado?), ao tom que
será assumido (formal ou informal?; irônico ou amigável?; próximo ou distante?) e,
obviamente, ao gênero textual (poema, conto, crônica, fábula, reportagem, notícia, artigo de
opinião, publicidade, panfleto, artigo científico, pôster, resumo, quadrinhos, tirinha, piada?)
na relação com o letramento que se pretende produzir (MARCUSCHI,2008, p.11 -12).

Lerner (2002), em seu livro “Ler e escrever na escola, o real o possível e o necessário” (2002)
aborda questões de leitura e escrita na escola, pensando nessa relação de como ensinar mediante
o modo como a criança aprende dentro deste contexto.
“A necessidade de comunicar o conhecimento leva a modificá-lo” (p.34). Ao afirmar isso, Lerner
traz implicitamente noções não somente necessárias ao ato de comunicar o conhecimento, mas
também de que maneira isso deve acontecer. O fato de tornar-se “modificado”, implica em relações
entre as versões sociais e escolares do conteúdo. Diz respeito à chamada “transposição didática”
(Chevallard, apud Lerner 2002), com o cuidado de se trabalhar o objeto de ensino de maneira
relacionada com a versão social (não escolar) do conteúdo (p.35).
[...] a escrita deve ser entendida como um processo de interlocução entre leitor-texto-autor
que se concretiza via gêneros textuais num contexto sócio-historicamente situado. Por essa
34

razão, no ensino da elaboração textual, devem ser propostas situações que se reportem a
práticas sociais e a gêneros textuais passíveis de serem reconstituídos, ainda que
parcialmente, em sala de aula, tanto no que se refere à produção quanto no que se refere à
recepção do texto escrito. Escrever na escola, portanto, deve ser visto como um ensaio ou
mesmo uma prévia convincente do que será requerido dos jovens aprendizes no espaço
social (MARCUSCHI,2008 p.11).

Como então produzir textos com crianças ainda não alfabetizadas, em um processo de
adequação e construção de novos conhecimentos acerca da linguagem e da escrita? E,
consequentemente, como transpor esse objeto de estudo de maneira que se pareça com sua
versão social?
Em suma, deve-se ter em mente a razão pelo qual se escreve. Deve haver um motivo
significativo para esta produção, algo que no mundo social - não escolar- certamente a criança
participará em sua vida. Escrever para não esquecer algo (lembrete), escrever para transmitir uma
mensagem para o maior número de pessoas possíveis (um cartaz ) , escrever para alguém que
mora longe, escrever convidando alguém para algo ( um convite) dentre tantos outros.
Nesses casos, além de ter clareza da funcionalidade do texto que se está produzindo, deve-se
conhecer as características deste texto, quais informações ele deve conter para que atinja
plenamente seu objetivo.

Quando alguém escreve uma carta, é porque outra pessoa vai recebê-la. Quando alguém
redige uma notícia, é porque muitos vão lê-la. Quando alguém produz um conto, uma crônica
ou um romance, é porque espera emocionar, provocar ou simplesmente entreter diversos
leitores. E isso é perfeitamente possível de fazer na escola: a carta pode ser enviada para
amigos, parentes ou colegas de outras turmas; a notícia pode ser divulgada num jornal
distribuído internamente ou transformado em mural; o texto literário pode dar origem a um
livro, produzido de forma coletiva pela moçada (MOÇO, 2009 p.4).

Por fim, os pontos estudados neste capítulo podem ser divididos em três momentos: a
importância de escrever para os alunos, os componentes necessários para que eles se apropriem
da prática de produção textual, e por fim, a importância de trabalhar com propostas que tenham
função social. Esses três momentos tornam relevante a proposta de ditado ao professor durante a
alfabetização inicial, dando fundamentos e norteando a prática do professor frente a essa proposta.

Planejar atividades que coloquem as crianças como leitoras e escritoras antes mesmo de
dominarem o código gráfico, possibilita inúmeros avanços. Nestes avanços encontram-se o fato de
que é participando de práticas de leitura e escrita com função social que a criança se aproxima da
escrita convencional de modo significativo. Este é o objetivo: tornar a aprendizagem um processo
prazeroso e produtivo dentro da escola.
35

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